A SemânticA doS numerAiS diStributivoS:
um eStudo entre línguAS
Ana MÜLLER
Universidade de São Paulo (USP)
Marta DonAzzAn
University of Cologne - Emerging Group DLSC
Luciana SAnChEz-MEnDES
Universidade Federal Fluminense (UFF)
reSumo
O objetivo deste artigo é investigar a semântica dos numerais distributivos em três línguas:
português brasileiro (românica), chinês mandarim (sino-tibetana), e karitiana (arikém, tupi).
A despeito da diferença tipológica, propomos uma análise uniforme para esses operadores.
Analisamos os numerais distributivos nas três línguas como advérbios que estão associados
a uma semântica de pluracionalidade dos eventos. Consideramos que a distribuição é um
subproduto da pluralização dos eventos (CABLE, 2014). Assim, torna-se possível fornecer
uma entrada lexical única que abarca as diferentes interpretações das sentenças em que esses
numerais ocorrem.
AbStrAct
This paper focuses on the semantics of distributive numerals in three languages: Brazilian
Portuguese, Mandarin Chinese (Sino-Tibetan) and Karitiana (Arikén, Tupi). Despite
their typological distance, we propose a uniform analysis for these operators, which may help
to elucidate the semantics of distributivity in natural languages. We analyze distributive
numerals in the three languages as adverbials that are associated with a semantics of event
plurality and that distributivity is a byproduct of pluralization (CABLE, 2014). We
argue that it is possible to provide a single lexical entry that covers all the different readings
of sentences in which these numerals occur.
© Revista da ABRALIN, v.15, n.3, p. 11-58, jul./dez. 2016
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
PALAVRAS-ChAVE
Distributividade. Numerais distributivos. Plural. Semântica. Tipologia.
KEY WoRDS
Distributivity. Distributive numerals. Plural. Semantics. Typology.
introdução
Este artigo enfoca a semântica dos numerais distributivos (nDists)
adverbiais em três línguas de famílias distintas: o português brasileiro
(língua românica), o chinês mandarim (sino-tibetana) e o karitiana (tupi).
numerais distributivos são operadores distributivos formados a partir
de numerais, conforme ilustramos com o numeral distributivo de dois em
dois na sentença (1). Sentenças com numerais distributivos são adequadas
para expressar uma gama de situações, como as parafraseadas abaixo da
sentença. A primeira paráfrase tenta se aproximar da linguagem coloquial,
ao passo que a segunda paráfrase tenta se aproximar da linguagem
da lógica de predicados. observe que, além de distribuir o predicado
por vez ou por lugar, o numeral distributivo determina o número de
indivíduos que participa de cada um dos eventos de sentar (na sentença
(1), temos 2 alunos por evento).
(1)
(Alguns) alunos sentaram de dois em dois.
‘Alunos sentaram dois de cada vez/dois em cada lugar.’
‘Para cada vez/lugar, existem dois alunos que sentaram.’
no caso da sentença (1), temos um verbo intransitivo, com apenas
um argumento. A gama de interpretações possíveis para os numerais
distributivos aumenta, ao aumentarmos o número dos argumentos
verbais como em (2) e (3). A sentença (2) com um verbo de dois
12
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
argumentos possui duas leituras possíveis parafraseadas em (2a-b). Já
a sentença (3) com um verbo de três argumentos, possui três leituras
possíveis, parafraseadas em (3a-c).
(2)
(Alguns) homens carregaram malas de três em três1.
a.
homens carregaram três malas de cada vez.
b. Três homens de cada vez carregaram malas.
(3)
(Alguns) alunos deram presentes para professores de dois em
dois.
a. Alunos deram dois presentes de cada vez para professores.
b. Dois alunos de cada vez deram presentes para professores.
c. Alunos deram presentes para dois professores de cada
vez.
o artigo se insere em uma abordagem que vem sendo adotada
recentemente pelos estudos teóricos em semântica formal que trata de
combinar descrição e análise de fenômenos gramaticais específicos em
uma variedade limitada de línguas com a busca de universais linguísticos
(BACh; ChAo, 2011; LACA, CABREDo-hoFhERR, 2010). Esse
ponto de vista se diferencia das pesquisas tipológicas mais tradicionais
porque em vez de coletar dados de uma quantidade muito grande de
línguas, escolhe um número reduzido de línguas geneticamente distintas
para um estudo aprofundado de certos fenômenos (LACA, CABREDohoFhERR, 2010).
Dessa forma, nossa investigação sobre os numerais distributivos
nessas três línguas pretende contribuir para a elucidação de como
as línguas naturais expressam relações de distributividade. o artigo
enfrenta a questão mais geral de como os numerais distributivos
1
A possibilidade da distribuição no espaço (por lugar ou local) depende do significado lexical
do verbo. Vamos deixá-la de lado nos exemplos (2)-(3) para não confundir o leitor com tantas
leituras. o funcionamento da distribuição espacial é exatamente o mesmo que o funcionamento
da distribuição temporal.
13
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
adverbiais individuam e pluralizam eventos através das línguas e se
pergunta se esses operadores ocorrem em todas as línguas humanas.
Mais especificamente, o artigo investiga a semântica dos NDists em
português brasileiro (PB), chinês mandarim e em karitiana. Queremos
compreender como esses operadores pluralizam e individuam eventos
em cada uma dessas línguas. Defendemos que os numerais distributivos
são operadores pluracionais nas três línguas analisadas e que as diferentes
interpretações das sentenças com numerais distributivos são geradas a
partir da pluralização da relação entre o evento denotado pelo verbo
e um de seus participantes. Defendemos também que as diferentes
interpretações são possíveis porque existem diferentes modos de se
individuar os eventos denotados pelos predicados pluralizados.
o artigo está organizado da seguinte forma: a seção 1 trata dos
numerais distributivos através das línguas, de forma geral; a seção 2 trata
especificamente dos numerais distributivos em português brasileiro, em
chinês mandarim e em karitiana, enfocando sua natureza morfossintática
(seção 2.1) e suas interpretações (seção 2.2); a seção 3 apresenta nossa
proposta de análise unificada para os numerais distributivos nas três
línguas; apresentamos, por fim, as considerações finais.
1. numerais distributivos através das línguas
nesta seção, apresentamos um panorama tipológico dos numerais
distributivos de acordo com: (i) sua função sintática; (ii) sua manifestação
morfológica; e (iii) seu comportamento semântico. numerais
distributivos são conhecidos e descritos desde as antigas gramáticas
e estudos filológicos (GREENOUGH, ALLEN, 1888; BENNETT,
1963). Um exemplo de numeral distributivo em uma língua clássica, já
descrito no século XIX, é o termo latino bini que pode ser traduzido
por ‘em dois’, ‘de dois em dois’, ‘dois cada’. observe o contraste entre o
significado das sentenças abaixo com o numeral cardinal duo ‘dois’ (4) e
o numeral distributivo bini (5).
14
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
(4)
Dedit
nobis
duos
libros.
Deu
nos
dois
livros1a
‘Ele nos deu dois livros (no total).’
(5)
Dedit
nobis
binos
libros.
Deu
nos
dois.dist
livros
‘Ele deu dois livros para cada um de nós.’
(KREBS, 1843: 76)
os numerais distributivos só foram estudados de modo mais
sistemático pela linguística a partir da segunda metade do século
XX, tendo como base o trabalho seminal de GIL (1982a). Baseado
em uma vasta pesquisa tipológica, GIL (1982a) afirma que todas as
línguas apresentam algum tipo de numeral distributivo adverbial, mas
que nem todas possuem numerais distributivos adnominais. Temos
aqui um universal descritivo. Desde o trabalho de Gil, várias pesquisas
contribuíram para a compreensão dos numerais distributivos com
novos dados e análises (ver CABLE 2014, BECK, STEChoW, 2006;
BRASoVEAnU, hEnDERSon, 2011 entre outros). Como vimos,
nDists podem ser adnominais e adverbiais. Uma língua que apresenta
numerais distributivos adnominais e adverbiais é o tagalog (austronésia)2.
Em tagalog há duas estratégias distintas para a formação de numerais
distributivos. os numerais distributivos adnominais são gerados por
meio de prefixação (tig-) (ver sentença (6)); enquanto que os numerais
1a
Manteremos as glosas usadas originalmente pelos autores de onde foram retirados alguns dos
exemplos.
2
A tradução do numeral para algo do tipo três...cada em português é uma tentativa de aproximação
do significado da sentença em tagalog. No entanto, não estamos nos comprometendo com a
tradução precisa desses numerais para o português.
15
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
distributivos adverbiais são gerados por meio de reduplicação (ver
sentença (7)). Segundo GIL (1982a), a existência de dois processos
morfológicos distintos para a formação de numerais distributivos é um
caso raro nas línguas do mundo.
(6)
Dinala
ng
dalawa-ng
lalaki
ang
carregou-pt
dir
dois-lig
homem
top
tig-tatlo-ng
maleta.
distr-três-lig
mala
‘Dois homens carregaram três malas cada.’
(7)
(GIL, 1982a: 14)
Dinala
ng
dalawa-ng
lalaki
nang
carregou-pt
dir
dois-lig
homem
adv
ang
mga
top
pl
maleta.
mala
tatlu-tatlo
dist-três
‘Dois homens carregaram malas de três em três.’
(GIL, 1982a: 17)
Línguas que possuem tanto numerais distributivos adnominais
quanto adverbiais podem apresentar: (i) mesma forma para ambos; (ii)
duas formas diferentes para cada um derivadas de uma base; ou (iii)
uma forma para numerais distributivos adverbiais derivada dos numerais
distributivos adnominais que, por sua vez, podem ser derivados da forma
simples do numeral.
Um exemplo de língua do tipo (i), que possui a mesma forma tanto
para o numeral distributivo adnominal quanto adverbial é o iorubá
(nigero-congolesa).
16
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
(8)
a.
b.
mérin
‘quatro’
mérinmérin ‘quatro-quatro’
(adnom. e adverb.)
(GIL, 1982a: 20)
Uma língua que ilustra o tipo (ii), que possui duas formas derivadas
de uma base distributiva, é o georgiano (caucasiana) em que o numeral
cardinal sam forma o numeral distributivo sam-sam que pode tanto receber
uma marca de advérbio e criar um numeral distributivo adverbial – samsamat – quanto receber marcas de caso e formar um numeral distributivo
adnominal – sam-sami conforme ilustrado abaixo.
(9)
orma
k’acma
dois-erg
homem-erg
sam-sam-at.
(10)
čantebi
caiɣo
malas-abs
pfv-carregar-3:sg
três-dist-adv
≅ ‘Dois homens carregaram três malas de cada vez.’
(GIL, 1992a: 322)
orma
k’acma
sam-sam-i čanta
dois-erg
homem-erg
três-share-abs mala-abs
caiɣo.
pfv-carregar-3:sg
≅ ‘Dois homens carregaram três malas cada/de cada vez.’
(GIL, 1992a: 322)
Um exemplo de língua do tipo (iii), que apresenta uma forma para
numerais distributivos adverbiais derivada dos numerais distributivos
adnominais que, por sua vez, são derivados da forma simples do numeral,
é o cebuano (austronésia), conforme ilustram os exemplos em (11).
17
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
(11)
a.
upat
‘quatro’
numeral puro
b.
tinagupat
‘de quatro em quatro’ nDist adverbial
c.
tagupat
‘quatro...cada’
nDist adnominal
(GIL, 1982a: 21)
Generalizando, GIL afirma que a forma morfológica dos numerais
distributivos adverbiais é pelo menos tão complexa quanto a forma
dos numerais distributivos adnominais e que nenhuma língua apresenta
uma forma para o numeral distributivo adnominal derivada da forma
adverbial.
Do ponto de vista da forma, a estratégia mais comum de formação
de numerais distributivos é por meio de reduplicação. De uma amostra
de 251 línguas apresentadas em GIL (2013), 45% tem a reduplicação
como sua estratégia morfológica. As sentença (1-3) do português
brasileiro, a sentença (6) do tagalog e as sentenças (9) e (10) do georgiano
ilustram esse tipo de formação. Além da forma reduplicada, numerais
distributivos podem ser formados por meio de afixos ou de uma palavra
separada, como no latim (veja a sentença (2) do latim acima). Em
nicobanese (austro-asiática), os numerais distributivos são formados
pelo prefixo {ka-} conforme ilustrado em (12).
(12) a.
a’.
b.
b’.
/hE@N/
‘um’
/kahE@N/
‘um de cada vez’
‘dois’
/nE@.t/
‘dois de cada vez’
/ka?anE).t/
(BRAINE, 1970: 120)
Além das diferenças quanto à formação morfológica e a função
sintática, os numerais distributivos também variam segundo as
interpretações que geram nas sentenças em que ocorrem. A título de
18
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
ilustração, retomemos os exemplos do georgiano. Segundo GIL (1982a),
a sentença (9), repetida abaixo como (13), com um numeral distributivo
adverbial possui uma leitura de que ocorreu um número indefinido de
carregamentos de mala, com três malas por carregamento (distribuição
sobre vezes/ocasiões – 3 malas por vez).
(13)
orma
k’acma
čantebi caiɣo
homem-erg malas-abs pfv-carregar-3:sg
dois-erg
sam-sam-at.
três-dist-adv
≅ ‘Dois homens carregaram três malas de cada vez.’
(GIL, 1992: 322)
Já o exemplo (10), repetido em (14), com o numeral distributivo
adnominal pode ter uma interpretação de que houve um ou mais
carregamentos de três malas para cada homem (distribuição sobre
o nP sujeito – 3 malas por homem) ou de que ocorreu um número
indefinido de carregamentos de mala, com três malas por carregamento
(distribuição sobre vezes/ocasiões – 3 malas por vez).
(14)
orma k’acma
sam-sam-i
dois-erg homem-erg três-share-abs
caiɣo.
čanta
mala-abs
pfv-carregar-3:sg
≅ ‘Dois homens carregaram três malas cada/de cada vez.’
(GIL, 1992a: 322)
GIL (1982a) sugere ainda a possibilidade de uma terceira leitura que
ele mesmo afirma poder estar incluída na leitura de distribuição sobre
o predicado. Trata-se da possibilidade de haver apenas um evento de
carregamento ou mais de um. Sentenças como a exemplificada por (15)
19
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
abaixo são indeterminadas quanto a essa informação. Por conta disso, na
leitura de ‘três malas por carregamento’ a quantidade total de malas pode
ser seis ou uma quantidade maior, desde que tenha um valor múltiplo
de três (seis, nove, doze...). Já na leitura de três malas por homem, se há
dois homens, a quantidade de malas deverá ser um valor múltiplo de
seis (seis, doze, dezoito...). Vamos deixar de lado essa interpretação por
considerar que se trata de vagueza, ou seja, a sentença é indeterminada
(e não ambígua) quanto ao número de eventos ocorrido.
(15) Two men carried suitcases three by three.
‘Dois homens carregaram malas de três em três.’
Uma vez apresentado um panorama geral das propriedades
morfológicas, sintáticas e as interpretações dos numerais distributivos
nas línguas do mundo, as próximas seções irão tratar das características
dos numerais distributivos em português brasileiro, chinês mandarim e
karitiana.
2. numerais distributivos em português brasileiro, em
chinês mandarim e em karitiana
nesta seção apresentamos e discutimos as propriedades dos numerais
distributivos em português brasileiro (PB), chinês mandarim e karitiana.
Para tal, a seção está dividida em três subseções. A seção 3.1 descreve
a natureza morfossintática dos numerais distributivos nas três línguas
e argumenta a favor de sua categorização como nDists adverbiais; a
subseção 3.2, discute sua interpretação nas três línguas; e, finalmente,
a subseção 3.3 apresenta um resumo das propriedades dos nDists nas
três línguas.
2.1 numerais distributivos são sintagmas adverbiais
20
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
nesta seção argumentamos que nas três línguas discutidas - português
brasileiro, chinês mandarim e karitiana – os numerais distributivos são
sintagmas adverbiais.
2.1.1 Português brasileiro
Em nossa discussão sobre o português brasileiro, nos restringiremos
aos numerais distributivos que têm a forma reduplicada de n em n,
deixando de lado outros casos possíveis como um por um, três contra três,
quatro a quatro. Sua composição por meio de uma preposição já indica seu
estatuto de adjunto. Vamos argumentar que eles se comportam sempre
como advérbios na língua.
Uma das evidências para essa afirmação está no fato de que eles
não têm um comportamento de adjunto do nome. Tomaremos como
exemplo a sentença (16) e aplicaremos a ela os testes de constituinte
para o SN objeto apresentados em (17)3. Esses testes mostram que malas
de três em três não forma um único constituinte e que, portanto, de três
em três não faz parte do Sn objeto direto. ou seja, o sintagma malas se
comporta de forma independente do sintagma de três em três.
Em (17a’), vemos que malas pode ser substituído pelo pronome
elas independentemente de de três em três. Por outro lado, (17a’’) mostra
que se tentamos pronominalizar malas de três em três como um único
constituinte, o significado da sentença não é preservado. Da mesma
forma, os testes (17b-d) mostram que apenas o constituinte malas pode
ser coerentemente clivado, interrogado ou passivizado comportando-se,
portanto, como um objeto direto pleno e independente de de três em três.
Vemos então que de três em três não forma um constituinte com o objeto
direto malas. os mesmos testes, com os mesmos resultados, podem ser
replicados para a sequência meninos de três em três. Podemos concluir então
que de três em três não pertence a nenhum dos Sns da sentença (16).
(16) os meninos levantaram malas de três em três.
3
Os testes foram baseados em MIOTO, FIGUEIREDO SILVA e LOPES (2007).
21
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
(17) Testes de constituinte do DP objeto
a.
Pronominalização
a’. ü os meninos levantaram elas de três em três.
a’’. û os meninos levantaram elas.
b. Clivagem
b’. ü Foram malas que os meninos levantaram de três em
três.
b’’. û Foram malas de três em três que os meninos
levantaram.
c.
Substituição por expressão interrogativa
c’. ü P: o que os meninos levantaram de três em três
R: Malas.
c’’. û P: o que os meninos levantaram?
R: Malas de três em três.
d. Passivização
d’. ü A malas foram levantadas de três em três pelos
meninos.
d’’. û As malas de três em três foram levantadas pelos
meninos.
note agora o contraste entre o comportamento sintático de de três em
três na sentença (16) e o comportamento de um adjunto adnominal do tipo
vermelhas na sentença (18). os testes em (19a-d) mostram que vermelhas
não pode ser separado do núcleo de seu sintagma nominal – malas – com
preservação do significado ou mesmo da gramaticalidade da sentença.
É interessante notar também que os resultados são exatamente opostos
aos resultados apresentados em (17a-d) para o NDist de três em três. Em
(19a), vê-se que não é possível pronominalizar um núcleo nominal – no
caso, malas – separadamente de seu adjunto – no caso vermelhas. o teste
de clivagem em (19b) mostra, da mesma forma, que é impossível separar
malas de seu adjunto vermelhas. Em (19c), vemos que não é possível
22
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
interrogar apenas o núcleo de um sintagma nominal, ou seja, não é
possível interrogá-lo separadamente de seu adjunto. Finalmente, o teste
da passivização em (19d), mostra que não é possível separar o núcleo
de seu adjunto para formar uma oração passiva. Resumindo, vemos que
um verdadeiro adjunto adnominal forma um constituinte único com seu
núcleo; o que não acontece com um sintagma adverbial.
(18) Os meninos levantaram malas vermelhas.
(19) Testes de constituinte do DP objeto
a.
Pronominalização
a’. û os meninos levantaram elas vermelhas.
a’’. ü os meninos levantaram elas.
b. Clivagem
b’. û Foram malas que os meninos levantaram vermelhas.
b’’. ü Foram malas vermelhas que os meninos levantaram.
c.
Substituição por expressão interrogativa
c’. û P: o que os meninos levantaram vermelhas?
R: Malas.
c’’. ü P: o que os meninos levantaram?
R: Malas vermelhas.
d. Passivização
d’. û A malas foram levantadas vermelhas pelos meninos.
d’’. ü As malas vermelhas foram levantadas pelos meninos.
Além disso, de n em n tem a mesma distribuição de advérbios de modo
do tipo cuidadosamente, conforme ilustrado abaixo. Em (20a-d) e (21ad), vemos que cuidadosamente e de três em três podem ocupar exatamente
as mesmas posições na sentença. Por outro lado, eles também são
agramaticais nas mesmas posições como ilustrado em (20e) e (21e).4
4
há, evidentemente, favorecimento de uma ou de outra leitura conforme a posição do sintagma
adverbial. Esse favorecimento, entretanto, não é relevante para o ponto que queremos demonstrar
e não será discutido neste trabalho.
23
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
(20) a.
b.
c.
d.
e.
Cuidadosamente, os meninos levantaram as malas.
os meninos cuidadosamente levantaram as malas.
os meninos levantaram cuidadosamente as malas.
os meninos levantaram as malas cuidadosamente.
*os cuidadosamente meninos levantaram as malas.
(21) a.
b.
c.
d.
e.
De três em três, os meninos levantaram as malas.
os meninos de três em três levantaram as malas.
os meninos levantaram de três em três as malas.
os meninos levantaram as malas de três em três.
*os de três em três meninos levantaram as malas.
Ademais, se fossem adnominais, os numerais distributivos do PB
deveriam poder aparecer dentro de um sintagma nominal com uma
relativa restritiva (FRANCHI, NEGRÃO, MÜLLER, 1998). O contraste
entre o comportamento do adjunto adnominal vermelhas em (22a) e o
numeral distributivo de três em três em (22b) ilustra esse fato. Vermelhas,
ao contrário de de três em três pode ocorrer dentro do sintagma as malas
vermelhas que estavam no porão, ao passo que a inclusão de de três em três
dentro do Sn torna a sentença agramatical - *malas de três em três que
estavam no porão.
(22) a.
os meninos levantaram as malas vermelhas que
estavam no porão.
b. *os meninos levantaram as malas de três em três
que estavam no porão.
Um contraexemplo possível que poderia ser levantado para a
afirmação de que os numerais distributivos são adverbiais em português
seria a possibilidade de ocorrência de dois deles em uma mesma sentença
como em (23). Exemplos desse tipo foram utilizados por CABLE (2014)
para afirmar que os numerais distributivos em tlingit (na-dene) podem
24
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
ter uma função adnominal. A sentença (24) do tlingit é adequada em um
cenário em que os meninos voltam do supermercado com duas maçãs e
três batatas cada.
(23) os meninos compraram maçãs de duas em duas e batatas de
três em três.
(24)
[[ Dáxgaa x’áax’]
ka [ nás’gigáa k’únts’]]
áwé
dois.dist maçã
e
foc
três.dist batata
has aawa.oo.
3pls.3o.comprou
‘Eles compraram duas maçãs e três batatas cada um.’
(CABLE, 2014: 12)
no entanto, consideraramos que, pelo menos no exemplo em
português, há uma elipse verbal e que ambos os numerais distributivos
têm função adverbial.
(25) os meninos compraram maçãs de duas em duas e
(compraram) batatas de três em três.
nesta seção, apresentamos o comportamento adverbial do
nDist em português brasileiro. na próxima seção discutiremos esse
comportamento no chinês mandarim.
2.1.2 chinês mandarim
Em chinês mandarim, os numerais distributivos têm a forma de um
numeral reduplicado acompanhado de um classificador nominal com
um sufixo opcional de que acompanha os advérbios na língua: n-cl.n-
25
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
cl-(de)5.
Uma das evidências de que se trata de sintagmas adverbiais
está na possibilidade de sua ocorrência em posição pré-verbal, posição
prototipicamente associada aos advérbios na língua e não permitida
para numerais cardinais simples, que têm comportamento adnominal.
A sentença (26a) apresenta um numeral não reduplicado acompanhado
de classificador em posição típica de adjunto adnominal. O exemplo
(26b), por sua vez, mostra que não é possível a ocorrência do
numeral+classificador em posição pré-verbal. Já (26c) atesta que os
numerais reduplicados em chinês podem aparecer em posição pré-verbal.
(26)
a. zhangsan
zhangsan
xiang mai
yi
quer comprar um
ben shu5a.
ncl
livro
‘zhangsan quer comprar um livro.’
b. *zhangsan yi
ben
xiang mai
(shu)
quer comprar (livro)
zhangsan um ncl
c. haizi liang.ge-liang.ge
criança dois-ncl-dois-ncl
chi-wan-le
dianxin.
comer-terminar-asp doce
‘Criança comeu doce de 2 em 25b.’
Uma evidência adicional para o estatuto adverbial dos numerais
distributivos em mandarim está no fato de que eles podem, opcionalmente,
5
É possível que, além de nDists adverbiais, o mandarim possua também nDists adnominais,
mas sua existência é debatida pela literatura (veja YUAn 2011 sobre essa discussão). Segundo a
discussão em DonAzzAn (2016), há pelo menos uma razão para se considerar os possíveis
NDists adnominais como modificadores de VP, da mesma forma que os NDists adverbiais.
os possíveis nDists adnominais são usualmente restritos aos nPs nus que são internos ao VP
e, nesses casos, se comportam da mesma forma que outros modificadores de VP em chinês
mandarim que podem modificar NPs nus, tais como os sintagmas durativos (cf. SYBESMA,
1999; LIN, 2008).
5a
os exemplos do karitiana e do chinês que não apresentam fonte foram elicitados pelas autoras
com falantes nativos das línguas investigadas.
5b
o singular nu não é muito natural na posição de sujeito de sentença episódia em português,
mas o mantivemos na tradução na tentativa de deixá-la o mais próximo possível da estrutura da
sentença em chinês. Para evitar seleção de leituras por conta do gênero em português, estamos
utilizando o numeral nas traduções.
26
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
ser marcados pelo morfema de2, que também ocorre com advérbios de
modo, conforme ilustrado abaixo pela sentença (27a). Em (27b), vemos
que o advérbio hen kuai ‘rapidamente’ ocorre na mesma posição que o
nDist liang ge.liang ge em (27a). O morfema de2 se refere à modificação
adverbial e é glosado com o 2 subscrito para diferenciá-lo do morfema
de1 homófono (mas não homógrafo) que marca modificação adnominal.
(27)
a.
haizi
liang ge.liang ge-(de) chi-wan-le
criança
dois-ncl.dois-ncl-(de2) comer-terminar-asp
dianxin.
doce
b.
‘Criança comeu doce de 2 em 2.’
haizi
hen.kuai-(de) jiu chi-wan-le
criança
rápido-de2
então comer-terminar-asp
dianxin.
doce
‘Criança comeu doce rapidamente.’
Vimos então que mandarim possui nDists adverbiais da mesma
forma que o PB. A seguir mostramos que o mesmo acontece em karitiana.
2.1.3 Karitiana
Em karitiana os numerais distributivos possuem a mesma distribuição
que outros advérbios (adv) na língua. Suas possibilidades de ocorrência
estão representadas em (28). Em sentenças com a ordem Sujeito-Verboobjeto, que é a ordem canônica para as sentenças matrizes declarativas
na língua, a única posição que os sintagmas adverbiais não podem ocupar
é entre o sujeito e verbo (SToRTo, 1999). Em (29a-d), ilustramos a
distribuição do advérbio kandat em karitiana.
27
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
(28)
adv
Sujeito *adv Verbo adv objeto adv
(29) a. Kanda-t
ese.
j)onso Ø-naka-ot-Ø
muitas.vezes-adv mulher 3-decl-pegar-nft água
‘Mulher pegou água muitas vezes.’
b. j)onso nakaot kandat ese.
c. j)onso nakaot ese kandat.
d. *j)onso kandat nakaot ese.
As sentenças em (30a-d), com sypomp sypomp ‘de dois em dois’,
mostram que os numerais distributivos têm a mesma distribuição que os
outros advérbios na língua.
(30) a.
Sypom-t.sypom-t taso
Ø-na-mangat-Ø
pikom.
dois-adv.dois-adv homem 3-decl-levantar-nft macaco
b.
‘homem levantou macaco de dois em dois.’
Taso namangat sypomp sypomp pikom.
c.
Taso namangat pikom sypomp sypomp.
d.
*Taso sypomp sypomp namangat pikom.
Uma evidência adicional para o estatuto adverbial dos numerais
distributivos em karitiana é a presença do morfema {-t}, sufixo presente
em muitos sintagmas adverbiais na língua, como ilustrado em (31)
(SAnChEz-MEnDES, 2014).
(31)
a.
b.
koo-t.
‘ontem-adv’
soaso-t
‘rápido-adv’
28
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
c.
kama-t
‘agora-adv’
(SANCHEZ-MENDES, 2014: 178)
Adjuntos adnominais, por outro lado, não possuem morfologia
funcional. As sentenças em (32) e (33) ilustram esse contraste com o
modificador pita(t) ‘muito’, que tem a forma pita quando modifica
sintagmas nominais e a forma pitat quando modifica sintagmas adverbiais.
(32)
[Õwã
ty
pita]
i-otam-Ø.
criança
alta
muito
part-chegar-abs
‘A criança muito alta chegou.’
(SANCHEZ-MENDES, 2014: 183)
(33)
João
i-pytim’adn-<a>-t
pita-t.
João
part-trabalhar-abs
muito-adv
‘o João trabalhou muito.’
(SAnChEz-MEnDES, 2014: 140)
Um argumento adicional para a afirmação de que os numerais
distributivos em karitiana são adjuntos adverbais é o fato de que
sintagmas nominais não possuem projeções funcionais de nenhum
tipo nessa língua. os Sns na língua não são marcados para número,
não apresentam classificadores nem marcas de definitude ou mesmo
quantificadores (MÜLLER, STORTO, COUTINHO-SILVA, 2006).
nesse sentido, os numerais distributivos teriam um comportamento não
previsto se pertencessem ao domínio nominal.
Esta seção mostrou que, embora sendo línguas tipologicamente
muito diversas, o português brasileiro, o chinês mandarim e o karitiana
possuem propriedades semelhantes quanto à natureza morfossintática de
29
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
seus numerais distributivos. Do ponto de vista da forma, as três línguas
estão de acordo com a generalização de GIL(1982a) de que a forma
morfológica dos numerais distributivos é pelo menos tão complexa
quanto a forma dos numerais. Em português, temos a forma de n em n,
em chinês a forma n-cl.n-cl-(de), e em karitiana a forma n-t.n-t (em que n
é um numeral). nas três línguas, esses operadores se comportam como
sintagmas adverbiais.
A próxima seção tratará das interpretações dos numerais distributivos
nas três línguas.
2.2 A interpretação dos numerais distributivos em português
brasileiro, em chinês mandarim e em karitiana
o objetivo desta seção é explicitar a interpretação dos numerais
distributivos nas três línguas enfocadas neste trabalho.
2.2.1 Português brasileiro
Em português brasileiro, uma sentença com um nDist com sujeito
não quantificado apresenta três leituras possíveis. A sentença (34) abaixo
com o sujeito quantificado dois homens é adequada para descrever tanto
uma situação em que cada um dos homens carrega três malas, ou uma
situação em que três malas são carregadas a cada evento.
(34) Dois homens carregaram malas de três em três.
a.
Para cada homem, há um evento de ele carregar três
malas.
= 3 malas por homem
b. Para cada ocasião/local, há um evento de dois homens
carregarem três malas.
= 3 malas por vez/local
Já uma sentença sem numeral no Sn sujeito apresenta uma terceira
leitura, apresentada em (35c). A sentença (35) pode ser utilizada para
30
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
descrever os dois cenários adequados para (34) descritos acima, mas
também pode ser usada para descrever uma situação em que malas são
carregadas por três homens de cada vez. A leitura (35c) difere das outras
duas porque apresenta o sujeito como a entidade a ser distribuída, ou
seja, a entidade denotada pelo sujeito e não pelo objeto que tem sua
cardinalidade (quantidade) determinada pelo nDist.
(35) (Alguns) homens carregaram malas de três em três.
a.
Para cada homem, há um evento de ele carregar três
malas.
= 3 malas por homem
b. Para cada ocasião/local, há um evento de homens
carregarem três malas.
= 3 malas por vez/local
c.
Para cada ocasião/local, há um evento de três homens
carregarem malas.
= 3 homens por vez/local6
Vimos em (35) que as três leituras estão disponíveis para as sentenças
transitivas com numerais distributivos em português somente quando
um dos argumentos do verbo não possui um numeral. Se o sujeito
ou o objeto forem nomes próprios ou descrições definidas singulares
como, ‘João’ ou ‘o homem’ em (36-37), apenas uma leitura é possível,
a de distribuição sobre o predicado, sendo que em (36) o objeto malas
é particionado e em (37) o sujeito homens é particionado. observe o
contraste entre a sentença (35) acima e as sentença (36) e (37) abaixo.
(36) João/o homem carregou malas de três em três.
a.
#Para cada João/ o homem, há um evento de ele carregar
três malas.
6
A leitura em que o sujeito é o distribuidor é chamada na literatura de leitura de leitura distributiva
de escopo inverso. Para mais detalhes, ver GIL (1982b).
31
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
b.
c.
Para cada ocasião/local, há um evento de João/o homem
carregar três malas.
= 3 malas por vez/local
#Para cada ocasião/local, há um evento de três João/o
homem carregarem malas.
(37) (Alguns) homens carregaram João/a mala de três em três.
a.
#Para cada homem há um evento de ele carregar três
João/ a mala.
b. #Para cada ocasião/local, há um evento de homens
carregarem três João/ a mala.
c.
Para cada ocasião/local, há um evento de três homens
carregarem João/a mala.
= 3 homens por vez/local
Dessa forma, vemos que as propriedades de quantização dos
argumentos do verbo (do sujeito ou do objeto) são fundamentais
para a disponibilidade de leituras das sentenças contendo numerais
distributivos. Além disso, no PB, o gênero dos nDists e dos argumentos
do verbo também pode interferir na seleção de leituras. As sentenças
(38) e (39) abaixo, embora possuam sujeito plural sem numeral, não
apresentam as três leituras atestadas em (35) acima pelo fato de que o
gênero feminino dos numerais que compõem o nDist seleciona apenas
argumentos femininos, no caso, malas ou mulheres.
(38) (Alguns) homens carregaram malas de duas em duas.
a.
Para cada homem, há um evento de ele carregar duas
malas.
b. Para cada ocasião/local, há um evento de homens
carregarem duas malas.
c.
#Para cada ocasião/local, há um evento de dois homens
carregarem malas.
32
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
(39) (Algumas) mulheres carregaram livros de duas em duas.
a.
#Para cada mulher, há um evento de ela carregar dois
livros.
b. #Para cada ocasião/local, há um evento de mulheres
carregarem dois livros.
c.
Para cada ocasião/local, há um evento de duas mulheres
carregarem livros.
Resumindo, as sentenças transitivas com numerais distributivos em
português podem apresentar três leituras: (i) distribuição sobre o sujeito
sendo o objeto direto particionado, ou seja, o sujeito é o distribuidor e o
objeto direto tem sua cardinalidade determinada pelo nDist e faz parte
do predicado distribuído (35a); (ii) distribuição sobre ocasiões/locais e o
objeto sendo particionado (35b); (iii) distribuição sobre ocasiões/locais
e o sujeito como sendo particionado (35c). É importante notar que o
distribuído são sempre eventos e o que varia é o participante do evento
a ser particionado.
no que diz respeito às sentenças intransitivas, o sintagma do sujeito é
sempre parte do que é distribuído, uma vez que ele é o único argumento
disponível, como vemos na sentença (40).
(40) As mulheres dançaram de três em três.
a.
#Para cada mulher, há um evento de ela dançar de três
em três.
b. Para cada ocasião/local, há um evento de três mulheres
dançando.
= 3 mulheres por vez/local.
note que a leitura (40b), com a interpretação em que o distribuidor
são vezes ou locais pode descrever cenários bastante diferentes. A
sentença (40) pode ser usada para descrever uma situação em que para
cada ocasião, há um evento de mulheres dançando agrupadas de três
33
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
em três em locais diferentes. A figura abaixo representa um cenário
capturado por essa leitura.
Mas ela também pode ser usada em um cenário em que a cada
ocasião/vez há um evento de três mulheres dançando. ou seja, pode
haver um evento de três mulheres dançando agora, outro daqui a uma
hora e assim por diante. A figura abaixo representa esse cenário.
12
9
12
10
11 12
34
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
os diferentes cenários ilustram diferentes formas de se individualizar
os eventos, por local ou por tempo; mas o predicado distribuído é o
mesmo. Mais adiante, na seção 4, argumentaremos que apesar de as
sentenças com nDists serem adequadas e verdadeiras em diferentes
tipos de cenários, não se trata de um caso de ambiguidade, mas sim de
indeterminação em como os eventos a serem distribuídos devem ser
individuados. Essa indeterminação é resolvida no contexto que envolve
tanto o conteúdo da sentença quanto o contexto extralinguístico. Assim,
dois ou mais cenários podem ser capturados pela mesma leitura da
sentença.
note também que a disponibilidade de interpretações por vez ou
por local independe da estrutura argumental do verbo. Vimos que
sentenças transitivas e intransitivas tem o mesmo comportamento no
que diz respeito à disponibilidade de leituras por vez ou por local. Elas
podem ser, evidentemente, mais ou menos favorecidas dependendo do
significado lexical do verbo. O comportamento de sentenças com verbos
inergativos e inacusativos ilustra esse fato mais uma vez. A sentença (41)
abaixo, com o verbo inacusativo chegar, possui as mesmas interpretações
que a sentença (40) com o verbo inergativo dançar. A interpretação
expressa em (41b) pode descrever mulheres agrupadas de três em três
em diferentes locais ou chegando em grupos de três em cada ocasião.
(41) As mulheres chegaram de três em três.
a.
#Para cada mulher, há um evento de ela chegar de três
em três.
b. Para cada ocasião/local, há um evento de três mulheres
chegando.
na próxima seção, discutiremos a interpretação de sentenças com
nDists em mandarim.
35
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
2.2.2 chinês mandarim
Passaremos agora ao exame do comportamento dos numerais
distributivos adverbiais em chinês mandarim, que apresentam um
comportamento semelhante ao do português. Em chinês mandarim,
as sentenças transitivas com numerais distributivos também podem
apresentar as três leituras atestadas em português, conforme ilustrado
abaixo em (42).
(42)
haizi
criança
liang-ge.liang-ge-de
dois-ncl.dois-ncl-de2
chi-wan- le
comer-terminar-asp
huashengdou.
amendoim
≈ ‘Criança comeu amendoim de 2 em 2.’
a.
b.
c.
Para cada criança, há um evento de ela comer dois
amendoins.
Para cada ocasião/local, há um evento de crianças
comerem dois amendoins.
Para cada ocasião/local, há um evento de duas crianças
comendo amendoim.
Em chinês mandarim, também há propriedades gramaticais que
podem interferir na disponibilidade de leituras para sentenças desse
tipo. Uma delas, também atestada em português, é quando o sujeito é
singular. Evidentemente, isso acontece porque não é possível distribuir
sobre uma entidade singular. A sentença abaixo mostra que, quando o
sujeito é um nome próprio, ele não pode ser o argumento distribuído
ou mesmo ser o distribuidor - o ‘beneficiário’ - da distribuição, uma vez
que sua cardinalidade (ou quantidade) não pode variar. o exemplo (43)
abaixo ilustra esse fato.
36
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
(43)
Mali
ba
yifu
yi-jian.yi-jian–de
tang-hao.
Maria
BA
vestido
one-ncl.one.ncl–de2 passar-bem
‘Maria passou os vestidos um por um.’
(YUAn, 2011: 290)
a. #Para cada Maria, há um evento de ela passar um vestido.
b. Para cada ocasião/local, há um evento de Maria passar um
vestido.
c. #Para cada ocasião/local, há um evento de uma Maria
passar um vestido.
Além das propriedades de número do sujeito, em mandarim, o
classificador selecionado pelo numeral distributivo também afeta a
disponibilidade de leituras. Os classificadores em chinês têm uma função
semelhante ao gênero em português no que diz respeito à seleção de
um dos argumentos do verbo para a distribuição. Por exemplo, na
sentença (42), o classificador ge que acompanha o numeral distributivo
é um classificador genérico. Quando o numeral distributivo é formado
com um classificador mais especializado, ele pode se referir apenas às
entidades denotadas por um dos Sns da sentença. Por exemplo, enquanto
o classificador geral ge em (42) é compatível tanto com criança quanto
com amendoim, o classificador ke em (44) pode ser empregado apenas
para se referir a pequenos objetos, logo só pode estar se referindo a
amendoim. Dessa forma, a leitura com o sujeito sendo distribuído (44c)
é descartada.
(44) haizi liang-ke.liang-ke-(de) chi-wan-le
criança dois-ncl.dois-ncl-(de2) comer-terminar-asp
huashengdou.
amendoim
≈ ‘Criança comeu amendoim de 2 em 2.’
37
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
a.
b.
c.
Para cada criança, há um evento de ela comer dois
amendoins.
Para cada ocasião/local, há um evento de crianças comerem
dois amendoins.
#Para cada ocasião/local, há um evento de duas crianças
comendo amendoim.
no que diz respeito às sentenças intransitivas, em mandarim quase
todos os verbos semanticamente intransitivos são sintaticamente
transitivos. Esses verbos precisam vir acompanhados de um Sn nu que
faz o papel de um objeto postiço (do inglês dummy object) (ChEnG,
SYBESMA, 1998). Assim, um verbo como dançar é expresso por algo
do tipo dançar dança. no entanto, esse objeto postiço, embora esteja
sintaticamente presente, está inativo semanticamente e não pode ser
usado como o argumento a ser distribuído como ilustrado em (45a-c).
A única opção de leitura para esta sentença é com o argumento externo
sendo usado como o argumento distribuído, como nas sentenças
intransitivas do PB (45c).
(45)
Chang-shang
xuesheng liang.ge-liang.ge-de tiao
palco-em
aluno
wu.
dois.ncl-dois.ncl-de2 dançar dança
‘no palco, os alunos dançaram de 2 em 2.’
a. #Para cada aluno, há um evento de ele dançar duas danças.
b. #Para cada ocasião/local, há um evento de alunos dançando
duas danças.
c. Para cada ocasião/local, há um evento de dois alunos
dançando.
A seguir passamos a discutir as interpretações de sentenças com
nDists em karitiana.
38
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
2.2.3 Karitiana
Apresentemos agora as propriedades semânticas dos numerais
distributivos em karitiana. na língua karitiana, a interpretação em
que o sujeito é o argumento distribuído nunca está disponível para
sentenças com numerais distributivos. A sentença (46) abaixo ilustra essa
propriedade.
(46) Sypom-t.sypom-t
ombaky Ø-naka-’y-t
pikom.
onça
3-decl-comer-nft macaco
dois-adv.dois-adv
≈ ‘onça comeu macaco de 2 em 2.’
a. Para cada onça, há um evento de ela comer dois macacos.
b.
c.
Para cada ocasião/local, há um evento de onças comerem
dois macacos.
#Para cada ocasião/local, há um evento de duas onças
comerem macaco.
Assim como em português e em chinês, em karitiana, o sujeito
singular também afeta as leituras disponíveis para sentenças como em
(47).
(47) Inacio Ø-na-manga-t
õwã
sypom-t.sypom-t.
Inacio 3-decl-levantar-nft criança
dois-adv.dois-adv
‘Inacio levantou criança de 2 em 2.’
a. #Para cada Inacio, há um evento de ele carregar duas
crianças.
b. Para cada ocasião/local, há um evento de Inacio levantar
duas crianças.
c. #Para cada ocasião/local, há um evento de dois Inácios
levantar crianças.
Até onde sabemos, em karitiana, não há uma propriedade gramatical
associada ao numeral distributivo que possa influenciar na seleção de
39
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
leituras tal qual o gênero em português e os classificadores em chinês.
Quanto às sentenças intransitivas, karitiana possui a particularidade de
que todos os seus verbos intransitivos se comportam como inacusativos
(RoChA, 2011; SToRTo, RoChA, 2014). Logo o único argumento
das sentenças intransitivas é o argumento interno que tem, portanto,
comportamento similar ao do objeto das transitivas. De qualquer modo,
nas três línguas, as sentenças intransitivas só permitem distribuição
por ocasiões ou locais. Isso é compreensível, uma vez que numerais
distributivos necessitam particionar um dos argumentos do verbo e, no
caso das sentenças intransitivas, há um único argumento disponível.
Em (48), apresentamos uma sentença intransitiva em karitiana. Ela é
interpretada com o sujeito sendo particionado e distribuído (48b).
(48) Sypom-t.sypom-t
Ø-na-otam-Ø
3-decl-chegar-nft
dois-adv.dois-adv
‘homens chegaram de 2 em 2.’
taso.
homem
a. #Para cada homem, há um evento de ele chegar de dois
em dois.
b. Para cada ocasião/local, há um evento de dois homens
chegando.
Passamos, a seguir, às conclusões gerais da seção.
2.3 conclusões da seção
Vimos que, nas três línguas investigadas, os numerais distributivos são
sintagmas adverbiais. E, como sintagmas adverbiais, eles potencialmente
têm escopo sobre predicados. Consequentemente eles operam sobre
eventos. Para deixar mais transparentes as interpretações que elicitamos,
vamos comparar a sentença (40), repetida abaixo como (49), à sua versão
sem numeral distributivo (50).
40
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
(49) As mulheres dançaram de três em três.
(50) As mulheres dançaram.
A sentença (50) é indeterminada quanto ao número de eventos a
que pode se aplicar. Ela é também indeterminada quanto ao número
de mulheres que podem participar desses eventos. A sentença (49),
por outro lado, denota necessariamente um número plural de eventos
em cada um dos quais três mulheres dançaram. Podemos inferir da
comparação que a pluralização do predicado e a partição do argumento
verbal são geradas pelo numeral distributivo.
Apresentamos abaixo uma generalização para os nDists nas três
línguas investigadas que indica a base da análise que será apresentada a
seguir:
i.
ii.
iii.
nDists particionam um evento indeterminado em subeventos
homogêneos;
os subeventos são individuados por locais, vezes, ou
participantes;
nDists determinam a cardinalidade (a quantidade) de um dos
argumentos do verbo para cada um dos subeventos.
Evidentemente há particularidades. Em PB e em mandarim,
dependendo da sentença, algumas leituras podem ser descartadas de
acordo com propriedades do numeral distributivo. Em PB, o que pode
interferir para a seleção de leituras é o gênero e em chinês mandarim é
o classificador. Já em karitiana, o sujeito nunca pode ser o distribuidor.
A próxima seção apresentará nossa análise unificada para os fatos gerais
descritos nesta seção.
41
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
3. Análise
Esta seção apresenta uma proposta de análise para a contribuição
semântica dos nDists às sentenças de que participam. Análises
anteriores propuseram mecanismos sintático-semânticos bastante
complexos para explicar a variabilidade de interpretações das sentenças
com numerais distributivos (ver FARKAS 1997, HENDERSON 2011,
entre outros). Aqui vamos nos ater a uma breve revisão da proposta
baseada em escopo e em apresentar a proposta de numerais distributivos
enquanto operadores pluracionais, que vamos adotar7. Para uma revisão
das propostas existentes na literatura, ver CABLE (2014).
A proposta baseada na noção de escopo foi sugerida inicialmente por
GIL (1988). Para descrever as interpretações dos numerais distributivos,
o autor postula a seguinte regra:
(51) A reduplicação de uma expressão A força uma expressão B
que contém A a distribuir sobre um constituinte C disjunto e
B8.
(GIL, 1988:1046)
Vamos ilustrar o funcionamento do formalismo de Gil através da
sentença (52) do georgiano. Como vimos acima, uma sentença com
numeral distributivo adnominal em georgiano pode ter uma leitura de
distribuição sobre o sujeito (três malas por homem) ou sobre o predicado
(vP/VP) (três malas por carregamento).
Não discutiremos a análise dos numerais distributivos como constituindo indefinidos
dependentes - dependent indefinites – porque ela se aplica a numerais distributivos adnominais
e, em nosso caso, estamos analisando numerais distributivos adverbiais e não adnominais (ver
FARKAS 1997, HENDERSON 2011).
8
Tradução nossa para: “Reduplication of an expression A forces an expression B containing A
to distribute over a constituent C disjoint from B”.
7
42
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
(52) orma
k’acma
sam-sam-i
čanta
dois-er
homen-erg três-share-abs mala-abs
caiɣo.
pfv-carregar-3:sg
‘Dois homens carregaram malas de três em três.’
(GIL, 1992: 322)
As representações sugeridas por GIL (1988) para as leituras de (52)
são apresentadas abaixo em (53a-b). Em (53a), temos a representação
da distribuição sobre o sujeito e em (53b), temos a representação da
distribuição sobre o predicado.
(53) a. Para cada homem, há um evento de ele carregar três malas.
[Dois homens]C carregaram [ [três-três]A malas]B
↑_____________________|
b. Para cada ocasião/local, há um evento de homens carregarem
três malas.
Dois homens [carregaram]C [ [três-três]A malas ]B
↑____________|
O formalismo de Gil, entretanto, é insuficiente para explicar
de que forma as leituras são geradas a partir do numeral distributivo
(BALUSU, JAYASEELAn, 2013). Ademais, como vimos, os exemplos
do português brasileiro e do chinês mandarim apresentam uma gama
de leituras distintas das descritas em (53a-b) exibindo, além das leituras
atestadas para o georgiano, uma leitura em que o sujeito é parte do
predicado distribuído.
A representação da operação de distribuição ganha uma formalização
com o trabalho de LASERSohn (1995), que investigou a distributividade
de forma geral, não especificamente associada a numerais distributivos.
LASERSohn (1995) assume que a distributividade estrita é gerada por
um operador distributivo – DIST - que apresenta uma restrição – o
43
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
distribuidor - e um escopo – o distribuído. A formulação geral de Lasersohn
(1995) é apresentada em (54) e sua aplicação ao exemplo do georgiano é
apresentada em (55a-b). o ganho dessa representação está em considerar
o operador distributivo como separado das outras duas partes da sentença
e como responsável pela semântica de distributividade. Trata-se de uma
análise quantificacional da distributividade, o que pode ser percebido
através de suas paráfrases. observe que essas paráfrases fazem uso do
quantificador universal (cada) e do quantificador existencial (existe).
(54) [[ DIST ]] [restrição] [ escopo]
(55)
a.
b.
[[ sam-samia ]] [dois homens]restrição [três malas]escopo
‘Para cada um dos dois homens, existem três malas que
ele carrega.’
[[sam-samib ]][carregamentos]restrição [três malas]escopo
‘Para cada ocasião, existem três malas que são carregadas.’
no entanto, análises dos numerais distributivos como operadores
quantificacionais como a baseada em LASERSOHN (1995) preveem que
os elementos da restrição (o distribuidor) sejam exauridos na distribuição,
ou seja, todos os indivíduos salientes no contexto devem entrar para que
a sentença seja verdadeira. Isso é verdade para sentenças com cada no PB
como (56) abaixo, mas não se aplica necessariamente a sentenças com
numerais distributivos. As sentenças com NDists (57-59) do português,
do madarin e do karitiana podem ser usadas para descrever um cenário
em que nem todas as criança, alunos ou homens salientes no contexto
entrararam, dançaram ou chegaram. Esse fato, no entanto, é capturado
pela análise pluracional que apresentaremos mais adiante.
(56) cada criança entrou (com um sorriso).
44
Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
(57) Crianças entraram de duas em duas.
Chang-shang xuesheng liang.ge-liang.ge-de tiao
wu.
(58)
palco-em
aluno
dois.ncl-dois.ncl-de2 dançar dança
‘no palco, os alunos dançaram de 2 em 2.’
(59) Sypom-t.sypom-t Ø-na-otam-Ø
dois-adv.dois-adv 3-decl-chegar-nft
‘homens chegaram de 2 em 2.’
taso.
homem
Além disso, o tratamento dos NDists como quantificadores
distributivos não dá conta do fato de que, embora os numerais
distributivos adverbiais indiquem morfologicamente através da
reduplicação que marcam distribuição, eles não apontam o que deve ser
distribuído e qual deve ser o distribuidor (CABLE, 2014). As análises
quantificacionais também não dão conta de como a cardinalidade do
argumento a ser distribuído é determinada. A análise pluracional adotada
neste artigo resolve esse enigma uma vez que tudo o que o operador
pluracional precisará saber é que sintagmas nominais poderão ter suas
cardinalidades determinadas pelo nDist.
Vamos agora defender uma proposta que explica de que forma
as diferentes leituras são geradas composicionalmente pelos numerais
distributivos em português brasileiro, chinês mandarim e karitiana.
Assumimos que uma análise semântica que permita explicar ao efeito
de distribuição tanto sobre entidades como sobre eventos é a chave
para a análise dos numerais distributivos (CABLE, 2014). nossa tese
é a de que os numerais distributivos são, na realidade, marcadores de
pluracionalidade e que a distribuição é apenas um efeito da pluralização.
Mais especificamente, argumentamos que a pluralização de eventos
através de numerais distributivos é uma pluralização da relação entre o
evento e um de seus argumentos. Uma proposta desse tipo foi defendida
45
A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
recentemente por CABLE (2014) para os numerais distributivos em
tinglit.
A pluracionalização de eventos é descrita na literatura como
submetida a diferentes requisitos de individuação. Eventos plurais
podem ser obtidos por individuação através de coordenadas espaciais,
temporais ou a partir dos próprios participantes do evento. Alguns
marcadores pluracionais podem ser especificados para uma ou outra
dessas dimensões (CoLLInS, 2001; YU, 2003); outros, porém, permitem
mais de uma opção e podem ser interpretados através de diferentes
critérios de individuação. Em nosso caso, como se pode perceber pela
variabilidade de leituras atestadas na última seção, estamos lidando com
um marcador pluracional do segundo tipo.
A ideia geral da proposta defendida neste artigo é a de que os
numerais distributivos são operadores pluracionais adverbiais que têm
escopo sobre o sintagma verbal (vP/VP) pluralizando a relação do
evento com um de seus argumentos. As diferentes leituras são derivadas a
partir da vagueza do critério de individuação/partição do evento. Assim,
as diferentes interpretações das sentenças com numerais distributivos
não representam um caso de ambiguidade, mas sim casos de diferenças
na escolha do critério de individuação, o que encerra os três cenários
discutidos (CABLE, 2014).
Isso pode ser percebido se compararmos a sentença (60a) à sentença
(60b). Ao adicionarmos o numeral distributivo de duas em duas à sentença
(60a), o evento de crianças entrarem deixa de ser indeterminado quanto ao
número de participantes e de ocasiões ou locais. A sentença (60b) afirma
que existe um número necessariamente plural de eventos de crianças
entrarem, cada um deles contendo duas crianças.
(60) a.
b.
Crianças entraram.
Crianças entraram de duas em duas.
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Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
Para implementar formalmente nossa proposta, vamos utilizar o
operador pluracional ** que pluraliza predicados que denotam relações
entre eventos e um de seus argumentos (cf. BECK, Von STEChoW,
2006). Essas relações são de de tipo <e,<s,t>>, ou seja, são relações
entre indivíduos - tipo e - e eventos - tipo s. o tipo t representa o
tipo da sentença9. A definição apresentada em (61) diz que uma relação
pluralizada ([**R]) é verdadeira para todos os elementos que a relação
original era verdadeira (condição a) mais todas as estruturas de partetodo que podem ser construídas a partir delas (condição b).
(61) operador de Cumulação **
Considere R uma relação de tipo <e,<s,t>>. Então [**R] é a
menor relação R’ tal que:
(a) R ⊂ R’
(b) para todo <x,e> e <y,e’>:
se <x,e> ∈ R’ e <y,e’> ∈ R’, então <x+y,e+e’> ∈ R’10
A relação disponível automaticamente, se a operação de distribuição
tiver escopo sobre o VP, é a relação entre o predicado e seu argumento
interno. É relativamente consensual na literatura linguística que os
argumentos de predicados transitivos possuem um estatuto diferente.
Assim, considera-se que o argumento interno é o verdadeiro argumento
do verbo e que o argumento externo deve ser introduzido por um núcleo
funcional próprio (vP ou voiceP) (MARANTZ, 1984; KRATZER,
1996). Dessa forma, a entrada lexical de um verbo do tipo plantar teria a
representação em (62), tendo apenas o argumento interno como parte de
sua denotação. Plantar, segundo a definição abaixo, denota uma relação
entre uma entidade (x) e um evento (e).
Para uma compreender o que são tipos semânticos, veja HEIM e KRATZER (1998).
<a,b>: o par ordenado cujo primeiro elemento é a e o segundo elemento é b; x, y: variáveis
sobre entidades; e: variável sobre eventos.
9
10
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A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
(62) [plantar ]]= λx. λe. plantar (e) & Tema (e) = x
no entanto, para incluir todas as leituras disponíveis para as sentenças
investigadas neste artigo, que englobam a leitura em que o sujeito é
o argumento distribuído, será preciso considerar que a pluralização
pode recair também sobre a relação entre o evento e o seu argumento
externo. Por conta disso, vamos assumir que a relação pluralizada (R)
é estabelecida segundo um predicado Participante que engloba tanto o
argumento interno quanto o externo (CABLE, 2014). A definição deste
predicado é apresentada em (63).
(63) o predicado Participante:
Participante (e,x) se, e somente se x possui uma relação
temática com e & x é o Agente de e, ou x é o Tema de e, ou x
é a Meta de e, …
(CABLE, 2014)
Uma vez introduzidas a definição da operação de cumulação e a
definição do predicado Participante, apresentamos a seguir a denotação
do numeral distributivo adverbial que propomos para o português
brasileiro, o chinês mandarim e o karitiana e que é baseada em CABLE
(2014):
(64) [ NDist ]]= λnn [ λP<e,<s,t>> [ λx [ λe. P(x)(e) & <e,x> = σ<e’,y>.
y < x & |y| = n & e’ < e & Participante(e’,y) ]] ]11
Em palavras, a denotação acima expressa que o numeral distributivo
primeiramente procura um número natural de tipo n, que é dado pelo
nDist. Em seguida se aplica a um predicado verbal de tipo <e,<s,t>>
11
Um predicado de tipo <e,<s,t>> é uma relação entre entidades (e) e eventos (s); a < b: a é
parte de b. λ – operador formador de predicados; σ: operador soma; |n|: a cardinalidade de n
(ver ChIERChIA 2003).
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Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
- uma relação entre entidades (tipo e) e eventos (tipo s) - e devolve um
predicado de mesmo tipo com a relação entre o evento e argumento
pluralizada. Assim, a relação <e,x> é particionada resultando em uma
soma σ<e’,y>, que é uma soma de relações entre um subevento e uma
parte y. As partes do participante tem cardinalidade n. A denotação
acima é a que propomos para de n em n em português, n-cl.n-cl-(de) em
chinês e n-t.n-t em karitiana. Abaixo em (68) ilustramos a denotação do
numeral distributivo de dois em dois e de seus equivalentes em mandarim
e em karitiana.
(65) [ de dois em dois / liang-ge.liang-ge-de / sypom-t.sypom-t ]]=
[ λP<e,<s,t>> [ λx [ λe. P(x)(e) & <e,x> = σ<e’,y>.
y < x & |y| = 2 & e’ < e & Participante(e’,y) ] ] ]
Estamos assumindo que a reduplicação do numeral tem uma
contribuição semântica de pluralização dos eventos, ou seja, de
pluracionalidade. Além disso, o numeral distributivo também traz a
informação de que um dos participantes deve ser particionado de
acordo com o número natural utilizado na formação do numeral
distributivo. note que nossa proposta para os numerais distributivos é
toda baseada na operação de pluralização. Uma vez pluralizada a relação,
a distributividade é gerada como um epifenômeno, pois a pluralização
gera uma série de subeventos idênticos um ao outro.
Vamos mostrar abaixo, com o exemplo (66) do português, de que
forma essa proposta formal dá conta das leituras presentes em sentenças
com numerais distributivos.
(66) (Alguns) homens carregaram malas de três em três.
a.
Para cada homem, há um evento de ele carregar três
malas.
b. Para cada ocasião/local, há um evento de homens
carregarem três malas.
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A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
c.
Para cada ocasião/local, há um evento de três homens
carregarem malas.
Para derivar as leituras (66a) e (66b), o numeral distributivo deve se
aplicar à relação entre o predicado carregar e o argumento mala, uma vez
que o participante que está sendo particionado é o argumento interno.
O resultado dessa aplicação é apresentado em (67).
(67) [ de três em três ]]( [carregar mala ]])= [ λe. carregar(x)(e)
& mala(x) & <e,x> = σ<e’,y>. y < x & |y| = 3 & e’ < e
& Participante(e’,y) ] ] ]
Em palavras, a representação acima diz que carregar mala de três
em três denota um predicado de carregar que está em relação com um
participante do evento - mala - cujas subpartes são particionadas em
porções ou grupos de três e cada uma dessas porções ou grupos está
associada a um subevento do evento de carregar. Vejamos abaixo se essa
representação lógica de fato captura as leituras (66a) e (66b).
Para isso, vamos criar um cenário para cada uma das leituras e
verificar se a denotação acima pode representar estes cenários. Considere
o cenário I com três homens (h1, h2 e h3) em que para cada um dos
homens há um evento de ele carregar três malas e um cenário II em que
há dois homens (h1, h2) e para cada ocasião/local há um evento desses
dois homens carregarem três malas em cada subevento12.
(68) Cenário I: 1 carregamento de 3 malas por homem
Carregar
Agente /Distribuidor
Tema
e1
h1
m1+m2+m3
e2
h2
m4+m5+m6
e3
h3
m7+m8+m9
12
Evidentemente, existem outros cenários possíveis que corresponderiam à verdade da sentença.
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Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
(69) Cenário II: 1 carregamento de 3 malas por vez/local
Carregar
Distribuidor Agente
Tema
e1
t1 / l1
h1+h2
m1+m2+m3
e2
t2 / l2
h1+h2
m4+m5+m6
e3
t3 / l3
h1+h2
m7+m8+m9
note que o que esses cenários têm em comum é o fato de haver três
malas por evento de carregar. Essa é exatamente a parte expressa pela
denotação em (67) que diz que há uma relação entre um evento e um
participante e as subpartes desse participante associadas às subpartes
desse evento são particionadas de três em três. o que varia entre os
cenários I e II é exatamente o elemento sobre o qual distribuir – o
distribuidor.
note que é o distribuidor que determina como os eventos
pluracionalizados são individuados. Assumimos que a escolha do
distribuidor é contextual e não faz parte da operação realizada pelo nDist.
As diferentes opções de leitura são dadas graças à vagueza associada
à individuação dos eventos, se segundo seus participantes ou segundo
ocasiões ou locais. A semântica do nDist apenas gera uma pluralidade de
relações entre eventos e entidades com uma cardinalidade determinada.
Como a individuação é feita através da correspondência de um número
fixo e sempre igual de participantes dado pelo numeral distributivo, ela
se torna idêntica a uma distribuição strictu senso. Assim, a distribuição é
na verdade um efeito da individuação. nesse sentido, assumimos que
as leituras (66a) e (66b) não são de fato duas leituras distintas, mas dois
cenários de verificação diferentes para uma mesma leitura/interpretação,
que é representada pela mesma forma lógica derivada da pluralização da
relação entre o predicado e seu argumento interno.
Passaremos agora a analisar a leitura (66c) repetida abaixo como
(70a). Nossa proposta assume que o numeral distributivo se aplica
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A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
sempre à relação entre o evento e um de seus participantes. Quando
temos leituras como as ilustradas pelos cenários I e II, o numeral se
aplica à relação entre o evento e seu argumento interno. Quando, no
entanto, temos uma leitura como a parafraseada em (70b) abaixo, o
numeral distributivo está sendo aplicado à relação entre o evento e seu
argumento externo. Sua realização formal é explicitada em (71).
(70) a.
b.
(Alguns) homens carregaram malas de três em três.
‘Para cada ocasião/local, há um evento de três homens
carregarem malas.’
(71) [ de três em três homens carregar malas ]]= [ λe. carregar
(z)(x)(e) & homem(x) & mala (z) & <e,x> = σ<e’,y>. y
< x & |y| = 3 & e’ < e & Participante(e’,y) ] ] ]
o cenário III, apresentado em (72) abaixo, ilustra como a denotação
em (71) abarca a leitura em (66c/70b). A denotação indica que há um
evento de carregar cujos participantes (homens) devem ser particionados
de três em três.
(72) Cenário III: um carregamento por 3 homens
Carregar
Distribuidor Agente
Tema
e1
t1 / l1
h1+h2+h3
m1
e2
t2 / l2
h4+h5+h6
m2+m3
e3
t3 / l3
h7+h8+h9
m4
Vimos que, em karitiana, o numeral distributivo não pode se aplicar
a uma relação diferente da relação do evento com seu argumento
interno, pois uma leitura como a (66c/70b) não está disponível na
língua. Supomos que essa restrição pode estar vinculada à natureza do
alinhamento dos argumentos verbais na língua. Karitiana é uma língua
ergativo-absolutiva, ou seja, uma língua em que o argumento dos verbos
intransitivos se assemelha ao argumento interno de verbos transitivos, e
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Ana Müller, Marta Donazzan e Luciana Sanchez-Mendes
não a seu argumento externo (o agente). Esse alinhamento tem reflexos
nas marcas de concordância da língua que sempre concordam com o
argumento absolutivo (SToRTo, 2005). Dessa forma, o verbo tem uma
relação muito mais estreita com seu argumento absolutivo, a saber, o
sujeito transitivo e o objeto intransitivo. Português brasileiro e chinês
mandarim, por outro lado, são línguas nominativo-acusativas, em que o
sujeito transitivo apresenta uma relação próxima com o verbo.
Esta seção mostrou nossa proposta de análise para os numerais
distributivos em português, chinês e karitiana baseada na pluralização
da relação entre eventos e seus participantes. Segundo essa proposta, a
distribuição é, na realidade, um subproduto da operação de pluralização
do evento denotado pelo predicado verbal e da partição de seus
participantes. Dessa forma, evitamos regras complexas de escopo para
explicar as diferenças de leitura apresentadas pelas sentenças com nDists
nas três línguas.
Considerações finais
Este trabalho investigou o comportamento sintático e semântico dos
numerais distributivos em três línguas tipologicamente muito distintas:
o português brasileiro, o chinês mandarim e o karitiana e propôs uma
análise baseada na pluralidade de eventos para esses operadores.
Segundo nossa análise, nDists realizam uma pluralização da relação
entre o evento denotado pelo predicado verbal e um de seus participantes.
Além disso, a operação realizada pelo nDist particiona o participante
da relação em grupos com a mesma cardinalidade. nessa proposta, as
interpretações distributivas são consideradas como um epifenômeno da
operação de pluralização. As diferentes interpretações encontradas nas
sentenças com numerais distributivos descrevem, na realidade, diferentes
cenários de verificação de duas leituras básicas, ambas derivadas de uma
mesma entrada lexical para o numeral distributivo. Uma delas resulta
da pluralização da relação entre o predicado e seu argumento interno
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A Semântica dos Numerais Distributivos: Um Estudo Entre Línguas
(presente nas três línguas); a outra resulta da pluralização da relação
entre o predicado e seu argumento externo (presente em português e
chinês, línguas nominativas).
O trabalho que fizemos aplica conceitos do paradigma da semântica
formal para analisar em profundidade um fenômeno translinguístico – os
numerais distributivos – em três línguas tipologicamente distintas. nossa
análise mostra que esses operadores realizam a mesma operação nas três
línguas investigadas. Se juntamos esse resultado ao extenso levantamento
tipológico de GIL (1982a), podemos concluir que encontramos nos
nDists e na operação que realizam um excelente candidato a universal
linguístico.
Enviado em 11/05/2015.
Aceito em 10/07/2016.
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