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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 O silenciamento do universo LGBT no telejornalismo maranhense1 Ingrid Pereira de Assis2 Karla Cristina Ferro Freire3 Melina de la Barrera Ayres4 Resumo Com o objetivo de observar o espaço ocupado por pautas que abordem de alguma forma a comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) e, mais especificamente, notícias relacionadas à violência cometida contra este grupo social, este artigo analisa matérias jornalísticas veiculadas pelos três principais telejornais maranhenses, entre os anos de 2015 e 2018. Para alcançar os resultados divulgados neste artigo, mesclaram-se procedimentos metodológicos quantitativos e qualitativos. Com a análise, concluiu-se que há um silenciamento das notícias relativas a este grupo social, dentro do espelho de pautas, bem como de suas demandas. Tal ocultação acaba funcionando como uma segunda violência, o que coloca em cheque a função humana e social do jornalismo. Palavras-chave: Jornalismo; LGBT; preconceito; telejornalismo; silenciamento. Introdução Observando o telejornalismo praticado no canal de maior audiência no Maranhão, a TV Mirante, percebeu-se que a ausência de temas relacionados ao universo LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais). Esta constatação motivou a realização desta pesquisa que tem como objetivo analisar o modo como são noticiadas as demandas da comunidade LGBT e as violências cometidas contra este grupo social, nos três principais telejornais maranhenses, entre os anos de 2015 e 2018. Trabalho apresentado na DT 1 – Jornalismo do XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, realizado de 30 de maio a 1 de junho de 2019. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC - Brasil); mestre em Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA - Brasil); e bacharel em Comunicação Social – Hab. Jornalismo, também pela UFMA, Brasil. E-mail: ingrid.p.assis@hotmail.com. 3 Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA - Brasil); e bacharel em Comunicação Social – Hab. Jornalismo, também pela UFMA. E-mail: karlafreire@yahoo.com.br. 4 Professora do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). PósDoutora em Jornalismo pela UFSC e Doutora em Ciências Humanas pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: melina.ayres@gmail.com. 1 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 Para procedimentos alcançar os resultados metodológicos divulgados quantitativos e neste artigo, qualitativos. mesclaram-se Primeiramente, selecionaram-se todas as matérias que abordavam de alguma forma o as vivências da comunidade LGBT, focando nas menções diretas. Posteriormente, avaliou-se a abordagem dada a esse material coletado. Concomitantemente, em cada edição, coletaram-se matérias que apresentavam um viés heteronormativo e que reforçavam o silenciamento da comunidade LGBT5. Por fim, estes dados foram cruzados com observações participantes realizadas pelas autoras na redação dos telejornais analisados. É importante ressaltar que o trabalho com aspectos sociais exige do pesquisador uma maleabilidade com relação aos recursos metodológicos utilizados. Segundo Martin W. Bauer, George Gaskell e Nicholas C. Allum: “Uma cobertura adequada dos acontecimentos sociais exige muitos métodos e dados: um pluralismo metodológico se origina como uma necessidade metodológica” (BAUER; GASKELL; ALLUM, 2002, p. 18 e 19). Esta pesquisa tem como corpus edições diárias dos três principais telejornais do veículo de comunicação de maior alcance no Estado do Maranhão, a Rede Mirante de Televisão6, ou TV Mirante. São eles: o Bom Dia Mirante, o JMTV 1ª edição e o JMTV 2ª Edição (audiência de 57%, 67% e 71%, respectivamente, medida pelo Ibope, entre maio e agosto de 2018). Foram analisadas as edições dos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018. Ao todo, o Bom Dia apresentou 1.043 edições, destas, 14 não estavam disponíveis ou estavam parcialmente disponíveis na Globoplay7. Do JMTV 1ª Edição e do JMTV 2ª Edição, foram 1.253 edições de cada. Do primeiro, cinco edições apresentavam problemas e do segundo apenas um dia não estava disponível8 (Anexo 19). Esta investigação atravessa dois momentos distintos, porém, complementares. O primeiro consistiu a coleta e análise dos três telejornais do canal já mencionado. No 5 Estes dados não serão explorados neste artigo. Ainda assim, vale a menção, pois ajudam a compor o contexto analisado. 6 A Rede Mirante de Televisão abrange 216 municípios maranhenses e mais de cinco milhões de telespectadores potenciais, com sedes localizadas nas cidades de São Luís, Imperatriz, Santa Inês, Caxias e Balsas. Em todas, é líder de audiência. Isto torna o veículo um objeto de observação adequado e relevante. 7 Plataforma de streaming criada e desenvolvida pelo Grupo Globo. Todos os telejornais da TV Globo e afiliadas são fragmentados e postados nesta plataforma. A análise realizada neste artigo iniciou com a coleta do conteúdo disponível nesta plataforma. 8 Tendo em vista o número pequeno de edições não avaliadas, ou avaliadas parcialmente, considera-se que as aferições realizadas neste artigo não se alterariam por causa da ausência deste material. 9 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=11TZdVygYaNldvFA-W-igWnpU2_Ub6tEt Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 segundo momento, confrontaram-se os dados obtidos com a observação participante realizada10. Estes diferentes procedimentos metodológicos permitiram chegar aos dados quantitativos e qualitativos, ambos importantes para que alcançasse o objetivo inicial desta análise. Dados sozinhos não ajudam na compreensão deste objeto de estudo. Conforme frisam Bauer, Gaskell e Allum: os dados “não falam por si mesmos” (2002, p. 24). Estabelecer uma estreita relação entre o enfoque qualitativo e o quantitativo auxiliou quando, por exemplo, os dados desenhavam um contexto pouco claro, e precisavam de aprofundamento para a adequada leitura, como no caso da estudante Stheffany Pereira, que será descrito mais à frente. 1 Por que notícias sobre a comunidade LGTB são importantes? O jornalismo presta um serviço social ao fiscalizar a atuação dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e denunciar situações que atentem contra a dignidade humana, principalmente, em sentido jurídico. No Brasil, a profissão segue as normativas do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Este reforça que: “O exercício da profissão de jornalista é uma atividade de natureza social, estando sempre subordinado ao presente Código de Ética”. Segundo o Art. 6º, deste código, é dever do jornalista se opor ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Declaração destaca, em seu Art. 1º, que: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. Em seu Art. 2º estabelece: “Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. No entanto, as estatísticas mostram a violação dos direitos da comunidade LGBT. O relatório 2017 de Mortes Violentas de LGBT no Brasil, divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) apontou que 445 LGBT11 morreram naquele ano, no país (este 10 A autora Ingrid Pereira de Assis atuou como produtora do JMTV 1ª Edição e repórter, na emissora pesquisada, entre os anos de 2008 e 2016. Já a autora Karla Cristina Ferro Freire, entre os anos de 2011 e 2018, atuou como editora do Bom Dia Mirante, do JMTV 1ª Edição e do JMTV 2ª Edição, sendo, atualmente, editora-chefe do JMTV 2ª Edição. 11 194 eram gays (43,6%), 191 trans (42,9%), 43 lésbicas (9,7%), 5 bissexuais (1,1%) e 12 heterossexuais (2,7%). Na categoria gay, a pesquisa incluiu homossexuais masculinos, andróginos, drag queens, Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 número inclui mortes no exterior). Destes, foram 387 assassinatos e 58 suicídios. Este número representou um aumento de 30% em relação a 2016, quando foram registradas 343 mortes. Já em 2015, foram 319 mortes. Segundo o o documento, a cada 19 horas um LGBT é assassinado ou se suicida vítima da “LGBTfobia”, no Brasil. Isso torna o país um campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais. Este mesmo relatório aponta que, no Maranhão, foram registradas seis mortes, no ano de 2017. Outros dados relevantes podem ser encontrados no relatório divulgado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, intitulado “Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: ano de 2012”12. Segundo este documento, o Maranhão é o quarto Estado brasileiro com o maior número de denúncias de violência contra a população LGBT13 apresentadas ao poder público. A capital, São Luís, concentra o maior número de ocorrências de casos de homofobia no Estado. De acordo com a pesquisa, são 358 casos por 100 mil habitantes no Maranhão, o que equivale a 5,44%. Em primeiro lugar está o Piauí, com 9,23% e em segundo o Distrito Federal, com 8,75% e em terceiro o Ceará, com a taxa de 5,63%. Ainda segundo esta publicação, o Maranhão, mesmo apresentando este índice alto de violência, é o segundo Estado com menor divulgação pela mídia dos casos de crimes cometidos contra a comunidade LGBT, o que corrobora a observação preliminar nos anos delimitados nesta pesquisa. Considerando todos estes aspectos, percebe-se que a este grupo social não lhe é conferida a mesma dignidade e igualdade de direitos. Portanto, o jornalismo deveria denunciar qualquer prática discriminatória contra minorias (incluindo a LGBT, que é o foco deste artigo) e, ao não fazê-lo, está falhando em colocar em prática os preceitos do seu próprio Código de Ética. É valido explicar que a rotina de produção jornalística é complexa e muitos foram os estudos que se voltaram a entender as suas especificidades. Um dos pontos mais delicados é o processo de escolha dos fatos que serão transformados em notícias. Nele, pesam aspectos como interesse público, público-alvo, canal, intenção transformistas e crossdressers (manifestavam identidade e eram socialmente reconhecidos como homossexuais). A categoria trans inclui travestis, mulheres transexuais e homens trans. Dentre os mortos, 12 foram identificados como heterossexuais, mas foram incluídos no relatório pelo fato de terem sido mortos devido a seu envolvimento com o universo LGBT, defendendo algum gay ou lésbica quando ameaçados de morte, ou por estarem em espaços predominantemente gays. 12 Foi o último relatório do tipo divulgado pelo poder público. 13 Esta sigla designa lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Em alguns locais do país, o T, que representa a presença de travestis e transexuais no movimento, também, refere-se à transgêneros, ou seja, pessoas cuja identidade de gênero não se alinha de modo contínuo ao sexo que foi designado no nascimento (crossdressers, drag queens, transformistas, entre outros). Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 comunicativa, jornalistas envolvidos na produção, etc. Objetivando sistematizar o que já foi pensado sobre o assunto, Gislene Silva organizou os principais valores notícias (ou seja, valores identificados nos fatos que possibilitam que estes se tornem notícias) listados por pesquisadores estrangeiros e brasileiros, na segunda metade do século XX, dentre os quais: Nelson Traquina, Mauro Wolf, Michael Kunczik, Manuel Carlos Chaparro, Mário Erbolato e Nilson Lage. A autora identificou que muitos desses valores se repetem e, a partir disto, elaborou uma nova sistematização para análises de acontecimentos a serem noticiados. Dentre os valores-notícia operacionalizados estão: impacto, proeminência, conflito, entretenimento/curiosidade, polêmica, conhecimento/cultura, raridade, proximidade, surpresa, governo, tragédia/drama e justiça (SILVA, 2005). Listados assim, parece muito simples que fatos que se encaixem nesses valores-notícia, automaticamente, estão aptos a se transformarem em notícia. Porém, a equação de escolha do que é ou não noticiável vai muito além dos valores-notícia. Na rotina de uma redação jornalística, entram em jogo outros fatores, tais como manutenção das crenças e interesses dos hierarquicamente melhor posicionados, questões comerciais e políticas, a visão conservadora da audiência e do repórter, e mesmo a interferência dos proprietários da empresa de comunicação. Isso, afeta a escolha dos fatos noticiados e o modo como tais notícias serão abordadas. dá-se o primeiro passo para a compreensão dos fatores que levam o telejornalismo maranhense a se desvirtuar dos princípios éticos da profissão. 2 Comunidade LGBT e Jornalismo As últimas décadas foram marcadas por transformações encabeçadas pelo movimento LGBT. Organizações não-governamentais, grupos sociais e indivíduos trabalharam em uma intensificação dos diálogos com a sociedade, constituindo redes de defesa dos direitos humanos, e, ao mesmo tempo, configurando uma identidade para o grupo. Nenhuma das duas tarefas são fáceis. Nenhuma sigla (LGBT, LGBTQ, LBBTQI, LGBTQ+, LGBTQIAP+) consegue unificar vivências, conceitos, conflitos e disputas sociais extremamente diversificados. Um exemplo de conflito que marca a própria comunidade é a invisibilização das lésbicas, por exemplo, que são eclipsadas nas discussões a respeito do universo homossexual por sofrer um duplo processo de preconceito, tanto pela sexualidade quanto pelo próprio fato de serem mulheres. As Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 travestis, por sua vez, vivenciam um processo de estigmatização pelo estranhamento da modificação corporal e pela relação com a prostituição. Bruno Souza Leal e Carlos Alberto Carvalho, ao abordarem a relação entre as mídias brasileiras e a construção de identidades LGBT, frisam que: [...] é fundamental observar que as identidades LGBT organizam-se diversamente em meio não só às tensões de gênero, às práticas sexuais, mas também de uma vasta gama de outros fatores, entre eles as diferentes conformações econômicas, culturais, regionais e políticas (LEAL; CARVALHO, 2012, p. 7). Mesmo com essas dificuldades, o movimento LGBT conseguiu se estabelecer e obteve avanços significativos, principalmente com relação ao debate contra a homofobia, conforme aponta a pesquisadora Glaucia da Silva Destro de Oliveira: Atualmente, o movimento homossexual encontra-se sob nova estrutura social: forte presença da mídia e de outros movimentos sociais, diálogo com redes internacionais de defesa de direitos humanos, atuação junto às agências estatais, respostas diante das organizações religiosas, manifestações de dia do Orgulho Gay. Seu formato institucional é regido pelo modelo das organizações nãogovernamentais (ONGs) em que certa infraestrutura e organização são exigidas pela necessidade do financiamento e institucionalização. Os autores apresentam a identidade homossexual atual, denominada LGBT, sobre bases mais porosas, cujas fronteiras estão entre a diversão, o comércio e a militância. A mobilização em torno do combate à homofobia tem estado no centro da busca por conquistas no campo dos direitos e da política, num movimento homossexual tão multifacetado, aglutinando demandas e reivindicações (OLIVEIRA, 2010, p. 380). Uma das formas encontradas pelas ONGs em prol da defesa da comunidade LGBT para obter visibilidade e promover o debate público foi realizar eventos (Parada do Orgulho LGBT, por exemplo), historicamente marcados pela grande participação popular e que, consequentemente, alcançaram a cobertura da grande mídia. No entanto, ainda hoje, existem espaços que não são ocupados pela comunidade LGBT na grande mídia, tais como matérias do cotidiano (de comportamento como do Dia dos Namorados, por exemplo, nas quais casais homossexuais raramente aparecem), ou mesmo na cobertura de crimes de ódio ou violência contra homossexuais, aos quais ou não é dada a devida importância, ou o pertencimento à comunidade LGBT é ocultado, seja por decisão da equipe jornalística, pela polícia14 ou a pedido da família da vítima. 14 A Secretaria de Segurança Pública do Maranhão informou, via nota oficial emitida pela Assessoria de Comunicação, que os crimes contra a população LGBT eram contabilizados nas estatísticas como homicídios comuns até setembro de 2018, quando foi criada a Delegacia de Crimes Raciais, Delitos de Intolerância e Conflitos Agrários, que iniciou o processo de classificação para esta modalidade de crime. Além disso, em casos de latrocínio de homossexuais, é comum a polícia omitir a sexualidade da vítima e Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 Michel Foucault, ao tratar sobre a história da sexualidade, aponta que esta é permeada por momentos de repressão. É no século XVII que surgem as grandes proibições, bem como a “valorização exclusiva da sexualidade adulta e matrimonial, imperativos de decência, esquiva obrigatória do corpo, contenção e pudores imperativos da linguagem” (FOUCAULT, 1988, p. 109). Esta repressão sexual “[...] funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio, afirmação de inexistência e, consequentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber” (FOUCAULT, 1988, p. 10). Para além de simplesmente ocultar o discurso sobre o sexo, as diversas instituições (educacionais ou mesmo religiosas, e por que não midiáticas?!) criam modos específicos de falar sobre a sexualidade. Tem-se, aí, um discurso polimorfo e regulado. Segundo Foucault: Em vez da preocupação uniforme em esconder o sexo, em lugar do recato geral da linguagem, a característica de nossos três últimos séculos é a variedade, a larga dispersão dos aparelhos inventados para dele falar, para fazê-lo falar, para obter que fale de si mesmo, para escutar, registrar, transcrever e redistribuir o que dele se diz (FOUCAULT, 1988, p. 35). Já no século XIX, as sociedades são atravessadas pela popularização dos meios de comunicação de massa que, de acordo com José Marques de Melo, passam a influenciar comunidades. Entendemos que os meios de comunicação coletiva, através dos quais as mensagens jornalísticas penetram na sociedade, bem como os demais meios de reprodução simbólica, são ‘aparatos ideológicos’, funcionando, se não monoliticamente atrelados ao Estado, como dá entender Althusser, pelo menos atuando como uma ‘indústria da consciência’, de acordo com a perspectiva que lhes atribui Enzensberger, influenciando pessoas, comovendo grupos, mobilizando comunidades, dentro das contradições que marcam as sociedades (MELO, 2003, p. 73). Considerando estas capacidades de comoção e mobilização, torna-se importante compreender o discurso produzido pelos veículos de comunicação coletiva a respeito da comunidade LGBT. Por que, mesmo correspondendo aos valores-notícia difundidos nacional e internacionalmente entre jornalistas, fatos que envolvem violência contra LGBTs não têm a cobertura dos veículos de comunicação? Por que matérias de cotidiano reforçam em maioria um padrão heteronormativo, silenciando ainda mais a comunidade LGBT? tratar o caso como latrocínio, excluindo do discurso divulgado nos meios de comunicação o fator da homofobia. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 As teorias que se voltaram a compreender o fazer jornalístico se modificaram ao longo dos anos. No ano de 1950, David Manning White desenvolve, baseado na pesquisa sobre as decisões sobre a compra de alimentos, do psicólogo Kurt Lewin, publicada em 1947, a teoria de que o jornalista seria um gatekeeper e a escolha do que passaria ou não pelo “portão” estava mais vinculada às rotinas de produção da notícia e à eficiência e velocidade do que, necessariamente, a uma avaliação individual da noticiabilidade. “A metáfora do gatekeeper ofereceu aos primeiros pesquisadores em comunicação um modelo para avaliar a maneira como ocorre a seleção e a razão pela qual alguns itens são escolhidos e outros rejeitados” (SHOEMAKER; VOS, 2011, p. 23). Mais recentemente, surgiram teorias defendendo que as notícias servem objetivamente a determinados interesses. Trata-se de uma perspectiva instrumentalista baseada em análises de parcialidade. O objetivo era verificar a existência, ou não, de distorções nos textos jornalísticos noticiosos. Para Chomsky, grande representante da teoria instrumentalista de esquerda, a imprensa se submete aos interesses da elite política e econômica. Já Efron, Kristol, Lichter e Rothman, autores de direita, afirmam que os jornalistas formam uma classe social que distorce as notícias para veicular ideias anticapitalistas. Assim, usam a mesma lógica, mas, às avessas. Felipe Pena resume da seguinte forma o desenvolvimento de teorias a respeito das práticas jornalísticas: De forma sintética, a teoria do jornalismo ocupa-se de duas questões básicas: 1) Por que as notícias são como são? 2) Quais são os efeitos que essas notícias geram? A primeira parte preocupa-se fundamentalmente com a produção jornalística, mas também envereda pelo estudo da circulação do produto, a notícia. Esta, por sua vez, é resultado da interação histórica e da combinação de uma série de vetores: pessoal, cultural, ideológico, social, tecnológico e midiático (PENA, 2012, p. 17 e 18). O que se observa mais comumente é um padrão mercadológico, que a cada dia se afasta mais dos ideais éticos estabelecidos na academia sobre o savoir-faire da profissão. De acordo com Bruno Souza Leal e Carlos Alberto Carvalho: Visto dessa forma, ‘quebrado’ em sua aparente inteireza, o jornalismo é concebido como uma rede de tensões peculiar, se inserindo como sujeito nas tramas de força e fuga da vida social. Capaz de ação, o jornalismo é também conformado por tais relações. Nesse sentido, observa-se que as identidades LGBT surgem como particularmente desafiadoras dos modos de falar do jornalismo brasileiro, não apenas por se inscreverem de modo peculiar nos regimes de poder, de luz e sombra, voz e silêncio que constituem a vida social, como por sua diversidade interna. Qualquer abordagem às identidades LGBT Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 tem como pano de fundo as tensões que envolvem, por exemplo, a necessidade de evitar a essencialização e/ou naturalização de realidades cristalizadas, seja a partir de uma concepção biologizante do sexo, seja de concepções de gênero como algo fixo, não cambiante (LEAL; CARVALHO, 2012, p. 5 e 6). Sendo assim, tal diagnóstico de silenciamento de fatos que envolvem a comunidade LGTB colocam em evidência uma violência simbólica, que é tão grave quanto a efetivação física da mesma. A violência é a violação do equilíbrio por meio do uso de uma força. Se há dano, perda ou desequilíbrio, há violência. Segundo Michaud: Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira, direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos há uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais (MICHAUD, 1989, p. 11). Hannah Arendt (1994, p. 37) explica que não se deve confundir violência com o mero emprego da força. Para ela, a força promove movimentos físicos e sociais, mas, quando relacionada ao poder e à autoridade, a força pode ser gatilho para a violência e dominação humana, que podem ocorrer de variadas formas: De acordo com Sodré (2002,p. 12), a primeira é a violência anômica, dotada de crueldade e está cada vez mais perceptível no cotidiano da sociedade. A segunda é a violência representada, alimentada especialmente pelo jornalismo, ‘que tende a visibilizar publicamente a agressão recorrente na vida cotidiana’, e pela indústria do entretenimento, que explora a questão em filmes, programas televisivos em busca de uma maior audiência. A terceira é a violência sociocultural, composta, por exemplo, pela violência racial e contra homossexuais. Já a quarta é a violência sociopolítica, constituída, geralmente, pela repressão imposta pelo Estado. Para Sodré (2002), tal modalidade inclui a violência anômica, originando, por exemplo, o etnocídio (PERUZZOLO; CASAGRANDE, 2012, p. 241). Esta análise volta seu olhar para violência sociocultural e a representada. Regina Facchini e Isadora Lins França, a partir da análise de uma pesquisa de opinião aplicada pela Fundação Perseu Abramo, concluem de que tal violência é legitimada socialmente. O que essa pesquisa parece indicar é que, além da legitimidade social que a violência contra LGBT possui, há a ação importante de convenções sociais acerca do caráter natural da heterossexualidade e que apontam para a homossexualidade como escolha individual - que deve ser mantida no âmbito do privado. A força de tais convenções se expressa na compreensão de que dificuldades decorrentes dessa ‘escolha’ (a violência é encarada nesse sentido) devem ser manejadas pelo próprio sujeito (70% dos entrevistados pela Fundação Perseu Abramo acreditavam que ‘a discriminação contra homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais é uma questão que as pessoas devem resolver entre elas’ ao invés de ser objeto de políticas governamentais) (FACCHINI; FRANÇA, 2013, p. 15). Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 De forma que, o modo como o telejornalismo é praticado no Maranhão poder estar legitimando a violência praticada contra a comunidade LGBT por meio de padrões de ocultação, fragmentação e inversão. Perseu Abramo (2003) explica que existem cinco estratégias para distorcer a notícia, em especial as três citadas anteriormente interessam aqui. Por padrão de ocultação, entende-se a ausência de fatos reais. Já padrão de fragmentação ocorre quando o real é dividido e desconectado dos fatos anteriores, não permitindo uma consciência crítica do contexto. Por fim, o padrão de inversão é quando há troca de lugares e de importância dos fatos. 4 Análise dos dados e conclusões A partir da observação das edições dos três telejornais que foram ao ar entre os anos de 2015 e 2018, montaram-se duas tabelas. A primeira referente aos materiais (reportagens, notas, entrevistas e externas ao vivo) que mencionavam diretamente a comunidade LGBT (Anexo 215). Na segunda tabela, foram sistematizados os materiais coletados passíveis de serem compreendidos enquanto silenciamentos da comunidade LGBT direta ou indiretamente que, conforme mencionado, não será explorada neste artigo. Ambas expõem dados como fatos abordados, datas, telejornais e os formatos nos quais os conteúdos jornalísticos foram transmitidos. Ao todo, nas 3.549 edições dos três telejornais analisados (Bom Dia Mirante, JMTV 1ª Edição e o JMTV 2ª Edição), foram encontrados 16 materiais que mencionavam diretamente a comunidade LGBT. Sete materiais são do Bom Dia Mirante e se dividem entre: quatro reportagens, sendo uma delas casada com uma entrevista no estúdio; duas entradas ao vivo e uma nota coberta. O JMTV 1ª Edição apresentou seis materiais, divididos entre: um debate e cinco reportagens. E no telejornal JMTV 2ª Edição foram encontradas: duas reportagens e uma nota seca. Os 16 materiais podem ser divididos em duas categorias: os que tratam de acontecimentos não violentos e os que abordam violência contra a comunidade LGBT. Na primeira categoria, enquadram-se 9 dos 16 materiais. Dentre os assuntos abordados estão: cobertura de Paradas do Orgulho LGBT; divulgação feita pelo IBGE do número de casamentos homoafetivos no país; a autorização, por parte do MEC, do uso do nome social de travestis e transexuais na educação básica; e, por fim, um desfile de moda que 15 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=11_S36kMtpwfWkbsBkG2HYz7HECCN1s6Y Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 objetivava descontruir os padrões de beleza e trazia como modelo uma drag queen. No primeiro caso, temos uma pauta que, como já dito anteriormente, nasce da articulação de organizações não-governamentais em busca de propagar discussão sobre ações em benefício da comunidade. Nos dois exemplos posteriores, tratam-se de pautas que surgem a partir da ação do poder público em pensar e desenvolver políticas de proteção e direitos específicos para essa parcela da população. E o desfile exemplifica que ações individuais de arte e criatividade podem ser usadas para gerar visibilidade para a comunidade LGBT. Nesta matéria, além de aparecer como modelo, a drag queen é entrevistada, não ficando como mera coadjuvante na cobertura. Em sua sonora diz: “Não existe mais gênero”, como forma de questionar o modelo binário vigente. Na categoria violência, na qual estão concentradas sete das 16 produções jornalísticas, temos dois tipos de materiais: os que se voltam a discutir a violência, seja por meio da arte, ou de matérias educativas que trazem informações pertinentes para quem faz parte da comunidade LGBT e sofre algum tipo de violência; e aqueles com a cobertura de casos de violência contra LGBT. No primeiro grupo, tem-se: - Reportagem sobre como a Lei Maria da Penha ampara os direitos da Comunidade LGBT, veiculada no JMTV 1ª Edição, em 18 de agosto de 2016. A matéria explica que a lei protege quem sofre violência de gênero e violências dentro de relações homoafetivas. - Reportagem sobre o espetáculo “Adaptação”, divulgada no JMTV 1ª Edição, no dia 28 de outubro de 2016. O espetáculo traz o ator Gabriel F. no papel de uma mulher e, em sua sonora, ele reforça que o assassinato de LGBTs precisa ser debatido tendo em vista o fato do Brasil encabeçar o ranking mundial deste tipo de violência. - Nota coberta sobre o lançamento do livro Rota da Liberdade, que foi ao ar no Bom Dia Mirante do dia 6 de julho de 2018. A nota menciona que o livro aborda a homofobia. Já no segundo grupo, encontram-se os seguintes materiais: - Um debate realizado no JMTV 1ª Edição, em junho de 2015, com dois entrevistados em estúdio extra, abordando o caso da transexual Stheffany Pereira, de 23 anos, que foi proibida de usar o banheiro feminino na escola pública Liceu Maranhense. - Uma reportagem veiculada no JMTV 1ª Edição, do dia 28 de março de 2016, que aborda a investigação do assassinado de uma travesti. Nesta matéria, tanto a cabeça lida pela âncora quanto o off da repórter trazem o seguinte fragmento: “Orlando Ricardo do Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 Nascimento, travesti conhecido como Kate” . Além de chamar a vítima pelo nome do seu registro de nascimento “Orlando” e não pelo nome social, a matéria expõe fotos como da vítima antes de se assumir como travesti e depois. A polícia fala que a principal linha de investigação leva a crime de ódio, por Kate ser homossexual. No entanto, o delegado faz questão de frisar que o local do assassinato é um posto de combustível, que é ponto de prostituição e diz que “pode ter sido desentendimento com cliente ou com outras pessoas que estivessem fazendo uma disputa por território”. - Uma reportagem veiculada no JMTV 2ª Edição, do dia 29 de outubro de 2018, que aborda o caso de um estudante da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), que publicou nas redes sociais postagens homofóbicas, machistas e contra a esquerda, logo após a vitória de Bolsonaro nas eleições para presidente do país. - Uma reportagem mostrando que um grupo de advogados ligados à causa LGBT entrou com uma representação contra o estudante este estudante da UFMA, da matéria supracitada, por incitação ao crime, apologia à tortura e injúria coletiva. Esta reportagem foi ao ar no dia 30 de outubro, no JMTV 2ª Edição. Percebe-se com esta sistematização, que o espaço jornalístico voltado a abordar temas que dizem respeito à comunidade LGBT, no canal analisado, é bem pequeno. As pautas realizadas, em sua maioria, são sobre a organização de eventos de defesa dos direitos, tal como a Parada do Orgulho LGBT, que já se institucionalizou nacionalmente e no âmbito local, também. Eventos como este, são difíceis de ignorar dado, principalmente, o número de pessoas envolvidas. Dos 16 materiais que citam diretamente a comunidade LGBT, que foram ao ar nos três telejornais entre os anos de 2015 e 2018, seis abordavam a Parada do Orgulho LGBT, ou seja, 37,5% do que foi coletado. Vale notar que, em nenhuma destas matérias, foi feito o registro da quantidade de pessoas que compareceram ao evento. Esta omissão poderia estar diminuindo a transcendência social do evento que, habitualmente, conta com a participação de milhares de pessoas. Entretanto, todas as reportagens sobre a parada abrem espaço para sonoras de membros da comunidade, além disso, falam sobre violência, preconceito, busca por direitos e prevenção de DSTs. Ou seja, a cobertura não se limita a mostrar a alegria dos participantes e o aspecto festivo e “curioso” das fantasias, dando espaço para discutir “LGBTfobia”, “respeito à diversidade” e “visibilidade”. Vale observar que nos materiais de 2016, a expressão usada ainda é “Parada do Orgulho Gay”. Em 2018, já se Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 observa a mudança para “Parada do Orgulho LGBT”. Ainda assim, a cobertura não tem sido regular, como demonstra o quadro abaixo: Tabela 1:Cobertura das Paradas do Orgulho LGTB (elaborada pelas autoras) 2015 2016 2017 2018 BOM DIA MIRANTE REPORTAGEM (24/08) SEM COBERTURA JMTV 1 JMTV 2 REPORTAGEM (24/08) SEM COBERTURA NOTA SECA (19/08) SEM COBERTURA REPORTAGEM SEM SEM (24/07) COBERTURA COBERTURA REPORTAGEM REPORTAGEM SEM (03/09) (03/09) COBERTURA Fonte: Elaborada pelas autoras (2019) Ao mesmo tempo, é possível notar que também há espaço para temas propositivos, que fogem da abordagem de violências, principalmente, quando a fonte de informação é o poder público. Pautas sobre direitos adquiridos, divulgação de dados sobre o andamento dessas mudanças, ajudam a levantar assuntos que sejam diretamente relacionados à comunidade LGBT. Com relação às pautas de abordam a violência contra LGBTs, percebe-se que há uma defasagem entre o número de casos registrados e a cobertura jornalística. Ainda assim, é importante ressaltar que a cobrança social tem interferido positivamente para que casos de violência por homofobia recebam a devida atenção da mídia. Nota-se isto pela abordagem do caso da transexual Stheffany Pereira. O material produzido ocupou um bloco inteiro da programação do telejornal, ocupando 14 minutos da edição do dia 26 de junho de 2015 (algo que raramente acontece com apenas um assunto), e, além da reportagem, foi realizado um debate sobre o ocorrido, com dois entrevistados. Entretanto, faz-se necessário apontar que a emissora só pautou o fato depois da ampla repercussão de matérias realizadas por outros veículos (os jornais impressos O Imparcial e O Estado do Maranhão, por exemplo). Nas primeiras reuniões de pauta nas quais o assunto foi sugerido, houve resistência de parte da chefia em permitir que se fizesse uma matéria sobre o assunto e o ocorreu um debate entre produtores, repórteres e editores para que o tema fosse pautado. Ou seja, quando o assunto foi preconceito sofrido por uma transexual, só passou a ter valor para a emissora a partir do momento que os concorrentes abordaram, o que inverte, inclusive, a máxima jornalística de correr atrás do “furo jornalístico”. Portanto, ainda que tal Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 discussão represente uma quebra no padrão de silenciamento, ela ainda é permeada por situações que evidenciam a dificuldade de inserção da comunidade LGBT no telejornalismo, mesmo em casos extremos como são os de violência e preconceito. A observação participante das pesquisadoras permitiu notar que, no dia do debate, alguns jornalistas que estavam reunidos na redação faziam comentários jocosos sobre o assunto. Um deles, homem cis hétero, insistia em nomear a Stheffany Pereira pelo seu nome de registro de nascimento. Isto evidencia a falta de preparo para tratar o assunto e os preconceitos enraizados. Demonstra, também, que ações deste tipo são tão comuns e socialmente aprovadas, que o profissional não sentiu necessidade de camuflar tais preconceitos no ambiente coletivo e formal do trabalho. Mesmo apresentando esse tipo de discurso, o jornalista recebe acolhimento de alguns pares que sorriem da troca de nomes. Conforme aponta Márcia Veiga: “Os valores e a hierarquização de profissionais, de notícias e as demais escolhas durante a produção equiparavam-se à normatividade social vigente revelando que os valores-notícias estavam permeados de valores socais e pessoais dos jornalistas” (2014, p. 216). Ainda sobre a cobertura de casos de violência, percebe-se que o veículo raramente aborda crimes de ódio contra LGBTs e, quando o faz, tem dificuldade de realizar uma cobertura que não cometa uma nova violência contra a vítima, como foi o caso do assassinato da travesti Kate. Percebeu-se, na articulação dos dados com a observação participante, que a pressão entre os concorrentes e a reverberação dos casos na sociedade via plataformas de redes sociais, vêm se mostrando eficazes no processo de abrir espaços de divulgação em grandes veículos de comunicação, tal como a TV Mirante. Vale observar, também, que existe outro agente promovedor de pautas sobre a comunidade LGBT: o próprio poder público. Por meio de pesquisas e da divulgação da ampliação de direitos, é possível potencializar o espaço de pautas referentes a comunidade LGBT, indo inclusive, além da cobertura de fatos de violência, promovendo um debate propositivo e positivo frente à sociedade. No entanto, muito do trabalho da impressa esbarra justamente na fragilidade da sistematização de dados. Percebe-se isso com a falta de atualização mais recente do “Relatório sobre violência homofóbica no Brasil”. O último publicado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República data o ano de 2012. Isto dificulta o trabalho jornalístico, que tem como premissas a atualidade e a novidade. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – São Luís - MA – 30/05 a 01/06/2019 Cruzando informações repassadas pela Secretaria de Segurança Pública do Maranhão, nota-se que das 27 denúncias de crimes com características homofóbicas registradas no Estado em quatro anos (2015 a 2018), apenas três casos foram divulgados pela TV Mirante. Isto corrobora a hipótese de apagamento e reforça a concepção de dupla violência contra a vítima: a violência física, que culmina na morte; e a violência simbólica, pelo desmerecimento do crime enquanto possuidor de valor notícia se comparado às demais pautas. O apagamento de práticas de violência contra indivíduos que se identificam com a comunidade LGBT, ou das suas demandas, em um veículo de comunicação, acaba sendo um segundo tipo de violência. Isto se torna ainda mais complicado quanto se fala em uma televisão, por ser uma concessão pública. Indo um pouco além do que Muniz Sodré (2002) frisa, a violência alimentada pelo jornalismo não está contida somente na divulgação da agressão do dia a dia, mas, também, está no silenciamento da violência sofrida por certos grupos sociais, que induz o receptor da mensagem a questionar a validade das reinvindicações desses agentes. Concomitantemente aos dados aqui apresentados, também, foram extraídos e sistematizados em tabela espaços de silenciamento de relações homoafetivas e entre pessoas não binárias. Notou-se que o jornalismo praticado reforça a heteronormatividade a partir das abordagens dadas a determinadas matérias. No entanto, dado o espaço deste artigo, esta discussão não será explorada em profundidade, aqui, mas fica enquanto um caminho a ser seguido a partir da discussão iniciada neste artigo. Assim, para finalizar, reforça-se que esta pesquisa terá continuidade, visando sempre colaborar com discussões em busca de um jornalismo mais ético, melhor realizado e que siga os preceitos dos direitos humanos. Um jornalismo mais preocupado com esses aspectos não estabelecerá uma relação passiva e refém da alimentação de dados por parte do poder público para realizar pautas que abordem o universo LGBT. Além disso, um jornalismo crítico consegue perceber que a ausência de dados devidamente organizados e o sub-registro de casos de violência são dados, que podem se transformar em pautas jornalísticas, e não servir de mero impeditivo para a produção de notícias. Referências ABRAMO, P. Padrões de manipulação na grande imprensa. São. Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. 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