Resumo Segundo um autor, para se retomar, na atualidade, a dimensão da ruptura freudiana é ne-ces... more Resumo Segundo um autor, para se retomar, na atualidade, a dimensão da ruptura freudiana é ne-cessário fazer um retorno a Freud em Freud. Isto é, uma releitura do texto freudiano para evitar atribuir a Freud coisas que ele não disse. A partir daí, e apoiado sobretudo nas teorias de gênero e a teoria Queer, procurar compreender as novas possibilidades de subjetivação e de construções identitárias, quando as referências do feminino passaram a ser apresentadas a partir de outros parâmetros. Avaliar também as mudanças nas formas discursivas do mascu-lino e do feminino que nos obrigam a reavaliar certos pressupostos psicanalíticos tais como as construções identitárias, o binômio fálico-castrado a chamada "escolha sexual", abrindo novas possibilidades de diversidades e de singularidades. Palavras-chave: Psicanálise, Sexo, Gênero, Mudanças simbólicas. Há trabalho suficiente para se fazer nos próximos cem anos-nos quais nossa civilização terá de aprender a conviver com as reivindicações de nossa sexualidade. Freud, [1898] 1976, p. 305. Introdução A proposta deste congresso-Assim cami-nha a psicanálise: indagações do século XXI-apresentou-se como uma oportunidade para refletir sobre um aspecto da psicanálise que há muito venho observando. Nos inúmeros eventos de psicanálise de que tenho participado nos últimos anos, cha-ma-me a atenção um certo 'retrocesso intelec-tual' , o que fez com que alguns psicanalistas tivessem se colocado como guardiões de uma ordem social supostamente imutável, outor-gando-se o poder de deliberar sobre o normal e o patológico, em detrimento da posição revolucionária, e libertadora, de normas cul-turais opressivas, sobretudo no que diz res-peito à moral sexual, perpetrada por Freud. Para debater minha hipótese, basta um breve retorno a Freud, não no sentido de re-ler textos freudianos e, nessa 'releitura' atri-buir a Freud coisas que ele não disse (Cec-carelli, 2007), mas, antes, de retomar os pontos da ruptura freudiana que mudaram radicalmente o modo de conceber o humano e ver a quantas anda essa ruptura na atuali-dade.
Freud sublinhou a variedade de significados dos conceitos masculino e feminino. No sentido bio-ló... more Freud sublinhou a variedade de significados dos conceitos masculino e feminino. No sentido bio-lógico referem-se aos caracteres sexuais primários e secundários, que por si só não explicam o com-portamento psicossexual. No nível sociológico, masculino e feminino, mas-culinidade e feminilidade não são apenas dados da natureza, mas sim um trabalho da cultura sobre esses dados, ou seja, são entidades reais, simbólicas e imaginárias. No nível psicossexual, estão imbricados os dois níveis anteriores, particularmente o social. Não são tanto os papéis funcionais, os desempenhos sociais a avaliar a masculinidade/feminilidade, mas sim os fantasmas subjacentes, reveláveis pelo processo analítico. A concepção da bissexualidade constitucional implicaria que em todo o ser humano houvesse uma síntese, desejavelmente harmoniosa, de traços masculinos e femininos. Esta ideia, introduzida por Freud sob influência de Wilhelm Fliess (Laplanche & Pontalis, 1967), defende-se a partir de fundamentos biológicos-anatómicos e embrio-lógicos-ou dos processos de identificação e das posições edipianas. Procedendo do fenómeno universal da bissexualidade, Freud falava do conflito inerente a este facto, resumindo: «O sexo (...) que domina na pessoa, teria recalcado no inconsciente a representação psíquica, do sexo vencido» (op. cit., pp. 88-89)-a inveja do pénis nas mulheres, a atitude feminina nos homens. Por outro lado, este conceito implicava uma apreensão clara da masculinidade/feminilidade, que para Freud teria um significado diferente-mas muitas vezes misturado-aos níveis bioló-gico, sociológico e psicológico. Em "A Feminilidade" (1933), considera que ser homem e masculino são as qualidades naturais que todos os humanos valorizam. Pelo contrário, ser mulher e feminina, seria vivido como desva-lorizador. Havendo uma bissexualidade inata, como refere em Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexua-lidade (1905), pode haver um desenvolvimento normal ou patológico. Apesar de reconhecer a sua importância, Freud não toma uma posição definitiva em relação à questão da bissexualidade. As reservas teriam a ver com a sua origem biológica, base da determi-331
Resumo Segundo um autor, para se retomar, na atualidade, a dimensão da ruptura freudiana é ne-ces... more Resumo Segundo um autor, para se retomar, na atualidade, a dimensão da ruptura freudiana é ne-cessário fazer um retorno a Freud em Freud. Isto é, uma releitura do texto freudiano para evitar atribuir a Freud coisas que ele não disse. A partir daí, e apoiado sobretudo nas teorias de gênero e a teoria Queer, procurar compreender as novas possibilidades de subjetivação e de construções identitárias, quando as referências do feminino passaram a ser apresentadas a partir de outros parâmetros. Avaliar também as mudanças nas formas discursivas do mascu-lino e do feminino que nos obrigam a reavaliar certos pressupostos psicanalíticos tais como as construções identitárias, o binômio fálico-castrado a chamada "escolha sexual", abrindo novas possibilidades de diversidades e de singularidades. Palavras-chave: Psicanálise, Sexo, Gênero, Mudanças simbólicas. Há trabalho suficiente para se fazer nos próximos cem anos-nos quais nossa civilização terá de aprender a conviver com as reivindicações de nossa sexualidade. Freud, [1898] 1976, p. 305. Introdução A proposta deste congresso-Assim cami-nha a psicanálise: indagações do século XXI-apresentou-se como uma oportunidade para refletir sobre um aspecto da psicanálise que há muito venho observando. Nos inúmeros eventos de psicanálise de que tenho participado nos últimos anos, cha-ma-me a atenção um certo 'retrocesso intelec-tual' , o que fez com que alguns psicanalistas tivessem se colocado como guardiões de uma ordem social supostamente imutável, outor-gando-se o poder de deliberar sobre o normal e o patológico, em detrimento da posição revolucionária, e libertadora, de normas cul-turais opressivas, sobretudo no que diz res-peito à moral sexual, perpetrada por Freud. Para debater minha hipótese, basta um breve retorno a Freud, não no sentido de re-ler textos freudianos e, nessa 'releitura' atri-buir a Freud coisas que ele não disse (Cec-carelli, 2007), mas, antes, de retomar os pontos da ruptura freudiana que mudaram radicalmente o modo de conceber o humano e ver a quantas anda essa ruptura na atuali-dade.
Freud sublinhou a variedade de significados dos conceitos masculino e feminino. No sentido bio-ló... more Freud sublinhou a variedade de significados dos conceitos masculino e feminino. No sentido bio-lógico referem-se aos caracteres sexuais primários e secundários, que por si só não explicam o com-portamento psicossexual. No nível sociológico, masculino e feminino, mas-culinidade e feminilidade não são apenas dados da natureza, mas sim um trabalho da cultura sobre esses dados, ou seja, são entidades reais, simbólicas e imaginárias. No nível psicossexual, estão imbricados os dois níveis anteriores, particularmente o social. Não são tanto os papéis funcionais, os desempenhos sociais a avaliar a masculinidade/feminilidade, mas sim os fantasmas subjacentes, reveláveis pelo processo analítico. A concepção da bissexualidade constitucional implicaria que em todo o ser humano houvesse uma síntese, desejavelmente harmoniosa, de traços masculinos e femininos. Esta ideia, introduzida por Freud sob influência de Wilhelm Fliess (Laplanche & Pontalis, 1967), defende-se a partir de fundamentos biológicos-anatómicos e embrio-lógicos-ou dos processos de identificação e das posições edipianas. Procedendo do fenómeno universal da bissexualidade, Freud falava do conflito inerente a este facto, resumindo: «O sexo (...) que domina na pessoa, teria recalcado no inconsciente a representação psíquica, do sexo vencido» (op. cit., pp. 88-89)-a inveja do pénis nas mulheres, a atitude feminina nos homens. Por outro lado, este conceito implicava uma apreensão clara da masculinidade/feminilidade, que para Freud teria um significado diferente-mas muitas vezes misturado-aos níveis bioló-gico, sociológico e psicológico. Em "A Feminilidade" (1933), considera que ser homem e masculino são as qualidades naturais que todos os humanos valorizam. Pelo contrário, ser mulher e feminina, seria vivido como desva-lorizador. Havendo uma bissexualidade inata, como refere em Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexua-lidade (1905), pode haver um desenvolvimento normal ou patológico. Apesar de reconhecer a sua importância, Freud não toma uma posição definitiva em relação à questão da bissexualidade. As reservas teriam a ver com a sua origem biológica, base da determi-331
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