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Repressão ao funk: entrevista a Raphael Tsavkko Garcia para matéria na seção Level do site Medium, 17–20 Jan. 2020 Carlos Palombini Por que o funk segue sendo perseguido? Como se dá essa perseguição (pela via judicial e policial)? A resposta curta é por racismo. A história das culturas musicais afro-brasileiras mostra claramente isso. Foram perseguidos a capoeira, o candomblé, seus tambores, o samba, seu pandeiro, o violão, as Festas da Penha, Toni Tornado, Erlon Chaves, Wilson Simonal, o movimento Black Rio, como são perseguidos — e mortos — MCs, DJs e a “massa funkeira”. Essa perseguição é parte de uma guerra de classes, com lutas pela manutenção de uma hegemonia cultural. O Departamento Geral de Investigações Especiais (DGIE), braço da inteligência política da ditadura, começa a investigar o fenômeno soul em abril de 1975. A perseguição se reaviva em 1976, com ataques ao movimento agora chamado Black Rio desencadeados por matéria de Lena Frias no Caderno B do Jornal do Brasil. Recrudesce a repressão policial aos bailes e propagam-se na imprensa as preocupações de personalidades como Gilberto Freire e Júlio Medaglia acerca da ameaça afro-americana. Michael Hanchard, em Orfeu e o poder, e Paulina Alberto, em “Quando o Rio era Black”, mostram que as acusações são contraditórias. Após o surgimento da música funk carioca, entre a segunda metade dos anos 1980 e o início dos anos 1990, um ponto de inflexão são os chamados arrastões de 1992, explorados pela Rede Globo com fins eleitorais. Desde então, o termo “funkeiro” substitui “pivete” na mídia. Vêm depois projetos de lei na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, investigações de MCs, a interdição de diversos bailes em clubes suburbanos e, em 1999, a CPI do Funk na Assembleia Legislativa do Estado. Ainda em 1999 surge no Jornal do Brasil, em 10 de setembro, uma das primeiras referências ao temo “proibidão”. Trata-se do CD Proibidão do rap, encontrado pela Polícia Civil na Fazendinha, no Complexo do Alemão, cujo resultado é a prisão do MC Sapão. Pouco depois, em 7 de novembro, o Jornal do Brasil noticia a apreensão, pelo 16º Batalhão de Polícia Militar, da “matriz de um CD pirata de funk e rap que homenageia o Comando Vermelho” na Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha. No decurso da primeira década do século XXI, a Alerj promulga nada menos que cinco leis para regulamentar os bailes, cujo epicentro se desloca para as favelas. Enquanto isso, proliferam ataques da Polícia Militar aos bailes de favela e pipocam inquéritos policiais como o de 2005, com nomes e fotos de MCs estampados nas capas dos tabloides O Dia, em 30 de setembro de 2005, e Meia Hora, em 26 de maio de 2006. Esses nomes incluíam os MCs Frank, Sapão, Catra, Tan, Cula, Sabrina, Cidinho, Doca, Duda do Borel, Menor do Chapa, Colibri e Menor da Provi, no primeiro; e Colibri, Sabrina, Frank, Duda, Catra, Menor do Chapa, Menor da Provi, Doca, G3, Cidinho, Tan, Cula, Sapão e Mascote, no segundo. Também em 2006 os MCs Granada e Fuzil, dois policiais do 9º Batalhão, são presos por cantarem os “proibidões da PM”. A ideia vinga na Baixada Santista e o 21º Batalhão, no Guarujá cria o proibidão da PMESP, que dá origem a uma investigação, em 2008. No Rio, outro ponto de inflexão é, no mesmo ano, a implementação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que acabam com alguns dos principais bailes de favela ou os submetem a negociações restritivas, inclusive através de editais de apoio à cultura: o da Chatuba (no Complexo da Penha), o do Cantagalo (entre Copacabana e Ipanema), os da Árvore Seca e do Pistão (no Complexo do Lins), o do Mandela (em Manguinhos), o da Providência (na Gamboa e no Santo Cristo) etc. Um terceiro ponto de inflexão são, em 2010, as prisões dos MCs Frank, Max, Tikão, Dido e Smith, corolário melancólico da Guerra do Rio, mais um capítulo das desastrosas intervenções federais na segurança pública do Rio de Janeiro (depois do projeto Cimento Social, fruto do apoio de Luiz Inácio Lula da Silva à candidatura do senador Marcelo Crivella à prefeitura, que resulta no chamado Leilão da Providência, em 2008, quando integrantes do Exército entregam três funkeiros para serem executados por uma facção). De consequências dramáticas para as carreiras de pelo menos dois deles, o episódio da prisão dos MCs Frank, Max, Tikão, Dido e Smith mostra claramente a articulação entre Polícia Civil, mídia corporativa e poder judiciário na criminalização de artistas. Sobre os ataques da PMERJ aos bailes nesse período, cito o depoimento de Vincent Rosenblatt, fotógrafo francês radicado no Rio de Janeiro. O primeiro caso diz respeito ao Baile da Chatuba da Penha e ocorreu na madrugada de domingo, 27 de setembro de 2009: Naquele dia parece que o arrego não foi pago, e todos os novinhos ao redor do baile diziam: “hoje, não sei, vai vir caveirão”. Mas o baile encheu como sempre, e é isso que deixa perceber a força e a importância visceral do funk para a juventude do Rio. Porque ao fim e ao cabo todo o mundo arrisca a vida por seu baile. A celebração, o ritual do baile, é tão importante que chega a ser religiosa. É um rito social de tamanha relevância que aceitamos arriscar a vida. E chegou o caveirão, chegou a polícia. O barulho dos tiros criou o pânico. Porque o movimento resistiu e o caveirão não conseguiu subir a ladeira. Imagine cinco mil pessoas correndo de uma direção a outra. Havia uma saída afunilada do outro lado. Todo o mundo pisoteado, a equipe derrubada. Caixas caem em cima de uma moça, que fica presa lá. E o baile, completamente lotado, torna-se um mar de sapatos femininos, manchas de sangue no chão, a mesa do DJ pisoteada, CDs esparramados respingados de sangue. Por milagre ninguém morreu, ninguém. A moça que ficou presa debaixo do equipamento teve apenas um ferimento no pé. Eu estava no palco, fotografava dançarinas, quando ele voou sob pressão desse mar humano. Virou e ficou apoiado nas caixas de som. Fiquei embaixo. As dançarinas estavam bem. Foi um milagre. Mas o pior provavelmente tenha sido no Chapadão. Uma semana depois, novamente por uma história de arrego, a polícia vem e destrói o baile do Chapadão, com caveirão que consegue chegar até a equipe de som, se joga contra ela, rouba a mesa do DJ. Ouvi claramente os bandidos dizerem, quando souberam que o caveirão estava na ladeira, que ninguém trocaria tiros com a polícia pois havia muitas crianças. E meteram o pé. Ficamos nós e as crianças. Lembro ter-me abrigado num bar, e optamos por não fechar a grade para mostrar que não havia nada. Mesmo assim, quem arriscava colocar a cabeça para fora, era rajada de tiros. Jogaram uma bomba de efeito moral, gás de pimenta lá dentro: gente vomitando, jovens chorando. Durou um bom tempo, com o barulho terrível do caveirão a se jogar contra a equipe de som. Uma cena de guerra. Na década seguinte, no estado de São Paulo, foram executados: (1) o MC Felipe Boladão (Felipe Wellington da Silva Cruz), na Praia Grande no dia 10 de abril de 2010, aos 20 anos de idade; (2) o DJ Felipe da Praia Grande (Felipe da Silva Gomes), na mesma ocasião, com a mesma idade; (3) o MC Duda do Marapé (Eduardo Antônio Lara), com nove tiros, no Centro de Santos na madrugada do dia 12 de abril de 2011, aos 27 anos de idade; (4) o MC Primo (Jadielson da Silva Almeida), com onze tiros, em São Vicente no dia 19 de abril de 2012, aos 28 anos de idade; (5) o MC Careca (Cristiano Carlos Martins), com três tiros na cabeça, em Santos no dia 28 de abril de 2012, aos 33 anos de idade; (6) o MC Daleste (Daniel Pedreira Senna Pellegrine), no palco, com dois tiros, em Campinas no dia 7 de julho de 2013, aos 20 anos de idade. Exceto por Daleste, essas execuções apresentam características comuns: homens encapuzados em motocicletas, no mês de abril, o que sugere um ritual paramilitar. No Rio de Janeiro, foram assassinados: (1) o dançarino Gambá (Gualter Damasceno Rocha), espancado e asfixiado após sair do baile do Mandela 2 no dia primeiro de janeiro de 2012, aos 21 anos de idade, ao que tudo indica, por um policial em função de segurança privada; (2) o DJ Chorão (Raphael Rodrigues da Paixão), torturado e esquartejado no Complexo da Maré, no dia 22 de setembro de 2012, aos 26 anos de idade, por integrantes do Comando Vermelho; (3) o dançarino DG (Douglas Rafael da Silva Pereira), no Pavão-Pavãozinho, no dia 21 de abril de 2014, aos 26 anos de idade, por um policial militar. Cito apenas os nomes mais conhecidos pois a categoria funkeiro se confunde com a categoria favelado, e os números de mortos entre jovens negros de periferia, especialmente pelas forças ditas de segurança pública, são calamitosos. Dos ataques da PMERJ e do Bope aos bailes no período, listo apenas três, todos em maio de 2012. Na madrugada de terça-feira, dia 8, a tropa “de elite” destruiu a bala o equipamento de uma equipe no baile do Arará, em Benfica. Na madrugada de domingo, dia 13, a tropa “de elite” usou toucas ninja para incinerar todo o equipamento da equipe Expresso 54 no baile da Pedreira, em Costa Barros, além de fraturar duas vértebras e quebrar dois ossos da bacia do proprietário, hospitalizado em estado grave. Na madrugada de sábado, dia 26, policiais militares incineraram parte do equipamento de uma equipe e roubaram o restante no baile do Barrinho, em Belford Roxo. Ao findar da década, com a ascensão de governos de extrema-direita ou neofascistas, tivemos, no Rio, a prisão do DJ Renan da Penha em 2019, cortesia do Ministério Público, e, no mesmo ano, um inquérito sigiloso contra os DJs Polyvox e Iasmin Turbininha, do qual nada se pode dizer, por “sigilo”. Em São Paulo, a perseguição culmina, na madrugada de domingo, primeiro de dezembro de 2019, numa operação de emboscada e assassinato pela Polícia Militar que vitima fatalmente nove frequentadores do baile da DZ7, em Paraisópolis: (1) Gustavo Cruz Xavier, o Risadinha, de 14 anos, estudante do nono ano do ensino fundamental, que trabalhava em um supermercado; (2) Marcos Paulo Oliveira dos Santos, de 16, o Guti, estudante do segundo ano do ensino médio; (3) Dennys Guilherme dos Santos Franco, de 16, estudante do segundo ano do ensino médio; (4) Denys Henrique Quirino da Silva, de 16, estudante e auxiliar de serviços gerais em uma loja de tapetes e estofados; (5) Luara Victoria de Oliveira, de 18, estudante do ensino médio, desempregada; (6) Gabriel Rogério de Moraes, de 20, leiturista terceirizado de uma concessionária de energia; (7) Eduardo Silva, de 21, mecânico; (8) Bruno Gabriel dos Santos, de 22, operador de telemarketing desempregado; e (9) Mateus dos Santos Costa, de 23, vendedor de produtos de limpeza. Por fim, o Ministério Público colocou-se no encalço das carreiras dos chamados MCs-mirins — Pedrinho, Brinquedo, Melody, Pikachu, Princesa e Plebeia, Doguinha, Vilãozin — como já o fizera, no início da década anterior, com o MC Jonathan. A perseguição ao funk vige em amplo espectro de orientações políticas, da extremadireita à esquerda moderada, na qual encontra intelectuais estabelecidos e obscuros para justificá-la: entre os primeiros, Marcia Tiburi, em 2011, na revista Cult, e Vladimir Safatle, em 2015, na Folha de S. Paulo e na TV Cultura; entre os segundos, Alexandre Figueiredo, em blogs sucessivos como o Mingau de Aço e o Linhaça Atômica. Ela permeia praticamente todas as instituições do Estado e encontra amplo respaldo na sociedade, mesmo que bom número de indivíduos e entidades se disponha a enfrentá-la. O que explica de um lado termos Anitta fazendo sucesso e do outro a criminalização do funk nas favelas? O fato de Anitta não morar na favela, porque a criminalização propriamente dita, que é diferente da execração cultural da qual ela também é vítima, se dirige letalmente ao 3 morador de favela, mas sua cultura sobrevive e é sugada da periferia para o centro. O dístico da equipe Chatubão Digital sintetiza: “o som à prova de balas”. Encarnado em Anitta, em M.I.A., em Diplo, no Bonde do Rolê, em Dennis DJ, o funk está menos sujeito a “balas perdidas”, que escolhem seus alvos na economia informal. Como é a realidade do funk fora dos holofotes da mídia, nas comunidades etc. — ainda existe a imagem do funk proibidão, do funk puramente sexual ou violento? A partir de 2010, o proibidão começa a passar por uma série de metamorfoses que levam praticamente a sua extinção. Alguns MCs continuam a praticá-lo. São os casos do MC Poze do Rodo, responsável por um revival, e do MC Orelha, cuja carreira está inextrincavelmente associada ao subgênero. Seus traços sobrevivem em outros subgêneros, como a montagem, a ostentação e o pop funk. Desconheço a existência de um funk “puramente sexual ou violento”, tanto porque música não é sexo nem violência quanto porque nenhum sexo é “puramente sexual” e nenhuma violência “puramente violenta”. Mas a imagem existe, tanto sob os holofotes da mídia quanto no imaginário de muito “funkeiro da antiga”, para o qual existe um “funk do bem” (o seu) e um “funk do mal” (o das gerações que lhe tomaram o espaço). De maneira resumida, como nasce o funk e se espalha pelo país, ou seja, qual a origem do estilo e porque se tornou um sucesso? O funk carioca é um gênero de música eletrônica dançante que resulta de apropriações afrobrasileiras de gêneros derivados do rhythm and blues afro-americano. No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, o soul e o funk afro-americanos atuaram como catalisadores de bailes da classe trabalhadora nos quais identidades contra-hegemônicas — i.e., negras, ao invés de miscigenadas — se cultivaram. No desenrolar dos anos 1980 esses gêneros foram substituídos por equivalentes contemporâneos, até que os bailes do grande Rio deram origem a uma música própria através de apropriações do funk, do hip-hop, do electrofunk, do electro, do Latin freestyle, do Miami bass etc. No decorrer dos anos 1990 o novo gênero passou por um processo de nacionalização ao combinar percussões e vozes afro-brasileiras com bases importadas, entre as quais o “808 Betapella Mix”, do DJ Battery Brain, o que acabou por levar à base tamborzão de 1998. Até o final da primeira década do milênio, a cidade do Rio de Janeiro foi o centro criativo e econômico do funk, com donos de equipes sujeitando MCs e DJs a contratos extorsivos que os privavam da maioria, se não de todos, os seus direitos autorais. Embora a distribuição pela Internet tenha contribuído para modificar esse cenário, a perseguição do Estado a bailes, MCs e DJs levou o Rio a certa estagnação a partir de 2010, quando a capital paulista se estabeleceu como um centro, com monopólios como a GR6 e a KondZilla a oferecerem gerenciamento de carreira e condições de trabalho mais vantajosas. Outras capitais, como Belo Horizonte, Vitória e Porto Alegre, desenvolveram cenas locais com características próprias em regime de trocas com São Paulo e Rio. O gênero é sucesso e se expande há mais de três décadas por sua habilidade em renovar-se ano a ano; por sua diversidade; por suas capacidades de incorporar elementos de outros gêneros musicais, de hibridar-se, de servir de campo de experimento para a criatividade de diferentes segmentos sociais, de plataforma para a personificação de diversas identidades, às quais fornece uma arena de confrontos jocosos, e de ser meio de ascensão social e lazer para uma juventude numerosa com perspectivas de trabalho frustrantes, cujos 4 anseios ele exprime; e, finalmente, por seu humor irreverente, a testar, desde 1989, os limites da liberdade de expressão. 5