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BIOGRAFIA EM PROCESSO: SOBRE SÁNCHEZ
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BIOGRAPHY IN PROGRESS: SOBRE SÁNCHEZ
Luan QUEIROZ
Antonio Marcos PEREIRA
Universidade Federal da Bahia, Brasil
RESUMO | INDEXAÇÃO | TEXTO | REFERÊNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | O AUTOR
RECEBIDO EM 30/10/2018 ● APROVADO EM 15/01/2019
Resumo
Neste trabalho, tratamos de Sobre Sánchez, obra que é ao mesmo tempo a biografia do
escritor argentino Néstor Sánchez e a autobiografia de seu biógrafo, Osvaldo Baigorria.
Analisamos de que maneira o livro desarticula algumas das características mais consagradas da
biografia literária, se estabelecendo como um texto em processo, no qual o biógrafo, longe de
configurar-se como uma figura invisibilizada no corpo da biografia, dramatiza o seu papel e os
caminhos que o levaram à investigação e escrita da vida de Sánchez na materialidade da
própria biografia.
Abstract
In this essay, we deal with Sobre Sánchez, work that is, at the same time, the biography
of the argentine writer Néstor Sánchez and the autobiography of his biographer,
Osvaldo Baigorria. We analyze how the book disarms some of the most conspicuous
features of literary biography, establishing itself as a text in process, in which the
biographer, far from being a figure invisible in the body of the biography, dramatizes
his role and the ways which led to the investigation and writing Sánchez’s life, in the
materiality of the biography itself
Entradas para indexação
PALAVRAS-CHAVE: Biografia literária; Néstor Sánchez; Osvaldo Baigorria; Literatura Argentina.
KEYWORDS: Literary biography; Néstor Sánchez; Osvaldo Baigorria; Argentine Literature.
Texto integral
A biografia é um gênero impuro. Ao mesmo tempo em que se apoia em
documentos e testemunhos verídicos, na tentativa de construir uma verdade sobre
o personagem biografado, a biografia só se realiza a partir da narração, da
construção de uma trama em que se torna inevitável a mobilização de recursos
romanescos, de estratégias da ficção. Nesse sentido, como afirma François Dosse
(2015, p.60), “o caráter próprio da biografia consiste em depender de uma
indistinção epistemológica”, localizando-se o gênero, portanto, em uma zona de
hibridez e de mescla, na qual as suas fronteiras nunca estão claramente
delimitadas (AVELAR, 2011, p.139).
No contemporâneo, além dos gêneros autobiográficos “canônicos”, cuja
constituição já é atravessada por essa mescla, é possível visualizar uma “abertura à
multiplicidade” (ARFUCH, 2010, p.58), representada aqui por uma série de
produções (auto)biográficas em que se verifica certo investimento na inovação e
no redimensionamento de características já consagradas dos gêneros. Estamos
falando de biografias de grupo ou de lugares, de autobiografias em quadrinhos, de
ficções biográficas, de biografemas, de antibiografias, enfim, de experimentos que
convivem hoje com formas já tradicionais de escrita da experiência vivida, nesse
“espaço biográfico” dialógico, interdiscursivo e intertextual no qual coexistem
“uma diversidade de gêneros discursivos em torno de posições de sujeito
autenticadas por uma existência real” (ARFUCH, 2010, p.131-2).
Uma das experimentações que poderíamos abrigar nesse “espaço
biográfico” delimitado por Arfuch (2010) é analisada por Pereira (2013), que a
caracteriza como a “tradição processual da biografia literária”. Para
compreendermos esta tradição, é fundamental que descrevamos como funciona
comumente a construção biográfica.
De maneira geral, os modelos mais canônicos de biografia se assentam no
que Pereira (2013) chama de “tradição monumental”. As biografias que pertencem
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a essa tradição se constituem como projetos que buscam a exaustão e, nesse
sentido, ganham contornos monumentais. São:
[...] livros imensos, em vários casos em muitos volumes, e que
nesse processo de explorar minunciosamente o desenrolar da
vida em conexão com a obra são, via de regra, contributos
importantes ao processo de canonização dos autores (PEREIRA,
2013, p.39).
São textos em que o biógrafo, atuando como um sujeito uno e consciente na
manipulação das fontes e do arquivo se pretende o mais invisível possível dentro
do texto, num movimento no qual há “a elisão total do trabalho do biógrafo, de
suas vicissitudes, de sua materialidade, de seus norteadores para a condução do
projeto de edição da massa documental e indiciária frequentada por ele”
(PEREIRA, 2013, p.41).
E é justamente nesse ponto em que se localiza a inventividade da tradição
processual da biografia literária. Nessas biografias, afinal, longe de configurar-se
como uma figura invisibilizada, o biógrafo se introduz na narrativa biográfica, se
coloca como parte do problema, não recuando a sua participação apenas para o
espaço do paratexto. São biografias contemporâneas marcadas por uma intensa
“exposição processual”: pela exploração e descrição dos processos da construção
biográfica, dos lugares visitados pelo biógrafo e das pessoas com as quais entrou
em contato, assim como das motivações que o levaram a escrever sobre aquela
vida.
Nesse sentido, nos propomos a tratar neste artigo de Sobre Sánchez,
biografia do escritor argentino Néstor Sánchez, escrita pelo também argentino
Osvaldo Baigorria. Texto de difícil categorização, dotado de uma inespecificidade
genérica, aos moldes dos “frutos estranhos” colhidos por Florencia Garramuño
(2014), Sobre Sánchez se estabelece, tal qual comenta Yael Tejero (2014), como a
confluência de duas vidas: ao mesmo tempo em que funciona como a biografia de
Néstor Sánchez, é também, em certa medida, a autobiografia de seu biógrafo,
Osvaldo Baigorria.
Analisamos as peculiaridades da obra em contraste com a fatura tradicional
da biografia, em especial a já referida tradição monumental, bem como exploramos
as particularidades de Sobre Sánchez do ponto de vista do método de produção da
narrativa (auto) biográfica, identificando as estratégias utilizadas pelo biógrafo
para a sua inscrição e a inscrição do processo de escrita da biografia na própria
biografia que estamos lendo.
Néstor Sánchez e Osvaldo Baigorria: escritura e abandono
Em uma entrevista para um dossiê sobre Néstor Sánchez publicado pela
revista las ranas em 2006, Hugo Savino, que havia sido amigo do escritor, vai dizer
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que a prosa de Sánchez não se baseava no que acontecia na realidade, e sim no
ritmo do que acontecia1. De fato, a afirmação de Savino parece muito condizente
com um movimento presente na obra de Sánchez: a sua relação com o jazz, a
despreocupação com a trama e o seu sequenciamento e a construção de um jogo
experimental que muito afastou o escritor das pretensões comerciais e estilísticas
dos autores do boom, seus contemporâneos.
Pouco conhecido hoje, ainda que sua obra venha sendo recuperada nos
últimos anos, graças, em especial, à ação de seu filho, Claudio, à frente da editora
La Comarca Libros, Néstor Sánchez foi uma figura ascendente no campo literário
argentino entre as décadas de 1960 e 1970. Tendo lançado, em um período curto,
que vai de 1966 a 1973, quatro romances (Nosotros dos; El amhor, los orsinis y la
muerte; Siberia Blues; e Cómico de la lengua), sendo que três desses livros foram
publicados por uma importante editora, a Sudamericana, Sánchez recebeu
resenhas elogiosas de Julio Cortázar e Severo Sarduy, viu suas obras serem
traduzidas para o francês pela Gallimard, editora na qual também atuou como
leitor, em Paris. Em 1969, o escritor ainda conquistou uma bolsa para atuar na
Universidade de Iowa, nos Estados Unidos.
Estamos falando, portanto, de um escritor que pouco a pouco vinha
estabelecendo-se no campo literário, ganhando reconhecimento por sua prosa
poemática, fortemente influenciada pelo jazz, pela cultura popular argentina, pelo
tango, em uma composição de experimentações narrativas tão intensas que
levaram Cortázar a afirmar, a partir da leitura de Cómico de la lengua, que o livro
só poderia ser definido “como o reverso de um romance, o reverso de uma
realidade narrativa, o reverso de uma escrita usual” (CORTÁZAR, 2001, p.135).
É de se imaginar, então, que diante de um êxito tão meteórico e de uma
recepção tão positiva, a carreira de Néstor Sánchez estivesse, nesse momento, só
começando. Mas não. A partir de finais da década de 1960, Sánchez, que já estava
bastante desencantado com a vida, com a literatura e com o que ele achava ser a
proximidade da morte, entra em contato com o Quarto Caminho e com as teorias
do mestre espiritual Gurdjieff 2. A experiência, que desencadeará no escritor uma
busca por uma existência mística, o levará a percorrer diferentes partes do mundo:
Chile, Peru, Argentina, Venezuela, Itália, Espanha, França.
Para o novo Sánchez, espiritualizado, consciente da “verdade” da vida e
animado por uma possibilidade de existência eterna, não havia espaço para a
escritura, não havia motivo para o fazer literário, que deveria, dessa forma, ser
abandonado. Livre da família, do filho, da carreira, do lugar que ocupava enquanto
escritor, o novo Sánchez foge, se lança ao mundo, até se estabelecer como um
mendigo pelas ruas de Manhattan, onde passa a viver, provavelmente, em uma
situação de total precariedade. O seu retorno à Argentina, como um homem frágil e
destruído, só se deu quase vinte anos depois, em 1986.
Logo, para a elaboração de uma biografia do escritor, morto em 2003,
Osvaldo Baigorria partirá justamente desse momento catártico da vida de Sánchez,
o seu abandono, perguntando-se o biógrafo, então, o que teria feito Néstor Sánchez
nos anos em que esteve desaparecido; e como o escritor começou a organizar a sua
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renúncia à escritura enquanto estava em vias de uma consagração literária
(BAIGORRIA, 2012, p.18).
O caminho que leva à tentativa de responder a essas questões é
explicitamente apresentado no texto, com um visível e curioso movimento de
incorporação da descrição do processo de escrever a biografia na materialidade da
própria biografia. E é aí que se instala a inespecificidade de Sobre Sánchez.
Imprimindo no texto marcas de sua presença e dramatizando a sua própria
experiência como biógrafo, Osvaldo Baigorria converte Sobre Sánchez na biografia
de Néstor Sánchez, mas também na sua própria autobiografia.
Temos em mãos, portanto, esse “fruto estranho”, essa obra indefinível
inclusive para o seu autor, que ainda no prefácio, comenta as possibilidades de
classificação do projeto. De acordo com Baigorria (2012, p.7, tradução nossa): “[o
livro] teve vários [títulos] enquanto atravessava reescritas, novas versões e
transformações de gênero, de biografia falida e ensaio colapsado por traços de
romance inacabado a pós-autobiografia”.
Possibilidades de classificação que, longe de esclarecer, nos confundem
ainda mais. O próprio Baigorria, em entrevista posterior à publicação da primeira
edição de Sobre Sánchez 3, comentou como o livro talvez se aproximasse da noção
de “autotransbiografia” elaborada pelo escritor Hector Libertella.
É também no prefácio que Baigorria anuncia a estrutura do livro, dividido,
segundo o autor, em três partes: “Voodoo Child”, “The Néstor Sánchez Experience”
(claras referências à The Jimi Hendrix Experience e à canção Voodoo Child,
presente no terceiro álbum da banda, Electric Ladyland, lançado em 1968 4) e
“Notas al pie”.
Esta última seção do livro nos é particularmente importante porque ela
representa, como afirma Julia Musitano (2018, p.3), a parte autorreferencial do
texto. Se as notas de rodapé são comumente entendidas como anotações breves
colocadas no pé da página, com o propósito de adicionar alguma informação
parentética ou suplementar, fazendo parte, portanto, dessa esfera paratextual, em
Sobre Sánchez, as notas, que se localizam ao final do livro, são extensas, se
relacionam à narrativa sobre a vida de Sánchez, mas são, acima de tudo, relatos em
primeira pessoa das experiências do próprio biógrafo.
Imaginar as notas de rodapé localizadas no espaço do rodapé, e não no
fundo do livro, como a edição nos apresenta, seria, inclusive, uma imagem bastante
representativa da tensão e da luta que se desenvolvem em Sobre Sánchez: de um
lado, no corpo do texto, a narração da vida de Sánchez; do outro lado, pertencentes
ao espaço do paratexto, mas não contidas nesse lugar do suplemento, a voz e a vida
do biógrafo, que tomam conta do texto, a ponto, em certo sentido, de se mesclar e
até sucumbir a narração sobre a vida do biografado.
O que se estabelece, dessa maneira, é um contato, uma negociação, uma
mescla. Ou confluência, como preferirá Tejero (2014). Drama que em clave
parecida também se manifesta em um dos contos do argentino Rodolfo Walsh, o
ótimo Nota al pie (seria coincidência?). Nele, León, um tradutor de romances
policiais, se suicida, deixando uma carta para Otero, o editor da Casa em que
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morava o morto. À medida que a narrativa avança, apresentando a chegada de
Otero ao lugar em que encontra o corpo de León, e a sua reação à morte do
funcionário, temos, em uma nota de rodapé presente no próprio conto, a carta
deixada, na qual aparece uma verdadeira reflexão não apenas sobre os motivos
que levaram Léon ao suicídio, como também sobre a sua relação com a tradução e
a maneira como o personagem compreendia o ofício do tradutor – “Necesito hablar
del fervor, del fanatismo con que traduje ese libro?”, vai dizer Léon em
determinado momento do texto, para então completar: “Me levantaba
tempranísimo y no me interrumpía hasta que me llamaban a comer. Por la mañana
trabajaba en borrador, tranquilizándome a cada paso con la idea de que, si era
necesario, podría hacer dos, tres, diez borradores” (WALSH, 2008, p.85).
Constrói-se, pois, uma tensão: temos duas narrativas em uma – no corpo do
texto, o relato sobre Otero, e na nota de rodapé, a carta de Léon. Tensão
representada por duas manchas gráficas no texto. Manchas que pouco a pouco vão
se encontrando: a cada página, a nota vai ficando maior, maior, maior, até que ao
final, o relato sobre o tradutor sucumbe a voz do narrador, em um movimento no
qual “o efeito da nota de rodapé consome o lugar do corpo do texto” (LABBÉ, 2011,
p.1; tradução nossa).
Assim, no conto de Walsh, o tradutor - como também o é o biógrafo -,
comumente relegado a um posto secundário, sendo entendido como figura
invisível no texto, é alçado ao protagonismo. As notas de rodapé, afinal, longe de
um elemento acessório e descartável, se transformam, no texto, em ponto
fundamental para a construção da narrativa. Procedimento que também
percebemos nas notas de rodapé presentes em Sobre Sánchez, nas quais essa
esfera autobiográfica que constitui a obra surge de maneira mais evidente.
São principalmente nas notas, afinal, que Baigorria comenta sobre a sua
experiência como um imigrante, um sujeito que, como Sánchez, percorreu vários
lugares do mundo antes de voltar para casa. Assim como são as notas, também, o
espaço no qual Baigorria marca as diferenças entre ele e Sánchez, e a resistência
que acaba criando, inclusive física, à continuidade do projeto.
Essa dimensão autobiográfica, porém, não se restringe apenas à essa seção
do livro, se estendendo a outros momentos de Sobre Sánchez, em passagens em
que o biógrafo interrompe a narração da vida de Sánchez, e começa a falar de si
mesmo. Serão desvios, como classificará o próprio Baigorria.
Na próxima seção deste artigo trataremos dessas estratégias de inscrição do
biógrafo e dos processos de construção da biografia na própria biografia; e
analisaremos de que maneira isso afeta a elaboração em Sobre Sánchez de uma
determinada postura de biógrafo.
A exposição processual
De acordo com Dosse (2015), um dos procedimentos mais frequentes e
consagrados na produção de biografias, não apenas as literárias, se dá quando o
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biógrafo, apresentando o percurso que ensejou o encontro com o sujeito
biografado, expõe a relação entre ambos, e consequentemente a si mesmo.
Articula-se daí, como afirma o historiador, uma prática na qual o biógrafo insere-se
na vida alheia “a ponto de a separação entre autobiografia e biografia quase
desaparecer” (DOSSE, 2015, p.100).
Essa declaração dos motivos pessoais e da relação subjetiva com o tema da
pesquisa por parte do biógrafo (DOSSE, 2015, p.102), porém, sempre se realizará
em um espaço específico, restrito: o prefácio ou as notas de rodapé, o epílogo, uma
nota posterior à publicação do livro ou mesmo um texto suplemento que dê conta
de analisar o percurso da investigação e os caminhos que levaram à escrita daquela
vida. Ao biógrafo, portanto, quando muito, é reservado apenas o espaço do
paratexto.
Estratégia que, como vimos, não se materializa em Sobre Sánchez. Pelo
contrário: mais do que somente a biografia de Néstor Sánchez, caracterizamos a
obra de Baigorria como um texto em disputa, no qual o biógrafo, longe de silenciarse e invisibilizar-se em prol do protagonismo do biografado, se insere na narrativa,
dramatizando a sua própria experiência e o processo, muitas vezes doloroso, de
escrever sobre a vida do outro.
Parte dessa exposição processual se concretiza no livro a partir da busca do
biógrafo por documentos e depoimentos de figuras que rodearam Néstor Sánchez.
No texto, surgem entrevistas e informações fornecidas por pessoas como Claudio
Sánchez, filho de Néstor, Alfredo Slavutsky, irmão da segunda esposa do escritor,
Victoria; Ruth Taiano, terapeuta de Sánchez a partir de 1992, depois que o autor foi
diagnosticado com esquizofrenia, além de amigos de Sánchez, como Roberto
Raschella, Hugo Savino e Ruy Rodrigues. A cronologia da vida de Sánchez
elaborada por Pablo Gianera para a revista las ranas também é utilizada pelo
biógrafo.
Não apenas os resultados desses encontros aparecem no texto, como
também as condições em que ocorreram; em que lugar aconteceram; como o
biógrafo teve acesso a essas fontes. Esse movimento é nítido, por exemplo, na
descrição que o biógrafo faz da tentativa de entrar em contato com Juan Carlos
Copes, na esperança de confirmar se Néstor Sánchez teria atuado ou não como um
dançarino profissional de tango nos anos 1950:
De modo que um dos meus primeiros passos na investigação
sobre Sánchez foi consultar o célebre bailarino e animador de
tango coreográfico argentino [Juan Carlos Copes]. Não foi difícil:
pela internet, me veio seu número de telefone, liguei para ele uma
manhã dessas e ele me atendeu. O difícil, ou melhor, impossível foi
conseguir uma entrevista mais extensa, conversar com ele
pessoalmente. Juan Carlos Copes só aceitou um breve ping pong
telefônico (BAIGORRIA, 2012, p.13; tradução nossa).
E, também, o contato de Baigorria com a escritora e professora universitária
argentina Tamara Kamenszain:
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Cheguei a Alfredo por recomendação de Tamara Kamenszain.
Tínhamos nos encontrado com Tamara no café El Galeón em
frente ao Jardim Botânico para falar de uma das primeiras versões
de meu livro sobre Sánchez, no qual ela encontrou defeitos de
fabricação, ausências e alguns elementos faltantes. (BAIGORRIA,
2012, p.19; tradução nossa)
Pensamos que os comentários do biógrafo sobre os bastidores e as
circunstâncias desses encontros ajudam, inclusive, a construir uma imagem desses
entrevistados e da relação que eles mantinham com Néstor Sánchez. Juan Carlos
Copes, por exemplo, ao negar-se a uma entrevista mais extensa e frente a frente
com o biógrafo, assume uma postura esnobe, que se mescla também a certo rancor,
justificado na posterior entrevista. Nela, Copes revela que em 1958 escolheu dez
dançarinos para fazer parte do Conjunto Juvenil de Tango Moderno, e dentre eles
estava Sánchez, que recusou o convite: “Largou tudo aquilo, começou a se dedicar a
outra coisa. Talvez à literatura”, afirma, ainda um tanto amargurado, o coreógrafo.
Já Tamara Kamenszain assume a autoridade que a posição de influente
escritora e professora acadêmica lhe confere para lançar críticas e apontar defeitos
e ausências à construção do livro. É ela, inclusive, que recomenda a Baigorria a
leitura de Sobre Giannuzzi de Sergio Chejfec, obra que reúne dois ensaios sobre o
poeta Joaquín Giannuzzi. Ao ouvir Kamenszain comentar sobre o livro de Chéfjec,
Baigorria se convence de que seu próprio livro, a biografia de Néstor, se chamará
Sobre Sánchez.
Assumindo o lugar de “um biógrafo que constrói um biografado à sua
imagem e semelhança e que deixa que sua própria literatura entre sem pedir
licença na vida do outro” (MUSITANO, 2018, p.3; tradução nossa), Baigorria se
questiona, em determinado momento do livro, se não estaria projetando seus
próprios fantasmas sobre os buracos negros que deixa o rastro de uma vida
passada (BAIGORRIA, 2012, p.25).
Procedimento que o biógrafo realiza quando, por exemplo, decide supor o
que teria feito Néstor Sánchez nos anos em que esteve desaparecido tomando
como base elementos de sua própria experiência. Ou seja: assim como Sánchez,
Baigorria também foi um sujeito à deriva, um outsider, um nômade, percorrendo
várias partes do mundo, quase sempre em uma situação de total precariedade.
Tentando, dessa maneira, lidar com a falta de algumas informações do arquivo e
com o material que não é fornecido pelas fontes, é comum que o biógrafo especule
sobre o modo de vida de Sánchez no exterior partindo da sua própria experiência
como um sujeito nômade, imigrante, à deriva.
Para reconstituir a entrada de Sánchez nos países para os quais viajou, por
exemplo, Baigorria nos informa primeiramente como ocorreu a sua entrada nesses
mesmos lugares em sua época de viajante:
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Eu levava 700 dólares que havia economizado do trabalho
realizado durante todo o ano como artesão [...] e também possuía
uma carteira da Associação de Jornalistas de Buenos Aires, além
de um papel timbrado por uma editora já desaparecida, com uma
assinatura qualquer, que me designava correspondente nos
Estados Unidos (BAIGORRIA, 2012, p. 93)
E então supõe como Sánchez teria entrado nos Estados Unidos na década de
1970: “Não sei como terá feito Néstor Sánchez para entrar, [...], mas suponho que
ele teria economizado algum dinheiro de seus trabalhos na Europa e possuía algum
tipo de visto de trabalho na França” (BAIGORRIA, 2012, p.94; tradução nossa).
Suposições, especulações, declaração sobre as mudanças de rota pelas quais
passou o projeto. Indícios que nos levam a pensar na instabilidade que caracteriza
Sobre Sánchez e na curiosa posição em que se coloca Osvaldo Baigorria como
biógrafo. O que enxergamos, afinal, em Sobre Sánchez é uma consciência da
precariedade do livro e uma renúncia à pretensão de totalidade e exaustão.
Expliquemo-nos: à maneira clássica, o papel do biógrafo, como dirá Richard
Holmes em Seguindo viagem, seria o de “integrar as facetas de seu objeto até que
ele se torne o homem autoidentificado que os outros conheceram, amaram e de
que se lembravam” (HOLMES, 1991, p.318). Noção que implica necessariamente
em uma visão totalizante do sujeito, e cujo produto será quase sempre um retrato
monumental do biografado.
Em Sobre Sánchez, o que percebemos, afinal, é a “captura da personagem
literária pela ênfase no aspecto eloquente e no recorte explicitado” (PEREIRA,
2013, p.42). O Néstor Sánchez construído por Baigorria é um sujeito esfacelado,
fragmentado, contraditório, atravessado pelas experiências e inquietações de seu
próprio biógrafo. Assumindo como mantra que “a biografia é um gênero
trapaceiro, pois não se pode escrever sobre uma vida – a menos que ela seja tocada
por cima, como se estivéssemos improvisando” (BAIGORRIA, 2012, p.20-1;
tradução nossa), Osvaldo Baigorria nos oferece uma biografia parcial, na qual a
vida de Sánchez é recuperada “a partir de anedotas e testemunhos expostos,
providos de dúvidas e incertezas com o fim de abandonar a pretensão de uma
verdade objetiva” (TEJERO, 2014, p.5; tradução nossa).
Uma questão, porém, se coloca: trabalhando com o período menos
documentado da vida de Sánchez, até que ponto a elaboração dessa biografia
parcial é, de fato, consequência da ausência de um arquivo rico e coeso?
Solidarizando-nos com a perspectiva adotada por Musitano (2018), o que
enxergamos em Baigorria é a figura de um biógrafo preguiçoso, pouco disposto a
contornar as lacunas deixadas pelas fontes, e explorar outros pontos de vista e
outros lugares que talvez oferecessem respostas mais sólidas para as perguntas
deixadas pelo passado de Sánchez.
Assumindo essa posição, no entanto, Baigorria acaba potencializando e
problematizando questões ignoradas pela tradição monumental da biografia
literária, e que aqui, em Sobre Sánchez, se transformam em zonas de discussão e de
análise: o arquivo, o biógrafo, o personagem.
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Alinhado a essa imagem do biógrafo preguiçoso, Baigorria também se
constrói como o biógrafo não ideal, aquele que antes de ingressar no projeto de
escrever sobre a vida de Néstor Sánchez, não havia lido uma só palavra escrita pelo
argentino, com exceção de uma entrevista concedida por Sánchez, em 1984, à
revista Cerdos e Peces, na qual trabalhava Baigorria (BAIGORRIA, 2012, p.84).
Como descobrirá o biógrafo posteriormente, no entanto, a foto que acompanhava a
entrevista não era de Néstor Sánchez, tendo sido o primeiro contato entre os dois,
dessa forma, realizado a partir de um referente falso.
Isso é particularmente importante porque nos revela que a relação entre os
dois – biógrafo e biografado – vai se desenvolvendo, pouco a pouco, no momento
mesmo em que a biografia está sendo escrita, não tendo havido anteriormente
nenhuma motivação pessoal por parte de Baigorria que justificasse o seu interesse
por Sánchez. Sobre Sánchez, dessa forma, se instala para o biógrafo como uma
experiência de conhecimento do outro, mas também de autoconhecimento. Um
pouco como o efeito obtido pelo Quarto Caminho no próprio Sánchez.
O que, porém, se inicia com uma curiosidade e uma vontade de escritura,
logo se converte em tragédia. Como falará o biógrafo, a investigação sobre Sánchez
lhe custará uma série de perdas: de dinheiro, de trabalho, de sentido, de terra
firme, de saúde (também mental) (BAIGORRIA, 2012, p.11). A escrita do livro,
afinal, esgota o biógrafo, o leva a querer abandonar o projeto, que ele passa a
caracterizar como “matador”. Desenha-se, portanto, a imagem de um biógrafo em
desgraça, que se entende como um perdedor, um sujeito que ao embarcar na
missão de escrever sobre a vida do outro, só se vê diante de fracassos.
Fracasso representado, ao final, pela fala de Cecilia Scribens, mulher que
acompanhou Sánchez durante boa parte do período em que ele esteve nos Estados
Unidos, e que através de um e-mail seco responde a Baigorria que não pode ajudálo com as informações sobre a vida que Sánchez levava no exterior, já que
compartilha das razões pelas quais o escritor argentino guardou silêncio sobre a
sua vida (BAIGORRIA, 2012, p.161). Ao biógrafo restará, então, como dirá, mais
uma vez, Musitano (2018, p.7), “brincar com o naufrágio e seguir remando”,
construindo uma biografia à sua maneira, na qual “a própria busca já começa a ser
resultado e o caminho, destino” (BAIGORRIA, 2012, p.29; tradução nossa).
Notas
1
O dossiê sobre Néstor Sánchez se encontra na terceira edição da revista argentina las ranas,
publicada em 2006. O referido depoimento de Hugo Savino é parte do artigo El cantar de
Néstor Sánchez, assinado por Guillermo Saavedro.
2
Mestre espiritual de origem armênia, George Ivanovitch Gurdjieff foi o principal responsável
pela divulgação no Ocidente dos conteúdos e técnicas de um método espiritual de
autoconhecimento e autotransformação chamado “Quarto Caminho”. De acordo com o
próprio Néstor Sánchez, seu primeiro contato com a obra de Gurdieff veio a partir da leitura da
primeira frase de Psicología de la posible evolución del hombre, de Pedro Ouspensky, um dos
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discípulos do guru armênio: “El hombre puede sacrificarlo todo, menos su sufrimiento”
(RICARDO e SÁNCHEZ, 2014, p.21).
3
Entrevista concedida por Osvaldo Baigorria a Mariano Vespa, em novembro de 2013.
Disponível em: < http://www.niapalos.org/?p=12943 >. Acesso em 25 out. 2018.
4
As referências presentes nos títulos das duas primeiras partes do livro revelam uma
dimensão em Sobre Sánchez que decidimos não discutir neste artigo, mas que, certamente,
merece atenção em próximos trabalhos: a construção de uma distinção geracional entre o
biógrafo, ligado à cultura hippie da década de 1960, e fanático pela produção de artistas como
Hendrix; e o biografado, pertencente à geração anterior, caracterizada por Baigorria como a
geração “tanguera”.
Referências
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de
Paloma Vidal. – Rio de Janeiro: Eduerj, 2010.
AVELAR, Alexandre. Figurações da escrita biográfica. ArtCultura, v.13, nº22, p.137-155, 2011,
Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/artcultura/article/view/14021/7987>.
Acesso em 01 ago. 2018.
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Para citar este artigo
QUEIROZ, Luan; PEREIRA, Antonio Marcos. Biografia em processo: sobre Sánchez. Miguilim –
Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 7, n. 3, p. 576-587, set.-dez. 2018.
Os autores
Luan Queiroz é graduado em Letras Vernáculas e Espanhol pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Desde 2014, como pesquisador do NEG(A) – Núcleo de
estudos dos gêneros autobiográficos, tem trabalhado com questões ligadas à
biografia literária e a experimentações no espaço biográfico contemporâneo.
Antonio Marcos Pereira é professor do Departamento de Letras Vernáculas, do
Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. É coordenador do NEG(A) Núcleo de estudos dos gêneros autobiográficos.
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 7, N. 3, p. 576-587, set.-dez. 2018