[go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu
A invenção da homossexualidade Paulo Roberto Ceccarelli Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Psicopatologia Fundam ental e Psicanálise (Universidade de Paris VII). Mem bro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundam ental, S ócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, Mem bro da “S ociété de Psychanalyse Freudienne”. Professor de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais). pr@ceccarelli.psc.br; paulorcbh@m ac.com 3 Resumo Com o título deliberadamente polêmico, o artigo mostra que a questão da homossexualidade continua sendo um problema entre os psicanalistas. Não havendo uma posição que faça consenso, existiria uma “invenção” da homossexualidade em psicanálise. Em Freud, a questão fica em aberto. As posições de alguns pós-freudianos mostra o impasse, dentro da teoria psicanalítica, causado pela dificuldade de estabelecer o que determina a chamada “escolha de objeto” homo ou heterossexual. Segundo o autor, uma das origens da polêmica sobre a homossexualidade deve ser procurada nos Ideais da cultura ocidental – ideais constitutivos do superego – que, baseados no imaginário judaico-cristão, determinam como a sexualidade deve ser vivida. O autor discute, também, as conseqüências dessas posições na construção de subjetividades. Pa la vra s-cha ve: Hom ossexua lida de. psicanalítica. Homofobia. Ideologia . Teoria psica na lítica . Prá tica Abstract With such a provocative title this article shows that the question of homosexuality still is a problem amongst psychoanalysts. The lack of consensus lead to an “invention” of homosexuality in psychoanalysis. In Freud the question is left open. The positions of some Post-Freudians equally show the impasse due to the difficulty of establishing what actually leads one to the so called “object choice” be it homo or heterosexual. According to the author one of the reason of this polemic is to be searched in the occidental culture Ideals – part of the superego -, which are based in the Jewish-Christian imaginary and that defines the “right” way to live sexuality. The author also discusses the consequences of such positions in the construction of his/her psychosexuality. Keywords: Homosexuality. Ideology. Psychoanalytic Theory. Psychoanalytic Práxis. Homophobia. 72 O leque das culturas humanas é tão vasto, tão variado (e de fácil manipulação) que, sem dificuldades, encontramos argumentos que sustentam toda e qualquer hipótese. Claude Lévi-Strauss Introdução Ao sustentar a existência de uma “sexualidade natural” no ser humano, o imaginário judaico-cristão dominante no Ocidente cristalizou e isolou as expressões da sexualidade, como se tais manifestações possuíssem realidades concretas. O passo seguinte foi a criação de nomenclaturas para descrever, classificar e etiquetar as práticas sexuais. Foi também em referência à sexualidade natural que surgiu a noção de normal, que, como toda norma, é um construto teórico, logo, ideológico, tributário do imaginário sociocultural no qual ela emerge. A partir daí, toda forma de sexualidade que não se encaixe nesse imaginário é tida como desviante ou patológica (CECCARELLI, 2 0 0 0 ). A insistência em transformar comportamentos em categorias identitárias contribui enormemente para a criação de uma espécie de armadura em que o sujeito, em eco com o sistema de valores morais ocidentais, vê-se aprisionado em uma forma normativa de viver a sexualidade. Com este título um ta nto provoca dor – A invenção da hom ossexualidade –, pretendo insistir sobre a participação do imaginário ocidental não apenas na “invenção” da homossexualidade – entendida aqui como um artefato classificatório – como também em sua manutenção. Pretendo ainda mostrar que a origem dessa “invenção”, assim como a imposição de uma sexualidade natural, heterossexual e para procriação, é uma construção simbólica própria à cultura ocidental, cujas bases remontam aos elementos mitológicos constitutivos do imaginário ocidental. Evidentemente, do ponto de vista fenomenológico, a atração sexual entre pessoas do mesmo sexo existe desde a aurora da humanidade em todas as culturas. A época e o local determinaram o tratamento que se deu a esses sujeitos: prática comum e bem tolerada na Grécia, Pérsia, Roma e China, mas condenada entre os assírios, os hebreus e os egípcios. Entre os índios brasileiros, assim como em algumas sociedades africanas – a antropologia é rica em relatos –, as reações frente ao relacionamento entre pessoas do mesmo sexo variam desde a aceitação, como uma expressão legítima da sexualidade, até a rejeição absoluta. Com o advento do cristianismo, a homossexualidade torna-se, em certos períodos, um crime passível de morte. Paulo Roberto Ceccarelli n. 0 2 | 2 0 0 8 | p. 7 1 -9 3 73 Inicio minha argumentação com uma pequena revisão, que não se pretende exaustiva, sobre a posição da psicanálise, mas sobretudo a dos 1 psicanalistas, em relação à homossexualidade . A discussão sobre sua origem – trata-se de uma perversão? de um desvio? de uma manifestação de sexualidade como outra qualquer? – está longe de estabelecer unanimidade entre os pesquisadores. A homossexualidade na obra freudiana Nos textos de Freud, encontramos vários trabalhos teórico-clínicos, desde o Manuscrito H, endereçado a Fliess, até o Esboço de psicanálise , em que a homossexualidade é discutida. Os que merecem destaques são: Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1 9 0 5 , e sobretudo as notas de rodapé acrescentadas em 1 9 2 5 e 1 9 2 0 ), Leonardo da Vinci e um a lem brança de sua infância (1 9 1 0 ), O caso de S chreber (1 9 1 1 ) e Psicogênese de um caso de hom ossexualism o num a m ulher (1 9 2 0 ). O que se depreende da leitura desses textos, embora algumas ambigüidades existam, é que a homossexualidade é uma posição libidinal, uma orientação sexual, tão legítima quanto a heterossexualidade. Freud sustenta essa posição partindo do complexo de Édipo, fundado sobre a bissexualidade original, como referência central a partir da qual a chamada “escolha de objeto” ou “solução”, que acho mais adequado, vai se constituir. Tal escolha, que não depende do sexo do objeto, é a base dos investimentos futuros. Uma vez que os investimentos libidinais homossexuais estão presentes, ainda que no inconsciente, em todos os seres humanos desde o início da vida, Freud opõe-se com o máximo de decisão, que se destaquem os homossexuais, colocando-os como um grupo à parte do resto da humanidade, como possuidores de características especiais [...]. Ao contrário, a psicanálise considera que a escolha de um objeto, independentemente de seu sexo – que recai igualmente em objetos femininos e masculinos –, tal como ocorre na infância, nos estágios primitivos da 1 O termo “homossexualismo” foi proposto, em 1 8 6 9 , pelo o médico húngaro Benkert, a fim de transferir do domínio jurídico para o médico essa manifestação da sexualidade. Antes do século XVIII, a palavra “homossexual” era utilizada nas certidões de nascimento de gêmeos. Quando do mesmo sexo, eram registrados como “homossexuais”. A “homossexualidade”, como doença, só foi excluída do DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Americana) em 1 9 7 3 , após acalorados debates. Há quem argumente, entretanto, que tal decisão foi puramente política. Devido ao radical ism o presente em hom ossexualism o que remete à doença, optou-se pelo uso da palavra hom ossexualidade . 74 sociedade e nos primeiros períodos da história, é a base original da qual, como conseqüência da restrição num ou noutro sentido, se desenvolvem tanto os tipos normais quanto os invertidos (FREUD, 1 9 0 5 , p. 1 4 6 ). Como conseqüência, continua Freud no mesmo enunciado, [...] do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado, pois não é fato evidente em si mesmo, baseado em uma atração afinal de natureza química (FREUD, 1 9 0 5 , p. 1 4 6 ). Anos mais tarde, precisamente em 1 9 2 0 , ele deixa ainda mais clara sua posição em relação à homossexualidade: Não compete à psicanálise solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e remontar os caminhos que levam deles até as disposições pulsionais (FREUD, 1 9 2 0 , p. 2 1 1 ). A conclusão que podemos extrair é que tanto a homossexualidade quanto a heterossexualidade são destinos pulsionais ligados a resoluções edipianas. A base da argumentação de Freud está na visão completamente nova e revolucionária que ele dará à noção de psicossexualidade. No texto de referência sobre o tema, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade , ele afirma que, no ser humano, a pulsão sexual não tem objeto fixo, ou seja, ela não está atrelada ao instinto como nos animais. Ao contrário, o objeto da pulsão é diversificado, anárquico, plural e parcial; exprime-se de várias formas: oral, anal, escopofílica, vocal, sádica, masoquista, dentre outras. Com isso, Freud divorcia a sexualidade de uma estreita relação com os órgãos sexuais, passando a considerá-la como uma função abrangente em que o prazer é sua finalidade principal, sendo a reprodução uma meta secundária. Além disso, ao postular que a sexualidade vai além dos órgãos genitais, o autor leva “as atividades sexuais das crianças e dos pervertidos para o mesmo âmbito que o dos adultos normais” (FREUD, 1 9 2 5 , p. 5 2 ). Nessa perspectiva, em que as pulsões parciais integram o psiquismo humano, o conceito de normalidade perde seu sentido, tornando-se uma ficção: não existe diferença qualitativa entre o normal e o patológico. A diferença reside nas pulsões componentes dominantes na finalidade sexual. Além disso, se os impulsos afetuosos e amistosos, reunidos na “palavra extremamente ambígua de 'amor'”, nada mais são do que moções pulsionais sexuais “inibidos em sua finalidade ou Paulo Roberto Ceccarelli n. 0 2 | 2 0 0 8 | p. 7 1 -9 3 75 sublim ados ” (FREUD, 1 9 2 5 , p. 5 2 – grifo do autor), cada sujeito possui um vestígio de escolha de objeto homossexual. Finalmente, à biologia, à moral, à religião e à opinião popular, Freud vai dizer o quanto elas se enganam no que diz respeito à “natureza” da sexualidade humana: a sexualidade humana é, em si, perversa. Agindo a serviço próprio ao buscar o prazer, ela escapa a qualquer tentativa de normalização e subverte a natureza “pervertendo”, assim, seu suposto objetivo supostamente natural: a procriação. A sexualidade é contra a natureza: em se tratando de sexualidade, não existe “natureza humana”. Freud não apenas argumenta seus pontos de vista teoricamente como os sustenta na prática. Em 1 9 0 3 , quando a homossexualidade era tida como um problema médico e jurídico, o jornal vienense Die Zeit pede a Freud que se pronuncie sobre um escândalo envolvendo uma importante personalidade acusada de práticas homossexuais. Ele se posiciona, dizendo que A homossexualidade não é algo a ser tratado nos tribunais. [...] Eu tenho a firme convicção que os homossexuais não devem ser tratados como doentes, pois uma tal orientação não é uma doença. Isto nos obrigaria a qualificar como doentes um grande números de pensadores que admiramos justamente em razão de sua saúde mental [...]. Os homossexuais não são pessoas doentes (FREUD, 1 9 0 3 apud MENAHEN, 2 0 0 3 , p. 1 4 ). Em 1 9 2 1 , Freud recebe uma carta de Ernest Jones, então presidente da International Psychoanalytical Association (IPA). Nela, Jones relata a Freud que recebera um pedido de admissão à Sociedade de um analista homossexual. Jones é contra sua admissão. Na resposta à carta, assinada por Freud e Otto Rank, lê-se: Sua pergunta, estimado Ernest, sobre a possibilidade de filiação dos homossexuais à Sociedade, foi avaliada por nós e não concordamos com você. Com efeito, não podemos excluir estas pessoas sem outras razões suficientes [...] em tais casos, a decisão dependerá de uma minuciosa análise de outras qualidades do candidato (FREUD apud LEWIS, 1 9 8 8 , p. 3 3 ). Finalmente, temos a famosa carta de Freud, escrita em 1 9 3 5 , a uma mãe americana que solicita seus conselhos sobre seu filho homossexual: A homossexualidade não é, certamente, nenhuma vantagem, mas não é nada de que se tenha de envergonhar; nenhum vício, nenhuma degradação, não pode ser classificada como 76 doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual (FREUD apud JONES, 1 9 7 9 , p. 7 3 9 ). Os pós-freudianos e a homossexualidade Entretanto, a posição freudiana em relação à questão não obteve consenso entre os analistas, chegando mesmo a provocar polêmica entre a Sociedade Psicanalítica de Viena e a de Berlim. Esta, dirigida por Abraham, considerava que os homossexuais eram incapazes de exercer a profissão de analista, pois a análise não os “curaria” da “inversão” que sofrem. A Sociedade de Viena, apoiada em Freud, tinha uma opinião totalmente contrária, como vimos na carta de Freud a Jones citada acima. Anna Freud, filha e herdeira intelectual da obra de Freud, tentou em sua prática clínica transformar homossexuais em pais de famílias heterossexuais, o que redundou em grandes fracassos. Contrariamente a seu pai, ela sempre militou contra o acesso de homossexuais à profissão de analistas. Anna deixa clara sua posição, em uma carta datada de 1 9 5 6 , à jornalista Nancy ProcterGregg, desencorajando-a a publicar a famosa carta de seu pai de 1 9 3 5 : Existem várias razões para isto [para que a carta não seja publicada]. Uma é que hoje se pode tratar mais homossexuais que se fazia outrora. Outra é que os leitores poderão ver aí uma confirmação do fato que tudo que a análise pode fazer é convencer os pacientes que seus defeitos ou “anomalias” não são tão graves assim, e que eles deveriam aceitá-los com alegria (apud YOUNGBRUEHL, 1 9 9 1 , p. 5 7 ). Ainda que se possa argumentar que o rigor desses analistas – só admitir, entre seus pares, pessoas acima de qualquer suspeita – deva ser atribuído às resistências à psicanálise, que era acusada de corromper a sociedade com suas teorias sexuais, é muito difícil saber as verdadeiras razões que levaram esses dois importantes nomes da psicanálise das primeiras décadas – Anna Freud e Ernest Jones – a adotarem posições tão repressivas em 2 relação à homossexualidade . 2 Segundo Elizabeth Roudinesco, “[...] pode-se dizer que Jones agia contra ele mesmo no seu desejo de normalização, da mesma forma que Anna Freud lutava contra a culpa que sentia por seu desejo instaurando regras repressivas contra os homossexuais.” (Jones, grande sedutor e acusado inúmeras vezes de envolvimento sexual com suas pacientes, pensava que o movimento psicanalítico deveria formar analistas impecáveis. Anna Freud foi acusada de ser homossexual por nunca ter tido uma relação com um homem e por sua preferência por amizades femininas. Talvez Freud, que não foi nem libertino nem transgressivo, tenha sido tão liberal em termos de sexualidade porque não tinha que defender-se de si mesmo, contra sua sexualidade) (Cf. ROUDINESCO, 2 0 0 2 a, p. 1 1 -1 3 ). Paulo Roberto Ceccarelli n. 0 2 | 2 0 0 8 | p. 7 1 -9 3 77 Outra importante Escola de Psicanálise, a corrente ligada a Melanie Klein, entendia a homossexualidade feminina como uma identificação a um pênis sádico, e a masculina como um problema esquizóide da personalidade ou como uma defesa contra a paranóia: em ambos os casos, tratava-se de uma patologia grave, uma variante de um estado psicótico mortífero e destruidor. Isso significa definir os homossexuais como doentes, desviantes, o que conseqüentemente os impedia de se tornarem analistas. (Tais posições, amplamente apoiadas pelas sociedades psicanalíticas norte-americanas filiadas à IPA, só recentemente, veremos, foram repensadas.). O grande expoente da psicanálise francesa, Jacques-Marie-Émile Lacan, teve uma posição diferente em relação aos homossexuais. Em uma época em que as sociedades psicanalíticas francesas seguiam o modelo americano de impedir o acesso de homossexuais à formação analítica, Lacan os recebia em análise, aceitava-os como membros da École Freudienne de Paris, fundada por ele, e nunca tentou transformá-los em heterossexuais. Para Lacan, entretanto, a homossexualidade não era, como para Freud, uma orientação sexual. Segundo Roudinesco (2 0 0 2 a, p. 1 6 ), a posição de Lacan é bem próxima da de Michel Foucault e de Gilles Deleuze, que valorizavam a perversão como uma contestação radical à ordem social burguesa. Lacan, que 3 dizia haver sempre uma disposição perversa em toda forma de amor , entendia o homossexual de uma maneira bem próxima à de Proust: um personagem sublime e maldito; um “perverso”, pois ele subverte, perverte o discurso dom ina nte da civiliza çã o. Por conseguinte, o reconhecim ento da homossexualidade como “subversão” não levava nem à discriminação nem a discursos repressivos. (É por entender a homossexualidade neste mesmo viés – uma subversão ao discurso machista dominante – que Bourdieu (2 0 0 0 ) deplora a reivindicação de normalização dos movimentos gays , pois ao fazerem isso voltam contra si mesmos o discurso hegemônico.). A homossexualidade na atualidade Porém, o debate continua como nos tempos freudianos: há analistas que vêem a homossexualidade como algo que pode e deve ser tratado, e aqueles, mais próximos de Freud, que a entendem como uma posição libidinal ao mesmo título que a heterossexualidade. O número de trabalhos que tem sido 3 O comentário que Lacan faz de uma análise proustiana mostra bem que o desejo perverso está presente tanto na heterossexua lidade qua nto na hom ossexualidade: “Vocês se lem bra m da prodigiosa aná lise da homossexualidade que Proust desenvolve no mito de Albertine. Pouco importa que este personagem seja feminino – a estrutura da relação é eminentemente homossexual” (Cf. LACAN, J. Le S ém inaire I, 1 9 5 3 -1 9 5 4 , Les écrits techniques de Freud, Paris: Seuil, 1 9 7 5 , p. 2 4 6 ). 78 publicado sobre o tema nos últimos anos é significativo, para não dizer sintomático. Embora não seja o escopo deste trabalho fazer uma revisão da 4 literatura recente sobre o tema, para a qual remeto o leitor interessado , cabe citar algumas posições teórico-clínicas. Existem aqueles que não escondem sua homofobia. É o caso, por exemplo, de Edmund Bergler e de Carles Socarides. Ambos, que tiveram importantes posições em Sociedades Psicanalíticas norte-americanas, contribuíram enormemente para discriminação dos homossexuais que pretendiam se tornar analistas. Bergler escreve: Não tenho preconceito contra a homossexualidade [...] [mas] os homossexuais são, por essência, pessoas desagradáveis, que não se preocupam se suas atitudes agradam ou não. Possuem uma mistura de arrogância, falsa agressão e lamúria. Como todos os masoquistas psíquicos, são obsequiosos quando se encontram confrontados a uma pessoa mais forte; impiedosos quando têm o poder, sem escrúpulos quando se trata de esmagar alguém mais fraco [...] raramente encontramos um ego intacto entre eles (BERGLER, 1 9 5 6 , p. 2 6 ). E Socarides: O homossexual pode parecer não ser doente, exceto na hipocrisia de sua vida sexual. Certos homossexuais muito perturbados não têm angústia, pois estão constantemente engajados em relações sexuais com pessoas do mesmo sexo – o que alivia sua ansiedade (SOCARIDES, 1 9 9 5 , p. 1 1 0 ). Em clara oposição às teses freudianas, mas na mesma linha de pensamento que Anna Freud, existem os que, baseados em uma suposta falha narcísica nos homossexuais, concluem que a hora atual, com o aumento do conhecimento tanto teórico quanto clínico, é possível afirmar que a psicanálise pode resolver o problema da homossexualidade (BOTELLA, 1 9 9 9 , p. 1 0 3 9 ). [Vale notar que o autor desse texto deixa claro que está trabalhando com modelos teóricos sem sustentação clínica!] 4 Algumas publicações francesas recentes: S ociologie et S ociétés , Les Presses de l'Université de Montréal, Montréal, 2 9 , 1 , 1 9 9 7 : Homosexualités: enjeux scientifiques et militants. Revue Française de Psychanalyse , 4 , 6 3 , 1 9 9 9 : “Identités”. La Clinique Lacanienne , Ramonville Saint-Agne, Ères, 4 , 2 0 0 0 : Les homosexualités. Adolescence , Paris, Greupp, 3 7 , 2 0 0 1 : “Homosexualités 2 ” Cliniques Méditerranéennes , Ramonville SaintAgne, Ères, n. 6 5 de 2 0 0 2 : “Les homosexualités aujourd'hui: un défi pour la psychanalyse?” Revue Française de Psychanalyse , 1 , 6 7 , 2 0 0 3 : “Homosexualités”. TORT, M. “Quelques conséquences de la différence “psichanalytique” des sexes”, Les Tem ps m odernes , Paris, TM, Juin-juillet-août 2 0 0 0 , n. 6 0 9 , p. 1 7 6 -2 1 5 . Paulo Roberto Ceccarelli n. 0 2 | 2 0 0 8 | p. 7 1 -9 3 79 Mas há os que pensam diferente. No Congresso Internacional de Barcelona, em 1 9 9 7 , Ralph Roughton, analista didata de Sociedade Psicanalítica de Cleveland, USA, e membro da Associação Psicanalítica Americana, filiada à IPA, fez uma comunicação contundente que finalmente derrubou a “regra silenciosa”, segundo a qual candidatos homossexuais não deveriam ser aceitos como membros das Sociedades filiadas à IPA. Nessa comunicação, Roughton (1 9 9 9 ), após retraçar a luta dos analistas homossexuais americanos para serem reconhecidos pela IPA e definir-se como um analista didata e homossexual, apresentou considerações clínicas pertinentes que sustentam a existência “inegável de mulheres e homens homossexuais sadios e equilibrados”. Mas a pergunta resiste: se, como vimos, Freud teve uma posição aberta, por que a grande maioria dos psicanalistas, em princípio seus herdeiros, mantém posições discriminatórias ou mesmo homofóbicas? Por que a homossexualidade tornou-se para a psicanálise uma doença a ser curada por meio da mudança do objeto de desejo do sujeito, de acordo com as crenças do psicanalista? Crenças, diga-se de passagem, que não encontram nenhum respaldo na obra freudiana. Um impasse interno Boa parte das ambigüidades e incongruências que encontramos em toda discussão sobre a homossexualidade é resultado de um conflito entre, de um lado, a descoberta psicanalítica segundo a qual a pulsão não possui objeto de satisfação predeterminado e, de outro lado, a ordem simbólica, atrelada ao imaginário cultural, que tenta fixar a pulsão a objetos culturalmente valorizados. Ou ainda: um conflito entre a posição freudiana segundo a qual à psicanálise cabe apenas “revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto” e, por outro lado, a tentativa de normalização desses mecanismos psíquicos a partir de um modelo edipiano cujo “triângulo” seria a família burguesa da Viena de Freud. Ao relatar o Caso Dora, Freud parece perceber esse conflito: quando descobre que por trás da atração de Dora por seu pai havia uma identificação a este, que se manifestava no amor homossexual de Dora pela Sra. K, tem de admitir que não há nada de naturalmente heterossexual, e muito menos de inato, na pulsão. A psicanálise, que em um primeiro momento foi libertadora ao denunciar a existência de uma outra cena – o inconsciente – que determina nossas escolhas objetais, tornou-se, em um segundo momento, contaminada 80 pelos mesmos princípios dominantes que denunciara. Passou então a ser utilizada como referência de normalidade, guardiã de uma ordem simbólica supostamente imutável, que idealiza uma forma única de subjetivação baseada nas normas vigentes, o que deu à psicanálise o poder (perverso) de deliberar sobre o normal e o patológico. O arcabouço teórico da psicanálise não é imune às implicações da ordem simbólica da qual emerge. Os psicanalistas, a começar pelo próprio Freud, são afetados em suas escutas por seus complexos inconscientes e suas organizações identificatórias. Embora saibam, teoricamente, que o importante é seguir os caminhos pulsionais e as escolhas de objeto, não estão vacinados contra posições normativas que tendem a enquadrar as vicissitudes da pulsão na hegemonia discursiva dominante. Presos em uma espécie de arrogância psicanalítica que se vê detentora da Verdade, sentem-se autorizados a determinar as condições ideais para um desenvolvimento psíquico normal. A dinâmica do funcionamento psíquico foi abandonada e adotou-se uma prescrição normativa de circulação pulsional. É por isso que, na grande maioria de trabalhos sobre o tema, vemos os pressupostos teóricos psicanalíticos sendo utilizados para sustentar o discurso heterossexual dominante. Seja como for, todo o arsenal teórico da psicanálise não consegue explicar como se organiza a chamada “escolha de objeto”. Se, como vimos acima, heterossexualidade e homossexualidade têm que ser explicadas, pois na pulsão nada existe de natural, cabe a pergunta: como o sujeito se torna homossexual, heterossexual ou bissexual? No que diz respeito ao “tornar-se homossexual”, foi o psicanalista norte-americano Robert Stoller (1 9 8 5 ) quem melhor chamou a atenção para a inexistência de um a form ulação psicanalítica consistente sobre a homossexualidade. Após denunciar que os analistas não chegaram a um acordo que faça consenso sobre o tema, ele mostra a falta de observações clínicas e de pesquisas convincentes sobre a questão. Stoller demonstra que as regras de escrita dos trabalhos sobre a homossexualidade, contaminadas pela retórica, pelo tom carregado dos argumentos e pela referência à autoridade, tropeçam no mesmo ponto: não conseguem reunir elementos que sustentem uma especificidade da homossexualidade em relação à heterossexualidade, e, menos ainda, que mostrem que a homossexualidade é uma patologia. Cabe-nos, então, retornar à questão de uma forma analítica e perguntar sobre o retorno do recalcado que se manifesta na insistência em patologenizar a homossexualidade e em tratá-la como um sintoma. Paulo Roberto Ceccarelli n. 0 2 | 2 0 0 8 | p. 7 1 -9 3 81 A grande maioria dos trabalhos sobre o tema parte do princípio, evidentemente falso, de que os problemas psíquicos que o sujeito apresenta decorrem do fato de ele ser homossexual. Muitos analistas não “escutam” o sujeito que, como qualquer sujeito, têm angústias, medos, neuroses, enfim, razões para buscar a ajuda de um profissional. “Escutam”, antes, o homossexual que está ali e tendem a estabelecer a equação homossexualidade = sofrimento. Com raras exceções, o psicanalista, frente ao sujeito homossexual, parte da premissa de que sua homossexualidade é sintomática – o que pode, sem dúvida, ser verdade, mas nem sempre: isso só será esclarecido ao longo do tratamento. As interpretações são feitas em busca do conflito que teria desviado o sujeito de uma dissolução edipiana tida como a única produtora de saúde psíquica. É curioso observar que em muitos relatos clínicos, publicados ou apresentados nos diversos encontros de psicanalistas, o primeiro dado fornecido quando o cliente é homossexual é: “Trata-se de um sujeito homossexual...”. (O relato subseqüente é, a partir daí, contaminado pela orientação sexual do sujeito.) Muito raramente, para não dizer nunca, um relato clínico se inicia por: “Trata-se de um sujeito heterossexual...”. Quando o analista está convencido de que seu paciente é “isto” ou “aquilo”, sua atenção flutuante corre o risco de imobilizar-se, pois ele só escutará o que quer ouvir. Por exemplo, alguns analistas, como vimos, atribuem aos homossexuais a prática de uma sexualidade compulsiva, como forma de descarregar a ansiedade, que se manifestaria pela busca incessante de parceiros. Ora, o número de locais destinados ao público heterossexual em busca de parceiras é muito maior que os locais destinados aos homossexuais. Isso mostra que se “promiscuidade” existe, ela é característica da organização psíquica de alguns sujeitos, sobretudo masculinos, sejam homossexuais sejam heterossexuais; em alguns casos, uma defesa contra a castração. Além disso, sabemos muito bem que conhecer a “orientação sexual” de alguém em nada nos informa sobre sua saúde, maturidade ou imaturidade psíquica, e, muito menos, sobre seus conflitos internos. A maneira como cada um vive sua sexualidade é, sem dúvida, parte importante de sua identidade subjetiva, ou, se preferirmos, de sua personalidade, mas não a define. O que somos, o que cada um é, vai muito além de sua prática sexual. Mais ainda: vimos, no que diz respeito à admissão de analistas homossexuais nas Sociedades de Psicanálise, que a história da psicanálise foi, e continua sendo, repleta de calorosas discussões e debates com posições extremamente divergentes e conflitantes. Entretanto, essa mesma história é muito mais rica em relatos de violações de limites de analistas nãohomossexuais com seus clientes (GABBARD, 1 9 9 6 ). 82 No campo da sexualidade, desde os tempos de Freud até hoje, não há provavelmente Sociedade Psicanalítica alguma que tenha ficado ao abrigo de acontecimentos envolvendo relações (sexuais ou não) entre analista e cliente, em que os limites do setting analítico foram ultrapassados (CECCARELLI, 2 0 0 4 ). Em uma carta de 1 4 de janeiro de 1 9 1 2 a Ernest Jones – o mesmo que impede o acesso de homossexuais às Sociedades de Psicanálise –, Freud deplora a compulsividade sexual de Jones: “lamento muito que você não seja capaz de controlar tais tendências [a impulsividade sexual], conhecendo bem, ao mesmo tempo, as fontes de onde se originam todo este mal” (PASKAUKAS, 1 9 9 3 , p. 1 2 4 ). Uma possível explicação para que esse tipo de atuação nunca tenha sido critério de admissão, ou de expulsão, nas sociedades psicanalíticas, é que ela, embora reconhecida como problemática, encaixe-se perfeitamente na idéia de um destino pulsional heterossexual normal, cujo controle escape ao sujeito. Entretanto, as conseqüências variam enormemente, sabemos muito bem disso, se a analista é homem ou mulher. Outro fato curioso: em minha experiência clínica de vários anos, tenho observado que a orientação homossexual funciona como um “cartão de visita” a ser apresentado logo nas primeiras entrevistas. (A não ser, é claro, quando o sujeito percebe sua sexualidade como algo tão assustador que necessite de várias sessões para “detectar” a possível reação do analista.) Quase sempre, entretanto, o sofrimento devido ao fato de ser homossexual advém muito mais de questões sociais e medos – “o que os outros vão dizer”, “se os meus pais ou amigos souberem”, da culpa, da discriminação... – do que da sexualidade em 5 si . Nesse sentido, como expressa com pertinência Júlio Nascimento, A homossexualidade é um hífen [professor-homossexual, vendedor-hom ossexual, filho-hom ossexual] [...] que obedece a função F(S) = x-h, onde lê-se a função de um sujeito {F(S)}é definida por qualquer atributo ou representação do eu (x) que estará colada ao discurso hegemônico sobre a homossexualidade (NASCIMENTO, 1 9 9 8 , p. 1 1 5 ). 5 Um estudo publicado em 2 0 0 1 no British Journal Of Psychiatry revelou que 6 4 % dos 2 1 8 membros entrevistados da Confederação Britânica de Psicoterapeutas acreditavam que as dificuldades centrais de seus pacientes homossexuais – masculinos ou femininos – advinham de sua orientação sexual. Sem dúvida, em grande medida, isso procede. Entretanto, o difícil é saber se essa dificuldade deve-se à homossexualidade em si, vista como um sintoma gerador de angústia, ou devido à homossexualidade ir contra o sistema de valores da sociedade onde o sujeito encontra-se inserido. Paulo Roberto Ceccarelli n. 0 2 | 2 0 0 8 | p. 7 1 -9 3 83 A etapa seguinte é a crença na existência de uma identidade homossexual que mais uma vez reduz o sujeito à sua prática sexual, provocando o mesmo efeito criado pela palavra homossexual: um caráter discriminatório. Um parêntese para fazer uma crítica a alguns movimentos gays , tanto no Brasil quanto no exterior, que, baseados na existência de uma suposta “identidade homossexual”, criam guetos ideológicos que tocam a heterofobia. O mesmo ocorre com algumas sociedades de psicanálise nos USA, sobretudo na Califórnia, em que apenas analistas homossexuais são admitidos, pois defende-se que só homossexuais “entenderiam” os homossexuais. Como se os homossexuais fossem algo diferente, uma classe à parte, que necessitasse de medidas especiais. Não estariam, agindo assim, revertendo sobre si o discurso do qual se dizem vítimas e perpetrando, mais uma vez, a violência simbólica que os discrimina? No que diz respeito às leis que garantam seus direitos de cidadãos e os protejam contra a segregação, a questão é outra. No sentido de um grupo, a identidade pode ser compreendida como um espaço político que possui um programa de ação atuante, uma luta comum, uma reivindicação. Trata-se da luta por direitos iguais. Nada impede que exista uma “união”, uma “identidade política” em torno de uma causa comum: contra a exclusão e em prol da cidadania, sendo o sujeito gay ou não.). Argumenta-se, já vimos, que o homossexual apresentaria uma “falha narcísica”. Entretanto, em seu texto S obre o narcisismo: uma introdução, Freud esclarece que a escolha narcísica nada tem a ver com o sexo dos parceiros. Ou seja, a falha narcísica, que é uma posição pulsional, pode ocorrer em qualquer escolha de objeto: é a dinâmica pulsional que sustenta a modalidade de relação objetal – anaclítica ou narcísica –, e não o sexo anatômico dos protagonistas, que determina se a escolha de objeto é, ou não, narcísica. Outra argumentação corrente usada para sustentar a idéia de um problema edípico na origem da homossexualidade seria a vivência de um “Édipo invertido” ou “negativo”. Constatamos que, sem dúvida, há casos em que uma situação desse tipo ocorreu. Mas, se seguirmos as posições freudianas, veremos que não existe um Édipo correto. O Édipo é “negativo”, ou “invertido”, em relação ao modelo heterossexual tido como normal. Mas em hipótese alguma é uma resolução patológica do complexo. Que esse tipo de resolução edípica dê uma configuração particular da angústia é, sem dúvida, verdadeiro. Mas, por que essa configuração seria mais ou menos certa, mais ou menos normal, do 84 que a configuração da angústia proveniente de uma resolução heterossexual? Juntam-se a isso os estudos recentes que mostram que o destino psíquico das crianças criadas no modelo homoparental, ou monoparental, não revela 6 particularidade alguma em relação ao modelo tradicional. “Resolver” o Édipo significa não ocupar o lugar de objeto de gozo dos pais ou de seus substitutos, ou seja, separar-se das formações inconscientes do desejo dos pais. Para que isso ocorra, é necessário que algo organize, que algo separe a célula narcísica mãe-filho, excluindo a criança, futuro sujeito de uma relação triangular. Entretanto, nada indica que exista apenas um modelo de arranjo familiar capaz de promover essa separação. Além disso, não foi preciso esperar a psicanálise para sabermos quanto a família tradicional nunca foi garantia de normalidade: o argumento psicológico que defende a necessidade do par homem/mulher para a saúde psíquica da criança não se sustenta. Quanto à ligação excessiva à mãe, amplamente debatida por Freud em seu texto de 1 9 1 1 , Leonardo da Vinci e um a lem brança de sua infância, a clínica nos informa de muitos sujeitos que tiveram essa ligação excessiva sem, contudo, apresentarem soluções homossexuais. No que diz respeito à identificação com a mãe e a escolha de parceiros baseada nos cuidados que ela outrora dispensara ao sujeito, é mais uma vez um destino pulsional possível e não pode ser usado como referência de normalidade ou de patologia. Sempre haverá uma posição pulsional; não há uma que seja mais correta que a outra; não existe uma forma única e normativa de “atravessar” o Édipo. A psicanálise cria seus conceitos dentro da organização simbólica em que nasceu. O Édipo clássico é uma manifestação da “violência simbólica” (BOURDIEU, 2 0 0 0 ). Nessa perspectiva, patologenizar a homossexualidade é uma reação radical aos questionamentos que a esta última coloca aos 7 fundamentos da ordem simbólica dominante . O fracasso em encontrar algo de particular, de “desviante”, específico da solução homossexual, atesta que a pulsão escapa a qualquer tentativa de normalização. 6 Dentre as inúmeras publicações recentes sobre as chamadas “Novas Famílias”, citamos: Langouet (1 9 9 8 ), Stéphane (1 9 9 9 ), Gross (2 0 0 0 ), Cadoret (2 0 0 2 ) e Roudinesco (2 0 0 2 b). 7 Algo semelhante aconteceu quando da implantação na França, em 1 9 9 9 , do PaCS – Pacte Civil de S olidarité – um contrato de união que pode ser feito entre duas pessoas físicas, independentemente do sexo, a fim de organizar sua vida comum (Cf. MECARY E LEROY-FORGEOT, 2 0 0 0 ). No Brasil, em 1 9 9 5 , Marta Suplicy, então Deputada Federal, propôs um projeto semelhante. Os argumentos contra a implantação do PaCS alertavam para o perigo que ele traria à ordem simbólica que sustenta a sociedade e a cultura. Dar direitos iguais aos casais homossexuais levaria a uma “dessimbolização” como conseqüência do apagamento da inscrição simbólica da diferença dos sexos. Uma coletânea de artigos sobre o tema pode ser encontrada em Borrillo e Fassin (2 0 0 1 ). Paulo Roberto Ceccarelli n. 0 2 | 2 0 0 8 | p. 7 1 -9 3 85 A invenção da homossexualidade Se o simbólico é sempre uma construção, cabe – para retomar o título deste trabalho – nos perguntarmos como o simbólico “inventa” a homossexualidade como categoria diferenciada de expressão da sexualidade, e como a teoria psicanalítica, que está inserida nesse simbólico, lida com essa invenção. Como sabemos, a sexualidade humana tem uma história. Os elementos constitutivos dessa história começam bem antes do nascimento da criança, e estão intimamente relacionados com o lugar que esta ocupa no imaginário dos pais, no desejo destes, assim como na economia libidinal do casal. Após o nascimento, terá início a chamada constituição do sujeito: um processo marcado por intensos movimentos pulsionais, característicos do período pré-edipiano. As pulsões parciais, sempre em busca de prazer e indiferentes à natureza dos objetos que as satisfaçam, devem adequar-se às demandas do processo civilizatório, às demandas do Outro: a polimorfia da sexualidade infantil tem que assujeitar-se a esse processo. Isso ocorre por meio de movimentos psíquicos que envolvem perdas que possibilitam ao sujeito em constituição o acesso à lei da troca, levando-o a renunciar o narcisismo primário para aceder ao secundário (FREUD, 1 9 3 0 ). Todo esse processo resultará na expressão da sexualidade adulta. E a maneira como cada um experimenta sua sexualidade – concreta ou fantasmaticamente, de forma mais ou menos reprimida, com prazer, com culpa, como correta, desviante, perversa, enfim, as singularidades das manifestações da sexualidade em suas vertentes homo, hétero ou bi – é construída desde os primeiros dias de vida e traz, em sua essência, as marcas do imaginário sexual da sociedade na qual a criança encontra-se inserida. Os critérios que determinam a forma “correta” do exercício da sexualidade, construídos e historicamente datados, são arranjos simbólicos que repousam sobre o sistema de valores de uma dada sociedade. Na sociedade ocidental, dominado pela tradição judaico-cristã, esse simbólico é marcado por uma visão negativa da sexualidade, cujas origens devem ser buscadas no relato bíblico do pecado original (CECCARELLI, 2 0 0 2 ). Foram também os ideais da cultura ocidental que deram origem ao discurso que classifica as práticas sexuais em “normais” e “anormais” (ou perversas, desviantes). A partir da idéia de uma sexualidade normal segundo a natureza, todo desvio passa a ser considerado uma depravação – pravus (PEIXOTO, 1 9 9 8 ) – “contra a natureza”. Quando a sexualidade desvia da finalidade primeira – união de dois órgãos 86 sexuais diferentes para a preservação da espécie –, estamos diante de uma perversão: pedofilia, necrofilia, masturbação, heterossexualidade separada da procriação, homossexualidade, sodomia... Estabeleceram-se “critérios de normalidade”, os quais foram dogmatizados e transformados em Revelações a serem seguidas sem questionamento. Tais critérios são introjetados como ideais culturais, e, juntamente com a autoridade paterna, constituem o superego. Com esse expediente, o simbólico cria, de um lado, tanto a “sexualidade normal” quanto as “desviantes”, dentro das quais se encontra a homossexualidade, e, de outro, inventa categorias classificatórias que transformam posições libidinais em orientação sexual. Se seguirmos a psicanálise quando ela afirma que a sexualidade escapa a toda e qualquer tentativa de normalização, a imposição de uma forma de sexualidade que aprisione a pulsão em um modo único e universal de circulação, a partir de um destino pulsional tido como “normal”, não será sem conseqüências (FREUD, 1 9 0 8 ). Deixo para outra ocasião uma discussão clínica mais aprofundada sobre a questão, limitando-me aqui a alguns comentários ilustrativos. Ao longo de meu trabalho teórico-clínico, tenho sido chamado para discutir, em escolas, questões do cotidiano ligadas à sexualidade, como deve ser uma aula de “educação sexual” e temas similares. Não raro, ouço relatos de alunos que, por terem expressado uma atitude homoerótica, passam a ser chamados, quando não estigmatizados, de “bichas”. Raramente, as escolas propiciam um espaço em que esses acontecimentos possam ser debatidos. Como conseqüência desse silêncio acerca da sexualidade, pode acontecer que a corrente libidinal presente naquela manifestação afetiva passe a ser vista como determinante na sexualidade da criança. Ao sublinhar uma determinada forma de manifestação pulsional, o imaginário social no qual a escola encontrase imersa está não apenas impedindo o curso sadio das pulsões sexuais, mas talvez – e isso pode ser perverso – direcionando a futura orientação sexual da criança. Compreendemos bem por que as aulas de educação sexual surtem tão pouco efeito: elas não atingem a dimensão inconsciente da sexualidade, o real do sexo. Daí a necessidade, advoga Freud (1 9 3 3 ), de os educadores submeterem-se a um processo psicanalítico. Na adolescência, esse tipo de situação também ocorre. Sendo um período de reorganização de reinvestimentos libidinais, pode acontecer que o(a) adolescente sinta um apelo pulsional direcionado a uma pessoa do mesmo sexo. Novamente, os ideais culturais, que ditam que só uma forma de Paulo Roberto Ceccarelli n. 0 2 | 2 0 0 8 | p. 7 1 -9 3 87 sexualidade é normal – a heterossexual –, transformam essa vicissitude pulsional em fonte de angústia, que pode chegar ao desespero, pois o sujeito se sente estigmatizado em relação ao discurso dominante, podendo até mesmo impingir-se uma “escolha sexual”, que de forma alguma corresponda a sua verdade pulsional. É comum um(a) adolescente procurar um profissional para que este o ajude frente a essa situação. Pode acontecer que esse profissional, imerso nos valores sociais dos quais não estabelece uma distância crítica, tome a manifestação libidinal da corrente homossexual como uma orientação sexual definitiva. Sabemos as inúmeras conseqüências, por vezes catastróficas, que podem advir daí. Tampouco os adultos estão ao abrigo do imaginário cultural normativo. Para alguns, as moções pulsionais homoeróticas ameaçam sua sexualidade. Nos homens, a masculinidade é logo questionada. Experimentam esse caminho pulsional como uma verdadeira ameaça e, não raro, questionam a “solidez” de sua orientação sexual. É mais comum do que se imagina o número de sujeitos que se encaixam nos clássicos padrões da heterossexualidade – casados, com uma vida sexo-afetiva satisfatória – e que têm relacionamentos homossexuais sem, contudo, se estimarem homossexuais. Alguns vivem isso com relativa tranqüilidade, embora não seja o caso para a maioria. Muitos profissionais vêem aí uma homossexualidade não assumida. Embora essa situação possa efetivamente ocorrer, o trabalho clínico com esses sujeitos mostra, uma vez mais, como os objetos de satisfação pulsionais são variáveis. A história psicossexual do sujeito determinará como essa moção pulsional será experimentada: com mais ou menos angústia, culpa, e outros tantos afetos. Resumindo: ninguém está ao abrigo de ser interpelado(a) por um objeto que evoque moções pulsionais homossexuais. Entretanto, a hegemonia discursiva dominante determina a forma correta da sexualidade e inibe toda expressão da pulsão sexual que escape à norma socialmente construída. Ao criar uma camisa-de-força do tipo “ou x ou”, ou heterossexual ou homossexual, a organização simbólica não apenas impede uma fluidez pulsional menos conflitual, como impõe um discurso dogmático estigmatizante que classifica os sujeitos como normais ou desviantes a partir de sua orientação sexual. Reflexões finais Embora o “mundo natural” seja o mesmo para qualquer sociedade, cada uma vai percebê-lo e decompô-lo para, em seguida, dar-lhe sentido, dentro das associações sintagmáticas que aquela sociedade criou para “ler o mundo”. 88 O discurso interpretativo que surge daí é tributário do sistema simbólico da sociedade em questão, que está sujeito ao universo imaginário e fantasmático dessa mesma sociedade: não existe um paradigma único, universal. Vivemos nossa sexualidade dentro do imaginário da sociedade onde estamos inseridos. Desconhecemos que somos guiados por convenções culturais, e acreditamos na existência “natural” de sujeitos heterossexuais, bissexuais e homossexuais. Tal crença, evidentemente ideológica, é vivida como algo intuitivo, universalmente válido, desde sempre, para todos os sujeitos. É por isso que uma das coisas mais difíceis a suportar é a diferença, sem que ela seja vivida como uma ameaça. Aceitar que o outro possa ser diferente abala nossa verdade, e mostra que a verdade é sempre a verdade de cada um, o que desvela a ilusão da existência de uma identidade última e absoluta, e revela que nossos referenciais são construções com tempo de vida limitado. O discurso social, que constrói as referências simbólicas do masculino e do feminino e dita os parâmetros que definem a “sexualidade de normal”, contribui não só para a invenção da homossexualidade como também para que o sujeito homossexual, marcado pelos ideais da sociedade, se sinta “desviante”, posto que excluído do discurso dominante. Os homossexuais nascem em uma sociedade cuja organização simbólica cedo lhes ensina que sua forma de viver a sexualidade é errada. Uma pessoa durante um processo analítico disse: “Primeiro, aprendi que ser homossexual era anormal. Depois, descobri que era homossexual. Ou seja, que era anormal. O que fazer?”. Visto que os padrões da sexualidade humana são criados e não inatos, há de se considerar a importância da história libidinal de cada um na origem de sua solução sexual. Essa história, por sua vez, é construída por marcas identificatórias sucessivas, resultado de investimentos libidinais em diferentes registros (simbólico, imaginário e fantasmático), originados nos encontros desse sujeito com outros sujeitos. Dito de outra forma: o ser humano possui uma sexualidade. E essa sexualidade, devido à singularidade da história de cada, um terá um destino particular: não há uma única maneira que se proponha certa, única e universal para as manifestações da sexualidade. Se a relação sexual não existe, é porque no inconsciente não existe a inscrição psíquica da diferença sexual: “[...] a função fálica não im pede os homens de serem homossexuais” (LACAN, 1 9 7 2 -7 3 , p. 9 7 ). O homossexual, como o heterossexual, tem acesso a uma forma de gozo fálico. Não existe um sujeito homossexual, assim como não existe um heterossexual ou um bissexual. Existem moções pulsionais e movimentos Paulo Roberto Ceccarelli n. 0 2 | 2 0 0 8 | p. 7 1 -9 3 89 identificatórios que se deslocam, mais ou menos livremente, e que se manifestam nas escolhas objetais que sustentam as diversas expressões da sexualidade. Contudo, estas últimas não definem o sujeito. Os ideais sociais direcionam os investimentos libidinais, criando assim uma sexualidade “normal”, o que não deixa de ser, como demonstra Foucault (1 9 7 6 ), uma forma de controle. Para a psicanálise – que vem mostrar quão ilusório é falar de “normal” em se tratando de pulsão –, o relevante é tentar compreender a dinâmica que subjaz as diferentes orientações sexuais. Nessa perspectiva, tanto a hétero quanto a homossexualidade são posições libidinais e identificatórias alcançadas pelo sujeito ao longo de seu trajeto pulsional. 90 Referências BARTLET, A; KING, M.; PHILLIPS, P. S traight talking: an investigation of the attitudes and practice of psychoanalysts and psychotherapists in relation to gays and lesbians. British Journal Of Psychiatry. 1 7 9 , 2 0 0 1 . BERGLER, Edmund. Hom osexuality: Disease or Way of life. New York: Hill & Wang, 1956. BORRILLO, D.; FASSIN, E. (Org.). Au-delà du PaCS : L'expertise familiale à l'épreuve de l'homosexualité. Paris: PUF, 2 0 0 1 . BOTELLA, César. L'homosexualité(s): vicissitude du narcissisme. Revue Française de Psychanalyse . 4 (6 3 ) “Identités”: 1 3 0 9 , 1 9 9 9 . BOURDIEU, Pierre. “Quelques questions sur le mouvement gay et lesbien”. In: BOURDIEU, Pierre. La dom ination m asculine . Paris: Seuil, 2 0 0 0 . CADORET, A. Des parents pas com m e les autres : homosexualité et parenté. Paris: Odile Jacob, 2 0 0 2 . CECCARELLI, Paulo Roberto. Sexualidade e preconceito. Revista Latino-am ericana de Psicopatologia Fundam ental. São Paulo, v. 3 , n. 3 , p. 1 7 -1 8 , set. 2 0 0 0 . ______. As bases mitológicas da normalidade. Latin American Journal of Fundamental Ps yc h op at h ology on Lin e . 2 0 0 2 . Dis p o n íve l e m : < http://fundamentalpsychopathology.org/br/revista-artigos-texto.php?id= 1 2 > . Acesso em: 1 5 out. 2 0 0 7 . ______. A perversão do outro lado do divã. In: PORTUGAL, A. M; PORTO FURTADO, A; RODRIGUES, G; BAHIA, M; GONTIJO, T. (Org.). Destinos da sexualidade . São Paulo: Casa do Psicólogo, 2 0 0 4 . FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualite : la volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976. FREUD, S. Manuscrito H. In: FREUD, S. Obras com pletas. Rio de Janeiro: Imago, 1 9 7 7 . v. I (ed. or.: 1 8 9 5 ). ______. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade . In: ______. Obras com pletas . Rio de Janeiro: Imago, 1 9 7 6 . v. VII (ed. or.: 1 9 0 5 ). ______. Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna. In: ______. Obras com pletas. Rio de Janeiro: Imago, 1 9 7 4 . vol. IX (ed. or.: 1 9 0 8 ). ______. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. In: ______. Obras com pletas . Rio de Janeiro: Imago, 1 9 6 9 . v. XI (ed. or.: 1 9 1 0 ). ______. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia. In: ______. Obras com pletas. Rio de Janeiro: Imago, 1 9 6 9 . v. XII (ed. or.: 1 9 1 1 ). ______. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. In: ______. Obras com pletas . Rio de Janeiro: Imago, 1 9 7 6 . v. XVIII (ed. or.: 1 9 2 0 ). Paulo Roberto Ceccarelli n. 0 2 | 2 0 0 8 | p. 7 1 -9 3 91 FREUD, S. Um estudo autobiográfico. In: ______. Obras com pletas. Rio de Janeiro: Imago, 1 9 7 6 . v. XX (ed. or.: 1 9 2 5 ). ______. O m al-estar na civilização. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1 9 7 4 . vol. XXI (ed. or.: 1 9 3 0 ). ______. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXXIV: Explicações, aplicações e orientações . In: ______. Obras com pletas. Rio de Janeiro: Imago, 1 9 7 6 . v. XXII (ed. or.: 1 9 3 3 ). GABBARD Glen; LESTER, Eva. Boundaries and boundary violations in psychoanalysis . New York: BasicBooks, 1 9 9 6 . GROSS, M. (Org.). Hom oparentalités, état des lieux. Paris: ESF, 2 0 0 0 . (Collection La vie de L'enfant). JONES, Ernest. Vida e obra de S igm und Freud . 3 . ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1 9 7 9 . LACAN, Jacques. Le Séminaire, livre 1 : les écrits techniques de Freud. Paris: Seuil, 1 9 7 5 . ______. O sem inário, livro 2 0 : m ais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1 9 8 5 . LANGOUET, G. (Org.). Les “nouvelles fam illes” en France . Paris: Hachette, 1 9 9 8 . LEWIS, Keith. The psychoanalytic theory of m an hom osexuality. New York: Simon and Schuster, 1 9 8 8 . MECARY, C.; LEROY-FORGEOT, F. Le PACS : que sais-je. Paris: PUF, 2 0 0 0 . MENAHEM, Ruth. Désorientations sexuelles : Freud et l'homosexualité. Revue Française de Psychanalyse . v. 6 7 , n. 1 , Jan.2 0 0 3 . NASCIMENTO, Júlio Cesar. Entrevista com um vampiro. Revista Latino-am ericana de Psicopatologia Fundam ental. São Paulo. v. 1 , n. 1 , p. 1 1 5 , mar. 1 9 9 8 . PASKAUKAS, Robert Andrew. The com plete correspondence of S igm und Freud and Ernest Jones, 1 9 0 8 -1 9 3 9 . Cambridge: Harvard University Press, 1 9 9 3 . PEIXOTO JÚNIOR, Carlos Augusto. Um breve histórico da perversão na sexologia do século XIX. Boletim de Novidades da Livraria Pulsional, São Paulo, n. 1 0 5 , p. 3 4 -4 9 , jan. 1 9 9 8 . ROUDINESCO, Elisabeth. Pyschanalyse et homosexualité: réflexions sur le désir pervers, l'injure et la fonction paternelle. Cliniques Méditerranéennes . Ramonville Saint-Agne: Éditions Ères, 2 0 0 2 a. ______. La fam ille en désordre . Paris: Fayard, 2 0 0 2 b. ROUGHTON, Ralph. Psychanalyste et homosexuel? Revue Française de Psychanalyse . 4 (6 3 ) “Identités”: 1 2 8 1 -1 3 0 2 , 1 9 9 9 . SOCARIDES, Charles. Hom osexuality: A Freedom Too Far: A Psychoanalyst Answers 1 0 0 0 Questions About Causes and Cure and the Impact of Gay Rights Movement on American Society. Phoenix: Adam Margrave Books, 1 9 9 5 . 92 STÉPHANE, Nadaud. Tese de doutorado em pedo-psiquiatria na Universidade de Bordeaux, França, 1 9 9 9 . STOLLER, Robert. “Psychoanalytic “Research” on Homosexuality: The Rules of the Game”. In: ______. Observing the Erotic Im agination . New Haven: Yale University Press, 1 9 8 5 . YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Anna Freud . Paris: Payot, 1 9 9 1 . Paulo Roberto Ceccarelli n. 0 2 | 2 0 0 8 | p. 7 1 -9 3 93 94