ISSN
Impresso: 0104-0588
On-line: 2237-2083
V.26 - Nº 2
Rev. Estudos da Linguagem Belo Horizonte v. 26 n. 2 p. 525-979
abr./jun. 2018
REvista dE Estudos da liNguagEm
universidade Federal de minas gerais
REITORA: Sandra Regina Goulart Almeida
VICE-REITOR: Alessandro Fernandes Moreira
Faculdade de letras:
DIRETORA: Graciela Inés Ravetti de Gómez
VICE-DIRETOR: Rui Rothe-Neves
Editora-chefe
Editores-associados
Heliana Ribeiro de Mello
Aderlande Pereira Ferraz (UFMG)
Gustavo Ximenes Cunha (UFMG)
Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG)
Revisão e Normalização
Alda Lopes Durães Ribeiro
Heliana Ribeiro de Mello
Editoração eletrônica
Alda Lopes Durães Ribeiro
Maria Cecília de Lima
Capa
Elson Rezende de Melo
REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, v.1 - 1992 - Belo Horizonte, MG,
Faculdade de Letras da UFMG
Histórico:
1992 ano 1, n.1 (jul/dez)
1993 ano 2, n.2 (jan/jun)
1994 Publicação interrompida
1995 ano 4, n.3 (jan/jun); ano 4, n.3, v.2 (jul/dez)
1996 ano 5, n.4, v.1 (jan/jun); ano 5, n.4, v.2; ano 5, n. esp.
1997 ano 6, n.5, v.1 (jan/jun)
Nova Numeração:
1997 v.6, n.2 (jul/dez)
1998 v.7, n.1 (jan/jun)
1998 v.7, n.2 (jul/dez)
1. Linguagem - Periódicos I. Faculdade de Letras da UFMG, Ed.
CDD: 401.05
ISSN:
Impresso: 0104-0588
On-line: 2237-2083
REvista dE Estudos da liNguagEm
V. 26 - Nº 2- abr.-jun. 2018
Indexadores
Diadorim [Brazil]
DOAJ (Directory of Open Access Journals) [Sweden]
DRJI (Directory of Research Journals Indexing) [India]
EBSCO [USA]
JournalSeek [USA]
Latindex [Mexico]
Linguistics & Language Behavior Abstracts [USA]
MIAR (Matriu d’Informació per a l’Anàlisi de Revistes) [Spain]
MLA Bibliography [USA]
OAJI (Open Academic Journals Index) [Russian Federation]
Portal CAPES [Brazil]
REDIB (Red Iberoamericana de Innovación y Conocimiento Cientíico) [Spain]
Sindex (Sientiic Indexing Services) [USA]
Web of Science [USA]
WorldCat / OCLC (Online Computer Library Center) [USA]
ZDB (Elektronische Zeitschriftenbibliothek) [Germany]
REvista dE Estudos da liNguagEm
Editora-chefe
Heliana Ribeiro de Mello (UFMG)
Editores Associados
Aderlande Pereira Ferraz (UFMG)
Gustavo Ximenes Cunha (UFMG)
Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG)
Conselho Editorial
Alejandra Vitale (Universidad de Buenos Aires)
Didier Demolin (Université de la Sorbonne Nouvelle Paris 3)
Ieda Maria Alves (Universidade de São Paulo-USP)
Jairo Nunes (Universidade de São Paulo-USP)
Scott Schwenter (The Ohio State University)
Shlomo Izre'el (Tel Aviv University)
Stefan Gries (University of California)
Teresa Lino (Universidade Nova de Lisboa)
Tjerk Hagemeijer (Universidade de Lisboa)
Comissão Cientíica
Aderlande Pereira Ferraz (UFMG)
Alessandro Panunzi (Univ. Degli Studi di
Firenze, Itália)
Alina M. S. M. Villalva (Univ de Lisboa)
Aline Alves Ferreira (Univ. of California at
Santa Barbara, UCSB, EUA)
Ana Lúcia de Paula Müller (USP)
Ana Maria Carvalho (Univ. of Arizona, EUA)
Anabela Rato (University of Toronto, Canadá)
Aquiles Tescari Neto (UNICAMP)
Augusto Soares da Silva (Universidade Católica
Portuguesa, Portugal)
Beth Brait (PUC-SP / USP)
Carmen Lucia Barreto Matzenauer (UCPEL)
César Nardelli Cambraia (UFMG)
Cristina Name (UFJF)
Charlotte C. Galves (UNICAMP)
Deise Prina Dutra (UFMG)
Diana Luz Pessoa de Barros (USP / Mackenzie)
Dylia Lysardo-Dias (UFSJ)
Edwiges Morato (UNICAMP)
Emília Mendes Lopes (UFMG)
Esmeralda V. Negrão (USP)
Gabriel de Avila Othero (UFRGS)
Gerardo Augusto Lorenzino (Temple Univ.)
Glaucia Muniz Proença de Lara (UFMG)
Hanna Batoréo (Universidade Aberta, Lisboa)
Heliana Ribeiro de Mello (UFMG)
Hugo Mari (PUC-Minas)
Hilario Bohn (UCPel)
Heronides Moura (UFSC)
Ida Lucia Machado (UFMG)
Ieda Maria Alves (USP)
Ivã Carlos Lopes (USP)
Jairo Nunes (USP)
Jean Cristtus Portela (UNESP - Araraquara)
João Antônio de Moraes (UFRJ)
João Miguel Marques da Costa (Univ. Nova de
Lisboa)
João Queiroz (UFJF)
José Magalhaes (UFU)
João Saramago (Universidade de Lisboa)
José Borges Neto (UFPR)
Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP)
Laura Alvarez Lopez (Stockholm University)
Laurent Filliettaz (Université de Genève, Suiça)
Leo Wetzels (Free Univ. of Amsterdam)
Leonel Figueiredo de Alencar (UFC)
Livia Oushiro (UNICAMP)
Lodenir Becker Karnopp (UFRGS)
Lorenzo Vitral (UFMG)
Luiz Amaral (Univ. of Massachusetts Amherst)
Luiz Carlos Cagliari (UNESP)
Luiz Carlos Travaglia (UFU)
Marcelo Barra Ferreira (USP)
Márcia Cançado (UFMG)
Márcio Leitão (UFPb)
Marcus Maia (UFRJ)
Maria Antonieta Amarante M. Cohen (UFMG)
Maria Bernadete Marques Abaurre (UNICAMP)
Maria Cecília Camargo Magalhães (PUC-SP)
Maria Cecília Magalhães Mollica (UFRJ)
Maria Cândida Trindade C. de Seabra (UFMG)
Maria Cristina Figueiredo Silva (UFPR)
Maria do Carmo Viegas (UFMG)
Maria Luíza Braga (PUC/RJ)
Maria Marta P. Scherre (UnB)
Miguel Oliveira, Jr. (UFAL
Milton do Nascimento (PUC-Minas)
Monica Santos de Souza Melo (UFV)
Patricia Matos Amaral (Indiana University, EUA)
Paulo Roberto Gonçalves Segundo (USP)
Philippe Martin (Université Paris 7)
Rafael Nonato (Museu Nacional / UFRJ)
Raquel Meister Ko. Freitag (UFS)
Roberto de Almeida (Concordia University)
Ronice Müller de Quadros (UFSC)
Ronald Beline (USP)
Rove Chishman (UNISINOS)
Sanderléia Longhin-Thomazi (UNESP)
Sergio de Moura Menuzzi (UFRGS)
Seung-Hwa Lee (UFMG)
Sírio Possenti (UNICAMP)
Suzi Lima (University of Toronto / UFRJ)
Thais Cristofaro Alves da Silva (UFMG)
Tommaso Raso (UFMG)
Tony Berber Sardinha (PUC-SP)
Ubiratã Kickhöfel Alves (UFRGS)
Vander Viana (Univ. of Stirling, Reino Unido)
Vanise Gomes de Medeiros (UFF)
Vera Lucia Lopes Cristovao (UEL
Vera Menezes (UFMG)
Vilson José Leffa (UCPel)
Sumário / Contents
Investigando a robustez de uma metodologia para determinação
do valor de base da frequência fundamental
Probing the robustness of a methodology to determine the base
value of fundamental frequency
Pablo Arantes
Maria Érica Nascimento Linhares ....................................................
535
Desenvolvimento e validação do instrumento de compreensão
de expressões idiomáticas
Idioms comprehension instrument: development and validation
Maity Siqueira
Daniela Fernandes Marques ..............................................................
571
A gramática estadunidense como alteridade para a gramatização
brasileira do português no século XIX: análise da composição da
gramática Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia de Júlio
Ribeiro (1886) com base no modelo do compêndio A Grammar of
the English Language de George Frederick Holmes (1878)
The American grammar as alterity for the Brazilian grammatization
of Portuguese in the nineteenth century: analysis of the composition
of the grammar “Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia”
by Júlio Ribeiro (1886) from the model of the compendium “A Grammar
of the English Language” by George Frederick Holmes (1878)
José Edicarlos de Aquino ..................................................................
593
Duração de sílabas em fronteira de frase fonológica na produção
de sentenças sintaticamente ambíguas do português brasileiro
Syllable duration in phonological phrase boudaries in the production
of syntactically ambiguous sentences in Brazilian Portuguese
Melanie Campilongo Angelo
Raquel Santana Santos ......................................................................
633
Amostras sociolinguísticas: probabilísticas ou por conveniência?
Sociolinguistic samples: random or convenience?
Raquel Meister Ko. Freitag ...............................................................
667
Sociolinguística, teoria social e padronização linguística
Sociolinguistics, social theory and linguistic standardization
Marcos Bispo dos Santos ..................................................................
687
Algumas considerações em torno da expressão da posterioridade
no passado, no contexto de completivas de verbo
Some remarks about the expression of posteriority in the past
in the context of verbal complement clauses
Luís Filipe Cunha ..............................................................................
719
Análise de textos enciclopédicos da Simple English Wikipedia
e da Wikipedia: algumas discussões para o ensino de língua inglesa
Analysis of encyclopedic texts from Simple English Wikipedia
and Wikipedia: some discussions for English language teaching
Eduardo Batista da Silva ...................................................................
769
Distinção de ponto de articulação no Português de Belo Horizonte:
exemplos em plosivas e fricativas
Distinction of Place of Articulation in Brazilian Portuguese:
Examples in Plosives and Fricatives
Rui Rothe-Neves
Fabiana Andrade Penido ...................................................................
793
A obviação em complementação sentencial no português brasileiro
e sua relação com predicados não epistêmicos
Obviation in Sentential Complementation in Brazilian Portuguese
and its Relation to Non-epistemic Predicates
Vivian Meira .....................................................................................
843
Cláusulas de inalidade e argumentação: uma proposta de interface
gramática e interação
Purpose Clauses and Argumentation: a Proposal for the Interface
Between Grammar and Interaction
Amitza Torres Vieira
Nilza Barrozo Dias ............................................................................
879
O Zhuāngzǐ e as palavras-cálice: uma visão de linguagem
pragmática radical na China do século IV aC
Zhuāngzǐ and goblet words: a radical pragmatic view in China’s
4th century BC
Cristiano Mahaut de Barros Barreto .................................................
905
Sujeitos-Wh e movimento para posições focais em sentenças
ininitivas do português brasileiro
Wh-subjects and movement for focal positions in Brazilian
Portuguese ininitive sentences
Paulo Medeiros Junior ......................................................................
945
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
Investigando a robustez de uma metodologia
para determinação do valor de base da frequência fundamental
Probing the robustness of a methodology to determine
the base value of fundamental frequency
Pablo Arantes
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo / Brasil
pabloarantes@gmail.com
Maria Érica Nascimento Linhares
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo / Brasil
erica_linhares@hotmail.com
Resumo: Este trabalho testa a robustez de uma metodologia proposta
pelos foneticistas suecos Traunmüller e Eriksson para determinar o
valor de base, um estimador estatístico do valor típico da frequência
fundamental (F0) de um falante com base na média e no desvio-padrão
da F0. A metodologia consiste em estimar uma constante, k, que indica
quantos desvios-padrão abaixo da média de F0 do falante o valor de base
está. O método para estimar a constante foi criado e testado em amostras
de fala atuada. Veriicamos neste trabalho se a aplicação da mesma
técnica a amostras de fala não atuada produz resultados comparáveis aos
reportados por Traunmüller e Eriksson. A investigação usou amostras
de fala produzidas por falantes nativos de alemão, estoniano, francês,
inglês britânico, italiano, português brasileiro e sueco, em três estilos de
elocução: entrevista, leitura de frases e leitura de palavras. Os resultados
indicam que a variabilidade causada pelos estilos de enunciação na F0
possibilita a aplicação da metodologia a amostras de fala não atuada. Os
valores da constante derivados dos dados não atuados são próximos aos
reportados pelos autores suecos, o que indica que ela é robusta tanto do
ponto de vista dos falantes quanto das línguas.
Palavras-chave: entoação; valor de base; frequência fundamental.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.535-570
536
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
Abstract: This paper probes the robustness of Traunmüller and
Eriksson’s methodology to determine the base value of the fundamental
frequency of speech, an estimator of a speaker’s typical F0 value. The
methodology entails the estimation of a constant, k, indicating where the
base value for a speaker lies in relation to F0 standard deviations below
the F0 mean. The methodology was originally developed from acted
speech samples. Here we test if k values can be successfully obtained
from non-acted samples and how they compare to the ones reported by
Traunmüller and Eriksson. A speech corpus of speech samples differing
in speaking styles (spontaneous interview, sentence reading, word list
reading) from seven languages (English, Estonian, French, German,
Italian, Brazilian Portuguese, Swedish) was used. Results show that k
values estimated from non-acted speech are roughly the same as those
reported in Traunmüller and Eriksson’s original paper. We speculate
that deviations can be explained by the fact that some speakers make
extensive use of non-modal register.
Keywords: intonation; base value; fundamental frequency.
Recebido em 10 de dezembro de 2016
Aceito em 6 de junho de 2017
1 Introdução
Ao longo de um enunciado, a frequência fundamental da voz (F0)
varia em razão de fatores de diferentes naturezas: fatores linguísticos
de escopo amplo, como a modalidade do enunciado, ou locais, como
a composição fonética dos segmentos que formam o enunciado – cf.
a distinção entre micro e macromelodia em Hirst (2005); fatores
paralinguísticos, como o estado emocional do falante no momento da
enunciação e, ainda, fatores orgânicos, como o sexo e as idiossincrasias
do trato vocal do falante – principalmente massa e comprimento das
pregas vocais (TITZE, 1994). Essa multiplicidade de fatores diiculta a
estimativa do valor médio ou típico da F0 que um falante emprega em
suas produções faladas.
Em alguns cenários, é interessante que a estimativa de valor
típico da F0 relita fatores orgânicos mais do que fatores linguísticos.
Duas situações desse tipo são, por exemplo, a comparação de vozes
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
537
com inalidade forense (JESSEN, 2008) e o uso da voz como meio para
autenticação da identidade de um usuário em aplicações de segurança
(SCHULTZ, 2007). Em aplicações como essas, a inluência que o
conteúdo linguístico de enunciados especíicos possa vir a exercer sobre
os contornos de F0 produzidos por um indivíduo não está no centro das
atenções. O que se busca, ao contrário, é minimizar essas inluências de
forma a fazer os fatores orgânicos/biológicos ressaltarem no estimador
estatístico de valor típico.
Pode-se pensar em uma situação em que o inverso seja
verdadeiro, isto é, em que o interesse se volta para os efeitos de um
contraste linguístico sobre o comportamento da F0, independentemente
dos falantes que expressam esse contraste. Pode-se estar interessado,
por exemplo, em estabelecer o efeito da modalidade interrogativa
sobre o contorno de F0. Não interessam, nesse caso, diferenças mais ou
menos esperadas entre falantes, como o fato da F0 de homens ser em
geral menor do que a de mulheres. O importante é tentar neutralizar
essas características idiossincráticas e pôr em relevo o modo pelo
qual a variação de F0 expressa o contraste linguístico em questão.
Procedimentos de normalização da curva de F0 podem ser usados para
essa inalidade e são geralmente empregados em cenários nos quais
diferentes falantes produzem repetições de enunciados em que existe
algum contraste linguístico sob investigação. Esses procedimentos, de
forma geral, requerem o uso de uma estimativa do valor típico da F0 (em
geral a média aritmética) de cada um dos falantes que contribuíram com
enunciados para um determinado corpus (JASSEM, 1975; MAIDMENT;
LECUMBERRI, 1996; ROSE, 1991).
Ambos os cenários discutidos anteriormente deixam clara
a importância e a utilidade de estudar as características estatísticas
das curvas de F0, em especial a adequação das diferentes maneiras
de obter uma estimativa do valor típico ou tendência central
dessas amostras. No contexto da estatística descritiva, há diversos
procedimentos para determinar o valor mais representativo de uma
amostra de dados, cada qual com vantagens e limitações próprias
(KENNEY; KEEPING, 1962). A média e mediana são estimadores de
localização versáteis, no sentido de que podem ser aplicados a amostras
de qualquer natureza, desde que a variável observada possa ser medida
em uma escala intervalar ou proporcional (STEVENS, 1946). A média
aritmética é o estimador de tendência central de F0 cujo uso é mais
538
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
prevalente na literatura, apesar de sua sensibilidade à presença de
assimetria na amostra, que é bastante comum em dados de F0 (JASSEM,
1975). A mediana, mais robusta à presença de assimetrias e valores
extremos, é uma alternativa à média – cf. a proposta de De Looze e
Hirst (2014) para o uso da mediana como valor de referência para um
procedimento de normalização de contornos de F0.
O valor de base (base value ou base line em inglês) é um
estimador estatístico de localização proposto pelos foneticistas suecos
Traunmüller e Eriksson [s.d.] especialmente para amostras de F0 e leva
em conta as especiicidades típicas desse tipo de amostra. Uma dessas
especiicidades é que a variação de F0 em geral não é simétrica, como
se viu no parágrafo anterior. Quando os falantes fazem excursões
entoacionais, o movimento, na grande maioria das vezes, é ascendente,
fato que se revela nos histogramas de distribuições de F0 como uma
assimetria positiva. Eriksson (2011) sugere que o nível de F0 que pode
ser considerado típico para um falante é aquele logo acima do mínimo
necessário para manter a fonação modal. Movimentos abaixo desse nível
seriam, segundo o autor, menos comuns porque poderiam resultar em
vozeamento não modal. Em situações que fazem a variabilidade da F0
aumentar, como, por exemplo, falar com maior envolvimento emocional,
essa tendência à assimetria se mostra ainda mais claramente. O gráico
da igura 1 mostra o contorno de F0 normalizado temporalmente da
mesma frase1 lida pelo mesmo falante – um ator, simulando três níveis de
envolvimento emocional, com níveis de vivacidade crescentes. Em verde,
o contorno da elocução com um nível neutro ou típico de envolvimento;
em vermelho, baixo envolvimento e, em azul, alto grau de envolvimento.
É bastante evidente no gráico que quanto maior é o envolvimento, maior
a gama de valores explorados pelas excursões de F0. As excursões, no
entanto, têm uma direção preferencial: as curvas, independentemente
do nível de envolvimento, raramente descem abaixo de um ponto em
torno de 100 Hz, que funciona como um piso a partir do qual o falante
expande a gama tonal. Esse ponto seria o valor de base para esse falante.
Traunmüller e Eriksson ([S.d.]) desenvolvem uma metodologia
para estimar o valor de base (base value, em inglês), Fb, de uma amostra
de F0, e propõem a fórmula Fb = Fmédia – kσ, em que Fmédia e σ são,
respectivamente, o valor da média aritmética e do desvio padrão de F0
1
As gravações foram cedidas por Anders Eriksson.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
539
de uma amostra de F0, e k é uma constante determinada empiricamente.
Em um experimento com fala atuada emulando diferentes funções
paralinguísticas, Traunmüller e Eriksson ([S.d.]) obtiveram o valor de 1,5
para a constante, mas indicaram que esse valor não é ixo e pode apresentar
uma variação entre 1,1 e 2 – valores obtidos com base em conjuntos de
dados diferentes e replicações subsequentes da análise original.
Lindh e Eriksson (2007), em um estudo posterior, revisaram
o valor de k para 1,43 e sugeriram uma formulação alternativa para o
cálculo do valor de base, que se mostrou mais robusta do que a original.
Nessa formulação, chamada por eles de alternative base value, assumindo
uma distribuição normal para os dados de F0, o ponto 1,43·σ abaixo da
média corresponde, aproximadamente, ao 7º percentil da distribuição
empírica de F0.
No presente trabalho, testamos a robustez da metodologia
apresentada por Traunmüller e Eriksson ([S.d.]) para a determinação do
valor de base da frequência fundamental da voz. Para isso, ela será aplicada
a amostras de fala não atuada, produzidas por falantes de sete línguas:
alemão, estoniano, francês, inglês britânico, italiano, português brasileiro e
sueco, a im de observar se os valores da constante k estimados pela fala não
atuada são comparáveis aos obtidos pelos autores por meio da fala atuada.
Além disso, uma vez que a estimativa de k pode variar, investigaremos o
grau de sensibilidade do valor de base em função das variações de k, que
também consideramos ser uma forma de avaliar a robustez da proposta
de Traunmüller e Eriksson para determinar o valor de base.
Outros modelos presentes na literatura propõem conceitos
comparáveis ao valor de base de Traunmüller e Eriksson. Embora o
propósito central do presente trabalho seja testar a robustez do modelo
proposto por eles, discutiremos brevemente as semelhanças e diferenças
entre eles. Destacamos dois modelos em particular: Gårding (1983) e
Fujisaki e Hirose (1984). Ambos propõem modelar o contorno de F0
de frases individuais pela sobreposição de componentes que atuam em
diferentes níveis.
Em Gårding (1983), os componentes são lexicais e frasais. No
componente frasal estabelece-se a grade tonal, que funciona como um
quadro global para a frase ao deinir continuamente valores mínimos e
máximos para a variação de F0 aos quais os tons locais serão sobrepostos.
A linha inferior da grade tonal poderia ser posta em comparação ao
valor de base de Traunmüller e Eriksson. Na referência citada, não
540
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
há informações detalhadas a respeito do procedimento adotado para a
deinição dos valores da grade para cada frase a ser analisada. Nos casos
em que a linha inferior da grade tonal tem uma inclinação negativa,
no entanto, ela seria mais bem comparada à tendência de declinação
(VAISSIÈRE, 1983) do que ao valor de base.
Em Fujisaki e Hirose (1984), o contorno observável de F0
em um enunciado é considerado o resultado da sobreposição de dois
componentes – um frasal e um acentual – que modulam uma frequência
de base, valor que é considerado especíico para cada falante. Nesse
modelo, a frequência de base é comparável ao valor de base de
Traunmüller e Eriksson. Mixdorff (2015) discute diferentes abordagens
para a determinação da frequência de base. Do ponto de vista conceitual,
faria sentido considerar a frequência de base um valor relativamente
ixo para cada falante. Mixdorff, no entanto, determina a Fb do modelo
de Fujisaki e Hirose com base em informação sobre os componentes de
baixa frequência de cada curva de F0 da frase a ser modelada. Como
esse procedimento é aplicado em frases relativamente curtas, ele tem o
inconveniente de ser suscetível a variações locais, conforme se esteja
modelando frases de diferentes modalidades, por exemplo (ver igura 3.3
em MIXDORFF, 2015, p. 39). Nesse exemplo, o valor da frequência de
base da frase interrogativa extraído de forma automática não coincide com
o menor valor do contorno. Além disso, é quase 30 Hz mais alto do que
a frequência de base de uma declarativa produzida pelo mesmo falante.
Essa breve discussão mostra a importância de discutir
procedimentos de determinação de valores que podem ser postos em
equivalência tanto com valor de base de Traunmüller e Eriksson quanto
com a frequência de base de Fujisaki e Hirose. No caso dos procedimentos
apresentados em Mixdorff (2015), a determinação do valor da frequência
de base não é guiada por um critério motivado em princípios fortemente
articulados ao próprio modelo de Fujisaki ou a outra teoria de produção
da fala. No caso de Traunmüller e Eriksson, o modelo teórico mais geral
que embasa sua proposta é a teoria da modulação (TRAUNMüLLER,
1994), que é mais ampla em escopo do que o modelo de Fujisaki e Hirose.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
541
FIGURA 1 – Contornos normalizados temporalmente de uma mesma frase
interpretada em três níveis de envolvimento emocional por um ator sueco2
Fonte: Elaborado pelos autores.
2 A metodologia de Traunmüller e Eriksson
Utilizamos, neste trabalho, a metodologia descrita em Traunmüller
e Eriksson ([s.d.]) para derivação da fórmula do valor de base. Os autores
sugerem que o valor de base pode ser entendido intuitivamente como o
valor de F0 que corresponderia à situação em que o falante produzisse
fala sem nenhuma variação entoacional, isto é, com variabilidade de F0
nula, condição que corresponde ao conceito de carreador na teoria da
modulação, proposta por Traunmüller (1994). O desvio-padrão da F0
dessa situação idealizada seria zero, e a média observada reletiria a F0
típica ou preferida daquele falante. A fórmula proposta pelos autores,
mencionada na seção anterior, calcula o valor de base por meio de duas
incógnitas, Fmédia e σ, que podem ser facilmente estimadas com base em
amostras de F0, e uma constante, k. A metodologia apresentada pelos
autores no trabalho citado apresenta uma maneira empírica de chegar
A frase, em sueco, é “Nån av mammorna hann lämna honom”, e uma tradução
aproximada seria “Algumas das mães puderam deixá-lo”.
2
542
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
a um valor para k utilizando um corpus de gravações. A presente seção
apresenta os princípios fundamentais dessa metodologia.
Uma vez que amostras de fala reais sempre apresentarão alguma
variabilidade, é preciso estimar o valor de F0 que corresponderia a um
contorno perfeitamente monotônico considerando-se dados naturais. Essa
estimativa é feita por meio da aplicação da técnica de regressão linear.
Para tanto, é preciso dispor de uma série de pares de valores <média,
desvio padrão>, extraídos de um corpus de fala natural. Traunmüller e
Eriksson recorreram à fala atuada, em razão de esse estilo de enunciação
possibilitar eliciar o mesmo conteúdo linguístico sob diferentes condições
paralinguísticas, que induzem a produção de variabilidade nos contornos
de F0. Por meio da distribuição dos dados no plano cartesiano formado
pelas dimensões média e desvio-padrão, a técnica de regressão linear
possibilita estimar o valor que a média de F0 teria se o desvio-padrão
fosse nulo, o qual corresponderá ao valor de base para aquele falante.
A aplicação da regressão linear estima a inclinação da reta que
melhor descreve a relação linear entre os pontos presentes no plano. Se
usarmos a equação y = a·x + b para descrever essa reta, então a inclinação
corresponde ao parâmetro a, y corresponde aos valores de desvio padrão,
e x, aos valores da média de F0. O valor de base corresponderia ao valor
médio de F0 para o qual o desvio padrão seria nulo, o que corresponderia,
linguisticamente, à F0 que um falante produziria numa fala hipotética
perfeitamente monotônica, não inluenciada pelos diversos fatores que
produzem variação em seu valor.
Dada a reta estimada pela análise de regressão linear, o valor
de base (Fb), isto é, o ponto em que a linha de regressão cruza a linha
horizontal y = 0 pode ser obtido pela expressão Fb = −b/a.
Assumindo que Fb é um valor que se aproxima do limite inferior
da gama de valores de F0 produzida pelo falante e que a distribuição dos
valores de F0 pode ser razoavelmente aproximada por uma distribuição
normal, podemos propor a expressão Fb = Fmédia − kσ para determinar o
valor de Fb. Substituindo Fb, Fmédia e σ pelos valores obtidos empiricamente
na amostra analisada, obtém-se k. Esse valor de k pode ser usado na
expressão proposta anteriormente para determinar o valor de base de
qualquer amostra de F0. Mesmo sendo derivado com base em dados de
apenas um falante, os autores sugerem que o valor da constante k obtido
dessa maneira deve, em princípio, funcionar bem para encontrar o valor
de base em amostras de fala de qualquer falante em qualquer língua.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
543
A igura 2 é uma representação esquemática das informações da
regressão linear relevantes para a aplicação da metodologia de Traunmüller
e Eriksson. Na igura, os pontos azuis são hipotéticos pares de valores
<média, desvio-padrão> coletados em um corpus, o quadrado vermelho
está localizado no ponto que corresponde à média das médias e à média dos
desvios-padrão. A linha azul é a linha de regressão linear estimada a partir
dos pontos, a indica o coeiciente de inclinação da reta, b, o ponto em que
a reta intercepta o eixo y, e Fb é a localização do valor de base, isto é, o
ponto no eixo x (média de F0) quando o desvio-padrão (eixo y) tem valor 0.
FIGURA 2 – Representação esquemática das informações da regressão linear
relevantes para a aplicação da metodologia de Traunmüller e Eriksson
Fonte: Elaborado pelos autores.
3 Materiais e métodos
3.1 Materiais de fala
O material de fala usado no experimento vem do corpus coletado
no âmbito do projeto internacional “A typology for word stress and speech
rhythm based on acoustic and perceptual considerations”, coordenado
pelo professor Anders Eriksson da Universidade de Estocolmo, Suécia.3
3
O autores deste trabalho não têm relação com o projeto.
544
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
O corpus compreende dados de sete línguas: alemão, estoniano, francês,
inglês britânico, italiano, português brasileiro e sueco. As amostras das
línguas individuais foram coletadas por pesquisadores integrantes do
projeto em países em que cada uma das línguas é falada. Em virtude
da uniformidade dos procedimentos de coleta, o corpus possibilita a
comparação interlinguística do fenômeno de interesse em línguas com
características diversas. São contempladas seis línguas da família indoeuropeia (três do ramo românico e três do ramo germânico) e uma da
família urálica (estoniano). Além da variedade de línguas, outra razão para
a escolha desse corpus para uso no projeto é o fato de as amostras de
fala variarem em termos do estilo de elocução. A literatura mostra que a
variação no estilo de elocução é um dos fatores que causam variabilidade
em medidas de longo termo de F0, como a média e o desvio-padrão
(ESKÉNAZI, 1993; HOLLIEN; HOLLIEN; JONG, 1997; LLISTERRI,
1992). Essa variabilidade é importante no contexto do presente trabalho
porque possibilita a aplicação da regressão linear como método para
estimar como o valor médio de F0 varia em função do desvio-padrão,
um dos fundamentos da metodologia de Traunmüller e Eriksson ([S.d.]),
descrita na seção 2. Três estilos são coletados: entrevista, leitura de frases
e leitura de palavras. No estilo entrevista, um entrevistador (em geral um
membro da equipe do projeto) fez perguntas ao participante sobre assuntos
como trabalho, estudos e outros interesses do entrevistado, visando obter
respostas não planejadas e de extensão variável. Para o estilo leitura de
frases, um membro da equipe do projeto selecionou frases ditas pelo
participante na entrevista, transcreveu-as ortograicamente e pediu que
o participante as lesse em voz alta em uma sessão de gravação realizada
alguns dias após a entrevista. No estilo leitura de palavras, o procedimento
consistiu na escolha de uma palavra de cada frase presente na etapa
anterior e na sua apresentação ao participante na forma de uma lista a ser
lida. Foram analisadas amostras de fala de dez falantes de cada língua,
cinco do sexo masculino e cinco do feminino, uma amostra de cada estilo,
totalizando 210 amostras de fala (= 7 línguas ×10 falantes × 3 estilos).
3.2 Extração dos dados
A primeira parte da análise consistiu na extração dos valores de
F0 de cada uma das 210 amostras de fala do corpus. A extração se deu em
duas etapas: na primeira, o contorno de F0 foi extraído por meio do uso
de um script do programa Praat (BOERSMA, 2001) escrito pelo primeiro
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
545
autor, que otimiza a escolha dos parâmetros loor e ceiling do algoritmo
de extração de F0 do Praat. Essa heurística de otimização, proposta por
Hirst (2011), tem o objetivo de diminuir os erros de estimação de F0
mais comuns produzidos pela função To Pitch, baseada na técnica da
autocorrelação; na segunda etapa, os arquivos Pitch gerados na fase
anterior foram corrigidos manualmente. Nessa fase, um segundo script
foi usado para auxiliar a identiicação dos erros não eliminados na etapa
anterior. O script identiica duas amostras de F0 sucessivas, separadas por
80 milissegundos ou menos, em que o primeiro valor é 1,5 vezes maior
ou menor do que o segundo. Nos pontos do contorno de F0 indicados pelo
script como suspeitos de conter erro de extração, o trecho do oscilograma
correspondente foi examinado visualmente para que fosse possível decidir
se os valores de F0 estimados pelo Praat naquele trecho correspondiam à
periodicidade identiicada visualmente na forma de onda.
Os valores de F0 foram mantidos na escala física Hertz (Hz) nas
análises posteriores. Por conta de características típicas de amostras de
F0 mencionadas na Introdução, como o fato de serem frequentemente
assimétricas e não se conformarem a uma distribuição normal, é comum
que dados de F0 sejam convertidos para uma escala não linear, como a
escala de semitons. A decisão de manter os dados na escala Hertz, neste
trabalho, foi tomada por uma questão de replicabilidade, uma vez que
essa foi a escala usada por Eriksson nos trabalhos realizados no curso
“Paralinguistic aspects of speech production and perception”, realizado no
Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas
entre os dias 8 e 10 de abril de 2014. Nesse curso, os autores do presente
trabalho foram treinados nos aspectos práticos da aplicação da metodologia
que Eriksson e Traunmüller apresentam em seu trabalho seminal. Eriksson
nos informou em comunicação pessoal que, nos materiais de fala usados no
referido curso, a adoção da escala Hertz ou de semitons produz diferenças
negligenciáveis nos valores estimados da constante k.
3.3 Veriicação da congruência entre variação na média e no desvio-padrão
Na etapa de análise seguinte, um outro script do Praat processou
os contornos corrigidos de F0 das 210 amostras, para extrair os valores
de média e desvio-padrão de cada um. Esses valores foram usados para
veriicar um pressuposto da metodologia dos autores suecos. Para que a
técnica de regressão linear possa ter sucesso na estimativa do valor da
constante k, é necessário que haja variação nas médias e nos desvios-
546
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
padrão dos três estilos de fala e que a variação no desvio-padrão seja
diretamente proporcional à variação na média, isto é, o estilo com maior
valor de média deve apresentar também o maior valor de desvio-padrão e
vice-versa. Caso isso não ocorra, a reta estimada pela regressão pode ter
um coeiciente de inclinação nulo ou negativo, o que resulta em um valor
negativo para a constante k. Valores negativos para k não fazem sentido,
pois resultariam em valores de base localizados acima da média de F0,
contrariando a intuição que fundamenta a proposição do valor de base.
FIGURA 3 – Diferenças (em semitons) entre a média e o desvio-padrão dos estilos
entrevista e leitura de frases e entrevista e leitura de palavras
Fonte: Elaborado pelos autores.
A igura 3 mostra um panorama da relação entre a variação nos
parâmetros média e desvio-padrão nos três estilos de elocução nas setes
línguas do corpus. A igura mostra as diferenças entre os valores da média
e do desvio-padrão das amostras de fala tanto do estilo leitura de frases
quanto leitura de palavras em relação à média do estilo narrativa para os
dez falantes de cada língua. A diferença entre os estilos foi calculada entre
os valores de média e desvio-padrão expressos na escala de semitons. Esse
procedimento foi adotado para que não houvesse grandes discrepâncias
entre os dados dos falantes do sexo feminino e masculino. As falantes do
sexo feminino são identiicadas pela cor vermelha, e os masculinos, pela
cor azul. Os cinco falantes de cada sexo são identiicados por símbolos
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
547
diferentes, conforme a legenda. Os pontos abaixo da linha horizontal
pontilhada correspondem aos casos em que os valores para os estilos
leitura de frases ou palavras (indicados por marcas no eixo horizontal)
são menores do que os da narrativa para o falante em questão. Os pontos
acima da linha correspondem a casos em que o valor do estilo narrativa
é menor do que aquele ao qual ele é comparado.
A observação da igura 3 mostra que a inluência dos estilos
de elocução sobre a variabilidade da média e do desvio-padrão de F0
não é uniforme entre os falantes e entre as línguas. Os falantes m4 do
português, m3 do sueco e m1 do inglês são exemplos em que diferenças
no desvio-padrão entre os estilos vão na mesma direção das diferenças
na média – no caso dos dois primeiros, frases > entrevista e palavras >
entrevista e, no caso do último, frases < entrevista e palavras < entrevista.
Essa coniguração favorece a aplicação da metodologia de Traunmüller e
Eriksson ([s.d.]). Há casos em que a diferença entre os estilos observada
na média se dá em sentido oposto no desvio-padrão, como ilustram os
falantes f2 do italiano e m4 do estoniano: frases > entrevista e palavras
> entrevista nas médias, mas frases < entrevista e palavras < entrevista
nos desvios-padrão.
No que diz respeito à inluência da língua sobre os valores de
média e desvio-padrão de F0, a igura 3 mostra que, no português, o estilo
entrevista tem médias e desvios-padrão maiores do que os outros dois
estilos. No francês e no italiano, por outro lado, predominam casos em
que o estilo entrevista tem as médias mais baixas, embora esse padrão
não se relita no desvio-padrão. A tabela 1 apresenta a porcentagem de
falantes em cada língua cuja variação de desvio-padrão é diretamente
proporcional à da média. Para esse cálculo, as comparações entrevistafrases e entrevista-palavras foram agrupadas. A inspeção da tabela
conirma que o português foi a língua na qual a estratégia de manipulação
do estilo de elocução foi mais bem-sucedida no sentido de produzir dados
adequados à aplicação da metodologia a ser testada. Entre os estilos, a
porcentagem é de 57% tanto nas comparações entrevista-frases quanto
nas comparações entrevista-palavras. Entre os sexos, a porcentagem é
de 51% para as mulheres e 63% para os homens. Os dados de todas as
línguas foram agrupados para a realização do cálculo nas comparações
entre estilos e sexos.
548
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
TABELA 1 – Porcentagem de falantes cuja variação
entre a média e o DP se dá no mesmo sentido
Língua
Alemão
Estoniano
%
60
55
Francês
Inglês
Italiano
Português
Sueco
55
55
55
75
60
Fonte: Elaborada pelos autores.
Considerando todas as 140 diferenças pareadas (sexo e língua
agrupados), os 60 casos de incongruência entre a variação na média e
no desvio-padrão dividem-se igualmente entre as comparações frasesentrevista e palavras-entrevista. Em 82% dos casos em que não houve
congruência, isso se deveu ao fato de o estilo entrevista apresentar média
menor do que o outro estilo do par, embora seu desvio-padrão fosse o
maior. O português apresenta o maior índice de congruência. Em uma
publicação que analisa o mesmo corpus (ARANTES; LINHARES,
2017) e procura mostrar o efeito da língua, estilo de elocução e sexo dos
falantes sobre descritores estatísticos de longo termo de F0, observa-se
que o português é a única língua na amostra para a qual o estilo entrevista
teve valores de média estatisticamente maiores do que os outros estilos.
Estoniano, francês e italiano mostram a tendência inversa, signiicativa
do ponto de vista estatístico. Em termos do desvio-padrão, por outro lado,
o estilo entrevista apresenta valores mais altos do que os demais estilos,
e essa diferença é estatisticamente signiicativa em todas as línguas.
Uma das explicações para a incongruência entre o comportamento
da média e do desvio-padrão, especialmente o caso em que a média da
entrevista não é a maior entre os estilos, mas o desvio-padrão é, pode ser
a presença de registro vocal não modal nas amostras de fala. A igura 4
mostra o histograma dos valores de F0 da amostra do estilo entrevista da
falante f2 do italiano. Os valores de F0 estão expressos na escala OMe
(Octave Median), proposta por De Looze e Hirst (2014). Os valores
de F0 em Hz (fHz) são transformados para a escala OMe (fOMe) por meio
da fórmula fOMe = log2(fHz/fmed), onde fmed é o valor da mediana de F0 do
falante, estimada com base em todos os valores presentes no contorno
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
549
a ser convertido.4 O histograma indica que a amostra de F0 é bimodal.5
A parte da distribuição centrada no valor -1 está uma oitava abaixo da
mediana, que para essa falante é 207 Hz. A inspeção do histograma
ajuda a entender que a bimodalidade tem como efeito baixar a média da
amostra (183 Hz para o contorno todo, 228 Hz excluindo da amostra de
F0 os valores abaixo de -0.35 OMe), mas aumentar seu desvio-padrão
(48 Hz se toda a amostra for considerada, 25 Hz se apenas os valores
acima de -0.35 OMe forem considerados). No caso dessa falante, quase
38% de todos os valores de F0 da amostra estão bastante abaixo do valor
mediano, concentrados em um uma região quase uma oitava abaixo da
mediana da amostra completa.
FIGURA 4 – Histograma da distribuição de F0 (na escala OMe)
da falante italiana f2, estilo entrevista
Fonte: Elaborado pelos autores.
4
A utilidade dessa escala está no fato de que ela usa um valor considerado típico
para o falante – a mediana – como fator de normalização para todos os valores de um
determinado contorno e expressa a variabilidade de F0 em torno do valor de referência
em termos de oitavas. Essa operação possibilita identiicar facilmente os valores que
estão muito acima ou abaixo do valor da mediana nos histogramas.
5
Bimodal no sentido estatístico e não no sentido de voz bitonal, que apresenta
simultaneamente vibrações de duas frequências diferentes.
550
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
3.4 Extração da constante k
Para estimar o valor da constante k usando a metodologia de
Traunmüller e Eriksson é preciso dispor de uma distribuição de valores
de média e desvio-padrão de F0. Esses valores foram gerados a partir
dos contornos de F0, cuja extração é descrita na seção 3.2, segundo o
procedimento descrito a seguir. Os arquivos de som foram segmentados
manualmente para identiicar os trechos de fala, e as marcações foram
armazenadas em arquivos TextGrid do programa Praat. Nas amostras
do estilo entrevista, foram marcados os trechos de fala entre pausas
maiores do que 300 ms. Nos estilos leitura de frases e leitura de palavras,
foram marcadas as frases e palavras individuais. Um script do Praat foi
desenvolvido para selecionar aleatoriamente trechos marcados no arquivo
TextGrid até que a duração acumulada desses trechos atinja pelo menos
60 segundos. O contorno de F0 dos trechos individuais selecionados é
concatenado, e a média e o desvio-padrão do contorno resultante são
calculados. A operação é repetida dez vezes para cada estilo de fala, de
modo que são obtidos para cada falante trinta pares <média, desviopadrão>. O procedimento de regressão linear é aplicado aos trinta pontos
da amostra, e o valor da constante k é determinado pelos parâmetros
relevantes, conforme explicado na seção 2.
Dado o componente aleatório no procedimento descrito no
parágrafo anterior, decidimos investigar se as estimativas de k para cada
falante produzidas por sua aplicação é estável. Para tanto, o procedimento
descrito no parágrafo anterior foi repetido dez vezes para cada falante, de
modo que para cada um deles obtivemos dez estimativas para o valor de k.
4 Resultados e discussão
A igura 5 mostra os gráicos de dispersão e a curva de regressão
linear ajustada aos dados dos 10 conjuntos coletados para o falante f1 do
português. É possível ver que, apesar de haver alguma variabilidade, a
distribuição dos dados em cada gráico de dispersão é bastante similar, o
que indica que a estimativa de k é estável para esse falante em particular. Os
valores de k variam entre 0,73 e 0,84, com coeiciente de variação de 0,4%.
Os valores altos do coeiciente de determinação (r2) da regressão linear –
entre 0,88 e 0,95 – indicam um bom ajuste da reta em relação aos pontos.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
551
FIGURA 5 – Gráicos de dispersão (média e desvio-padrão da F0 em Hz)
com reta de regressão linear superposta de 10 amostras da falante brasileira f1
Fonte: Elaborados pelos autores.
Em contraste, a igura 6 ilustra o caso de uma falante, f2 do
português, cujo padrão de variação da média e do desvio-padrão não
é adequado à aplicação da metodologia de estimação da constante k. É
possível observar que a reta de regressão ora tem inclinação positiva
(repetições 1 e 6, por exemplo), ora, inclinação negativa (repetições 3
e 7, p.e.) e, em alguns casos, aparenta ter inclinação nula (repetição 9).
Conforme é possível observar na igura 3, a falante apresenta diferenças
na média entre os estilos (entrevista maior do que leitura de frases e
palavras), embora o desvio-padrão seja basicamente o mesmo para os
três estilos. Essa característica não faz dessa falante uma boa candidata
à aplicação da metodologia de estimativa de k por meio da análise de
regressão. Podemos ver isso na imensa variabilidade dos valores de k
que a técnica estima para esse falante: mínimo de -11,36 e máximo de
38,89, com coeiciente de variação de 140%. Os valores de r2 são bastante
baixos, variando entre 0,002 e 0,26.
552
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
FIGURA 6 – Gráicos de dispersão (média e desvio-padrão da F0 em Hz)
com reta de regressão linear superposta de 10 amostras da falante brasileira f2
Fonte: Elaborados pelos autores.
A igura 7 mostra a distribuição dos valores da constante k
estimados para as sete línguas do corpus. Os falantes estão dispostos no
eixo horizontal, e os valores estimados para a constante k aparecem no
eixo vertical. Cada ponto corresponde a uma estimativa do valor de k.
Em todas as línguas há falantes, como f2 do português, para os quais a
aplicação da metodologia resulta em valores de k negativos, que não fazem
sentido e são omitidos. O número de falantes que se enquadram nesses
casos variou entre um no italiano e quatro no francês e no estoniano.6 O
valor médio de k para a amostra total é 2,24 com intervalo de coniança de
95% em torno da média de ± 0,13. A tabela 2 lista a média, o intervalo de
coniança em torno da média e o coeiciente de variação das estimativas
do coeiciente k para cada língua.
A título de comparação, podemos observar que, nos dados mostrados na igura 2 de
Traunmüller e Eriksson ([s.d.], p. 8), três dos dez falantes não apresentam variação
congruente entre média e desvio-padrão de F0, uma proporção semelhante à que
observamos nas amostras analisadas aqui.
6
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
553
FIGURA 7 – Valores da constante k em função dos falantes e da língua
Fonte: Elaborado pelos autores.
554
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
TABELA 2 – Média, intervalo de coniança de 95% e coeiciente
de variação da constante k para cada língua
Língua
Média
Intervalo de coniança
CV (%)
Alemão
2,8
± 0,32
47
Estoniano
2,14
± 0,27
48
Francês
2,23
± 0,4
72
Inglês
1,68
± 0,36
82
Italiano
2,71
± 0,43
69
Português
1,54
± 0,17
48
Sueco
2,48
± 0,3
51
Fonte: Elaborada pelos autores.
Para estabelecer a signiicância da variável independente língua
sobre o valor de k, recorremos à aplicação de um teste estatístico de
hipótese. A amostra não cumpre o pressuposto da homogeneidade de
variância, necessário para o uso de um teste paramétrico, conforme
testado pelo teste Fligner-Killeen: [Χ2 (6) = 17,3 p < 0,01]. O teste não
paramétrico Kruskal-Wallis foi usado no lugar da análise de variância
e indica um efeito estatisticamente signiicativo do fator língua sobre
o valor médio de k [Χ2 (6) = 77 p < 0,001]. Análise das comparações
pareadas indica que o português e o inglês, as línguas com os menores
valores médios de k, formam um grupo homogêneo. As demais línguas
não se agrupam de nenhuma maneira particular. Os valores do português
e do inglês são os que mais se aproximam dos valores pontuais 1,5,
usado em Traunmüller e Eriksson ([s.d.]), e 1,47, sugerido por Lindh e
Eriksson (2007). A maioria das médias concentra-se em uma faixa muito
próxima à indicada por Traunmüller e Eriksson ([s.d.]), que vai de 1,1 a
2. Considerando o limite inferior dos intervalos de coniança em torno
da média, alemão, italiano e sueco icam acima do limiar de 2.
Na igura 8, apresentamos os valores de r2, estimados nas dez
amostras de cada falante, agrupados por língua. Os falantes estão
dispostos no eixo horizontal e os valores de r2 no eixo vertical. Quanto
mais próximo de 1 é o valor de r2, melhor é o ajuste da reta estimada por
meio da técnica de regressão linear aos dados da amostra.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
FIGURA 8 – Valores do coeiciente de determinação (r2)
das análises de regressão linear em função dos falantes e da língua
Fonte: Elaborado pelos autores.
555
556
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
Como é possível observar, o sueco e o italiano são as línguas
que apresentam as maiores proporções de falantes com valores de r2
acima de 0,75, que indica um bom ajuste da reta estimada através da
técnica de regressão linear. A inspeção conjunta das iguras 7 e 8 sugere
que os falantes que apresentam valores baixos de r2 tendem a apresentar
maior variabilidade nos valores de k. A correlação entre o valor médio
de r2 por falante e o desvio-padrão de k calculado por falante é de -0,74,
o que indica uma relação forte entre as duas variáveis. Uma análise
de regressão simples foi usada para predizer os valores médios de r2
com base nos valores médios de desvio-padrão de k. Uma equação de
regressão signiicativa foi encontrada [F(1, 47) = 58,7 p < 0,001], com
coeiciente de determinação (r2) de 0,54. O aumento de uma unidade de
desvio-padrão no valor de k implica redução de aproximadamente 40%
no r2 da regressão linear.
A amostra de valores de k foi analisada por meio da razão F (F-ratio,
em inglês) de maneira semelhante à empregada por Nolan(NOLAN,
1993, 2002). O propósito é analisar a variabilidade da estimativa de k
considerando dois pontos de vista, os falantes e as línguas, e estabelecer
a relação entre a variabilidade intrafalante e interfalante, de um lado, e a
variabilidade intralinguística e interlinguística, de outro. A estatística F
expressa numericamente a razão entre a variância das médias dos falantes/
línguas e a média das variâncias dos falantes/línguas. Seguimos aqui as
indicações apresentadas em Nolan (2002) para o cálculo da razão F. A
chave de interpretação do valor da razão F é que valores menores do que
1 indicam que a variabilidade intrafalante ou intralinguística é maior do
que a variabilidade interfalante ou interlinguística.
Do ponto de vista dos falantes, a razão F calculada separadamente
para cada língua apresenta os seguintes valores: inglês (9,364), estoniano
(1,037), francês (6,169), alemão (19,111), italiano (5,631), português
(3,683), sueco (13,178) e média geral 8,31. Esses resultados sugerem que
a variabilidade interfalante é maior do que a variabilidade intrafalante,
isto é, os diferentes falantes em cada língua do corpus, com a possível
exceção dos falantes estonianos, variam mais entre si do que variam
relativamente a si mesmos. A inluência dos falantes sobre as estimativas
de k não é surpresa, uma vez que já assinalamos que nem todos os falantes
produzem dados que permitem a aplicação da técnica de regressão linear.
Do ponto de vista das línguas, a razão F tem o valor de 0,127,
que indica que a variabilidade intralinguística das estimativas de k é
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
557
maior do que a variabilidade interlinguística. Esse resultado sugere
que a variabilidade das estimativas de k é relativamente uniforme entre
as línguas analisadas. Interpretamos isso como evidência de robustez,
uma vez que a metodologia produz resultados similares em termos
de variabilidade a despeito das diferenças existentes entre as línguas
presentes no corpus estudado.
5 Esforço vocal e frequência fundamental
O modelo que embasa a proposição da metodologia de estimação
do valor da constante k testado neste trabalho supõe que o nível de esforço
vocal se mantenha estável e que a variação na F0 seja motivada por outros
fatores. Em parte dos experimentos descritos em Traunmüller e Eriksson
([s.d.]), a simulação de diferentes graus de envolvimento ou atitude por
parte de atores foi a estratégia usada para tentar obter mudanças na F0 e
controlar o nível de esforço vocal. No presente trabalho, elegemos uma
estratégia para induzir variação na F0, a mudança no estilo de elocução,
que possibilita um grau de controle menor do que o uso de atores em uma
situação de atuação. A variação em F0 devida aos diferentes estilos de
elocução pode interagir de forma complexa com outros fatores, entre os
quais, o aumento no esforço vocal. É possível, portanto, que, em nossos
dados, parte da variação observada na média e no desvio-padrão de F0
dos diferentes estilos não seja causada por um ajuste ativo, mas seja uma
consequência indireta de variações no esforço vocal. Com a inalidade
de saber se os níveis de esforço vocal dos três estilos de fala presentes
no corpus afetam a F0, izemos uma análise em que correlacionamos os
valores do esforço vocal com os valores de média e desvio-padrão dos
contornos de F0. Para uma revisão da literatura a respeito da inluência
do esforço vocal sobre a F0 consultar Jessen, Koster, Gfroerer ( 2005).
Adotamos como medida para detectar aumento no esforço vocal a
diminuição na inclinação espectral calculada com base no espectro médio
de longo termo (long-term average spectrum, em inglês, LTAS, em forma
abreviada). Para a obtenção do LTAS com base na análise dos arquivos de
áudio do corpus, usamos o algoritmo de extração proposto em Boerma;
Kovacic (2006) e implementado no Praat na função To Ltas (pitchcorrected). A inclinação do espectro LTAS foi calculada relativamente
a duas bandas. A inferior compreendeu valores de frequência entre 0 e
1,5 vezes o valor da F0 média no contorno correspondente ao arquivo de
558
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
áudio, e a banda superior incluiu frequências entre aquele valor e 5 kHz.
Em seguida, foram realizados separadamente testes de regressão linear
simples para predizer os valores de média ou desvio-padrão da F0 com
base nos valores do esforço vocal (inclinação do espectro de LTAS). Os
parâmetros mais relevantes para a presente análise são a inclinação da reta
de regressão e o coeiciente de determinação (r2), isto é, a porcentagem de
variância dos dados de média ou desvio-padrão explicada pela variância
no esforço vocal. Os dados de falantes do sexo feminino e masculino
foram analisados separadamente. Os dados das diferentes línguas foram
analisados em conjunto e também separadamente.
Não foram encontradas evidências fortes nos dados do corpus
entre mudanças no esforço vocal e mudanças na média de F0. A inclinação
do modelo de regressão não é signiicativamente diferente de zero para
nenhum dos dois sexos. Os valores de r2 são 0,012 e 0,007 para o modelo
dos dados dos falantes femininos e masculinos, respectivamente. A
análise separada das línguas mostra que a inclinação da reta de regressão
só é signiicativamente diferente de zero no caso dos falantes do francês
– inclinação positiva de 2,5 (r2 = 0,5) para mulheres e 1,6 (r2 = 0,26)
para homens – e do estoniano – inclinação é negativa para os falantes
femininos (-4,6, r2 = 0,21) e positiva para os masculinos (1,69, r2 =
0,24). Esses resultados indicam que o impacto do esforço vocal sobre as
mudanças na F0 é bastante limitado e, no caso do estoniano, a inluência
se dá em direções opostas para falantes femininos e masculinos.
O esforço vocal inluencia em alguma medida a variabilidade
de F0. O aumento no esforço vocal parece provocar aumento no desviopadrão, mas apenas nos dados das falantes do sexo feminino. A inclinação
do modelo de regressão tem o valor de 0,89 e é signiicativamente
diferente de zero, embora o r2 seja baixo (0,12). A análise individual das
línguas mostra que, para os falantes masculinos do inglês, a inclinação
da reta de regressão é signiicantemente diferente de zero (1,05, com r2
= 0,59). A inclinação da reta de regressão é signiicativamente diferente
de zero nos modelos estimados com base nas amostras das falantes do
sexo feminino do estoniano (1,87, r2 = 0,36) e do francês (1,65, r2 = 0,6).
O francês é a língua em que o aumento no esforço vocal parece
inluenciar de maneira mais consistente o aumento no valor típico
e a variabilidade da F0. No estoniano, a inluência atua de maneira
heterogênea nas falantes do sexo feminino: níveis maiores de esforço
vocal têm o efeito de abaixar a média e aumentar o desvio-padrão. Em
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
559
termos da magnitude do efeito, as inclinações da reta de regressão não
nulas do ponto de vista estatístico tendem a não ser muito elevadas,
concentrando-se entre 0,9 e 2,5.
Uma análise de variância de dois fatores tendo como variáveis
independentes o sexo dos falantes e os estilos de fala e como variável
dependente a inclinação do espectro de LTAS mostra um efeito
signiicativo (considerando um nível de rejeição da hipótese nula de 5%)
do sexo [F(1, 204) = 14,1 p < 0,001] mas não do estilo de fala [F(2, 204)
= 2,3 ns] ou da interação entre os dois [F(2, 204) = 2,3 ns]. A inclinação
média do espectro LTAS das falantes do sexo feminino é -10,06 dB e a
dos falantes masculinos é -8,16 dB. A inclinação média dos diferentes
estilos apresenta-se da seguinte forma: entrevista (-9,68 dB), leitura de
frases (-9,75 dB) e leitura de palavras (-10,75 dB) para os falantes do
sexo feminino e entrevista (-7,21 dB), leitura de frases (-8,44 dB), leitura
de palavras (-8,82 dB) para os falantes do sexo masculino.
Os resultados, em seu conjunto, sugerem que há uma correlação
entre o esforço vocal e a F0, embora limitada a duas línguas entre as sete
presentes no corpus. Os resultados da análise de variância, no entanto,
indicam que a variação no esforço vocal é estável entre os estilos de fala.
Do ponto de vista do desenho do presente experimento, esse resultado
é importante, já que indica que a variação observada em F0 entre os três
estilos de fala é, em boa medida, independente da variação no esforço
vocal observada nos dados. Jessen e colegas (2005) notam que os falantes
podem diferir em sua resposta quando apresentados a condições que
induzem o aumento no esforço vocal, e que, mesmo em casos em que há
um aumento mensurável acusticamente no esforço, o impacto disso na
F0 pode ser variável entre eles. Não é possível elaborar uma explicação
para a diferença signiicativa no nível de esforço vocal observada entre
os sexos, detectada nos dados de nosso corpus com base nas resenhas e
dados apresentados em Jessen; Koster; Gfroerer ( 2005).
6 Sensibilidade do valor de base em relação à constante k
O valor estimado para a constante k varia entre os falantes de
uma mesma língua e entre línguas diferentes. Por isso, é importante ter
uma ideia da variabilidade causada na estimativa do valor de base pelo
uso de diferentes valores possíveis de k. Para esse im, izemos uma
simulação em que o valor de k foi sistematicamente variado, e o valor
560
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
de base correspondente foi calculado. Utilizamos nessa simulação os
contornos de F0 de todos os falantes e todos os estilos da amostra de
dados do português brasileiro. Para cada contorno, o valor de base da F0
foi calculado por meio da fórmula Fb = Fmédia - kσ, variando o valor de
k entre 0,8 e 2,2, com passos intermediários em 1,27 e 1,73. Os valores
mínimo e máximo estão próximos aos limites da faixa de variabilidade
encontrada nas análises reportadas na seção 1.
A igura 9 mostra os resultados dessa variação, separados pelos
estilos de fala. O sexo dos falantes é codiicado pela cor, e os diferentes
falantes, por símbolos diferentes. No eixo horizontal, estão os quatro
valores de k testados e, no eixo vertical, o valor de base para cada falante,
em Hertz.
FIGURA 9 – Variação do valor de base (Hz) em função
do valor da constante k (formulação original)
Fonte: Elaborado pelos autores.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
561
Replicamos o teste com a formulação alternativa do valor de
base sugerida por Lindh; Eriksson (2007), que estima aquele valor
como um determinado quantil da amostra de F0. A constante k pode ser
entendida como a indicação de quantos desvios-padrão abaixo do valor
da média está localizado o valor de base. Se assumirmos que os valores
de F0 seguem uma distribuição normal centrada em zero e com desviopadrão unitário, a função pnorm(-k) da linguagem de programação R
retorna o valor cumulativo de probabilidade da distribuição normal
compreendido no intervalo [-∞, -k]. Esse valor, que chamaremos de
q, pode ser interpretado como o quantil que corresponde ao valor de
base. Seguindo esse método, o valor de base foi estimado como sendo
os quantis 0,01, 0,04, 0,1 e 0,21. Na formulação alternativa do valor de
base, Lindh e Eriksson (2007) sugerem o uso do quantil 0,074 para a
determinação do valor de base. A tabela 3 a seguir mostra os valores de
k selecionados para a simulação e o correspondente valor de q.
TABELA 3 – Quantis correspondentes ao valor de base
e sua relação com os valores de k
Valor de k
Quantil (q) correspondente
ao Fb
0,8
0,21
1,27
0,1
1,73
0,04
2,2
0,01
Fonte: Elaborada pelos autores.
A igura 10 mostra os resultados da variação do valor de base
segundo a formulação alternativa, separados pelos estilos de fala. O
sexo dos falantes é codiicado pela cor, e os diferentes falantes são
codiicados por símbolos diferentes. No eixo vertical está o valor de
base, em Hertz, para cada falante, e, no eixo horizontal, os valores do
quantis que correspondem à localização do valor de base (conforme
mostrado na tabela 3).
562
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
FIGURA 10 – Variação do valor de base (Hz) em função
do quantil (formulação alternativa)
Fonte: Elaborado pelos autores.
Para os propósitos em que o uso do valor de base pode ser mais
útil, robustez não signiica que os valores retornados pela fórmula sejam
estritamente invariantes para um mesmo falante, mas sim a preservação
das diferenças entre os valores calculados pela fórmula para os diferentes
falantes.
A tendência geral, dedutível por meio da fórmula, é que quanto
maior k, menor será o valor de Fb. Observe-se o painel central da igura 9,
que corresponde à leitura de frases. Ali, os valores de Fb obtidos quando
563
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
k é igual a 0,8 estabelecem uma ordenação entre os falantes: f1 > f5 >
f3 > f2 > f4 > m2 > m3 > m5 > m1 > m4. Apesar de haver diferenças
nos valores absolutos do Fb para cada falante, a ordenação observada
anteriormente permanece inalterada quando o valor de k sobe para
1,27; uma única alteração aparece quando k é igual a 1,73 (m3 = m5).
Finalmente, quando k é igual a 2,2 há uma inversão (m5 > m3). Pelo
menos no estilo leitura de frases, veriicamos que o cálculo do valor de
base segundo a formulação original é relativamente robusto em relação
às possíveis variações de k no sentido que deinimos anteriormente: a
ordenação dos dez falantes em termos de seu valor de base ica quase
inalterada, não importando qual seja o valor deinido para k.
Considere-se, agora, para o painel central da figura 10: o
mesmo tipo de análise nos leva a observar que, para parte dos falantes,
a ordenação tende a permanecer estável a despeito das mudanças no
quantil que corresponde ao Fb, com exceção dos falantes f2, f5 e m3,
que, em algum momento, apresentam mudança brusca na passagem de
um valor de quantil a outro.
Para poder quantiicar o grau de robustez das duas formulações
do cálculo de Fb, a original e a alternativa, além dos diferentes estilos
de fala, determinamos, para cada estilo e para cada valor de k ou q, a
distância euclidiana entre os valores de Fb de todos os falantes, tomados
em pares. O desvio-padrão das distâncias será então tomado como
um indicador de robustez, considerados os diversos agrupamentos de
variáveis independentes (formulação do valor de base, estilo de fala e
sexo dos falantes e os valores de k e q). Menores valores de desvio-padrão
indicarão maior robustez.
TABELA 4 – Desvio-padrão (Hz) das distâncias entre o valor
de base dos falantes, agrupado pelos estilos de fala
Estilo de fala
Original
Alternativa
Entrevista
35,3
36,8
Frases
30,6
32,8
Palavras
33,5
33,5
Fonte: Elaborada pelos autores.
564
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
TABELA 5 – Desvio-padrão (Hz) das distâncias entre o valor
de base dos falantes, agrupado pelo sexo dos falantes
Sexo do falante
Original
Alternativa
Feminino
21,2
30,6
Masculino
18,5
14,3
Fonte: Elaborada pelos autores.
TABELA 6 – Desvio-padrão (Hz) da distância entre
o valor de base dos falantes, agrupado pelos valores de k e q
Valores de k
DP
Valores de q
DP
0,8
30,4
0,21
32,2
1,27
30,7
0,1
32,5
1,73
31,3
0,04
33,8
2,2
33
0,01
33,2
Fonte: Elaborada pelos autores.
TABELA 7 – Desvio-padrão (Hz) da distância entre o valor de base
dos falantes, agrupado pela interação entre estilos de fala e sexo dos falantes
Estilo de fala
Entrevista
Frases
Palavras
Sexo do falante
Original
Alternativa
Feminino
24,8
37,2
Masculino
20,9
13,6
Feminino
13,1
27
Masculino
16
16
Feminino
19
24,9
Masculino
14
11,8
Fonte: Elaborada pelos autores.
As duas formulações parecem ter o mesmo grau de robustez
quando se compara o fator estilo de fala, uma vez que o desvio-padrão das
distâncias entre os falantes não varia muito em razão dessa variável. O sexo
dos falantes apresentou uma relação de interação complexa: a formulação
original parece ser mais robusta para as mulheres, e a alternativa, para os
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
565
homens; além disso, de forma geral as duas formulações parecem mais
robustas quando aplicadas aos dados dos falantes masculinos. A Tabela
6, que mostra a interação entre estilo de fala e sexo do falante mostra
que a diferença de robustez mais pronunciada entre os sexos se dá na
formulação alternativa, em especial no estilo entrevista.
Observando-se a figura 10, percebe-se que alguns falantes
apresentam comportamento mais discrepante em relação aos demais em
termos da mudança no valor de base em razão da variação no valor do
quantil associado a ele. No estilo entrevista, os falantes f3, f4, f5 e m3
têm mudanças mais abruptas. No estilo leitura de frases, os falantes f2,
f5 e m3 devem ser destacados e, no estilo leitura de palavras, os falantes
f2 e f5. A observação dos histogramas dos contornos produzidos por
esses falantes em cada estilo indica o uso sistemático do registro não
modal de vozeamento, semelhante ao padrão mostrado na igura 4. Por
conta disso, quando o valor do quantil que corresponde ao valor de base
assume valores mais baixos, como 0,04 ou 0,01, o Fb estimado começa
a estar localizado possivelmente na região de registo não-modal, bem
mais baixo do que os valores típicos do registro modal.
6 Conclusão
O principal objetivo do presente trabalho é testar a robustez da
metodologia desenvolvida e apresentada por Traunmüller e Eriksson
([S.d.]) para a determinação do valor de base da F0. O valor de base
seria característico de cada falante, em tese invariante ou pelo menos
bastante robusto a diversos fatores que afetam a F0 se determinado com
base em uma amostra suicientemente extensa. Na proposta dos autores,
a fórmula para a determinação do valor de base depende do valor da
média e desvio-padrão do falante, além de uma constante k, cujo valor
é determinado empiricamente. No trabalho mencionado anteriormente,
os autores apresentam uma metodologia para a estimação da constante,
baseada na aplicação de regressão linear a dados de média e desvio-padrão
de F0. Nos experimentos descritos pelos autores, lança-se mão de fala
produzida por atores, que simulam o efeito de fatores paralinguísticos,
como, por exemplo, diferentes graus de envolvimento em relação aos
enunciados produzidos. Esse recurso é usado para produzir enunciados
idênticos do ponto de vista segmental, mas variáveis do ponto de vista
da média e do desvio-padrão da F0. Uma característica fundamental que
566
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
as amostras de F0 precisam exibir para que a metodologia seja aplicada é
proporcionalidade direta entre a variabilidade nas médias e nos desviospadrão, isto é, que as amostras com maior média sejam também as que
apresentem os maiores desvios-padrão.
No presente trabalho, testamos se o uso de diferentes estilos de
elocução de fala não atuada é capaz de produzir o tipo de variabilidade
na média e no desvio-padrão dos contornos de F0 necessário para a
aplicação da metodologia para estimar o valor da constante k. Além
desse fator, testamos ainda o papel de falantes e línguas como fonte de
variabilidade na estimação de k. Para tanto, nossa investigação analisa
dados produzidos por 70 falantes de sete línguas diferentes.
Os resultados reportados aqui indicam que a estratégia de usar
diferentes estilos de elocução para conseguir variabilidade na média e
no desvio-padrão dos contornos de F0 produz padrões que possibilitam
a aplicação bem-sucedida da metodologia. O uso de registro não modal,
bastante expressivo em termos quantitativos no caso de alguns dos
falantes do corpus, no entanto, é um fator que parece em parte explicar
os casos em que mudanças na média e no desvio-padrão não estão
correlacionados. Em estudos posteriores pode ser interessante propor um
critério objetivo para eliminar dos contornos os trechos de vozeamento
não modal e veriicar o impacto dessa eliminação nos resultados. Casos
discutidos na seção 5, em que o nível de esforço vocal é uma fonte
de variabilidade nos níveis médios e/ou desvio-padrão de F0, também
podem ser a razão para as incongruências que diicultam a aplicação da
metodologia testada aqui.
De modo geral, os valores de k estimados com base nas amostras
de fala não atuada são bastante próximos àqueles que os autores suecos
reportam em seu trabalho e que foram derivados de amostras de fala
atuada. Portanto, pode-se dizer que a técnica é robusta ao uso de fala não
atuada. Os resultados apresentados na seção 4 mostram que os valores da
constante k estimados usando a metodologia de Traunmüller e Eriksson
são, em alguma medida, dependentes dos falantes. Não consideramos
que essa dependência em relação aos falantes seja uma limitação severa
da metodologia. Como sua aplicação depende da existência de uma
dependência linear entre variação da média e do desvio-padrão de F0,
esse pressuposto precisa ser atendido. As diferenças observadas entre
falantes podem ser associadas em grande parte aos casos em que a
regressão linear tem um valor de r2 baixo e ocorrem nos dados dos falantes
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
567
com maior prevalência de uso do registro não modal. A variabilidade
no comportamento dos falantes pode estar relacionada com o fato de a
estratégia de usar estilos de elocução diferentes para induzir mudanças
na média e no desvio-padrão da F0 não possibilitar, por seu caráter mais
naturalístico, um controle tão grande da produção vocal como o que é
possível conseguir por meio do uso da fala atuada.
Em termos da robustez interlinguística, os resultados indicam
a existência de diferenças na média de k entre as línguas, que, embora
signiicativas do ponto de vista estatístico, não são de grande extensão.
O valor médio de k de quatro das sete línguas está dentro do intervalo
[1,1 2] relatado por Traunmüller e Eriksson ([s.d.]). Além disso, os
resultados da análise da razão F reportados na seção 4 mostram que a
variabilidade interlinguística das estimativas de k não é maior do que a
variabilidade intralinguística.
Finalmente, os resultados da simulação apresentados na seção
6 mostram que o próprio valor de base é uma medida que é bastante
robusta às variações no valor da constante k. Dado um grupo de falantes,
sua ordenação baseada no valor de base é pouco alterada pelo valor de k
que se escolha usar. Uma vez que um dos usos mais interessantes para o
valor de base é como um estimador do valor típico ou característico de
um falante, essa quase invariância nas distâncias entre o valor de base
dos falantes é uma propriedade interessante.
Agradecimentos
Os autores agradecem ao professor Anders Eriksson, da Universidade de
Estocolmo, pela cessão do corpus analisado no trabalho e por discussões
a respeito dos resultados. A segunda autora agradece à FAPESP pela
Bolsa de Iniciação Cientíica (processo 2014/21161-5).
Referências
ARANTES, Pablo; LINHARES, Maria E. N. Efeito da língua, estilo
de elocução e sexo do falante sobre medidas globais da frequência
fundamental. Letras de Hoje, PUCRS, v. 52, n. 1, p. 26-39, 2017. Doi:
http://dx.doi.org/10.15448/1984-7726.2017.1.25419
BOERSMA, Paul. Praat, a system for doing phonetics by computer. Glot
International, Elsevier, v. 5, n. 9/10, p. 341-345, 2001.
568
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
BOERSMA, Paul; KOVACIC, Gordana. Spectral characteristics of
three styles of Croatian folk singing. Journal of the Acoustical Society
of America, Acoustical Society of America, v. 119, p. 1805-1816, 2006.
Doi: https://doi.org/10.1121/1.2168549.
DE LOOZE, Céline; HIRST, Daniel J. The OMe (Octave-Median) scale:
A natural scale for speech melody. 2014, Dublin: [s.n.], 2014. p. 910-914.
ERIKSSON, Anders. Aural/Acoustic vs. Automatic Methods in Forensic
Phonetic Case Work. In: NEUSTEIN, A.; PATIL, H. A. (Org.). Forensic
Speaker Recognition: Law Enforcement and Counter-terrorism. [S.l.]:
Springer, 2011. p. 41-70.
ESKÉNAZI, Maxine. Trends in Speaking Styles Research. 1993, Berlin:
ISCA, 1993. p. 501-509. Disponível em: <http://www.isca-speech.org/
archive/eurospeech_1993>.
FUJISAKI; HIROSE, K. Analysis of voice fundamental frequency
contours for declarative sentences of Japanese. Journal of the Acoustic
Society of Japan, Acoustical Society of Japan, v. 5, n. 4, p. 233-242, 1984.
Doi: 10.1250/ast.5.233
GÅRDING, Eva. A Generative Model of Intonation. In: CUTLER,
A.; LADD, D. R. (Org.). Prosody: Models and Measurements. Berlin:
Springer-Verlag, 1983. p. 11-25.
HIRST, Daniel J. Prosodic aspects of speech and language. In: BROWN,
K. (Org.). Encyclopedia of Language and Linguistics. [S.l.]: Elsevier
Science, 2005. v. X. p. 167-178.
HIRST, Daniel J. The Analysis by Synthesis of Speech Melody: from
Data to Models. Journal of Speech Sciences, Unicamp, v. 1, n. 1, p. 5583, 2011.
HOLLIEN, Harry; HOLLIEN, Patricia; JONG, Gea De. Effects of three
parameters on speaking fundamental frequency. Journal of the Acoustical
Society of America, Acoustical Society of America, v. 102, n. 5, p. 29842992, 1997. Doi: https://doi.org/10.1121/1.420353
JASSEM, Wiktor. Normalisation of F0 curves. In: FANT, GUNNAR;
TATHAM, M. A. A. (Org.). Auditory Analysis and Perception of Speech.
London: Academic Press, 1975. p. 523-530.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
569
JESSEN, Michael. Forensic Phonetics. Language and Linguistics
Compass, Wiley Online Library, v. 2, n. 4, p. 671-711, 2008. Doi:
10.1111/j.1749-818X.2008.00066.x
JESSEN, Michael; KÖSTER, Olaf; GFROERER, Stefan. Inluence of
vocal effort on average and variability of fundamental frequency. Speech,
Language and the Law, Equinox Publishing, v. 12, n. 2, p. 174-213, 2005.
Doi: 10.1558/sll.2005.12.2.174
KENNEY, J. F.; KEEPING, E. S. Mathematics of Statistics. [s.l.]: Van
Nostrand, 1962. p. 50-54.
LINDH, Jonas; ERIKSSON, Anders. Robustness of Long Time Measures
of Fundamental Frequency. 2007, Antwerp, Belgium: [s.n.], 2007.
p. 2025-2028.
LLISTERRI, Joaquim. Speaking styles in speech research. 1992, Dublin,
Ireland: [s.n.], 1992.
MAIDMENT, J. A.; LECUMBERRI, M. L. Pitch analysis methods for
cross-speaker comparison. 1996, Delaware: [s.n.], 1996.
MIXDORFF, Hansjörg. Extraction, Analysis and Synthesis of Fujisaki
Model Parameters. In: HIROSE, KEIKICHI; TAO, JIANHUA (Org.).
Speech Prosody in Speech Synthesis: Modeling and generation of prosody
for high quality and lexible speech synthesis. Berlin: Springer, 2015.
p. 35-47.
NOLAN, Francis. Intonation in speaker identiication: an experiment on
pitch alignment features. Forensic Linguistics, International Association
for Forensic Phonetics and Acoustics, v. 9, n. 1, p. 3-21, 2002. Doi:
10.1558/sll.2002.9.1.1
NOLAN, Francis. The Phonetic Bases of Speaker Recognition.
Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1993.
ROSE, Philip. How effective are long term mean and standard deviation
as normalisation parameters for tonal fundamental frequency? Speech
Communication, Elsevier, v. 10, n. 3, p. 229-247, 1991. Doi: https://doi.
org/10.1016/0167-6393(91)90014-K
SCHULTZ, Tanja. Speaker Characteristics. In: MüLLER, CHRISTIAN
(Org.). Speaker Classiication I: Fundamentals, Features, and Methods.
[S.l.]: Springer, 2007. p. 47-74.
570
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018
STEVENS, S. S. On the theory of scales of measurement. Science,
American Association for the Advancement of Science, v. 103, Issue
2684, p. 677-680, Jun. 7, 1946. Doi: 10.1126/science.103.2684.677
TITZE, Ingo. Principles of voice production. Englewood Cliffs: Prentice
Hall, 1994.
TRAUNMüLLER, Hartmut. Conventional, biological and environmental
factors in speech communication: a modulation theory. Phonetica, Karger
Publishers v. 51, p. 170-183, 1994. Doi:10.1159/000261968
TRAUNMüLLER, Hartmut; ERIKSSON, Anders. The frequency range
of the voice fundamental in the speech of male and female adults. [s.d.].
Disponível em: <http://www2.ling.su.se/staff/hartmut/f0_m&f.pdf>.
VAISSIÈRE, J. Language-Independent Prosodic Features. In: CUTLER,
A.; LADD, D. R. (Org.). Prosody: Models and Measurements. Berlin:
Springer-Verlag, 1983. p. 53-66.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
Desenvolvimento e validação do instrumento
de compreensão de expressões idiomáticas
Idioms comprehension instrument: development and validation
Maity Siqueira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul / Brasil
maity.siqueira@ufrgs.br
Daniela Fernandes Marques
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul / Brasil
daniemarques@hotmail.com
Resumo: As expressões idiomáticas são um tipo recorrente de linguagem
igurada, fundamental para o entendimento de diferentes tipos de discurso.
Este artigo o objetivo de apresentar o processo de desenvolvimento e de
validação de um instrumento de compreensão de expressões idiomáticas.
O trabalho foi desenvolvido pela perspectiva teórica da Linguística
Cognitiva e estruturado conforme as seguintes etapas, consagradas
em Psicometria: procedimentos teóricos, experimentais e analíticos.
Foram consideradas as seguintes dimensões das expressões idiomáticas
utilizadas nos itens: familiaridade, estrutura sintática, complexidade
semântica e composicionalidade. A primeira foi veriicada por meio de
um teste psicolinguístico, e as outras foram controladas. O estudo resultou
em uma nova ferramenta de avaliação da compreensão de linguagem
igurada, que poderá ser utilizada com indivíduos de diferentes faixas
etárias, de populações clínicas e não clínicas.
Palavras-chave: expressões idiomáticas; linguagem figurada;
desenvolvimento de teste psicolinguístico; validação de teste psicolinguístico.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.571-591
572
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
Abstract: Idioms are a recurring type of figurative language,
fundamental to the understanding of different discourse types. This
article aims to present the development and validation process of
an idiom comprehension test. The study was conducted considering
the Cognitive Linguistics approach and was organized according to
three well stablished steps in Psychometrics: theoretical, experimental
and analytical procedures. The following dimensions of idioms were
considered: familiarity, syntactic structure, semantic complexity and
compositionality. The irst was veriied by a psycholinguistic test and the
others were controlled. The study resulted in a new assessment tool of
igurative language comprehension, which can be used with individuals
from different age groups, in clinical and non-clinical populations.
Keywords: idioms; igurative language; psycholinguistics’ development
test; psycholinguistics validation test.
Recebido em 10 de dezembro de 2016.
Aceito em 21 de abril de 2017.
1 Introdução
A compreensão de expressões idiomáticas (EI), fenômeno da
linguagem igurada, é frequente nas nossas trocas conversacionais diárias,
em diversos tipos de discurso. A habilidade de compreender expressões
iguradas, portanto, é fundamental para que uma pessoa se comunique
bem. Considere uma situação em que um amigo diz para o outro “o
meu vizinho bateu as botas”. Um falante de português brasileiro que
conheça os signiicados das palavras ‘bater’ e ‘botas’, não entenderá o
signiicado idiomático da combinação dessas palavras, a menos que já
tenha aprendido seu sentido igurado, que é ‘morrer’. Uma vez que se
conheça o signiicado de uma expressão, é fácil entender um enunciado
que contenha esse tipo de expressão, tanto contextualizado quanto fora
de contexto. Deinir o que é uma expressão idiomática, no entanto, não
é uma tarefa simples. Na literatura sobre EI são encontradas diferentes
deinições, norteadas por diversos enfoques teóricos.
As expressões idiomáticas têm sido tradicionalmente deinidas
como expressões linguísticas cujo signiicado não pode ser depreendido
somente pela soma dos seus constituintes. Entretanto, reduzir o conceito
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
573
de idiomaticidade ao de não composicionalidade, ou seja, à soma do
signiicado dos itens lexicais, explica expressões opacas como bater as
botas, mas não é suiciente para deinir o fenômeno.
A Linguística Cognitiva sugere que outras dimensões, além
da composicionalidade, contribuem para a compreensão de uma EI.
Gibbs (1994) e Kövecses (2006) defendem a ideia de um continuum de
signiicação e sustentam que as EI não são necessariamente arbitrárias
e podem ser motivadas, indo de expressões bastante opacas (bater
as botas) a outras mais transparentes (cozinhar em fogo brando).
Em relação à arbitrariedade das EI, uma das maiores contribuições
da Linguística Cognitiva para o estudo desse fenômeno linguístico,
na verdade, foi chamar a atenção para o fato de que muitas EI são
oriundas de mapeamentos conceituais metafóricos, ou seja, EI não são
necessariamente aleatórias. As expressões idiomáticas soltar fogo pelas
ventas e dar um gelo, assim como tantas outras expressões do português
brasileiro, por exemplo, atualizam linguisticamente a metáfora conceitual
INTENSIDADE DE EMOçÃO É CALOR. Expressões oriundas de
mapeamento conceituais como esse, de fato, podem apresentar um maior
grau de transparência, o que pode ser explicado justamente pelo fato
de atualizarem mapeamentos percebidos pelas pessoas (ainda que não
necessariamente de modo consciente).
Nunberg, Sage Wasow (1994) airmam que a deinição tradicional
é principalmente sintática e não contempla aspectos semânticos e
pragmáticos do fenômeno. A esse respeito, Cacciari e Levorato (1989)
airmam que expressões idiomáticas, quando apresentadas dentro de
um contexto, são mais bem compreendidas do que fora dele, uma vez
que o contexto tem informações semânticas que auxiliam na inferência
do signiicado apropriado das expressões. Cabe ressaltar que o contexto
pode ser ainda mais importante para EI opacas e não familiares, das quais
o signiicado não pode ser derivado somente da análise semântica das
palavras que o compõe (CAIN; OAKHILL; LEMMON, 2005).
A deinição operacional aqui adotada parte da perspectiva da
Linguística Cognitiva e trata expressões idiomáticas como construções
figuradas convencionalizadas, consideravelmente fixas com duas
ou mais palavras, que têm uma função primariamente discursiva e
que podem apresentar idiossincrasias (LANGLOTZ, 2006). Nessa
perspectiva, Langlotz (2006) sistematiza as seguintes dimensões, que
servem como parâmetro para a deinição das expressões idiomáticas: o
574
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
status gramatical (grau de convencionalização ou de familiaridade), a
forma (complexidade, rigidez sintática, morfossintática e lexical de uma
construção) e o signiicado (a não composicionalidade propriamente
dita). Esse autor reforça a ideia de haver um continuum nos parâmetros
de signiicação, uma vez que propõem que esses parâmetros podem
estar mais ou menos presentes em determinadas EI. Talvez seja a grande
variedade observada nesses parâmetros o que diiculta a elaboração de
uma deinição mais precisa e impede classiicações estanques.
A operacionalização desses conceitos nas pesquisas experimentais
encontradas sobre o tema tem sido feita com as expressões apresentadas
aos participantes em diferentes formatos, em apresentações isoladas, em
sentenças ou histórias. Diferentes pesquisadores utilizaram instrumentos
com opções de respostas abertas e de múltipla-escolha – estas últimas na
forma escrita ou pictórica. A escolha das EI levaram em conta parâmetros
(ou combinações de parâmetros) tais como transparência e opacidade
(NORBURY, 2004), familiaridade (KEMPLER; SIDTIS; MARCHMAN;
BATES, 1999; QUALLS; LANTZ; PIETRZYK; BLOOD; HAMMER,
2004), familiaridade e opacidade (PAPAGNO; TABOSSI; COLOMBO;
ZAMPETTI, 2004; PAPAGNO; CAPORALI, 2007), frequência
(HILLERT, 2004) e contexto (CAIN; TOWSE; KNIGHT, 2009; CAIN;
OAKHILL; LEMMON, 2005; LEVORATO; ROCH; NESI, 2007).
Embora a maioria dos estudos tenha referido o cuidado com
aspectos citados anteriormente, nenhum deles referiu um cuidado com
a validação dos itens antes de sua utilização. No Brasil, encontramos
somente uma tarefa para avaliação de expressões idiomáticas, que compõe
a Bateria Montreal de Avaliação da Comunicação (FONSECA; SALLES;
PARENTE, 2008). Entretanto, nessa bateria, as expressões idiomáticas
foram tratadas como metáforas, fenômenos que a Linguística Cognitiva
diferencia. As EI utilizadas nos itens da Bateria MAC sob o rótulo de
metáfora foram as seguintes: pôr a mão na massa, rodar a baiana,
pisar em ovos, chorar sobre o leite derramado. Apesar de existirem
instrumentos disponíveis em outras línguas, não há como simplesmente
traduzir ou adaptar instrumentos que testem a compreensão de expressões
idiomáticas, uma vez que qualquer tratamento dado ao fenômeno deve
envolver considerações sobre língua e cultura. Além disso, é importante
considerar variáveis como a frequência de uso das expressões idiomáticas
averiguadas, a transparência dessas expressões e a diferenciação entre
metáforas, metonímias, provérbios e expressões idiomáticas; e inclusão
ou não de contexto.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
575
No intuito de possibilitar a avaliação de diferentes tipos de
linguagem igurada, está sendo desenvolvido pelo grupo METAFOLIA,
do PPG em Letras da UFRGS, o Teste de Compreensão de Linguagem
Figurada, composto de tarefas de avaliação que incluem não só expressões
idiomáticas, mas também metonímias, metáforas, provérbios e ironia. Uma
vez que a linguística cognitiva enfatiza o caráter distinto de cada um desses
fenômenos, entende-se que seja necessário avaliá-los separadamente.
Este artigo trata exclusivamente da tarefa que envolve o fenômeno das
expressões idiomáticas e apresenta as etapas de construção e validação do
Instrumento de Compreensão de Expressões Idiomáticas, que fará parte
do teste mais abrangente de compreensão da linguagem igurada.
Esse instrumento foi desenvolvido tendo como base um teste
já validado, O Instrumento de Compreensão de Metáforas Primárias
(SIQUEIRA, 2004), considerando o referencial teórico apresentado
e seguindo etapas rigorosas já consagradas na área da psicometria,
conforme o modelo proposto por Pasquali (2010), baseado em tarefas e
métodos especíicos que seguem uma ordem temporal pré-determinada e
subsequente. O modelo é composto de três etapas distintas, denominadas
procedimentos teóricos, empíricos ou experimentais e analíticos ou
estatísticos, conforme descrito no Método, a seguir.
2 Método
2.1 Participantes
Esta pesquisa foi constituída por 557 participantes, selecionados
por conveniência, considerando todas as fases de coleta de dados. A
primeira fase, referente aos procedimentos teóricos, contou com 285
participantes (m=31,7; dp=13,9). A amostra foi composta de alunos
e funcionários da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Esses
participantes preencheram uma escala Likert de familiaridade com as
expressões idiomáticas elencadas para o estudo. O tamanho da amostra
dessa primeira fase foi calculado considerando os seis itens pesquisados,
supondo um percentual de familiaridade de no mínimo 70% na soma
das categorias 4 (bastante familiar) e 5 (totalmente familiar) na escala
(Anexo I) e uma margem de erro de 5%.
A segunda fase, de realização do estudo piloto, contou com 10
participantes adultos (m=36,1 e dp=10,7). Já a terceira fase, de validação
576
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
do instrumento, foi composta de 262 participantes, divididos em três
grupos (132 crianças, 58 adolescentes e 72 adultos). As crianças tinham
entre 5 anos e 11 anos e 11 meses (m=7,4; dp=1,3), os adolescentes
tinham entre 12 anos e 17 anos e 11 meses (m=13,9; dp=1,4), e os adultos
eram maiores de 18 anos (m=41,6; dp=15,6). A linha de corte para a
classiicação etária foi feita conforme as diretrizes da American Academy
of Pediatrics. A seleção da amostra e a coleta dos dados da segunda e
terceira fases foram realizadas em escolas e universidades públicas e
particulares do município de Porto Alegre. Os grupos de crianças e de
adolescentes foram constituídos pelos alunos e o de adultos, pelos pais
dos alunos das mesmas escolas, além de alunos e funcionários de uma
universidade pública. Como critério de inclusão estabeleceu-se que os
participantes deveriam ser falantes nativos de português brasileiro. O
critério de exclusão foi a presença de comorbidades sensoriais e/ou
cognitivas e de queixa de diiculdade de aprendizagem referidas pela
escola, no caso de crianças e adolescentes.
2.2 Procedimentos
A construção do instrumento seguiu o modelo preconizado na
área da psicometria por Pasquali (2010). Esse modelo é composto de três
etapas distintas, denominadas (i) procedimentos teóricos, (ii) empíricos
ou experimentais e (iii) analíticos ou estatísticos. Para realização dos
procedimentos teóricos, o primeiro passo foi a deinição do objeto de
estudo e sua conceitualização, realizada por meio da pesquisa na literatura
pertinente. Como o objeto de estudo em questão (a linguagem igurada)
não pode ser medido diretamente, foi selecionado, com base em sua
deinição teórica (a perspectiva da Linguística Cognitiva) foi selecionado
um atributo de interesse (a compreensão de expressões idiomáticas).
Ainda revisando a literatura, definiu-se que as expressões
idiomáticas são caracterizadas pelas seguintes dimensões: familiaridade,
estrutura sintática, complexidade semântica e composicionalidade. Entre
essas dimensões, deiniu-se que apenas a da familiaridade precisaria
ser veriicada para a elaboração dos itens, uma vez que todas as outras
poderiam ser controladas. A estrutura sintática foi controlada por meio da
elaboração de sentenças com as seguintes características: (i) apresentam
estruturas simples, constituídas por somente uma oração; (ii) estão na voz
ativa; (iii) seguem o modelo sujeito-verbo-objeto; (iv) são constituídas
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
577
por sujeito formado por nomes próprios comuns; (v) têm núcleo do
sujeito simples e (vi) têm o verbo (transitivo direto) na terceira pessoa
do singular.
A complexidade semântica foi controlada pela seleção de
palavras comuns da língua portuguesa. Todas as palavras utilizadas
(por exemplo, gato, chá, tempestade, tomar, comprar e sair), além de
bem conhecidas, são palavras facilmente entendidas. Por im, o nível de
composicionalidade foi controlado pela seleção de expressões idiomáticas
não-composicionais. Uma evidência do caráter não-composicional das
expressões selecionadas é o fato de nenhuma das sentenças utilizadas
poder ser transformada em voz passiva sem perder o sentido igurado.
Com base nessas dimensões, o construto pôde ser operacionalizado, ou
seja, pôde ser transformado em itens mensuráveis.
Neste estudo, um outro aspecto controlado na seleção dos itens
foi a existência de EI derivadas de metáforas conceituais. Partindo da
ideia de que um mapeamento metafórico poderia facilitar a compreensão
de uma EI – mesmo quando apresentada descontextualizada – só foram
consideradas EI que, aparentemente, não são atualizações linguísticas
de metáforas conceituais.
As possíveis expressões que constituiriam o instrumento foram
selecionadas por meio de um brainstorming com sete integrantes do
grupo de pesquisa das autoras do estudo. Entre essas expressões, foram
pré-selecionadas seis para compor o instrumento, considerando o critério
de frequência, as dimensões descritas em expressões não derivadas de
metáforas conceituais. A frequência foi determinada pelo maior número de
ocorrências encontradas em uma plataforma (Google) de busca na internet.
Após essa pré-seleção, a im de corroborar a pertinência dos itens na
comunidade linguística, foi elaborada uma escala Likert de familiaridade.
A escala continha as seis expressões, seguidas por cinco opções de escolha,
em que 1 era “nada familiar” e 5 era “totalmente familiar”.
Com base nisso, as expressões foram transformadas em
sentenças. Para que tivessem sua compreensão facilitada, foi tomado
não só o cuidado de utilizar palavras semanticamente simples, mas de
parear gramaticalmente todas as sentenças para que tivessem a mesma
estrutura e de compô-las com o menor número possível de palavras. Essas
medidas foram observadas considerando possíveis aplicações futuras do
instrumento em crianças pequenas e/ou em populações clínicas. Além
disso, optou-se por selecionar expressões opacas, não composicionais
578
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
e apresentá-las descontextualizadas, ou seja, em frases que não ajudam
o participante a inferir o signiicado igurado das expressões. A frase
Alice tomou um chá de cadeira, por exemplo, não remete ao fato de que
ela esperou muito). Essa decisão metodológica de construir o item com
sentenças fora de contexto foi tomada seguindo o modelo de Siqueira
(2004) no Instrumento de Compreensão de Metáforas Primárias, já
validado, que avalia outro tipo de linguagem igurada.
Ainda seguindo o modelo de Siqueira (2004), para cada item
foi elaborada uma pergunta aberta e uma pergunta fechada. O uso de
uma estrutura equivalente (em relação ao número de itens, ao tipo
de sentença, ao tipo de perguntas feitas e à ausência de contexto) foi
escolhido em razão de o primeiro instrumento, de compreensão de
metáforas, apresentar evidências de validade na forma da avaliação. O
fator determinante para essa escolha é que esse teste já está validado com
populações clínicas (De LEON; SIQUEIRA; PARENTE; BOSA, 2007) e
não clínicas (SIQUEIRA; LAMPRECHT, 2007), no Brasil e nos Estados
Unidos (SIQUEIRA; GIBBS, 2007), com participantes de diferentes
faixas etárias (crianças, adolescentes e adultos) e culturas (SIQUEIRA;
PARENTE; GIL, 2009). Assumiu-se, portanto, que essa estrutura também
seria adequada para avaliar a compreensão de expressões idiomáticas,
um fenômeno aim às metáforas.
A análise de construto foi realizada por meio da apreciação de
três juízes, especialistas na área. Os juízes receberam os itens juntamente
com uma explicação sobre os objetivos do teste e um questionário para o
julgamento do instrumento. No questionário, constavam perguntas sobre
as dimensões do construto, ou seja, sobre a familiaridade, a estrutura
sintática, as características semânticas, a composicionalidade das
sentenças, bem como sobre a adequação das questões abertas e fechadas.
Considerando-se observações dos juízes, as sentenças e as questões foram
ajustadas e procedeu-se à aplicação do instrumento piloto.
Para veriicar a validade aparente (a compreensão dos itens),
essa versão do instrumento foi aplicada em dez participantes que
representavam diferentes estratos (em termos de grau de escolaridade)
da população-alvo. Subsequentemente, levando-se em conta aspectos
reportados pelos aplicadores, foram feitos pequenos ajustes (tal como a
eliminação de artigos deinidos antes dos nomes próprios, no início das
frases). Ao inal dessa etapa, foi considerada concluída a elaboração do
instrumento e realizada sua veriicação no que se refere à validade de
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
579
conteúdo. As seis expressões, as sentenças que constituem os itens, as
perguntas e as diretrizes para sua correção estão descritas na Tabela 1.
TABELA 1 – Instrumento de Compreensão de Expressões
Idiomáticas e diretrizes para correção
EI
Fase de treino
X. Quebrar um
galho
1. Comprar gato
por lebre.
2. Meter os pés
pelas mãos.
3. Fazer
tempestade em
copo d’água.
4. Sair como um
par de vasos.
5. Ser a metade
da laranja.
6. Tomar um chá
de cadeira.
DIRETRIZES PARA
CORREçÃO
Luisa quebrou um
O que a Luisa fez para a Carol? a) Ajudou, fez algo que a
galho para a Carol.
Ela ajudou ou atrapalhou a
outra precisava ou queria.
Carol?
b) Ajudou
EI 1
a) Que aconteceu com ele?
a) Foi enganado,
Antonio comprou
b) Ele foi enganado ou não foi trapaceado, passaram a
gato por lebre.
enganado?
perna nele.
b) Compra ruim
EI 2
a) Como foi a atitude dela?
a) Impensada, afoita, ruim,
Cristina meteu os pés b) Ela pensou ou agiu sem
má, rápida demais.
pelas mãos.
pensar?
b) Agiu sem pensar.
EI 3
a) Como ele reagiu?
a) Mal, brabo, irritado,
João fez tempestade
b) Ele é preocupado ou
furioso, se preocupou
em copo d’água.
tranquilo?
demais.
b) Ficou preocupado.
EI 4
a) Como elas se vestem?
a) Se vestem igual, da
Ana e Lia saíram
b) As roupas delas são
mesma forma, com as
como um par de
diferentes ou iguais?
mesmas roupas.
vasos.
b) Roupas são iguais.
EI 5
a) O que Laura sente por Paulo? a) Amor, paixão, gosta
Paulo é a metade da b) Ela adora ele ou detesta?
dele.
laranja da Laura.
b) Adora ele.
EI 6
a) O que aconteceu com Alice? a) Esperou muito, por
Alice tomou um chá b) Ela esperou muito ou pouco? horas, qualquer evento
de cadeira.
demorado.
b) Esperou muito.
ITEM
PERGUNTAS
Para realização dos procedimentos empíricos (aplicação
do instrumento), duas etapas foram realizadas: o planejamento da
aplicação do instrumento piloto e a coleta da informação empírica. Para
o planejamento, o primeiro passo foi a seleção da amostra, realizada
conforme os critérios já descritos. O segundo passo foi o da elaboração
das instruções para aplicação do instrumento. Para tanto, foi utilizado
um enunciado norteador sobre a natureza do teste, a aplicação da tarefa
580
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
e a participação do sujeito. Especiicamente, os participantes foram
orientados a ouvir atentamente a cada uma das sentenças e a responder
às perguntas fechadas (dicotômicas) e às abertas. Foi enfatizado que
para as questões abertas não havia necessariamente uma única resposta
esperada. Além disso, ressaltou-se que não havia uma relação entre os
itens. Após a explicação foi fornecido um exemplo. Se o participante
não respondia com o sentido figurado da expressão, o aplicador
explicava e oferecia respostas possíveis. O terceiro passo foi a coleta
dos dados de validação, realizada pelas autoras e por participantes do
grupo de pesquisa, previamente treinados para tanto. A aplicação do
instrumento foi realizada individualmente, após o consentimento da
direção, dos professores e da assinatura do Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido pelos participantes (adultos) e/ou responsáveis (pelas
crianças ou adolescentes).
3 Resultados
Os dados foram analisados por meio de estatística descritiva
e paramétrica, utilizando o programa Statistical Package for Social
Sciences (SPSS), versão 18.
A primeira análise realizada foi a do grau de familiaridade das
expressões idiomáticas dos seis itens do teste. Os resultados revelaram
que o item mais familiar foi o 3 (Fazer tempestade em copo d’água) e o
menos familiar foi o 4 (Sair como um par de vasos), conforme indicado
na Tabela 2.
TABELA 2 – Análise percentual de familiaridade nas respostas 4 e 5
EI
1
Respostas “4”
15,05
Respostas “5”
Total
2
3
4
5
6
8,96
3,94
10,04
9,32
11,11
67,74
87,10
93,91
59,86
78,85
75,27
82,79
96,06
97,85
69,90
88,17
86,38
A segunda análise realizada foi a de coniabilidade dos critérios
de correção estabelecidos para as perguntas abertas dos seis itens
selecionados. Todas as respostas em que houve discordância de um
ou mais avaliadores foram discutidas pelo grupo até se chegar a um
consenso. Essas discussões não só levaram ao ajuste de cada resposta
581
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
em que havia divergência entre os avaliadores, mas também reinaram
os critérios de correção. Uma vez que o Kappa variou de 0,77 a 1,00
para as primeiras 44 questões abertas corrigidas, na avaliação de seis
membros do grupo de pesquisa (p<0,001), julgou-se que os critérios
estavam bem delineados, e as correções subsequentes foram realizadas
de forma independente.
Com relação ao desempenho no Instrumento de Compreensão
de Expressões Idiomáticas, houve uma diferença estatisticamente
signiicativa entre os grupos (p<0,001), levando-se em conta o total de
acertos (perguntas abertas e fechadas somadas). Considerando a variável
idade (Tabela 3), o grupo de adultos apresentou a maior média de acertos
(m=10,6; dp=1,24), seguido pelo grupo de adolescentes (m=9,55;
dp=1,82) e pelo de crianças (m= 6,08; dp=2,10).
TABELA 3 – Comparação entre as faixas etárias
Variáveis
Crianças
Média ± DP
Adolescentes
Média ± DP
Adultos
Média ± DP
Total EI
6,08 ± 2,10a
9,55 ± 1,82b
10,6 ± 1,24c
<0,001
Total EI Aberta
1,83 ± 1,08
b
4,05 ± 1,22
4,89 ± 0,96c
<0,001
Total EI Fechada
4,26 ± 1,33a
5,50 ± 0,84b
5,72 ± 0,54b
<0,001
a
p*
* Análise de Variância (ANOVA) one-way; a,b,c Letras iguais não diferem pelo teste de
Tukey a 5% de signiicância
Para todos os grupos, as perguntas fechadas tiveram maior
número de acertos quando comparadas com as perguntas abertas. A
análise da diferença entre perguntas abertas e fechadas por grupo também
mostrou uma diferença estatisticamente signiicativa (p<0,001) em todas
as faixas etárias, e os escores foram mais elevados nas perguntas fechadas.
Quando avaliados os acertos por item, considerando as perguntas
abertas e fechadas conjuntamente, veriicou-se que o item com mais
acertos (85,5% e 94,7% para aberta e fechada, respectivamente) foi o
número 5, que atualiza a expressão idiomática ser a metade da laranja.
O menor percentual de acertos para as perguntas abertas (25,6%) foi
veriicado no item 1, que atualiza a EI comprar gato por lebre, e o menor
percentual para a pergunta fechada (69,1%) foi veriicada no item 4,
que atualiza a EI sair como um par de vasos. Essas diferenças foram
estatisticamente signiicativas (p<0,001) para ambos os tipos de pergunta
582
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
(aberta e fechada). Na pergunta aberta, o item 1 (comprar gato por lebre)
foi signiicativamente menor do que todos os outros. Os itens 4 e 6 (sair
como um par de vasos e tomar um chá de cadeira) foram os segundos
com pior desempenho, sem diferença signiicativa entre eles. Em seguida,
vieram os itens 2 e 3 (meter os pés pelas mãos e fazer tempestade em copo
d’água), também sem diferença signiicativa entre eles, mas diferentes
de todos os outros. O item 5 (ser a metade da laranja) foi aquele com o
melhor desempenho e diferiu signiicativamente de todos os outros. Em
relação às perguntas fechadas, os itens 4 e 1 (sair como um par de vasos
e comprar gato por lebre) foram os que tiveram o pior desempenho, sem
diferença signiicativa entre eles. Depois vieram as questões dos itens 3
e 6 (meter os pés pelas mãos e tomar um chá de cadeira), também sem
diferença entre eles. As questões com os melhores desempenhos foram
as dos itens 2 e 5 (meter os pés pelas mãos e ser a metade da laranja),
que diferiram signiicativamente de todas as outras (Gráico 1).
GRáFICO 1 – Percentual de acertos nas perguntas abertas e fechadas
p<0,001 para ambos (aberta e fechada)
Analisando conjuntamente os resultados da avaliação da
familiaridade e da compreensão de expressões idiomáticas, veriicou-se que,
apesar de não ter se estabelecido uma correspondência entre os resultados
dos dois instrumentos, foi observada uma tendência de os itens com maior
familiaridade serem também os mais compreendidos. As expressões ser a
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
583
metade da laranja, meter os pés pelas mãos e fazer tempestade em copo
d´água foram julgadas mais familiares e obtiveram os maiores índices de
compreensão; as expressões tomar um chá de cadeira, sair como um par de
vasos e comprar gato por lebre, por sua vez, foram julgadas como menos
familiares (ainda que todas elas pareçam bastante familiares) e obtiveram
os menores índices de compreensão.
Uma análise qualitativa das respostas das crianças (grupo com
os menores índices de compreensão de expressões idiomáticas) para
as expressões que obtiveram o maior e os menores escores sugere que
a compreensão está bastante relacionada ao grau de transparência das
expressões. Cabe aqui ressaltar que, conforme já descrito no método, foram
selecionadas seis EI consideradas pouco transparentes pelas autoras.
Na EI5, item que obteve o maior índice de acertos nas respostas
abertas, a maioria das crianças chegou ao sentido igurado de gostar, amar
ou estar apaixonada por meio da frase Paulo é a metade da laranja da
Laura. Poucas foram as crianças que não chegaram ao sentido igurado
e relacionaram sua resposta com o ato de comer uma laranja, como no
exemplo abaixo.
(sujeito 365 –7a) – Sente fome.
Ainda em relação à EI5, dois exemplos ilustram bem o quanto o
signiicado literal das palavras que compõem uma expressão pode ajudar
a chegar ao sentido igurado. O sujeito 410 usa uma outra expressão
idiomática, com o mesmo sentido idiomático da expressão metade da
laranja, e que também tem a palavra ‘metade’ para explicar a primeira.
Já o sujeito 411 parte do signiicado literal, explicitando a motivação
para chegar ao sentido igurado.
(sujeito 410 –9a10m) – É a cara metade.
(sujeito 411 –11a9m) – É como se fossem completar a laranja, sentem
amor.
Na EI1, que obteve o menor índice de acertos nas respostas
abertas, nenhuma criança deduziu o signiicado igurado ‘ser enganado’
observando a frase Antonio comprou gato por lebre. As respostas para
a pergunta fechada foram invariavelmente interpretações literais do ato
de comprar um gato e/ou uma lebre, como nos exemplos abaixo.
584
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
(sujeito 386 – 8a7m) – Ele ganhou o gato e icou com a lebre.
(sujeito 368 – 9a3m) – Ele pegou um coelho.
(sujeito 365- 7a) – Ele se arranhou todo.
Na EI6, que obteve o segundo menor índice de acertos nas
respostas abertas, a resposta da maioria das crianças remeteu ao ato de
literalmente tomar um chá, outras relacionaram a expressão a alguma
expressão conhecida (tal como chá de sumiço) e outras chegaram mais
perto do sentido igurado, conforme os exemplos abaixo.
(sujeito 381- 11a7m) – Tomou um chá forte, estranho.
(sujeito 420- 10a3m) – Tomou um chá com gosto de cadeira.
(sujeito 393 – 9a) – Ficou sumida.
(sujeito 373 – 9a7m) – Ficou sentada.
Respostas como a do sujeito 373 foram consideradas incorretas,
ainda que o ato de sentar esteja relacionado à ideia de esperar. Respostas
com o verbo sentar só foram consideradas corretas quando explicitavam
o signiicado igurado da EI, o de esperar por muito tempo, como no
exemplo a seguir.
(sujeito 386 – 8a7m) – Ficou sentada esperando um tempão, esperando
na cadeira.
As respostas elencadas anteriormente ilustram dois aspectos
relevantes em uma análise de expressões idiomáticas pela perspectiva da
Linguística Cognitiva. O primeiro aspecto é a noção de continuum, aqui
exempliicada na dimensão opacidade. Assim, mesmo em expressões
bastante opacas, algumas se revelam mais transparentes (por exemplo,
a EI ser a metade da laranja) do que outras (por exemplo, a EI comprar
gato por lebre). O segundo aspecto é a inluência de múltiplas dimensões
na compreensão de um mesmo fenômeno linguístico. A EI5, por exemplo,
apesar de não ser considerada pelos participantes da pesquisa como a
mais familiar, foi a melhor compreendida, possivelmente em virtude de
seu grau de transparência.
O fato de não ter sido observada uma correspondência direta entre
familiaridade e compreensão das EI pode indicar também diferenças de
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
585
frequência de uso entre gerações. Nesse ponto, é importante ressaltar
que o teste de familiaridade foi realizado somente por adultos, e o teste
de compreensão de expressões idiomáticas foi realizado por crianças,
adolescentes e adultos. Assim, uma EI como “como comprar gato por
lebre”, julgada bastante familiar por uma pessoa mais velha, pode não
ser mais usada pela nova geração de usuários da língua tanto em razão
de ser opaca quanto de não ser ouvida corriqueiramente, o que justiica
o fato de ela não ser mais compreendida pelas crianças.
4 Discussão
Os procedimentos teóricos, primeira etapa da construção
do instrumento aqui descrito, foram realizados à luz da Linguística
Cognitiva, perspectiva que entende a linguagem como um processo
dinâmico no qual as unidades linguísticas (sejam elas morfemas,
palavras, expressões idiomáticas, entre outros) servem como gatilho
para operações conceituais diversas que recrutam conhecimento prévio.
Dando início a essa etapa, foram deinidas as dimensões relevantes
para as EI (familiaridade, estrutura sintática, complexidade semântica
e transparência). Em relação aos procedimentos empíricos, após os
ajustes feitos com base no estudo-piloto, a coleta de dados deu-se sem
intercorrências, passando-se aos procedimentos estatísticos.
No teste de familiaridade aplicado, veriicaram-se diferenças na
avaliação dos itens (com um percentual variando de 69,90%1 a 97,85% de
respostas bastante e totalmente familiares respectivamente). Essa variação
ocorreu apesar de itens presumidamente muito familiares (de acordo
com buscas na internet e com o julgamento dos especialistas) terem sido
selecionados. Alguma variabilidade, de fato, já era esperada, por dois
motivos: o primeiro é que o julgamento sobre a familiaridade depende de
frequência de uso e essa está em constante atualização; o segundo, que
corrobora o arcabouço teórico adotado, é que familiaridade não é uma
variável categórica, ainda que tenha sido tratada como tal para ins desta
análise. Há, portanto, um continuum de familiaridade que envolve pelo
menos a frequência com a qual se escuta determinado input linguístico e
a frequência com a qual uma expressão é efetivamente usada. Além disso,
1
Decidiu-se por não descartar a EI D (sair como um par de vasos) dada a proximidade
entre o percentual escolhido para o ponto de corte (70%) e o obtido (69,90).
586
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
pode-se pensar que o tipo de conceitos e a frequência das ações abordadas
em uma determinada expressão idiomática (como superdimensionar um
problema na EI fazer tempestade em copo d’água, por exemplo) também
inluenciam a frequência com que essa será usada. Assim, uma prática
pouco usual (por exemplo, andar com roupas iguais) deverá levar a um
uso menos frequente de uma determinada expressão (por exemplo, sair
como um par de vasos) quando comparada a expressões percebidas como
mais familiares (por exemplo, ser a metade de uma laranja). Em outras
palavras, falamos mais frequentemente sobre eventos que observamos
com mais frequência.
A primeira análise do Instrumento de Compreensão de Expressões
Idiomáticas, referente à diferença entre os grupos, revelou um efeito
principal de idade na compreensão dos itens. O desempenho foi melhor no
grupo de adultos, seguido pelo de adolescentes e o de crianças, conforme
o esperado. Assim, um maior tempo de exposição à língua levou a uma
melhor compreensão das expressões apresentadas, como demonstrado
em estudos com crianças, adolescentes (NIPPOLD; RUDZINSKI, 1993;
NIPPOLD; TAYLOR, 2002) e adultos (NIPPOLD; DUTHIE, 2003). Esses
resultados corroboram estudos anteriores que airmam ter encontrado
diferenças na compreensão de EI pelas crianças quando comparadas com
adolescentes e adultos (CAIN; TOWSE; KNIGHT, 2009).
Os resultados também revelaram um efeito principal de tipo
de pergunta. Em todos os grupos, as perguntas fechadas tiveram maior
número de acertos do que as perguntas abertas. De um ponto de vista
estatístico, de fato se esperava que perguntas fechadas com duas opções
(com uma possibilidade de 50% de acerto) tivessem um maior percentual
de acerto do que perguntas abertas, nas quais não há uma pista para
a resposta certa. Quando o formato da pergunta (aberta ou fechada)
foi considerado, observou-se diferença estatisticamente signiicativa
na pergunta fechada entre o grupo de crianças e os demais grupos
(adolescentes e adultos). Nesse caso, apesar de terem sido controladas
algumas variáveis (tais como familiaridade, estrutura sintática,
complexidade semântica e transparência), ainda é possível que alguma
dessas tenha inluenciado esse resultado. Entretanto, se considerarmos
que não somente as dimensões da expressão, mas as habilidades do
sujeito estão em jogo, uma justiicativa mais plausível para essa diferença
é a habilidade de inferência. Essa habilidade não é uma característica
da expressão idiomática, mas uma característica do sujeito, a qual se
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
587
desenvolve com a idade, com o aumento de exposição à língua e com o
desenvolvimento de capacidades cognitivas.
Apesar de a familiaridade ter sido a única dimensão investigada
empiricamente, por meio de uma escala, entende-se que as outras
dimensões consideradas também apresentam a propriedade de serem
contínuas. Em outras palavras, tanto a estrutura sintática, quanto a
complexidade semântica, a transparência e até mesmo o contexto são
dimensões que poderiam apresentar alguma variabilidade em uma
escala que vai de nada a totalmente aplicável a cada dimensão. Neste
instrumento, uma mesma estrutura sintática foi utilizada nos seis itens,
palavras e estruturas de pouca complexidade semântica foram priorizadas
e foram selecionadas expressões bastante opacas, conforme o julgamento
das pesquisadoras e dos juízes especialistas. No entanto, mesmo que essas
dimensões tenham sido controladas, assume-se que nenhuma sentença é
idêntica a outra em relação a todas essas dimensões. A inluência dessas
dimensões, portanto, deve ser considerada em conjunto na formulação
de qualquer tarefa que envolva expressões idiomáticas, bem como na
interpretação de seus resultados.
Ainda que tenham sido identiicadas possíveis limitações, o
desenvolvimento deste instrumento deve contribuir para suprir a ausência
de propostas padronizadas para a avaliação da compreensão de expressões
idiomáticas em nossa língua. O passo a passo criterioso em sua criação e
validação proporcionou a veriicação de evidências iniciais de validade, e
os dados obtidos poderão servir como um parâmetro inicial do que pode
ser esperado para cada faixa de idade estudada. Estudos futuros deverão
ser realizados para que suas evidências na avaliação da compreensão sejam
mais robustas e para que sejam estabelecidos efetivamente esses dados
normativos por faixa de idade. Por im, sugere-se que pesquisas sejam
realizadas também com populações clínicas, que, além de contribuírem
com informações pertinentes para melhor compreender o fenômeno
da linguagem igurada em si, possibilitarão melhor compreensão do
desenvolvimento linguístico de diferentes populações.
Agradecimentos
As autoras agradecem aos bolsistas de iniciação cientíica Ana Paula
Anghinoni Ramos (PIBIC CNPqUFRGS), Andrea Rubert e Karoline
Girardi (PROBIC FAPERGS-UFRGS) e Cristofer Tessmer (BIC
UFRGS), pelo seu trabalho durante as diversas fases deste estudo.
588
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
Referências
CACCIARI, C.; LEVORATO, M. C. The effect of semantic analyzability
of idioms in metalinguistic tasks. Metaphor and Symbol, Francis &
Taylor Online, v. 13, p. 159-177, 1989. DOI: https://doi.org/10.1006/
jecp.1995.1041
CAIN, K.; OAKHILL, J.; LEMMON, K. The relation between children’s
reading comprehension level and their comprehension of idioms. Journal
of Experimental Child Psychology, Elsevier, v. 90, p. 65-87, 2005.
DOI: https://doi.org/10.1016/j.jecp.2004.09.003
CAIN, K.; TOWSE, A. S.; KNIGHT, R. S. The development of idiom
comprehension: An investigation of semantic and contextual processing
skills. Journal of Experimental Child Psychology, Elsevier, v. 102,
p. 280-298, 2009. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jecp.2008.08.001
FONSECA, R. P.; SALLES, J. F.; PARENTE, M. A. M. P. Development
and content validity of a Brazilian Brief Neuropsychological Assessment
Battery: NEUPSILIN. Psychology and Neuroscience, Washington,
American Psychological Association, v. 1, p. 55-62, 2008. DOI: http://
dx.doi.org/10.3922/j.psns.2008.1.009
GIBBS, R. The poetics of mind: Figurative thought, and understanding.
New York: Cambridge U. Press, 1994. 527p.
HILLERT, D. G. Spared access to idiomatic and literal meanings: A
single-case approach. Brain and Language, Elsevier, v. 89, n. 1, p. 207215, 2004. DOI: https://doi.org/10.1016/S0093-934X(03)00384-5
KEMPLER, D.; SIDTIS, D. V. L; MARCHAMAN, V. BATES, E. Idiom
comprehension in children and adults with unilateral brain damage.
Developmental Neuropsychology, Francis & Taylor Online, v. 15, n. 3,
p. 327-349, 1999. DOI: 10.1080/87565649909540753
KÖVECSES, Z. Language, Mind, and Culture. A Practical Introduction.
Oxford: Oxford U. Press, 2006. 416p.
LANGLOTZ, A. Idiomatic Creativity: A cognitive-linguistic model of
idiom-representation and idiom-variation in English. Amsterdam: John
Benjamins, 2006. 339p. DOI: https://doi.org/10.1075/hcp.17
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
589
LEVORATO, M. C.; ROCH, M.; NESI, B. A longitudinal study of
idiom and text Comprehension. Journal of Child Language, Cambridge
University Press, v. 34, n. 3, p. 473-494, 2007. DOI: https://doi.
org/10.1017/S0305000907008008
NIPPOLD, M. A.; DUTHIE, J. K. Mental imagery and idiom
comprehension: A comparison of school-age children and adults.
Journal of Speech, Language, and Hearing Research, American Speech
and Hearing Association, v. 46, p. 788-799, 2003. DOI: https://doi.
org/10.1044/1092-4388(2003/062)
NIPPOLD, M. A.; RUDZINSKI, M. Familiarity and transparency in
idiom explanation: A developmental study of children and adolescents.
Journal of Speech, Language, and Hearing Research, American Speech
and Hearing Association, v. 36, p. 728-737, 1993. DOI: https://doi.
org/10.1044/jshr.3604.728
NIPPOLD, M. A.; TAYLOR, C. L. Judgements of idiom familiarity
and transparency: A comparison of children and adolescents. Journal of
Speech, Language, and Hearing Research, American Speech and Hearing
Association, v. 45, p. 384-391, 2002.
NORBURY, C. F. Factors supporting idiom comprehension in children
with communication disorders. Journal of Speech, Language and Hearing
Research, v. 47, p. 1179-1193, 2004. DOI: https://doi.org/10.1044/10924388(2004/087)
NUNBERG, G.; SAG, I. A.; WASOW, T. Idioms. Language, Washington,
Linguistic Society of America, v. 70, n. 3, p. 491-538, 1994.
PAPAGNO, C.; TABOSSI, P.; COLOMBO, M. R.; ZAMPETTI, P.
Idiom comprehension in aphasic patients. Brain and Language, Elsevier,
v. 89, n. 1, p. 226-234, 2004. DOI: https://doi.org/10.1016/S0093934X(03)00398-5
PAPAGNO, C.; CAPORALI, A. Testing idiom comprehension in aphasic
patients: The effects of task and idiom type. Brain and Language,
Elsevier, v. 100, p. 208-220, 2007. DOI: https://doi.org/10.1016/j.
bandl.2006.01.002
PASQUALI, L. Instrumentação psicológica: fundamentos e práticas.
Porto Alegre: Artmed, 2010. 568p.
590
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
QUALLS, C. D.; LANTZ, J. M.; PIETRZYK, R. M.; BLOOD, G. W.;
HAMMER, C. S. Comprehension of idioms in adolescents with languagebased learning disabilities compared to their typically developing peers.
Journal of Communication Disorders, Elsevier, v. 37, n. 4, p. 295-311,
2004. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jcomdis.2003.12.001
SIQUEIRA, M. As metáforas primárias na aquisição da linguagem: um
estudo interlinguístico. 2004. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.
SIQUEIRA, M.; LAMPRECHT, R. As metáforas primárias na aquisição
da linguagem: um estudo interlinguístico. Delta, São Paulo, PUCSP,
v. 23, n. 2, p. 245-272, 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S010244502007000200004
SIQUEIRA, M.; GIBBS, R. Children’s Acquisition of Primary Metaphors:
a crosslinguistic study. Organon, UFRGS, v. 21, n. 43, p. 161-179, 2007.
SIQUEIRA, M.; DE LEON, V.; PARENTE M. A.; BOSA, C.
Especiicidade da compreensão metafórica em crianças com autismo.
Psico. UFRGS, v. 38, n. 3, p. 269-277, 2007.
SIQUEIRA, M.; PARENTE, M. A. P.; Gil, M. Metáfora e cultura:
uma interace entre a Linguística e a Antropologia. Antares, Letras e
Humanidades, Caxias do Sul, RS, n. 2, p. 99-111, jul.-dez. 2009.
591
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018
ANEXO 1
Escala de familiaridade
Leia as expressões abaixo e marque com um X o seu grau de familiaridade
(o quanto você conhece a expressão), considerando uma escala de 5
pontos, em que:
1 é nada familiar
2 é pouco familiar
3 é medianamente familiar
4 é bastante familiar
5 é totalmente familiar
1
Comprar gato por lebre.
Meter os pés pelas mãos.
Fazer tempestade em copo d’água.
Sair como um par de vasos.
Ser a metade da laranja de alguém.
Tomar um chá de cadeira.
2
3
4
5
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
A gramática estadunidense como alteridade
para a gramatização brasileira do português no século XIX:
análise da composição da gramática Holmes Brazileiro
ou Grammatica da Puericia de Júlio Ribeiro (1886)
com base no modelo do compêndio A Grammar of the English
Language de George Frederick Holmes (1878)
The American grammar as alterity for the Brazilian
grammatization of Portuguese in the nineteenth century:
analysis of the composition of the grammar “Holmes Brazileiro
ou Grammatica da Puericia” by Júlio Ribeiro (1886) from
the model of the compendium “A Grammar of the English
Language” by George Frederick Holmes (1878)
José Edicarlos de Aquino
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo / Brasil
edicarlos_aquino@yahoo.com.br
Resumo: Este artigo analisa os procedimentos de Júlio Ribeiro para
compor a sua gramática Holmes Brazileiro Grammatica da Puericia,
em 1886, com base no modelo do compêndio A Grammar of the English
Language, lançada por George Frederick Holmes em 1878. Ilustrando
em detalhes o mecanismo de transferência de tecnologia entre línguas
segundo o conceito de gramatização de Auroux (1992), essa análise nos
permite trazer à luz um elemento pouco observado na história das ideias
linguísticas no Brasil, isto é, a alteridade que a gramática estadunidense
representa para a gramatização brasileira do português no século XIX.
Dessa forma, detalhamos as várias modiicações que Júlio Ribeiro
opera no texto de Holmes ao traduzi-lo e adaptá-lo para a escrita de
uma gramática do português, mostrando como elas se realizam por
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.593-632
594
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
exigência das especiicidades da ordem da própria língua, mas também
como signiicam um gesto de autoria do gramático brasileiro sobre o
conhecimento linguístico, inserindo, inclusive, referências ao Brasil no
discurso gramatical.
Palavras-chave: gramatização brasileira; século XIX; Júlio Ribeiro;
George Frederick Holmes; gramática brasileira, gramática estadunidense;
gramática latina extensa.
Abstract: This article analyzes the procedures of Júlio Ribeiro to
compose his grammar Holmes Brazileiro Grammatica da Puericia, in
1886, from the model of the compendium A Grammar of the English
Language, released by George Frederick Holmes in 1878. Illustrating in
detail the technology transfer mechanism between languages according
to Auroux’s concept of grammatization (1992), this analysis allows us to
bring to light an unobserved element observed in the history of linguistic
ideas in Brazil, that is, the alterity that the American grammar represents
for the Brazilian grammatization of Portuguese in the nineteenth century.
In this way, we detail the various modiications that Júlio Ribeiro operates
in Holmes’s text by translating it and adapting it to the writing of a
Portuguese grammar, showing how they are performed by exigency of the
speciics of the order of the language itself, but also as signify a gesture
of authorship by the Brazilian grammarian about linguistic knowledge,
including references to Brazil in grammatical discourse.
Keywords: Brazilian grammatization; nineteenth century; Júlio Ribeiro;
George Frederick Holmes; Brazilian grammar, American grammar;
extended Latin grammar.
Recebido em 14 de julho de 2017.
Aceito em 2 de setembro de 2017
1 Introdução
O presente artigo tem como foco os procedimentos de composição
da obra Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia, publicada por
Júlio Ribeiro em 1886. Além de demonstrar que a produção gramatical
de Júlio Ribeiro não se restringiu à Grammatica Portugueza, de 1881,
faz-se obrigatório observar que também faz parte dessa produção a
Nova Grammatica Latina, de 1890, cuja importância reside no fato de
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
595
ela ser um dos raros exemplos de gramática no Brasil do século XIX
escrita para crianças no início do processo de escolarização. Sobretudo
sob efeito do Programa de Português para os Exames Preparatórios, de
1887, conforme consta em trabalho de Orlandi e Guimarães (2001), as
gramáticas brasileiras eram produzidas para preparar os jovens para a
entrada nos cursos universitários, voltadas, portanto, para os anos inais
da escola.
A análise dos procedimentos de Júlio Ribeiro para compor a
Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia nos permite ilustrar em
detalhes como se opera uma transferência tecnológica entre línguas
e, dessa forma, compreender na prática o conceito de gramatização,
deinida por Auroux (1992, p. 65) como “o processo que conduz a
descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que
são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e
o dicionário”. Essa análise nos permite igualmente mostrar como esse
processo se realiza especiicamente nas condições particulares do início
da gramatização brasileira do português no século XIX, processo que
tem como efeito a constituição do português como língua nacional do
Brasil, segundo Orlandi e Guimarães (2001).
Nesse ponto, nosso trabalho procura lançar luz sobre um elemento
pouco avaliado na história das ideias linguísticas no Brasil, isto é, a
alteridade que a gramática estadunidense representa para a gramatização
brasileira, pois a Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia,
como o título anuncia, é uma tradução de A Grammar of the English
Language, lançada em 1878 por George Frederick Holmes, professor
de história, literatura e retórica na Universidade de Virgínia, nos Estados
Unidos da América. Como explica Rodríguez-Alcalá (2011, p. 205), “as
transferências tecnológicas não são processos lineares nem se efetuam
por uma simples transmissão, mas, sim, por meio de gestos de elaboração
e de reinvenção determinados pelas circunstâncias culturais, sociais e
políticas”, sendo, nesse sentido, importante perguntar “quem faz essas
transferências, em que direção, como, com que inalidade”. Respondendo
a essas questões, podemos airmar que quem faz a transferência é Júlio
Ribeiro, um gramático brasileiro do século XIX, e que essa transferência
é feita de uma gramática do inglês dos Estados Unidos em direção
ao português no Brasil, com a inalidade de fornecer material para o
estudo do português para crianças das séries iniciais da escola. O como
é justamente o que vamos mostrar em detalhes neste artigo.
596
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
2 A busca de Júlio Ribeiro no compêndio de George Frederick
Holmes por um modelo tido como cientíico para composição
de uma gramática brasileira do português destinada ao público
infantil no Brasil do século XIX
A Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia, de Júlio
Ribeiro, traz em seu título o texto de origem, a iliação com um autor e
uma tradição: George Frederick Holmes e a sua gramática A Grammar
of the English Language, uma gramática do inglês para uso nos
Estados Unidos. Traz também uma modiicação pelo uso do adjetivo
“brasileiro”, marcando uma diferença que é também de autoria, ou seja,
sob a perspectiva de um brasileiro, ou melhor, segundo um gramático
brasileiro. Tem ainda como alvo um público: o infantil. Como metonímia
de gramático, a nomeação Holmes Brazileiro nos remete ao título da
mais antiga gramática do francês, Donait françois, um modo de intitular
que, com base em Auroux (1992) e Timelli (1996), tem a ver com o fato
de as Ars Minor de Donato terem sido o principal modelo das primeiras
gramáticas dos vernáculos europeus, de forma que o que está em jogo é
a transmissão de um modelo de tradição gramatical.
No prefácio de sua própria gramática, Holmes elege como
objetivo inicial adaptar para o uso das escolas nos Estados Unidos o que
de melhor aparecia nas várias gramáticas inglesas publicadas na época
na Inglaterra:
When this Grammar was undertaken, little more was contemplated
than to adapt to the use of American schools what appeared to be
best in the numerous Grammars of the English tongue recently
published in England, with such additions and improvements
as might be derived from other sources, including the results of
private studies previously pursued. (HOLMES, 1878, p. 1)1
Num movimento que mostra os caminhos da gramatização
brasileira em termos de modelos, Júlio Ribeiro adapta para falantes de
português no Brasil (todos os falantes de português, mas o público é
1
Quando esta Gramática foi iniciada, pouco mais foi contemplado que a adaptação
para uso em escolas americanas do que parecia ser o melhor de várias gramáticas da
língua inglesa recentemente publicadas na Inglaterra, com adições e melhorias derivadas
de outras fontes, incluindo os resultados de estudos privados previamente realizados.
(HOLMES, 1878, p. 1)
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
597
brasileiro) uma gramática dos Estados Unidos da América que, por sua
vez, já foi pensada e construída como uma adaptação de uma gramática
da Inglaterra. Na contracapa da obra do gramático brasileiro, pode-se
ler “TRADUCCÃO DA Introduction to English Grammar de G. F.
Holmes, LL.D. E ADAPTAÇÃO DELLA á LÍNGUA PORTUGUEZA
POR JULIO RIBEIRO”.
O que Júlio Ribeiro traduz para compor sua própria gramática é
uma espécie de resumo gramatical que Holmes apresenta no início de sua
obra, com o título de Introduction do the English Grammar. No prólogo
da primeira edição, Júlio Ribeiro comenta seu trabalho de traduzir para
o português a introdução da gramática de Holmes, qualiicada como
“um monumento de sciencia e bom senso”. É o próprio Júlio Ribeiro
quem utiliza o verbo traduzir para falar do seu trabalho, justiicando, no
entanto, e isso é o importante para nós, que esse trabalho de tradução
exige modiicações impostas pela própria índole do português: “Traduzir
essa «INTRODUCTION», modiicando-a nos logares em que o exige
a indole do Portuguez, é um relevante serviço aos que nesta lingua
encetam o tirocinio das lettras” (1891, p. 3). A gramática é modiicada
e não apenas traduzida, algo que tem certamente a ver com o que diz
Auroux (1992, p. 44) sobre o que é da ordem do próprio procedimento
da gramatização como uma transferência de tecnologia, quando explica
que “a construção da rede supõe adaptações locais e um certo viezamento
das descrições”, mas que também pode ser enxergado como um gesto de
autoria do gramático brasileiro. É a língua (e o procedimento de tradução)
que demanda modiicações, mas é o autor quem vai ter que escolher,
entre outros, que exemplo em português pode substituir o exemplo em
inglês para explicação dessa ou daquela proposição.
Segundo consta no prólogo, não é o simples fato de escrever uma
gramática que aparece como “um relevante serviço” de Júlio Ribeiro
para os falantes de português, mas escrever uma gramática diferente
das que andavam sendo escritas. No mais, cabe apenas notar que, no im
do século XIX, um gramático brasileiro está se pondo numa posição de
escrever uma gramática não apenas para brasileiros, mas para os falantes
de português em geral, aos que, reaproveitando o texto do próprio autor,
“nesta lingua encetam o tirocinio das lettras”, aos que dão os primeiros
passos no estudo do português, enim. De fato, apresentando-se como
quem presta um relevante serviço para esse im, Júlio Ribeiro marca a
mesma diferença tantas vezes repetidas por ele em relação a seus pares,
598
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
isto é, num meio de gramáticas metafísicas, sua gramática, por não
ser justamente metafísica, prestaria uma importante contribuição aos
que estudam português: “O presente livrinho constitue uma verdadeira
preparação para o estudo da alta grammaticologia, e não é um dos
muitos compendios soit disant elementares, que só se differençam das
grammaticas metaphysicas grandes por serem impressos em typo miudo
e fomato reduzido.” (1891, p. 3). Por esse trecho, vemos novamente essa
especiicidade de a gramática de Júlio Ribeiro ser um instrumento para um
nível mais elementar de estudo gramatical. E pelo modo como formula
sua crítica, aparentemente sua gramática não é a única dessa natureza,
embora ainda conheçamos muito pouco a história dessas gramáticas
para iniciantes nos estudos escolares, por assim dizer. Nesse conjunto,
talvez possamos citar a Primeira Grammatica da Infância e a Segunda
Gramática da Infância, lançadas por Francisco Ferreira de Vilhena Alves
em 1897. De qualquer forma, uma diferença é marcada por Júlio Ribeiro:
sua gramática não é metafísica.
Júlio Ribeiro e Holmes dizem procurar um modelo cientíico para
escrever suas gramáticas. Há nesse ponto uma diferença fundamental,
pois o brasileiro recusaria a princípio as teorias linguísticas dos
colonizadores, algo que o estadunidense não faz, uma vez que ele
invoca justamente a tradição gramatical na Inglaterra para compor uma
gramática do inglês nos Estados Unidos. Na busca pelo modelo cientíico,
Holmes vai olhar para a Alemanha, sem deixar de considerar a Inglaterra
e os próprios Estados Unidos da América, ressaltando que o projeto
inicial de adaptação de uma gramática inglesa para escrever sua própria
gramática foi aprimorado por meio da observação dos princípios da
“ilologia moderna” (modern philology), fazendo referência aos nomes
de Grimm, Wallis, Horne Tooke, Taylor, Latham, Marsh, Clark, Alford
e Max Müller. Júlio Ribeiro, por sua vez, como já mostramos em outros
trabalhos (2016, 2012a, 2012b), só olha para Portugal para se referir a
autores que trabalham com o método histórico-comparativo, caso de
Adolfo Coelho e Teóilo Braga. Para Júlio Ribeiro, o cientíico aqui é o
próprio Holmes e a tradição da gramática inglesa.
No final do seu prólogo, o procedimento de adaptação do
trabalho de Holmes aparece como argumento para facilitação daqueles
que estão no começo do estudo do português: “Imitando o benemerito
grammaticographo americano, nós sacriicamos a belleza do estylo á
clareza da phrase, mais curando do proveito de quem começa a estudar, do
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
599
que da gloriola de arredondar periodos rhetoricamente correctos” (1891,
p. 3). A modiicação serve, assim, a ins pedagógicos, à facilitação de
um estudo. A imitação de Holmes, por seu turno, não apenas serve pela
forma reduzida como é organizado o texto, prestando-se a estudos iniciais,
mas também, poderíamos argumentar, para romper com as gramáticas
metafísicas. Não se deve esquecer do que mostramos anteriormente
sobre a gramática de Holmes ser apresentada por Júlio Ribeiro como
“um monumento de sciencia e de bom senso”. O que Júlio Ribeiro imita
é a ciência, e, imitando a ciência, ele se diz diferenciar das gramáticas
metafísicas.
3 A divisão da gramática de Júlio Ribeiro com base no manual de
Holmes
Seguindo Holmes, a gramática de Júlio Ribeiro é dividida em XV
partes, com algarismos romanos, e cada parte é subdividida em outras,
em números indo-arábicos: I. Prolegomenos; II. Palavras que signiicam
cousas; III. Palavras que signiicam qualidades ou limitações de cousas;
IV. Palavras empregadas para restringir a signiicação dos substantivos;
V. Palavras que substituem os Substantivos; VI. Palavras que signiicam
ações e condições de cousas; VII. Palavras que denotam o caracter ou
qualidade de acções ou atributos; VIII; Palavras que signiicam a relação
ou a direcção de uma cousa para outra; IX. Palavras que ligam outras
palavras ou asserções; X. Palavras usadas para exprimir emoção ou
sentimento; XI. Enumeração das classes de palavras; XII. Sentença; XIII.
Sentença simples; XIV. Sentenças Compostas; XV. Sentenças Complexas.
Diferentemente de Holmes, que apenas enumera o ponto I, Júlio
Ribeiro vai chamar essa parte de Prolegômenos. Nessa parte, subdividida
em 12 pontos, explica-se que 1. usamos da linguagem para explicar
os pensamentos ou emoções; 2. a linguagem se compõe de palavras;
3. palavras tomadas em separado não constituem linguagem; 4. para
constituir linguagem as palavras devem ser juntas de modo que exprimam
um sentido completo; 5. palavras ajuntadas de um modo que exprimem
um sentido completo formam sentenças; 6. uma sentença é uma coleção
de palavras que encerra um sentido distinto; 7. no estudo da linguagem
procura-se conhecer as palavras e o seu modo de emprego na formação
das sentenças; 8. a linguagem é falada ou escrita; 9. palavras faladas
constam de um ou mais sons que encerram uma signiicação distinta;
600
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
10. palavras escritas constam de uma ou de mais letras, usadas como
sinais dos sons empregados na formação das palavras; 11. diferentes
palavras servem para diferentes usos na construção das sentenças; 12.
as palavras são de espécies diferentes conforme os diferentes usos para
que elas servem na construção das sentenças. No texto de Júlio Ribeiro,
a conclusão não é numerada, diferentemente do de Holmes, em que essa
parte aparece com o número XVI.
Cabe notar que Júlio Ribeiro altera a ordem do tratamento das
sentenças estabelecido por Holmes, que, em sequência, fala de Sentença
Simples (XII), Sentenças Complexas (XIV) e Sentenças Compostas
(XV). O brasileiro vai tratar das sentenças compostas antes de falar sobre
as sentenças complexas. Júlio Ribeiro vai acrescentar no inal de sua
gramática um “aditamento” sobre os principais fatos léxicos e sintáticos
da língua portuguesa, dividido em dois pontos: I. Principais fatos léxicos
da Língua Portuguesa; II. Principais fatos sintáticos da Língua Portuguesa.
4 As reformulações de Júlio Ribeiro ao traduzir e adaptar o texto de
Holmes para a escrita de uma gramática brasileira do português:
acréscimos, supressões, inversões e substituições de elementos na
transposição de um modelo gramatical à luz das diferenças entre
o português do Brasil e o inglês dos Estados Unidos e da posição
autoral sobre o conhecimento linguístico
Acompanhemos linearmente as várias modiicações que Júlio
Ribeiro opera no texto de Holmes ao traduzi-lo e adaptá-lo para a
escrita de uma gramática brasileira do português. Essas modiicações
se realizam sob forma de acréscimos, supressões, inversões e
substituições de termos, frases, trechos e itens inteiros do compêndio
do estadunidense, abrangendo as várias partes da gramática, como os
exemplos, os exercícios, a terminologia, as deinições e divisões das
classes de palavras, as explicações e descrições do funcionamento e das
propriedades das categorias gramaticais.
Numa das primeiras intervenções de Júlio Ribeiro, notamos um
caso em que a descrição do fenômeno e a natureza do exemplo são as
mesmas de Holmes, mas as palavras para exempliicar são diferentes,
pois, se as palavras usadas em inglês fossem simplesmente traduzidas,
elas não serviriam ao público de língua portuguesa, por não ilustrarem
o fenômeno com a justeza necessária. Assim, numa relação entre regra e
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
601
exemplo, no item 11 dos Prolegômenos, quando se explica que diferentes
palavras servem para diferentes usos na construção das sentenças, Júlio
Ribeiro repete, exatamente como Holmes, que palavras diversas são às
vezes representadas pelo mesmo som. O exemplo de Júlio Ribeiro é:
cessão, secção, sessão – Pena, penna. Em inglês, Holmes usa as palavras:
I, eye, aye; ale, ail.
No item 13, quando se explica que muitas palavras signiicam
coisas que podem ser tocadas ou manejadas, Júlio Ribeiro apresenta um
exemplo a menos do que Holmes, suprimindo a palavra chair (cadeira).
Do mesmo modo, ele suprime a palavra anger (raiva) da lista de palavras
usadas por Holmes no item 17, em que se explica que muitas palavras
denotam coisas que não podem ser diretamente percebidas pelos nossos
sentidos, mas podem ser reconhecidas pelas nossas mentes. Talvez seja
possível argumentar aí em favor de um gesto de autoria que considere
que um número menor de palavras seja suiciente para exempliicar
uma deinição, enxergando, assim, no texto de Holmes, um excesso.
Vemos isso em muitas passagens. No item 18, quando se explica que
existem palavras que signiicam coisas que não têm existência própria
em separado, Júlio Ribeiro exclui dois exemplos dados por Holmes, que
havia usado as palavras color, heat, whiteness, warmth, length e truth.
Júlio Ribeiro usa apenas cor, calor, comprimento e verdade, excluindo,
portanto, whiteness (brancura) e warmth (calor). Mas aqui existe também
algo da ordem da língua, pois a distinção do par heat e warmth não
teria cabimento em português, reduzidas em uma única palavra: calor.
Assim, com o corte da palavra whiteness, podemos argumentar, pelo
gesto de autoria de Júlio Ribeiro, que ele vê um excesso na quantidade
de exemplos de Holmes. Por outro lado a supressão da palavra warmth
representa algo da ordem da língua que determina a adaptação e o corte
de exemplos, uma vez que o par heat e warmth não teria um outro par
equivalente em português. No item 19, quando se deine que substantivos
são palavras que dão nomes às coisas, vemos uma vez mais esse corte
do excesso, quando Júlio Ribeiro retira a palavra crime (crime) da lista
de palavras que exempliicam coisas que podem ser concebidas pela
mente. Holmes emprega virtue, vice e crime; enquanto Júlio Ribeiro,
apenas virtude e vício.
Em seguida, observamos um caso em que o brasileiro atribui uma
função a mais a um tipo de palavra descrito pelo estadunidense. Essa
operação se dá por meio da forma como os adjetivos são conceituados.
602
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
Holmes nomeia o item III como “Words signifying Qualities of things”, ao
passo que Júlio Ribeiro vai escrever “Palavras que signiicam qualidades
ou limitações de cousas”, ajuntando “ou limitações”, para dizer, portanto,
que, nessa categoria de palavras considerada por Holmes, os adjetivos
podem signiicar também limitações e não apenas qualidade das coisas.
Para teorizar a questão, o brasileiro tem que escrever mais, completando
o texto de Holmes. Assim, Ribeiro (1891, p. 12), depois de traduzir a
passagem de Holmes que diz que as coisas se distinguem umas de outras
por qualidades ou propriedades que lhes pertencem, adiciona: “E tambem
por limitação de numero, de posição, etc., exemplos: «Um homem-dois
homens-este cavallo-aquelle cavallo.»”. E aqui poderíamos pensar que
se trata de um gesto de autoria que até pode ter algo a ver com o que
impõe o funcionamento da língua, mas que parece corresponder antes
de tudo ao conhecimento metalinguístico. Não é que o mesmo tipo de
palavra possa menos em uma língua, mas que um gramático julgue que
ele pode mais. Ainal, essa introdução da gramática de Holmes que Júlio
Ribeiro traduz, e a própria motivação para traduzi-la, presta-se a mostrar
considerações gerais sobre a língua, de qualquer língua, da linguagem,
portanto. Tanto é assim que Júlio Ribeiro vai acrescentar, no inal de sua
gramática, um aditamento com o que chama de principais fatos léxicos
e sintáticos da língua portuguesa.
No item 22 dessa mesma parte, no qual se explica que as qualidades
e propriedades podem ser consideradas à parte das coisas em que existem
e podem ser nomeadas em separado, Júlio Ribeiro corta a parte inal do
texto de Holmes no qual o autor estunidense dá o nome do tipo de palavra
do qual está falando: “When the qualities are so considered and named,
their names are nouns” (HOLMES, 1878, p. 11). Diferentemente de
Holmes, que encerra com essa airmação o tratamento dessa questão, Júlio
Ribeiro acrescenta dois pontos ao texto de Holmes. No ponto 23, Júlio
Ribeiro explica que a limitação das coisas se faz por meio de palavras
que indicam a posição em relação a nós, o seu número, entre outros. No
ponto 24, ele explica que a limitação pode ser de posição, de número, de
possessão, de conjunção e por designação apenas de grupos de classe.
São dois pontos, então, que Júlio Ribeiro insere para poder desenvolver
a sua posição de que há palavras que signiicam qualidades e também
limitações. Por inserir esses dois pontos, o paralelismo de numeração
entre os dois textos é quebrado. O item 23 da gramática de Holmes vai
corresponder, então, ao item 25 da de Júlio Ribeiro. Nesse item, Holmes
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
603
(1878, p. 11-12) airma que “Words which name qualities connected
with things, or Attribute words, are called Adjectives,. Essa passagem
é assim traduzida por Ribeiro (1891, p. 15): “Palavras que nomeiam
qualidades connexas com cousas, e palavras que indicam a limitação de
cousas chamam-se Adjectivos”. Mais uma vez, Júlio Ribeiro insere a
questão da limitação das coisas como função de uma classe especíica de
palavras. Assim, ainda nesse mesmo ponto (23 de Holmes e 25 de Júlio
Ribeiro), quando se explica que os adjetivos são nomes assim como os
substantivos, o brasileiro escreve: “Os substantivos nomeiam as cousas;
os adjectivos nomeiam as qualidades ou propriedades das cousas, ou
indicam a sua limitação” (RIBEIRO, 1891, p. 15). O estadunidense, por
sua vez, havia posto somente: “Adjectives name qualities or properties
existing in things” (HOLMES, 1878, p.12). O fato de Júlio Ribeiro cortar
a passagem em que Holmes explicava que o nome do tipo de palavra
do qual está falando era o substantivo, bem como o fato de ele inserir
mais dois pontos no texto para dizer como se faz a limitação das coisas,
enumerando como essa limitação pode ser, leva-nos a pensar que o que
Holmes trata como substantivo Júlio Ribeiro já trata como adjetivo. No
mesmo item 23, Holmes dá como exemplos de adjetivos as palavras green
(verde), beautiful (bonito) red (vermelho) e bright (luminoso), ao passo
que Júlio Ribeiro escolhe como exemplos as palavras: verde, bonito, este,
esse, um, dois, cada, cada um, qual, cujo, um, algum. São essas palavras
que se encontram nos itens 23 e 24 do texto de Júlio. No item 23, por
exemplo, ele diz “«Este-esse-aquelle» são palavras que servem para
indicar a limitação das cousas pela posição que ellas occupam” (1891, p.
14). No item 24, ele explica de que tipo pode ser a limitação:
A limitação pode ser
1) de posição, exemplos: «Este cavallo-esse cavallo-aquelle
cavallo.»
2) de numero, exemplos: «Um cavallo-dois cavallos-tres
cavallos».
3) de distribuição, exemplos: «Cada cavallo-cada um cavallo».
4) de posessão, exemplos: «Meu ilho-teu pae-nosso amigo-seu
thio».
5) de conjuncção, exemplo: «O qual cavallo».
6) por designação apenas de grupos de classe, exemplos: «Um
cavallo-alguns cavallos». (RIBEIRO, 1891, p. 14-15)
604
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
Se Júlio Ribeiro modiica a parte do texto de Holmes que trata
de substantivos para já tratar de adjetivos, quando o estadunidense vai
deinir os adjetivos, no item 24 da introdução de sua gramática, Júlio
Ribeiro traduz o texto, que aparece com o número 26 da sua gramática,
mencionando “Adjectivos Limitativos”, uma noção que não está na
passagem de Holmes, como se pode veriicar a seguir:
Adjectives are words which name qualities or properties attributed
to things.When we say a graceful lady, the quality of grace is
ascribed to a lady. When we say a violent wind, the property
of violence is attributed to the wind. When we say an ungainly
person, the quality of ungainliness is ascribed to a person. The
words graceful, violent, ungainly, name qualities considered in
connection with “a lady,” “a wind,” “a person,” respectively, and
are adjectives. (HOLMES, 1878, p. 12)
Júlio Ribeiro, em tradução desse item, diz o seguinte:
ADJECTIVOS são palavras que nomeiam qualidades ou
propriedades attribuídas a cousas, ou que indicam a limitação
dellas. Quando dizemos «Graciosa senhora», a qualidade
«graça» é adscripta a uma senhora. Quando dizemos «Vento
violento», a qualidade «violencia», é attribuida ao vento. As
palavras «graciosa-violento» nomeiam qualidades consideradas
em connexão com «senhora-vento», e são, por conseguinte,
Adjectivos Qualificativos. Quando dizemos «Um homem», a
palavra «um» limita o substantivo «homem».
Quando dizemos «Alguns negocios» a palavra «alguns» limita
o substantivo «negocios». As palavras «um-alguns» indicam
a limitação de «homem-negocios» e são, por conseguinte,
Adjectivos Limitativos. (RIBEIRO, 1891, p. 15-16)
Vemos que Júlio Ribeiro corta uma das três sequências de
exemplos de Holmes. No lugar, ele vai colocar uma outra série em que
vão aparecer as palavras: um e alguns, concluindo que elas limitam o
substantivo e, por isso, são adjetivos limitativos. Na verdade, com os
exemplos que toma de Holmes, Júlio Ribeiro diz se tratar de “Adjectivos
Qualiicativos” e, com a série de exemplos que ele próprio cria, diz se
tratar de “Adjectivos Limitativos”. Assim, o que é apenas adjetivo para
Holmes é separado em duas categorias por Júlio Ribeiro, adjetivos
qualiicativos e adjetivos limitativos.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
605
No ponto 22, vale notar ainda que Júlio Ribeiro altera a ordem
dos exemplos dados por Holmes. O estadunidense põe, por ordem:
blackness, whiteness, heat, ao passo que o brasileiro ordena da seguinte
forma: Brancura, negrura, calor.
Ainda sobre as modiicações nos exemplos empregados, notamos
que, no item 27 do texto de Júlio Ribeiro (25 de Holmes), quando se
explica que os adjetivos sempre se referem a substantivos, quer expressos,
quer subentendidos, Holmes apresenta três séries de exemplos:
When we say, “Here is a piece of white cloth,” the adjective white
refers to the noun cloth, which is expressed.When we say “White
may be seen further than black,” the adjectives white and black
refer to a noun -color, or colors- which is understood without being
expressed.In the phrase, “The Holy One of Israel,” Holy refers to
One, which is understood to mean God, the name of the Supreme
Being – therefore a noun. (HOLMES, 1878, p. 12)2
Júlio Ribeiro vai apresentar apenas um exemplo, em que guarda as
palavras branco e preto usadas em um dos exemplos de Holmes, mas numa
frase completamente nova e, ao que parece, com usos completamente
diferentes, tanto semanticamente quanto distribucionalmente: “Beba
cerveja PRETA»; a BRANCA não é tão nutritiva” (RIBEIRO, 1891,
p. 16-17).
Um outro ponto da gramática em que notamos frequentes
alterações do texto de Holmes por parte de Júlio Ribeiro são os
exercícios. De forma geral, o brasileiro vai trazer os mesmos exercícios
propostos pelo estadunidense. No primeiro exercício da parte III, assim
como Holmes, Ribeiro (1891, p. 17) pede: “Nomear as qualidades ou
propriedades em connexão com cada uma das seguintes cousas”. No
entanto, à diferença de Holmes, ele completa: “e depois limital-as”. Esse
pedir algo a mais no exercício tem a ver com as propriedades a mais que
Júlio Ribeiro dá ao tipo de palavra de que está tratando e que não foram
consideradas por Holmes. Dessa forma, nesse mesmo exercício, após
2
Quando dizemos “Temos aqui um pedaço de tecido branco”, o adjetivo branco
refere-se ao substantivo tecido, que é expressado. Quando dizemos “O branco pode ser
melhor visto que o preto”, os adjetivos branco e preto referem-se ao substantivo cor
ou cores – que é entendido sem ser expressado. No sintagma “O Ser Divino de Israel”,
Divino refere-se a Ser, que é entendido como Deus, o nome do Ser Supremo – ou seja,
um substantivo. (HOLMES, 1878, p. 12)
606
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
dada a lista de palavras, Júlio Ribeiro pergunta: “Que palavras são as que
qualiicam ou limitam deste modo os substantivos?”, enquanto Holmes
havia perguntado apenas: “What kind of words are those which denotes
qualities in this way?” (HOLMES, 1878, p. 12). Esse é um ponto que
vai afetar inclusive o tamanho do exercício, o que mostra que ele não é
gratuito, não se podendo airmar, portanto, que se trata apenas de uma
vontade pessoal do autor brasileiro. No exercício III, por exemplo, da
mesma forma que Holmes, Júlio Ribeiro vai pedir: “Pôr os substantivos
que faltam nas phrases seguintes” (1891, p. 17). Holmes (1878, p.
13) escreve, então, 13 elementos: “Muddy___, broad___, deep___,
bright___, wooden___, white___, heavy___, long___, righteous___,
wise___, soft___, gentle___, true___”. Júlio Ribeiro vai aproveitar esses
elementos, mas incluir 20 outros, e esses elementos a mais trabalham
justamente a questão da limitação da palavra e dos adjetivos qualiicativos
e dos limitativos, o que não foi tratado por Holmes:
........lodoso;........larga;........fundas;........brilhantes;........
duro;........branco; ........pesadas; ........compridos; ........justo;........
sabia;........branco;........manso; ........verdadeira;........triste.
Este........; essa........; aquella........; Aquelles........; Um........;
Uma........; Dez........; Vinte........; Duzentas........; Quinhentas........;
Cada........; Cada um........; O qual........; as quaes........; O homem
cujo........; A mulher cujo........; O homem cuja........; A mulher
cuja........; Algum........; Todos........; Quaesquer…….. (RIBEIRO,
1891, p. 17-18)
Em outro caso, no exercício IV, Júlio Ribeiro pede o mesmo
que Holmes: “Indicar quaes os substantivos e quaes os adjectivos nas
phrases seguintes” (1891, p. 18). No entanto, dos vários elementos dados
por Holmes, Júlio Ribeiro aproveita apenas dois e substitui os outros
por frases que trabalham aquelas questões da limitação da palavra e dos
adjetivos qualiicativos e dos limitativos l: “Bons meninos–Cousas boas
e más–Este cavallo–Aquelle cachorro grande–Essa linguagem desabrida–
Um caminho estreito–Homens cujos chapéos pardos–Aldeia suja–Vinte
e cinco casas–Oitenta e quatro lindas raparigas–Calças pretas–Gravatas
azues” (RIBEIRO, 1891, p. 18).
As modiicações se dão igualmente no emprego da terminologia.
Na parte IV, Palavras empregadas para restringir a signiicação dos
substantivos, quando se explica que a maior parte dos substantivos são
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
607
nomes de classes ou de espécies de coisas, Júlio Ribeiro insere uma
modiicação na terminologia, pois, enquanto Holmes fala apenas em
“Common Nouns”, ele emprega a nomenclatura “Substantivos Communs
ou Appelativos”, adicionando, portanto, um segundo nome para esse
tipo de classe de palavra. No item seguinte (28 de Holmes e 30 de Júlio
Ribeiro), o que se vê, contrariamente, é que Júlio Ribeiro suprime uma
palavra do texto de Holmes, mas aqui a questão já não é de terminologia,
mas de caracterização das propriedades da classe de palavras, por
assim dizer. Nesse item, Holmes fala de restringir “the signiication or
application” do nome, ao passo que Júlio Ribeiro fala apenas de restringir
“a signiicação” do nome.
As modiicações impostas pela ordem da língua são bastante
claras no tratamento do artigo na parte IV. Essas imposições vão
determinar a natureza dos exemplos empregados pelos dois gramáticos.
No item 29 de sua gramática (31 da de Júlio Ribeiro), Holmes explica: “A
or an, and the are the words employed to limit the application of nouns
in this way” (1878, p. 14). Em seguida, exempliica: “We say, a chair,
an owl; the chair, the owl; the chairs, the owls”. Júlio Ribeiro, por sua
vez, trata desse item, traduzindo-o da seguinte maneira: “«–O–a–os–as»
são as palavras que empregamos para restringir deste modo a applicação
dos SUBSTANTIVOS” (1891, p. 20). E exempliica da seguinte forma:
“O mocho–a coruja–os mochos–as corujas”. Na gramática do inglês, a
palavra owl (coruja) serve para marcar a propriedade da palavra “an”,
que introduz palavras que começam por som vocálico. É por isso que,
em Holmes, o par é chair (cadeira) e owl (coruja), pois a questão é se
a palavra começa por som vocálico ou consonantal. Em Júlio Ribeiro,
pelo próprio funcionamento do artigo em português, o par mocho/coruja
é empregado para mostrar a diferença entre masculino e feminino.
Justamente para marcar essa especiicidade da língua inglesa, Holmes vai
escrever o item 30, que será completamente excluído por Júlio Ribeiro,
pois essa explicação não cabe em português:
A or an is employed to signify that a single member of the class
is spoken of, and that no particular individual of the class in
meant. A chair denotes a single chair, and is applied to any chair,
without indicating any chair in particular. An owl means a single
owl, but does not mean any particular owl. A is use before words
beginning with a consonant sounds; as, a boat. An is used before
608
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
words beginning with a vowel sound; as, an apple. (HOLMES,
1878, p. 14)3
Da mesma forma, os itens 34, 35 e 36 da gramática de Holmes
serão inteiramente apagados por Júlio Ribeiro. Nesses itens, Holmes
estabelece uma diferença entre “Indeinitive Article” e “Deinitive Article”:
34. A or an is called the Indefinite Article, because it leaves
undeined or undetermined the particular member of the class
signiied by the noun. A man is any man. No particular man is
meant. The article a shows that no particular man is meant.
35. The is called the Definite Article, because it points out or
deines the particular member or members of the class mentioned.
The man is not any man, but a certain speciied man.The men is
not any men indifferently, but certain deinite men.
36. When nouns are not limited by an article, they embrace the
whole class named by them.Man embraces the whole human
family. Men includes all men.
Birds comprehends all birds without limitation.
Iron, silver, gold mean everything consisting of those metals.
(HOLMES, 1878, p. 15)4
A ou an são empregados para signiicar que um único membro de uma classe é referido
no que se diz, e que nenhum membro em particular da classe é apontado. A chair
denota uma única cadeira, e é empregado para qualquer cadeira, sem a indicação de
qualquer cadeira em particular An owl signiica uma única coruja, mas não se refere a
qualquer coruja em particular. A é utilizado antes de palavras que sejam iniciadas por
som consonantal, como a boat «um braco». An é utilizado antes de palavras que sejam
iniciadas por som vocálico, como an apple «uma maçã». (HOLMES, 1878, p. 14)
4
34. A ou an é referido como Artigo Indeinido porque ele deixa indeinido ou
subdeinido o membro particular da classe representada pelo substantivo. A man é
qualquer homem. Nenhum homem em particular é referido. O artigo a mostra que
nenhum homem em particular é apontado.
35. The é chamado de Artigo Deinido porque ele aponta ou deine o membro ou os
membros da classe mencionada. The man não é qualquer homem, mas um certo homem
especiicado. The men não são quaisquer homens indiferentemente, mas certos homens
deinidos.
36. Quando substantivos não são limitados por um artigo, eles abarcam toda a classe
por eles nomeada. Man abarca toda a família humana. Men inclui todos os homens.
Birds compreende todos os pássaros sem limitação.
Iron, silver, gold (ferro, prata, ouro) signiicam tudo feito destes metais. (HOLMES,
1878, p. 15)
3
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
609
Excluindo toda essa parte, Júlio Ribeiro não considera em sua
gramática a diferença entre artigo deinido e indeinido, distinção que
ele estabelece normalmente na sua Grammatica Portugueza em 1881.
O autor também não trata do funcionamento coletivo do substantivo
que, quando não limitado por um artigo, contempla uma classe inteira
nomeada por ele. Com o artigo, Júlio Ribeiro faz inversamente o que fez
com o adjetivo. Se com esse último, ele acrescentou uma classiicação
que Holmes não contemplava, aqui ele desconsidera uma classiicação
considerada pelo estadunidense. Nesse ponto, não é algo da ordem da
língua que está em jogo, mas a própria posição (teórica) do gramático que
o leva a considerar ou desconsiderar uma classiicação, contemplar ou
não um determinado funcionamento de uma classe de palavra. De fato, a
própria deinição de artigo de Júlio Ribeiro não vai corresponder àquela
encontrada por ele em Holmes. O brasileiro deine artigo da seguinte
forma: “ARTIGO é uma palavra que restringe a signiicação do nome a
um ou mais individuos determinados de uma classe” (RIBEIRO, 1891,
p. 21). E Holmes assim o faz: “Articles are words employed to show the
manner in which nouns are used in a sentence, and to determine their
application” (HOLMES, 1878, p. 15). De início, como diferença na
deinição, Holmes diz para que serve o uso da palavra artigo, enquanto
Júlio Ribeiro diz o que ela é. Para Holmes, o artigo mostra a maneira
como um substantivo é usado numa frase e para determinar sua aplicação.
Fala-se, portanto, de forma mais geral, em uso e aplicação. A deinição
de Júlio Ribeiro põe acento justamente sobre a aplicação, explicando
que a função que cumpre o artigo é restringir a signiicação do nome a
um ou mais indivíduos.
Vemos mais modiicações do texto de Holmes por Júlio Ribeiro
nos exercícios trazidos no im dessa parte IV da gramática. No exercício
II, a diferença se dá em razão de Júlio Ribeiro não ter feito a distinção
entre adjetivo deinido e indeinido, como havia feito Holmes. Assim,
enquanto Holmes pede “Use the Indeinite Article with the nouns”,
Júlio Ribeiro pede apenas “Ponha artigo antes de cada um dos nomes
da lista seguinte”. Nesse exercício, Ribeiro aproveita a maior parte das
palavras listadas por Holmes. Justamente por não fazer essa distinção,
Júlio Ribeiro não insere na sua gramática o exercício III proposto por
Holmes, no qual ele pede para usar o artigo deinido na lista de palavras
que ele propõe.
610
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
Na parte V da gramática, Palavras que substituem os Substantivos,
em que se explica que, quando se menciona uma coisa mais de uma vez,
pode-se tornar inconveniente repertir-lhe sempre o nome, Júlio Ribeiro
aproveita apenas o tema das frases de Holmes, usando como exemplo a
palavra sol, que, colocada em várias frases na posição de sujeito, serve
para mostrar como seria extravagante repetir a mesma palavra em toda
frase. Nas frases do brasileiro, escritas com um tom bem poético (inversão
da ordem direta, uso de adjetivos, imagens bucólicas e românticas) que
não encontrado em Holmes, que utiliza frases mais diretas e curtas, o
sol é repetido sempre na posição de sujeito, como em Holmes, mas uma
outra palavra é repetida em todas as frases – a palavra terra. Júlio Ribeiro
mostra, assim, o inconveniente da repetição em mais de uma posição
sintática, o inconveniente da repetição de duas palavras:
When a thing is mentioned more than once, it is often inconvenient
to repeat its name on each occasion.It would be awkward if we
were obliged to say: The sun returns every morning. The sun rises
in the east. The sun ascends the sky. The sun stands at noon above
our heads. The sun then descends. The sun sets in the west. The sun
passes out of sight in the evening.Instead of repeating the name
of the sun so often, and multiplying sentences, we say: The sun
returns every morning; it ascends the sky; it stands at noon above
our heads; it then descends; it sets in the west; and it passes out
of sight in the evening.The word it supplies the place of the noun
sun, and refers to it. (HOLMES, 1878, p. 16)
Quando se menciona uma cousa mais de uma vez, pode-se tornar
inconveniente repertir-lhe sempre o nome.Seria extravagante
dizer-se: «Em tudo e por tudo é o sol o pae da vida da terra: o
sol dá á terra os annos e os mezes; o sol dá á terra a mudança dos
céos, o sol dá á terra a alternativa das estações. Do sol vem á terra
a luz esplendida dos dias de verão, do sol vem á terra a meiguice
feiticeira das noutes de luar. É o sol que á terra veste os campos, é
o sol que á terra enche os rios, é o sol que a terra fecunda. Gloria
ao sol, gloria ao pae da vida!» Em vez de repetir tanto «terra» e
«sol», diz-se mais acertadamente: «Em tudo e por tudo é o sol o
pae da vida da terra: elle dá-lhe os annos e os mezes; ele dá-lhe
as mudanças dos céos, dá-lhe a alternativa das estações. Delle lhe
vem a luz esplendida dos dias de verão, delle lhe vem a meiguice
feiticeira das noutes de luar. É elle que lhe veste os campos, é elle
que lhe enche os rios, é elle que a fecunda. Gloria ao sol, gloria
ao pae da vida!» (RIBEIRO, 1891, p. 22-23)
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
611
Assim como Holmes, Júlio Ribeiro vai reescrever as frases
mostrando que as palavras repetidas podem ser evitadas. Notamos
então que sol é substituído pelas palavras ele e dele, dependendo da
posição sintática, e que terra é substituída por lhe e a. Em Holmes,
originalmente, as frases são reescritas com a substituição da palavra sun
(sol), sempre em posição de sujeito, pela palavra it. No im desse ponto,
como transcrevemos acima, Holmes explica: “The word it supplies the
place of the noun sun, and refers to it”.5 Esse trecho é completamente
cortado por Júlio Ribeiro, não sendo reaproveitado em sua gramática.
É apenas pelo próprio emprego do exemplo que Júlio Ribeiro deixa
entender que as palavras usadas (nas frases reescritas) substituem e se
referem às palavras repetidas (nas frases com palavras repetidas). É o
próprio exemplo que funciona, portanto, como explicação gramatical.
Dito de outro modo, é a própria explicação gramatical que é cortada por
Júlio Ribeiro, uma vez que o entendimento poderia se dar pelo exemplo.
Ainda nessa parte V, depois de explicar que pronome é uma
palavra que se põe no lugar do substantivo (na verdade, Holmes fala em
“word which supplies the place of”, ao passo que Júlio Ribeiro diz “palavra
que se põe em lugar de”), o estadunidense diz: “Some pronouns stand for
nouns. Other pronouns stand for adjectives”6 (HOLMES, 1878, p. 17).
Ao retomar essa passagem, Júlio Ribeiro vai cortar a explicação sobre os
adjetivos. No seu lugar, ele vai expor que alguns pronomes substituem
e limitam ao mesmo tempo os nomes: “Alguns pronomes substituem
simplesmente os nomes: outros substituem-n-os, limitando-os ao mesmo
tempo” (RIBEIRO, 1891, p. 23). Em virtude disso, os exemplos de Holmes
vão ser completamente substituídos por Júlio Ribeiro:
Bring wood to the ire. Its is at the door. Here it supplies the place
of wood. It stands for a noun. This tree is an oak, that tree is a
chestnut. Here this supplies the place of an adjective, such as
nearest; that, of an adjective like furthest. (HOLMES, 1878, p. 17)
«Preciso muito da chave, e não sei onde ella está.» Aqui «ella»
substitue simplesmente o substantivo «chave».«Olhe as vigas:
está é de peroba; aquella é de pinheiro». Aqui «esta» e «aquella»
substituem o substantivo «viga», e ao mesmo tempo limitam-n-o,
5
6
A palavra it supre o local do substantive sun (sol), e se refere a ele.
Alguns pronomes substituem substantivos. Outros pronomes substituem adjetivos.
612
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
mostrando a posição differente que occupam as duas cousas que
elle representa. (RIBEIRO, 1891, p. 23-24)
Ao explicar os exemplos, Holmes vai dizer, segundo o caso,
que a palavra toma o lugar do nome ou do adjetivo, chamando atenção,
portanto, ao nomear, para a classe da palavra substituída, substantivo
e adjetivo, no caso. Júlio Ribeiro, por sua vez, quando vai explicar os
seus exemplos, ele também vai dar o nome da classe a ser substituída,
no caso somente o substantivo, pois ele não considera o adjetivo em sua
explicação, mas acrescenta ainda, por meio de um exemplo, a propriedade
do pronome de limitar o substantivo.
Nessa parte V, Júlio Ribeiro não segue a classificação dos
pronomes adotada por Holmes, propondo, em seu lugar, uma divisão
de menos classes, mas com subclasses. Assim, Holmes (1878, p. 17)
faz a seguinte consideração sobre os pronomes: “Pronouns are divided
into Personal, Relative, Interrogative, and Adjective”. Júlio Ribeiro, ao
tratar do assunto, estabelece: “Ha duas classes de pronomes: Pronomessubstantivos e Pronomes-adjectivos” (RIBEIRO, 1891, p. 24). Como se
nota, é Júlio Ribeiro quem fala em classe, enquanto Holmes apresenta
simplesmente a divisão dos pronomes. O brasileiro vai então acrescentar
dois pontos em sua gramática que não estão na de Holmes: o item 40,
para explicar que os pronomes substantivos são os que substituem
simplesmente os substantivos, e o item 41, para explicar que os pronomes
adjetivos são os que substituem os substantivos, limitando-os ao mesmo
tempo. No item seguinte, 42, a numeração das duas gramáticas volta a
se emparelhar.
No seu texto, Holmes (1878, p.17) explica por que os pronomes
pessoais são assim chamados: “The Personal Pronouns are so called,
because they distinguish between the person speaking, the person spoken
to, and the person or thing spoken of.” O texto de Júlio Ribeiro vai
mudar sutilmente, pois ele vai explicar por que os principais pronomes
substantivos são chamados de pronomes pessoais, mantendo a mesma
explicação de Holmes: “Os principaes pronomes-substantivos chamam-se
PRONOMES PESSOAES, porque estabelecem distincção entre a pessoa
que falla, a pessoa a quem se falla, e a pessoa de quem se falla” (RIBEIRO,
1891, p. 24-25). Os pronomes pessoais entram na classiicação de Júlio
Ribeiro como uma classe dos pronomes substantivos. Ele insere, portanto,
uma subclassiicação que não foi contemplada por Holmes. Também
retira completamente nesse ponto a observação de Holmes sobre como
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
613
é pouco praticável substituir os pronomes pessoais I (eu) e you (você):
“It is scarcely practicable to substitute nouns for the personal pronoun
‘I’ and ‘you.’ But nouns may be easily substituted for ‘it’ and ‘him’.
Thus we may say, “I wish you to tell the secret to a friend” (HOLMES,
1878, p. 17).7 Essa observação, na verdade, vai ser deslocada por Júlio
Ribeiro, sendo recolocada dois pontos à frente, após explicar, no item
44, quais sãos os pronomes pessoais da primeira, segunda e terceira
pessoa. É nesse lugar, depois de listar todos os pronomes pessoais das
três pessoas, portanto, que o autor brasileiro julga ser adequado fazer tal
observação, e não, como Holmes, depois de simplesmente explicar por
que os pronomes pessoais são assim chamados.
A quantidade de pronomes listados por Júlio Ribeiro é bem
maior do que aquela listada por Holmes. Seria possível argumentar que
a questão aqui é da própria ordem da língua, pois o português teria, de
fato, mais pronomes pessoais que a língua inglesa. Há, no entanto, algo
que tem a ver com a descrição da língua, revelando antes mais um gesto
de autoria do gramático brasileiro. Júlio Ribeiro lista todos os pronomes
pessoais possíveis em português. Holmes, todavia, lista apenas uma parte
dos pronomes pessoais possíveis em inglês, ignorando me, you, him, her,
us e them. Nesse ponto, é importante ver os cortes e a reorganização
textual que Júlio Ribeiro faz na explicação de Holmes sobre o que é a
primeira, a segunda e a terceira pessoa:
The Personal Pronouns are–I, We, of the irst person; Thou, You,
of the second person; He, She, It, They, of the third person.The
irst person denotes the person or persons speaking.The second
person denotes the person or persons spoken to, or addressed.The
third person denotes the person or persons, thing or things spoken
of. (HOLMES, 1878, p. 17-18)
Os pronomes pessoaes são:
da 1.ª pessoa: «Eu, me, mim, migo; nós, nos, nosco».
da 2.ª pessoa: «Tu, te, ti, tigo, vós, vos, vosco».
da 3.ª pessoa «Elle, ella, o, a, lhe, se; elles, ellas, os, as, lhes, se.»
A primeira pessoa é aquella que falla.
7
É pouco prático substituir substantivos pelos pronomes pessoais I (eu) e you (tu,
você). Substantivos, porém, podem ser facilmente substituídos por it e him. Assim,
podemos dizer, “I wish you to tell the secret to a friend” (Eu desejo que você conte o
segredo para um amigo).
614
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
A segunda pessoa é aquella a quem se falla.
A terceira pessoa é aquella de quem se falla.
Qualquer das tres pessoas pode ser constituida por uma só ou por
mais pessoas.
OBSERVAÇÃO: Não é quasi possivel substituir os pronomes da
primeira e da segunda pessoa por substantivos. Com os pronomes
da terceira pessoa a substituição é facil. (RIBEIRO, 1891, p. 25-26)
Júlio Ribeiro corta, portanto, a consideração de Holmes sobre a
segunda pessoa considerada também aquela a quem se endereça e quanto
à terceira pessoa, que para ele é também a coisa ou coisas de quem se fala.
A deinição de Júlio é mais enxuta, por assim dizer, e talvez mais geral,
na medida em que não faz distinção entre pessoa e coisa, por exemplo.
Júlio Ribeiro corta os últimos dois itens da parte V da gramática
de Holmes, justamente aqueles em que o estadunidense explica e
apresenta os pronomes relativos e interrogativos. No tratamento dos
pronomes adjetivos, é possível ver que até a própria classiicação proposta
pelos dois gramáticos é realizada de maneira diferente em virtude das
modiicações operadas por Júlio Ribeiro no texto de Holmes. Assim, esse
último explica que os pronomes adjetivos são divididos em possessivos,
demonstrativos, distributivos e indeinidos, listando os adjetivos de cada
uma dessas classes:
The Adjective Pronouns are divided into several classes:
1) The Possessive Pronouns; as, my, our, thy, your, his, her, its,
their.
2) The Demonstrative Pronouns; as, this, that, these, those.
3) The Distributive Pronouns; as, each, every, either.
4) The Indeinite Pronouns; as, some, other, any. (HOLMES,
1878, p. 18)
Júlio Ribeiro, por sua vez, vai explicar o que são os adjetivos,
sem dividir classes nem listar quais são esses pronomes adjetivos. No
tratamento que dá à questão, Júlio Ribeiro vai fazer ainda uma observação
sobre o fato de alguns adjetivos limitativos não poderem ser empregados
pronominalmente:
Os Pronomes-adjectivos são exactamente os adjectivos limitativos
empregados pronominalmente, isto é, sem substantivo claro.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
615
OBSERVAÇÃO: Alguns adjectivos limitativos não podem ser
empregados pronominalmente, isto é, sem substantivo claro.
«Cada», por exemplo, nunca pode estar só na phrase. (RIBEIRO,
1981, p. 26)
No exercício ao im da parte V, no qual se pede para indicar
quais são os pronomes, distinguindo-lhes a classe (Júlio Ribeiro fala em
classes, Holmes em tipos), o brasileiro utiliza outras frases que aquelas
empregadas por Holmes, como se as usadas pelo estadunidense não
servissem para sua gramática:
Point out the Pronouns in the following sentences, distinguishing
their kinds.
I went to see your father at his house. He had gone to a neighbor’s.
You found the axe before it was needed. Now give it to him. Every
thing should be put in its place, that you may know where each
thing is. This is the knife which James found. Whose knife is it?
(HOLMES, 1878, p. 18)8
Indicar os pronomes, distinguindo-lhes as classes, nas sentenças
seguintes:
«Eu comi as laranjas de José, e tu comeste as minhas.– Vós me
não amais.– Olhe os cavallos: este é meu; esse é de meu pae;
aquelle não sei de quem é.–Quer peras? Cada uma custa meia
pataca.– Gosto muito de Maria, e não posso tolerar a Pedro: ella
é uma menina intelligente e mansa, elle é um diabinho estupido e
bravio.» (RIBEIRO, 1891, p. 26)
Na parte VI, Palavras que signiicam acções e condições de
cousas, Júlio Ribeiro passa uma frase de Holmes da forma passiva para
a forma ativa, dando destaque, portanto, ao sujeito que exprime a ação.
Após explicar que, quando se menciona alguma coisa, menciona-se
com o im de dizer qualquer outra coisa a respeito dela, Holmes (1878,
p. 19) exempliica da seguinte forma: “If I say, ‘Stars shine’, a thought is
8
Aponte os pronomes nas seguintes frases, distinguindo os seus tipos. Eu fui ver o seu
pai na casa dele. Ele havia ido à casa de um vizinho. Você encontrou o machado antes
de ele ser necessitado. Agora, dê-me-lo. Tudo deve ser colocado em seu lugar, de forma
a que você saiba onde cada coisa está. Esta é a faca que James encontrou. De quem é
esta faca? (HOLMES, 1878, p. 18)
616
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
expressed, and some information conveyed”.9 Retomando essa passagem,
Ribeiro (1891, p. 27) a traduz da seguinte forma: “Si eu digo «Estrellas
brilham», exprimo um pensamento, e dou uma informação”. Parece um
detalhe banal, mas não é de forma alguma gratuito, na medida em que
mostra justamente um ajuste de Júlio Ribeiro no texto de Holmes.
Várias modiicações por alterações ou substituições de exemplos
podem ser encontradas na gramática de Júlio Ribeiro. Ainda na parte VI,
por exemplo, ele substitui um dos quatro exemplos dados por Holmes na
deinição de verbo como uma palavra que exprime existência, condição
de existência, ato ou ação. Holmes usa I am here; I weep; I run; I strike
a blow. Júlio Ribeiro, por sua vez, substitui o terceiro exemplo (I run,
eu corro) por “Eu como”. Para o gramático brasileiro, esse exemplo é
melhor do que aquele dado pelo estadunidense. Nesse mesmo ponto,
Júlio Ribeiro aproveita integralmente o texto de Holmes, mas altera a
ordem das frases e substitui palavras. Holmes (1878, p. 20) escreve: “No
sense will be made by the other words, if the verbs are left out of the
sentences”. Invertendo a ordem da frase, Ribeiro(1891, p. 29) apresenta
a seguinte tradução : “Si tirar-se o verbo das sentenças em que elle não
possa facilmente subtender-se, icam as outras palavras sem sentido”.
Imediatamente em seguida, Holmes escreve o seguinte enunciado: “No
sense will be made by the words, I ––– sick; The kind lady ––– me. But
the sense is complete in the sentences, I was sick; The kind lady nursed
me”. Júlio Ribeiro, por sua vez, aproveita os exemplos de Holmes, mas
substitui a palavra sense por conexão no primeiro uso, traduzindo-a como
sentido mais à frente: “Não ha connexão em «Eu..... um ataque; a boa
senhora..... me.». Completa-se o sentido quando se diz: «Eu TIVE um
ataque; a boa senhora SOCCORREU-me.»”.
Num caso de substituição de exemplos motivada por algo
que não é da ordem do funcionamento estrito da língua, Júlio Ribeiro
exempliica com o prolóquio “muito riso, pouco siso” a observação do
item 50 relacionada ao fato de muitas vezes ser possível fazer arranjos
de sentenças sem verbos, que, nesses casos, são sempre subentendidos.
Holmes, para exempliicar casos como esses, utiliza o provérbio “many
men, many minds”. Nessa mesma observação, Júlio Ribeiro exclui algo
da parte do texto de Holmes, pois o gramático estadunidense explica
9
“Se eu disser, ‘Estrelas brilham, um pensamento é expressado, e alguma informação
transmitida”
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
617
que um verbo é “understood, or implied”, enquanto o brasileiro emprega
uma única palavra: subentendido. Ainda no mesmo lugar, Ribeiro (1891,
p. 30) reescreve o texto de Holmes quando diz “Há, porém, implicito um
verbo que se tem de subtender, mentalmente ao menos, para que haja
sentido”. O texto em inglês está escrito da seguinte maneira: “no verb is
expressed, but a verb is implied, and must be supplied, in thought at least,
before any meaning can be communicated by the words” (HOLMES,
1878, p. 52). No texto de Júlio Ribeiro, a frase “before any meaning can
be communicated by the words” é reduzida a “para que haja sentido”,
sem referência à signiicação comunicada por palavras.
No tratamento dado ao verbo, é possível encontrar modiicações
realizadas por Júlio Ribeiro por meio de substituição de termos. Ele
explica que o verbo muitas vezes é deinido como palavras de “enunciação
ou de asserção”, termos diferentes de Holmes, que, na mesma explicação,
diz que o verbo é muitas vezes deinido como palavras de “Assertion or
Afirmation”. Júlio Ribeiro, portanto, fala em enunciação e asserção,
enquanto Holmes fala em asserção e airmação. Na mesma passagem,
Júlio Ribeiro altera ligeiramente o exemplo dado por Holmes, que traz
a formulação combater na “guerra” (My brother fought throughout the
war), ao passo que ele fala em combater na “China” (Meu irmão combateu
na China). Nessa parte, como exemplo de modiicação de terminologia,
quando toma a explicação de Holmes de que os verbos são também
chamados de “Time-Words, or Tense-Words” por indicarem a época da
existência, da condição ou da ação, Júlio Ribeiro usa apenas um único
termo, “Palavras de Tempo”.
É possível pontuar outras situações em que Júlio Ribeiro modiica
o exemplo dado por Holmes, acrescentando mais palavras, sem que isso,
no entanto, corresponda aparentemente a uma questão da língua ou da
teoria. O gramático brasileiro adiciona elementos à frase do estadunidense
como se o que ele havia usado não fosse suiciente. Na parte VII, Palavras
que denotam o caracter ou qualidade de acções ou attributos, quando se
explica que ações e atributos variam em caráter ou qualidade, em grau
ou soma, Holmes (1878, p. 21) usa a seguinte frase como exemplo: “A
ship sails on the sea. One ship may sail well; another may sail badly; a
third may sail slowly; a fourth may sail very quickly”.10 Júlio Ribeiro,
10
“Um navio navega no mar. Um navio pode navegar bem; outro pode navegar mal;
um terceiro pode navegar devagar; um quarto pode navegar muito rapidamente.”
618
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
por sua vez, vai empregar também lagos e rios como lugares por onde
os navios navegam, ao passo que Holmes havia mencionado somente o
mar: “Os navios navegam no mar, nos lagos e nos rios. Um navio navega
bem; outro navega mal; um terceiro navega devagar; um quarto navega
rapidamente” (RIBEIRO, 1891, p. 32). No mesmo item (56 de Holmes
e 54 de Júlio Ribeiro), recuperando as palavras destacadas nos exemplos
para indicar advérbios, vemos que o brasileiro traz pelo menos uma
palavra a mais do que o estadunidense, cuja lista é a seguinte: well, badly,
slowly, more, exceedingly. A lista de Júlio Ribeiro é formada por bem,
mal, de vagar, rapidamente, mais, muito. Ainda nesse mesmo ponto, Júlio
Ribeiro faz também o movimento contrário, isto é, o de cortar palavras
empregadas por Holmes, uma alteração não na lista de exemplos, mas
na descrição das propriedades da classe de palavras. Assim está escrito
o texto de Holmes: “‘Dificult’ is an adjective expressing the character
or quality of a lesson”. No de Júlio Ribeiro, encontramos a seguinte
formulação: “‘Dificil’ é um adjectivo que exprime o caracter da lição”.
Para Holmes, portanto, o adjetivo expressa o caráter ou a qualidade do
verbo, enquanto que para Júlio Ribeiro o adjetivo exprime apenas o
caráter do verbo.
Um outro caso de diminuição da quantidade de exemplos pode ser
visto no exercício em que se pede para indicar os advérbios nas sentenças.
Júlio Ribeiro aproveita e traduz todos os exemplos dados por Holmes,
com exceção de um (“Many persons would have acted otherwise”). Num
outro exercício, em que se pede para formar frases com os advérbios
dados, na lista de Júlio Ribeiro (Alli, então, rectamente, bem, mal,
muito, pouco, sempre, nunca, lindamente, correctamente) são excluídos
alguns dos advérbios da lista de Holmes (There, then, otherwise, rightly,
frequently, sometimes, quickly, soon, justly, wisely, always, never, not,
sweetly, cheerfully). Num outro exercício, em que também se pede para
indicar os advérbios nas frases, Júlio Ribeiro não subtrai nenhuma das
frases de Holmes, mas substitui uma palavra por outra. Em Holmes, a
frase a ser completada é: “The morning is ––– beautiful”, traduzida por
Júlio Ribeiro como: “A manhã está ...... triste”. Não é uma imposição da
ordem da língua, não é tampouco decorrente de uma discordância teórica,
mas revela um gesto de autoria. Para o gramático brasileiro, triste vai
melhor na frase do que linda.
Na parte VIII, Palavras que signiicam a relação ou a direcção
de uma cousa para outra, quando se explica que uma palavra ou uma
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
619
frase é muitas vezes limitada pela expressão da relação que ela tem com
alguma outra coisa, ou pela adição de alguma coisa a que se dirige a
signiicação dela, na explicação do exemplo, Holmes mostra qual palavra
é limitada por qual palavra e a que palavra se dirige tal palavra, isto é,
ele marca as conexões entre as palavras:
The farmer is ploughing in his ield on the hill before us. Here the
phrase “is plouhing” is limited by expressing its relation to the
farmer’s own ield, and the meaning of “ield” is directed to the
particular ield “on the hill”, and the meaning of “hill” is directed
and confined to the field in sight, or “before us.” (HOLMES,
1878, p. 23).
Com base no texto de Holmes, Júlio Ribeiro explicita as mesmas
relações, mas vai acrescentar também a natureza da expressão que é
limitada, isto é, ele não apenas mostra as ligações entre as palavras, mas
também especiica a função da palavra, dizendo que a expressão limitada
é de circunstância de lugar:
«O macuco está pousado em um galho de canelleira.»Aqui a
phrase «está pousado» é limitada pela expressão de circumstancia
de logar «em um galho», e a signiicação de «galho» é dirigida a
um galho de canelleira. (RIBEIRO, 1891, p. 35)
Quando se explica que as preposições são assim chamadas porque
usualmente se colocam antes das palavras às quais se dirige a signiicação
de uma outra palavra, ou que são restringidas por essa signiicação, Júlio
Ribeiro corta completamente a seguinte observação de Holmes (1878,
p. 24): “Prepositions do not always precede the nouns dependent upon
them, nor are nouns always required with them; as, It was spoken of”.11
Esse funcionamento não se aplicaria ao português ou o brasileiro não
julgou necessário falar sobre isso em sua gramática? Em outro momento,
Júlio Ribeiro altera parte da deinição de preposição apresentada por
Holmes. A deinição dessa classe de palavras é a seguinte em Holmes:
“A Preposition is a word which expresses the relation or direction of
the meaning to another word or thought” (HOLMES, 1878, p. 24). A
deinição assim aparece em Ribeiro (1891, p. 36): “PREPOSIçÃO é uma
“Preposições nem sempre precedem os substantivos que são seus dependentes, e nem
sempre substantivos são necessários com elas; como, It was spoken of)”.
11
620
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
palavra que exprime a relação ou a direcção de uma palavra ou de um
pensamento para outra palavra ou para outro pensamento”. Na formulação
de Júlio Ribeiro, “of the meaning” vem a ser “de uma palavra ou de um
pensamento”, isto é, signiicado dá lugar a palavra e pensamento.
Quando Júlio Ribeiro retoma o exercício proposto por Holmes,
no qual se pede que se identiiquem as preposições nas sentenças,
vemos modiicações que parecem estar aí simplesmente pelo fato de
Júlio Ribeiro preferir outra palavra àquela usada por Holmes, mas isso
também não deixa de signiicar um gesto de autoria. Desse modo, no
exercício em que se pede para inserir preposições nas sentenças, Júlio
Ribeiro traduz as frases apresentadas por Holmes, mas substitui a palavra
dog (Drive the dog ––– the house) pela palavra cavalo (Tire o cavallo
..... dentro ..... casa). Nesse caso, a tradução fornece, em português, dois
ambientes para inserir a preposição, o que demonstra haver algo da ordem
da própria língua, mas que não tem absolutamente nada a ver com o fato
de Júlio Ribeiro trocar cachorro por cavalo na frase. Da mesma forma,
o brasileiro troca the street (The regiment marched ––– the street) por
cidades despovoadas (O regimento passou ...... cidades despovoadas).
Num terceiro exercício, em que o comando é formar sentenças em
que entrem as preposições listadas, Júlio Ribeiro reduz o número de
preposições apresentadas por Holmes, talvez porque algumas das
preposições em inglês usadas pelo estadunidense (About, above, under,
below, in, into, upon, within, without, through, by, to) correspondam a
uma única preposição em português na lista do brasileiro (A–para–em–
de–sobre–sob–com–ante–sem).
Cabe marcar a decisão de Júlio Ribeiro de traduzir, em duas
ocasiões, o termo statement, utilizado por Holmes, como juízo. No item
62 (64 de Holmes), por exemplo, ele explica que, nas frases “cão ladra
E morde–O cão morder-te-á SI tu lhe bateres”, “duas palavras ou dois
juízos estão ligadas pelas palavras e e si”. Já no item 63 (65 de Holmes),
ele airma que se empregam “certas palavras para ligar outras palavras
entre si, ou para ajunctar juizos”. Em Holmes, as frases estavam assim
escritas: “In these examples, two words or two statements are conected
together by the words ‘and’ and ‘if.’” e “Certain words are employed
to join other words or statements together”. O interessante, contudo, é
notar que, em todas as outras ocasiões em que Holmes usa a palavra
“statements”, e são mais de vinte ocorrências ao longo de todo o texto,
Júlio Ribeiro a traduz como asserção na maioria das vezes, mas duas
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
621
vezes, pelo menos, ela é traduzida como asserto; uma vez, como sentença,
e não como juízo. Nesses dois casos, no entanto, ele julgou melhor falar
justamente em juízo.
Nos exercícios ao inal da parte sobre as conjunções, Júlio Ribeiro
vai alterar a quantidade de itens, listando menos conjunções (E–ou;
nem–; porque–porquanto–pois–si–que–mas–porém–como) que Holmes
(And, or, either: nor, neither: because, for, since, till, if, that, but, though,
unless, lest, yet) no momento em que pede para formar sentenças com as
conjunções listadas, ou simplesmente acrescentando frases que não se
encontram em Holmes, quando, no exercício em que pede para identiicar
as conjunções, ele escreve: “Si eu fosse rico, mandava-te para a Europa”.
É possível destacar outros momentos em que Júlio Ribeiro insere
mais elementos do que Holmes para mostrar o funcionamento de uma
classe de palavra. Quando explica que algumas palavras são empregadas
somente com o im de indicar emoção, ele traduz e lista os mesmos cinco
tipos de emoção descritos por Holmes (grief, joy, disgust, surprise, fear),
mas insere uma a mais, o receio. Por outro lado, o gramático brasileiro,
na mesma passagem, mostra menos exemplos de palavras dessa espécie
(Ah! Oh! Ai! Ih!) do que o estadunidense (Ah! Hurrah! Ugh! Ha! Oh!
Alas!). Ainda no tratamento das interjeições, no item 69 (71 de Holmes),
Júlio Ribeiro corta completamente os exemplos de interjeições dadas por
Holmes e deixa somente a própria deinição, como se os exemplos fossem
desnecessários diante da deinição. Assim, como Holmes, ele vai dizer:
“Palavras que podem ser introduzidas em qualquer parte das sentenças
chamam-se Interjecções, isto é, «palavras lançadas no meio da sentença»”
(RIBEIRO, 1891, p. 42). No entanto, ele vai cortar essa passagem do texto
de Holmes: “Ah! Oh! Alas! are Interjections” (HOLMES, 1878, p. 27).
Na parte XI, Enumeração das classes de palavras, quando
são retomadas as deinições de classes de palavras, temos uma nova
oportunidade de notar algumas das alterações que Júlio Ribeiro faz nas
deinições apresentadas por Holmes. Quando retoma o adjetivo, por
exemplo, vemos mais uma vez que ele introduz a limitação das coisas
como uma propriedade dessa classe de palavras, algo que, como já
mostramos, não está presente no texto de Holmes. No caso dos artigos, o
brasileiro considera como sua propriedade individualizar e particularizar
a signiicação dos substantivos, enquanto o estadunidense fala em
determinar a aplicação ou acepção dos substantivos. Assim é apresentada
a deinição no texto de Holmes (1878, p. 8): “Words determining the
622
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
application or acceptation of nouns, or Articles”. No de Ribeiro (1891,
p. 44), a formulação se faz desta maneira: “Palavras que individualizam
e particularizam a signiicação dos substantivos, ou Artigos”. Quanto
aos verbos, ele acrescenta como descrição que eles enunciam, dizem ou
declaram: “Palavras que signiicam a existência, a condição, o acto ou a
acção das cousas, ou, em outros termos, palavras que enunciam, dizem
ou declaram, chamadas Verbos” (RIBEIRO, 1891, p. 44). Essa segunda
parte da frase de Júlio Ribeiro não se encontra na deinição de Holmes
(1878, p. 28): “Words signifying the existence, condition, act, or actions
of things, or Verbs”.
Alguns outros casos de mudanças de exemplos operadas por
Júlio Ribeiro podem ser encontrados na parte XII, Sentença. Holmes
utiliza o seguinte exemplo de sentença complexa: “The night cometh
when no man can work”. A frase de Júlio Ribeiro é a seguinte: “A noute
é triste por que é a ausência do sol”. Um exemplo de sentença simples
para Holmes é: “The summer is pleasant, and it is adorned with lowers”.
O mesmo exemplo é vertido por Júlio Ribeiro da seguinte maneira: “O
Verão é agradável, e a Primavera é risonha”. Em outro caso, Holmes
escreve: “To die for the right is worthy of all praise”. Já Júlio Ribeiro
prefere: “Morrer pela pátria é doce e glorioso”.
Quando ensina que o que se diz acerca do sujeito se chama
predicativo, Júlio Ribeiro mais uma vez acrescenta palavras no texto de
Holmes. A modiicação de Júlio Ribeiro nomeia qual a classe de palavra
para a qual se chama a atenção, enquanto Holmes (1878, p. 31) somente
indica a palavra sobre a qual se chama atenção: “In the sentences, Birds ly,
ishes swim, men walk, we travel, it is said of birds that they “ly;” of ishes,
that the “swim;” of men, that they “walk;” of the persons represented
by “we,” that they “travel”. Para o gramático brasileiro, é importante
dizer que o nós na frase nós viajamos é um pronome: “Nas sentenças
«Passaros vôam–Peixes nadam–Homens andam–Nós viajamos», diz-se
dos passaros que elles «vôam»; dos peixes que «nadam»; dos homens
que «andam»; e das pessôas representadas pelo pronome «nós» que
«viajam»” (RIBEIRO, 1891, p. 49).
Em duas ocasiões (itens 87 e 89 do brasileiro e 89 e 91 do
estadunidense), Júlio Ribeiro vai acrescentar uma palavra no texto de
Holmes para precisar o funcionamento do elemento gramatical explicado.
Nos dois casos, ele vai inserir a palavra “sempre” no texto que toma de
Holmes. Assim, na primeira vez, Holmes (1878, p. 32) diz: “The subject
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
623
of a simple sentence does not necessarily consist of a single word” . E
Júlio Ribeiro traduz: “O sujeito de uma sentença simples não consta
sempre, forçosamente, de uma palavra só” (RIBEIRO, 1891, p. 51). Na
segunda ocorrência, Holmes (1878, p. 32) escreve: “The predicate of a
simple sentence does not necessarily consist of only a single word”. E
Ribeiro (1891, p. 52) airma: “O predicado de uma sentença simples não
consta, sempre forçosamente de uma só palavra” Em um terceiro caso
ainda (item 90 de Júlio Ribeiro e 92 de Holmes), o brasileiro insere outros
elementos que atuariam no funcionamento gramatical de um item. Assim,
Holmes, quando explica que certos verbos que exprimem ação requerem
que se junte algo para completar o predicado, descreve a necessidade
de adição de um substantivo ou pronome: “Certain verbs expressive of
action require the addition of a noun or pronoun to complete the predicate,
by showing on what the action takes effect” (HOLMES, 1878, p. 33)
Ao traduzir essa passagem, Ribeiro (1891, p. 52) vai acrescentar como
necessidade uma parte do discurso ou uma frase substantivada: “Certos
verbos que exprimem acção, para que ique completa a sua predicação,
requerem que se lhes ajuncte um substantivo, um pronome, uma parte do
discurso ou uma phrase substantivada: este additamento mostra a cousa
sobre a qual se exerce acção signiicada pelo verbo”. Cabe ainda notar que
Júlio Ribeiro fala em predicação enquanto Holmes fala de “predicate”.
Na observação de que esse tipo de verbo se chama transitivo, Júlio Ribeiro
volta a reformular a frase de Holmes: “Os verbos que assim requerem a
addição de um substantivo ou de qualquer outra palavra ou phrase que
lhe faça as vezes, chamam-se Verbos Transitivos” (RIBEIRO, 1891,
p. 53). No texto do estadunidense, assim estava escrito: “Verbs that thus
require the addition of a noun or pronoun, are called Transitive Verbs”
(HOLMES, 1878, p. 33). A mesma estratégia será seguida no ponto
seguinte (91 de Júlio Ribeiro e 93 de Holmes), quando Holmes ensina
o que é o objeto do verbo: “The noun or pronoun added to complete the
predicate of a transitive verb is called the Object of the verb” (1878,
p. 33). Já no texto de Júlio Ribeiro, a lição aparece da seguinte maneira:
“O nome, pronome, parte do discurso ou phrase substantivada, que se
juncta para completar a signiicação de um verbo transitivo, chama-se o
«objecto do verbo.»” (RIBEIRO, 1891, p. 53). Cabe notar que Holmes
fala em completar o predicado do verbo, enquanto Júlio Ribeiro fala em
completar a sua signiicação. No ponto seguinte (92 de Júlio Ribeiro e
94 de Holmes), Júlio Ribeiro corta uma parte da explicação de Holmes
624
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
em que se airma que tanto o sujeito quanto o predicado podem constar
de uma só ou de muitas palavras, suprimindo especiicamente a parte
em que ele explica que o predicado sempre contém um verbo (“The
predicade always contains a verb”). Nessa passagem, Júlio Ribeiro
também altera o tamanho do exemplo dado por Holmes, elaborando a
frase com mais termos:
A simple sentence, then, consists of one subject and one predicate;
as, Fire burns. The subject and the predicate may each consist of
one, or of several words; as, Bees hum; The busy bee improves
each shining hour. The grammatical subject consists of a noun,
or a pronoun, or of something equivalent and used as a noun. The
logical subject includes all the words which describe the subject of
discourse. The predicate always contains a verb. The grammatical
predicate consists of the verb only. The logical predicate embraces
whatever is said of the logical subject. The grammatical predicate
sometimes requires to be completed by the addition of a word
denoting on what the action takes effect, and this word is called the
object; as, The boys broke–––the bottle. (HOLMES, 1878, p. 33-34)
Uma sentença simples, pois, consta de um só sujeito e de um só
predicado, exemplo: –«o fogo queima». Tanto o sujeito como o
predicado pode constar de uma só palavra ou de muitas, exemplos:
–Abelhas zumbem–As diligentes, zumbidoras abelhas colhem das
lores o mel de seus favos.» O sujeito grammatical consta de um
substantivo, de um pronome, ou de qualquer palavra usada como
substantivo. O sujeito logico comprehende todas as palavras que
descrevem o sujeito do discurso. O predicado grammatical consta
só do verbo. O predicado logico abraça tudo o que se diz do sujeito
logico. Por vezes o predicado grammatical requer, para ficar
completo, que se lhe addicione uma palavra designativa daquillo
sobre o que se effectua a acção, e tal palavra chama-se objecto;
exemplo: –«Os meninos quebraram A GARRAFA».(RIBEIRO,
1891, p. 53-54)
É interessante notar a oscilação nas escolhas lexicais para o
tratamento da sentença complexa. Tanto Holmes quanto Júlio Ribeiro
vão intercambiar os termos sentença e proposição, como se fossem
equivalentes. No entanto, algumas vezes, o brasileiro vai traduzir como
proposição o que o estadunidense chamou de sentence e, contrariamente,
preferir sentença quando o outro escolheu falar de proposition. Assim,
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
625
num primeiro momento, Holmes (1878, p. 34) explica: “In a complex
sentence the leading or limited proposition is called the principal sentence
or clause”. E continua: “The secondary or limiting proposition is called
the subordinate sentence or clause” (HOLMES, 1878, p. 35). Em Ribeiro
(1891, p. 56). por seu turno, vamos ler: “Em uma sentença complexa a
sentença limitada ou mais importante chama-se «clausula ou proposição
principal»”. E em seguida: “A proposição secundaria ou limitadora chamase «clausula ou proposição subordinada»” (RIBEIRO, 1891, p. 56). Nessa
mesma parte, Júlio Ribeiro corta um elemento na deinição de Holmes
(1878, p. 35) de sentença composta: “A Compound Sentence is one
in which two or more simple and independent sentences are joined
together by means of a conjunction”. Na deinição tal como escrita por
Júlio Ribeiro, não se marca que as sentenças simples que se juntam para
formar uma sentença composta são também independentes: “SENTENÇA
COMPOSTA é uma sentença em que duas ou mais sentenças simples
junctam-se por meio de uma conjunção” (RIBEIRO, 1891, p. 55).
No im, como já comentamos, Júlio Ribeiro vai apresentar um
aditamento dos fatos essenciais léxicos e sintáticos da língua portuguesa.
5 A introdução de referências ao Brasil no discurso gramatical por
meio da seleção dos exemplos
As modiicações de Júlio Ribeiro no texto de Holmes foram
fortemente percebidas no emprego dos exemplos, o que tem a ver com
a airmação de Auroux (1992, p. 67) de que “os exemplos testemunham
sempre uma realidade linguística”, podendo ser utilizados para disfarçar a
ausência de certas regras ou a impossibilidade do gramático de formulálas, bem como para justiicar ou questionar regras ou descrições. Na
forma de testemunhas de realidades linguísticas diferentes, para guardar
a formulação de Auroux (1992), os exemplos utilizados por Holmes não
puderam ser mantidos por Júlio Ribeiro em certos casos, como vimos
detalhadamente no item anterior, Ainal, Ribeiro trabalha com o português
falado no Brasil enquanto Holmes lida com o inglês dos Estados Unidos.
É interessante marcar a explicação de Holmes de que os exemplos
usados em sua gramática são os mesmos aproveitados tradicionalmente
pela maior parte das schools grammars: “The examples and exercises have
been usually taken without hesitation from preceding works of a similar
nature, – a procedure adopted in most school grammars”. (HOLMES,
626
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
1878, p. 1-2). Não são, portanto, invenções do próprio Holmes, mas
obra de uma tradição, o que ilustra bem a airmação de Auroux (1992,
p. 67) de que os “exemplos se beneiciam de uma espantosa estabilidade
no tempo”, encontrados, “por um procedimento de tradução, de língua
a língua”, sendo que “a constituição de um corpus de exemplos é um
elemento decisivo da gramatização”. Além de reutilizar esses exemplos
recuperados pelo próprio Holmes da tradição da gramática inglesa,
Júlio Ribeiro vai modiicá-los muitas vezes para introduzir no discurso
gramatical referências ao Brasil e também a Portugal.
No item 19, quando se deine que substantivos são palavras que
são nomes de coisas, vemos a substituição de um exemplo que parece
funcionar para situar algo que se imagina mais próximo da realidade do
público da gramática de Júlio Ribeiro. Holmes usa as palavras kettle e
andiron como exemplos de coisas que podem ser manejadas ou tocadas.
Júlio Ribeiro traduz kettle aproximadamente como caçarola, e andiron
como formão. O andiron, no entanto, tem a função especíica de ser o
ferro que se utiliza nas lareiras, um instrumento provavelmente pouco
conhecido num país com temperaturas elevadas como o Brasil. Mais do
que uma palavra, o que parece ser traduzido por Júlio é um modo de vida
na medida em que ele substitui a palavra usada por Holmes por outra
que evoque um objeto mais conhecido pelos brasileiros.
No exercício I da parte IV da gramática, quando o comando é de
identiicar os chamados substantivos próprios e apelativos em uma lista,
Júlio Ribeiro traz nomes que evocam a geograia do Brasil (S. Paulo) e
de Portugal (Lisboa, Portugal), além de listar nomes correntes nos dois
países (Amelia, Julio, Gouvêa), enquanto Holmes havia posto nomes
usados nos Estados Unidos (Macon, Jackson, Joshua). Diferentemente
de Júlio Ribeiro, os nomes de cidade listados por Holmes não evocam a
geograia do seu próprio país (Mexico, Pompey, Palestine, Paris).
As modiicações de Júlio Ribeiro continuam nos exercícios
referentes aos verbos. Quando se pede para indicar os verbos nas sentenças
apresentadas e explicar por que são verbos, Júlio Ribeiro aproveita
praticamente todas as frases de Holmes, mas muda algumas para trazer
imagens da fauna e da geograia do Brasil (e mesmo uma provocação aos
portugueses!), em substituição a imagens talvez mais típicas dos Estados
Unidos. Assim, Holmes dá como exemplo “Fox live in the holes”, ao passo
que Júlio Ribeiro escreve “Os tatus fazem buracos”. No lugar de escrever
como Holmes “Pigs squeal”, Júlio Ribeiro escreve “Os portugueses
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
627
grunhem”. Holmes escreve “The snow covers the ground”, ao passo que
Júlio Ribeiro escreve “Cahiu neve um dia deste no Rio de Janeiro”.
Uma outra ocorrência em que Júlio Ribeiro adapta o exemplo
dado por Holmes com elementos mais comuns ao Brasil pode ser vista
quando se explica que os advérbios podem ser empregados para limitar
ou qualiicar outros advérbios. O exemplo de Holmes (1878, p. 22)
é o seguinte: “Jenny Lind sang marvellously well. Your friend paints
very beautifully” Júlio Ribeiro (1891, p. 34), por sua vez, escreve:
“Sarah Bernhardt inge paixões maravilhosamente bem, e pinta muito
correctamente”. A atriz francesa Sarah Bernhardt era bastante famosa no
Brasil, tendo visitado o país quatro vezes. A soprano sueca Jenny Lind
fez uma grande turnê pelos Estados Unidos, sendo provavelmente por
isso mais conhecida por lá do que por aqui. Na sequência, os exemplos de
Holmes usados para exempliicar a deinição de advérbios como palavras
que se juntam a verbos, adjetivos e a outros advérbios para qualiicar-lhes
a signiicação são atribuídos à cantora (“She sings sweetly; she is entirely
helpless; she rides very gracefully”); os de Júlio Ribeiro se referem à atriz
(“Ella falla docemente, ella é bem linda, ella sabe-se conduzir-se muito
bem”). Assim, os exemplos são alterados para se adequarem à mudança de
objeto, de cantora famosa nos Estados Unidos para atriz famosa no Brasil.
Na parte VIII, Palavras que signiicam a relação ou a direcção
de uma cousa para outra, Júlio Ribeiro modiica o exemplo empregado
por Holmes, fazendo menção à fauna brasileira. O exemplo de Holmes
é “The farmer is ploughing in his ield on the hill before us”. O utilizado
por Júlio Ribeiro é o seguinte: “O macuco está pousado em um galho
de canelleira”.
Quando Júlio Ribeiro retoma o exercício proposto por Holmes
em que se pede para identiicar as preposições nas sentenças, o brasileiro
aproveita todas as frases do estadunidense, mas substituindo novamente
as menções a elementos dos Estados Unidos por itens brasileiros. Ele
insere, assim e mais uma vez, por meio dos exemplos, a geograia e a
história do Brasil, bem como os hábitos alimentares. A frase em Holmes
(1878, p. 24) é: “We went from Boston to Savannah” . Em Ribeiro (1891,
p. 370), por sua vez, lê-se: “Elle veio da Côrte para S. Paulo”. A frase
de Holmes, se traduzida sem modiicações para o português, serviria
perfeitamente ao propósito do exercício, isto é, identiicar as preposições.
O gramático brasileiro, no entanto, prefere fazer certas adaptações e trazer
imagens brasileiras. Assim, nesse mesmo exercício, ele vai acrescentar
628
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
duas outras sentenças, duas a mais que Holmes, portanto, e nelas se fala
justamente da história e de hábitos do Brasil: “Pedro II é ilho de Pedro
I” e “Como pão com manteiga”.
Nos exercícios ao inal da parte sobre as conjunções, quando
se pede para identiicar as conjunções nas sentenças, Júlio Ribeiro
aproveita todas as frases criadas por Holmes, mas fazendo mais uma vez
a substituição dos nomes próprios em inglês usados pelo estadunidense.
Assim, a frase de Holmes “Henry and Fred are good boys, but Tom and
Bob are not” é traduzida por Júlio Ribeiro com a substituição dos nomes
próprios corriqueiros nos Estados Unidos por nomes comuns no Brasil:
“Jorge e Joel são bons meninos, mas Arthur e Osorio não são”.
Quando se apresenta de forma mais direta a deinição de interjeição
como uma palavra introduzida no corpo de uma sentença para exprimir
qualquer emoção súbita da pessoa que fala (item 70 de Júlio Ribeiro e 72
de Holmes), Júlio Ribeiro, uma outra vez, reformula o exemplo dado por
Holmes, trazendo novamente menções à geograia do Brasil. A frase de
Holmes é: “Strange! that the letter should never have reached me!”. A de
Júlio Ribeiro fala de São Paulo e da corte no Rio de Janeiro: “Famoso! a
carta partiu de S. Paulo ha oito dias, e ainda não chegou á corte!”.
Na parte das sentenças, quando se explica que qualquer palavra
ou frase pode ser substantivada e formar sujeito da sentença, Júlio
Ribeiro modiica o exemplo para citar o nome de uma obra literária da
língua portuguesa quando Holmes havia citado uma obra literária da
língua inglesa. Holmes (1878, p. 31) se refere ao Corvo de Poe: “To
write Poe’s Raven required high genius”. A referência de Júlio Ribeiro é
aos Lusíadas: “ESCREVER LUSIADAS só é dado aos genios”, dando
assim publicidade à literatura em língua portuguesa enquanto Holmes
dava publicidade à literatura em língua inglesa.
6 Para inalizar: entre as imposições da ordem própria da língua e
marcação de uma posição autoral : Holmes Brazileiro como um
caso de gramática latina extensa e gesto de constituição de lugar
brasileiro de autoria sobre a língua e o conhecimento linguístico
Júlio Ribeiro e George Frederick Holmes são dois gramáticos
do continente americano que guardam a semelhança de escreverem
gramáticas de línguas que já foram gramatizadas nas ex-metrópoles
europeias. Pelo menos na gramatização brasileira do português, o
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
629
processo de colonização marca a identidade linguística pelo que Orlandi
(2005) chama de memória heterogênea, que posiciona a língua portuguesa
no Brasil entre o imaginário de autonomia e de unidade com Portugal.
Na comparação da situação linguística nos três primeiros séculos
de colonização no Brasil e nos Estados Unidos, Mariani (2004, p. 168)
airma que a “relação língua-nação constituída na metrópole inglesa e
na colônia americana a partir de sua independência é distinta daquela
constituída na metrópole portuguesa e na colônia brasileira”, mostrando,
por exemplo, que a colônia brasileira do século XVIII é herdeira de
uma concepção de língua submissa ao falar e escrever corretamente,
com o português brasileiro sendo apresentado por meio de rubricas
como brasileirismos ou provincialismos. Do lado norte-americano, o
foco está no vínculo da norma aos usos que possibilitam a expressão
ou comunicação dos pensamentos adequadamente, com uma narrativa
histórica da língua que enfatiza o plurilinguismo e o multiculturalismo
e dá pouco espaço para a designação língua americana.
Ainda que reconheça diferenças entre o inglês dos Estados
Unidos e o da Inglaterra, Holmes trabalha na ilusão de compor uma
gramática da mesma língua da ex-metrópole. Pensando na airmação de
Auroux (1992, p. 74) de que o processo de gramatização corresponde
a “uma transferência de tecnologia de uma língua para outras línguas”,
poderíamos dizer que Júlio Ribeiro escreve sua gramática na ideia de
um mesmo funcionamento gramatical entre duas línguas distintas. Na
verdade, o que temos aqui é um bom exemplo do que Auroux (1992,
p. 78) chama de “gramática latina extensa” quando explica que o “plano
relativamente ixo das gramáticas deine o quadro para se preencher por
uma descrição de língua e também os termos teóricos necessários para
uma primeira apreensão dos fenômenos”. Dessa forma, notamos que,
apesar das reformulações de Júlio Ribeiro, as categorias com as quais ele
trabalha se mantêm mais ou menos as mesmas daquelas de Holmes e, no
fundo, de toda a tradição gramatical ocidental. Nesse ponto, é importante
citar a tese de Auroux (1992, p. 42) de que o “fundo latino constitui
um fator de uniicação teórica que não tem equivalente na história das
ciências da linguagem”, o que explicaria “a homogeneidade conceptual
dessas disciplinas”. Dessa forma, ainda segundo Auroux (1992, p. 43-44),
o estabelecimento de “identidade de metalinguagem” possibilitou “uma
certa equivalência entre as gramáticas das diferentes línguas redigidas em
qualquer dos vernáculos em uso”, de forma que “as gramáticas podem ser
630
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
simples traduções umas das outras”. Daí provém a sua observação de que a
“gramatização (a base do latim) de um vernáculo europeu pode igualmente
servir de partida para uma outra língua e lhe transmitir sua ‘latinidade”.
Acentuando modiicações, cabe reforçar a existência de todo
um trabalho de ressigniicação do material de Holmes por parte de Júlio
Ribeiro. Nesse sentido, vale lembrar a airmação de Orlandi (2004, p. 14)
de que “qualquer modiicação na materialidade do texto corresponde a
diferentes gestos de interpretação, compromisso com diferentes posições
do sujeito, com diferentes formações discursivas, distintos recortes
de memória, distintas relações com a exterioridade”. Pensando essa
airmação para o entendimento especíico da composição da obra de
Júlio Ribeiro no processo de gramatização brasileira no século XIX, vale
igualmente recordar o que diz Orlandi (2009, p. 122) sobre a vinculação
dos gramáticos brasileiros com a produção internacional na sua airmação
de que “as referências a autores estrangeiros, feitos por nossos autores,
são uma maneira de argumentar em relação a uma história própria”, de
modo a não serem “nem simples inluências nem mera recepção”, mas
antes “formas de argumentar em função de ideias que dão a especiicidade
de uma iliação de memória intelectual linguística brasileira na relação
com a ciência em geral”. “Não há reprodução teórica, mas transferência,
re-signiicação”, teoriza Orlandi (2000, p. 23) ao marcar que é preciso
“considerar como nossos autores se iliam a linhas de relexão linguísticas
para poderem formular suas ideias e constituírem o nosso pensamento
gramatical assim como a ideia de uma língua nossa, no Brasil”. É
nessa perspectiva inalmente que Orlandi (2009, p. 154) defende que
os gramáticos brasileiros do inal do século XIX e início do século
XX “assumem a posição-autor de um saber linguístico que não relete
meramente o saber gramatical português”, sendo a gramática “o lugar
em que se institui a visibilidade de um saber legítimo para a sociedade
brasileira e torna visível a língua que falamos”, num “processo de resigniicação, de historicização, tanto da língua quanto do saber sobre ela”.
Como um gramático brasileiro do século XIX, no movimento de
busca de outras iliações teóricas que não as vindas somente de Portugal
e de assumir uma posição de um saber linguístico que não se reduz a
reletir meramente o saber gramatical português, Júlio Ribeiro encontra
na obra A Grammar of the English Language, do estadunidense George
Frederick Holmes as bases para a composição de sua Holmes Brazileiro
ou Grammatica da Puericia, uma gramática pretendida como cientíica e
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
631
construída com base em uma outra avaliada igualmente como cientíica,
num movimento que nos possibilita lançar luz sobre a alteridade que
a gramática estadunidense representa para a gramatização brasileira
do português. Na transposição de um modelo gramatical, submetido
ao engenho dos procedimentos de transferência de tecnologias entre
línguas, isto é, ao que é da própria dinâmica da gramatização, Júlio
Ribeiro não apenas traduz, mas modiica o compêndio de Holmes. Assim,
por exigência das diferenças entre o português do Brasil e o inglês dos
Estados Unidos, Júlio Ribeiro reformula o texto de Holmes levado pelas
especiicidades da ordem própria da língua. No entanto, não é apenas essa
imposição da ordem própria da língua que está em jogo nas reformulações
de Júlio Ribeiro, sendo possível enxergar nelas um gesto de autoria do
gramático brasileiro sobre a língua e o conhecimento linguístico, gesto
signiicado pelas escolhas lexicais para a deinição e classiicação das
categorias gramaticais, pela própria redistribuição dessas categorias,
descrição de seu funcionamento e consideração de suas propriedades;
pelo acréscimo de elementos ao texto de Holmes, como se o que ele
havia colocado não fosse suiciente, ou, contrariamente, pela supressão
de outros elementos, como se enxergasse um excesso; pelos rearranjos
nas frases e dos itens do tratado e pela substituição de exemplos, como
se os usados pelo estadunidense não servissem para a sua gramática,
inserindo por meio deles referências ao Brasil no discurso gramatical.
Referências
ALVES, Francisco Ferreira de Vilhena. Primeira Grammatica da
Infância. Pará: Pinto Barbosa & Cia, 1896.
ALVES, Francisco Ferreira de Vilhena. Segunda Grammatica da
Infância. Pará: Pinto Barbosa & Cia. 2. ed. 1897.
AQUINO, José Edicarlos de. Júlio Ribeiro na história das ideias
linguísticas no Brasil. 2016. 354 p. Tese (Doutorado) – Instituto de
Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2016.
AQUINO, José Edicarlos de. O que há de materno na língua?:
Considerações sobre os sentidos de língua materna no processo de
gramatização brasileira nos séculos XIX e XX. 2012. 204 f. Dissertação
(Mestrado) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual
de Campinas, Campinas, 2012a.
632
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018
AQUINO, José Edicarlos de. Os nomes da língua na Grammatica
Portugueza de Júlio Ribeiro. Língua e Instrumentos Linguísticos,
Campinas, n. 30, p. 71-99, 2012b.
AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas:
UNICAMP, 1992.
HOLMES, G. F. A Grammar of the English Language. New York: UPC,
1878.
MARIANI, Bethania. Colonização linguística. Campinas: Pontes, 2004.
ORLANDI, Eni P. A língua brasileira. Ciência e Cultura, Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, n. 57. v. 2, p. 29-30, 2005.
ORLANDI, Eni P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho
simbólico. Campinas: Pontes, 2004.
ORLANDI, Eni P. O Estado, a gramática, a autoria: língua e conhecimento
linguístico. Línguas e Instrumentos Linguísticos, Campinas, n. 4/5, p. 1934, 2000.
ORLANDI, Eni P.; GUIMARÃES, Eduardo. Formação de um Espaço de
Produção Linguística: a gramática no Brasil. In: ORLANDI, Eni P. (Org.).
História das ideias linguísticas: construção do saber metalinguístico e
constituição da língua nacional. Mato Grosso: Pontes, 2001. p. 21-38.
RIBEIRO, Júlio. Holmes brasileiro ou grammatica da puericia. São
Paulo: Teixeira & Irmão, 1886.
RIBEIRO, Júlio. Grammatica Portugueza. São Paulo: Jorge Seckler,
1881.
RODRÍGUEZ-ALCALá, Carolina. Escrita e gramática como tecnologias
urbanas: a cidade na história das línguas e das idéias linguísticas.
Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 53, n. 2, p. 197-217,
2011. Doi: http://dx.doi.org/10.20396/cel.v53i2.8636988
TIMELLI, Maria Colombo. Traductions françaises de l’Ars Minor de
Donat au Moyen age (XVIIIe-XVe siècles). Firenze: La Nuova Italia
Editrice, 1996.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
Duração de sílabas em fronteira de frase fonológica
na produção de sentenças sintaticamente ambíguas
do português brasileiro
Syllable duration in phonological phrase boudaries
in the production of syntactically ambiguous sentences
in Brazilian Portuguese
Melanie Campilongo Angelo
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo / Brasil
melanie.angelo@usp.br
Raquel Santana Santos
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo / Brasil
raquelss@usp.br
Resumo: Este artigo investiga a duração de sílabas na produção de
sentenças ambíguas do tipo SN1-V-SN2-Atributo no português brasileiro,
tais como ‘O pai visitou o ilho feliz’. Fonologicamente, as diferentes
leituras são explicadas pelo fato de o atributo poder ou não se juntar ao
SN2 na construção do domínio da frase fonológica (NESPOR; VOGEL,
1996). Angelo e Santos (2015) testaram essas sentenças e encontraram
apenas um direcionamento de comportamento, mas não uma diferença
significativa nos resultados a depender da duração. No entanto, a
quantidade de dados e seu balanceamento afetavam os resultados. Aqui,
aplicamos o experimento a mais informantes e balanceamos as estruturas
para ins de comparação. Os resultados encontrados revelaram diferenças
signiicativas observando o tipo de estrutura – os falantes alongaram as
sentenças com interpretação não local. Os resultados chamam a atenção
ainda para dois tipos de estruturas que podem interferir no processo de
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.633-666
634
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
alongamento, impedindo-o: sentenças em que o atributo é formado por
adjetivos deverbais e sentenças que possibilitam construções de small
clause.
Palavras-chave: aposição local; aposição não local; fronteira prosódica;
adjetivos deverbais.
Abstract: This article discusses the production of syllable duration in
Brazilian Portuguese as a prosodic cue in ambiguous sentences with a
NP1-V-NP2-attribute structure (e.g. ‘The father visited his son happy’).
Phonologically, the two different interpretations can be explained by
the fact that attributes may or may not join NP2 in the construction of
the phonological phrase domain (NESPOR; VOGEL, 1996). Angelo
and Santos (2015) tested these sentences and found only a bias toward
a lengthening when the interpretation is non-local (the father is happy).
However, their study lacks a reasonable quantity of data and balance
of structures. Here, we rerun the experiment controlling the mentioned
problems. Overall results showed signiicant differences for type of
syntactic structure - speakers produced high attachment sentences
longer than low attachment ones. The indings signal also to two kinds
of structures that may interfere in the process, blocking the lengthening:
sentences which the attribute is formed by a non-verbal adjective and
sentences which allow small clause constructions.
Keywords: low Attachment; high attachment; prosodic boundary;
deverbal adjective.
Recebido em 29 de julho de 2017
Aceito em 14 de setembro de 2017
Introdução
Esta pesquisa parte do estudo de Angelo e Santos (2015) sobre
o uso da pista prosódica de duração de sílabas na produção de sentenças
sintaticamente ambíguas do português brasileiro (doravante PB) e busca
explicações para os resultados encontrados.
Magalhães e Maia (2006) avaliaram a interpretação da leitura de
sentenças que apresentam ambiguidade entre as posições local/não local
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
635
do atributo,1 em sentenças como em (1), que podem ter as leituras com
aposição não local (a) e com aposição local (b):
(1) A menina venerou a santa sorridente.
a. A menina estava sorridente.
b. A santa estava sorridente.
Angelo e Santos (2012, 2015) reformularam os testes aplicados
por Magalhães e Maia (2006) para observar o que acontecia com a duração
no trecho onde pode haver uma reestruturação prosódica. Segundo Nespor
e Vogel (1986), a interface Fonologia-Sintaxe se dá na construção da
frase fonológica. Segundo o algoritmo de construção do domínio de
frase fonológica, um constituinte de frase fonológica é formado por um
núcleo lexical e pode ser reestruturado com seu complemento. Desse
modo, as leituras em (1a) vs. (1b) podem ser explicadas pelo fato de
o atributo poder ou não se juntar ao SN2 na construção do domínio da
frase fonológica, como exempliicado em (2) e (3):
(2) A menina venerou [a santa f] [sorridente f] >> a menina
venerou [a santa sorridente f]
• A santa estava sorridente (‘sorridente’ é complemento de
‘santa’).
(3) A menina venerou [a santa f] [sorridente f] >> *a menina
venerou [a santa sorridente f]
• A menina estava sorridente (‘sorridente’ não é complemento
de ‘santa’, por isso, não pode se reestruturar e compor
apenas uma frase fonológica).
Além do mais, sabe-se que sílabas tônicas e sílabas inais de
palavras são alongadas no inal de domínios prosódicos (FOUGERON;
KEATING, 1997). Se quanto mais próximo das fronteiras, maior a
duração das sílabas (CHO; KEATING, 2001; KEATING et al., 2003),
deveria acontecer uma variação na duração das sílabas de ‘santa’ apenas
na aposição não local, seja na tônica ‘san’ ou na átona ‘ta’, por serem
próximas à fronteira nessa interpretação. Ou seja, deveria ocorrer
1
Este trabalho será apresentado com mais detalhes na seção 3.
636
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
um alongamento nas sílabas do objeto, pois é ele que se encontra em
diferentes domínios prosódicos conforme a interpretação escolhida. Um
alongamento nas primeiras sílabas do atributo na interpretação não local
como, no caso, a sílaba ‘so’ em ‘sorridente’, também se justiicaria por
estar próximo à fronteira. Já na leitura com aposição local, essas sílabas
não estariam no inal/começo de domínio e, portanto, deveriam ser mais
curtas do que com a leitura não local, quando estão no começo/inal do
domínio.
Como em Magalhães e Maia essas medições não foram feitas,
Angelo e Santos (2012, 2015) veriicaram se havia alguma variação
nesse contexto e o que se concluiu foi que não há distinção de duração
signiicativa entre as leituras, embora, sempre que tenha havido um
alongamento relevante, ele tenha ocorrido em direção do esperado,
ou seja, quando havia uma fronteira prosódica e a leitura de aposição
não local. As autoras concluem seu artigo sugerindo que saber esse
alongamento possa ser opcional – o que, para ser respondido, precisa de
um maior volume de dados. Além disso, esse trabalho fornece poucos
dados e não apresenta uma comparação entre diferentes interpretações das
sentenças por um mesmo falante. Por im, nele se analisam conjuntamente
estruturas sintáticas locais diferentes (estruturas atributivas e predicativas
– cf. seção 1.1).
O objetivo deste artigo é, assim, discutir o que acontece com
as sílabas dentro versus às margens de domínios prosódicos em tais
sentenças pois, uma vez que há diferentes mapeamentos estruturais a
depender da interpretação (aliado ao fato de haver na literatura trabalhos
que concluam que sílabas em início e/ou inal de domínios prosódicos
são mais longas e melhor articuladas), espera-se que, quando o objeto
e o atributo não puderem se reestruturar, a duração das sílabas que
beiram a fronteira seja maior. Buscamos também responder à questão
suscitada pelas autoras sobre a opcionalidade desse processo. Para tanto,
reaplicamos o experimento de produção de Angelo e Santos (2012, 2015),
com alguns novos cuidados metodológicos, visando buscar evidências
da existência ou não do processo de alongamento em fronteiras de frases
fonológicas de sentenças ambíguas do PB.
Este artigo está organizado da seguinte maneira: na primeira
seção, trazemos os aspectos da descrição sintática, prosódica e fonética
necessários para a descrição destas sentenças ambíguas. Na segunda
seção, retomamos os estudos sobre desambiguização de sentenças
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
637
ambíguas no português. A terceira seção apresenta a descrição dos
objetivos, hipóteses e predições e metodologia quanto ao experimento
conduzido. A quarta seção traz os resultados encontrados. Na quinta e
sexta seções, faz-se uma discussão dos resultados e, por im, na sétima
seção, apresentamos as considerações inais.
1 A estrutura de sentenças do tipo SN1- Verbo - SN2 - Atributo
1.1 Perspectiva sintática
De acordo com Mioto (2004), de um modo geral, as construções
sintáticas se dão por meio de um núcleo X que rege diretamente seu
complemento e que é comandado pelo seu especiicador. Partindo dessa
descrição, podemos distinguir as sentenças do tipo SN1-Verbo-SN2Atributo em duas estruturas: uma com o atributo modiicando o sujeito e
outra com o atributo modiicando o objeto (cf. Estruturas 4 e 5 a seguir):2
(4) [[[O aluno]DP [[consult-]V [o monitor]DP]V’]VP [cismado]AP]VP.
(5) [[[O aluno]DP [[consult-]V [[[o]D [[monitor]N [[cismado]AP]N’]NP]
] ] ] ] .
D’ DP V’ VP VP
Como se pode observar, na estrutura em (4), o AP [cismado]
pende de VP, enquanto o DP [o monitor] é nó irmão de V [consult-],
conduzindo à interpretação de que ‘o aluno estava cismado’. Na estrutura
de (5), [cismado] é nó irmão de [monitor], compondo ambos o mesmo
NP e gerando a interpretação de ‘monitor cismado’.
Além disso, há que se considerar que mesmo nessas estruturas
há uma diferença entre sentenças como ‘A Maria trabalhou magoada’ e
‘O João considera a Maria bonita’. Segundo Foltran (1999), no primeiro
caso, o verbo ‘trabalhar’ só seleciona um argumento, o de sujeito, no caso
[A Maria], o que não exclui a relação evidente entre o AP [magoada] e o
DP [A Maria]. No segundo exemplo, o verbo ‘considerar’ seleciona, além
Por questões de espaço e para não fugir do escopo da presente pesquisa, não cabe
nesta seção discutir os sintagmas acima do sintagma verbal (VP), e pretende-se com
as estruturas apenas ilustrar como se explica na Sintaxe a diferença de signiicado das
sentenças.
2
638
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
do sujeito, o constituinte [a Maria bonita] inteiramente, o que, de acordo
com a autora, é uma evidência para classiicar [a Maria bonita] como
uma pequena oração selecionada pelo verbo, ou seja, uma small clause.
Esses dois tipos de sentença apresentam diferentes estruturas
sintáticas. Para Foltran e Mioto (2007), o adjetivo está dentro de um
DP nas estruturas de adjunção (sendo adjunto de um sintagma nominal
(NP) (cf. (6a)), enquanto que ele é um predicativo de um argumento
nas estruturas de small clause. Se o argumento é um DP, o adjetivo não
pertence a ele, mas forma com ele a small clause (cf. (6b)):
(6) A mãe encontrou a ilha suada.
a. Adjunção: [DP a ilha suada]
b. Small clause: [SC a ilha suada]
Fonte: Angelo e Santos (2017, p. 1.172)
Tendo esse fato em mente, é necessário um cuidado especial na
escolha do verbo ao se trabalhar com ambiguidade entre as aposições não
local e local de uma sentença. Verbos como ‘visitar’, ‘ajudar’, ‘consultar’
selecionam entidades: visitar [o ilho feliz] / ajudar [a mãe carinhosa]
(estruturas adjuntivas), ao passo que outros verbos, como ‘comprar’,
‘encontrar’, ‘considerar’, ‘julgar’, entre outros, têm a possibilidade de
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
639
selecionar uma situação, um estado de coisas: comprar [o carro quebrado]
/ considerar [o réu inocente] (small clauses, estruturas predicativas).
A diferença sintática acaba trazendo consequências para a estrutura
prosódica, já que, como veremos, estruturas locais por small clause
apresentam a mesma estrutura prosódica que leituras apositivas não locais.
1.2 Perspectiva prosódica
Assumimos, neste artigo, a proposta de Nespor e Vogel (1986),
para quem há 7 níveis prosódicos: sílaba, pé, palavra fonológica, grupo
clítico, frase fonológica, sentença e frase entoacional. Os níveis da palavra
prosódica e acima são construídos levando-se em conta informações
de outros componentes gramaticais (morfologia, sintaxe, semântica),
o que signiica que a fonologia de uma frase não diz respeito apenas
à concatenação das sequências fonológicas das palavras. No caso das
sentenças ambíguas, por exemplo, há um mesmo conjunto de palavras,
mas que subjacentemente se organizam em estruturas sintáticas diferentes
e, consequentemente, em diferentes estruturas prosódicas.
De acordo com Nespor e Vogel (1986), a estrutura prosódica é
independente, mas gerada levando-se em conta informações provenientes
da sintaxe: as informações sintáticas são mapeadas no nível da frase
fonológica (f) por meio das regras de mapeamento apresentadas em
(7) – (NESPOR; VOGEL, 1986, p.168-173):
(7) Phonological Phrase formation:
I. domain:
The domain of F consists of a clitic group (C) which
contains a lexical head (X) and all Cs on its nonrecursive
side up to the C that contains another head outside of the
maximal projection of X.
II. construction:
Join into an n-ary branching F all Cs included in a string
delimited by the deinition of the domain of F.
F Restructuring (optional):
A nonbranching F which is the irst complement of X on
its recursive side is joined into the F that contains X.
640
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
De acordo com o algoritmo apresentado em (7), uma palavra
lexical juntamente com seus clíticos forma o grupo clítico (C) (e.g. ‘o
ilho’, ‘cismado’). Um adjetivo, além de compor ele mesmo uma frase
fonológica, pode ser incorporado ao domínio que contém a palavra que ele
modiica em um processo de reestruturação: anexar a uma frase fonológica
o primeiro complemento de X que esteja em seu lado recursivo, ou seja,
o lado em que se encontram os complementos do núcleo lexical (e.g. ‘o
ilho cismado’) (NESPOR; VOGEL, 1986, p.173).3,4 Essa reestruturação
só pode ocorrer se o complemento for composto de uma só palavra (logo,
não é possível que as frases fonológicas ‘o ilho’ e ‘muito cismado’ sejam
reestruturados em ´o ilho muito cismado´).
Esse mapeamento relete diferenças estruturais de sentenças
ambíguas de adjunção, como em (8). A princípio, na interpretação de que
o monitor está cismado, ‘cismado’ é complemento de ‘monitor’, formado
por um único grupo clítico, e, portanto, as duas frases fonológicas podem
ser reestruturadas (8b); na interpretação de que o aluno está cismado,
não há relação entre ‘monitor’ e ‘cismado’; portanto, a reestruturação
não é possível entre as frases fonológicas (8a):
(8) O aluno consultou o monitor cismado.
a. leitura: O aluno cismado.
[o aluno F] [consultou F] [o monitor F] [cismado F]
>> *[o aluno F] [consultou F] [o monitor cismado F]
>> [o aluno F] [consultou o monitor F] [cismado F]
As autoras também propõem que a reestruturação é especíica da língua, ou seja, há
línguas que não possibilitam a reestruturação, há línguas que obrigatoriamente exigem
a reestruturação nos casos possíveis, enquanto que há línguas em que a reestruturação é
possível, mas opcional. Estudos como os de Abousalh (1997), Santos (2003), Sândalo
e Truckenbrodt (2002) sobre o português brasileiro defendem que nessa língua a
reestruturação é possível; no entanto, eles não discutem se é uma reestruturação opcional
ou obrigatória, dado que o fenômeno que eles analisam é opcional (o stress shift).
4
Enfatizamos, porém, que a proposta de Nespor e Vogel é de 1986, quando não havia
distinção na Teoria X-Barra entre complemento e adjunto e, da mesma forma, NP era
a projeção lexical máxima em vez de DP. Hoje, há trabalhos que mostram que adjuntos
funcionam como complementos (cf. SANTOS, 2003, que demonstra a retração acentual
acontece entre o verbo e o adjunto). Existem diversos trabalhos que reveem Nespor e
Vogel (e.g. GUIMARÃES, 1997; FROTA, 2000; VIGÁRIO, 2003).
3
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
641
b. leitura: O monitor cismado.
[o aluno F] [consultou F] [o monitor F] [cismado F]
>> [o aluno F] [consultou F] [o monitor cismado F]
Até onde sabemos, Angelo e Santos (2015) foi o primeiro trabalho
sobre a estrutura prosódica de small clauses no português brasileiro.
Aplicando estritamente a proposta de Nespor e Vogel, a reestruturação
das frases fonológicas entre o adjetivo e o nome não pode ocorrer porque,
embora a interpretação seja local, o adjetivo não está inserido na projeção
máxima do nome (cf. (6) acima e o algoritmo em (7)). O resultado é
que essas estruturas são mapeadas com uma fronteira entre o núcleo e
o complemento – cf. (9).
(9) [O joséF] [encontrouF] [o carroF] [quebradoF]
Observe-se, então, que a estrutura prosódica das sentenças por
small clause, embora tenha leitura local, é igual a estrutura prosódica
das sentenças com leitura não local.
1.3 Perspectiva fonética
Trabalhos sobre a fonética dos segmentos em fronteiras prosódicas
nas mais diversas línguas mostram que contrastes fonêmicos são
maximizados/ mais bem realizados no começo dos domínios prosódicos
(cf. CHO; KEATING, 2001; KEATING et al., 2003). Interessantemente,
esses efeitos variam conforme os níveis prosódicos em que aparecem.
Esses estudos comprovaram que os contrastes foram maximizados e o
alongamento aumentava à medida que os domínios prosódicos icavam
mais altos. Ou seja, um alongamento em fronteira de frase fonológica
é menor do que um alongamento em fronteira de sentença, mas maior
do que aquele em grupo clítico, por exemplo. O efeito do alongamento
foi encontrado tanto na fronteira inicial (BYRD; SALTZMAN,1998;
CHO; KEATING, 2001; CHO, 2006; FOUGERON, 2001; KEATING
et al., 2003; TABAIN, 2003), quanto na inal (BYRD, 2000; BYRD;
SALTZMAN, 1998; CHO, 2006; TABAIN, 2003; TABAIN; PERRIER,
2005) dos domínios prosódicos.
Santos e Leal (2008) investigaram se os mesmos efeitos são
encontrados em PB por meio de um experimento com palavras inseridas em
642
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
fronteiras de diferentes domínios prosódicos em sentenças não ambíguas.
Tanto na fronteira esquerda quanto na direita dos domínios prosódicos, só
houve diferença signiicativa (com maior duração) na fronteira de frase
entoacional. Assim, em PB, não haveria como distinguir pela duração
se há fronteira, por exemplo, de frase fonológica, em uma sentença. As
autoras, no entanto, sugerem que pode ser o caso de o PB fazer uso do
alongamento quando para desambiguizar sentenças ambíguas como (8).
2 Estudos anteriores em PB
Inúmeros trabalhos discutem o papel da prosódia na interpretação
de sentenças sintaticamente ambíguas (cf. GRAVINA; SRVARTMAN,
2013; PIERREHUMBERT, 1980; LADD, 1996; MAIA, 2011;
LOURENçO; MAIA; MORAES, 2004; FODOR, 2002; FONSECA,
2008; FRAZIER, 1979). No entanto, o foco desses trabalhos está mais
no processamento do que na explicação do fato de a estrutura prosódica
poder ser diferente nas distintas interpretações. Magalhães e Maia (2006),
por exemplo, procuram por padrões de desambiguação de estruturas
prosódicas por aposição de atributo. Aos autores interessava descobrir
se há uma preferência por algum tipo de aposição quando algumas
segmentações prosódicas são inseridas nas orações, o que indicaria uma
prosódia implícita guiando a interpretação de sentenças não marcadas.
Os resultados mostraram que há uma preferência para a interpretação
como aposição local. Em sentenças do tipo SN1-V-SN2-Atributo,
os autores mediram o inal do atributo. Os resultados indicaram uma
duração maior quando a aposição é não local, mas, interessantemente,
esse resultado não é previsto pela estruturação prosódica, já que, nessa
fronteira (fronteira direita do atributo), o domínio prosódico é o mesmo
tanto em interpretação local quanto não local (compare o mapeamento
prosódico de (8a) vs (8b)). Magalhães e Maia creditam seus resultados
a efeitos do Princípio de Aposição Local (com base no princípio de late
closure (FRAZIER, 1979) e prosódia implícita (FODOR, 1998). Segundo
o princípio de late closure, um sintagma só se fecha quando não há outro
elemento que possa ser aposto a ele, e, em ambos os casos, esse elemento
é existente, pois o atributo modiica o objeto. Segundo o princípio de
prosódia implícita, em sentenças simples, sem modiicações prosódicas,
os falantes preferem intepretações locais a não locais. Em outras palavras,
as interpretações locais seriam default e só seriam encontradas variações
prosódicas no caso de interpretações não locais.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
643
Angelo e Santos (2012, 2015), com base nos resultados de
Magalhães e Maia (2006) e Santos e Leal (2008), investigaram se em
sentenças ambíguas haveria uma distinção prosódica (do ponto de vista
da duração das sílabas em fronteiras de frases fonológicas) entre as
interpretações de sentenças ambíguas por aposição de atributo. Para ins
metodológicos, as autoras adaptaram nove sentenças do experimento
de Magalhães e Maia (2006) de forma a facilitar a medida de duração,
substituindo, por exemplo, os segmentos oclusivos para fricativos
(que tinham seu início mais fácil de detectar acusticamente. As nove
sentenças foram selecionadas e inseridas em histórias que direcionavam
a determinada interpretação. Trinta informantes nascidos em São Paulo,
adultos e de nível universitário, foram escolhidos e divididos em dois
grupos. Um grupo leu as histórias com uma interpretação, ao passo
que o outro grupo leu as histórias com a segunda interpretação (ambos
apresentavam leituras dos dois tipos, ou seja, direcionando à aposição
não local e à aposição local). As leituras foram feitas, primeiramente,
em silêncio, para que a interpretação desejada fosse garantida e, em
seguida, em voz alta, quando gravadas. Tendo como hipótese uma
relação entre o alongamento e a estrutura prosódica, a predição era de
que haveria alguma distinção entre as leituras e de que as leituras do tipo
não local apresentariam algum alongamento das sílabas realizado pelo
falante se comparadas às mesmas sentenças na leitura local (fosse esse
alongamento na sílaba anterior ou posterior do local de reestruturação da
frase fonológica ou, até mesmo, na pausa). Sendo assim, em uma frase
como em (10), o trecho medido foi de ‘lho’ até ‘fe’.
(10) O pai visitou o iLHO FEliz.
Os resultados encontrados não confirmaram as hipóteses
das autoras, mas observou-se uma tendência: os informantes que
diferenciaram as durações sempre o izeram em favor de uma maior
duração das sentenças em aposição não local. Quando se comparavam
apenas as estruturas (local vs. Não local), as sentenças com reestruturação
foram sempre mais longas, mostrando certa tendência do falante em
realizar esse alongamento, embora também não tenha sido uma diferença
estatisticamente signiicativa. Porém, não houve diferença na duração
entre fronteira de frase fonológica (que indicava aposição não local)
e grupos clíticos (o domínio imediatamente inferior, quando não há
fronteira de frase fonológica).
644
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
O trabalho de Angelo e Santos, no entanto, não possibilita
comparar as diferentes versões de cada sentença lidas por um mesmo
informante, o que pode ser um problema, pois cada informante tem seu
ritmo e velocidade de leitura. Ao mesmo tempo, esse trabalho também
não controlou separadamente a distinção da aposição local por adjunto
ou predicativa. Pela quantidade de dados, também não possibilita discutir
a opcionalidade do processo. Finalmente, nesse estudo e nos que lhe
serviram de base, sentenças apositivas por adjunto e sentenças apositivas
por small clause foram analisadas conjuntamente. Se o alongamento
obedece a fronteiras prosódicas, o resultado não signiicativo pode ter sido
causado por essas duas estruturas terem sido analisadas conjuntamente.
2.1 O experimento
Para investigar o uso do alongamento no PB em fronteiras
prosódicas de sentenças ambíguas como forma de desambiguação,
um experimento com falantes brasileiros produzindo sentenças-alvo
ambíguas torna possível veriicar a existência do processo na língua.5
Replicamos os experimentos de Angelo e Santos (2012, 2015)
da seguinte maneira: recuperamos informantes e pedimos a eles que
lessem a versão oposta das sentenças de Angelo e Santos. Em seguida,
gravamos informantes novos, que leram as duas versões das sentenças.
Isso gerou um corpus mais robusto. Somente após o experimento rodado
foi que se percebeu a possibilidade de diferença estrutural nas sentenças
de aposição local. Assim, analisamos os resultados encontrados levando
em conta essas diferenças sintáticas das sentenças.
2.2 Objetivos, hipóteses e predições
Partindo da hipótese de que há uma interação entre fonologia e
sintaxe que se concretiza em pistas fonológicas para o falante, as quais
servem para desambiguizar as sentenças ambíguas, nosso objetivo é
observar se o falante direciona a produção de sentenças ambíguas (lidas
dentro de um contexto de desambiguação) por meio de diferenças na
duração do trecho em que pode haver reestruturação Nossa hipótese leva
às seguintes predições quanto ao nosso experimento:
Aprovação do Comitê de Ética para pesquisas com seres humanos deferida pelo
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e registrada por meio do CAAE:
45791815.5.0000.5561.
5
645
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
i.
Dados os resultados de Angelo e Santos (2012, 2015), ocorrerá
ao menos uma tendência à produção de alongamento para as
sentenças de aposição não local em comparação às sentenças
de aposição local (hipótese nula: sentenças com aposição não
local e local terão a mesma duração no trecho medido);
ii.
Dados os resultados de Angelo e Santos (2012, 2015), espera-se
que a realização do alongamento seja um processo opcional dos
falantes para marcar a interpretação não local (hipótese nula: O
alongamento vai ocorrer em toda produção não local para todos
os falantes);
Além disso, esperamos observar os efeitos de duração em
estruturas em que small clauses são possíveis. Nenhuma previsão a esse
respeito é elencada, já que as sentenças que podem ser sentenças por
small clause também podem ser sentenças por adjunção.
3 Metodologia
As sentenças analisadas no experimento foram as mesmas de
Angelo e Santos (2015), baseadas nas sentenças de Magalhães e Maia
(2006) – cf. Quadro 1.
QUADRO 1 – Sentenças analisadas e interpretações
Sentenças
Interpretações possíveis
S1. O pai visitou o ilho feliz.
A, B
S2. A babá ninou a menina chorando.
A, B
S3. O aluno consultou o monitor cismado.
A, B
S4. O sobrinho cumprimentou o tio sonolento.
A, B
S5. O assessor auxiliou o presidente furioso.
A, B
S6. O repórter entrevistou o político sozinho.
A, B
S7. A mãe procurou a ilha magoada.
A, B
S8. A mãe encontrou a ilha suada.
A, C
S9. O réu encontrou o advogado nervoso.
A, C
Fonte: Elaborado pelas autoras.
646
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
Todas as sentenças possibilitavam interpretações não locais (A)
e locais. A interpretação local pode ser feita de duas formas: algumas
sentenças favoreciam apenas a adjunção do atributo ao verbo (sentenças
1 a 7, identificadas como interpretação (B)), enquanto que outras
possibilitavam para as locais, além da adjunção, a estrutura de small
clause (sentenças 8 e 9, identiicadas como interpretação (C)).6
As sentenças foram inseridas no final de histórias que as
desambiguizavam, dando margem apenas a uma interpretação, quer de
aposição não local (versão A), quer de aposição local (versão B ou C),
totalizando 18 histórias. As 18 histórias foram agrupadas em duas listas,
que continham, cada uma, apenas uma ou outra versão de cada sentença,
mais 6 histórias distratoras.
Participaram do teste 30 falantes adultos, com nível universitário,
nascidos e moradores de São Paulo. Os 30 informantes leram as duas listas
em momentos diferentes (sendo que 10 deles, informantes de Angelo e
Santos (2015), leram apenas a lista que não haviam lido no experimento
das autoras). Em suma, o corpus é composto de 540 dados de produção
(9 sentenças x 2 interpretações x 30 informantes).
As histórias foram integralmente gravadas utilizando-se o
programa Audacity 1.3. Beta Unicode. Posteriormente, por meio do
software Praat, foram recortadas apenas as sentenças ambíguas e medidas
a duração, em milissegundos, desde a sílaba inal do objeto até a sílaba
inicial do atributo (por exemplo, em ‘ilho feliz’, o trecho medido foi lho
fe). Dessa forma, captura-se qualquer diferença que o falante possa estar
fazendo na sílaba inal de SN2, na sílaba inicial do Atributo, ou mesmo
uma maior duração de pausa entre esses dois argumentos. Todos esses
eventos fonéticos podem ser relexos de uma fronteira de frase fonológica
entre SN2 e Atributo, resultante de uma estrutura com aposição não local.
4 Resultados
Os resultados foram analisados quanto à estrutura sintática,
informante e sentença. A análise estatística foi com o programa R. Os
Como a detecção desse tipo de estrutura por small clause só foi percebida após o
teste ter sido rodado, não há um equilíbrio quantitativo entre sentenças com verbos
atributivos (adjunção) e sentenças com possibilidade de leitura atributiva ou predicativa.
(small clause).
6
647
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
testes estatísticos utilizados para a produção foram o Teste (paramétrico)
T de Student para amostras pareadas (dependentes) – utilizado quando se
pretende comparar medidas repetidas do mesmo falante (médias) – , e o
teste de Wilcoxon (não-paramétrico) para amostras pareadas (medianas).
Os dados são analisados por estrutura, por sentença e por informante.
4.1 Por estrutura de aposição
A Tabela 1 discrimina os valores dos testes estatísticos para a
aplicação por tipo de estrutura. Na primeira linha, um geral das nove
sentenças (comparação A vs. B/C) é pautado. As estruturas de A em
comparação com as B representam as sete sentenças que não possibilitam
small clause. Por im, a comparação de A com C, na última linha, é apenas
para as duas sentenças que possibilitam small clause.
TABELA 1 – Comparação da média e mediana de duração da leitura
(em milissegundos) conforme a estrutura, para os 30 falantes
Teste t
Estrutura
Teste de Wilcoxon
Média das diferenças
entre as médias
(IC95%)
p-valor
Pseudo-mediana
das diferenças entre
medianas (IC95%)
p-valor
A
B/C
21,13
(13,82; 28,45)
<0,001
16,26
(12,09; 20,81)
<0,001
A
B
21,98
(13,92; 30,03)
<0,001
17,79
(12,99; 23,00)
<0,001
A
C
18,18
(0,72; 35.63)
0,042
10,79
(2,04; 21,31)
0,019
Fonte: Angelo (2016, p. 79)
O Teste t para amostras pareadas compara as médias de duração
das estruturas de A e B (ou A e C) que foram medidas nos mesmos falantes.
Foi aplicado, também, um teste não paramétrico devido à assimetria da
distribuição dos tempos de duração.7 O teste não paramétrico é baseado
na comparação das medianas e, assim como no caso das médias, assinala
O Teste t tem pressupostos que precisam ser atendidos para que seu resultado seja
idedigno, como dados provenientes de distribuição normal, que é simétrica.
7
648
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
para diferenças entre as estruturas, com maior mediana para a estrutura de
A em ambas as comparações. É interessante notar que, nos dois testes, os
resultados foram similares: podemos airmar que as médias das estruturas
não local e local são estatisticamente distintas, com a média das não
locais (A) superior em todas as comparações de ambos os testes.8 Porém,
apesar de o valor da comparação de A e C (p-valor de 0,042 (média) e
0,019 (mediana)) ser signiicativo, não foi tão baixo como na comparação
geral (A vs. B/C) e na especíica de A vs. B, o que pode indicar não só a
necessidade dessas estruturas serem olhadas mais cuidadosamente, como
também uma variação de resultado por se tratar de apenas duas sentenças.
4.2 Por sentenças
A segunda comparação considerou cada sentença contrapondo as
leituras A (aposição não local) versus as leituras B ou C (aposição local,
sendo B apenas adjunção, e C, ambíguo entre adjunção e small clause),
desconsiderando os falantes. Os valores estatísticos estão dispostos na
Tabela 2 a seguir.
Os valores da Tabela não respondem diretamente qual estrutura
foi mais longa que a outra, mas sim se há signiicância entre a diferença
das durações. Por isso, a média/mediana de B ou C foi subtraída da
média / mediana de A. Assim, valores positivos na coluna de IC95%
mostram que as produções com leitura não local (A) foram mais longas;
semelhantemente, valores negativos indicam que B ou C foram mais
longas. Para cada valor signiicativo, deve-se olhar para o IC95% em
busca de saber qual das estruturas foi alongada.
Isso pode ser veriicado pelos valores positivos (maiores que zero) dos valores IC95%,
pois, para calcular as médias/medianas, subtraiu-se de A os valores de B/C.
8
649
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
TABELA 2 – Comparação da média e mediana da duração (em milissegundos)
conforme a sentença e suas estruturas, para os 30 falantes
Sentença
S1
Estruturas
A
B
Teste t
Média das diferenças
entre as médias
(IC95%)
39,97
(18,28; 61,66)
p-valor
<0,001
Teste de Wilcoxon
Pseudo-mediana
das diferenças entre
p-valor
medianas (IC95%)
<0,001
32,05
(14,26; 60,28)
19,73
(-4,93; 44,39)
0,113
12,22
(-0,88; 26,49)
0,064
B
S3
A
B
7,44
(-31,63; 46,51)
0,700
-0,035
(-18,10; 18,49)
0,984
S4
A
B
20,67
(9,97; 31,37)
<0,001
19,49
(8,32; 32,17)
0,001
S5
A
B
A
B
A
B
A
C
A
C
29,64
(13,28; 46,00)
21,00
(7,09; 34,89)
15,41
(-0,42; 31,24)
-3,62
(-23,71; 16,46)
39,98
(7,67; 53,43)
<0,001
26,31
(12,60; 42,90)
20,26
(9,14; 31,94)
14,60
(5,53; 26,66)
0,71
(-12,66; 13,55)
22,25
(7,67; 53,43)
<0,001
S2
S6
S7
S8
S9
A
0,004
0,056
0,715
0,006
0,001
0,008
0,952
0,001
Fonte: ANGELO (2016, p. 82-83)
Os testes para comparação das médias e medianas mostram que,
nas comparações de A com B, há diferenças signiicativas da média e
mediana das sentenças S1, S4, S5 e S6 e também da mediana da sentença
S7. Para a comparação de A e C, apenas a sentença S9 apresentou média
e mediana signiicativas. Todos os valores signiicativos indicam uma
maior duração da estrutura de A (IC95% > 0). Observando as médias
das diferenças entre as médias (Coluna 3) e médias das diferenças
entre as medianas (Coluna 5), apenas a mediana da S3 e a média da S8
apresentaram a versão local (B ou C) mais longa que a não local (A),
mas essa diferença não foi signiicativa. Em suma, apenas S2, S3 e S8
não apresentam diferença signiicativa entre as leituras nem nas médias,
nem nas medianas.
650
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
4.3 Por falantes
Estatisticamente, buscou-se conirmar que nenhum dos falantes
foge dos padrões de leitura. A Tabela 3 traz o valor de signiicância das
diferenças entre as médias de todas sentenças não local (A) versus local
(B). Como destacado no início dessa seção de resultados, as sentenças
C foram produzidas mais longas do que as sentenças B (cf. Tabela
3). No entanto, não é possível analisar a variabilidade de sentenças C
isoladamente, pois, como a análise aqui conduzida é por falante, há
apenas duas medidas desse tipo de interpretação para cada um deles, o
que resulta em pouca variabilidade.
TABELA 3 – Comparação da duração (em milissegundos) para cada falante9
Teste t9
Falante
Estrutura
Média das diferenças entre as médias
(IC95%)
p-valor
F5
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
27,57
(-80,97; 136,13)
28,53
(-85,18; 142,25)
80,99
(-109,17; 271,16)
10,93
(-153,95; 175,83)
7,59
(-110,69; 125,88)
106,13
(-90,75; 303,02)
-17,8
(-127,37; 91,58)
16,14
(-80,05; 112,32)
28,55
(-65,25; 122,34)
39,94
(-13,66; 93,54)
19,64
(-33,89; 73,17)
0,5899
F13
F14
F16
F17
F18
F19
F23
F25
F27
F31
9
0,5945
0,361
0,8874
0,8902
0,2504
0,7279
0,7184
0,5198
0,1302
0,4389
Apenas o Teste t foi realizado, pois compara medidas repetidas do mesmo indivíduo.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
F32
F33
F34
F35
F36
F37
F38
F39
F40
F41
F42
F43
F44
F45
F46
F47
F48
F49
F50
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
A
B
Fonte: Angelo (2016, p. 99-101)
-28,48
(-10,45; 67,44)
9,03
(-71,46; 89,52)
1,70
(-44,55; 47,96)
-31,82
(-106,26; 48,62)
35,38
(-52,3; 123,49)
-5,84
(-71,12; 59,44)
35,03
(-23,11; 93,18)
47,75
(-23,67; 119,17)
9,67
(-84,14; 103,48)
16,77
(-47,31; 80,85)
-25,96
(-128,12;76,22)
9,04
(-86,08; 104,16)
43,31
(-34,82; 121,43)
44,67
(-12,85; 102,19)
-6,47
(-72,83; 59,88)
46,14
(-21,35; 113,64)
32,72
(-68,43; 133,88)
37,47
(-30,60; 105,53)
-0,35
(-63,91; 64,62)
651
0,1402
0,8110
0,9374
0,4245
0,3987
0,8485
0,2105
0,1701
0,8205
0,5747
0,5900
0,8387
0,2504
0,1153
0,8351
0,1613
0,4915
0,2535
0,9906
652
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
Salientamos que a análise por falante tem a inalidade de observar
se há algum informante desviante. Ela leva em consideração as diferenças
de interpretação, mas não de estrutura (B vs. C) nem de sentença (1 a 9),
o que pode mascarar os resultados. Como podemos observar na Tabela
3, não houve casos de signiicância estatística entre as leituras A ou B.
Isso signiica que, estatisticamente, nenhum dos nossos falantes pode
ser considerado desviante e que a variabilidade nas produções deve ser
interpretada como este fenômeno podendo ser considerado opcional.10
5 Discussão
Direcionamos nossa discussão com base nas predições elencadas
em 3.2.
5.1 Diferença de alongamento por diferença de aposição
Dados os resultados de Angelo e Santos (2012, 2015),
esperávamos que pelo menos uma tendência à produção de alongamento
ocorresse para as sentenças de aposição não local em comparação às
sentenças de aposição local. Para investigar essa questão, a predição
para a hipótese nula que se estabelece é que sentenças com aposição não
local e local teriam a mesma duração no trecho medido. Para veriicar
nossa hipótese nula precisamos analisar se o valor de A por estrutura é
signiicativo em direção ao alongamento comparando com B.11
A Tabela 1 nos mostrou que, tanto no teste para médias quanto
no teste para medianas, encontramos diferenças signiicativas em todas
as comparações de estruturas não local e local. Em todos os casos, as
aposições não locais foram signiicativamente mais longas, negando
nossa hipótese nula em que não haveria diferenças entre as leituras.
Uma explicação alternativa para esses resultados próximos pode ser o fato de só
haver 14 sentenças em cada variável (falante) – ou seja, 7 versões A versus 7 versões
B, o que é um valor considerado baixo estatisticamente. Por isso o cálculo a ser mais
enfaticamente considerado para os resultados e análise são os do tipo de sentença e
estrutura (n = 30), apresentados anteriormente, pois o falante é apenas nossa variável
de observação.
11
Consideraremos aqui a comparação com as estruturas B como mais relevantes para
veriicar a hipótese nula, já que a única estrutura possível era de adjunção.
10
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
653
Além dos resultados por estrutura, os resultados por sentença
revelaram diferenças parecidas. A Tabela 2 mostrou que, com exceção
da mediana da S3 (maior em B), tanto as médias quanto as medianas
de todas as sentenças A foram maiores que suas versões B. Observamos
que cinco das nove sentenças (S1, S4, S5, S6 e S9) tiveram as versões A
signiicativamente mais longas que B, negando, novamente a hipótese
nula 1.
A negação dessa hipótese nula, então, conirma a existência de
alongamento em PB em fronteira de frases fonológicas, o que contraria
os achados de Santos e Leal (2008) para sentenças não ambíguas, assim
como Angelo e Santos (2012, 2015) para sentenças ambíguas. Em ambas
as pesquisas, as autoras não encontraram resultados signiicativos para
a existência de alongamento em fronteira de frases fonológicas no PB.
No caso de Santos e Leal (2008), ressaltamos que, apesar de
resultados diferentes, as autoras não investigaram sentenças ambíguas
e sugeriram que talvez os falantes do português façam uso da duração
para a desambiguação de sentenças. Em suma, encontramos exatamente
o que foi sugerido por elas: que o processo se dá apenas em caso de
ambiguidade (quando então o falante lança mão dessa pista para marcar
na prosódia a interpretação desejada).
Angelo e Santos já haviam encontrado uma tendência ao
alongamento, embora não estatisticamente signiicativa, e sugeriram
que fosse feito um comparativo com os falantes lendo ambas as versões
da ambiguidade. De fato, a leitura de ambas as versões se mostrou
importante, pois aqui, em um mesmo teste, com os mesmos parâmetros,
os resultados foram signiicativos para o alongamento.
Um outro resultado importante desse trabalho é a análise por
tipo de estrutura sintática e prosódica. Angelo e Santos não distinguiram,
em sua análise, sentenças com aposição por adjunto de sentenças por
aposição por small clause. De fato, a detecção desses dois tipos de
estruturas só ocorreu depois de o teste ter sido rodado, e, por isso, ocorre
o desbalanceamento na quantidade de sentenças aqui apresentado.
Tendo então em conta apenas as sentenças A vs. B, com evidentes
estruturas sintáticas e mapeamento prosódicos diferentes, nossos
resultados são comprovações de que o alongamento nessas sentenças
obedece às fronteiras dos domínios prosódicos (cf. NESPOR; VOGEL,
1986, p. 21-31). A signiicância nos resultados decorrentes das diferentes
leituras é consequência do diferente mapeamento prosódico que as
leituras de aposição não local e local por adjunção têm.
654
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
5.2 A opcionalidade do processo
A partir de Angelo e Santos (2012, 2015), nossa predição era de
que a realização do alongamento é um processo opcional dos falantes
para marcar a interpretação não local. Por consequência, a hipótese
nula prediz que o alongamento deve ocorrer em toda produção não
local. Uma vez encontrado alongamento em PB, para saber se se trata
de um processo opcional ou obrigatório, precisamos veriicar se ele
sempre ocorre em nossos dados por falante. Para garantir que a estrutura
prosódica das sentenças com aposição local por small clause não afetasse
os resultados, excluímos as sentenças S8 e S9 da análise. Em primeiro
lugar, ressaltamos que nenhum falante desviou do padrão. No entanto,
com a redução de sentenças, o número de variáveis icou reduzido para
14 medidas por falantes e, quanto menor as variáveis, menor a chance
de signiicância estatística. Em todo caso, pudemos airmar que nenhum
falante é desviante, sendo possível, então, seguir a análise com todos os
dados disponíveis.
Sabendo, portanto, que, mesmo que as sentenças A sejam
sempre mais longas na análise descritiva por falante (cf. ANGELO,
2016), como nem sempre esse alongamento é signiicativo, negamos
nossa predição para a hipótese nula 2 (em que haveria alongamento em
todos os casos). Com isso, podemos concluir que o alongamento é um
processo opcional em PB, pois se não fosse, teria sido realizado por
todos os falantes em todos os contextos. Desse modo, conirmamos as
sugestões de Angelo e Santos (2012, 2015) e Santos e Leal (2008). As
primeiras autoras sugeriram que o alongamento pudesse ser opcional e
perceberam a necessidade de testes com amostras pareadas para veriicar
essa possibilidade; já as segundas autoras não encontraram alongamento,
mas sugeriram que ele pudesse ser realizado em contextos ambíguos,
como um processo opcional. Levando em conta os resultados anteriores
e os aqui apresentados, sugerimos que a ambiguidade seja justamente o
gatilho necessário para que o falante lance mão do processo com mais
frequência.
Por im, ressaltamos que o fato de não haver alongamento
signiicativo em todas as sentenças (e não só para todos os falantes)
também nega a predição da hipótese nula para a opcionalidade do
processo. Baseamos essa airmação nos resultados por falante para
discutir essa predição, pois, na análise por sentença, precisaríamos
primeiramente entender se não seria o caso, também, de haver alguma
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
655
divergência pragmática/sintática com as sentenças em que o alongamento
não foi signiicativo, o que será discutido na Seção 7.
5.3 Os casos de small clause
Como mostramos nos Métodos, só percebemos que as sentenças
do experimento com leitura de aposição local variavam – quanto a
possibilitarem ou não mais de um tipo de estrutura – depois de rodado o
teste. Assim, observamos aqui se esse último tipo de estrutura apresentaria
um comportamento igual ou diferente daquele das estruturas locais por
adjunção.
Na Tabela 1 vimos que o alongamento se conirmou estatisticamente
em aposições não locais A, considerando a comparação entre A vs. B.
Há, então, três situações possíveis para os resultados de C:
A)
Não haver diferença signiicativa entre A e C: isso nos levaria a
concluir que a estrutura escolhida pelos falantes na interpretação
local de S8 e S9 foi a de small clause, pois a duração seria
similar a A, a qual foi alongada em comparação a B por haver
fronteira entre as frases fonológicas;
B)
C ser signiicativamente maior que A: sugeriria um bloqueio
da reestruturação e, interessantemente, indicaria a possibilidade
de, em C, o processo de alongamento ser obrigatório, pois, se
há alongamento em A vs. B, e C foi ainda mais longa, este deve
ser um contexto mais propício ao alongamento pelo falante.
C)
C ser signiicativamente menor que A: essa situação não nos daria
muitas pistas sobre o que acontece com C, pois as sentenças em
C podem ter estrutura de small clause, mas também podem ser
estruturas de adjunção. No caso de C ser menor que A, delineiamse três possíveis respostas: (i) não há distinção na produção entre
B e C; (ii) o informante preferiu a estrutura de adjunção; (iii) o
alongamento, sendo opcional, não foi aplicado.
A Tabela 1 mostrou que, estatisticamente, ambas aposições locais
(B e C) foram mais curtas que A, levando-nos então à opção C acima –
A é mais longa que C. Tal resultado deixa em aberto, em princípio, as 3
possibilidades de respostas para esse achado. Porém, observe que o p-valor
de A vs. C não é tão baixo quanto o de A vs. B (p-valor de A vs. B = 0,001
656
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
(média e mediana); e p-valor de A vs. C = 0,042 (média) e 0,019 (mediana)),
indicando que pode haver algum tipo de diferença nessas estruturas. Essa
diferença entre os resultados de B e C nos leva a crer que a resposta para
A pode ser signiicativamente maior que C porque as sentenças C são na
realidade ambíguas quanto a serem de adjunção ou small clause. Pode
ter sido também o caso de algumas produções terem sido produções de
uma estrutura do primeiro tipo, enquanto algumas outras estruturas, do
segundo tipo. Uma maneira de se investigar se é o caso seria aplicar um
teste entre sentenças em que só fossem possíveis estruturas de aposição não
local vs. estruturas de aposição local por small clause. Em outras palavras,
sentenças que não possibilitassem também a estruturação de sentenças
com aposição local por adjunto. Infelizmente, o tipo de estrutura testado
não torna possível essa contraposição. No tipo de estrutura de nosso teste,
toda sentença que possibilita a estrutura de aposição local por small clause
possibilita também a estrutura de aposição local por adjunção.
Não podemos esquecer, também, que há apenas duas sentenças
nesse padrão, o que é considerado um número pequeno estatisticamente;
assim, os resultados não são conclusivos, mas sugerem um comportamento
diferente para essas sentenças, que precisa ser mais bem investigado.
Na comparação por sentenças (cf. Tabela 2), das sete sentenças
que possibilitam apenas adjunção, quatro delas apresentaram diferença
signiicativa entre A e B. Nas duas sentenças que possibilitam também
small clause, uma delas não apresentou diferença entre as versões não
local e local. Embora não possamos airmar que os resultados por sentença
negaram a predição da hipótese nula, os resultados por estrutura o izeram.
Ou seja, os resultados de produção, ainda que somente com dois tipos de
sentenças que possibilitam small clause, demonstraram uma tendência
a um comportamento um pouco diferente.
Vale ainda ressaltar que, apesar de termos utilizado como base
as sentenças de Magalhães e Maia (2006), o objetivo dos autores na
análise de sentenças ambíguas era encontrar indícios prosódicos de
desambiguação na leitura silenciosa partindo do pressuposto de que
fazemos uso de uma prosódia implícita que se comporta similarmente à
prosódia explícita, auxiliando nossas interpretações no parsing (FODOR,
2002). Embora algumas pistas tenham sido encontradas, o objetivo dos
autores não era veriicar a existência de alongamento em fronteiras
prosódicas. Nossos resultados nos levam a perguntar se os resultados
de Magalhães e Maia também não podem ter sido inluenciados por
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
657
sentenças que possibilitavam small clause, pois, assim como em Angelo
e Santos (2012, 2015), os autores não analisaram separadamente essas
sentenças. Em Magalhães e Maia havia quatro sentenças com essa
possibilidade: “A mãe encontrou a ilha irritada”, “O bandido reconheceu
o cúmplice agonizante”, “O réu encontrou o advogado nervoso”, “O
cão pegou o coelho faminto”, mas as duas primeiras estavam entre as
consideradas pragmaticamente ruins por seus informantes.
Em suma, dada a diferença entre o comportamento de B e C,
é possível que os falantes tenham alternado entre produzir estruturas
de adjunção e de small clause nas versões C, mas há que se aplicar um
novo teste para comparar estruturas em que só um dos tipos é possível
e em maior quantidade.
6 O que pode estar ocorrendo com as sentenças que fugiram do
padrão encontrado no experimento?
Tendo em vista os resultados encontrados, apesar da opcionalidade
do processo, há que se perguntar o porquê de não haver alongamento
signiicativo em todas as sentenças.
Na seção 4.2, conduzimos resultados sentença a sentença para
observar se não haveria sentenças específicas que pudessem estar
afetando os resultados, fosse por razões sintáticas (caso das estruturas
small clause), fosse por razões pragmáticas. Contávamos com n=30
falantes para cada variável analisada (sentenças), considerado um número
estatisticamente suiciente.
Como vimos, cinco sentenças foram produzidas com as versões
não-locais signiicativamente mais longas que as versões locais (tanto na
comparação de médias quanto na comparação de medianas). No entanto,
as sentenças S2, S3 e S8 não apresentaram resultados signiicativos em
nenhum dos testes. A sentença S7 foi signiicativa apenas no teste de
Wilcoxon e, ainda assim, com um p-valor = 0,008, mais alto que as outras
(em torno de 0,001, cf. Tabela 2). A seguir, repetimos essas sentenças.
S2. A babá ninou a menina chorando.
S3. O aluno consultou o monitor cismado.
S7. A mãe procurou a ilha magoada.
S8. A mãe encontrou a ilha suada.
658
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
Como se pode observar, três das sentenças aceitam apenas leitura
local por adjunto (S2, S3, S4), e uma sentença é ambígua entre adjunto e
predicativo (S8). Assim, não é o caso de airmar que o verbo da sentença
estivesse inluenciando os resultados – até porque outras sentenças com
os mesmos tipos de leitura apresentaram signiicância.
Interessantemente, as quatro sentenças apresentam atributos
deverbais: ‘chorando’, ‘cismado’ ‘magoada’ e ‘suada’ (derivados dos
verbos ‘chorar’, ‘cismar’, ‘magoar’ e ‘suar’, respectivamente). Nas
sentenças em que a signiicância ocorreu, os atributos eram: ‘feliz’,
‘sonolento’, ‘furioso’, ‘sozinho’ e ‘nervoso’, todos não verbais.
Segundo Hornstein, Nunes e Grohmann (2005), a computação
sintática se dá fase a fase, sendo a construção do CP uma delas,
antecedente ao spell-out:
Computational options (merger or movement, for instance) are
compared within a single phase. This approach raises several
interesting conceptual questions. Note, for instance, the radical
derivational nature of computations under this view. Not only are
syntactic objects built in a step-by-step fashion, but the interfaces
are fed with information as the derivation proceeds. This raises the
possibility that as the derivation proceeds, the interfaces access
syntactic computations directly, in a dynamic fashion, without
the mediation of LF or PF. [...] Another question that arises in this
approach is why exactly VPs and CPs should be phases and, more
generally, how many kinds of phases there are. (HORNSTEIN;
NUNES; GROHMANN, 2005, p. 350-351).
Assumindo que o CP é uma fase, Ximenes e Nunes (2009)
contrapõem sentenças como as apresentadas a seguir.
(11) A hipótese de os meninos terem viajado é implausível.
(12) A hipótese dos meninos terem viajado é implausível.
(13) *A hipótese de os meninos é implausível.
(14) A hipótese dos meninos é implausível.
As sentenças (11) e (12) contêm um verbo no ininitivo lexionado
(‘terem’), e os autores mostram que é opcional a utilização da não
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
659
contração da preposição com o artigo para os falantes de PB (os autores
partem do princípio de que a forma contraída é a canônica). Porém, na
sentença (13), sem a presença desse verbo, vemos que a contração é
obrigatória, devendo ser produzida como em (14). Ximenes e Nunes
argumentam que isso ocorre devido a uma fronteira de CP vazio. Para
os autores, a preposição e o sujeito no ininitivo em (11) são adjacentes,
como mostrado a seguir, em (15), que explica por que a opção canônica
é a contração ‘de’, pois carrega a marca de um CP vazio, que pode se
realizar quando o ininitivo lexionado está presente. Porém, na ausência
do verbo, não há um CP, então apenas a forma canônica (contraída)
pode ser usada. Em (15) as formas contraída e não contraída podem ser
utilizadas, pois o ‘de’ introduz um C de CP. Já em (16), não há CP, então
a contração é obrigatória.
(15) [[a hipótese [CP de [os meninos terem viajado]]]
(16) [[a hipótese [PP dos meninos]]
Em suma, os autores sugerem que CP é interpretado pela
fonologia, bloqueando a aplicação de um processo fonológico. Em outras
palavras, a contração é bloqueada quando os segmentos estão em duas
sentenças.
Como vimos, os atributos das sentenças de nosso teste que não
apresentaram signiicância são todos deverbais. Seguindo a mesma linha
de Ximenes e Nunes, sugerimos, então, a possibilidade de que os falantes
tenham introduzido um CP antes dos atributos. Rizzi (2004) propõe que
C (de CP) introduz um novo constituinte prosódico, como se fosse uma
nova sentença. Se esse determinado constituinte sintático inicia uma
nova sentença prosodicamente, isso signiica que inicia uma nova frase
entoacional (Intonational Phrase). Em sendo uma nova sentença, não há
como haver reestruturação das frases fonológicas que o formam com as
frases fonológicas de uma outra frase entoacional. Essa fronteira sintática
impediria, então, a reestruturação na fonologia, assim como possibilitou
a não contração nos dados de Ximenes e Nunes (2009).
Se estivermos no caminho certo, é então interessante, em uma
análise futura, rodar um teste com adjetivos que são pares mínimos
(verbais e não verbais), como, por exemplo, ‘gelado’ vs. ‘frio’, vs.
‘quente’, ‘entristecido’ vs. ‘triste’, em sentenças como ‘A mãe a encontrou
660
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
entristecida’ vs. ‘A mãe a encontrou triste’.12 A proposta é que, nos casos
de deverbais, não tenha havido diferença entre as produções de A e
B/C, pois esse CP impediria a reestruturação das frases fonológicas na
interpretação local (note-se que, embora não explícito no algoritmo de
Nespor e Vogel, para a reestruturação ocorrer, os domínios prosódicos
devem estar dentro de um domínio prosódico superior. Se C introduz
uma nova sentença, então não há como reestruturar o nome e o atributo,
pois pertenceriam a sentenças diferentes.
Considerações inais
A presente pesquisa teve o objetivo de apresentar uma reanálise
do processo de alongamento em fronteira de frase fonológica em contexto
de desambiguação de sentenças do tipo SN1-V-SN2-Atributo, buscando
trazer mais luzes sobre a questão da interação entre os componentes
gramaticais (LIGHTFOOT, 1976; CHOMSKY; LASNIK, 1978;
JAEGGLI, 1980). Constatamos que essa interação se dá indiretamente, ou
seja, há especiicamente na Fonologia um componente interpretativo que
mapeia informações de outros componentes (no caso, a Sintaxe) em níveis
e domínios fonológicos (SELKIRK, 1984; NESPOR; VOGEL, 1986).
Com base nessa proposta, a pesquisa teve como fundamento estudos que
vêm mostrando que as pessoas produzem pistas fonológicas para acessar
a estrutura sintática das sentenças (SANTOS, 2003; MAGALHÃES;
MAIA, 2006, 2007; GREGOLIM, 2008).
Existe na literatura uma discussão a respeito da realização fonética
dos segmentos em fronteiras prosódicas em diferentes línguas. Constatouse, por exemplo, que há alongamento na produção de segmentos em
fronteiras iniciais (cf. OLLER, 1973) ou finais (cf. FOUGERON;
KEATING, 1997; KLATT, 1976; OLLER, 1973; WIGHTMAN et al.,
1992) de domínios prosódicos e que efeitos como esse variam conforme
os níveis prosódicos em que estão inseridos tornem-se mais altos.
Há três trabalhos principais em pauta que nortearam as predições
deste artigo. Primeiramente, Santos e Leal (2008) observaram a não
existência de alongamento de sílabas nos domínios prosódicos do
português brasileiro a não ser no nível mais alto, da frase entoacional (I)
Agradecemos aos Doutores Jairo Nunes e Marcelo Ferreira Barra, do Departamento
de Linguística da FFLCH-USP, pelas discussões a respeito dessas sentenças.
12
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
661
(cf. NESPOR; VOGEL, 1986), mas levantaram a questão de o falante
realizar ou não esse efeito quando necessitasse desambiguar uma sentença.
Em segundo lugar, Magalhães e Maia (2006), em um estudo a respeito
da leitura silenciosa de sentenças sintaticamente ambíguas do tipo SN1Verbo-SN2-Atributo, encontraram, entre outros efeitos, um alongamento
na sílaba tônica do atributo. Por im, Angelo e Santos (2012, 2015), com
base nos dois trabalhos acima citados, observaram se havia alongamento
em algumas sentenças extraídas e/ou modiicadas de Magalhães e Maia,
mas em contexto em que poderia (ou não) haver reestruturação fonológica,
esperando que houvesse maior duração nas aposições não locais. As
autoras não encontraram alongamento signiicativo, mas sempre que ele
era realizado, era em favor da aposição não local.
Buscamos com esta pesquisa, então, trazer contribuições para
esses trabalhos; mais especificamente, analisar o comportamento
de informantes na produção de sentenças ambíguas e, assim, buscar
evidências de que o alongamento, quando realizado, seria devido a
uma fronteira prosódica existente. Para isso, a metodologia utilizada
contou com as mesmas nove sentenças de Angelo e Santos, gravadas
com 30 informantes, aplicando o mesmo método, mas lendo ambas as
versões da ambiguidade, de forma a tornar o corpus de produção ainda
mais robusto, e obter resultados estatísticos mais seguros. Optou-se,
também, por observar separadamente duas das sentenças por poderem
ser sintaticamente estruturadas como small clauses na interpretação local.
As sentenças testadas eram ambíguas quanto a terem estrutura de
aposição não local (A), estrutura de aposição local por adjunção (B) ou
permitirem duas possíveis estruturas (C): de adjunção ou small clause.
Os resultados, de forma geral, corroboraram as predições
levantadas. Mais do que uma tendência, encontramos que o processo
de alongamento acontece em PB em contexto de desambiguação de
sentenças do tipo SN1-Verbo-SN2-Atributo: as estruturas não locais
foram signiicativamente mais longas que as locais, e em cinco das nove
sentenças a versão não local (A) foi mais longa que as locais (B) ou (C).
Além disso, observamos que o processo nem sempre é realizado
pelos falantes, indicando, assim, que este se trata de um processo opcional
na língua, e é favorecido em situações de necessidade de desambiguação
de sentenças.
Sobre as sentenças que permitem small clause, o experimento não
nos forneceu muitas pistas, tendo em vista que elas também podem ter
662
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
sido produzidas como adjunção, mas foi suiciente para negar a hipótese
de que B se comportaria como C, pois embora ambas as estruturas tenham
sido mais curtas que A, em C essa diferença foi menor.
Uma vez que tínhamos no corpus apenas duas dessas sentenças,
deixamos para trabalhos futuros a investigação do que acontece com
essas estruturas, em um experimento que inclua mais dados de sentenças
desse tipo e de sentenças que, na versão local, tenham a possibilidade
apenas de serem estruturadas em small clause.
Nossos resultados também sugerem a necessidade de um trabalho
que discuta o tipo de atributo das sentenças SN1-Verbo-SN2-Atributo,
já que as sentenças com atributo deverbal apresentaram um resultado
diferente daquelas em que o atributo não era deverbal. Nossa hipótese,
neste caso, sujeita a maiores investigações, é que sentenças com atributos
deverbais sejam precedidas por uma fronteira de CP. Pelas regras de
mapeamento, esse tipo de fronteira inicia um novo domínio prosódico
que impede a reestruturação entre o atributo e o SN2. Assim, as sentenças
com aposição local por atributo deverbal também não poderiam ser
reestruturadas com o verbo e teriam, como resultado, um comportamento
mais próximo das sentenças com aposição não local.
Agradecimentos
Agradecemos aos participantes da banca de mestrado de Angelo
(2016) e a dois pareceristas anônimos da RELIN, pelos comentários e
discussão do texto, a quem eximimos de qualquer problema remanescente.
Angelo agradece o auxílio em forma de bolsa de Mestrado do
Departamento de Linguística da FFLCH/USP (CAPES Proex 2013-2015).
Santos agradece o auxílio do CNPq (Bolsa Produtividade 308135/2009-1).
Referências
ABOUSALH, E. F. Resolução de choques de acento no português
brasileiro. 157 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de
Estudos Linguísticos, Universidade de Campinas, Campinas, SP, 1997.
ANGELO, M. C. Produção e percepção na desambiguação de sentenças
sintaticamente ambíguas do português brasileiro através da pista
prosódica de duração. 2016. 215 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade
São Paulo, São Paulo, 2016.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
663
ANGELO, M. C.; SANTOS, R. S. Estruturas ambíguas e pistas
prosódicas. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE FONOLOGIA,
4., 2012, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: UFRGS, Instituto de Letras,
2012. v.1, p.30-31.
ANGELO, M. C.; SANTOS, R. S. A prosódia em sentenças sintaticamente
ambíguas do Português Brasileiro: Pistas de duração. Alfa: Revista de
Linguística (UNESP. Online), v. 59, p. 375-403, 2015. Doi: https://doi.
org/10.1590/1981-5794-1504-7.
ANGELO, M. C.; SANTOS, R. S. Desambiguização de sentenças na
interface fonologia-sintaxe: resultados de um estudo de compreensão.
Relin: Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 25, n. 3,
p. 1143-1182, 2017. https://doi.org/10.17851/2237-2083.25.3.1143-1182.
BYRD, D. Articulatory Vowel Lengthening and Coordination at Phrasal
Junctures. Phonetica, Los Angeles, CA, v. 57, p. 3-16, 2000. Doi: https://
doi.org/10.1159/000028456.
BYRD, D.; SALTZMAN, E. Intragestural Dynamics of Multiple Phrasal
Boundaries. Journal of Phonetics. New Haven, CT. v.26, p.173-199, 1998.
CHO, T. Manifestation of Prosodic Structure in Articulation: Evidence
from Lip Movement Kinecatics in English. In: GOLDSTEIN, L. (Ed.).
Laboratory Phonology 8: Varieties of Phonological Competence. New
York: Walter De Gruyter Inc, 2006. p. 1666-1671.
CHO, T.; KEATING, P. Articulatory Strengthening at the Onset of
Prosodic Domains in Korean. Journal of Phonetics, Los Angeles, CA.,
v. 28, p.155-190, 2001. Doi: https://doi.org/10.1006/jpho.2001.0131.
CHOMSKY, N.; LASNIK, H. A Remark on Contraction. Linguistic
Inquiry, Camberra, v. 9, n. 2, p. 268-274, 1978.
FODOR, J. D. Learning to parse? Journal of Psycholinguistic Research,
Springer Link, n. 27, p. 285-319, 1998.
FODOR, J. D. Prosodic Disambiguation in Silent Reading. Proceedings
of North East Linguistic Society. University of Massachusetts: Amherst,
MA, n. 32, p.113-132, 2002.
FOLTRAN, M. J. As construções de predicação secundária no português
do Brasil: aspectos sintáticos e semânticos. São Paulo. 1999. Tese
(Doutorado) - Universidade de São Paulo, 1999.
664
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
FOLTRAN, M. J.; MIOTO, C. A favor das small clauses revistadas.
Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, Unicamp, v. 49, n. 1, 2007.
FONSECA, A. A. A influência de pistas prosódicas na resolução de
ambiguidades sintáticas em sentenças do tipo SN1-V-SN2-Atributo no
Português Brasileiro. Veredas: Revista de Estudos Linguísticos, v. 2,
n. 2, p. 150-153, 2008.
FOUGERON, C. Articulatory Properties of Initial Segments in Several
Prosodic Constituents in French. Journal of Phonetics, Los Angeles,
v. 29, p.109-135, 2001. Doi: https://doi.org/10.1006/jpho.2000.0114
FOUGERON, C.; KEATING, P. Articulatory Strengthening at Edges
of Prosodic Domains. Journal of the Acoustic Society of America,
Los Angeles. v. 101, n. 6, p. 3728-3740, 1997. Doi: https://doi.
org/10.1121/1.418332.
FRAZIER, L. On comprehending sentences: syntactic parsing strategies.
1979. Tese (Doutorado) – University of Connecticut, 1979. [Reproduzida
por Indiana University Linguistics Club].
FROTA, S. Prosody and focusing in European Portuguese. Phonological
phrasing and intonation. New York: Garland Publishing. 2000.
GRAVINA, A. P.; FERNANDES-SVARTMAN, F. Interface sintaxefonologia: desambiguação pela estrutura prosódica no português
brasileiro. Alfa: Revista de Linguística, São José Rio Preto, v. 57, n. 2,
p. 639-668, 2013.
GREGOLLIM, A. As categorias vazias e os processos de sândi externo
em português brasileiro. São Paulo: FFLCH, USP, 2008.
GUIMARÃES, M. Unifying LCA & prosodic phrasing in the minimalist
program. In: WORKSHOP ON THEORY OF GRAMMAR: PROBLEMS
AT PF AND LF INTERFACE LEVELS, 1997. Campinas: Universidade
Estadual de Campinas, 1997. Oral communication.
HORNSTEIN, N.; NUNES, J.; GROHMANN, K. K. Understanding
minimalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. Doi: https://
doi.org/10.1017/CBO9780511840678.
JAEGGLI, O. Remarks on To Contraction. Linguistic Inquiry, Camberra,
v. 11, n. 1, p. 239-245, 1980.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
665
KEATING, P.; CHO, T.; FOUGERON, C.; HSU, C. Domain-initial
articulatory strengthening in four languages. In: LOCAL, J.; OGDEN,
R.; TEMPLE, R. (Ed.). Phonetic interpretation (Papers in Laboratory
Phonology 6). Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p.143-161.
KLATT, D. Linguistics Uses of Segmental Duration in English: Acoustic
and Perceptual Evidence. Journal of Acoustic Society of America, Los
Angeles, v.59, p.1208-1221, 1976. Doi: https://doi.org/10.1121/1.380986.
LADD, D. R. Intonational phonology. Cambridge: CUP, 1996.
LIGHTFOOT, D. Trace Theory and Twice-moved NPs. Linguistic
Inquiry, Camberra, v. 7, n. 1, p. 559-582, 1976.
LOURENçO-GOMES, M. C.; MAIA, M.; MORAES, J. Prosódia
implícita na leitura silenciosa: um estudo com orações relativas
estruturalmente ambíguas. In: MAIA, M.; FINGER, I. (Ed.).
Processamento da linguagem. Pelotas: Educat, 2004. p. 131-161,
MAGALHÃES, J. O.; MAIA, M. Pistas prosódicas implícitas na
resolução de ambiguidades sintáticas: um caso de adjunção de atributos.
Revista da ABRALIN, Florianópolis, v. 5, n. 1-2, p.143-167, 2006.
MAIA, M. Reading and listening to garden-path PP sentences in Brazilian
Portuguese. International Journal of Mind, Brain & Cognition, Bahri
Publications, v. 2. n. 1-2, p. 101-113, 2011.
MIOTO C.; SILVA, M. C. F.; LOPES, R. E. V. Novo manual de sintaxe.
Florianópolis: Insular, 2004.
NESPOR, M.; VOGEL, I. Prosodic Phonology. Dordrecht: Foris
Publications, 1986.
OLLER, K. The Effect of Position in Utterance on Speech Segment
Duration in English. Journal of Acoustic Society of America, Los Angeles,
v. 54, p. 1235-1247, 1973. Doi: https://doi.org/10.1121/1.1914393.
PIERREHUMBERT, J. The phonology and phonetics of English
intonation. 1980. Tese (Doutorado) – M.I.T, Massachussets, 1980.
RIZZI, L. On the Cartography of Syntactic Structures. In: RIZZI, L. (Ed.).
The Structure of IP and CP, the Cartography of Syntactic Structures. New
York: Oxford University Press, 2004. p. 3-15.
666
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018
SANTOS, R. S. Traces, pro and stress shift in Brazilian Portuguese.
Journal of Portuguese Linguistics, Lisboa, v. 2, n. 2, p. 101-113, 2003.
Doi: https://doi.org/10.5334/jpl.30.
SANTOS, R. S.; LEAL, E. G. Os domínios prosódicos e a duração de
sílaba no português brasileiro. Revista da ABRALIN, Florianópolis, v. 5,
n. 1, p. 143-167, 2008.
SELKIRK, E. Phonology and Syntax: The relation between sound and
structure. Cambridge: MIT Press, 1984.
TABAIN, M. Effects of Prosodic Boundary on /aC/ Sequences:
Articulatory Results. Journal of Acoustic Society of America, Los Angeles,
v. 113, p. 2834-2849, 2003. Doi: https://doi.org/10.1121/1.1564013.
TABAIN, M.; PERRIER, P. Articulation and Acoustics of /i/ in
Preboundary Position in French. Journal of Phonetics, Los Angeles,
v. 33, p. 77-100, 2005. Doi: https://doi.org/10.1016/j.wocn.2004.04.003.
VIGÁRIO, M. The prosodic word in European Portuguese. Berlin:
Mounton de Gruyter, 2003. Doi: https://doi.org/10.1515/9783110900927.
XIMENES, C.; NUNES, J. Preposition Contraction and Morphological
Sideward Movement in Brazilian Portuguese. In: NUNES, J. (Org.).
Minimalist Essays on Brazilian Portuguese Syntax. Amsterdam: John
Benjamins, 2009. p. 191-214.
WIGHTMAN, C.; SHATTUCK-HUFNAGEL, S.; OSTENDORF,
M.; PRICE, P. Segmental Durations in the Vicinity of Prosodic Phrase
Boundaries. Journal of Acoustic Society of America, Los Angeles, n. 91,
p. 1707-1717, 1992.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
Amostras sociolinguísticas:
probabilísticas ou por conveniência?
Sociolinguistic samples: random or convenience?
Raquel Meister Ko. Freitag
Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, Sergipe / Brasil
rkofreitag@uol.com.br
Resumo: O objetivo deste trabalho é discutir questões relacionadas
à amostragem na sociolinguística variacionista, considerando a
dimensão probabilística e não probabilística. Conceitos de estatística,
como população e amostra, descrição e inferência, são revisados, e os
procedimentos de amostragem aleatória e não aleatória são discutidos
considerando o viés de seleção e as especiicidades da coleta de dados
sociolinguísticos para pesquisa de orientação variacionista.
Palavras-chave: sociolinguística; amostragem por cotas; estatística.
Abstract: This paper goal is to discuss sampling in the variationist
sociolinguistic approach, both in its random and non-random dimensions.
Statistic concepts, such as population and sample, descriptive and
inferential statistics are presented; additionally random and non-random
sampling procedures are discussed, taking into account the selection bias
and the speciicity of data collection within variationist sociolinguistics.
Keywords: sociolinguistics; stratiied sample; statistics.
Recebido em: 19 de setembro de 2017
Aceito em: 9 de outubro de 2017
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.667-686
668
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
1 Introdução
A prática metodológica da sociolinguística variacionista, no
Brasil, tem-se pautado tradicionalmente em uma técnica de amostragem
dita “aleatória estratiicada”. Essa técnica consiste em dividir a população
por grupos de interesse (células sociais), de modo que todos os falantes1
pertençam a um e somente um grupo e tenham a mesma chance de
ser selecionados. Esse padrão de amostragem, por hipótese, confere
coniabilidade e replicabilidade às análises. Neste trabalho, a amostragem
é discutida a im de veriicar o quão estratiicado é um banco de dados
sociolinguísticos.
Inicialmente, são revisados conceitos de estatística, como
população e amostra, descrição e inferência. Em seguida, são discutidos
os procedimentos de amostragem aleatória e não aleatória, considerando
as implicações de escolha (viés) e as especiicidades da coleta de dados
sociolinguísticos para pesquisa de orientação variacionista.
2 Estatística e tipos de amostra
Dois conceitos básicos em estatística são população e amostra.
População refere-se ao conjunto total de elementos; amostra, a um
subconjunto dessa população. Com base na amostra, passa-se aos
procedimentos de estatística descritiva, que trata da distribuição das
frequências um dado fenômeno. A estatística inferencial corresponde
ao conjunto de procedimentos que leva à generalização de resultados da
amostra para a população. A estatística descritiva responde a perguntas
feitas à amostra (quantos? quais?). A estatística inferencial testa hipóteses
utilizando informações da amostra para generalizar as respostas para a
população.
A sociolinguística variacionista tem evoluído em termos de
estatística inferencial: o modelo estatístico para lidar com regras
Na pesquisa sociolinguística, diferentes rótulos têm sido empregados para identiicar
as pessoas que cedem seu tempo para constituírem amostras linguísticas: informante,
falante, sujeito, indivíduo, participante, colaborador, etc. À escolha de um rótulo
subjazem matizes do papel que é dado a essa pessoa na pesquisa (embora se reiram a
uma pessoa, “informante” e “sujeito” têm cargas semânticas distintas). Fiz a opção por
adotar, em todo o texto, o termo “falante”, designando a pessoa que fala a língua, ainda
que, em alguns contextos, essa escolha resulte em repetições do tipo “ o falante falou”.
1
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
669
variáveis (CEDEGREN; SANKOFF, 1974; SANKOFF, 1988) vem
sendo aprimorado à medida que os níveis de análise vão se ampliando,
e novos fatores passam a ser controlados. Hoje, as questões relativas à
estatística inferencial da sociolinguística variacionista estão relacionadas
à comparação entre as modelagens de efeitos ixos – como as adotadas
pelo pacote estatístico VARBRUL e sucessores, como GOLDVARB
X (SANKOFF; TAGLIAMONTE; SMITH, 2005) – e efeitos mistos
– como RBrul e outros pacotes estatísticos comerciais, como o SPSS
– (OLIVEIRA, 2009; JONHSON, 2009, GOMES, 2012; SCHERRE,
2012; GORMAN; JOHNSON, 2013, entre outros), além do uso do pacote
estatístico R (R CORE TEAM, 2017) em abordagens da sociolinguística
variacionista (TAGLIAMONTE; BAAYEN, 2012; OUSHIRO, 2015,
entre outros). O avanço tecnológico, com computadores dotados de
processadores mais ágeis e maior capacidade de memória, possibilita
a testagem de outros modelos de análise estatística, com a inclusão de
mais variáveis e com diferentes níveis de efeitos. O núcleo de discussão
não recai sobre o modelo mais apropriado para lidar com a variação
linguística (parece ser consenso que modelos de efeitos mistos são mais
adequados ao tipo de variáveis que são exploradas na sociolinguística
variacionista), mas, sim, sobre o diálogo possível entre as análises
nesses últimos 40 anos em modelo de efeitos ixos (pesos relativos). No
entanto, é preciso considerar que “muitas das airmativas estatísticas
mais abomináveis são causadas por bons métodos estatísticos aplicados
a amostras ruins, e não o contrário” (WHEELAN, 2016, p. 142). Em
estatística, costuma-se dizer que, “se entra lixo, sai lixo”, não importa o
modelo que é adotado na análise; por isso, a atenção aos procedimentos
de amostragem é importante.
O foco deste trabalho é justamente tecer relexões sobre a base para
a estatística inferencial da sociolinguística variacionista: a constituição
de amostras de fala apropriadas para o estudo da variação linguística.
Se, do ponto de vista diacrônico, é preciso fazer o melhor uso de maus
dados (LABOV, 1982), do ponto de vista sincrônico, muitas vezes o
erro fundamental da análise consiste em uma amostra linguística com
vieses: “A análise estatística está em ordem, mas os dados sobre os quais
os cálculos são realizados são espúrios ou inadequados” (WHEELAN,
2016, p. 148). Essa é uma questão que vem sendo discutida de modo
tangencial em estudos que abordam a metodologia da sociolinguística
variacionista.
670
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
Com o aforismo do inglês He can’t see the forest for the trees (em
tradução livre, “não se pode ver a loresta pelas árvores”), Guy (2014)
discute a correlação entre população e amostra e a possibilidade de
generalização. Inferências só são válidas se há à disposição informações
mais amplas, não um conjunto seletivo: “Na loresta, quantas árvores
você vê e quantas árvores você poderia encontrar? Você encontrou apenas
carvalhos ou passou por centenas de bordos para achar seu quinto de
carvalhos?” (GUY, 2014, p. 216, tradução minha). Considerando esse
aforismo, o plano da estatística descritiva consiste em descrever a loresta,
com base em informações das suas árvores. Para extrapolar da parte para
o todo, é preciso recorrer à estatística inferencial, mas, para isso, antes,
é preciso o corpus da loresta...
2.1 Amostragem aleatória
A estatística inferencial, que generaliza os resultados da amostra
para a população, preconiza um processo de amostragem aleatório: a chance
de cada um dos falantes ser selecionado para constituir a amostra deve
ser a mesma. Exemplo de estudo sociolinguístico com base em amostra
aleatória é o Linguistic Atlas of the Gulf States (LAGS) realizado por meio
de contatos telefônicos (BAILEY et al, 1991).2 No Brasil, a constituição de
uma amostra aleatória simples da comunidade seria possível por meio de
uma seleção de falantes, utilizando-se o cadastro de eleitores ou, melhor
ainda, recorrendo ao banco de dados constituído por agentes de saúde
para ins de cadastro no Programa Saúde da Família, como foi feito no
povoado Açuzinho, em Lagarto/SE, que contém a informação de todas as
pessoas que efetivamente residem no local e que chega a ser muito mais
coniável do que o cadastro de eleitores ou do que as estimativas do IBGE
(FREITAG; SANTANA; ANDRADE, 2014). É possível ainda estratiicar
essa amostra (amostra aleatória estratiicada), considerando a proporção
de adultos e idosos, homens e mulheres, por exemplo.
A amostragem aleatória por conglomerados explora a existência
de grupos em uma dada população. Se esses grupos representam
adequadamente a população em relação à característica que queremos
medir (os grupos apresentam a variabilidade da população), é possível
2
No entanto, ainda assim, a aleatoriedade não garante isenção do viés da seleção: a
representatividade dos falantes potenciais a serem selecionados resume-se àqueles que
possuíam linha telefônica, um bem de consumo de difícil acesso à época da pesquisa.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
671
selecionar um ou mais de um desses conglomerados. Por exemplo, o
padrão de comportamento de estudantes de uma escola pública estadual
de uma dada comunidade tende a ser estável (estatísticas descritivas
providas pela secretaria de educação mostram que os estudantes de
escola pública estadual da região metropolitana de Aracaju são oriundos
de famílias de uma mesma faixa de renda e estão na mesma faixa
etária). Então, estudar o padrão de comportamento de uma dada escola –
escolhida aleatoriamente – é como estudar o comportamento de todas as
escolas que compõem aquele conglomerado (ver, por exemplo, a amostra
Atheneu Sergipense (FREITAG et al., 2016), detalhada na seção 3.2.2).
Raramente é possível realizar amostragens aleatórias.3 E, para
estudos sociolinguísticos de orientação variacionista, essa parece ser a
regra.
2.2 Amostragens não aleatórias
As amostras não aleatórias podem ser classiicadas em três tipos:
por conveniência (acidental), por julgamento (intencional) e por cotas
(proporcional), escolhidas por conveniência ou por julgamento.
Em uma amostra por conveniência, o pesquisador de campo
seleciona falantes da população em estudo que se mostrem mais
acessíveis, colaborativos ou disponíveis para participar do processo,
algo do tipo “caiu na rede é peixe”. Amostra de julgamento envolve o
juízo do pesquisador de campo para selecionar, na população, falantes
que sejam boas fontes de informação para os propósitos do processo. A
amostragem de cotas prevê um número ixo de falantes em cada uma das
categorias, que são preenchidas pelo pesquisador de campo por conta
da conveniência e/ou julgamento. Parece icar bem claro que a técnica
de amostragem que predomina na sociolinguística variacionista é esta: a
quantidade de falantes das categorias (células sociais) é pré-deinida, e o
pesquisador de campo vai em busca de falantes disponíveis a participar
como voluntários do processo de entrevista sociolinguística (que demanda
certo tempo), que sejam representativos da comunidade de fala (que não
3
É interessante observar como outras áreas das ciências sociais lidam empiricamente
com a questão da amostragem. No marketing, Kovacks et al. (2004) realizaram análise
bibliométrica cujos resultados revelam que 52% dos estudos utilizam amostras de
conveniência, 14%, amostras aleatórias simples, 11%, por julgamento, 5%, por cotas e
3%, bola de neve (os outros 15% não especiicaram como constituíram suas amostras).
672
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
causem estranhamento, que não destoem do padrão da comunidade, etc.).
A amostragem não é, portanto, aleatória, pois não são todos os falantes
da população que têm igual chance de ser selecionados para a amostra. A
amostragem aleatória parte do pressuposto de que o documentador não
conhece os sujeitos, o que não ocorre no processo de seleção de falantes
para a constituição de amostras sociolinguísticas.4
3 Representatividade da amostra
Diferentemente da amostra probabilística (aleatória), a amostra
não probabilística apresenta viés amostral. Wheelan (2016) apresenta os
vieses amostrais que podem levar a resultados equivocados, dos quais
são aplicáveis à abordagem da sociolinguística variacionista o viés de
seleção e o viés de publicação.5
O viés da seleção incide diretamente na representatividade
da amostra. Em propostas para descrever a comunidade em geral, os
efeitos do viés de seleção se manifestam, por exemplo, pela inluência
humana da escolha (sentimentos, ainidades, atitudes, etc.), pela cobertura
inadequada da população, pela inabilidade para encontrar certos
segmentos da população, pela falta de cooperação em alguns subgrupos
(TAGLIAMONTE, 2006).
Considerar a representatividade da amostra barra vieses nos dados
que poderiam tornar a generalização impossível (BUCHSTALLER,
KHATTAB, 2014). A amostra precisa ser representativa para os
propósitos do estudo. Para estudos de cunho sociolinguístico de
orientação variacionista, os propósitos costumam estar relacionados
à descrição de padrões da comunidade de fala. É nesse ponto que a
técnica de amostragem da sociolinguística variacionista começa a
4
Mesmo quando possível uma amostra aleatória, nem sempre, do ponto de vista da
sociolinguística, a aleatoriedade é possível; a distribuição de uma população nunca é
geográica e socialmente aleatória (TAGLIAMONTE, 2006).
5
Neste texto, trato apenas do viés da seleção. No entanto, o viés de publicação também
merece relexões: achados positivos têm maior probabilidade de ser publicados do
que achados negativos. Na abordagem da sociolinguística variacionista, esse viés se
manifesta quando os pesquisadores omitem/não informam as variáveis extralinguísticas
(preditoras) que foram controladas no modelo, mas que não apresentaram
signiicância estatística. O fato de um fator não ser estatisticamente signiicativo é
sociolinguisticamente signiicativo!
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
673
se distanciar das demais ciências sociais. Uma comunidade de fala é
deinida não em função de um padrão de uso, mas de um padrão de
atitudes (LABOV, 1972); existe um conjunto de atitudes em relação à
língua que é compartilhado por quase todos os membros, mas que não
necessariamente usam as mesmas formas. Há um viés de intencionalidade
para tornar o processo de seleção de falantes compatível com o construto
da população: a comunidade de fala.
É também nesse ponto que é importante considerar a distinção
entre amostra signiicativa e amostra representativa: às vezes, um número
menor de falantes, quando for possível estabelecer comparação entre
grupos, possibilita que se chegue a resultados mais consistentes dos que
o recurso de uma única amostra mais numerosa (MARTINS; PINTO,
2015, p. 9). A construção de uma amostra de fala para ins de estudos
variacionistas é diferente do modo como é feito nas outras ciências
sociais, já que, geralmente, não se pode predizer o quão frequente é uma
dada forma/fenômeno linguístico no luxo da conversação. Uma amostra
sociolinguística de orientação variacionista precisa de poucos falantes
(20 a 120) cuidadosamente escolhidos para representar a diversidade de
comportamentos linguísticos de uma comunidade, com grande volume
de material documentado para cada falante (SANKOFF, 2001). A mesma
amostra pode ser utilizada para outros estudos, de fenômenos linguísticos
diferentes, já que é representativa da estrutura e do uso da fala daquela
comunidade.
A amostra sociolinguística opera na razão inversa das demais
ciências sociais: enquanto as ciências sociais operam com
amostras com muitos falantes que cedem poucos dados, a
sociolinguística opera com amostras com poucos falantes que
cedem muitos dados. (SANKOFF, 2001, p. 823)
A conveniência e o julgamento em uma amostra induzem a
um viés em relação à população total, produzindo resultado distorcido
(LAMEIRÃO, 2014). Manuais de estatística recomendam que sempre
que essas técnicas de amostragem são adotadas, os resultados sejam
acompanhados por uma descrição detalhada de como a amostra foi
obtida, de modo que o leitor possa avaliar qual credibilidade pode
dar aos resultados. No caso da amostragem de comunidades de fala,
na sociolinguística variacionista, é pertinente incluir os critérios de
inclusão e seleção de falantes na metodologia de constituição da amostra,
674
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
especiicando, por exemplo, de que modo um falante será julgado (por
testes de reação subjetiva, por exemplo).
3.1 Amostra por cota ixa ou proporcional
Estratiicar uma amostra pressupõe identiicar os estratos (células
sociais) e calcular a proporção da população de cada estrato representado
na amostra. Para o procedimento de estratiicação, é preciso considerar as
forças sociais que operam sobre a língua (TAGLIAMONTE, 2006), como
a classe socioeconômica, o grupo étnico, sexo/gênero, especialmente o
papel da mulher (FREITAG, 2015a), idade, com o efeito de pares no
grupo (FREITAG, 2005).
Em termos operacionais, a estratificação é implementada
em função de características sociodemográicas; algumas podem ser
validadas de forma oicial, sem causar constrangimentos, como idade,
onde nasceu, o quanto estudou e o sexo (registro civil). Algumas
categorizações são mais delicadas, como o quanto ganha (faixa de renda,
classe socioeconômica) e o gênero do falante, considerando identiicação
e orientação. Outras são arbitrárias, feitas pelo pesquisador (à revelia do
falante), como ser falante de “português culto” ou “português popular”.6
A conluência entre os peris sociais conigura as células sociais,
ou os estratos, que devem ser preenchidos por falantes que apresentem
concomitantemente esses conjuntos de características. Assim, uma
amostra hipotética que considere onde mora (centro/subúrbio), sexo civil
(masculino/feminino) e idade (jovens e idosos) gera oito estratos, ou
células sociais, todas potencialmente ortogonais, ou seja, preenchíveis:7
– Homem, jovem, morador do centro
– Homem, jovem, morador do subúrbio
– Homem, idoso, morador do centro
Se este critério for especiicado previamente, é mais provável que um falante colabore
para a constituição de uma amostra de fala culta do que para uma de fala popular, por
exemplo.
7
A quebra da ortogonalidade de uma amostra sociolinguística por cotas se dá, por
exemplo, quando se considera a faixa etária e a escolaridade. A célula social para falantes
que simultaneamente sejam crianças e universitários tem forte probabilidade de ser
vazia (pode existir criança superdotada que curse a graduação antes dos 12 anos, mas
é um caso excepcional), quebrando a ortogonalidade da amostra (FREITAG, 2005).
6
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
675
– Homem, idoso, morador do subúrbio
– Mulher, jovem, moradora do centro
– Mulher, jovem, moradora do subúrbio
– Mulher, idosa, moradora do centro
– Mulher, idosa, moradora do subúrbio
Deinidas as células sociais, resta a decisão de como preenchê-las:
cotas ixas (sempre o mesmo número de falantes em cada célula) ou cotas
proporcionais (a proporção de falantes em cada célula corresponde à sua
proporção na população). Em bancos de dados brasileiros, o VARSUL,
por exemplo, assume uma cota ixa de falantes para cada uma das cidades
representadas, independentemente do tamanho da amostra; já o Iboruna
assume uma distribuição por cotas proporcionais à população de cada
uma das cidades que compõem o banco de dados (FREITAG, 2011;
FREITAG; MARTINS; TAVARES, 2012).
A escolha do procedimento de estratiicação traz implicações
metodológicas. Manter o padrão fixo possibilita comparação com
outras amostras, cuja distribuição proporcional pode não ser a mesma.
Atribuir proporções (pesos) aos estratos da amostra representa mais
idedignamente a realidade da população.
3.2 Amostras não estratiicadas
O relaxamento do rigor da representatividade estatística precisa
ser compensado com a convergência de métodos de amostragem de outras
disciplinas, como a adoção de modelos de redes sociais e de comunidades
de práticas, para garantir diversidade analítica. Para esses modelos, a
etnograia é uma etapa necessária, que possibilita captar em que lugar
essa língua está (não que isso não seja necessário também nas outras
técnicas de amostragem). Na sociolinguística variacionista, o estudo de
Penelope Eckert em comunidades escolares de Detroit é o pioneiro a
usar esta técnica de abordagem (ECKERT, 1989).
Não há uma metodologia padrão, nem há como fazer um
planejamento rigoroso da etnografia de uma dada comunidade; é
o acesso do pesquisador de campo e o seu envolvimento na/com a
comunidade que vão permitir o desenho da pesquisa. Meyerhoff, Schleef
e Mackenzie (2015, p. 59) sugerem que a etnograia da comunidade na
676
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
abordagem sociolinguística siga o acrônimo SPEAKING proposto por
Hymes (2003[1974]): Settings; Participants; Ends; Act sequence; Keys;
Instrumentalities; Norms; Genres. Em linhas gerais, essa orientação
sugere que seja observado como os participantes veem a interação
documentada, do ponto de vista físico e psicológico (settings); a descrição
dos participantes e e daquilo sobre o que eles falam (participants); os
objetivos das interações documentadas (goals); a forma, o conteúdo
e o que acontece nas interações (act sequence); o tom, o modo e
o estado psicológico da fala (key); os registros e as formas da fala
(instrumentalities), assim como as normas e os gêneros discursivos.
3.2.1 Comunidade de práticas
A comunidade de prática é caracterizada como um agrupamento
de falantes (comunidade) que partilham perspectivas em comum,
valores e conhecimento (domínio), e que interagem entre si para se
aperfeiçoarem e replicarem esses valores e conhecimentos (prática)
(WENGER, 1998; ECKERT; MCCONNELL-GINET, 1997). Estudos
de comunidade de práticas não necessitam de amostragem; idealmente,
toda a população é considerada, a exemplo do estudo de uma comunidade
de práticas religiosas, Praesidium Mãe da Divina Graça da Legião
de Maria (católica), situada na zona rural, no povoado Açuzinho, um
dos mais de 100 povoados do município de Lagarto, no centro-sul do
estado de Sergipe. A documentação sociolinguística dessa comunidade
faz parte do banco de dados Falares Sergipanos (FREITAG, 2013) e
subsidiou diferentes análises (FREITAG, 2014, 2015b; FREITAG;
SANTANA; ANDRADE, 2014, entre outros). O grupo é constituído
por 13 participantes, os quais se reúnem sistematicamente duas vezes
por semana para tratar das atividades religiosas. As gravações das
reuniões e a realização das entrevistas icaram sob a responsabilidade
de Cristiane Conceição Santana e Thais Regina Conceição Andrade. A
primeira pesquisadora de campo é residente na localidade, e sua avó foi
membro da comunidade de práticas sob análise, o que facilitou o contato
e minimizou os efeitos do paradoxo do observador. Paralelamente,
foram realizadas entrevistas com vistas a coletar informações acerca da
constituição da comunidade, além de investigação documental em atas e
livros de registro dessa comunidade; essa investigação possibilitou traçar
o peril da comunidade, fazendo o resgate histórico, e pode ser conferido
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
677
em Freitag, Santana e Andrade (2014). Embora no povoado Açuzinho
existam mais de 20 grupos religiosos, a escolha não foi aleatória; a
acessibilidade foi um dos critérios – talvez o principal – que viabilizou a
coleta. Considerando a existência de vários grupos religiosos na mesma
comunidade, poderíamos pensar que a amostra de comunidades de práticas
é uma amostra por conglomerados. A amostragem por conglomerados
explora a existência de grupos em uma dada população. Se esses grupos
representam adequadamente a população em relação à característica que
queremos medir (os grupos apresentam a variabilidade da população), é
possível selecionar um ou mais de um desses conglomerados; foi o que
izemos com a amostra Atheneu Sergipense (FREITAG et al., 2016).
Essa técnica de amostragem reduz o poder explanatório da análise (não
podemos generalizar os resultados obtidos em um grupo de estudantes
para a fala de Aracaju), mas garante a replicabilidade (está em andamento
a coleta em mais duas escolas, nos mesmos moldes). No entanto, tanto
na escolha da amostra da comunidade de práticas religiosa, como na
escolha da comunidade de práticas escolares, há um viés de seleção por
conveniência – acidentalmente, foi a essas e não a outras que tivemos
acesso – e de julgamento – as comunidades de práticas a que tivemos
acesso são representativas do padrão de comportamento das demais –
conigurando uma amostra não aleatória, de composição heterogênea
(diferentemente da amostra por cotas).
A composição heterogênea e hierarquizada é uma característica
de comunidades de práticas, pois todo agrupamento de pessoas que se
reúnem com um propósito comum necessita que alguém sempre esteja à
frente para tomar decisões e posicionamentos que favoreçam o progresso
da comunidade diante dos objetivos almejados – uma composição
mais realista da sociedade o que a estratiicação homogeneizada de
comunidades de fala.
A comparação dos resultados entre o estudo baseado em amostras
de comunidades de fala e de comunidades de práticas torna possível
a detecção de padrões de emergência e regularização de variantes na
amostra de comunidade de fala e a observação da atuação de valores
sociopessoais em comunidades de práticas. A conluência de abordagens
tem sido testada em novos bancos de dados (FREITAG; MARTINS;
TAVARES, 2012, FREITAG, 2013). O estudo em comunidades de fala
possibilita que os resultados sejam aprofundados, desde que se tomem
como referência estudos microetnográicos de comunidades de práticas.
678
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
3.2.2 Redes sociais/bola de neve
A técnica de amostragem bola de neve, ou amigo do amigo, é
um tipo de amostragem utilizado para atingir uma população de difícil
acesso ou de baixa incidência de falantes. A rede social, considerando
os diferentes hábitos de socialização e o grau de envolvimento com a
comunidade local dos falantes iniciais, é utilizada para ter acesso ao
coletivo, e cada falante selecionado indica mais um falante (linear) ou
dois falantes (exponencial), e assim sucessivamente.
Os laços que ligam cada um dos falantes podem ser de primeira
ordem (falantes que diariamente estão interagindo), ou de segunda ordem,
(falantes que se interligam indiretamente). Redes são caracterizadas
também quanto à sua densidade e “plexidade”. Quando todos os membros
se conhecem, a rede é de alta densidade; quando não há o contato entre
todos os membros, a rede é de baixa densidade. Em relação à plexidade,
os membros podem estabelecer laços multiplex, ou seja, duas pessoas
se relacionam em mais de um papel social e estão presentes em mais de
um grupo, e laço uniplex, quando o laço entre duas pessoas é baseado
em apenas um relacionamento.
Na sociolinguística variacionista, o modelo de rede social foi
adotado no estudo de Milroy (1980), em três comunidades de classe
trabalhadora (duas católicas e uma protestante) em Belfast, Irlanda,
que examinou diferentes tipos de redes, dentro das quais os falantes se
socializavam, e a correlação da força da rede com variáveis linguísticas.
Para medir a força da rede, Milroy (1980) propôs uma combinação de
traços para controlar multiplexidade e densidade da rede, baseada em
uma escala de seis pontos, do 0 a 5, controlando os seguintes parâmetros:
se o falante faz parte de uma rede territorialmente constituída (rede
densa), se tem laços fortes de parentesco (rede multiplexa), se trabalha no
mesmo lugar com ao menos dois outros membros da mesma comunidade
(rede multiplexa), se compartilha o mesmo local de trabalho com ao
menos dois outros membros do mesmo sexo da mesma área (rede
multiplexa), se desenvolve trabalhos voluntários nas horas vagas (rede
multiplexa).
Na perspectiva da sociolinguística brasileira, a abordagem de
redes tem sido adaptada e utilizada na seleção de falantes para as amostras
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
679
estratiicadas considerando a plexidade e a densidade (BATTISTI, 2014;
ARAUJO; SANTOS; FREITAG, 2014).8
4 Tamanho da amostra
O tamanho da amostra, para ins da generalização da estatística
inferencial, requer que sejam consideradas a margem de erro
(probabilidade de o intervalo conter a média verdadeira) e a signiicância
(grau de acurácia para que determinado resultado seja considerado
válido) em amostras aleatórias. Em amostras não aleatórias, o tamanho
envolve a decisão de quantos falantes vão preencher cada cota/célula
social. Normalmente, essa decisão envolve disponibilidade de tempo
e recursos do pesquisador. No exemplo da seção 3.1, se as oito células
sociais forem preenchidas por cotas de um falante, a coleta necessitará
de oito falantes. Trabalhar com o número mínimo não é uma situação
adequada, pois, ainda que haja um teste de julgamento para incluir ou
não o falante na amostra, sem um parâmetro da célula. Fica difícil julgar.
Então, vamos aumentar a cota para dois, o que leva a uma amostra de
16 falantes. Dois falantes é um número mínimo para a constituição de
amostras sociolinguísticas por cotas ixas; no entanto, podemos ampliar
a amostra para garantir representatividade. Com cinco falantes por cota,
a amostra necessitará de 40 falantes. E assim sucessivamente.
No entanto, a amostra sociolinguística opera na razão inversa
das demais ciências sociais (SANKOFF, 2001), operando com amostras
com poucos falantes que cedem muitos dados. A depender dos recursos
e disponibilidade, pode ser realizada ampla coleta, mas tratamento
estatístico de apenas uma parte dos dados. E é nesse ponto que é preciso
considerar o fenômeno linguístico sob análise. Muito mais importante
do que a cota por célula é garantir a representatividade do fenômeno
Com base na proposta de Blake e Josey (2003), Oushiro (2011) e Araujo, Santos e
Freitag (2014) desdobram-se critérios para controle de densidade e plexidade da rede de
falantes: Grau 1 – Bastante próximo. Os falantes têm laços fortes (amizade, parentesco,
colega de trabalho ou escola etc.) e interagem diariamente; Grau 2 – Próximo. Os
falantes interagem frequentemente, mas não têm laços fortes; Grau 3 – Próximo.
Os falantes não interagem frequentemente e não têm laços fortes; Grau 4 – Neutro.
Os falantes se conhecem, mas não interagem com frequência; Grau 5 – Distante. Os
interlocutores não se conheciam anteriormente e só conversaram no momento da
gravação da interação.
8
680
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
linguístico no modelo de análise construído. Meyerhoff, Schleef e
Mackenzie (2015) recomendam que, para garantir resultados coniáveis
e acurados quando submetidos ao tratamento estatístico, cada fator tenha,
no mínimo 30 ocorrências por células. Isso implica dizer que, após a
estratiicação social da amostra (8 células sociais), é preciso computar
as células das outras variáveis preditoras dependentes e garantir que o
tamanho da amostra possibilite identiicar pelo menos 30 ocorrências para
cada variável preditora independente. Em fenômenos fonológicos, isso
é possível com o número mínimo de falantes por cota. Já em fenômenos
sintáticos mais raros, esse dimensionamento requer ou mais horas de fala
por falante, ou mais falantes por cotas. Em termos de nível de rigor e
critério, não existe estudo perfeito, não existem condições ideais. Cada
fenômeno e cada realidade impõem restrições e dimensionamentos
especíicos. Por conta disso, amostras não probabilísticas não possibilitam
avaliar a precisão do resultado.
O quantitativo de ocorrências necessário para uma análise de
um fenômeno levanta a questão dos custos: o desenho, a coleta e o
armazenamento de uma amostra linguística envolvem recursos humanos
altamente especializados (treinados não só para a pesquisa de campo e
abordagem de falantes, mas também para os procedimentos de transcrição
do áudio e anotação dos dados), o que implica recursos inanceiros. Os
órgãos de inanciamento da pesquisa sociolinguística no Brasil – assim
como ocorre nas demais áreas da ciência – têm valorizado projetos
que possibilitem o compartilhamento de amostras por mais bancos de
dados sociolinguísticos, que possam ser utilizados mais de uma vez e
por mais pesquisadores, para estudar diferentes fenômenos (FREITAG,
2016, 2017).
5 Comparabilidade versus realibilidade
Considerando os aspectos de amostragem discutidos, o leitor
que chegou a este ponto do texto pode se perguntar se o que vem sendo
feito não tem validade. A resposta é, deinitivamente, sim! A tarefa de
constituição de bancos de dados é dispendiosa, mas, acima de tudo,
é irreplicável temporalmente. Uma vez feita a coleta, não é possível
voltar no tempo para corrigir os erros de amostragem que porventura
tenham ocorrido. Daí a importância de um planejamento, considerando
o objeto do estudo (sua recorrência) e os recursos disponíveis (pessoas
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
681
que estarão envolvidas na coleta dos dados, tempo disponível para os
procedimentos de coleta e armazenamento dos dados, infraestrutura e
equipamentos disponíveis).
Na constituição de novos bancos e na expansão dos bancos
já existentes, é desejável seguir o padrão de estratificação já
convencionalizado e difundido, o que possibilita a comparação de
resultados. É possível revisar o dimensionamento amostral, a im de
garantir a reabilidade, ou seja, a consistência da aplicação de métodos
estatísticos após a sua repetição. No entanto, a comparabilidade das
amostras, garantindo a série histórica, tem primazia em relação à
reabilidade estatística (FREITAG; ROST-SNICHELOTTO, 2015).
6 Conclusão
O tipo de amostragem que tem sido utilizado em estudos
sociolinguísticos de orientação variacionista, de fato, não é probabilística
aleatória estratiicada, e, sim, de cotas por conveniência e julgamento,
na medida em que os falantes são selecionados pelo critério de
disponibilidade e voluntariedade em aceitar os termos da coleta,
especialmente as amostras que são chanceladas por Comitê de Ética em
Pesquisa (FREITAG, 2017). A conveniência possibilita a operacionalidade
da coleta, mas impõe à análise menor poder explanatório; por não atender
a um critério estatístico, não pode (ou, melhor, não deve) ser generalizada
a uma população. Amostras assim constituídas não poderiam, em tese,
subsidiar generalizações sobre “a” língua falada em tal lugar por não
garantirem a representatividade da população. E, por serem pautadas na
conveniência, limitam a replicabilidade, na medida em que há um viés
de seleção.
Essa opção metodológica levanta questões relacionadas à
generalização dos resultados e o poder explanatório da estatística
inferencial subjacente ao modelo de análise utilizado: o quão acurada
é a representação da população na amostra? o quão generalizáveis são
os resultados? Nossa prática se pauta pelo dimensionamento de tempo
e recursos e não necessariamente pela representatividade da amostra.
Muitas vezes temos que fazer bom uso de “maus dados”.
Assim, cabe a recomendação de manuais de estatística: em
estudos com amostragem por conveniência, os resultados devem
acompanhar uma descrição detalhada da metodologia de obtenção da
amostra para permitir ao leitor o juízo de credibilidade da análise.
682
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
Agradecimentos
Este texto foi debatido no encontro do GT de Sociolinguística da Anpoll,
ocorrido durante o 31º Enanpoll, em 2016. Agradeço aos debatedores
pelos comentários e pela audiência, especialmente a Livia Oushiro,
Rosane Andrade Berlinck, Marco Antonio Martins e Silvia Rodrigues
Vieira, assim como aos pareceristas anônimos da Relin, que contribuíram
signiicativamente para o aprimoramento do texto.
Referências
ARAUJO, Andréia Silva; SANTOS, Kelly Carine; FREITAG, Raquel
Meister Ko. Redes sociais, variação linguística e polidez: procedimentos
de coleta de dados. In: FREITAG, Raquel Meister Ko. (Org.). Metodologia
de coleta e manipulação de dados em Sociolinguística. São Paulo:
Blücher, 2014. p. 99-116.
BAILEY, Guy; WIKLE, Tom; TILLERY, Jan; SAND, Lori. The apparent
time construct. Language, Variation and Change, Cambridge, v. 3, n. 3,
p. 241-264, 1991.
BATTISTI, Elisa. Redes sociais, identidade e variação linguística.
In: FREITAG, Raquel Meister Ko. (Org.). Metodologia de coleta e
manipulação de dados em Sociolinguística. São Paulo: Blücher, 2014.
p. 79-98.
BLAKE, Renée; JOSEY, Meredith. The/ay/diphthong in a Martha’s
Vineyard community: What can we say 40 years after Labov?
Language in Society, Cambridge, v. 32, n. 4, p. 451-485, 2003. DOI:
10.10170S0047404503324017
BUCHSTALLER, Isabelle; KHATTAB, Ghada. Population samples.
In: PODESVA, Robert; SHARMA, Devyani (Ed.). Research methods
in linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 74-95.
CEDERGREN, Henrietta; SANKOFF, David. Variable rules: Performance
as a statistical relection of competence. Language, Washington, v. 50, n.
2, p. 333-355, 1974. DOI: 10.2307/412441
ECKERT, Penelope. Jocks and burnouts: Social categories and identity
in the high school. Michigan: Teachers College Press, 1989.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
683
ECKERT, Penelope; MCCONNELL-GINET, Sally. Communities of
practice: where language, gender and power all live. In: COATES,
Jennifer. (Ed.). Language and Gender: a reader. Oxford: Blackwell,
1997. p. 484-494.
FREITAG, Raquel Meister Ko. (Re)discutindo sexo/gênero na
sociolinguística. In: FREITAG, Raquel Meister Ko.; SEVERO, Cristine
Gorski. (Org.). Mulheres, linguagem e poder: estudos de gênero na
sociolinguística brasileira. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2015a.
p. 17-74.
FREITAG, Raquel Meister Ko. Banco de dados falares sergipanos.
Working Papers em Linguística, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 156-164,
2013. DOI: http://dx.doi.org/10.5007/1984-8420.2013v14n2p156
FREITAG, Raquel Meister Ko. Covariação em uma comunidade de
práticas. In: LOPES, Norma da Silva; RAMOS, Jânia; OLIVEIRA,
Josane Moreira. (Org.). Diferentes olhares sobre o português brasileiro.
Feira de Santana: Editora UEFS, 2014. p. 13-30.
FREITAG, Raquel Meister Ko. Desafios teóricos-metodológicos da
sociolinguística variacionista. In: PARREIRA, Maria Cristina et al.
(Org.). Pesquisas em Linguística no século XXI: perspectivas e desaios
teórico-metodológicos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015c. v. 27, p.
29-43.
FREITAG, Raquel Meister Ko; SNICHELOTTO, Cláudia Andrea Rost.
Análises contrastivas: estabilidade, variedade ou metodologia?. Working
Papers em Linguística, Florianópolis, v. 16, n. 1, p. 157-169, 2015. DOI:
http://dx.doi.org/10.5007/1984-8420.2015v16n1p157
FREITAG, Raquel Meister Ko. et al. Avaliação e variação linguística:
estereótipos, marcadores e indicadores em uma comunidade escolar.
In: FREITAG, Raquel Meister Ko.; SEVERO, Cristine Gorski;
GÖRSKI, Edair Maria. Sociolinguística e política linguística: olhares
contemporâneos. São Paulo: Blucher, 2016. p. 141-160.
FREITAG, Raquel Meister Ko. Idade: uma variável sociolinguística
complexa. Línguas & Letras, Cascavel, v. 6, n. 11, p. 105-121, 2005.
DOI: http://dx.doi.org/10.5935/rl&l.v6i11.875
FREITAG, Raquel Meister Ko. O social da sociolinguística: o controle
de fatores sociais. Diadorim, Rio de Janeiro, v. 8, p. 43-58, 2011.
684
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
FREITAG, Raquel Meister Ko. Socio-stylistic aspects of linguistic
variation: schooling and monitoring effects. Acta Scientiarum. Language
and Culture, Maringá, v. 37, p. 127-136, 2015b. DOI: http://dx.doi.
org/10.4025/actascilangcult.v37i2.24240
FREITAG, Raquel Meister Ko.; MARTINS, Marco Antonio; TAVARES,
Maria Alice. Bancos de dados sociolinguísticos do português brasileiro
e os estudos de terceira onda: potencialidades e limitações. Alfa,
Araraquara, v. 56, n. 3, p. 917-944, 2012. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/
S1981-57942012000300009
FREITAG, Raquel Meister Ko. Sociolinguística no/do Brasil. Cadernos
de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 58, n. 3, p. 445-460, 2016.
FREITAG, Raquel Meister Ko. Documentação Sociolinguística, coleta
de dados e ética em pesquisa. São Cristóvão: EdUFS, 2017.
FREITAG, Raquel Meister Ko.; SANTANA, Cristiane Conceição;
ANDRADE, Thaís Regina Conceição. Práticas constitutivas do Povoado
Açuzinho. Ambivalências, São Cristóvão-SE, v. 2, p. 194-217, 2014. DOI:
http://dx.doi.org/10.21665/2318-3888.v2n3p194-217
GOMES, Christina Abreu. Para além dos pacotes estatísticos Varbrul/
Goldvarb e Rbrul: qual A concepção de gramática? Revista do GELNE,
Natal-RN, v. 14, n. 1/2, p. 257-272, 2012.
GORMAN, Kyle; JOHNSON, Daniel Ezra. Quantitative analysis. In:
BAYLEY, Robert; CAMERON, Richard; LUCAS, Ceil (Ed.). The Oxford
handbook of sociolinguistics. Oxford: Oxford University Press, 2013. p.
214-240. DOI: 10.1093/oxfordhb/9780199744084.001.0001
GUY, Gregory. Words and numbers: statistical analisys in sociolinguistics.
In: HOLMES, Janet; HAZEN, Kirsk (Ed.). Research methods in
sociolinguistics: a practical guide. Malden: Wiley & Sons, 2014. p. 194210.
HYMES, Dell. Foundations in sociolinguistics: An ethnographic
approach. London: Routlege Press, 2003.
JOHNSON, Daniel Ezra. Getting off the GoldVarb standard: Introducing
Rbrul for mixed-effects variable rule analysis. Language and Linguistics
Compass, Wiley Online Library, v. 3, n. 1, p. 359-383, 2009. DOI:
10.1111/j.1749-818X.2008.00108.x
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
685
KOVACS, Michelle Helena et al. Podemos coniar nos resultados de
nossas pesquisas? Uma avaliação dos procedimentos metodológicos
nos artigos de marketing do EnANPAD. In: EMA - ENCONTRO DE
MARKETING DA ANPAD, I, 2004. Porto Alegre. Anais… Porto Alegre:
Anpad, 2004. p. 1-15.
LABOV, William. Building on empirical foundations. In: LEHMANN,
Winfred; MALKIEL, Yakov (Ed.). Perspectives on historical linguistics.
New York: John Benjamins Publishing, 1982. p. 17-92.
LABOV, William. Sociolinguist patterns. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1972.
LAMEIRÃO, Adriana Paz. O controle metodológico como meio para
assegurar a credibilidade de uma pesquisa de survey. Pensamento Plural,
Pelotas, n. 14, p. 41-63, 2014.
MARTINS, Fernanda; PINTO, Maria da Graça Lisboa Castro.
Procedimentos de pesquisa: alguns conselhos práticos para o estudo
também psicolinguístico de realidades concretas. Letras de Hoje, Porto
Alegre, v. 50, n. 1, p. 7-12, 2015. DOI: https://doi.org/10.15448/19847726.2015.1.20569
MEYERHOFF, Miriam; SCHLEEF, Erik; MACKENZIE, Laurel. Doing
Sociolinguistics: A practical guide to data collection and analysis. New
York: Routledge, 2015.
MILROY, Lesley. Language and social networks. Oxford: Blackwell,
1980.
OLIVEIRA, Alan Jardel. Análise quantitativa no estudo da variação
linguística: noções de estatística e análise comparativa entre Varbrul e
SPSS. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 17, n. 2, p.
93-119, 2009. DOI: http://dx.doi.org/10.17851/2237-2083.17.2.93-119
OUSHIRO, Livia. Uma análise variacionista para as interrogativas-Q.
2011. 160 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade de
São Paulo, 2011.
OUSHIRO, Lívia. Identidade na pluralidade: avaliação, produção
e percepção linguística na cidade de São Paulo. 2015. 394 f. Tese
(Doutorado em Linguística) – Universidade de São Paulo, 2015.
686
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018
R CORE TEAM (2017). R: A language and environment for statistical
computing. R Foundation for Statistical Computing. Vienna, Austria.
URL:< https://www.R-project.org/.>
SANKOFF, David. Statistics in sociolinguistics. In: MESTHRIE, Rajend
(Ed.). Concise Encyclopedia of Sociolinguistics. New York: Elsevier,
2001. p. 828-834.
SANKOFF, David. Variable rules. In: AMMON, Ulrich; DITTMAR,
Norbert; MATTHEIER, Klaus J. (Ed.). Sociolinguistics: An international
handbook of the science of language and society, Berlin: Walter de
Gruyter, 1988. v. 2, .
SANKOFF, David; TAGLIAMONTE, Sali; SMITH, Eric. GoldVarb
X: Variable Rule Application for Macintosh and Windows. Toronto:
University of Toronto, 2005.
SCHERRE, Maria Marta Pereira. Padrões sociolinguísticos do português
brasileiro: a importância da pesquisa variacionista. Tabuleiro de Letras,
Salvador, n. 4, p. 1-32, 2012.
TAGLIAMONTE, Sali. Analyzing Sociolinguistic Variation. Cambridge:
Cambridge University Press, 2006.
TAGLIAMONTE, Sali A.; BAAYEN, R. Harald. Models, forests, and
trees of York English: Was/were variation as a case study for statistical
practice. Language, Variation and Change, Cambridge, v. 24, n. 2, p.
135-178, 2012. DOI: https://doi.org/10.1017/S0954394512000129
WENGER, Etienne. Communities of practice: learning, meaning, and
identity. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. DOI: https://
doi.org/10.1017/CBO9780511803932
WHEELAN, Charles. Estatística: o que é, para que serve, como funciona.
Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
Sociolinguística, teoria social e padronização linguística
Sociolinguistics, social theory and linguistic standardization
Marcos Bispo dos Santos
Universidade do Estado da Bahia, Alagoinhas, Bahia/Brasil
mabispo@uneb.br
Resumo: Neste artigo, questiona-se a pertinência e a relevância da
sociolinguística variacionista como ciência aplicada na abordagem de
questões relativas à padronização linguística no Brasil. Para isso, fez-se uma
pesquisa bibliográica dividida em dois eixos, o linguístico e o sociológico,
com o intuito de compreender as bases teóricas da sociolinguística
brasileira. No primeiro eixo, buscou-se compreender a natureza da
sociolinguística com base nas pesquisas de Labov. No segundo, situou-se
o componente propriamente sociológico da sociolinguística no contexto
das teorias sociais. A análise evidenciou que a metodologia da pesquisa,
no contexto da sociolinguística variacionista, é marcadamente positivista
e não se coaduna com os princípios da pesquisa social contemporânea.
Veriicou-se ainda que a tese da ideologia dominante, elemento central da
teoria social da sociolinguística brasileira, além de não exercer inluência
signiicativa na metodologia da pesquisa, já foi amplamente questionada
e não exerce inluência na pesquisa social contemporânea.
Palavras-chave: padronização linguística; sociolinguística variacionista;
teoria social.
Abstract: In this article, we discuss the pertinence and relevance of
Brazilian variationist sociolinguistics as applied science in the approach
of issues related to linguistic standardization. In order to do so, we
conducted a bibliographical research divided into two axes, the linguistic
one and the sociological one, aiming at understanding the theoretical
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.687-718
688
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
bases of Brazilian sociolinguistics. In the irst axis, we discussed the
nature of sociolinguistics taking Labov’s research as a starting point.
Then, we situated the sociological component of sociolinguistics in
the context of Social Theories. The analysis showed that in the context
of variationist sociolinguistics, the research methodology is markedly
positivist and does not conform to the principles of contemporary social
research. We also observed that the Dominant Ideology Theory, a central
element in the social theory of Brazilian sociolinguistics, not only did
not exert signiicant inluence in the methodology of the research works
carried out in the area, but also had already been widely questioned in
the context of social research and does not present satisfactory answers
to the problems it is supposed to explain.
Keywords: linguistic standardization; variacionist sociolinguistics;
social theory.
Recebido em 3 de agosto de 2017
Aceito em 3 de outubro de 2017
1 Introdução
A sociolinguística variacionista, aquela que tem em Labov
seu maior expoente, é hoje a principal referência teórica acerca de
questões relativas à variação linguística. Embora essa ciência adote uma
metodologia que articula fatores linguísticos e sociais com o objetivo
precípuo de explicar a mudança linguística, os resultados das pesquisas
orientadas pelo modelo laboviano se tornaram referências para orientar o
discurso acadêmico nos debates que envolvem a padronização linguística
no Brasil. Diante desse contexto, o problema central discutido neste texto
é o seguinte: uma teoria que surge com o propósito de explicar a mudança
linguística pode ser usada como fundamentação para reorientar a forma de
conceber e implementar as políticas de regulamentação linguística? Com
o objetivo de reletir sobre a pertinência da sociolinguística variacionista
como ciência aplicada para abordar questões relativas à padronização
linguística, dividiu-se o texto em três partes apresentadas a seguir.
Na primeira, confronta-se a sociolinguística com a sociologia
da linguagem no que se refere ao tratamento da variação estilística e da
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
689
padronização linguística. Na concepção de Labov, essa é uma distinção
fundamental para a deinição da natureza da sociolinguística como uma
teoria da língua, que não contempla questões políticas amplas relativas
a seu funcionamento social. Por outro lado, a abordagem sociológica
de Bourdieu apresenta as limitações de uma perspectiva linguística
estrita para lidar com processos sociais que envolvem a variação
estilística e o funcionamento da língua legítima. Paradoxalmente, na
abordagem que chamaremos aqui de sociolinguística aplicada brasileira1,
mesmo admitindo-se o princípio metodológico da articulação entre
língua e sociedade, tem-se defendido a negação de critérios sociais
como prioritários na deinição do padrão linguístico uniicador. Com
base no princípio da regularidade interna das variedades linguísticas,
propõe que a padronização da língua se dê levando em conta as
regras inerentes ao próprio sistema linguístico. Diante disso, uma vez
reconhecida a necessidade de um padrão linguístico nacional pelos
próprios sociolinguistas aplicados, a alternativa adotada foi buscar
a deinição de uma norma culta real, extraída da análise da fala de
pessoas arbitrariamente deinidas como cultas pelos pesquisadores. A
partir daí, instaurou-se a distinção entre norma culta, concebida como
real, por, supostamente, reletir o uso efetivo e intuitivo do grupo social
selecionado, e a norma padrão, vista pelos pesquisadores como idealizada,
artiicial e abstrata, por não ser a língua natural de nenhum falante. A seção
apresenta alguns problemas da solução proposta pelos sociolinguistas
aplicados e inaliza com a seguinte questão: uma ciência aplicada que
O uso da expressão sociolinguística aplicada, neste texto, baseia-se na distinção
entre antropologia teórica e antropologia aplicada proposta por Bastide (2009), que
atribui a esta última o papel de transferir os conhecimentos da primeira à compreensão
e à resolução de problemas práticos da vida sociocultural. Assim, a expressão
sociolinguística aplicada recobre as discussões de linguistas que se propõem a utilizar
conceitos, métodos e resultados das pesquisas sociolinguísticas variacionistas como
fundamentos de propostas para reformar as políticas linguísticas e o ensino de língua na
educação básica. Esses linguistas compõem um grupo heterogêneo, uma vez que alguns
deles são realmente pesquisadores que utilizam os princípios teórico-metodológicos
de Labov, como Lucchesi (2015) e Scherre (2005), enquanto outros, que não realizam
pesquisas sociolinguísticas propriamente ditas, como Bagno (2003, 2009, 2010),
Mattos e Silva (2005), Faraco (2008), por exemplo, voltam-se para discussões sobre a
necessidade de aplicar os saberes da sociolinguística teórica a contextos sociais mais
amplos que os contemplados nas pesquisas empíricas.
1
690
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
se propõe ao estudo das relações entre língua e sociedade pode excluir
deliberadamente de seu campo de interesse a língua institucionalizada e
socialmente reconhecida como padrão?
Para responder a essa questão, na segunda parte, discutem-se
os fundamentos epistemológicos da sociolinguística, iniciando pela
compreensão dos fatores que caracterizam a disciplina no modelo de
Labov até sua perspectiva aparentemente interdisciplinar. A análise do
caminho percorrido pela disciplina revela a existência de dois eixos que se
justapõem na sociolinguística brasileira: o linguístico, de base positivista,
e o sociológico, que busca aplicar, de maneira transpositiva, os resultados
da pesquisa às políticas de regulamentação linguística, aliando à proposta
uma concepção da teoria social clássica conhecida como tese da ideologia
dominante. A mera justaposição entre os dois eixos é decorrente de uma
separação entre duas atividades que deveriam ser realizadas de maneira
harmônica em uma disciplina constituída segundo os princípios da
interdisciplinaridade, ou seja, pesquisa e interpretação. Dessa forma,
não há uma integração entre os eixos linguístico e sociológico para a
constituição da metodologia da pesquisa, que, em razão disso, é ainda
marcadamente positivista e orientada para o estudo dos fenômenos
puramente linguísticos, enquanto a interpretação se dá com base na tese
da ideologia dominante, baseada na versão ortodoxa do marxismo. Nesses
termos, a revolução social no campo da regulamentação linguística darse-ia pela aplicação dos conhecimentos cientíicos às questões sociais,
pela via exclusiva da interpretação, uma vez que as questões sociológicas
não são consideradas na metodologia de pesquisa.
Na terceira parte, são discutidos os problemas da teoria social
em que se fundamentam as interpretações dos sociolinguistas brasileiros
acerca da padronização linguística (LUCCHESI, 2015; FARACO, 2008;
ZILLES; FARACO, 2015; MARTINS; VIEIRA; TAVARES, 2014;
SCHERRE, 2005; BAGNO, 2003). A tese da ideologia dominante é
situada no contexto geral da teoria social para que seja avaliado seu
potencial de apresentar explicações pertinentes das relações sociais.
A análise evidencia que a teoria social contemporânea se afastou do
consenso ortodoxo sobre a teoria social clássica de base marxista, que
fundamenta a tese da ideologia dominante, por dois fatores igualmente
problemáticos para o estudo da sociedade: o reducionismo econômico e
o de classe, ambos estabelecidos pelo reducionismo estrutural.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
691
2 A variação estilística e o problema da padronização linguística
A história do estilo como objeto de estudo da linguística tem
início com os trabalhos de Charles Bally no início do século XX. Hoje
os fenômenos abordados por ele são estudados por várias disciplinas,
entre as quais estão as teorias da enunciação (BENVENISTE, 2006;
BAKHTIN, 2003), a pragmática (MAINGUENEAU, 1996, 2002),
a análise conversacional (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006) e a
sociolinguística. Quanto à sociolinguística, os trabalhos de Labov (2008)
foram os primeiros a utilizar a variação estilística como procedimento
metodológico importante para determinar o vernáculo, ou seja, o registro
de fala em que ocorre o menor grau de monitoramento do falante no
sentido de ajustar seu discurso a níveis de maior formalidade. Contudo,
embora a sociolinguística se caracterize por propor um estudo social da
língua, em geral, os contextos de fala propostos por Labov (2008) para
veriicar a variação estilística (entrevista, testes de reação subjetiva,
leitura monitorada, entre outros) não correspondem a qualquer situação
social concreta, ou seja, que tivesse qualquer vínculo com as práticas
sociais efetivamente vivenciadas ou vivenciáveis pelos sujeitos.
Da forma como apresentada na metodologia laboviana, a
variação contextual não busca compreender como a variação estilística
afeta o envolvimento dos sujeitos nas práticas sociais (ECKERT;
McCONNELL-GINET, 1992; ECKERT, 2012) ou em que medida os
gêneros textuais decorrentes dessas práticas exercem possíveis coerções
sobre as adequações que os falantes precisam fazer quando usam a
língua em situações reais de comunicação. Trata-se, na verdade, de um
procedimento por meio do qual o pesquisador cria situações devidamente
controladas e conduzidas de maneira a eliciar ocorrências de dados
linguísticos de acordo com os objetivos de pesquisa.
A falta de vínculo da variação estilística do modelo laboviano
com a realidade social em que as práticas comunicativas interpelam
os sujeitos reais tem relação com a forma como Labov (2008, p. 313)
concebe a variação social no quadro teórico da sociolinguística:
A variação social e estilística da língua desempenha papel
importante na mudança linguística? Por “social” entendo aqueles
traços da língua que caracterizam vários subgrupos numa
sociedade heterogênea; e por “estilística” as alternâncias pelas
quais um falante adapta sua linguagem ao contexto imediato do
692
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
ato de fala. [...] A variação social e estilística pressupõe a opção
de dizer “a mesma coisa” de várias maneiras diferentes, isto é, as
variantes são idênticas em valor de verdade ou referencial, mas se
opõem em sua signiicação social e/ou estilística.
Ao restringir a variação social aos traços linguísticos que
caracterizam os grupos sociais e a variação estilística às diferentes
formas de se transmitir o mesmo conteúdo referencial na fala de um
mesmo indivíduo, Labov situa de maneira bastante clara a natureza da
sociolinguística tal qual ele a compreende: trata-se de uma disciplina que
estuda a estrutura da língua entendida como heterogênea devido a fatores
de ordem social. Logo, o estudo da variação social e estilística constitui
etapa auxiliar cujo valor teórico está relacionado apenas aos processos
de compreensão e descrição do sistema da língua.
Numa abordagem propriamente sociológica da linguagem,
aquela em que a relação entre língua e sociedade é estudada tendo como
foco precípuo a compreensão de aspectos constitutivos da sociedade
considerando contextos reais e não a descrição da estrutura da língua,
Bourdieu (2008) ressalta que o ato de falar consiste na apropriação por
parte do sujeito de opções estilísticas já constituídas no e pelo uso (entre
as variantes prosódicas e de articulação ou lexicológicas e sintáticas).
Assim, ao optar por uma ou outra forma dos estilos expressivos
disponíveis, o sujeito se situa na ordem da hierarquia dos grupos
correspondentes e esse posicionamento institui um sistema de diferenças
sociais. A variação estilística é entendida, então, não como um recurso
metodológico utilizado para a coleta de dados linguísticos, mas como
sistema de diferenças classiicadas e classiicantes, hierarquizadas e
hierarquizantes, que marca aqueles que dela se utilizam. Nesse caso,
uma vez que a necessidade de comunicação entre pessoas de grupos
diferentes é uma constante nas sociedades complexas, não serão raras
as situações de conlitos decorrentes de tensões entre dois processos
que deveriam ser complementares: a produção e a reprodução de uma
língua comum, entendida como legítima, e sua distribuição igual pelos
grupos. Com base nesses pontos, faz todo sentido a crítica que Bourdieu
(2008, p. 41-42) dirige à forma como o social tem sido tratado pela
linguística:
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
693
Ao privilegiar as constantes linguisticamente pertinentes em
detrimento das variações sociologicamente signiicativas para
construir este artefato que é a língua “comum”, tudo se passa como
se a capacidade de falar, mais ou menos universalmente difundida,
fosse identiicável à maneira socialmente condicionada de realizar
esta capacidade natural, cujas variedades são tantas e quantas
sejam as condições sociais de aquisição. A competência suiciente
para produzir frases suscetíveis de serem compreendidas pode ser
inteiramente insuiciente para produzir frases suscetíveis de serem
escutadas, frases aptas a serem reconhecidas como admissíveis
em quaisquer situações nas quais se pode falar. Também neste
caso, a aceitabilidade não se reduz apenas à gramaticalidade. Os
locutores desprovidos de competência legítima se encontram de
fato excluídos dos universos sociais onde ela é exigida, ou então,
se veem condenados ao silêncio. Por conseguinte, o que é raro,
não é a capacidade de falar, inscrita no patrimônio biológico,
universal e, portanto, essencialmente não distintiva, mas, sim,
a competência necessária para falar a língua legítima que, por
depender do patrimônio social, retraduz distinções sociais na
lógica propriamente simbólica dos desvios diferenciais ou, numa
palavra, da distinção. (Grifos do autor)
A posição de Bourdieu acerca do papel social da língua legítima
(padrão) e suas implicações para estudos de sociologia da linguagem
contrasta com as ideias comumente difundidas pelos sociolinguistas
variacionistas. Labov, desde o início, deiniu a fala vernácula como
objeto de estudo da sociolinguística. Os sociolinguistas brasileiros
também rejeitaram a língua padrão como objeto de estudos cientíicos.
Mesmo quando defendem o princípio da adequação do uso da língua
ao contexto, argumento muito utilizado para justiicar a rejeição dos
acadêmicos à noção de erro de português, fundamentam a crítica em
bases naturais, ou seja, em conformidade com o pressuposto de que a
língua tem suas próprias regras. No entanto, quando se avaliam os usos
sociais efetivos da língua, aí incluída a variação estilística, não está em
questão a capacidade natural, biológica do locutor para falar, e sim sua
competência para usar os estilos aceitáveis e admissíveis em diferentes
contextos sociocomunicativos, inclusive aqueles em que se exige o
domínio da língua padrão.
Outro problema que pode ser considerado no princípio da
adequação é seu caráter pseudocientíico. Aqueles que o defendem veem-
694
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
no como uma espécie de conclusão de um raciocínio silogístico cujas
premissas seriam fundamentadas em resultados de pesquisas cientíicas.
No entanto, como a metodologia variacionista da chamada “primeira
onda da sociolinguística” (ECKERT, 2012) não contempla a variação
estilística em situações efetivamente reais, a conclusão de que os falantes
costumam adequar o uso linguístico às situações comunicativas em que
se encontram é, na verdade, um truísmo cuja compreensão independe
de pesquisas ou de qualquer respaldo de natureza cientíica, como bem
observou Corbeil (2001, p. 201): “O paradoxo de uma língua de grande
difusão é integrar a variação sempre respeitando uma norma uniicadora.
O paradoxo parece se resolver mais comodamente no exercício da língua
pelos falantes do que nas relexões daqueles que falam dela oicialmente”.
Os desenvolvimentos futuros do tratamento da variação
estilística, sobretudo após a adoção do conceito de norma como índice
de processos de hierarquização social, a partir do qual a sociolinguística
estabeleceu os conceitos classiicatórios de norma culta e norma popular,
não representaram um desvio da metodologia laboviana concernente ao
funcionamento da variação estilística nas práticas sociais. A esse respeito,
é oportuna a crítica de Lucchesi ao tratamento da variação estilística
no âmbito do Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta2
(NURC), em cujos dados muitos pesquisadores têm-se baseado para
defender a legitimidade da norma culta em oposição à norma padrão:
Embora possa ser considerado o primeiro grande projeto de
pesquisa sociolinguística desenvolvido no Brasil, o NURC não
segue a metodologia laboviana. Assim, as suas entrevistas não
adotam os procedimentos sugeridos por Labov para superar
o paradoxo do observador e obter uma amostra do vernáculo
do falante. As entrevistas ainda seguiam a metodologia da
dialetologia tradicional e tinham por tema determinada área lexical
(como alimentação, viagem, vestuário etc.). Com isso, o nível
de formalidade das entrevistas não foi controlado e é variável,
comprometendo a observação dos dados no que concerne à
variação estilística. (LUCCHESI, 2015, p. 219)
Os acervos de fala “culta” do NURC foram constituídos na década de 1970, em cinco
capitais brasileiras: Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife. A coleta
de dados se deu por meio de entrevistas com falantes naturais das cinco capitais, todos
com nível superior completo.
2
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
695
Apesar dos problemas metodológicos identiicados no NURC,
Lucchesi defende o que considera como contribuições de estudos sobre a
modalidade oral da norma culta brasileira, partir dos acervos do Projeto,
para uma discussão pública sobre a normatização linguística no Brasil.
Sendo assim, como aceitar que estudos realizados com base em dados
coletados por meio de uma metodologia reputada como problemática
constituam referências para o debate sobre a padronização linguística no
país? Como aceitar, num país com a extensão territorial e a diversidade
sociocultural do Brasil, que se deina uma norma culta pretensamente
amparada em dados reais da fala nacional por meio de amostras da língua
falada unicamente por falantes de nível superior de apenas cinco capitais
do país, tal como se veriica no Projeto de Gramática do Português
Falado (JUBRAN; KOCH, 2006; ILARI E NEVES, 2008; KATO;
NASCIMENTO, 2009)? Ainal, o nível superior é condição suiciente
para alguém ser considerado falante culto de uma língua num país como
o Brasil, em que a qualidade da educação básica está bastante aquém do
desejável e tem levado muitos estudantes com formação precária para
as universidades? Sabemos bem que os cursos de nível superior não
reservam espaço em seus currículos para desenvolver atividades capazes
de remediar as precariedades decorrentes de uma formação ineiciente
na educação básica.
As respostas a essas questões têm sido causas de uma série de
divergências entre os pesquisadores. Entre eles, a designação norma
culta tem-se mostrado problemática não necessariamente pelo fato de o
qualiicativo “culta” revelar um comprometimento ideológico do discurso
cientíico, que passa a instituir formas de distinção social, quando, na
verdade, deveria analisar as formas de distinção em vigor na sociedade.
A principal diiculdade que os sociolinguistas encontram para lidar com a
diferenciação social marcada pela instituição da norma culta tem ligação
com outro termo classiicatório que seria sua contraparte natural: como o
antônimo de culta é inculta, a norma culta deveria instituir de imediato seu
oposto para recobrir todos os usos linguísticos que fogem de seu escopo,
ou seja, a norma inculta. No entanto, diante de razões sócio-antropológicas
bastante razoáveis, optou-se pela solução aparentemente mais simples:
manter a norma culta e instituir, não sem grande carga de arbitrariedade
no âmbito do próprio signo, a norma popular como seu contraponto.
696
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
Apesar do esforço empreendido pelos pesquisadores para marcar
de maneira bastante incisiva a distância teórica e política que separa ambas
as normas, paira no senso comum, no discurso pedagógico referente ao
ensino de língua portuguesa e em trabalhos de muitos linguistas, uma
identiicação entre norma culta e norma padrão, entendida como equivocada
por pesquisadores de formação sociolinguística mais especializada. Os que
defendem a distinção entre essas normas denunciam a língua padrão como
um modelo idealizado e artiicial de língua fortemente comprometido com
processos de dominação e exclusão social das classes dominantes sobre as
classes populares (FARACO, 2008; LUCCHESI, 2015). A nova concepção
de norma culta, por sua vez, não obstante sua controversa correlação com
o grupo ou grupos sociais de referência, é consensualmente entendida
como a variedade linguística efetivamente utilizada pelos falantes mais
escolarizados, distinguindo-se estruturalmente em muitos aspectos da
norma padrão. Por esse motivo, é vista por seus proponentes como a real
língua do Brasil, razão pela qual os sociolinguistas aplicados a elegeram
como referência para as discussões sobre a padronização linguística.
Adotando essa posição, relegaram a norma padrão a uma espécie de limbo,
ou seja, a um lugar de indeinição tanto no contexto acadêmico quanto no
escolar. Esse gesto suscita o seguinte problema: uma ciência aplicada que
se propõe ao estudo das relações entre língua e sociedade pode excluir
deliberadamente de seu campo de interesse a língua institucionalizada,
histórica e socialmente reconhecida como padrão?
3 A resposta da sociolinguística positivista brasileira
As justiicativas para a exclusão da norma padrão do conjunto
de objetos de estudo da sociolinguística revelam, antes de tudo, sua
iliação ao paradigma cientíico positivista, segundo o qual os critérios
de cientiicidade das pesquisas devem estar alinhados aos estabelecidos
pelas ciências naturais. Isso explica o fato de autores como Perini3 e
Após negar que o estudo de gramática tenha alguma contribuição a dar para que os
estudantes desenvolvam capacidades de leitura e escrita, Perini estabelece qual deve
ser seu lugar na escola: “[...] o que a gramática poderia fazer enquanto disciplina
escolar? Minha resposta é que a gramática é uma disciplina cientíica, tal como a
química, a geograia e a biologia. Assim como a biologia estuda os seres vivos (sua
forma, isionomia, hábitos, etc.) e a química estuda os elementos e suas combinações,
3
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
697
Bagno,4 entre vários outros, propugnarem que o estudo da língua e/ou
gramática deva receber na escola o mesmo tratamento de disciplinas
cientíicas como a química, a física, a biologia e a geograia, por exemplo.
A sociolinguística laboviana segue à risca os princípios
epistemológicos do paradigma positivista (HUGHES, 1983) no tocante à
objetividade ou neutralização da inluência do pesquisador na observação
dos fenômenos estudados, na metodologia proposta para o tratamento
da variação estilística e em suas sugestões para minimizar o chamado
paradoxo do observador, ou seja, o desaio que o pesquisador enfrenta para
descobrir como as pessoas falam quando não estão sendo monitoradas,
visto que só é possível obter esses dados por meio de alguma técnica que
pode induzir o falante ao monitoramento de sua fala (LABOV, 2006).
Acrescenta-se a essa lista a forma como se concebe a delimitação do
campo disciplinar. Labov (2008, p. 215) circunscreve a sociolinguística
ao estudo da “língua em uso dentro da comunidade de fala, com vistas
a uma teoria linguística adequada para dar conta desses dados”. Mais
adiante, na mesma obra (p. 216), reairma que seu objetivo é estudar a
estrutura e a evolução da língua dentro do contexto social da comunidade
de fala, considerando exclusivamente tópicos da linguística geral, quais
sejam, da fonologia, morfologia, sintaxe e semântica. Parece icar bem
claro que o estudo dos usos da língua dentro da comunidade de fala está
a serviço do desenvolvimento da teoria linguística e não da compressão
das relações entre língua e sociedade. Essa hipótese se conirma quando
o pesquisador, ainda atendendo a propósitos de delimitação disciplinar,
distingue a sociolinguística da sociologia da linguagem:
Uma área de pesquisa que tem sido incluída na “sociolinguística”
talvez seja rotulada mais adequadamente de “sociologia da
linguagem”. Lida com fatores sociais de larga escala e sua
interação mútua com línguas e dialetos. Há várias questões
a gramática estuda um aspecto da linguagem – um fenômeno tão presente em nossas
vidas quanto os seres vivos ou os elementos químicos (PERINI, 2010, p. 35).
4
Bagno vê como necessário um ensino de língua fundado em bases cientíicas, livre do
senso comum: “A educação linguística precisa ter como base as teorias e metodologias
contemporâneas das ciências da linguagem e da educação, das ciências sociais e
humanas, e não um aparato obsoleto e pré-cientíico”. (BAGNO, 2010, p. 25). Para
conhecimento de críticas de pensadores da área de educação ao modelo de ensino
orientado pela ciência, ver Zaballa (2002) e Perrenoud (2002, p. 89-106).
698
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
abertas e diversos problemas práticos associados com o declínio
e a assimilação de línguas minoritárias, o desenvolvimento do
bilinguismo estável, a padronização de línguas e o planejamento
do desenvolvimento da língua em nações recém-surgidas. O
estímulo linguístico para esses estudos é primordialmente o de
que dada pessoa ou grupo usa a língua X num contexto ou domínio
social Y. (LABOV, 2008, p. 215) (Aspas do autor, negritos meus)
A distinção entre as disciplinas, tal qual propõe Labov, está na
maior ou menor ênfase concedida aos aspectos da estrutura da língua
ou aos fatores sociais mais amplos. Assim, a sociolinguística estaria
“preocupada com as formas das regras linguísticas, sua combinação em
sistemas, a coexistência de vários sistemas e a evolução dessas regras
e sistemas com o tempo” (LABOV, 2008, p. 216). Em contrapartida,
os aspectos práticos ligados ao funcionamento social da língua, entre
os quais se incluem as políticas linguísticas, seu planejamento e seus
instrumentos, seriam objetos da sociologia da linguagem.
A hegemonia do paradigma positivista nas ciências sociais passou
a ser objeto de muitas contestações e hoje já é possível airmar que se trata
de um modelo amplamente superado no campo das ciências humanas.
Um olhar, mesmo supericial, sobre suas características é suiciente
para entendermos as razões dessa virada. Santos (2008) apresenta as
seguintes características desse paradigma ainda dominante no campo
da sociolinguística variacionista: i) modelo totalitário, na medida em
que nega qualquer racionalidade a todas as formas de conhecimento
que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e por suas
regras metodológicas. Esse princípio instaura a cisão entre conhecimento
científico (válido) e senso comum (conhecimento inválido); ii) o
conhecimento cientíico avança pela observação descomprometida e
isenta de subjetividade, sistemática e rigorosa dos fenômenos estudados;
iii) conhecer signiica quantiicar. O rigor cientíico é consequência do
rigor das medições; logo, o que não é quantiicável é cientiicamente
irrelevante; iv) o método cientíico se assenta na redução da complexidade.
Conhecer signiica dividir e classiicar para, depois, poder determinar
as relações entre as partes separadas; v) é um conhecimento causal que
aspira à formulação de leis, com base nas regularidades observadas a im
de prever o comportamento futuro dos fenômenos. As leis são um tipo
de causa formal que privilegia o como funciona as coisas em detrimento
de qual o agente ou qual o im das coisas. Todas essas características,
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
699
presentes na metodologia laboviana, opõem-se a características que
Santos (2008, p. 36) considera constitutivas das ciências humanas:
As ciências sociais não dispõem de teorias explicativas que
lhes permitam abstrair do real para depois buscar nele, de
modo metodologicamente controlado, a prova adequada; as
ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque
os fenômenos sociais são historicamente condicionados e
culturalmente determinados; as ciências sociais não podem
produzir previsões iáveis porque os seres humanos modiicam
seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele se
adquire; os fenômenos sociais são de natureza subjetiva e como
tal não se deixam captar pela objetividade do comportamento; as
ciências sociais não são objetivas porque o cientista social não
pode libertar-se, no ato da observação, dos valores que informam
sua prática em geral e, portanto, de sua prática de cientista.
Se essa é a condição da sociolinguística face à oposição
entre a restrição de seu campo ao estudo das formas linguísticas e as
complexidades do funcionamento social da língua, como explicar o
crescente interesse dos sociolinguistas de formação variacionista por
temas como padronização linguística e ensino de língua e as posições
veementes que têm manifestado a respeito dessas questões? Penso
que estamos mais uma vez diante do transbordamento semântico do
social como elemento de composição que forma o nome da disciplina
sociolinguística. Isso já aconteceu na passagem da concepção de língua de
Saussure para a de Labov e está acontecendo na sociolinguística brasileira
em virtude de seu alinhamento com as teorias sociais de base marxista que
estão na base das interpretações dos sociolinguistas a respeito do caráter
heterogêneo da língua e suas implicações sociais. Uma das principais
razões desse transbordamento do social em relação ao modelo laboviano
está naquilo que é tido como sua incapacidade de apreender os conlitos
sociais decorrentes da variação social e estilística. Como alternativa
para as limitações do modelo do consenso social adotado por Labov,
Lucchesi (2015) propõe a manutenção dos procedimentos metodológicos
essenciais da sociolinguística, seguida de uma nova forma de interpretar
os resultados das pesquisas.
Na verdade, da intenção de Lucchesi de salvar o edifício
teórico-metodológico da sociolinguística laboviana, surgiu uma
solução aporética. Isso porque, enquanto no modelo de Labov havia um
700
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
programa de pesquisas coeso, em que a metodologia estava a serviço da
explicação da mudança linguística – e era esse o objetivo das pesquisas
sociolinguísticas –, a solução de Lucchesi defende o uso da metodologia
de Labov para explicar os conlitos sociais decorrentes da avaliação social
da variação linguística. Cabe questionar, nesse caso, se a interpretação
social dos conlitos que tem sido feita pelos linguistas é realmente
amparada na metodologia empregada ou se seria possível formulá-la
independentemente da metodologia sociolinguística.
Essa seria uma questão relevante por dois motivos: primeiro
porque há várias publicações em que os autores apresentam discussões
de cunho social a respeito da variação sem terem desenvolvido nenhum
projeto de pesquisa utilizando a metodologia laboviana (FARACO,
2008; FARACO, ZILLES, 2015; BAGNO, 2009; MATTOS E SILVA,
2005); segundo porque é bastante discutível que dados quantitativos
sobre a variação linguística, coletados por meio de uma metodologia
marcada pelo apagamento da subjetividade e por dados produzidos em
condições artiiciais de uso da linguagem, justiiquem, automaticamente,
as teses sobre a falta de legitimidade da língua padrão. Disso decorre
outro problema importante: a separação entre pesquisa e interpretação.
Os autores que publicam trabalhos de cunho sociológico, com ênfase na
suposta relação conlituosa entre a variação linguística e sua avaliação
social, airmam que suas interpretações estão amparadas nos dados de
pesquisas. No entanto, o que efetivamente se veriica é que a avaliação
social da variação, componente importante da metodologia de Labov,
teve sua importância minimizada na pesquisa sociolinguística brasileira.
Assim, as airmações sobre os conlitos sociais decorrentes da variação
não se amparam nos dados coletados pela metodologia sociolinguística.
A assunção do princípio da heterogeneidade linguística torna a simples
ocorrência de qualquer variante linguística empregada pelos falantes,
ainda que não seja objeto de pesquisas sociolinguísticas especíicas,
como suiciente para subsidiar interpretações sobre as relações entre
língua e sociedade.
Diante da separação entre pesquisa e interpretação ou, em outros
termos, entre teoria linguística e teoria social, é preciso avaliar se o
desenvolvimento disciplinar ou interdisciplinar das áreas envolvidas
consegue responder de maneira satisfatória ao problema da padronização
linguística, como tem feito os sociolinguistas aplicados. A primeira
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
701
questão suscitada é se isso constitui, de fato, um objeto de estudo das
disciplinas envolvidas em nível mono ou interdisciplinar.
Labov sempre se mostrou refratário à designação “sociolinguística”
por considerar que, dado o caráter eminentemente social da língua, seria
um contrassenso pensar uma teoria linguística geral que não fosse social.
Então, mesmo após ter acatado a designação, é possível questionar se
ele situa a teoria que propõe no campo da interdisciplinaridade. Por
outro lado, a distinção que propõe entre sociolinguística e sociologia
da linguagem, seguida de seus respectivos objetos, parece deixar muito
claro que a padronização seria objeto apenas da segunda. Como bem
frisou, o estudo desses objetos mais amplos só apresenta em comum
com os objetos da teoria linguística o fato de considerar que o falante
usa determinada língua em determinado contexto.
Relacionando a posição de Labov com o estágio atual da
sociolinguística aplicada brasileira, seria coerente airmar que houve
uma passagem do campo disciplinar para o interdisciplinar, condição
necessária para que fosse possível abordar, de maneira satisfatória, um
objeto tão amplo como a padronização linguística. No entanto, para
isso, seria necessária também a revisão de sua metodologia. Já vimos,
porém, que Lucchesi (2015) defende a manutenção dos princípios
básicos da metodologia laboviana. Veriica-se, dessa forma, a existência
de dois campos distintos no interior da sociolinguística tal qual vem
se desenvolvendo no Brasil: um que investiga processos de variação
e mudança, caracterizando a pesquisa sociolinguística propriamente
dita ou ciência pura, e outro que se baseia nesses dados para realizar
interpretações sobre a avaliação social da variação, além de questões
ligadas à padronização linguística. A segunda acepção estaria, a rigor,
no âmbito da sociologia da linguagem e seria classiicada como ciência
aplicada. A distinção entre esses campos é fundamental para uma avaliação
adequada dos saberes oriundos da investigação sociolinguística e de suas
possibilidades de aplicação. Penso que a falta de clareza quanto a essa
distinção está na base dos projetos reformistas de alguns sociolinguistas
aplicados, que buscam a transferência direta dos resultados de pesquisa
para contextos sociais mais amplos do que os previstos nos objetivos
das investigações que os produziram.
Quanto a esse ponto, poder-se-ia objetar que as interpretações
sociais são feitas com base nos dados. Como essa objeção só faria
sentido se houvesse uma relação interdisciplinar entre os campos, torna-
702
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
se necessário avaliar a pertinência e a adequação das teorias e métodos
compartilhados, a im de veriicar se há realmente uma relação harmônica
entre ambos a ponto de constituírem uma única disciplina.
Toda disciplina se caracteriza pela deinição de um quadro teórico
e da concepção metodológica de que se utiliza no processo de produção do
conhecimento sobre os fenômenos que estuda. A indissociabilidade entre
teoria e método é, portanto, condição sine qua non para a constituição de
uma disciplina. É essa relação constitutiva que explica, por exemplo, as
diferenças entre os pensadores da teoria social clássica: Durkheim, com
o método funcionalista, Marx, com o materialismo, e Weber, com os
tipos ideais. Em abordagens interdisciplinares, a falta de harmonia entre
teoria e método acarreta sempre o risco de que sejam reunidas, em um
mesmo contexto, posições teóricas formalmente válidas, mas totalmente
incompatíveis do ponto de vista metodológico ou dos paradigmas em
que cada uma se encontra. Essas são observações fundamentais para que
não se confunda a interdisciplinaridade com uma bricolagem intuitiva.
Diante desse quadro, a classiicação da sociolinguística como
campo interdisciplinar impõe que desconsideremos a independência entre
teoria linguística e teoria social (a separação entre pesquisa e interpretação
não teria sentido). Sendo assim, podemos apresentar, de maneira mais
explícita, o problema que queremos discutir: a sociolinguística aplicada
brasileira coaduna objetos, teorias e métodos da linguística e da teoria
social de maneira suficientemente harmônica em sua constituição
interdisciplinar? Esse problema só pode ser satisfatoriamente abordado
se examinarmos os aspectos teórico-metodológicos que cada uma
oferece para o compartilhamento e como essas contribuições passaram
a funcionar no projeto de reconiguração da disciplina.
A sociolinguística surge com o objetivo de explicar a mudança
linguística (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006). Labov veriicou
que, antes de uma mudança se consolidar, os fenômenos linguísticos
observados passam por uma fase de transição5. Diante da constatação
de que há sempre formas em variação ou em competição no interior
do sistema da língua, sem que isso implique qualquer prejuízo ao seu
funcionamento, concluiu que a língua é um sistema heterogêneo. É
importante assinalar que a heterogeneidade, em si, não representa uma
Labov observou também que nem todas as vezes que formas linguísticas estavam em
variação havia mudança.
5
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
703
novidade trazida pela linguística, como se pode erroneamente supor.
A novidade está no valor que a linguística laboviana lhe confere como
fenômeno que possibilita explicar a mudança.
Outro princípio metodológico importante da teoria laboviana é
o reconhecimento de que a variação só é veriicável por meio do uso da
língua pelos falantes situados em comunidades de fala. A veriicação da
heterogeneidade linguística no contexto social levou à conclusão de que
todas as variantes ou variedades da língua são sistemáticas, ou seja, são
produzidas de acordo com as regras possíveis de estruturação do sistema
da língua. Essa conclusão, plenamente defensável do ponto de vista de
uma teoria linguística positivista, redunda em um problema sociológico
básico: se todas as variantes e variedades são igualmente sistemáticas,
o que justiica o prestígio de umas e a estigmatização social de outras?
Embora essa não fosse uma questão passível de explicação por
meio de uma teoria linguística, Labov não a ignorou de todo. Antes,
buscou compreender de que maneira a avaliação social sobre a variação
poderia contribuir para a mudança linguística, chegando à conclusão
de que a estratiicação social exerce inluência considerável nesse
processo. Não era seu interesse abordar processos sociais mais amplos.
Essa ausência de discussão sociológica não pode simplesmente ser
atribuída a uma falta de vontade ou de compreensão de Labov acerca
dos impactos socioideológicos da avaliação social da variação estilística,
mas ao reconhecimento das limitações da metodologia adotada, tendo
em vista os objetivos de seu projeto investigativo, que tinha como foco
a explicação da mudança linguística.
A falta de uma teoria social que possibilitasse uma abordagem
dos conlitos sociais em consequência da avaliação social negativa de
variantes estigmatizadas foi considerada por Lucchesi (2015) como a
principal limitação da sociolinguística laboviana, e essa se tornou uma
questão proeminente no desenvolvimento da sociolinguística. O problema
é que, nesse caso, não existe apenas uma teoria social que possa servir de
base para explicar as relações sociais, como ocorre no caso do tratamento
da variação linguística. Considerando que cada teoria social busca
constituir-se como um modelo geral de análise e explicação da sociedade,
é sempre crucial conhecer as razões que levam um pesquisador à escolha
de uma ou outra abordagem. Esse não é um problema de pouca monta,
pois, ainda que essa escolha possa se mostrar amparada em critérios
704
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
objetivos, não podemos perder de vista que a marca mais característica
do ato de escolher é a subjetividade.
A sociolinguística brasileira considerou a tese da ideologia
dominante como mais adequada para explicar a forma como as variedades
linguísticas são valoradas socialmente e os conlitos que daí podem advir.
O argumento central dessa tese, de base marxista, consiste em airmar
que as classes subordinadas tendem a aceitar sua condição porque a
cultura em que vivem é controlada por classes dominantes. Esses grupos,
detentores do capital e dos bens culturais socialmente mais valorizados,
teriam o controle das instituições educacionais e da mídia, de maneira que
delas se utilizariam para transmitir seus valores e, dessa forma, garantir
a reprodução de uma ordem social que fosse amplamente favorável à
manutenção de um status quo marcado, prioritariamente pela manutenção
de privilégios que não apenas produzem como também reforçam as
desigualdades sociais. Essa ordem social seria naturalizada por meio de
diversos dispositivos ideológicos que ocultariam das classes dominadas
a verdadeira face da realidade. A tese da ideologia dominante assentase em dois fundamentos teórico-metodológicos da teoria marxista: o
materialismo e o determinismo econômico.
Apresentados os aspectos da teoria linguística e da teoria social
utilizados pelos linguistas na constituição de uma sociolinguística
interdisciplinar, restam ainda duas tarefas a cumprir: caracterizar essa
nova disciplina e avaliar suas condições para abordar a questão da
padronização linguística.
A primeira e mais notável mudança na caracterização da disciplina
está na deinição de seus objetivos. Se no modelo laboviano o objetivo geral
era explicar a mudança linguística e, nesse contexto, o estudo da variação
representava um objetivo especíico, na sociolinguística interdisciplinar,
o foco se desloca para a avaliação social da variação linguística sem se
apoiar numa concepção atomista de comunidade de fala, mas levando-se
em conta toda a extensão territorial coberta por um idioma. Para isso,
seria necessário, numa metodologia orientada rigorosamente para uma
compreensão ampla do objeto, que fossem realizadas coletas de dados
que pudessem constituir amostras representativas de toda a realidade
sociolinguística do país.
Essa concepção ampliada dos limites da comunidade de fala,
ainda um ideal teórico, levou em conta a tese da ideologia dominante
e, em razão disso, correlacionou variedades de prestígio a classes
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
705
dominantes e variedades estigmatizadas a classes subordinadas ou
populares. Assim, a avaliação negativa dos usos linguísticos das classes
populares passou a ser vista como extensiva aos próprios membros dessas
classes. Como consequência desse processo de classiicação fundado
em critérios socioideológicos, e sem nenhuma justiicativa baseada
nos dados de pesquisa, a avaliação social negativa da fala popular
foi classiicada pelos sociolinguistas como expressão de preconceito
linguístico. Ainda com base nos dados e conclusões da pesquisa empírica,
os sociolinguistas passaram a conceber a língua padrão como um modelo
de língua idealizado, em total desacordo com a realidade linguística do
país e imposto pela classe dominante, para garantir às elites letradas a
reprodução de uma sociedade marcada pela garantia de privilégios para
poucos e a exclusão de muitos.
A alternativa para o problema, no entanto, não poderia ser mais
paradoxal. Numa acintosa negação da tese da ideologia dominante,
os linguistas penderam para o lado dos aspectos exclusivamente
linguísticos da disciplina em detrimento dos sociais. Mantendo a
correlação entre variedades linguísticas e classes sociais, instituíram uma
oposição entre norma ideal (padrão) – abstrata, idealizada, distante da
realidade linguística brasileira –, e normas reais (cultas e populares) –
concretas, condizentes com o uso efetivo dos falantes em suas práticas
comunicativas. Nessa nova classiicação, a norma popular continuou
reletindo os usos linguísticos estigmatizados. No entanto, se a norma
padrão teve sua validade negada do ponto de vista cientíico, a que classe
social a norma culta estaria correlacionada? Ainda que o NURC tenha
usado o critério da escolaridade (nível superior completo) e não o da
classe social para deinir o falante culto, se levarmos em conta que, no
período da coleta de dados (década de 1970), o acesso à universidade
era privilégio de poucos no país, seremos conduzidos à conclusão de
que a maioria desses sujeitos pertencia à elite. Dessa forma, a primazia
do linguístico sobre o social recoloca o problema da separação entre
a teoria linguística e a teoria social no âmbito de uma sociolinguística
supostamente interdisciplinar.
Os problemas mostrados nas etapas anteriores acabaram por
antecipar as respostas ao terceiro aspecto a ser examinado. De fato, se
as soluções apresentadas ao problema da avaliação social da variação
linguística contrariam as pretensões de construção de uma abordagem
interdisciplinar, o questionamento da competência da sociolinguística
706
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
para abordar a padronização linguística se impõe como uma consequência
lógica. Apesar disso, há certos aspectos conceituais e metodológicos que,
por reletirem posições amplamente consensuais no meio acadêmico,
merecem um exame, ainda que breve.
No âmbito da teoria linguística, a tese de que a norma culta deve
ser a base para os projetos de padronização esbarra, inicialmente, no
problema da falta de critérios por meio dos quais seja possível estabelecer
quem seria o falante culto ou quais usos seriam considerados cultos. Na
seção anterior foram apresentados alguns problemas metodológicos do
projeto: população de amostra muito reduzida (apenas falantes de cinco
capitais), falta de rigor nas estratégias de coleta de dados e controvérsias
relacionadas aos critérios para deinição do falante culto. Faraco (2008)
reconhece a arbitrariedade dos critérios utilizados pelo NURC para
deinir o falante culto e adverte que esse é um dos nós que precisam ser
desatados para a se estabelecer a norma culta:
O primeiro deles – e não certamente o menor – é saber quem são
os letrados da sociedade brasileira, ou seja, qual ou quais grupos
sociais servem de referência para delimitarmos objetivamente os
fenômenos que constituem a norma culta brasileira.
Como vimos anteriormente, o projeto NURC restringiu a
classificação de “cultos” (de mais letrados) aos falantes com
educação superior completa. No entanto, numa sociedade que
distribua de maneira mais equânime os bens educacionais e
culturais, é mais adequado considerar letrados todos os que
concluem pelo menos o ensino médio. Este é um critério que se
constitui historicamente nas sociedades industriais modernas nos
últimos duzentos anos. (FARACO, 2008, p. 59).
Mattos e Silva (2005, p. 78-79) admite a impossibilidade de se
deinir a norma padrão com base na realidade linguística, um dos objetivos
do NURC: “impossível, parece-me, será estabelecer uma norma padrão
com base na realidade linguística. Esse padrão estará sempre carregado
de arbitrariedade”. Bagno (2011) considera que os dados do NURC,
coletados na década de 1970, não representam com idelidade a norma
culta contemporânea. Apesar de todos esses problemas, devido ao fato
de o NURC ser o único projeto com acervos de fala deinida como culta
pelos pesquisadores, muitos linguistas têm-se baseado nesses acervos
para fundamentar suas posições acerca da padronização linguística.
Outro problema está na proposta de substituir um padrão tido como
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
707
ideal por outro tido como real, tomando como base a modalidade falada
da língua. Essa decisão atende aos princípios do paradigma positivista
em nome do qual se busca o alinhamento da prática cientíica com a
metodologia das ciências naturais. Nesse sentido, é preciso apreender a
ordem interna do sistema linguístico por meio de sua manifestação natural
para, em seguida, estabelecê-la como referência para a ordem social. Já
mencionamos, na seção anterior, o contraste que Bourdieu estabelece
entre a capacidade biológica de falar uma língua e a competência para
utilizar a língua legítima (padrão) em situações comunicativas especíicas.
Ocorre que, na sociolinguística, o real só pode ser entendido como
sinônimo de natural, uma vez que é impossível negar a realidade social
da língua padrão, presente em diversas práticas sociais.
Um projeto de padronização linguística baseado na modalidade
falada teria de resolver, ainda, o problema da relação entre sincronia
e diacronia. A língua padrão, da forma como a conhecemos, está
intrinsecamente ligada à modalidade escrita desde o seu surgimento.
Essa característica tem sido alvo de críticas dos linguistas, primeiro por
atribuir um lugar secundário à língua falada (não à oralidade), depois por
conservar aspectos formais e estruturais da língua muito distantes dos
conhecimentos linguísticos dos falantes. Contudo, uma das características
mais marcantes de sociedades historicamente letradas é o acúmulo de
grandes quantidades de materiais escritos que atravessaram séculos e
até milênios, sem que isso afete sua atualidade ou importância como
patrimônio histórico-cultural. Além disso, a língua padrão constitui um
instrumento que possibilita estruturar práticas sociocomunicativas nos
mais diversos campos da atividade humana, desde as mais tradicionais
às mais modernas. Ou seja, a língua padrão é capaz de contemplar tanto
aspectos sincrônicos quanto aspectos diacrônicos. Os estudos sobre a
língua falada, ao contrário, concentram-se apenas numa abordagem
sincrônica e, por essa razão, jamais poderiam servir de referência para
a padronização linguística, uma vez que não teria como integrar formas
e estruturas da língua muito recuadas no tempo.
Os problemas apresentados nesta seção corroboram a posição de
Rajagopalan no tocante à distinção entre ciência linguística e política
linguística, reairmando, em outros termos, a especiicidade da sociologia
da linguagem em relação à sociolinguística:
708
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
[...] muitos se apressam para pleitear que o fato de ter sido
treinado como linguista deve propiciar uma nítida vantagem a
uma pessoa quando se trata de opinar sobre questões de política
linguística. MINHA RESPOSTA É UM SONORO NÃO. Explico.
O conhecimento que o linguista diz ter é um conhecimento
cientíico sobre a estrutura e o funcionamento das línguas. Ele
sabe, por exemplo, que a estrutura fonológica de uma língua
funciona com base em contrastes e complementaridades entre
unidades e não entre sons isiológica ou acusticamente distintos.
Mas, conhecimentos desse tipo não tem nada a ver com questões
que interessam no campo da política linguística.
A posição do linguista em relação aos assuntos de interesse político
que envolve a língua é idêntica à do biólogo ou ginecologista, ou
jurista, ou quem quer que seja em relação à decisão de legalizar
aborto. (RAJAGOPALAN, 2013, p. 23) (Grifo do autor).
4 Problemas da teoria social na sociolinguística brasileira
No contexto da teoria social, a tese da ideologia dominante
representa o alinhamento da linguística ao que foi chamado, na sociologia,
de “consenso ortodoxo” (GIDDENS, 2009), um conjunto de proposições
explicativas baseadas na teoria social clássica, que teve grande inluência
na forma como se analisavam as sociedades até o inal da década de
1960 e início da de 1970, quando surgiu outro conjunto de perspectivas
teóricas concorrentes que provocou a dissolução de praticamente todo
o consenso anterior. Conquanto apresentassem divergências teóricas, as
novas vozes se alinharam na rejeição a um princípio básico do consenso
ortodoxo, que tinha grandes implicações na construção de seu edifício
teórico-metodológico: a asserção de que o comportamento humano é
consequência do funcionamento de mecanismos de poder que os sujeitos
não controlam nem compreendem. É essa forma de conceber a relação
entre o social e o individual que caracteriza a tese da ideologia dominante,
fortemente marcada pelo marxismo ortodoxo, que orienta a teoria social
utilizada pelos sociolinguistas aplicados para orientar seus projetos
reformistas. Hall sintetiza bem os pontos críticos da teoria marxista que
conduziram à sua rejeição pela teoria social contemporânea:
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
709
Dizer que as ideias são “meros reflexos” estabelece seu
materialismo, porém as deixa sem efeito especíico, um domínio
de pura dependência. Afirmar que as ideias são determinadas
“em última instância” pelo econômico é tomar o caminho do
reducionismo econômico. Em última análise, as ideias podem ser
reduzidas à essência de sua verdade – seu conteúdo econômico.
[...] Dizer que o domínio de uma classe garante o predomínio de
certas ideias é dar àquela classe a posse absoluta das ideias; é
também deinir as formas particulares de consciência como algo
especíico a uma classe.
Deve-se observar que, embora estejam diretamente dirigidas
contra as formulações que concernem ao problema da ideologia,
essas críticas de fato recapitulam a substância de uma crítica mais
geral e ampla contra o próprio marxismo: seu rígido determinismo
estrutural, seu duplo reducionismo – econômico e de classe –, bem
como sua forma de conceber a própria formação social. (HALL,
2003, p. 270-271)
A derrubada de princípios estruturantes do consenso ortodoxo
impôs uma revisão radical das teorias e métodos de todas as áreas que,
direta ou indiretamente, lidavam com objetos relacionados à vida social.
Na teoria crítica da escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer (1985)
destacam o papel que a indústria cultural atribui à linguagem popular
na cultura de massa, incluindo a mídia de massa, como estratégia para
favorecer uma comunicação mais eicaz com esse público consumidor.
Foucault (1979) se opõe a uma visão exclusivamente negativa do poder
como mecanismo de opressão pertencente a uma classe dominante que
o exerceria contra uma classe dominada. Sua concepção de poder como
uma prática difusa, como uma rede produtiva que atravessa todo o tecido
social, obriga-o a rejeitar uma compreensão de ideologia fundada na
ideia de ocultação de verdades que só poderiam ser percebidas pelos
críticos. No âmbito dos estudos culturais, Hall propõe uma releitura das
contribuições da teoria marxista, em que ica evidente a oposição à teoria
da ideologia dominante e aos pontos cruciais do consenso ortodoxo:
A análise não se organiza mais em torno da distinção entre o
“falso” e o “verdadeiro”. O obscurecimento ou a mistiicação
dos efeitos da ideologia não é mais visto como um produto de
truque ou ilusão mágica. Tampouco se pode atribuí-los à falta
de consciência, na qual nossos pobres, ignorantes e não teóricos
710
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
proletários estão irrevogavelmente imersos. As relações nas quais
as pessoas existem são as “relações reais” que as categorias e
conceitos por elas utilizadas lhes permitem apreender e articular
em seu pensamento. Porém – e aqui podemos estar em um caminho
contrário à ênfase à qual o “materialismo” é geralmente associado
– as próprias relações econômicas não podem prescrever uma
forma única, ixa e inalterável de conceber essas relações. (HALL,
2003, p. 284-285).
Os sociolinguistas aplicados têm-se mantido alheios ao debate
que reavalia o potencial analítico e explicativo das contribuições do
consenso ortodoxo como referencial teórico-metodológico para investigar
a vida social. O qualiicativo “ortodoxo” evidencia uma concepção
de teoria social baseada na ideia de verdade ixa, em tudo contrária à
dinâmica inerente à vida social. Nesse sentido, o consenso relete também
uma visão estruturalista de história, em que determinismo econômico,
organização social em classes e ideologia aparecem como estruturas
invariantes ao longo da história. Nada mais contraditório para uma teoria
que surge com o objetivo de explicar a mudança linguística do que admitir
a mudança da língua e, contraditoriamente, com base em uma concepção
de história como continuidade, negar a mudança social. Não obstante,
os sociolinguistas aplicados brasileiros continuam buscando no passado
colonial as explicações causais para as desigualdades sociais que geram
a exclusão social e linguística das classes populares.
No contexto das relexões próprias da sociologia da linguagem,
Bourdieu, mesmo inluenciado por várias ideias da crítica marxista, nega
que a legitimidade da língua padrão seja resultado de medidas jurídicas
coercitivas às quais as classes dominadas simplesmente se submeteriam.
Em suas palavras:
[...] os efeitos de dominação correlatos à uniicação do mercado
linguístico só se exercem por intermédio de todo um conjunto
de instituições e de mecanismos específicos cujo aspecto
mais superficial se manifesta justamente através de uma
política propriamente linguística e mesmo das intervenções
expressas dos grupos de pressão. E o fato de que tais efeitos
pressuponham a unificação política ou econômica que eles
contribuem por sua vez para reforçar não signiica de modo algum
que se devam imputar os avanços da língua oficial à eficácia
direta de coerções jurídicas ou quase jurídicas. Tais coerções
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
711
podem, no máximo, impor a aquisição, mas não a utilização
generalizada e a reprodução autônoma da língua legítima. Toda
dominação simbólica supõe, por parte daqueles que sofrem seu
impacto, uma forma de cumplicidade que não é submissão
passiva a uma coerção externa nem livre adesão a valores. O
reconhecimento da legitimidade da língua oicial não tem nada
a ver com uma crença expressamente professada, deliberada
e revogável, nem com um ato intencional de aceitação de uma
“norma”. Através de um lento e prolongado processo de aquisição,
tal reconhecimento se inscreve em estado prático nas disposições
insensivelmente inculcadas pelas sanções do mercado linguístico
e que se encontram, portanto, ajustadas, fora de qualquer cálculo
cínico ou de qualquer coerção conscientemente sentida,
às possibilidades de lucro material e simbólico que as leis de
formação dos preços característicos de um determinado mercado
garantem objetivamente aos detentores de um certo capital
linguístico. (BOURDIEU, 2008, p. 37-38) (Negritos meus)
As relexões de Bourdieu, juntamente com as críticas ao consenso
ortodoxo, revelam que, até o momento, a busca pela compreensão de
como se dá o processo de ixação de uma língua padrão e suas relações
com a vida social tem-se guiado por princípios teórico-metodológicos
equivocados. Isso se deve, sobretudo, à concepção de ciência que
tem orientado as pesquisas e a problemas com a teoria social que
fundamenta as interpretações de seus resultados. Tanto a metodologia da
sociolinguística quanto os recortes de teoria social que a ela se juntam
na composição de sua face como ciência aplicada excluem o ponto de
vista dos atores sociais envolvidos no uso da linguagem. A adoção de
estratégias que visam garantir o controle da situação de coleta de dados,
o apagamento da subjetividade tanto do pesquisador quanto do sujeito
de pesquisa são princípios positivistas necessários à depreensão de um
objeto natural e, portanto, livre da interferência humana. A utilização
de aspectos de teorias sociais também orientadas por princípios teóricometodológicos que concebem o sujeito como assujeitado a forças sociais
que não conhecem nem podem controlar completa o quadro de um modelo
de estudos sociolinguísticos com profundas limitações para se chegar a
uma relexão adequada sobre os processos de padronização linguística.
712
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
5 Considerações inais
Desde seu surgimento, a linguística está às voltas com a questão
do social e seu lugar tanto na concepção quanto na descrição da língua.
Em geral, nas teorias linguísticas stricto sensu, mesmo que prevaleça o
consenso acerca do caráter social da língua, as metodologias de estudo
enfatizam, sobretudo, os fenômenos linguísticos. Foi assim com Saussure,
em Curso de linguística geral, e com Labov, que, embora considere os
fatores sociais na descrição linguística, está, de fato, interessado em
explicar como eles inluenciam a mudança linguística. Dessa forma, a
relação entre variáveis linguísticas e sociais, aí incluído o tratamento da
variação estilística e sua avaliação social, tem o objetivo de possibilitar
a explicação da língua como sistema heterogêneo e ordenado. Por essa
razão, Labov distinguiu a sociolinguística da sociologia da linguagem.
No entanto, essa é uma posição que ainda hoje divide os
linguistas. Fasold (1996) identiica duas tendências no interior da
sociolinguística: uma que considera a inluência de fatores sociais sobre a
língua, tendo em vista a compreensão de sua natureza (a sociolinguística
da língua), e uma que parte da sociedade para compreender o papel social
desempenhado pela língua (sociolinguística da sociedade). A segunda,
para abordar satisfatoriamente as funções sociais das línguas no âmbito
da organização sociopolítica, deve abarcar a linguística antropológica e
a etnograia da comunicação, o que implica reconhecer a relevância dos
métodos qualitativos, que caracterizam a pesquisa nesses dois campos.
Nessa perspectiva, as políticas linguísticas seriam objetos de estudo da
sociolinguística da sociedade, embora os estudiosos não tivessem poder
para determiná-las.
A sociolinguística brasileira, conforme demonstrado neste texto,
ainda pode ser deinida como uma teoria da língua. De modo geral, a maior
parte das pesquisas consiste em estudos de fenômenos linguísticos com
base em corpora constituídos por meio de procedimentos de coleta de
dados controlados pelo pesquisador e nos quais o sujeito exerce o papel de
mero informante. Uma vez coletados os dados, os pesquisadores elegem
os fenômenos que serão estudados e procedem a análises prioritariamente
quantitativas.6 As amostras de fala são os únicos códigos coletados e,
Entre os principais projetos de pesquisa que se enquadram nessa metodologia, estão
o Projeto Variação Linguística no Estado da Paraíba (VALPB), o Programa de Estudos
sobre o Uso da Língua (PEUL), Rio de Janeiro, Análise Contrastiva de Variedades do
6
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
713
mesmo quando tratam da escrita, estão interessados na transferência de
variações da fala para a escrita. A metodologia também não contempla
os testes de avaliação subjetiva da variação estilística, aspecto bastante
valorizado na metodologia laboviana. Nesse sentido, a sociolinguística
brasileira radicaliza o formalismo linguístico e aprofunda o abismo que
a separa de uma abordagem social da língua (CAMACHO, 2013).
Diante das limitações da sociolinguística como ciência pura para
lidar com questões sociais mais amplas que envolvem a natureza e o
funcionamento sociopolítico da linguagem, os projetos reformistas sobre
padronização linguística propostos por alguns sociolinguistas aplicados,
orientados pelo ideal de transferência dos saberes cientíicos à vida
social, revelam-se não apenas frágeis e inconsistentes, mas, sobretudo,
incoerentes com aquilo que se espera de uma teoria social da linguagem.
Uma abordagem adequada do problema que envolve a relação entre
norma padrão e variação linguística na sociedade não se pode limitar a
uma abordagem naturalista da língua. Não é possível negar factualidade
social à norma padrão, ao mesmo tempo que não é possível ignorar a
legitimidade social das diversas variedades que constituem uma língua.
Calvet (2002) assinala que o fato de a sociolinguística variacionista
partir da ideia de que a língua relete a sociedade foi responsável por fechar
a língua nessa deinição Diante disso, apresenta-se o problema: “como a
língua, uma língua, poderia reletir a sociedade quando ela é plurilíngue?”
(p. 106). Esse questionamento leva-o à conclusão de que a noção de
comunidade de fala, na metodologia de Labov, é um artifício utilizado
para conferir certa unidade ao objeto de estudo. Para Calvet, a saída desse
paradoxo é sair da língua e tomar como ponto de partida a realidade social.
Esse entendimento amplia radicalmente o escopo da sociolinguística
em direção à comunidade social sob seu aspecto linguístico. Por essa
razão, Calvet argumenta que não há mais possibilidade de distinção
entre sociolinguística e linguística, e ainda menos entre sociolinguística
e sociologia da linguagem. Assim sendo, a tarefa do linguista é descrever
as mútuas relações entre grupos sociais, falantes, códigos, variedades
de códigos e relações dos falantes com esses códigos e situações de
comunicação. O autor enumera essas tarefas (CALVET, 2002, p. 108):
Português (VARPORT), Projeto de cooperação internacional Brasil/Portugal, Variação
Linguística Urbana no Sul do País (VARSUL), Projeto de Estudo da Norma Linguística
Urbana Culta (NURC).
714
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
1. Descrever os códigos em presença (é o que fazem, grosso modo,
as diferentes linguísticas), mas levando em conta a dimensão
diacrônica, a história desses códigos e das pessoas que os
utilizam (o que nem todas as linguísticas fazem);
2. Estruturar a comunidade em função desses códigos, ou seja,
descrever os subgrupos de acordo com as línguas que eles
falam, com os lugares onde falam, com quem falam, por que
lhes falam etc., descrever também as redes de comunicação,
os comportamentos, as atitudes...;
3. Descrever as variações no uso dos códigos em função das
diversas variáveis sociais (sexo, categorias sociais, idade etc.);
4. Descrever os efeitos dessa coexistência sobre os próprios
códigos: empréstimos, interferências etc.;
5. Descrever os efeitos da situação social sobre os códigos: é o
problema das relações entre forma e função.
De acordo com Calvet, cada uma dessas tarefas é, ao mesmo
tempo, linguística e sociológica, o que exige uma abordagem
interdisciplinar em que teorias e métodos da linguística, da sociologia,
da linguística antropológica e da etnograia da comunicação se articulam
para a compreensão da natureza e do funcionamento social da língua.
Calvet e Fasold estão de acordo quanto à concepção da sociolinguística
como ciência social, cujas descrições e explicações podem ser aplicadas
às políticas linguísticas. A esse respeito, os autores concordam também
que apenas o Estado tem o poder e os meios de fazer esses conhecimentos
passarem ao estágio do planejamento – da implementação concreta de
uma política linguística –, de pôr em prática suas escolhas políticas.
A despeito de todas essas considerações, os sociolinguistas aplicados
brasileiros têm optado por considerar os resultados das pesquisas
empíricas, voltadas, sobretudo, para ins de descrição linguística, como
principais argumentos para justiicar suas teses acerca da padronização
linguística.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
715
Agradecimento
Agradeço aos (às) pareceristas pela leitura atenta e cuidadosa do texto,
bem como pelas problematizações e sugestões que contribuíram para
o amadurecimento das relexões nele apresentadas. Os equívocos que
porventura persistam são de minha inteira responsabilidade.
Referências
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento:
fragmentos ilosóicos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de
Janeiro: Zahar Editor, 1985.
BAGNO, M. A norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira. São
Paulo: Parábola Editorial, 2003.
BAGNO, M. Não é errado falar assim! Em defesa do português
brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
BAGNO, M. Gramática pra que te quero? Os conhecimentos linguísticos
nos livros didáticos de português. Curitiba: Aymará, 2010.
BAGNO, M. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo:
Parábola Editorial, 2011.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Tradução de Paulo Bezerra.
4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral II. Tradução de
Eduardo Guimarães. 2. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006.
BASTIDE, R. Antropologia Aplicada. Tradução de Maria Lúcia Pereira
e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009.
BOURDIEU, P. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer.
2. ed. Tradução de Sérgio Miceli et al. São Paulo: Editora da UNESP.
2008.
CALVET, L. J. Sociolinguística: uma introdução crítica. Tradução de
Marcos Marcionílio. São Paulo: Parábola Editorial, 2002.
CAMACHO, R. G. Da linguística formal à linguística social. São Paulo:
Parábola Editorial, 2013.
716
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
COELHO, I. L. et al. Para conhecer sociolinguística. São Paulo:
Contexto, 2015.
CORBEIL, J. C. Elementos de uma teoria da regulação linguística.
Tradução de Marcos Bagno. In: BAGNO, M. (Org.). Norma linguística.
São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 175-201.
ECKERT, P. Three waves of variation study: the emergence of meaning
in the study of sociolinguistic variation. Annual Review of Anthropology,
Stanford University Press, v. 41, p. 87-100, June 2012. DOI: https://doi.
org/10.1146/annurev-anthro-092611-145828
ECKERT, P.; McCONNELL-GINET, S. Think practically and look locally.
Annual Review of Anthropology, Stanford University Press, v. 21, p. 46190, 1992. DOI: https://doi.org/10.1146/annurev.an.21.100192.002333
FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São
Paulo: Parábola Editorial, 2008.
FASOLD, R. La sociolingüística de la sociedade: introducción a la
sociolingüística. Tradução de Margarita España Villasante y Joaquín
Mejía Alberdi. Madrid: Visor Libros, 1996.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução de e Organização de
Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
GIDDENS, A. A constituição da sociedade. 3. ed. Tradução de álvaro
Cabral. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
HALL, S. O problema da ideologia: o marxismo sem garantias. In:
______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução
de Adelaine La Guardia Resende et al. Editora da UFMG; Brasília:
Representação da Unesco no Brasil, 2003. p. 265-293.
HUGHES, J. A ilosoia da pesquisa social. Tradução de Heloisa Toller
Gomes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
ILARI, R.; NEVES, M. H. M. (Org.). Gramática do português culto
falado no Brasil. v. 2: Classes de palavras e processos de construção.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.
JUBRAN, C.C.A.S.; KOCH, I. G. V. (Org.). Gramática do português
culto falado no Brasil. v. 1: Construção do texto falado. Campinas:
Editora da Unicamp, 2006.
717
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
KATO, M. A.; NASCIMENTO, M. (Org.). Gramática do português culto
falado no Brasil. v. 3: A construção da sentença. Campinas: Editora da
Unicamp, 2009.
KERBRAT-ORECCHIONI, C. Análise da conversação. Tradução de
Carlos Piovezani Filho. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
LABOV, W. The social stratification of English in New York City.
Cambridge: Cambridge University Press, 2006. DOI: https://doi.
org/10.1017/CBO9780511618208
LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. Tradução de Marcos Bagno et al.
São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
LUCCHESI, D. Língua e sociedade partidas: a polarização
sociolinguística no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.
MAINGUENEAU, D. Pragmática para o discurso literário. Tradução
de Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. 2. ed. Tradução
de Cecília Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2002.
MARTINS, M. A.; VIEIRA, S. R.; TAVARES, M. A. Ensino de português
e sociolinguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.
MATTOS E SILVA, R. V. Contradições no ensino de português: a língua
que se fala x a língua que se ensina. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2005.
PERINI, M. A. Gramática do português brasileiro. São Paulo: Parábola
Editorial, 2010.
PERRENOUD, P. A prática reflexiva no ofício de professor:
proissionalização e razão pedagógica. Tradução de Cláudia Schilling.
Porto Alegre: Artmed, 2002.
RAJAGOPALAN, K. Política linguística: do que é que se trata, ainal?
In: NIKOLAIDES, C. et al. (Org.). Política e políticas linguísticas.
Campinas: Pontes Editores, 2013. p. 19-42.
SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. 5. ed. São Paulo: Cortez,
2008.
SCHERRE, M. M. P. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação
linguística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018
718
WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. I. Fundamentos empíricos
para uma teoria da mudança linguística. Tradução de Marcos Bagno. São
Paulo: Parábola Editorial, 2006.
ZABALA, A. Enfoque globalizador e pensamento complexo: uma
proposta para o currículo escolar. Tradução de Ernani Rosa. Porto Alegre:
Artmed, 2002.
ZILLES, A. M. S.; FARACO, C. A. (Org.). Pedagogia da variação
linguística: língua, diversidade e ensino. São Paulo: Parábola Editorial,
2015.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
Algumas considerações em torno da expressão
da posterioridade no passado, no contexto
de completivas de verbo
Some remarks about the expression of posteriority
in the past in the context of verbal complement clauses
Luís Filipe Cunha
Centro de Linguística da Universidade do Porto, Faculdade de Letras
Universidade do Porto, Porto / Portugal
luisilipeleitecunha@gmail.com
Resumo: A expressão da posterioridade num domínio passado pode
ser alcançada, em Português Europeu, por meio do recurso a diferentes
tempos gramaticais, destacando-se o Imperfeito Simples do Indicativo,
o Condicional e a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo. O presente
trabalho procura evidenciar as diferenças interpretativas decorrentes da
utilização de cada uma dessas formas verbais. Tendo em vista o objetivo
aqui delineado, e após uma breve caracterização semântica de cada uma
delas, o artigo explora as suas possibilidades interpretativas no contexto
de quatro tipos de completivas de verbo, a saber: verbos declarativos,
como dizer ou airmar; verbos orientados para o futuro, como prometer
ou decidir; verbos factivos, como constatar ou descobrir, e verbos que
favorecem leituras modais de cariz intensional do gênero de acreditar,
sonhar ou imaginar. Concluiremos que as interpretações futurativas
derivam de um conjunto de elementos linguísticos em interação dinâmica,
que em muito ultrapassam o simples papel dos tempos gramaticais, já
que envolvem fatores como as propriedades lexicais do verbo matriz, a
presença de certos adverbiais temporais ou o peril aspectual das situações
representadas.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.719-767
720
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
Palavras-chave: semântica; tempos gramaticais; posterioridade no
passado; orações completivas de verbo.
Abstract: In languages such as European Portuguese, the expression of a
posteriority relation within a past domain can be achieved through the use
of different tenses, the most relevant being the Imperfeito do Indicativo
(Imperfect), the Condicional (a tense that somehow corresponds to would
+ Ininitive) and the structure ir (‘go’) in the Imperfect + Ininitive.
The paper aims to shed some light on the interpretative differences
corresponding to the selection of each of these verbal forms. With
this purpose in mind, and after a brief semantic characterisation of the
three tenses under discussion, the article explores their interpretative
possibilities arising in the context of four kinds of complement clauses,
namely those headed by saying verbs like dizer (‘to say’) and airmar
(‘to claim’); by future-oriented verbs such as prometer (‘to promise’)
or decidir (‘to decide’); by factive verbs like constatar (‘to ind’) or
descobrir (‘to ind out’) and by verbs that favour an intensional modal
reading like acreditar (‘to believe’), sonhar (‘to dream’) or imaginar
(‘to imagine’). I conclude that the future-in-the-past readings typically
derive from several linguistic factors interacting dynamically. Beside the
central role played by tenses, the inal interpretation of these constructions
depends on a complex computation of grammatical features such as
the lexical properties of the verb in the matrix clause, the presence or
absence of certain temporal adverbials or the aspectual proile of the
situations involved.
Keywords: semantics; tense; posteriority in past domains; verbal
complement clauses.
Recebido em 4 de julho de 2017.
Aceito em 4 de setembro de 2017.
1 Introdução
A expressão da posterioridade em relação a um dado tempo
passado pode ser obtida, em línguas como o Português Europeu
(doravante PE), por meio de diferentes mecanismos linguísticos. Em
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
721
particular, são várias as formas verbais que licenciam uma leitura desse
gênero, como os seguintes exemplos parecem demonstrar:
(1)
O João decidiu que comprava um carro novo.
(2)
O João decidiu que compraria um carro novo.
(3)
O João decidiu que ia comprar um carro novo.
Nas frases de (1) a (3), a situação representada na oração
subordinada é interpretada como posterior em relação ao intervalo
disponibilizado pela principal, independentemente de surgir o Imperfeito
do Indicativo (cf. (1)), o Condicional (por vezes também designado como
Futuro do Pretérito (veja-se, por exemplo, CUNHA; CINTRA, 1984;
Peres, 1993; (cf. (2)) ou a construção ir no Imperfeito + Ininitivo (cf. (3)).
Por outras palavras, a compra do carro novo pelo João é interpretada como
sendo posterior ao intervalo de tempo em que ele toma a sua decisão.1
Signiicará essa proximidade, em termos interpretativos, que
os três tempos gramaticais2 aqui representados são semanticamente
idênticos?
A resposta a essa questão deverá ser, naturalmente, negativa, uma
vez que, como tem sido frequentemente observado na literatura, cada
uma dessas formas exibe propriedades semânticas e comportamentos
linguísticos bastante distintos.
Como explicar, então, que tempos gramaticais tão diferentes
entre si revelem a capacidade de exprimir futuridade em relação a um
tempo passado?
No sentido de encontrar uma resposta tão satisfatória quanto
possível para essa questão, é nosso objetivo, no presente trabalho,
Sublinhe-se que nem todos os tempos gramaticais do PE permitem uma tal
interpretação. Por exemplo, o Pretérito Perfeito resulta anômalo numa frase deste gênero
na medida em que não se revela capaz de veicular uma leitura de futuro do passado,
como (i) deixa bem claro.
(i) * O João decidiu que comprou um carro novo.
2
Ao longo deste nosso trabalho, utilizaremos o termo “tempos gramaticais” como o
equivalente, em português, à palavra inglesa tense. Para evitar ambiguidades e seguindo
a sugestão de um revisor anônimo, a quem agradecemos, preferiremos a expressão
“formas verbais”, quando estão em causa relações estritamente anafóricas.
1
722
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
averiguar os diversos contextos em que o Imperfeito Simples, o
Condicional e a estrutura ir no Imperfeito + Infinitivo veiculam
posterioridade em relação a um dado intervalo passado, procurando
aferir em que medida as propriedades semânticas que possibilitam
identiicar cada uma dessas formas verbais nos ajudam a compreender
as suas (im)possibilidades combinatórias. Para isso, começaremos por
fornecer uma breve descrição do comportamento típico desses três
tempos gramaticais, passando, em seguida, à veriicação e à comparação
sistemática das condições em que as interpretações de tipo futurativo são
viabilizadas. Finalmente, tentaremos propor uma correspondência entre
as propriedades semânticas que caracterizam cada um desses tempos
gramaticais e as restrições que exibem no que se refere à capacidade de
exprimirem futuridade em domínios temporais passados no contexto de
diferentes tipos de completivas de verbo. Como veremos, a interação
com outros elementos linguísticos como as propriedades lexicais do
verbo matriz, a presença ou ausência de adverbiais temporais ou o peril
aspectual das situações envolvidas vão ser cruciais para a computação
da interpretação inal das estruturas sob análise.
2 Breve caracterização semântica de alguns tempos gramaticais do
PE
Para melhor compreendermos as semelhanças e as diferenças
que se podem observar entre o Imperfeito Simples, o Condicional e a
estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo, no que diz respeito à expressão da
futuridade em contextos do passado, importa, antes de mais, proceder a
uma análise, ainda que breve, das principais propriedades semânticas que
possibilitam identiicar cada uma dessas formas verbais, com particular
ênfase na sua caracterização temporal, mas sem esquecer os eventuais
efeitos aspectuais e modais que a elas estejam associados.
Nessa medida, recorreremos essencialmente às propostas de
análise temporal desenvolvidas por Kamp e Reyle (1993) e por Declerck
(1991, 2006).
Da abordagem temporal adotada por Kamp e Reyle (1993), na sua
Teoria das Representações Discursivas (DRT), importa sobretudo destacar
a noção de Ponto de Perspectiva Temporal (PPT), que corresponde à
relação que se estabelece entre uma dada situação e o intervalo de tempo
a partir do qual esta é “vista” ou “perspectivada”.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
723
Sob um certo ponto de vista, podemos airmar que o PPT se
constitui como um intervalo de tempo que possibilita articular, de uma
forma mais precisa e complexa, a relação entre o tempo do discurso
(que pode ou não coincidir com o tempo da fala ou “speech time”) e
o tempo em que decorre a situação (“situation time”). Assim, o PPT
pode ser [+Passado], se se localiza num intervalo anterior ao momento
da enunciação, ou [-Passado], caso se veriique a coincidência entre o
intervalo do PPT e o momento da enunciação. Por outro lado, o intervalo
em que decorre a situação pode ser anterior, sobreposto ou posterior ao
respectivo PPT.3 Nesse sentido, o recurso ao PPT é capaz de dar conta
de relações de anterioridade, de sobreposição ou de posterioridade, não
apenas em relação a um intervalo coincidente com o momento da fala,
mas também a intervalos que se localizam no domínio do passado.
Uma abordagem desse gênero possibilita-nos dar conta de relações
temporais que manifestem uma certa “soisticação”, nomeadamente no
que concerne às interdependências que se estabelecem no interior de
frases complexas. Possibilita, por exemplo, descrever adequadamente as
várias relações temporais representadas numa coniguração como a de (4):
(4)
A Maria disse que ia estudar na biblioteca.
Em (4), a situação da oração principal, “A Maria dizer”, é
localizada num intervalo anterior ao respectivo PPT, que, nesse caso, é
coincidente com o momento da enunciação (i.e. TS < PPT; PPT = TE).4 Já
a situação representada na subordinada, “A Maria estudar na biblioteca”,
toma como Ponto de Perspectiva Temporal a eventualidade descrita na
frase matriz, o que signiica, em última instância, que o seu PPT é passado
em relação ao momento da enunciação. Por outro lado, veriicamos que
Dado que o objeto de análise da DRT é o discurso como um todo, e não apenas frases
isoladas, Kamp e Reyle (1993) reconhecem a necessidade de distinguir o seu Ponto
de Perspectiva Temporal do Ponto de Referência, que, nesta abordagem, é sobretudo
utilizado para possibilitar o encadeamento de situações na progressão narrativa. Sob
esse ponto de vista, o PPT de Kamp e Reyle exibe pontos de contato importantes com
a noção de Reference Time, tal como deinida em Reichenbach (1947), embora, como
veremos, a ideia de perspectiva temporal se aigure mais adequada para dar conta de
relações temporais que envolvam um maior grau de complexidade.
4
Em que TS corresponde a Tempo da Situação; PPT a Ponto de Perspectiva Temporal
e TE a Tempo da Enunciação ou Tempo de Fala.
3
724
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
a situação na subordinada é interpretada como decorrendo num intervalo
que sucede ao PPT selecionado, obtendo-se, assim, uma relação de
posterioridade no passado (i.e. TS > PPT; PPT < TE).
Das propostas de Declerck (1991, 2006) a que recorreremos ao
longo do presente trabalho importa destacar a distinção que o autor sugere,
no domínio temporal, entre a esfera do não-passado (ou do presente) e a
esfera do passado. A esfera temporal não passada (ou presente) referese a um período indeinido de tempo que inclui necessariamente T0, o
momento da enunciação.5 Já a esfera temporal do passado abarca um
período indeinido de tempo que antecede inteiramente T0 sem o incluir.
As esferas temporais dão conta do designado tempo absoluto, no sentido
em que estabelecem uma relação direta (deítica) com o momento da
enunciação.
Sempre que uma dada situação é localizada no interior de
cada uma das esferas temporais, o TS (Tempo da Situação) estabelece
uma localização relativa de anterioridade, de sobreposição ou de
posterioridade em relação ao tempo absoluto em que se insere. Assim,
numa frase como (4), a situação da matriz poderia ser caracterizada como
anterior a Presente, ao passo que a situação da subordinada, dado que se
inscreve na esfera do passado, seria descrita como posterior a Passado.
Com essas deinições em mente, passemos, agora, à análise
dos três tempos gramaticais que, em PE, possibilitam leituras de
posterioridade no passado, a saber, o Imperfeito Simples, o Condicional
e a estrutura ir com Imperfeito + Ininitivo.
2.1 O Imperfeito Simples
Em termos gerais, o Imperfeito pode ser caracterizado como um
tempo passado que apresenta uma dada eventualidade6 como estando
em progressão, i.e., sem fazer qualquer referência aos seus momentos
inicial e inal (cf. OLIVEIRA, 1987; DELFITTO; BERTINETTO, 1985;
SMITH, 1991; GIORGI; PIANESI, 1997; FERREIRA, 2004; ANAND;
Declerck propõe a existência de três setores que dividem a esfera do presente: o
pré-presente, o presente e o pós-presente. Dado que não iremos recorrer a essa divisão
ao longo do nosso trabalho, optamos por não discutir aqui os pormenores da sua
caracterização.
6
Na esteira de Bach (1986), utilizaremos aqui o termo eventualidade com o signiicado
de situação ou de estado de coisas.
5
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
725
ACQUARD, 2009, entre outros). Como tal, o Imperfeito representa a
situação com que se combina como homogênea e não terminada.
Por outro lado, o Imperfeito é tendencialmente uma forma verbal
anafórica (ou relativa, na terminologia de DECLERCK, 1991, 2006) na
medida em que requer a presença de um outro intervalo que não o momento
da enunciação para ser adequadamente interpretado. Assim, o Imperfeito
toma como seu PPT um dado tempo passado com o qual estabelece
uma relação de sobreposição (cf. BERTHONNEAU; KLEIBER, 1993;
MATOS, 1996; GIORGI; PIANESI, 1997). Esse intervalo pode ser
fornecido por um adverbial temporal explícito, por orações temporais,
pelo verbo principal de uma estrutura de complementação ou recuperado
por meio de indicações contextuais. Sob esse ponto de vista, diversos
autores consideram o Imperfeito como exprimindo um “presente do
passado” (cf. e.g. PERES, 1993; GIORGI; PIANESI, 1997).
Tomando em linha de conta esse tipo de caracterização, Kamp e
Rohrer (1983) defendem a ideia de que o Imperfeito se comporta como
as predicações estativas, na medida em que, tal como elas, não introduz
um novo Tempo de Referência no discurso, limitando-se a selecionar
um dado intervalo preexistente com o qual estabelece uma relação de
sobreposição.7
Por conseguinte, parece lícito concluir que o Imperfeito, para
além do seu valor estritamente temporal de sobreposição a passado,
comporta frequentemente importantes consequências ao nível aspectual.
A conirmar essa hipótese, podemos invocar o fato de que, quando
combinado com eventos, o Imperfeito atribui, por vezes, propriedades
típicas de estatividade às predicações com que se combina.8
Uma conclusão semelhante é avançada em de Swart (1998), que considera que o
Imperfeito é um tempo gramatical que apenas se revela compatível com situações
homogêneas, i.e., com estados e processos, ocasionando mudanças aspectuais quando
se combina com outros tipos de eventualidades.
8
Embora uma análise detalhada das propriedades de estatividade associadas ao
Imperfeito esteja fora do âmbito do presente trabalho, discutiremos aqui, a título
ilustrativo, um exemplo que vai ao encontro dessa linha de análise. Tendencialmente,
no contexto de orações subordinadas introduzidas por quando, os estados estabelecem
uma relação de inclusão com os eventos da principal com que coocorrem, mesmo se
o tempo gramatical selecionado for o Pretérito Perfeito (cf. a leitura preferencial de
uma frase como “Quando esteve em Paris, a Maria jantou num restaurante famoso” é
aquela em que o evento de “jantar num restaurante famoso” se encontra incluído no
7
726
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
Assim, é possível observar que, em contextos apropriados, o
tempo gramatical em questão propicia alterações aspectuais signiicativas
quando se combina com eventos. Em particular, favorece leituras de
tipo habitual (cf. (5)) ou semiprogressivo (cf. (6)) para as predicações
eventivas no seu escopo (cf. CUNHA, 2004/2007).
(5)
Quando entrei na sala, o João tocava (= estava a tocar) piano.
(leitura semiprogressiva)
(6)
O João tocava piano no bar dos artistas (todos os sábados).
(leitura habitual)
Comutações aspectuais desse gênero parecem ser essenciais para
que a leitura continuativa de sobreposição a um dado intervalo passado,
típica do Imperfeito, possa ser preservada. Como observado em Moens
(1987) e Cunha (1998), para o Progressivo, e em Chierchia (1995),
Lenci (1995), Lenci e Bertinetto (2000), Cunha (2006) e Bertinetto e
Lenci (2012), para as frases habituais, essas conigurações apresentam
comportamentos linguísticos que as aproximam inequivocamente dos
estativos (e.g. o tipo de interações que estabelecem com adverbiais
temporais, com quantiicadores sobre situações ou com verbos de
operação aspectual), o que nos permite concluir que, nessas condições, o
Imperfeito funciona, efetivamente, como um verdadeiro “estativizador”.9
intervalo do estado representado por “A Maria estar em Paris”. Ora, sempre que temos
o Imperfeito em subordinadas introduzidas por quando, o mesmo tipo de relação de
inclusão é favorecido, ainda que as predicações básicas envolvidas sejam eventos (cf.
numa frase como “Quando atravessava o jardim, a Maria telefonou ao ilho”, a leitura de
inclusão parece evidente, i.e., o telefonema está localizado dentro dos limites temporais
do intervalo ocupado por “A Maria atravessar o jardim”). Uma interpretação desse tipo
contrasta com o que se passa quando o tempo gramatical escolhido é o Pretérito Perfeito,
que, em PE, parece ser aquele que revela maior neutralidade em termos aspectuais:
assim, numa frase como “Quando atravessou o jardim, a Maria telefonou ao ilho”,
deparamos tipicamente com uma relação de sucessividade, i.e., o telefonema só tem
lugar após o atravessamento do jardim. Dados como esses fazem-nos acreditar que o
Imperfeito, ao exibir comportamentos semelhantes aos dos estativos e distanciando-se do
que se passa com os eventos prototípicos, manifesta marcas inequívocas de estatividade.
Para mais argumentos nesse sentido, veja, por exemplo, Cunha (2004/2007).
9
Para uma discussão aprofundada de alguns argumentos em favor do cariz estativo do
Imperfeito em PE, veja-se, por exemplo, Cunha (2004/2007, 4.1.1.2).
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
727
Finalmente, importa destacar que, para além dos seus valores
temporais e aspectuais, o Imperfeito desempenha um papel crucial no que
diz respeito à veiculação de informação de natureza modal. Com efeito,
autores como Oliveira (1987), Travaglia (1987), Matos (1996), Cipria e
Roberts (2000), Ippolito (2004), Ferreira (2004), Anand e Acquard (2009)
ou Arregui, Rivero e Salanova (2014) defendem que a modalidade é parte
essencial do núcleo semântico desse tempo gramatical.10 Nos seus usos
modais, o Imperfeito remete, tipicamente, para a consideração de mundos
possíveis, de alguma forma diferentes do designado mundo de referência,
o que se traduz na emergência de leituras hipotéticas, potenciais ou não
reais das proposições em causa.
Dentre os inúmeros valores modais que a literatura atribui ao
Imperfeito, podemos destacar os seguintes: a) Imperfeito onírico ou
iccional, em que é descrito o conteúdo de sonhos ou de acontecimentos
imaginários (cf. (7)); b) Imperfeito lúdico, normalmente associado a
jogos e brincadeiras infantis (cf. (8)); c) Imperfeito hipotético, que dá
conta de situações prováveis ou possíveis, mas que, por alguma razão
ou impedimento, ainda não se veriicaram no mundo real (cf. (9));
d) Imperfeito de cortesia, utilizado para atenuar a força ilocutória de
ordens ou de pedidos (cf. (10)); e) Imperfeito de planiicação, que projeta
para o futuro uma situação que está a ser planeada ou preparada pelo
locutor no momento da enunciação (cf. (11)):
(7)
O João sonhou que tinha asas e que voava sobre a cidade.
(8)
Agora chegavam os extraterrestres e nós fugíamos para a loresta.
(9)
Eu telefonava à Maria (se tivesse comigo a agenda).
(10)
Queria um bolo e um café, por favor.
(11)
Então, amanhã, eu trazia um bolo e fazíamos uma festa!11
Autores como Anand e Acquard (2009) ou Arregui, Rivero e Salanova (2014)
chegam mesmo a defender que o núcleo semântico do Imperfeito seria essencialmente
constituído por relações modais (“modal accessibilty relations”), sendo a componente
temporal de passado obtida por meio de uma pressuposição de anterioridade.
11
Embora o valor de planiicação associado ao Imperfeito seja frequentemente
invocado na literatura como um dos argumentos que reforçam a ideia de que esse
tempo gramatical exprime futuridade, as análises divergem bastante a esse respeito.
10
728
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
2.2 O Condicional
Na literatura sobre o Condicional, tem sido alimentada alguma
controvérsia no que diz respeito ao seu tratamento semântico, sendo essa
forma encarada ora como um tempo pertencente ao sistema do Indicativo,
utilizado para exprimir posterioridade em relação a um dado intervalo
passado, ora como um modo independente de pleno direito.
Uma hesitação dessa natureza em termos classiicatórios relete
o facto bem conhecido de que o Condicional veicula tanto informação
temporal quanto modal. Os autores que valorizam o seu caráter temporal
incluem-no tipicamente no sistema do indicativo, denominando-o
frequentemente “Futuro do Passado” (cf. e.g. CUNHA; CINTRA, 1984;
PERES, 1993); aqueles que reconhecem a prevalência da sua natureza
modal defendem a ideia de que estamos, efetivamente, perante um Modo
Condicional autônomo (cf. OLIVEIRA; LOPES, 1995). Finalmente, há
investigadores que, numa tentativa de conciliar essas duas perspectivas,
propõem designações alternativas como a de “forma em -ria”, que remete
diretamente para a constituição morfológica da estrutura em causa,
evitando, desse modo, tomar partido por uma das posições em confronto
(cf. e.g. SILVA, 1997).
Cipria e Roberts (2000), por exemplo, defendem que, apesar de a eventualidade
relevante estar localizada num intervalo posterior ao momento da enunciação, esse
tipo de interpretação intencional não afeta obrigatoriamente a atribuição, comum a
muitos outros casos, de uma perspectiva de anterioridade ao Imperfeito, na medida
em que os autores consideram que o que aqui está em causa não é tanto a situação
em si, mas antes a “intenção” que lhe está associada e que se localiza num intervalo
que lhe é anterior. Por outras palavras, é a fase (pré)-preparatória, tal como descrita
em Moens (1987) ou em Moens e Steedman (1988) que ocorre (e se localiza) num
intervalo passado, sendo a situação principal projetada para um tempo indeterminado
do futuro. Em favor desse ponto de vista, destaca-se o fato de que apenas construções
inequivocamente intencionais podem receber uma interpretação deste gênero, como o
contraste entre (i) e (ii) deixa transparecer:
(i) Eu amanhã telefonava ao cliente e resolvia o problema. (leitura
intencional possível)
(ii) * Amanhã chovia. (leitura intencional impossível)
Como veremos mais adiante, esse tipo de contraste (i.e. intencional vs não intencional)
não se revela relevante quando o Imperfeito exprime futuridade em relação a um PPT
passado.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
729
Em qualquer dos casos, os gramáticos e linguistas que se dedicam
ao estudo do Condicional estão de acordo quanto ao facto de que, reunidas
as circunstâncias adequadas, essa forma pode exprimir tanto valores
temporais quanto modais, embora, no estágio atual da língua, tal como
demonstrado por Silva (1997, 3.2.8) para o Português do Brasil, os usos
de natureza modal pareçam ser prevalentes.
No que se refere à sua caracterização temporal, podemos dizer que
o Condicional localiza as situações com que se combina num intervalo de
tempo posterior em relação ao PPT passado a que se associa. Por outras
palavras, o Condicional fornece informação de “futuro do passado” (cf.
CUNHA; CINTRA, 1984) ou, seguindo a terminologia adotada por
Declerck (1991, 2005), enquadra as eventualidades relevantes no setor
posterior da esfera temporal do passado.
Tal como izemos notar para o Imperfeito, o Condicional pode
ser considerado, sob um certo ponto de vista, uma forma verbal de cariz
eminentemente anafórico, na medida em que, para ser apropriadamente
interpretado, requer a presença de um intervalo de tempo passado que
lhe sirva como PPT, já que a sua signiicação temporal nunca pode ser
computada de forma direta, tomando exclusivamente por base o tempo
da enunciação.
Dada a necessidade da presença de um PPT passado para a
sua interpretação, o Condicional com valor temporal é tipicamente
encontrado em frases linearmente ordenadas no discurso (cf. 12)) ou em
orações completivas de verbo (cf. (13)):
(12)
O presidente chegou ao aeroporto às dez da manhã. Entraria
no avião uma hora mais tarde.
(13)
O presidente afirmou que responderia às perguntas dos
jornalistas.
Assim, em (12), o evento “O presidente chegar ao aeroporto”,
representado num domínio passado, funciona como PPT para o
Condicional, que localiza a situação a que se aplica, i.e., a entrada no
avião, num intervalo que lhe é posterior. De forma semelhante, em
(13), a oração principal no Pretérito Perfeito, “O presidente airmou”,
constitui-se como o PPT passado com o qual o Condicional estabelece
uma relação temporal de posterioridade para a localização da situação
descrita na completiva, i.e., “responder às perguntas dos jornalistas”.
730
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
Uma consequência previsível da sua dependência obrigatória
face a um intervalo passado manifesta-se no fato de o Condicional nunca
estabelecer uma vinculação direta com o tempo da fala (speach time).
Com efeito, e tal como salientado, e.g., em Oliveira e Duarte (2012),
em Martínez-Atienza (2012) ou em Vatrican (2014), as eventualidades
expressas no Condicional podem exibir livremente uma relação de
anterioridade, de sobreposição ou de posterioridade com o momento da
enunciação, como a plena compatibilidade com os diferentes adverbiais
temporais em (14) deixa transparecer:
(14)
(No passado sábado), o editor assegurou-me que o livro sairia
ontem / hoje / amanhã.
Considerando que a eventualidade expressa pelo Condicional –
no caso em apreço “o livro sair” – é interpretada como temporalmente
dependente do intervalo passado disponibilizado pela frase matriz, a sua
ligação com o momento da enunciação será sempre alcançada de uma forma
indireta, pelo que, a partir da relação de posterioridade que estabelece com
o respectivo PPT, é possível que anteceda, que se sobreponha ou que siga
o tempo da fala, como ilustrado em (14). Uma tal observação permite-nos
concluir que, no contexto em apreço, a ordenação entre Tempo da Situação
e Tempo da Fala se revela tipicamente indeterminada.
Para além da sua interpretação essencialmente temporal,
o Condicional integra um vasto conjunto de valores de natureza
eminentemente modal que importa ter em conta.
Um dos contextos em que o Condicional veicula valores de
natureza modal é, sem dúvida, o das frases condicionais. Em PE, o
Condicional surge frequentemente nas apódoses12 desse tipo de estruturas,
manifestando um valor hipotético ou potencial quando se combina com
o Imperfeito do Conjuntivo (cf. (15)):
(15)
Se o crocodilo aparecesse no rio, os gnus fugiriam para a savana.
Como se sabe, a apódose é a oração principal de uma frase condicional, cuja função
primordial será a de apresentar uma ou mais consequências tidas como expectáveis. A
prótase, por seu lado, é a oração subordinada, tipicamente introduzida pela conjunção
se, que dá conta das condições consideradas necessárias para que a consequência
esperada possa vir a ter lugar.
12
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
731
O Condicional pode, igualmente, surgir em frases condicionais
com valor contrafactual. Nesse caso, o verbo da prótase ocorre
normalmente no Mais-que-Perfeito do Conjuntivo, tal como (16) nos
revela:
(16)
Se os leões tivessem corrido mais depressa, caçariam um gnu.
É importante sublinhar que, em qualquer dos casos (na sua leitura
potencial ou na interpretação contrafactual), o Condicional expressa uma
proposição que não teve lugar no mundo real ou no mundo de referência,
ou seja, uma proposição que se inscreve no domínio do não realizado
(cf. VATRICAN, 2014). Nessa medida, o Condicional manifesta aqui
inequivocamente um valor de cariz modal que se substitui ao seu peril
temporal de posterioridade no passado.
Um outro uso modal tradicionalmente associado ao Condicional
prende-se com a expressão da mitigação ou da cortesia. De acordo com
Vatrican (2013, 2014), estamos na presença de um Condicional de cortesia
quando essa forma verbal é usada para obter uma reação por parte do
interlocutor. A referida interpretação ocorre sobretudo em conigurações
que envolvem solicitações ou pedidos indiretos, como ilustrado em (17).
O Condicional de mitigação difere do de cortesia na medida em que se
centra essencialmente no locutor. Neste último caso, a função central do
Condicional será a de mitigar ou a de diminuir a força ilocutória de uma
dada asserção (cf. (18)):
(17)
Eu gostaria de uma bebida fresca. (= Por favor, dê-me uma
bebida fresca)
(18)
Eu diria que vamos ter um problema grave. (forma mitigada
equivalente a Eu digo que vamos ter um problema grave)
Abouda (2001) sugere que o Condicional de mitigação se
relaciona com outros usos modais dessa forma verbal, em particular os
designados Condicional jornalístico e Condicional polêmico, constituindo
uma categoria a que é dada a designação genérica de “Conditionnel de
la non prise en charge” e que pode ser caracterizada pelo facto de o
referido tempo verbal, nos contextos em causa, servir essencialmente
para exprimir proposições cuja veracidade não é inteiramente assumida
732
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
pelo locutor, ou seja, para dar conta de informação cujo valor de verdade
não se encontra completamente conirmado ou assegurado.
Esses usos do Condicional são, portanto, geralmente caracterizados
pela ausência de comprometimento por parte do falante em relação à
factualidade das proposições expressas. A informação pode, assim, ser
apresentada simplesmente como incerta ou não veriicada no mundo
de referência (cf. (19)) ou como proveniente de uma fonte externa ao
locutor, caso em que nos encontramos perante o designado Condicional
reportivo ou evidencial13 (cf. (20)):
(19)
O terrorista estaria no hotel quando a bomba explodiu.
(= o terrorista estava provavelmente no hotel quando a bomba
explodiu)
(20)
Segundo os jornalistas, o ministro teria mais de um milhão de
euros em paraísos iscais.
Sublinhe-se que, em casos como os apresentados nas frases (19)
e (20), a informação temporal de posterioridade relativamente a um
intervalo passado perde completamente a sua relevância e é suplantada
pelo valor modal de incerteza. Em particular, a relação temporal mais
frequente nesse tipo de sequências parece ser a de sobreposição a um
intervalo passado (por exemplo, em (19), o estado descrito, i.e. “o
terrorista estar no hotel”, inclui – e, por conseguinte, sobrepõe-se a – o
respectivo PPT fornecido pela oração temporal, “a bomba explodir”).
O Condicional deixa, pois, de funcionar como expressão do futuro do
passado para representar uma situação potencial que eventualmente teve
lugar num intervalo anterior ao momento da enunciação.
Finalmente, importa assinalar um último uso modal do Condicional
a que Martínez-Atienza (2012) chama Condicional de probabilidade e
que Vatrican (2014) designa como Condicional de conjetura.
O Condicional de conjetura funcionaria como uma espécie de
operador epistêmico de possibilidade. Ao contrário do que ocorre com
os usos evidenciais, nesse caso é o próprio locutor que exprime o seu
ponto de vista, perspectivando a ocorrência de uma dada eventualidade
como uma possibilidade, como uma hipótese ou mesmo como uma
Para uma análise mais detalhada do funcionamento do Condicional reportivo ou
evidencial, vejam-se, entre outros, Dendale (2001), Squartini (2001) ou Vatrican (2014).
13
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
733
probabilidade a ter em conta, em razão dos conhecimentos e informações
de que dispõe acerca da realidade em que se insere. Um exemplo claro
desse uso é oferecido em (21):
(21)
A Maria faltou às aulas porque estaria doente.
Embora o uso conjetural do Condicional seja pouco frequente
em PE e se encontre sujeito a diversas restrições – apenas estativos, por
exemplo, parecem surgir sem problemas nesse tipo de conigurações,
obtendo-se a leitura de possibilidade epistêmica para os eventos por
meio do recurso ao Condicional Perfeito –, é interessante observar
que esse valor modal emerge também em construções que combinam
probabilidade e concessão (cf. (22)), muito próximas dos exemplos que
Martínez-Atienza (2012) invoca para o Espanhol.
(22)
O João teria pouco dinheiro, mas comprou um BMW.
Note-se que, mais uma vez, nos usos conjeturais do Condicional,
não é a localização em termos de posterioridade de uma situação
relativamente a um intervalo de tempo passado que está em causa (na
verdade, em muitos dos casos, encontramo-nos face a uma relação de
sobreposição a um PPT passado), mas antes uma interpretação que conduz
à expressão da hipótese ou da probabilidade, ou, dito de outra forma,
para a não concretização do conteúdo proposicional descrito no mundo
real, o que indica que estamos perante mais um caso de manifestação da
modalidade (cf. PORTNER, 2009).
2.3 Ir no Imperfeito + Ininitivo
A construção ir no Imperfeito + Ininitivo partilha um conjunto
bastante signiicativo de propriedades semânticas com o Condicional, em
particular no que diz respeito à sua caracterização temporal. Com efeito,
e tal como observamos para o Condicional, a estrutura ir no Imperfeito
+ Ininitivo possibilita localizar uma situação num intervalo posterior
ao Ponto de Perspectiva Temporal passado com que se combina, ou
seja, exprime uma relação que pode ser descrita como a de “futuro do
passado” (cf. PERES, 1993).
Tratando-se de uma forma verbal de cariz anafórico, i.e., que
estipula a presença de um intervalo diferente do momento da enunciação
734
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
para ser adequadamente interpretada, ir no Imperfeito + Ininitivo surge
preferencialmente no contexto de orações encaixadas – caso em que o
intervalo relevante é fornecido pela situação da matriz (cf. (23)) – ou em
frases sequencialmente ordenadas num discurso de tipo narrativo – caso
em que será uma das eventualidades descritas a disponibilizar o PPT
requerido (cf. (24)):
(23)
Os bombeiros avisaram que o edifício ia ruir.
(24)
O edifício foi construído em 1999. Ia ruir dois anos mais tarde
por causa de um grande incêndio.
Mais uma vez, dado que a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo
determina que a situação com que se combina se encontre ligada a
um intervalo passado que lhe serve de PPT, não sendo viabilizada
qualquer relação direta com o momento da enunciação, é perfeitamente
possível encontrar casos em que se veriica anterioridade, sobreposição
ou posterioridade com o tempo da fala, como a compatibilidade com
adverbiais temporais dêiticos que remetem para o passado (cf. ontem), para
o presente (cf. hoje) ou para o futuro (cf. amanhã) deixa transparecer:14
(25)
(No sábado), a Maria disse que ia assistir a uma conferência
ontem / hoje / amanhã.
O fato de a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo desencadear
uma relação temporal de posterioridade num domínio passado abre
caminho para a possibilidade da sua associação com interpretações de
cariz modal, na medida em que, como é frequentemente reconhecido na
literatura, a projeção para o futuro envolve invariavelmente um certo grau
de incerteza e, assim, a necessidade de consideração de “ramiicações”
que remetem para diferentes mundos possíveis (veja-se a noção de inertia
worlds proposta por DOWTY, 1979).
Nesse sentido, Cunha (2015) sugere que, para além da sua
interpretação puramente temporal, a construção ir no Imperfeito
+ Infinitivo pode igualmente dar lugar a leituras modais de tipo
hipotético. Nessas circunstâncias, as proposições expressas não ocorrem
A única restrição relevante nesses casos é, naturalmente, que a situação em causa se
veriique num intervalo posterior ao respectivo Ponto de Perspectiva Temporal passado.
14
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
735
obrigatoriamente no mundo de referência, mas são concebidas como
meras hipóteses ou possibilidades a ter em conta em determinados
mundos alternativos.
Ora, tomando em consideração que, como já referimos, a
coniguração sob análise não estabelece uma relação direta com o
momento da enunciação, não é difícil conceber contextos em que a
situação que é projetada para o futuro a partir de um PPT passado
ainda não tenha tido lugar no momento da fala, sendo, por conseguinte,
impossível avaliar a veracidade da sua ocorrência em t0,15 o que,
naturalmente, favorece a emergência de interpretações de natureza modal.
Parece-nos, pois, lícito concluir que os usos modais associados a
ir no Imperfeito + Ininitivo derivam, em grande medida, das propriedades
temporais que caracterizam essa estrutura. Como teremos oportunidade
de constatar mais adiante, esse fato poderá ajudar-nos a compreender
melhor as divergências, em termos de comportamento linguístico, no
contexto de orações completivas de verbo, que se podem observar entre
a coniguração em causa e o Condicional, forma que manifesta valores
modais bem mais abrangentes.
No que diz respeito às interpretações modais desencadeadas
pela coniguração ir no Imperfeito + Ininitivo, podemos distinguir dois
casos principais: (i) a situação pode ser perspectivada como não tendo
sido ainda realizada no mundo de referência, mas encarada, ainda assim,
como uma possibilidade ou como uma hipótese a ter em conta no curso
futuro dos acontecimentos (cf. (26)); (ii) ou ela pode ser concebida como
irrealizável, i.e., como inscrita num domínio que se encontra inteiramente
fora da realidade (cf. (27)). Essa última leitura corresponderia aos usos
contrafactuais que Martín (2008) atribui à construção ir a no Imperfeito
+ Ininitivo do Espanhol.
(26)
O presidente da empresa garantiu que ia aumentar o salário
dos seus funcionários.
(27)
O presidente da empresa ia aumentar o salário dos seus
funcionários quando a companhia entrou em falência.
Utilizaremos, ao longo do presente trabalho, a notação t0 para indicar o tempo da
enunciação ou momento da fala e w0 para aludir ao mundo de referência ou mundo real.
15
736
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
Sublinhe-se que a atribuição de uma interpretação hipotética
ou contrafactual às frases envolvendo a construção ir no Imperfeito
+ Infinitivo depende essencialmente do contexto (linguístico ou
extralinguístico) em que os enunciados são produzidos. Na verdade, numa
grande parte dos casos, não dispomos de informação suiciente para saber
se a situação em causa irá ou não ter lugar no mundo real. Por exemplo,
num enunciado como o de (25), a indicação de que a companhia entrou
em falência direciona de forma bem clara para uma leitura contrafactual
da proposição “O presidente da empresa aumentar o salário dos seus
funcionários”.16 No entanto, se procedermos a algumas alterações no
contexto em que se insere a proposição sob análise, é possível obter uma
sequência em que a interpretação preferencial é a de possibilidade, tal
como ilustrado em (28):
(28)
O presidente da empresa ia aumentar o salário dos seus
funcionários, mas, antes disso, precisa consultar os acionistas.
Em suma, concluímos que a construção ir no Imperfeito +
Ininitivo, dadas as circunstâncias adequadas, desencadeia interpretações
de cariz modal, que tanto podem tender para a possibilidade quanto para
a contrafactualidade, dependendo de fatores contextuais como o tipo de
informação que se encontra disponível ou as características das diferentes
orações que com ela interagem no discurso.
No que se refere à análise da construção ir no Imperfeito +
Ininitivo, seguiremos a proposta de Cunha (2015) segundo a qual as
suas interpretações temporais e modais podem ser uniicadas sob uma
mesma descrição semântica. Assim, independentemente do valor de
verdade a atribuir às proposições no seu escopo, ir no Imperfeito +
Ininitivo parece veicular consistentemente um signiicado temporal de
posterioridade em relação a um dado intervalo passado. Na realidade,
mesmo as proposições que expressam valores modais – hipotéticos
ou contrafactuais – preservam tipicamente a informação temporal de
posterioridade no passado, tal como ilustrado no seguinte exemplo:
(20)
A Maria ia ligar a televisão quando o telefone tocou.
De um modo geral, podemos airmar que a comparência de frases de natureza
contrastiva exibindo tempos do passado favorece uma leitura contrafactual para as
conigurações que integram a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo.
16
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
737
Ainda que a proposição expressa por “A Maria ligar a televisão”
não seja de todo verdadeira no mundo real, o que é certo é que ela parece
estabelecer uma relação consistente de posterioridade com o intervalo
em que ocorre a situação descrita pela oração introduzida por quando, o
que nos leva a acreditar que, mesmo nos casos em que uma interpretação
modal é preponderante, as interdependências de natureza temporal que
caracterizam a construção sob análise se mantêm, em certa medida,
inalteradas. Ou seja, a relação de posterioridade no passado é sempre
preservada, independentemente de a eventualidade em apreço ocorrer
ou não no mundo de referência.
Com base nas observações que acabamos de efetuar, encontramonos inalmente em posição de propor a seguinte formulação para a
caracterização semântica da estrutura analisada na presente subsecção:
(i) ir no Imperfeito + Ininitivo exprime uma relação temporal consistente
e obrigatória de posterioridade em relação a um determinado Ponto de
Perspectiva Temporal passado; (ii) a diferença que se pode observar entre
as duas principais interpretações associadas a essa construção deriva do
fato de que, em certos casos, a situação descrita é considerada verdadeira
no mundo de referência (leitura temporal) e, noutros, o seu valor de
verdade está indeterminado ou chega mesmo a ser concebido como falso
em w0, sendo necessário o recurso à noção de mundos alternativos para
a sua adequada computação (leitura modal).
Por outras palavras, ir no Imperfeito + Ininitivo recebe um valor positivo para o traço temporal de [posterioridade], sendo indeterminado no que se refere à atribuição dos valores de verdade às situações
com que se combina. Ou seja, em qualquer caso, estamos perante um
futuro do passado, podendo as eventualidades ser verdadeiras no mundo real ou inscritas em mundos alternativos (inertia worlds).17
Nesse sentido, advogamos para o Português Europeu um tratamento eminentemente
temporal da estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo, na esteira de trabalhos como os de
Rodrigues (2011) para o PB ou os de Oliveira e Duarte (2012) e Cunha (2015) para o
PE. O caso do espanhol aparenta ser algo diferente, já que um tratamento no âmbito
aspectual em termos de Aspecto Prospectivo se revela a opção preferida pelos linguistas
que reletem sobre essa questão (cf. MARTíN, 2008; BURGOS, 2013). No entanto, não
parecem existir em PE evidências que justiiquem a adoção desse tipo de abordagem
que, mesmo na literatura sobre o espanhol, suscita algumas dúvidas, críticas e oscilações.
17
738
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
3 A expressão da futuridade em orações completivas de verbo
Até ao momento, e com base na caracterização que propusemos
para os três tempos gramaticais em apreço, constatamos que tanto
o Imperfeito como o Condicional e a construção ir no Imperfeito
+ Ininitivo se revelam capazes de exprimir a localização de uma
eventualidade num intervalo futuro em relação a um dado PPT
situado na esfera do passado. Veriicámos igualmente que partilham a
possibilidade de induzir interpretações de cariz modal às proposições a
que se aplicam. Isso não signiica, no entanto, que as referidas formas
verbais se revelem semanticamente idênticas entre si. Como tivemos
oportunidade de veriicar, o Imperfeito é essencialmente um tempo
que se caracteriza pela sobreposição a um dado intervalo passado,
sendo os seus valores futurativos e modais obtidos em circunstâncias
muito específicas; o Condicional, por seu lado, embora capaz de
estabelecer uma relação temporal de posterioridade no passado, exprime
fundamentalmente modalidade, ao passo que ir no Imperfeito + Ininitivo
reporta primariamente uma relação temporal de futuridade em relação a
um determinado PPT passado, sendo as suas leituras modais derivadas
desse seu peril temporal básico e, nesse sentido, sujeitas a um número
bastante signiicativo de restrições.
Um contexto em que essas diferenças e similaridades são
particularmente visíveis é, sem dúvida, o das orações completivas de
verbo, na medida em que a situação da frase matriz fornece um Ponto
de Perspectiva Temporal explícito em relação ao qual a proposição da
subordinada vai ser localizada. Nesse sentido, dedicaremos a presente
seção deste trabalho à análise das possibilidades interpretativas
manifestadas pelo Imperfeito, pelo Condicional e pela estrutura ir no
Imperfeito + Ininitivo em orações encaixadas subcategorizadas por
diferentes tipos de verbos introdutores.
Com o objetivo de determinar o papel desempenhado pelos
diferentes elementos linguísticos que interagem na determinação das
interpretações prospectivas dos tempos gramaticais que temos vindo a
discutir, propomo-nos, nas páginas que se seguem, explorar as leituras
mais relevantes ostentadas pelas orações completivas associadas a quatro
categorias de verbos introdutores: (i) verbos como dizer ou airmar, que,
por si só, parecem não condicionar grandemente a localização temporal
das eventualidades na subordinada com que se combinam; (ii) verbos
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
739
como prometer ou decidir, que, em certa medida, induzem orientação
para o futuro; (iii) verbos de cariz factivo como constatar ou descobrir,
que requerem tipicamente a veracidade da proposição no seu escopo e (iv)
verbos intensionais como imaginar, sonhar ou acreditar, que favorecem
leituras não verídicas das proposições com que coocorrem.18
3.1 Verbos dicendi: dizer e airmar
Começaremos a nossa análise do comportamento do Imperfeito,
do Condicional e de ir no Imperfeito + Infinitivo no contexto de
completivas por estruturas que integram verbos como dizer ou airmar,
que parecem ser aqueles que menos condicionam a localização temporal
das situações representadas na subordinada.
Com efeito, seguindo propostas como as avançadas por Cunha
e Silvano (2006), considerarei aqui que esses verbos são temporalmente
“neutros”, no sentido em que as eventualidades por eles subcategorizadas
não se encontram sujeitas a restrições especíicas no que se refere à sua
localização temporal. Assim, tal como os exemplos que se seguem nos
conirmam, as situações que se combinam com verbos como dizer ou
airmar tanto podem ocorrer num período de tempo anterior (cf. (30)),
sobreposto (cf. (31)) ou posterior (cf. (32)) ao intervalo em que decorre
o evento da oração matriz, dependendo do tempo gramatical selecionado.
(30)
O jornalista disse que entrevistou / tinha entrevistado o
Presidente da República. (anterioridade)
(31)
O jornalista disse que estava a entrevistar o Presidente da
República. (sobreposição)
(32)
O jornalista disse que ia entrevistar o Presidente da República.
(posterioridade)
Exemplos como os que acabamos de apresentar parecem
demonstrar que verbos do gênero de dizer ou de airmar não afetam
Dado que o nosso objetivo, de momento, é apenas o de tentar compreender os
constrangimentos que condicionam as interpretações futurativas no contexto de certas
orações completivas de verbo, não nos será possível, naturalmente, fornecer uma
panorâmica geral do funcionamento semântico desse tipo de construções em PE. Para
uma discussão mais aprofundada do tema, veja-se Silvano (2002).
18
740
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
diretamente a localização temporal das situações com que se combinam,
na medida em que elas podem surgir, livremente, antes, durante ou depois
do respectivo PPT, aqui fornecido pela frase matriz.
Tendo em conta essas observações, será de prever que as
propriedades semânticas básicas dos diferentes tempos gramaticais
envolvidos em completivas introduzidas por dizer ou por afirmar
sejam globalmente preservadas na interpretação inal desse tipo de
configurações. Como veremos em seguida, essa predição parece
conirmar-se, pelo menos para formas verbais como o Imperfeito, o
Condicional e ir no Imperfeito + Ininitivo.
Como referimos em 2.1, o Imperfeito, em geral, localiza
a situação a que se aplica num intervalo de tempo que coincide,
total ou parcialmente, com um dado PPT passado, i.e., estabelece
preferencialmente uma relação de sobreposição num domínio temporal
[+passado] (cf. DECLERCK, 1991; PERES, 1993).
Se considerarmos frases completivas encabeçadas por dizer ou
airmar em que a subordinada exprime uma predicação de cariz estativo,
essa relação de sobreposição parece, de fato, ser a mais natural, tal como
ilustrado em (33) e (34):19
(33)
A Maria disse que o João vivia em Paris. (e1 o e2)
(34)
O entrevistado airmou que era escritor. (e1 o e2)20
Nesses exemplos, os estados representados na subordinada,
nomeadamente “O João viver em Paris” e “[o entrevistado] ser escritor”,
ocupam um intervalo que coincide parcialmente com o tempo passado
estabelecido pelas proposições nas respectivas frases matriz.21
A observação de que, em PE, os estados no Imperfeito se sobrepõem ao intervalo
de tempo fornecido pelo verbo matriz em construções completivas envolvendo dizer
ou airmar é relativamente consensual na literatura, tendo já sido efetuada por autores
como Oliveira (1998), Silvano (2002) ou, mais recentemente, Oliveira e Duarte (2012).
20
A notação que usamos nesses e nos próximos exemplos é a seguinte: e1 representa
a eventualidade da oração principal; e2, a da subordinada; o, uma relação temporal
de sobreposição; <uma relação de anterioridade e>, uma relação de posterioridade.
21
Tratando-se, tipicamente, de uma interação entre eventos (na principal) e estativos
(na subordinada), a relação temporal de inclusão parece ser a preferida nesses contextos
(para uma explicação mais detalhada, vejam-se, a esse respeito, as propostas de KAMP;
ROHRER, 1983 e de KAMP; REYLE, 1993).
19
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
741
Quando, porém, na oração subordinada de completivas
introduzidas por dizer ou airmar surgem eventos, a computação das
suas possibilidades interpretativas torna-se bastante mais complexa. Na
realidade, e como já procuramos deixar claro anteriormente, o Imperfeito
funciona, tipicamente, como um estativizador, ou seja, converte os eventos
com que se combina em predicações derivadas de natureza estativa (cf.
os argumentos avançados, entre outros, por KAMP; ROHRER, 1983;
OLIVEIRA; LOPES, 1995; MATOS, 1996; CUNHA, 2004/2007).
Nesse sentido, a relação de sobreposição no passado que
caracteriza o Imperfeito é, naturalmente, preservada também nesses
contextos, desde que os eventos básicos que neles tomam parte tenham
sido previamente convertidos ou em estados habituais ou em estados
semiprogressivos. Os exemplos que se seguem ilustram o que acabamos
de expor: os eventos das subordinadas em (35) e (36), graças à intervenção
de um mecanismo de repetição de situações, são perspectivados como
estruturas que descrevem rotinas ou hábitos, ao passo que os de (37) e
(38), que apenas são encarados como prolongando-se indeinidamente no
tempo, sem referência aos seus momentos inicial ou inal, assemelhamse às construções de cariz progressivo. Em qualquer dos casos, a
interpretação de sobreposição no passado parece ser a mais adequada
para dar conta das interdependências temporais presentes nestas frases.
(35)
O João disse que jogava tênis (= tinha o hábito de jogar tênis).
(e1 o e2)
(36)
O jornalista afirmou que entrevistava pessoas famosas
(= costumava entrevistar pessoas famosas). (e1 o e2)
(37)
A Maria disse que as crianças brincavam no jardim (= estavam
a brincar no jardim). (e1 o e2)
(38)
Os bombeiros airmaram que as chamas consumiam a loresta
(= estavam a consumir a loresta). (e1 o e2)
Em todas essas frases parece existir uma relação de sobreposição
entre os tempos em que decorrem as eventualidades na subordinada e
o PPT passado fornecido pela frase matriz. Assim, por exemplo, em
(36), o intervalo em que o jornalista entrevista pessoas famosas começa
antes e prolonga-se para além do tempo em que ele faz a airmação, i.e.,
742
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
observa-se aqui uma relação de inclusão temporal semelhante à que
observamos para os estados básicos em (33) e (34). O mesmo se passa
com os exemplos de leituras semiprogressivas: em (37), o tempo em que
a Maria fez a sua airmação está incluído – e, nesse sentido, encontra-se
também sobreposto – no intervalo em que as crianças brincam no jardim.
Embora a relação de sobreposição a um tempo passado pareça
ser preferencial no caso do Imperfeito no contexto de completivas
introduzidas por dizer ou airmar, na medida em que pode ser obtida
com todas as classes aspectuais de predicações, mesmo que os eventos
tenham de ser previamente convertidos em estados de natureza derivada,
é igualmente possível encontrar casos em que ocorre posterioridade no
interior de um domínio passado.22
As leituras prospectivas com o Imperfeito em completivas
introduzidas por verbos relativamente “neutros” em termos da localização
temporal da subordinada encontram-se, no entanto, sujeitas a algumas
restrições que importa destacar.
Se é certo que será suficiente a presença de um adverbial
temporal prospectivo para o licenciamento de interpretações desse tipo
quando estão em causa predicações eventivas, os estados parecem ser
sistematicamente excluídos, tal como o contraste entre (39) e (40), com
eventos, e (41) e (42), com estados, nos indica:
(39)
A Maria disse que chovia amanhã / daí a dois dias. (e1 < e2)
(40)
O presidente airmou que entregava o relatório amanhã / daí a
dois dias.23 (e1 < e2)
(41)
* A Maria disse que estava doente amanhã / daí a dois dias.
(e1 < e2)
(42)
* O presidente airmou que vivia nos Estados Unidos amanhã
/ daí a dois dias. (e1 < e2)
Essa possibilidade foi já referida na literatura para o PE, por exemplo, em Oliveira
(1998), Silvano (2002) e Oliveira e Duarte (2012).
23
Note-se, de passagem, que, no contexto de leituras prospectivas do Imperfeito,
os eventos representados parecem manter as suas propriedades aspectuais básicas
inalteradas, não sendo convertidos em estados de tipo derivado.
22
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
743
Na ausência de adverbiais temporais prospectivos, são igualmente
possíveis leituras futurativas do Imperfeito com eventos, desde que
estes se encontrem associados a algum tipo de intencionalidade ou de
planiicação (cf. CIPRIA; ROBERTS, 2000). Observe-se o seguinte
contraste, em que apenas numa frase como (43), que manifesta algum tipo
de planiicação, o Imperfeito pode receber uma leitura de posterioridade
no passado, sendo esse tipo de interpretação completamente excluída em
(44), que não exibe essas características:
(43)
O João disse que entregava a tese. (e1 < e2)
(44)
# O João disse que partia o braço. (e1 < e2)
Os dados que acabamos de discutir sugerem, pois, que a leitura
preferencial para o Imperfeito no contexto de completivas introduzidas
por verbos relativamente neutros no que toca à localização temporal da
subordinada, do gênero de dizer ou de airmar, será a de sobreposição
ao respectivo PPT passado, sendo as interpretações de cariz futurativo
viabilizadas apenas em condições bastante particulares, nomeadamente
na presença de adverbiais prospectivos ou em conigurações em que a
intencionalidade ou a planiicação se revelam muito evidentes.24
Contrariamente ao que sucede com o Imperfeito, o Condicional,
no contexto de verbos introdutores temporalmente neutros, como dizer ou
airmar, parece receber uma interpretação consistente de posterioridade
no passado, independentemente da classe aspectual da situação
representada na subordinada. Por outro lado, e tal como notado em
Oliveira e Duarte (2012), esse tempo gramatical veicula adicionalmente
informação de natureza modal associada à presença de uma oração
condicional implícita. Sob esse ponto de vista, o Condicional combina,
nas conigurações sob análise, propriedades temporais e modais, como
nos sugerem os seguintes exemplos:
Excluímos desta nossa análise, naturalmente, os casos em que dizer não se assume
como um verdadeiro verbo “reportivo” e é lexicalmente equivalente a formas do gênero
de prometer ou de comprometer-se. Nessas circunstâncias, o seu comportamento
semântico será semelhante ao dos verbos que abordarei na próxima subsecção deste
trabalho. Em particular, pode mesmo surgir com estativos numa leitura prospectiva
como em “O ministro disse (= prometeu) que estava no parlamento amanhã”.
24
744
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
(45)
O João disse que compraria um BMW (se tivesse dinheiro
suiciente). (e1 < e2)
(46)
O ministro airmou que aumentaria os salários (se o país
recebesse fundos da União Europeia). (e1 < e2)
(47)
A Maria disse que seria professora (se conseguisse concluir o
curso). (e1 < e2)
(48)
O escritor airmou que viveria em Paris (se tivesse de abandonar
a sua terra natal). (e1 < e2)
Em todas essas frases a situação descrita pelo verbo na oração
matriz fornece o intervalo passado que se constitui como Ponto
de Perspectiva Temporal para a localização das eventualidades na
subordinada, que, independentemente do seu peril aspectual, estabelecem
com o referido PPT uma relação de posterioridade. Assim, por exemplo,
o estado descrito por “[A Maria] ser professora” em (47), a realizar-se,
será sempre concebido como posterior ao evento introduzido por “A
Maria dizer”.
Por outro lado, tendo em conta que, tal como observamos em
2.2, o Condicional se revela particularmente apto para a expressão de
valores modais, não surpreende que as construções que aqui estamos
analisando surjam frequentemente associadas a orações condicionais
implícita ou explicitamente realizadas. De fato, e pelo menos no entender
de alguns falantes do Português Europeu, a total supressão da oração
condicional nos contextos em questão conduz frequentemente à sensação
de incompletude da estrutura ou mesmo a um certo grau de anomalia.
Uma outra observação que reforça a ideia de que o Condicional,
para além do seu valor temporal, veicula fundamentalmente uma
signiicação de cariz modal está relacionada ao fato de que, no contexto
de completivas introduzidas por dizer ou airmar, essa forma viabiliza
leituras reportivas ou evidenciais, típicas do designado uso de “incerteza”
ou de “informação não conirmada” que lhe é habitualmente atribuído
(cf. ABOUDA, 2001). Vejam-se os seguintes exemplos:
(49)
Os pastores disseram que os lobos estariam na aldeia. (e1 o e2)
(50)
Os jornalistas airmaram que o ministro possuiria dinheiro no
estrangeiro. (e1 o e2)
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
745
É interessante constatar que, nas interpretações em que o
Condicional exprime sobretudo incerteza ou informação não conirmada,
não se observa a relação temporal de posterioridade com o PPT passado
fornecido pela frase matriz, que, como já referimos, normalmente
caracteriza essa forma verbal. Nesses casos, o Condicional exprime
essencialmente um valor modal “potencial”, ou seja, indica que a
informação veiculada pela proposição da oração subordinada não é certa
ou não se encontra ainda conirmada, embora constitua uma possibilidade
em aberto. Como uma consequência desse valor modal, a relação
temporal que se estabelece entre as situações referidas é tipicamente a de
sobreposição, o que indicia que a contribuição em termos de modalidade
associada ao Condicional acaba por suplantar as suas propriedades
temporais básicas.
Paralelamente ao que sucede com o Condicional, a construção ir
no Imperfeito + Ininitivo, no contexto de completivas introduzidas por
verbos como dizer ou airmar, induz uma leitura de posterioridade em
relação ao respectivo PPT passado, seja qual for a classe aspectual da
situação descrita, como ilustrado nos exemplos que se seguem:
(51)
O João disse que ia comprar um BMW. (evento) (e1 < e2)
(52)
O ministro airmou que ia aumentar os salários. (evento)
(e1 < e2)
(53)
A Maria disse que ia ser professora. (estado) (e1 < e2)
(54)
O escritor airmou que ia viver em Paris. (estado) (e1 < e2)
Em todas essas frases as proposições da subordinada são
localizadas num intervalo ulterior ao PPT fornecido pela situação
descrita na matriz, estabelecendo-se consistentemente uma relação de
posterioridade no passado. No entanto, e ao contrário do que sucede
com o Condicional, a construção ir no Imperfeito + Ininitivo pode
veicular informação puramente temporal de futuridade no passado, não
requerendo a presença, implícita ou explícita, de uma oração condicional
para a sua plena interpretabilidade. Não queremos com isso airmar,
contudo, que a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo não possa estar
envolvida em interpretações de natureza modal, o que, aliás, sucede com
alguma frequência, mas simplesmente que a modalidade parece não estar
746
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
intrinsecamente associada às leituras que essa forma desencadeia no
contexto de completivas introduzidas por verbos como dizer ou airmar.
Por outro lado, as condições em que ir no Imperfeito + Ininitivo
envolve valores modais diferem substancialmente daquelas que tivemos
oportunidade de destacar para o Condicional. Em particular, como (55)
e (56) demonstram, ir no Imperfeito + Ininitivo entra essencialmente
em conigurações que exprimem contrafactualidade, semelhantes às que
Martín (2008) reconhece para a construção equivalente do Espanhol:
(55)
O João disse que ia comprar um BMW, mas não teve dinheiro
suiciente para o fazer. (e1 < e2)
(56)
O ministro airmou que ia aumentar os impostos mas desistiu
por causa das manifestações. (e1 < e2)
É importante sublinhar que, nessas frases, a relação temporal de
posterioridade no passado parece estar plenamente preservada (i.e., por
exemplo, “[o João] comprar um BMW” é necessariamente concebido
como posterior a “O João dizer”). Na verdade, a única particularidade
que as distingue relaciona-se ao fato de que a proposição representada
na subordinada não se atualiza no designado mundo real ou w0, sendo,
em vez disso, avaliada em relação a um mundo possível alternativo.25
Um último argumento a favor da ideia de que a estrutura ir
no Imperfeito + Ininitivo, no contexto de completivas introduzidas
por verbos temporalmente neutros, preserva o seu signiicado básico
de posterioridade no passado diz respeito ao fato de essa forma,
contrariamente ao que sucede, por exemplo, com o Condicional, não
tolerar interpretações evidenciais, reportivas ou de “incerteza”, na medida
em que as referidas leituras favoreceriam, tipicamente, uma relação
de sobreposição ao PPT passado. Observem-se os seguintes exemplos
ilustrativos:
25
(57)
Os pastores disseram que os lobos iam estar na aldeia.
(* e1 o e2)
(58)
Os jornalistas airmaram que o ministro ia possuir dinheiro no
estrangeiro. (* e1 o e2)
Para uma discussão um pouco mais aprofundada sobre essa questão, ver Cunha (2015).
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
747
A serem interpretáveis, frases como (57) e (58) apenas poderão
receber leituras de posterioridade no passado, i.e., por exemplo, em
relação a (57), uma interpretação em que a permanência dos lobos na
aldeia é inteiramente posterior ao intervalo em que ocorre a airmação
produzida pelos pastores.
Em suma, é possível concluir que os dados referentes ao
comportamento do Imperfeito, do Condicional e da estrutura ir no
Imperfeito + Ininitivo no contexto de verbos introdutores de completivas
relativamente neutros, em termos de localização temporal, como dizer
ou airmar, sugerem a preservação de uma grande parte das propriedades
semânticas básicas de cada um desses tempos gramaticais. Nesse sentido,
as conigurações com o Imperfeito revelam uma tendência notória para
a sobreposição no passado, sendo as leituras futurativas igualmente
possíveis, embora sob certas condições especíicas; o Condicional
está essencialmente envolvido em interpretações de cariz modal, seja
pela associação a orações de tipo condicional, seja pela expressão
da evidencialidade ou da possibilidade; inalmente, a estrutura ir no
Imperfeito + Ininitivo exprime consistentemente a posterioridade em
relação a um PPT passado, mesmo que esta se encontre articulada com
valores modais como o de contrafactualidade.
3.2 Verbos orientados para o futuro: prometer e decidir
Verbos como prometer ou decidir diferem consideravelmente
de dizer ou de afirmar na medida em que impõem interpretações
futurativas às situações que ocorrem nas suas subordinadas. Por outras
palavras, e tal como, de resto, já foi observado em Cunha e Silvano
(2006), esses verbos inluenciam decisivamente a localização temporal
das eventualidades que subcategorizam, conferindo-lhes uma leitura
obrigatória de posterioridade.
Não surpreende, por isso mesmo, que interpretações que não
contemplem, de forma clara, uma relação de posterioridade sejam
completamente impossíveis com verbos como prometer ou decidir, tal
como os seguintes exemplos nos comprovam:
(59)
* O João prometeu que telefonou / tinha telefonado à Maria.
(anterioridade)
(60)
* O João prometeu que estava a telefonar à Maria. (sobreposição)
748
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
(61)
O João prometeu que ia / vai telefonar à Maria. (posterioridade)
(62)
* A mãe decidiu que a Rita estudou / tinha estudado japonês.
(anterioridade)
(63)
* A mãe decidiu que a Rita estava a estudar japonês.
(sobreposição)
(64)
A mãe decidiu que a Rita ia / vai estudar japonês. (posterioridade)
Uma consequência previsível dessa caracterização sugere
que as formas do Imperfeito, do Condicional e de ir no Imperfeito +
Ininitivo, quando combinadas com verbos como prometer ou decidir,
apenas possam ser licenciadas em contextos em que se veriica uma
interpretação de posterioridade no passado. Vejamos se essa predição
se conirma efetivamente.
Começando pelo Imperfeito, observamos que, quando, na
subordinada de verbos como prometer ou decidir, estão em causa
predicações de cariz eventivo, uma leitura de posterioridade no passado
é facilmente obtida (cf. (65)-(66)), sendo, de resto, a única alternativa
viabilizada:
(65)
O ministro prometeu que falava com os jornalistas. (e1 < e 2)
(66)
Os bombeiros decidiram que abandonavam o local. (e1 < e 2)
Pelo contrário, os estativos no Imperfeito parecem ocasionar
anomalia semântica quando combinados com verbos como prometer ou
decidir, tal como notado por Oliveira e Duarte (2012). Esse resultado
deve-se provavelmente ao fato de que, com estados, a leitura de
sobreposição no passado é praticamente obrigatória, o que entra em
conlito com as propriedades semânticas que caracterizam os verbos
introdutores sob análise.26
Reira-se, no entanto, que, com certos tipos de estativos, nomeadamente com os
designados estados faseáveis (cf. CUNHA, 2004/2007), é possível encontrar construções
envolvendo verbos do tipo de prometer ou decidir que se revelam bastante mais
aceitáveis, ostentando uma interpretação prospectiva, como ilustrado em (i) e (ii). Por
vezes, a aceitabilidade destas frases melhora consideravelmente se a elas for associado
um adverbial temporal prospectivo.
26
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
(67)
* A Joana prometeu que era médica.
(68)
* A Maria decidiu que estava grávida.
749
Tomando em consideração que o Condicional, por si só, é capaz
de desencadear uma localização de posterioridade em relação a um
PPT passado, não surpreende que ele ocorra livremente no contexto
de subordinadas introduzidas por verbos orientados para o futuro, do
gênero de prometer ou de decidir, independentemente da classe aspectual
das predicações envolvidas (cf. (69)-(70) com eventos e (71)-(72) com
estados), embora, na maioria das vezes, e tal como observamos para as
completivas com dizer e airmar, surja associado a uma oração de tipo
condicional com valor claramente modal.
(69)
O ministro prometeu que falaria com os jornalistas (se a situação
política assim o exigisse). (e1 < e2)
(70)
Os bombeiros decidiram que abandonariam o local (se a sua
segurança estivesse posta em causa). (e1 < e2)
(71)
A Joana prometeu que seria médica (se esse fosse o desejo dos
seus pais). (e1 < e2)
(72)
O João decidiu que viveria em Paris (se fosse obrigado a
emigrar). (e1 < e2)
Em qualquer dos exemplos apresentados anteriormente, a situação
associada ao verbo matriz, que se constitui como o PPT relevante, é
tomada como ocorrendo num intervalo anterior ao da eventualidade
representada na subordinada, independentemente de esta vir ou não a ser
realizada no mundo de referência, o que signiica, em última instância,
que estamos perante casos de posterioridade no passado.
(i) ? A Maria prometeu que era simpática com os colegas (na festa que
vai dar amanhã).
(ii) ? O João decidiu que vivia em Paris.
Dado que, no presente texto, não nos é possível debater a questão da faseabilidade em
toda a sua extensão, não nos alongaremos mais na discussão desses exemplos, airmando
apenas que a subclasse de estativos em apreço manifesta um comportamento muito
próximo do que caracteriza os eventos.
750
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
Leituras evidenciais ou de possibilidade que, de alguma forma,
envolvam a sobreposição da situação da subordinada ao PPT fornecido
pela frase matriz são, no caso de verbos como prometer ou decidir,
completamente descartadas, mesmo que se revelem perfeitamente
compatíveis com as propriedades semânticas do Condicional, como já
observamos anteriormente. Uma restrição desse tipo deve-se, naturalmente,
aos pré-requisitos temporais associados a esses tipos de verbos, que
impõem uma localização futurativa às predicações com que se combinam.
Tal como seria de prever, a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo
parece ser aquela que melhor se conjuga com as propriedades semânticas
de verbos como prometer ou decidir, uma vez que o valor temporal de
posterioridade no passado é o seu traço distintivo mais relevante. Os
exemplos que se seguem conirmam essa ideia:
(73)
O ministro prometeu que ia falar com os jornalistas. (e1 < e2)
(74)
Os bombeiros decidiram que iam abandonar o local. (e1 < e2)
(75)
A Joana prometeu que ia ser médica. (e1 < e2)
(76)
A Maria decidiu que ia estar grávida. (e1 < e2)
Em configurações como essas, parece existir uma plena
compatibilidade entre os pré-requisitos impostos pelo verbo matriz e
as propriedades semânticas básicas que caracterizam a estrutura ir no
Imperfeito + Ininitivo, na medida em que ambos convergem para uma
interpretação de posterioridade num domínio temporal passado.
Dados como os discutidos na presente subsecção deste trabalho
sustentam a ideia de que, apesar de se mostrar muito relevante, não é
unicamente a contribuição dos tempos gramaticais que determina as
relações temporais na computação inal das orações completivas. Nesse
caso concreto, o papel desempenhado pelo verbo introdutor é de inegável
importância e revela-se muitas vezes fundamental para o licenciamento
e para a interpretação das conigurações em apreço.
3.3 Verbos factivos: constatar e descobrir
Verbos introdutores do gênero de constatar ou de descobrir
manifestam a propriedade de requererem a veracidade da situação
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
751
com que se combinam no mundo real, i.e., possibilitam assumir que as
proposições no seu escopo são verdadeiras em w0, o mundo de referência.
Embora se mostrem perfeitamente compatíveis com todas as
possibilidades de ordenação temporal que se possam estabelecer entre
os intervalos relevantes, verbos factivos como constatar ou descobrir
favorecem tipicamente relações de anterioridade ou de sobreposição da
situação subordinada face ao tempo do verbo introdutor, na medida em
que, desse modo, a atualização da eventualidade em questão no mundo
de referência se encontra, à partida, assegurada. A projeção de situações
para o futuro só parece ser admissível se existir forte evidência de que
elas terão efetivamente lugar no mundo real.
Dadas as observações que acabamos de explicitar, colocaremos
aqui a hipótese de que, com verbos factivos do gênero de constatar ou
de descobrir, as leituras futurativas se revelam as menos representativas,
sendo evitadas sempre que possível. Vejamos se uma tal predição se
conirma no que se refere à interpretação dos tempos gramaticais que
analisamos ao longo do presente trabalho.
Começando pelo Imperfeito, veriicamos que, no contexto de
predicações estativas, prevalece uma leitura de sobreposição no passado,
como os exemplos seguintes nos conirmam:
(77)
O professor constatou que os alunos eram barulhentos.
(e1 o e2)
(78)
Os jornalistas descobriram que o ministro estava no hotel.
(e1 o e2)
Quando, na subordinada, estão envolvidos eventos, o Imperfeito
continua, ainda assim, a favorecer uma leitura de sobreposição no passado.
Nessas circunstâncias, ou são conferidas interpretações semiprogressivas
(cf. (79)-(80), ou são viabilizadas leituras habituais (cf. (81)-(82) para
as predicações em questão.
(79)
A Maria constatou que chovia (= estava a chover). (e1 o e2)
(80)
A polícia descobriu que os bandidos assaltavam (= estavam a
assaltar) o banco. (e1 o e2)
(81)
Os pastores constataram que os lobos lhes comiam as ovelhas
(sempre que entravam na aldeia). (e1 o e2)
752
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
(82)
A polícia descobriu que os bandidos traficavam droga
(habitualmente). (e1 o e2)
Tanto nos casos em que o Imperfeito exprime semiprogressividade
quanto naqueles em que expressa quantificação sobre situações
ou habitualidade, a sobreposição da eventualidade na subordinada
relativamente ao PPT conferido pela frase matriz parece ser a única
conexão temporal viabilizada (e.g. em (80) a descoberta por parte da
polícia é perspectivada como sendo simultânea com respeito ao assalto e,
em (82), encontramo-nos perante um caso em que a sobreposição resulta
do estabelecimento de uma relação de inclusão: em particular, a situação de
“os bandidos traicarem droga” parece incluir o momento da descoberta).
As interpretações futurativas do Imperfeito com verbos como
constatar ou descobrir revelam-se normalmente bastante problemáticas,
mesmo quando estão envolvidos adverbiais orientados para o futuro.
Assim, e ao contrário do que normalmente sucede com os verbos dicendi
descritos em 3.1, os verbos factivos manifestam alguma diiculdade em
combinar-se com subordinadas no Imperfeito que contenham expressões
que inequivocamente remetam para a posterioridade, tal como os
exemplos que se seguem nos conirmam:
(83)
?? A Maria constatou que chovia amanhã / daí a dois dias.
(84)
?? A polícia descobriu que os bandidos traicavam droga
amanhã / daí a dois dias.27
No que diz respeito ao Condicional, a sua interpretação puramente
temporal de posterioridade em relação a um PPT passado revela-se – pelo
menos para alguns falantes do PE – igualmente problemática no contexto
de verbos factivos como constatar ou descobrir, independentemente da
classe aspectual das predicações envolvidas:
Sublinhe-se, no entanto, que, mesmo no contexto de verbos factivos como constatar
e descobrir, uma interpretação futurativa do Imperfeito, quando acompanhado de
adverbiais temporais que expressam posterioridade, é, por vezes, perfeitamente
aceitável, sobretudo se o contexto mostra inequivocamente a veracidade da subordinada
no mundo de referência, como ilustrado em (i): A Maria constatou que a nova loja abria
amanhã / daí a dois dias. (e1 < e2)
27
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
753
(85)
?? A Maria constatou que choveria.
(86)
?? O Pedro descobriu que o vizinho compraria uma casa nova.
(87)
?? A Rita constatou que estaria grávida.
(88)
?? Os policiais descobriram que o assaltante seria japonês.28
Todavia, as subordinadas envolvendo o Condicional no contexto
de verbos factivos melhoram signiicativamente se, para além do seu
valor temporal, essa forma verbal manifestar concomitantemente algum
tipo de modalidade associada, particularmente se for introduzida uma
oração condicional, como ilustrado nos seguintes exemplos:
(89)
O polícia constatou que os bandidos fugiriam da cadeia se a
vigilância não fosse reforçada.
(90)
O Pedro descobriu que o vizinho compraria uma casa nova se
ganhasse a lotaria.
Se, nesses casos, a veracidade da proposição na subordinada não
está assegurada em w0, como seria de esperar no contexto de verbos
factivos, ela parece, no entanto, ser encarada como uma inevitabilidade
logo que as condições descritas na prótase da condicional se encontrem
plenamente satisfeitas, o que parece ser suiciente para o licenciamento
deste tipo de conigurações.
É curioso observar que, para alguns falantes, frases como essas se revelam
perfeitamente aceitáveis. Por exemplo, um revisor anônimo deste trabalho airma que
não encontra qualquer diiculdade em interpretar as conigurações em (85)-(88) como
casos de posterioridade da situação na subordinada face ao tempo estabelecido pela
matriz. As oscilações de interpretabilidade observadas no que diz respeito a esse gênero
de estruturas poderão constituir um argumento interessante em favor da ideia de que
o Condicional se constitui, de fato, como um caso de fronteira entre a temporalidade
e a modalidade. Para os falantes que aceitam frases como (83)-(88) com valor de
posterioridade, o que parece preponderar é o valor temporal de “futuro do passado”
associado ao Condicional; para os falantes que as consideram algo anômalas, pelo
contrário, o Condicional estará mostrando a perda acentuada das suas propriedades
temporais, o que teria como consequência a prevalência das características lexicais do
verbo matriz sobre a sua capacidade de induzir leituras futurativas.
28
754
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
Outros usos modais do Condicional no contexto sob análise
parecem ser mais problemáticos. É o que sucede com o Condicional com
valor evidencial ou potencial, na medida em que, exprimindo um certo
grau de incerteza, parece entrar em contradição ou em conlito com os prérequisitos que lexicalmente caracterizam os verbos factivos (cf. (91)-(92)):
(91)
# A mãe constatou que a Maria estaria grávida. (e1 o e2)
(92)
# Os jornalistas descobriram que o ministro estaria no gabinete.
(e1 o e2)
Finalmente, será interessante referir que, em circunstâncias
adequadas, o Condicional em proposições subcategorizadas por verbos
como constatar ou descobrir pode receber uma interpretação que
exprime a designada modalidade disposicional ou de capacidade (cf. e.g.
PORTNER, 2009). Considerem-se os seguintes exemplos:
(93)
O professor constatou que a Maria seria uma excelente cantora.
(94)
O treinador descobriu que o Tiago jogaria tênis.
Nas suas interpretações mais naturais, frases como essas, embora
não assegurem, de forma direta, a veracidade das proposições envolvidas
nas respectivas subordinadas, validam em w0 as condições necessárias e
suicientes para que tal possa vir a suceder no futuro. Por outras palavras,
em (93), por exemplo, o professor veriica que, no mundo de referência,
a Maria tem reunidas todas as capacidades, características e disposições
para que, num intervalo posterior ao PPT relevante, venha a ser uma
excelente cantora.
Em síntese, diremos que o Condicional, quando combinado
com verbos factivos do tipo de constatar ou de descobrir, veicula
preferencialmente valores de natureza modal que, no entanto, terão
de ser, de alguma forma, compatíveis com os requisitos de veracidade
associados aos verbos introdutores com que coocorre.
Observe-se, inalmente, o comportamento da estrutura ir no
Imperfeito + Ininitivo no contexto de verbos factivos. Tendo em conta
que essa forma expressa essencialmente posterioridade no passado,
decorrendo os valores modais que por vezes manifesta do seu peril
temporal básico, não surpreende que se revele capaz de estabelecer,
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
755
também nesses casos, uma relação de futuridade face ao PPT fornecido
pelo verbo matriz, estejam envolvidas predicações de natureza eventiva
ou estativa:
(95)
Os jornalistas constataram que o ministro ia discursar.
(e1 < e2)
(96)
A polícia descobriu que os bandidos iam assaltar o banco.
(e1 < e2)
(97)
O Rui constatou que o vizinho ia viver em Paris. (e1 < e2)
(98)
Os jornalistas descobriram que o ministro ia estar no hotel.
(e1 < e2)
Naturalmente, tendo em conta que frases como essas descrevem
situações projetadas para o futuro, não será possível, à partida, garantir
a veracidade da sua realização no mundo de referência. No entanto, o
valor factivo associado a verbos como constatar ou descobrir faz supor
que uma interpretação verídica para essas proposições é a preferencial,
pelo menos na perspectiva dos sujeitos da oração matriz, i.e., o uso dos
verbos em questão implica a consideração de fortes indícios conducentes
à realização das eventualidades em w0.
Assim, em (96), por exemplo, mesmo que os bandidos nunca
cheguem a assaltar efetivamente o banco em w0, essa situação é encarada
como o resultado previsível dado o decurso normal dos acontecimentos
no momento de avaliação, ou seja, é concebida como o inertia future
preferencial no contexto em questão (cf. DOWTY, 1979).
Em síntese, diremos que verbos factivos do gênero de constatar
ou de descobrir, na medida em que favorecem uma leitura verídica das
situações nas subordinadas com que se combinam, evitam interpretações
em que a veracidade dessas eventualidades possa ser posta em causa.
Nessa medida, com o Imperfeito, estabelecem leituras de sobreposição
no passado, em que, tipicamente, a verdade das situações se encontra
desde logo assegurada; com o Condicional, por seu lado, selecionam os
usos modais que, de alguma forma, se mostrem mais compatíveis com
a realização das proposições em w0 e, inalmente, com a construção
ir no Imperfeito + Ininitivo, admitem interpretações temporais de
posterioridade no passado, que, no entanto, se devem constituir como
inertia futures preferenciais.
756
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
3.4 Verbos intensionais: sonhar, imaginar e acreditar
Um último grupo de verbos introdutores de completivas que
analisaremos no presente trabalho é constituído pelos designados verbos
iccionais (iction verbs; cf. FARKAS, 1992, 2003), como sonhar ou
imaginar, e por verbos de atitude proposicional não factivos, como
acreditar (cf. HEIM, 1992; FARKAS, 2003). Em comum, essas formas
revelam a característica de veicular, em certa medida, algum tipo de
intensionalidade, i.e., trata-se de verbos que favorecem leituras não
verídicas das proposições representadas no seu escopo. Nesse sentido,
vamos designá-los aqui, ainda que de um modo um pouco informal,
como verbos intensionais.
A principal questão que aqui nos vai ocupar é a de saber se o fato
de as proposições encaixadas não poderem ser tipicamente encaradas
como verdadeiras no mundo de referência inluencia, de algum modo,
as relações temporais que se estabelecem entre principal e subordinada
no contexto deste gênero de completivas.
No que toca ao uso do Imperfeito, observamos que uma relação
de sobreposição no passado parece ser preferencial, não só quando estão
envolvidas predicações estativas (cf. (99)-(100)), mas também quando
ocorrem eventos (cf. (101)-(102)):
(99)
O João imaginou que tinha um cavalo branco. (e1 o e2)
(100) A Rita acreditou que estava grávida. (e1 o e2)
(101) A Maria sonhou que corria pela loresta. (e1 o e2)
(102) O Rui imaginou que pilotava um avião. (e1 o e2)29
A relação de sobreposição no passado ostentada pelos eventos em frases como
(101) ou (102) sugere que, mais uma vez, o Imperfeito atua aqui como um verdadeiro
estativizador, nomeadamente dando origem a leituras de tipo semiprogressivo.
No entanto, em contextos favoráveis, podemos encontrar Imperfeitos com leituras
quantiicacionais / habituais (cf. (i)) ou mesmo disposicionais (cf. (ii)), mantendo-se
sempre, porém, inalterada a relação preferencial de sobreposição no passado:
(i) O Cristiano sonhou que jogava futebol todos os dias. (e1 o e2)
(ii) A Maria acreditou que cantava ópera (= era capaz de cantar ópera).
(e1 o e2)
29
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
757
Embora, em termos gerais, as proposições da subordinada não
sejam verdadeiras no mundo de referência, revelam-se, não obstante,
cotemporais em relação às situações descritas na oração principal, sendo
avaliadas, nesses contextos, não relativamente ao mundo real, mas a um
mundo possível alternativo a w0.
Se procedermos à introdução de adverbiais temporais orientados
para o futuro na oração subordinada, observamos que, com predicações
estativas, o resultado é, quase sempre, anomalia semântica, o que indicia
que, com essa classe aspectual, a leitura de sobreposição no passado, no
contexto de verbos intensionais, é praticamente obrigatória.
(103) * O João sonhou que era alto amanhã / daí a dois dias.
(104) * A Maria acreditou que gostava de linguística amanhã / daí a
dois dias.
Os eventos, por sua vez, manifestam uma maior variabilidade de
comportamentos: em alguns casos, as leituras futurativas do Imperfeito
parecem perfeitamente aceitáveis (cf. (105)-(106)), ao passo que, noutros,
a sua admissibilidade suscita algumas dúvidas (cf. (107)-(108)):
(105) O João imaginou que comprava um BMW amanhã / daí a dois
dias. (e1 < e2)
(106) O jornalista acreditou que entrevistava o presidente amanhã /
daí a dois dias. (e1 < e2)
(107) ?? A Maria sonhou que passeava no jardim amanhã / daí a dois
dias.
(108) ?? O jornalista acreditou que escrevia um artigo amanhã / daí
a dois dias.
A ocorrência de formas do Condicional nas subordinadas de
completivas introduzidas por verbos como sonhar, imaginar ou acreditar
dá origem a um conjunto bastante diversiicado de interpretações.
Em primeiro lugar, podemos obter leituras futurativas, em que o
Condicional localiza uma situação num intervalo subsequente ao Ponto
de Perspectiva Temporal passado fornecido pelo verbo matriz, tal como
ilustrado nos exemplos que se seguem:
758
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
(109) O Rui acreditou que estaria no Brasil no próximo ano.
(e1 < e2)
(110) O João imaginou que encontraria um poço de petróleo no seu
quintal. (e1 < e2)
É, no entanto, importante sublinhar que essas leituras
eminentemente temporais do Condicional são frequentemente
acompanhadas por certas aceções com valor modal, particularmente
relacionadas com a expressão da vontade, do desejo ou da predição.
Uma segunda interpretação que poderá ser conferida ao
Condicional nesse gênero de contextos tem relação com a expressão
de uma proposição hipotética decorrente da introdução de uma oração
condicional na estrutura, possibilidade que, como já vimos, é partilhada
por outros tipos de completivas (cf. (111)-(112)).
(111) O Rui imaginou que voaria se tivesse asas.
(112) O candidato acreditou que seria eleito presidente se passasse
à segunda volta das eleições.
Uma outra interpretação do Condicional que emerge
frequentemente nesse tipo de contextos, sobretudo quando o verbo
matriz selecionado é acreditar, tem a ver com a denotação de capacidades
ou de disposições gerais associadas às entidades envolvidas (cf.
PORTNER, 2009)). Nessa medida, em frases como as que se seguem, o
Condicional manifesta essencialmente um valor modal que se traduz na
atribuição, num intervalo futuro, de capacidades especíicas ao sujeito
da subordinada.
(113) O Cristiano acreditou que jogaria futebol (= seria jogador de
futebol).
(114) O professor de desenho acreditou que a Ana pintaria belos
quadros (= teria, no futuro, a capacidade de pintar belos
quadros).
As proposições “jogar futebol”, em (113), e “pintar belos
quadros”, em (114), não são aqui preferencialmente interpretadas como
eventos singulares localizados num intervalo posterior ao PPT relevante,
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
759
mas antes como airmações de âmbito geral acerca das capacidades ou
das disposições futuras das entidades envolvidas, tal como as paráfrases
apresentadas deixam bem claro.
Finalmente, o Condicional pode, em circunstâncias adequadas,
favorecer uma relação de sobreposição no passado entre a subordinada e
a matriz no contexto de completivas introduzidas por verbos intensionais.
É o que constatamos nos exemplos que se seguem:
(115) O Rui imaginou que a Rita viveria em Paris (nessa altura /
nesse momento). (e1 o e2)
(116) Os pastores acreditaram que os lobos estariam na aldeia (e por
isso fecharam os seus rebanhos no redil). (e1 o e2)
Em exemplos como os que acabamos de apresentar, a relação de
cotemporalidade entre as eventualidades representadas na matriz e na
subordinada parece perfeitamente natural, o que pode ser comprovado
pela compatibilidade com adverbiais temporais do gênero de “nessa
altura” ou de “nesse momento” com uma leitura anafórica (cf. (115)).
Estaremos, pois, perante casos de um Condicional de probabilidade
(cf. MARTíNEZ-ATIENZA, 2012) ou de conjetura (cf. VATRICAN,
2014), tal como discutido na seção 2.2.
Com efeito, nas suas leituras mais naturais, frases como (115) e
(116) parecem expressar situações que possivelmente estão a decorrer
no intervalo fornecido pelo PPT mas cujo valor de verdade não foi ainda
assegurado (e.g. é possível que a Rita esteja a viver em Paris no intervalo
de tempo em que o Rui o imagina ou é possível que os lobos estejam
na aldeia no período de tempo em que decorre a crença dos pastores,
mas essas proposições não são perspectivadas como verdadeiras ou
devidamente conirmadas em w0). Sob esse ponto de vista, portanto, o
Condicional veicula, em exemplos como os apresentados anteriormente,
um valor estritamente modal, funcionando como uma espécie de operador
epistémico de possibilidade.
Quanto à estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo, quando surge
em subordinadas de completivas introduzidas por verbos como sonhar,
imaginar ou acreditar, parece veicular preferencialmente informação
temporal de posterioridade em relação ao PPT passado fornecido pelo
verbo matriz, independentemente de estarem em causa estados ou
eventos, como ilustrado nos exemplos que se seguem:
760
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
(117) O Rui imaginou que ia viver em Paris. (e1 < e2)
(118) Os jornalistas acreditaram que o ministro ia estar no hotel
(daí a duas horas). (e1 < e2)
(119) A Maria sonhou que ia partir de férias. (e1 < e2)
(120) Os policiais acreditaram que iam prender o assaltante.
(e1 < e2)
Tendo em consideração que a estrutura ir no Imperfeito
+ Infinitivo expressa consistentemente uma relação temporal de
posterioridade no passado, não surpreende que a ocorrência de leituras
potenciais ou conjeturais, perfeitamente naturais com o Condicional,
seja, no contexto em apreço, praticamente impossível, na medida em
que, como já referimos anteriormente, supõe a sobreposição entre os
intervalos em que decorrem as situações descritas.
(121) Os jornalistas acreditaram que o ministro ia estar no hotel
(* nessa altura / * nesse momento).30 (e1 < e2)
O fato de a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo não poder
comparecer em conigurações que expressem conjetura ou evidencialidade
não signiica, no entanto, que, com verbos como sonhar, imaginar ou
acreditar, não possa, igualmente, veicular valores de cariz modal. Na
realidade, desde que a condição de posterioridade em relação ao PPT
passado seja satisfeita, são viabilizadas diversas interpretações, incluindo
casos de contrafactualidade como os ilustrados nos exemplos que se
seguem:
(122) A Maria imaginou que ia ser médica, mas acabou por estudar
direito.
(123) Os polícias acreditaram que iam prender o assaltante, mas ele
escapou.
No que se refere a esse gênero de exemplos, os casos de anomalia semântica limitam-se
unicamente a estruturas em que se veriica cotemporalidade, i.e., à interpretação em que
os adverbiais “nessa altura” ou “nesse momento” estabelecem uma relação anafórica de
retomada do tempo fornecido pela eventualidade na frase matriz; quaisquer outras leituras
possíveis desses adverbiais serão irrelevantes para a discussão que aqui nos ocupa.
30
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
761
Em suma: dado que verbos intensionais como sonhar, imaginar
ou acreditar projetam tipicamente as proposições das subordinadas com
que coocorrem num mundo possível diferente do mundo de referência,
eles favorecem leituras modais das predicações no seu escopo. Em
termos estritamente temporais, esses verbos comportam-se de forma
bastante “neutra”: o Imperfeito surge tendencialmente em estruturas
de sobreposição ao PPT passado disponibilizado pela frase matriz,
embora, sob certas condições, compareça igualmente em conigurações
futurativas, ao passo que o Condicional e a estrutura ir no Imperfeito +
Ininitivo dão lugar a posterioridade no passado. Sublinhe-se, no entanto,
que o Condicional está envolvido maioritariamente em interpretações
de cariz modal, sejam elas de desejo, de possibilidade, de hipótese, de
conjetura, de potencialidade ou mesmo de expressão de capacidades
ou disposições gerais, leituras que, em muitas ocasiões, se sobrepõem
à componente temporal que caracteriza a forma verbal em causa, o que
se traduz, por exemplo, em casos evidentes de sobreposição entre as
situações envolvidas. A construção ir no Imperfeito + Ininitivo, por seu
lado, conquanto sempre sujeita à restrição temporal de futuridade, não
deixa de veicular informação modal, particularmente no que se refere à
expressão da contrafactualidade.
4 Conclusões
Foi possível observar, ao longo do presente artigo, que a expressão
da futuridade no passado em PE, no contexto de completivas de verbo,
depende de um vasto conjunto de fatores que interagem dinamicamente
entre si.
Nessa medida, podemos destacar (i) a inluência do verbo matriz
– como tivemos oportunidade de constatar, certos verbos do gênero de
prometer ou de decidir requerem obrigatoriamente a posterioridade
da situação com que se combinam; (ii) o papel de dados adverbiais
temporais orientados para o futuro ou de expressões equivalentes – no
caso do Imperfeito, a presença de elementos desse tipo pode ser mesmo
decisiva para a obtenção de leituras de cariz futurativo; (iii) o peril
aspectual das eventualidades representadas na oração subordinada – com
o Imperfeito, as interpretações futurativas são tendencialmente obtidas
quando estão envolvidos eventos, mas rejeitadas logo que surgem
estativos; com o Condicional, as leituras modais de sobreposição no
762
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
passado ocorrem preferencialmente com estados, mas não com eventos;
(iv) a natureza dos tempos gramaticais selecionados – apenas a estrutura
ir no Imperfeito + Ininitivo veicula clara e consistentemente uma relação
de posterioridade no passado, ao passo que o Condicional possibilita,
em determinados contextos modais, a sobreposição entre as situações,
e o Imperfeito é visivelmente um tempo que favorece a simultaneidade
entre as eventualidades descritas, estando as suas leituras futurativas
sujeitas a diversas restrições de caráter semântico.
Agradecimentos
Agradeço à Fundação para a Ciência e a Tecnologia de Portugal,
pelo apoio inanceiro ao projeto de que este artigo faz parte; os meus
agradecimentos estendem-se igualmente ao Centro de Linguística da
Universidade do Porto, à equipe editorial e aos revisores anônimos da
RELIN, bem como ao grupo de semântica do CLUP, pelas discussões
e sugestões que tanto contribuíram para a versão inal deste trabalho.
Trabalho inanciado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia no
âmbito do QREN – POPH (Programa Operacional Potencial Humano) –
Tipologia 4.1 – Formação Avançada, comparticipado pelo Fundo Social
Europeu e por fundos nacionais do MEC
Referências
ABOUDA, L. Les emplois journalistique, polémique, et atténuatif du
conditionnel. Un traitement unitaire. In: DENDALE, P.; TASMOWSKI,
L. (Ed.). Le conditionnel en français. Metz: Université de Metz, 2001.
p. 277-294.
ANAND, P.; HACQUARD, V. The role of the imperfect in Romance
counterfactuals. In: SINN UND BEDEUTUNG, 14., 2009. Wien.
Proceedings... Wien: Universität Wien, 2009. p. 37-50.
ARCHE, M. J. The construction of viewpoint aspect: the imperfective
revisited. Natural Language & Linguistic Theory, Springer Link, v. 32,
n. 3, p. 791-831, 2014.
ARREGUI, A. M.; RIVERO, L.; SALANOVA, A. Cross-linguistic
variation in imperfectivity. Natural Language & Linguistic Theory,
Springer Link, v. 32, n. 2, p. 307-362, 2014.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
763
BERTINETTO, P. M.; LENCI, A. Pluractionality, habituality and gnomic
imperfectivity. In: BINNICK, R. (Ed.). Oxford Handbook of Tense and
Aspect. Oxford: Oxford University Press, 2012. p. 852-880.
BERTHONNEAU, A.-M.; KLEIBER, G. Pour une nouvelle approche de
l’imparfait: l’imparfait, un temps anaphorique méronomique. Langages,
Persée, v. 27, n. 112, p. 55-73, 1993. Doi: https://doi.org/10.3406/
lgge.1993.1661.
BURGOS, J. M. Estatividad y aspecto gramatical. 2013. 428f. Dissertação
(Doutorado) – Universität Regensburg, Regensburg, 2013.
CHIERCHIA, G. Individual-level predicates as inherent generics. In:
CARLSON, G.; PELLETIER, F. J. (Ed.). The Generic Book. Chicago:
the University of Chicago Press, 1995. p. 176-223.
CIPRIA, A.; ROBERTS, C. Spanish imperfecto and pretérito: truth
conditions and aktionsart effects in a Situation Semantics. Natural
Language Semantics, Springer Link, v. 8, n. 4, p. 297-347, 2000.
CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo.
Lisboa: Edições Sá da Costa, 1984.
CUNHA, L. F. As construções com progressivo no português: uma
abordagem semântica. 1998. 168f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, Porto, 1998.
CUNHA, L. F. Semântica das predicações estativas: para uma
caracterização aspectual dos estados. 2004.Tese (Doutorado) – Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, 2004. [Publicada Munique: Lincom
Europa GmbH, 2007.]
CUNHA, L. F. Iteração, frequência e habitualidadde: algumas relexões.
In: CONGRÉS DE LINGüíSTICA GENERAL, VII., 2006. Actas...
Barcelona: Departament de Lingüística General, Universidade de
Barcelona, 2006. Disponível em CD-Rom. In: SILVANO, P.; LEAL,
A. (Coord.). Estudos de Semântica. Porto: Faculdade de Letras da
Universidade do Porto / Centro de Linguística da Universidade do Porto,
2015. p. 211-231.
CUNHA, L. F. Algumas considerações em torno das interpretações da
construção ir + Ininitivo com Imperfeito. Diacrítica – Revista do Centro
de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Série Ciências da
Linguagem, Braga, v. 29, n. 1, p. 147-170, 2015.
764
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
CUNHA, L. F.; SILVANO, P. A interpretação temporal dos Ininitivos
em orações completivas de verbo. In: OLIVEIRA, F.; BARBOSA, J.
(Org.). Textos Selecionados do XXI Encontro Nacional da Associação
Portuguesa de Linguística. Lisboa: Colibri, 2006. p. 303-314.
DE SWART, H. Aspect shift and coercion. Natural Language and
Linguistic Theory, Springer Link, v. 16, n. 2, p. 347-385, 1998.
DECLERCK, R. Tense in English: its structure and use in discourse.
Londres; Nova York: Routledge, 1991.
DECLERCK, R. The grammar of the English tense system. Berlim:
Mouton de Gruyter, 2006.
DELFITTO, D.; BERTINETTO, P. M. A case study in the interaction of
aspect and actionality: the Imperfect in Italian. In: BERTINETTO, P.M.;
BIANCHI, V.; HIGGINBOTHAM, J.; SQUARTINI, M. (Ed.). Temporal
reference, aspect and actionality. Torino: Rosenberg & Sellier, 1995.
v. 1, p. 125-142.
DENDALE, P. Les problèmes linguistiques du conditionnel français. In:
DENDALE, P.; L. TASMOWSKI, L. (Ed.). Le conditionnel en français.
Metz: Université de Metz, 2001. p. 7-18.
DENDALE, P. Conditionnel, corrélation, incertitude. Quelques rélexions.
In: NORÉN, C.; JONASSON, K.; NOLKE, H.; SVENSSON, M. (Ed.).
Modalité, évidentialité et autres friandises langagières. Mélanges offerts
à Hans Kronning à l’occasion de ses soixante ans. Berna: Peter Lang,
2013. p. 61-79.
DOWTY, D. Word meaning and Montague grammar. Dordrecht: Reidel
Publishing Company, 1979. Doi: https://doi.org/10.1007/978-94-0099473-7.
FARKAS, D. On the semantics of subjunctive complements. In:
HIRSCHBüHLER, P.; KOERNER, K. (Ed.). Romance Languages and
Modern Linguistic Theory. Amsterdam: John Benjamins, 1992. p. 69-105.
Doi: https://doi.org/10.1075/cilt.91.07far.
FARKAS, D. Assertion, belief and mood choice. In: ESSLLI –
CONDITIONAL AND UNCONDITIONAL MODALITY WORKSHOP,
2003. Viena. Disponível em: <https://people.ucsc.edu/~farkas/papers/
mood.pdf>. Acesso em: 2 jul. 2017. Comunicação apresentada.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
765
FERREIRA, I. O Tempo nas construções condicionais. 1996. Dissertação
(Mestrado) – Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 1996.
FERREIRA, M. Imperfectives and plurality. In: SEMANTICS AND
LINGUISTIC THEORY, XIV., 2004. Ithaca. Proceedings... New York:
Cornell University Press, 2004. p. 74-91. Doi: https://doi.org/10.3765/
salt.v14i0.2915.
GIORGI, A.; PIANESI, F. Tense and Aspect: from semantics to
morphosyntax. Oxford; Nova York: Oxford University Press, 1997.
HEIM, I. Presupposition projection and the semantics of attitude verbs.
Journal of Semantics, Oxford Academic, v. 9, n. 3, p. 183-221, 1992. Doi:
https://doi.org/10.1093/jos/9.3.183.
IPPOLITO, M. Imperfect modality. In: GUÉRON, J.; LECARME, J.
(Ed.). The syntax of time. Cambridge, MA: MIT Press, 2004. p. 359-387.
KAMP, H.; ROHRER, C. Tense in texts. In: BAUERLE, R.; SCHWARZE,
C.; VON STECHOW, A. (Ed.). Meaning, use and interpretation of
language. Berlim: Walter de Gruyter, 1983. p. 250-269. Doi: https://doi.
org/10.1515/9783110852820.250.
KAMP, H.; ROHRER, C.; REYLE, U. From discourse to logic.
Introduction to model-theoretic semantics of natural language, formal
logic and discourse representation theory. Dordrecht: Kluwer Academic
Publishers, 1993.
KLEIN, W. Time in language. Londres: Routledge, 1994.
LENCI, A. The semantic representation of non-quantiicational habituals.
In: BERTINETTO, P. M.; BIANCHI, V.; HIGGINBOTHAM, J.;
SQUARTINI, M. (Ed.). Temporal reference, aspect and actionality:
semantic and syntactic perspectives. Torino: Rosenberg & Sellier, 1995.
v. 1, p. 143-158.
LENCI, A.; BERTINETTO, P. M. Aspects, adverbs, and events:
habituality vs. perfectivity. In: HIGGINBOTHAM, J.; PIANESI, F.;
VARZI, A. C. (Ed.). Speaking of events. Nova York; Oxford: Oxford
University Press, 2000. p. 245-287.
MARTíN, A. B. La perífrasis “ir a + Ininitivo” en el sistema temporal
y aspectual del Español. 2008. Dissertação (Doutorado) – Universidad
Complutense de Madrid, Madrid, 2008.
766
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
MARTíNEZ-ATIENZA, M. Formas verbales en contraste en italiano
y en español: similitudes, diferencias y explicación. RAEL: Revista
Electrónica de Lingüística Aplicada, Dialnet, v. 11, p. 69-86, 2012.
MATOS, S. Aspectos da semântica e pragmática do Imperfeito do
Indicativo. Revista da Faculdade de Letras: Línguas e Literaturas,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Série II, v. 13, p. 435474, 1996.
MOENS, M. Tense, Aspect and temporal reference. 1987. Tese
(Doutorado) – Edinburgh University, Edinburgh, 1987.
MOENS, M; STEEDMAN, M. Temporal ontology and temporal
reference. Computational Linguistics, MIT Press, v. 14, p. 15-28, 1988.
OLIVEIRA, F. Algumas considerações acerca do Pretérito Imperfeito. In:
ENCONTRO DA ASSOCIAçÃO PORTUGUESA DE LINGUíSTICA,
2., 1987. Lisboa. Actas... Lisboa: APL, 1987. p. 78-96.
OLIVEIRA, F. Algumas questões semânticas acerca da sequência
de tempos em Português. Revista da Faculdade de Letras: Línguas e
Literaturas, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Série II,
v. 15, p. 421-436, 1998.
OLIVEIRA, F.; DUARTE, I. M. Le conditionnel et l’imparfait en
Portugais Européen. Faits de Langues, Persée, v. 40, n. 2, p. 53-60, 2012.
OLIVEIRA, F.; LOPES, A. C. M. Tense and aspect in Portuguese.
In: THIEROFF, R. (Ed.). Tense systems in European languages.
Tübingen: Niemeyer, 1995. v. II, p. 95-115. Doi: https://doi.
org/10.1515/9783110958911.95.
PERES, J. A. Towards an integrated view of the expression of time in
Portuguese. Cadernos de Semântica, Lisboa, Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, n. 14, 1993.
PORTNER, P. Modality. Oxford: Oxford University Press, 2009.
RODRIGUES, A. B. Traços de tempo e aspecto e subespecificação
morfológica do auxiliar «ir» em construções no futuro do presente
e no futuro do pretérito. Revista Brasileira Linguística Aplicada,
Belo Horizonte, v. 19, n. 2, p. 215-239, 2011. Doi: https://doi.
org/10.17851/2237-2083.19.2.215-239.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018
767
SILVA, A. A expressão da futuridade na língua falada. 1997. Tese
(Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos
da Linguagem, Campinas, 1997.
SILVANO, P. Sobre a semântica da sequência de tempos em Português
Europeu. Análise das relações temporais em frases complexas com
completivas. 2002. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Minho,
Braga, 2002.
SQUARTINI, M. The internal structure of evidentiality in Romance.
Studies in Language, John Benjamins, v. 25, n. 2, p. 297-334, 2001. Doi:
10.1075/sl.25.2.05squ
TRAVAGLIA, L. C. O discurso no uso do pretérito imperfeito do
indicativo no português. Cadernos de Estudos Lingüísticos, Unicamp,
n. 12, p. 61-98, 1987.
VATRICAN, A. El condicional de cortesía en español: la hipótesis
como forma de atenuación. In: NEBOT, A. C.; RUIZ, M. J. A.; LÓPEZNAVARRA, E. (Org.). Estudios de lingüística: investigaciones, propuestas
y aplicaciones. Valencia: Universitàt de Valencia, 2013. p. 469-480.
VATRICAN, A. Usos y valores modales del condicional en español.
Archivum, University of Liverpool, v. 64, p. 239-273, 2014. Disponível
em: <http://www.unioviedo.net/reunido/index.php/RFF/article/
view/10319>. Acesso em: 2 jul. 2017.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
Análise de textos enciclopédicos da Simple English Wikipedia
e da Wikipedia: algumas discussões para o ensino
de língua inglesa
Analysis of encyclopedic texts from Simple English Wikipedia
and Wikipedia: some discussions for English language teaching
Eduardo Batista da Silva
Universidade Estadual de Goiás, Morrinhos, Goiás / Brasil
eduardo.silva@ueg.br
Resumo: Tomamos como objeto de pesquisa o conteúdo lexical do texto
enciclopédico, mais precisamente o peril lexical de textos presentes em
duas enciclopédias colaborativas: uma destinada a aprendizes de língua
inglesa (Simple English Wikipedia) e outra destinada a um público falante
nativo de língua inglesa (Wikipedia). Nosso objetivo geral é apresentar
o texto enciclopédico como um recurso didático para o enriquecimento
e prática de vocabulário em língua inglesa. Os objetivos especíicos
são os seguintes: 1) proceder uma análise do peril lexical de artigos da
Simple English Wikipedia e da Wikipedia; 2) comparar os artigos nas
duas enciclopédias e 3) checar se os artigos adaptados da enciclopédia
destinada aos aprendizes realmente empregam vocabulário mais
elementar. O embasamento teórico recorre aos estudos de Lexicologia
(NATION, 2001, 2003, 2015) e da Linguística de Córpus (BERBER
SARDINHA, 2004, 2012). Com relação à metodologia, os 35 melhores
artigos da Simple English Wikipedia, na opinião do editor do site, foram
convertidos no formato texto simples e posteriormente analisados pelo
software VocabProile, versão 4, um programa on-line que divide um
texto em faixas de frequência lexical. Após o processamento dos arquivos,
o VocabProile veriicou o peril lexical dos textos enciclopédicos. Os
resultados indicam que, do ponto de vista léxico-quantitativo, não há
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.769-792
770
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
diferença signiicativa entre o peril lexical da Simple English Wikipedia
e da Wikipedia. As duas enciclopédias se diferenciam primordialmente
pela extensão dos artigos.
Palavras-chave: vocabulário; língua inglesa; Wikipedia; Simple English
Wikipedia.
Abstract: We tackle the lexical content of encyclopedic texts as our
research object, more precisely, the lexical proile of texts in two
collaborative encyclopedias: one is designed for English language learners
(Simple English Wikipedia) and the other is designed for an Englishspeaking audience (Wikipedia). We aim at introducing the encyclopedic
text as a pedagogical resource for the enhancement and practice of
vocabulary in English. Our speciic goals are the following: 1) proceed
an analysis of the lexical proile of texts from Simple English Wikipedia
and Wikipedia; 2) compare the texts of both encyclopedias and 3) check
whether the adapted texts from the encyclopedia designed for English
language learners do employ more simple vocabulary. The theoretical
background resorts to studies concerning Lexicology (NATION, 2001,
2003, 2015) and Corpus Linguistics (BERBER SARDINHA, 2004,
2012). Regarding methodology, the 35 best articles from Simple English
Wikipedia, in the editor´s opinion, were converted to simple text format
and later analyzed by the software VocabProile, version 4, an online
software that divides a text into frequency bands. After processing the
iles, VocabProile veriied the lexical proile of the encyclopedic texts.
The indings show that, from a lexicoquantitative perspective, there is
no signiicant difference between the lexical proile in Simple English
Wikipedia and Wikipedia. Both encyclopedias primarily differ in terms
of article length.
Keywords: vocabulary; english language; Wikipedia; Simple English
Wikipedia.
Recebido em 8 de setembro de 2017
Aceito em 17 de outubro de 2017
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
771
1 Introdução
Este trabalho faz parte de um projeto de pesquisa em andamento
na Universidade Estadual de Goiás intitulado “Estudos em Lexicologia
e Linguística de Córpus para o Professor de Língua Inglesa”. O presente
estudo toma como objeto de pesquisa o conteúdo lexical do texto
enciclopédico, mais precisamente o peril lexical de textos presentes
em duas enciclopédias colaborativas: uma destinada a aprendizes de
língua inglesa (Simple English Wikipedia) e outra destinada a um público
falante nativo de língua inglesa (Wikipedia). Wikipedias são lugares nos
quais as pessoas trabalham em equipe para escrever enciclopédias em
diferentes línguas.
Para contextualizar o instrumento no qual se insere nosso objeto
de pesquisa, apresentamos, nos próximos parágrafos, as características
das duas enciclopédias e, na sequência, detemo-nos na Simple English
Wikipedia.
Desde a sua criação, no ano de 2001, a Wikipedia vem sendo
utilizada como uma obra de consulta gratuita, de fácil acesso, destacandose pelo quesito coniabilidade, na maioria das vezes, e atraindo milhões
de visitantes diariamente.
No que concerne à utilização dos artigos escritos de forma
colaborativa na prática de leitura em língua inglesa, vale ressaltar que,
além da Wikipedia, existe outra enciclopédia colaborativa chamada
Simple English Wikipedia (doravante, SEW), criada no ano de 2004, que
se propõe a ser um recurso informacional destinado a um público que
inclui estudantes, crianças, adultos com diiculdades de aprendizagem
ou de leitura e aprendizes de inglês. Outrossim, outras pessoas usamna graças à linguagem simples, o que possibilita o conhecimento de
conceitos com os quais não têm familiaridade.
No inal do mês de agosto de 2017, a SEW contava com 127.167
artigos em seu banco de dados (SIMPLE ENGLISH WIKIPEDIA,
2017a). Em comparação, a Wikipedia em língua inglesa, na mesma época,
possuía 5.468.078 artigos (WIKIPEDIA, 2017a).
No tocante ao léxico empregado, na SEW, opta-se pela utilização
de palavras simples da língua inglesa, acompanhada de estruturas
gramaticais também mais simples. Ao preocupar-se com a qualidade
do conteúdo léxico-gramatical de seus artigos, uma equipe de editores
avalia todos os novos artigos ou suas atualizações. Na redação dos textos,
existe uma preocupação em usar um repertório lexical mais básico e
772
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
frases mais curtas, com o intuito de tornar a leitura dos aprendizes
mais fácil. Os colaboradores são estimulados a expandir os artigos,
adicionando detalhes e adotando o vocabulário básico, sem a premissa
de que os textos criados devam necessariamente ser curtos. Com base na
orientação de que apenas 2.000 palavras são suicientes para se escrever
um bom artigo (SIMPLE ENGLISH WIKIPEDIA, 2016), não ica claro
se esse quantitativo relaciona-se à quantidade de palavras consideradas
isoladamente, sem repetições (types) ou todas as ocorrências de palavras
no artigo (tokens).
Para os autores dos textos, sugere-se que tomem como parâmetro
e procurem as palavras em quatro grandes listas de palavras (SIMPLE
ENGLISH WIKIPEDIA, 2016), a saber: Basic English 850 (“Basic”é
um acrônimo para British American Scientiic International Commercial).
Essa lista de palavras foi criada por Charles Kay Ogden em 1935.
Trata-se de uma tentativa de explicar conceitos considerados complexos
com 850 palavras básicas do inglês: são 100 palavras denominadas
“operations”, 400 palavras na categoria “things”, 100 “general”, 200
“picturable words” e 50 “opposites”); Basic English 1500 (uma lista
mais avançada que a Basic English 850, que contém, na verdade, mais
de 2.600 palavras, constituída das 850 palavras da Basic English; 179
palavras internacionais; 50 substantivos internacionais; 12 nomes de
áreas cientíicas; 50 palavras sobre o tempo e números, entre outros);
Voice of America Special English Word Book (lista que contém 1.580
palavras com 6 categorias gramaticais, 8 termos que denominam os mais
conhecidos órgãos do corpo humano, 32 termos cientíicos, 5 preixos,
entre outros) e uma lista de Inglês Simpliicado da European Association
of Aerospace Manufacturers (lista criada para auxiliar engenheiros a
escrever manuais de maneira a tornar a redação mais simples. No entanto,
a lista da associação não se encontra disponível no site).
Uma vez que a Simple English Wikipedia importa-se com a
seleção e utilização do vocabulário presente no corpo de seus verbetes,
partimos da hipótese de que seu conteúdo lexical diferencia-se da
Wikipedia , que potencialmente contém palavras simpliicadas.
Frente ao exposto, nossa pesquisa tem o objetivo geral de
apresentar o texto enciclopédico como um recurso didático para o
enriquecimento e prática de vocabulário em língua inglesa. Os objetivos
especíicos são os seguintes: 1) proceder uma análise do peril lexical
de artigos da Simple English Wikipedia e da Wikipedia; 2) comparar os
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
773
artigos nas duas enciclopédias e 3) checar se os artigos adaptados da
enciclopédia destinada aos aprendizes realmente empregam vocabulário
mais elementar em seus textos.
A fundamentação teórica recorrerá basicamente à Lexicologia e
Linguística de Córpus. Trata-se de campos independentes de investigação
que, explorados conjuntamente, enriquecerão nossas relexões.
2 Fundamentação teórica
A utilização de obras de consulta como apoio na formação
linguística de modo geral não constitui uma novidade propriamente dita.
Na área de língua inglesa, existem trabalhos relacionados especialmente
à Lexicograia Pedagógica ou à Terminologia Aplicada, comprometidos
com a associação entre obras de consulta e ensino. Empreendemos
aqui uma discussão que tangencia a mesma linha, porém, recorrendo à
enciclopédia, que , ao nosso ver, constitui ainda um recorte incipiente no
contexto brasileiro de ensino de língua inglesa. A im de situar o estudo
de uma obra de consulta como a enciclopédia, adaptamos para um mapa
conceitual o esquema desenvolvido por Welker (2005, p. 44):
1.
1.1
1.1.1
1.1.1.1
1.1.1.1.1
1.1.1.1.2
1.1.1.2
1.1.1.2.1
1.1.1.2.2
1.1.2
1.1.2.1
1.1.2.1.1
1.1.2.1.2
1.1.2.2
1.1.2.2.1
1.1.2.2.2
OBRAS DE CONSULTA
Dicionário de língua
impresso/convencional
monolíngue
geral
especial
bi/multilíngue
geral
especial
eletrônico
monolíngue
geral
especial
bi/multilíngue
geral
especial
774
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
1.2
1.2.1
1.2.1.1
1.2.1.2
1.2.1.3
1.2.1.4
1.2.2
1.2.2.1
1.2.2.2
1.2.2.3
1.2.2.4
Outras obras de consulta
impresso/convencional
enciclopédias
atlas
almanaques
etc
eletrônico
enciclopédias
atlas
almanaques
etc
No que se refere às enciclopédias eletrônicas, o mapa conceitual
mostra que tanto as enciclopédias em formato papel (impresso/
convencional) quanto as enciclopédias eletrônicas gozam de mesma
importância quanto à categorização hierárquica. Entretanto, quanto ao
nível 1.2 (outras obras de consulta), o referido autor falha em registrar
a diferenciação entre obras monolíngues e bi/multilíngues. Salientamos
que o escopo de nossa pesquisa reside no nível 1.2.2.1, monolíngue (em
língua inglesa).
Cremos ser oportuna a explicação de Rey-Debove (1971)
quanto à especificidade da enciclopédia, ou melhor, da definição
enciclopédica: o dicionário de língua diz o que signiica o signo leão,
ao passo que a enciclopédia diz e mostra o que é um leão. Trazendo essa
noção para o contexto da pesquisa, partimos do princípio de que, no
artigo enciclopédico, encontram-se disponíveis inúmeras palavras para
descrever – em alguns casos, exaustivamente – o objeto ou fenômeno.
Dessa forma, encontramos um vasto repositório linguístico que pode ser
explorado para ins didáticos.
Ao voltar nossas atenções para o vocabulário utilizado no texto
enciclopédico, ressaltamos que temos interesse direto no vocabulário
mais frequente da língua inglesa, ou seja, no vocabulário fundamental.
Iniciamos na sequência algumas discussões inseridas na seara da
Lexicologia, que pode ser deinida como uma divisão da Linguística, cuja
preocupação é o estudo cientíico do repertório de palavras presentes em
um idioma, ou seja, o léxico propriamente dito. Sua manifestação mais
concreta encontra-se no vocabulário, as palavras em uso pelos falantes.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
775
Sob os auspícios da Lexicologia, podemos explorar, analisar, reletir,
comparar e identiicar as unidades léxicas. Os benefícios da leitura
para o aprendiz de língua estrangeira são destacados por Nation (2015),
especialmente o contato com textos simpliicados por parte dos iniciantes.
Acatamos as ideias de Nation (2001, 2003) quanto ao fato
de que, já que algumas palavras ocorrem com uma frequência muito
maior que outras, as mais frequentes revelam-se potencialmente mais
úteis aos alunos – conhecimento que é um pré-requisito seminal para o
planejamento de um programa de vocabulário e para a tomada de decisão
no dia a dia sobre como lidar com determinadas palavras.
Com relação à frequência e extensão das palavras, Nation (2001,
2003), propõe a divisão do vocabulário em língua inglesa em quatro
grupos. O primeiro grupo é constituído por palavras de alta frequência
composto de aproximadamente 2.000 famílias de palavras. Correspondem
de 80% a 95% das palavras que ocorrem em um texto qualquer. O segundo
grupo abarca as palavras acadêmicas que costumam ocorrer em textos
acadêmicos e não fazem parte das 2.000 palavras mais frequentes. Essas
palavras compõem entre 8,5% e 10% de um texto qualquer. Para Nation
(2003), a melhor lista para essa classe é a Lista de Palavras Acadêmicas.
No entanto, Silva (2015) detecta deiciências nessa lista e propõe outra
lista acadêmica com forte apelo estatístico. O terceiro grupo abrange as
palavras técnicas, ou seja, palavras comuns e de signiicado restrito à
determinada área de especialidade. Por im, podemos visualizar outro
grupo dentro do qual seriam inseridas as palavras de baixa frequência,
ou seja, que não fazem parte dos grupos citados anteriormente.
Leffa (2000) faz uma síntese a respeito do vocabulário e destaca
seu imprescindível papel para o aprendizado de uma língua, o que faz
do léxico instrumento fundamental.
Partindo do princípio de que a simples instrução especíica do
vocabulário não garante a compreensão de leitura, o aluno deve
aprender as palavras novas dentro de um contexto signiicativo,
que pode ser dado por relações intratextuais, onde o signiicado
da palavra desconhecida pode ser inferenciado dentro do próprio
texto, e por relações intertextuais, considerando aí as disciplinas
do currículo escolar. (LEFFA, 2000, p. 37).
Sob essa perspectiva, um trabalho direcionado para o
enriquecimento lexical por meio de verbetes enciclopédicos pode
776
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
contemplar as ideias expostas pelo referido autor. O mesmo autor ressalta
a importância de uma tríade fundamental no trabalho linguístico: a seleção
do vocabulário que deve ser ensinado (o que), os textos que serão usados
(com o que) e as estratégias empregadas (como). Ora, tendo em mente
o que será ensinado, com quais instrumentos e de que maneira serão
aplicados, percebemos pontos-chave para o aprendizado do aluno.
Nesse sentido, o uso de dispositivos que são acessíveis e de uso
comum para todos tornam-se excelentes instrumentos de ensino. Essa
visão abarca nossa proposta de trabalho com textos enciclopédicos como
input para o desenvolvimento do repertório lexical em língua inglesa.
Frente à responsabilidade que o professor de língua inglesa carrega quanto
à instrução lexical, concordamos com a seguinte airmação:
Cabe ao professor incluir o vocabulário nas suas preocupações
ao preparar suas aulas, propondo atividades em que determinadas
palavras consideradas chave sejam explicitamente ensinadas.
Dessa forma, o professor chama a atenção do aluno para aquelas
palavras, possibilitando uma maior discussão e relexão sobre elas,
o que é imprescindível para facilitar sua retenção. (RODRIGUES,
2006, p. 17).
A tarefa do professor de problematizar o conhecimento do léxico
leva a práticas que envolvam o vocabulário no contexto da sala de aula
de língua estrangeira. Como mostram Oliveira e Silva (2016), pode-se
aprimorar a língua inglesa via leitura, a im de manter o aprendiz em
contato com conteúdo linguístico do programa pedagógico. Soma-se
ao material oicial de um curso de idiomas, por exemplo, um valioso
repositório de estudo disponível on-line contendo uma grande variedade
de textos, destinado a um público com faixa etária e nível de proiciência
diversos. Destacamos, assim, a inserção do texto enciclopédico como
mais um recurso para se estudar a linguagem (tanto para o professor de
língua inglesa como para o aprendiz).
Até o momento, discutimos aspectos mais quantitativos
estudados pela Lexicologia, no contexto do ensino de língua
inglesa. Subsidiariamente, acreditamos que a Linguística de Córpus
(doravante, LC) desempenhe um papel fundamental com foco na
descrição, compreensão, ensino, entre outros. Uma maneira de se
estudar a linguagem ou de como chegar até ela, pode ser por meio das
contribuições dessa área. A utilização de córpus sempre foi um recurso
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
777
empregado em pesquisas linguísticas (ALUISIO; ALMEIDA, 2006).
Para tanto, usaremos a abordagem da LC como corpo de linguagem
natural (autêntica) que pode ser usado como base para pesquisa
linguística. Na presente pesquisa, essa abordagem possibilitará a coleta
dos dados necessários para a análise, fornecendo evidências advindas
do processamento de uma grande quantidade de textos e das palavras
neles presentes. Dessa maneira, realizamos uma exploração do conteúdo
lexical dos textos enciclopédicos para aplicações no ensino.
Recorremos à conceituação de Berber Sardinha (2004) para
deinir essa abordagem linguística:
A Linguística de Córpus ocupa-se da coleta e exploração de
corpora, ou conjuntos de dados linguísticos textuais que foram
coletados criteriosamente com o propósito de servirem para a
pesquisa de uma língua ou variedade linguística. Como tal, dedicase à exploração da linguagem através de evidências empíricas,
extraídas por meio de computador. (BERBER SARDINHA,
2004, p. 325).
A investigação no âmbito da LC leva em consideração uma
série de fatores no desenvolvimento de corpora eletrônicos, como
destaca Berber Sardinha (2004, 2012): origem: os dados devem ser
autênticos; propósito: o córpus deve ter a inalidade de ser objeto de
estudo; composição: os dados do córpus devem ser criteriosamente
escolhidos; formatação: os dados devem ser legíveis por computadores;
representatividade: deve representar uma linguagem ou variedade;
extensão: deve ser vasto para se tornar representativo.
O trabalho com córpus também exige a observância de certas
características para que possamos enxergar uma tipologia. Berber
Sardinha (2004, 2012) destaca sete elementos: modo: pode ser oral
ou escrito; tempo: sincrônico, diacrônico, histórico e contemporâneo;
seleção: amostragem, monitor, dinâmico, estático e equilibrado;
conteúdo: especializado, regional e multilíngue; autoria: aprendiz (não
nativo) e língua nativa; disposição interna: paralelo e alinhado; inalidade:
estudo, referência e treinamento.
Berber Sardinha (2012) destaca que o avanço dos recursos
computacionais contribuiu para conferir rapidez e capacidade de
processamento de dados linguísticos. Ao adotar uma abordagem empirista
da linguagem, compreendida como um sistema probabilístico, sugere que
778
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
existe uma primazia dos dados provenientes da observação da linguagem,
em geral, reunidos sob a forma de um córpus (BERBER SARDINHA,
2004).
Embora o escopo dessa área de estudos da linguagem possa
ser deinido em termos do que as pessoas fazem com corpora, seria
um engano supor que a LC seja somente um meio rápido de descrever
como a linguagem funciona. A análise de um cóorpus pode revelar, e
frequentemente revela, fatos a respeito de uma língua que nunca se pensou
em procurar (KENNEDY, 1998) – o que torna a língua um objeto de
estudo sem precedentes.
Para o ensino de línguas estrangeiras, a LC pode fornecer insumos
relevantes no que se refere à frequência de palavras, às colocações, ao
estudo de ocorrência e coocorrência de determinados itens. Um córpus
de aprendizes, por exemplo, possibilita identiicar pontos que apresentam
mais diiculdades ao aprendiz. O professor ou o pesquisador tem a seu
dispor ferramentas computacionais que revelam em poucos segundos
informações preciosas. Assim, a pesquisa baseada em córpus pode ser
desenvolvida de modo a lançar luz sobre certos usos, o que favorece
uma tomada de consciência. Corpora da ordem de milhões de ocorrências
retratam a língua em movimento, tal como é usada pelos falantes de
determinada comunidade linguística. O professor ou o pesquisador passa
a poder contar com a observação direta dos fenômenos linguísticos, o
que garante certo nível de coniança ao trabalho, uma vez que os eventos
são retratados tal como ocorrem e não como se acredita que possam
ocorrer. Hunston (2010, p. 137) atesta que o córpus tem um impacto
direto na atividade proissional do professor de língua estrangeira de duas
maneiras: em primeiro lugar, modiica a maneira pela qual a língua é
percebida, a partir das descrições linguísticas e, em segundo lugar, pode
ser explorado para produzir material de ensino, formando uma base para
o planejamento de novos conteúdos e metodologia.
Biber, Conrad e Reppen (2004) destacam que uma das grandes
vantagens de uma abordagem baseada em córpus é que ela proporciona
um alcance e uma idedignidade antes impossível. Vale ressaltar que
as análises baseadas em córpus não estão limitadas meramente a uma
análise quantitativa estanque. É essencial que o trabalho com córpus
possibilite a inclusão de análises de cunho qualitativo a respeito dos
padrões quantitativos discutidos na pesquisa.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
779
3 Metodologia
A presente pesquisa tem cunho exploratório, uma vez que tem
como objetivo principal o aprimoramento de ideias que envolvem
levantamento bibliográico e análise de exemplos que instiguem a
compreender o assunto em tela. Embora possa ser rotulada como
exploratória, a pesquisa tem, também, características descritivas.
Utilizamos o software VocabProile (VP), versão 4 para traçar
o peril lexical dos artigos tanto na SEW quanto na Wikipedia. Como
explica Silva (2011), o VP é software de tratamento linguístico que
divide o texto em várias faixas de frequência lexical e fornece como
resultado um peril lexical em termos quantitativos. O software analisa
as palavras do texto nele inserido por meio da comparação com seu
próprio banco de dados, ou seja, tomando como referência as listas de
palavras pré-carregadas, é executado o trabalho de comparação entre a
palavra arquivada no VP e as palavras do texto inserido para a pesquisa.
Ainda segundo Silva (2011), o resultado é a identiicação das
palavras e a indicação da faixa de frequência à qual a palavra pertence:
K1 (as primeiras 1.000 palavras mais frequentes da língua inglesa), K2
(as próximas 1.000 palavras mais frequentes), AWL (as palavras mais
comuns encontradas em textos acadêmicos) e OFF (todas as palavras
que não pertencem às faixas anteriores).
Com relação aos procedimentos metodológicos, por meio do
processo de copiar (“ctr+c”) e colar (“ctr+v”), salvamos e organizamos
os 35 melhores artigos da SEW (na opinião do editor do site), no formato
texto simples. Cada artigo foi salvo em um arquivo independente.
O mesmo procedimento foi adotado na recolha dos 35 artigos
da Wikipedia. Utilizando o título do artigo da SEW, procuramos seu
par na Wikipedia, para então criar outros arquivos. Por exemplo, o
artigo intitulado Jupiter foi pesquisado nas duas enciclopédias. Ao inal,
constituímos um córpus com 70 artigos em língua inglesa.
Os dados foram tabulados em uma planilha eletrônica do MS
Excel 2016, com duas abas, uma para cada enciclopédia. Após a tabulação
dos dados oriundos do VocabProfile, os cálculos utilizados foram
“soma” e “desvio-padrão”, funções de fórmulas da própria planilha.
Optamos por incluir também o cálculo do desvio-padrão, que é uma
medida de dispersão, ou seja, uma medida de variabilidade dos dados
de uma distribuição de frequências. Em outras palavras, o desvio-padrão
780
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
possibilita que sejam medidos os valores para cima ou para baixo da
média. Consequentemente, o desvio-padrão pode ser usado para descrever
o grau de dispersão na distribuição da frequência.
Todos os dados obtidos e tabulados podem ser consultados nos
Apêndices A e B.
4 Resultados e análise dos dados
Nesta seção, será estudado o peril lexical dos artigos das duas
enciclopédias. Na sequência, uma exposição do número de types (palavras
consideradas isoladamente, sem suas repetições no texto) e tokens
(palavras consideradas com as repetições) presentes na amostra. Depois,
uma comparação de forma mais pontual com base no texto enciclopédico
integral de um verbete para ilustrar uma análise linguístico-estatística.
Por im, será apresentado um excerto oriundo do texto enciclopédico
das duas enciclopédias.
Nos 35 artigos da SEW selecionados para a análise amostral,
percebe-se que, na média, 75,07% do conteúdo lexical pertence ao
grupo das primeiras 1.000 palavras mais frequentes do inglês, ou seja,
encontram-se na faixa K1. Como pode ser visualizado na Tabela 1,
tendo em mente que o valor do desvio-padrão é 2,27, podemos airmar
que existe uma lutuação para mais e para menos na amostra. Isso quer
dizer que, na maioria dos casos, a variação dos artigos encontra-se
entre 77,34 e 72,8. No que se refere à Wikipedia, levando-se em conta o
desvio-padrão, vemos uma variação na faixa K1 que vai de 66,01 a 77,33.
Graças à variação do peril lexical na faixa K1 nas duas enciclopédias,
podemos notar que ambas acabam apresentando índices equivalentes
nesse nível – o que atesta que vários textos das duas enciclopédias
compartilham palavras do mesmo grupo de frequência. Dito de outra
forma, vários textos da SEW, do ponto de vista lexical, não fazem jus
ao título de “simples”.
781
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
TABELA 1 – Peril lexical (%) dos artigos das duas enciclopédias colaborativas
SEW
DP
W
DP
K1
75,07
2,27
71,67
5,66
K2
5,74
1,78
5,66
1,41
AWL
2,54
1,31
4,29
2,07
OFF
16,73
2,19
18,37
2,38
Fonte: Dados da presente pesquisa.
Nota: SEW: Simple English Wikipedia; W: Wikipedia; DP: Desvio-padrão.
Ainda consultando a Tabela 1, percebemos que as palavras
pertencentes à faixa K2 apresentam uma porcentagem de uso nos textos
praticamente idêntico nas duas enciclopédias. Do ponto de vista lexical, a
SEW não se mostra como mais simples em comparação com a Wikipedia.
Efetivamente, observamos uma baixa utilização do vocabulário
acadêmico na SEW. Porém, ao avaliarmos a variação do desvio-padrão,
mais uma vez, do ponto de vista lexical, a SEW acaba se mostrando
praticamente no mesmo nível da Wikipedia, sem se diferenciar pela
simplicidade de seu vocabulário.
Por último, os nomes próprios e as palavras menos comuns são
abarcadas na faixa OFF. Não é percebida diferença que justiique o nome
de simples para a SEW. O desvio-padrão indica que as duas enciclopédias
mantêm uma porcentagem muito próxima no que se refere à porcentagem
de nomes próprios e palavras menos comuns em seus textos.
Frente ao exposto, do ponto de vista lexical, a diferença entre
o peril lexical dos textos da SEW e dos textos da Wikipedia é mínima.
Reiteramos que essa diferença é tão pequena que prejudica o título de
“simples” da SEW.
A causa da ausência de diferença entre ambas enciclopédias
pode residir no fato de os autores não serem especialistas na elaboração
de material didático para aprendizes, tendo em mente o conteúdo dos
verbetes da SEW. Outra possível explicação pode estar no julgamento e
nos critérios subjetivos para a seleção dos artigos pelo editor da SEW.
Quais seriam as razões que tornaram os 35 artigos da SEW os melhores?
Paradoxalmente, a escolha pode ter se pautado muito mais pela presença
de vocabulário menos simples em detrimento do vocabulário fundamental
recomendado nas listas de palavras.
782
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
Com relação ao número de types e tokens presentes nas duas
enciclopédias, podemos airmar que na Wikipedia, os artigos são mais
extensos – conforme Tabela 2. Alguns artigos têm um tamanho duas
vezes maior na Wikipedia quando comparados à SEW. No entanto, houve
casos nos quais o artigo da SEW era maior que seu similar da Wikipedia.
TABELA 2 – Número médio de types e tokens presentes nas duas enciclopédias
SEW
DP
W
DP
Types
394,80
175,67
687,03
429,94
Tokens
1.583,40
1.054,24
3.433,66
2.922,83
Fonte: Dados da presente pesquisa.
Nota: SEW: Simple English Wikipedia; W: Wikipedia; DP: Desvio-padrão.
De fato, os textos da SEW analisados trazem em média 1.583
palavras, com um desvio-padrão de 1.054, conforme dados da Tabela 2.
Essa constatação possibilita concluir que os textos da amostra analisada
seguem a sugestão de que contenham por volta de 2.000 palavras
(SIMPLE ENGLISH WIKIPEDIA, 2016). Os dados obtidos levam ao
entendimento que as 2.000 palavras fazem referência aos tokens, número
total de palavras do texto. Percebemos que os textos da Wikipedia
costumam ser mais extensos.
A im de proceder uma comparação de forma mais pontual,
selecionamos o verbete BRAZIL e seu texto enciclopédico integral para
ilustrar uma análise linguístico-estatística. O verbete em questão não faz
parte da amostra analisada neste estudo, como pode ser visto no Apêndice.
No entanto, sua escolha justiica-se porque servirá para atestar se as
inferências quanto à qualidade dos melhores artigos encontram amparo
em um texto que não está na categoria dos melhores artigos. A Figura 1
apresenta o resultado da análise obtida pelo processamento do texto da
SEW no VocabProile:
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
783
FIGURA 1 – Peril lexical do texto enciclopédico do verbete BRAZIL na SEW
Fonte: VocabProile (2017).
Na SEW, como indica a Figura 1, percebemos o seguinte
peril lexical: K1: 68,28%; K2: 3,03%; AWL: 2,62% e OFF: 26,07%.
O número total de palavras (tokens) no texto é de 725. Existem 323
palavras diferentes (types) nesse texto. Os dados linguístico-estatísticos
apresentados podem servir para chamar a atenção do aluno para
determinadas palavras, como ressalta Rodrigues (2006), o que possibilita
uma maior discussão, relexão e, consequente, retenção.
784
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
FIGURA 2 – Peril lexical do texto enciclopédico do verbete BRAZIL na Wikipedia
Fonte: VocabProile (2017).
Por sua vez, na Wikipedia, como indica a Figura 2, identiicamos
o seguinte peril lexical: K1: 67,06%; K2: 4,26%; AWL: 6,81% e OFF:
21,87%. O número total de palavras (tokens) no texto é de 15.362.
Existem 3.492 palavras diferentes (types) nesse texto.
Recorrendo às informações tanto da Figura 1 quanto da Figura 2,
no caso do conteúdo lexical do verbete BRAZIL, a soma das faixas K1
e K2 da SEW resulta no seguinte índice acumulado: 71,31%. A mesma
somatória das faixas K1 e K2 da Wikipedia resulta no índice acumulado
de 71,32%. Depreendemos que as enciclopédias encontram-se no mesmo
patamar em termos lexicais, já que foi identiicado esse empate técnico.
Essas descobertas ilustram a ideia de Kennedy (1998) de que a análise
de um córpus pode revelar fatos a respeito da língua que nunca se pensou
em procurar.
Por limitação de espaço, a inserção do texto integral neste trabalho
não é viável. Reproduzimos abaixo, então, um excerto do texto com
as informações constantes na seção intitulada Geography do verbete
BRAZIL na SEW:
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
785
Brazil has the world’s largest rainforest, the Amazon Rainforest.
It makes up 40% of the country’s land area. Brazil also has other
types of land, including a type of savanna called cerrado, and a
dry plant region named caatinga.
The most important cities are Brasília (the capital), Belém, Belo
Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, Manaus,
Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo (the
biggest city) and Vitória. Other cities are at list of largest cities in
Brazil. Brazil is divided into 26 states plus the Federal District in
ive regions (north, south, northeast, southeast and centrewest):
North: Acre, Amazonas, Rondônia, Roraima, Pará, Amapá,
Tocantins
Northeast: Maranhão, Pernambuco, Ceará, Piauí, Rio Grande do
Norte, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Bahia
Centre-West: Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito
Federal/ Federal District
Southeast: São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais
South: Paraná, Santa Catarina and Rio Grande do Sul
The country is the ifth largest in the world by area. It is known
for its many rainforests and jungles. It is next to every country in
South America except Chile and Ecuador. (SIMPLE ENGLISH
WIKIPEDIA, 2017b).
A leitura dessa seção revela a presença marcante de nomes
próprios e uma preocupação em apresentar informações acerca da
geograia brasileira. Retomando Leffa (2000), é possível que o aluno
aprenda palavras novas nesse contexto signiicativo, que pode se dar por
relações intratextuais, nas quais o signiicado da palavra desconhecida
pode ser inferenciado dentro do próprio texto.
Na sequência, um excerto do texto com as informações constantes
na mesma seção intitulada Geography do verbete BRAZIL na Wikipedia:
Brazil occupies a large area along the eastern coast of South
America and includes much of the continent’s interior, sharing
land borders with Uruguay to the south; Argentina and Paraguay
to the southwest; Bolivia and Peru to the west; Colombia to the
northwest; and Venezuela, Guyana, Suriname and France (French
overseas region of French Guiana) to the north. It shares a border
with every South American country except Ecuador and Chile.
It also encompasses a number of oceanic archipelagos, such as
Fernando de Noronha, Rocas Atoll, Saint Peter and Paul Rocks,
786
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
and Trindade and Martim Vaz. Its size, relief, climate, and natural
resources make Brazil geographically diverse. Including its
Atlantic islands, Brazil lies between latitudes 6°N and 34°S, and
longitudes 28° and 74°W.
Brazil is the ifth largest country in the world, and third largest in
the Americas, with a total area of 8,515,767.049 km2 (3,287,956
sq mi),[156] including 55,455 km2 (21,411 sq mi) of water.[15]
It spans four time zones; from UTC−5 comprising the state of
Acre and the westernmost portion of Amazonas, to UTC−4 in the
western states, to UTC−3 in the eastern states (the national time)
and UTC−2 in the Atlantic islands. Brazil is the only country
in the world that has the equator and the Tropic of Capricorn
running through it. It is also the only country to have contiguous
territory both inside and outside the tropics. Brazilian topography
is also diverse and includes hills, mountains, plains, highlands,
and scrublands. Much of the terrain lies between 200 metres
(660 ft) and 800 metres (2,600 ft) in elevation. The main upland
area occupies most of the southern half of the country. The
northwestern parts of the plateau consist of broad, rolling terrain
broken by low, rounded hills.
The southeastern section is more rugged, with a complex mass
of ridges and mountain ranges reaching elevations of up to 1,200
metres (3,900 ft). These ranges include the Mantiqueira and
Espinhaço mountains and the Serra do Mar.[158] In the north, the
Guiana Highlands form a major drainage divide, separating rivers
that low South into the Amazon Basin from rivers that empty into
the Orinoco River system, in Venezuela, to the north. The highest
point in Brazil is the Pico da Neblina at 2,994 metres (9,823
ft), and the lowest is the Atlantic Ocean. Brazil has a dense and
complex system of rivers, one of the world’s most extensive, with
eight major drainage basins, all of which drain into the Atlantic.
Major rivers include the Amazon (the world’s second-longest river
and the largest in terms of volume of water), the Paraná and its
major tributary the Iguaçu (which includes the Iguazu Falls), the
Negro, São Francisco, Xingu, Madeira and Tapajós rivers.
• Geography of Brazil
• Trindade and Martin Vaz is a volcanic archipelago off the coast
of the Brazil.
• Serra dos Órgãos, part of the Serra do Mar.
• Chapada Diamantina, in the Chapada Diamantina National Park,
Bahia.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
787
• Iguazu Falls, Paraná, is the largest waterfalls system in the
world.
• Pico da Neblina, Amazonas, the highest mountain in Brazil.
• Cavern in Bonito, Mato Grosso do Sul. (WIKIPEDIA, 2017b).
Nesse caso, considerando apenas as informações do excerto por
ora analisado, podemos perceber que se trata de uma seção mais longa.
O presente excerto pode ser dividido em diferentes grupos, como lembra
Nation (2000). Essa divisão possibilita a criação de exercícios (orais e
escritos) de forma a estudar e ixar cada grupo de palavras. O aporte dos
recursos computacionais apresenta-se como uma ferramenta importante
nessa perspectiva de ensino.
Haja vista a facilidade de acesso aos verbetes das duas
enciclopédias, entendemos que ambas podem servir como base para
a aquisição ou prática de vocabulário, dentro ou fora da sala de aula.
Entendemos que o texto enciclopédico conigura-se como um instrumento
de input (entrada de informações) estimulante para o aprendizado
da língua inglesa, já que relete o uso de vocabulário e de estruturas
gramaticais – podendo ser selecionado em função dos assuntos preferidos
dos estudantes.
5 Considerações inais
Iniciamos o presente trabalho abordando questões relevantes
para o ensino de língua inglesa com a Lexicologia e a Linguística de
Córpus. Acreditávamos que essas linhas de estudo seriam fundamentais
para a relexão entre o vocabulário e o texto enciclopédico no ensino de
língua inglesa. Essa pesquisa procurou lançar luz sobre uma estratégia
de ensino de vocabulário, com foco no texto enciclopédico eletrônico.
O contato do aprendiz com o léxico frequente pode contribuir no para
ampliar seu repertório lexical.
Ao longo do trabalho, apresentamos o texto enciclopédico como
um recurso didático para o enriquecimento e prática de vocabulário em
língua inglesa; procedemos uma análise do peril lexical de 35 artigos
da Simple English Wikipedia e 35 artigos análogos da Wikipedia;
comparamos os artigos nas duas enciclopédias sob um viés quantitativo
e checamos se os artigos adaptados da enciclopédia destinada aos
aprendizes realmente empregam vocabulário mais elementar em seus
textos.
788
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
Os resultados obtidos indicam que, do conteúdo lexical dos textos
da SEW, 80,81% das palavras dos textos encontram-se nas faixas K1 e
K2 – o vocabulário fundamental. Da mesma forma, os resultados revelam
que do conteúdo lexical dos textos da Wikipedia, 77,33% das palavras
dos textos encontram-se nas faixas K1 e K2. Como estamos tratando
de médias, merece atenção a variação indicada pelo desvio-padrão. A
variação em todas as categorias (K1, K2, AWL e OFF) mostra que a
diferença entre as duas enciclopédias é muito pequena – o que, se não
as torna muito semelhantes, consegue torná-las muito pouco distintas,
em uma visão léxico-quantitativa.
Apesar de haver uma preocupação com vocabulário adaptado e
mais simples e várias sugestões de listas, a análise da amostra de textos
do presente estudo indica que, levando em consideração apenas o peril
lexical, a SEW não se justiica. Não existe uma diferença expressiva com
relação à qualidade das palavras utilizadas entre a SEW e Wikipedia. A
utilização das listas Basic English 850, Basic English 1500, Voice of
America Special English Word Book e o Inglês Simpliicado da European
Association of Aerospace Manufacturers parece não ter garantido uma
acuidade na seleção do vocabulário empregado nos textos.
Com base na amostra de nosso estudo, parece ser equivocado o
termo “Simple English”. Portanto, nossa hipótese inicial de o conteúdo
lexical da Simple English Wikipedia ser diferente do encontrado na
Wikipedia não se conirmou.
A despeito da não diferenciação em termos da qualidade
lexical, ou seja, da grande ainidade entre a Simple English Wikipedia
e a Wikipedia, a leitura de seus textos pode ser benéica em uma dupla
perspectiva: além de expor os aprendizes a um grande número de
vocabulário comum na língua inglesa, também pode potencialmente ser
usada dentro ou fora da sala de aula.
Em tempo, ressaltamos que o item que pode diferenciar as
duas enciclopédias analisadas seja a estrutura gramatical, que não foi
contemplada nesse trabalho.
Destacamos que a leitura aqui proposta contempla apenas uma
das quatro habilidades comunicativas da língua inglesa, nomeadamente
a leitura. Não obstante, o vocabulário adquirido/praticado implicará a
autonomia lexical necessária para a consecução das demais habilidades,
seja na recepção ou na produção linguística.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
789
A presente pesquisa traz uma contribuição para o enriquecimento
das discussões relacionadas ao vocabulário fundamental, utilização de
software de análise linguística e, neste caso, do texto enciclopédico,
conhecimentos que são relevantes para pesquisadores, professores em
atuação, professores em formação e para formadores de professores de
língua inglesa.
Referências
ALUISIO, S. M; ALMEIDA, G. M. B. O que é e como se constrói um
corpus? Lições aprendidas na compilação de vários corpora para pesquisa
linguística. Calidoscópio, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 155-177, 2006.
BERBER SARDINHA, T. Linguística de Corpus. Barueri: Manole, 2004.
BERBER SARDINHA, T. Linguística de Corpus. In: GONÇALVES,
A. V.; GÓIS, M. L. S. (Org.). Ciências da linguagem: o fazer cientíico?
Campinas: Mercado de Letras, 2012. v. 1, p. 321-347.
BIBER, D.; CONRAD, S.; REPPEN, R. Corpus Linguistics: investigating
language structure and use. Cambridge: Cambridge University Press,
2004.
HUNSTON, S. Corpora in Applied Linguistics. Cambridge: Cambridge
University Press, 2010.
KENNEDY, G. An introduction to Corpus Linguistics. London:
Longman, 1998.
LEFFA, V. J. Aspectos externos e internos da aquisição lexical. In: LEFFA,
V. J. (Org.). As palavras e sua companhia: o léxico na aprendizagem.
Pelotas: Educat, 2000. p.17-46.
NATION, P. Learning vocabulary in another language. Cambridge:
Cambridge University Press, 2001. Doi: https://doi.org/10.1017/
CBO9781139524759
NATION, P. Como estruturar o aprendizado de vocabulário. Tradução
de Cristiane Arruda. São Paulo: Special Book Services, 2003.
NATION, P. Principles guiding vocabulary learning through extensive
reading. Reading in a foreign language, Honolulu, v. 27, n. 1, p. 136-145,
abr. 2015.
790
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
OLIVEIRA, L. C.; SILVA, E. B. Impacto da leitura intensiva em língua
inglesa no repertório lexical: uma análise quantitativa. Domínios de
lingu@gem, Uberlândia, v. 10, n. 1, p. 380-406, jan./mar. 2016.
REY-DEBOVE, J. Étude linguistique et sémiotique des dictionnaires
français contemporains. Paris: Hachette, 1971. Doi: https://doi.
org/10.1515/9783111323459
RODRIGUES, D. F. Um olhar crítico sobre o ensino de vocabulário em
contextos de inglês como língua estrangeira. Trabalhos de Linguística
Aplicada, Campinas, v. 45, n. 1, p. 55-73, jan./jun. 2006. Doi: https://doi.
org/10.1590/S0103-18132006000100004
SILVA, E. B. VocabProile: uma ferramenta linguístico-estatística para
a aula de língua inglesa. Domínios de lingu@gem, Uberlândia, v. 5, n. 1,
p. 144-159, 2011.
SILVA, E. B. Identificação e análise do vocabulário acadêmico em
língua inglesa presente em textos acadêmico-cientíicos. 2015. 289 f.
Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos) – Instituto de Biociências,
Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, São José do
Rio Preto, 2015.
SIMPLE ENGLISH WIKIPEDIA. How to write Simple English
pages. 2016. Disponível em: <https://simple.wikipedia.org/wiki/
Wikipedia:How_to_write_Simple_English_pages>. Acesso em: 21 ago.
2017.
SIMPLE ENGLISH WIKIPEDIA. Simple English Wikipedia. 2017a.
Disponível em: <https://simple.wikipedia.org/wiki/Wikipedia:Simple_
English_Wikipedia>. Acesso em: 21 ago. 2017.
SIMPLE ENGLISH WIKIPEDIA. Brazil. 2017b. Disponível em:
<https://simple.wikipedia.org/wiki/Brazil>. Acesso em: 21 ago. 2017
WELKER, H. A. Dicionários: uma pequena introdução à Lexicograia.
2. ed. rev. e amp. Brasília: Thesaurus, 2005.
WIKIPEDIA. Welcome to Wikipedia. 2017a. Disponível em: <https://
en.wikipedia.org/wiki/Main_Page>. Acesso em: 21 ago. 2017.
WIKIPEDIA. Brazil. 2017b. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/
wiki/Brazil>. Acesso em: 21 ago. 2017.
791
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
APÊnDICE A – Peril lexical dos textos dos verbetes da Wikipedia
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
Verbetes
Hanami
Geisha
Kamikaze
Evolution
Violin
Ana Ivanović
Daniela Hantuchová
American Airlines Flight 11
Anna Kournikov
Jessica Alba
Powderinger
Baseball Uniform
Red Hot Chili Peppers
Gothic Architecture
Crich Tramway Village
Ipswich Town F.C.
Bobby Robson
Bloc Party
Tropical Storm Barry
Victoria Line
Hermann Göring
Jupiter
Portman Road
Blackpool Tramway
Billy Graham
Yellow (song)
Tropical Storm Gabrielle
Kingsway Tramway Subway
Hurricane Vince
Epping Ongar Railway
City of Manchester Stadium
1910 Cuba hurricane
Dan Kelly
Tropical Depression
Saturn (Planet)
Fonte: Wikipedia.
K1
K2
AWL
OFF
Types
Tokens
72,47
70,37
75,03
5,18
6,4
4,55
2,02
5,24
2,07
20,33
17,99
18,35
16,67
16,59
21,3
24,08
20,22
21,93
17,11
18,72
17,45
18,64
22,26
19,64
15,12
18,21
19,36
23,17
14,23
19,94
16,51
16,81
18,19
20,52
18,76
18,11
14,86
16,47
15,76
18,25
14,78
17,23
15,61
19,87
391
1284
437
1381
2097
655
542
591
988
357
322
392
364
1049
57
252
901
525
339
473
1531
382
195
901
1011
1373
352
364
549
806
744
535
524
619
763
1383
5818
1419
8313
15508
4795
5388
2214
5168
1124
1220
1533
1720
5653
90
971
4387
2204
1323
1507
7479
1613
663
4901
4349
6803
1203
1415
3301
3427
3220
1730
2618
2266
3452
67,84
4
11,49
68,78
70,08
68,21
68,5
6,24
5,89
5,58
6,41
8,38
2,72
2,13
4,86
5,77
4,29
77,65
72,35
69,68
73,13
3,02
5,66
7,11
5,91
2,21
3,26
5,76
2,32
68,01
66,38
4,96
6,39
72,32
75
70,23
70,65
3,57
7,43
7,05
5,2
4,46
2,45
4,51
4,79
65,74
6,21
4,88
75,98
71,54
79,61
73,9
4,72
4,12
2,74
6,02
72,34
5,06
5,07
4,4
1,14
3,26
71,2
71,61
68,07
78,58
4,75
6,02
8,78
3,61
3,57
3,61
5,04
2,95
75,05
6,02
2,45
71,02
69,26
72,07
75,06
7,06
6,09
8,52
6,7
6,17
6,4
4,63
1,01
7,52
5,81
69,82
4,25
6,06
71,06
4,41
792
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018
APÊnDICE B – Peril lexical dos textos dos verbetes da SEW
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
Verbetes
Hanami
Geisha
Kamikaze
Evolution
Violin
Ana Ivanović
Daniela Hantuchová
American Airlines Flight 11
Anna Kournikov
Jessica Alba
Powderinger
Baseball Uniform
Red Hot Chili Peppers
Gothic Architecture
Crich Tramway Village
Ipswich Town F.C.
Bobby Robson
Bloc Party
Tropical Storm Barry
Victoria Line
Hermann Göring
Jupiter
Portman Road
Blackpool Tramway
Billy Graham
Yellow (song)
Tropical Storm Gabrielle
Kingsway Tramway Subway
Hurricane Vince
Epping Ongar Railway
City of Manchester Stadium
1910 Cuba hurricane
Dan Kelly
Tropical Depression
Saturn (Planet)
Fonte: Simple English Wikipedia.
K1
K2
AWL
OFF
Types
Tokens
73,74
77,37
5,19
4,24
1,98
2,51
19,08
15,87
19,35
13,95
15,25
16,86
20,87
17,98
18,41
17,26
18,76
16,84
18,67
18,42
19,18
14,93
18,26
16,94
17,63
13,03
17,03
16,46
16,14
18,96
19,05
14,91
14,44
15,12
17,75
11,53
16,72
12,19
17,14
12,96
17,58
345
455
328
1211
341
551
229
311
278
354
322
403
364
655
294
253
288
369
557
460
269
376
225
305
539
408
308
365
289
340
512
362
524
176
452
1060
1606
992
6188
1267
2312
823
903
895
1117
1217
1921
1716
4222
889
963
1092
1769
2733
1569
945
1528
842
1154
1882
1307
1031
1409
945
1220
1963
935
2378
450
2176
74,07
4,96
1,63
74,72
75,99
76,95
70,96
4,86
8,16
4,42
6,73
7,36
0,6
1,76
1,44
72,48
7,36
2,18
74,66
77,56
72,3
73,42
5,2
2,96
5,67
5,71
1,73
2,22
3,27
4,03
73,08
5,92
2,32
74,61
74,27
75,09
69,76
5,58
4,55
7,51
7,78
1,39
2
2,47
4,19
75,13
5,14
2,78
73,09
78,16
79,02
79,44
6,48
5,16
2,55
2,68
2,8
3,66
1,4
1,42
74,5
6,57
2,79
75
75,74
73,37
73,53
3,86
3,57
8,72
9,29
2,18
1,63
2,99
2,74
78,31
3,61
2,95
74,41
79,84
74,08
77,22
74,98
74,85
75,64
7,75
5,66
6,11
9,41
7,11
6,38
4,05
2,09
2,97
3,1
1,18
0,77
5,8
2,73
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
Distinção de ponto de articulação no Português
de Belo Horizonte: exemplos em plosivas e fricativas
Distinction of Place of Articulation in Brazilian
Portuguese: Examples in Plosives and Fricatives
Rui Rothe-Neves
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
rothe-neves@ufmg.br
Fabiana Andrade Penido
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
fabianapenido@gmail.com
Resumo: Este artigo trata das pistas auditivas utilizadas para a distinção
de ponto de articulação no português brasileiro (PB). Na primeira parte,
descrevemos as propriedades acústicas das fricativas [ʃ] e [s] e das
plosivas [b] e [d] seguidas da vogal [a]. Foram analisadas amostras de
fala de sete falantes nativos de PB registrados em Belo Horizonte. Foram
obtidos valores de duração semelhantes para [ʃ] e [s], bem como para a
fase de soltura da oclusão oral nas plosivas. A fase de pré-sonorização foi
maior para [b] do que para [d]. Picos de amplitude mais proeminentes e
concentração de energia em regiões de maior frequência foram obtidos
em [s] quando comparado a [ʃ]. Registramos picos de energia em regiões
de maior frequência para [d] em comparação com [b]. Finalmente, F2
foi maior no início da transição de formantes após [ʃ] e [d] quando
comparado a [s] e [b]. Na segunda parte, oito falantes nativos de Belo
Horizonte realizaram uma tarefa de classiicação. Tanto a transição de
F2 e F3 quanto o centro de gravidade foram usados para distinção de /
ʃapa/-/sapa/. O uso do ruído fricativo foi diferente em razão da transição
de formantes, o que é compatível com a descrição acústica em que a
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.793-842
794
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
transição foi praticamente nula para [s]. Os participantes não utilizaram
a pista de burst para a classiicação de /bata/-/data/, apenas a transição
de formantes. Os resultados conirmam que diferenças linguísticas
afetam a percepção da distinção de ponto de articulação e mostram quais
características da fala são utilizadas por falantes do PB.
Palavras-chave: percepção da fala; análise da fala; características
acústicas; segmentos fonéticos; fonética; linguística.
Abstract: This article deals with the auditory cues used for the distinction
of the place of articulation in Brazilian Portuguese (PB). In the irst part,
we describe the acoustic properties of the fricatives [ʃ] and [s] and the
stops [b] and [d] followed by the vowel [a] of Brazilian Portuguese (BP).
We analyzed speech samples of seven native BP speakers recorded in
Belo Horizonte. Similar duration values were obtained for [ʃ] and [s], as
well as for the release phase of oral occlusion in the stops. The prevoicing
phase was longer for [b] than for [d]. More prominent amplitude peaks
and energy concentration in higher frequency regions were obtained
in [s] when compared to [ʃ]. We registered energy peaks in higher
frequency regions for [d] as compared to [b]. Finally, F2 was higher at
the beginning of formant transition for [a] following [ʃ] and [d] when
compared to [s] and [b]. In the second part, eight native speakers of Belo
Horizonte performed a classiication task. Both the F2 and F3 transition
and the center of gravity aided in the distinction of /ʃapa/-/sapa/. The use
of fricative noise was different as a function of formant transition, what
is compatible with the acoustic description in which the transition was
almost null for [s]. For /bata/-/data/, the participants did not use the burst
cue for the classiication of [b] and [d], only the formant transition. The
results conirm that linguistic differences affect the perception of the place
of articulation and show which characteristics are used by BP speakers.
Keywords: speech perception; speech analysis; acoustical properties;
phonetic segments; phonetics; linguistics.
Recebido em 4 de maio de 2017
Aceito em 31 de outubro de 2017
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
795
1 Introdução
Este estudo investiga, por meio de análise acústica e de uma tarefa
de classiicação, as pistas auditivas para diferenciar as palavras /ʃapa/-/
sapa/ e /bata/-/data/. O termo “pistas auditivas” refere-se à informação
do sinal acústico que permite ao ouvinte perceber a existência de um
contraste fonológico (WRIGHT, 2004). Por exemplo, como a principal
propriedade acústica que diferencia as fricativas [ʃ] e [s] é a altura da
frequência do ruído fricativo, essa pista pode ser utilizada pelos ouvintes
para distinguir esses sons (HARRIS, 1958). No caso das plosivas [b] e
[d], a pista que melhor auxilia na distinção desses sons é a diferença entre
as amplitudes do ruído de explosão (do inglês, burst) que se registra na
fase de soltura da oclusão. A transição dos formantes vocálicos também
auxilia os ouvintes na distinção das fricativas e das plosivas. No português
brasileiro (PB), há alguns estudos acústicos sobre fricativas e plosivas
com grupos de falantes, porém poucos tratando especiicamente das
propriedades acústicas relevantes para investigar a percepção desses sons
(SANTOS, 1987; RUSSO; BEHLAU, 1993; BARBOSA, 1999; HAUPT,
2007), tais como os valores de amplitudes do ruído fricativo e os valores
das amplitudes do burst no caso das plosivas. Além disso, não nos foi
possível encontrar estudos do PB que tenham realizado uma investigação
da pista de transição dos formantes vocálicos seguintes às fricativas e às
plosivas, na região de transição e na região de estabilização dos formantes.
Finalmente, tanto quanto nos seja dado conhecer, nenhum estudo procedeu
à investigação da percepção da fala manipulando essas características
acústicas. Ao possibilitar a comparação de segmentos produzidos em
diferentes pontos de articulação, por exemplo, os estudos sobre a acústica
desses sons podem revelar características da produção do som. Entretanto,
não podem responder à pergunta: em que ponto os falantes da língua
deixam de perceber um som e passam a perceber o outro?
Com este artigo, espera-se poder fazer afirmações sobre
as propriedades acústicas que os falantes usam para diferenciar as
fricativas [ʃ] e [s] e as plosivas [b] e [d] associadas a vogal [a] do PB,
em posição inicial de palavra, de modo a enriquecer a caracterização
desses segmentos. Para isso, na primeira parte deste texto, analisamos e
descrevemos propriedades acústicas dessas consoantes seguidas da vogal
[a] em posição inicial de palavra (estudo 1). Na segunda parte, realizamos
um experimento de classiicação com os estímulos sintetizados, em que a
796
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
manipulação das propriedades acústicas descritas no estudo 1 possibilitou
avaliar a distinção entre as fricativas [ʃ] e [s] e as plosivas [b] e [d] por
falantes da língua (estudo 2). Apresentam-se a seguir as propriedades
acústicas sabidamente utilizadas para a distinção de ponto de articulação,
com base em estudos sobre o PB e outras línguas. Em seguida, relatam-se
o estudo de fonética acústica e, então, o experimento de classiicação.
2 Estudos precedentes
Diversos autores contribuíram para a compreensão das
propriedades acústicas dos sons fricativos (FANT, 1960; HEINZ;
STEVENS, 1961; HIXON, 1966; LADEFOGED; MADDIESON,
1996), cujas características espectrais dependem sobretudo do lugar da
constrição no trato vocal, do formato do orifício na constrição e da queda
de pressão nessa região. Durante a produção do [s], temos a formação de
um canal mais estreito. O canal mais largo para o [ʃ] faz o ar ter menos
velocidade. Devido à diminuição da velocidade da corrente de ar, ao
arredondamento dos lábios (característica coarticulatória desse som em
diversas línguas) e à extensão maior do trato vocal depois da constrição,
[ʃ] tem maior concentração de energia em regiões mais baixas do espectro
quando comparado a [s].1
Embora as características articulatórias sejam semelhantes, há
diferenças acústicas entre as línguas. No inglês, o espectro de [ʃ] aparece
com a principal concentração de energia na faixa de frequência de
2-3 kHz. Para [s], o espectro mostra um aumento de energia que começa
em torno de 3,56-4,4 kHz (STEVENS; KLATT, 1968). No italiano,
observou-se a frequência central de [s] em torno dos 4 kHz e de [ʃ],
em torno dos 2 kHz (SHINDLER, 1974). No espanhol argentino, [s]
apresenta picos espectrais ao redor de 5-8 kHz, e [ʃ], por volta de
2,5-5 kHz (BORZONE DE MANRIQUE; MASSONE, 1981). No
português europeu, Lacerda (1982) concluiu, por meio de testes
perceptivos, que [s] é mais bem percebido quando o estímulo tem
altos níveis de intensidade e picos espectrais na região de 5 kHz, e [ʃ]
é normalmente associado a altos níveis de intensidade juntamente com
1
Esta apresentação é restrita por razões de espaço. Para detalhes sobre a produção
de sons da fala em geral, ver Marchal e Reis (2012) e, para uma introdução à análise
acústica dos sons da fala, Barbosa e Madureira (2015).
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
797
picos espectrais na região dos 3 kHz. No português brasileiro, [s] aparece
como um som mais agudo, com faixa de frequência entre 4,5-8 kHz,
enquanto a alveolopalatal [ʃ] também apresenta uma faixa de frequência
ampla, semelhante a [s], porém mais grave, entre 2,5-6 kHz (RUSSO;
BEHLAU, 1993; SANTOS, 1987; HAUPT, 2007). Gordon, Barthmaier
e Sands (2002) compararam fricativas não-vozeadas em sete línguas da
América do Norte, Escócia e ásia. Um dos parâmetros analisados foi
o centro de gravidade (do inglês, center of gravity, CG), que pode ser
deinido como a frequência abaixo (ou acima) da qual estão concentradas
50% da energia de determinado som. Indica, portanto, a faixa de
frequências mais intensas no ruído fricativo. Os autores concluíram que
a fricativa [s] também apresentou CG maior do que a fricativa [ʃ] em
seis línguas. O valor do CG da fricativa [ʃ] foi maior somente em tuda,
uma língua dravidiana falada na Índia.
Outro parâmetro que parece importante para distinção nos sons
fricativos é a duração. Diversos estudos evidenciaram que os sons
fricativos alveolares [s, z] são mais longos que os alveolopalatais [ʃ, ʒ], e
os sons não-vozeados são, por sua vez, mais longos do que os vozeados
(STEVENS; KLATT, 1968; BORZONE DE MANRIQUE; MASSONE,
1981; SANTOS, 1987; HAUPT, 2007).
Quanto às consoantes plosivas, são segmentos produzidos
com o bloqueio total da corrente de ar em algum ponto do trato vocal,
com posterior soltura desse bloqueio. A plosiva bilabial vozeada [b] é
produzida por meio da constrição dos lábios com vibração concomitante
das pregas vocais, enquanto a plosiva [d] é produzida com a constrição da
ponta da língua contra a face interna dos dentes incisivos superiores ou
dos alvéolos, também com vibração das pregas vocais (LADEFOGED;
MADDIESON, 1996).
Do ponto de vista da dinâmica articulatória, a produção das
plosivas é identiicada por duas fases distintas: a fase de oclusão e a fase
de soltura (ISTRE, 1983). A fase de oclusão corresponde ao intervalo em
que os articuladores interrompem completamente a passagem de ar. Essa
fase é caracterizada somente pelo período de silêncio, no caso das plosivas
não-vozeadas, ou pelo período de silêncio associado à sonorização, no
caso das plosivas vozeadas. A fase de soltura, que corresponde à liberação
da corrente de ar previamente bloqueada em algum ponto do trato vocal,
é caracterizada pela espícula de plosão ou burst, seguida da região de
transição dos formantes para a vogal seguinte. Em geral, observa-se uma
798
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
espícula mais intensa para as plosivas não vozeadas [p, t, k] do que para
as plosivas vozeadas [b, d, g]. O burst se mostrou uma pista importante
para a distinção de consoantes plosivas (STEVENS; BLUMSTEIN,
1978) – o burst das plosivas bilabiais tem energia concentrada em
regiões de frequência mais baixas quando comparado ao das plosivas
alveolares. Em português brasileiro, os segmentos plosivos [p, b] são
os mais graves e têm energia em torno de 0,5-1,5 kHz. Os segmentos
[t, d] são considerados os mais agudos, com energia concentrada por volta
de 4 kHz, com um pico secundário fraco, em torno de 0,5 Hz (RUSSO;
BEHLAU, 1993).
Por im, também a transição de formantes ao início ou ao im da
consoante são pistas auditivas importantes para o ponto de articulação.
“As cavidades dentro do trato vocal agem como um iltro multirressoante
sobre o ar transmitido e nele imprimem uma estrutura correspondente
de formantes superposta à ina estrutura harmônica” (FANT, 1973, p. 5).
Os três primeiros formantes (F1, F2 e F3) são os mais importantes e
considerados suicientes para diferenciar as vogais. A transição, isto é,
a mudança nos valores dos formantes nessa região é considerada uma
pista auditiva importante para distinções lingüisticamente relevantes.
Por exemplo, espera-se observar diferenças nos valores do segundo
formante vocálico (F2) da vogal [a] que segue as fricativas [s] e [ʃ],
com uma frequência mais alta de F2 na vogal que segue a fricativa [ʃ],
quando comparada àquela que segue [s].2 Assim como nas fricativas,
a diferença entre [ba] e [da] se concentra principalmente na região de
transição de F2. Dessa forma, espera-se veriicar valores do F2 para [da]
maiores quando comparado a [ba], na região de transição dos formantes.
3 Análise acústica
Nesta parte do artigo, analisamos e descrevemos as propriedades
acústicas das fricativas [ʃ] e [s] e das plosivas [b] e [d] associadas à vogal
[a], em posição inicial de palavra. A análise visa a uma descrição acústica
desses sons considerando as características apresentadas na literatura,
incluindo aquelas ainda não descritas para o PB.
A explicação físico-acústica dos movimentos dos formantes em função das consoantes
vizinhas foi oferecida pela Teoria da Perturbação; ver apresentação resumida em Barbosa
e Madureira (2015, p. 106 et seq.)
2
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
799
3.1 Métodos
Os participantes deste estudo foram sete adultos do sexo
masculino, falantes nativos do português brasileiro de Belo Horizonte
(MG), com faixa etária entre 20 e 45 anos de idade. Os participantes
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, após serem
informados sobre os aspectos gerais da pesquisa. O estudo foi aprovado
pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas
Gerais (CAAE – 62617616.0.0000.5149).
As fricativas [ʃ] e [s] e as plosivas [b] e [d] foram registradas em
início de palavra, seguidas da vogal [a], nas palavras “chapa”, “sapa”,
“bata” e “data”. A gravação foi realizada em uma sala acusticamente
tratada, com a utilização de um notebook (Macbook Air), de um microfone
de cabeça (Philips) e do software Praat (versão 5.2.35) (BOERSMA;
WEENINK, 2011), com taxa de amostragem de 22,05 kHz. Cada palavra
foi produzida três vezes por cada um dos sete participantes. As palavras
foram inseridas na seguinte frase veículo: “Eu digo _______ para ela”.
Após a gravação, os dados de fala foram etiquetados e analisados.
A análise acústica dos dados de fala iniciou-se pela inspeção
visual do sinal de fala e do espectrograma. Em seguida, todas as
produções dos informantes foram segmentadas e etiquetadas, ou seja,
cada som foi identiicado em sua porção inicial e inal. Após a realização
da etiquetagem, os sons foram analisados separadamente. A análise
acústica dos segmentos fricativos, plosivos e da vogal [a] compreendeu
os seguintes parâmetros:
(a)
(b)
(c)
(d)
(e)
(f)
(g)
Duração total dos segmentos fricativos, plosivos e vocálicos;
Centro de gravidade (CG) do ruído fricativo;
Picos de amplitude e formantes do ruído fricativo;
Duração da pré-sonorização do segmento plosivo;
Duração da soltura da oclusão (do inglês, burst), representada
pela barra de plosão, nos segmentos plosivos;
Picos de amplitude e formantes da soltura da oclusão;
Valores dos três primeiros formantes vocálicos (F1, F2 e F3)
nas porções inicial e estável da vogal.
Descrevemos em maior detalhe a maneira como se obtiveram
essas medidas para cada classe de segmento analisada.
800
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
3.1.1 Propriedades acústicas dos segmentos fricativos
O ruído fricativo foi selecionado excluindo-se a região de
transição de formantes da vogal [a] seguinte às fricativas. Selecionado
o ruído, os valores dos formantes foram obtidos por LPC com base nos
seguintes parâmetros de análise: quantidade máxima de formantes = 6;
formante máximo = 8,5 kHz; janela = 0,025. Foram obtidos os valores de
frequência dos formantes de toda a porção selecionada do ruído fricativo
e calcularam-se os valores médios das seis frequências proeminentes
do ruído fricativo (F1 a F6). A obtenção dos valores das amplitudes
dos formantes do ruído fricativo foi realizada com base nos valores dos
formantes. A Figura 1 a seguir mostra a coniguração espectral dos ruídos
fricativos de [s] e [ʃ] de um dos informantes do estudo.
FIGURA 1 – Coniguração espectral dos ruídos fricativos em [ʃ] (linha pontilhada)
e em [s] (linha contínua) obtidos de um dos informantes do estudo
Fonte: Elaborada pelos autores.
O valor de CG foi obtido somente com a seleção de todo o ruído
fricativo excluindo a região de transição dos formantes da vogal [a]
seguinte às fricativas. Esse parâmetro não foi investigado separadamente,
ou seja, porção inicial, medial e inal do ruído, devido à constatação de
que há uma variação pequena nesses valores. Por im, a duração total do
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
801
ruído fricativo foi obtida selecionando-se o ruído fricativo, sem a porção
de transição dos formantes entre o ruído e a vogal subsequente.
3.1.2 Propriedades acústicas dos segmentos plosivos
O parâmetro acústico mais relevante nos segmentos plosivos para
a distinção entre [b] e [d] são as amplitudes do burst. Nos segmentos
[b] e [d], as amplitudes foram obtidas selecionando a soltura da fase
de oclusão. Para a seleção do burst utilizou-se como referência as
informações disponibilizadas pelo oscilograma e pela barra de explosão,
quando presente (FIG. 2). Na ausência da barra de explosão utilizaram-se
como referência as informações disponibilizadas pelo oscilograma. Dessa
forma, selecionou-se o ponto onde se observa a modiicação do traçado
no oscilograma e o início da produção vocálica com a identiicação de F2.
Após a identiicação e a seleção do burst, foram obtidos os valores
das amplitudes. Os valores dos formantes do burst foram obtidos da
mesma forma como se deu para as fricativas. Outro parâmetro analisado
foi a duração da fase de pré-sonorização e do burst dos segmentos
plosivos [b] e [d]. Esses parâmetros são mostrados na Figura 3, onde é
possível visualizar a barra de vozeamento, que corresponde à vibração
das pregas vocais durante a articulação desses sons, a região de soltura
da oclusão (burst) e a fase de pré-sonorização representada pela fase de
oclusão da plosiva.
3.1.3 Propriedades acústicas da vogal [a] seguinte às plosivas e às fricativas
As medidas temporais e espectrais dos três primeiros formantes
(F1, F2 e F3) foram obtidas manualmente por meio da análise do
espectrograma e do oscilograma. Na análise espectral dos formantes
vocálicos, os valores dos formantes foram obtidos por LPC com base nos
seguintes parâmetros de análise: amplitude (Hz) = 0 a 8 kHz; janela(s)
= 0,005; e amplitude dinâmica (dB) = 70 dB.
Os valores dos formantes vocálicos foram extraídos automaticamente pelo Praat, pelo método LPC, em dois principais momentos:
1) na porção inicial da vogal (onset vocálico; porção de transição dos
formantes entre a consoante e a vogal) e na porção estável da vogal, ou
seja, no momento em que se observou pequena variação entre os valores
dos formantes.
802
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
O ponto inicial da vogal, ou seja, de transição dos formantes,
foi selecionado com base nas informações oferecidas pelo oscilograma
e espectrograma. No oscilograma, é possível visualizar uma mudança
abrupta na amplitude entre a consoante e a vogal (FIG. 3). Após a
identiicação desse ponto no oscilograma, marcou-se o ponto no qual
se observou o início do primeiro pulso glótico e o início do segundo
formante vocálico visualizado no espectrograma. Nesse ponto, foram
obtidos os valores das frequências dos formantes (F1, F2 e F3), que
representaram a porção inicial da vogal.
FIGURA 2 – Sinal de fala e espectrograma da palavra /sapa/. Ponto de análise
da porção inicial da vogal [a] e seus formantes vocálicos (F1, F2 e F3)
Ponto de análise da porção inicial da vogal – primeiro pulso glótico
F3
F2
F1
Fonte: Elaborada pelos autores.
As iguras a seguir mostram o movimento do F1 e F2 na região
de transição dos formantes entre as fricativas [ʃ] e [s] e a vogal [a],
nas palavras “chapa” e “sapa”. Na igura da esquerda, observa-se um
decréscimo do valor do segundo formante (F2) entre a fricativa [ʃ] e a
vogal [a], conforme esperado.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
803
FIGURA 3 – F1 e F2 da vogal [a] seguinte à fricativa [ʃ], na palavra “chapa”
(à esquerda) e F1 e F2 da vogal [a] seguinte à fricativa [s], na palavra “sapa” (à direita)
Fonte: Elaborada pelos autores.
No caso da vogal precedida pelas fricativas, selecionou-se uma
porção de 0,03 s de ruído e 70 ms de vogal, com o intuito de auxiliar no
estabelecimento do ponto inicial da porção vocálica para extração dos
valores dos formantes. Em seguida, solicitou-se o “Formant listing”
disponibilizado pelo Praat, nas conigurações em “Formant”.
Os valores dos formantes da porção estável da vogal foram
deinidos pela visualização do movimento dos formantes no espectrograma
(pontos vermelhos) e pelos pulsos glóticos regulares no oscilograma.
Além disso, com o auxílio do “Formant listing”, selecionou-se 20 ms
da parte estável da vogal para obtenção do F1, F2 e F3.
Diante da vogal [a] precedida pelas plosivas, os valores dos
formantes foram obtidos da mesma forma como se deu nas fricativas. O
ponto inicial da vogal foi estabelecido a partir do primeiro pulso glótico
vocálico, logo após a barra de soltura da oclusão da consoante plosiva,
e com base na identiicação do segundo formante (F2). Já os valores
dos formantes da porção estável da vogal foram deinidos conforme a
descrição anterior.
As medidas de duração da vogal [a] foram obtidas selecionando
a vogal a partir do primeiro pulso glótico regular até o último pulso
regular dessa mesma vogal.
804
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
3.2 Resultados e considerações do estudo 1
Os resultados desse estudo são apresentados a seguir. Optou-se
por descrever os valores de cada informante, para possibilitar posterior
reanálise ou outra utilização desses dados. Apresentam-se também as
médias do grupo para cada parâmetro acústico, bem como os desviospadrão (dp). A normalidade dos dados foi estimada pelo teste de ShapiroWilks, e todos os resultados relatados aqui não violam a suposição de
normalidade, exceto quanto dito em contrário. A homogeneidade de
variância foi estimada pelo teste de Levene, e todos os resultados aqui
relatados também não violam essa suposição. As diferenças entre médias
foram avaliadas por meio de testes t de Student para amostras pareadas
(graus de liberdade = 6) ou pelo teste dos postos sinalizados de Wilcoxon,
nos poucos casos em que os dados violaram a normalidade.3
3.2.1 Propriedades acústicas das fricativas [s] e [ʃ]
3.2.1.1 Duração das fricativas
A duração total dos segmentos fricativos pode ser observada na
tabela abaixo.
TABELA 1 – Duração das fricativas [s] e [ʃ] (ms)
Informante
1
[s]
[ʃ]
192
194
2
160
145
3
176
189
4
183
177
5
158
171
6
141
142
7
178
197
Média
dp
169,7
17,5
173,6
22,5
Fonte: Elaborada pelos autores.
Legenda: dp = desvio padrão
3
Todas as análises estatísticas foram realizadas no software R (R CORE TEAM,
2016) utilizando os seguintes pacotes: stats, car (FOX; WEISBERG, 2011) e pastecs
(GROSJEAN; IBANEZ, 2014).
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
805
A Tabela 1 mostra que os valores médios de duração das fricativas
[s] e [ʃ] foram 169 ms e 173 ms; respectivamente. Esses valores são
próximos daqueles veriicados por Santos (1987): em posição inicial de
palavra seguido da vogal [a], a autora obteve valores médios de 165 ms
para [s] e 180 ms para [ʃ].
A duração das fricativas é considerada um parâmetro acústico
robusto para diferenciar as fricativas vozeadas das não-vozeadas. Em
geral, as fricativas não vozeadas são mais longas do que as vozeadas.
Esse fato foi observado nos trabalhos de Samczuk e Gama-Rossi (2004)
e Haupt (2007) para o português brasileiro. Entretanto, os resultados
aqui apresentados não possibilitam airmar que a duração seja uma pista
segura para diferenciar fricativas vozeadas das não-vozeadas, já que a
diferença entre elas não foi signiicativa (t = 0,85; p = 0,43).
3.2.1.2 Formantes e picos de amplitude do ruído fricativo
A Tabela 2 apresenta os valores dos seis formantes (F1-F6) das
fricativas [s] e [ʃ]. Esses valores não apresentam grande importância
para a síntese desses sons. No entanto, só é possível obter os valores dos
picos de amplitude dos sons fricativos a partir dos valores dos formantes.
Para a síntese das fricativas, o que importa são os valores dos picos de
amplitude A2F a A6F, que deinirão as regiões do espectro que serão
excitadas pelo ruído de fricção. Dessa forma, a discussão desse tópico
vai concentrar-se nos valores de amplitude, e a divulgação da Tabela 2 é
apenas informativa. A última linha da tabela apresenta os resultados dos
testes de diferença entre as médias. Os valores de F6 não condizem com
normalidade de dados, nem para [s] (W = 0,76; p = 0,016) nem para [ʃ]
(W = 0,624; p < 0,001).
806
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
TABELA 2 – Frequência dos formantes das fricativas [s] e [ʃ] (Hz)
Informante
1
2
3
4
5
6
7
Média
dp
Diferença
Fricativa
F1
F2
F3
F4
F5
F6
[s]
1904
3369
4635
5396
6224
7116
[ʃ]
2282
2999
3753
4913
5791
6810
[s]
1562
2719
3951
5063
5752
6390
[ʃ]
1721
2360
3108
4399
5307
6225
[s]
1430
2612
3856
5104
5762
6377
[ʃ]
1943
2554
3627
5430
5541
6270
[s]
1547
2813
4148
5120
5837
6440
[ʃ]
2248
2846
3410
4439
5490
6242
[s]
1734
2908
4106
5120
5742
6406
[ʃ]
1976
2781
3460
4722
5397
6153
[s]
1416
2973
4126
4723
5401
6180
[ʃ]
1993
2451
3287
4432
5519
6167
[s]
1674
2980
4337
5061
5892
6505
[ʃ]
1885
2662
3426
4594
5462
6208
[s]
1609,5
2910,5
4165,5
5083,8
5801,4
6487,7
[ʃ]
2006,8
2664,7
3438,7
4704,1
5501
6296,4
[s]
174,2
242,9
257,2
196,4
243,5
294,5
[ʃ]
198,1
226,9
211,3
369,7
150,6
230
5,11
-3,27
-8,09
-2,949
-3,967
28*
(0,002)
(0,017)
(0,0002)
(0,025)
(0,007)
(0,015)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Legenda: dp = desvio padrão;
Diferença = estimada pelo teste t de Student para amostras pareadas (entre
parênteses, a probabilidade associada ao teste t), exceto (*) estimada pelo teste
de Wilcoxon.
A tabela abaixo apresenta os picos de amplitude das fricativas
[s] e [ʃ], propriedade acústica que, tanto quanto se saiba, ainda não foi
investigada em nenhum estudo realizado para o Português Brasileiro.
807
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
TABELA 3 – Amplitude dos formantes das fricativas [s] e [ʃ] (dB)
Informante
1
2
3
4
5
6
7
Média
dp
Diferença
Fricativa
A2
A3
A4
A5
A6
[s]
17
29
39
38
29
[ʃ]
43
40
35
34
24
[s]
33
34
44
50
41
[ʃ]
61
50
37
38
30
[s]
35
39
44
44
34
[ʃ]
44
44
39
35
27
[s]
31
34
45
44
36
[ʃ]
55
48
39
37
28
[s]
17
23
46
43
28
[ʃ]
49
41
35
36
26
[s]
36
47
52
43
39
[ʃ]
59
52
46
44
40
[s]
30
41
44
47
39
[ʃ]
57
58
45
40
37
[s]
28,4
35,2
44,8
44,1
35,1
[ʃ]
52,5
47,5
39,4
37,7
30,2
[s]
8
7,9
3,8
3,7
5
[ʃ]
7,3
6,4
4,4
3,4
5,9
8,762
5,944
-3,99
-4,172
-3,104
(<0,001)
(0,001)
(0,007)
(0,006)
(0,021)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Legenda: dp = desvio padrão;
Diferença = estimada pelo teste t de Student para amostras pareadas (entre
parênteses, a probabilidade associada ao teste t).
A Tabela 3 mostra que as fricativas [s] e [ʃ] diferem substancialmente em relação aos valores dos picos de amplitude. A fricativa [s]
apresenta as maiores amplitudes concentradas em regiões mais altas de
808
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
frequência quando comparada com [ʃ]. Assim, a fricativa [s] apresentou
valores mais altos da quarta e da quinta amplitude (A4F e A5F), enquanto
a fricativa [ʃ] apresentou valores mais altos da segunda e da terceira
amplitude (A2F e A3F).
Os informantes 1 e 5 apresentaram valores mais baixos da
segunda e terceira amplitudes (A2F e A3F) para a fricativa [s] em
relação aos demais informantes. Dessa forma, o desvio padrão foi maior
nesse caso. Porém, tal fato não foi relevante, uma vez que se analisou
a tendência geral do grupo. Se esses informantes fossem excluídos da
análise, teríamos os valores de 33 dB para A2F e 39 dB para A3F e, ainda
assim, a quarta e a quinta amplitude apresentariam os maiores valores.
Tanto o informante 1 quanto o informante 5 apresentaram A4F e A5F
mais altos em relação aos demais valores de amplitude (A2F, A3F e A6F).
O mesmo ocorreu com a fricativa [ʃ]. Esses informantes apresentaram
valores mais baixos da segunda e terceira amplitudes quando comparados
ao grupo e, consequentemente, o desvio padrão foi maior.
Comparando as tabelas acima, observa-se que, como a fricativa
[s] apresentou valores maiores da quarta e da quinta amplitude (A4F e
A5F), os picos espectrais mais proeminentes desse segmento estão entre
5 kHz e 5,8 kHz. Esses valores de frequência foram extraídos da Tabela
2 e representam os valores médios da quarta e da quinta frequência (F4 e
F5) da fricativa [s] (5083,8 Hz e 5801,4 Hz respectivamente). Analisando
a fricativa [ʃ], observa-se que os picos espectrais mais proeminentes
concentram-se entre 2910,5 Hz e 3438,7 Hz, ou seja, em regiões de
frequências mais baixas quando comparada com [s]. Essa questão será
conirmada adiante com a extração dos valores do centro de gravidade.
3.2.1.3 Centro de gravidade do ruído fricativo
De acordo com a descrição realizada na seção 2, o centro de
gravidade (CG) pode ser deinido como a frequência abaixo (ou acima)
da qual estão concentradas 50% da energia de determinado som. A Tabela
4 mostra os valores desse parâmetro para as fricativas [s] e [ʃ].
809
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
TABELA 4 – Centro de gravidade das fricativas [s] e [ʃ] (Hz)
Informante
Fricativa [s]
Fricativa [ʃ]
1
5717
3499
2
5349
2601
3
4994
3200
4
5649
3097
5
5395
3461
6
4401
2745
7
5112
3166
Média
dp
5230
449,2
3109,8
336,2
Fonte: Elaborada pelos autores.
Legenda: dp = desvio padrão
Conforme esperado, a fricativa [s] apresentou valor signiicativamente maior de CG do que a fricativa [ʃ] (t = -13,91, p < 0,001). Quando
comparado com os demais estudos, observa-se que os valores do CG
obtidos com o estudo piloto são inferiores em relação aos valores
divulgados na pesquisa de Jongman, Wayland e Wongs (2000) para o
inglês americano. O CG da fricativa [s] foi 6882 Hz, e o da fricativa [ʃ]
foi 3712 Hz. Os valores obtidos aqui são mais próximos dos valores
descritos no trabalho de Gordon, Barthmaier e Sands (2002). O valor
maior de CG para a fricativa [s] foi 5463 Hz, e o menor para a fricativa
[ʃ] foi 4134 Hz. Embora não relatem valores de CG para o português
brasileiro, Russo e Behlau (1993) observaram que a fricativa [s] tem
faixas de frequência acima de 4,5 kHz chegando a 8 kHz, enquanto a
fricativa [ʃ] apresenta uma faixa de frequência entre 2,5 e 6 kHz, valores
compatíveis com os alcançados neste estudo.
3.2.2 Propriedades acústicas das plosivas [b] e [d]
3.2.2.1 Duração absoluta dos segmentos
A medida de duração absoluta dos segmentos plosivos foi obtida
por meio da análise da fase de pré-sonorização e da fase de soltura da
oclusão, ou seja, burst, conforme mostra a Tabela 5.
810
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
TABELA 5 – Duração das fases de pré-sonorização e de soltura da oclusão
em [b] e [d] (ms)
Informante
Pré-sonorização
Soltura da oclusão
[b]
[d]
[b]
[d]
1
146
96
13
13
2
74
52
11
12
3
101
56
12
15
4
97
80
12
9
5
93
75
11
10
6
92
72
9
12
7
108
73
12
11
Média
101,6
72
11,4
11,7
dp
22,2
14,75
1,3
1,9
Fonte: Elaborada pelos autores.
O valor de duração absoluta da fase de pré-sonorização encontrado
neste estudo foi maior para a plosiva [b] quando comparado com a plosiva
[d] (t = 5,71; p = 0,0012). Outros trabalhos do PB também revelaram
resultados semelhantes. Melo et al. (2011) investigou e comparou as
características acústicas das plosivas vozeadas e não vozeadas na fala
de crianças com desenvolvimento fonológico típico e de adultos, que
pertenciam ao grupo controle. Os pesquisadores analisaram a fala de 11
adultos e obtiveram os valores de duração da fase de oclusão de 98 ms
para [b] e 91 ms para [d], em posição de onset medial. Barbosa (1999)
também veriicou valores da fase de pré-sonorização maiores para a
plosiva [b] (86 ms) quando comparada com a plosiva [d] (71 ms). Da
mesma forma, em seu estudo dos parâmetros acústicos de plosivas
realizado com cinco informantes do sexo feminino, oriundas da região
de Criciúma, no sul do Estado de Santa Catarina, Alves (2015) observou
que a plosiva [b] apresentou o valor de duração absoluta de 101 ms,
enquanto a plosiva [d] apresentou a duração de 94 ms.
Por im, a Tabela 5 mostra os valores de duração da fase de soltura
da oclusão para as plosivas [b] e [d], onde observa-se que os valores
desse parâmetro foram muito próximos, sem diferenças signiicativas
entre esses dois segmentos (t = -0,34; p = 0,74). Lieberman e Blumstein
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
811
(1988) veriicaram que a duração do burst pode ser de 5 a 15 ms, valores
corroborados pelos achados deste estudo.
3.2.2.2 Picos de amplitude e formantes da soltura da oclusão
Nesta seção apresenta-se uma análise qualitativa dos parâmetros
de amplitude e dos formantes do burst das plosivas [b] e [d]. Essa análise
tornou-se necessária pela curta duração desse parâmetro. Dessa forma,
em 11 produções da plosiva [b] e em 5 produções da plosiva [d] não foi
possível obter o valor exato do sexto formante (F6). No entanto, como as
plosivas não têm valores altos de frequência que ultrapassem os 6 kHz,
o valor do sexto formante não foi considerado relevante para a posterior
síntese dos estímulos. Assim como nos sons fricativos, são os picos de
amplitude que irão determinar as regiões do espectro das plosivas que
serão excitadas pelo ruído de fricção.
Experimentos perceptuais realizados com as plosivas sintetizadas
no inglês, mostraram que o burst é considerado uma pista auditiva
importante para que os ouvintes façam a distinção entre essas categorias
de sons. Esses estudos também veriicaram que o pico espectral do burst
apresentou valores mais altos para as plosivas alveolares (acima de 4 kHz)
quando comparado com as plosivas bilabiais (entre 0,5 kHz e 1,5 kHz)
(STEVENS; BLUMSTEIN, 1977; HALLE; HUGHES; RADLEY, 1957).
No português brasileiro, Alves (2015) realizou um estudo das
características espectrais do burst das plosivas vozeadas e não vozeadas,
que envolveu a análise dos picos e dos momentos espectrais (centróide
ou média, variância, assimetria e curtose). Direcionando-se à análise
das plosivas vozeadas [b] e [d], assim como no inglês, a pesquisadora
também observou que a plosiva bilabial apresentou pico de energia em
regiões mais baixas de frequência quando comparada com a plosiva
alveolar (1189 Hz e 2324 Hz; respectivamente). No entanto, apesar de a
plosiva alveolar apresentar o valor do pico espectral mais elevado do que
a plosiva bilabial, esse valor icou abaixo dos valores obtidos no inglês.
Neste estudo, não se realizou uma análise detalhada dos
momentos espectrais do burst, uma vez que essas informações não são
relevantes para a posterior síntese dos estímulos. Conforme relatado,
a análise do burst concentrou-se nos picos de amplitude, parâmetro
fundamental para a geração dos estímulos sintéticos. Dessa forma, após
a extração e a análise das amplitudes do burst, observou-se que a plosiva
812
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
bilabial [b] apresentou picos de energia mais intensos em regiões mais
baixas de frequência, referente à região do segundo e terceiro formantes
(A2F-A3F). Já a plosiva alveolar [d] apresentou picos de energia mais
intensos em regiões mais altas de frequência, compatível com a região
de frequência do quarto e do quinto formantes (A4F-A5F). A forma
espectral da plosiva [b] foi mais plana quando comparada com a plosiva
[d] (FIG. 4). À esquerda, observa-se a forma espectral do burst da plosiva
[b] na palavra /bata/ e da plosiva [d] na palavra /data/. Essa tendência
corrobora os achados descritos anteriormente para o inglês e para o PB.
FIGURA 4 – Forma espectral do burst da plosiva [b] (linha contínua) e da plosiva [d]
(linha pontilhada) obtidas de um dos informantes do estudo
Fonte: Elaborada pelos autores.
A seguir, serão abordados os últimos parâmetros analisados
neste estudo que são as medidas de duração vocálica e dos valores dos
formantes da vogal [a] seguinte às fricativas e às plosivas. Os valores
de duração da vogal foram obtidos apenas com o intuito de contribuir
com a síntese de fala baseada nas propriedades acústicas dos falantes
nativos do PB.
813
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
3.2.3 Propriedades acústicas da vogal [a] seguinte às fricativas
A Tabela 6 mostra os valores de duração da vogal [a] seguinte às
fricativas [s] e [ʃ]. Observa-se que a vogal [a] seguinte às fricativas [s]
e [ʃ] apresentou valores de duração próximos, porém estatisticamente
diferentes (t = 4,38; p = 0,005).
TABELA 6 – Duração da vogal [a] seguinte às fricativas (ms)
Informante
[s_]
[ʃ_]
1
127
129
2
142
155
3
173
178
4
150
155
5
119
131
6
145
149
7
170
177
Média
146,6
153,4
dp
20,1
19,5
Fonte: Elaborada pelos autores.
Legenda: [s_] = valores de duração da vogal [a] seguinte a [s];
[ʃ_] = valores de duração da vogal [a] seguinte a [ʃ];
dp = desvio padrão
A Tabela 7 apresenta os valores dos três primeiros formantes da
vogal [a], na região de transição dos formantes e na região estável da
vogal. Os valores dos formantes na região de transição foram retratados
na tabela com a palavra “inicial”, ou seja, os valores do F1, F2 e F3 inicial
relacionam-se à região de transição dos formantes entre o segmento
fricativo e a vogal. Além disso, a descrição [s_] na coluna “Contexto”
refere-se aos valores dos formantes da vogal [a] seguinte a [s], enquanto
a descrição [ʃ_] refere-se aos valores dos formantes da vogal [a] seguinte
a [ʃ].
814
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
TABELA 7 – Frequência dos formantes da vogal [a] seguinte às fricativas [s] e [ʃ] (Hz)
Informante
1
2
3
4
5
6
7
Média
dp
Diferença
Contexto
F1
inicial
F1
estável
F2
inicial
F2
estável
F3
inicial
F3
estável
[s_]
526
717
1433
1413
3084
2837
[ʃ_]
505
687
1550
1396
3077
2844
[s_]
529
739
1211
1210
2491
2447
[ʃ_]
502
732
1530
1228
2331
2335
[s_]
496
661
1263
1208
2570
2397
[ʃ_]
441
631
1607
1218
2602
2242
[s_]
554
679
1375
1415
2595
2503
[ʃ_]
545
670
1694
1536
2775
2767
[s_]
616
768
1389
1366
2863
2584
[ʃ_]
613
819
1579
1369
2878
2444
[s_]
537
662
1285
1311
2453
2310
[ʃ_]
543
696
1511
1370
2375
2300
[s_]
582
768
1224
1348
2400
2366
[ʃ_]
540
797
1641
1362
2984
2379
[s_]
548,5
713,4
1311,4
1324,4
2636,6
2492
[ʃ_]
527
718,8
1587,4
1354,1
2717,4
2473
[s_]
39,7
46,9
87,1
86,7
247,8
176,8
[ʃ_]
52,7
68,2
64,8
107,8
291,4
236,6
-2,63
0,44
7,1
1,7
0,87
-0,35
(0,039)
(0,673)
(<0,001)
(0,14)
(0,416)
(0,74)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Legenda: [s_] = valores dos formantes da vogal [a] seguinte a [s];
[ʃ_] = valores dos formantes da vogal [a] seguinte a [ʃ];
dp = desvio padrão.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
815
Conforme esperado, observa-se uma pequena variação nos valores
do primeiro formante (F1), tanto na região de transição dos formantes, em
que a diferença foi signiicativa, quanto na porção estável da vogal. Como
este estudo analisou somente a vogal [a], esse fato era esperado, uma vez
que o F1 relaciona-se ao grau de abertura de uma vogal e a altura da língua.
O valor do segundo formante (F2) na região de transição dos
formantes foi maior para a vogal [a] seguinte à fricativa [ʃ] quando
comparada com a fricativa [s] (1578 Hz e 1311 Hz, respectivamente), uma
diferença altamente signiicativa. Esse fato também era esperado porque
o valor do F2 está diretamente relacionado com o grau de anteriorização
da língua. Como na produção do segmento [ʃ] a língua encontra-se mais
posterior na cavidade oral quando comparado com o segmento [s],
espera-se que valor do F2 seja mais alto para [ʃ]. No entanto, observa-se
uma pequena variação nos valores médios da frequência do F2 da vogal
[a] seguinte a fricativa [s], quando se compara os valores da região de
transição dos formantes e da região estável da vogal (1311-1324 Hz).
Nos estudos de percepção da fala que investigam a ponderação
de pistas auditivas,4 desenvolvidos por Nittrouer no inglês americano,
a pesquisadora produziu a vogal [a] sintetizada que seguiu as fricativas
[s] e [ʃ] com os seguintes valores (inicial e estável) dos formantes: F1
(450 Hz-650 Hz), F2 (1250 Hz-1130 Hz) e F3 (2464 Hz-2300 Hz) para
a vogal [a] seguinte a fricativa [s]; F1 (450 Hz-650 Hz), F2 (1570 Hz1130 Hz) e F3 (2000 Hz-2300 Hz) para a vogal [a] seguinte a fricativa [ʃ]
(NITTROUER, 2002). Esses valores foram obtidos por meio da análise
das propriedades acústicas de um falante nativo do inglês americano.
Dessa forma, constata-se uma variação maior dos valores do F2 (inicial e
estável) da vogal [a] seguinte a fricativa [ʃ] (440 Hz) quando comparado
com a fricativa [s] (120 Hz), assim como se veriicou no presente estudo.
Porém, observa-se que essa variação nos valores do F2 (inicial e estável)
da vogal [a] seguinte a fricativa [s], veriicada neste estudo (1311 Hz1324 Hz), foi menor quando comparada com os estudos desenvolvidos
por Nittrouer (1250 Hz-1130 Hz).
A ponderação de pistas auditivas pode ser deinida como o peso perceptivo atribuído
pelos ouvintes às pistas auditivas ao distinguir os sons da fala.
4
816
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
3.2.4 Propriedades acústicas da vogal [a] seguinte às plosivas
A Tabela 8 mostra que a vogal [a] seguinte às plosivas [b] e [d]
apresentou valores de duração muito próximos, cuja diferença não se
revelou signiicativa (t = 0,81; p = 0,45).
TABELA 8 – Duração da vogal [a] seguinte às plosivas (ms)
Informante
[b_]
[d_]
1
185
133
2
143
101
3
165
188
4
145
151
5
149
189
6
171
165
7
204
157
Média
166
154,8
dp
22,7
30,9
Fonte: Elaborada pelos autores.
Legenda: [a]_/ba/ = valores de duração da vogal [a] seguinte a [b];
[a]_/da/ = valores médios da duração da vogal [a] seguinte a plosiva [d];
dp = desvio padrão
Os valores dos três primeiros formantes (F1, F2 e F3) da vogal
[a] seguinte às plosivas [b] e [d] podem ser visualizados na Tabela 9.
817
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
TABELA 9 – Frequência dos formantes da vogal [a] seguinte às plosivas [b] e [d] (Hz)
Informante
Contexto
F1
inicial
F1
estável
F2
inicial
F2
estável
F3
inicial
F3
estável
[b_]
603
715
1268
1374
2725
2804
[d_]
419
721
1814
1608
2568
2396
[b_]
513
751
1062
1223
2397
2505
[d_]
487
669
1717
1596
2297
2183
[b_]
457
625
1045
1016
2502
2417
[d_]
439
750
1972
1537
2572
2572
[b_]
576
692
1199
1356
2233
2441
[d_]
422
625
2090
1317
2708
2562
[b_]
524
744
1146
1258
2490
2480
[d_]
518
803
1826
1742
2436
2546
[b_]
508
739
1111
1265
2352
2474
[d_]
465
640
1996
1563
2806
2424
[b_]
586
720
1166
1288
2349
2321
[d_]
544
889
1701
1485
2968
2310
[b_]
538,1
712,3
1142,4
1254,3
2435,4
2491,7
[d_]
470,6
728,1
1873,7
1549,7
2622,1
2427,5
[b_]
52
43,4
77,9
118,1
157,1
150,2
[d_]
48,2
94,7
148,1
129,8
226
145,8
2,517
-0,397
-11,537
-4,103
1,545
0,776
(0,045)
(0,705)
(<0,0001)
(0,006)
(0,17)
(0,467)
1
2
3
4
5
6
7
Média
dp
Diferença
Fonte: Elaborada pelos autores.
Legenda: [b_] = valores dos formantes da vogal [a] seguinte a [b];
[d_] = valores dos formantes da vogal [a] seguinte a [d];
dp = desvio padrão
A Tabela 9 mostra que, na região de transição dos formantes, o
valor de F2 para [da] é maior quando comparado com [ba]. Isso ocorre,
818
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
pelo fato da plosiva alveolar [d] apresentar ponto de articulação mais
posterior do que a plosiva bilabial [b].
Nos estudos que investigaram a percepção do ponto de articulação
das plosivas do inglês americano, desenvolvidos por Stevens e Blumstein
(1978) e Walley e Carrell (1983), os pesquisadores produziram a vogal
[a] sintetizada, que seguiu as plosivas [b] e [d], com os seguintes valores
(inicial e estável) dos segundo e do terceiro formantes: F2 (900 Hz1240 Hz) e F3 (2000 Hz-2500 Hz) para a vogal [a] seguinte a plosiva [b];
F2 (1700 Hz-1240 Hz) e F3 (2800 Hz-2500 Hz) para a vogal [a] seguinte
a plosiva [d]. Estes estudos veriicaram valores maiores do F2 para a
vogal [a] seguinte a plosiva [d]. Além disso, observa-se um aumento
de 340 Hz dos valores do F2 (inicial e estável) da vogal [a] seguinte a
plosiva [b] e uma diminuição de 460 Hz dos valores do F2 da vogal [a]
seguinte a plosiva [d].
No presente estudo, nota-se um aumento de 112 Hz dos valores
médios do F2 (inicial e estável) da vogal [a] seguinte a plosiva [b] e
uma diminuição de 324 Hz dos valores do F2 da vogal [a] seguinte a
plosiva [d]. Por im, a Tabela 9 revela um decréscimo nos valores do
terceiro formante (inicial e estável) da vogal [a] seguinte a plosiva [d], o
que foi veriicado nos estudos desenvolvidos com o inglês (STEVENS;
BLUMSTEIN, 1978; WALLEY; CARRELL, 1983). Assim como o F2,
o terceiro formante também foi considerado uma pista importante para
distinção do ponto de articulação das plosivas. Entretanto, no presente
estudo, a diferença nos valores de F3 não foi signiicativa nem na posição
inicial nem na parte estável da vogal.
3.3 Resumo dos achados da análise acústica
Neste estudo, analisaram-se o dados de fala de sete falantes
nativos do PB com o intuito de caracterizar as propriedades acústicas
das fricativas [ʃ] e [s] e das plosivas [b] e [d] seguidas da vogal [a] em
posição inicial de palavra. Essa análise foi desenvolvida enfocando duas
questões: quais as principais pistas auditivas que auxiliam os ouvintes a
diferenciar esses sons e que parâmetros acústicos contribuem para uma
posterior síntese desses sons em estudos perceptivos?
Com base na análise dos dados, veriicou-se que as fricativas [ʃ]
e [s], por serem sons não-vozeados, apresentaram valores de duração
próximos. Isso é condizente com a observação que se nota na literatura,
ou seja, de que a duração é utilizada principamente para distinguir
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
819
vozeamento, característica não analisada aqui. No caso das plosivas [b]
e [d], observou-se que a duração absoluta da fase de pré-sonorização
foi maior para a plosiva [b] quando comparada com a plosiva [d]. No
entanto, foram observados valores próximos de duração da fase de soltura
da oclusão.
Em relação às principais pistas auditivas que contribuem para
a distinção das fricativas [ʃ] e [s], ou seja, os picos de amplitudes dos
sons fricativos e a região de maior concentração de energia, veriicouse que a fricativa [s] apresentou picos de amplitude mais proeminentes
em regiões mais altas de frequência quando comparada com a fricativa
[ʃ] e apresentou também valor médio maior de CG do que a fricativa [ʃ]
(5231 Hz e 3110 Hz; respectivamente). Quanto às plosivas, observouse que a plosiva alveolar [d] apresentou picos de energia mais intensos
em regiões mais altas de frequência quando comparada com a plosiva
bilabial [b].
Por fim, os resultados relacionados à vogal [a] mostraram
pequenas diferenças nos valores de F1 e de F3 da vogal [a] seguinte às
fricativas [ʃ] e [s], enquanto F2 apresentou valores mais altos para a vogal
[a] seguinte a fricativa [ʃ]. Em relação a vogal [a] seguinte às plosivas,
observaram-se valores próximos do F1 da vogal [a] tanto diante da
plosiva [b] quanto da plosiva [d]. No entanto, veriicou-se uma variação
nos valores inicial e estável do F2 e do F3, com valores maiores desses
formantes para a vogal [a] seguinte a plosiva [d].
Após descrição e análise das propriedades acústicas dos estímulos,
na próxima seção será abordado o experimento de classiicação.
4 Experimento de classiicação
Este estudo tem o objetivo de investigar, por meio de uma tarefa
de classiicação, as pistas auditivas para diferenciar as palavras /ʃapa/-/
sapa/ e /bata/-/data/. Essa tarefa induz a utilização de representações
fonológicas, o que possibilita aos ouvintes demonstrarem percepção
categórica. Com as informações obtidas no estudo anterior, de análise
acústica, é possível conhecer valores que descrevem as variáveis em
foco. Porém, a fala é variável, e é preciso, além disso, conhecer também
qual o limite no qual esses parâmetros podem variar sem comprometer a
identiicação do segmento. Por meio da técnica apresentada nesta seção, é
possível estimar até que ponto o ouvinte tolera a mudança em determinado
parâmetro, a partir do qual ele/ela começa a ouvir outro segmento.
820
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
4.1 Métodos
4.1.1 Participantes do estudo
Participaram oito adultos do sexo feminino, falantes nativos do
português brasileiro de Belo Horizonte, com faixa etária entre 20 e 45
anos de idade, sem histórico signiicativo de otite média, de colocação
de tubo de ventilação ou de perda auditiva. Qualquer comprometimento
da audição foi descartado por meio de triagem auditiva, utilizando um
audiômetro AD28. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, após serem informados sobre os aspectos gerais da
tarefa de classiicação.
4.1.2 Estímulos
A síntese de estímulos foi realizada de acordo com Nittrouer e
Miller (1996). Criaram-se dois contínuos de sons da fala para investigar
a distinção de fricativas e dois, para a distinção de plosivas. Isto é, para
as fricativas criaram-se duas séries de dez sons cada, com o primeiro
som mais semelhante a [ʃ], e o último mais próximo a [s]. Para plosivas,
duas séries entre [b] e [d]. Em cada série, um som difere pouco a pouco
do som anterior, formando um contínuo que varia ao longo de uma
única dimensão. Assim, manipulam-se duas variáveis: uma ao longo do
contínuo e outra, entre os contínuos. Esse tipo de desenho experimental
possibilita uma investigação do efeito perceptual das duas pistas. Um
ouvinte que não é inluenciado pela pista que muda entre os contínuos,
ou seja, a pista de transição dos formantes para as fricativas e a pista de
amplitudes do burst para as plosivas, perceberá os dois contínuos como
sendo uma mesma série. Ao contrário, um ouvinte que é inluenciado pela
pista que muda entre os contínuos perceberá diferença entre as duas séries.
Além disso, a pista que muda lentamente ao longo do contínuo possibilita
avaliar em que ponto da série (isto é, a partir de quais características
acústicas) o ouvinte passa a identiicar o som como pertencente a outra
categoria sonora.5
Os detalhes da investigação da percepção da fala por meio de tarefas psicoacústicas
estão além dos limites do presente trabalho, que pode ser complementado com a
discussão mais técnica sobre as tarefas, em SCHOUTEN; GERRITS; VAN HESSEN
(2003). Uma breve introdução ao assunto em português encontra-se em SILVA;
ROTHE-NEVES (2009).
5
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
821
Todos os estímulos foram sintetizados por meio do software
Sensyn, implementação de KLATT (KLATT, 1990). O sintetizador de
formantes proposto por Klatt (1979) requer dois tipos de parâmetros de
controle: 12 parâmetros que permanecem constantes ao longo de todo
o enunciado sintetizado e 48 parâmetros variáveis em que os valores
podem ser modiicados ao longo do tempo. Os parâmetros variáveis são
atualizados a cada 5 ms. Os valores de referência desses parâmetros,
utilizados para a síntese de todos os estímulos, foram baseados na
amostra de fala de um dos informantes que participaram do estudo citado
anteriormente (informante 5, Tabelas 8 e 10), que apresentou os valores
dos formantes vocálicos mais próximos da média.
Os sons da primeira sílaba de cada palavra foram sintetizados
separadamente, uma vez que as pistas auditivas dinâmicas e estáticas
do experimento foram manipuladas somente na primeira sílaba de cada
palavra. Por exemplo, a fricativa [s] e a vogal [a] da primeira sílaba da
palavra /sapa/ foram sintetizadas separadamente, enquanto a segunda
sílaba /pa/, da palavra /sapa/, foi sintetizada em conjunto. Feito isso, os
sons foram concatenados no Praat. A segunda sílaba das palavras foi
sintetizada somente com o intuito de produzir a fala de forma natural,
sendo que nenhuma pista auditiva foi manipulada.
4.1.2.1 Contínuos /sapa/-/ʃapa/
No caso das fricativas, a altura da frequência do ruído fricativo
foi manipulada ao longo do contínuo e, entre os contínuos, a transição de
F2 e F3 no início da vogal. Manipulou-se a altura da frequência do ruído
fricativo a partir de uma frequência apropriada para [s] (5633 Hz) para
uma frequência apropriada para [ʃ] (3830 Hz). Os demais oito ruídos do
contínuo foram gerados por interpolação, amostra por amostra, entre as
amplitudes relativas dos envelopes espectrais desses dois sons de ruído.6
O primeiro e o décimo ruído constituíram as extremidades do contínuo
fricativo. Observa-se, na Figura 5, que o ruído 1 (em preto, linha contínua)
apresenta os picos de amplitude em regiões de frequência mais baixas
quando comparado ao ruído 10 (em vermelho). Dessa forma, o ruído 1
representou a fricativa [ʃ], enquanto o ruído 10 representou a fricativa
[s]. A duração dos ruídos fricativos foi de 160 ms, e a intensidade foi
ajustada em 55 dB com base na análise dos estímulos naturais de fala.
O script pode ser encontrado em <http://www.holgermitterer.eu/HM/sample_
interpolation.praat>. Acessado em: 17 mar. 2017.
6
822
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
FIGURA 5 – Envoltórios espectrais obtidos em 50 ms em torno do ponto central do
primeiro (em preto, linha contínua) e décimo (em vermelho) ruídos fricativos
Fonte: Elaborada pelos autores.
Essa técnica de interpolação dos envelopes espectrais está
de acordo com o fato de que é o todo que parece ser importante para
a percepção da distinção de ponto, mais a transição de formantes
subsequente, e não uma ou outra característica espectral (WHALEN,
1991). Por outro lado, isso coloca um problema para a manipulação
experimental. A investigação psicofísica envolve a manipulação de uma
variável contínua que provoca efeitos descontínuos (ou categóricos,
neste caso). Em geral, utiliza-se a frequência central (center frequency)
para indicar a altura da frequência do ruído fricativo. Mas a interpolação
resulta numa série de ruídos cujos envelopes espectrais formam, de fato,
um contínuo (como se vê na igura anterior), sem que isso se relita
num contínuo de valores de centro de gravidade cujos estímulos se
diferenciem em passos de igual tamanho. A Tabela 11 abaixo mostra os
valores obtidos de CG (em Hz) para cada ruído obtido por interpolação
entre o primeiro e o último da série. Nota-se que a diferença de um
valor a outro de frequência (coluna “∆ Hz”) nunca é a mesma. Por isso,
optou-se por utilizar como variável independente contínua a ordem dos
823
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
estímulos no contínuo (coluna “Item”). Para manter a homogeneidade de
procedimentos, o mesmo foi utilizado para a classiicação das plosivas.
FIGURA 6 – Envoltórios espectrais obtidos em 50 ms em torno do ponto central dos
ruídos fricativos de [ʃ] (esquerda) e de [s] (direita).
Fonte: Elaborada pelos autores.
Legenda: Em linha contínua, sons originais obtidos de um dos informantes do estudo;
em linha pontilhada, sons sintetizados.
A Figura 6 possibilita apreciar a qualidade da síntese, comparandose os espectros obtidos de um informante com os sons sintetizados.
TABELA 10 – Valores de CG (Hz) do ruído fricativo dos estímulos produzidos por
interpolação e a diferença (Hz) entre um estímulo e o antecedente no contínuo
Item
Centro de Gravidade (Hz)
∆ Hz
1
3830
182
2
4012
400
3
4412
440
4
4852
336
5
5188
211
6
5399
121
7
5520
65
8
5585
33
9
5618
15
10
5633
-
Fonte: Elaborada pelos autores.
824
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
Quanto à transição de formantes, sintetizou-se um contínuo
com transições vocálicas apropriadas, para acompanhar [s], e outro,
para acompanhar [ʃ]. A pista auditiva manipulada no caso das vogais
foi a transição do segundo e do terceiro formantes (F2 e F3). A Tabela
12 apresenta os valores inicial e estável das frequências dos formantes
vocálicos (F1, F2 e F3).
TABELA 11 – Valores das frequências dos formantes
da vogal [a] seguinte às fricativas [s] e [ʃ] em (Hz)
Contexto
F1
F2
F3
inicial
estável
inicial
estável
inicial
estável
[s_]
616
768
1389
1366
2863
2584
[ʃ_]
613
819
1579
1369
2878
2444
Fonte: Elaborada pelos autores.
A duração da vogal foi de 140 ms, e a intensidade foi ajustada
em 70 dB. Os valores dos formantes estabilizaram em 50 ms. A f0 do
informante, copiada para a síntese, apresentou o valor inicial de 124 Hz
e o valor inal de 112 Hz.
4.1.2.2 Contínuos /bata/-/data/
Os contínuos compostos de par mínimo /bata/-/data/ foram
criados de maneira diferente dos sons anteriores. Isso porque, no caso
das plosivas, as duas pistas auditivas manipuladas foram a amplitude da
explosão de soltura (burst) e a transição de F2 e F3 no início da vogal.
Criaram-se duas amplitudes de burst e nove vogais que diferiram em
relação aos valores de transição do segundo e do terceiro formantes
(F2 e F3). Ou seja, diferentemente das fricativas, a pista que variou
de forma idêntica nos dois contínuos do par mínimo /bata/-/data/ foi a
transição de F2 e F3, com valores dos formantes apropriados para [b]
num extremo até valores dos formantes apropriados para [d] no outro.
Os valores iniciais de F2 foram modiicados em passos uniformes de
88 Hz, de uma frequência apropriada para acompanhar [b] (vogal 1) para
uma frequência apropriada para acompanhar [d] (vogal 9). Da mesma
forma, os valores iniciais de F3 foram manipulados em passos uniformes
de 34 Hz. A tabela a seguir mostra os valores inicial e estável de F2 e F3.
825
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
Os valores estáveis do F2 e do F3 também foram idênticos para todos os
exemplares de vogal do contínuo, em 1400 Hz e 2460 Hz, respectivamente
(TAB. 12). Esses valores foram obtidos pela média dos valores estáveis
do F2 e do F3, descritos no estudo anterior. O primeiro formante (F1)
apresentou valores idênticos para todas as vogais, iniciando em 503 Hz e
alcançando o valor de 710 Hz em 50 ms. A duração das vogais [a] foi de
140 ms, e a intensidade foi ajustada em 70 dB. Os valores dos formantes
estabilizaram em 50 ms. A f0 iniciou em 132 Hz e manteve-se 128 Hz
ao longo da vogal.
TABELA 12 – Valores de frequência dos formantes
do contínuo vocálico [a] seguinte às plosivas [b] e [d] (em Hz)
Valores das frequências dos formantes da vogal [a] sintetizada seguinte às plosivas
Vogal
F2 inicial
F2 estável
F3 inicial
F3 estável
1
1111
1400
2352
2460
2
1199
1400
2386
2460
3
1287
1400
2420
2460
4
1375
1400
2454
2460
5
1463
1400
2488
2460
6
1551
1400
2522
2460
7
1639
1400
2556
2460
8
1727
1400
2590
2460
9
1815
1400
2624
2460
Fonte: Elaborada pelos autores.
A amplitude do burst foi a pista manipulada entre contínuos.
Foram produzidas duas amplitudes do burst: uma amplitude com picos de
energia mais intensos em regiões mais baixas de frequência (compatível
com [b]), e outra com picos de energia mais intensos em regiões mais
altas de frequência (compatível com [d]). A duração total dos estímulos
para plosivas foi de 100 ms, isto é, 85 ms de fase de pré-sonorização e
15 ms de burst. A intensidade das plosivas foi ajustada em 55 dB.
As iguras a seguir mostram os melhores exemplares dos pares
mínimos /ʃapa/-/sapa/ e /bata/-/data/ após a síntese.
826
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
FIGURA 6 – Espectrogramas dos melhores exemplares das palavras fricativas
sintetizadas. À esquerda /ʃapa/ e à direita /sapa/
Fonte: Elaborada pelos autores.
FIGURA 7 – Espectrogramas dos melhores exemplares das palavras plosivas
sintetizadas. À esquerda /bata/ e à direita /data/
Fonte: Elaborada pelos autores.
4.2 Procedimento experimental
Os estímulos foram apresentados aos participantes por meio de
fones de ouvido Philips, acoplados a um laptop HP Pavilion dv2000.
Com o software PercEval (versão 3.0.5.0), realizou-se uma tarefa de
classiicação em que os participantes ouviam cada estímulo e tinham de
decidir em qual categoria classiicá-lo entre as possibilidades dispostas na
tela do laptop (por exemplo, /ʃapa/ ou /sapa/). As Figuras 8 e 9 mostram
a tela de exibição dos estímulos no software PercEval para os pares
mínimos /ʃapa/-/sapa/ e /bata/-/data/. Abaixo das imagens, à esquerda,
inseriu-se um círculo vermelho e, abaixo das imagens, à direita, um
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
827
círculo azul. Os mesmos símbolos coloridos também estavam dispostos
nas teclas “ctrl” do lado direito e do lado esquerdo do laptop, utilizadas
pelos participantes para registro de sua resposta.
O intervalo para registro da resposta foi de cinco segundos, após o
que, se o participante não respondesse, iniciava-se uma nova prova, com
a tela vazia exibida por um segundo, antes da apresentação do próximo
estímulo. Foram apresentadas seis repetições para cada estímulo, para
ambos os pares mínimos.
FIGURA 8 – Tela de exibição do par mínimo /ʃapa/-/sapa/
Fonte: Elaborada pelos autores.
FIGURA 9 – Tela de exibição do par mínimo /bata/-/data/
Fonte: Elaborada pelos autores.
828
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
4.3 Plano de análise
Para esse paradigma experimental, em que se obtêm respostas
numa curva, a análise estatística mais apropriada é a regressão logística,
que possibilita estimar a probabilidade de uma resposta binária
(categórica) a partir da mudança em uma variável contínua. Utilizou-se
a análise de regressão logística com função probito num modelo misto
por meio do pacote lme4 (BATES; MAECHLER; BOLKER; WALKER,
2015) do software R (R CORE TEAM, 2016).
Um modelo misto incorpora tanto efeitos fixos, que são
os parâmetros associados a certos níveis reprodutíveis de fatores
experimentais (isto é, a manipulação experimental), e fatores
aleatórios, associados a unidades experimentais individuais amostradas
aleatoriamente de uma população (isto é, aquela variação devida aos
participantes da pesquisa) (PINHEIRO; BATES, 2000; QUENÉ; VAN
DEN BERGH, 2004). Assim, modelos mistos levam em consideração a
correlação entre as observações dentro de uma unidade experimental –
ou medidas repetidas. Com isso, é possível modelar, ao mesmo tempo,
a separação e a inclinação das curvas de resposta, bem como quantiicar
a importância da variância no nível dos sujeitos em apenas um passo
analítico. Embora os modelos de efeitos mistos venham se tornando
padrão na pesquisa linguística quantitativa (BAAYEN; BATES, 2008;
JAEGER, 2008; JOHNSON, 2009; QUENÉ; VAN DEN BERGH, 2004,
2008), tanto quanto se saiba, apenas uma vez foi utilizado para investigar
a ponderação de pistas na pesquisa de percepção da fala (CHRABASZCZ;
WINN; LIN; IDSARDI, 2014).7
4.4 Resultados e considerações da tarefa de classiicação
Os objetivos de uma tarefa de classiicação são (1) veriicar
se a mudança progressiva na variável manipulada dentro do contínuo
produziu o efeito de percepção categórica; (2) veriicar se há diferença
na inclinação da curva de respostas em função da variável manipulada
entre os contínuos, o que indica interação entre as variáveis; e (3) veriicar
se a distância entre as curvas de respostas é signiicativa, o que indica
Mais recentemente, Nixon et al. (2016) investigaram a variação intracategórica na
percepção de vozeamento e tom no cantonês, utilizando a mesma técnica de análise
aplicada a dados obtidos a partir de outro método experimental.
7
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
829
a necessidade de dois níveis na variável entre contínuos (ou seja, que a
manipulação entre contínuos se justiica).
FIGURA 10 – Curvas de resposta para classiicação de fricativas
Fonte : Elaborada pelos autores.
Legenda: Círculos e triângulos representam a percentagem média de resposta
[(s)a] para cada nível de frequência de ruído em ambos os contínuos.
Barras verticais indicam o erro padrão da média. Linhas contínua e
pontilhada representam valores preditos pelo modelo não linear misto.
A Figura 10 apresenta as respostas dos participantes para
classiicação das fricativas, bem como resultados da análise estatística
(erro padrão da média e curvas de valores preditos pelo modelo não linear
misto). Nessa igura, apresenta-se a proporção em que os participantes
indicaram ter ouvido /sapa/ entre todas as repetições de cada estímulo.
Isso foi feito de modo a tornar possível visualizar um S alongado em
função do aumento da frequência do ruído fricativo. Como já dito, a
frequência do ruído fricativo é mais alta para [s] do que para [ʃ]. Os
traços verticais representam o erro padrão da média, uma medida da
830
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
variabilidade de respostas dos participantes; note-se que os traços são
mais longos no centro, na parte ascendente das curvas, que é a região
de maior incerteza.
Consoante ao objetivo (1) supramencionado, a Figura 10
possibilita avaliar se a resposta dos participantes muda abruptamente
de [ʃ] para [s]: os participantes apresentaram curvas de classiicação
íngremes, em formato de S alongado, o que indica o efeito de respostas
categóricas. Além disso, observa-se que as curvas de classiicação
encontram-se mais íngremes quando se trata dos estímulos compostos das
transições de formantes apropriadas para acompanhar [ʃ], e essa diferença
de inclinação resulta em curvas que parecem mais próximas no topo da
fase ascendente do que na sua base. Se conirmado pela análise estatística,
isso quer dizer que há interação entre essas variáveis, a inclinação é
diferente em função da transição de formantes que acompanha o ruído.
Finalmente, o contínuo de estímulos com transições apropriadas para [s]
mostra que o grupo atinge o limiar de 50% de respostas [s] entre o 5º e
o 6º estímulos do contínuo, antes daquele com transições apropriadas
para [ʃ], em que esse ponto é alcançado após o 6º estímulo. Isso quer
dizer que, utilizando a transição adequada, ou seja, a pista que melhor
serve à resposta [s], os mesmos ruídos são avaliados como pertencentes
à outra classe, um passo antes no contínuo, o que indica o uso dessa pista
auditiva pelos ouvintes. O modelo não linear misto serviu para avaliar
estatisticamente essas observações.
O melhor modelo estatístico foi o que levou em consideração
a interação entre Transição e Item nos efeitos ixos e incluiu diferentes
interceptos e inclinações de curva para cada sujeito nos efeitos aleatórios.
Em comparação a um modelo nulo que se obteve apenas com o intercepto
e os efeitos aleatórios, a diferença para o melhor modelo foi muito
signiicativa (χ²(3) = 48,39; p < 0,0001). Utilizando o teste das variáveis
no modelo no formato mais comumente utilizado de análise de desvios
(Type II Wald χ² tests), vê-se que tanto a variável Item (χ²(1) = 46,7;
p < 0,0001) quanto a variável Transição (χ²(1) = 22,7; p < 0,0001) foram
estatisticamente muito signiicativas, enquanto a interação entre elas
foi marginalmente importante (χ²(1) = 3,78; p < 0,052), quase icando
abaixo do valor de α = 0,05. Em outras palavras, tanto a mudança
de altura das frequências mais intensas no ruído fricativo quanto a
transição de formantes da vogal subsequente ao ruído foram pistas muito
importantes para esse grupo de participantes distinguir entre /ʃapa/-/
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
831
sapa/, mas a interação entre essas pistas não foi signiicativa. Ou seja, o
uso da altura de frequência não parece ter sido diferente em função da
transição na vogal. Mesmo assim, o modelo que inclui a interação entre
essas variáveis foi melhor para explicar a variância nos dados do que
outro sem a interação (χ²(1) = 4,12; p = 0,042). Isso pode indicar que a
quantidade de participantes não é suiciente para que o efeito da interação
seja estatisticamente signiicativo.
Neste ponto, é oportuno lembrar que, na análise acústica, a
diferença entre o início e o inal da transição de formantes da vogal
subsequente às fricativas foi maior para [ʃ] do que para [s]. Após [s], quase
não se observou mudança nos valores de F2, entre a região de transição
e a região estável, ao contrário dos falantes do inglês. Isso pode explicar
a interação de pistas marginalmente signiicativa na percepção: seria
natural que o uso dos formantes fosse mais importante para distinguir
aquela categoria em que a transição é mais diferente.
Relacionada ao objetivo (3), já testado, a estimativa dos valores
de fronteira entre as categorias sonoras /ʃ-s/ pode ser calculada por meio
dos coeicientes do modelo, que incluiu a variação entre os sujeitos.
Para cada participante, há um ponto no contínuo de altura de frequência
do ruído fricativo em que se obteve 50% de respostas [s]. É o ponto de
dúvida absoluta quanto à classiicação do estímulo, que resulta numa
resposta completamente aleatória. Na literatura, esse ponto é chamado
de “fronteira de fonema”, a partir do qual a percepção de um estímulo
como pertencente a uma categoria diminui e aumenta na outra. A Tabela
13 apresenta as fronteiras entre as categorias para cada participante,
como um ponto no contínuo de estímulos apresentados e em valores de
CG estimado (em Hz). O cômputo de CG foi realizado com base nos
valores já apresentados, obtidos para cada estímulo do contínuo, bem
como o tamanho da diferença entre eles. A grande variabilidade entre
os participantes na região ascendente das curvas, já aparente no erro
padrão das médias (FIG. 10), mostra-se aqui nos valores de diferença
entre as fronteiras estimadas para cada participante em cada contínuo.
Isso é comum em estudos de percepção da fala, pois o sistema perceptivo
de cada um apresenta diferenças individuais impossíveis de controlar.
O valor identiicado como “Geral”, na última linha da tabela, foi
calculado utilizando-se apenas os efeitos ixos estimados, uma vez que
a variação individual já foi apreciada nos efeitos aleatórios. Assim, não
é um valor médio do grupo, mas um valor que representa a proporção
832
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
da variação comum ao grupo. Esses valores nos mostram que, embora
a altura da frequência central típica para [ʃ] seja a do 1º estímulo do
contínuo (3830 Hz), os falantes do português do Brasil podem tolerar até
em torno de 5400 Hz e, ainda assim, classiicar o som nessa categoria.
Utilizando também a informação oferecida pela transição de formantes da
vogal subsequente, porém, essa tolerância é menor, e, antes, o participante
já começa a apresentar mais respostas na outra categoria, quando a altura
da frequência central do ruído fricativo ultrapassa aproximadamente
5280 Hz.8
TABELA 13 – Estimativas de fronteira de fonema [ʃ-s] para cada participante
Contínuo [ʃ]
Participantes
Contínuo [s]
∆ Hz
Step
CF (Hz)
Step
CF (Hz)
CC
6,59
5470
6,10
5411
59
GF
6,21
5424
5,41
5274
150
LB
5,92
5308
5,39
5270
38
LD
4,57
5043
3,07
4443
600
MP
7,04
5523
6,53
5463
60
PS
5,63
5321
5,01
5190
131
RC
5,88
5374
4,41
4990
384
TM
6,54
5464
6,02
5401
63
Geral
6,10
5411
5,43
5279
132
Fonte: Elaborada pelos autores.
Na classificação das plosivas, os participantes também
demonstraram percepção categórica, como pode ser visto na igura a
seguir.
A bem da completude, um modelo que não leva em consideração a variável Transição
possibilita estimar a fronteira em 5350 Hz. A estimativa da fronteira (p=0,5) é feita
dividindo-se o valor negativo do intercepto estimado pelo modelo probito pelo valor
estimado para Item (-β1/ β2), ajustado para a diferença de Transição e interação, quando
for o caso.
8
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
833
FIGURA 11 – Curvas de resposta para classiicação de plosivas
Fonte: Elaborada pelos autores.
Legenda: Círculos e triângulos representam a percentagem média de
resposta [(d)a] para cada nível de frequência inicial da transição
de formantes em ambos os contínuos.
Barras verticais indicam o erro padrão da média. Linhas contínua e
pontilhada representam valores preditos pelo modelo não linear misto
Consoante ao objetivo (1), a Figura 11 também possibilita airmar
que a resposta dos participantes muda abruptamente de [b] para [d],
mostrando o efeito de respostas categóricas. Contudo, aqui as curvas
de classiicação não se encontram mais íngremes quando se trata dos
estímulos compostos dos ruídos transientes (burst) apropriados para
acompanhar [d]. De fato, a curva com os estímulos associados a [b]
atingem um pouco antes o limiar de 50%. Se conirmado pela análise
estatística, isso quer dizer que a pista do burst é de pouca valia para os
falantes de português. Nesse sentido, é importante notar que as duas
curvas não resultam muito separadas.
834
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
Numa primeira análise, veriicamos se o modelo estatístico
utilizado para avaliar os dados de classiicação de fricativas também seria
adequado para a classiicação de plosivas. As variáveis independentes
foram Burst (entre os contínuos) e Item, que aqui codiica a variação
contínua da frequência inicial de F2 e F3 na transição de formantes que
inicia a vogal subsequente à plosiva. Como fatores aleatórios, utilizaramse diferentes interceptos e inclinações de curva para cada sujeito.
Comparado ao modelo nulo, em que apenas a média geral dos sujeitos
e sua variação individual são utilizados como preditores, o modelo
com interação entre os fatores foi altamente signiicativo (χ²(1) = 14,8;
p = 0,00012). Entretanto, o melhor modelo estatístico foi o que considerou
como variável explicativa apenas Item, desprezando a variação entre os
contínuos. Em comparação ao modelo com interação, o modelo simples
(apenas Item) foi signiicativo, ou seja, explica melhor a variância dos
dados para a quantidade de parâmetros utilizados (χ²(2) = 6,14; p = 0,046).
Desse modo, o melhor modelo para explicar a tarefa de classiicação foi
aquele em que apenas a mudança ao longo do contínuo de formantes
(variável Item) possibilita estimar a probabilidade de classiicação em
/bata/ ou /data/ (χ²(1) = 36,63; p < 0,00001). Isso quer dizer que os
falantes adultos do português do Brasil não utilizaram a pista de ruído
transiente (burst) para a classiicação de plosivas que variam em ponto
de articulação, ao contrário dos falantes do inglês.
TABELA 14 – Estimativas de fronteira [b-d] para cada participante
Participante
Fronteira
F2
F3
CC
4,82
1447
2482
GF
3,78
1356
2447
LB
3,89
1365
2450
LD
4,28
1400
2464
MP
4,09
1383
2457
PS
4,36
1407
2466
RC
4,32
1403
2465
TM
4,20
1393
2461
Geral
4,17
1390
2460
Fonte: Elaborada pelos autores.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
835
A Tabela 14 apresenta as estimativas de fronteira de fonema entre
/bata/ e /data/ obtidas com base nos parâmetros calculados para cada
participante usando os efeitos ixos e os efeitos aleatórios. Neste caso, a
variável contínua foi a ordem dos estímulos no contínuo. Assim, o modelo
estatístico possibilita prever o ponto imaginário numa linha contínua de
itens em que a curva atinge a probabilidade de 50% de respostas /data/
(coluna “Fronteira”). Importante lembrar que cada estímulo foi produzido
com um ou outro ruído transiente (burst), como variável entre contínuos,
e com diferentes valores para o ponto inicial das transições de F2 e F3.
Para isso, produziram-se duas séries de valores, uma para F2, variando
em passos de 88 Hz, e outra, para F3, em passos de 34 Hz (TAB. 12).
Com base nos valores originais de F2 e F3 do estímulo, estimaram-se os
valores dos pontos correspondentes a 50% de respostas /data/ (colunas
“F2” e “F3”, respectivamente). A linha “Geral” ao inal da tabela foi
calculada utilizando-se os valores previstos levando-se em conta apenas
os efeitos ixos do modelo inal, sem considerar diferença entre contínuos.
Portanto, os valores estimados representam os valores iniciais de F2 e
F3 em transições de formantes na vogal subsequente às plosivas, para
a qual cada falante teria 50% de chance de responder /pata/ ou /bata/.
Assim como para as fricativas, aqui também temos variação entre
os indivíduos, que foi capturada pelo modelo estatístico. Os participantes
GF e LB, à exceção dos demais, mudam de categoria antes do 4º estímulo
do contínuo. Para o participante CC, a fronteira entre categorias está
mais próxima do 5º estímulo do contínuo. A fronteira geral, obtida após
levar em conta as diferenças individuais, resultou bastante próxima, mas
justamente após o 4º estímulo do contínuo.
4.5 Resumo dos achados do experimento de classiicação
O segundo estudo deste artigo investigou as pistas auditivas que
podem ser utilizadas pelos ouvintes para diferenciar as palavras /ʃapa/-/
sapa/ e /bata/-/data/. Por meio de uma tarefa de classiicação, buscou-se
veriicar: (1) se a mudança progressiva na variável manipulada dentro do
contínuo produziu o efeito de percepção categórica; (2) se há diferença
na inclinação da curva de respostas em função da variável manipulada
entre os contínuos e (3) se a distância entre as curvas de respostas é
signiicativa.
836
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
Os participantes apresentaram curvas de classiicação íngremes,
em formato de S alongado, diante do par mínimo /ʃapa/-/sapa/ e do par
mínimo /bata/-/data/. Esse fato indicou o efeito de respostas categóricas.
No par de palavras compostas das fricativas, observou-se que as curvas
de classiicação foram mais íngremes quando se tratava dos estímulos
compostos das transições de formantes apropriadas para acompanhar [ʃ].
Além disso, o contínuo de estímulos com transições apropriadas para
[s] mostrou que o grupo atingiu o limiar de 50% de respostas [s] entre
o 5º e o 6º estímulos do contínuo, antes do que no outro contínuo, com
transições apropriadas para [ʃ], em que esse ponto é alcançado após o
6º estímulo. No par de palavras compostas das plosivas, as curvas de
classiicação não foram mais íngremes quando se tratava dos estímulos
compostos dos ruídos transientes (burst) apropriados para acompanhar
[d], e a distância entre as curvas de resposta não foi signiicativa.
Em relação à importância que os ouvintes atribuem às pistas
auditivas para classiicar o par /ʃapa/-/sapa/ observou-se que tanto a
mudança de altura das frequências mais intensas no ruído fricativo
quanto a transição de formantes da vogal subsequente ao ruído foram
pistas muito importantes para o grupo de participantes deste estudo
distinguir entre /ʃapa/-/sapa/, mas a interação entre essas pistas não
chegou a ser signiicativa. Diante do par /bata/-/data/ veriicou-se que os
falantes adultos do português brasileiro não utilizaram a pista de ruído
transiente (burst) para a classiicação de plosivas que variam em ponto
de articulação.
5 Conclusões
Este artigo foi dividido em dois estudos. O primeiro teve o
objetivo de analisar e descrever as propriedades acústicas das fricativas
[ʃ] e [s] e das plosivas [b] e [d] associadas à vogal [a] em posição inicial
de palavra. Feita a análise, os estímulos foram sintetizados. O segundo
teve o objetivo principal de investigar, por meio de uma tarefa de
classiicação, as pistas auditivas utilizadas para diferenciar as palavras
/ʃapa/-/sapa/ e /bata/-/data/.
Os resultados do primeiro estudo mostraram que as fricativas
[ʃ] e [s] apresentaram valores de duração próximos, assim como a fase
de soltura da oclusão (burst) das plosivas [b] e [d]. Já a fase de présonorização foi maior para a plosiva [b] quando comparada com a plosiva
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
837
[d]. Em consonância com os estudos realizados com as fricativas do inglês
americano, do português europeu, do espanhol argentino e do italiano,
observou-se que a fricativa [s] apresentou picos de amplitude mais
proeminentes em regiões mais altas de frequência quando comparada
com a fricativa [ʃ] e apresentou também valor médio maior do CG do
que a fricativa [ʃ]. Diante das plosivas, veriicou-se que a plosiva alveolar
[d] apresentou picos de energia mais intensos em regiões mais altas de
frequência quando comparada com a plosiva bilabial [b].
Os resultados direcionados à análise do segundo formante
vocálico (F2) mostrou que a diferença entre o início e o im da transição
de formantes da vogal subsequente às fricativas foi maior para [ʃ] do que
para [s]. Após [s], quase não se observou mudança nos valores de F2,
entre a região de transição e a região estável, ao contrário dos estudos
que se basearam nas propriedades acústicas dos falantes do inglês. Parece
que,, no inglês, a transição do F2 seguinte às fricativas é mais marcada, o
que pode tornar a pista de transição do F2 mais informativa nesta língua
quando comparada com o PB.
Por im, os resultados do segundo estudo revelaram que os
participantes apresentaram curvas de classiicação íngremes, diante
dos pares mínimos /ʃapa/-/sapa/ e /bata/-/data/, com efeito de respostas
categóricas. No que diz respeito às pistas auditivas utilizadas para
diferenciar as palavras /ʃapa/-/sapa/ e /bata/-/data/, observou-se que,
para o par /ʃapa/-/sapa/, tanto a transição dos formantes vocálico quanto
a altura das frequências mais intensas no ruído fricativo auxiliaram os
ouvintes na distinção desse par. Para o par /bata/-/data/ ,veriicou-se que
os participantes desse estudo não utilizaram a pista de ruído transiente
(burst) para a classiicação das plosivas [b] e [d], como fazem os falantes
nativos do inglês. Assim, os resultados deste estudo indicam diferenças
linguísticas que afetam a percepção da distinção de ponto de articulação
das fricativas e das plosivas por falantes do PB.
Agradecimentos
Ao CNPq, pela bolsa Pq 312277/2015–6 para o primeiro autor, e à
CAPES, pela bolsa de estágio sanduíche no exterior para a segunda
autora.
838
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
Referências
ALVES, M. A. Estudo dos parâmetros acústicos relacionados à produção
das plosivas do Português Brasileiro na fala adulta: análise acústicoquantitativa. 2015. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2015.
BARBOSA, P. A. Revelar a estrutura rítmica de uma língua construindo
máquina falantes: pela integração da ciência e tecnologia de fala. In:
SCARPA, E. (Org.). Estudos de prosódia. Campinas: Unicamp, 1999.
p. 21-52.
BARBOSA, P. A.; MADUREIRA, S. Manual de fonética acústica
experimental. São Paulo: Cortez, 2015.
BATES, D.; MAECHLER, M.; BOLKER, B.; WALKER, S. Fitting
Linear Mixed Effects Models Using lme4. Journal of Statistical Software,
Innsbruck, Austria, v. 67, p. 1-48, 2015. Doi: 10.18637/jss.v067.i01
BAAYEN, R. H.; DAVIDSON, D. J.; BATES, D. M. Mixed-effects
Modeling with Crossed Random Effects for Subjects and Items. Journal
of Memory and Language, Elsevier, v. 59, p. 390-412, 2008. Doi: https://
doi.org/10.1016/j.jml.2007.12.005
BORZONE DE MANRIQUE, A. M.; MASSONE, M. I. Acoustic
Analysis and Perception of Speech Fricative Consonants. Journal of the
Acoustical Society of America, Acoustical Society of America, v. 69,
p. 1145-1153, 1981. Doi: https://doi.org/10.1121/1.385694
BOERSMA, P.; WEENINK, D. Praat: doing phonetics by computer.
Versão 5.2.25. 2011. Disponível em: <www.praat.org>.
CHRABASZCZ, A.; WINN, M.; LIN, C. Y.; IDSARDI, W. J. Acoustic
Cues to Perception of Word Stress by English, Mandarin, and Russian
Speakers. Journal of Speech, Language, and Hearing Research, American
Speech-Language-Hearing Association, v. 57, p.1468-1479, 2014. Doi:
10.1044/2014_JSLHR-L-13-0279
FANT, G. Speech Sounds and Features. Cambridge, MA: MIT Press,
1973.
FOX, John; WEISBERG, Sanford. An {R} Companion to Applied
Regression. 2. ed. Thousand Oaks CA: Sage, 2011.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
839
GORDON, M.; BARTHMAIER, P.; SANDS, K. A Cross-linguistic
Acoustic Study of Voiceless Fricatives. Journal of the International
Phonetic Association, Cambridge, v. 32, p. 141-174, 2002. Doi: https://
doi.org/10.1017/S0025100302001020
GROSJEAN, Philippe; IBANEZ, Frederic. pastecs: Package for Analysis
of Space-Time Ecological Series. R package version 1.3-18. Disponível
em: <https://CRAN.R-project.org/package=pastecs>.
HALLE, M.; HUGHES, G. W.; RADLEY, J. P. A. Acoustic Properties
of Stop Consonants. Journal of the Acoustical Society of America,
Acoustical Society of America, v. 29, p. 107-116, 1957. Doi: https://doi.
org/10.1121/1.1908634
HARRIS, K.S. Cues for the Discrimination of American English
Fricatives in Spoken Syllables. Language and Speech, Sage Journals,
v. 1, p. 1-7, 1958.
HAUPT, C. As fricativas [s], [z], [ʃ] e [ʒ] do português brasileiro. Estudos
Linguísticos, Florianópolis, UFSC, v. XXXVI, n. 1, p. 37-46, 2007.
HEINZ, J. M.; STEVENS, K. N. On the Properties of Voiceless
Fricative Consonants. Journal of the Acoustical Society of America,
Acoustical Society of America, v. 33, p. 589-596, 1961. Doi: https://doi.
org/10.1121/1.1908734
HIXON, T. Turbulent Noise Sources for Speech. Folia Phoniatrica,
Bethesda, USA, v. 18, p. 168-182, 1966. Doi: https://doi.org/10.1159/
000263090
ISTRE, G. A fonética acústica. In: ISTRE, G. Fonologia transformacional
e natural: uma introdução crítica. Florianópolis: Núcleo de Estudos
Linguísticos, UFSC, 1983. p. 37-72.
JAEGER, T.F. Categorical Data Analysis: Away from ANOVAs
(Transformation or Not) and Towards Logit Mixed Models. Journal of
Memory and Language, Elsevier, v. 59, p. 434-446, 2008. Doi: https://
doi.org/10.1016/j.jml.2007.11.007
JONGMAN, A.; WAYLAND, R. WONGS, S. Acoustic Characteristics
of English Fricatives. Journal of the Acoustical Society of America,
Acoustical Society of America, v. 108, p. 1252-1263, 2000. Doi: https://
doi.org/10.1121/1.1288413
840
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
JOHNSON, D. E. Getting off the GoldVarb Standard: Introducing
Rbrul for Mixed-effects Variable Rule Analysis. Language and
Linguistics Compass, Wiley Online Library, v. 3, p. 359-383, 2009. Doi:
10.1111/j.1749-818X.2008.00108.x
KLATT, D. H. Software for Cascade/Parallel Formant Synthesizer. Journal
of the Acoustical Society of America, Acoustical Society of America,
v. 67, p. 971-995, 1979. Doi: https://doi.org/10.1121/1.383940
KLATT, D. H.; KLATT, L. C. Analysis, Synthesis and Perception of
Voice Quality Variations Among Male and Female Talkers. Journal of
the Acoustical Society of America, Acoustical Society of America, v. 87,
p. 820-856, 1990. Doi: https://doi.org/10.1121/1.398894
LACERDA, F. P. Acoustic Perceptual Study of the Portuguese Voiceless
Fricative. Journal of Phonetics, v. 10, n. 1, p. 11-22, 1982.
LADEFOGED, P.; MADDIESON, I. The Sound’s of the World’s
Languages. Massachusetts: Blackwell, 1996. p. 47-101.
LIEBERMAN, P.; BLUMSTEIN, S. E. Speech Physiology, Speech
Perception and Acoustic Phonetics. Cambridge: Cambridge University
Press, 1988. Doi: https://doi.org/10.1017/CBO9781139165952
MARCHAL, A.; REIS, C. Produção da fala. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2012.
MELO, R. M.; MOTA, H. B.; MEZZOMO, C. L.; BRASIL, C. B.;
LOVATTO, L.; ARZENO, L. Caracterização acústica da sonoridade
dos fones plosivos do português brasileiro. Revista CEFAC - Speech,
Language, Hearing Sciences and Education Journal, São Paulo,
v. 14, p. 487-499, 2011. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S151618462011005000143
NITTROUER, S. Learning to Perceive Speech: How Fricative Perception
Changes, and How it Stays the Same. Journal of the Acoustical Society of
America, Acoustical Society of America, v. 112, p. 711-719, 2002. Doi:
https://doi.org/10.1121/1.1496082
NIXON, J. S.; VAN RIJ, J.; MOK, P.; BAAYEN, R. H.; CHEN, Y.
The Temporal Dynamics of Perceptual Uncertainty: Eye Movement
Evidence from Cantonese Segment and Tone Perception. Journal of
Memory and Language, Elsevier, v. 90, p. 103-125, 2016. Doi: https://
doi.org/10.1016/j.jml.2016.03.005
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
841
PINHEIRO, J. C.; BATES, D. M. Mixed-Effects Models in S and S-PLUS.
New York: Springer, 2000. Doi: https://doi.org/10.1007/978-1-44190318-1
QUENÉ, H.; VAN DEN BERGH, H. On Multi-level Modeling of Data
from Repeated Measures Designs: A Tutorial. Speech Communication,
Elsevier, v. 43, p. 103-121, 2004. Doi: https://doi.org/10.1016/j.
specom.2004.02.004
QUENÉ, H.; VAN DEN BERGH, H. Examples of Mixed-effects
Modeling with Crossed Random Effects and with Binomial Data. Journal
of Memory and Language, Elsevier, v. 59, p. 413-425, 2008. Doi: https://
doi.org/10.1016/j.jml.2008.02.002
R CORE TEAM. R: A language and Environment for Statistical
Computing. R Foundation for Statistical Computing. Vienna, Austria.
Disponível em: <https://www.R-project.org/>.
REPP, B. H. [1984]. Categorical Perception: Issues, Methods, Findings.
In: LASS, Norman J. (Ed.). Speech and Language: Advances in Basic
Research and Practice. New York: Academic Press, 2016. p. 243-335.
RUSSO, I. C. P.; BEHLAU, M. S. Percepção da fala: análise acústica do
português brasileiro. São Paulo: Lovise, 1993.
SAMCZUK, I. B.; GAMA-ROSSI, A. Descrição fonético-acústica das
fricativas do português brasileiro. São Paulo: PUC, 2004.
SANTOS, M. T. M. Uma análise espectrográica dos sons fricativos surdos
e sonoros do Português Brasileiro. 1987. Monograia (Especialização em
Fonoaudiologia) – Escola Paulista de Medicina, São Paulo, 1987.
SCHINDLER, O. Material fonemico. In: ______. Manuale di audiofono:
logopedia. Torino: Editrice Omega, 1974.
SCHOUTEN, B.; GERRITS, E.; VAN HESSEN, A. The End of
Categorical Perception as We Know It. Speech Communication,
Elsevier, v. 41, p. 71-80, 2003. Doi: https://doi.org/10.1016/S01676393(02)00094-8
SILVA, D. M. R.; ROTHE-NEVES, R. Um estudo experimental sobre a
percepção do contraste entre as vogais médias posteriores do português
brasileiro. DELTA: Documentação e Estudos em Linguística Teórica
e Aplicada, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 319-345, 2009. Doi: https://doi.
org/10.1590/S0102-44502009000200005
842
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018
STEVENS, K. N.; BLUMSTEIN, S. E. Invariant Cues for Place of
Articulation in Stop Consonants. Journal of the Acoustical Society of
America, Acoustical Society of America, v. 64, p. 1358-1368, 1978. Doi:
https://doi.org/10.1121/1.382102
STEVENS, K. N.; KLATT, D. H. Studies of Acoustic Properties of Speech
Sound. Massachusetts: Air Force Cambridge Research Laboratories,
1968.
WALLEY, A. C.; CARRELL, T. D. Onset Spectra and Formant Transitions
in Adult’s and Child’s Perception of Place of Articulation, Journal of the
Acoustical Society of America, Acoustical Society of America, v. 73,
p. 1011-1022, 1983. Doi: https://doi.org/10.1121/1.389149
WHALEN, D. H. Perception of the English/s/–/ʃ/Distinction Relies on
Fricative Noises and Transitions, Not on Brief Spectral Slices. Journal of
the Acoustical Society of America, Acoustical Society of America, v. 90,
p. 1776-1785, 1991. Doi: https://doi.org/10.1121/1.401658
WRIGHT, R. A Review of Perceptual Cues and Cue Robustness. In:
BRUCE, H.; ROBERT, K.; DONCA, S. Phonetically Based Phonology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 34-57. Doi: https://
doi.org/10.1017/CBO9780511486401.002
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
A obviação em complementação sentencial no português
brasileiro e sua relação com predicados não epistêmicos
Obviation in Sentential Complementation in Brazilian
Portuguese and its Relation to Non-epistemic Predicates
Vivian Meira
Universidade do Estado da Bahia, Brumado, Bahia / Brasil
FAPESB
vivianmeira@gmail.com
Resumo: Este artigo investiga padrões de referencialidade em
complementação sentencial no português, italiano e grego moderno,
especialmente o fenômeno conhecido como obviação ou referência
disjunta. Trata-se de uma restrição atestada nas línguas e se caracteriza
pelo fato de o sujeito da oração subordinada ser obrigatoriamente disjunto
em referência ao sujeito da oração matriz. Tradicionalmente, assume-se
que a obviação é uma propriedade de complementação subjuntiva ou um
fenômeno resultante, juntamente com o controle, da competição entre
formas initas / não initas. No entanto, os dados das línguas analisadas não
condizem com essas hipóteses. Assumindo a teoria de seleção semântica e
a versão minimalista de subcategorização (cf. ADGER, 2004), propõe-se
que a obviação, exibida em complementação sentencial, é uma restrição
semântica exigida por três tipos de predicados: os causativos, os volitivos
e os perceptivos físicos, que serão tomados como predicados capazes de
impor restrições semânticas aos seus complementos.
Palavras-chave: referência disjunta; predicado matriz; interface sintaxesemântica; línguas românicas/línguas da área balcânica.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.3.843-877
844
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
Abstract: This paper investigates patterns of referentiality in sentential
complementation in Portuguese, Italian and Modern Greek, especially the
phenomenon known as obviation or disjoint reference. This is a constraint
attested in languages, and it is characterized by the fact that the subject
of the subordinate clause must be disjoint in reference to the subject of
the matrix sentence. Traditionally, obviation has been assumed to be a
property of subjunctive complementation, or a phenomenon arising along
with the control from the competition between inite/non-inite forms.
However, the data are not consistent with these hypotheses. Based on the
theory of semantic selection and a minimalist version of subcategorization
(cf. ADGER, 2004), this thesis proposes that obviation, in sentential
complementation, is a semantic constraint required by three types of
predicates, the causative, volitional and physical perceptive predicates,
which will be taken as predicates able to impose semantic constraints
on their complements.
Keywords: disjoint reference; main predicate; syntax-semantics
interface; Romance and Balkan languages.
Recebido em 28 de novembro de 2017.
Aceito em 19 de dezembro de 2017.
1 Introdução
Uma propriedade semântica das línguas é possibilitar que
elementos mantenham relações de referencialidade uns com os outros
em diferentes posições nas sentenças. Por exemplo, em (1), himself,
ocupando a posição de objeto, faz referência ao sujeito John. Em (2),
o objeto him não pode ser correferente ao sujeito John e, em (3), a
categoria vazia, na posição de sujeito do complemento encaixado, pode
fazer referência ao sujeito matriz, Giovanni, ou a outro elemento que
não está na sentença.
(1)
John1 loves himself1/*2. (Inglês)
‘João se ama’
(2)
John1 loves him*1/2. (Inglês)
‘João o ama.’
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
(3)
845
Giovanni1 ha detto che cv1/21 comprerà una nuova casa.
(Italiano)
‘João disse que comprará uma nova casa.’
Essas relações semânticas de referencialidade nas línguas podem
ser de três tipos: correferência, como em (1), não correferência, como
em (2), e referência livre, como em (3). Tendo como base a Teoria de
Princípios e Parâmetros (cf. Chomsky, 1981), quadro teórico no qual
nos basearemos nesta investigação, essa propriedade semântica de
referencialidade pode ser capturada por meio da Teoria da Ligação, que
trata das condições/exigências de ligação de três tipos de sintagmas
nominais: as anáforas, os pronomes e as expressões referenciais, bem
como por meio da Teoria do Controle, que diz respeito às relações
sintáticas e interpretativas entre uma categoria vazia (PRO) e seu
antecedente em conigurações não initas.
Nos contextos de complementação sentencial, essas relações
interpretativas podem ser exibidas entre os DPs sujeitos da sentença
matriz e encaixada, como nas sentenças em (4), e entre o objeto da oração
matriz e o sujeito da oração complemento, ilustrado em (5).
(4)
a. João quer viajar.
b. João quer que ele viaje.
c. João pensa que ele vai viajar.
(5)
João lamentou a Maria eles irem embora.
Nesta pesquisa, desenvolveremos uma investigação sobre as
relações de referencialidade entre sujeitos sintáticos nos contextos de
complementação sentencial, especiicamente nos tipos de construções
delineados em (4). Os contextos apresentados em (1), (2) e (5) não
serão alvo de nossa análise, já que (1) e (2) não representam contextos
de complementação sentencial e (5) trata de relação de referencialidade
entre objeto e sujeito de complemento, não se assemelhando ao contexto
em (3) e (4).
1
Nos exemplos, a sigla cv abrevia categoria vazia, referindo-se ao sujeito nulo em questão.
846
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
O padrão de referencialidade denotado em (4a) é tratado pela
literatura como contexto de correferência ou controle. Em (4b), a
ausência de correferência entre os sujeitos é denominada referência
disjunta ou obviação e, em (4c), há possibilidade tanto de correferência
quanto de não correferência entre os sujeitos, o que se convencionou
chamar de referência livre.
Tomaremos dados do português do Brasil para análise e teceremos
comentários sobre esse fenômeno no italiano e em línguas da área
balcânica, como o grego moderno, que não exibe esse fenômeno no
mesmo contexto exibido pelas línguas românicas. A nossa hipótese é a de
que a referência disjunta obrigatória (RD) em complementação sentencial
é uma restrição semântica imposta pelo tipo de predicado matriz, o que
faz esse efeito semântico ser uma propriedade universal de línguas que
dispõem desses contextos em complementação sentencial. Nas próximas
seções, apresentaremos nosso objeto de estudo, a problemática que o
envolve, algumas tentativas da literatura que tentam explicá-lo, bem
como a análise e os resultados dos dados investigados.
2 Tentativas na literatura para explicar controle e obviação nas línguas
Há duas hipóteses muito debatidas na literatura que se propõem
explicar os contextos nos quais controle e obviação são exibidos nas
línguas. A primeira delas é a Hipótese da Rivalidade Subjuntivo /
Ininitivo (HRSI), que toma initude como uma noção importante para
explicar padrão de referencialidade nas línguas. Segundo essa hipótese,
apenas línguas que exibem sentenças finitas / não finitas podem
desencadear obviação e controle, já que se assume que esses fenômenos
são desencadeados pela competição entre estruturas initas / não initas
(cf. BOUCHARD, 1984; FARKAS, 1992; KRAPOVA, 2001). Essas
pesquisas se baseiam na ideia de que há marcação de Caso na estrutura
inita e seu bloqueio na não inita, como está ilustrado no contraste entre
(6a) e (6b) do português do Brasil (PB).
(6)
a. João1 quer cv1/*2 comprar a bola.
b. João1 quer que ele*1/2 compre a bola.
Uma descrição supericial do contexto em (6a) nos permite dizer
que é uma estrutura de ininitivo, na qual é desencadeada correferência
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
847
pronominal e não há licenciamento de sujeito nominativo visível na
complementação não inita da encaixada, o que desencadeia o chamado
controle. Por outro lado, a sentença (6b) ilustra um contexto de oração
inita, licenciando complementação subjuntiva com sujeito nominatvo
disjunto referencialmente do sujeito matriz.
As abordagens que se baseiam nessa hipótese conirmam que
o contraste obviação/controle é possível nas línguas românicas, já que
estas exibem complementação inita /não inita, mas não é possível
em línguas da área balcânica, como o grego moderno, já que estas não
dispõem de ininitivos.
Como a obviação tem sido documentada nos contextos de volitivos,
a outra linha de investigação tenta associar a obviação à modalidade
subjuntiva, tomando-a como uma propriedade de modo subjuntivo (cf.
BORER, 1989; KEMPCHINSKY, 1998). Nesse caso, toma-se como
base a Teoria da Ligação (TL) e a noção de Domínio de Ligação (DL)
para explicar a ausência de correferência pronominal nesses contextos.
A relação de referencialidade entre um pronominal e seu antecedente
nessa linha é capturada pelo Princípio B, que trata do comportamento
dos pronomes e exige que estes sejam livres em seu Domínio.
No entanto, esse pressuposto não tem conseguido dar conta das
construções com sujeitos pronominais obviativos, e o problema que
resulta disso é tentar explicar por que as restrições de ligação sobre
pronomes obviativos, como em (7), parecem ser mais rigorosas do que
aquelas impostas sobre os pronomes em outras estruturas, como em (8).
Observe o par de sentenças em (7) e (8).
(7)
a. João1 quer que ele*1/2 viaje.
b. *Eu quero que eu viaje.
(8)
a. João1 acha que ele1/2 vai viajar.
b. Eu acho que eu vou viajar.
O pronome obviativo da encaixada nas sentenças em (7) obedece
não apenas ao Princípio B da TL, como também deve ser livre em
relação ao sujeito da oração matriz, comportando-se diferentemente
dos pronomes nas sentenças em (8). Esta diferença no comportamento
do pronome obviativo em relação a outros pronomes levou Bouchard
(1984) a sugerir que a referência disjunta não fosse analisada a partir de
pressupostos da TL.
848
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
Outras abordagens, seguindo a linha de investigação da Teoria de
Regência e Ligação – TRL, tentam explicar a diferença de comportamento
entre as construções em (7) e (8), sugerindo que sentenças subjuntivas
como em (7) se caracterizam por ter tempo dependente em relação à
oração matriz. Essa anaforicidade temporal desencadeia uma extensão
do Domínio de Ligação da encaixada, que se estende para a oração
matriz e, portanto, o sujeito pronominal da encaixada tem de ser diferente
referencialmente do sujeito matriz, já que estão no mesmo domínio, a
im de não violar o Principio B (cf. RAPOSO, 1985; BORER, 1989;
KEMPCHINSKY, 1998).
Essas abordagens sugerem duas direções. Por um lado, a
obviação tem sido tomada como uma propriedade de modo subjuntivo,
especialmente dos contextos de predicados volitivos. E, em outra direção,
muitos trabalhos desenvolvidos na década de 80, seguindo orientações
da TRL, tentam correlacionar o ‘controle’ à questão de não initude
sentencial, de modo que o locus por excelência de ocorrência desse
fenômeno é o de construções não initas. Argumenta-se que o DP matriz
controla a interpretação da posição de sujeito vazio da oração ininitiva,
desencadeando a correferência, como exempliicado em (9), em que João
e PRO – sujeito do ininitivo – mantêm uma relação anafórica entre si.
(9)
João quer PRO comprar um livro.2
No entanto, essas hipóteses podem ser contestadas com base
em dados do português, italiano e grego moderno, o que será exposto
na próxima seção.
3 Contraevidências para a Hipótese da Rivalidade Subjuntivo/
Ininitivo e para a obviação subjuntiva
Os dados do português brasileiro nos mostram que a obviação
pode ser desencadeada em outros contextos, além da complementação
subjuntiva, como nos contextos de complementação indicativa selecionada
por predicados perceptivos físicos, como em (10a), nos contextos de
ininitivo lexionado selecionados por predicados causativos e perceptivos
2
Para uma análise semântica da sentença em (9), ver Chierchia (1989) https://scholar.
harvard.edu/iles/chierchia/iles/1989_de-se.pdf
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
849
no português, como em (10b), além dos contextos de volitivos e causativos
com complementação subjuntiva, como em (10c). E controle não é exibido
apenas em contextos não initos, pois a relação ‘anafórica’ entre sujeitos
pode ser observada em alguns casos de complementação indicativa, no
PB, como em (11) (cf. FERREIRA, 2000).
(10)
a. João1 viu que ele*1/2 foi embora.
b. João e Maria1 mandaram/viram eles*1/2 irem embora.
c. João1 queria/mandou que ele*1/2 fosse embora.
(11)
João1 disse que cv1/*2 vai viajar hoje. (PB)
O grego moderno também fornece evidências contrárias à
hipótese que tenta ligar a obviação à modalidade subjuntiva, pois os
predicados volitivos, nessa língua, não exibem referência disjunta, mas
referência livre, como em (12).
(12)
Ta koritsia1
thelun
na
pane1/2 sto sinema.
ao cinema.’
‘ As meninas1 querer-IND que-SBJV ir
‘As meninas querem que elas vão ao cinema.’
Para explicar esse dado, costuma-se assumir na literatura,
tomando como base a HRSI, que o grego, por não exibir ininitivos, não
desencadeia obviação, o que explicaria a referência livre nos volitivos
em (12). No entanto, os fatos não corroboram essa hipótese, pois, nos
contextos de predicados causativos e de perceptivos físicos, há obviação
no grego, como ilustrado no par de sentenças em (13).
(13)
a. O Yanis1 parigile na cv*1/2 plini
ta piata pio grigora. (GM)
O João mandou que-SBJV lavar-IMP-3SG os pratos mais
rapidamente
‘O João mandou que lavasse os pratos mais rapidamente’
b. O Yanis1 idhe na cv*1/2 erxete.
vir-3SG
O João viu-3SG
‘O João viu que ele vinha’
Outra contraevidência para a obviação subjuntiva foi encontrada
no ininitivo lexionado. No português, há dois contextos especíicos que
850
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
selecionam ininitivo lexionado e que exibem dois diferentes padrões de
referencialidade: 1) os causativos/perceptivos e 2) os factivos / epistêmicos
(cf. MEIRA, 2013). Nestes, há desencadeamento de referência livre;
naqueles, de obviação, conforme ilustrado, respectivamente, em (14a)
e (14b):
(14)
a. João e Maria1 mandaram / viram eles*1/2 saírem mais cedo
b. João e Maria1 lamentaram eles1/2 sairem mais cedo
Todos esses dados constituem forte evidência de que obviação e
controle não estão em distribuição complementar, visto que são exibidos
em contextos variados. Adicionalmente, esses dados podem ser tomados
como evidência também para a airmação de que essas restrições parecem
não dizer respeito ao tipo de complemento selecionado, mas ao tipo de
predicado matriz que os seleciona, já que, de forma geral, os contextos
de predicado causativo, de percepção física e volitivo são os únicos
que exigem obviação nas línguas analisadas, o que torna evidente dois
fatos sobre o desencadeamento desse fenômeno: (i) não se trata de uma
competição entre formas initas/não-initas, já que não se tem ininitivo
no grego, mas há obviação em outros contextos nessa língua, e a (ii)
obviação não é uma propriedade restrita de contextos de morfologia de
modo subjuntivo, pois é exibida também nas estruturas de predicados de
percepção física, de complementação indicativa e de ininitivo lexionado
selecionado por predicado causativo/perceptivo.
Neste artigo, tentaremos resolver os problemas apresentados,
especialmente aqueles relacionados aos contextos obviativos, com
base em análises de dados do português, fazendo comparação com
sentenças do italiano e do grego moderno, que constituirão nossa fonte de
investigação. Na próxima seção, apresentaremos os dados que tomaremos
como base para a realização desta pesquisa.
3.1 Padrões de referencialidade em complementação sentencial nas línguas
Os padrões de referencialidade pronominal serão analisados
em contextos de complementação sentencial com sujeitos, matriz e da
encaixada, de 3ª pessoa. Nossos dados serão divididos em três grupos,
conforme descrito a seguir, na Tabela 1.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
851
TABELA 1 – Contextos de referencialidade em complementação sentencial
a)
Predicados que exigem Obviação (Referência Disjunta)
b)
Predicados que desencadeiam Controle (Correferência)
c)
Predicados que exibem Referência Livre
Fonte: Meira, 2013, p. 48.
Os predicados de complementação subjuntiva analisados no
português, italiano e grego foram os de verbos volitivos, causativos,
factivos e psicológicos, respectivamente ilustrados em (15a), (15b),
(15c) e (15d).
(15)
a. O João1 quer que ele*1/2 compre uma casa nova. (PB)
b. O Yanis1 parigile na plini*1/2
ta piata pio grigora. (GM)
lavar-imper-3ªsg os pratos
O João mandou que-subj
mais rapidamente.
‘João mandou que ele lavasse os pratos rapidamente.’
c. Giovanni1 si lamenta che cv*1/2 compri una vecchia casa.
(ITAL)
d. O João1 teme que cv1/2 reprove no exame. (PE)
No italiano, todos os predicados que selecionam morfologia
de modo subjuntivo desencadeiam RD, sendo o sujeito realizado ou
nulo, conforme exemplo (15c), o que parece indicar que se trata de
uma peculiaridade especíica dessa língua. Por outro lado, o grego
apresenta dois padrões de referencialidade em sentenças subjuntivas:
as que desencadeiam RD nos predicados causativos, como ilustrado em
(15b), e as que desencadeiam RL nos factivos, psicológicos e volitivos.3
No português foram observados dois padrões de referencialidade nos
contextos de subjuntivo: (i) a RD, nos contextos de complementação
a predicados volitivos e causativos, e (ii) aquele que licencia RL nos
contextos de factivos e de verbos psicológicos. O grupo de predicados
causativos e volitivos será tratado separadamente dos demais por
exigirem OBV. A tabela a seguir sintetiza esse resultado.
3
Remeto o leitor a Meira (2013) para uma visualização completa dos dados investigados.
852
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
TABELA 2 – O padrão de referencialidade nos predicados subjuntivos
no português, italiano e grego
Predicados
Correferência
Referência Disjunta
RL
Causativos
---
PB/ITAL/GM
---
Volitivos
---
PB/ITAL
GM
Factivos/Psicológicos
---
ITAL
PB/GM
Fonte: Meira, 2013, p. 53.
Esses dados demonstram que morfologia de modo subjuntivo não
é uma condição sine qua non para se desencadear RD, pelo menos não
o é no português e no grego. O predicado causativo foi o único contexto
em que a RD foi exibida em todas as línguas analisadas.
Com relação aos predicados indicativos, foram investigados
quatro grupos: os predicados de percepção física, como no conjunto de
sentenças em (16), de percepção mental, como em (17), epistêmicos,
como em (18), e os declarativos, como ilustrado em (19).
(16)
a. O João1 viu que ele*1/2 estava dormindo. (PB)
b. O João1 viu que cv*1/2 comprou o livro. (PE)
c. Giovanni1 ha visto che cv*1/2 ha comprato il libro. (ITAL)
d. O Yanis1 idhe cv*1/2 na erxete. (GM)
O João viu-3sg
comp vir-3sg.
‘O João viu que ele vinha.’
(17)
a. O João1 se lembrou que ele1/2 perdeu as chaves. (PB)
b. O João1 lembrou-se que cv1/2 perdeu as chaves. (PE)
c. Giovanni1 si è ricordato che cv1/2 ha perso le chiavi. (ITAL)
d. The Yanis1 thimithike oti cv1/2 aghorase tsighara. (GM)
O João lembrou-3sg que comprou-3sg cigarros.
‘João se lembrou que comprou cigarros.’
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
(18)
853
a. O João1 acredita que ele1/2 comprará uma casa nova. (PB)
b. O João1 acredita que cv1/2 comprará uma casa nova. (PE)
c. Giovanni1 pensa che cv1/2 comprará una nuova casa. (ITAL)
d. Yanis1 pistevi oti cv1/2 tha perasi stis eksetasis. (GM)
João acredita-3sg que
FUT passar-3sg nos exames.
‘João acredita que ele passará nos exames. (ele ou outra
pessoa).
(19)
a. O João1 disse que ele1/2 comprará uma casa nova. (PB)
b. O João1 disse que cv1/2 comprará uma casa nova. (PE)
c. Giovanni1 ha detto che cv1/2 comprerà una nuova casa.
(ITAL)
d. O Yanis1 lei
oti cv1/2 tha iji, (GM)
O João dizer-3sg que
FUT ir-3sg
‘João disse que ele partirá.’
Foi observado o mesmo padrão de referencialidade na
complementação indicativa: (i) RD, quando a sentença encaixada é
selecionada por predicados de percepção física, e (ii) RL, nos contextos
de percepção mental, epistêmicos e declarativos. Esse fato merece
investigação já que se trata de um caso excepcional no contexto de
indicativo, por apresentar propriedade que seria a priori apenas peculiar
à modalidade subjuntiva.
O perceptivo físico, apesar de ser semanticamente diferente do
perceptivo mental, compartilha com este a mesma forma verbal, ao menos
no português. Em (20), o verbo matriz ver possibilita duas acepções:
(20a) a física e (20b) a mental.
(20)
a. João1 viu ele*1/2 dormindo
b. João1 viu que ele1/2 chegou atrasado
A primeira acepção diz respeito ao sentido físico da visão.
João viu alguém (diferente de João) dormindo, percepção física (cf.
FELSER, 1999). Essa acepção de ver desencadeia apenas OBV. A
segunda acepção faz referência a um sentido mental, de perceber algo
854
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
com base em alguma inferência, um relógio, por exemplo. Nesse caso,
João percebeu que alguém ou ele mesmo chegou atrasado. Essa segunda
acepção possibilita RL e, por ser uma fonte mental, relaciona-se mais
a uma leitura epistêmica. Verbo perceptivo, quando seleciona ininitivo
lexionado como complemento no PB, pode apenas ser interpretado como
de percepção física, admitindo apenas OBV.4
Tomando como base os contextos de OBV apresentados,
esse fenômeno, de forma geral, é desencadeado nos contextos de
complementação sentencial independente do tipo de morfologia de modo
(indicativo ou subjuntivo) e independente do contraste entre formas
initas/não-initas. Por isso, investigaremos esses dados considerando
os três tipos de contextos já expostos na Tabela 1 e, com base nisso,
sintetizamos, na Tabela 3, uma descrição das línguas analisadas a respeito
dos padrões de referencialidade.
4
Agradeço ao parecerista anônimo pelas observações a respeito do fato de que o
perceptivo físico pode, em alguns contextos, levar a uma leitura de referência livre,
como (ib, ic e id), e essa mudança na referencialidade parece ser direcionada, segundo
o parecerista, pelo tipo de predicado da encaixada, conforme se observa nos seguintes
exemplos:
a. O João1 viu que ele*1/2 estava dormindo (PB)
b.João1 viu que ele1/2 estava pegando fogo.
c. Pavarotti1 viu que ele1/2 estava com as suas calças pegando fogo.
d. João1 viu ele1/2 correndo (Supondo o contexto de um espelho)
No entanto, mantenho minha opinião de que os contextos em (ia) e (id), tendo o sentido
de percepção física, levam apenas a leitura de OBV, e de que os contextos em (ib) e
(ic) possibilitam referência livre, já que o verbo da matriz tem o sentido de perceber,
de sentir – portanto, de percepção mental. Na verdade, para o perceptivo isico denotar
essa leitura sugerida de correferência em (id), por exemplo, necessitaria de um pronome
relexivo, como em (ie), o que modiica o contexto analisado neste trabalho.
(i) e. João se viu (correndo) no espelho
Certamente, em alguns dialetos, diferentes leituras serão possíveis, mas a preferencial
no contexto de perceptivo físico será a OBV.
855
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
TABELA 3 – Tipos de padrões de referencialidade em complementação sentencial e
seu contexto de ocorrência no Português, Italiano e Grego
Contextos
Predicados Finitos
não-initos
OBV
Causativos/Percepção física
(Todas as línguas)
Causativos/Percepção Física
(Português) (Ininitivo lexionado)
Volitivos (Português/italiano)
Factivos/Psicológicos (Italiano)
RL
Factivos/Psicológicos (PE/PB/GM)
Factivos (Português)
(Ininitivo lexionado)
Volitivos (GM)
Epistêmicos/Declarativos/Percepção
Mental (Todas as línguas)
Volitivo/Declarativo (PB)
(Ininitivo não-lexionado)
Controle
Fonte: Meira, 2013, p. 64.
A conclusão a que se pode chegar com base na Tabela 3 é a
de que os contextos por excelência de ocorrência de OBV nas línguas
analisadas são os predicados causativos e perceptivos físicos. O predicado
volitivo apresenta variação, pois na complementação inita exibe RD
e, na ininitiva, controle. Por outro lado, no GM, esse contexto exibe
apenas RL, apesar da leitura padrão ser a de correferência. Na Tabela 4,
apresentamos os contextos de RD obrigatória, de acordo com o que foi
investigado até aqui.
TABELA 4 – Contextos de ocorrência de Obviação nas línguas analisadas
Línguas
Predicados
Grego Moderno
Causativos – Perceptivos Físicos
Português
Causativos – Perceptivos Físicos
Volitivo
Italiano
Causativos – Perceptivos Físicos
Predicados com morf. de SUBJ.
Fonte: Meira, 2013, p. 65.
Esses fatos deixam evidente que há algo em comum entre verbos de
percepção física, causativos e volitivos que os levam a desencadear a OBV
856
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
nas línguas. Mas qual seria essa propriedade? Na seção 4, apresentaremos
alguns pontos em comum entre os predicados que exigem OBV, e são essas
noções que nos guiarão no desenvolvimento deste trabalho. Antes disso,
na próxima seção, será apresentada uma nota sobre alguns predicados que
selecionam complementação indicativa e subjuntiva no grego, bem como
os tipos de complementizadores que estruturam essas sentenças.
3.2 Nota sobre os predicados de complementação indicativa e subjuntiva
no grego
A complementação sentencial a predicados de percepção física
no grego com o complementizador –na pode ser constituída de duas
maneiras diferentes: (i) sentença com um clítico, em que há subida do
pronome para a oração matriz, como em (21a), e (ii) um predicado com
Marcação Excepcional de Caso, do inglês Exceptional Case Marking
(ECM), em que o sujeito da encaixada é marcado por Caso, pelo verbo
matriz, como em (22b), ou seja, o iniciador da eventualidade encaixada
será realizado como pronome clítico ou como DP. Em todos esses
contextos, há RD obrigatória. Esses contextos se assemelham aos casos
de predicado complexo admitidos também pelas línguas românicas.
(21)
a. O Yanis1 ton2 idhe cv*1/2 na erxete.
O Joao ele/o viu-3SG PRT vir-3SG
‘João o viu vindo’
b. O Yanis idhe
tin alepu
na erxete.
O João viu-3sg PRT a raposa-ACUS que vir-3sg
‘O João viu que a raposa vinha’
Em contextos especíicos, é também possível sentenças do tipo
(22), como complemento de predicados de percepção física.
(22)
O Yanis1 idhe cv*1/2 na erxete.
O João viu-3sg comp vir-3sg
‘O João viu que ele vinha’
No entanto, tanto o padrão de referencialidade quanto o sentido do
verbo é alterado nos contextos de perceptivos com um complementizador
–oti, como ilustrado em (23).
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
(23)
857
O Yanis1 idhe
oti cv1/2 efaje kala.
O João viu-3sg PRT que-comp comeu-3sg bem
‘João viu que ele comeu bem’ (Ou João ou alguém comeu bem)
No grego, há dois tipos de complementos a verbos de percepção
mental:
(i) complementos-oti (que): admitem apenas referência livre:
(24)
O Yanis1 thimithike oti cv1/2 aghorase tsighara. (GM)
O João se lembrou-3sg que comprou-3sg cigarros
‘O João se lembrou de que ele comprou cigarros’
(ii) complementos-na (que): desencadeiam como leitura padrão a
correferência, mas a depender do contexto há leitura de RL.
(25)
O Yanis1 thimithike
na cv1/*2 aghorasi tsighara. (GM)
O João se lembrou-3sg PRT que comprar-3sg cigarros
‘João se lembrou de comprar cigarros’
No contexto de predicado epistêmico e de declarativos com -oti,
admite-se apenas RL, conforme ilustrado respectivamente em (26a) e
(26b/26b’).
(26)
a. O Yanis1 pistevi oti cv1/2 tha perasi stis eksetasis.
O João acredita-3sg que PRT-FUT-passar-3sg no exame.
‘João acredita que ele passará no exame. (ou ele ou outra
pessoa)
oti cv1/2 tha pane sto sinema. (GM)
b. Ta koritsia1 ipan
As garotas disseram-3pl que PRT-FUT ir-3pl para o cinema.
‘As garotas disseram que elas iriam para o cinema.’ (ou as
próprias garotas ou outras)
oti cv1/2 tha iji.
b’. O Yanis1 lei
O João diz-3sg que PRT-FUT partir-3sg
‘O João diz que ele partirá.’ (ou o próprio João ou alguma
outra pessoa)
858
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
No grego, há diferentes tipos de complementizadores. Por
exemplo, predicados cujo complemento oracional é de subjuntivo
terão complementizadores –na (que + subjuntivo). Oti, por outro lado,
é um complementizador indicativo. Há ainda complementos com pu
(que), como nos perceptivos físicos, factivos e psicológicos. Pu como
relativizador ocorre em contextos de correferência, como em (27).
(27)
Idha ton Petro pu efthase argha xthes vradi.
‘Eu vi Pedro que chegou tarde noite passada.’
Por outro lado, complementos -pu, com um sujeito nulo, ocorrem
nos predicados perceptivos físicos e OBV.5
(28)
a. Idha pu katharize.
‘Eu1 vi que ele*1/2/ela estava limpando.‘
b. *idha pu kathariza.
‘Eu vi que eu estava limpando.’
Apesar das diferentes formas de complementizadores (-pu, -na,
-oti) no grego, a RD obrigatória é exibida nos contextos de causativos
e em construções de perceptivos físicos, o que parece sugerir que essa
restrição é direcionada pelo tipo de predicado matriz.
4 A relação entre os predicados causativos/volitivos e os de percepção
física: as modalidades proposicional e de evento
A categoria de modalidade tem sido classiicada no mínimo em
dois tipos nas línguas: a Epistêmica e a Deôntica (cf. LYONS, 1977;
PALMER, 1986). Palmer (2001) redistribui as modalidades em deôntica e
dinâmica, por um lado, e epistêmica e evidencial, por outro. Modalidade
epistêmica pode ser deinida como a categoria que descreve a opinião
do falante diante de um índice proposicional, de uma situação (cf.
PIETRANDREA, 2005). Por outro lado, a modalidade deôntica expressa
obrigação e permissão, necessidade ou possibilidade de ações realizadas
por um determinado agente (cf. HATAV, 1997, LYONS, 1977).
5
Construções de perceptivo físico com –pu desencadeiam OBV.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
859
Predicados causativos e volitivos denotam o mesmo tipo
de modalidade: a deôntica (cf. PALMER, 1986; HATAV, 1997;
NORDSTROM, 2010; WYMAN, 2010). Causativos e volitivos estão
inseridos dentro da chamada Modalidade Raiz (Root Modality),
que expressa os sentidos de obrigação, permissão ou habilidade
(cf. SWEETTSE, 1990; FRAWLEY, 1992; PIETRANDRE, 2005).
Modalidade raiz inclui as modalidades deôntica e dinâmica: obrigação,
permissão, habilidade, volição, i.e., agrupam as noções ligadas aos
predicados causativos e volitivos (cf. LYONS, 1977; FRAWLE, 1992).
Outra evidência de que volitivos também se relacionam semanticamente
com a modalidade deôntica está no fato de eles indicarem mais uma ação
possível do que a verdade de uma proposição (cf. PALMER, 1986).
Nosso foco nesta pesquisa são os predicados causativos,
volitivos e perceptivos físicos, já que nesses contextos a RD é exigida
obrigatoriamente entre sujeitos. Os dois primeiros predicados são
classiicados como de modalidade raiz. Os perceptivos físicos são
tomados, pela literatura, como evidenciais (cf. GIVÓN, 1982 apud
PIETRANDREA, 2005; WILLET, 1988; PALMER, 2001). Nesta
pesquisa, argumentaremos que eles se distinguem dos perceptivos
mentais por serem não epistêmicos, não proposicionais.
Palmer (2001) classiica os sistemas Epistêmico e Evidencial
como tipos de modalidade Proposicional e os sistemas deôntico e
dinâmico, como tipos principais da Modalidade de Evento. A relação
entre eles pode ser interpretada da seguinte forma:
A modalidade epistêmica e a evidencial fazem referência à
atitude do falante a um valor de verdade ou a um status factual
da proposição (modalidade Proposicional). Por outro lado, as
modalidades deôntica e dinâmica se referem a eventos que não são
reais, eventos que não ocorreram, mas são meramente potenciais
(modalidade de Evento). (PALMER, 2001, p. 08)6
6
“[...] epistemic modality and evidential modality are concerned with the speaker’s
attitude to the truth- value or factual status of the proposition (Propositional modality).
By contrast, deontic and dynamic modality refer to events that are not actualized,
events that have not taken place but are merely potential (Event modality)” (PALMER,
2001, p. 8)
860
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
Eventos e proposições são noções que indicam as informações
denotadas pelos predicados. Proposições se referem a pensamentos e a
crenças (cf. PARSONS, 1990), indicam entidades mais abstratas, ligadas
à mente do falante. Sentenças que expressam condições são também
proposições. Proposição não pode ser tomada como uma entidade
concreta, real, existe apenas na mente do falante. Eventos, por sua vez,
são propriedades concretas e particulares, realizados em um tempo e
espaço determinados, podendo ser mais genéricos ou mais especiicos
(cf. MONTAGUE, 1969; HIGGINBOTHAM, 2000).7
Como nosso foco é propor uma relação entre o tipo de modalidade
denotada pelos predicados causativos, volitivos e perceptivos e mostrar
a forma como isso se relaciona com a OBV, que é exigida por eles,
apresentaremos nos parágrafos seguintes a modalidade denotada por
esses predicados, que tipo de leitura (eventiva ou proposicional) eles
denotam, a forma como essas noções semânticas são capturadas pela
sintaxe e como a RD pode ser entendida nesse contexto.
Palmer (2001) classifica os evidenciais, que englobam os
predicados perceptivos, como denotadores de modalidade proposicional.
No entanto, não há um consenso na literatura a esse respeito. Butler
(2004) toma ininitivos selecionados por predicados perceptivos físicos
como denotadores de modalidade eventiva. Tomando proposição como
uma noção que se refere a pensamentos, argumentamos que, como
predicados perceptivos abarcam duas acepções – o perceptivo físico e o
perceptivo mental –, a acepção denotada pelo perceptivo mental é mais
ligada a impressões, a inferências causadas por determinada situação,
tendendo a se relacionar mais a uma leitura proposicional, com um valor
epistêmico. Por outro lado, a outra acepção dos perceptivos, a física,
denota modalidade eventiva, relacionando-se com o que é mais concreto,
não-epistêmico. Observe as sentenças em (29a) e (29b).
(29)
a. João viu Maria sair. (evento/percepção física da visão)
b. João viu que Maria gostava dele. (proposição/percepção
mental, sentido de perceber)
7
Para uma discussão mais aprofundada sobre a diferença entre proposição e evento,
remetemos o leitor aos trabalhos de Montague (1969), Chisholm (1970), Pianesi e Varzi
(2000), Higginbotham (2000), Parsons (1990), Asher (2000), dentre outros.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
861
A sentença em (29a) denota o que foi visto pelo sujeito, a ação
realizada, o evento, ao passo que (29b) indica a impressão que o sujeito da
sentença tem de determinada situação, denota uma leitura proposicional.
Butler (2004) observou que verbos infinitivos em inglês
selecionados por predicados perceptivos físicos e epistêmicos
possibilitam dois tipos de leituras. Os primeiros denotam uma leitura
eventiva, enquanto que os verbos epistêmicos fazem referência a uma
leitura proposicional. Sua argumentação se baseia nos dois tipos de
ininitivos em inglês: o ininitivo nu e o precedido pela partícula to. E
ele chega à conclusão de que verbos de percepção física são seguidos por
um ininitivo nu, denotando uma leitura eventiva, ao passo que verbos
epistêmicos selecionam ininitivo precedido por to e denotam uma leitura
proposicional. Para ilustração, apresentamos o par de sentenças a seguir.
(30)
a. I saw Mary sing. (Evento)
b. *I saw Mary to sing.
‘Eu vi Maria cantar.’
(31)
a. I believe Mary to have sung. (Proposição)
b. *I believe Mary sing.
‘Eu acredito que Maria tenha cantado.’
Tomando como base essas pesquisas, assumimos proposição
como objeto de crenças (cf. PARSON, 1990) e classiicamos predicados
epistêmicos e perceptivos mentais (cf. PALMER, 2001), como
denotadores de proposições. Por outro lado, predicados perceptivos
físicos serão tomados como denotadores de eventos, assim como os
predicados de modalidade deôntica/dinâmica.
Modalidade deôntica expressa obrigação e permissão de ações
realizadas por um determinado agente (cf. LYONS, 1977); causativos
e volitivos denotam esse tipo de modalidade (cf. PALMER, 1986;
NORDSTROM, 2010; WYMANN, 2010), possibilitando leitura eventiva.
Predicados perceptivos físicos são classiicados como Evidenciais (cf.
HIGGINBOTHAM, 1983; PALMER, 2001) e denotam leitura não
epistêmica (cf. FELSER, 1999). Os mentais, por sua vez, estão ligados
aos epistêmicos.
862
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
Predicados causativos, volitivos e perceptivos físicos em comum
se caracterizam por propiciar leitura de RD obrigatória entre o pronome
de 3ª pessoa da oração complemento e o sujeito nominal de 3ª pessoa
da oração matriz. Esses predicados são denotadores de leitura eventiva,
tem um caráter não epistêmico e propiciam leitura de OBV, em contraste
com a leitura proposicional e a possibilidade de RL dos predicados
epistêmicos. Isso é interessante na medida em que assumimos que uma
leitura eventiva desencadeia, sintaticamente, uma estrutura diferente de
um predicado que propicia leitura proposicional (cf. ROCHETTE, 1988;
HORNSTEIN, MARTINS e NUNES, 2006).
Como a OBV é uma propriedade semântica de certos predicados,
isso pode ser capturado na sintaxe pelo licenciamento de estruturas
sintáticas distintas. De alguma forma, a OBV é admitida nos contextos
de modalidade não epistêmica e nosso objetivo é demonstrar como isso
é mostrado pela sintaxe.
No PB, os causativos e verbos de percepção física admitem OBV
tanto na complementação inita quanto na ininitiva; por outro lado, os
volitivos exigem esse fenômeno apenas na complementação inita. Duas
razões podem explicar esses fatos: (i) a força causadora (deôntica) nos
predicados causativos é maior do que nos volitivos, de acordo com
uma perspectiva tipológica (ver PALMER, 1986; FELSER, 1999),
uma vez que os volitivos expressam a modalidade dinâmica, o subtipo
de modalidade deôntica e (ii ) a semântica do volitivo querer expressa
pelo menos dois signiicados para denotar a ação realizada pelo sujeito:
um ligado ao desejo de alguém para outra pessoa, vinculado a noções
deônticas, de causalidade (ordem/pedido/desejo), que chamaremos de
volitivo causativo, e outro ligado ao desejo de alguém para si mesmo,
mais vinculado à noção de vontade. Nesse caso, assemelha-se mais a um
auxiliar e não a um verbo principal e seleciona apenas o complemento
ininitivo em português, que chamamos de volitivo padrão (default). Para
resumir esses dados, veja a tabela 5.
TABELA 5 – Signiicados do predicado volitivo querer nas línguas românicas
Volitivo causativo = indica o desejo de alguém para outra pessoa realizar (OBV/não controle);
Volitivo default = ligado ao desejo de alguém para si mesmo (Controle/correferência).
Fonte: Meira, 2013, p. 37.
863
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
Em outras palavras, para explicar por que o verbo volitivo, nas
línguas românicas, exibe duas estratégias para expressar referencialidade,
OBV, em orações initas e controle em frases ininitivas, adotamos, com
base em Meira (2013), que, assim como o perceptivo (físico e mental), os
verbos volitivos denotam dois signiicados, duas leituras, com diferentes
propriedades semânticas e sintáticas, denominado por nós de volitivo
causativo e volitivo padrão. A primeira, assim como o perceptivo físico e o
causativo, exige OBV, licencia sujeito com caso nominativo na encaixada,
seleciona CP em orações initas e exibe dependência temporal entre
TPs encaixado e matriz; o último não licencia sujeito visível na oração
encaixada, requer leitura de controle, seleciona TP ininitivo, sem traço
de Caso, e esse TP não é marcado por Tempo. Nesse caso, o predicado
volitivo exibe dois tipos de acepções, com propriedades semânticas e
conigurações sintáticas diferentes, o que está ratiicado na Tabela 6:
TABELA 6 – Propriedades do predicado volitivo
Tipos de predicados
Padrão Ref.
Estrutura
selecionada
Sujeito
visível
Leitura
Volitivo causativo
OBV
TP inito
√
Evento
Volitivo padrão
Controle
TP não inito
---
Evento
Fonte: Meira, 2013
No tzotzil, língua da família maia, o verbo volitivo k’an (querer)
diferencia as duas acepções do volitivo por meio da inserção de um
aixo verbal. O volitivo padrão indica que o sujeito da matriz é idêntico
referencialmente ao sujeito da encaixada, o que está ilustrado na sentença
em (32a). Por outro lado, a acepção denotada pelo volitivo causativo
é marcada pela construção ak’o + verbo subjuntivo, seguida ao verbo
matriz. Nesse caso, o predicado matriz expressa a vontade de alguém
que um outro faça alguma coisa; os sujeitos nesse contexto são disjuntos
referencialmente, como mostram (32b) e (32c).
864
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
(32)
a. Ta jk’an chkuch’ vo.
‘Quero beber água.’
b. Ali Xun e tzk’an ak’o xchan
kastiya e.
João
3-quer
3-aprender castelhano.
‘João quer que ele (outra pessoa) aprenda castelhano
(HAVILAND, 1981, p. 354)
c. Ta jk’an ak’o avuch’ vo.
‘Quero
bebas água.’ (HAVILAND, 1981, p. 353)
Só é possível a construção com –ak’o quando os sujeitos são
diferentes. Construções com predicado volitivo k’an (querer) e a diferença
semântica quando a construção com –ak’o é introduzida são evidências
de que há diferenças morfológicas no predicado volitivo querer para
denotar seus dois tipos de acepções, de leituras.
Os dados sugerem que restrições de referencialidade podem, de
fato, estar ligadas a predicados não epistêmicos, e, nesse sentido, a OBV
pode ser orientada pelo tipo de predicado matriz. A nossa hipótese é de
que a RD obrigatória, do tipo investigado aqui, não é especíica apenas a
línguas românicas e ao grego, mas se estende a outras línguas, já que pode
ser um fenômeno relacionado às noções semânticas do predicado matriz,
especiicamente dos causativos, perceptivos físicos e volitivos causativos.
Como indica várias pesquisas, esses predicados são denotadores de leitura
eventiva e sintaticamente desencadeiam uma estrutura diferente de um
predicado que propicia leitura proposicional (cf. ROCHETTE, 1988;
HORNSTEIN; MARTINS; NUNES, 2006).
Rochette (1988)8 propõe uma Teoria da Complementação e difere
sintaticamente complementos por meio de suas classes semânticas de
predicados (Ação, Evento e Proposição), atribuindo-os, respectivamente,
a realizações estruturais distintas, como VP, IP e CP. Em outras palavras,
ela argumenta que esses tipos semânticos de complementos diferem
estruturalmente e, nesse caso, complemento eventivo é uma projeção de
INFL (casos de complementos ininitivos e subjuntivos), apresentando
tempo dependente da oração matriz; complementos de ação são projeções
8
Pesetsky (1982, 1992) também sugere relacionar um tipo semântico de predicado a
determinada estrutura sintática.
865
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
de VP, e complementos de proposição são projeções de CP. Raposo
(1987), Pesetsky (1992), Cinque (2001) e Wurmbrand (2001) também
mostram evidências de que complementos proposicionais são estruturas
expandidas, CPs.
Rochette (1988) propõe uma análise para dar conta do efeito da
OBV exibida nos complementos de verbos volitivos sob a luz da teoria
de seleção semântica e sugere que volitivos sejam gerados como uma
projeção da categoria INFL, subcategorizando IP, e o que é analisado
como um elemento Case-spelling, elemento nucleando o CP, numa
posição entre o IP encaixado e o VP, matriz. Nesta pesquisa, tomaremos
volitivo causativo como predicado que seleciona TP e leitura eventiva.
A tabela a seguir resume algumas das propriedades listadas dos
predicados de OBV.
TABELA 7 – Propriedades semânticas e conigurações sintáticas de predicados de OBV
Predicados
Propriedades
Estrutura
Sujeito
visível
Perceptivo Físico/
causativo/volitivo
causativo
Caráter nãoepistêmico
OBV
Evento
TP
√
Perceptivo mental/
epistêmico
Caráter
epistêmico
RL
Proposição
CP
√
Fonte: Meira, 2013.
Como vemos na Tabela 7, volitivo causativo é uma projeção de TP
inito e não CP, mas como explicar os complementos subjuntivos volitivos
das línguas românicas que são introduzidos pelo complementizador
que. Como dissemos, Rochette (1988) argumenta que o que é um ‘casespelling element’ que evita adjacência entre o verbo principal e o sujeito
encaixado. Rochette airma que o fato de que orações subjuntivas sejam
projeções INFL explica algumas generalizações sintáticas subjuntivas,
tais como: as restrições de tempo; o fato de orações subjuntivas não
coocorrerem com wh-words. Outra evidência para analisar orações
subjuntivas como IP é o fato de que complementos indicativos e
subjuntivos se comportam diferentemente no que diz respeito à extração.
A extração do ‘tous’ em francês é possível apenas quando há sentenças
ininitivas e subjuntivas, sendo agramatical com complementos no
866
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
indicativo. A extração de ‘tous’ é possível apenas em complementos VP
e IP. Observe os seguintes exemplos:
(33)
a. Jean a
tous voulu les
lire
John has-3SG all wanted them PRO to read
‘John has wanted to read them all’
b. Jean veut
tous que Marie les
lise
John wants-3SG all that Marie them reads-3SG-SBJV
‘John wants Marie to read them all’
c. *Jean croit
tous que Marie les
lira
John believes-3SG all that Marie them will-read-3SG
‘John believes that Marie will read them all’ (ROCHETTE,
1998, p. 301)
Sugerimos ainda que predicados de OBV se caracterizam por
serem de caráter modal, já que semanticamente impõem restrições aos
seus complementos, como a referência disjunta entre os sujeitos matriz
e da encaixada. Além disso, sintaticamente selecionam uma estrutra TP.
Resumiremos na Tabela 8 os tipos de conigurações de RD obrigatória.
TABELA 8 – Predicados de referência disjunta obrigatória
Predicados
Estrutura
Arg. ext.
encaixada
Padrão ref.
Leitura
não-epistêmica/
não proposicional/
eventiva
P&C ECM
TP não-inito
Acusativo
OBV
√
P&C-Ininitivo
lexionado
TP
NOM
OBV
√
Volitivo causativo/
P&C
TP
NOM
OBV
√
Fonte: Meira, 2013, p. 158.
Tomaremos a versão minimalista do conceito de subcategorização
proposta por Adger (2004), aliada à proposta de s-seleção, para derivar
as sentenças de OBV e para explicar seu efeito nas línguas, o que será
exposto na próxima seção.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
867
5 Uma proposta sintática para a RD em complementação sentencial
Sintaticamente, predicados modais,9 tanto os de RD obrigatória
quanto os de controle, terão as mesmas estruturas, complemento TP,
diferenciando-se pela capacidade do T, nas estruturas de RD, de dispor de
traço de caso. O TP das estruturas de controle, no português, será tomado
como não inito, não dispondo de traço de caso e de tempo.
Predicados de OBV são tomados como marcados em relação aos
predicados de controle, já que ambos são selecionados por predicados
modais. Predicados epistêmicos são contextos neutros, por possibilitarem
referência livre. Sintaticamente, esses predicados se distinguem dos
predicados modais por selecionarem complemento CP.
A OBV, em termos sintáticos, pode ser capturada da seguinte
forma: o sujeito tem de ter seu Caso na encaixada checado, na posição de
[Spec, TP], bem como todos seus outros traços. Em termos semânticos,
o predicado matriz, da mesma forma que c-seleciona um complemento
9
Diante das funções semânticas restritas que predicados de OBV desempenham na
sentença, sugerimos que eles possam ser similares a verbos modais. Verbos modais
constituem um conjunto pequeno de verbos que semanticamente expressam noções como
obrigação, possibilidade, permissão, futuridade, dentre outras. Os exemplos tomados
por nós para exempliicar essa classe de verbo, grifado em negrito, vêm do inglês.
(i) a. John must buy the house
‘João deve comprar a casa’
b. John can buy the house.
‘João pode comprar a casa’
Predicados de RD obrigatória também exibem noções semânticas como ordem, desejo,
vontade e são capazes de exigir sujeito na encaixada referencialmente independente do
sujeito matriz, o que é impossível para os outros predicados, como mostra o contraste
entre (ii) e (iii) a seguir.
(ii) a. João pode comprar a casa
b. *João pode Pedro comprar a casa
(iii) João mandou Pedro comprar a casa
A sugestão de tomarmos predicados de RD obrigatória como verbos modais se deve ao
fato de estes compartilharem restrições semânticas assim como aqueles. Nesse caso,
uma das restrições semânticas impostas por volitivos, causativos e perceptivos físicos
aos seus complementos é a RD.
868
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
TP, também s-seleciona a referencialidade disjunta entre os DPs sujeitos,
na posição de [Spec, TP], o que se torna possível pela c-seleção de TP.
A OBV também poderia ser tomada como um traço transmitido pelo
predicado matriz ao sujeito da encaixada, e isso é justiicado pelo caráter
modal dos predicados de RD obrigatória, por conter restrições semânticas.
Nos contextos de ECM, esse traço [obv] poderia ser transmitido ao DP
da encaixada no momento em que o núcleo v da oração superior checa
o traço de caso [acus] do DP na posição de [Spec,TP] da encaixada. De
qualquer forma, como o predicado matriz de contextos de OBV seleciona
um TP na encaixada, não há violação do Princípio B da Teoria da Ligação,
o que possibilita a OBV.
Os traços de Tempo (TP) podem ser apresentados como: traços-φ
, de [tempo] e o traço EPP, do inglês Extended Projection Principle
(Princípio de Projeção Estendida); além disso, T pode ser associado a
Caso, no sentido de conseguir valorá-lo. Os traços-φ do verbo [+T] são
não interpretáveis e, portanto, não são legíveis para os sistemas externos
da interface, devendo ser valorados em uma relação de concordância.
Chomsky diferencia dois tipos de T, de acordo com sua relação com
traços-φ: (i) aquele com traços-φ completos, T-completo e (ii) aquele
com traços-φ incompletos, T-defectivo.
Predicados de RD obrigatória selecionam TP inito, nos contextos
de subjuntivo e indicativo, e TP não inito nos contextos de ECM. O TP
inito é incompleto no sentido de que o T só conseguirá checar o traço
de [caso] do DP depois que seus traços de [tempo] forem checados e
valorados pelos traços de [tempo] da oração matriz, o que conigura uma
dependência temporal entre as orações. Essa será a análise que tomaremos
para o TP inito incompleto. Por outro lado, o TP não inito não dispõe de
traço de [caso], nem de traço de [tempo], como o TP do predicado ECM.
Adotaremos a posição de que predicados ECM selecionam
complemento TP não inito. Esse TP carregará traço EPP não interpretável,
e o DP será concatenado na posição de [Spec,TP] da encaixada para
checar esse traço. Como o TP é não inito, o traço de [caso] do DP não
será checado e entrará em uma relação de checagem de caso com núcleo
do vP matriz. Este valorará o caso do DP como [acus], o que conigurará
uma estrutura ECM. Essa será a análise que tomaremos para os predicados
ECM P&C do PB.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
869
Com relação aos complementos de ininitivo lexionado, nossa
hipótese é a de que esses complementos são distintos estruturalmente
a depender do tipo de predicado matriz que os seleciona, P&C ou
factivos/epistêmicos. Estes permitem RL, e aqueles, RD obrigatória.
A RL é desencadeada em complementos CP, por factivos, declarativos /
epistêmicos (cf. RAPOSO, 1987; MADEIRA, 1994; SITARIDOU, 2002)
e a OBV, em causativos e perceptivos, em complementos TP.
Assumiremos, com base na literatura já mencionada sobre
ininitivo lexionado, que o TP do ininitivo lexionado é capaz de checar
traço de [caso] do DP da encaixada, e o TP desses complementos terá
traços-phi completos e será capaz de checar [caso]. Apesar de o ininitivo
lexionado não ter marcas morfológicas de tempo, exibe marcas de
número/pessoa.
No volitivo causativo, devido à dependência temporal da
encaixada em relação à matriz, o núcleo T, do complemento TP encaixado,
só checará [caso] do DP, depois de ter seus traços de T valorados pelo
T matriz, e o núcleo de TP encaixado tem traços de T não valorados
nessas conigurações. O complemento indicativo, subcategorizado por
perceptivo físico, seleciona TP, e o núcleo T só checará Caso do DP
depois de ter seus traços de T valorados pelo T matriz.
A derivação dos complementos dos predicados de OBV depende
diretamente de requerimentos de Caso, já que há necessidade de dois
sujeitos diferentes nas sentenças. Sabe-se que o núcleo T, de complemento
ininitivo lexionado de perceptivo e causativo do português, pode atribuir
Caso para o seu DP sujeito. Adicionalmente, verbo matriz ECM é capaz
de atribuir caso para seu DP objeto, já que esses predicados c-selecionam
um TP não inito, cujo núcleo T é incapaz de valorar caso. A tabela a
seguir ilustra algumas propriedades dos predicados de OBV, de controle
e de referência livre.
870
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
TABELA 9 – Propriedades dos predicados em complementação sentencial
e sua relação com a RD
Predicados
Traço [obv]
Leitura
Referência
Estrutura
Contruções
Volitivo padrão
Modais
Aspectuais
- traço [obv]
Deôntica
(raiz) (volição/
habilidade)
Controle
TP (volitivo
padrão)
-----------VP (Modais/
aspectuais)
– ininitivos
– orações –na
Epistêmico
Factivo
Perceptivo mental
Neutro
Epistêmica
RL
CP
– Ininitivo
lexionado
– orações –oti
– indicativos
com que
Causativo
Volitivo causativo
Percepção física
+traço [obv]
Eventiva/nãoepistêmica
Deôntico
(permissão)
RD
(obviação)
TP
- subjuntivos
com que
- ininitivo
lexionado
- orações –na
- ininitivo
Fonte: Meira, 2013, p. 193.
5.1 Derivação de sentenças
Para simpliicar as derivações nos complementos analisados,
serão descritas apenas as projeções TP, vP e VP, seguindo a hierarquia
T – v – V e tomando como base a Teoria de Seleção Semântica
(cf. CHOMSKY, 1986; ROCHETTER, 1988) e a versão minimalista de
Subcategorização, proposta por Adger (2004). Por limitação de espaço,
apresentaremos, neste artigo, apenas a derivação do volitivo causativo.
As derivações para as demais sentenças estão disponíveis em Meira
(2013) para onde remeto o leitor.
A derivação da sentença (34) pode ser aplicada aos contextos
de predicados volitivos causativos com tempo encaixado dependente
do da matriz.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
(34)
871
João1 quer que ele*1/2 compre a casa.
Numeração = {João [N, caso], T2 [pres, nom, uN*], v [uInl: ], querer
[uN, uTP], ele [N, caso], T1 [uN*, uInl: , nom, iTP], v [uInl: ], comprar
[uN, V] a casa [N]}
1º passo: A derivação tem início com a relação de checagem no VP.
Comprar é concatenado com o DP a casa e checa seu traço [uN], como
mostra a coniguração em (1).
(1)
a casa [N]]
VP [ comprar [uN]
2º e 3º passos: v é selecionado da Numeração e concatenado com a
estrutura (1). Nessa etapa, o verbo se move para v e o DP ele entra na
derivação, é concatenado na posição de [Spec,vP] e recebe seu traço
temático.
(2)
vP
ele [N]
[nom]
comprar
[uInl: ]
v’
VP
(comprar) a casa
4º passo: T1 é selecionado e concatenado com a coniguração em (2).
Como é um T dependente do T matriz, não pode valorar os traços de
tempo de v, nem checar [caso] do DP, na posição de [Spec,vP], que sobe
para a posição de [Spec,TP] para checar o traço [uN*], que é o EPP em T.
872
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
(3)
TP2
Ele [N] [caso]
T’
T [uInl: ] [uN*] [nom]
[iTP]
vP
(Ele [N] [caso])
v’
comprar
[uInl: ]
VP
a casa
5º passo: Querer é selecionado da Numeração e concatenado com a
estrutura em (3), checando seu traço [uTP]. Obviação, para Rochette
(1988), pode ser explicada pelo Princípio B da Teoria da Ligação, quando
complementos subjuntivos a verbos emotivos são analisados como
IP, assumindo, assim, que o ‘que’ não bloqueia regência dos sujeitos
encaixado e matriz. Se o regente do sujeito encaixado é o verbo matriz,
então o Domínio de Ligação é a oração matriz.
(4)
v’
v [uInl: ]
VP
querer [uTP]
TP
ele
T’
T [iTP]
vP
873
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
6º passo: O DP, João, é concatenado na posição de [Spec,vP]. T2 entra na
derivação e é concatenado com a estrutura em (4). O núcleo T2 concorda
com o T1 e valora seu traço de tempo como [+presente], como o da matriz
e T1 valora o traço de caso [nom] de ele e valora os traços de tempo do
v encaixado. O núcleo de TP2 valora o traço de caso [nom] do DP João,
que sobe para a posição de [Spec,TP2] para checar o traço [uN*] em
T2. Adicionalmente, T e v da matriz entram em concordância, T checa
e valora os traços lexionais em v, como [presente]. Sendo traços de T
forte, o verbo na posição de núcleo de vP sobe para a posição de núcleo
de TP. No português, francês e italiano, quando traços lexionais (Inl)
em v são valorados como tempo, eles são sempre fortes, subindo para a
posição de T, em TP.
(5)
TP2
João [N] [nom]
T’
T [uN*] [pres]
vP
(João [N] [nom])
v’
(querer) [uInl: pres]
VP
Com relação aos predicados que exigem OBV no grego e
sobre o volitivo nessa língua, que possibilita RL, diacronicamente, o
grego perdeu tanto seu ininitivo, quanto marcas de subjuntivo. Este é
marcado pela partícula –na. Construções com –na subjuntivo abarcam no
grego tanto os contextos que eram antes de ininitivo, quanto contextos
de subjuntivo. Pesquisadores sobre línguas da área balcânica têm
tratado tradicionalmente a questão da subcategorização de predicados
subjuntivos de duas formas: (i) a partícula –na tem sido tomada como
874
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
um complementizador que assume diferentes formas dependendo do
complemento verbal, se indicativo –oti, se subjuntivo –na (cf. SAN
MARTIN, 2007) ou (ii) assume-se que a partícula –na é um marcador
subjuntivo (cf. TERZI, 1992; RIVERO, 1988).
A primeira impressão é a de que sentenças volitivas e causativas
são idênticas estruturalmente, já que ambas têm seu complemento
encabeçado pela partícula –na, como em (35a) do volitivo e (35b),
causativa. Uma diferença entre elas é que o volitivo permite RL, e o
causativo, OBV.
(35)
a. O Yanis1 theli
O João quer
na
subj
iji1/2. (SITARIDOU, 2007, p. 201)
partir
plini*1/2 ta piata pio grigora
b. O Yanis1 parigile na
O João mandou PRT-subj lavar-3ªsg os pratos mais
rapidamente
A nossa hipótese é a de que complementos que desencadeiem
RL, como em (35a), sejam tomados como CP, e complementos que
exijam OBV sejam um TP, como (35b). Trataremos o volitivo grego
como selecionador de estrutura CP (cf. BALLESTA, 1993), já que o –na
é tomado como um complementizador. Isso conirma a nossa hipótese,
pois o volitivo permite RL. A alternativa que temos para explicar essa
diferença do volitivo grego com o volitivo de outras línguas parte de uma
perspectiva histórica. Provavelmente, com a perda do ininitivo no grego
e com a perda das marcas lexionais do subjuntivo no verbo, passando
para um C subjuntivo, e com o surgimento de um comp subjuntivo –na
(cf. SAN MARTIN, 2007), o volitivo tenha perdido sua função modal
e, com isso, suas restrições semânticas (controle obrigatório ou RD
obrigatória) e passou a permitir a RL, funcionando, assim, como um verbo
lexical. Isso seria uma alternativa para explicar a não predominância
nas sentenças do grego de um volitivo padrão, com controle, ou de um
volitivo causativo, com OBV. O volitivo grego permite a RL, o que
conigura que não há restrição semântica imposta por esse predicado.
Essa ideia dá conta do volitivo nessa língua, com seu complemento CP,
exibindo RL, conirmando a nossa proposta.
Ballesta (1993) observa que predicados causativos no grego
não podem ser classiicados como similares estruturalmente a volitivos
e sugere que as restrições e algumas peculiaridades daqueles verbos
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
875
sejam consequência de fatores semânticos. Com relação aos predicados
perceptivos físicos, funcionam como verbos ECM.
6 Considerações inais
Nesse artigo, tivemos como objetivo: (i) mostrar que initude e a
relação que a literatura faz entre controle/ininitivo e obviação/subjuntivo
não é suiciente para explicar as estruturas de controle e obviação
nas línguas e (ii) mostrar que a obviação é uma restrição semântica
imposta por um grupo de predicado matriz aos seus complementos,
sendo isso capturado sintaticamente. Diante disso, a obviação exibida
em complementação sentencial não é um fenômeno restrito a línguas
românicas ou a línguas que exibam a distinção inito / não inito, mas
é uma restrição semântica imposta por predicados de obviação (não
epistêmicos) a seus complementos e, devido a isso, essa restrição
semântica será exibida por línguas que dispõem desses contextos em
complementação sentencial.
Referências
ADGER, David.Core Syntax. A Minimalist Approach. Oxford. University
Press, 2004.
BORER, Hagit. Anaphoric AGR. In: JAEGGLI, Osvaldo; SAFIR,
Kenneth. The Null Subject Parameter. Dordrecht; Boston; London:
Kluwer Academic Publishers, 1989.
BOUCHARD, D. The Avoid Pronoun Principle and the Elsewhere
Principle. In: SELLS, P.; JONES, C. (Ed.). Proceedings of ALNE 13/
NELS 13. Amherst: GLSA. 1984. p. 29-36.
CHIERCHIA, G. Anaphora and attitudes «De Se». In: BARTSCH, R.;
van BENTHEM, J. F. A. K; BOAS, van Emde (Ed.). Semantics and
Contextual Expressions. Kluwer; Reidel: Foris Publications, 1989.
CHOMSKY, Noam. Lectures on Government and Binding. Dordrecht:
Foris, 1981.
COSTANTINI, Francesco. Subjunctive Obviation: an Interface Perspective.
2005. 183f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Línguas, Università Ca’
Foscari, Veneza, 2005.
876
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
FARKAS, Donka. On Obviation. In: SAG, Ivan; SZABOLCSI, Anna.
Lexical Matters. Center for the Study of Language and Information.
Stanford University: CSLI, 1992.
FELSER, Claudia. Verbal complement Clauses. A minimalist study of
direct perception constructions. John Benjamins Publishing Company,
1999.
FERREIRA, M. Argumentos Nulos em Português Brasileiro. 2000.
113f. Dissertação (Mestrado em Linguistica) – Instituto de Estudos da
Linguagem, Unicamp, Campinas, 2000.
HIGGINBOTHAM, James. The logic of perceptual reports: an extensional
alternative to situation semantics. Journal of Philosophy, Columbia
University, n. 80, p.100-127, 1983.
KEMPCHINSKY, P. Mood Phrase, Case Checking and Obviation.
In: SCHWEGLER, A; TRANEL, B.; URIBE-ETXEBARRIA, M.
(Org.). Romance Linguistics: Theoretical Perspectives. Amsterdam;
Philadelphia: John Benjamins, 1998. p. 143-154. Doi: https://doi.
org/10.1075/cilt.160.12kem
KRAPOVA, I. Subjunctives in Bulgarian and Modern Greek. In:
RIVERO, Maria Luisa; RALLI, Angela. Comparative Syntax of Balkan
Languages. Oxford: University Press, 2001.
LYONS, H. Case and expletives. Linguistic Inquiry, MIT Press, n. 23, p.
381-405, 1977.
MEIRA, Vivian. A obviação/referência disjunta em complementação
sentencial: Uma proposta sintático-semântica. 2013. 229f. Tese
(Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem,
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2013.
NORDSTROM, J. Modality and subordinators. Amsterdam: John
Benjamins, 2010. Doi: https://doi.org/10.1075/slcs.116
PALMER, F. Mood and Modality. 2. ed. Cambridage: Cambridge
University Press, 2001.
PALMER, F. Mood and Modality. Cambridge University Press, 1986.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018
877
RAPOSO, Eduardo. Romance Ininitival clauses and Case Theory. In:
NEIDLE, C.; NÚÑEZ-CEDEÑO, R. (Ed.). Studies in Romance Languages.
Dordrect: Foris, 1987. Doi: https://doi.org/10.1515/9783110846300
RAPOSO, Eduardo. Some asymmetries in the Binding Theory in
Romance. The Linguistic Review, De Gruyter, n. 5, p. 75-110, 1985.
ROCHETTE, Anne. Semantic and Syntactic Aspects of Romance
Sentential Complementation. 1988.Tese (Doutorado) – Massachusetts
Institute of Tecnology, 1988.
SAN MARTIN, Itziar. Beyond the Ininitive vs. Subjunctive Rivalry:
surviving changes in Mood. In: EGUREN, Luis; FERNANDEZSORIANO, O. (Org). Coreference, Modality and Focus. Studies on the
syntax-semantics interface. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins
Publishing Company, 2007.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
Cláusulas de inalidade e argumentação:
uma proposta de interface gramática e interação
Purpose Clauses and Argumentation:
a Proposal for the Interface Between Grammar and Interaction
Amitza Torres Vieira
Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Minas Gerais / Brasil
amitzatv@yahoo.com.br
Nilza Barrozo Dias
Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro / Brasil
nilzabarrozodias@id.uff.br
Resumo: O artigo analisa dados reais de fala-em-interação em situação
de conlito e propõe investigar o papel das cláusulas de inalidade na fala
argumentativa dos participantes em uma audiência no Juizado Especial
Criminal. A proposta de trabalho entrelaça a vertente Funcionalista à
perspectiva da Sociolinguística Interacional, com o objetivo de examinar
a interface gramática e interação. Teoricamente, são empregadas
ferramentas do discurso, e a análise sequencial da argumentação nos
turnos de fala é sua ferramenta principal de trabalho. A essa perspectiva
alia-se a abordagem da sintaxe funcionalista na identiicação e descrição
do uso de cláusulas de inalidade (DIAS, 2001) na argumentação dos
participantes das audiências investigadas. Na análise argumentativa,
são utilizados os componentes da argumentação propostos por Schiffrin
(1987): posição, disputa e sustentação. Em um estudo de caso qualitativo,
acompanhamos a trajetória do processo argumentativo em um caso de
agressão verbal entre duas mulheres, e mostramos, especiicamente,
como as cláusulas hipotáticas de inalidade estão ligadas às sustentações
de posições nesse contexto institucional.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.879-904
880
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
Palavras-chave: cláusulas de inalidade; argumentação; gramática e
interação.
Abstract: The paper analyzes actual data of talk-in-interaction in a
conlict situation and proposes to investigate the role of purpose clauses
in the argumentative talk of the participants in a hearing in the Special
Criminal Court. The work proposal intertwines the Functionalist
dimension to the perspective of Interactional Sociolinguistics, in order
to examine the interface between grammar and interaction. Theoretically,
discourse tools are employed, inding in the sequential analysis of the
argumentation in talk shifts their focus. This perspective is joined with
a functionalist syntax approach in the identiication and description
of the use of purpose clauses (DIAS, 2001) in the arguments of the
participants of the audience investigated. In the argumentative analysis,
the components of the argumentation proposed by Schiffrin (1987) are
used: position, dispute and sustentation. In this qualitative case study,
we follow the trajectory of the argumentative process in a case of verbal
aggression between two women, and show speciically how hypothetical
purpose clauses are linked to the support of positions in this institutional
context.
Keywords: purpose clauses; argumentation; grammar and interaction.
Recebido em 8 de outubro de 2017.
Aceito em 8 de novembro de 2017.
1 Introdução
Este trabalho busca estabelecer um diálogo entre duas importantes
abordagens linguísticas: a sintaxe funcionalista e a argumentação
discursiva, ambas relevantes nos estudos que veem a linguagem como
forma ou processo de interação. Pretende-se relacionar a estrutura da
linguagem e seu uso orientado pelo contexto situacional e pela ordem
interacional. Nesse intento, ambiciona-se mostrar como as cláusulas
hipotáticas adverbiais de inalidade funcionam na argumentação, tomando
como exemplo uma audiência Preliminar no Juizado Especial Criminal.
Ochs, Schegloff e Thompson (1996) consideram a matriz da
Gramática Interacional como um modo diferente de tratar a descrição
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
881
linguística. Essa nova possibilidade de análise posiciona a gramática
como parte de uma gama mais ampla de recursos que subjazem à
organização da vida social (FORD; THOMPSON, 1996). Nessa visão,
estruturas gramaticais têm signiicado, em parte, devido às práticas
sociais e atividades que ajudam a constituir. A gramática é imbuída
de subjetividade e sociabilidade: é vista como um comportamento
vivido, cuja forma e signiicado se desenvolvem em tempo histórico
e em interacões experenciadas. Os autores defendem ser a gramática
não apenas um recurso da interação ou o seu resultado, mas parte da
essência da própria interação. Nessa mesma direção, os estudos editados
por Selting e Couper-kuhlen (2001) examinam estruturas linguísticas
que emergem dos contextos em que ocorrem e mostram que seu uso se
relete na estrutura conversacional e constitui recurso para vários tipos
de trabalho interacional.
Nessa perspectiva, a análise do fenômeno linguístico pode
ser vista como a convergência de uma relação estreita e dependente
entre o contexto que modela e é modelado pela gramática. O contexto
compreende especiicamente as ações que os participantes projetam por
meio de suas falas. Pesquisas realizadas revelam regularidades em alguns
fenômenos linguísticos já investigados.1 Esses fenômenos constituem
práticas que os falantes desenvolvem na solução das necessidades mais
recorrentes do tempo real, das atividades diárias de interação e execução
de ações relevantes.
Em ambientes jurídicos, tais como os dos Juizados Especiais
Criminais, as atividades e tarefas desempenhadas pelos conciliadores,
que coordenam as audiências, são orientadas pelas metas inerentes
à prática proissional e institucional (DREW; HERITAGE, 1992). O
Juizado Especial Criminal é o órgão do poder judiciário responsável
por processar e julgar contravenções penais e crimes de menor potencial
ofensivo cujas penas não ultrapassem dois anos de prisão. São duas as
fases desse órgão: a Audiência Preliminar e a Audiência de Instrução
Reportamos, especiicamente na publicação organizada por Ochs, Schegloff e
Thompson (1996), os capítulos de Schegloff, Goodwin e Lerner que mostram estruturas
gramaticais revisualizadas como estruturas interacionais que têm sua própria morfologia
e sintaxe interacional intra e interturnos de fala. Reportamos também os estudos editados
por Selting e Couper-kuhlen (2001) e trabalhos desenvolvidos com dados do português
em uso (DIAS; VIEIRA, 2008, 2013; FERREIRA, 2009).
1
882
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
e Julgamento. A primeira, contexto do nosso estudo, ocorre antes do
oferecimento da denúncia e constitui uma possibilidade para que as
partes se reconciliem, evitando, assim, um processo criminal. Essa
conciliação se dá, principalmente, por meio de um acordo para pagamento
de eventuais prejuízos sofridos pela vítima. Caso não seja possível a
conciliação, é oferecido ao réu primário o benefício da transação penal,
que consiste no pagamento, em dinheiro ou em serviços, a uma entidade
carente. Não havendo conciliação entre as partes ou não sendo aceita
a transação penal pelo réu, o processo é encaminhado ao Ministério
Público, que poderá arquivá-lo ou aceitar a denúncia. No último caso,
será aberta a fase de instrução, com agendamento da Audiência de
Instrução e Julgamento, quando o juiz profere a sentença, e o réu poderá
ser absolvido ou condenado.
Nesse cenário institucional, a meta maior do conciliador na
Audiência Preliminar é celebrar o acordo entre as partes e arquivar o
processo nessa instância, de modo a não sobrecarregar os trabalhos no
judiciário. Já as partes, querelante e querelado, buscam defender seus
pontos de vista e, normalmente, relutam em aceitar a conciliação. Nesse
sentido, essas audiências constituem um lócus profícuo para o exame da
argumentação, pois todo o processo de negociação do acordo ocorre por
meio da argumentação dos participantes durante a interação realizada
no órgão.
Como uma análise prévia da audiência Preliminar do Juizado
Especial Criminal aqui investigada mostrou o uso recorrente de cláusulas
de inalidade na fala argumentativa dos participantes, interessa-nos
compreender qual o papel dessas construções na argumentação nessa
instância judicial.
Trabalho desenvolvido por Dias e Vieira (2008), com dados
de audiências de conciliação no PROCON, já mostrara expressiva
ocorrência das cláusulas hipotáticas de finalidade na sustentação
das posições dos participantes de encontros no órgão de proteção ao
consumidor. As autoras mostram que, como as cláusulas de inalidade
são utilizadas para descrever a execução de objetivos dos participantes,
são preferencialmente inseridas em narrativas, pois, por meio da
narração, podem ser relatados fatos que realcem intenções ou metas dos
protagonistas. Assim, na argumentação do PROCON, as cláusulas de
inalidade estariam contribuindo para a evidência das provas.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
883
Uma diferença importante entre esse estudo e o nosso trabalho
é o fato de que, no contexto de conciliação examinado por Dias e Vieira
(2008), embora os conciliadores exerçam poder sobre o que pode ou
não ser feito na interação, eles não têm poder legal para fazer as partes
chegarem a um acordo. Ao contrário, nas audiências preliminares
criminais, objeto de nosso estudo, o conciliador tem o poder legal para
processar o caso. Questionamos, então, se, em audiências preliminares
no Juizado Especial Criminal, o uso de cláusulas de inalidade poderia
estar também orientado para a construção de provas no processo em
julgamento.
A análise argumentativa será realizada assumindo uma visão
interacional de linguagem (SCHIFFRIN, 1987). A autora define
argumentação como um discurso por meio do qual os falantes sustentam
posições contrárias e propõe uma análise discursiva que capte as
propriedades textuais (ou monológicas) e as propriedades interativas (ou
dialógicas) do discurso argumentativo. É ponto central na sua deinição
a discussão dos três componentes da argumentação – posição, disputa
e sustentação – cujo entendimento requer atenção tanto para os muitos
aspectos da organização discursiva quanto para os traços característicos
das narrativas. Essa tipologia será utilizada como ferramenta para a
análise da argumentação dos participantes da audiência, investigada
neste trabalho.
Para a investigação sintática das cláusulas de finalidade,
utilizamos os trabalhos de Dias (2001, 2002, 2010). Segundo a autora,
as cláusulas de inalidade indicam o propósito ou a inalidade de um
sujeito ou locutor, desencadeando um movimento de X a Y no mundo das
intenções. Esse deslocamento no mundo das intenções pode se sobrepor
ao deslocamento no mundo físico ou pode ocorrer somente no mundo
das intenções. Pode ainda esse movimento ser projetado por um locutor
para o próprio ato de fala.
Com o intuito de contribuir para o melhor entendimento sobre
as cláusulas de inalidade e seu uso orientado pelo contexto, realizamos
aqui um estudo exploratório de caso, de base interpretativa e qualitativa,
com base em dados reais de fala em interação.
884
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
2 Cláusulas de inalidade
De acordo com a proposta de Dias (2001), as cláusulas de
inalidade codiicam um movimento de uma origem para um objeto da
inalidade, no mundo das intenções. O sujeito e/ou locutor estabelecem
um propósito ou inalidade, cuja execução do objetivo demanda o
deslocamento de uma origem a uma meta, com uma trajetória, no
mundo das intenções. Esse deslocamento da origem para o objeto da
inalidade pode ser marcado por um sujeito agentivo, por um sujeito
experenciador (que projeta sua experiência e seus sentimentos no mundo
das intenções) ou por um locutor. Embora normalmente o mundo não
físico se sobreponha ao mundo físico, pode ocorrer que o deslocamento se
dê apenas no mundo das intenções, ou ainda pode haver um deslocamento
direcionado para o próprio ato de fala, quando o sujeito agentivo remete
ao locutor que projetou o movimento da inalidade.
Para a autora, a articulação do valor semântico de inalidade
ocorre em dois níveis: no primeiro, há a articulação de uma cláusula
de inalidade a uma cláusula-núcleo – representando as amostras mais
recorrentes – seguida da articulação com dois ou mais núcleos; no
segundo nível, a articulação da cláusula de inalidade se realiza com o
próprio ato de fala, o que exclui a cláusula-núcleo.
Dias (2010) mostra ainda que as cláusulas de inalidade mantêm
uma estreita relação com as posições que ocupam: anteposta, medial e
intercalada são formas marcadas, e a posição posposta é não marcada.
Após a investigação dos dados de língua falada e escrita,
Dias (2001) postulou os seguintes tipos de cláusulas de inalidade:
as hipotáticas canônicas, as hipotáticas discursivas e as cláusulas de
inalidade parentética e de adendo. As duas últimas não foram encontradas
na audiência selecionada para este estudo.
As hipotáticas canônicas indicam função semântica, isto é,
especiicam e delimitam a informação contida na cláusula-núcleo.
Segundo Dias (2001), a hipotática de inalidade canônica indica o im
ou propósito de um sujeito predominantemente agentivo e controlador,
expresso na cláusula-núcleo. Elas ocorrem, por excelência, na posição
posposta à cláusula núcleo, e o evento motivador codificado pela
hipotática canônica ocorrerá após o período do evento expresso pela
cláusula núcleo. As cláusulas hipotáticas de inalidade canônicas foram
consideradas por Dias (2001, 2010) como prototípicas, devido à alta
frequência nos corpora investigados pela autora.
885
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
Já as hipotáticas discursivas de inalidade superpõem uma função
discursiva à função hipotática de realce. Isso quer dizer que elas podem
ser usadas para salientar uma peça de informação do material que as
antecede (ou que seja inferível do próprio contexto), evidenciando essa
informação, bem como podem ser usadas para articular a informação que
as antecede com aquela que as sucede (DIAS, 2002). Com essa função,
elas se habilitam a auxiliar na coesão discursiva, podendo funcionar, na
posição anteposta, como domínio de referência (frame) para o qual a
cláusula-núcleo indicará a solução.
As cláusulas de finalidade parentéticas e de adendo não
apresentam cláusulas-núcleo; elas constituem uma informação em
relação a outra informação, no nível textual-discursivo. A cláusula
parentética constitui uma interrupção da continuidade tópica. Ela
codiica a interferência do locutor na sequência do luxo discursivo para
dar algum esclarecimento ou inserir algum tipo de informação que ele
julgue necessário. As cláusulas de adendo ocorrem como acréscimo de
informação, quer como resultado de uma incitação conversacional, quer
como informação adicional.
Podemos visualizar, a seguir, as cláusulas de inalidade, conforme
Dias (2001).
QUADRO I – Cláusulas de inalidade
[+ hipotáticas]
[- hipotáticas]
[-textual]
[+textual]
[+textual]
canônica
discursiva
parentética
(posposta)
(anteposta)
(intercalada)
[+textual]
de adendo
(posposta)
Fonte: Elaborado pelo autor.
3 Argumentação e interação
As teorias da argumentação têm uma longa história que pode ser
traçada desde os escritos da Grécia Antiga, especialmente as obras de
Aristóteles. Para o pensador da Antiguidade, raciocinar é saber extrair
conclusões de proposições estabelecidas pela linguagem (ARISTÓTELES,
886
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
1978).2 Esses estudos se formaram e se ramiicaram durante mais de dois
milênios, diversiicando-se acentuadamente no século XX. A variação
existente entre os tratamentos das diferentes disciplinas que estudam o
fenômeno (por exemplo, os estudos literários, a ilosoia, a jurisprudência,
a lógica ou a linguística) é bastante considerável. Também nos estudos
da linguagem, a diversidade teórica é notória, e há entre as disciplinas
importantes entrelaçamentos.3
No âmbito linguístico, os estudos contemporâneos ampliam as
noções aristotélicas e propõem a construção de modelos do discurso
argumentativo com base em dados empíricos (falados ou escritos). Por
exemplo, a teoria Pragma-Dialética (EEMEREN; GROOTENDORST,
1984; EEMEREN, 1992) ampara-se na Teoria dos Atos de Fala (AUSTIN,
1962; SEARLE, 1969) e analisa os argumentos apresentados em
interações em que há divergência de opinião.
Já a abordagem discursivo-interacional de Schiffrin (1987),
adotada neste trabalho, considera que a argumentação é coconstruída
na interação. Nessa visão, o desenho sequencial da fala argumentativa
pode mostrar como os interagentes fazem uso da fala para alcançar
seus objetivos comunicativos em situações reais. A autora propõe uma
análise do discurso argumentativo que capte tanto suas propriedades
textuais – como um monólogo – quanto suas propriedades interativas –
como um diálogo. Fundamental para este estudo é sua discussão sobre
os três componentes da argumentação – posição, disputa e sustentação.
Segundo Schiffrin (1987, p.19), a posição é composta da ideia (isto é, as
informações descritivas de situações, estados, eventos e ações no mundo) e
do compromisso do falante com aquela ideia. A demonstração mais simples
do compromisso com a ideia se dá por meio de uma asserção, a qual
reivindica a verdade da proposição. Em demonstrações mais complexas,
o falante pode modalizar a força da proposição, maximizando-a ou
mitigando-a. Além do compromisso, interpretado no presente estudo como
O plano estrutural do argumento, previsto por Aristóteles, pode ser descrito pelo
clássico silogismo “se D, então C”, terminologia utilizada por Toulmin (1958). Nesse
modelo, raciocinamos com base em fatos (datum) ‘D’, e deles chegamos a conclusões
ou airmações ‘C’ (TOULMIN, 1958, p. 97-99).
3
Aos leitores em busca de uma historiograia das teorias da argumentação, remetemos
às exposições de Eemeren et al. (1996), e, em forma mais condensada, a Cox e Willard
(1982).
2
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
887
o alinhamento (cf. GOFFMAN, 1981) que o falante assume em relação
à produção e à recepção de enunciados, Schiffrin (1987) ainda identiica
outra parte da posição, sua representação, que, em outros termos, seria o
estilo adotado pelo falante para apresentar a ideia. Para Shiffrin (1987),
a representação das posições não só pode revelar ideias, como também
valores morais e reivindicações de competência e de caráter. Na análise
do presente trabalho, essa terceira parte da posição será tratada também
como integrante daquilo que Schiffrin denomina compromisso, visto que
esse conceito engloba, a nosso ver, questões relativas a estilo ou “tom”,
se esse componente é tratado como alinhamento (GOFFMAN, 1981).
Ao tratar da disputa em relação a uma posição, Schiffrin (1987)
observa que o desacordo pode ser orientado para qualquer um (ou mais)
de seus elementos: uma oposição pode estar centrada no conteúdo
proposicional, em seu alinhamento, ou em implicações pessoais e morais
do desempenho verbal. A autora destaca que alguns desacordos são
obscurecidos porque são apresentados indiretamente ou mitigados por
meio de dispositivos de mitigação.
O componente inal no modelo de Shiffrin (1987) é a sustentação.
De acordo com a autora, um falante pode sustentar uma posição em
qualquer nível em que ela pode ser disputada, explicando uma ideia ou
justiicando uma asserção. Para a autora, sustentação, em qualquer um
desses níveis, pode ser classiicada como diferentes atos de fala, isto
é, a pessoa pode explicar, justiicar, ou defender.4 Cada um desses atos
de fala fornece informação por meio da qual o falante induz o ouvinte
a tirar uma conclusão a respeito da aceitabilidade ou legitimidade/
verossimilidade da posição. Schiffrin (1987, p. 20) enfatiza que o exame
da sustentação em uma argumentação envolve não somente atos de fala,
mas também relações inferenciais entre ideias, acrescentando ainda
que, em muitas argumentações por ela examinadas, tanto o conteúdo da
sustentação quanto a relação inferencial entre sustentação e posição são
amplamente variáveis. Assim, formas de sustentação diferentes, como
a exempliicação pessoal, a analogia e o apelo à autoridade podem ser
interpretadas como validando uma posição. Nos dados aqui investigados,
as sustentações constituem o lócus privilegiado de ocorrência de cláusulas
hipotáticas de inalidade.
Entendemos “defender” como o ato de compromisso que o locutor irma com a ideia,
ou seja, o grau de adesão ou alinhamento, nos termos de Goffman (1981).
4
888
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
4 Contexto do estudo e metodologia
O estudo inscreve-se no tipo de metodologia qualitativa e
interpretativa (DENZIN; LINCOLN, 2006), pois se alinha àqueles que
veem como as principais tarefas do pesquisador descrever e compreender
o signiicado das ações humanas, e identiicar o que os atores sociais estão
fazendo ao utilizarem a linguagem. Realiza-se um estudo exploratório
(GIL, 1999), combinando duas teorias sociolinguistas – a Funcionalista
e a Interacional – em um mesmo processo de análise, que pode servir
de base para estudos futuros.
No método qualitativo de pesquisa, os conceitos e as teorias
emergem dos dados e são exempliicados neles. Há uma interação
dinâmica entre os dados e a teoria. A pesquisa qualitativa procura
descrever as principais ocorrências relevantes e faz uma correlação entre
essas ocorrências e o contexto social mais amplo, a im de que possam
ser usadas como excertos concretos dos princípios abstratos que regem
a organização social (ERICKSON, 1992).
A perspectiva que assumimos combina a gravação e a transcrição
de interações naturalísticas com técnicas etnográicas de observação
e entrevistas. Nossos materiais integram o acervo do Projeto “O
português falado na Zona da Mata de Minas Gerais: constituição de
um banco de dados de Audiências do Juizado Especial Criminal” (BIC/
UFJF, 2013/2016).5 Respeitando a ética, os nomes de pessoas, lugares,
instituições ou quaisquer outros nomes que pudessem ser identiicados
foram trocados por nomes ictícios. A gravação dos dados foi feita
inicialmente em um aparelho analógico de gravação, marca Panasonic,
modelo RQ-L11. Atualmente, os dados encontram-se digitalizados. A
transcrição dos corpora foi realizada segundo o modelo Jefferson, cujas
convenções, adotadas pelos analistas da conversa (ver SACKS et al.,
1974; GAGO, 2002), encontram-se no Anexo 1. Nossa pesquisa conta,
ainda, com outros tipos de evidências: observação não participante
das audiências, entrevista semiestruturada e conversa informal com
a conciliadora, além de acesso a alguns documentos. Ao adotarmos
essa conduta, a situação investigada se tornou menos distante de
nós, pesquisadores, e pudemos nos alinhar a uma agenda de pesquisa
O Projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Humana da Universidade
Federal de Juiz de Fora (CAAE 03965712.5.0000.5147, Parecer nº 153.335).
5
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
889
colaborativamente construída (SARANGI, 2001), postura metodológica
que possibilita olhar para um determinado problema com um novo
enfoque (o do pesquisado). Nesse sentido, podemos chamar nosso
desenho investigativo de semicolaborativo.
As audiências preliminares no Juizado Especial Criminal têm
como meta maior a conciliação entre as partes. Nessa instância judicial,
não há a fase de “julgar um processo legal”, pois não ocorre o proferimento
da sentença; o objetivo de uma audiência preliminar é processar o caso,
de modo que ele não seja encaminhado ao Ministério Público, fato que
poderá gerar outro processo legal. A organização macroestrutural de uma
audiência Preliminar no Juizado Especial corresponde a:
a) Esclarecimento sobre o processo;6
b) Tentativa de conciliação;
c) Oferecimento da transação penal.
O contexto do estudo contém dados representativos do que
é denominado fala de conlito (GRIMSHAW, 1990), um campo de
pesquisa que estuda centralmente o conlito nas suas mais diversas
formas. De acordo com Vuchinich (1990, p. 118), um conlito ocorre
quando, ao longo de sucessivos turnos de fala, os participantes opõem
suas elocuções e ações. Para expressar oposição, direta ou indiretamente,
recursos linguísticos, paralinguísticos ou sinestésicos podem ser usados.
O encerramento do conlito verbal ocorre quando os turnos de oposição
terminam e outras atividades são iniciadas.
Selecionamos para nosso trabalho a segunda parte de uma
audiência denominada “Parede e meia (Parte 2)”,7 que envolve um caso
de agressão verbal entre duas mulheres. Laís, a querelante, registrara
um Boletim de Ocorrência contra Maria, sua vizinha, a querelada,
que não havia chegado a tempo de participar da primeira audiência,
quando Laís decidira encerrar a ação. Assim, o caso fora arquivado pela
Embora não seja denominada coleta de depoimentos, pois esse procedimento ocorre
quando é elaborado o Boletim de Ocorrência, a fase de esclarecimento sobre o processo
corresponde, na prática, a uma coleta de depoimentos sobre o caso, com o objetivo de
conirmar as informações relatadas ao policial de plantão na Delegacia da Polícia Militar.
7
A audiência “Parede e meia (Parte 2)” foi gerada, no ano de 2012, em uma cidade da
Zona da Mata de Minas Gerais.
6
890
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
conciliadora Sônia. Entretanto, após chegar ao Fórum, Maria pleiteia
continuar com o processo. A conciliadora concorda em recebê-la e,
nessa segunda parte da audiência, contexto de nosso estudo, Maria diz
ter sofrido constrangimento e, por isso, deseja prestar nova ocorrência. A
conciliadora expõe as desvantagens dessa decisão, e o caso é encerrado.
Devido a esses aspectos contextuais, a organização macroestrutural
dessa audiência é idiossincrática, constituindo-se apenas pela fase
“Esclarecimento sobre o processo”.
5 Análise
Participam da audiência Parede e meia (Parte 2) a conciliadora,
Sonia, a querelada, Maria, e o estagiário, Davi. Essa audiência foi
selecionada para este estudo por ser profícua em estratégias de
argumentação e representar um bom exemplo de uso de cláusulas de
inalidade. Além disso, ela é relativamente breve, 10min35s, o que
possibilita investigar a situação interacional de forma mais completa
e aprofundar a análise. Foram identiicadas, no total, doze ocorrências
de cláusulas hipotáticas de inalidade, todas atuando na sustentação das
posições dos participantes. Ou seja, não houve nenhuma ocorrência de
cláusulas de inalidade na posição dos participantes.
No início da audiência, há duas posições antagônicas: a
querelada reivindica o prosseguimento da ação, alegando ter-se sentido
constrangida pela querelante, e a conciliadora defende o arquivamento do
processo. Logo nos primeiros momentos do encontro, Sonia comunica
à Maria que o processo havia sido arquivado por desejo de Laís, a
quem cabia esse direito, pois fora ela quem o iniciara com o registro no
Boletim de Ocorrência. Entretanto, Maria não aceita a decisão e continua
sua argumentação, defendendo agora a abertura de um processo legal
contra Laís, por constrangimento moral, como pode ser observado no
excerto (1).
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
891
Excerto (1)
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
Maria
35
Sonia
→
→
eu posso fazer alguma coisa por constrangimento no entanto
na época eu estava no primeiro dia de serviço ela
praticamente (
) ela falou pra ele que ele era
obrigado a ir até o meu serviço pra me: repre:ender↓ ele
falou que como ele conhecia a lei ele não iria fazer
isso(.) que ele iria na minha casa pra conversar mesmo
assim nem era obrigado a ir (.)pegou na época meu marido
estava aqui estava trabalhando em Macaé estava em casa com
meu ilho bateram na porta fui lá ver quem e↑ra (.)era a
polícia
humhum
As primeiras ocorrências de hipotáticas adverbiais de inalidade
na audiência aparecem na sustentação da querelada, realizada via
narrativa factual,8 tal como já identiicado por Dias e Vieira (2008) em
dados de audiências no PROCON. No excerto (1), Maria narra como
o policial, incitado por Laís, foi procurá-la em sua casa. As cláusulas
de inalidade, nesse caso, constituem uma projeção do que a querelante
pretendera fazer no passado, segundo a narrativa de Maria. Observa-se,
por exemplo, o contraste entre a intenção de Laís incitar o policial a ir
ao trabalho da querelada (“pra me repre:ender”, linha 28) e a intenção
do policial de se dirigir à sua casa “pra conversar” (linha 30). Na fala
de Maria, a ação intencionada por Laís – a repreensão do policial – é
negativa,9 diferentemente da ação intencionada pelo policial – uma
conversa –, que tem um tom mais conciliatório. Nesse caso, as hipotáticas
adverbiais de inalidade canônicas pospostas (linhas 28 e 30) estariam
contribuindo para a evidência da posição defendida por Maria: ela se
sentira constrangida pela querelante.
O excerto (2) a seguir mostra a refutação da conciliadora à
alegação de Maria de que Laís a constrangera ao incitar o policial a
procurá-la em sua casa.
As narrativas factuais são aquelas que narram fatos pretensamente reais, pois apresentar
uma informação de uma dada situação é um lance conversacional ativo que transforma
fundamentalmente a natureza do que foi dito (TANNEN, 1989, p. 105).
9
O verbo repreender sugere uma avaliação negativa do objeto da repreensão (de censura
e advertência, por exemplo).
8
892
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
Excerto (2)
50
51
Maria
E ela sempre comentou que tomava remédio controlado ela e a
ilha dela
52
53
54
55
56
Sonia
tá então vamos lá (1,0) é:: quando a pessoa chega pra fazer
uma ocorrência policial e o policial preci↑sa contactar a
outra parte até <pra pegar os da::dos (.) pra dar até
ciência de que vai- né, que foi fei↑to [uma ocorrência
policial>]=
57
Maria
[(mas foi feito)][(
58
59
60
61
62
Sonia
=>ele pode procurar em qualquer lugar< (.) ele pode
procurar em qualquer lugar>ele pode te procurar na sua casa
ele pode procurar no seu local de trabalho< ele pode te
abordar na rua “ô fulana” (.) é: eu não sei se na hora eles
te dão um documento ou só te informa
→
)]
Em sua fala, Sonia sustenta a legalidade da ação do policial ao
procurar a querelada em sua residência. A meta ou intenção do policial
é justiicada em termos legais, por meio de evidências, explicitadas em
três cláusulas de inalidade canônicas pospostas (linha 52 a 55), inseridas
em uma narrativa ictiva. Segundo Oliveira et al. (2007), as narrativas
ictivas diferem das factuais por não se referirem a fatos localizados num
tempo determinado, mas a fatos que se repetem e que constituem padrões
exemplares de ações rotineiras no contexto do trabalho. A primeira
ocorrência (linhas 52-53) projeta a meta do cidadão ao lavrar um Boletim
de Ocorrência. As duas outras hipotáticas adverbiais de inalidade (linhas
54 e 55) projetam as metas usuais dos policiais no cumprimento de seu
trabalho. Observa-se que essas duas últimas cláusulas são produzidas em
ritmo mais lento que a fala em entorno. Imediatamente após a completude
sintática das hipotáticas de inalidade, a conciliadora acelera sua fala
(linhas 58-60). Ela ignora a tentativa de interrupção de Maria (linhas 56
e 57) e continua a descrever os procedimentos seguidos pelos policiais
após o registro de um Boletim de Ocorrência.
Entretanto, a querelada não é convencida por Sonia de encerrar
o caso e expressa seu desejo de registrar novo Boletim de Ocorrência,
alegando constrangimento por parte de Laís. A conciliadora, então,
continua sua argumentação com o objetivo de demover Maria de seu
intento, como pode ser observado no excerto (3).
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
893
Excerto (3)
71
Maria
[(mas eu)]
72
73
74
75
76
77
78
79
80
81
82
Sonia
[ porque ]se ela hoje tivesse formulado a queixa crime
né falando que fulana me xingou disso e disso e disso
falou(
) isso isso e aquilo e tivesse por exemplo (
)
testemunhas falsas para dar depoimento e no inal você
comprovasse que você nunca falou essas coisas com ela que
você nesse dia NEM estava em Que↑da saí sim você poderia
constituir um advogado, vir diversas vezes aqui, caberia um
dano alguma coisa nesse sentido (.) mas aponto dela ter
feito uma ocorrência de cabeça quente e chegou aqui hoje e
arquivou↓ (.) eu não visualizo nenhum dano que você possa::
que va↑le a pe:na você mexer
83
84
85
86
Maria
→
eu digo assim constrangimento porque eu nunc- polícia nunca
foi atrás de mim no entanto uma vez eu vim aqui porque eu
caí de moto e aí não deu em nada eu estava na garupa do meu
ex-namorado
Desta vez, a conciliadora desenvolve uma narrativa hipotética10
que prevê em que condições Maria poderia dar prosseguimento à ação.
Inserida na narrativa, a hipotática adverbial de inalidade canônica
posposta, cuja cláusula núcleo traz o verbo no subjuntivo (“tivesse”),
mostra a meta das testemunhas em um processo legal (“para dar
depoimento”, linha 75). No fechamento de seu turno de fala, Sonia
apresenta sua posição de arquivamento do processo: não há nenhum dano
para a querelada que valha a pena dar andamento ao caso (linhas 81 e 82).
No entanto, a argumentação da conciliadora não surte o efeito
esperado, pois Maria continua a argumentar ter sido constrangida por
Laís e apresenta sustentações de sua posição nos turnos subsequentes.
Na sequência dessa argumentação, Maria constrói uma narrativa em que
descreve atitudes da querelante, mostrada no excerto (4), a seguir. Logo
após o fecho dessa narrativa, a querelada faz uso de uma construção com
valor de inalidade (“se fosse pra denunciar, eu tenho prova de que ela
faz coi↑sas”, linhas 102-103).
As narrativas hipotéticas relacionam-se à possibilidade de se criar no discurso uma
realidade cuja existência constitui apenas matéria de criação retórica para fundamentar
uma posição (VIEIRA, 2007).
10
894
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
Excerto (4)
96
97
98
99
100
101
102
103
104
105
Maria e o pior é que ela falou pra todo mundo que enquanto eu não
saísse da ca:sa que ela faria da minha vida um inferno (.)
ela falou isso pra todo mundo aí (.) no dia que o policial
foi lá- lá em casa >ela esperou eu chegar do serviço e
falou assim< é realmente eu consegui (.) e icou rindo da
minha cara (1,0) entendeu? então ó↑ ela veio, fez esse
escarcéu todo, fazendo um escarcé↑u (.)se fosse pra
→
denunciar eu tenho prova de que ela faz coi↑sas (1,0)o meu
ilho passava pela janela que a janela dava pra dentro do
meu quintal, ela gritava [(vai
)]
106
107
108
Sonia
[>tá tátá<] é o seguinte: ela
já infernizou sua vida tanto que você preferiu até mudar
certo?
No excerto (4), encontramos uma construção PARA + ininitivo,
que pode ser analisada ora como uma cláusula de inalidade, ora com um
valor de cláusula predicativa, o que faz dela uma construção ambígua;11
ou ainda como uma construção para + INF (TORRENT, 2009), em que
se destaca a modalidade de “seria pra”. Portanto, evidencia-se que temos
uma interessante estratégia linguística em que, além da projeção do
movimento de inalidade no mundo das intenções, na cláusula iniciada por
PARA, Maria reforça o foco na leitura epistêmica sobreposta no uso da
modalidade deôntica [SER+PRA+ VERBO INFINITIVO] em relação ao
evento descrito como denunciar. Além disso, pode-se perceber a projeção
da modalidade irrealis do verbo “ser”, própria do modo subjuntivo.
Todas as escolhas sintáticas e semântico-discursivas estão em harmonia
e servem para fundamentar a narrativa hipotética.
Convém destacar que o valor de inalidade pode ser percebido
como um silogismo em que a conclusão é inferencial. A premissa maior,
expressa pela construção ambígua “se fosse pra denunciar”, apresenta a
possibilidade de ser registrada uma ocorrência policial; a premissa menor
expõe que Maria tem provas contra Laís. Está implícita a conclusão:
Maria pode registrar uma ocorrência policial contra Laís.
O tema foi discutido, informalmente, com as professoras Violeta Virgínia Rodrigues
(UFRJ) e Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG), mas as informações são de nossa
inteira responsabilidade.
11
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
895
Dessa forma, nova argumentação se inicia: Maria defende o
direito de instaurar outro processo contra Laís, e Sonia argumenta não
ser viável essa ação.
Todas as outras ocorrências de cláusulas hipótaticas adverbiais
de inalidade encontradas na audiência “Parede e meia (Parte 2)” estão
na fala da conciliadora. Até o im do encontro, ela sustenta a posição de
não ser aberto outro processo. Essa argumentação de Sonia é mostrada
nos excertos (5), (6) e (7) a seguir.
Excerto (5)
104
105
Maria
ilhopassava pela janela que a janela dava pra dentro do
meu quintal, ela gritava [(vai já) ( )]
106
107
108
Sonia
[>tá tátá< (mas o que)(
)]
aqui é o seguinte (.) ela já↑(.)infernizou sua vida (.)
tanto que você preferiu até mudar certo?
109
Maria
foi
110
Sonia
você nem encontra nem cruza mais
111
Maria
graças a deus não
112
113
114
Sonia
→
→
então eu acho que não VA↑le a pe↓na você perde:r tempo,
gasta:r dinheiro com advogado <pra montar um proce↓sso,pra
fazer↓ ela vir aqui↓>pra mostrar [>aqui ó↓eu iz um BO<]
115
116
Davi
[porque mesmoque você] entre com um processo e ganhe uma
indeni[zaçã:o]
117
118
119
120
Sonia
[pois é↑] aonde eu
ia chegar(.) quando a gente entra com uma coisa dessas
querendo uma indenização um dano no moral no fundo no fundo
o que a gente quis uma compensação em dinheiro
No início do excerto (5), a conciliadora interrompe a sustentação
por narrativa de Maria, em sobreposição e com aceleração da fala (linha
106). A tomada de turno abrupta lhe é facultada pelo papel institucional
de gerenciadora de tópicos discursivos e de alocação de turnos nesse
contexto. Na sequência, Sonia mostra evidências de que não há
possibilidade de mais discórdia entre as duas vizinhas, visto que Maria
se mudara de perto de Laís (linhas 107-108) e não “encontra nem cruza
mais com ela” (linha 110).
Após a concordância avaliativa de Maria (linha 111), Sonia fecha
sua argumentação com a apresentação de sua posição (implícita) de não
896
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
ser aberto outro processo: “eu acho que não VA↑le a pe↓na você perde:r
tempo, gasta:r dinheiro com advogado”(linhas 112-113). Na sequência,
três hipotáticas de inalidade discursivas sustentam por evidência essa
posição: “<pra montar um proce↓sso (.) pra fazer↓ ela vir aqui↓>pra
mostrar >aqui Ó↓ eu iz um BO<” (linhas 113-114). Todas elas projetam
movimentos não físicos, mas no mundo das intenções, em relação às
suas cláusulas núcleos.
Thompson (1985) airma que as cláusulas de inalidade pospostas
expressam a inalidade do estado de coisas descrito na cláusula núcleo
e apresentam uma função deinida no discurso, ao dar uma motivação
orientacional para uma série de ações. Observa-se a harmonização nessas
construções: primeiramente, uma cláusula núcleo (“gasta:r dinheiro
com advogado”) e sua inalidade (“<pra montar um proce↓sso”),
que funciona como núcleo da segunda cláusula hipotática (“pra fazer↓
ela vir aqui”); em seguida, a última cláusula de finalidade (“pra
mostrar >aqui Ó↓ eu iz um BO<”) tem como cláusula núcleo as duas
cláusulas de inalidade antecedentes. As duas primeiras construções são
produzidas com desaceleração da fala, em ritmo lento, marcado por
descidas acentuadas na entonação. Essas marcas paralinguísticas parecem
sugerir que a instauração de um processo percorre uma trajetória lenta
e tediosa na justiça. A terceira cláusula, ao contrário,é produzida com
fala acelerada. A mudança no ritmo da fala da conciliadora pode ser
justiicada pela iminência da tomada de turno por Davi (linha 115), o que
de fato ocorre. Mas também pode ser creditada à diferença de intenção
expressa por essa última cláusula. As duas primeiras mostram intenções
orientadas pelos procedimentos de instauração de um processo no Juizado
Especial Criminal, isto é, metas de todos que registram ocorrências
nessa instância. Já a cláusula de inalidade que fecha a argumentação de
Sonia expressa uma intenção particular, a de Maria, ou seja, dizer a Laís
que havia feito um Boletim de Ocorrências. Como não é esperado que
audiências ocorram para que os querelantes comuniquem aos querelados
que registraram ocorrência contra eles, podemos inferir que a conciliadora
chama a atenção para a inutilidade dessa meta naquele contexto.
Assim, a intenção de Maria de retaliar Laís, expressa nas
hipotáticas adverbiais de inalidade discursivas (linhas 113-114), é
avaliada pela conciliadora como perda de tempo e de dinheiro, explicitada
na cláusula núcleo (“não VA↑le a pe↓na você perde:r tempo, gasta:r
dinheiro com advogado”, linha 112).
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
897
O excerto (6), a seguir, mostra outra ocorrência de cláusula de
inalidade na argumentação da conciliadora.
Excerto (6)
139
140
141
Maria é a terceira pessoa que ela faz um BO contra um vizinho
assim é a terceira casa que ela mora que ela faz um BO
contra a vizinha
142
143
144
145
146
147
148
149
150
151
Sonia ᵒpois éᵒ (.)mas isso não- não impede por exemplo se em
qualquer outra situação você passando por ela em Quedas se
ela debochar de você se ela mexer com você (.) faça você a
ocorrência
(.)
né?
ai
você
que
vai
ter
sido
agredi:daofendi:dadesacata:da por ela (.) agora, NEssa
questão que vocês trouxeram aqui hoje: (.) <não vale a pena
não> (1,0) não vale a pena não↓ >você vai se aborrecer você
vai se desgastar perder serviço perder seu TEM:po dar
→
dinheiro a advogado<<pra fazer ela presta↑r um serviço (.)
paga↑r uma [cesta bá:↑sica>]
152
153
Maria [ela passou por] mim deu uma risadinha de lado igual eu
falei com a minha mãe
Tal como no excerto (3), aqui também Sonia utiliza uma narrativa
hipotética como estratégia argumentativa (linhas 142-146), mostrando
possíveis atitudes de Laís que poderiam justiicar uma ocorrência contra
ela. A conciliadora contrapõe essa hipótese à situação atual e reitera sua
posição de não ser registrado novo Boletim de Ocorrência com uma
avaliação: “<não vale a pena não> (1,0) não vale a pena não↓” (linhas
147-148). Na sequência, as várias cláusulas núcleos acrescentam outras
perdas, além de tempo e dinheiro já citados pela conciliadora,12 caso Maria
decida prosseguir com a ação: desgaste emocional e proissional (“você
vai se aborrecer você vai se desgastar perder serviço perder seu TEM:po
dar dinheiro a advogado”, linhas 148-149). As cláusulas nucleares são
morfossintaticamente constituídas de perífrases de futuro, que projetam
movimento no tempo, em harmonia com as hipotáticas adverbiais, que
projetam movimento no mundo das intenções, em acordo com o princípio
da harmonia (LYONS, 1977; BYBEE; PERKINS; PAGLIUCA, 1994).
Observamos que as hipotáticas de inalidade canônicas, pospostas,
representam a meta da querelada (“<pra fazer ela presta↑r um serviço(.)
12
Conforme excerto (6).
898
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
paga↑r uma [cesta bá:↑sica>”, linha 150), e constituirão evidências
legais projetadas para a meta de um movimento no mundo das intenções.
Assim como no excerto (6), as hipotáticas de finalidade
são produzidas com desaceleração da fala. Entretanto, as marcas
paralinguísticas são outras: há subidas acentuadas na entonação de
determinadas palavras. Essa estratégia da conciliadora parece questionar
a intenção de Maria como não compensável em termos práticos, pois
ela não teria nenhuma vantagem pessoal com a abertura de um processo
contra Laís. Essa interpretação é corroborada pelo fecho da argumentação
da conciliadora no excerto (7), a seguir, que mostra o encerramento da
audiência.
Excerto (7)
162
Sonia
ela trabalha pra quem?
163
164
Maria
ela trabalha para o Daniel lá em Eldorado (.) ele tem lá
uma uma vendinha ilho da dona Eva
165
166
167
168
169
170
171
172
173
174
175
176
Sonia
eu sei quem é. (1,0) certi:↑nho, entendeu? o que foi feito?
foi arquivado o processo porque é direito dela arquivar ou
seguir com processo que era Dela que o processo era DE↑la
porque ELA, segundo o relatório, entrou como ví↑tima,
CER↑to?e↑ eu te aconselho a não buscar advogado a não mexer
com isso mais não (.) vai perder meu tempo vai se aborrecer
e (.) não vai dar nada. ela não tem dinheiro grande pra te
indeniza↓r. ela não vai ser presa por causa disso. ela
quando muito vai prestar um serviço ou pagar uma cesta
básica aí (
) compensa não (.) tem coi:sas que: >como
diz o outro, Deus te dá em dobro< entendeu? releva que é
melhor (1,0) certi:nho?
177
Maria
mas se ela passar [na minha frente]
178
179
Sonia
[se E:↑la izer]alguma ameaça alguma
coisa, vai na polícia militar e faz a ocorrência
→
Na última sequência argumentativa da audiência, Sonia retoma
posição anterior sobre o arquivamento do processo (linhas 165-168) e
reintroduz sua argumentação sobre a instauração de nova ação (linhas
169-171). Ela utiliza a cláusula núcleo + cláusula hipotática de inalidade
canônica posposta (“pra te indeniza↓r”, linha 172) para que seja expressa
uma das intenções de Maria caso ela decida abrir uma ocorrência contra
Laís. A cláusula-núcleo explicita a inviabilidade dessa meta no mundo das
intenções: “ela não tem dinheiro grande” (linhas 171-172), e a cláusula
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
899
de inalidade, a meta do movimento no mundo de intenções, reforçando
a inviabilidade da utilização de um processo por parte de Maria.
6 Considerações inais
Este estudo acompanhou, em uma audiência no Juizado
Especial Criminal, a trajetória do processo argumentativo de um caso
envolvendo agressão verbal entre duas vizinhas. Mostramos sequências
argumentativas desse processo nas quais foram encontradas cláusulas
hipotáticas adverbiais de inalidade. Segundo a classiicação proposta
por Dias (2001), encontramos expressiva ocorrência de cláusulas
hipotáticas de inalidade canônicas (pospostas), seguidas pelas hipotáticas
discursivas (antepostas), encontramos apenas uma ocorrência híbrida que
recebeu mais de uma análise. Não encontramos as demais cláusulas de
inalidade propostas.
Identiicamos, na argumentação dos participantes do encontro,
a sustentação como o lugar preferencial para ocorrência de cláusulas
de inalidade, sobretudo as hipotáticas canônicas. A maior ocorrência
de cláusulas de inalidade canônicas pospostas pode estar relacionada à
diiculdade da sustentação da posição em situações de fala conlituosa.
As cláusulas canônicas são mais fáceis de serem acessadas e utilizadas
pelo locutor em uma atividade de fala na qual ele necessite de “agilidade
mental” para chegar a um acordo.
Também essa orientação para o contexto poderia explicar a maior
ocorrência das cláusulas de inalidade na sustentação dos participantes
dessa audiência. Como nesse componente são apresentadas as provas para
defender a posição, as cláusulas de inalidade, que ocorrem principalmente
como evidência empírica (excertos 2, 5, 6 e 7), estariam contribuindo para
a evidência das provas. Elas aparecem também inseridas em narrativas
(excertos 1, 2 e 3), pois é por meio de narração que podem ser relatados
fatos que realcem intenções ou metas dos protagonistas, o que constituem
também evidência. No caso da narrativa factual (excerto 1), ela projeta
a meta pretendida pelo protagonista no passado; na narrativa ictiva
(excerto 2), projeta metas rotineiras de trabalho; e na narrativa hipotética
(excerto 3), a cláusula de inalidade projeta a meta futura do protagonista
no mundo das intenções. Por im, o uso de uma cláusula de inalidade
como parte de um silogismo, no excerto 4, constitui uma sustentação
mais complexa. Esse tipo de sustentação, previsto em Aristóteles (1978),
900
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
constitui a prova por excelência. De acordo com o pensador grego, é com
base na anatomia da forma lógica básica (ou modelo silogístico formal)
de premissa e conclusão que é alicerçado todo tipo de raciocínio (ou de
argumentação).13 No caso, a cláusula de inalidade expressa a primeira
premissa e descreve a execução do objetivo da participante Maria:
denunciar Laís.
Os excertos analisados possibilitaram tratar o uso de cláusulas
de inalidade e sua relação com a complexidade da argumentação.
Vimos como essas construções atuam nas sustentações das posições dos
participantes. O instrumental da teoria funcionalista sobre investigação
de cláusulas, em conjugação com a teoria da argumentação de base
interacional, mostrou-se extremamente produtivo, pois pudemos
relacionar melhor o uso de cláusulas de inalidade ao contexto de sua
ocorrência.
Por outro lado, por se tratar de um estudo de caso, nossos
resultados são válidos tão e somente para esse contexto situacional,
necessitando de conirmação que os validem em outros encontros do
gênero.
Referências
ARISTÓTELES. Tópicos. São Paulo: Abril, 1978. (Os pensadores)
AUSTIN, J. L. How to do things with words. Oxford: Oxford University
Press,1962.
BYBEE, J.; PERKINS, R.; PAGLIUCA, W. The evolution of grammar:
tense, aspect and modality in the languages of the world. Chicago;
London: The University of Chicago Press, 1994.
COX, J. R.; WILLARD, C. A. Introduction: the ield of argumentation.
In: ______. (Ed.). Advances in argumentation theory and research.
Carbondale; Edwarssvile: Southern Illinois University Press, 1982. Doi:
https://doi.org/10.1007/978-1-4471-3307-0_1
De acordo com a terminologia utilizada por Toulmin (1958), nesse modelo,
raciocinamos com base em dados (datum) ‘D’ e deles chegamos a conclusões ou
proposições (claims) ‘C’.
13
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
901
DENZIN, N.; LINCOLN, Y. The discipline and practice of qualitative
research. In: ______. The handbook of qualitative research. Thousand
Oaks, CA, USA: Sage Publications, 2000. p. 1-27.
DREW, P.; HERITAGE, J. Analysing talk at work: an introduction.
In: ______. (Org.), Talk at work: interaction in institutional settings.
Cambrigde: Cambridge University Press, 1992. p. 470-520.
DIAS, N. B. As cláusulas de finalidade. 2001. Tese (Doutorado
Linguística) – Departamento de Letras, Unicamp, Campinas, 2011.
DIAS, N. B. As funções discursivas das cláusulas de inalidade. Veredas,
Juiz de Fora, v. 6, n. 2, p. 137-148, 2002.
DIAS, N. B. As cláusulas de inalidade no português do Brasil: uma
proposta. In: MARçALO, M. J. et al. (Ed.). Língua portuguesa:
ultrapassar fronteiras, juntar culturas. Évora, Portugal: Universidade de
Évora, 2010.
DIAS, N. B.; VIEIRA, A. T. A interface gramática e interação: cláusulas
de inalidade e construções apositivas na sustentação de pontos de vista
em uma audiência de conciliação no PROCON. In: SILVEIRA, S. B.;
MAGALHÃES, T. G. (Org.). A fala-em-interação em situações de
conlito. São Carlos, SP: Claraluz, 2008.
DIAS, N. B. Argumentação e construção apositiva: uma proposta de
interface. In: RODRIGUES, V. V. Gramaticalização, combinação de
cláusulas, conectores. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.
EEMEREN, F. H. Argumentation, communication, and fallacies: a
pragma-dialectical perspective. New Jersey: Lawrence Erlbaum, 1992.
DIAS, N. B.; GROOTENDORST, R. Speech acts in argumentative
discussions. Dordrecht: Foris Publications, 1984.
ERICKSON, F. Ethnographic microanalysis of interaction. In: LE
COMPTE, M. M.; PREISSLE, W. L (Ed.). Handbook of qualitative
research in education. San Diego, CA: Academic Press, 1992. p. 284-306.
FERREIRA, J. C. “Vamos fazer o seguinte...” – A construção apositiva
na argumentação: um trabalho de interface. 2009. 129f. Dissertação
(Mestrado em Linguística) – Faculdade de Letras, Universidade Federal
de Juiz de Fora, 2009.
902
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
FORD, C. E.; THOMPSON, S. A. Interactional units in conversation:
syntactic, intonational, and pragmatic resources for the management
of turns. In: OCHS, E.; SCHEGLOFF, E.; THOMPSON, S. (Ed.).
Interaction and grammar. Cambridge: University Press, 1996. p. 134-184.
Doi: https://doi.org/10.1017/CBO9780511620874.003
GAGO, P. C. Questões de transcrição em Análise da Conversa. Veredas,
Juiz de Fora, v. 6, n. 2, p. 89-113, jul./dez. 2002.
GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1999.
GOFFMAN, E. Forms of Talk. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 1981.
GRIMSHAW, A. D. Conlict talk. Cambridge: Cambridge University
Press, 1990.
LYONS, J. Semantics. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.
OCHS, E.; SCHEGLOFF, E.; THOMPSON, S. (Ed.). Interaction
and grammar. Cambridge: University Press, 1996. Doi: https://doi.
org/10.1017/CBO9780511620874
OLIVEIRA, M. do C. L.; BASTOS, L. C.; PEREIRA, M. das G. D.
Narrativas ictivas: experiência, comunidade e argumentação na fala de
proissionais de uma empresa em processo de mudança. Comunicação
Pessoal. In: V CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIN, 2007,
Belo Horizonte. Anais… Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG,
2007. p. 574-575.
SACKS, H.; SCHEGLOFF, E.; JEFFERSON, G. A simplest systematics
for the organization of turn taking for conversation. Language,
Washington, Linguistic Society of America v. 50, n. 4, p. 696-735, 1974.
Doi: https://doi.org/10.1353/lan.1974.0010
SARANGI, S. Discourse practitoners as a community of interprofessional
pratice: some insights from health communication research. In:
CANDLIN, C. N. (Ed.). Research and practice in professional discourse.
Hong Kong: City University of Hong Kong Press, 2001. p. 95-135.
SCHIFFRIN, D. Approaches to discourse. In: SCHIFFRIN, D. Discourse
markers. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. p. 16-24. Doi:
https://doi.org/10.1017/CBO9780511611841
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
903
SEARLE, J. R. Speech Acts: an essay in the philosophy of language.
Cambridge: Cambridge University Press, 1969. Doi: https://doi.
org/10.1017/CBO9781139173438
SELTING, M.; COULPER-KUHLEN, E. (Ed.). Studies in interactional
linguistics. Amsterdan/Philadelphia: John Benjamins Publishing, 2001.
Doi: https://doi.org/10.1075/sidag.10
TANNEN, D. Talking voices: repetition, dialogue, and imagery in
conversational discourse. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
TORRENT, T. T. A rede de construções para + ininitivo: uma abordagem
centrada no uso para as relações de herança e mudanças construcionais.
2009. 166f. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
TOULMIN, S. E. The uses of argument. Cambridge: Cambridge
University Press, 1958.
VIEIRA, A. T. A dimensão avaliativa da argumentação na fala opinativa
de proissionais de uma empresa em processo de mudança. 2007. 168
f. Tese (Doutorado em Letras/Estudos da Linguagem) – Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Rio de
Janeiro, 2007.
VUCHINICH, S. The sequential organization of closing in verbal family
conflict. In: GRIMSHAW, A. (Ed.). Conflict talk: Sociolinguistics
investigation of arguments in conversation. Cambridge: Cambridge
University Press, 1990. p.118-138.
904
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018
AnExO 1: Convenções de transcrição
[colchetes}
fala sobreposta.
(0.5)
pausa em décimos de segundo.
(.)
micropausa de menos de dois décimos de segundo
=
contiguidade entre a fala de um mesmo falante ou de dois falantes distintos.
.
descida de entonação.
?
subida de entonação.
,
entonação contínua.
:
alongamento de som.
-
autointerrupcão.
sublinhado
acento ou ênfase de volume.
MAIUSCULA ênfase acentuada.
ºpalavrasº
trecho falado mais baixo.
subida acentuada na entonação.
¯
descida acentuada na entonação.
>palavras<
fala comprimida ou acelerada.
<palavras>
desaceleração da fala.
((
comentários do analista.
))
(palavras)
transcrição duvidosa.
( )
transcrição impossível.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
O Zhuāngzǐ e as palavras-cálice: uma visão de linguagem
pragmática radical na China do século IV aC
Zhuāngzǐ and goblet words: a radical pragmatic
view in China’s 4th century BC
Cristiano Mahaut de Barros Barreto
Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro / Brasil
cristianombb@gmail.com
Resumo: No presente artigo, analiso a visão de linguagem do clássico
chinês taoísta Zhuāngzǐ 莊子 (c. século V–III a.C.), com foco no
capítulo 27, onde seu autor sugere, por meio da tríade metalinguística
das palavras convidadas, palavras repetidas e palavras-cálice, uma
visão marcadamente singular na tradição chinesa, ainda pouco explorada
pela sinologia e na história das ideias linguísticas (HIL). Em tradução
comentada inédita para o português do início do capítulo 27 do Zhuāngzǐ,
proponho que a leitura de suas linhas revele uma linguagem poderosa
e libertária e, ao mesmo tempo, eivada pela sua própria propensão à
imposição de categorias e ontologias. O Zhuāngzǐ sugere uma abordagem
profundamente inovadora, com a qual traço aqui paralelos elucidativos
e também inéditos, até onde tenho conhecimento, com a abordagem
pragmática do conceito de linguagem como forma de vida de Wittgenstein.
Apoiando-me na visão teórica historicista moderada de Auroux e no
perspectivismo metalinguístico associado a Harris e Taylor, identiico
ainidades que transcendem tempo e espaço e, ao mesmo tempo, recusamse a ceder ao reducionismo ou a hierarquias paralisantes. Ao longo do
eixo de uma ilosoia comparativa Leste/Oeste, sugiro que o termo inal
da tríade zhuangziana, palavras-cálice, represente o poder renovador e
libertador da linguagem cujos traços entrevemos na linguagem ordinária
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.905-943
906
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
de Wittgenstein. Finalmente, concluo com um convite para que se restaure
a posição merecida do Zhuāngzǐ na HIL chinesa, ressaltando o papel
fundamental do seu capítulo 27 nessa história.
Palavras-chave: Zhuāngzǐ; Wittgenstein; metalinguagem; palavrascálice.
Abstract: In this article, I analyze the language view of the Chinese
Taoist classic Zhuāngzǐ 莊子 (c. 5th-3rd century BC), focusing on
Chapter 27, in which the author suggests, through the metalinguistic
triad of invited words, repeated words and goblet words, a remarkably
unique view within the Chinese tradition, still largely unexplored by
sinologists and authors working on the History of Language Ideas
(HLI). In a previously unpublished translation to the Portuguese of
the beginning of Chapter 27 from the Zhuāngzǐ, I propose that the text
supports a powerful and libertarian language that at the same time is
plagued by its own propensity to impose categories and ontologies. The
Zhuāngzǐ suggests a profoundly innovative approach, with which I draw
illuminating and not yet published – as far as I am aware – parallels
with the pragmatic approach of Wittgenstein’s language as a form of
life. Relying on Auroux’s theoretical moderate historicist vision and the
metalinguistic perspectivism associated with Harris and Taylor, I identify
afinities that transcend time and space and at the same time refuse to
yield to reductionism or to paralyzing hierarchies. Along the axis of an
East/West comparative philosophy, I suggest that the inal term of the
Zhuangzian triad, goblet words, represents the renovating and liberating
power of a language in which we see signs of Wittgenstein’s ordinary
language. Finally, I conclude with an invitation to restore the welldeserved prominence of the Zhuāngzǐ in the Chinese HLI, with particular
attention to the key role of its Chapter 27.
Keywords: Zhuāngzǐ; Wittgenstein; metalanguage; goblet words.
Recebido em 30 de outubro de 2017.
Aceito em 19 de dezembro de 2017.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
907
1 Introdução
忘年忘義,振於無竟,故寓諸無竟!
wàng nián wàng yì, zhèn yú wú jìng, gù yù zhū wú jìng!
Esqueça anos, esqueça distinções. Jogue-se no sem-im,
e assim sinta-se em casa ali!
(Zhuāngzǐ, cap. 2)
Beim Philosophieren muß man ins alte Chaos hinabsteigen
und sich dort wohlfühlen.
Na ilosoia é preciso descer até o caos primordial e lá se
sentir à vontade.
(Wittgenstein, MS 136 51a: 3.1.1948)1
Subscrevendo o estudo da História das Ideias Linguísticas (HIL),2
compreendemos a história das línguas como continuamente marcada pelas
pressões socioculturais dos povos da Terra e intimamente ligada às noções
de cultura e identidade nacionais. Da mesma forma, também os pensares
sobre a linguagem estão necessariamente situados histórica e culturalmente,
em complexa inter-relação, o que torna a linguagem não um mero objeto
passivo e isolado de estudo, mas, sim, o resultado de um multifacetado
jogo de representações inseridas em seus contextos de produção.
Essa abordagem é ainda mais relevante para a história dos pensares
sobre a linguagem na China clássica, onde as políticas linguísticas – em
particular após a efêmera uniicação do espaço cultural chinês sob a
dinastia Qín 秦 (221-206 a.C.) – exerceram um profundo efeito sobre
o uso linguístico no nascente império, sob a égide de uma meritocracia
centralizadora e controladora. A despeito da brevidade dos Qín no trono
imperial, foi profundo e durador o impacto de suas políticas linguísticas
sobre os chineses, em particular por meio do início de um processo de
completa reformulação e padronização da escrita chinesa.3
1
Todas as traduções de citações no presente artigo são de minha responsabilidade.
Associado a Auroux (1995, 1992 e 2000)
3
Para uma abordagem geral sobre a escrita chinesa, inclusive sua história, ver Barros
Barreto (2011) ou Alleton (2008).
2
908
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
Em linhas gerais, na história do pensamento chinês tradicional,
podemos airmar que as relexões linguísticas chinesas têm suas origens
na efervescência cultural ocorrida na dinastia Zhōu oriental (dōngzhōu
東周, 1030-221 a.C.), o longo, fértil e conturbado período histórico
chinês que precedeu os Qín. Os textos escritos à época constituíram a
base do cânone tradicional chinês e nortearam os pensares chineses em
sua multimilenária história. Ainda que a ilologia (xiǎoxué 小學) e os
estudos literários não tivessem ainda tomado um papel protagonista nesse
período, já encontramos passagens que demonstram uma atenção especial
sobre a linguagem, marcadamente sobre a relação entre os nomes e a
realidade. No desenvolvimento subsequente das relexões chinesas sobre
a sua língua e, em particular, sobre sua escrita, seu curso tomou caminhos
muito particulares, centrados na lexicologia/exegese de textos (xùngŭ
訓詁), na dialetologia (fāngyánxué 方言學) e no estudo dos caracteres
chineses (zìshū 字書), relegando a um papel secundário interesses como
a gramática e a sintaxe.4 Vemos em autores seminais como Mòzǐ 墨子
(c. 468-391 a.C.) e Xúnzǐ 荀子 (c. 312-230 a.C.) uma acentuada
preocupação com a chamada questão da “retificação dos nomes”
(zhèngmíng 正名), a análise e eventual ajuste na relação apropriada
entre os caracteres chineses (os “nomes”, míng 名) e seus denotata (as
“coisas”,5 shí 實), necessária à compreensão “correta” entre as pessoas. As
correntes antagonistas que depois foram convencionalmente chamadas de
Moísta (mòjiā 墨家, escola [dos seguidores] de Mòzǐ) e Confucionista
(rújiā 儒家,escola dos acadêmicos) formularam justiicativas para
os inúmeros pares nomes /coisas em consonância com seus próprios
preceitos ilosóicos sobre o que entendiam ser comportamentos corretos.
É no contexto desse debate que localizamos a importância
da contribuição de um dos textos canônicos da tradição Taoísta e
4
Para discussões mais detalhadas sobre a história do surgimento e desenvolvimento
das relexões chinesas na época clássica, veja-se Elman (1982), Lepschy (1994, cap. 1),
Auroux (1995, cap. VI), Wang (2005, cap. 1), Bottéro (2008, 2011), Wang; Sun (2015,
parte 1) e O’Neill (2016, cap. 10-15).
5
shí 實, que é muitas vezes traduzido como “coisas” ou “realidade”, é um termo
fortemente polissêmico cuja interpretação é alvo de extremadas discussões,
particularmente quando traduzido por termos relacionados à metafísica ocidental.
Owen (1992), em uma leitura particularmente feliz, entende-o como sólido, atual (as
vezes em oposição à xū 虛, vazio), referindo-se à ixidez de uma forma deinida, em
sua realização concreta.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
909
chinesa, imensamente inluente na história da China e na constituição
de sua identidade cultural, o Zhuāngzǐ 莊子. O presente artigo se atém
especificamente à contribuição do Zhuāngzǐ para a HIL na China
tradicional durante o período formativo na era Zhōu oriental, focandose detalhadamente na leitura atenta do início do capítulo 27 do livro,
ineditamente tratada na academia brasileira.6
A situação do Zhuāngzǐ na época nascente da relexão linguística
chinesa e na criação de todo um novo vocabulário chinês para lidar com
as práticas linguísticas dá indícios da adequação de uma exploração mais
minuciosa das práticas metalinguísticas chinesas, que se coalesceram
a partir de usos inaugurais e seminais ao longo da história chinesa.
Termos que usualmente traduzimos do chinês como escrita, dialeto,
etimologia, palavra, tradução e mesmo linguagem tomaram usos muito
diversos daqueles para os quais nos sugerem os discursos linguísticos
ocidentais ou mesmo o que entendemos como o “senso comum” dessas
palavras. São. portanto, instâncias propícias para o desenvolvimento de
um trabalho comparativo na HIL, que objetiva dar uma contribuição na
mesma linha que o ambicioso projeto de Sylvain Auroux (1995, 1992,
2000, 2004, 2009).
Ao pensamento inspirador e inluente de Auroux, adiciono
interlocuções com autores como Taylor (1997, 2000, 2003) e Harris (1981,
1988, 2001), que, em suas abordagens radicalmente antidogmáticas e
historicistas, criticaram o que Harris batizou de “Mito da Linguagem”, ou
seja, que a linguagem seria um sistema ixo de códigos e mero instrumento
passivo de representação. Para Taylor, os usos leigos da linguagem
nos levam à constituição de um senso comum quando frequentemente
a reiicamos. Esse senso comum inluencia diretamente os discursos
acadêmicos, a despeito de suas pretensões cientiicistas e neutralistas.
Finalmente, beneicio-me particularmente do diálogo profícuo com a
ideia de Linguagem como Forma de Vida, de Wittgenstein (1998, 2009)
Há hoje muito poucas alternativas de leitura do Zhuāngzǐ em português. Os livros
disponíveis (nas referências) são traduções indiretas via língua inglesa, limitados aos
“capítulos internos” (os sete primeiros capítulos do livro) ou a uma seleção de passagens/
anedotas do livro. Para o presente trabalho de análise e tradução, apoiei-me no texto
original e nas traduções em inglês e em chinês (nas referências). Para bem trabalhadas
introduções em português ao Zhuāngzǐ e ao pensamento ilosóico chinês clássico,
veja-se Lai (2009, p. 169-200) e Souza (2016).
6
910
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
– que lemos nos textos de sua fase mais madura, em especial seu seminal
Investigações Filosóicas, e também nas leituras de Cavell (1979) e Glock
(1996) – em que a linguagem não pode ser reduzida a qualquer teoria
universalizante ou tomada como um objeto hermeticamente isolado
de estudo. Em particular, ressalto a importância da ideia da linguagem
ordinária, a linguagem comum que Wittgenstein frequentemente lauda
em seus textos (WITTGENSTEIN, 2009, §98, 105, 116, 243; CAVELL,
1979, p. 180) em oposição àquela do discurso técnico, calculado e com
pretensões de certeza e de não ambiguidade.7
O pensamento desses autores articula-se com uma abordagem que
toma os textos chineses como discursos, carregados de uma ideologia,
não somente retratos de um contexto sócio-histórico de produção,
mas também agentes ativos na construção de um pensamento sobre a
linguagem e sobre o mundo.
Considero o Zhuāngzǐ um trabalho fundamental para a HIL
na China clássica. Trata-se de um texto particularmente rico em
metalinguagem e em expressões inaugurais da língua chinesa, fonte de
usos inovadores de caracteres chineses que progressivamente seriam
incorporados de diversas maneiras ao vocabulário corrente de sua língua.
Um termo particularmente caro à sua visão de linguagem que podemos entrever
no texto é zhīyán 卮言, introduzido no capítulo 27. Seu uso no âmbito
da tríade yùyán 寓言, chóngyán 重言 e zhīyán 卮言 é o objeto central
da análise deste artigo e se mostrará fundamental, como argumentarei
adiante, às representações de linguagem de todo o Zhuāngzǐ. Mostrarei
que, no capítulo 27, encontramos explicitada uma visão de linguagem
radicalmente inovadora, poucas vezes abordada no contexto do Zhuāngzǐ
e ainda, até onde tenho conhecimento, não examinada à contraluz
das ideias teóricas apoiadas nos textos de Auroux, Taylor, Harris e
Wittgenstein. Assim, ao longo do presente artigo, espero poder transmitir
ao leitor uma ainidade que extrapola os séculos e a distância geográica
entre o discurso profundamente antidogmático sobre a linguagem lida
7
A caracterização do discurso wittgensteiniano como aquele que emprega uma
linguagem “comum” é controversa, uma vez que seus textos são povoados por um
vocabulário que pode ser facilmente considerado extremamente técnico. O uso de um
discurso técnico para louvar a linguagem ordinária pode entretanto ser reconhecido
como típico das contradições inerentes da linguagem e do texto do ilósofo. Para uma
discussão sobre essa questão, ver, por exemplo, Barros Barreto (2015, p. 24-53).
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
911
no Zhuāngzǐ e naqueles textos de Wittgenstein e Harris. Seus paralelos,
em vez de indicar uma vocação universalista que reunisse esses autores
sob a égide de conceitos e doutrinas postulados além de suas diferenças
culturais e históricas, muito ao contrário, dá-nos mostras de pensadores
que, mesmo fundados sobre tradições radicalmente diversas, ainda
assim nos propõem o olhar vigorosamente libertador de uma linguagem
soberana e poderosa.8
2 O Zhuāngzǐ
Pouco se sabe sobre o personagem histórico homônimo e autor
do Zhuāngzǐ, um dos mais importantes e conhecidos pensadores da época
de ouro da ilosoia chinesa. O que conhecemos, lê-se do capítulo 63 do
Shǐjì 史記 (o “Livro da História”), em que seu nome pessoal aparece
como Zhuāng Zhōu 莊周, nativo de Sòng 宋 no sul da China, onde teria
sido um pequeno oicial.9
Zhuāngzǐ tornou-se conhecido por sua loquacidade e habilidade
como um gentleman, a ponto do rei Wèi 魏de Chǔ 楚 (r. 339-329)
tentar cooptá-lo oferecendo-lhe o posto de primeiro ministro. Ele foi
provavelmente contemporâneo dos ilósofos Mencius (Mèngzǐ 孟子,
c. 372/85-303/289 a.C.) e Huì Shī 惠施 (380-305 a.C.) e do poeta
Qū Yuán 屈原 (c. 340-278 a.C.) no século IV a.C. Vendo a anexação
progressiva de Sòng pelos estados vizinhos Qí齊, Wèi 衛 e Chǔ 楚,
Zhuāngzǐ foi naturalmente marcado por uma visão bastante pessimista
sobre o resultado de articulações de cunho político.
Kohn (2014, p. 1) descreve-o como uma pessoa com fortaleza de
caráter, ardoroso, com uma audácia intelectual, cativante e extravagante,
nunca tendencioso, jamais se exaltando. Pobre e simples em vestimentas
e gostos, era alguém que não coniava em regras oiciais, em categorias
padronizadas ou opostos estabelecidos.
8
Devido ao escopo do presente artigo e suas limitações de espaço, não será dado aqui
o tratamento mínimo adequado a autores do porte de Auroux, Harris ou Wittgenstein.
Como referência, além dos textos dos próprios autores, indico também meu trabalho
(BARROS BARRETO, 2015) em que este arcabouço teórico é desenvolvido em contraste
com o pensamento linguístico do Lǎozǐ 老子, outro texto fundador da tradição taoísta.
9
Referências sobre a vida de Zhuāngzǐ, veja-se Graham (1989, p. 3-4), Mair (1994,
p. xxxi-xxxv), Ziporyn (2009, p. vii-viii), Watson (2013, p. 7-8), Wang (2014,
introdução), Kohn (2014, p. 1-4) e Souza (2016, p. 14-16).
912
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
Sua biograia no Shǐjì menciona que seus textos perfaziam cerca
de cem mil caracteres. Como outros pensadores de seu tempo, não foi sua
prioridade organizar suas ideias sob a forma de textos, tendo talvez escrito
versos, estórias e alguns aforismos. Nada que se assemelhasse à estrutura
de um livro parece ter aparecido antes dos sécs. III-II a.C. A primeira
versão que conhecemos do Zhuāngzǐ foi um texto de cinquenta e dois
rolos (piān 篇) editado por Liú Xiàng 劉向 (79-8 a.C.).10 Outras versões
(mais curtas) circulariam nos próximos séculos até a padronização inal
do texto, que consiste em trinta e três capítulos. Essa versão canônica foi
editada por Guō Xiàng 郭象 († 312 d.C.)11 e considerada pelos estudiosos
hoje como a “mais importante e o texto base para os pensadores chineses
posteriores” (KOHN, 2014, p. 93).
O texto, conforme estabelecido por Guō Xiàng, consiste de três
seções: nèi piān 內篇 (capítulos internos), capítulos 1 a 7; wái piān 外篇
(capítulos externos), capítulos 8 a 22; e zá piān 雜篇 (capítulos diversos),
capítulos 23 a 33. Até a dinastia Sòng 宋 (960-1279), os estudiosos chineses
consideravam que todo o texto do Zhuāngzǐ, homônimo de seu autor
putativo – o que era comum na tradição chinesa –, teria sido escrito por uma
única pessoa, o que hoje se sabe não poder ter acontecido (KOHN, 2014,
p. 6).12 Por outro lado, é em geral consenso entre a maioria dos estudiosos
que os capítulos internos formam um texto mais coeso e estilisticamente
mais rico e original a ponto de serem aqueles mais proximamente
associados ao autor que deu nome ao livro (WATSON, 2013, p. 13).13
Alguns autores, como Mair (1994 p. xxxvii) airmam que o Zhuāngzǐ foi compilado
um pouco antes, por Liú Ān 劉安 († 122 aC), o príncipe de Huáinán 淮南, na dinastia
Hàn 漢.
11
Para maiores detalhes sobre a história textual do Zhuāngzǐ, veja-se Knechtes; Chang
(2014, p. 2314-2323), Kohn (2014, cap. 1 e cap. 9) e Liu (2015, cap. 6).
12
Há diversos anacronismos ao longo do livro, além de mudanças drásticas no estilo do
texto que apoiam a tese de que ele teria sido escrito por diversos autores. Até mesmo
a autoria única dos capítulos internos é disputada. Veja-se, por exemplo, discussão em
Mair (1994, p. xxxviii) ou em Cook (2003, p. 11).
13
A despeito da importância dos “capítulos internos”, não há evidências claras de que
eles foram escritos antes do restante do texto. Para Kohn (2014, p. 7), os “capítulos
internos” foram obra de múltiplos autores como um extrato posterior do texto,
representando uma coleção de materiais que circulavam à época Hàn sob o nome de
Zhuāngzǐ. Autores como Graham (1981) associam os capítulos internos ao nome do autor
histórico Zhuāngzǐ. Allinson (1989, p. 6-7) e Wang (2014, p. 161) veem os capítulos
internos como aqueles mais “genuínos” na representação do pensamento de Zhuāngzǐ.
10
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
913
O texto é considerado por muitos um dos mais belos e
literariamente soisticados da China antiga (MAIR, 1994, p. xlv; YU et
al., 2000, p. 71). Ele é repleto de anedotas, em que uma multiplicidade
de personagens mundanos aparece junto à copiosa seleção de deuses,
heróis míticos, árvores falantes, pássaros, insetos etc. (WATSON, 2013,
p. xxviii).
Junto com o Lǎozǐ 老子 e o Lièzǐ 列子, o Zhuāngzǐ compôs a
tríade dos textos fundadores do Taoísmo ilosóico. Produzido e editado
antes do desenvolvimento da corrente institucional do Taoísmo,14 o texto
serviu ao longo do tempo aos mais diversos propósitos. Constituiu um
manual para a longevidade e um catálogo de práticas esotéricas, foi
também empregado como base de um sistema ilosóico associado ao
cerne do taoísmo nascente à época dos Estados Guerreiros (zhàngguó
shídài 战国时代, 481-221 a.C., no período Zhōu) e até mesmo como
apoio a outros sistemas ilosóicos, como o Budista e o Neo-Confucionista
(ZIPORYN, 2009, p. xi). Não devemos esquecer, sobretudo, que se trata
de um texto proeminentemente literário, que emprega com maestria as
palavras de uma maneira engajante e, muitas vezes, desconcertante.
De uma forma geral, podemos entender os livros dos sábios
chineses como manuais de conduta, de um agir em conformidade com
algum dào 道, o “caminho” particular que orienta e leva às práticas
corretas receitadas segundo os ensinamentos de cada uma das diferentes
escolas do pensamento chinês. O Taoísmo, dàojiā 道家, é uma linha de
pensamento cujo nome chinês signiica exatamente “escola do dào,” o que
ressalta o papel fundamental desse conceito em sua doutrina. É possível
argumentar, todavia, que o Taoísmo, de modo geral, e o Zhuāngzǐ, em
particular, não propõe apenas mais uma linha de comportamento (“mais
um” dào), mas nos oferece argumentos de ordem superior sobre o que
poderíamos entender como “dào” – o texto é, portanto, um “dào sobre
dào” (HANSEN, 1992, p. 202-209; ZIPORYN, 2009b) – e nos orientaria a
seguir esse “meta-dào” que justamente se recusa a orientar ou a prescrever
(ZIPORYN, 2009, p. xiii-xiv)! Como veremos a seguir, o princípio de
14
Muitos pensadores consideram que oTaoísmo pode, heuristicamente, ser dividido em
uma tradição ilosóica (dàojiā 道家) e outra religiosa (dàojiào 道教). Suas versões
institucionalizadas surgiram posteriormente e essa fronteira é questionada por alguns
autores. Para outras referências, ver Kohn; Roth (2002), Kohn (2014, cap. 11) e Liu
(2015, parte III e IV, e cap. 20).
914
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
um dào não coercitivo torna-se natural e inevitável a partir do momento
em que aceitamos a premissa taoísta da liberdade total em um mundo
em inesgotável e ininterrupto processo de mudanças.
Seu aspecto meta-argumentativo e não autoritário (portanto,
antidogmático) é um fator que torna o Zhuāngzǐ particularmente complexo
(e por vezes, um tanto convoluto e de difícil compreensão), que parece
querer impor-se a uma leitura em seus próprios termos, em vez de ceder
a uma decodiicação. Isso, entretanto, torna o uso da linguagem no texto
especialmente relevante e, por meio dela, oferece-nos o vislumbre sobre
uma ilosoia de linguagem absolutamente original e revolucionária.
3 A ilosoia do Zhuāngzǐ e a linguagem
Chuang Tzu não se preocupa com palavras, nem com
fórmulas sobre a realidade, mas com a aquisição
existencial direta da realidade como tal. Esta aquisição
é necessariamente obscura e não se presta a uma análise
abstrata. (MERTON, 2003, p. 16)
A questão da linguagem no Zhuāngzǐ surge frequentemente ao
longo de seu texto, de uma maneira sutil e indireta, e acaba passando
despercebida por autores para os quais essa não é uma preocupação
central. A citação em epígrafe é o paroxismo do ponto de vista desses
autores. Na seleção de passagens do texto traduzidas por Merton – um
monge católico que viu no Zhuāngzǐ uma rica fonte de espiritualidade –
não há qualquer trecho retirado dos capítulos 1 ou 2, ou seja, aqueles que
introduzem seu sistema ilosóico. Claramente, a questão da linguagem e
a ilosoia do Zhuāngzǐ não izeram parte do foco da atenção de Merton,
que assim os descartou como estranhos – ou “obscuros” – ao texto.
Entretanto, hoje a maior parte dos estudiosos que se dedicam ao
estudo do Zhuāngzǐ veem nele uma ilosoia indissociável de uma visão
marcadamente original sobre a linguagem dentro da tradição chinesa.
Alguns exemplos são ilustrativos. Segundo Billeter (1990, p. 162), a
perícia no manejo da palavra no Zhuāngzǐ não apenas ilustra seus pontos
de vista, mas seria prova conclusiva da justiça de sua posição ilosóica,
em que a linguagem chama para si um papel absolutamente protagonista.
Para Stephen West (YU et al., 2000, p. 72) o Zhuāngzǐ é o texto que,
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
915
melhor do que qualquer outro no cânone chinês, mostra como a linguagem
da classiicação pode ser desestabilizada por aquela da experiência. O
autor argumenta que a “performance virtuosa” do texto do Zhuāngzǐ nos
dá testemunho de um controle e precisão no uso de seus termos e assim
nos guia no aparentemente confuso labirinto da realidade. Outros autores,
como Willard Peterson (YU et al., 2000, p. 104), veem a capacidade do
texto de subverter-se e arremeter-se em seguidas contradições como ao
mesmo tempo uma fonte de frustrações e um claro sinal de que o Zhuāngzǐ
não busca oferecer signiicados ou respostas, mas, sim, provocar uma
leitura engajada e coparticipativa. Já Kjellberg; Ivanhoe (1996) editaram
um livro inteiramente dedicado às estratégias linguísticas no Zhuāngzǐ,
atendo-se a questões a respeito de seu relativismo e ceticismo – embora
tenham praticamente ignorado o capítulo 27, dedicando-se aos capítulos
internos. A linguagem, portanto, deve justiicadamente ser reconhecida
como um dos pontos de partida para entendermos a ilosoia do Zhuāngzǐ
e sua crítica às diferentes escolas do pensamento chinês da época Zhōu.
Ambos os pensamentos afeitos às escolas ditas Confucionista e
Moísta na China clássica fundaram-se sobre a escolha de uma premissa
básica particular para sustentar a harmonia entre o Ser Humano
(rén 人) e a Natureza (zìrán 自然, ou o “Reino Celestial”, tiān 天): seja
o comportamento ritual/virtuoso (rényì 仁義) e o inatismo de Mencius
(um dos mais próximos seguidores de Confúcio), seja o amor universal
(jiān’ài 兼愛) e o utilitarismo (lì利) de Mòzǐ.15 A linguagem, segundo
esses pensadores, deveria ser empregada de forma a se sujeitar a essas
premissas e, se necessário, deveria ser forçosamente regulada para tal
(representada pelo termo chinês, zhèngmíng 正名a chamada “doutrina
da retiicação dos nomes”16). Na visão inclusiva e pluralista de Zhuāngzǐ,
o próprio ajuste ou tentativas de uma sistematização da linguagem
constituiriam agentes provocadores de distúrbios nessa harmonia, uma
vez que eles representariam ações humanas em choque contra o luir da
“natureza” (o “ser assim”, zíràn 自然, tradução um pouco mais literal
do termo chinês associado à natureza).
Para saber mais sobre a ilosoia Confucionista, de Mencius e de Mòzǐ,ver Fung (1934,
cap. 4 e 5), Chan (1963, cap. 2-6 e 9), Cua (2003, verbetes), Lin (2006, cap. 2-5), Lai
(2009, cap. 2, 3 e 4) e Souza (2016, cap. 1.5).
16
Sobre zhèngmíng, expressão fundamental no pensamento linguístico chinês, ver
Hansen (1982, p. 319-333), Bao (1990, p. 196-200, p. 205-207), Cua (2003, p. 870-871),
Wang (2005, cap. 1) e O’Neill (2016, cap. 10).
15
916
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
Em linhas muito gerais, já no primeiro capítulo (xiāoyáoyóu
逍遙遊, Vagar descontraído e desimpedido) o Zhuāngzǐ inicia a exposição
de um de seus objetivos mais fundamentais: a liberdade totalmente livre
de amarras (WATSON, 2013, p. ix). É a premissa central taoísta17 da
mudança e da completa inconstância do mundo (zàohuà 造化, fazer
mudança ou, como um substantivo mais afeito ao pensamento ocidental,
Princípio da Mudança) que nos possibilita a liberdade absoluta desde
que aceita em sua forma mais radical, ou seja, naquela em que as
ações não atuem como constrangimento ou obstrução ao luxo natural
de transformação. É por esse ângulo que sugiro pensarmos o notório
conceito taoísta de “agir sem ação” (wúwéizhīwéi 無為之為), não
como uma mera não ação ou uma atitude completamente passiva, mas,
sim, o direcionamento da ação da forma mais não intrusiva possível,
sem esforços, atritos ou resistências. Uma fundamental consequência
direta da total imanência (no sentido de não permanência) e mudança
é o desmantelamento de hierarquias ixas e artiiciais e a aceitação
da igualdade entre todas as coisas, como uma propensão natural que
tudo afeta e por tudo é afetada. É importante, todavia, não confundir o
espírito igualitário do texto com um ímpeto uniformizador, movimento
que artiicialmente impõe preconceitos e procura obliterar diferenças,
portanto em direção oposta ao que nos sugere o Zhuāngzǐ.
A proposta de liberdade radical introduzida no primeiro capítulo
dá seguimento à discussão no capítulo seguinte em sua ordenação
canônica (qíwùlùn 齊物論, Discursando sobre a igualdade das coisas)
sobre a maneira como se insere a linguagem nesse contexto de mudança.
Esse capítulo é o que apresenta o maior número de referências explícitas
a problemática da linguagem e se tornou um dos mais estudados e
analisados do Zhuāngzǐ.18 Em consonância com seu ímpeto iconoclasta,
o texto prega a não aceitação de novos dogmas, advertindo-nos, ao
17
Esta premissa é profundamente afeita ao pensamento Budista, que penetrou na China
vindo da Índia após o séc. I d.C. e que assim deu início a um processo de sincretismo
absolutamente notável com o Taoísmo.
18
Para o um estudo em português sobre o segundo capítulo do Zhuāngzǐ e uma nova
tradução, veja-se Souza (2016). Ver também Graham (1969) para um estudo clássico
sobre o capítulo.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
917
contrário, do perigo do efeito dogmatizante da linguagem.19 É diante
desse cenário que estudiosos se debruçam sobre a questão do ceticismo e
sobre o relativismo no texto do Zhuāngzǐ, em particular no capítulo 2.20
Uma das respostas oferecidas por alguns acadêmicos para a falta
de constância da linguagem se apoia na proposta de alguma realidade
extralinguística como alternativa ao quietismo frequentemente associado
ao Taoísmo (particularmente ao Lǎozǐ 21). Essa leitura vemos reletida na
citação a seguir:
A realidade em última instância vai além da linguagem; a
linguagem em última instância não tem palavras e é silenciosa
– uma característica expressada na reivindicação taoísta de ser
o “ensinamento com nenhuma palavra e o cultivo do ‘jejum
linguístico’”. (KOHN, 2006, p. 169)
Proponho, todavia, que a luência do Zhuāngzǐ e sua insistente
discussão sobre a linguagem afaste a opção quietista e privilegie uma
linguagem que seja mais poderosa e abrangente. No capítulo 2 do Zhuāngzǐ,
encontramos a famosa passagem que nos diz que a linguagem não é
“apenas vento,” que ela tem “algo para nos dizer” e, dessa forma, aceitar
uma linguagem “sem palavras” parece não indicar necessariamente
que devemos nos calar (ALLINSON, 1989, cap. 1). Adicionalmente,
o discurso de Zhuāngzǐ é, como podemos depreender de diversas
passagens,22 aquele que oferece sugestões para uma conduta moral ao
mesmo tempo que critica o discurso vazio de Confucionistas e Moístas
(CUA, 2003, p. 916), o que não seria possível caso fosse estritamente
cético ou relativista. Ao partir da liberdade sem amarras como o modelo
de vida mais condizente com sua premissa inicial de transformação
19
Advertência semelhante encontramos em Taylor sobre a normatividade do uso
linguístico (TAYLOR, 1997, p. 11 e cap. 8) ou em Wittgenstein sobre palavras
descontextualizadas (WITTGENSTEIN, 2009, §38, §116).
20
Para discussões sobre o relativismo e o ceticismo, ver, por exemplo, Allinson (1989,
cap. 8), Kjellberg; Ivanhoe (1996) e Cook (2003, cap. 5 e p. 165-172).
21
Sobre a visão de linguagem associada ao Lǎozǐ, ver Barros Barreto (2015).
22
Ver, por exemplo, o capítulo 7, “Próprio para Imperadores e Reis” (yīng dì wáng
應帝王) e o capítulo 19, “Dominando a Vida” (dá shēng 達生).
918
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
incessante, a ilosoia do Zhuāngzǐ seria visivelmente autocontraditória
se postulasse alguma “realidade” ixa e eterna, “além da linguagem.”23
Essa interpretação parece claramente justiicada pelo debate
continuado ao longo do livro entre Zhuāngzǐ, o autor, e seu velho amigo
e rival, Huì Shī, sem dúvida uma de suas maiores inluências (ZIPORYN,
2009, p. xv-xvi; WANG, 2014, p. 7-9). Huì Shī foi o pensador mais
representativo da chamada Escola dos Nomes (míngjiā 名家), a única
“escola” chinesa de pensamento – embora os autores a ela identiicados
nunca tenham formado qualquer grupo ou formulado uma doutrina
coesa – explicitamente centrada sobre as questões linguísticas.24
Resumidamente, seus autores sugeriram uma série de paradoxos com
o intuito de evidenciar as inconsistências da linguagem na relação
com as instâncias (ou realizações) de mundo (shí 實), adotando foco e
método que nos remete aos soistas da Grécia antiga. Partindo da tese da
inconstância dos nomes e da impossibilidade de uma relação biunívoca
e estável entre nomes e coisas, lemos nos trechos identiicados a esses
autores uma hábil técnica argumentativa (biàn 辯) que forçosamente
dirige o leitor a conclusões que se chocam com a realidade observável.
A crítica a seus pensadores justamente se apoia na constatação de que o
relativismo extremo da Escola dos Nomes é estéril e gera somente falácias
Pressupor que Zhuāngzǐ faça referência a essa realidade última seria assumir uma
epistemologia mística e esotérica em aparente discordância com o texto, já que em
nenhum momento o autor parece airmar deter um conhecimento exclusivo e interdito
aos outros. Todavia a questão do misticismo no Zhuāngzǐ permanece sem um consenso
e matéria de debate entre os estudiosos (para uma abordagem, veja-se, por exemplo,
Cook, 2003, cap. 1). Em minha leitura – em concordância com o pensamento de
Taylor (1997) e Wittgenstein (2009) – boa parte dessa discussão emerge da aplicação
de um termo ocidental, “misticismo”, com todas as suas implicações e bagagem
histórica e cultural, na caracterização de um livro produzido em um contexto histórico
e sociocultural muito diverso.
24
Para Chan (1963, p. 232) quase todas as escolas do pensamento chinês tiveram interesse
na relação entre nome e atualidade (míng 名 e shí 實), seja por sua relevância moral/
social (Confúcio), impacto “metafísico” (Taoísmo) ou controle político (Legalismo).
Todavia, nenhuma estava especialmente voltada para sua coerência interna ou para o
debate sobre a natureza dos nomes, como foi o caso da Escola dos Nomes. Para mais
detalhes sobre a Escola dos Nomes, ver Chan (1963, cap. 10), Hansen (1992, cap. 7),
Cua (2003, p. 491-8) e Lai (2009, p. 135-168). Especiicamente sobre a relação entre
Huì Shī e Zhuāngzǐ, ver Ames; Nakajima (2015, p. 7-10).
23
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
919
negativas, uma inevitável conclusão decorrente da arbitrariedade total de
todos os nomes (GRAHAM, 1969, p. 141). Chad Hansen (CUA, 2003,
p. 912) defende a hipótese de que Zhuāngzǐ compreendia essa posição e
a recusava veementemente, o que se deixa transparecer nas acaloradas
discussões entre si e seu amigo e rival, Huì Shī.25 Nesse embate,
identiicamos as fontes da complexidade da visão de Zhuāngzǐ sobre a
linguagem, sustentada em equilíbrio precário, embora necessário: se por
um lado ele vê-se obrigado a aceitar a liberdade e a convencionalidade da
linguagem, por outro, reconhece os perigos de uma linguagem obstinada
em se ixar de forma arbitrária às coisas nomeadas, assim obscurecendo
o processo de inindável mudança preconizada pelo Taoísmo.
Partindo dessa questão central, embora os textos do Zhuāngzǐ
sejam frequentemente reconhecidos como testemunho da reação à
disputa entre Confucionistas e Moístas, cabe considerá-los também
como um libelo contra o “ceticismo vazio” e o relativismo extremo do
biàn da Escola dos Nomes, apesar de terem com estes sutis ainidades.
O Zhuāngzǐ, ao mesmo tempo que critica abertamente a argumentação
infértil de Huì Shī, emprega a mesma maestria linguística na defesa de
suas posições e na denúncia da inocuidade e da posição indefensável
de Confucionistas e Moístas. Como nos explica Cua (2003, p. 913), o
Zhuāngzǐ, quando nos mostra que os argumentos pragmáticos sempre
são relativos a algum tipo de valor implícito, não nos obriga a abandonar
o pragmatismo, mas apenas a atentar para o valor e o limite de suas
conclusões.
Devemos ainda considerar que o Zhuāngzǐ está consciente de que
seu conselho (moral) advém de uma perspectiva própria, normalmente
identificada com o termo míng 明, traduzido como iluminação,
discriminação ou perspectiva das perspectivas (CUA, 2003, p. 916).
Entretanto, pelo que até aqui discutimos, é patente que qualquer
“conclusão” a que cheguemos precisa ser necessariamente atenuada e
nuançada. Kjellberg (1996, p. 127, cap. 6) discute essa diiculdade em
conciliar o ceticismo do texto com a reivindicação do conhecimento
privilegiado do Zhuāngzǐ sobre a Natureza em suas várias demonstrações
de perfeição humana (como no já citado capítulo 19, Dominando a
Huì Shī aparece no Zhuāngzǐ nos capítulos 1, 2, 3, 5, 17, 18, 24, 25, 26, 27 e 33,
sendo este último a principal fonte de informações nos textos clássicos chineses sobre
o pensador.
25
920
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
Vida). Esse autor propõe, então, dois tipos de conhecimento no texto: um
conhecimento prático, voltado à destreza e à perícia, e um conhecimento
teórico, ou dos fatos; o primeiro é dinâmico e improvisante, oferece
saídas e dá acesso ao mundo natural; já o segundo é rígido, sem saída, e
limitado em suas próprias regras arbitrárias. Nessa leitura, o ceticismo do
Zhuāngzǐ seria, portanto, um ceticismo sobre o conhecimento “teórico.”26
O conhecimento teórico, aquele que produz teses e airmações
dogmáticas, estaria assim fadado ao problema do engessamento da
linguagem, distorcendo-a para satisfazer os propósitos daquele que
argumenta, dividindo arbitrariamente o mundo entre “isso’s” (shì 是) e
“aquilo’s” (bǐ 彼) diferentes (produtos de pontos de vista diferentes). Ao
aventar a possibilidade de uma via alternativa, aquela do conhecimento
prático, o Zhuāngzǐ recusa o relativismo inócuo resultante da simples
negação de qualquer forma de conhecimento. A prática sugerida pelo
texto é aquela que não parte de alternativas preconcebidas, ou mesmo
distingue alternativas diferentes, mas vê cada opção como uma que, a
cada momento, se oferece de maneira mais “maleável” e, dessa forma,
não escolhe conscientemente, mas “deixa-se levar” (GRAHAM, 1969,
p. 144). Diante dos perigos de uma linguagem que impõe classiicações e
dá ilusões de aparente estabilidade, o Zhuāngzǐ nos propõe uma linguagem
alternativa, ela mesma uma contradição de termos – não há “linguagem
alternativa” que não seja linguagem, e, portanto, em última instância,
não há alternativa à linguagem – mas cujos vislumbres antevemos em
sua perícia estilística:
Zhuangzi procura desenvolver um novo estilo de linguagem
ilosóica que lhe permita discursar sobre todos os enunciados
como iguais [...] Ele conirma a expressão verbal como a arte do
possível (YU et al., 2000, p. 97)
26
Fica difícil, na perspectiva de Taylor, Auroux e outros já citados aqui, a aplicação
do termo “ceticismo”, com toda sua carga de usos e contextos ocidentais, a um
texto inserido na tradição antiga chinesa sem que se caia em uma mera discussão
de nomenclatura (“seria o Zhuāngzǐ é ceticista no sentido da sképsis grega?”). O
propósito do uso do termo “ceticismo” aqui é fornecer um guia que ajude o leitor a
criar aproximações entre estratégias e formas de pensamento tão diferenciadas como
as do Zhuāngzǐ e a tradição ocidental de origem grega.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
921
Ao procurar abordar uma linguagem que seguidamente se
desvencilha de descrições e mostra-se avessa a categorizações, chegamos
ao capítulo 27 – foco do presente artigo – como aquele de particular
importância para compreendermos a visão de linguagem do Zhuāngzǐ.
Sua escolha deve-se a duas razões principais. Em primeiro lugar, uma vez
que o capítulo 27 não faz parte dos “capítulos interiores”, muitos daqueles
que analisam o texto não dão a devida atenção ou não o consideram como
representante do pensamento “legítimo” de Zhuāngzǐ. Todavia, o texto
sempre foi considerado como um todo pela tradição exegética chinesa e,
assim, independentemente de questões autorais, não devemos menosprezar
sua inluência sobre a tradição chinesa e sua articulação com o restante do
livro. Em segundo lugar, seu contraste com os outros capítulos do livro, no
que concerne à linguagem, torna-o ainda mais relevante, a ponto de Wang
(2014, p. 21) chamá-lo de “principal capítulo que descreve a linguagem
do Zhuāngzǐ”. A liberdade suprema de uma linguagem viva e em eterna
mutação, não só explicitamente defendida no longo do capítulo 2, mas
também presente em todo a pujante matéria linguística do Zhuāngzǐ,
parece ser contradita em um impulso classiicatório no capítulo 27, como
veremos a seguir. Sugiro, entretanto, que, muito ao contrário de desmentir
o restante do livro, o capítulo 27 termine por reforçar e explicitar suas
premissas, ressaltando as características da linguagem focada através
das lentes do Zhuāngzǐ, em suas capacidades e limites, o que a faz tão
poderosa e ao mesmo tempo, tão perigosa.
4 O capítulo 27 e as palavras-cálice
Como já observado anteriormente, o capítulo 27 do Zhuāngzǐ,
embora não pertença ao conjunto dos sete capítulos internos, é fundamental
para a compreensão da visão de linguagem subjacente ao livro.
Embora autores como Watson (2013, p. xix) argumentem que
os capítulos miscelâneos (vinte e três ao trinta e três) poderiam ter sido
escritos até seis ou sete séculos após a vida de Zhuāngzǐ e teriam pouco
impacto sobre o cerne de sua ilosoia, essa não é uma posição consensual
na discussão acadêmica sobre o texto (COOK, 2003, p. 11). Kohn (2006,
p. 8), por exemplo, escreve que, na discussão sobre a cronologia das
partes do texto, é perfeitamente razoável que o capítulo 27 pudesse ter
sido um prefácio de sua edição mais antiga (com o último capítulo, o 33,
servindo de posfácio). Como já foi comentado, independentemente dessas
922
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
questões autorais e textuais, é inegável haver uma relação íntima entre
o capítulo 27 e os capítulos internos, em especial entre ele e o capítulo
2, em seu tratamento sobre a linguagem.
O título do capítulo 27 é yùyán 寓言, que repete os dois primeiros
caracteres do início do texto e já é, por si só, um dos três termos
metalinguísticos em destaque. O termo yùyán é hoje dicionarizado
como fábula, alegoria, parábola (fable, allegory, parable) (QIU,
2005, p. 221) e já era utilizado em chinês clássico para se referir a um
estilo literário marcado por anedotas e parábolas (pequenas histórias),
com um intuito muitas vezes satírico e com a presença comum de
animais antropomorizados, uso de analogias e referências metafóricas,
frequentemente discorrendo sobre situações cotidianas com o objetivo de
levar o leitor a algum tipo de relexão ou moral. A diversidade de traduções
escolhidas para o título do capítulo dá sinais da complexidade na adaptação
da expressão yùyán em línguas ocidentais: “On Metaphors” (Sobre
Metáforas) (BALFOUR, 1881) “Language” (Linguagem) (GILES, 1889),
“Metaphorical Words” (Palavras metafóricas) (LEGGE, 1891; MAIR,
1994), “Verbes et Mots” (Verbos e Palavras) (WIEGER, 1913), “Words
lodged elsewhere” (Palavras acomodadas em outro lugar) (ZIPORYN,
2009) e “Imputed Words” (Palavras imputadas) (WATSON, 2013).27
As traduções clássicas de Giles e Wieger explicitam o objeto
principal do capítulo, nomeadamente, a linguagem. As outras estão
relacionadas às diferentes interpretações dos tradutores sobre a expressão
yùyán, cuja discussão veremos a seguir.
27
A tradução de Balfour, “The Divine Classic of Nanhua, Being the Works of Chuang
Tsze, Taoist Philosopher” (1881), é a mais antiga extante do Zhuāngzǐ (COOK, 2003,
p. 263), e os livros de Giles, “Chuang Tzu: Mystic, Moralist, and Social Reformer”
(1889) e de Legge, “The Writings of Kwang-Tze” (1891), izeram parte do extenso
trabalho de tradução dos dois autores do cânone chinês (KNECHTES; CHANG, 2014,
v. III, p. 2314-2323). Segundo Cook (2003, p. 286), até aquela data, além das traduções
de Balfour, Giles e Legge no séc. XIX, as únicas outras traduções completas para o
inglês seriam as de Watson (2013, originalmente escrita em 1968), Mair (1994) e
Palmer (1996). A tradução para o francês de Wieger, “Nan-hoa-tchenn-king: l’oeuvre
de Tschoang-tzeu” é uma das mais antigas naquele idioma e, apesar de suas limitações,
ainda hoje é muito utilizada na França (BILLETER, 1990, p. 170). Para uma discussão
crítica das traduções do Zhuāngzǐ, embora já desatualizada, veja-se também Mair
(1983, p. 158-161). Para uma seleção mais recente de referências sobre o Zhuāngzǐ,
veja-se Cook (2003, p. 291-295). Para uma breve discussão dos principais comentários
chineses, veja-se Ziporyn (2009, p. 221-227).
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
923
Embora se trate de um capítulo relativamente curto do livro,
por uma questão de espaço e escopo, restrinjo-me, no presente artigo, a
apresentar somente uma sugestão de tradução comentada de seu início,
ou seja, das passagens em que o texto descreve explicitamente o que
propõe ser a “divisão” da linguagem em três “tipos” de palavras.
Esta tríade aparece já na primeira linha do capítulo 27:28
寓言十九,重言十七,卮言日出,和以天倪。
yùyán shí jiǔ, zhòngyán shí qī, zhīyán rì chū, hé yǐ tiānní.
[Na linguagem] as palavras convidadas (yùyán 寓言) [compõem]
nove décimos [dela]; as palavras repetidas (chóngyán 重言)
[compõem] sete décimos [dela]; as palavras-cálice (zhīyán 卮言)
surgem dia [após dia], [tudo] harmonizando na Sutileza Celestial
(tiānní 天倪).
Na análise da visão de linguagem inferida desse capítulo do
Zhuāngzǐ, interessa-nos, em particular, o contraste entre esses três termos
metalinguísticos, nomeadamente, yùyán 寓言, chóngyán 重言 e zhīyán
卮言. Considera-se que os termos yù 寓, chóng 重 e zhī 卮 modiicam yán
言, que, por sua vez, é traduzido como língua, linguagem, palavra, dizer,
falar, declaração, etc. Assim, trata-se de três “tipos” ou “qualidades”
de linguagem (ou de palavras). A utilização obscura na passagem acima
de “nove décimos” e “sete décimos” respectivamente para yùyán e
chóngyán levou os intérpretes do texto a considerar que eles se referem
a percentuais do número de palavras na língua (yùyán comporia 9/10
– shí jiǔ 十九, “dez nove” – do total; chóngyán comporia 7/10 – shí qī
十七, “dez sete” – de 1/10 (o resto) ou poderia haver uma intercessão,
28
Os trechos do capítulo são apresentados em caracteres chineses, seguidos da
transcrição em pīnyīn (o padrão atual em uso na China continental) e de minha tradução
para o português. Todos os caracteres chineses seguem o uso pré-reforma ortográica
na China continental de 1956/1964. A pontuação no texto chinês não existia no texto
original e foi colocada posteriormente, seguindo a interpretação mostrada na tradução,
com o objetivo de melhorar sua legibilidade. Na tradução para o português, inseri
palavras não presentes no chinês entre colchetes e destaquei palavras-chave repetindo-as
em pīnyīn e em caracteres chineses. Dessa forma, acredito estar ajudando o leitor não
conhecedor do chinês clássico a seguir mais facilmente minhas opções tradutórias. A
transcrição em pīnyīn relete a leitura atual dos caracteres e não aquela da época do
Zhuāngzǐ.
924
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
com palavras classiicadas tanto como yùyán quanto chóngyán, como
propõe Chen (2015, p. 837). Há outras interpretações e autores, como Wu
(1988, p. 5), por exemplo, que consideram que os três termos serviriam à
totalidade das palavras da língua, indicando suas características comuns
e gerais. Independentemente da interpretação escolhida, é inegável que
os três termos contribuam conjuntamente para a visão sobre as palavras
e as representações da linguagem no Zhuāngzǐ. Entre as três classes
de palavras, entretanto, somente as zhīyán se harmonizam na “sutileza
celestial” (tiānní 天倪).29
O texto prossegue então com uma exempliicação e explicação
sobre o uso do primeiro termo, yùyán:
寓言十九,藉外論之。親父不為其子媒。親父譽之,
不若非其父者也;非吾罪也,人之罪也。與己同則應,
不與己同則反,同於己為是之,異於己為非之。
yùyán shí jiǔ, jiè wài lùn zhī. qīnfù bù wéi qí zǐ méi. qīnfù yù zhī,
bù ruò fēi qí fù zhě yě; fēi wú zuì yě, rén zhī zuì yě. yǔ jǐ tóng zé
yīng, bù yǔ jǐ tóng zé fǎn, tóng yú jǐ wéi shì zhī, yì yú jǐ wéi fēi zhī.
As palavras convidadas (yùyán 寓言) [que compõem] nove
décimos [são como] emprestadas de fora [para ins de] exposição
(lùn 論). Um pai não age como casamenteiro para seu próprio
ilho. [Isso porque] os louvores do pai [para seu ilho] não seriam
[tão eicazes quanto] os de um outro; [mais ainda, a reação às
palavras usadas] seria por falta (zuì 罪) de outros, e não do pai.
[Mesmo assim] com aquilo com o que concordam, [os homens]
acatam, e com o que não concordam [eles] rejeitam, dizendo
Esse é um termo de difícil tradução. Mair (1994) usa: framework of nature (estrutura
da natureza), Ziporyn (2009) traduz como Heavenly Transitions (transição celestial),
Watson (2013) emprega Heavenly Equality (igualdade celestial), Wang (2004) a explica
como a operação ou o balanceamento celeste. Enquanto tiān天 refere-se claramente
ao “Céu” chinês, a abóbada celestial personiicada pela igura do huángtiān 皇天,
“imperador celestial”, ní 倪 é um termo mais obscuro, em geral dicionarizado como
diminuto, limite, fronteira, início. O comentarista Guō Xiàng escreveu: 天倪者,自然
之分也 tiānní zhě, zìrán zhī fēn yě, “tiānní: a divisão/partição da natureza,” parecendo
referir-se às diminutas e fronteiriças divisões que ocorrem no mundo natural quando do
surgimento do homem e da linguagem, rachaduras que pouco a pouco individualizam
as coisas do mundo, separando-as umas das outras. Esse é o efeito produzido pela
linguagem já referido também no capítulo 2.
29
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
925
“isso” (shì 是) para o que for igual (tóng 同) [ao que concordam]
e “aquilo” (fēi 非) para o que for diferente (yì 異).
No exemplo do texto, yùyán – que traduzi como “palavra
convidada” – foi aquela palavra usada pelo casamenteiro para elogiar o
candidato a noivo no lugar do pai, que, por ser pai, muito provavelmente
teria sua opinião considerada como enviesada quando apresentasse seu
próprio ilho. Mais ainda, ao “emprestar” suas palavras ao casamenteiro, o
pai transferiria a ele também a responsabilidade (“culpa”, zuì 罪) por elas.
Os tradutores e estudiosos do texto empregam uma grande
diversidade de termos para traduzir yùyán, como vemos a seguir:
Balfour (1881) e Mair (1994): metaphors (metáforas); Watson (2013):
imputed words (palavras imputadas); Palmer (1996): supposed words
(palavras supostas) e Billeter (1990): fable (fábula). Wang (2004) e
Wu (1988) usam dwelling words (palavras que habitam), e Wu (1988,
p. 5) escreve que “essas palavras ‘habitam’ na situação, de modo a nos
guiar.” Qiu (2005, p. 221) apresenta a lista “fable, allegory, parable”
(fábula, alegoria, parábola), explicando que yùyán, no Zhuāngzǐ, referese às palavras “faladas através da boca de personagens históricos ou
iccionais, de forma a torná-las mais convincentes.” Kohn (2014), Wang
(2014, p. 21) e Li (YU et al., 2000, p. 96) propõem os termos oportunos
guest words (palavras convidadas) (Kohn) e lodged words (palavras
hospedadas) (Wang e Li) que, em minha leitura, reletem explicitamente
a grafo-etimologia do termo yù 寓30 em seu deslocamento e uso em um
diferente contexto, como comenta Kohn: “colocando a própria palavra na
boca de outras pessoas.” Na prática, esse efeito se dá em geral por meio
O caractere yù 寓 (que modiica yán 言) pode ser traduzido como residir, conter,
ter residência, coniar ao cuidado de alguém, achar sustento em. Em sua deinição no
dicionário Shuōwén (séc. II d.C., a mais citada das referências lexicográicas do chinês
antigo), o termo é glosado como
30
寓。寄也。从宀禺聲
yù. jì yě. cóng mián yú shēng.
yù; como jì (pedir, coniar, depender, residir na casa de alguém), indicação
semântica de mián (teto, casa), indicação fonética de yú.
Há, portanto, a alusão de um espaço que não é aquele original, mas onde se habita,
provisoriamente, porque o inquilino inspira coniança.
926
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
de iguras de linguagem, como expressões ixas, parábolas, descrições
igurativas, conversas imaginárias ou diálogos fantasiosos.
Como vimos, no chinês clássico, certamente sob inluência do
próprio Zhuāngzǐ, yùyán foi usado para se referir a um estilo literário,
normalmente de estórias curtas com uma moral (como aquelas que
encontramos ao longo do próprio Zhuāngzǐ). Há assim a alusão a um
termo que se refere ao uso “emprestado”, às palavras que são retiradas
de um contexto para ser usadas em outro (daí a tradução possível como
metáfora). O fato de, no exemplo apresentado, a responsabilidade do pai
ceder espaço àquela do casamenteiro (que “usou” as palavra do pai para
elogiar o ilho à procura de uma candidata ideal como noiva), nos mostra
que as palavras emprestadas angariariam força (pragmática) dessa nova
situação de uso. Ainda assim, essa estratégia parece não surtir efeitos
relevantes, porque, como continua o texto, ao inal, os interlocutores
continuam a dizer “sim” somente para aquilo com que concordam e
“não” para aquilo de que discordam.
O texto continua então com a explicação do segundo termo da
tríade, zhòngyán ou chóngyán 重言:
重言十七,所以已言也,是為耆艾。年先矣,
而無經緯本末以期年耆者,非先也。人而無以先人,
無人道也;人而無人道,是之謂陳人。
zhòng/chóngyán shí qī, suǒ yǐ yǐ yán yě, shì wéi qí’ài. nián xiān yǐ,
ér wú jīng wěi běn mò yǐ qī nián qí zhě, shì fēi xiān yě. rén ér wú
yǐ xiān rén, wú rén dào yě; rén ér wú rén dào, shì zhī wèi chénrén.
As palavras repetidas (chóngyán 重言) [que compõem] sete
décimos destinam-se a parar a conversa (yán 言). Isso porque
agem como [palavras dos] anciãos. [Se, no entanto, alguém
está] à frente dos outros em idade, porém não compreende a
complexidade da urdidura e do tecido, da raiz à copa, [tal como
seria compatível] com seus anos, [então] não pode ser o primeiro
[entre os homens]. Aquele que não é o primeiro [entre os homens]
não [segue] o dào (道) do homem, e se não [segue] o dào do
homem, é chamado de um “homem obsoleto” (chénrén 陳人).
O dígrafo 重言, transliterado em pīnyīn por chóngyán, é
dicionarizado hoje como reduplicação. Já o caractere 重 isoladamente
tem duas pronúncias-padrão no mandarim moderno: chóng ou zhòng.
Como chóng, o caractere é traduzido presentemente como: repetir,
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
927
repetitivo, novamente, implicar, camada, ao passo que na pronúncia zhòng
traduz-se por: pesado, tornar-se pesado, sério, grosso, grave, solene,
difícil, considerar importante (também para se referir a sensações: color
profunda, som grave, etc.).
No Zhuāngzǐ, o dígrafo 重言 é lido como chóngyán pela maior
parte dos tradutores. Mair (1994), Palmer (1996) e Ziporyn (2009) o
traduzem como quotation ou citation (citação); Billeter (1990, p. 162)
considera que se trata da “citação de uma autoridade;” Wang (2004,
p. 196) o traduz por double-layered words (palavras com duas camadas);
Li (YU et al., 2000, p. 96) por repeated words (palavras repetidas); Wu
(1988) emprega o poético opalescent words (palavras opalescentes),
termo que remete ao jogo de brilhos de um raio que transpassa uma
opala: as palavras são “‘duplamente rajadas’, ou seja, dizem algo a im
de obedecer a autoridade do que não dizem, sendo ‘opalescentes’ à luz
da realidade” (WU, 1988, p. 5). Segundo Kohn (2014), chóngyán são
as palavras duplas com múltiplas camadas, com realidades ambíguas,
igurativas e imaginativas, correspondendo aproximadamente a uma
“linguagem metafórica.” Para Kohn, seu peso (lendo 重 como zhòng)
“provavelmente transmite a autoridade advinda da experiência do
orador” (KOHN, 2014, p. 171), e, dessa forma, também inclui aforismos
e provérbios poéticos. De uma forma similar, Watson (2013), também
aceita as duas leituras, chóng e zhòng, respectivamente como repeated
words (palavras repetidas) e weighty words (palavras de peso).
Finalmente Qiu (2005, p. 222) e Wang (2014, p. 22) são exceções ao
priorizar a leitura de 重言 como zhòngyán, respectivamente traduzido
como weighty words (palavras de peso) e grave words (palavras graves).
Todavia esses autores também aludem à alternativa da leitura como
chóngyán, “palavras dos sábios que são repetidamente citadas.”
Vemos, portanto, que, com as notáveis exceções de Qiu e Wang,
a maioria dos tradutores do Zhuāngzǐ opta por ler 重言 primariamente
como chóngyán, enfatizando seu aspecto duplo. De fato, zhòngyán e
chóngyán são geralmente tratados pelos sinólogos como um caso de
duas palavras isoladas, com diferentes etimologias, cuja homonímia
estaria restrita à sua forma gráica. Entendo que, em concordância com
Kohn, Watson, Qiu e Wang, as duas alusões acabam sendo relevantes
928
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
para os efeitos desejados no texto e, na verdade, são complementares,
coalescendo no dígrafo comum, 重言.31
O texto outorga às chóngyán o poder de “parar a conversa”, ou
seja, levar ao im de uma discussão, o que claramente ressalta a autoridade
dessas palavras, frequentemente empregadas como citações retiradas de
texto canônicos antigos. Todavia, o Zhuāngzǐ nos adverte: o mero critério
de antiguidade no uso das palavras dos antigos clássicos é inútil (e mesmo
falacioso), caso essas palavras não estejam investidas de uma sabedoria
e da compreensão do dào 道. Há, portanto, a crítica implícita contra o
abuso de citações e a coniança cega em frases retiradas de textos antigos
sem o acompanhamento de alguma leitura crítica ou a garantia de que
elas teriam sido produto de um movimento em consonância com o dào
道. Essa posição está em perfeita harmonia com o cerne da crítica do
Zhuāngzǐ contra os argumentos de Confucionistas e Moístas, correntes
dominantes da tradição chinesa à época.
O último termo da tríade, aquele em geral considerado como
o mais importante, zhīyán 卮言,32 e também uma expressão que foi
pela primeira vez cunhada no Zhuāngzǐ, tem uma breve explicação na
continuação do texto:
卮言日出,和以天倪,因以曼衍,所以窮年。
不言則齊,齊與言不齊,言與齊不齊也,故曰無言!
言無言,終身言,未嘗言;終身不言,未嘗不言。
zhīyán rì chū, hé yǐ tiānní, yīn yǐ màn yǎn, suǒ yǐ qióng nián. bù
yán zé qí, qí yǔ yán bù qí, yán yǔ qí bù qí yě, gù yuē wú yán! yán
wú yán, zhōng shēn yán, wèi cháng yán; zhōng shēn bù yán, wèi
cháng bù yán.
Com essas palavras-cálice (zhīyán 卮言) que surgem dia [após
dia],33 tudo se harmoniza na Sutileza Celestial (tiānní 天倪), então
31
A guisa de simplicidade, a despeito dessa leitura explicitamente ambígua, doravante,
ao me referir ao termo 重言, irei usar a transliteração preferida pela maioria dos
sinólogos, chóngyán.
32
A prioridade de zhīyán na tríade metalinguística do capítulo 27 – ver, por exemplo,
Kohn (2015, p. 66) – não angaria, todavia, a unanimidade dos estudiosos do texto. Para
uma visão alternativa, veja-se Cook (2003, p. 73).
33
Ziporyn (2009, p. 114) faz uma interpretação completamente diferente desse início:
“Estas palavras-cálice-transbordantes constantemente produzem [signiicados] […].” Ao
evitar o uso da palavra signiicado, minha tradução também segue as de Mair (1994),
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
929
verte suas elaborações (màn 曼)34 e, assim, passam-se os anos.
[Enquanto] nada for dito, permanece a uniformidade (qí 齊),35
mas a uniformidade e o que se diz (yán 言) [sobre ela], já não mais
perfazem a uniformidade; o que eu digo e a uniformidade já não
mais perfazem a uniforme; por isso, digo: não-palavras (wú yán
無言)! Com palavras não-palavras (yán wú yán 言無言), falarás
até o im da vida, e nunca terás dito [nada]. [Ou] até o im da vida
não falarás, e nunca terá deixado de dizer [algo].
Zhīyán 卮言, “inventado” por Zhuāngzǐ, não é encontrado em
mais nenhum outro texto pré-Qín que não comente o próprio Zhuāngzǐ
(CHINESE TEXT PROJECT). O caractere que modiica “palavra” (yán
言), zhī 卮, é em geral hoje traduzido por cálice (goblet), frequentemente
no dissílabo zhījiŭ 卮酒. A força da materialidade e concretude da
referência leva a maior parte dos autores a usar essa tradução para o
termo zhī, na forma composta palavra-cálice. A exceção é dada por Mair
(1994), que o traduz como impromptu words (palavras improvisadas),
palavras usadas sem preparação prévia, repentinas e de improviso. Essas
características destacadas por Mair, entretanto, também são aceitas,
entretanto, por todos os comentaristas. Por exemplo, Wang (2014) escreve
que as palavras-cálice são aquelas do “não-coração-mente,36 [são] não-
Palmer (1996), Watson (2013) e Chen (2015) e toda uma linha de pensamento que evita
associar um termo metalinguístico tão central da tradição ocidental aos textos chineses
(veja-se, por exemplo, essa discussão em Hansen (1985, 1992) ou Ames; Hall (1998).
34
Wang (2004, p. 197) traduz esse trecho como “elas se acomodam às mudanças sem
im.”
35
qí 齊, um dos termos centrais no Zhuāngzǐ, é hoje dicionarizado como regular,
balanceado, em ordem, organizado, arrumado, concordar, igual, igualdade,
comparável, similar(idade), com limite ixo. Ao traduzi-lo por uniformidade, procuro
ressaltar seu contraste (aqui) com igualdade. Como vimos, o Zhuāngzǐ promove a defesa
da igualdade, mesmo quando a uniformidade é quebrada (trocada pelo pluralismo) com
a instituição da linguagem. Veja-se uma discussão sobre qí em Wang (2014, p. 190-191).
36
O termo chinês xīn心 é aqui traduzido como “coração-mente,” em uma interpretação
quase que trivial: pictograicamente o caractere representa o coração e, como na
tradição chinesa o coração é o centro dos sentimentos e pensamentos, aproximamos
funcionalmente o termo para o conceito ocidental de “mente.” É importante, todavia,
destacar que a dicotomia ocidental emoção/razão acaba se dissolvendo e conluindo
neste “único” órgão humano, xīn 心.
930
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
palavras, então, como a linguagem de crianças mais jovens, que não
devem ser julgadas ou avaliadas” (WANG, 2014, p. 24).
A quase totalidade dos intérpretes do texto apoia-se na leitura
que se consagrou na tradição exegética chinesa e que exempliico nas
palavras de Watson (2013, p. 234):
“palavras cálice”, [são] palavras que são como uma taça que se
inclina quando cheia e endireita-se naturalmente quando vazia,
isto é, que se adapta e segue junto com a natureza lutuante do
mundo e, assim, alcança um estado de harmonia.37
Trata-se, portanto, de um cálice bojudo (como uma taça para
conhaque) sem pé, cujo formato em “U” o mantém em permanente
estado de precário equilíbrio. Quando preenchido com algum líquido,
esse equilíbrio é afetado e provoca um aumento da instabilidade, até o
ponto em que o cálice inalmente tomba para o lado, deixando escorrer
seu conteúdo e posteriormente voltando à sua posição inicial, novamente
vazio. O caráter luido de zhīyán levou Palmer (1996) a usar a tradução
de lowing words (palavras luidas) que remete à sua falta de estabilidade
e à fácil perda de equilíbrio do cálice.38
37
Para algumas referências aos comentaristas chineses no original em chinês, veja-se
Chen (2015, p. 837).
38
Ao escorrer, seu “conteúdo” é descartado, ação que se relete a uma importante
passagem do capítulo 26 do Zhuāngzǐ:
荃者所以在魚,得魚而忘荃;蹄者所以在兔,得兔而忘蹄;
言者所以在意,得意而忘言。吾安得忘言之人而與之言哉?
quán zhě suǒ yǐ zài yú, dé yú ér wàng quán; tí zhě suǒ yǐ zài tù, dé tù ér
wàng tí; yán zhě suǒ yǐ zài yì, dé yì ér wàng yán. wú ān dé wàng yán zhī
rén ér yǔ zhī yán zāi?
Armadilhas para peixes [são] usadas para peixes; [uma vez] obtido um peixe,
esquecem-se as armadilhas. Laços para coelhos [são] usados para coelhos;
[uma vez] obtido o coelho, esquecem-se os laços. Palavras [são] usadas para
yì 意; uma vez obtido yì 意, esquecem-se as palavras. Eu onde [poderia] obter
um homem que esqueceu (wàng 忘) as palavras, e [com ele] trocar palavras?
Nessa passagem, podemos fazer um paralelo com as palavras-cálice do capítulo
27, substituindo-se o “líquido” do cálice-sem-pé por yì 意. Uma vez que o líquido
escorreu do cálice, esquecemos a forma como havíamos usado aquela instância de
zhīyán, escapa-nos aquele momento de naturalidade e improviso. Nessa passagem do
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
931
Assim que introduzimos a linguagem – e aqui zhīyán é metonímia
para o uso mais irrestrito e geral para linguagem, tal como apreendida
pelo Zhuāngzǐ – a uniformidade primordial (o “caos”, o “todo difuso”,
hùndùn 混沌) começa a mostrar suas distinções e separações: uma vez
que há linguagem, não é possível que haja agora somente unidade. Esse
resultado é ao mesmo tempo desejado – ainal, é consequência natural
do surgimento do ser humano – e temido, por ser o momento quando
surgem as distinções, as hierarquias, as doutrinas e o “conhecimento
teórico” (advindo do discurso, lùn 論); em outras palavras, o risco de
que a falta de uniformidade seja confundida com a desigualdade. Por isso
o partidarismo do Zhuāngzǐ pelas “palavras não-palavras”, aquelas que
quebram a uniformidade sem que sejam impostas categorias e hierarquias.
As “palavras não-palavras” seriam idealmente representadas por zhīyán.
Qiu (2005, p. 222) escreve que zhīyán são aquelas palavras que “se
adaptam à natureza mutante do mundo e, dessa forma, estão em harmonia
com o Dao.” Elas seriam, nessa leitura, a ponte que uniria os capítulos 1
e 2 do Zhuāngzǐ, o relexo da natureza (zìrán 自然) na linguagem – aqui
compreendida como toda e qualquer atividade humana, como cultura
capítulo 26, as palavras servem para capturar ou obter (dé 得) yì e, uma vez obtido
este yì, descartamos seu receptáculo. Propositalmente optei por manter o termo original
yì na tradução acima, uma vez que ele é usualmente traduzido como signiicado ou
intenção, dois termos que carregam uma complexa gama de alusões e referências na
tradição ocidental, que poderiam ser questionados no âmbito de um texto da época dos
Zhōu orientais (ver notas 24 e 27).
A passagem do capítulo 26 torna ainda mais complexa a questão ao terminar
com uma situação paradoxal e claramente irônica: onde encontraríamos alguém que
se esqueceu das palavras para que pudéssemos trocar algumas palavras com ele/a?
Essa frase tem duas interpretações cabíveis no âmbito do Zhuāngzǐ. A primeira parece
mais óbvia: ao contrário de armadilhas para peixes e coelhos, as palavras não são
descartáveis, elas permanecem relevantes, mesmo após serem “entendidas.” Essa
interpretação é compatível com a importância das palavras-cálice no capítulo 27, pois,
caso fossem meramente descartadas, não tomariam um papel central na manutenção da
harmonia na “Sutileza Celestial.” A segunda interpretação é mais sutil: o Zhuāngzǐ prega
que o conhecimento último (a “iluminação”, míng 明) só seria atingido por meio do
esquecimento (wàng 忘) das palavras, ou seja, do não apego a seus usos anteriores. São
esses usos (os “yì 意” anteriores) que devem ser descartados e esquecidos. Dessa forma,
ao procurarmos os sábios (“homens verdadeiros”, zhēnrén 真人) para aprendermos
sobre dào 道 com eles, estamos procurando aqueles que conseguiram “esquecer as
palavras.” (Sobre 忘 wàng, esquecer, veja-se Cheng (2005, p. 161-168)).
932
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
no sentido mais amplo. Zhīyán ofereceria assim a possibilidade do agir
sem ação, de seguir dào 道 em consonância com a harmonia natural
e os ritmos da inconstância da natureza. A importância de zhīyán em
contraste com yùyán e chóngyán está clara na leitura de Wang (2004) que
vê nestas duas últimas os aspectos concretos da linguagem e na primeira
“a postura geral do Zhuāngzǐ em relação ao seu uso da linguagem” e “o
aspecto mais ilosóico da teoria do linguagem e da autoexpressão [no
Zhuāngzǐ]” (WANG, 2004, p. 196).
No último trecho que comentaremos no presente artigo, o texto
prossegue oferecendo uma explicação adicional sobre zhīyán e assim
ressalta sua importância:
有自也而可,有自也而不可;有自也而然,有自也而
不然。惡乎然?然於然。惡乎不然?不然於不然。
惡乎可?可於可。惡乎不可?不可於不可。
物固有所然,物固有所可,無物不然,無物不可。
非卮言日出,和以天倪,孰得其久!萬物皆種也,
以不同形相禪,始卒若環,莫得其倫,是謂天均。
天均者,天倪也。
yǒu zì yě ér kě, yǒu zì yě ér bù kě; yǒu zì yě ér rán, yǒu zì yě ér bù
rán. è hū rán? rán yú rán. è hū bù rán? bù rán yú bù rán. è hū kě?
kě yú kě. è hū bù kě? bù kě yú bù kě. wù gù yǒu suǒ rán, wù gù yǒu
suǒ kě, wú wù bù rán, wú wù bù kě. fēi zhīyán rì chū, hé yǐ tiān ní,
shú dé qí jiǔ! wànwù jiē zhǒng yě, yǐ bù tóng xíng xiāng chán, shǐ
zú ruò huán, mò dé qí lún, shì wèi tiānjūn. tiānjūn zhě, tiānní yě.
Há isso [que torna as coisas] aceitáveis (kě 可); há isso [que torna
as coisas] não aceitáveis (bù kě 不可); há isso [que faz as coisas]
assim (rán 然); há isso [que faz as coisas] não assim (bù rán 不然).
O que as faz assim? [Considerá-las] assim as torna assim. O que
as faz não assim? [Considerá-las] não assim as torna não assim.
O que as torna aceitáveis? [Considerá-las] aceitáveis as torna
aceitáveis. O que as torna não aceitáveis? [Considerá-las] não
aceitáveis as torna não aceitáveis. As coisas (wù 物) certamente
têm o que é assim; as coisas certamente têm o que é aceitável. Não
há o que não seja assim; o que não seja aceitável. Sem as palavrascálice (zhīyán 卮言), surgindo dia [após dia] para tudo harmonizar
na Sutileza Celestial (tiānní 天倪), quem [sobreviveria] por longo
tempo! As dez mil coisas (wànwù 萬物) provêm de sementes, e
suas diferentes formas dão lugar uma a outra. Começar e terminar
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
933
são como um anel, e não se pode obter o arranjo correto [das
coisas] (lún 倫). Isso se chama de Igualdade Celestial (tiānjūn
天均). 39 Igualdade Celestial, a Sutileza Celestial.
Esse trecho reforça o aspecto iconoclasta e transgressor do
Zhuāngzǐ, de rompimento das barreiras e das discriminações. Com sua
tradução é inevitável percebermos o viés fortemente relativista de suas
palavras (“as coisas são como as chamamos”, “não há o que não seja
aceitável”). Interessa-nos aqui a posição central das palavras-cálice: não
somente como fonte das diferenças (portanto, do “relativismo”), mas
também como elemento responsável por seu equilíbrio e harmonia, na
medida em que impede que essas diferenças coalesçam como hierarquias
e desigualdades. A passagem termina com um trecho que, a despeito de
seu pendor nitidamente místico, pode também ser lida de uma maneira
mais direta: em um mundo em eterna mutação, em que as palavras estão
constantemente se renovando, é impossível reconhecer início e im, e seria
utópico uma compreensão completa de todas as relações. Reconhecer
essas limitações é um dos objetivos do Zhuāngzǐ, a aceitação do princípio
de igualdade na ausência de uniformidade ou constância.
Para Hoffman o modo de falar do Zhuāngzǐ, que é tão elusivo
e difícil – particularmente quando o texto discorre sobre a própria
linguagem – é como
querer falar e ao mesmo tempo querer esquecer as palavras [...]
uma maneira de falar que não é mais útil e já não mais pode ser
usada como um argumento em debates, como um instrumento
de discernimento [... mas] que, ao mesmo tempo insiste na
importância e na eicácia de suas ideias. Esse modo de falar é falar
em ‘palavras cálice’ [...] saídas do céu, saídas da água. (AMES;
NAKAJIMA, 2015, p. 43)
39
A “Igualdade Celestial” é traduzida por muitos autores como “Roda Celestial do
Oleiro.” Ziporyn (2009, p. 14) explica como a imagem da roda do oleiro é uma metáfora
comum na tradição chinesa para uma abóboda celestial em rotação, equalizando as
coisas à medida que, devido à sua rotação, o barro se distribui homogeneamente sobre
sua superfície. Ao mesmo tempo, o Zhuāngzǐ também emprega a ideia da roda em
movimento, chamando a atenção para a mutação constante das perspectivas (veja-se
Zhuāngzǐ, cap. 2).
934
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
Na tríade metalinguística que nos sugere o capítulo 27, os
trechos do Zhuāngzǐ aqui traduzidos resumem de maneira brilhante as
características da linguagem zhuangziana: a liberdade e precariedade
como as palavras são convidadas a ser utilizadas em diversos contextos
(palavras convidadas, yùyán 寓言); o peso da sua autoridade quando,
inúmeras vezes citadas e repetidas, sua liberdade é ameaçada quando
se veem engessadas nos textos dos antigos sábios (palavras repetidas,
chóngyán 重言); e, inalmente, a superação dessa dicotomia liberdade/
prisão no reconhecimento de sua renovação suprema como geradoras
incansáveis de atos linguísticos perfeitamente inefáveis, improvisados
e fugazes (palavras-cálice, zhīyán 卮言).
5 Conclusões
Embora supericialmente não aparente ser um texto que trate
diretamente da linguagem, o Zhuāngzǐ é uma peça literária que emprega
magistralmente a própria linguagem na exploração de seus limites e
potenciais, sendo considerado por muitos um dos textos mais ricos
linguisticamente no cânone clássico chinês. Kohn (2014, p. 170) escreve
que as palavras do Zhuāngzǐ são extravagantes, cheias de expressões
irregulares e paradoxais, irresponsáveis e ininteligíveis. Alguns termos
exóticos (concentrados nos capítulos 2 e 33) ilustram sua metalinguagem
extremamente imaginativa: diàoguǐ 弔詭, [palavras que levam à]
enganação suprema (cap. 2); wàngyán 妄言, palavras amalucadas
(cap. 2); mènglàng 孟浪, [palavras] impetuosas e impulsivas (cap.
2); kuángyán 狂言, palavras selvagens (cap. 22); miùyōuzhīshuō
謬悠之說, termos estranhos e extravagantes (cap. 33); huāngtángzhīyán
荒唐之言, palavras impetuosas e bombásticas (cap. 33); e wúduānyázhīcí
無端崖之辭, frases sem restrições ou fronteiras (cap. 33). Os termos
empregados nos levam a pensar em um uso linguístico improvisado,
sem conhecimento de causa, imediato, inconsequente, perigoso (KOHN,
2014, p. 171); são as “loucas palavras” (crazy words) do Zhuāngzǐ e
sua “forma de usar a linguagem ao mesmo tempo que demonstra sua
compulsão em demoli-la” (WANG, 2014, p. 25). Impossível não nos
impressionarmos diante da ainidade com as palavras de Wittgenstein:
“É preciso não esquecer que o jogo da linguagem é dizer o imprevisível
– isto é: não se baseia em fundamentos, não é razoável (ou irrazoável),
está aí com a nossa vida” (WITTGENSTEIN, 1998, Da Certeza, §559).
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
935
Nessa defesa de uma linguagem pragmática não fundada sobre
uma base racional, mas voltada para a primazia do uso linguístico,
proponho aqui restituir ao capítulo 27 do Zhuāngzǐ a ocupação de um
lugar de maior proeminência na HIL chinesa do que lhe é comumente
outorgado.
O que no capítulo 2 surge como a exaltação da força de uma
linguagem livre e criativa está explorado de uma forma mais sistemática
– um termo que certamente o(s) autor(es) do Zhuāngzǐ repudiaria(m)!
– e explícita no início do capítulo 27. É quase inevitável reconhecer
que, na tríade metalinguística desse capítulo, zhīyán assuma um papel
de destaque. É o único termo que foi cunhado pelo Zhuāngzǐ e aquele
cujo uso posterior tornou-se sempre intimamente ligado a esse momento
inaugural. Alguns autores como Li (YU et al., 2000) chegam mesmo a
considerar que os outros dois termos seriam apenas subcategorias de
zhīyán, meras ênfases em seu leque de referências. Entretanto, como
já vimos neste artigo, defendo que os três termos tenham contribuições
complementares e fundamentais à linguagem zhuangziana.
Sugiro aqui que o início do capítulo 27, traduzido e comentado
para este artigo, indique uma hierarquização precária, um movimento
que espelhe o debate na ilosoia chinesa de sua época: a quase totalidade
(9/10) da linguagem que usamos é formada por palavras que lemos ou
ouvimos, retiramos de algum contexto para utilizar em outro, são as
yùyán 寓言. Nessa etapa, adverte-nos o Zhuāngzǐ, há um esforço retórico
e uma tentativa de se estabilizar a relação palavra/coisa que, entretanto,
está fadado ao fracasso: aqueles que, desde antes, aceitam e concordam
com o que dizemos, respondem positivamente (shì 是), já os que nunca
aceitaram continuam em sua recusa (fēi 非). Diante do fracasso das
yùyán, autores, como Confúcio, Mòzǐ e outros, apelaram à autoridade dos
clássicos canônicos, às palavras do reis-sábios, às citações das palavras
de peso, chóngyán 重言, estas, sim, capazes de levar uma discussão a
seu cabo. Entretanto, avalia o Zhuāngzǐ, essa autoridade por si só não é
garantia de palavras em conformidade com dào 道, e ,frequentemente,
citações são feitas sem rigor ou critério, convertendo-se em meras
repetições que preenchem o discurso, mas não dizem nada. Correm o risco
de tornar-se – referindo-se ao capítulo 2 – apenas o “sopro do vento” (chuī
吹). Porém – como lemos neste trecho do próprio capítulo 2: 夫言非吹
也 fū yán fēi chuī yě, “palavras não são o sopro do vento” – o Zhuāngzǐ
recusa uma visão tão negativa sobre a linguagem. O que se defende aqui
936
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
é que a diferença entre a linguagem e o sopro do vento encontra-se na
capacidade perene da linguagem de mudar e de se renovar, esvaziar-se,
sem que se torne vácua ou estéril. E essa é a capacidade representada
por zhīyán 卮言, locus da contradição da pseudo-vacuidade que é a
linguagem humana.
Neste momento, reforço o que foi proposto no início deste artigo,
chamando novamente a atenção para o notável paralelo do Zhuāngzǐ
com o pensamento de Wittgenstein, Harris e Taylor: o elogio ao poder
da linguagem, em sua propensão a usos inesperados, não calculados,
porém sempre exigindo vigilância contra o espectro da armadilha da
reiicação. Argumento que zhīyán represente uma espécie de contraparte
zhuangziana à linguagem ordinária e comum de Wittgenstein, aquela
que se renova a cada uso, que recusa o cálculo, que se sustenta sobre as
bases frágeis e incertas do momento. Acredito que não só esse paralelo
deva ser mais bem explorado na sinologia e na HIL, como também
deva ser restituída a posição fundamental do Zhuāngzǐ não somente
como um autor/livro iconoclasta e arguto crítico das linhas ortodoxas de
pensamento na China Zhōu, mas também como fonte de uma singular
interpretação sobre a linguagem.
Ainda segundo o Zhuāngzǐ, a linguagem e o humano impõe à
Natureza o inevitável esfacelar da unidade primordial. Ao romper com
a unidade, também se rompe a uniformidade, porém, na pluralidade
perspectivista do Zhuāngz ǐ (ZIPORYN, 2009b), o perigo está
representado pelo risco da criação de categorias estanques, divisões
engessadas, hierarquias congeladas. Trazendo novamente o auxílio das
palavras de Wittgenstein, podemos conceber que seja um risco similar
àquele representado pelo uso das palavras “de férias”, ou seja, fora de seus
contextos de uso (WITTGENSTEIN, 2009, §38). A diiculdade de lidar
com uma linguagem que incite a pluralidade e ao mesmo tempo tenda à
classiicação e à quebra da igualdade é o que levaria o próprio Zhuāngzǐ
a se refugiar em suas “palavras sem palavras” (言無言 yán wú yán).
Todavia, a solução proposta no texto, como sugiro aqui, encontra-se no
bojo da própria linguagem, representada pelas zhīyán 卮言, que afastam
o quietismo e promovem a criatividade máxima do ato linguístico.
Seria um equívoco, portanto, interpretar a hierarquização
tripartite do capítulo 27 como proposta de uma sistematização estanque
e ontologizante da linguagem. Ao outorgar às zhīyán a posição mais alta
nessa hierarquia, o texto joga por terra qualquer tentativa de manter a
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
937
própria hierarquia: o cálice, cheio, inclina-se e deixa, assim, escapar o
que havia dentro dele...
No último capítulo do Zhuāngzǐ (capítulo 33, tiān xià 天下, Sob
o Céu), a tríade metalinguística introduzida no capítulo 27 é novamente
retomada. Segundo o texto, em certa ocasião, Zhuāng Zhōu ouve falar
de um dào 道 que promove uma igualdade que é vazia, ininita, nunca
constante, e assim se maravilha com ele.40 O texto descreve então a
reação de Zhuāng Zhōu:
莊周聞其風而悅之。以謬悠之 , 荒 唐 之 言 ,
無端崖之辭,時恣縱而不儻,不以觭見之也。
以天下為沈濁,不可與莊語;以卮言為曼衍,
以重言為真,以寓言為廣。
Zhuāngzhōu wén qí fēng ér yuè zhī. yǐ miù yōu zhī shuō, huāng
táng zhī yán, wú duān yá zhī cí, shí zī zòng ér bù tǎng, bù yǐ yuàn
jiàn zhī yě. yǐ tiānxià wéi shěn zhuó, bù kě yǔ zhuāng yǔ; yǐ zhīyán
wéi màn yǎn, yǐ chóngyán wéi zhēn, yǐ yùyán wéi guǎng.
Zhuāng Zhōu ouviu [as] palavras ao vento (fēng 風) e encantouse. [Ele as] expôs em termos estranhos e extravagantes (miù
yōu zhī shuō 謬悠之 ), em linguagem impetuosa e bombástica
(huāng táng 荒唐), em frases sem restrições e sem fronteiras,
abandonando-se aos tempos despreocupados, e não usando
um olhar excludente. [Considerou] o sob-o-céu (tiānxià 天下)
afogado em turvação (shěn zhuó 沈濁), impossível [de abordar]
com uma linguagem sóbria (zhuāng yǔ 莊語). [Então ele] usou
palavras-cálice (zhīyán 卮言) para verter suas elaborações
(mànyǎn 衍曼), palavras repetidas (chóngyán 重言) para dar
autenticidade (zhēn 真)41 e palavras convidadas (yùyán 寓言) para
conferir grande amplitude (guǎng 廣).
40
Podemos especular que este trecho oferece uma representação mítica do momento
em que próprio Zhuāngzǐ lê o Lǎozǐ.
41
Diversos autores traduzem zhēn真 como verdade. Há uma feroz disputa indeinida
sobre a validade de um conceito de verdade no pensamento chinês clássico e seus
detalhes ultrapassam em muito o âmbito e o tema do presente artigo. Kohn (2014, p. 170)
escreveu: “Não há um conceito ixo – ou mesmo uma única palavra – para a ‘verdade’
palpável e permanente no sentido ocidental, apenas vários termos e perspectivas em
constante mudança.” Para a posição de que “não há conceito de verdade na ilosoia
chinesa”, veja-se Hansen (1985, 1992) ou Owen (1992); para uma crítica, veja-se Lenk
(1993, cap. 4).
938
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
É notável que, ao se referir ao tipo de linguagem que falhe na vã
tentativa de descrever o mundo em toda a sua mudança e complexidade
– a chamada “linguagem sóbria” – o texto use o termo zhuāng 莊, o
mesmo que dá nome ao seu autor, Zhuāngzǐ 莊子, “mestre Zhuāng”!
Há uma ironia marcante que, mais uma vez, põe em evidência a
contradição inerente da linguagem zhuangziana, por um lado iluminada
em consonância com dào 道, e, por outro, resistente às amarras, sem se
deixar domesticar. Como vimos nas passagens aqui analisadas, e, em
particular, no capítulo 27, a linguagem carrega seu poder imenso lado a
lado com um terrível perigo. Porém, em vez de procurar colocá-la em uma
camisa de força, o Zhuāngzǐ, sem recuar para o conforto da linguagem
sóbria, zhuāng yǔ, propõe abraçar sua completa liberdade, jorrando as
mais amplas e autênticas elaborações por meio de suas zhīyán.
Agradecimentos
O presente trabalho é fruto de pesquisa de pós-doutorado na Universidade
Federal Fluminense – UFF, realizada com apoio do CNPq, Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil
(152017/2016-0). Agradeço a inestimável ajuda da minha supervisora
na UFF, Profa. Dra. Vanise Gomes de Medeiros.
Referências
ALLETON, Viviane. L’écriture chinoise: le déi de la modernité. Paris:
Éditions Albin Michel, 2008.
ALLINSON, Robert E. Chuang-Tzu for Spiritual Transformation: An
Analysis of the Inner Chapters. Albany: State University of New York
Press, 1989.
AMES, Roger; HALL, David. Thinking from the Han. Albany: State
University of New York Press, 1998.
AMES, Roger; NAKAJIMA, Takahiro (Org.). Zhuangzi and the Happy
Fish. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2015.
AUROUX, Sylvain. Histoire des Idées Linguistiques (tome 1, 2 and 3).
Liège: Pierre Mardaga Editeur, 1995, 1992 e 2000.
AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. Tradução
de Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Ed. Unicamp, [1992] 2009.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
939
AUROUX, Sylvain. La Philosophie du langage. Paris: Ed. Presses
Universitaires de France, 2004.
BALFOUR, Frederic Henry. The Divine Classic of Nanhua, Being the
Works of Chuang Tsze, Taoist Philosopher. Shanghai and Hong Kong:
Kelly and Walsh, 1881. Disponível em: <http://ebook.lib.hku.hk/
CADAL/B31418934/>. Acesso em: 18 jul. 2017.
BAO, Zhiming. Language and World View in Ancient China. Philosophy
East and West, Honolulu, v. 40, n. 2, p. 195-219, 1990.
BARROS BARRETO, Cristiano M. Pensares sobre a escrita chinesa.
2011. 213f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica,
Rio de Janeiro, 2011.
BARROS BARRETO, Cristiano M. Translation and metalanguage in
Laozi: a perspectivist approach. 2015. 2 v.; 425f. Tese (Doutorado)Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2015.
BILLETER, François. Zhuangzi poète ou philosophe. Études Chinoises,
v. IX, n. 2, p. 161-170, 1990.
BOTTÉRO, Françoise; HARBSMEIER, Christoph. The Shuowen Jiezi
Dictionary and the Human Sciences in China. Asia Major, Taiwan, third
series, v. 21, n. 1, p. 249-271, 2008.
BOTTÉRO, Françoise. Chinese writing: ancient autochthonous
perspective. Mémoire d’Habilitation à diriger des recherches sous la
direction d’Alain Peyraube, 2011.
CAVELL, Stanley. The Claim of Reason. Oxford: Oxford University
Press, 1979.
CHAN, Wing-Tsit. A Sourcebook in Chinese Philosophy. New Jersey:
Princeton University Press, 1963.
CHEN Guying
. Zhuangzi jin zhu jin yi 庄子今注今译 (Notas
e tradução moderna do Zhuangzi). 北京:商务印书馆. Beijing:
Shangwuyin Shuguan, [1995] 2015. 2 v.
CHENG, Anne (Org.). Y a-t-il une philosophie chinoise? Extrême-Orient,
Extrême-Occident: Cahiers de Recherches Comparatives. Saint-Denis:
Presses Universitaires de Vincennes, 2005. n. 29.
940
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
CHINESE TEXT PROJECT. Disponível em: <http://ctext.org/>. Acesso
em: 2 ago. 2017.
COOK, Scott. Hiding the World in the World: Uneven Discourses on the
Zhuangzi. Albany: State University of New York Press, 2003.
CUA, Antonio (Ed.). Encyclopedia of Chinese Philosophy. Londres:
Routledge, 2003.
ELMAN, Benjamin. From Value to Fact: The Emergence of Phonology
as a Precise Discipline in Late Imperial China. Journal of the American
Oriental Society, American Oriental Society, v. 102, n. 3, p. 493-500,
1982.
FERREIRA, Eduardo Pereira. Chuang Tzu: ensinamentos essenciais.
Tradução de Sam Hamill e J. P. Seaton. São Paulo: Cultrix, 2005. [The
Essential Chuang Tzu. Boston; London: Shamballa, 1999].
FUNG Yu-lan; BODDE, Derk. A History of Chinese Philosophy,
Princeton: Princeton University Press, 1983. v. 1 e 2.
GILES, Herbert A. Chuang Tzû – Mystic, Moralist, and Social Reformer.
London: Bernard Quaritch, 1889.
GLOCK, Hans-Johann. A Wittgenstein Dictionary. Oxford: WileyBlackwell, 1996.
GRAHAM, A.C. Chuang-tzu’s Essay on Seeing Things as Equal. History
of Religions, Chicago, v. 9, n. 2/3, p. 137-159, 1969.
GRAHAM, A. C. Chuang-tzu: the Inner Chapters. London: George Allen
& Unwin Paperbacks, 1981.
GRAHAM, A.C. Disputers of the Tao: Philosophical Arguments in
Ancient China. Chicago: Open Court Publishing Company, 1989.
GU HANYU DA CIDIAN (
) (Grande Dicionário do
Chinês Arcaico) (versão para iOS, 2001-2017. Pleco Inc, original editado
por: 上海辞 出版社 Shanghai cishu chubanshe). Shanghai.
HANSEN, Chad. Chinese Language, Chinese Philosophy, and “Truth.”
Journal of Asian Studies, Cambridage, v. XLIV, n. 3, p. 491-519, 1985.
HANSEN, Chad. A Daoist theory of Chinese thought. Oxford: Oxford
University Press, 1992.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
941
HARRIS, Roy. The Language Myth. London: Duckworth, 1981.
HARRIS, Roy. Language, Saussure and Wittgenstein: How to play games
with words. London: Routledge, 1988.
HARRIS, Roy. Rethinking Writing. London; New York: Continuum
Press, 2001.
KJELLBERG, Paul; IVANHOE, Philip. Essays on Skepticism, Relativism
and Ethics in the Zhuangzi. New York: State University of New York
Press, 1996.
KNECHTGES, David; CHANG, Taiping. Ancient and Early Medieval
Chinese Literature: a reference guide. Leiden: Brill, 2014. v. IIII.
KOHN, Livia. Zhuangzi: Text and Context. St. Petersburg: Three Pines
Press, 2014.
KOHN, Livia (Ed.). New Visions of the Zhuangzi. St. Petersburg: Three
Pines Press, 2015.
KOHN, Livia; ROTH, Harold D. (Ed.). Daoist identity: history, lineage,
and ritual. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2002.
LAI, Karyn L. Introdução à Filosofia Chinesa. Tradução de Saulo
Alencastre. São Paulo: Ed. Madras, 2009. [An Introduction to Chinese
Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2008]
LENK, Hans; PAUL, Gregor (Ed.). Epistemological Issues in Classical
Chinese Philosophy. Albany: State Univesity of New York Press, 1993.
LEPSCHY, Giulio. (Ed.). History of Linguistics: the eastern traditions of
linguistics. New York: Longman Publishing, 1994. v. 1.
LIN, JeeLoo. An Introduction to Chinese Philosophy: from ancient
philosophy to Chinese Buddhism. Malden: Blackwell Publishing, 2006.
LIU Xiaogan (Ed.). Dao Companion to Chinese Philosophy. Berlin:
Springer Verlag, 2015.
MAIR, Victor. Wandering on the Way: early taoist tales and parables of
Chuang Tzu. New York: Bantam Books, 1994.
MAIR, Victor. Experimental Essays on Chuang-tzu. Honolulu: University
of Hawai’i Press, 1983.
942
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
O’NEILL, Timothy Michael. Ideography and Chinese Language Theory:
a History. Berlin: De Gruyter, 2016.
OWEN, Stephen. Readings in Chinese Literary Thought. Council on
Asian Studies. Cambridge: Harvard, 1992.
PALMER, Martin. The Book of Chuang Tzu. London: Penguin Classics,
1996.
Peipei QIU. Basĥ and the Dao: The Zhuangzi and the Transformation
of Haikai. Honolulu: University of Hawaii Press, 2005.
SOUZA, Julia Garcia Vilaça de. Zhuangzi: uma tradução comentada do
segundo capítulo (versão corrigida). 2016. 115 f. Dissertação (Mestrado)
– Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo,
2016.
TAYLOR, Talbot. Theorizing Language. Bingley: Emerald Press, 1997.
TAYLOR, Talbot. Language constructing language: the implications
of relexivity for linguistic theory. Language Sciences, Elsevier, n. 22
p. 483-499, 2000.
TOLEDO, Yolanda Steidel. CHUANG TZU: Escritos Básicos. São Paulo:
Cultrix, 1995. [Tradução de WATSON, Burton. Zhuangzi: basic writings.
Columbia University Press, 2003]
WANG Bo. Zhuangzi: thinking through the inner chapters. St. Petersburg:
Three Pine Press, 2014.
WANG Li王力 Zhongguo Yuyan Xueshi (História da Linguística Chinesa)
旦大学出版社 (Shanghai: Fudan Daxue
中国
言学史. 上海:
Chubanshe), Shanghai, 2005.
WANG, William S.-Y.; Chaofen SUN. The Oxford Handbook of Chinese
Linguistics. Oxford: Oxford University Press, 2015.
WANG, Youru. The strategies of ‘goblet words’: indirect communication
in the Zhuangzi. Journal of Chinese Philosophy, Wiley Online Library,
n. 31, n. 2 p. 195-218, 2004.
WATSON, Burton. The Complete Works of Chuang Tzu. New York:
Columbia University Press, [1968] 2013.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018
943
WIEGER, Léon. Nan-hoa-tchenn-king: l’oeuvre de Tschoang-tzeu in:
Taoisme, 1913. v. 2.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische Untersuchung –
Philosophical Investigations. Translated by G. E. M. Anscombe, P. M.
S. Hacker and Joachin Schulte. Malden: Wiley-Blackwell, 2009.
WITTGENSTEIN, Ludwig. The Collected Works of Wittgenstein. Edited
by G. H. von Wright and G. E. M. Anscombe. Malden: Blackwell, 1998.
WU, Kuang-ming. Goblet Words, dwelling words, opalescent words
– philosophical methodology of Chuang-tzu. Journal of Chinese
Philosophy, Wiley Online Library, n. 15, p. 1-8, 1988.
XU, Shen (Han) 許慎(漢)/ Xu Xuan (Song) 徐鉉(宋)Shuowen
Jiezi 說文解字. 上海:上海古籍出版社 (Shanghai, Shanghai Guji
Chubanshe). Shanghai, 2004.
YU, Pauline; BOL, Peter; OWEN, Stephen; PETERSON, Willard. Ways
with words. Berkeley: University of California Press, 2000.
ZIPORYN, Brook. Zhuangzi: The Essential Writings: With Selections
from Traditional Commentaries. Indianapolis: Hackett Publishing
Company, 2009.
ZIPORYN, Brook. Zhuangzi as a Philosopher. (Anexo online ao livro
Zhuangzi: The Essential Writings, 2009b. Disponível em: <https://www.
hackettpublishing.com/ zhuangzisup>. Acesso em: 2 ago. 2017.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
Sujeitos-Wh e movimento para posições focais
em sentenças ininitivas do português brasileiro
Wh-subjects and movement for focal positions
in Brazilian Portuguese ininitive sentences
Paulo Medeiros Junior
Universidade de Brasília, Brasília, DF / Brasil
medeirosjunior33@gmail.com
Resumo: Este trabalho põe em discussão a derivação de sentenças
infinitivas que complementam verbos como ‘ver’ e ‘ouvir’ e que
apresentam um sujeito-Wh. Como se vê na empiria, apenas as sentenças
com um ‘stress’ focal no sintagma-Wh sujeito constituem uma derivação
convergente. Argumenta-se que o que aparentemente se conigura numa
construção com Wh in situ é na verdade uma construção com movimento
curto do Wh para o Spec-FocP na projeção focal interna da sentença
matriz (assumindo a ideia de BELLETTI, 2004), e que, em português,
o traço-Wh de sintagmas-Wh é valorado sincreticamente com o traço
de foco em projeções focais, como propõe Kato (2004). Essa proposta
ainda prevê que sentenças ininitivas são defectivas também quanto
à projeção de uma periferia interna, fato que explica certa assimetria
veriicada nos dados.
Palavras-chave: sujeitos-Wh; ininitivas; traços de foco.
Abstract: This paper concerns the derivation of non-inite sentences
that complement verbs of the type of ‘see’ and ‘hear’ and contain a Whsubject. Analyzed data evidence that sentences that carry a Wh-phrase
with a stressed Wh-subject are convergent, contrary to sentences that
do not. We argue that the apparent Wh in situ construction is in fact a
sentence where some instance of Wh-movement takes place. The idea is
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.945-979
946
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
that the Wh-phrase is moved to the Spec-FocP in the low IP area (in the
terms of BELLETTI, 2004) and that in Portuguese the Wh feature of Whphrases is checked with a Focus feature in focus projections, according
to Kato (2004). This proposal still states that sentences of an ininitival
nature are defective also in terms of projecting an internal periphery, what
seems to explain certain asymmetry facts observed in data.
Keywords: Wh-subjects; non-inite clauses; focus features.
Recebido em 19 de outubro de 2017
Aceito em 16 de fevereiro de 2018
1 Introdução
A discussão sobre a natureza das operações que envolvem a
derivação de sentenças com sujeitos-Wh é vasta. A noção geral é que,
em contraste com as interrogativas com Wh objeto, interrogativas de
sujeito são claramente ambíguas quanto ao movimento do constituinteWh em sintaxe aberta. A ordem linear de dados como (1) pode facilmente
viabilizar a análise de uma derivação com ou sem movimento de Spec-T
para Spec-C.
(1) Quem espirrou? → [CP Quem [TP quem espirrou]] / [CP [TP Quem espirrou]]
A possibilidade de interpretação da derivação sem movimento
nesses casos icou conhecida como a Hipótese do Movimento Vácuo
(cf. GEORGE, 1980; CHOMSKY, 1986), segundo a qual um sujeito-Wh
não se move localmente para Spec-CP.
A análise proposta para o inglês baseia-se em evidências
empíricas como as seguintes:
1) O movimento de Whs-complemento é claramente percebido na
sentença;
2) Construções com interrogativas de wh-não-sujeito apresentam
inversão do auxiliar, fato que não é observado em interrogativas
com Wh-sujeito.
É isso que se pode ver nos dados em (2) e (3) a seguir:
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
947
(2) [CP Whok havei [TP they ti seen tk]]?
(3) [CP [TP Who painted the room]]?
Se a discussão gira em torno de interrogativa raiz ou mesmo de
interrogativas encaixadas de natureza inita, não é impossível assumir
para o português uma hipótese como a do movimento vácuo de George,
aplicável aos dados em (4):
(4) a. [CP [TP Quem chorou]]?
b. O João quer saber [CP [TP quem chorou]].
Talvez, se pudesse argumentar, de início, seguindo Chomsky
(1995), que – em essencial – traços são movidos em uma operação de
checagem. O pied-piping de toda uma categoria só ocorre nos casos em
que o movimento é essencial para convergência; caso contrário, questões
de economia o bloqueiam.
Entretanto, se postos em discussão, os dados em (5) e (6) com
Wh-sujeito em sentenças ininitivas que complementam verbos como ver
e ouvir parecem trazer alguma diiculdade a um tratamento do fenômeno
em termos de movimento de traços.
Sejam os dados:
(5) a. *O João viu quem espirrar.
b. O João viu QUEM↑↓ espirrar?1
c. Quemi o João viu ti espirrar?
(6) a. *A Maria ouviu quem chorar.
b. A Maria ouviu QUEM↑↓ chorar?
c. Quemi a Maria ouviu ti chorar?
Os símbolos ↑↓ indicam a entonação das sentenças: ascendente no caso de uma
pergunta eco; descendente, no caso de uma interrogativa comum. Assim, está-se
assumindo aqui a dupla possibilidade de interpretação de sentenças como 5 e 6b, a
saber, a possibilidade de interpretá-las como pergunta eco ou como uma requisição
original por informação (pergunta comum).
1
948
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
Sentenças como as que aparecem em (c) mostram claramente o
deslocamento do elemento-Wh da posição de sujeito2 da subordinada
para a sentença matriz. Além disso, com o Wh in situ, só as sentenças
em que esse elemento recebe uma entonação focal (ascendente ou
descendente) são aceitáveis.3,4 O que os dados parecem mostrar é uma
interação entre as questões de valoração do traço-Wh e das propriedades
dos complementos do tipo de verbo da matriz; é preciso, portanto, que se
avaliem questões relacionadas a um e outro fenômeno, se há a intenção
de explicar o paradigma em (5) e (6).
Um dos pontos básicos na análise de dados com verbos de
percepção tem sido o de determinar a estrutura de construções ininitivas
que eventualmente os complementam, constituindo o que se convencionou
chamar “complementos de percepção direta”, como as sentenças em (5)
e (6) b (cf. FELSER, 1999; RODRIGUES, 2006).
2
Quanto ao que se entende aqui por posição de sujeito, entenda-se inicialmente posição
temática. O decorrer da argumentação procurará evidenciar que nesses casos o Wh
sofre movimento cíclico da posição temática para a posição de Spec-T e em seguida
para a posição mais alta na estrutura.
3
Obviamente, a discussão sobre o movimento de Whs sujeito se dá em termos de
movimento local para Spec-CP. Em todo caso, em dados como (5) e (6) c observa-se
claramente a aplicação de movimento sobre o Wh, considerando o fato de que esse
elemento precisa nascer na subordinada, mas encontra-se deslocado, em sua posição
inal, na periferia da matriz. A pergunta é: nos dados em (5) e (6) b ocorre movimento?
A isso procuramos responder no desenrolar da discussão.
4
Construções com o verbo lexionado na encaixada apresentam um paradigma distinto.
Observe-se que em (i) não é necessária qualquer entonação focal sobre o sintagma-Wh
para salvar a gramaticalidade das sentenças. Segue-se disso que sentenças como as que
aparecem em (ii) têm sua agramaticalidade explicada por uma ausência do traço-Wh
no C da matriz (considere-se a força – interrogativa da sentença), não podendo haver
qualquer operação de valoração de traços entre o C mais alto e a categoria-Wh. Além
disso, entende-se que nesses casos esse traço seja valorado já na posição encaixada.
(i) a. O João perguntou quem chorou.
b. A Maria quer saber quem gritou.
(ii) a. *Quem o João perguntou t chorou.
b. *Quem a Maria quer saber t gritou.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
949
Trabalhos como os de Rouveret e Vergnaud (1980), Koster e
May (1982)5 e Kayne (1984) optam por uma análise em termos de uma
estrutura contendo um CP, enquanto Emonds (1976), Borer (1986)
e Radford (1997) entendem que as orações ininitivas em questão se
constituem em TPs.
Felser (1999) argumenta que a agramaticalidade de sentenças
como (7) inviabiliza uma análise em termos do CP e que instâncias de
comportamento sintático distinto entre complementos ininitivos de
verbos de percepção e as ininitivas em geral também desautorizam uma
análise em termos do TP para essas construções.
(7) a. *Mary couldn’t see [CP what [C´ John drawing]].
b. *Mary couldn’t hear [CP which song [C´ John sang]].
(FELSER, 1999, p. 91)
Trata-se, portanto, de uma discussão nada consensual. Movimento
de um sujeito-Wh e a constituição estrutural dos complementos ininitivos
de verbos de percepção são, nesse panorama, questões cruciais a serem
debatidas.
Assim, com base na observação dos dados em (5) e (6), chega-se
a algumas questões que precisam ser postas em discussão. A primeira e
principal delas é a avaliação das condições de derivação das referidas
construções e, consequentemente, a necessidade de explicar o que
viabiliza as sentenças em (5) e (6)b e bloqueia as sentenças em (5) e (6)
a. Essa questão passa necessariamente pela discussão do tipo de estrutura
que apresentam os complementos ininitivos dos verbos ver e ouvir nas
referidas construções. Procuro mostrar aqui que não há como sustentar,
em face dos dados, uma análise com movimento vácuo de sujeito para
os dados do português do Brasil.6 A ideia básica que procurarei constituir
aqui é a de que sujeitos-Wh nesse tipo de sentenças precisam mover-se em
sintaxe aberta de Spec-v para Spec-T (na sentença encaixada) e novamente,
em sintaxe aberta, para o domínio do v na matriz, por questões de Caso,
5
Hipótese do Paralelismo Estrutural: a estrutura é uniforme entres tipos de sentenças;
assim complementos ininitivos de verbos de percepção são estruturalmente análogos
a sentenças completas.
6
Ponho de lado aqui a questão do movimento local e passo a discutir movimento de
sujeitos-Wh de forma generalizada.
950
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
e para checar um traço-Wh, conjuntamente com um traço de Foco.7 É
sobre essas questões que o presente trabalho se debruça. Para a análise
do fenômeno, vou adotar aqui, a versão de Fase do Programa Minimalista
da teoria de Princípios e Parâmetros (cf. CHOMSKY, 2000, 2001, 2005).
O artigo se estrutura da maneira como segue: na seção 2, ocupome da avaliação das propostas de análise para a estrutura de ininitivas
que complementam verbos de percepção, na intenção de determinar
qual proposta se adéqua melhor aos dados do português. A seção 3 traz
uma discussão sobre movimento-Wh e o problema dos traços, na qual se
avaliam questões como para onde e por que Whs se movem em perguntas.
Na seção 4, avalio a questão do movimento para posições focais,
assumindo a hipótese de Karimi (2003), segundo a qual movimento
para Foco é ativado por checagem de um traço [-interpretável]. Ainda
nessa seção, discuto o problema da atribuição de Caso aos Whs sujeitos
de ininitivas e delineio a proposta inal deste trabalho. A seção 5 traz as
considerações inais e as questões em aberto para futuras investigações.
2 Complementos de verbos de percepção direta: avaliando as
hipóteses de análise da sentença ininitiva
A questão elementar que se põe quanto aos dados em (5) e (6)
é a seguinte: o que faz com que as sentenças em (a) sejam agramaticais
em oposição às que se encontram em (b) e (c)? O problema pode estar
relacionado à veriicação do traço-Wh em sentenças desse tipo, questão
que pode ter ligação direta com o tipo de estrutura que se supõe apresentar
a sentença ininitiva iniciada pelo sintagma-Wh.
É importante, portanto, que se avaliem as propostas estruturais
apresentadas na introdução, para que se possa procurar determinar o
tipo de estrutura que essas sentenças ininitivas apresentam e avaliar a
maneira como são derivadas.
2.1 A hipótese do CP
Estruturas como as que se põem em análise já foram avaliadas
como constituintes sentenciais de categoria CP (cf. ROUVERET;
VERGNAUD, 1980; REULAND, 1981; KAYNE, 1984), conforme
mencionado na introdução. Isso se emparelha com a Hipótese do
7
Agradeço a Mary Kato (comunicação pessoal) por me sugerir essa ideia.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
951
Paralelismo Estrutural de Koster e May (1982), que propõe uma isonomia
estrutural para as sentenças, mesmo de tipos diferentes. Essa questão é,
no entanto, problemática.
Como observa Felser (1999), a ausência obrigatória de
complementizadores realizados e marcadores de finitude nessas
construções traz alguma complicação para a análise do CP. A argumentação
é que as propostas para esse tipo de análise têm de assumir ou que C e
I/T estejam presentes estruturalmente, mas sem conteúdo, ou que essas
projeções contêm núcleos fonologicamente nulos, que estão associados
a um conjunto de traços formais ou semânticos. (FELSER, 1999, p. 91).
O problema com a primeira hipótese é que o princípio de
Interpretação Plena (FI, cf. CHOMSKY, 1995) inviabiliza tal abordagem:
uma projeção sintática sem conteúdo semântico não pode ser interpretada
na interface semântica. Assim sendo, sobra a segunda hipótese: a da
existência de núcleos C e I fonologicamente nulos.
Um problema para a segunda análise, apontado em Felser (1999),
é o fato de que, como esses núcleos nunca apresentam nenhum tipo de
material lexical, ica difícil determinar qual o tipo de traço que carregam.
Além disso, supõe-se que C indique o tipo oracional (cf. CHENG, 1991)
e seja o lugar onde se codiica o modo e a força ilocucionária da sentença
(CHOMKY, 1995); um C nulo numa sentença plena representaria
problemas para a codiicação de sua força.
Uma questão relevante aventada em Felser (1999) – que parece
contrariar a hipótese do CP– assume particular interesse para nossa
argumentação aqui. Ela diz respeito ao fato de não se observar qualquer
instanciação de movimento-Wh curto em ininitivas, o que se dá a ver
em (9), contrariamente ao que acontece em sentenças initas como (8):
(8)
O João viu [CP quem [TP a Maria beijou ti]]
(9)
*O João viu [CP quem [TP a Maria beijar ti]]?8
Uma questão interessante nesse ponto é o fato de que, em sentenças initas que
complementem um verbo do tipo de ver (como em (8)), o Wh precisa necessariamente
aparecer na posição intermediária. Uma construção com esse elemento in situ não é
aceitável, como se vê em (i), assim como seu posicionamento na periferia da matriz,
tal como em (2):
(i) *O João viu a Maria beijou quem/QUEM?
(ii) *Quem o João viu a Maria beijou?
8
952
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
Considerando o fato de que o movimento curto do sintagma-Wh
pode ocorrer livremente com complementos initos como em (8), que
se assume apresentar a projeção da camada CP, mas é bloqueado em
ininitivas como (9), pode-se concluir que as sentenças postas em análise
aqui não devem de fato projetar o sistema C.
Outro argumento desfavorável à hipótese do CP baseia-se no fato
de que em interrogativas observa-se um fenômeno que icou conhecido
em fases anteriores do programa como o duplo preenchimento do Comp,
com a realização do núcleo C e a presença de um sintagma-Wh em SpecCP,9 como se pode ver em (10) e (11) a seguir:
(10) a. [CP Quemi [C que [TP ti viu o João]]]?
b. Quero saber [CP quandoi [C que [TP ele chegou ti]]].
(11) a. [CP Quemi [C que [TP o João viu ti chegar]]]?
Quando a Numeração de uma interrogativa (seja ela raiz ou
encaixada) contém um item que, que realiza fonologicamente o C, o
pied-piping de todos os traços do constituinte-Wh passa a ser obrigatório.
A permanência do Wh in situ resulta na agramaticalidade da sentença.10
É o que se pode observar em (12d) e (13d), logo abaixo:
O problema em (ii) é facilmente explicado pelo fato de o CP da matriz não conter um
traço [+Wh], considerando que se trata de uma declarativa comum. (i) é ruim com ou
sem a entonação focal no Wh. Isso pode estar relacionado com a natureza da percepção
num e noutro: em (8), a percepção é de uma entidade: o que João viu foi a pessoa que
Maria beijou; contrariamente, em (9), a percepção é a de um evento: o que João viu foi
o evento, o acontecimento de Maria beijar alguém. No primeiro caso (8), o operador tem
uma natureza deinida, há aí um traço de deinitude (pode-se o substituir pela perífrase
aquele/aqueles que). No caso de (9), a natureza do operador é totalmente indeinida:
é a identidade do beijado que se interroga.
9
Fato já descrito em trabalhos como Lobato (1986), Mioto (1994) e Medeiros Junior (2005).
10
Pode-se sugerir que o item lexical que em C seja a realização morfológica do traço
[+Wh]. A realização morfo-fonológica desse traço evidenciaria uma visão forte do
Critério-Wh de Rizzi (1991). Uma alternativa pode ser entender essa questão nos
termos do que propõe Watanabe (2006), que se trata de um traço pied-piper, que exige
a presença de material fonológico em Spec-CP.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
953
(12) a. O João viu quem?
b. Quem o João viu?
c. Quem que o João viu?
d. *que o João viu quem?
(13) a. Quem o João viu espirrar?
b. O João viu QUEM espirrar?
c. Quem que o João viu espirrar?
d. *que o João viu QUEM espirrar?
Observe-se que em sentenças como (13b), não é possível inserir
o item que. Esse procedimento torna a sentença agramatical:
(14) *O João viu QUEM que chegar?
Essa pode ser considerada mais uma evidência de que não há de
fato uma camada CP na constituição estrutural desse tipo de ininitiva,
o que conduz à avaliação de outras propostas estruturas para tais
construções.11 Nas subseções a seguir, avalio outras propostas de análise
estrutural dadas a esse tipo de sentença.
2.2 Uma análise em termos do VP
Felser (1999) sugere inicialmente que complementos ininitivos
de percepção direta poderiam ser analisados como VPs nus. A derivação
de uma estrutura como a que aparece em (15) se daria da forma como
se vê em (16):
11
Um problema potencial para a análise que faço aqui da agramaticalidade de (15)
pode ser delineado como segue. No caso de se querer sustentar uma análise do CP,
pode-se tentar explicar a agramaticalidade de sentenças como (15) com base em uma
incompatibilidade entre as propriedades selecionais de verbos de percepção direta como
ver e o C que ele toma como complemento. Verbos desse tipo selecionam um C[-inito];
a presença do complementador caracteriza o C como [+inito] automaticamente: essa
seria a explicação para a má formação da sentença. Ou, poder-se-ia avaliar essa questão
como uma incompatibilidade entre os traços de C e T. Um complementador exige um
T inito e temos aqui uma sentença ininitiva.
954
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
(15) We saw John draw a circle.
(16) We saw [vP Johni [v´… tsee … [vP ti [v´ draw [vP tdraw [VP tdraw [DP a circle]]]]]]].
A autora, entretanto, argumenta – com base na apreciação de
construções com there – que uma análise em termos de um VP nu também
enfrenta alguns problemas. Seja a sentença em (17):
(17) We wouldn’t like to see [there arrive any problems from this]
(FELSER, 1999, p. 101)
A ideia é que posições argumentais dentro do sintagma verbal
devem ser ocupadas por expressões θ-marcadas; a geração de there (um
expletivo puro) no especiicador de VP ou mesmo vP não seria uma
possibilidade viável.
Nessas circunstâncias, caso se assuma a hipótese de que
inacusativos não apresentam a projeção vP, é preciso considerar que o
expletivo em (18) deve estar ocupando o especiicador de outro núcleo
funcional acima de VP:
(18) ... see [γP there [VP [V´ arise [DP any problems]]]]
Com base nessa argumentação, Felser propõe uma análise das
ininitivas em questão como sendo Sintagmas Aspectuais. Para ela, a
única coniguração adequadamente capaz de descrever o que acontece
em complementos ininitivos de verbos de percepção é a que se mostra
em (19) a seguir, em que o vP ininitivo é selecionado por um núcleo Asp:
(19) [CP [vP [VP [AspP [vP [VP]]]]]].
A ideia original de Felser é que os verbos se movam para Asp
e a posição de Spec-AspP sirva de local de pouso intermediário para o
sujeito da ininitiva, em seu caminho até o Spec do vP na matriz onde
valora o traço de Caso.12 Nessa posição, segundo essa proposta, seriam
gerados os expletivos puros em sentenças como (18).
12
Embora desde Pollock (1989) assuma-se que o alcance do verbo em inglês é mais
baixo do que em francês, na análise de Felser, ele sai do domínio lexical e é alçado ao
domínio de Asp para que, (como já dito anteriormente) ativando a projeção aspectual,
o Spec da projeção sirva de local de pouso para o sujeito em seu caminho para uma
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
955
A hipótese de AspP pode ser útil para avaliar questões referentes a
partículas verbais como (-ing) do inglês [como em I saw John draw(ing) a
circle] ou (-ndo) do português, na constituição de gerundivas [Eu vi o João
anda(ndo) na rua]. Trata-se, portanto, de uma alternativa viável de análise,
considerando a argumentação da seção anterior de que a hipótese do CP
deve ser descartada. Essa análise, entretanto, não se mostra tão adequada
para a análise dos dados do português, considerando a existência nessa
língua de lexão do ininitivo. A seguir, avalio a questão do TP e proponho
ser esta a opção mais viável de análise, considerando o fato de ininitivos
do português apresentarem a possibilidade de aparecerem lexionados.
2.3 A hipótese do TP
Trabalhos como o de Emonds (1976) propunham que orações
ininitivas complementos de verbos de percepção seriam derivadas de
ininitivas plenas com o apagamento obrigatório da partícula to; essas
construções deveriam, portanto, ser interpretadas como elementos
sintáticos de natureza I (TPs em termos minimalistas). Trabalhos como
os de Borer (1986) propõem alternativamente que esse tipo de sentença
seja encabeçado por um Inl de natureza degenerada, o que justiicaria
o contraste entre o tipo de comportamento de sentenças plenas (com a
partícula to) ou defeituosas (sem o to).
Felser (1999) mostra-se contrária a esse tipo de análise. Para ela,
não há evidências suicientes para airmar que complementos de verbos de
percepção direta derivem de ininitivas comuns com o apagamento de to
ou mesmo que contenham um núcleo temporal não inito foneticamente
não realizado. Um dos argumentos que a autora utiliza para defender sua
hipótese é o de que há claras distinções semânticas entre as ininitivas
encabeçadas por to e as ininitivas complementos de verbos de percepção
direta.
Recentemente Hornstein, Martins e Nunes (2008) argumentam
que complementos ininitivos de verbos de percepção apresentam duas
possibilidades de estrutura: podem ser CPs ou TPs, fato que é deinido
posição de caso. O que Felser propõe (1999, p. 123) é que considerando que ocorra o
alçamento do DP objeto para uma posição mais alta um segundo Spec em vP) e do DP
sujeito para o domínio do v na matriz, supõe-se que o verbo tem necessariamente de ter
se deslocado para a projeção aspectual. Mesmo assim, há uma diferença (entre inglês
e francês) no alcance do verbo; em inglês ele permanece mais baixo que em francês.
956
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
pelo tipo de predicado que os integra (CP no caso de conterem um
predicado proposicional/epistêmico e TP, no caso de apresentarem um
predicado eventivo). As sentenças em (20) e (21) a seguir exempliicam
cada um dos casos discutidos pelos autores:
(20) John saw them hit Fred
(21) John was seen to know French
(HORNSTEIN; MARTINS; NUNES, 2008, p. 198-200)
Segundo esses autores, a atribuição de Caso ao nominal sujeito
do ininitivo em casos como (21) acontece com base em duas operações
distintas,13 devidas ao fato de que tanto o ininitivo, quanto o nominal
sujeito, encontram-se equidistantes do núcleo do verbo leve da matriz,
o qual atribui Caso excepcional ao NP:14
1. Ocorre uma primeira operação de checagem com o ininitivo (que
se comporta como um nominal); e
2. Ocorre uma segunda operação de checagem com o DP sujeito.
Os dados que por ora analisamos apresentam sentenças ininitivas
do tipo de (21), constituídas por predicados eventivos; encaixam-se,
portanto, na análise de tais estruturas como TPs.
Uma análise em termos do TP para o português parece mesmo
mais adequada, apesar da consistente argumentação de Felser em favor do
VP, (delineada em 2.1), por se considerar a possibilidade da ocorrência de
lexão (de pessoa e número) em ininitivos do português,15 contrariamente
13
O panorama dessa abordagem é o da checagem de traços.
A argumentação inal é que Inglês e Português Europeu comportam-se da mesma
maneira quanto ao fenômeno, apesar da evidente diferença entre as línguas, considerando
o caso de a segunda apresentar ininitivos lexionados.
15
Conforme apontado a mim por Juanito Avelar (c.p.), uma alternativa seria assumir
que o núcleo ASP portasse os traços-φ necessários para uma operação Agree com
ininitivos lexionados. Uma projeção ASP, entretanto, não resolve os problemas que
os dados do presente trabalho levantam quanto à necessidade de se focalizar o Wh in
situ para que a sentença seja aceitável. Necessita-se, portanto de uma projeção focal
para que se valore o traço de foco. A esse respeito, cf. seções 3.1 e 4.2.
14
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
957
ao que acontece na língua inglesa.16 No presente trabalho, não precisarei
lançar mão dos detalhes menores da proposta de Hornstein, Martins e
Nunes (2008), mas passo a assumir que ela seja a mais adequada para o
tratamento dos dados da língua, ao se levar em consideração a lexão do
ininitivo.17 A seguir, encaminho-me à segunda parte da argumentação,
a saber, a análise das construções com Wh focalizado (apresentadas na
introdução), com o intuito de explicar por que (5a) e (6a) são agramaticais
em contraste com (5b) e (6b) e como as sentenças em b se relacionam
com as que aparecem em c.
3 Movimento-wh e a questão dos traços
Tendo avaliado a estrutura de complementos sentenciais em
construções de percepção direta como TPs, passo agora à análise dos
dados postos em (5) e (6), tentando explicar a assimetria apresentada
entre as sentenças em (a) e (b).
3.1 Por que Whs se movem?
Em Cheng (1991), toda instância de movimento-Wh é
interpretada como um procedimento que resulta na tipiicação sentencial.
O deslocamento de um sintagma-Wh para a periferia da sentença serve
para tipiicá-la como interrogativa.
Segundo Cheng (1991), línguas que não dispõem de movimento
sintático de sintagmas-Wh apresentam outra estratégia para tipiicar
16
Observe-se que Horntein, Martins e Nunes (2008) estendem essa proposta para o inglês
(mesmo apesar das diferenças evidentes entre as duas línguas quanto à lexão do
sujeito), por entenderem que se trata de um comportamento uniforme dos ininitivos
nesse contexto sintático.
17
Não há, na argumentação de Hornstein, Martins e Nunes (2008), a proposição de
qualquer distinção estrutural de sua proposta em relação a hipóteses do VP como a
defendida por Felser (1999) (conforme apontado por um dos revisores deste paper); toda
a argumentação desses autores centra-se nas propriedades do português (por apresentar
lexão no ininitivo) e na necessidade de se obter uma explicação que dê conta das
peculiaridades desse tipo de dado. Como mencionado acima, assumo a hipótese em
questão em razão das mesmas questões, mesmo entendendo que uma derivação com a
projeção de Asp poderia resolver algumas das questões. A discussão da nota 15 acima,
de certo modo, pontua essas questões.
958
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
uma sentença como interrogativa; por exemplo, o uso de partículas
interrogativas. De acordo com essa visão, as línguas se distinguiriam
parametricamente quanto a apresentar movimento-Wh ou partículas
interrogativas.
Desde Chomsky (1995), propõe-se que aplicações de movimento
são sempre condições de último recurso, que decorrem da presença de
traços não-interpretáveis. Em termos gerais, traços formais que não sejam
interpretáveis em LF precisam ser veriicados e eliminados no decurso
da derivação a im de que se garantam condições de interpretabilidade
na interface.
Supõe-se que uma relação de checagem (nessa fase do programa
a visão é a de checagem) ocorra entre um núcleo funcional que carrega
determinado traço (em geral [–interpretável]) e um item lexical
compatível em termos de traços; supõe-se que o mesmo traço no item
lexical seja +interpretável, à exceção do traço de Caso.
Numa relação de checagem, uma operação denominada Attract
atrai para o domínio de checagem de um núcleo X0 apenas os traços
necessários para a checagem; se o mínimo que Attract conseguir carregar
for toda a categoria, temos a aplicação de movimento em sintaxe aberta.
Isso deve, no entanto, por razões de economia, ser evitado ao máximo:
sempre que possível, apenas os traços devem ser movidos.
Considerando que o mínimo necessário para convergência em
PF seja o deslocamento de toda uma categoria, o movimento deve ser
permitido. Uma vez no domínio de checagem de X, α veriica o traço
[–interpretável] do núcleo e o elimina, embora o mesmo traço em α,
sendo [+interpretável], ainda permaneça visível para a aplicação de outras
instâncias de checagem de mesma natureza. Segundo Chomsky, uma
categoria α pode ser concatenada ou alçada ao domínio de checagem de
um determinado núcleo; no caso da elevação, a categoria pode ser movida
à posição de Spec do núcleo ou pode sofrer adjunção. (CHOMSKY,
1995, p. 395)18 Chomsky considera que o traço-Wh seja [+interpretável]
18
Em Chomsky (2000) e trabalhos subsequentes, a arquitetura das operações formais
implicadas na constituição da linguagem sofre uma reformulação substancial. Nesse
trabalho inicial lança-se o programa de Fases, cujas bases vêm sendo exploradas em
muitas investigações até hoje. Na seção 3.3, apresenta-se uma discussão que avalia
essa nova “fase” do programa e que é a perspectiva adotada nesse trabalho. A visão
de fases anteriores do programa pode ser interessante para avaliar pontos especíicos
em momentos especíicos.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
959
em sintagmas-Wh e [–interpretável] nos núcleos C de interrogativas.
Parametricamente, as línguas se distinguem por terem esse traço forte ou
não (o que determina sua veriicação antes ou depois do ponto conhecido
como Spell-Out, em que todos os traços fonológicos são retirados e
mandados para a fonologia). Línguas como o inglês exempliicam o
primeiro caso; elas têm o traço-Wh forte e apresentam inevitavelmente
movimento visível do sintagma-Wh. Línguas do tipo do chinês ilustram o
segundo caso, o das que possuem um traço-Wh fraco e nunca apresentam
movimento aparente de palavras-Wh.
3.2 Para onde Whs se movem?
Convencionalmente se supõe que Whs em sentenças interrogativas
comuns encontrem-se em Spec-CP, de onde operam sobre toda a sentença,
caracterizando-a como interrogativa típica (cf. CHENG, 1991). É nessa
posição que se encontram em coniguração propícia à checagem com
um núcleo C0 que contém um traço [-Wh], já que o c-comanda (cf.
CHOMSKY, 1995).
Desde Rizzi (1997), tem-se interpretado o CP como um sistema
complexo cuja funcionalidade se presta à resolução de questões a priori
discursivas. Para Rizzi (1997), o CP se constitui de uma série de posições
funcionais para as quais sintagmas podem ser movidos, principalmente
devido a questões de fundo discursivo. O CP cindido de Rizzi (1997)
tem a seguinte coniguração:
(22) ForceP [Force0 [TopP [Top0 [FocP [Foc0 [TopP [Top0 [FinP [Fin0
[IP]]]]]]]]]]19
19
Obviamente, para além das questões de ordem discursiva, há questões de ordem
sintática e até mesmo morfológica para a proposição da cisão do sistema CP. Parte
da argumentação de Rizzi, por exemplo (1997, p. 283), tem a ver com as questões
relativas à complementação (que tocam a parte mais alta da sentença) e às questões
voltadas à initude (que tocam a interface de C com T), razões sintáticas no que tange
à existência de tópicos e à distribuição de sujeitos pós-verbais, bem como a interação
dessas estruturas com a ocorrência de expressões focalizadas (RIZZI, 1997, p. 287).
Mais debates sobre essa questão podem ser vistos em Guesser e Quarezemin (2013)
e Quarezemin (2009).
960
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
Segundo Rizzi (1997), na língua inglesa, o Spec-FocP hospeda
sintagmas-Wh em interrogativas matrizes, após a incorporação de I em
Foc.
Nas perguntas encaixadas, entretanto, o pronome interrogativo
não pode seguir o constituinte marcado com Foco; nesses casos o traço
[+Wh] é selecionado diretamente pelo predicador da matriz e precisa
estar adjacente a ele:
(23) *I wonder Tom, why anyone would want to meet.
Assim, entende o autor que em interrogativas encaixadas do
inglês o sintagma-Wh não pode estar focalizado.
Postos em avaliação, os dados do português parecem demonstrar
um comportamento um tanto diferente. Observe-se que uma interrogativa
encaixada comum como (24) pode ser parafraseada da maneira como
se vê em (25):
(24) A Maria quer saber [quem pegou o dinheiro do cofre].
(25) A Maria quer saber [quem foi que pegou o dinheiro do cofre].
Como se pode observar, é possível clivar o constituinte-Wh em
interrogativas indiretas do português, exatamente como o que ocorre em
interrogativas matrizes nessa língua:
(26) a. Quem você viu no parque?
b. Quem foi que você viu no parque?
Assim, é apropriado entender que, tal como ocorre em italiano (cf.
RIZZI, 1997; BIANCHI, 1999), em interrogativas indiretas do português, o
traço [+Wh] é realizado em I0, que se move para Foc, exatamente como
nas matrizes, e o sintagma-Wh pode ter seu traço checado em Spec-FocP.
Retomemos aqui o paradigma posto em (5) e (6), reproduzido a
seguir como A e B:
(A) a. *O João viu quem espirrar.
b. O João viu QUEM↑↓ espirrar?
c. Quemi o João viu ti espirrar?
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
961
(B) a. *A Maria ouviu quem chorar.
b. A Maria ouviu QUEM↑↓ chorar?
c. Quemi a Maria ouviu ti chorar?
Observando com cuidado os dados em (A) e (B), percebe-se, em
ambos os casos, que o sintagma-Wh porta um traço de Foco. Em b, a
entonação focal salva a sentença da agramaticalidade (vista em a); em c,
entende-se, com Rizzi, que o sintagma-Wh esteja em Spec-FocP e, passo
a propor daqui em diante (seguindo KATO, 2004)20,21 que o traço-Wh
seja checado sincreticamente nessa posição.
Se o que se propõe acima estiver correto, começamos a delinear
aqui uma provável explicação para o paradigma que se encontra nos
dados em (5) e (6), em que só se obtém sentenças bem-formadas quando
o sintagma-Wh que as integra apresenta uma entonação focal.
Antes, todavia, precisa-se discutir a aplicação de movimento para
projeções focais. A pergunta é: há alguma evidência de que o movimento
para posições focais seja ativado por checagem?
20
Para mais debates sobre a questão, ver Kato (2004).
Além da discussão para o português encontrada em Kato (2004), Rizzi (1997, p. 298)
já propunha que o local de pouso de sintagmas-wh interrogativos movidos seja o Spec da
projeção focal, considerando a impossibilidade de adjacência entre expressões não-wh
focalizadas e sintagmas wh interrogativos. Nas palavras do autor, “(...) the possibility
that immediately comes to mind is that the question operator sits in the Spec of Foc in
main questions, hence focalized constituents and question operators compete for the
same position and cannot co-ocur.” Como se pode ver, a previsão de que sintagmas-wh
interrogativos se movem para Foc já estava feita desde a organização Rizzi (1997), o
que leva à noção de que o traço wh de palavras-wh é veriicado conjuntamente a um
traço de foco em Spec, FocP. Em Rizzi e Bocci (2017), encontramos a proposição de
uma projeção IntP acima da projeção focal, que hospedaria palavras interrogativas,
alternativamente à proposta de focalização apresentada em Rizzi (1997); isso se propõe
em consonância com a proposta cartográica, a qual prevê que cada traço precisa ser
veriicado por um núcleo distinto. Para nossa análise, entretanto, supor que o sintagmawh nas construções em análise se desloca para IntP após veriicar seu traço de foco não
responde ao fato de termos o stress focal ainda posto sobre o termo, a não ser que se
postule que o wh, mesmo tendo seu traço de foco veriicado, ainda conserva propriedades
fonológicas focais ao se mover para IntP. Deixamos por hora esta questão em aberto e
assumimos aqui Rizzi (1997), entendendo que em Spec, FocP o tgraço-wh seja valorado.
21
962
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
Além disso, há ainda outro problema: se assumimos como em
2.3 que esse tipo de sentença ininitiva não projeta um sistema CP, para
onde estariam se movendo (se é que eles se movem) os sintagmas-Wh
de (5)b e (6)b, para que tenham seu traço-Wh checado, considerando
que as referidas sentenças são claramente bem-formadas?
3.3 Operações formais no programa de fases
Chomsky (2000) inicia uma revisão da derivação de construções
sintáticas numa perspectiva de Fases. A ideia geral é que a complexidade
operacional do sistema é drasticamente reduzida se uma derivação ocorrer
em pequenos estágios, com conteúdo proposicional, derivados a partir
de subnumerações, que se constituem com base no primeiro arranjo de
itens extraídos do Léxico. Entende-se que cada subnumeração contenha
o suiciente para se constituir um objeto o mais próximo possível de uma
proposição. Nessa perspectiva, consideram-se Fases fortes o v*P e o CP,22
por conterem as condições necessárias para que sejam considerados como
tal, a saber, o fato de conterem conteúdo proposicional.
Todo o complexo de operações formais aplicáveis no decurso da
derivação de uma expressão é tido como se aplicando por fases, sendo
limitada a atuação do sistema sobre elementos que estejam no interior
de uma fase, quando ela se completa.
Em Chomsky (2001), operações formais de valoração de traços
se dão por meio de um sistema sonda-alvo (probe-goal). Uma operação
AGREE é disparada quando um objeto sintático é formado e porta traços
não-interpretáveis [u]. Esse objeto se constitui numa Sonda que busca
um Alvo compatível com ele em termos dos traços formais relevantes.
É necessário que Sonda e Alvo estejam ativos para “disparar” Agree.
Sonda e Alvo combinam quando os traços são valorados para o Alvo e
não valorados para a Sonda.
Uma operação de valoração de traços formais pode, assim, acontecer
à distância, com a permanência do alvo em sua posição de Base. Caso a
Sonda contenha um conjunto de traços EPP, esses traços especiais ativam
22
Sintagmas verbais com estrutura argumental completa v*Ps e CPs com indicadores de
força são Fases fortes, mas não TPs ou conigurações verbais “fracas” que não contêm
argumento externo (como o que ocorre em construções passivas ou inacusativas).
Assim, v*P e CP são Fases fortes, e a subnumeração que constitui cada Fase contém
exatamente um v* ou um C.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
963
o deslocamento do Alvo para uma coniguração estrutural especíica em
relação a essa Sonda (posição de especiicador). A existência de traços EPP
associados a uma Sonda, segundo essa visão, está diretamente condicionada
ao fato de tal Sonda possuir um conjunto completo de traços-φ.23 Também
nos trabalhos referidos acima (i.e. CHOMSKY, 2000, 2001) já se instaura
uma discussão acerca da natureza da relação entre C e T, categorias
funcionais correspondentes ao tipo oracional e ao tempo respectivamente.
A ideia é que a existência de um T ϕ-completo está diretamente relacionada
ao fato de ser esse elemento diretamente selecionado por C. Isto é, um T
selecionado por um C possui um conjunto completo de traços-φ; um T que
não seja selecionado por C será sempre defectivo.
A abordagem da relação C-T é, digamos, “energizada” em
Chomsky (2005). Aí, corrobora-se a hipótese de que um T φ-completo é
somente aquele que é selecionado por um C e chega-se além. Supõe-se
que C seja a categoria a que se associem traços-φ e que T apenas os herde
de C, quando de sua seleção por aquela categoria funcional. Se entre o
complexo C-T e um DP ocorre Agree, este último pode permanecer in situ
(com Agree à distância) tendo todos os seus traços formais valorados, ou
pode ser deslocado para a posição de Spec-T, onde ica inativo, com todos
os seus traços valorados e não pode mais ser alçado à posição de Spec-C
(CHOMSKY, 2005, p. 9). Essa discussão é de importância seminal para
as discussões que por ora se instauram. A relação C-T vai se mostrar
determinante para o desenrolar da proposta deste trabalho.24 A seguir,
23
Na argumentação chomskiana, estas são as condições necessárias para “disparar”
agree: que a sonda contenha um conjunto completo de traços phi. Por razões lógicas,
estende-se o mesmo padrão de análise para uma operação de valoração de traços-wh
ou traços focais, com uma sonda compatível em termos desses traços (nomeadamente,
um núcleo C, ou, como se verá mais adiante, o próprio item lexical wh, entendido
como o operador focal).
24
É importante observar aqui que a relação C-T tal como proposta em Chomsky e
adotada neste trabalho não contém qualquer expressão de look ahead ou a postulação
de uma derivação do tipo top-down. Entende-se que a derivação ocorra de baixo
para cima (bottom-up), mas que a numeração, selecionada do léxico, contenha C e T
respectivamente, sendo que C é o núcleo com os traços phi e irá, digamos, descarregar
esses traços em T, no momento em que for concatenado no decurso da derivação. Além
disso, uma proposta como essa não invalida a proposta cartográica de Rizzi, uma vez
que o próprio Rizzi em seu texto, (RIZZI, 1997, p. 28) discute a relação estreita entre
o conteúdo proposicional de C e os traços de initude em T (portanto a relação C-T),
ao propor a projeção Fin como parte do sistema CP.
964
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
passo a discutir a questão do deslocamento para posições focais. Como se
pretenderá mostrar, posições focais encontram-se em domínios com uma
Sonda que apresenta um traço de Foco, que precisa ser compartilhado
por alguma categoria substantiva presente na derivação.
3.4 O que de fato está relacionado ao movimento para posições focais?
Karimi (2003), em análise de dados do persa, airma haver evidência
suiciente para se considerar que movimento para posições focais seja
ativado numa operação de valoração de um traço especíico. Segundo
a autora, essa língua exibe dois tipos de foco: um que aparece dentro
do VP e que denota informação nova e outro que requer uma entonação
(stress) bem acentuada e que expressa interpretação contrastiva.
Em persa, Whs que expressam contrastividade e que recebem
uma acentuação mais proeminente movem-se opcionalmente; além disso,
nessa língua, dois sintagmas-Wh podem sofrer movimento para uma
posição de foco (contrastivo ou identiicacional) na mesma sentença.
Esse tipo de fenômeno, entretanto, sofre uma série de restrições que
apontam para o movimento como resultado de checagem de um traço
[-interpretável] de foco. Sejam os seguintes dados levantados pela autora:
(27) a. KIi bâ
KIj pro fekr-mi-kon-I
who with who
thought-PROG-do-2SG
[CP ti tj be-raghs-e]
subj-dance 3SG
‘It is WHO with WHO you think you will dance?’
É quem com quem você pensa que (você) irá dançar?
b. ??KIi emruz bâ KIj pro fekr-mi-kon-i [CP ti tj be-raghs-e] today
(KARIMI, 2003, p. 298)
Uma das restrições, segundo a autora, é que em caso de movimento
de múltiplos Whs focalizados, tem de haver entre eles adjacência (como
em a); a presença de qualquer elemento entre eles (nesse caso o advérbio
emruz ‘hoje’) resulta na má-formação da sentença (como se vê em b).
O caráter ruim de (27)b sugere que ambos os Whs deslocados
devem estar ocupando dois especiicadores do mesmo núcleo. A estrutura,
portanto, seria algo como o que se vê em (28):
(28) [FocP XPi [XPk [Foc′ Foc [yp ... ti ... tk ... ]]]]
O segundo argumento é constituído com base nos dados a seguir:
965
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
(29) a. [faghat be Kimea]i man ti se ta KETAB dad-am
[
only to Kimea
I
three-part book gave-1sg
“It was only to Kimea that I gave three BOOKs.” (I gave other people
other things.)
Foi apenas a Kimea que eu dei três LIVROS
b. *se ta KETAB man faghat be KIMEA ti dad-am.
Signiicado pretendido: “It was three BOOKS that I gave only to
KIMEA” (KARIMI, 2003, p. 299)
O contraste veriicado em (29) a e b evidencia que a Condição do
Elo Mínimo (MLC) deve ser obedecida quando dois elementos contendo
o mesmo tipo de traço entram em competição por uma mesma posição.25
Observe-se que em (29)a temos o sintagma [faghat be Kimea] e o objeto
direto acentuado KETAB ambos requerendo foco identiicacional. Como
se pode ver, o sintagma [faghat be Kimea] se moveu e o objeto permaneceu
in situ. Quando, porém, em (29)b o objeto se move passando por sobre
[faghat be Kimea], a sentença é ruim. Isso indica que movimento para
posições focais está sujeito à MLC.
O mesmo tipo de efeito é verificado em construções com
duplo-Wh; para que a sentença seja aceitável, um dos sintagmas deve
permanecer in situ. É o que se vê nos dados em (30):
(30) a. KIi
pro fekr
mi-kon-i
WHO _ thought prog-do-2SG
[CP ti bâ
KI
be-raghs-e]
with WHO subj-dance-3SG
‘WHO is it you think will dance with who?’
Quem é que você pensa (que) vai dançar com você?
b. *bâ KIj pro fekr mi-kon-i [CP KIi tj be-raghs-e]
(KARIMI, 2003, p. 299)
25
Ou pode-se avaliar essa questão em termos minimalidade relativizada (RIZZI,
1990), a partir da ideia de que um núcleo relevante para uma operação de veriicação
não pode ser digamos “ignorado” em detrimento de outro depois dele com as mesmas
propriedades. Em outras palavras, um B relevante em termos de traços que intervém
entre A e C impede a relação entre A e C, ou, precisa ele ser o “preferido” na operação,
não podendo ser “ignorado”.
966
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
Segundo Karimi, a sentença em (b) só é bem-formada se o Wh in
situ não receber um acento focal, sendo nesses casos interpretado como
um DP indeinido sem força quantiicacional. Além disso, ainda segundo
a autora, a ordem inal de dois Whs deslocados também sofre um tipo
de restrição, segundo a qual, elementos que podem ser movidos devem
se mover para a posição de especiicador mais próxima dentro de uma
projeção com múltiplos especiicadores (cf. RICHARDS 2002).26 Assim,
em dados como os que se encontram a seguir, se o Wh mais baixo não
for concatenado na posição de especiicador mais baixa da projeção com
múltiplos especiicadores, a sentença é ruim, (31b). Se, entretanto, o
fronteamento múltiplo de Whs obedece a essa restrição (como em (31a)),
a sentença é bem-formada:
(31) a. KIi bâ KIj pro fekr-mi-kon-i [CP ti tj be-raghs-e]
WHO with WHO thought-prog-do-2SG subj-dance-3SG
b. *bâ KIj KIi pro fekr-mi-kon-i [CP ti tj be-raghs-e]
(KARIMI, 2003, p. 299)
A conclusão é que, se o movimento para posições focais está
sujeito a restrições que regem a aplicação de MOVE, então, esse tipo
de movimento deve estar sendo ativado por checagem de traços não
interpretáveis.
Seria possível pensar que de alguma forma os dados do português
se comportassem de maneira semelhante, no que concerne a elementos
Wh com um traço de foco? Argumento – em seção posterior – que em
português Whs se movem abertamente para Foc após uma operação de
valoração de um traço de foco.
26
Pode parecer que uma proposta como a de Karimi (2003) mostre algum tipo de
incompatibilidade com a proposta cartográica quando a autora, citando Emonds (1976),
menciona a existência de múltiplos especiicadores. De fato, na teoria cartográica de
Rizzi (1997) e Beletti (2004) não se postula tal questão dadas as suas especiicidades.
Talvez esse seja um ponto fraco na argumentação, mas observe-se que é possível avaliar
o que Karimi (2003) aponta como uma projeção com mais de um especiicador de
uma projeção focal como possibilidade de se estarem ativando, em vez disso, as duas
projeções focais disponíveis no sistema CP para tratar dos efeitos de interveniência.
Essa questão não é, entretanto, debatida pela autora, e ica aqui em aberto para análises
futuras.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
967
4 Iniciando a análise
A boa-formação das sentenças (5b) e (6b) indica que todas as
operações formais relevantes ocorreram ou essas derivações não seriam
convergentes. Dessa avaliação, pode-se chegar a um dos dois vieses
explicativos a seguir:
1) Em sentenças desse tipo o Wh encontra-se in situ e os traços
relevantes são valorados por Agree à distância (cf. CHOMSKY,
2001); ou
2) O sintagma-Wh nesses casos não se encontra in situ, tendo sido
afetado por algum tipo de movimento curto, que o deslocou para
outra posição no interior da sentença.
A argumentação que se segue evidenciará que sintagmas-Wh
nessas sentenças não podem estar em sua posição de base e que, portanto,
apenas a segunda possibilidade é de fato viável.
4.1 Movimento e atribuição de caso: o problema do sujeito de ininitivas
Conforme argumentado em 3.3, em Chomsky (2005) intensiicase uma discussão sobre a relação entre C e T. A ideia geral é que os traçosφ de T parecem ser herdados de C. T não possui esses traços no léxico
e passa a apresentá-los se e somente se for selecionado por C. Uma das
evidências que se apresentam em favor dessa hipótese é o fato de não se
poder mover o TP ou a impossibilidade dessa projeção aparecer isolada
de C (CHOMSKY, 2005, p. 10). Assim, deduz-se, logicamente, que ao TP
de uma sentença não-inita não se possam associar traços-φ e que essas
projeções não sejam, portanto, apropriadas para uma aplicação de Agree.
Tem-se que Sintagmas Nominais (NPs/DPs) precisam receber
Caso no decurso da derivação. Considerando que nem na projeção
temática (domínio do verbo leve) nem no domínio de T encontram-se
os traços compatíveis para a atribuição de Nominativo, as sentenças em
(32) e (33) são agramaticais.
(32) *A Maria chegar.
(33) *O João quer a Maria chegar.
968
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
Em ambos os casos, a má-formação da sentença é explicada pelo
fato de o DP “A Maria” não receber Caso Nominativo.
Observe-se, entretanto, que o dado em (34) contém uma
construção bem-formada, em contraste com o que se vê em (33):
(34) O João viu a Maria chegar.
A questão é simples: na sentença em (34), está tudo certo com
o DP “a Maria”.
Conforme mencionado em 2.1, assume-se tradicionalmente que
sujeitos de sentenças ininitivas nessas circunstâncias encontram-se numa
situação de atribuição excepcional de Caso (ECM), em que o DP recebe
Caso do predicador da matriz.27 Se esse é o caso com as sentenças em
questão, (a saber, (5a e b)), podemos assumir, de início, que o DP quem
receba Caso nas mesmas condições.
Observe-se, entretanto, que – sem uma entonação focal especíica
para o sintagma-Wh – a sentença não é convergente:
35) a. *O João viu quem espirrar
b. *A Maria ouviu quem chorar.
Se, entretanto, o sintagma-Wh atinge o sistema CP da matriz,
a sentença converge. O problema de (35) é prontamente resolvido se a
derivação atinge o ponto de (5) e (6)c repetidos aqui como (36) a e b:
(36) a. Quemi o João viu ti espirrar?
b. Quemi a Maria ouviu ti chorar?
O fato é que os dados em (38) revelam algo interessante: se é
possível um tipo de derivação em que o Wh atinge o CP da matriz, é
preciso supor que de algum modo o Wh se desloca abertamente (de início)
internamente à sentença em que é gerado, caso adotemos uma perspectiva
de derivação por fases (como em/à la CHOMSKY, 2000, 2001, 2005).
Observe-se que, caso permaneça interno ao TP encaixado em
sintaxe aberta, o sintagma-Wh jamais poderá ser alçado até o CP da
27
Por enquanto ponho de lado uma análise mais arrojada como a de Hornstein, Martins
e Nunes (2008), em função de uma simplicidade explicativa.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
969
matriz, considerando que, ao se completar a projeção máxima do verbo
leve da oração principal, o domínio da fase (ou seja, o VP da matriz e
tudo o que ele contém) é enviado para Spell-Out e a computação não
tem mais acesso a nada nesse domínio.
Pode-se optar por uma alternativa de análise segundo a qual todo
o procedimento de atribuição de Caso se dê excepcionalmente e que o
traço de Foco funcione como um traço de borda, posicionando o Wh na
periferia da primeira fase forte v*P, de maneira a livrá-lo do efeito de
congelamento (PIC – condição de impenetrabilidade da fase) e de tal
modo que ele possa ser acessado daí por elementos na próxima fase. A
derivação, nesses termos, se daria da maneira que segue:
1) O DP quem recebe Caso excepcional;
2) Um traço de borda (nesse caso o traço de foco) eleva o sintagmaWh para a periferia da Fase forte v*P;
Quando C é concatenado, ocorre toda a relação do sistema
C-T e um traço Wh em C, conjuntamente com um traço de borda (cf.
CHOMSKY, 2005, p. 15), atrai o sintagma-Wh para a posição mais alta,
resultando no que se vê em (36).
Apesar de se poder com essa análise dar conta de alguns fatos
concernentes à derivação desse tipo de estrutura, ainda falta explicar
dados como (37) e a agramaticalidade de dados como (38).
Está claro que, com uma entonação focal (seja ela ascendente
ou descendente) sobre o sintagma-Wh, as sentenças são perfeitamente
viáveis, como o que se vê em (5) e (6) b, repetidos a seguir como (37) a
e b; sem essa entonação, as sentenças não convergem (38) a e b.
(37) a. O João viu QUEM↑↓ espirrar?
b. A Maria ouviu QUEM↑↓ chorar?
(38) a. *O João viu quem espirrar.
b. *A Maria ouviu quem chorar.
A questão que se põe aqui é: como a derivação de (37) ocorre?
Avaliemos essa questão.
970
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
4.2 Aparente Wh in-Situ e a periferia interna da sentença
Já sabemos que, em sentenças ininitivas encaixadas como as que
se avaliam aqui, Whs têm de estar se movendo abertamente, ou não seria
possível a derivação de (36). Também já icou claro que se pode falar
em um traço [–interpretável] de foco, que interage para a existência de
movimento para posições focais. Agora, restam duas questões basilares:
1) Em (37), como se dá a valoração de um traço de foco (e sincreticamente
de um traço [+wh]) com o sintagma-Wh nessa posição (aparentemente
in situ), se já se sabe que não há um CP dominando a construção?; 2) Se
ocorre de fato movimento aberto do Wh para um posição focal em (37),
que posição focal seria essa?
Belletti (2004) argumenta que há razões empíricas para considerar
a existência de uma periferia interna ao IP com características semelhantes
à que se propõe para o CP. Em particular, o fato de que há uma posição
focal interna, que intercala posições de tópico. Para ela, entonações
distintas, bem como interpretações diferentes são associadas a essas
posições, em oposição às posições paralelas na periferia da sentença
(p. 17). Essas diferenças entoacionais e interpretativas seriam devidas a
propriedades da coniguração em si.
A área interna ao IP teria a seguinte coniguração:
IP
(39)
I
TopP
Top
FocP
Foc
TopP
Top
vP
v
VP
A hipótese básica de Belletti (2004) é que a posição focal na
periferia esquerda da sentença está relacionada à interpretação de foco
contrastivo, enquanto a posição interna ao IP detém a interpretação
informacional.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
971
Considerando que a hipótese da existência de uma periferia do
IP esteja correta, passo a argumentar, seguindo Kato (2004), que Whs
aparentemente in situ em português do Brasil são na verdade casos de
deslocamento curto para a posição de foco interna ao IP.28 Essa hipótese
consegue prover uma explicação adequada para o paradigma em (5) e (6).
Conforme observado anteriormente, a derivação de (5) e (6)c
só é possível, se admitirmos movimento aberto do sintagma-Wh para o
especiicador do verbo leve na oração mais alta (em virtude de um traço de
borda). Movendo-se em sintaxe aberta para o Spec-vP, o Wh se encontra
na periferia da fase e pode ser acessado de lá pela sonda da matriz (o
núcleo C) e satisfazer as propriedades desse núcleo funcional.29 Pensemos
na estrutura das sentenças ininitivas em discussão aqui (dados como o
de (37)). Admitiu-se em 2.3 que o que de fato encontramos em sentenças
como (5) e (6) b são TPs encaixados. Assim, supõe-se que o sintagma-Wh
mova-se abertamente para Spec-vP, como argumentado anteriormente,
e esteja então visível para a sonda Foc0 na periferia do verbo leve da
oração matriz. Nesse ponto, ocorre o procedimento de Agree, que valora
o traço Wh e a atração do Wh para a posição do especiicador de FocP,
ativado pelo traço de foco, que, segundo já se assumiu, funciona como
um traço de borda. A derivação se daria da maneira como se vê a seguir:
(40) [CP [TP O Joãok [T viuj [FocP QUEMi [Foc0 [TopP [vP QUEMi [vP tk [VP tj
[TP QUEMi [VP espirrar]]]]]]]]]]]?
Uma pergunta natural a se fazer nesse ponto seria: por que não
dizer que a posição focal contra a qual o Wh veriica seu traço de foco
encontra-se na periferia projetada no TP encaixado?
28
Para uma visão diferente sobre Whs aparentemente in situ, movimento e WhAgreement, cf. Reintges, LeSourd e Chung (2006).
29
Entende-se que esse movimento seja motivado pela existência de um traço de foco
que acaba sendo responsável pelo posicionamento do sintagma-Wh na periferia da
fase, o que se constituiria numa espécie de traço de borda (cf. CHOMSKY, 2005;
BǑSKOVIČ, 2008b). A periferia da Fase, nesse caso, constitui coincidentemente o
ponto em que se dá a checagem do traço de Caso. Também se pode admitir, adotando
argumentação mais recente da teoria que o traço de Caso seja atribuído por Agree à
distância e que o traço de Foco, aqui entendido como um traço de borda, desloca o
sintagma para a periferia da Fase vP.
972
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
A resposta é simples: TPs ininitivos não parecem dispor de uma
periferia interna projetada, a julgar pelo que se vê nos dados em (41) a
seguir:
(41) a. *O JOÃO chegar é importante.
b. *A MARIA comprar um carro surpreendeu a todos.
c. *QUEM chegar incomodou a todos.
Se considerássemos a existência da projeção de uma periferia
interna ao TP nesses casos, o sujeito em questão poderia ser focalizado
nessa posição específica e as sentenças seriam convergentes,
contrariamente aos fatos. Nos contextos em que a ininitiva não é
selecionada, o foco tem de recair sobre todo o TP:
(42) a. O JOÃO CHEGAR é importante.
b. A MARIA COMPRAR UM CARRO surpreendeu a todos.
Apenas (42)a é a resposta apropriada para a pergunta: o
que é importante?, não (41)a; assim como somente (42)b responde
adequadamente à pergunta: o que surpreendeu a todos? E não (41)b.
Seja (37) repetido a seguir como (43):
(43) a. O João viu QUEM↑↓ espirrar?
b. A Maria ouviu QUEM↑↓ chorar?
Em (43), o sujeito-Wh pode ser focalizado, ao passo que em
(42) – sentenças ininitivas não encaixadas – só é possível focalizar todo
o TP. Conclui-se que, em casos como (43 a e b), o sujeito-Wh precisa
estar sendo focalizado no TP matriz e não no encaixado, já que se supõe
não haver uma posição focal no TP ininitivo.
Conforme se argumentou anteriormente, muitas das propriedades
de T são derivadas da relação dessa categoria com C, como a presença
de traços-φ ou de traços EPP. É provável que a capacidade do vP de
projetar uma periferia esteja também diretamente condicionada ao fato
de ser encabeçado por um T que seja necessariamente selecionado por
C. TPs ininitivos (não selecionados por C, portanto) não conteriam um
vP capaz de projetar uma periferia.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
973
Resta avaliar, então, o que causa a agramaticalidade em sentenças
como (44) a e b.
(44) a. *O João viu quem chegar
b. *A Maria ouviu quem chorar
Considere-se que, se o Wh (quem) em questão não atingir
abertamente o especiicador do verbo leve da matriz, o domínio dessa
fase sofrerá Spell-Out, assim que ela se completar, e nada mais poderá ser
acessado em seu interior para quaisquer operações posteriores do sistema;
isso constitui o que se chama PIC (Condição de Impenetrabilidade da
Fase).
Suponhamos, assumindo Boškovič (2008b),30 que a PIC seja algo
de natureza estritamente fonológica31 e que certo elemento (dotado de
uma espécie de traço de borda – uK) precisa ser movido para a periferia
de uma dada fase, para atender a exigências da fonologia. Nessa posição,
esse elemento acha-se disponível para ser acessado pela derivação em
fases posteriores, podendo ser pronunciado em outra posição na sentença.
Imaginemos, como já se argumentou, que seja exatamente o
traço de Foco o responsável pelo movimento aberto do sintagma-Wh
para o domínio do verbo leve da matriz. Um sintagma-Wh nesse tipo
de construção que não adentre a Numeração portando um traço de Foco
não é movido e, nesse caso, preso dentro da fase mais baixa, contém
um traço-Wh não valorado, o que explica a má-formação das sentenças.
Se a ausência do traço de Foco resulta no não-alçamento do
sintagma-Wh em sintaxe aberta para o domínio do verbo leve da matriz,
então, esse elemento não acessa a projeção Focal no domínio do TP mais
alto, nem tampouco conseguirá atingir o CP da matriz, e permanecerá
Ponho aqui de lado especiicidades da proposta de Boškovič (2008b), que representa,
na verdade uma revisão do sistema Agree de Chomsky. Segundo essa nova ideia, o item
lexical dotado de um traço K (uK) é movido para a periferia da fase e, na posição de
especiicador de uma projeção funcional, torna-se a sonda, busca o alvo e dispara Agree.
Trata-se, portanto, de uma inversão de EPP. É provável que uma análise nesses termos
seja bastante interessante. Todavia, como disse, ponho de lado essas questões especíicas
e assumo a ideia de que a PIC tenha mesmo natureza absolutamente fonológica.
31
Segundo essa visão, por razões interpretativas, sucessivas fases podem ser violadas
pelo sistema computacional, mas em termos fonológicos, nada pode ser retirado do
interior de uma fase quando ela se completa e seu domínio é enviado para Spell-Out.
30
974
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
com um traço Wh não valorado;32,33 dessa forma, a sentença não converge
em LF.
Assim, a conclusão a que se chega é que o que se tem em sentenças
como (37) é um caso de Wh aparentemente in situ. Sintagmas-Wh nessas
sentenças encontram-se de fato fora da sua posição de base, movidos
por um traço de borda (nesses casos um traço de Foco) (o que tem a ver
com as propriedades do sujeito de uma ininitiva que complementa um
verbo de percepção) e pela necessidade de valorar um traço de Wh, numa
projeção focal no domínio do TP mais alto.
Se a hipótese de que a focalização de sujeitos de ininitivas que
complementam verbos como ver e ouvir é um recurso para explicar
sentenças com wh estiver correta, ela faz uma previsão de que seja
possível focalizar outros DPs nas mesmas condições, a saber, sujeitos
32
Considero aqui que o CP da matriz contenha um traço-Wh forte a julgar pela existência
de sentenças como (i) a e b, em que o Wh se encontra na periferia da matriz:
(i) a. Quemi o João viu ti chorar?
b. Quemi a Maria viu ti espirrar?
Se assumirmos a visão de que o traço formal é algo que se encontra no item lexical e não
no núcleo funcional (cf. SIMPSON, 2000; BOŠKOVIČ, 2008a, 2008b) talvez possamos
dar a esse tipo de sentença um tratamento interessante.
Um traço de borda (uK) no sintagma-Wh seria responsável por posicioná-lo no
especiicador de um núcleo na borda de uma fase, para que ele, como sonda, busque um
núcleo compatível em termos de traços, libere Agree e resolva seus requerimentos formais.
Entretanto, se assumimos essa visão e admitimos que em (i) a e b há projeções focais
antes do CP da matriz nas quais o traço de foco do sintagma-Wh poderia ter sido
veriicado, encontramos um problema para essa análise. Se assumirmos com Chomsky
(1995) o sistema Agree tradicional em que o núcleo funcional é o portador do traçoWh que deve ser eliminado e que um mesmo sintagma-Wh pode participar de várias
operações de checagem numa mesma derivação, resolvemos esse dilema. Como se
trata de uma questão controversa, deixo-a aqui em aberto para investigações futuras.
33
Outra questão relevante é a seguinte: se não consideramos que esses dados tenham
natureza interrogativa, temos de levar em conta o fato de que o C0 da matriz não
contém um traço-Wh forte; sua força é declarativa. Mesmo que todo o procedimento
descrito para os dados com foco no Wh se processe, o sintagma-Wh termina a derivação
portando um traço não veriicado. O fato é que dados desse tipo podem representar
uma evidência em favor de hipóteses como as de Boškovič (2008b) e Simpson (2000),
segundo as quais é o item lexical em si (o sintagma-Wh), em vez do núcleo C0, quem
contém um traço que precisa ser veriicado.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
975
de sentenças ininitivas complementos de verbos de percepção, já que
as operações previstas num e noutro caso são basicamente similares.34
Observe-se que isso é de fato possível, em contextos discursivos
especíicos, em que as condições de focalização se aplicam:
(45) Cada um dos rapazes viu uma menina chorar; o João viu QUEM chorar,
a Maria ou a Ana?
(46) O João viu a MARIA chorar.
Um problema para esta análise vem com dados como o que se
apresenta em (47) a seguir.
(47) O João viu a Maria beijar QUEM?
Se a hipótese de que a sentença ininitiva não projeta uma periferia
estiver de fato correta, não deveria ser possível derivar Wh focalizado
nas condições em que está, conforme o que propõe Kato (2004). Essa
questão, dada a assimetria que se veriica entre posições se sujeito e
complemento para a aplicação de operações sintáticas, ica em aberto
para investigações posteriores.
5 Considerações inais
Procurei mostrar neste trabalho que sentenças com Wh
aparentemente in situ em perguntas encaixadas ininitivas do português
representam na verdade casos de Whs movidos para uma posição
focal interna ao TP. Tentei mostrar que o movimento para foco deve
ser entendido – num viés Minimalista – como um procedimento de
checagem de traços e que só uma opção de movimento aberto para Foco
em português pode explicar os fatos posto pelos dados em (5) e (6)c.
Busquei evidenciar que uma interação entre as propriedades
de ininitivas que complementam verbos de percepção e a questão do
deslocamento-Wh e de procedimentos de focalização são a chave para
tentar explicar o paradigma posto em (5) e (6).
34
Ressalte-se aqui que isso pode ser suposto desde que o DP, qualquer que seja ele,
adentre a derivação portando um traço de foco, assim como se supõe que ocorra com
o sintagma-wh.
976
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
Em minha argumentação, também busquei mostrar que, em
português, o traço-Wh de um sintagma dessa natureza é checado
sincreticamente junto com um traço de Foco numa projeção focal,
considerando o fato de que as sentenças postas em questão aqui só
convergem se o Wh recebe um Stress focal proeminente.
Uma análise foi proposta para interrogativas infinitivas
encaixadas com base em uma tipologia verbal. Argumentou-se que em
sentenças ininitivas encaixadas que contêm um verbo inacusativo o
traço de Foco do sintagma-Wh é checado contra a projeção focal que
domina o verbo leve da matriz e que, em casos de verbos inergativos
ou transitivos comuns, o traço de Foco (e conjuntamente o traço-Wh) é
checado contra o núcleo Foc0 projetado no domínio do TP encaixado.
Agradecimentos
Agradeço a Esmeralda Negrão pela discussão desse trabalho no XXXI
Encontro Nacional da ANPOLL, ocorrido em Campinas em 2016.
Suas ideias foram incrivelmente valiosas. Eu assumo, é claro, toda a
responsabilidade pelo que está dito aqui.
Referências
BELLETTI, A. Aspects of the low IP area. In: RIZZI, L. (Ed.). The
structure of CP and IP: the cartography of syntactic structures. New York:
Oxford University Press, 2004.
BIANCHI, V. Consequences of antisymmetry: Headed Relative
Clauses. Berlin: Mouton de Gruyter, 1999. Doi: https://doi.
org/10.1515/9783110803372
BORER, H. I-subjects. Linguistic Inquiry, MIT Press, v. 17, p. 375-416,
1986.
BOŠKOVIČ, Z. Move vs Agree. Handout apresentado no Curso de
Sintaxe Minimalista. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008a.
BOŠKOVIČ, Z. Driving Force and Freezing Effects. Handout apresentado
no Curso de Sintaxe Minimalista. São Paulo: Universidade de São Paulo,
2008b.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
977
CHENG, L. L. S. On the Typology of WH-Questions. 1991. Dissertation
(Doctorate) – MIT, 1991.
CHOMSKY, N. Barriers. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1986.
CHOMSKY, N. The Minimalist Program. Cambridge, Mass: MIT Press,
1995.
CHOMSKY, N. Minimalist Inquiries: The Framework. In: MARTIN,
Roger; MICHAELS, David; URIAGEREKA, Juan (Ed.). Step by step:
Essays on Minimalist Syntax in honor of Howard Lasnik. Cambridge,
Mass.: MIT Press, 2000.
CHOMSKY, N. Derivation by Phase. In: KENSTOWICZ, M. (Org.). Ken
Hale: A Life in Language. Cambridge, Mass: MIT Press, 2001.
CHOMSKY, N. On Phases. Ms. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2005.
EMONDS, J. A Transformational Approach to English Syntax. New York:
Academic Press, 1976.
FELSER, C. Verbal Complement Clauses – A Minimalist Study of Direct
Perception Constructions. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins
Publishing Company, 1999. Doi: https://doi.org/10.1075/la.25
GEORGE, L. Analogical Generalization in Natural Language Syntax.
1980. Dissertation (Doctorate) – MIT, 1980.
GUESSER, S.; QUAREZEMIN, S. Focalização, cartograia e sentenças
clivadas do português brasileiro. Revista Linguística, UFRJ, Rio de
Janeiro, v. 9, p. 30-63, 2013.
HORNSTEIN, N.; MARTINS, A. M.; NUNES, J. Perception and
Causative Structures in English and European Portuguese: φ-feature
Agreement and the Distribution of Bare and Prepositional Ininitives.
Syntax, Wiley Online Library, v. 11, n. 2, p. 198-222, 2008. Doi: https://
doi.org/10.1111/j.1467-9612.2008.00105.x
KARIMI, S. Focus movement and the nature of uninterpretable features.
In: CARNIE, A.; HARLEY, H.; WILLIE, M. (Ed.). Formal approaches
to function in Grammar. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins
Publishing Company, 2003. Doi: https://doi.org/10.1075/la.62.21kar
978
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
KATO, M. A. Two types of wh-in-situ in Brazilian Portuguese.
Georgetown Round-Table in Languages and Linguistics. Washington,
DC, 2004.
KAYNE, R. Connectedness and Binary Branching. Dodrecht: Foris,
1984. Doi: https://doi.org/10.1515/9783111682228
KOSTER, J.; MAY, R. On the constituency of ininitives. Language,
Washington, v. 58, p. 116-143, 1982. Doi: https://doi.org/10.2307/413533
LOBATO, L. M. P. Sintaxe gerativa do Português. Da Teoria padrão à
teoria da regência e ligação. Belo Horizonte: Vigília, 1986.
MEDEIROS JUNIOR, P. Sobre Sintagmas-Qu e Relativas Livres no
Português. 2005. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília –
UnB, Brasília, DF, 2005.
MIOTO, C. As interrogativas no português brasileiro e o critério WH.
Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 29, n. 2, p. 19-33, 1994.
POLLOCK. J.-Y. Verb movement, UG and the structure of IP. Linguistic
Inquiry, MIT Press, v. 20, p. 365-424, 1989.
QUAREZEMIN, S. Estratégias de focalização no português brasileiro:
uma abordagem cartográica. 2009. Tese (Doutorado em Linguística) –
UFSC, Florianópolis, 2009.
RADFORD, A. Syntactic Theory and the Structure of English: a
Minimalist Approach. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
Doi: https://doi.org/10.1017/CBO9781139166706
REINTGES, C. H.; LeSOURD, P.; CHUNG, S. Movement, WhAgreement, and Apparent Wh-in-situ. In: CHENG, L.; CORVER, N.
(Ed.). Wh-Movement – Moving on. Cambridge. Mass: MIT Press, 2006.
REULAND, E. On the Governing Properties of Ininitival Markers. In:
FRETHEIM, T.; HELLAN, L. (Ed.). Papers form the Sixth Scandinavian
Conference of Linguistics. Trondheim: Tapir, 1981.
RICHARDS, N. Movement in Language. Oxford: Oxford University
Press, 2002.
RIZZI, L. Residual Verb Second and the Wh Criterion. Technical Reports
in Formal and Computational Linguistics 2. Geneva: University of
Geneva, 1991.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018
979
RIZZI, L. The Fine Structure of Left Periphery. In: HAEGMAN, L.
(Org.). Ellements of Grammar. Dodrecht: Kluwer, 1997. p. 281-337. Doi:
https://doi.org/10.1007/978-94-011-5420-8_7
RIZZI, L.; BOCCI, G. The left periphery of the clause – primarily
illustrated for Italian. In: EVERAERT, M.; VAN RIEMSDIJK, H.
C (Ed.). Blackwell Companion to Syntax, II edition. New Jersey:
Wiley-Blackwell, 2017. Doi: https://doi.org/10.1002/9781118358733.
wbsyncom104
RIZZI, L. Relativized Minimality. Cambridge: MIT Press. 1990
RODRIGUES, P. A. Les Compléments Infinitifs et Gérondifs des
Verbes de Perception em Portugais Brésilien. 2006. Tese (Doutorado) –
Universidade de Quebec, Montreal, 2006.
ROUVERET, A.; VERGNAUD, J. R. Specifying Reference to the
Subject: French Causatives and Conditions on Representations. Linguistic
Inquiry, MIT Press, v. 11, p. 97-202, 1980.
SIMPSON, A. Wh-Movement and the Theory of Feature Checking.
Amsterdam: John Benjamins B. V, 2000.
WATANABE, A. The pied-piper feature. In: CHENG, L.; CORVER, N.
(Ed.). Wh-Movement – Moving on. Cambridge. Mass: MIT Press, 2006.