Pedro Ambra
É Professor do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Docente Colaborador do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psicologia Social da Universidade de São Paulo (USP). Possui graduação em Psicologia pela USP, mestrado e doutorado em Psicologia Social pela mesma instituição (Bolsa CNPq) e doutorado em Psychanalyse et Psychopathologie pela Université de Paris (Bolsa CAPES-PDSE). É membro da Société Internationale de Psychanalyse et Philosophie (SIPP) e pesquisador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip-USP). É organizador do livro "Histeria e gênero: o sexo como desencontro" (nVersos, 2014) e autor do livro "O que é um homem? Psicanálise e história da masculinidade no Ocidente" (Annablume, 2015). É editor na "Psicologia Revista" e "Lacuna: uma revista de psicanálise". Suas publicações e áreas de interesse concentram-se na relação entre psicanálise e sociedade, englobando questões de gênero, sofrimento, identidade, cultura e seus impactos epistemológicos.
less
InterestsView All (39)
Uploads
Livros by Pedro Ambra
"Depois da luta persistente contra a normatividade e sua força repressiva, chegou o momento de questionar o lugar da norma frente à autorização sexual que cada qual deve conquistar perante si e suas alteridades. O trabalho que o leitor tem em mãos é o exemplo de como a pesquisa psicanalítica é crítica social feita por outros meios: Pedro Ambra empreende uma discussão renovada com a psicanálise de Lacan atravessada pelas teorias de gênero e pelas epistemologias críticas que redefiniram o campo e a função da sexualidade a partir do coletivo. Podemos agora, enfim, apreciar com mais rigor e profundidade os impasses e as inquietudes não só das experiências queer e trans, mas da própria cisgeneridade." Christian Dunker
Em termos sociais, homem é, também, o principal beneficiário de uma cultura patriarcal que violenta e mata mulheres, além de gozar de mais liberdades e benefícios. Para combater essa cultura não basta denunciá-la do ponto de vista de suas consequências, mas, igualmente, compreender como homens representam-se a si mesmos, quais fantasmas permeiam seus atos e, principalmente, quais contradições e alternativas podem florescer de uma análise detida sobre a masculinidade.
Alternativas essas que não podem, simplesmente, ignorar que toda a formação masculina que se busca repensar tem raízes profundas na história, no psiquismo e no afeto dos homens que a performa. O que fazer exatamente com as ruínas de uma certa masculinidade que buscamos desconstruir?
Com textos de Pedro Ambra, Isabela Venturoza, Susana Muszkat, Eduardo Leal Cunha, Deivison Faustino, Guilherme Almeida, Fábio Mariano da Silva, Tulio Custódio e Ana Gebrim, este pequeno livro tem como objetivo não só destacar os impasses e limites de representações problemáticas da masculinidade e seus resultados, mas também apresentar novas perspectivas daquilo que se denomina, no atacado, masculinidade.
Apresentação
1. Introdução. Por uma Psicanálise dos Fatos Falhos (Paula Peron / Pedro Ambra)
2. Psicanálise e Políticas de Identidade (Christian Dunker)
3. Políticas Identitárias e Psicanálise (Maria Rita Kehl)
4. Resistências Frente ao Controle da Violência pelo Estado Burguês (Miriam Debieux Rosa / Priscilla Santos de Souza)
5. Por uma Psicanálise Não Colonizada: Desmentido e Identificação no Racismo (Adriana Barbosa Pereira)
6. Psicanálise: Um Tratamento para o Social? (Clarissa Metzger)
7. Ideologia e Alienação do Sujeito no Brasil do Século XXI: Lacan com Marx (Raul Albino Pacheco Filho)
8. Introdução e Estabelecimento da Psicanálise e suas Relações com a América Latina (Rafael Alves Lima)
9. Comentário sobre a História da Psicanálise Brasileira (Paulo José Carvalho da Silva)
10. Civilização e Violência de Estado como Agentes do Mal-estar na Cultura (Anna Turriani)
11. Estado de Emergência, Urgência e Tempo Lógico (Paulo Bueno)
12. Yané-Oré: Sobre Nós e Litorais (Paulo Sérgio de Souza Jr.)
13. Nem Todo Psicanalista? (Vinícius Costa)
14. Psicanálise e Reforma Psiquiátrica Antirracista – Uma Demanda Não Colonialista (Emiliano de Camargo David)
"Se está claro que o ponto cego homem ganha notória visibilidade depois da leitura deste livro, resta deixar mais claro ainda para certo discurso lacaniano que o matema não ameaça a História e que a História não ameaça o matema. Para que tais falsas ameaças finalmente se dissolvam e para colocar a psicanálise à altura de seu tempo, parece que precisamos, sim, à maneira de Pedro Ambra, estourar alguns vidros, sem medo de nos cortarmos caso só sobrem estilhaços. Afinal, não é por acaso que a tese que dá origem a este livro foi depositada no fatídico junho de 2013: quando a Estrutura não desce às ruas, a História bate à porta." Rafael Alves Lima
Adriana Perassi Bosco
Christian Dunker
Júlia Catani
Julio Cesar Lemes de Castro
Mario Pablo Fuks
Nelson da Silva Jr.
Patricia Porchat
Pedro Ambra
Silvia Leonor Alonso
Tiago Rocha
Vera Iaconelli
Vera Silvia Facciolla Paiva
E prefácio de Ana Maria Loffredo.
"O livro vem preencher uma lacuna importante nas discussões sobre o destino de categorias clínicas psicanalíticas através de textos escritos por pesquisadores competentes. Devido à diferença de abordagem entre os artigos, pode-se dizer que o resultado é suficientemente amplo para se colocar como referência nas reflexões atuais sobre problemas ligados a identidade de gênero." Vladimir Safatle - Folha de São Paulo / USP
"Mais do que um livro interessante, o leitor tem em mãos uma publicação propriamente necessária, inserida de maneira consistente no campo de questões que se apresentam de modo enfático, na atualidade, para a pesquisa, a clínica e a transmissão da psicanálise. (...) Trata-se de um conjunto de ensaios que bem ilustram os desdobramentos do exercício de uma psicanálise verdadeiramente implicada e, portanto, fiel às suas fontes primeiras, no mais próprio espírito do patrimônio freudiano." Ana Maria Loffredo - USP / Sociedade Brasileira de Psicanálise
Artigos by Pedro Ambra
Palavras-chave: final de análise; sexuação; singularidade; Jacques Lacan.
"Depois da luta persistente contra a normatividade e sua força repressiva, chegou o momento de questionar o lugar da norma frente à autorização sexual que cada qual deve conquistar perante si e suas alteridades. O trabalho que o leitor tem em mãos é o exemplo de como a pesquisa psicanalítica é crítica social feita por outros meios: Pedro Ambra empreende uma discussão renovada com a psicanálise de Lacan atravessada pelas teorias de gênero e pelas epistemologias críticas que redefiniram o campo e a função da sexualidade a partir do coletivo. Podemos agora, enfim, apreciar com mais rigor e profundidade os impasses e as inquietudes não só das experiências queer e trans, mas da própria cisgeneridade." Christian Dunker
Em termos sociais, homem é, também, o principal beneficiário de uma cultura patriarcal que violenta e mata mulheres, além de gozar de mais liberdades e benefícios. Para combater essa cultura não basta denunciá-la do ponto de vista de suas consequências, mas, igualmente, compreender como homens representam-se a si mesmos, quais fantasmas permeiam seus atos e, principalmente, quais contradições e alternativas podem florescer de uma análise detida sobre a masculinidade.
Alternativas essas que não podem, simplesmente, ignorar que toda a formação masculina que se busca repensar tem raízes profundas na história, no psiquismo e no afeto dos homens que a performa. O que fazer exatamente com as ruínas de uma certa masculinidade que buscamos desconstruir?
Com textos de Pedro Ambra, Isabela Venturoza, Susana Muszkat, Eduardo Leal Cunha, Deivison Faustino, Guilherme Almeida, Fábio Mariano da Silva, Tulio Custódio e Ana Gebrim, este pequeno livro tem como objetivo não só destacar os impasses e limites de representações problemáticas da masculinidade e seus resultados, mas também apresentar novas perspectivas daquilo que se denomina, no atacado, masculinidade.
Apresentação
1. Introdução. Por uma Psicanálise dos Fatos Falhos (Paula Peron / Pedro Ambra)
2. Psicanálise e Políticas de Identidade (Christian Dunker)
3. Políticas Identitárias e Psicanálise (Maria Rita Kehl)
4. Resistências Frente ao Controle da Violência pelo Estado Burguês (Miriam Debieux Rosa / Priscilla Santos de Souza)
5. Por uma Psicanálise Não Colonizada: Desmentido e Identificação no Racismo (Adriana Barbosa Pereira)
6. Psicanálise: Um Tratamento para o Social? (Clarissa Metzger)
7. Ideologia e Alienação do Sujeito no Brasil do Século XXI: Lacan com Marx (Raul Albino Pacheco Filho)
8. Introdução e Estabelecimento da Psicanálise e suas Relações com a América Latina (Rafael Alves Lima)
9. Comentário sobre a História da Psicanálise Brasileira (Paulo José Carvalho da Silva)
10. Civilização e Violência de Estado como Agentes do Mal-estar na Cultura (Anna Turriani)
11. Estado de Emergência, Urgência e Tempo Lógico (Paulo Bueno)
12. Yané-Oré: Sobre Nós e Litorais (Paulo Sérgio de Souza Jr.)
13. Nem Todo Psicanalista? (Vinícius Costa)
14. Psicanálise e Reforma Psiquiátrica Antirracista – Uma Demanda Não Colonialista (Emiliano de Camargo David)
"Se está claro que o ponto cego homem ganha notória visibilidade depois da leitura deste livro, resta deixar mais claro ainda para certo discurso lacaniano que o matema não ameaça a História e que a História não ameaça o matema. Para que tais falsas ameaças finalmente se dissolvam e para colocar a psicanálise à altura de seu tempo, parece que precisamos, sim, à maneira de Pedro Ambra, estourar alguns vidros, sem medo de nos cortarmos caso só sobrem estilhaços. Afinal, não é por acaso que a tese que dá origem a este livro foi depositada no fatídico junho de 2013: quando a Estrutura não desce às ruas, a História bate à porta." Rafael Alves Lima
Adriana Perassi Bosco
Christian Dunker
Júlia Catani
Julio Cesar Lemes de Castro
Mario Pablo Fuks
Nelson da Silva Jr.
Patricia Porchat
Pedro Ambra
Silvia Leonor Alonso
Tiago Rocha
Vera Iaconelli
Vera Silvia Facciolla Paiva
E prefácio de Ana Maria Loffredo.
"O livro vem preencher uma lacuna importante nas discussões sobre o destino de categorias clínicas psicanalíticas através de textos escritos por pesquisadores competentes. Devido à diferença de abordagem entre os artigos, pode-se dizer que o resultado é suficientemente amplo para se colocar como referência nas reflexões atuais sobre problemas ligados a identidade de gênero." Vladimir Safatle - Folha de São Paulo / USP
"Mais do que um livro interessante, o leitor tem em mãos uma publicação propriamente necessária, inserida de maneira consistente no campo de questões que se apresentam de modo enfático, na atualidade, para a pesquisa, a clínica e a transmissão da psicanálise. (...) Trata-se de um conjunto de ensaios que bem ilustram os desdobramentos do exercício de uma psicanálise verdadeiramente implicada e, portanto, fiel às suas fontes primeiras, no mais próprio espírito do patrimônio freudiano." Ana Maria Loffredo - USP / Sociedade Brasileira de Psicanálise
Palavras-chave: final de análise; sexuação; singularidade; Jacques Lacan.
Keywords: Gender; psychoanalysis; Jacques Lacan.
Mots-clés: Genre, transsexualité, pathologie, normal, identification, identité sexuelle, transgenre
Abstract: The authors propose an analysis of the relations between norms and psychoanalysis based on a discussion about the status given to transsexuality by the psychoanalytical knowledge. Methodologically, we discuss the definition of “cisgender” – i.e. the opposite of “transgenre” – not as synonym of “normal”, but rather as an identity’s construction and a relation to the gendered body as much problematic as the ones supposed at trans subjects. Thereby, considering the works of Judith Butler, Georges Canguilhem, Sigmund Freud and Jacques Lacan, we work through the hypothesis of a sexual identity normality’s inexistence. Given that all speaking being joys of a libidinal body, nonetheless submitted to gendered normative canvas, there would be never a coincidence between the real of the drive, the ego’s unified specular image and the signifiers that mark the sexed body – whether at trans or cis subjects.
Keywords: Gender, transsexuality, pathology, normal, identification, sexual identity, transgender
Résumé:L’article présentera lês réflexions sur lethèmedu travestisme et autres phénomènes de genre, surtout dans lecontexte culturel brésilien, à partir de les réflexions du philosophe francfortien Axel Honneth et de la psychanalyse. Les travestis,avec des femmes,sontentête de la prostitutionau Brésil et constituen taussi un important contingent des réseaux de la prostitution internationale, en particulier en Italie et en France. Pour le philosophe, le moment actuel du capitalisme occidental semble radicaliser le modèle de le de liberté moral eau détriment d’un modèle de liberté juridique. Ainsi, on chercherai démontrer de quel façon des expressions nouvelles du genresont liées à cette cadre, à partir de la critique freudienne de la souveraineté de soi.
Résume: La centralité que la notion de genre occupe aujourd’hui – soit chez les mouvements sociaux, soit dans le débat académique - est indéniable. Toutefois, la psychanalyse ne s’est que très récemment rapprochée de cette discussion d’une manière plus systématique et conceptuelle. Il convient de noter, toutefois, que la popularisation du genre comme operateur conceptuel, proposée par Robert Stoller, a eu lieu à partir de la proposition théorique de « l’identité de genre », qui a permis non seulement la séparation entre le sexe biologique et le sexe, mais a aussi changé le repère par lequel on peut chercher la vérité du sujet, de la sexualité on passe à l'identité. Ce changement représente un défi pour la psychanalyse, car même si le genre peut être considéré en tant que tel ou réécrit à partir des identifications sexuelles, de la théorie de la sexuation etc., le déplacement opéré entre la sexualité et l'identité doit être correctement examiné. De plus, il faut rappeler que Stoller était, tout d’abord, un psychanalyste. Ainsi, notre recherche visera à discuter quelle sorte de notion d'identité soutenait les discussions de Stoller et des développements subséquents soit dans les théories du genre, soit les critiques queer à l’identité sous la forme de la performativité. Nous allons chercher à discuter la pertinence d'une critique radicale de la notion d’identité comme nécessairement aliénée ou imaginaire et, d'autre part, s’il serait nécessaire de proposer un autre concept psychanalytique non ontologizant d’identité qui répondrait mieux aux défis contemporains.
Meio século após a chamada revolução sexual, não seria exagero supor que, entre as novas gramáticas de subversões nesse campo, o paradigma queer se apresenta como uma verdadeira insurreição conceitual, política e de costumes. Se durante décadas diferentes vivências eróticas, identitárias e fantasísticas reduziram-se a categorias como “homossexualismo”, “transsexualismo” — e todos os outros “ismos” que uma racionalidade patologizante pode produzir —, hoje a resistência a processos de abjeção pode encontrar guarida em outros discursos. As novas insurgências feministas ao redor do globo, as perspectivas propostas pela interseccionalidade e as multidões queer são não apenas defesas contra distintas formas de opressão, mas, principalmente, emergências de outras formas de vida.
Face a tal contexto, a psicanálise encontra-se, digamos, em maus lençóis. Em primeiro lugar porque não só explodem teorias outras sobre a sexualidade que dialogam mais diretamente com tais experiências, como sujeitos subalternizados cada vez mais tomam as rédeas das constelações que regem suas narrativas e passam a produzir novos desdobramentos de suas histórias, sem valer-se necessariamente do dialeto analítico. Nesse contexto, a pertinente crítica do voluntarismo identitário e do rechaço do inconsciente feita pela psicanálise acaba por ignorar a outra face da moeda, que são precisamente as soluções encontradas no interior do próprio feminismo frente a esses impasses. Em outras palavras, talvez a subversão do sexual, a crítica à identidade e a desconfiança da ontologização da experiência falante não sejam pontos de ruptura, mas sim de convergência da psicanálise com esses outros saberes.
Esta é a grande aposta do campo constituído por Moreira no presente livro, cujo ponto central pode ser resumido na seguinte passagem: “As modificações no campo da experiência sexual que o movimento queer representa, sem querer representar, podem ser lidas como manifestações do não-todo.” (p. 24) Assim, sem temer o conceito de gênero, o mergulho na filosofia e o emaranhado polimorfo do campo queer, a autora dá a ver algo que, após a leitura de seu livro, mostra-se incontornável: o enigma da potente proposta lacaniana do chamado não-todo encontra novos desdobramentos no encontro com as vertentes do feminismo que recusam a identidade como função de universalidade.
Talvez esquecendo a advertência lacaniana de não tentar entender rápido demais as ditas fórmulas da sexuação, a comunidade psicanalítica apressou-se em localizar o não-todo e a dita inexistência da relação sexual exclusivamente a partir das capturas imaginárias que se apresentavam à época de Lacan. O gozo dos místicos, a singularidade das mulheres em Don Juan, o Ser Supremo em Aristóteles, entre outros, foram algumas das formas pelas quais o psicanalista tentou dar a ver a novidade que se apresentava em sua proposta de pensar um feminino para além do falo e do universalismo identitário que o acompanha. Mas como manter tal subversão à altura de sua época, num mundo marcado por extremas transformações eróticas, sociais e subjetivas?
É esse pas-de-sens — esse passo de sentido no não-sentido — que o percurso da obra nos convida a dar, sublinhando o caráter real das emergências nas multidões feministas e demonstrando de que maneira a crítica interna às coordenadas identitárias que guiaram por décadas o feminismo articula-se à aposta lacaniana nos rompimentos da fantasia universalista do todo. Renunciando tanto a exegeses escolares marcadas pelo discurso universitário quanto ao sedutor convite da lacração lacaniana em aforismas poéticos, Moreira soma-se a uma nova geração de autoras e autores comprometidos com uma psicanálise que não retrocede face às contingências de seu tempo.
Bem entendido, não ignoramos a existência de diferenças irredutíveis em cada campo teórico, de onde, inclusive, emanam suas forças e a especificidades. No presente texto, contudo, gostaríamos de convidar a leitora e o leitor a suspender a fixidez de tais fronteiras conceituais para que possamos nos debruçar, a partir de três autores, sobre a seguinte pergunta: pode-se conceber uma dimensão de endereçamento no processo de produção de gênero? Se sim, em que termos? Iniciemos nosso percurso a partir da leitura feita por Butler da espessura melancólica da constituição do ego em Freud.
[...]
Mais ainda, resgatando a tese freudiana relativa à especificidade do lugar do social, lembra que essa alteridade fundadora não é única, mas estende-se pelo grupo que recebe simbolicamente a criança. E na medida em que esse encontro com a criança promove no adulto um encontro com seu próprio Sexual infantil, o que há no campo inconsciente, antes de mais nada, é uma identificação que se daria entre crianças, na qual a dimensão do semelhante é tão importante quanto a interpretação da assimetria “traumática” feita pela criança sobre a posição do adulto.
É nesse sentido que compreendemos que a discussão sobre a identificação no contexto do entrelaçamento dos toros é essencial, na medida que sublinha que o desejo do Outro — entendido aqui já a partir de sua potencial pluralidade — é criado, precisamente, a partir da repetição unária de uma demanda de reconhecimento pelo sujeito que se sexua. Ocorre que o endereçamento de tal performance é feito não exclusivamente ao desejo consciente e explícito do Outro, mas inclui também os seus ruídos. Assim, pensar a sexuação a partir do desejo e dessa modalidade de inscrição simbólica ligada ao traço unário é pensá-lo, sim, a partir do desejo do Outro, na medida em que o sujeito se constitui tentando a ele responder. Toda performance se constitui e constitui seu sujeito a partir de um endereçamento que tem como base tanto o buraco que representa o desejo do Outro quanto uma demanda de reconhecimento que a ela se entrelaça; e isso sem ignorar, não obstante, que o Sexual inclui, nessa relação, perturbações irredutíveis — cuja tradução em termos identitários e performáticos escapa a qualquer controle. Portanto, o caráter perverso-polimorfo não se refere apenas à pulsão, mas ao próprio jogo de alteridades da constituição do sujeito sexuado. Talvez toda sexuação seja um processo que orbita ao redor da pergunta “o que fazer para ser o que o Outro queer”?
Abstract: This research underlines some elements from the history of masculinity in the West that would contribute to a particular reading of the Jacques Lacan’s sexuation formulas. Using the notion of man as a method, seminars undertaken between 1967 and 1973 were analyzed, in a period that includes both a valuation of the dimension of history by the French psychoanalyst as the actual development of the formulas. It is found to be a possible limit in Lacan’s appropriation of the Freudian myth of Totem and Taboo, bound to the formal specificity required by the internal logic of the formulas. The study’s attempt is to demonstrate how a historical construction of masculinity and virility representations respond accurately to the demands required to support the formal logic of sexuation, as presented at the formulas.""""
Resumo: El objetivo de este trabajo es reflexionar sobre los avances lacanianos de la idea de reconocimiento y su relación con la crítica de la ideología. En este sentido, pueden notarse movimientos significativos en la trayectoria del psicoanalista. Al inicio, es obvia su crítica a la forma como se trataba el reconocimiento y las relaciones de objeto en la tradición psicoanalítica hasta el inicio de 1950. Al mismo tiempo, se observa la propuesta de otra modalidad de reconocimiento intersubjetivo a partir del estructuralismo; y, al inicio de los años 60, la crítica de esa misma construcción a partir de la postulación del acto más allá de la Ley como modalidad de reconocimiento independiente de la intersubjetividad. No obstante, es también posible notar la existencia de cuestiones políticas concomitantes a esos desarrollos, ilustradas por los conflictos entre Lacan y las instituciones psicoanalíticas de los años 50 y 60. A partir de esa aproximación entre desarrollos conceptuales y cuestiones políticas, se propone una reflexión: serian estos desarrollos esencialmente clínicos (y posteriormente apropiados por la teoría social), o ¿es posible pensar que, en sus momentos de emergencia, esos desarrollos tenían una primera función de crítica de la ideología?
*
Existirmos: a que será que se destina? A pergunta que estrutura a tão bela Cajuína de Caetano Veloso tem como inspiração o impacto causado pelo suicídio de Torquato Neto e a doçura resignada na tristeza de seu pai. A vida, como um copo de cajuína, é apenas matéria fina e a tal lágrima nordestina parece não se turvar pois reconhece que, afinal, nosso destino é sempre a morte.
Há exatos 100 anos Freud deparou-se com semelhante constatação, reunida em seu magistral Além do princípio do prazer (1920). O texto em questão não é propriamente mais uma contribuição teórica e clínica ao então já consolidado edifício psicanalítico: talvez ele possa ser mais fielmente metaforizado como a implosão de alguns dos mais profundos pilares da psicanálise e a instauração de uma racionalidade inédita, condensada na ideia da pulsão de morte. Mas é preciso retroceder um tanto para compreender a extensão dessa verdadeira revolução do pensamento freudiano e seus impactos na compreensão psicanalítica do sujeito.
É conhecida a radicalidade com que Freud defendeu, desde o início de seu projeto intelectual, a sexualidade como centro de toda análise possível do humano. Somos seres que buscam, incansavelmente, satisfação. Mesmo junto àquelas manifestações aparentemente mais alheias ao prazer (sonhos, atos falhos, sintomas neuróticos, masoquismos), Freud habilmente encontrava como horizonte do desejo inconsciente um núcleo recalcado de verdade sexual. O conflito entre tal princípio do prazer e o princípio de realidade, que governa nossa vida em sociedade, pautaria assim a tensão constitutiva não apenas de nosso aparelho psíquico, mas das possibilidades de relação com o outro. O sujeito freudiano — esteja ele francamente adoecido ou sustentando a ilusão de uma normalidade equilibrada que, no fundo, não existe — é fraturado, uma bricolagem possível entre sua sede de prazer e as impossibilidades representadas pela realidade e as internalizações que dela fazemos.
É precisamente esta hipótese, que sustentava toda a teoria psicanalítica até então, que será revirada com a publicação de Além do princípio do prazer. Ao questionar seu maior dogma, a primazia do sexual, o texto, abertamente especulativo e ensaístico, parece nos convidar a enxergar a psicanálise como um saber a beira de sua própria dissolução. A pergunta que começa a se esboçar a partir daí é: e se a verdadeira pulsão não apenas do ser humano, mas de todo e qualquer organismo fosse a morte? Não é esse o único traço comum de nosso necessário e inexorável destino? A pulsão de morte é aquilo que, a despeito de todos os nossos esforços, nos conduz rumo à destruição em seu sentido mais radical. Por que repetimos sempre os mesmos erros? O que conduz as pessoas a sofrimentos que poderiam ser evitados? Para além da sexualidade e da satisfação, Freud propõe haver um impulso ainda mais primordial que nos faz matar algo em nós mesmos no próprio decurso da vida que, por contraste, serve apenas e tão somente para atrapalhar a morte. E se o silêncio, o retorno ao inanimado e o gosto pela destruição formassem o princípio mais fundamental ao qual, quotidianamente, respondemos?
Antecipada em 1912 por Sabina Spielrein, a ideia de uma destruição como origem do devir é saudada por Freud como rica em conteúdos, ainda que ele próprio reconhecesse sua incapacidade em compreende-la totalmente. Foi necessário que um evento político e social de grandes proporções viesse a produzir novas formas de sofrimento para que o princípio do prazer viesse finalmente a entrar em xeque. As neuroses produzidas pela Primeira Guerra Mundial e seus sonhos traumáticos correlatos mostraram a Freud que havia algo no interior do psiquismo que tendia a repetir o desprazer indefinidamente. O novo dualismo pulsional oporia agora vida e morte, construção e destruição, diferença e igualdade como duas forças antagônicas agindo não apenas na subjetividade, mas igualmente nos processos sociais que a condicionam.
A civilização, por seu turno, não seria assim o conjunto positivo de todas as conquistas humanas, tendo como seu futuro progressos infinitos e a diminuição paulatina de todas as mazelas sociais. A guerra destruíra o sonho dourado da Belle Époque não por ser um desvio pontual da conduta humana, mas justamente por mostrar sua outra face: a tendência conservadora e de retorno a estados anteriores que caracterizam a pulsão de morte, em oposição ao caráter progressista da pulsão de vida. Notemos como os termos da descrição freudiana dessa polaridade não são extraídos propriamente de uma teoria psicológica, nem mesmo biológica, mas de duas tendências que marcam a vida política da modernidade.
Por esta razão, além de comemorar o centenário da publicação de Além do princípio do prazer, o presente dossiê presta-se a uma outra tarefa. Trata-se aqui de resgatar uma atualidade inquietante da proposta de Freud também em sua espessura social. Afinal, o que explicaria que após algumas décadas de relativo progresso — em termos de diminuição da miséria, expansão de pautas feministas, reconhecimento de alguns direitos da população LGBTQI, por exemplo — as mais obscuras e retrógradas tendências conservadoras voltassem a aparecer com força não apenas no Brasil mas em diversos lugares ao redor do globo? Neonazismos, negacionismo climático, aumento no número de suicídios, processos de intensa precarização do trabalho, pedidos de intervenção militar, ataques ao Estado de bem-estar social e epidemias de sofrimentos mentais em escalas inéditas: seriam essas meras situações passageiras ou efeitos incontornáveis do tipo de vida e de progresso social sustentado até hoje?
Convidamos as intactas retinas de autoras e autores a se debruçarem sobre a questão e o resultado são múltiplos olhares sobre a complexa dança entre cristalinas cajuínas da vida e as infelizes sinas da morte.
Pedro Ambra
Freud para Osório César
“Quão notável que no distante Brasil nasça de repente um movimento psicanalítico pronto, com divulgação em toda sociedade e naturalmente alguma oposição. Esta última não deve faltar.”
Freud para Porto-Carrero
São passados mais de cem anos desde que Freud escrevia a seus correspondentes, com notável tom de surpresa, sobre o nascente movimento psicanalítico no Brasil. Pode parecer pouco provável que o projeto internacionalista de expansão da psicanálise ao sul do equador tivesse sido previamente planejado. Menos provável ainda que ele encontraria no distante Brasil um solo tão fértil, mas nem por isso pouco acidentado.
Desde os primeiros momentos de implantação, com uma assimilação sui generis à causa higienista da nossa intelectualidade psiquiátrica pós-abolição, passando pela formação institucionalizada da psicanálise impulsionada pelo governo JK, até o paradoxal boom da psicanálise na ditadura militar, temos um arco histórico profundamente complexo e frequentemente contraditório que retiraria a psicanálise de uma condição marginal e a conduziria a um tipo peculiar de sucesso. A popularidade da expressão “Freud explica!”, genuinamente brasileira, é um reflexo disso. No início dos anos 1990, houve até quem dissesse que o Brasil esteve entre os três maiores mercados editoriais de psicanálise a nível mundial.
Poderíamos falar de um triunfo da psicanálise no Brasil? As diferenças entre “psicanálise brasileira” e “psicanálise no Brasil”, que tomaram o centro do debate psicanalítico nos anos 1990, são datadas ou, na verdade, dignas de uma retomada?
Além disso, pode-se dizer que, desde Freud, a psicanálise flerta sem muito pudor com um discurso de marginalização de sua teoria e praxis. Em outras palavras, ao estender a subversão teórica que é dar centralidade ao inconsciente e à sexualidade na direção dos processos sociais e políticos de sua implantação, a psicanálise acabou por narrar sua trajetória como a de uma perigosa peste sempre à mercê de uma erradicação pelos discursos hegemônicos. Daí que, ainda hoje, mesmo ocupando lugares de poder, de fala e notável visibilidade é muito comum depararmo-nos com defesas apaixonadas de uma psicanálise em perigo, sob ataque e prestes a desaparecer. Se tal retórica se justifica em alguns países onde a prática analítica de fato perdeu espaço para as neurociências e terapias cognitivo-comportamentais, este, certamente, não é o caso do Brasil. De sucessos editoriais, passando pela alta densidade de disciplinas universitárias focadas em psicanálise até a retomada recente do projeto freudiano de clínicas públicas que começam, literalmente, a pipocar país afora, é preciso se perguntar em que medida deve-se, ainda, sustentar ou modificar a fantasia de marginalização que rege a autoimagem da psicanálise no Brasil. E, principalmente, qual o fracasso que tal sucesso recalcaria.
A tensão entre sucesso e fracasso da psicanálise tem um capítulo ainda mais delicado ao se considerar a incidência da desigualdade social e do racismo no interior das políticas da psicanálise no Brasil. Ainda que, cada vez mais, a psicanálise aproxime seus dispositivos de formação das classes médias e baixas, seu caráter aristocrático ainda se nota no horizonte último das cadeias transferenciais. Por quê, afinal, na potente psicanálise brazuca os autores de referência continuam sendo majoritariamente gringos? Nessa esteira, se lembrarmos que alguns analistas ainda hoje chegam mesmo a optar por fazer suas análises no exterior, cabe a pergunta se não estaríamos diante de uma versão do bacharelismo que tanto marcou a aspiração de modernização das elites nacionais no início do século XX. Mas alguns expedientes de modernização tendem, de alguma maneira, a repetir as marcas de seu atraso na tentativa de nega-lo. O gritante silenciamento da questão da raça, por exemplo, dá-se a ver no sucessivo branqueamento epidérmico e conceitual de uma psicanálise que se quer neutra. As reflexões sobre os trabalhos e importância histórica de Neusa Souza Santos, Vírginia Bicudo e Lélia Gonzalez, para ficar em alguns exemplos, são ainda muito tímidas quando confrontadas tanto aos problemas que uma psicanálise brasileira deveria se colocar quanto à potência de suas obras. O que explicaria a manutenção de tal assimetria mesmo num momento histórico em que as identidades gritam por seu lugar de fala e a psicanálise começa a refletir mais criticamente sobre seus pontos cegos?
Estas são algumas das inquietações que nos levaram a propor esse dossiê sobre psicanálise no Brasil. Diante da constatação inegável do respeito e do prestígio de que a psicanálise no Brasil goza no cenário internacional, da segurança em relação aos nossos processos de implantação — que parece contrastar com a insegurança de nossos processos de autorização e de autoria —, julgamos necessário o debate para que possamos discutir, afinal, o que caracteriza e qualifica o nosso sucesso. E a que custo ele se deu.
Tania Rivera nos oferece um ensaio que inspira o exercício de uma psicanálise dos fatos falhos no Brasil, evidenciados nos embustes de um exotismo que promete consagração mas entrega indignidade. A subversão proposta pelos domínios estéticos da cultura brasileira aparece como ponto gravitacional, seja para declinamos esse sedutor convite à indiginidade, seja para reencontramos a potência antropofágica que nos constitui e afirmarmos nossa respeitabilidade.
Christian Dunker empreende uma análise dos compromissos da psicanálise no Brasil com as profundas contradições da vida social no país. Articulada às ambições de modernização dos costumes, ora para negá-los, ora para confirma-los, a psicanálise impulsiona seus processos próprios de validação desde um lugar específico de exceção, resistindo a padrões e regulações ao mesmo tempo em que se confunde com eles.
Rafael Dias de Castro nos convida a examinar criticamente o processo de implantação do freudismo no Brasil desde os seus princípios, oscilando entre o perigo e a moda, entre a pretensão da ciência e a vulgarização da cultura popular. É dando demonstrações de como a história da psicanálise em nosso país precisa ser pensada em sua complexidade que julgamos indispensável superar o oficialismo e as narrativas “pioneirescas” ainda dominantes na historiografia do campo.
Mas, apesar dessa evidente constatação, acho importante sublinhar que por trás da pirotecnia farsesca da segurança pública, a liberação da posse de armas tem um forte, fortíssimo componente de gênero. Em resumo, alguns dos porquês.
Em primeiro lugar, seu público alvo são homens. Homens violentos, homens amedrontados, homens frágeis e homens que ostentam terão agora no fetiche da bala uma ilusão de solução de seus problemas — reais e imaginados. Esse é o apelo semântico. Está em jogo aqui fornecer uma significação, uma identidade para vivências que (tanto em decorrência das conquistas da luta feminista, quanto do real aumento da violência no Brasil e, principalmente, de seu alardeamento sensacionalista) sentem-se fraturadas e imaginam-se encurraladas, perseguidas. A arma é vendida aqui, no fundo, como uma promessa de restituição de sentido.
Mas o decreto não apenas libera a posse àqueles que nutrem uma nostalgia de uma identidade e segurança e que aguardavam há tempos sua liberação. Mais grave do que isso é o discurso que roteiriza e gera masculinidades que se meçam pelo padrão bala. Eis sua dimensão performativa[2]. Em outras palavras, está em curso uma linha de montagem não só de pistolas e projéteis, mas de subjetividades que terão esse horizonte como ideal. Ao colocar holofotes na cena de assinatura do decreto — esvaziada, a propósito[3] — e, mais ainda, produzir uma peça publicitária que chancela e defende o ato[4], o governo está investindo pesadamente na produção de masculinidades marcadas por esse modelo.
Além disso, como tem sido dito, o decreto libera (por meio de uma maquiagem burocrática feita na calada da noite[5]) em todos os 27 estados da União a posse e não o porte de armas, ou seja, em teoria as armas só poderiam ficar no trabalho ou em casa. Na prática, isso significa que num país com índices alarmantes de violência contra a mulher teremos, a partir de agora, homens incentivados a ter uma arma dentro de casa.[6] Imagine para onde vão caminhar as “discussões” de casais Brasil afora. Essa é a dimensão estritamente patriarcal e patrimonialista do problema.
No entanto, considerando o tanto a ignorância quanto o desprezo pelas leis, é claro que essas armas circularão. De um lado, teremos não apenas o feminicídio e a violência domésticos, mas um componente adicional nos casos de estupro que, como sabemos, são cometidos também (e talvez sobretudo) pelos “cidadãos de bem”. De outro, temos a incitação de violência não só contra a mulher, mas entre homens. Não é muito difícil imaginar o que serão as baladas, as brigas de trânsito e os desentendimentos entre vizinhos. E, claro, esses impactos serão sentidos sobretudo na população preta, pobre e periférica. Essa é a espessura edípica da questão, que articula, pela suspensão da proibição, tanto a questão sexual quanto aquela da violência: não nos esqueçamos que Édipo só rompe com a proibição do incesto porque matou seu pai, surpresa, numa briga de trânsito num cruzamento a caminho de Tebas.
Por fim, há ainda um último elemento que torna o cenário ainda mais desolador: o consumidor da arma de fogo não necessariamente é seu usuário final. Estamos falando aqui dos suicídios que encontram na posse de armas uma ocasião privilegiada de passagem ao ato. A cultura das armas (cultura entendida aqui não só em seu sentido de culto, mas também em sua acepção bacteriológica) forma um ambiente ideal para a proliferação do caráter quase epidêmico de suicídios em alguns grupos. Estudos feitos pela Universidade de Pittsburgh mostram que o risco de suicídio em adolescentes é 30 vezes maior quando os pais possuem arma em casa.[7] No Brasil, em apenas 5 anos a taxa de suicídios na população negra aumentou 55,4 % em relação aos demais grupos étnico/ raciais[8]. Entre mulheres, o aumento no número de suicídios já é duas vezes mais rápido do que em relação aos homens[9]. Há aí, portanto, um insidioso meio de extermínio de grupos minorizados, nos quais a sombra de sua dominação recai sobre o/a próprio assujeitado/a. Eis o caráter melancólico da questão.
O que os homens do governo e sua boiada querem não é segurança. É aumentar, ainda mais, o poder de homens privilegiados. Nesse sentido, o decreto assinado é menos uma política pública de segurança e mais um capítulo das políticas de gênero e de aumento das desigualdades do novo governo.
Abrimos nosso número com uma discussão de Pedro Ambra sobre as dimensões de gênero presentes na recente flexibilização da posse de armas e como a produção de determinados tipos de masculinidade é um fator chave na análise desse evento. Seguimos com as reflexões de Susana Muszkat, que exploram — partindo da psicanálise e da crítica a um dos principais mitos de gênero do Ocidente, Adão e Eva — as filigranas do que a autora chamou de desamparo identitário e de violência perversa, a partir de sua experiência de mais de uma década no atendimento de homens que praticaram violência contra a mulher. No artigo seguinte, Eduardo Leal Cunha discute, valendo-se de pontuações de Foucault, Barthes e Preciado, de que maneira a naturalização narrativa da solidez da identidade masculina acaba por eclipsar o “Outro do homem”: o homossexual. Ademais, sublinha que um movimento de normalização da vida gay parece vir ao encontro da dissolução não apenas da masculinidade mítica, mas de uma desestabilização da noção de identidade como tal.
Partindo das inquietantes indagações do filósofo martiniquenho Frantz Fanon, Deivison Faustino racializa o problema, explorando a ideia de que o homem negro não seria um homem, na medida em que as condições de colonização o impedem de ser reconhecido enquanto tal. Ao serem considerados sob uma ótica interseccional, os privilégios patriarcais do homem negro apresentam uma série de contradições e perspectivas para o estudo das masculinidades. Por fim, Guilherme Almeida entrelaça suas experiências pessoais como homem trans às modificações pelas quais, nos últimos anos, as masculinidades trans vêm passando no Brasil: o fechamento do dossiê é, assim, um convite à abertura da caixa de Pandora de novas e plurais maneiras de ser homem.
Esse ensaio nasceu de uma experiência de profunda perplexidade. Por muitos anos assisti, com uma incompreensão crescente, um grande e influente corpo acadêmico feminista criar uma interpretação da teoria do simbólico de Jacques Lacan, buscando utilizá-la para propósitos feministas. Quanto a mim, não sentia nenhuma afinidade com o pensamento lacaniano, nem intelectual nem politicamente. Assim, enquanto muitas de minhas companheiras feministas adaptavam ideias semi-lacanianas para teorizar sobre a construção discursiva da subjetividade no cinema e na literatura, eu contava com modelos alternativos no desenvolvimento de uma descrição da linguagem que pudesse inspirar uma teoria social feminista. Por muito tempo evitei qualquer discussão meta-teórica explícita dessas questões. Não expliquei nem a mim mesma nem a meus colegas por que recorria aos modelos de discurso de escritores como Foucault, Bourdieu, Bakhtin, Habermas e Gramsci ao invés daqueles de Lacan, Kristeva, Saussure e Derrida. Gostaria de fornecer, nesse ensaio, tal explicação. Tentarei esclarecer porque penso que as feministas devem evitar as versões da teoria do discurso que atribuem a Lacan e as teorias correlatas atribuídas a Julia Kristeva. Tentarei também identificar alguns campos onde acredito que possamos encontrar alternativas mais satisfatórias.