Paulo Roberto Ceccarelli
Psicanálise, sexo e gênero1
Psychoanalysis, sex and gender
Paulo Roberto Ceccarelli
Resumo
Segundo um autor, para se retomar, na atualidade, a dimensão da ruptura freudiana é necessário fazer um retorno a Freud em Freud. Isto é, uma releitura do texto freudiano para
evitar atribuir a Freud coisas que ele não disse. A partir daí, e apoiado sobretudo nas teorias
de gênero e a teoria Queer, procurar compreender as novas possibilidades de subjetivação e
de construções identitárias, quando as referências do feminino passaram a ser apresentadas a
partir de outros parâmetros. Avaliar também as mudanças nas formas discursivas do masculino e do feminino que nos obrigam a reavaliar certos pressupostos psicanalíticos tais como as
construções identitárias, o binômio fálico-castrado a chamada “escolha sexual”, abrindo novas
possibilidades de diversidades e de singularidades.
Palavras-chave: Psicanálise, Sexo, Gênero, Mudanças simbólicas.
Há trabalho suficiente
para se fazer nos próximos cem anos –
nos quais nossa civilização terá de aprender
a conviver com as reivindicações
de nossa sexualidade.
Freud, [1898] 1976, p. 305.
Introdução
A proposta deste congresso – Assim caminha a psicanálise: indagações do século XXI –
apresentou-se como uma oportunidade para
refletir sobre um aspecto da psicanálise que
há muito venho observando.
Nos inúmeros eventos de psicanálise de
que tenho participado nos últimos anos, chama-me a atenção um certo ‘retrocesso intelectual’, o que fez com que alguns psicanalistas
tivessem se colocado como guardiões de uma
ordem social supostamente imutável, outorgando-se o poder de deliberar sobre o nor-
mal e o patológico, em detrimento da posição
revolucionária, e libertadora, de normas culturais opressivas, sobretudo no que diz respeito à moral sexual, perpetrada por Freud.
Para debater minha hipótese, basta um
breve retorno a Freud, não no sentido de reler textos freudianos e, nessa ‘releitura’ atribuir a Freud coisas que ele não disse (Ceccarelli, 2007), mas, antes, de retomar os
pontos da ruptura freudiana que mudaram
radicalmente o modo de conceber o humano
e ver a quantas anda essa ruptura na atualidade.
1. Trabalho apresentado no XXII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, XXVI Jornada do Círculo
Psicanalítico da Bahia: Assim caminha a psicanálise: indagações do século XXI. Salvador, 18 nov. 2017.
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Psicanálise, sexo e gênero
Para a sexologia do final do século XIX
e início do XX, a reprodução era o objetivo
exclusivo da sexualidade humana. No célebre Psicopatia sexual, de Von Krafft-Ebing,
lemos logo nas primeiras linhas: “[...] a perenidade da raça humana é garantida por um
poderoso instinto natural (Naturtrieb), que
exige imperiosamente ser satisfeito” (Von
Krafft-Ebing, [1895] 1990, p. 5). Para o
autor, a sexualidade visava a procriação, e
toda manifestação que escapasse a esse fim
era considerada perversão.
Os psiquiatras e os sexólogos do século
XIX construíram um “herbário de prazeres”
(Foucault, 1985a, p. 63), que incluía desde
o acanhado admirador de sapatos e de peças
íntimas femininas até os portadores do “sentimento contrário”: a homossexualidade. As
práticas sexuais que escapavam aos ditames
primeiros – a reprodução – foram minuciosamente repertoriadas e etiquetadas, dando
origem a uma ampla variedade de desvios:
perversão (1882, Charcot e Magna), narcisismo (1888, Havellock-Ellis), autoerotismo (1899, Havellock-Ellis), sadismo e
masoquismo (1890, Krafft-Ebing), entre
outros.
Os ‘efeitos nocivos’ da sexualidade eram
amplamente discutidos e classificados, embora em uma perspectiva higienista e repressiva. Em nome dos bons costumes, da moral
e da saúde, e não mais da religião, uma variante da ‘caça às bruxas’ foi se construindo,
o que levou à criação de dispositivos para
regular e controlar a sexualidade, além de
curar suas manifestações ‘desviantes’: as que
não escapavam aos critérios estabelecidos
pelo discurso do poder e que, consequentemente, ameaçavam a ordem vigente. (É impressionante, e triste, constatar como esses
fatos vêm se repetindo na atualidade).
A partir do momento em que a sexualidade passou a ser entendida como uma função,
suas perturbações passaram a ser observadas
e qualificadas, mesmo na ausência de uma
causa orgânica específica ou uma lesão neurológica. Trata-se do chamado “estilo psi136
quiátrico de raciocínio” (Von Haute, 2017,
p. 4), que tem como eixo central a noção de
personalidade, apoiado em explicações psicológicas.
Cabe ainda lembrar que essas ‘perversões’
foram literalmente criadas por aqueles sexólogos. Evidentemente, as atividades sexuais
que não serviam à reprodução sempre existiram e, segundo o momento sócio-histórico
e a cultura em questão, eram consideradas
pecado, pouca vergonha, atentado ao pudor, sodomia e outras tantas nomenclaturas
que continuam crescendo (os DSMs). Ainda
hoje, alguns países punem com pena de morte tais desvios.
O novo é que essas atividades passaram a
definir tipos específicos de indivíduos marcados por uma subjetividade na qual a sexualidade se transformou em um elemento
distintivo, uma possibilidade de individuação (Foucault, 1985a).
As contribuições de Freud
A revolução que Freud provocou vem não
do tipo de material clínico observado que,
como citamos, fora exaustivamente classificado por seus predecessores, mas do novo
caminho que ele toma: Freud parte não da
função supostamente ‘normal’ da sexualidade (a procriação), mas de seus desvios.
Segundo Ernest Jones (1979), a publicação em 1905 dos Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade fez de Freud uma figura quase universalmente impopular. Ele foi tratado com imoral e obsceno, recebeu insultos
e injúrias, chegando mesmo a não ser cumprimentando na rua. Em pequeno ensaio de
pouco mais de 40 páginas, Freud subverte os
esquemas explicativos tradicionais ao afirmar
que as perversões cuidadosamente catalogadas como aberrações humanas assombram
o espírito de todos os homens – inclusive
daqueles que as catalogaram – podendo ser
observadas desde os primeiros anos da infância: “a criança é um perverso polimorfo”.
A concepção de uma “pulsão natural”
(Naturtrieb) é abandonada, e o debate se
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centra nos caminhos pulsionais que levam
à escolha de determinado objeto em detrimento de outros. O impulso sexual (Sexualtrieb) no ser humano é composto por inúmeros impulsos parciais (Partialtrieben), os
quais servem à obtenção de inúmeras formas
de prazer em diferentes partes do corpo, para
além dos genitais (Freud, [1908] 1976).
Posto que a pulsão não tem objeto fixo e
muito menos um programa biológico, toda
atividade sexual testemunha um percurso
pulsional particular, traçada pela singularidade da história de cada um, o que impossibilita a tentativa de criação de uma “norma
sexual”. Nesse sentido, uma suposta primazia das zonas genitais é uma ficção, e é uma
grande injustiça o fato de a cultura “exigir de
todos uma idêntica conduta sexual” (Freud,
[1908a] 1976, p. 197).
Enfim, Freud rompe com o “estilo psiquiátrico de raciocínio”, ao sustentar que na
disposição às perversões encontramos o humano e o original, isto é, o núcleo mais profundo do sujeito:
[...] há sem dúvida algo inato na base das perversões, mas esse algo é inato em todos os
seres humanos (Freud, [1905] 1976, p. 174).
As perversões “[...] são blocos de construção da sexualidade humana de uma forma
isolada e ampliada” (Von Haute, 2017, p. 5).
A normalidade como “fábula poética”
Não é por acaso que Freud ([1905] 1976) inicia os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade na contramão dos sexólogos da época
que, vimos, entendiam que a sexualidade
“normal” era a reprodutiva. Freud ([1905]
1976) parte das “aberrações sexuais”, para fazer o que poderíamos chamar de desconstrução, no sentindo de Derrida, das diferentes
perversões previamente definidas. Ele inicia
esse texto mostrando à moral, à religião, à
biologia (os sexólogos) e à opinião popular
que se enganam em relação a uma suposta
“natureza” da sexualidade humana.
Acreditar que a sexualidade deriva de
uma pulsão natural (Naturtrieb) que estaria
ausente na infância e só se manifesta na puberdade por uma atração natural de um sexo
pelo outro visando a reprodução é uma “fábula poética” (Freud, [1905] 1976, p. 136): a
visão dos sexólogos torna-se uma quimera.
Entender a sexualidade dessa forma não
traduz apenas um erro simples, mas
[...] um equívoco de graves consequências,
pois é o principal culpado de nossa ignorância de hoje sobre as condições fundamentais
da vida sexual (Freud, [1905] 1976, p. 177).
Freud se situa à frente de seu tempo, posicionando-se de forma bem mais radical
e revolucionária que muitos analistas contemporâneos: as perversões não podem ser
entendidas como uma identidade separada,
pois a sexualidade não é uma função natural
que só se dá a conhecer pelos seus desvios,
[...] torna-se impossível classificar um grupo
de pessoas como “perversas”, o que, de um
ponto de vista psicológico, seria fazer uma
distinção fundamental entre um grupo que
escapa à “perversão” e outro que não o faz
(Von Haute, 2017, p. 5).
Infelizmente, todo movimento ou corrente de pensamento que, em um primeiro
momento, trouxe novas perspectivas de vida
e/ou novas leituras do mundo foi, em um
segundo momento, incorporado à ordem vigente e, não raro, transformado em sistemas
normativos. em completa oposição à proposta original.
Com a psicanálise, as coisas não foram
diferentes, a começar pelo próprio Freud: a
primeira edição dos Três ensaios não contém
alguns conceitos e teorias desenvolvimentistas introduzidas nas edições posteriores com
as quais estamos familiarizados (Von Haute, 2017).
E é justamente essa dimensão primeira da
psicanálise que reverteu inexoravelmente os
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Psicanálise, sexo e gênero
esquemas explicativos tradicionais que ditavam os parâmetros da normalidade que, parece, vem se distanciando cada vez mais das
primeiras posições freudianas.
Apenas dois exemplos, aos quais poderíamos acrescentar muitos outros. O primeiro
diz respeito à chamada “escolha sexual”: para
Freud a determinação das escolhas sexuais é
bastante complexa, pois responde a dinâmicas inconscientes, que envolvem vários fatores, tais como o caráter triangular da situação edipiana, a bissexualidade constitucional
de cada indivíduo e a ambivalência inerente
às identificações (Freud, [1923] 1976).
Consequentemente, a atração tanto heterossexual quanto homossexual necessita de
explicação, pois não se trata de um “fato evidente em si mesmo, baseado em uma atração
afinal de natureza química” (Freud, [1905]
1976, p. 146).
O que parece interessar a Freud são os caminhos pulsionais responsáveis pelas escolhas de objeto:
Não compete à psicanálise solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos
que culminaram na determinação da escolha
de objeto, e remontar os caminhos que levam
deles até as disposições pulsionais (Freud,
1920, p. 211).
Contudo, ainda na época de Freud, alguns
psicanalistas insistiam que a heteronormatividade era o único horizonte possível. A
falta de consenso entre os analistas chegou
a provocar polêmica entre a Sociedade Psicanalítica de Viena e a de Berlim. A de Berlin, dirigida por Abraham, considerava que
os homossexuais eram incapazes de exercer
a profissão de analista, pois suas inversões
eram incuráveis. Já a de Viena, apoiada em
Freud, tinha uma opinião totalmente contrária: em 1921, Jones, então presidente da IPA,
recusa a admissão de um analista declaradamente homossexual à International Psychoanalytical Association (IPA).
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A resposta a Jones é assinada por Freud e
Otto Rank:
Sua pergunta, estimado Ernest, sobre a possibilidade de filiação dos homossexuais à Sociedade, foi avaliada por nós e não concordamos
com você. Com efeito, não podemos excluir
estas pessoas sem outras razões suficientes
[…] em tais casos, a decisão dependerá de
uma minuciosa análise de outras qualidades
do candidato (Lewis, 1988, p. 33).
Na atualidade, o debate continua entre os
que veem as homossexualidades como algo a
ser tratado (a cura gay?) e aqueles que a entendem como uma posição libidinal ao mesmo título que a heterossexualidade. Impressionam-nos sobremaneira duas passagens de
Lacan, já citadas em um texto anterior (Ceccarelli, 2012).
Se a teoria analítica assimila ao Édipo uma
função normativa, lembremos que nossa experiência nos ensina que não basta que ela
leve o sujeito a uma escolha objetal, mas é necessário ainda que esta escolha de objeto seja
heterossexual (Lacan, [1956-1957] 1994, p.
201).
Ou ainda: “[...] se é verdade que a doutrina analítica nos indica [a homossexualidade]
como o suporte do laço social da fraternidade entre os homens” (Lacan, [1960-1961]
1991, p. 42), ela não deve ser confundida
com a homossexualidade do tempo de Platão que, como na atualidade, continua sendo
uma perversão:
Que não me venham dizer, sob o pretexto que
se tratava de uma perversão recebida, aprovada e mesmo festejada, que aquilo não era uma
perversão. A homossexualidade não era nada
a mais do que ela realmente é: uma perversão
(Lacan, [1960-1961] 1991, p. 43).
Outro aspecto que merece um debate muito mais amplo se refere à clínica das
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perversões e à analisabilidade do sujeito perverso (Ceccarelli, 2011). Contentar-me-ei
neste ponto a uma citação de Freud que indica que o perverso é tão analisável quanto o
neurótico:
Isto [o recalque] não se aplica apenas as tendências “negativas” para a perversão que aparecem nas neuroses, mas igualmente às perversões propriamente ditas chamadas “positivas”. Assim, estas últimas devem originar-se
não apenas de uma fixação de tendências infantis, mas também de uma regressão àquelas
tendências como resultado do bloqueio de
outros canais da corrente sexual. É por este
motivo que as perversões positivas são acessíveis à terapia psicanalítica (Freud, [1905]
1976, p. 239, nota).
Outros pontos que poderiam ainda ser
discutidos dizem respeito ao falocentrismo,
à sexualidade feminina e à sexualidade masculina (Ceccarelli, 2013).
Tem me impressionado, em alguns eventos de que tenho participado, o quanto certos arranjos pulsionais, que, sem dúvida, em
um primeiro momento causam espanto, são
imediatamente diagnosticados, talvez como
defesa para não se entrar em contato com
conteúdos Ics, de forma quase idêntica à
que se fazia com os primeiros pacientes que
Freud atendeu.
Alguns profissionais continuam vendo
nos sujeitos trans manifestações de psicose,
baseados nas fórmulas de sexuação discutidas por Lacan há mais de 40 anos. Não se trata, evidentemente, de negar as contribuições
de Lacan para definir o complexo terreno da
sexuação.
A questão é
[...] que, no vazio do indizível, há um potencial infinito de possibilidades. Na tentativa de
dar conta, Lacan escolheu esta. O que se trata
aqui, então, é produzir reflexões acerca do lugar de onde partem os pensamentos a respeito da construção dos sujeitos, ampliando os
caminhos possíveis, sem que se caia necessariamente na dicotomização (Catão, Priscila de Lima).
Sexo e gênero
Estes e outros conceitos centrais da psicanálise têm sido duramente questionados pelas
novas configurações sociais. Têm sido repensadas as questões chamadas “de gênero”, que
por muito tempo foram tratadas de como se
fossem imutáveis, pois faziam parte de uma
ordem natural. Não há um só evento em que
esse tema não é abordado.
Entretanto, se essa questão não for bem
considerada e tratada com seriedade, e sobretudo sem que os psicanalistas se sintam
ameaçados com o retorno de moções pulsionais recalcadas e reprimidas, corremos
o risco de provocar um equívoco de consequências não menos graves que os denunciados por Freud nos Três ensaios. E se muitos
psicanalistas têm fechado os olhos sobre esse
ponto, é hora de abri-los, pois o desejo inconsciente segue seu caminho.
Como na época de Freud em relação à
orientação sexual, o consenso geral continua
rígido em estreita consonância com a moral sexual: sexo, gênero, desejo e orientação
sexual continuam a ser entendidos como
características ‘naturais’ dos indivíduos. Do
ponto de vista da biologia, o sexo é definido
pelos genitais: macho/fêmea; as representações e os papéis sociais que se espera de um
homem e de uma mulher ditam o gênero; o
desejo deveria ocorrer entre sexos opostos;
quanto à ‘orientação sexual’, a heterossexual
é a norma em consonância com o sexo e o
gênero da pessoa, em vista da preservação da
espécie.
Tais posicionamentos, e este é o grande
debate atual, naturalizavam as construções
históricas que os sustentavam, o que garantia
a sua função ideológica através do discurso
hegemônico dominante que dita tanto as sexualidades lícitas e as ilícitas, quanto as relações entre homens e mulheres e seu lugar
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no tecido social (Foucault, 1984, 1985a,
1985b).
Mais recentemente, a discussão mudou
de foco, fazendo com que as questões ligadas
ao sexual, ao gênero, ao desejo e à orientação
sexual tenham recebido novas leituras, o que
fez surgir inúmeras possibilidades de subjetivação. Vários são os fatores que, ao longo
da história, contribuíram para os reposicionamentos a que assistimos hoje: os movimentos feministas, a entrada da mulher no
mercado de trabalho, o surgimento da pílula
anticoncepcional (distinção entre sexualidade e reprodução), a crise da família burguesa nuclear (monogâmica e heterossexual),
as políticas de visibilidade dos movimentos
LBGT, a despatologização das identidades
trans, tudo isso provocou uma crise nas referências simbólicas que utilizamos para ler
o mundo (Ceccarelli, 2016), levando-nos
a repensar os arranjos de Eros.2
Essas novas dinâmicas pulsionais e as
formas de conjugabilidade daí advindas repercutem nos movimentos inconscientes
responsáveis pela excitação erótica. Tenho
recebido no consultório modalidades de
prazer que só se tornaram possíveis devido
aos rearranjos nos papéis sexuais e sociais de
gênero, ou seja, através de uma dissociação
sexo/gênero, e os avanços da medicina. Por
exemplo, homens que se relacionam com
homens trans, os quais mantêm alguma referência a seu sexo anatômico de origem; homens que se relacionam com mulheres trans.
2. Posições conservadoras, que contribuem para o
debate, ainda existem: em julho de 2016 a Associação
Americana de Pediatria publicou um documento no
qual se posiciona radicalmente contra o que chama
de “ideologia de gênero”. A Associação considera um
absurdo endossar a discordância de gênero em relação
ao sexo biológico. (Conf. Associação Americana de
Pediatras fulmina ideologia de gênero: é abuso infantil!
Disponível em: <https://centrodafamiliacj.wordpress.
c om / 2 0 1 6 / 0 7 / 1 3 / a ss o c i a c a o - am e r i c an a - d e pediatras-fulmina-ideologia-de-genero-e-abusoinfantil>).
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Ou ainda mulheres que se relacionam com
homens trans ou mulheres trans.
Estamos assistindo a uma reavaliação dos
discursos seculares relativos aos atributos
sociais de sexo e de gênero graças aos estudos de gênero, às teorias desconstrucionistas críticas e à teoria queer (Bertini, 2009;
Butler, 1993, 2003, 2004, 2009; De Sousa
Filho, 2017; Fraisse, 1996; Laqueur, 1992).
Devemos sobretudo a Judith Butler, filósofa norte-americana, um ousado e vanguardista trabalho sobre o tema: Butler historiciza não apenas o gênero mostrando seu
caráter performativo, mas também o corpo
e o sexo, a fim de dissolver a dicotomia sexo
vs gênero.
Em Problemas de gênero - feminismo e subversão de identidade, sua obra de referência,
Butler (2003) critica a ideia segundo a qual o
sexo é natural, e o gênero é construído.
A pergunta passou a ser: Em que momento se dá a construção de gênero? Sobre o que
se alicerça essa construção?
Por exemplo, a autora retoma a emblemática afirmação de Simone de Beauvoir – “A
gente não nasce mulher, torna-se mulher” –
para dizer que “não há nada em sua explicação [de Beauvoir] que garanta que o ‘ser’ que
se torna mulher seja necessariamente fêmea”
(Butler, 2003, p. 27).
Com a entrada da biologia no campo do
social, a autora sustenta o quanto seria ilusório acreditar na existência de uma identidade de gênero primeira por trás das inúmeras
expressões de gênero: tal “identidade” é performativamente constituída, através da repetição de atos, gestos, signos e outras séries de
elementos que, por sua vez, reforçam a construção dos corpos masculinos e femininos,
tal como os conhecemos.
Para Butler não existem “[...] relações de
coerência e continuidade entre sexo, gênero,
prática sexual e desejo” (Butler, 2003, p. 38).
Gênero e psicanálise
O consenso é que não existiria em Freud
uma “teoria de gênero”. Entretanto, uma lei-
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tura mais atenta dos textos freudianos nos
revela outro cenário. No texto de 1908 Sobre
as teorias sexuais infantis, Freud ([1908b]
1976) nos fala de uma forma de classificação,
que atualmente chamaríamos de “segundo
o gênero”, anterior à percepção da diferença
anatômica (Ceccarelli, 2010).
Nesse texto, somos convidados a nos despojarmos de nossa “existência corpórea”, isto
é, de nos livrarmos das amarras da anatomia,
e como “seres puramente pensantes” nos
imaginássemos chegando à Terra: a primeira coisa que chamaria nossa atenção seria a
existência de dois seres. Porém, e este é um
ponto importante, a distinção que faríamos
não levaria em conta a anatomia, isto é, a diferença sexual.
Ao que tudo indica, para Freud existiria
uma classificação segundo o gênero, que se
daria antes da percepção da anatomia. Nesse
sentido, o gênero viria primeiro, embora seja
o sexo que o determine: é a partir da percepção anatômica que o gênero é atribuído ao
recém-nascido. Vemos que, para Freud, o
sexo é natural: a anatomia é o destino.3
E logo nas primeiras páginas do primeiro
dos Três ensaios (Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie) Freud fala sobre Der populären
Theorie des Geschlechtstriebes (“a teoria
popular sobre pulsão sexual” (de gênero)
Freud, [1905] 1976).
E quando no célebre texto sobre o narcisismo Freud (1914) propõe estudar o tema
através de três caminhos, o terceiro é Das
Liebeslebens der Geschlechter “vida amorosa
entre gêneros” (Freud, [1914] 2004, p. 103),
enquanto na edição standard lê-se “a vida erótica dos sexos” (Freud, [1914a] 1976, p. 98).
3. Considerações interessantes e ao mesmo tempo
críticas sobre esse ponto foram feitas por Jean
Laplanche. (Conf. LAPLANCHE, J. El género, el
sexo, lo sexual. Alter n. 2: El género en la teoría
sexual, Madrid, septiembre, 2006. Disponível em:
<https://revistaalter.com/revista/el-genero-el-sexolo-sexual-2/937>).
Em Lacan ([1964] 1973), encontramos
uma passagem no Seminário 11 que, sem
dúvida, nos remete a questões de gênero. Sabemos que as bases que sustentam as identificações constitutivas do Eu e as futuras escolhas de objeto são vicissitudes das relações
do recém-nascido com o Outro.
Lacan escreve:
[...] no psiquismo não há nada pelo que o
sujeito possa situar-se como ser de macho
ou ser de fêmea [...] aquilo que se deve fazer,
como homem ou mulher, o ser humano terá
sempre que aprender, peça por peça, do Outro (LACAN, [1964] 1973, p. 228-229).
As teorias de gênero trouxeram desconfortos e incômodos para o arcabouço teórico
da psicanálise. Se o sexo é tão historicizável
quanto o gênero (Butler, 2003), isto é, responde às posições ideológicas e de poder,
como, então, repensar o masculino, e o feminino que, para a psicanálise, são calcados
no biológico? As teorias de gênero reformularam o enunciado “torna-se mulher”: “o que
o sujeito pode se tornar, sendo (também)
mulher”? (Kehl, 1998, p. 5).
Da mesma forma, dizer “fálico” vs “castrado”, “presença” vs “ausência” denuncia um
discurso de valor que, de antemão, anula a
diferença pura, para valorizar um sexo (o que
possui, o que não é castrado) em detrimento
do outro (o que não possui, o castrado).
Ora, a existência de uma diferença anatômica não está em questão. Entretanto, o discurso que surge a partir daí para falar dessa
diferença ou usá-la como sustentação de teorias, terá sempre uma dimensão política.
Para Bertini (2009), o sistema hegemônico da diferença entre os sexos nada mais faz
do que apoiar a desigualdade entre os sexos
através de um poderoso dispositivo simbólico. Muitas outras questões requerem uma
reflexão mais detida: ao célebre “o que quer
uma mulher?”, devemos acrescentar “o que
quer um homem?”, pois a partir do momento
em que o sexo passa a ser historicizado, faz-
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Psicanálise, sexo e gênero
se necessário repensar os “destinos” do sexo
em contraponto ao texto freudiano de 1925
Algumas consequências psíquicas da distinção
anatômica entre os sexos. Ainda nessa perspectiva, as fórmulas de sexuação propostas
por Lacan seriam pensadas com ‘uma teoria’
sobre a diferença, mas não como um ‘modo’
universal de subjetivação.4
O que se depreende de tudo isso é que o
gênero se revela um operador importante,
um potente auxiliar para pensarmos com
novos parâmetros e novos caminhos pulsionais, e a reavaliar as relações entre corpo,
sexo, construções identitárias e discurso do
poder.
Na clínica, temos que rever nossas posições teóricas. Sujeitos transgêneros, transexuais, sujeitos não binários, e outras tantas
nomenclaturas que surgem a cada dia se fazem cada vez mais presentes, levando-nos a
pensar nas novas formas de sociabilidade daí
advindas.
Até bem pouco tempo, tais sujeitos eram
classificados como portadores de um distúrbio, de uma disforia – de identidade sexual, de gênero. Entretanto, nossas posições
devem ser revistas a partir dos avanços teóricos: se, como vimos, o sexo não é natural,
e o gênero é performativo, o que haveria de
“patológico” em um sujeito que se diz sentir
homem, mas cuja performance reflete o sistema “feminino”?
É por isso que, não raro, um transexual
pode, após a cirurgia que lhe atribui caracteres anatômicos femininos, manter relações
afetivo-sexuais com mulheres. Tudo isso tem
levado a uma revisão dos “critérios de diagnósticos” em geral, além de questionar sobre
os parâmetros de normalidade que susten-
4. Michel Tort (2000) faz observações muito
interessantes e pertinentes sobre este ponto.
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tam nossas classificações, assim como a pertinência à noção de estrutura.5
Considerações finais
Para terminar, é importante dizer que não
acreditamos que as novas leituras das relações entre sexo, gênero, desejo e orientação
sexual constituam, de fato, novos paradigmas para se pensar as relações do sujeito
com o pulsional, com a dimensão narcísica,
com a alteridade, com a falta e com o Outro.
Se, para a psicanálise, as expressões do
sexual estão atreladas aos processos identificatórios e as escolhas de objeto, cujo enredo
é a dinâmica edípica protagonizada pelas vicissitudes pulsionais, a sexualidade de cada
sujeito é sempre uma construção singular.
Cada manifestação da sexualidade é uma
criação particular e única de Eros, devendo
ser entendida como uma solução no sentido matemático do termo: uma equação que
comporta diferentes variantes – corpo, amor,
desejo, gozo – frente às quais, tal como em
um sistema vetorial de forças, uma resultante, uma solução, será encontrada.
A “solução sexual” que cada um de nós
encontra traduz nossa tentativa de solucionar os conflitos – reais ou imaginários – presentes desde o início da vida, para escapar
ao sofrimento psíquico: a particularidade de
cada “solução sexual” responde ao equilíbrio
singular da dinâmica pulsional do sujeito.
O termo “neossexualidades” foi proposto por Joyce McDougall (1997) para pensar
em soluções encontradas por alguns sujeitos
5. Philippe Van Haute apresenta duras críticas à noção
lacaniana de estrutura perversa. Para ele tal abordagem
reintroduz a ideia de “identidade diferencial”
desconstruída por Freud. “Ao fazê-lo, seus aderentes
arriscam cair em todo tipo de preconceitos morais
e sociais que são subsequentemente apresentados
como leis que estruturam a sexualidade [...] Desta
maneira preconceitos sociais e morais tendem a ser
imunizados da crítica e, no processo, eles adquirem
um estatuto ideológico” (Van Haute, 2017, p. 3).
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frente a movimentos pulsionais complexos e
traumáticos no início da vida.
Entretanto, apoiada no pressuposto freudiano segundo o qual toda sexualidade é
traumática, McDougall (1999, p. 25) se pergunta: “Finalmente, não se poderia propor,
então, que a totalidade da sexualidade humana consistiria basicamente de neossexualidades?”.
Quanto conseguimos ouvir os novos arranjos pulsionais sem teorizá-los com “desvios” em relação aos arranjos “tradicionais”
e, mais importante ainda, sem que nos sintamos ameaçados pelo retorno de moções
pulsionais recalcadas, esses arranjos afetivos
passam a ser entendidos como uma vicissitude pulsional como outra qualquer: não
aquela que responde a normas socialmente estabelecidas e historicamente variáveis,
mas aquela que, em sintonia com o mundo
interno do sujeito, reapropria e reinventa a
polimorfia da sexualidade infantil em uma
relação de objeto.
Para que a psicanálise, que em um primeiro momento foi libertadora ao denunciar a existência de outra cena que determina
nossas escolhas objetais não se transforme
em mais uma prática normativa, é necessário
que os psicanalistas façam constantes incursões em seus conceitos de base para confrontá-los com os movimentos sócio-históricos.
Há que levar em conta as mudanças sociais,
sob pena de ficarmos arraigados a teses não
mais sustentáveis na contemporaneidade e
vermos a psicanálise perder sua credibilidade social.
Abstract
According to one author, in order to go back
to the dimension of the Freudian rupture it is
necessary to make a return to Freud in Freud.
That is, a re-reading of Freudian text to avoid
attributing to Freud things that he did not say.
From then on and based mainly on theories
of gender and the Queer Theory, we try to
understand the new possibilities of subjectivation, and constructions of identity, when the
references of the feminine began to be presented from other parameters. We also evaluate
the changes in the masculine and feminine
discursive forms that force us to reevaluating
certain psychoanalytic assumptions such as
identity constructions, the phallic-castrated
binomial called “sexual choice,” opening up
new possibilities for diversity and singularities.
Keywords: Psychoanalysis, Sex, Gender, Symbolic changes.
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Recebido em: 11/12/2017
Aprovado em: 17/12/2017
Sobre o autor
Paulo Roberto Ceccarelli
Psicólogo.
Psicanalista.
Doutor em psicopatologia fundamental
e psicanálise pela Universidade de Paris 7 - Diderot.
Pós-doutor pela Universidade de Paris 7.
Coordenador do Instituto Mineiro de Sexualidade
(IMSEX <www.imsex.com.br>).
Diretor científico do Centro de Atenção à Saúde
Mental (CESAME <www.cesamebh.com.br>).
Membro da Société de Psychanalyse
Freudienne - Paris, França.
Membro da Associação Universitária
de Pesquisa em psicopatologia fundamental.
Pesquisador do CNPq.
Professor Adjunto IV da PUC Minas.
Professor e orientador de pesquisas do mestrado
de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência/MP,
da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG).
Professor e orientador de pesquisas
na pós-graduação em psicologia
da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Sócio do Circulo Psicanalítico
de Minas Gerais (CPMG).
Sócio fundador do Círculo Psicanalítico
do Pará (CPPA).
Endereço para correspondência
E-mail: < paulorcbh@me.com>
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