CEMITÉRIOS DE FAZENDA
Cambará do Sul – RS
Airton André Gandon Cardoso
Daniela Cristina Martins Muller
Egiselda Brum Charão
Orientador: Prof. Mestre Harry
R. Bellomo
Este trabalho versará sobre os cemitérios de fazenda localizados fora do
perímetro urbano da Cidade de Cambará do Sul, serão abordados os aspectos
históricos, geográficos, culturais, de preservação da memória e patrimônio
histórico, as cercas de taipas (pedras) e da religiosidade local.
Tem por objetivo, entender a organização espacial e social dos
cemitérios de fazenda, estudar as manifestações religiosas e simbologias
presentes em alguns cemitérios e também a ausência destas manifestações.
Ao mesmo tempo busca refletir sobre a preservação do patrimônio histórico
local: arte local, origens das famílias e taipas de pedra.
Visando tornar esta investigação verossímel, foi realizada uma saída de
campo, com incursão e registro fotográficos, elaborou-se bibliografia criteriosa
pertinente ao assunto e buscou-se apoio nos documentos do Arquivo Histórico
do RS. A presente investigação e as considerações serão apresentados no
evento Raízes de Cambará do Sul – XVIII Encontro dos Municípios originários
de Santo Antônio da Patrulha que se realizará de 28/10 a 01/11/2007.
Este texto versará sobre a organização espacial e social dos cemitérios
da zona rural de Cambará
1
, as manifestações religiosas e simbólicas
presentes em alguns deles bem como a ausência destas manifestações tendo
em vista que:
As sociedades humanas estão em constante transformação ao longo do tempo
e os cemitérios constituem-se vestígios a céu aberto que propiciam aos
historiadores interpretações históricas dessas sociedades. São fontes para a
reconstrução do passado pois viabilizam a compreensão das relações sociais
que se desenvolvem continuamente dentro de determinado grupo social.
(BELOMO, 2000)
Nele constará uma síntese de imagens e possibilidades que
fornecem um panorama dos referidos campos santos, levando em conta que:
O costume dos antigos era enterrar seus mortos não em cemitérios ou à beira
da estrada, mas no campo de cada família... A sepultura estabelecera um
vínculo indissolúvel da família com a terra, isto é, com a propriedade.
(COULANGES, 2006, Pg. 70)
e também o:
O túmulo tinha grande importância na religião dos antigos; porque, por um lado
devia cultuar-se os antepassados e, por outro a principal cerimônia desse
culto, o banquete fúnebre, devia realizar-se no local onde os mortos
repousavam .(COULANGES, 2006, Pg. 69)
Tem por objetivo refletir sobre a preservação e memória patrimônio
analisando a arte, a s famílias e estudando as construções de cercas de pedra
nos campos santos.
O referido trabalho tornou-se viável com a apoio da prefeitura municipal
da cidade que forneceu guia e meio de locomoção através da zona rural, o que
possibilitou o registro fotográfico dos locais. Com o material em mãos, realizouse análise das imagens em função de bibliografia pertinente ao estudo. Antes,
evidentemente traçamos uma síntese geográfica e histórica do local conforme
segue:
Cambará do Sul localiza-se a 187 Km da capital está limitada Pelos
municípios de São Francisco de Paula,
Bom Jesus e o estado de Santa
Catarina é conhecido pela beleza dos canyons2 inexplorados de Fortaleza e
Itaimbézinho (Parque Nacional dos Aparados da Serra), o que caracteriza o
município dentro do contexto nacional)
Fortaleza 3
Itaimbézinho4
O povoamento da região iniciou-se com a doação de 20 hectares de
terra à igreja, realizada em 17 de abril de 1864, por Dna. Ursula Maria da
Conceição em retribuição de uma promessa ao padroeiro São José. O local foi
2
denominado “Campo Bom” e aos poucos foram surgindo as primeiras casas
construídas no inicio de barro entremeado de varas, inclusive as divisórias.
Além dos primitivos habitantes a cidade deve ter se iniciado com membros da
família da doadora. Com a criação do município de São Francisco de Paula em
23 de dezembro de 1902, a localidade passou a ser denominada de São José
do Campo Bom e se constituiu município de Cambará do sul à partir do decreto
do governo de 20 de dezembro de 1963.
Anterior a fundação da cidade existiam as antigas fazendas oriundas das
primeiras estâncias5 ou sesmarias em virtude da divisão das terras tanto pela
venda, quanto pela partilha relacionada a heranças. Das fazendas existentes
e seus respectivos campos santo conseguiu-se catalogar as seguintes:
Cemitério da Fazenda Continental, da Fazenda da Tapera, da Fazenda do
Enésio, da Fazenda Guabiroba (Cel. Zeca..), da Dona Neci (Hotel Parador), do
Dario Cardoso e o cemitério Itaimbézinho.
Parte desses campos, perderam seus referenciais de origem, contudo
ainda é possível encontrar seus vestígios entre florestas e matos pelos seus
marcos (feitos de pedra). Na antiguidade: “cada campo6 deveria estar cercado,
separado do domínio de outras famílias... através de uma faixa de terra de
alguns pés de largura que deveria ficar inculta e que o arado jamais deveria
tocar” (COULANGES, 2006, Pg. 69).
Essa era a indicação que o chão se
tornava para sempre propriedade da famílias, portando acreditava-se que ao
violar um marco se estava violando a família, essa idéia se estendeu aos
campos santos conforme exemplos que estarão relacionados nesta análise.
1- CEMITÉRIO DA FAZENDA CONTINENTAL
Entre os enterramentos da década de 30 e 50 e algumas famílias identificadas foram: Silva,
Klein, Paz, Borges, Ribeiro e Pereira.
3
2- CEMITÉRIO DA FAZENDA TAPERA
Este campo-santo não foi encontrado, provavelmente tenha sido engolido pela plantação de
pinos.
3- CEMITÉRIO DA FAZENDA DO ENÉSIO
Não foi possível coletar dados, tendo em vista que a porteira da propriedade onde se encontra
o mesmo estava chaveada
4- CEMITÉRIO DA FAZENDA GUABIROBA (Cel. Zeca)
5- CEMITÉRIO DA FAZENDA DA DONA NECI
(Hotel Parador)
Identificados apenas a Lápide da Família André Alves da Silva
7- CEMITÉRIO DE ITAIMBÉZINHO
4
Não foi possível identificar nenhum tumulo neste local.
8- CEMITÉRIO DA FAZENDA DO DARIO CARDOSO
Identificada somente as lápides de Ivo de Souza e Lucila de Souza, também nota-se a
mortandade infantil elevado em razão da existência dos enterramentos infantis. .
Em uma análise geral a segregação está presente nos campos santos
das fazendas, em alguns de forma velada, em outros de forma gritante,
conforme observa-se nos cemitérios da Fazenda Guabiroba e no cemitério da
Fazenda Continental7 onde os espaços eram bem divididos. Para os ricos, zelo
e ostentação. Aos pobres, desleixo e descaso. As imagens salientam uma
realidade muito comum na sociedade – a segregação social como um fato que
também se estendia e estende
além da vida, com reflexos claramente
perceptíveis também no “mundo dos mortos”.
Todos os cemitérios localizavam-se no topo de colinas de forma a ser
avistado da casa grande, fato que pressupunha a presença espiritual do
ausente protegendo os familiares viventes.
Propiciavam dessa maneira a re-
elaboração mental da presença do ausente através da recordação visual
constante do morto, advindo assim desse laço invisível, a lembrança diária do
morto que sobrevivia idealizada na memória dos viventes.
Percebe-se que todos os campos santos refletem o esquecimento de
suas origens, isso tornou-se real nos cemitérios: de Itaimbézinho, da Tapera e
no da Fazenda do Dario Cardoso tanto pelo abandono como pela depredação,
os mortos são relegandos ao esquecimento em decorrência da fragmentação
5
das propriedades familiares que prestavam culto em memória dos entes
queridos.
A limitação do espaço geográfico tinha o mesmo significado que a
limitação entre a vida e a morte, assim, construíram cercas de pedra, isto é
marcos8, para proteção da alma e do corpo do morto. Acredita-se que o espaço
era sagrado e ao ultrapassar o campo sagrado violava-se a família do morto,
portanto o estranho que ousasse adentrar ao campo santo, estaria sujeito a
penas terrenas como morte dos animais, colheita e familiares. Essa idéia deu
origem a histórias fantásticas, crendices populares como fantasmas e
assombrações, e também santos de devoção.
Os conjuntos escultóricos dos cemitérios foram confeccionadas em
série, na sua grande maioria, sendo que alguns raros foram esculpidos de
forma rudimentar , isso abre possibilidade de pesquisa relacionada com arte
sobre a origem
e datação das mesmas, bem como procedência de seus
autores entre outros estudos.
SIMBOLOS9 E ALEGORIAS ENCONTADOS NOS CEMITÉRIOS
Os símbolos cristãos transmitem mensagens complexas e diferenciadas
e são encontrados nos túmulos nas lápides, nas esculturas. Carregam um
sentido religioso de múltiplos significados e idéias cristãs. Segundo definição
do Prof. Dr. Moacyr Flores:
O símbolo representa uma realidade, uma idéia, através de um objeto, gesto,
traço, quantidade, palavra ou figura. O significado do símbolo religioso estava
envolvido no mistério e contido num
espaço mágico (FLORES, In:
NEUBERGER (Org.), 2000, 184)
Nos campos-santos de Cambará foram encontrados vários signos
representativos e baseando-se no estudo da simbologia cristã formulou-se
variantes interpretativas sobre seus conteúdos:
6
(1)
(2)
(3)
Entre as imagens analisadas pode-se citar a imagem de Cristo (1)
apontando com a mão esquerda o coração e a direita o céu, interpreta-se a
mesma, no sentido que Deus não vê como homem que olha a aparência, Deus
olha o coração e somente as virtudes contidas nele conduzirão aos caminhos
do céu. Outra é a Imagem de Cristo pregando (2) que condiciona a entrada do
paraíso através da palavra, pois ela é o caminho, a verdade que levam a Deus,
já a figura de Cristo a com a mão esquerda apontando o coração e a direita
aponta quem observa (3) pode ser entendida como amor e amizade que o
coração encerra, o coração é o abrigo da alma e o lugar onde Cristo faz
morada através da fé. (DALMAZ, 2000, Pg. 391) 10
(4)
(5)
(6)
(7)
(8)
A cruz lembra a morte, o nada, o mundo presente (trave horizontal). Mas
também aponta para cima, para a eternidade, para a ressurreição (trave
vertical). Em todos os cemitérios estudados existem várias tipologias de
cruzes11 as quais não serão analisadas,
7
apenas se
observará que foram
encontradas vários modelos, formas e materiais de confecção das mesmas
(madeira, cimento, pedra, mármore e ferro). No entanto salientaremos abaixo o
significado universal das cruzes nos campos santos:
Não queremos dizer que o cristão, colocando a cruz em cima de um túmulo,
tivesse consciência de toda a riqueza deste sinal. Dizemos apenas que este
sinal carregou sempre em si em todas as civilizações antigas, um conteúdo
simbólico extraordinário, como se fosse uma PROFECIA DA REDENÇÃO
UNIVERSAL, presente em todas as culturas. Num túmulo raso e simples, a
cruz enterrada no chão aponta para o nada e aponta para o além.12
(10)
(11)
12
As imagens de anjos que aparecem geralmente possuem asas como os
exemplos acima, verifica-se que são anjos segurando palmas(10), alguns
portando sobre a cabeça a estrela (11) e
outros de mãos postas em
oração(12). Os anjos são tidos como mensageiros de Deus, aqueles que
conduzem a alma do morto aos céus, a palma identifica os mártires pelo duplo
sentido: dor e vitória. Assim, entende-se que o sofrimento conduzirá ao céu
pela mão do anjo de Deus e a representação do mesmo de mãos postas é
sinal de sua intersecção junto a Deus, pela alma do morto.
(13)
Frequentemente nas pesquisas cemiteriais são encontras esculturas em
baixo relevo do aperto de mãos (13), alguns entendem ser um símbolo
maçônico, contudo o aperto de mão maçônico, é caracterizado pela posição
do dedo indicador, ressaltado dos outros, e geralmente pressionando o pulso
8
do colega. Então esse aperto de mão, nos cemitérios em geral pode significar a
representação do amor fraternal, isto é, a mão do anjo que conduz à Deus,
essa idéia deve-se ao fato da existência de mais de uma representação em um
conjunto produzido em série.
(14)
(15)
A alegoria de São Sebastião(14) , santo guerreiro e protetor da natureza,
estilizando a Imagem de Cristo (contém rosas esculpidas em baixo relevo,
estas, tem relação com o renascimento místico e amor divino; e também
ramos de videira interpretadas como sendo as noções cristãs do homem com a
família (bem precioso), na mesma obra, uma espécie de saquinho de dinheiro
aos seus pés) sem formulação de interpretação visto desconhece-se o histórico
da família. Esta estátua juntamente com outras possui sua elaboração de forma
artesanal.
As colunas grego-romanas representadas conjunto escultórico do
cemitério da Fazenda Guabiroba, no túmulo do Cel. Zeca, assemelham-se as
colunas da ordem coríntia, da qual Thiago Nicolau Araújo faz a seguinte
observação:
A ordem coríntia foi muito usada nas épocas helenística e romana como uma
forma diferente do capitel jônico, sendo este ricamente ornamentado com
folhas de acanto. As colunas gregas em geral possuem o fuste estriado, sendo
que as romanas são lisas. (ARAÚJO, In: BELOMO (Org.), 2000, 273)
Entende-se que a representação dos valores atribuídos ao Cel. Zeca
indicam que o mesmo pertencia a família evoluída ou em evolução e esta
simbolizava a força de sustentação da comunidade ou agregados. Portanto, o
conjunto escultórico em sua totalidade afirma uma instituição familiar
economicamente poderosa e com bases religiosas amparadas no catolicismo
ou na fé cristã.
9
CERCAS DE PEDRAS OU TAIPAS NOS CEMITÉRIOS
Ao analisar-se cemitérios rurais de Cambará, considera-se que no inicio
do seu povoamento, esta era uma região inóspita, à qual os primeiros
colonizadores tiveram que adequar seu modo de vida aos recursos naturais ali
existentes e a pedra era o material que aflorava da terra. Entre os
colonizadores, presume-se um grau de conhecimento relativo em construções
de cercas para demarcar as propriedades, conhecimento este originado na
Europa e introduzido por portugueses e espanhóis.
Inicialmente as taipas eram utilizadas como cercamento para aprisionar
gado alçado em determinado espaço, era habitual não só nessa região, mas
também em São Gabriel, São Francisco de Paula, Bagé entre outras cidades
do estado13. Enfatiza-se que nos cemitérios estudados existe uma nova
abordagem referentes a esses marcos demarcatórios que soma-se ao seu
conteúdo de origem novas dimensões de leitura e entre elas podemos citar:
- Função Imaginária: Separar o mundo terreno do mundo celeste
- Função Prática: demarca fronteira geográfica protegendo os mortos contra
invasão e profanação dos túmulos dos seres viventes.
- Função Folclórica: Limitação dos dois mundos associada ao temor da morte
favorece o surgimento de estórias e lendas
- Função Social: Proteger os monumentos à memória14 ou seja os túmulos
- Função Coletiva: guardar vestígios relacionados cultura social, política e
econômica das famílias, das vilas, cidades, estados e países.
A situação atual que se observa nos cemitérios é de completo
abandono, com a maioria de seus túmulos depredados. Notas-se raras
inscrições com nomes das famílias e ausência de epitáfios tumulares que
demonstravam a crença que o ser continuaria a viver embaixo da terra e lá
conservaria a sensação de bem viver ou de sofrimento:
No epitáfio, escrevia-se que o defunto ali repousava: afirmação essa que
sobreviveu às próprias crenças e que, atravessando os séculos, chegou até
nossos dias. Empregamo-la ainda hoje, embora já ninguém acredite que um
ser imortal repouse no túmulo. (COULANGES, 2006, Pg. 15)
Também percebe-se a escassez dos vestígios de rituais como velas,
flores, pintura,
limpeza que são realizados em função da lembrança e da
afetividade. Isso decorre em função da desmistificação da morte; também em
função das as transformações das famílias patriarcais em nucleares e da
10
urbanização (mudança das famílias para a cidade). Esses fatos ocasionaram
uma espécie de perda coletiva da memória que Thiago Araújo ressalta dando a
seguinte definição em sua tese de mestrado:
...podemos definir que a memória construída no presente, a partir de demandas
dadas por este e não necessariamente pelo passado em si, pode ser pensada
como fator fundamental para a construção de pertencimentos sociais, aos mais
diversos níveis associativos. De certa forma, a busca do controle sobre a
memória institui uma identidade para o agente social nela envolvido. Assim o
cemitério passa a ser um agente de manutenção de memórias que constroem
uma identidade cultural.(ARAÚJO, 2006, Pg. 51)
Após elaboração desse texto, ponderamos antes de encerrar, que tendo
em vista a constatação da precariedade em que se encontram os cemitérios
rurais de Cambará do Sul são necessárias soluções emergenciais tais como:
1- Mapeamento geográfico dos cemitérios de fazendas da cidade (placas de
identificação)
2- Levantamento documental nos arquivos da cidade sobre famílias enterradas
em cada cemitério a fim de reconstituir a história das fazendas e as pessoas
que ali habitaram contribuindo para a formação do município fossem eles
anônimos e proeminentes, ricos ou pobres, tropeiros e campeiros escravos
índios ou mestiços
3- Limpeza, cercamento e conscientização da comunidade incluindo também
os cemitérios de fazendas nas rotas turísticas da cidade de Cambará do Sul
Neste estudo, considera-se que para preservar os cemitérios de fazenda
de Cambará do Sul e seus muros de pedra, que por si, já se constituíram
monumentos à memória é imprescindível a conscientização coletiva relativa a
importância do conteúdo histórico contidos dentro e fora dos mesmos. Essas
medidas tornar-se-ão realidade se houver o envolvimento de órgãos oficiais
(Secretaria de Educação, Cultura e Turismo ) em conjunto com as escolas e a
comunidade por meio da elaboração de projetos de resgate revitalização do
patrimônio histórico e cultural e social da comunidade contidos nos campos
santos das fazendas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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sobre o espaço cemiterial(1889 – 1930).Tese de Mestrado PUCRS, 2006
11
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12
http://www.zorek.net/sites/lefotogallery/03_aparados/aparadosVII.htm
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http://www.pousadaencantosdaterra.com.br 10/01/2008 18:45
http://www.pime.org.br/noticias.inc.php?&id_noticia=4281&id_sessao=2
Data
da
revista: 01/04/2003, nº 71 Pg. 31, mês abril/2003 – consulta site01/01/2008 17:19
13
1
A palavra Cambará é tupi-guarani e significa "folha de casca rugosa".
Palavra inglesa usada nos EUA para definir é um acidente geográfico (desfiladeiro). É uma depressão moldada por um
rio durante milhares de anos à medida que suas águas percorriam o leito, aprofundando-o ao longo de sua trajetória.
3
Possui uma extensão de 30 Km e uma altitude de 900 m, constituindo-se uma forma de fortificação, ou seja, proteção
natural.
4
Despenhadeiro , precipício. Barranco alto e pedregoso apresentando uma extensão de 5800m e uma altura variável
de 600 a 200m , com uma profundidade média de 600 Km. Palavra de origem tupi, formada de ita ( pedra) e aimbé
(afiado, áspero) As rochas encontradas na região têm de 137 à 150 milhões de anos e são chamadas de basalto, isto é,
rocha vulcânica também chamada de pedra-ferro.
5
XAVIER, Paulo. In: A Estância. Rio Grande do Sul Terra e Povo. Porto Alegre: Editora Globo: 1969. Primitivo núcleo de
produção rural, ou seja , complexo familiar e comunal aplicado a criação, que se constituía em linha mestra do
desenvolvimento de determinada região, daí surgiu um tipo de vida com linguajar, hábitos e atitudes característicos de
cada região do Rio Grande do Sul.
6
E extensão de terra de determinada família.
7
Consta enterramentos fora do cemitério conforme imagens.
8
COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2006. Pg. 73-74. Colocar o termo na terrra
equivalia, digamos a implantar a religião doméstica no solo, para indicar que este chão se tornava, para todo o sempre ,
propriedade da família....] O uso dos termos ou marcos sagrados dos campos parece ter sido universal entre a raça
indo-européia.
2
9
10
BARROSO, Vera Lúcia Maciel (Org) Raízes de Santo Antônio da Patrulha e Caraá. Porto Alegre: Este Edções, 2000.
Cruz Cristã ou Latina (4) A cruz latina é o símbolo do cristianismo. Os romanos a utilizavam para executar criminosos.
Por conta disso, ela nos remete ao sacrifício que Jesus Cristo ofereceu pelos pecados das pessoas. Além da
crucificação, ela representa a ressurreição e a vida eterna. Cruz Simples ou Grega (de Ferro 1920-1940) surgiram em
substituição as cruzes de madeira(5) Em sua forma básica a cruz é o símbolo perfeito da união dos opostos, mantendo
seus quatro "braços" com proporções iguais. Alguns estudiosos denominam esta como Cruz Grega. Cruz com escultura
de anjo orante em sua base (6) Variante da Cruz Cristã. Cristo Crucificado (7) Significa sofrimento e morte que
dignificam . Em geral sua iconografia exprime: espiritualidade e grandeza Cruz da trindade (8) Caracteriza-se pelos
remates de três círculos inter-seccionados que representam a Trindade , ou seja pai e filho unidos pelo Espírito Santo ,
um ser uno.
12
http://www.pime.org.br/noticias.inc.php?&id_noticia=4281&id_sessao=2 Data da revista: 01/04/2003, nº 71 Pg. 31,
mês abril/2003 – consulta site01/01/2008 17:19
13
A reportagem do Jornal Nacional realizada dia 08/09, enfatiza o tombamento das cercas de pedra, que as mesmas
se originaram na Península Ibérica, e no Rio Grande do Sul tornaram-se marcos de divisas entre fronteiras , eram
geralmente construídas pedras sobre pedra sem argamassa, calcula-se que em torno de trezenas pessoas (entre
jesuítas, índios e escravos) construíam o equivalente a cinco metros de taipa por dia possuíam em torno de um metro e
meio de altura por um metro de largura e eram destinadas a cercar as terras para a criação de gado, cavalos, mulas e
ovelhas para comércio ou troca.
14
A palavra monumento deriva da raiz indo européia men e esta nos remete a uma das funções do espírito: mens ou
seja a memória. O monumento é um traço do passado entendido através da afetividade e pela ritualidade.
11
1
Quando o corpo incomoda: o(dor)es da morte e os novos padrões de higiene,
uma discussão acerca do nascimento dos cemitérios no Seridó, século XIX
Alcineia Rodrigues dos Santos
Maria Elizia Borges – Orientadora
FCHF - UFG
Resumo
O objetivo desse artigo é analisar como o impacto dos surtos epidêmicos que atingiram o Seridó a
partir de 1850, contribuiu para a ação transformadora sobre os costumes fúnebres e as atitudes da
população para com a morte e dos mortos. As atitudes dos habitantes da Província do Rio Grade do
Norte com relação à finitude da vida tinham como eixo central, durante toda a extensão do oitocentos
e primeira metade do século XIX, a familiaridade entre vivos e mortos, relação esta, definida pelas
inumações no interior das igrejas. Esse costume, largamente utilizado pelos cristãos católicos,
permitia o contato direto entre vivos e mortos, pois, uma vez que os fiés freqüentavam as igrejas
estariam sentando, passeando e fazendo suas orações sobre as sepulturas. O impacto das
epidemias nas transformações na cultura funerária foi fundamental, pois, as doenças provocavam
alto índice de mortalidade. Logo, tornou-se um dos elementos catalisadores para o discurso higienista
que a tempos lutava, sob influência européia, contra o enterramento ad sanctos, com base na
prevenção dos males e a favor da higienização pública. Dentro dessa conjuntura, o Seridó, a exemplo
de outras regiões brasileiras como São Paulo e Rio de Janeiro, também iniciam o processo de
laicização da morte. É esse processo que pretendo analisar, tendo como base, o uso de
documentação oficial produzida pelos Presidentes de Província e Comarca Municipal, além da
utilização de registros fotográficos feitos nos cemitérios da região.
Palavras Chave: Secularização. Epidemia. Cemitério. Morte.
Este artigo tem como finalidade discutir o processo de secularização dos
costumes fúnebres na região do Seridó1. A partir de 1850, o nordeste brasileiro foi
atingido por várias doenças, o que provocou grande índice de mortalidade. No
seridó, as epidemias de colera morbus, sarampo e bexiga, que assolou grande parte
seus municípios, serviu de motivação na tomada de decisões no sentido de pensar
os velhos costumes mortuários como práticas insalubres. Nesse sentido, queremos
observar como esses surtos epidêmicos contribuíram para a ação transformadora
sobre os costumes fúnebres e as atitudes da população para com a morte e dos
mortos.
Após dizimar parte da população do Nordeste e Sul do Brasil, além de
aterrorizar outras tantas, as epidemias foram utilizadas pelas autoridades médicas e
imperiais como forma de justificar a implementação de medidas proibitivas aos
costumes fúnebres. O discurso médico higienista, que não era favorável a essa
prática, vem mostrar que estar perto dos mortos se tornara perigoso, já que eles
representavam ausência de salubridade. O costume de enterrar os mortos no interior
das igrejas ocasionava sérios problemas. Embasados nessa teoria os médicos
2
alertavam a população para os perigos decorrentes do ar pútrido e dos gases e
vapores produzidos pelos cadáveres em decomposição - os miasmas, gases que
contaminavam o ar, suscitando o aparecimento de várias doenças. Logo a
sociedade médica do século XVIII começou a discutir sobre a possibilidade de
implementar medidas proibitivas e sanitárias em relação aos costumes fúnebres,
que então vinha causando um número considerável de doenças. A discussão em
torno dos problemas causados pelos surtos epidêmicos e sua relação com a
insalubridade serviu de motivação para as transformações das atitudes da
população em relação à morte e aos mortos. Essas epidemias teriam representado o
argumento final de que os médicos necessitavam para persuadir o governo imperial
e a população sobre importância da implementação de um projeto medicalizador da
morte, especialmente normalizando e disciplinando os costumes fúnebres. A favor
dessa política sanitarista, as pessoas começaram a questionar o enterramento dos
mortos e a defender a construção de cemitérios fora das cidades.
Durante toda a extensão do século XIX, o Brasil foi acometido por
diversas epidemias, as quais se constituíram em grande problema, tanto para a
população como para as autoridades provinciais. As dificuldades eram maiores
devido à falta de higiene e de uma medicina propícia, o que causava intensa
mortalidade. A ausência de condições para assegurar uma boa saúde tornou-se, via
de regra, um grave problema também na Província do Rio Grande do Norte, por
vezes obrigando os presidentes a pedirem ajuda às demais províncias para
conterem as epidemias.
A partir da leitura dos relatórios provinciais, podemos observar uma série
de dificuldades encontradas no trato com a saúde pública: os medicamentos eram
poucos, as vacinas - que eram as principais responsáveis pela cura das doenças na maioria das vezes chegavam estragadas e sem condições de uso, não
produzindo maiores efeitos. Além da precariedade de medicamentos, quase não
existiam médicos para cuidar da população, o que dava margem ao surgimento de
curiosos em medicina. A atuação desses curiosos fez com que a província levasse o
caso à Câmara dos Deputados, incentivando os parlamentares a convidarem,
oferecendo ordenado, um médico hábil, para a Vila do Príncipe. 2
Os anos que sucederam o de 1838 foram extremamente difíceis para a
província, pois a epidemia de bexiga 3 ameaçou grande parte da população. A ajuda
das demais Vilas foi, nesse momento, de grande importância na solução desse
3
problema. Ainda em 1840, as vacinas chegaram às Vilas de São José, Goianinha,
Flor e Príncipe - atual Caicó. Diante da ineficiência da medicina provincial, a
imunização foi feita pelos curiosos, “que para isto se ofereceram gratuitamente” 4.
Além dessas epidemias, nos anos posteriores o sertão continuou sendo alvo de
inúmeras doenças.
Foi, porém, em 1856, com a presença da colera morbus, que a população
da Província do Rio Grande do Norte se sentiu profundamente ameaçada. Nesse
período, dentre outras providências, tratou-se de construir um hospital com
“dimensões tais que pudessem acomodar 40 doentes do sexo masculino, e outros
tantos do feminino, além dos repartimentos necessários para outros misteres do
serviço a que eram destinados” 5.
Ademais, colocou-se em discussão a necessidade de construção de um
campo-santo, uma vez que o enterramento nos espaços sagrados, especialmente
para os indivíduos que haviam falecido de cólera, estava sendo questionado, devido
à grande contaminação promovida por tal doença. Algumas medidas preventivas
foram tomadas, entre as quais a limpeza das ruas tornou-se urgente. Ainda em
1856, antes que a epidemia invadisse toda a província, o presidente Bernardo
Passos iniciou a criação de comissões de beneficência em todas as freguesias,
encarregando-as “de promover subscripções, preparar casas, a que fossem
recolhidos os pobres afectados, distribuir os socorros que pela constituição a nação,
deve principalmente aos pobres nas calamidades, tomar as providências
convenientes à salubridade, etc.” 6. Apesar dos esforços, os surtos de cólera
conseguiram dizimar parte significativa da população da província. A incidência
desses surtos epidêmicos propiciou a criação de cemitérios em toda a província, e
na Vila do Príncipe não foi diferente. Todavia os primeiros mortos vitimados por
essas pestes foram sepultados em cemitérios improvisados, haja vista as necrópoles
oficiais só terem sido efetivadas a partir de 1870, depois do segundo surto da cólera
e quando a população ainda sofria as ameaças causadas pela varíola.
O ano de 1856 apresenta os primeiros indícios da existência de
cemitérios na Vila do Príncipe, hoje Caicó. Através do Livro dos mortos nº. 03 da
Paróquia de Sant’Ana (1838 -1857), podemos perceber referências aos cemitérios
da Pedra do Moleque, cemitério do Estreito, cemitério dos Batentes, entre outros,
espaços geralmente fora das cidades, numa evidência concreta do medo da
contaminação difundido através do discurso médico higienista.
4
A documentação oficial produzida pela Comissão da Câmara Municipal da
Cidade do Príncipe em 27 de outubro de 1874 nos mostra a aprovação do cemitério
público, sendo definidas às condições seguintes: “CAPITULO I - Art. 1. O cemitério
fundado na cidade do Príncipe, em virtude da lei provincial n. 664 de 21 de Julho de
1873. Art. 32: é determinada a sepultura de pessoas fallecidas dentro, ou fora da
Freguezia”. 7
O Regulamento do Cemitério da cidade do Príncipe prescrevia algumas
das normas que ainda são observadas nos tempos atuais. Além de modos como
manter o local bem asseado e decente de modo que sua limpeza e conservação se
mantivessem da melhor forma possível, os artigos 20 e 21 do capítulo IV,
determinavam que:
O povo terá entrada franca no cemiterio das 6 horas da manhã as 6 da tarde; e
somente durante este tempo se poderá receber cadaveres, salvo em casos extraordinarios, apreciados pelo presidente da camara. As pessoas que dentro do
cemiterio não portarem-se com respeito devido as cinzas dos mortos e
desobedecerem as reflexões feitas pelo administrador serão expulsas pelo
mesmo administrador e coveiro, si se mostrarem contumases, serão levadas á
autoridade policial.8
A preocupação com a limpeza, inscrita no parágrafo 12, do art. 6, cap. II
do Regulamento antes citado nos indica que o discurso médico em relação à
salubridade estava surtindo efeitos. Além disso, a paz e o sossego no interior do
recinto deveriam ser mantidos, conforme observamos nos artigos 20 e 21 do
capítulo IV desse documento. Nesse capitulo também fica claro a necessidade de
separação entre a vida e a morte. A hora que os vivos podem estar no local – das 6
da manhã às 6 da tarde – e, aquela destinada somente ao morto – à noite –, numa
clara distinção entre a luz e as trevas, ou seja, espaço da vida, lugar da morte.
Dentre as ações determinadas pelo discurso de normatização da morte
ainda estavam previstos os cuidados com os corpos enterrados, uma preocupação
que refletia o desejo em resguardar a vida, a higiene e o controle social.
A saúde pública volta sua atenção para o espaço do morto. As
intervenções político-sanitárias para a higienização e a individualização da morte
vêm aos poucos transformar os costumes fúnebres, em virtude das novas práticas
mortuárias impostas pelos médicos. Os cemitérios deveriam ser construídos em
5
locais cujo terreno não comprometesse os mantos dos rios, evitando ameaças à
saúde dos vivos.
Aos poucos o discurso social contribuiu cada vez mais para que as
posturas perante o ato de bem morrer fossem sendo esquecidas. Tão logo a saúde
torna-se objeto de controle do Estado, morrer se torna um ato solitário, isolado, que
ocorre num espaço longe do convívio social - o hospital - donde o morto sairá para o
campo-santo este último cercado por altos muros e resguardado por um responsável
pela manutenção da ordem. A morte não mais está sob domínio coletivo, como
ocorria nas associações leigas, passando ao comando do Estado.
Ao entrar nos cemitérios seridoenses, a primeira impressão que temos e a
de que estamos em um espaço com características urbanas que não perdeu suas
origens rurais. O Seridó guarda consigo características singulares, com uma vida
diária pensada nos moldes regionais, sobretudo, destacando elementos que marcam
uma configuração pensada a partir da terra, do homem e de sua produção. É
especialmente pensando essas características que pretendemos analisar as cidades
dos mortos, dentro de uma visão representativa de uma sociedade urbana, onde
podemos potencialmente compreender as estruturas sociais, ainda que essas se
apliquem apenas a uma parte da população, a saber, que a arte funerária esta
permeada por fatores sociais e religiosos, econômicos e culturais. Os cemitérios
seridoenses não fogem a regra espacial e de esquadrinhamento observado na
maioria das cidades brasileiras, geralmente constituídos por uma estrutura
semelhante aquela presente na distribuição espacial urbana, com avenidas, quadras
e ruas comumente arborizadas. Essa cidade em miniatura apresenta uma
disposição de forma a compor um modulo quadrangular em repetição. As sepulturas
são organizadas tendo como base o passeio – ala central do cemitério, que
geralmente da cesso a capela, que esta sempre alinhada com a porta de entrada ao
recinto, e que direciona as alas em esquerda e direita.
Durante as nossas visitas feitas aos campos-santo percebemos que
teríamos que sair de uma visão puramente artístico analítico para adentrarmos no
universo dos rituais populares, especialmente pela singularidade cultural que os
mesmos apresentam. Nesse sentido, muitas de nossas apreciações estão sendo
construídas com base na observação que pudemos realizar durante a pesquisa de
campo. E mesmo que esta visão possa ser pensada como pouco cientifica, foi
6
necessária sua utilização dado ao fato de que não existe na região produção
bibliográfica que pudesse nos auxiliar no desenvolvimento da pesquisa.
De certo modo, buscamos o entendimento de como a secularização dos
costumes fúnebres foi processada e incorporada na região seridoense, sem com
isso pretender esgotar a pesquisa, o que da a esse ensaio, um caráter de abertura
sobre o estudo da arte funerária no Seridó.
As
manifestações
artísticas
no
espaço
cemiteral
acompanham
necessariamente os estilos da época e de cada região em particular. Desse modo,
tomando a arte mortuária como representativa de uma sociedade podemos
compreender suas relações sociais, econômicas e culturais.
Para nossa incursão no universo signico dos cemitérios seridoenses
utilizamos a metodologia adotada por Tânia Lima Andrade no momento em que essa
autora analisou cemitérios na cidade do Rio de Janeiro, onde “dois tipos de signos
foram reconhecidos: os verbais (epigrafia tumular) e os não-verbais (elementos
escultorios e arquitetônicos)” 9. Ademais essa perspectiva pode ser enriquecida por
meio da observação de uma forte presença da arte vernacular
10
, expressão que
confere o gosto popular. Os cemitérios seridoenses apesar de serem um espaço de
caráter publico, possui um universo bem particular. Assim como outros, confere um
lugar de memória, que por sua abrangência, e capaz de promover uma apropriação
de valores sócio-culturais e religiosos.
No Seridó quase todos os cemitérios estão voltados para o nascente e,
em geral, a fachada principal tem forma arqueada e/ou piramidal.
Ilustração 1 – Frontispício do Cemitério
São Vicente de Paulo – Caicó – RN
7
Ilustração 2 – Frontispício do Cemitério
Nsa. Sra. da Conceição - Acari – RN
É importante não perder de vista que esse formato se assemelha
necessariamente as inúmeras igrejas católicas da região, o que nos permite
investigar acerca da idéia de que o seridoense realmente desejou continuar sendo
enterrado dentro de um solo sagrado e, para isso reproduziu dentro dos cemitérios,
túmulos miniatura de igrejas, a começar pelo próprio campo-santo. Para alem de sua
forma, trazem em sua parte central e/ou mais elevada, o mais popular dos símbolos
cristãos: a cruz.
A arquitetura em forma de templo (ilustrações 1 e 2) dada ao frontispício
do cemitério nos mostra o desejo que o individuo tinha de não fugir da dinâmica de
enterramento em solo sagrado. Nesse sentido, percebemos que se procura manter
um ideário de salvação pelo enterramento ad sancto mesmo dentro dos campossanto, uma vez que, ele transfere sua igreja matriz para esses espaços.
E certo, porém, que essa laicização aconteceu em nível institucional,
posto que, a organização desses espaços não mais está sob a responsabilidade
eclesiástica ou com as Irmandades. Contudo, a grande incidência de símbolos
cristãos católicos nos permite pensar que a construção dos cemitérios na região
seridoense, mesmo motivada pelo discurso médico higienista, não concretizou uma
adesão total aos preceitos da secularização.
O esforço para não romper com as tradições mortuárias dentro dos
cemitérios seridoense e percebido por meio de vários elementos signico. Consolo
para os cristãos e instrumento de suplicio, a cruz compreende o mais popular entre
os signos observados nos cemitérios. Marco da crucificação de cristo representa o
vinculo entre Deus e os homens, além de ser o registro material da morte de Jesus
8
pelos pecadores e salvação da humanidade. Elemento constitutivo da redenção de
cristo e do cristianismo, a cruz, como símbolo, muito antes de ser conhecida no
ocidente cristão, já era utilizada por muitos povos na antiguidade. Símbolo universal
de mediação entre homem e Deus, a ela representa, por meio de suas ligações de
pontos diametralmente opostos, a perfeição.
Desde o inicio da colonização, com as missões, a cruz teve forte
significado para o Brasil, especialmente em se tratando da dominação portuguesa.
Nos cemitérios seridoenses a cruz é repetida de acordo com um projeto estético que
se acumula aos demais símbolos da cultura mortuária. Trata-se de um símbolo
definidor de uma pratica cultural, um ritual de passagem, que por sua expressividade
torna-se o ícone de maior presença em seus túmulos.
Como materialização das crenças e práticas culturais elas se apresentam
de varias formas, apresentando desde a versão mais simples, em linhas retas
cruzadas e sem decoração, feitas de madeira ou metal, a exemplares decorados
com flores e ramalhetes, sendo esculpidas em mármore ou granito.
Presente desde a entrada do cemitério, as cruzes se manifestam
qualitativamente no interior dos mesmos, estando presente em praticamente todos
os túmulos, independente da condição social do morto.
Os mausoléus com motivos inaltecedores se mostram como uma das
características próprias dos cemitérios seridoenses. Comumente esses jazigos são
suntuosos túmulos com elementos ornamentais particulares. Apresentam bases
sobrepostas, seguido de uma elevação em forma piramidal, onde se localiza o
baldaquírio, espaço reservado a uma imagem de santo ou anjo. Geralmente são
padronizados e seguem uma estrutura comum. Contudo, as imagens e os detalhes
ornamentais mostram uma grande variedade em modelos que vão desde o mais
simples ao mais elaborado dos jazigos. Suas esculturas registram uma iconografia
que é, ao mesmo tempo, folclórica e erudita. E, apesar de que nos cemitérios
brasileiros predomina uma forte influência européia, os materiais regionais não
deixam de ter seu espaço, com o emprego de valores locais, sejam eles, religiosos,
políticos e sócio culturais. Esses túmulos têm grande valor expressivo e, em geral,
são construídos logo após a morte primeira da pessoa da família, que pode ou não
ser o mais velho, sendo especialmente para guardar sua honra.
A cultura e o gosto local tenderam a se sobressair e diferentemente de
outras cidades brasileiras como Rio de Janeiro e São Paulo, onde foi bastante
9
difundido o uso de mármore de Carrara, os túmulos seridoenses do início do século
XIX foram construídos seguindo o uso de materiais simples, aqueles mesmos
utilizados na edificação de residências. Isso nos mostra que os profissionais da
construção civil também são aqueles que se ocupam da edificação da cidade dos
mortos. Desse modo, observamos que diferentemente do que foi percebido em
outras cidades brasileiras, o uso de material da construção civil foi bastante
difundido na arquitetura funerária seridoense. Quanto a isso, podemos advertir que
essas famílias, no momento da edificação de seus jazigos, contaram com a ajuda
dos profissionais da pedra e cal - os pedreiros e, certamente utilizaram sobras de
materiais comprados para construção ou reformas de suas residências.
Nesse sentido, o uso de adornos na decoração tornou-se, via de regra, o
diferencial. Esses detalhes ornamentais carregam consigo complexo simbolismo,
deixando transparecer uma polissemia de significados. Em sua maioria os símbolos
se associam ao gosto religioso, com predominância de imagens advindas do ideário
cristão católico.
Para além dessas considerações, é importante observar que na
construção desses túmulos o proprietário teve a liberdade de escolher que tipo de
material a utilizar. Essa intimidade que a família tem em decidir sobre o uso de
objetos para a edificação de suas sepulturas é conferida segundo uma ação
permissiva que o cemitério tem e que se diferencia daquela vigente na própria
cidade. Ademais fizemos outras constatações, como é o caso de túmulos que
mostram, mesmo que de forma tímida, imagens de anjos, tochas e símbolos
antropomórficos. Ainda verificamos a presença de túmulos gradeados e com um
considerável percentual de linguagens verbais postas por meio das lápides
funerárias. Esses elementos estão sendo analisados e, sem dúvidas comporão a
avaliação final de nossa tese.
Considerações Finais
Em fins da primeira metade do século XIX a Província do Rio Grande do
Norte, deparou-se com um fato novo que viria a promover agitações nas atitudes de
sua população em relação à vida e a morte: a incidência de surtos epidêmicos de
cólera. Antes de essa terrível doença assolar parte do nordeste e sul do Brasil, os
10
mortos compartilhavam do mesmo espaço dos vivos, pois eram inumados dentro
dos templos cristãos católicos, espaço onde haviam vivenciado momentos
importantes de suas vidas.
Contudo, o ato de enterrar dentro das igrejas começou a incomodar as
autoridades, já que essa prática ia de encontro as políticas de saneamento e higiene
pública, idéias trazidas principalmente pelos Viajantes e Presidentes de Província,
que sendo aceitas pela sociedade local, tornaram-se prejudiciais a saúde,
principalmente pelas possíveis emanações cadavéricas e seus gases maucheirosos.
A construção de cemitérios no Seridó envolve um longo processo e, de
acordo com os Relatórios dos Presidentes de Província, arrastou uma longa
discussão. Essa documentação nos mostra indícios de que desde 1850, quando
toda a Província sofria com os efeitos dos surtos de varíola e sarampo, houve
determinação de verbas para obras em alguns municípios, o que nos mostra a
preocupação em retirar os mortos do espaço dos vivos. Apesar de que essa
motivação teve inicio no período das epidemias, o Seridó só veio a ter um cemitério
devidamente regulamentado no ano de 1873, dentro de uma proposta de
reordenamento urbano.
A retirada dos mortos do espaço sagrado para os cemitérios não se deu
sem manifestações. Contudo, ao contrário do que ocorreu em Salvador, onde a
população destruiu o campo-santo, no Seridó elas ocorreram de uma forma menos
materializada, porém, não com menos força. Acreditamos que a edificação de
cemitérios na região, definindo um novo local para os enterramentos, e mais ainda,
um espaço laicizado, conforme ocorreu em outras regiões, não resultou em
mudanças imediatas e, apesar de ter provocado transformações na forma de pensar
a morte e por sua vez, conceber a vida, não causou grandes impactos, uma vez que,
os antigos costumes continuaram muitos deles ignorando a existência do Cemitério.
Em todos os cemitérios pesquisados percebemos a presença de
elementos que mostram a permanência de rituais que se mantém mesmo que
reconfigurados. O cemitério, por sua vez, apareceu como um novo espaço,
provocando mudanças, sem, contudo, alterar por completo com as antigas atitudes.
11
Referências Bibliográficas
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BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890 - 1930). ofício de marmoristas
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CASCUDO, Luís da Câmara. Anúbis, ou o culto dos mortos. In_____. Anúbis, ou outros
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CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo:
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DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 6. ed. Rio
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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder: Rio de Janeiro: Graal, 1991.
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: espaço e história no
regionalismo seridoense, Natal: Edições Sebo Vermelho, 2005.
REIS, João José. A morte é uma festa: rituais fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
______. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: ALENCASTRO, L. F. de. (org.)
História da vida privada no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1991. v. 2.
RODIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: transformações dos
costumes fúnebres do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura,
Divisão de Editoração, 1999.
VOVELLE, Michel. A história do homem no espelho da morte. In: BREAT, Herman;
VERBEKE, Werner. A morte na Idade Média. Ensaios da cultura 8, Edusp, 1996.
1
O Seridó, de acordo com a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE está localizado na
Messoregião Central do Rio Grande do Norte, dividido em duas Microrregiões: Seridó Ocidental e Seridó Oriental.
2
Relatório de Presidente da Província, 1836 (grifos acrescidos).
3
Bexiga é o mesmo que varíola, doença infecto-contagiosa, a peste das cataporas, como era chamada na época.
4
Relatório de Presidente da Província, 1840.
5
Relatório de Presidente da Província, 1857.
6
Idem.
7
Regulamento do Cemitério da Cidade do Príncipe. Coleção particular do pesquisador Joaquim Martiniano Neto Madureira -. Acervo do Laboratório de Documentação Histórica, do Centro de Ensino Superior do Seridó.
8
Idem.
9
LIMA, Tânia Andrade. De morcegos e caveiras a cruzes e livros: a apresentação da morte nos cemitérios cariocas do
século XIX (Estudo de Identidade e Mobilidade Sociais). São Paulo: Anais do Museu Paulista vol. 2, 1994, p. 97.
10
BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890 - 1930): Oficio de marmoristas italianos em Ribeirão Preto.
GÓTICOS E CEMITÉRIOS, CULTURA DOMINANTE VS SUBCULTURA
Bruno Leonardo Cardoso
Universidade Federal de Goiás
seth_blc@hotmail.com
Resumo
Como forma de manifestação do espaço e construção da realidade, a cultura apresenta grande
importância na organização da sociedade contemporânea, de modo que seu estudo se faz
imprescindível a compreensão das relações entre os homens e com o meio. Os cemitérios são
desta maneira um bom exemplo da organização espacial da cultura, de sua importância e dos
paradoxos produzidos no decorrer da história, pois representam um importante registro do
passado e que permitem a compreensão dos gêneros de vida, traduzidos em nossa relação
com a espiritualidade. Assim, o presente texto avalia os aspectos da formação cultural dos
Góticos em relação aos cemitérios comparada cultura dominante que a ela se opõem.
Coexistem na mesma sociedade ainda que em oposição.
Palavras-chave: Góticos, cemitérios, cultura
INTRODUÇÃO
Situada no universo dos sentidos e dos valores sociais, a cultura pode ser
definida como conjunto de práticas, habilidades, idéias, linguagens, relações e
simbolismos comuns a uma sociedade que se constroem constantemente, por
meio de experiências vividas no cotidiano, presente nas relações humanas.
Sendo assim, a cultura é parte do espaço social, pois é inerente ao homem
social e, conseqüentemente, às formas de dominação do meio.
Dentro deste espaço social, surge um grupo de pessoas com características
distintas de comportamentos e credos que os diferenciam de uma cultura mais
ampla da qual elas fazem parte o que podemos chamar de uma sub-cultura. A
sub-cultura pode se destacar devido à idade de seus integrantes, ou por sua
etnia, classe e/ou gênero, e as qualidades que determinam uma sub-cultura
como distinta podem ser de ordem estética, religiosa, ocupacional, política,
sexual, ou por uma combinação desses fatores.
Neste sentido, buscando compreender a influência dos cemitérios, suas
manifestações/representações na sub-cultura gótica. De maneira geral, os
cemitérios apresentam um grande valor artístico e cultural, no sentido de que
são um importante registro do patrimônio cultural, material e imaterial, de uma
sociedade. Desta forma, os cemitérios apresentam algumas características que
nos permitem compreender a influência da cultura no desenvolvimento histórico
de uma cidade.
Assim, ao pensar o cemitério, por meio de uma sub-cultura, estamos tentando,
de certa forma, analisa-lo não apenas no sentido do patrimônio cultural,
material e imaterial de uma sociedade. Procuramos analisar a dimensão que o
mesmo atinge dentro de uma sub-cultura, principalmente com referência aos
pertencimentos e identidades humanas apreendidas no cotidiano.
Desta forma, o presente trabalho tem como objetivo observar a dimensão
cultural dos cemitérios presente dentro da sub-cultura gótica, visto que eles
exercem sobre esta sub-cultura se tornando um ícone muito apreciado pelos
Góticos, tanto por conterem um grande número de manifestações culturais
distintas, inseridas em um mesmo espaço, bem como por ser a junção de um
lugar que normalmente representa a paz ou descanso eterno.
A partir daí, fomos analisando as contradições decorrentes do choque entre a
cultura dominante e esta sub-cultura, existente no mesmo ambiente. Além
disso, procuramos compreender o simbolismo que o cemitério exerce dentro da
sub-cultura gótica.
CEMITÉRIOS, HISTÓRIA, CULTURA E SIMBOLISMO
Devido a uma série de circunstâncias que permearam o final do século XVII,
tais como o crescimento urbano acelerado, a introdução de novos conceitos de
higienização dos espaços, além do rompimento, dos Estados Nacionais
nascentes, com a tradicional dominação católica, foi observada, no cenário
europeu uma modificação nas práticas de inumação, levando os sepultamentos
a serem realizados fora das cercanias das igrejas, dando origem aos
cemitérios, que vigoram até os dias atuais. A este respeito, Beatrix Algrave
afirma que:
“A urbanização acelerada e o crescimento das
cidades é também uma importante razão para a
criação dos cemitérios coletivos a céu aberto, visto
que o crescimento populacional desenfreado não
permitia mais o sepultamento em capelas e igrejas,
que já não comportavam o aumento da demanda1.”
Esses acontecimentos provocaram uma série de modificações culturais e de
pensamento, na sociedade ocidental. A necessidade de auto-afirmação
humana, perante a sociedade, se faz presente mais do que nunca, propiciando
a apropriação dos conceitos neoclássicos pela burguesia emergente do
período, que se manifesta não só na literatura e nas artes, mas também nas
formas de organização da vida cotidiana, nas habitações e, naturalmente, na
arquitetura dos cemitérios e na monumentalização da morte. Com efeito, de
acordo com MOUSNIER (1973), a respeito do pensamento burguês do século
XVII, “O burguês capitalista sofre a influência dos humanistas. Recorta nos
livros dos Antigos, nos dos Estóicos e de Xenofonte, de Catão, de Columela, as
passagens e as máximas que, destacadas do conjunto, formulam seu ideal2”.
Isto se relaciona com as formas de manifestação de poder no espaço, inclusive
depois da morte e com a tentativa de eternização do indivíduo, tal qual os
grandes nomes da História.
A partir de então, temos o desenvolvimento de uma arte tumulária que carrega
consigo os simbolismos e misticismos de seus idealizadores, bem como os
valores culturais reinantes na época, e cuja evolução através dos séculos, ficou
registrada nos cemitérios, em todo o mundo. No entanto, apesar de serem um
importante registro sócio-cultural e histórico de uma sociedade e contarem com
artistas conceituados em sua construção, dado o local em que se encontram,
muitas vezes as obras cemiteriais não são devidamente apreciadas, ficando
relegadas ao esquecimento e à degradação.
Contemporaneamente, devido a iniciativas de higienização e novos parâmetros
de vida saudável, associados ao alto custo da construção de mausoléus, vem
ocorrendo um amplo declínio das formas de manifestação artística, no interior
dos
cemitérios.
Fatores
econômicos,
ambientais
e
culturais
vêm,
progressivamente, incentivando o aparecimento de cemitérios jardins, no
interior dos quais a presença de grandes edificações e a construção de
mausoléus estão quase extintas.
Assim, as obras artísticas e culturalmente tão valiosas, presentes nos
cemitérios tradicionais, correm sérios riscos de desaparecerem. Sujeitas ao
vandalismo e às intempéries, essas obras vêm sofrendo um grande desgaste,
que põe em risco este admirável registro histórico da transformação do
pensamento de uma sociedade. A valorização desses registros é, portanto, um
importante passo para a compreensão dos processos que permitiram a
transformação cultural de uma sociedade e do espaço em que ela se
desenvolveu3.
CULTURA, UMA MANIFESTAÇÃO DO ESPAÇO
A formação das diferentes sociedades se dá por diversos fatores, mas neste
estudo privilegiamos as diferenciações culturais existentes no urbano, que
agem sobre os espaços de maneiras distintas, de acordo com suas
necessidades, desenvolvendo, a partir deles, uma cultura singular. Podemos
dizer que não existe uma sociedade igual a outra, da mesma forma que uma
cultura não se repete. A pluralidade das práticas culturais acompanha a
pluralidade da mente humana, e se manifesta de forma individual e particular.
Neste sentido, a “Cultura é uma estrutura sensória e psíquica que o homem
possui e que o possibilita apreender o espaço, compreendê-lo, sistematizar
esta compreensão e transformar este mesmo espaço através da materialização
de seu subjetivo, ou seja, através de seu trabalho” (DAVIM. S/d). Assim, a
cultura é o referencial do homem, que se vale dos conhecimentos adquiridos
por meio de suas experiências e sistematizados pela técnica, que aparece no
cotidiano em sua forma de agir sobre a realidade, transformando o espaço de
acordo com suas necessidades e interesses.
De caráter subjetivo e objetivo, a cultura está presente nas práticas sociais e no
campo dos pertencimentos mentais e psicológicos do homem (crenças, mitos,
tradições), mas manifestasse de maneira prática, de modo a influenciar na
construção do conhecimento, das ciências, das manifestações artísticas, da
produção material e imaterial do espaço, da política, entre outras formas de
atuação. Assim, a cultura é dinâmica e vai norteando o desenvolvimento do
homem, agindo como uma importante variável na produção do espaço.
Desta forma, pensar o espaço para dominá-lo é também um ato cultural, pois
cada homem age de acordo com os conhecimentos que carrega consigo,
desde o nascimento, Mas trata-se de algo constantemente aprendido com a
família, com a religião e com a escola, por meio dos contatos, experiências
cotidianas, ou seja, podemos entender que cada um constrói seu pensamento
baseado em sua carga cultural, de modo que a construção do espaço, feita
posteriormente, vai retratar as práticas sociais e particularidades culturais
engendradas nesse processo.
3.3 Os Góticos Como Grupo Informal e Sub-cultura
Na sociedade moderna, a pulsão agregativa, encarnada em agrupamentos
humanos específicos, oferece uma compensação a uma carência humana
fundamental, negligenciada pela sociedade moderna: a relação afetiva. Para
Maffesoli, a pulsão agregatória do homem faz da identidade uma questão não
apenas individual, mas também coletiva. Existem dois tipos fundamentais de
agrupamentos humanos: os grupos formais, mais conhecidos por instituições, e
os grupos informais (de amigos, por exemplo). Os grupos formais estão
encarregados da reprodução da estrutura social a qual pertencem e, mais do
que isso, foram criados por e para ela.
Os valores culturais estão intimamente relacionados com as necessidades dos
membros de cada comunidade. Quando as necessidades se alteram, o mesmo
acontece aos valores dominantes nessa mesma comunidade. Este processo
torna-se mais complexo quando se constata que, aparentemente, as
necessidades não mudam ao mesmo tempo para todos os indivíduos que
fazem parte dessa comunidade ou sociedade, para falar em termos globais.
Determinada sociedade é regida por uma lei formal, determinada pelo quadro
valorativo referencial, o da classe dominante dessa mesma sociedade, e uma
série de leis informais, tantas quantas as comunidades que coexistem nessa
sociedade.
Dentro destes grupos informais, o nosso destaque vai para o Gótico, que se
regem por leis informais ou costumes. Tais costumes revestem-se das mais
variadas formas, como o vestuário, por exemplo. Este em particular, aparece
entre os jovens como um instrumento de integração grupal, munido de um
poder simbólico. Com o vestuário, os jovens pretendem realçar um estilo de
vida4 Bourdieu (1974: p. 34) como um meio de afirmação e de diferenciação de
status. Status, não apenas no sentido de lugar na estratificação da nossa
sociedade, mas também: entre os diversos grupos juvenis e não-juvenis; entre
diferentes grupos juvenis; e mesmo no interior de cada grupo particular.
Todos os membros de uma comunidade obedecem a um padrão cultural,
veiculado aos costumes característicos dessa mesma comunidade. Contudo,
estes costumes endogrupais podem não coincidir com as leis formais, ou nem
mesmo com as leis informais dominantes, levando ao defasamento cultural por
parte dos indivíduos de diferentes setores ou grupos da sociedade. Os
indivíduos pertencentes aos grupos informais, podem estar deste modo,
sujeitos a rótulos5.
As instituições tradicionais de socialização, como a família, e até a própria
escola, tem perdido o seu poder de influência em favor de contextos mais
informais ou subterrâneos de socialização como aqueles que envolvem os
grupos de amigos.
Verifica-se um manifesto desinteresse dos jovens envolvidos com o Gótico
pelos organismos institucionais formais, e subseqüente participação social
(pelos moldes e veículos institucionais pré-estabelecidos – forte abstenção no
exercício do direito de voto, por exemplo) em detrimento da valorização do
grupo de amigos. A importância dada aos grupos informais, remete para
segundo plano, ou mesmo até para a indiferença, as instituições formais (de
caráter político, religioso, etc.).
Erving Goffman nas suas investigações de base interacionista, estudou a
apresentação que fazemos de nós próprios, no fornecimento de elementos
para que os outros nos classifiquem num quadro estereotipado, e as
implicações que isso tem nos comportamentos dos atores sociais; o modo
como o indivíduo em situações habituais, se apresenta a si próprio e à sua
atividade perante os outros, as maneiras como orienta e controla a impressão
que os outros formam dele, as diferentes coisas que poderá fazer ou não fazer
enquanto desempenha perante os outros o seu papel.
A fachada social (Goffman, 1999) do indivíduo nunca consegue corresponder
com rigor à sua identidade real. Ao revelar um comportamento diferente do
aceite na sociedade em que se insere, é esta que sobressai, tornando-se a
principal, quando não a única fonte de informação para a definição de uma
identidade. O conhecimento de um equipamento de sinais socialmente
conotados positivamente, possibilita a atribuição de uma categoria social
favorável, nos desempenhos quotidianos do indivíduo. Quem não possuir este
conhecimento (ou rejeitar o seu uso – como é o caso) deve em princípio,
procurar controlar a informação o melhor possível, de modo a evitar o rótulo, o
subseqüente estigma6, e as suas conseqüências. O estigma nasce deste
modo, de uma grande separação entre identidade virtual e real. A questão que
se coloca então é a da manipulação de informação sobre o seu "defeito". Exibilo ou ocultá-lo; contá-lo ou não contá-lo; revelá-lo ou esconde-lo; mentir ou não
mentir; e, em cada caso, para quem, como, quando, e onde.
O controle exercido pelas instituições, gera formas de desvio7 estereotipadas.
Para que o comportamento de um indivíduo seja considerado desviante, ele
tem de viver à margem de um ou mais padrões fundamentais que sejam
considerados "normais" na sociedade em que vive. Tudo o que se afaste da
normalidade torna-se estigma e tem um impacto relevante em todos os grupos
sociais e indivíduos. No caso dos Góticos, o gosto baseado na temática da
fugacidade da vida, da morte como algo que está presente o tempo inteiro
dando significado a existência, etc, a atração pelos cemitérios seja para refletir
sobre o sentido da vida ou para zombar da morte acaba por se tornar uma
forma de desvio segundo Goffman.
"Em vez de ter que alimentar um modelo de
expectativas e de tratamento diferentes perante
cada ator e cada desempenho por ligeiras que
pareçam as suas diferenças, o espectador poderá
ser levado a colocar a situação no âmbito de uma
categoria genérica que lhe torna mais fácil recorrer
à experiência passada e a juízos estereotipados. O
espectador contenta-se assim com o conhecimento
de um vocabulário reduzido e por isso facilmente
moldável de fachadas habituais, respondendo a
cada uma delas com uma prontidão que lhe permite
orientar-se
numa
vasta
situações" (Goffman, 1993: 39).
gama
de
(...) permitimos que certos símbolos de condição
social impliquem o direito do ator a certo tratamento
(…), continuamos apesar disso, sempre dispostos a
apontar brechas da sua armadura simbólica a fim
de desacreditarmos as suas pretensões. (“...) o ator
estará ou não autorizado a exibir o comportamento
em questão” (idem, p75).
Neste caso em concreto, os indivíduos são freqüentemente desacreditados,
pois há um estigma exposto (aparência), um estigma que é visível pelo qual
estes são identificados, pelo que terão que gerir a tensão assim criada com os
normais (os que não divergem das expectativas normativas da sociedade).
Este contexto leva a alinhamentos; neste caso, o alinhamento é intragrupal, ou
seja, com companheiros com o mesmo estigma que criam valores próprios, em
desafio à sociedade estigmatizadora.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente artigo, procuramos pensar a construção do estigma, desvio na
sociedade moderna, utilizando, para isso, o simbolismo e misticismo apregoado
a uma sub-cultura. Neste sentido, abordamos o Gótico como uma manifestação
cultural que apresenta uma estrutura psíquica que capacita aqueles que dela
participa a intervir na realidade, a partir de sentimentos e valores sociais,
resultantes de suas relações com o grupo no qual estão inseridos, de modo
que o espaço produzido por essa intervenção constitui-se uma manifestação da
sub-cultura.
Pensar pelo olhar do outro, é considerar, também, a redefinição das suas
formas de cultuar os mortos, visto que toda sociedade, em seus complexos
processos históricos, sociais e espaciais, desenvolve suas formas específicas
de se relacionar com o outro. Os valores morais e éticos de uma sociedade
são, neste sentido, motivados pelas suas práticas sociais as quais vão resultar
das experiências exercitadas no cotidiano comum e que persistem graças à
força dos costumes e das tradições. Somadas aos avanços técnicos, às
descobertas científicas, as práticas sociais propiciam choques, embates com
outras formas de pensar, que vão levando a humanidade a desenvolver outras
idéias, propiciando superações.
Assim, o nosso estudo a respeito da sub-cultura gótica, e sua relação com os
cemitérios e teve como objetivo demonstrar, por meio das manifestações
estéticas e de pensamento, as representações sociais, se diferem da cultura
dominante. Assim, com a identidade, deteriorada pelos processos de rotulagem
e estigmatização, o jovem, vê-se numa situação de “marginalidade normativa”,
que o torna mais propenso à fixação de forma duradoura nesta sub-cultura.
Essa adesão está fortemente enquadrada pela gama de valores que o jovem
possui. Isto inclui os compartilhados com as gerações mais velhas, pelo
processo de socialização e aqueles que derivam da sua capacidade de
produzir expressões culturais próprias, incorporando elementos de variadas
proveniências.
São as redes de inter-conhecimentos em cujo padrão se revê e (e em cuja
construção participa) que lhes proporcionam uma oportunidade de integração.
É no seio destas (ou de grupos mais restritos) que se forjam os elementos
simbólicos comuns com que afirmam aos outros a sua identidade e a sua
crença na legitimidade do seu estilo de vida.
NOTAS
1 Disponível em http://www.beatrix.pro.br/cultobsc/origemcemetry.html
2Disponível em: http://www2.prudente.unesp.br/eventos/semana_geo/daviddavim.pdf
3 Idéia original retirada do sitio www.spectrumgothic.com.br
4 O estilo de vida é "o conjunto sistemático de traços distintivos que caracterizam todas as práticas e as obras de um
agente singular ou de uma classe de agentes (classe ou fração de classe)". Estilo de vida refere-se assim à maneira
como cada indivíduo ou família organiza sua vida quotidiana.
5 Este processo, não implica obrigatoriamente que o indivíduo se deixe afetar pelo sentimento de estigma
por parte de quem é rotulado. De referir ainda, que o rótulo, além de poder ser aplicado pelos grupos
formais, pode ser igualmente imposto pelos membros de um grupo informal a indivíduos de outro grupo
informal, quando existem valores discrepantes entre estes. Pode ocasionar-se igualmente, um fenômeno
de rotulagem aplicada a sujeitos dentro de um mesmo grupo, numa situação de diferenciação pela
negativa segundo os valores defendidos pela maioria influente e atuante desse grupo.
6 Marca imposta pela sociedade a um dos seus membros, que se expressa nas normas de identidade
social. Ou seja, quem não tiver certos atributos, é excluído, pois revela um comportamento diferente do
grupo. O indivíduo nestas condições possui uma característica diferente da esperada pela comunidade.
7 A noção de desvio é tida como a diferença entendida negativamente. Paradoxalmente, é um fenômeno
de conformidade; de conformidade em relação a um grupo que se não identifica com o padrão valorativo,
normativo e comportamental predominante. As características do objeto que, na nossa sociedade,
consideramos que terão alta probabilidade de serem tidas como desviantes, são a (bi) sexualidade, o
consumo de drogas ilícitas, e a aparência. Por fim, no que diz à aparência, observamos que o modelo
Gótico se afasta nitidamente do modelo de apresentação hegemônico, podendo facilmente ser
considerado "exótico".
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, Difel, 1989.
GOFFMAN, Erving , A apresentação do Eu na vida de todos os dias, Relógio de Água,
1993.
GOFFMAN, Erving, Estigma – Notas Sobre a Manipulação da Identidade deteriorada,
Editora Guanabara, 4ª edição, 1988.
MAFFESOLI, Michel, O Tempo das Tribos - O Declínio do Individualismo nas
Sociedades de Massa. Rio de janeiro, Forense, 1987.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra. “Os usos culturais” da cultura. In YÁGIZI, Eduardo et
all. Turismo: Espaço, Paisagem e Cultura. São Paulo: Hucitec, 1996, pg 88-89
Cemitério do Campo Santo: História e Memória perpetuadas no mármore
Século XIX – Salvador – Bahia
Cibele de Mattos Mendes
Museóloga
Profª. Substituta Escola de Belas Artes/UFBA
Dinorah Arão
Jaqueline Ferreira dos Santos
Mona Ribeiro dos Santos
Rafaela Caroline Noronha Almeida
Estudantes de Museologia FFCH/ UFBA
Gualberto Conceição
Estudante de História e Patrimõnio IFCH/ UCSAL
Larissa Magalhães Fagundes
Aline Cardoso dos Santos
Hamona Oliveira
Glardston Bonfim dos Santos Júnior
Estudantes de Artes Plásticas EBA/ UFBA
Resumo:
Constitui objeto desta investigação os monumentos funerários referentes ao séc. XIX localizados no
Cemitério do Campo Santo, em Salvador – Ba; confeccionados pela Família Salles de Portugal, que
simbolizam e mantém a recordação dos mortos, bem como as atitudes e representações sócioculturais referentes às interpretações da morte, que contribuíram para a formação de um imaginário
coletivo perpetuado no mármore, através de símbolos, formas, dimensões e temas.
Palavras – Chave: Cemitério. Mausoléus. Identidade.
No Cemitério do Campo Santo estão contidas as representações da
História e preservação da Memória visual fúnebre da Cidade do Salvador, assim
como o processo de luto vivido até o século XIX, expressos nos túmulos e
mausoléus de mármore, importados de Lisboa e Itália. Pertencente à Santa Casa de
Misericórdia, esta necrópole surgiu em meio às discussões das autoridades com a
ameaça dos mortos à saúde dos vivos, cuja recomendação era de que se parassem
os enterros nas igrejas, pois eram considerados insalubres.
Muitas leis regulamentaram essas práticas, mas a primeira lei
colonial que combatia todo tipo de enterramento dentro dos limites urbanos foi a
Carta Régia nº. 18, de 14 de janeiro de 1801, no entanto não foi posta em prática.
Em novembro de 1825, um decreto imperial atacava as práticas tradicionais de
enterro como anti-higiênicas e supersticiosas, e, o imperador ordenava que os
sepultamentos fossem transferidos para fora da cidade.
Em outubro de 1828 foi promulgada a lei imperial que regulava a
estrutura, funcionamento, eleições, funções e outras matérias referentes às câmaras
municipais do Império do Brasil 1. A criação dos cemitérios fazia parte da batalha
pelo saneamento das cidades e instauração de uma vida civilizada, cujo objetivo era
a expulsão dos mortos das cidades, por estarem os mortos associados a águas
infectas e à “corrupção do ar”.
O movimento de medicalização estendeu-se por muitos anos, sendo
o ano de 1835, decisivo na campanha contra enterros nas igrejas de Salvador,
ganhando adeptos até no clero e inimigos entre as irmandades, que eram as
responsáveis pelos funerais baianos 2.
Uma representação é enviada à Assembléia Provincial pelos
empresários José Augusto Pereira de Matos & Cia, para a construção de um novo
cemitério, denominado Campo Santo, cujo requerimento segue para avaliação, foi
aprovado e sancionado em junho de 1835, como lei provincial nº 17. O texto do
projeto que vai ao público omite o monopólio de construção e transportes de
cadáveres pelo prazo de trinta anos.
Para a construção do Cemitério do Campo Santo foi escolhida uma
área elevada e arejada fora dos domínios da Cidade, na antiga estrada do Rio
Vermelho, em terras da então Fazenda São Gonçalo. A construção desse Cemitério
teve início com grande confusão, com a liderança do Visconde de Pirajá e entidades
interessadas nos resultados financeiros dos enterros, como: as confrarias,
irmandades, mosteiros, conventos e paróquias.
O anúncio da inauguração concorreu para acirrar os ânimos dos
descontentes, que anunciavam que a inauguração não aconteceria. Dois dias após
a inauguração as entidades promoveram uma passeata de protesto pelas ruas de
Salvador, constituindo-se no episódio denominado “Cemiterada”. A resistência do
povo e, principalmente das Ordens Terceiras foi muito grande, mas não houve jeito.
No dia 1º de maio de 1844 tiveram início os sepultamentos no Cemitério do Campo
Santo em 3.
O Cemitério do Campo Santo, um dos mais belos e antigos do país,
no gênero “Campo Santo”, apresenta a tipologia de um cemitério denominado de
convencional, por organizar-se de maneira comum, seguindo o padrão europeu, com
alamedas internas, direcionadas para a igreja e/ ou cruzeiro
4.
Está localizado entre
os bairros da Federação, Graça e Barra, reunindo túmulos e mausoléus pomposos,
capelas e obeliscos em mármore, talhados e esculpidos, importados de Lisboa (um
dos maiores acervos conservados no Brasil em arte).
A partir de 1875 escasseiam os túmulos mandados fazer em Lisboa,
cessando os reflexos do Neoclassicismo na estatuária e canteiros, surgindo em seu
lugar importações de túmulos da Itália e França, bem como aqueles túmulos
produzidos por artesãos Rio de Janeiro e São Paulo 5.
Neste Cemitério encontram-se sepultados desde escravos, ricos
comerciantes, traficantes, magistrados, freiras, barões e personalidades das artes e
ciências, destacando-se:
Antônio de Castro Alves; Joaquim Pereira Marinho, Francisco José Godinho
e Antônio Pedroso de Albuquerque; José Alves da Cruz Rios; Alfredo
Thomé Britto; Aloysio de Carvalho Filho; Anfrísia Santiago Antônio de
Lacerda; Aristides Maltez; Barão de Cajayba; Bernardo Martins Catharino;
Cipriano Barbosa Betâmio; Edgar Santos; J. J. Seabra; Raimundo Nina
Rodrigues, Francisco Marques de Góes Calmon, Luis Tarquínio 6.
Nos anos de 1853 e 1858, foi incentivada a compra de campas e
lotes de jazigos, motivo pelo qual são identificados nesta data um elevado número de
túmulos importados, na maioria dos marmoristas Francisco, Germano e Cesario
Salles, de Lisboa. Dos numerosos túmulos monumentais procedentes dos
marmoristas lisboetas, há uma quantidade maior entre os anos de 1855 e 1870.
Para a confecção desses túmulos foram gastas enormes fortunas,
com riqueza de materiais em mármore, com ornatos em folhas de acanto e de liz;
retratos de porcelana; alegorias e epígrafes sob a forma de acróstico; urnas
funerárias com garra e bola; caveiras com tíbias; figuras de anjos orantes e mãos
postas; anjos sexuados; urnas funerárias; ânforas; caveiras com tíbias em santor;
cruzes góticas; colunas partidas; globos; corujas; guirlandas; festões, etc. Há túmulos
e capelas neo-góticas pertencentes
a famílias que deixaram de existir ou as
abandonaram, cabendo a sua manutenção à administração da Santa Casa de
Misericórdia, que, na atualidade, inseriu a necrópole como parte do circuito turístico
de Salvador.
Particularmente neste cemitério não foi realizado um estudo sobre a
História e Memória preservadas no mármore dos túmulos importados de Lisboa; fato
este revelado pelo pesquisador Francisco Queiroz, afirmando não possuir ainda
informações dos arquivos da Alfândega brasileira, acerca desses monumentos
funerários.
As pesquisas realizadas no Cemitério do Campo Santo aprofundam
as questões lançadas na dissertação de Mestrado de Cibele Mendes (2007) sobre os
Cemitérios do Convento de São Francisco e Venerável Ordem Terceira do Carmo,
ambos localizados em Salvador – Ba; em que foram identificados túmulos e artistas,
também, provenientes de Portugal.
O Cemitério do Campo Santo perpetua o status quo das famílias
baianas, através do mármore dos seus túmulos, dado o vínculo que mantêm com as
representações do luto, alicerçadas no discurso religioso, moral e econômico da
sociedade baiana do século XIX, tornando-se necessária uma maior reflexão da
História e Memória perpetuadas no mármore, bem como a análise iconográfica e
iconológica desses monumentos.
As construções de rara beleza existentes neste Cemitério partiram de
uma nova dimensão social, surgida no âmago da sociedade baiana e católica do
século XIX, que convencida a mudar suas tradições, em detrimento das teorias de
higienização e urbanização, transferiram das igrejas para os túmulos do cemitério
extra-muros, os seus anseios de reconhecimento e ostentação.
O cerne desta Pesquisa está situado nos túmulos e mausoléus
importados de Lisboa, num período em que a mudança dos enterramentos das
igrejas para fora dos muros da cidade implicou numa mudança de atitudes, práticas e
representações, expressos através da opulência dos monumentos funerários,
eternizando um momento, um desejo, um pedido, estilo e /ou padrão.
Esta pesquisa objetiva identificar os túmulos importados de Portugal
e confeccionados pela Família Salles, analisando as influências históricas que
impulsionaram a construção de determinados estilos de túmulos, bem como a
distinção das atitudes e práticas como representações advindas da mudança de
mentalidade da Europa.
Dessa forma, acredita-se possível alcançar uma visão mais ampla e
aprofundada dos aspectos históricos, econômicos, políticos, sociais e culturais
implicados nesse tipo de procedimento artístico, buscando contribuir para preencher
algumas lacunas na historiografia da arte fúnebre baiana, embasada nos postulados
da História das Mentalidades e das Artes.
Pela sua riqueza iconográfica é possível identificar convenções
criadas, sentimentos e motivos de uma época, elementos componentes de uma
ideologia; mitos e idéias capazes de estimularem uma atividade social, aspectos
mentais representativos do cotidiano, questões de saúde, enfermidade e morte.
Em termos gerais, esta pesquisa propõe decifrar a realidade do
passado baiano, por meio das representações fúnebres, identificando atitudes e
intenções dos homens que as construíram, imprimindo diferentes entendimentos.
Os cuidados no trabalho com este tipo de fonte são muitos, pois as
imagens são fontes que se dão aos mais diversos tipos de leitura e interpretação,
assim, uma mesma imagem pode ter seu significado mudado de acordo com o tipo
de olhar que é lançado sobre ela. Deve-se sempre ter em mente também que a
imagem não se esgota em si mesma. O historiador que utiliza a imagem como fonte
histórica precisa enxergar além da imagem, ler suas lacunas, silêncios, decifrar seus
códigos. As imagens são representações do mundo elaboradas para serem vistas.
Como afirma Pesavento 7:
“As imagens estabelecem uma mediação entre o mundo do espectador e do
produtor, tendo como referente a realidade, tal como, no caso do discurso, o
texto é mediador entre o mundo da leitura e o da escrita. Afinal, palavras e
imagens são formas de representação do mundo que constituem o As
imagens estabelecem uma mediação entre o mundo do espectador e do
produtor, tendo como referente a realidade, tal como, no caso do discurso, o
texto é mediador entre o mundo da leitura e o da escrita. Afinal, palavras e
imagens são formas de representação do mundo que constituem o
imaginário”.
Dessa forma pode-se perceber que a imagem serve como elo entre o
tempo de seu produtor e o tempo de seu observador, transmitindo conceitos e modos
de ver e entender a vida, permitindo conhecer como o mundo seria visto por outras
culturas de outras temporalidades. Como visto, a abordagem culturalista entende a
cultura como sendo socialmente construída através da escolha de determinados
símbolos e representações para explicar a visão de mundo, os valores, enfim, a
realidade de um determinado povo situado no espaço e no tempo. Assim Chartier 8,
na introdução de seu livro “A História Cultural”, apresenta uma excelente definição
para esta história:
“A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objecto
identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa
desse tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito às classificações,
divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como
categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. Variáveis
consoante as classes sociais ou os meios intelectuais, são produzidas pelas
disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas
intelectuais incorporados que criam as figuras graças às quais o presente
pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado”.
Ainda na introdução de seu livro 9, salienta a importância de se
perceber que “as representações do mundo social assim construídas, embora
aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre
determinadas pelos interesses de grupo que as forjam”.
Nesta pesquisa são utilizados como fontes os monumentos
funerários, sob a metodologia proposta por Erwin Panofsky, no seu livro “Significado
nas Artes Visuais”, em que propõe que a análise de um objeto visual seja feita
seguindo alguns passos, quais sejam: a descrição pré-iconográfica (e análise
pseudoformal); a análise iconográfica, no sentido mais estrito da palavra; e a
interpretação iconológica, em sentido mais profundo.
O primeiro passo na apreensão do significado dos objetos visuais é
dado a partir de sua precisa descrição e distinção dos objetos e elementos que
constituem a obra a ser analisada. Obedecendo a esses passos o pesquisador
reconhecerá o que é denominado por Panofsky
10
como o momento da identificação
do tema natural ou primário, apreendido,
(...) pela identificação das formas puras, ou seja, certas configurações de
linha e cor, ou determinados pedaços de bronze ou pedra de forma peculiar,
como representativos de objetos naturais tais que seres humanos, animais,
plantas, casas, ferramentas e assim por diante; pela identificação de suas
relações mútuas como acontecimentos, e pela percepção de algumas
qualidades expressionais, como o caráter pesaroso de uma pose ou gesto,
ou a atmosfera doméstica e pacífica de um interior. O mundo das formas
puras assim reconhecidas como portadoras de significados primários ou
naturais pode ser chamado de mundo dos motivos artísticos. Uma
enumeração desses motivos constituiria uma descrição pré-iconográfica de
uma obra de arte.
Feita essa primeira etapa, onde se identifica a expressão contida no
objeto a ser analisado, busca-se o conteúdo secundário ou convencional, que
consiste na relação existente entre o objeto já identificado e o tema ou conceito
específico que ele representa. Para tal é necessário o conhecimento de fontes
literárias que possibilitem a compreensão do processo civilizatório em que o objeto
visual foi produzido. Nessa etapa a utilização de grandes dicionários e enciclopédias
torna-se indispensável para a identificação e familiarização com os temas e
conceitos retratados no objeto visual.
Realizada essa segunda etapa, resta a interpretação iconológica, que consiste na
procura do que Panofsky chama de significado intrínseco ou conteúdo propriamente
dito do objeto visual que consiste na descoberta dos valores simbólicos deste objeto.
Para ele, uma,
(...) interpretação realmente exaustiva do significado intrínseco ou conteúdo
poderia até nos mostrar técnicas características de um certo país, período
ou artista (...) são sintomáticos de uma mesma atitude básica, que é
discernível em todas as outras qualidades específicas de seu estilo. Ao
concebermos assim as formas puras, os motivos, imagens, estórias e
alegorias, como manifestações de princípios básicos e gerais, interpretamos
todos estes elementos como sendo o que Ernest Cassirrer chamou de
valores ‘simbólicos’.
Para Panofsky
11,
a análise de um objeto visual deve partir da sua
descrição e correlação com o significado intrínseco e sua função naquela sociedade,
transformando-o em registro de uma época. A realização destas etapas chega-se ao
ponto em que o objeto visual, descrito, identificado e decodificado, passa a explicar,
em conjunto com outros documentos ou solitariamente (no caso de ser ele o único
registro restante), o momento histórico, a conjuntura em que foi concebido,
finalidades e objetivos.
Notas:
1 REIS, J.J. A morte é uma festa, 1998, p.274-276.
2 Ibid. Ibidem, p. 288.
3 COSTA, Paulo Segundo da. Campo Santo: Resumo Histórico. Salvador: Contexto Arte Editorial LTDA, 2003.
pp. 62-65; 68.
4 BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890–1930): oficio de marmoristas italianos em Ribeirão Preto.
Funerary Art in Brazil (1890-1930): Italian Marble Carver Craft. In: Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte,
2002, p.144.
5 VALLADARES, C. do P. Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. Um estudo da arte cemiterial ocorrida no
Brasil desde as sepulturas de igrejas e as catacumbas de ordens e confrarias até as necrópoles secularizadas.
Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972, v. 1. pp. 1.313 – 1.325.
6 COSTA, Paulo Segundo da. Campo Santo: Resumo Histórico. Salvador: Contexto Arte Editorial LTDA, 2003.
pp. 101-102.
7 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, (Coleção História
&.Reflexões), 2003, p. 86.
8 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 17.
9 Ibid.Ibidem, p. 17.
10 PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 50.
11 Ibid.Ibidem, p. 53.
Referências bibliográficas:
BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890–1930): oficio de marmoristas
italianos em Ribeirão Preto. Funerary Art in Brazil (1890-1930): Italian Marble Carver
Craft. In: Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand, 1990.
COSTA, Paulo Segundo da. Campo Santo: Resumo Histórico. Salvador: Contexto Arte
Editorial LTDA, 2003.
MENDES, Cibele de Mattos. Práticas e Representações Artísticas nos Cemitérios do
Convento de São Francisco e Venerável Ordem Terceira do Carmo: EBA/ UFBA, 2007.
PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
(Coleção História &.Reflexões), 2003.
REIS, João José. A Morte é uma Festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século
XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
SILVA, Sérgio Roberto Rocha da. SABALLA, Viviane Adriana. Pelotas: A arte imortalizada.
Pelotas. Ed. da UFpel, 1998.
VALLADARES, C. do Prado. Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. Rio de Janeiro:
Conselho Federal de Cultura – Departamento de Imprensa Nacional. 1972.
Cemitério de Mucugê: em busca de uma identidade
Cibele de Mattos Mendes
Museóloga.
Mestre em Artes Visuais EBA/ UFBA
Profª. Substituta Escola de Belas Artes/UFBA
Rafaela Caroline Noronha Almeida
Graduanda em Museologia FFCH/ UFBA
Marília Dourado
Graduanda de História e Patrimônio IFCH/ UCSAL
Resumo
Este Projeto parte da observação de que o Cemitério de Santa Isabel, situado a noroeste da
Cidade de Mucugê, no sopé de uma das elevações da Serra do Sincorá, tombado pelo IPHAN em
1980, possui um conjunto de mausoléus em alvenarias de pedra e /ou tijolos, revestidos de reboco
e caiados, ornamentados com arcos e pináculos, semelhantes a miniaturas de igrejas e capelas,
sendo denominado pela população de “Bizantino”; constituindo-se num rico acervo artístico
representativo de práticas religiosas e sócio-culturais referentes às interpretações da morte, não
suficientemente estudado nos meios acadêmicos, do que representa de preservação da memória
visual da cidade de Mucugê, no quesito arte funerária.
Palavras – Chave: Cemitério. Identidade. História
Esta pesquisa parte da observação de que o Cemitério de Santa
Isabel, tombado pelo IPHAN em 1980, situado a noroeste da Cidade de Mucugê,
no sopé de uma das elevações da Serra do Sincorá.
A cidade de Mucugê localiza-se numa latitude 13º00'19" sul e, a
uma longitude 41º22'15" oeste, apresentando uma altitude de 983 metros, com
um clima ameno de 19º C em média, ao ano. Encravada na Chapada Diamantina,
em meio a grandes serras, grutas, abismos e rios, distando 458 km de Salvador.
A população do município foi estimada em 2006, em 16.124 habitantes, com área
de 2491,82 km². Seu nome é originário de uma fruta comum na região, servindo
de alimento para os índios, o chamado mucugezeiro, que se encontra em
extinção (Couma rigida).
Situada nos vales dos rios Paraguaçu e de Contas, e com
território inteiramente incluído no “polígono das secas”, limita-se com os
municípios de Andaraí, Barra da Estiva, Palmeiras, Piatã e Rio de Contas. Sua
topografia é acidentada, atravessando a Cordilheira da Chapada Diamantina na
parte da Serra de Sincorá.
A cidade de Mucugê está numa baixada entre serras da Chapada
Diamantina, tendo em cada extremidade da rua principal uma igreja. O município
possui duas igrejas e onze capelas. Mucugê passou a ser Comarca através do
Decreto Lei n° 512, de 19 de junho de 1943.
Destaca-se por ter sido provavelmente o berço do ciclo do
diamante na região, onde foram identificadas as primeiras pedras de diamante no
rio Cumbuca, tornando a cidade um importante centro urbano com contato com a
cultura européia. Nesta época, o município chegou a abrigar mais de 25 mil
pessoas, cujos ocupantes eram sepultados no interior da Igreja de São João
Batista.
Por várias vezes, a cidade mudou de nome: Foi conhecida como
Santa Isabel do Paraguaçu, depois como São João do Paraguaçu, mas preservou
o nome de Mucugê, uma cidade pequena, compreendendo seis ruas principais,
típicas de um local sem planejamento para o uso de veículos com rodas (FUNCH,
1997, p.114).
Oficialmente fundada em 1844 pouco tempo depois, passou a
abrigar uma população flutuante de 12.000 pessoas, lideradas por senhores de
grandes posses vindos de Minas e Europa com suas famílias e riquezas. Pessoas
de vários locais do país e estrangeiros (árabes, judeus, franceses) misturavam-se
com centenas de escravos vindos da África. Desmembrada da cidade de Nossa
Senhora do Livramento do Rio de Contas, muda seu nome para Freguesia de
São João do Paraguaçu, voltando se chamar Mucugê em 1917.
Na tentativa de controlar o caos da concentração urbana, os
"homens importantes" da região (sempre os mais ricos) reuniam-se para discutir
regras de crescimento e convívio social. Foram tentativas quase sempre
frustradas de regular o tamanho das construções, as medidas usadas no
comércio e até a limpeza das ruas. Quem atirasse lixo no chão, seria multado e
preso por cinco dias.
Já na década de 1870 a exploração do diamante entra em crise,
em parte pela descoberta de jazidas no sul da África, obrigando a região a buscar
atividades alternativas. A criação de gado, explorada pelas tradicionais famílias
locais, voltou a ser a principal fonte de renda de Mucugê, assim como o cultivo de
café e cereais. Com a proibição oficial do tráfico de escravos, sua venda por
preços até três vezes maiores também se tornou uma forma de compensar a
escassez de diamantes.
Este crescimento descontrolado causou diversos problemas e
dificuldades sociais. Em busca do rápido enriquecimento, valia a lei das armas e
do dinheiro. Jagunços matavam em nome de seus senhores, sempre ávidos por
terras, escravos e, conseqüentemente, diamantes. Na tentativa de controlar o
caos da concentração urbana, os "homens importantes" da região (sempre os
mais ricos) reuniam-se para discutir regras de crescimento e convívio social.
Foram tentativas quase sempre frustradas de regular o tamanho das construções,
as medidas usadas no comércio e até a limpeza das ruas (quem atirasse lixo no
chão podia ser multado e preso por cinco dias).
A força e influência política dos coronéis ditavam as leis na
cidade. Em 1926 foi a vez da Coluna Prestes, em campanha por todo território
nacional, sentir a força das armas locais e ser expulsa da cidade.
No entanto, a primeira metade do século XX trouxe uma definitiva
decadência econômica para a região, que registrou um enorme êxodo
populacional. A solução imediata foi explorar os campos de Sempre-Viva, planta
que tem cerca de 400 variações nos campos rupestres da região. Exportada em
grandes quantidades para a Europa como artigo de decoração, chegou a estar
ameaçada de extinção. Também a fauna da região foi muito prejudicada pela
caça indevida nessa época.
O território deste município fez parte primitivamente, da vasta
extensão territorial pertencente ao sargento-mor Francisco da Rocha Medrado,
poderoso senhor de terras e escravos dos tempos provinciais, que estabeleceu aí
fazendas de gado.
Na atualidade, é conhecida por possuir uma necrópole com
características de cemitérios do Mar Mediterrâneo, e que a população acredita
tratar-se do estilo “Bizantino”.
Este Cemitério foi tombado pelo IPHAN em 1980 e possui um
conjunto de mausoléus em alvenarias de pedra e /ou tijolos, revestidos de reboco
e caiados, ornamentados com arcos e pináculos, semelhantes a miniaturas de
igrejas e capelas, sendo denominado pela população de “Bizantino”; constituindose num rico acervo artístico representativo de práticas religiosas e sócio-culturais
referentes às interpretações da morte.
Cemitério de relevante interesse arquitetônico, dividido em duas
partes: uma plana, murada (situada sobre os terrenos de aluvião do vale), onde
estão localizadas covas rasas; e outra, constituída por um conjunto de mausoléus,
(implantados sobre a encosta rochosa da serra).
Os sepultamentos realizados em Mucugê até o ano de 1855
foram realizados nas igrejas de São João Batista e de Santa Isabel, ou em suas
proximidades, constituindo-se uma prática arraigada às tradições baianas. Porém,
desde as determinações da Carta Régia de 1801, promulgada pelo Imperador D.
Pedro I, em 1828, proibia-se os sepultamentos no solo dos templos católicos,
recomendando-se a construção de cemitérios extra-muros. Mas, somente a partir
de 1855, influenciados pelas teorias higienistas dos miasmas e a ocorrência da
Epidemia do Cólera em Salvador, atingindo também a população mucugeense, os
sepultamentos passam a ser realizados fora dos muros da cidade.
A ameaça da Epidemia do Cólera espalhou-se pelo Brasil e,
procurando-se seguir as instruções médicas, o lugar escolhido para a construção
do cemitério seria “fora da cidade, longe de fontes d’água, em terrenos altos e
arejados, onde os ventos não soprassem sobre a cidade e murados para evitar a
entrada de animais (REIS,1991,
p. 338).
Na Ata da Câmara Municipal de Santa Isabel do Paraguaçu, a 1º
de outubro de 1855, está registrada “para evitar a terrível epidemia de Cólera
Morbus, que nos parece ameaçar”, a contratação de um médico para o município:
Francisco de Paula Soares. Coube a ele em assistência ao delegado e ao
reverendo vigário, uma vistoria para definir o local do cemitério público, que seria
feito às custas da municipalidade. No dia seguinte, tamanha era a urgência e o
pavor da epidemia, que o registro do local já consta na Ata: a comissão comunica
à mesa que havia encontrado um local ideal, perto da “Biquinha” (CORREIO DA
BAHIA, 03 de set. de 2006).
A construção do Cemitério se prolongou por mais de trinta anos,
reunindo construções de rara beleza, cuja concepção partiu de uma nova
dimensão social surgida no âmago da sociedade mucugeense e católica do
século XIX, que procurou mudar o foco do ritual fúnebre, transferindo para os
túmulos os seus anseios de reconhecimento.
O seu caráter é coletivista, o que resulta numa certa uniformidade
dos conjuntos artísticos desde os túmulos com datação mais antiga até os
construídos na atualidade. Há uma harmonia singela na arquitetura modular e,
originalmente nas soluções decorativas, o que pode também ser observado em
cemitérios das cidades vizinhas, como o cemitério de Igatu, no distrito de Andaraí,
que está passando por um processo de intervenção. Ao redor da Capela de São
Sebastião, existe um cemitério semelhante ao Cemitério de Santa Isabel, no que
se refere à implantação e tratamento dado aos mausoléus.
Para esta pesquisa foram secionados 342 mausoléus, em
detrimento das covas rasas, posto que os mausoléus, apresentam formas,
representações e composições com características próximas às das Capelas
existentes na região e, possivelmente, correspondem a um padrão estético e
estilístico a ser identificado.
Os mausoléus foram selecionados, por serem categorias de
construções de grande porte, que comportam sepultamentos primários,
secundários, podendo ser efetuados em caixões ou urnas. Podem, também
pertencer a vários
indivíduos, de uma mesma família, grupo, organização,
entidade civil ou religiosa.
Os mausoléus do Cemitério de Santa Isabel de Mucugê
correspondem,
tanto,
uma
capela,
por
apresentarem
uma
arquitetura
eminentemente religiosa e cristã, como também, um monumento, porque
correspondem a uma homenagem ao falecido.
A estatuária fúnebre é quase inexistente neste cemitério, e
quando presente é dependente do mausoléu. Há ornatos, arcos e ogivas, bem
como formas piramidais No entanto, os dados obtidos, não permitem estabelecer
comparações com a arquitetura bizantina, sendo necessário, portanto, aprofundar
as pesquisas através de documentação secundária e entrevistas a profissionais,
que, na atualidade, mantém o mesmo tipo de construção funerária.
Referências Bibliográficas
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Philobiblion. Salvador: Fundação Econômico Miguel Calmon, 1986.
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Obras Públicas do Estado da Bahia, nº. 30. Mining Magazine, XII. nº. 2, New York,
Economic, Geologic, I, nº.2, Urbana Estados Unidos, Smilhsonian Reporter for 1906.
FUNCH, Roy. Um Guia para o visitante da Chapada Diamantina. O Circuito do
Diamante. O Parque Nacional da Chapada Diamantina Lençóes, Palmeiras, Mucugê,
Andaraí. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo: EGBA, 1997.
GUIMARÃES, Archimedes P. As Lavras Diamantinas. Separata da Revista Gemologia,
Ano II, nº. 8. 1/7, 1957.
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Expedição de 1879/1880. Brasília: Ed. Do Autor, 2005.
SAPUCAIA, Roberto. Trilhas e Caminhos. Guia Turístico e do Meio Ambiente. Salvador:
Secretaria d Cultura e Turismo do Estado da Bahia, 1997.
SALES, Fernando. Memória de Mucugê. Salvador: EGBA, 1994.SAMPAIO, Theodoro. O
Rio São Francisco e a Chapada Diamantina. Bahia: Ed. Cruzeiro, 1938.
TEIXEIRA, Cid. Mineração na Bahia. Ciclos históricos e panorama atual: Salvador:
Secretaria da Indústria e Comércio e Mineração, 1998.
Construindo um conceito e um inventário: Espaços Cemiteriais
Claudia Helena Campos Nascimento.
Arquiteta e Urbanista, especialista em
Semiótica e Artes Visuais.
Técnica em Gestão Cultural do
Departamento de Patrimônio Histórico,
Artístico e Cultural da Secretaria de Estado
de Cultura do Pará.
Resumo
O texto se propõe a discutir o cemitério como conceito suficientemente amplo, abrangente e
preciso, de forma a suprir as demandas da diversidade cultural do estado do Pará.
Palavras-chave: Patrimônio cultural paraense, Cemitérios, Metodologia de inventário
Um dos principais desafios ao se construir um instrumento de inventário
é torná-lo suficientemente específico para não suprimir informações essenciais,
porém abrangente de forma a atender às demandas que se associam à
temática. O Projeto Inventário do Patrimônio Cultural do Estado do Pará,
desenvolvido pelo Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural,
através da Diretoria de Patrimônio da Secretaria de Estado de Cultura
(DPHAC/DPAT/SECULT), visa constituir um corpo de informações sobre a
diversidade cultural do estado em seus múltiplos aspectos, com o objetivo de
identificar, registrar e divulgar o patrimônio cultural paraense em sua
diversidade.
Uma das questões a se considerar na construção destes instrumentos,
para todas as temáticas propostas – arquivos, documentação e bibliotecas;
artes cênicas; artesanato; artilharia; azulejos; bens imóveis e patrimônio
industrial; bens móveis; cemitérios; comunidades tradicionais; espaços
culturais; literatura; manifestações culturais: celebrações, formas de expressão
e saberes; monumentos; música; patrimônio natural; sítios arqueológicos;
tesouros humanos – era abarcar a diversidade cultural das manifestações, de
um território como o Estado do Pará, de múltiplas influências, fugindo da visão
centralizada, a partir da realidade da capital e sua identidade, promovendo a
preservação do patrimônio cultural paraense, compreendido em sua amplitude
de atuação através de ações para a salvaguarda, conservação, valorização,
reconhecimento e apropriação da memória, identidades, diversidade étnica,
1
social, cultural e ambiental do homem amazônico, permitindo a ampliação da
compreensão dos seus múltiplos aspectos formadores.1
No que tange ao tema cemiterial, a tendência a se considerar a tipologia
colonial e posterior, especialmente a dos cemitérios construídos entre os
séculos XVIII e XX como referência, é reforçada pela existência de alguns
espaços cemiteriais onde a imponência de seus túmulos nos conduz a um
universo de sintaxes plásticas e históricas ricas, dignas de uma sistematização
minuciosa. Neste sentido é fonte de atenção em vários segmentos o Cemitério
de Nossa Senhora da Soledade2, em Belém. Por sua localização, na área
central da atual Belém, é foco e vítima de ações depredatórias e, por isto,
fragilizado em sua condição de guardião da memória pretérita.
Outro aspecto cultural relevante na Amazônia é a força mitológica e
folclórica das construções do imaginário popular. Não esqueçamos que a
própria denominação do território amazônico se deve a uma dessas lendas,
quando frei Gaspar de Carvajal, escrivão da frota espanhola de Francisco
Orellana, em sua viagem de desbravamento dos sertões da América, registrou
a presença das chamadas Icamiabas3. Porém um sem-número de lendas e
relatos associados ao imaginário, tanto do Cemitério da Soledade quanto e
especialmente do Santa Isabel,
também em Belém, circulam
pelas ruas de Belém. Muitos
destes temas foram e vem
sendo trabalhados por artistas
locais de várias linguagens4.
Fora
o
complexo
de
manifestações de culto popular,
inerentes a estes espaços, que
dão
ao
dimensões
espaço
além
cemiterial
de
sua
Fotos da performance dos artistas Armando Queiroz e
Lilo Karsten no Cemitério da Soledade, com
desmembramento na exposição Revendo Anastácia, na
Galeria Theodoro Braga, em abril de 2007.
materialidade e historicidade.
Como foi dito anteriormente, contudo, embora a riqueza simbólica destes
espaços seja grande, tratar um inventário partindo da tipologia do Soledade e
do Santa Isabel seria restringir a visão de cemitérios, reafirmando o modelo
europeu. Sendo assim, uma discussão mais ampliada do espaço cemiterial
2
seria necessária para atingir de forma satisfatória a complexidade que o tema
requer.
O QUE É UM CEMITÉRIO?
Esta é a primeira pergunta que devemos fazer para iniciar uma
discussão que nos permita conhecer o tema. Quando usamos o termo
“cemitério”, podemos fazer dois tipos de associação: a semântica e a lógica. A
primeira remete-nos a etimologia do termo5, dentro do conceito cristão de
campo de descanso após a morte e como referencial cultural de espaço
constituído para tal a partir dos últimos anos do século XVIII. O cemitério é,
então o espaço destinado exclusivamente ao sepultamento, distante dos
núcleos urbanos, a fim de evitar os miasmas, de acordo com os conceitos
sanitaristas em voga na época. A outra leitura possível do termo nos remete à
lógica de uso e função primordiais destes espaços, isto é, de sepultamento
humano. Em ambos os casos, o papel cultural e testemunhal dos cemitérios
nos revela signos, não só construções simbólicas e alegóricas de mausoléus,
mas no próprio processo de destinação dos restos humanos.
No processo de construção dos instrumentos de levantamento de dados
do Inventário do Patrimônio Cultural do Estado do Pará, o impulso no sentido
do levantamento simbólico, artístico e histórico dos cemitérios patrimoniais,
mormente àquela tipologia a que faz referência sua semântica, precisava ser
revista para atender à visão ampliada de uso e tipos de configurações dos
espaços cemiteriais. Não se poderiam negar os processos históricos plurais da
cultura paraense, conduzindo o referido inventário a uma visão fragmentada,
fortalecendo a construção etnocêntrica e do colonialismo cultural. Desta forma,
o conceito de cemitério foi tratado como todo território delimitado onde
pudessem ser encontrados restos mortais humanos, intencionalmente
depositados.
Este conceito poderia atender a um universo cultural múltiplo, desde as
culturas pré-cabralinas até sítios de sepultamentos políticos, onde a maneira de
deposição dos corpos, a presença ou ausência de representações associadas
também denunciam aspectos históricos e culturais referentes àquela cena.
Desta forma, embora o cemitério seja um conceito eurocêntrico, expressões
3
como “cemitério indígena” ou “cemitério quilombola” não seriam contraditórias,
mas interfaces culturais. Nestes sítios teríamos signos de vários níveis para
interpretação e entendimento. Nesta linha de raciocínio, o conceito de
Cemitério Patrimonial foi ampliado como a área ou conjunto de enterramentos/
sepultamentos que configuram uma unidade simbólica que revela a partir de
seus índices6 - formas de deposição, de distribuição, de tratamento dos mortos
– informações sobre o contexto histórico e cultural, sendo assim testemunho,
registro e memória.
Não importa, a princípio, o tratamento simbólico e plástico de suas
tumbas, mas o próprio procedimento de sepultamento, trazendo em si conjunto
de informações que se constituem em bem patrimonial. O documento físico de
um sítio cemiterial é potencialmente fonte de informação e referência para
pesquisa,
mesmo
que
ele
não
se
configure
como
um
cemitério,
etimologicamente falando.
CONFIGURAÇÕES HISTÓRICAS DOS SÍTIOS CEMITERIAIS NO PARÁ
A geologia do solo amazônico não é das mais propícias à manutenção
de traços arqueológicos de matéria orgânica por conta da alta umidade, fluxo e
refluxo dos grandes rios e sedimentação muito recente, embora existam
registros de inumações que remontam 1.500 anos atrás e a presença de
sambaquis na costa nordeste do estado7. Contudo, os sepultamentos são
elementos fundamentais na caracterização histórica e cultural paraense. Os
povos pré-cabralianos marajoaras e tapajônicos nos legaram um enorme
acervo icônico através de suas cerâmicas, que os estudos registram terem
usos os mais diversos. Os grandes vasos repletos de símbolos característicos
eram utilizados como urnas e são elementos do imaginário e do culto à morte
destes povos. Assim como alguns povos da Idade Antiga, o sistema de
sepultamento dos povos amazônicos trazia em si um processo ritual e
simbólico. Inicialmente era feito o sepultamento primário, com a deposição do
corpo diretamente ao solo. Depois da decomposição, o sepultamento
secundário nas urnas decoradas, onde além dos ossos eram depositados
outros apetrechos. O acervo arqueológico do Museu Paraense Emílio Goeldi
mantém algumas peças do acero marajoara8, inclusive contas de vidro e fibras,
4
que foram mantidas no interior dessas urnas cerâmicas, o que permitem novas
leituras do processo de colonização do continente americano.
Com a colonização européia, especialmente a lusitana no estado do
Pará, o processo de sepultamento seguiu os mesmos padrões das demais
colônias. O sepultamento associado a templos, especialmente igrejas e
conventos, sendo feitos no seu interior ou em seus arredores. Muitos desses
sepultamentos careceram de registros, ou o perderam. Entre estes casos
destaca-se o do arquiteto italiano Antônio Landi9, que fez de sua obra e
devoção o seu mausoléu. Tendo projetado, construído e custeado parcialmente
a Igreja de Sant’Anna10, santa de sua devoção, faleceu em 22 de junho de
1791 em sua fazenda no Murutucu, arredores de Belém, aos 78 anos, havendo
indícios históricos de seu sepultamento naquele templo, porém não há registros
precisos da localização de seus restos mortais.
Outro padrão de sepultamento comum do período colonial é em campossantos anexos a igrejas. No interior do Pará é possível encontrar essa situação.
Em Belém existem registros arqueológicos da antiga Igreja do Rosário dos
Homens Brancos, no Largo do Carmo, onde foram identificados em pesquisa
arqueológica sepultamentos tanto no interior quanto na área externa dos
alicerces do antigo templo.
No segundo quartel do século XIX, os ventos libertários da Europa e
América do Norte começaram a soprar no Brasil. No Pará culminaram no que
ficou conhecido como Movimento da Cabanagem11, que se tornou um marco
histórico e cultural que permeia o imaginário local. Entre os eventos que
antecederam a tomada do poder provincial pelos cabanos, a Tragédia do
Brigue Palhaço é registrada por Raiol12 da seguinte forma:
O problema foi o destino dos 256 paraenses, soldados e civis, presos na noite
de 16 de outubro de 1823 e que se encontravam nos subterrâneos da cadeia.
Sob pretexto de que as prisões em terra não podiam contê-los, a junta
Governativa requisitou que os presos fossem transferidos para bordo do brigue
chamado “Palhaço”. Os presos foram removidos e lançados, como lixo
humano, no porão do navio. O calor, a falta de ar, a sede insuportável, cal
derramado e talvez o envenenamento da água, provocaram uma asfixia geral.
Depois de três horas de suplício e de agonia generalizada, reinou o porão o
silêncio dos túmulos. 13
5
Pesquisas recentes do historiador João Lúcio Mazzini da Costa dão
conta que estes corpos foram enterrados em cova rasa nos arrabaldes de
Belém à época, na área conhecida atualmente como Miramar14. Vários relatos
indicam o aparecimento de ossadas em construções nesta e em outras áreas.
Por se tratar de movimento anti-legalista, os revolucionários, se não
combatidos e sepultados nos próprios campos de batalha ou em situações
como o Penacova15, o eram em seu exílio em postos de resistência no interior
do estado. Para reforçar a segurança desses focos de resistência, muitos
sepultamentos, neste caso, eram feitos de forma singela. Por conta da
fragilidade da pesquisa histórica, cuja bibliografia de referência foi produzida
pelo segmento que combateu os Cabanos, algumas situações têm sido objeto
de questionamento do resgate dos marcos cemiteriais da Cabanagem. Um
deles é por conseqüência da falta de referenciais: é lugar-comum atribuir à
Cabanagem qualquer achado de ossada, às vezes com desconhecimento do
espaço geográfico onde ela se desenvolveu, isto é, no nordeste do estado do
Pará. Outro motivo são os vínculos históricos-políticos que fazem do tema uma
vaga que vem à tona, ou é obscurecida, dependendo do perfil político vigente.
Culturalmente ainda é francamente observável esta dicotomia social – que no
passado constituiu-se em territórios e oposições que culminaram na Revolução
Cabana.
Paralelamente a este contexto político local soma-se a comoção
provocada pelo aumento de falecimentos provocados pelos surtos que
assolaram a capital, Belém, no final do XIX. Nem os templos nem a visão
higienista suportavam mais que as igrejas abrigassem os mortos. A bem da
verdade, este era um problema da burguesia católica, visto que aos pobres e
escravos era dada outra solução. No Largo da Pólvora eram sepultados os
negros e aqueles que, por sua condição, não eram contados como “almas”. Era
um lugar distante da Cidade, próximo aos principais caminhos mata adentro e
das bicas, onde os escravos e serviçais passavam diariamente em sua faina de
servir. Atualmente este espaço é denominado Praça da República, no Centro
Histórico de Belém.
Outros grupos se instalavam no Pará e construíram suas necrópoles. A
sinagoga Shaar Hashamaim (A Porta do Céu), em Belém do Pará, logo depois
de proclamada a Independência, é o marco do judaísmo livre em solo
6
brasileiro. Também foi em terras paraenses que começou no Brasil a Igreja
Anglicana, com o primeiro missionário anglicano, Richard Holden, vindo dos
Estados Unidos para atuar como capelão, em 1860. Em 1912, o Reverendo
Moss, também americano, chega ao Pará, fundando a Catedral de Santa Maria
sobre um cemitério britânico.
Nos arredores das necrópoles israelita e anglicana é construído o
Cemitério Nossa Senhora da Soledade, um pouco além do Largo da Pólvora,
conhecido como cemitério mais antigo do Pará16. Neste que é o maior ícone do
patrimônio cemiterial do estado, foram sepultados indistintamente negros,
brancos, senhores e serviçais. Contudo, as diferenças entre classes, poderes,
raças e condições, também se estabelecem visivelmente no espaço do
Soledade através da partição dos quadrantes das irmandades e da imponência
dos mausoléus da aléia principal. Um novo padrão simbólico se estabelece, em
contraste às outras formas culturais de sepultamento, e mesmo entre outros
modelos católicos. Mas é interessante observar que, entre panteões e
mausoléus de heróis da Guerra do Paraguai, como general Henrique Gurjão,
políticos eminentes e outros nomes importantes, abatidos pela febre amarela
ou pela cólera17, são sepulturas de anônimos e viventes comuns que mantém a
vida naquele lugar: a do menino
Zezinho e o túmulo anônimo
onde
é feita
escrava
a adoração
Anastácia,
à
toda
segunda-feira, no culto às almas.
O culto às almas faz de
outros cemitérios que surgiram
posteriormente
pontos
de
referência. É o caso do Cemitério
de Santa Isabel (1873), que foi
construído
com
configuração
Soledade.
Sua
a
mesma
tipológica
distância
do
do
Imagem do vídeo de animação Visagem! A primeira
animação em stop-motion feita no Pará.
Ficha Técnica:
Livre adaptação da obra de Walcyr Monteiro
Direção e Produção de Roger Elarrat
Roteiro de Adriano Barroso
Modelagem Nelson Nabiça
Fotografia e câmera Adalberto Junior
Trilha original de Leonardo Venturieri
Duração de 11 minutos.
centro era ainda maior, porém os
limites de Belém também se ampliam. Com o fechamento do Soledade ele é
inaugurado, vindo a suprir a demanda18, sendo este muito maior. Além de
7
também possuir acervo escultórico relevante, este cemitério ainda em
funcionamento, tem personagens de culto popular como o médico Camilo
Salgado (1874-1938), cujo túmulo tornou-se uma espécie de santuário19 e da
chamada “Moça do Táxi”
20
, que diz passear pelas ruas de Belém à noite, de
táxi.
Não esqueçamos ainda os sítios recentes, de enterramento de militantes
políticos, como por exemplo da Guerrilha do Araguaia 21 (década de 1970), no
sul do estado do Pará, que também se configurariam como espaços
cemiteriais, portadores de informações valiosas para a compreensão de nossa
história.
INTERFACES DE UM INVENTÁRIO
Entre tantos aspectos que o Projeto Nossas Memórias: Inventário do
Patrimônio Cultural do Estado do Pará visa alçar, a temática cemiterial se
constituirá em um acervo informacional especial. Contudo não há como
desconsiderar as interfaces que se fazem. Não podemos perder o foco de que,
entre os temas que serão tratados individualmente, várias relações se
estabelecem. É mais clara a interseção entre a História, a Arqueologia, as
Artes Visuais, entendidas no registro escultórico e simbólico dos mausoléus.
Mas para entendermos o texto cultural22 em sua totalidade, constituído em fios
de discursos entrelaçados, o instrumento do inventário só seria útil se pudesse
fragmentar e agrupar tematicamente os conteúdos, de forma a permitir que as
interfaces se construíssem de acordo com a situação. Assim sendo, o
inventário de cemitérios, assim como as demais fichas, deverá indicar, caso a
caso, as inter-relações possíveis e estudadas, de maneira que o registro não
se restrinja ao conteúdo da ficha, mas, de forma dinâmica, se construa e
reedifique de acordo com a abordagem da pesquisa.
Cremos que a riqueza cultural do estado do Pará é maior que qualquer
estudioso é capaz de prever, assim como a capacidade de reinterpretação
constante das manifestações, espaços e signos. Contudo acreditamos também
na construção de um processo de sistematização consistente, capaz de
responder à multiplicidade de manifestações culturais, materiais e imateriais,
que fazem o duo corpo-e-alma paraense.
8
1
“A percepção do olhar sobre o patrimônio cultural, evoluiu da visão monumentalista da preservação, quase que
exclusivamente identificada pelos exemplares arquitetônicos pautados nos valores de antiguidade, histórico e artístico
para o reconhecimento do arcabouço que envolve o monumento, incorporando o encontro paisagístico e antropológico
para além dos bens materiais.
Essa apreensão reforça a importância dos processos de criação e manutenção do conhecimento sobre os seus
produtos, isto é, enfatizando que interessa mais como patrimônio o conhecimento, o processo de criação e o modelo, do
que propriamente o resultado, embora este seja sua expressão material sobre o produto.
Diante disto, é importante destacar que a construção da identidade cultural de um povo é resultante de um
processo histórico e dinâmico, de um conjunto de criações que se fundem diante das diferentes necessidades e
interesses, costumes e valores assimilados e transmitidos por uma dada população, grupo ou comunidade em seu
tempo e espaço, bem como das contribuições que se somam continuamente nos processos de trocas e acumulações
históricas, sociais e culturais.
A política cultural deve ser pautada na democratização e disseminação dos saberes, bem como, no
reconhecimento das diversidades e valorização das comunidades tradicionais. A consolidação da participação da
sociedade é incentivada através dos fóruns, conferências, congressos e seminários. O acesso tanto aos saberes quanto
aos incentivos devem ser democratizados e universalizados, construídos de forma participativa e efetiva pela
sociedade.” Texto-base dos Programas de Patrimônio Cultural da SECULT. Fonte: Arquivo digital do
DPHAC/DPAT/SECULT.
2
Por conta da epidemia da febre amarela que assolou Belém, em 1850 foi determinada a construção do Cemitério de
Nossa Senhora da Soledade, sendo então governador o Conselheiro Jerônimo Francisco Coelho, sendo responsável
pela mudança de mentalidade quanto aos anteriores enterramentos nas igrejas, adros ou em cemitérios a ela anexos,
estabelecendo pela Resolução nº. 181, de 9 de dezembro de 1850, a obrigatoriedade do enterramento no Cemitério
Público de todas as pessoas falecidas na cidade de Belém do Pará. Desde 1880 não há mais enterros no Soledade,
que abriga hoje 444 túmulos.O Soledade é tombado pelo município de Belém, através da Lei Municipal 7.709 de 18 de
maio de 1994 e pelo IPHAN, com data de 23 de janeiro de 1964, por conseqüência ao movimento de mobilização
surgido posteriormente ao artigo do eminente historiador Mário Barata, publicado em 29 de dezembro de 1963, no jornal
"A Província do Pará" (ver http://www.hcgallery.com.br/cemiterio_1.htm).
O Soledade é o mais antigo cemitério construído no Pará. Várias intenções visam à sua valorização, inclusive
transformando-o como núcleo de documentação e memória, museu escultórico, e outras. Foi objeto de vários projetos e
estudos, contudo pouco ou quase nada de intervenção. É atualmente um próprio municipal administrado pela Fundação
Cultural do Município de Belém.
3
Icamiabas = mulheres guerreiras e sem marido. Cavajal teria feito uma construção imagética das Amazonas a partir do
mito grego da Capadócia, que não encontra respaldo histórico até os dias de hoje.
4
Podemos citar que, apenas na Galeria Theodoro Braga, da Fundação Cultural Tancredo Neves, em um ano, a temática
dos cemitérios de Belém foram expostas nas linguagens escrita (produção do escritor Walcyr Monteiro, de sua série
Visagens, Assombrações e Encantamentos da Amazônia), audiovisual (vídeo de animação em “stop motion” Visagem!,
de Roger Elarrat, resultado da Bolsa de Pesquisa, Experimentação e Criação Artística do Instituto de Artes do Pará),
plástica (performance e exposição de desenhos e objetos que culminaram na exposição Revendo Anastácia, dos
artistas plásticos Armando Queiroz e a alemã Lilo Kasten) e fotográfica (exposição Cinzas, de Eduardo Souza, que
buscou um cruzamento de registros do Pere La Chaise com o Soledade, porém restringindo a exposição apenas no
primeiro).
Deve-se registrar que o termo “visagem” é utilizado para o conjunto de manifestações sobrenaturais ou
místicas que permeiam a cultura local, tais como fantasmas, almas ou lendas, como da Iara ou do Boto.
Sobre alguns dos nomes citados podemos consultar http://pt.wikipedia.org/wiki/Walcyr_Monteiro;
http://www.culturapara.art.br/artesplasticas/armandoqueiroz/index.htm;http://www.curtagora.com/filmografia.asp?
Profissional=Roger%20Elarrat.
5
Do grego, “koimetérion”, que significa dormitório.
6
Entendidos sob a óptica da semiótica de Charles Saunders Peirce, para quem “tudo é signo”, porém em três níveis: os
icônicos, os indiciais e os signos em sua totalidade. Desta forma, entender um sítio arqueológico cemiterial como
unidade é aceitar a hipótese de que nele encontramos os três níveis de signo, com seus potenciais interpretativos e
dimensões simbólicas em cada um destes níveis.
7
Conhecida como Costa do Salgado.
8
O povo marajoara é assim denominado por ter sua distribuição espacial na Ilha do Marajó, constituindo-se como
sociedade complexa que ali viveu entre 400 e 1450 dC, aproximadamente.
9
Sobre Antônio Landi indicamos www.forumlandi.com.br, endereço eletrônico do projeto cultural da Universidade
Federal do Pará que visa estimular os estudos a respeito deste artista que foi o precursor do estilo neoclássico no
Brasil, anteriormente à vinda da Missão francesa e Grandjean de Montigny (Paris, 15 de julho de 1776/Rio de Janeiro, 2
de março de 1850), quando chega ao Brasil com a Primeira Comissão Demarcadora de Limites (1750).
10
Construção executada entre 1761 e 1782. Posteriormente outras intervenções lhe acrescentaram duas torres sineiras
e outros elementos. Contudo o projeto original de Landi se insere no período citado.
11
A Cabanagem, como é também conhecida foi um movimento popular que tomou o poder provincial em 7 de janeiro
de 1835, precedido de vários e sangrentos episódios. Em outubro de 1823, o povo revoltava-se contra a Junta
Governativa, que se posicionava avessa à emancipação política do Pará, referendada na Proclamação da
Independência do Brasil há mais de um ano. Essa revolta foi sufocada violentamente com fuzilamentos sumários em
praça pública. Cônego Batista Campos, um dos principais líderes do movimento, foi preso e amarrado à boca de um
canhão no Forte do Castelo, tendo sua pena sido suspensa a tempo. Contudo é o episódio conhecido com a “Tragédia
do Brigue Palhaço” que poderíamos ilustrar a barbárie desses tempos e compreender o momento histórico na
diversidade da pesquisa cemiterial.
12
RAIOL, Domingos Antônio. Motins Políticos. Belém:UFPA, 1970 (original de 1865).
Por ter sido contada sob a óptica legalista, a história da Cabanagem sofreu distorções que somente a atenção e
pesquisa têm permitido o olhara na perspectiva de seus autores.
14
Local conhecido como Sítio Penacova, de propriedade da Companhia Docas do Pará, antiga residência funcional dos
presidentes da C.D.P..
15
Apropriado popularmente como “Pé-na-cova”.
16
O que reforça a necessária compreensão dos contextos culturais e históricos de forma ampliada a fim de não sermos
excludentes.
13
17
“O registro do número de mortos pela epidemia de cólera reinante em 1855, no Grão-Pará, é extremamente
imperfeito, pois mesmo com todo o empenho das autoridades, as dificuldades eram enormes. As gentes não apenas
‘enterraram-se dentro da própria casa’ por falta de caridade, como refere o vigário na citação, mas ficaram insepultas
pelas ruas, pelas picadas, nas embarcações, por onde caíam para não mais levantar.” Em BELTRÃO, Jane Felipe.
Cólera e gentes de cores ou o acesso aos socorros públicos no século XIX, in Physis: Revista da Saúde Coletiva.
vol.14 n°.2, Rio de Janeiro Jul./Dez. 2004, disponível em versão digital no sítio http://www.scielo.br/scielo.php?
pid=S0103-73312004000200005&script=sci_arttext. Este artigo traz várias informações sobre as diferenças nas formas
de tratamento dos restos mortais no século XIX, seus custos e influência das condições raciais e sociais no
sepultamento. “Supõe-se que a distância, da vivenda ou das casas ao cemitério, possa ter contribuído para a nãonotificação de inúmeras mortes. A distância não era, pois, unicamente física; era sobretudo social. A morte,
‘silenciosamente’, anunciava as desigualdades, tinha endereço e, sobretudo, cor.”
18
Foram encerrados as atividades no Soledade trinta anos após sua inauguração (1850 a 1880), devido ao
esgotamento dos espaços de sepultamento.
19
“O local reúne centenas de pessoas, que levam pacotes de velas, batem três vezes na ponta da lápide de mármore
negro, ofertado pela colônia portuguesa como reconhecimento à sua atuação no Hospital Dom Luiz I, em Belém. A
sepultura costuma estar rodeada por placas de agradecimento, fitinhas com o nome de pessoas e de doenças, muitas
flores e velas. Na busca por intervenção, as pessoas fazem orações e procuram tocar na sepultura e no retrato do
médico.” Em http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI1227052-EI306,00.html, acessado em 27 de abril de 2008.
20
Josefina Conti, falecida em 1931 e sepultada em jazigo da família no Cemitério de Santa Isabel. Sobre ela, foi
produzido um video-documentário. PASSARINHO FILHO, Ronaldo & MAGALHÃES, Moisés. Belém – mitos e mistérios:
a moça do táxi. Lendas amazônicas. Direção de Ronaldo Passarinho Filho e Moisés Magalhães. Produção executiva
de Marcelo Magalhães. Roteiro de Ronaldo Passarinho Filho e Lázaro Araújo. Música de Sebastião Tapajós. Belém:
SUDAM / FUNARTE / Governo do Estado do Pará / Assembléia Legislativa do Pará / Prefeitura Municipal de Belém,
1999.
21
“O nome foi dado à operação por se localizar as margens do rio Araguaia, próximo às cidades de São Geraldo e
Marabá no Pará e de Xambioá, no norte de Goiás (região onde atualmente é o norte do Estado de Tocantins, também
denominada como Bico do Papagaio). Estima-se que participaram em torno de setenta a oitenta guerrilheiros sendo
que,
destes,
a
maior
parte
se
dirigiu
àquela
região
em
torno
de
1970.”.
Em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerrilha_do_Araguaia, acessado em 27 de abril de 2008.
22
Entendido tanto no conceito da Semiosfera de Iuri Lotman quanto os entrelaçamentos culturais de Michel de Certeau.
O que buscamos aqui é fortalecer a idéia de que a construção cultural se faz pela interpenetração de códigos culturais,
quer como processos de comunicação (ou lingüísticos) defendidos por Lotman, quer históricos, conforme defende
Certeau.
Memória cristã riscada na pedra: análise de túmulos do Cemitério
Municipal de Bela Vista – GO
Déborah Rodrigues Borges
Mestre em Cultura Visual – FAV/UFG
Resumo
O Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás, fundado em 1893, apesar da simplicidade da
maior parte de suas construções, guarda importantes registros da tradição religiosa e cultural
da cidade. Embora não haja construções tumulares muito suntuosas no local, percebe-se que
a população belavistense, desde o século XIX, faz uso de determinado conjunto simbólico para
expressar suas crenças e sua mentalidade sobre a morte. Em Bela Vista, nota-se o quanto fé
cristã – católica – orienta a construção coletiva de um imaginário sobre a morte, expresso nos
elementos escolhidos para adornar os túmulos.
Palavras-chave: cemitério, simbologia cristã, Bela Vista de Goiás
Este trabalho tem por objetivo identificar e analisar alguns dos elementos
pictóricos mais recorrentes dentro da iconografia cristã utilizada pelos
riscadores de pedra na confecção de peças para adornar os túmulos do
Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás. Trata-se de uma necrópole
pequena, secularizada desde o seu surgimento, posto que, sendo o único
cemitério da cidade, todos os mortos eram lá enterrados, independente de
eventuais opções religiosas diferentes do Catolicismo, predominante na região.
Conforme expõe Maria Elizia Borges (2004, p. 102),
o cemitério convencional secularizado tornou-se ‘uma instituição cultural’, além
de religiosa. Faz parte da invenção moderna, compartilha da reestruturação da
sociedade que, desde o tempo em que ele surgiu (século XVIII), trabalha com o
confronto dialético de duas realidades conceituais de vida: a cidade dos mortos
e a cidade dos vivos.
Embora, como veremos posteriormente, não se constate na cidade de
Bela Vista, em fins do século XIX, a existência de uma sociedade burguesa nos
moldes europeus ou das grandes cidades brasileiras, perceberemos que os
belavistenses do período comungavam do mesmo imaginário coletivo burguês
sobre a morte, a religiosidade e suas formas de representação imagética. O
estudo de elementos pictóricos presentes nas construções tumulares do
Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás revela a maciça presença de
símbolos cristãos, especialmente importantes dentro do Catolicismo. São
cruzes, sagrados corações de Jesus, rosas, pombas, enfim, uma série de
figuras que integram a ritualística católica e que, uma vez transpostos para o
cemitério, são acrescidos de outros valores e significados.
Entretanto, para compreender a importância destes elementos dentro do
imaginário belavistense sobre a morte, expresso no cemitério, é importante
conhecer um pouco da história do município, a fim de percebermos como se
deu a inserção da fé católica na construção da tradição cultural da cidade.
Segundo Alves e Jesus (2003), o local onde hoje se localiza o município
de Bela Vista de Goiás começou a ser habitado ainda no século XVIII. Neste
período, várias expedições bandeirantes começam a explorar o território goiano
à procura de minerais preciosos. Neste contexto, surge a figura dos tropeiros,
que viajavam pelas trilhas abertas pelos bandeirantes, transportando e
comercializando uma série de produtos. Eles forneciam um apoio fundamental
para os exploradores, que se embrenhavam cada vez mais pelo interior de
Goiás. Ao longo dos caminhos percorridos pelos bandeirantes e tropeiros,
surgem vários pontos de pouso, como o que deu início à povoação que mais
tarde formaria a cidade de Bela Vista de Goiás.
Não é possível delimitar uma data exata para o surgimento das primeiras
construções no local, pois os documentos oficiais – e mesmo a história repetida
pelos moradores do município – registram apenas a data de doação de terras
para construção da Capela em homenagem a Nossa Senhora da Piedade. Tal
fato ocorreu em 9 de junho de 1852. Os doadores eram membros de uma
mesma família: José Bernardo Pereira, sua esposa, Inocência Maria de Jesus
e o irmão desta, José Inocêncio Telles. As obras da capela foram concluídas
em 1872, e o surgimento da cidade de Bela Vista é tradicionalmente atribuído a
essa construção.
Entretanto, por que justamente Nossa Senhora da Piedade foi escolhida
para ser homenageada por esta capela que foi tão importante nos primeiros
tempos da povoação? Segundo pesquisa feita por Alves e Jesus (2003), a
partir de relatos orais de antigos moradores da cidade, foi possível apurar a
existência de diferentes versões para que tenha se desenvolvido na região a fé
nesta santa. Uma delas diz que José Honorário Teles, residente na fazenda
São Bento, foi picado por uma cobra numa plantação de fumo1 do Sr. Silvério
Lemos, na primeira metade do século XIX. Sua recuperação foi atribuída às
orações de um certo Tomás, benzedor natural de Bonfim (atual Silvânia),
dirigidas a Nossa Senhora da Piedade. Diz esta versão que a primeira estampa
da santa veio de Pouso Alto (atual Piracanjuba), trazida por Dona Vergina, e a
primeira imagem, esculpida em madeira, teria sido feita por um artista
desconhecido, de Pirenópolis.
Há, ainda outra explicação para o surgimento da fé em Nossa Senhora
da Piedade na região. Segundo Alves e Jesus (2003, p. 16) descrevem, esta
versão diz que a devoção à santa
começou com uma imagem de trinta centímetros que Jacinta e Maria da Glória
trouxeram para o local. Estas eram pessoas das famílias de inconfidentes, que
fugiram de Vila Rica, Minas Gerais, para se livrarem das perseguições sofridas
após a prisão dos envolvidos. Aqui chegando, todos mudaram seus nomes
para não serem descobertos.
Segundo conta a tradição popular, um dia, Jacinta e Maria da Glória
colocaram a imagem ao pé de uma grande árvore, onde hoje está localizado o
obelisco de São Sebastião – Praça Getúlio Vargas – para a reza do terço (que
cumpriam diariamente). Deste dia em diante, a imagem desaparecia de seu
oratório e reaparecia ao pé dessa árvore, repetindo-se o fato por cinco vezes.
Foi feito, então, um oratório de pedra para a Santa e um rancho de folhas de
buriti sobre o referido oratório no local em que a imagem reaparecia.
A terceira versão do início da fé na Santa envolve os doadores das
terras onde foi construída a Capela em homenagem a Nossa Senhora da
Piedade. Consta que todos eram muito devotos da santa, por motivo não
esclarecido, o que os levou a destinarem parte de seus terrenos para erguerem
um templo para Nossa Senhora.
Nota-se, por estes relatos, a existência de uma cultura religiosa católica
que não deixa de conter, também, aspectos de um misticismo mágico, uma vez
que se apóia sobre histórias de milagres, aparições e outros fenômenos
sobrenaturais. E isto também se revela na própria história da surgimento do
Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás. O primeiro cemitério do lugarejo
ficava onde, atualmente, se localiza a Igreja Matriz de Nossa Senhora da
Piedade, na Praça José Lobo. Não há maiores informações sobre esta
necrópole. Entretanto, sobre o Cemitério Municipal de Bela Vista, cuja
inauguração ocorreu em 1893, Genivaldo Antônio Pereira (1995) relata um
acontecimento interessante:
Antônio Cândido da Costa Moraes construiu o cemitério, plantou umas
palmeiras em volta e ficaram todos na expectativa de quem seria a primeira
pessoa a ser enterrada no cemitério. Essa pessoa acabou sendo a própria filha
de Antônio Cândido. Ela morreu aos sete anos, vítima de tifo.
Tem-se, aí, uma infeliz ironia: o construtor do cemitério acaba
inaugurando a construção (que se vê na figura 01) com o enterramento de sua
única filha, conforme se percebe pelo relato registrado na lápide deste túmulo 2,
que ainda se encontra no cemitério. Observa-se, também, que ao contrário do
que relata Pereira (1995), de acordo com os dados do texto da lápide, a criança
teria morrido aos 10 anos de idade. Assim diz o texto:
Aqui jaz
Anna Cândida da Costa Moraes
Filha legítima e única de
Antônio Cândido da Costa Moraes
E
Ludovina de Araújo Moraes
Nascida a 11 de janeiro de 1888
Fallecida a 7 de agosto de 1893
Figura 01: Túmulo de Anna Cândida da Costa Moraes. Acervo particular: Maria Elizia Borges
O Cemitério Municipal de Bela Vista possui estrutura simples. A
economia do município baseia-se em atividades agropastoris, e a região nunca
esteve inserida em nenhum dos grandes ciclos econômicos existentes na
história do Brasil. Logo, constituiu-se no local uma sociedade de características
predominantemente rurais, com algumas poucas famílias mais abastadas. Isto
se reflete no cemitério, nas construções quase sempre simples, destituídas de
grandes refinamentos nos monumentos e adornos tumulares, como se vê pelo
próprio túmulo de Anna Cândida, o qual é adornado apenas por uma cruz
esculpida na pedra e um gradil que circunda a construção, como forma de
protegê-lo. O Cemitério Municipal é o único existente na cidade desde 1893.
Por isso, há no local centenas de túmulos, sendo que quase todos se
encontram voltados para o leste. Há 3 anos a área do cemitério foi ampliada
para suprir à demanda do município.
Devido, em grande parte, às condições sócio-econômicas, e mesmo
geográficas, do município de Bela Vista, não se encontram muitas construções
tumulares grandiosas no cemitério, a exemplo do que ocorre em outros
lugares. Trazer esculturas de mármore de outros estados era complicado numa
época de estradas sem pavimentação, na qual o transporte de mercadorias se
fazia, quase sempre, em carros de bois. Assim, encontram-se aqui outras
soluções estéticas, como o uso de pedras menos nobres do que o mármore
carrara, largamente utilizado no Sudeste, por exemplo. Assim, os túmulos
acabaram ganhando adornos mais singelos, por meio de desenhos riscados
nestas pedras, as quais posteriormente compunham a construção tumular.
Entretanto, apesar da simplicidade, a análise de alguns elementos constantes
nestes desenhos riscados apresenta uma riqueza muito grande sobre como se
fazia a representação das relações entre morte, eternidade e religiosidade na
região, conforme veremos pelos exemplos seguintes.
Na figura 02 temos um túmulo em cujas pedras riscadas identificamos os
seguintes elementos:
Flores: na porção superior do túmulo, vemos o desenho de um ramo
ascendente de flores. Embora haja significados específicos para certas flores,
neste caso parece que o artista não se preocupou em registrar fielmente um
determinado tipo de flor: não conseguimos identificar a espécie. Entretanto, as
flores, de modo geral, possuem grande importância nos ritos fúnebres, e suas
simbologia integra constantemente as construções tumulares. De acordo com
Keister (2004, p. 41), “as plantas, especialmente as flores, lembram-nos da
beleza e da brevidade da vida. Elas têm servido como símbolos de lembranças
desde que começamos a homenagear nossos mortos.”3 Neste caso, não se
trata de um símbolo exclusivamente cristão, embora tenha sido, há muito,
incorporado às narrativas religiosas e, desta forma, ao imaginário cristão,
especialmente no que versa sobre a morte.
Espírito Santo: abaixo das flores, outra pedra com o desenho que,
tradicionalmente, representa o Espírito Santo. Como analisa Keister (2004, p.
142), “uma pomba, mergulhando dos céus, com um ramo de oliveira ou uma
cruz em seu bico é o símbolo do Espírito Santo. Sua representação como uma
pomba vem de João 1: ‘E João recorda-se, dizendo, Eu vi o Espírito descendo
do céu como uma pomba, e ele pousou sobre mim.’”4 Misturam-se, portanto,
neste túmulo, símbolos de origem desconhecida, como as flores, e outros com
uma antiga história dentro da tradição pictórica cristã, apoiados em narrativas
religiosas. Cabe ressaltar que a cidade de Bela Vista realiza, desde o século
XIX, uma festa anual em homenagem a Nossa Senhora da Piedade, no mês de
julho, ocasião na qual também se homenageiam São Benedito e o Divino
Espírito Santo, que sai nos andores das procissões representado, justamente,
pela figura de uma pomba.
Figura 02: Túmulo do Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás. Acervo Parcicular – Maria
Elizia Borges
Na figura 03 identificamos como elementos de adorno tumular:
Sagrado Coração de Jesus: símbolo católico, apresenta um coração
envolvido por uma coroa de espinhos com uma chama na parte superior.
Representa o sofrimento da crucificação de Jesus Cristo, e sua imortalidade.
Entretanto, segundo Keister (2004, p. 149), há outro significado para o coração
representado desta maneira: “(...) um coração rodeado por espinhos é um
emblema de Santa Catarina de Sena”5. De qualquer maneira, ainda segundo o
autor, o coração possui inúmeras significações dentro da simbologia cristã, e
seu uso neste sentido remonta à Idade Média.
Rosas: as rosas foram dispostas, neste túmulo, ao lado do emblema
que representa o Sagrado Coração de Jesus. Além do significado geral
atribuído às flores, explorado anteriormente, as rosas possuem interpretações
específicas. Conforme expõe Keister (2004, p. 54),
na mitologia cristã a rosa não tinha espinhos no Paraíso, mas os adquiriu na
Terra para lembrar aos homens sua queda; além disso, a fragrância e a beleza
da rosa remanesceram para sugerir ao homem como o Paraíso é. Às vezes a
Virgem Maria é chamada de ‘a rosa sem espinhos’ devido à crença de que ela
foi eximida do pecado original6.
Como se percebe, a rosa, muito mais do que um bonito adorno para o
morto, tanto no velório quanto no túmulo, traz uma mensagem para os vivos: a
esperança de que o morto se encontra no Paraíso, perdido para os homens
após o pecado original, e a lembrança de que os homens devem evitar os erros
e pecados caso desejem alcançar esse Paraíso algum dia.
Símbolo Chi-Rho (XP): segundo Keister, este é
o mais antigo símbolo cristão. Chi e Rho são as duas primeiras letras da
palavra grega para Cristo. (...) Quando as duas letras são sobrepostas elas
formam um design de cruz. Diz-se que a reversão das letras para PX significa
uma abreviação da palavra latina pax, que significa “paz”7.
Temos aqui um bom exemplo de como o cristianismo e sua simbologia
se constitui de uma mistura de referências culturais diversas. Neste caso, um
símbolo grego que ganha também uma conotação de origem latina. Em todo
caso, trata-se de um símbolo mais do que apropriado para adornar um túmulo,
pois informa, ao mesmo tempo, a condição cristã do morto, além do desejo dos
vivos para que esteja em paz no reino dos céus.
Figura 03: Túmulo do Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás. Acervo Particular – Maria
Elizia Borges
Finalmente, no túmulo da figura 04 identificamos outra série de
elementos:
Estrela: na porção superior do túmulo nota-se a presença deste
símbolo. Neste caso, por se tratar de uma estrela solitária, remete à Estrela do
Oriente, que guiou os Reis Magos a Belém (Keister, 2004). No contexto do
túmulo e, por conseguinte, da morte, esta simbologia da estrela indica uma
esperança dos vivos de que seu ente querido tenha tido sua alma conduzida
aos céus, assim como os Reis Magos foram conduzidos pela estrela até o local
do nascimento de Cristo.
Urna com véu: representada no desenho da pedra logo abaixo da
estrela, representa, de fato, uma urna funerária semi-coberta com um véu.
Conforme explica keister (2004, p. 137), trata-se do
mais comum símbolo funerário do século XIX. (...) O tecido pode ser visto mais
um acessório de reverência ou como um símbolo do véu entre a terra e os
céus. A urna é para as cinzas assim como o sarcófago é para o corpo, o que
faz da urna um curioso mecanismo funerário do século XIX, uma vez que a
cremação raramente era praticada.8
Entretanto, podemos considerar que a urna representasse o sentimento
de proteção que os vivos esperavam que tivesse a alma do falecido. Ou, talvez,
ela traga mesmo a idéia das cinzas, mas não do corpo, e sim dos pecados
cometidos pelo morto. Libertada de suas impurezas – simbolicamente
encerradas na urna – a alma poderia ascender aos céus, em paz.
Figura 04: Túmulo do Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás. Acervo Particular – Maria
Elizia Borges.
A partir da análise destes túmulos, espero ter conseguido explorar
alguns aspectos sobre os significados dos símbolos incorporados aos jazigos,
como forma de adornar as construções. Estes desenhos, além de solução mais
econômica para a elaboração dos túmulos, constituem importantes registros da
importância da fé católica na mentalidade sobre a morte existente entre os
belavistenses. Conforme se percebeu, o Catolicismo teve papel fundamental na
formação da tradição cultural do município, e isso se transfere também para os
costumes mortuários, o que inclui os desenhos escolhidos para serem riscados
nas pedras dos túmulos.
Referências Bibliográficas
ALVES, Nilva Geralda do Nascimento; JESUS, Terezinha do Carmo de. A cidade de
Bela Vista de Goiás da origem à emancipação. 2003. 56 fl. Monografia (Conclusão
do curso de História) – Universidade Estadual de Goiás, 2003.
BORGES, Maria Elizia. A estatuária funerária no Brasil: representação iconográfica
da morte burguesa. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, João Pessoa, Vol. 3,
N. 8: 252 – 267, 2004.
KEISTER, Douglas. Stories in stone. A field guide to cemetery symbolism and
iconography. Salt Lake City: Gibbs Smith, 2004.
PEREIRA, Genivaldo Antônio. Depoimento. (mai. 1995). Entrevistadores: alunos da 8ª
Série do antigo Centro Educacional Terezinha de Jesus, atual Colégio TJ. Bela Vista
de Goiás, 1995.
1
O cultivo do fumo foi, durante muito tempo, uma das principais atividades econômicas da cidade de Bela
Vista de Goiás.
2
Foi feita, em 2007, alguma espécie de limpeza neste túmulo; a pedra, que já se encontrava bastante
enegrecida pela ação do tempo e das intempéries, hoje está branca, como se percebe pelas fotografias
presentes neste estudo.
3
Tradução da Autora.
4
Tradução da Autora.
5
Tradução da Autora.
6
Tradução da Autora.
7
Tradução da Autora.
8
Tradução da Autora.
TRAJETÓRIA E ESTRATÉGIAS – um estudo de caso do Cemitério de São Miguel da
cidade de Goiás
Deuzair José da Silva
Doutorando em História / FCHF - UFG
Resumo
A presente comunicação se propõe estudar o processo de criação do Cemitério de São
Miguel, localizado na cidade de Goiás. A trajetória e as estratégias percorridas pelos
proponentes, explicitadas principalmente nas doutrinas higienistas em voga na época,
numa mudança de sensibilidade coletiva com a separação dos espaços entre vivos e mortos
e que culmina na secularização crescente dos rituais em torno da morte, exemplo: a
transferência dos sepultamentos das igrejas para os cemitérios. As resistências à sua
criação, etc. Outro ponto será debater o cemitério como um espaço que reflete a divisão
social e hierárquica imperante no meio social, de memória, de saberes, das expectativas de
mundo. Ele está intimamente relacionado com a cultura deste povo, explicitado na arte
empregue na construção dos túmulos, nos adornos funerários e nos epitáfios.
ABSTRACT:
This communication proposes to study the process of creating the Cemetery of San Miguel,
located in the city of Goiás The trajectory and strategies covered by the tenderers,
explained mainly in the hygiene doctrines in vogue at that time, a change of collective
sensitivity to the separation of space between living and dead and culminating in the
growing secularization of the rituals surrounding the death, example: the transfer of burials
from the churches to cemeteries. The resistance to its creation and so on. Another point
will be discussing the cemetery as a space that reflects the social division and hierarchical
prevailing in the social, memory, knowledge, expectations of world. It is closely related of
this people’s culture, explained the art used in the construction of tombs in the funeral
dress and epitaphs.
KEYWORDS: cemetery - secularism - City of Goiás - nineteenth century.
Os estudos de caso têm, nos últimos anos, ocupado grande espaço na produção histórica.
São exemplos os trabalhos de Natalie Zemon Davis, Carlo Ginzburg e outros. Estes
trabalhos acompanham uma mudança em curso que se verifica mais claramente a partir dos
anos oitenta com o renascimento da narrativa. (VAINFAS, In: CARDOSO & VAINFAS,
1997: 147-8).
No decorrer do século XIX a doutrina sanitarista vive o auge. O discurso em voga
nos meios médicos refere-se à necessidade das cidades empregarem todos os esforços no
sentido de combater e melhorar o quadro sanitário das mesmas. Objetiva-se com isso
combater as epidemias e melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes. Na última
metade do século o discurso ganha mais força. Minha hipótese é de que isto indica a
gestação de um novo comportamento frente à morte – a laicização –. O crescimento
urbano, a maior circulação de informação e as críticas que vinha sofrendo a Igreja – muitos
pregavam a necessidade da separação entre Estado e Igreja, justificando que esta deveria
cuidar estritamente dos assuntos sacros – certamente contribuíram para o fortalecimento
dos princípios médicos.
Um dos principais alvos das críticas dos membros da saúde era o sepultamento no
interior das igrejas. Costume antigo e já estudado, que por isso mesmo não entrarei no
mérito do assunto. A criação de cemitérios extra-muros das cidades entra na ordem do dia.
Os debates tornam-se acalorados a favor e contra a idéia. Província distante, mas não
isolada dos grandes centros, Goiás também vive as mudanças em curso. O presidente da
província Francisco Ferreira dos Santos Azevedo propõe no ano de 1842 à Assembléia
Provincial a criação de um cemitério para a capital, que receberá o nome de São Miguel.
“Não podendo a Camara Municipal desta Cidade construir pelas suas rendas hum
Cemitério, continua se a enterrar os Corpos dos desgraçados no Campo da Forca, aonde
naó há nem se quer huma cerca, que vede a entrada dos porcos, que continuamente entaó a
fossar as sipulturas, de maneira que as vezes chegaó a apparecer os mesmos corpos,
exalando sempre, e principalmente quando o Sol esta mais ardente, hum fétido terrivel, o
que na verdade he bem prejudicial. Para evitar a continuaçaó destes terriveis
inconvenientes peço-vos mui encarecidamente Decreteis desde ja a quantia de 200U000
reis, para formar hum Cemiterio em lugar proprio, para o qual seraó transferidos os ossos,
que existirem no Campo da Forca, se elle naó for ali mesmo estabelecido fazer, com tudo
naó me animo a pedir maior, naó só por conhecer o estado de nossas Rendas, como por
estar certo de que naó faltará quem concorra para huma obra taó justa. Este Cemitério deve
ficar a cargo do Hospital de Caridade, para nelle se enterrarem os Corpos dos desgraçados,
e mesmo para outros quaesquer, mediante uma módica quantia, marcada pelo Governo
Provincial, beneficio do mesmo Hospital”. (Memórias Goianas 3, 1986:209-10).
O conteúdo do pedido citado é um rico filão das condições higiênicas e sanitárias de nossas
cidades à época. Os miasmas e o cheiro pútrido dos cadáveres em decomposição
incomodavam a todos. Em muitos casos as covas rasas e a falta de cercas como afirma o
Presidente da Província faziam com que a ação de animais deixasse restos de corpos à
mostra, um espetáculo tétrico aos olhos e muito nocivo a saúde. Será sobre situações como
esta que os médicos mais questionarão para justificar suas medidas sanitárias e por fim aos
sepultamentos intra-muros. Tarefa com certeza difícil diante de um costume já fortemente
arraigado pelas pessoas.
Chama atenção, também, no pedido do Presidente um dos componentes do
imaginário da época: o sentimento de piedade cristã para com os mortos, bem como, a
expectativa de caridade por parte de todos na empreitada de construção do cemitério. As
fontes estudadas até o momento não permitem afirmar se o presidente conclamou, de fato,
a população para ajudar na construção. Neste mesmo raciocínio pode-se aventar que os
cofres públicos provinciais, assim como o da Câmara estavam passando por dificuldades, a
julgar pelo apelo à caridade das pessoas. Percebe-se também que a estrutura administrativa
não era das mais aperfeiçoadas, tendo em vista entregar a administração do referido
cemitério ao Hospital de Caridade de São Pedro de Alcântara, bem como, demonstra a
influência que a Igreja ainda possuía.
A economia provincial segue crescendo em ritmo lento. Os estudos sobre a
economia goiana no período são discordantes. Para alguns autores logo após a escassez do
ouro, Goiás teria passado por uma forte decadência, para outros essa decadência deve ser
relativizada. Estes últimos fazem o seguinte questionamento: como falar em decadência
para uma capitânia que nunca foi assim tão próspera. No século XIX, as alterações não são
grandes a pecuária e a lavoura de subsistência é a base econômica da época.
Voltando à questão sanitária, Goiás não diferia das demais províncias. Já nos anos
trinta uma leitora do jornal Matutina Meiapontense que circulou por alguns anos desta
década escrevia ao redator solicitando a sua intervenção e apoio por ser este um importante
meio de comunicação da época. Com o pseudônimo de Roceira Zelosa conclamava o
jornal para que chamasse a atenção sobre os problemas dos miasmas cadavéricos e da
insalubridade das igrejas com os sepultamentos nos interiores e proximidades destas.
“FEDIA-SE POR TODA A IGREJA
No dia 2 de Novembro do corrente ano, dia em que se celebram os Divinos ofícios pelas almas dos
nossos fiéis defuntos, me achei na Catedral dessa Cidade de Goiás para enviar as
A manifestação fala por si só. Continuando o debate com a leitora pode-se
perguntar o que motivou o seu repúdio a uma situação por demais corriqueira naquela
época? Não encontrei nada ainda em particular que pudesse estabelecer alguma ligação
com os protestos destacados, a não ser o fato de estar em voga os princípios higienistas
propagados pela medicina social, que crescerá muito no decorrer do século. Acredito
tratar-se de uma pessoa de algumas posses pela maneira de referir às demais senhoras que
lhe acompanha nas orações e também porque a leitura era um privilégio de poucos. O fato
de ter acesso a jornais e a outras informações e assuntos em voga, pode daí ser uma das
razões da sua postura. O Jornal não informa maiores detalhes sobre a remetente. A sua
identificação poderia nos permitir avaliar de onde provém e poder entender a sua adesão ao
movimento higienizador, que crescia na sociedade. Mas não deixa de ser uma posição
inusitada e/ou até a frente de sua época, mesmo não tendo ainda índicos que me permitam
afirmar que o movimento de criação dos cemitérios em Goiás tenha enfrentado ou não
oposição dentro da população.
Ademais, a questão é também de ordem social, preocupada com o grande fluxo de
vagabundos e indigentes perambulando pelas ruas. A classe dominante busca meios de se
proteger e garantir sua posição. Transfere ao poder público o controle da situação, mas
também o ônus da repressão. São mudanças importantes na estrutura social que implica
uma nova relação no jogo de poder. O Estado a cada dia amplia os seus tentáculos e que se
consolida ao longo da república, rompendo devagar as heranças patrimonialistas herdadas
da colônia. Mas isso não significa alterações radicais no status quo social que mantém
praticamente intacta as relações de classe e os privilégios das classes dominantes
reforçadas pela divisão entre livres e escravos. No decorrer da segunda metade do século a
luta contra escravidão cresce, possibilitando alterações na composição social. Deixo claro
que a discussão em torno da escravidão não é meu objetivo, mas tão somente mostrar como
a hierarquização atravessava de alto a baixo todos os setores e campos da comunidade.
As disposições higiênicas vividas no Império fazem parte deste amplo processo de
mudanças que vem desde a independência com uma progressiva atuação, burocratização e
regulamentação por parte do Estado. Isto altera de algum modo o cotidiano das pessoas,
impondo novas regras de sociabilidade. Vale lembrar que estas não se estabelecem por
mão única, o grupo também impõe suas vontades. Longe do consenso, as alterações são
frutos do conflito. É aquilo que Homi Bhaba chama do entre-lugar (Cf. BHABA,
2001: 70-104). É aí que se dá o novo, a cultura de um povo. A propósito destas alterações
nos fala Moraes:
“Podemos observar, partindo da Lei de 1828 e das Posturas Municipais de Goiás, de 1830,
o aumento das preocupações com os odores sociais e urbanos. O trabalhador é disciplinado
para perceber o fedor da água estancada, do cadáver e da carniça pelos perigos inerentes
aos mesmos. O Hospital de Caridade de São Pedro de Alcântara encarrega-se do cuidado
com o obcecante charco humano transferindo para o espaço público da cadeia pública, das
praças e das ruas, as estratégias sanitárias experimentadas no espaço privado”. (MORAES,
1995:57)
As palavras de Moraes são elucidativa daquilo que estou debatendo. São questões
que estão imbricadas no conjunto de mudanças do período. As doutrinas sanitaristas e a
criação dos cemitérios secularizados é tão somente uma célula.
“PARTE OFFICIAL
PRESIDÊNCIA DA PROVÍNCIA
EXPEDIENTE
26 de Agosto
- Resolução. O presidente da província resolve nomear uma comissão composta do
procurador fiscal da thesouraria das rendas provinciaes – Antonio Gonsalves Dias, do
Capitão Ignácio Xavier da Silva, membro da junta de Caridade, do tenente coronel Antonio
José de Castro, do capitão Joaquim Manoel da Chagas Artiaga e de Joao Parode para
proceder aos convenientes exames no cemitério da capital, que a pouco foi concluído e
entregue pelo empresário o tenente coronel Josè Rodrigues de Moraes, a fim de emittir o
seu parecer sobre o gráo de solidez e perfeição d`aquella obra, avaliando ao mesmo tempo
a despeza total, que deve ter feito o empresário com a construção do dito cemitério, para
que se possa cumprir o disposto no art. 5º § 7º da lei provincial nº 11 de 9 de novembro de
1857. – Fação-se as necessarias comunicações. – Communicou-se aos nomeados, dizendose-lhes que espera de seu zelo o satisfatório desempenho da dita incumbência”1.
1
GAZETA OFFICIAL DE GOYAZ. Ano I. nº 40. Sabbado 6 de Outubro de 1858. p.4. Exemplar
microfilmado existente no IPEH-BC. Goiana-Go.
Preocupação normal por parte de um administrador público competente.
Infelizmente não são citadas as profissões ou formação dos mesmos que permitiria analisar
melhor a capacidade de exame da obra por parte da referida comissão. O cemitério de São
Miguel é inaugurado em 1858. Mas os vínculos com a Igreja não foram totalmente
rompidos, haja vista que este ficou primeiro a cargo do Hospital de Caridade de São Pedro
de Alcântara administrado pela Santa Casa de Misericórdia.
“Capítulo 1º
Do cemitério
Art. 1º A inspeção e a administração do Cemitério fundado nesta capital comete a Junta do
Hospital de Charidade de São Pedro d’Alcântara ao qual fica pertencendo a receita de
estabelecimento com a obrigação de fazer as despesas necessárias á sua manutenção na
forma da citada Resolução nº 11de 29 de Julho do ano passado”1.
Em 1925 o município assume definitivamente o controle administrativo do
cemitério na gestão do interventor municipal Dr. Agenor de Castro. A sociedade como um
todo caminha lentamente rumo a uma maior secularização. Não quero dizer aqui, que isto
signifique um rompimento total com a Religiosidade. Esta ainda continua a ter forte
presença no nosso meio. Não acontece aqui o abandono dos preceitos religiosos, a
secularização atinge basicamente o aspecto administrativo. No mais a religião continua
tendo forte influência. A presença de cruzes, de imagem de anjos e de santos nos túmulos,
de epitáfios de cunho idêntico denota isto. A presença da capela logo na entrada constitui
também uma evidência do peso da religião.
Prosseguindo, passo a discussão sobre a distribuição espacial do cemitério de São
Miguel. A chaga dos atritos entre livres e escravos interfere, tendo “presença” até mesmo
no outro lado da vida. O cemitério de São Miguel reflete claramente isto ao prever
localizações distintas para cada membro da sociedade de acordo com sua posição social.
(Ver foto e descrição ao final). Ao estabelecer locais distintos de inumação para livres e
cativos a lei nada mais fazia que ratificar uma legislação que já continha em seu bojo a
separação. Separação esta não como algo alienígena, mas dotada de toda uma
instrumentalização jurídica dentro do direito moderno.
1
Fonte: Livro 1º de Regulamentos expedidos pelo Presidente – 1858... Ano 1859. Regulamento para
Cemitério. P. 10. Arquivo Histórico Estadual. Nº Atual do AHE: 380.
CANTOS FÚNEBRES DE GOIÁS
Edna de Jesus Goya
Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás
Resumo
O objetivo do texto é falar do Canto Fúnebre, como tradição oral, ou oralidade, experiência
transmitida na cultura pelo boca a boca e compreender como a tradição oral acontece do ponto
de vista prático e vivencial, e na mesma concretude de outras manifestações culturais,
tradicionais, regionais de Goiás, a exemplo do Canto de Trabalho das Fiandeiras, cantados
durante a fiação do algodão, para explicar a cultura oral. Buscamos na Semiótica da Cultura os
fundamentos teóricos para orientar como esse acontecimento se dá. O Carpir caracteriza-se
como manifestação feminina, pela figura da carpideira, que tem como ofício lamentar o morto,
ou moribundo, através de rezas e benditos. A ela cabe a reza, as lágrimas, os lamentos e
cantar durante o cortejo fúnebre. A carpideira canta para o moribundo e na morte, com o intuito
da abrandar o sofrimento e preparar a transição da alma do morto para o céu.
Palavras-chaves: cultura oral, morte, carpir
O Canto Fúnebre, canto mortuário, ou Excelência é praticado nas
regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste, com diversidade de
expressões dessa natureza. O interesse pelo tema se deu pela riqueza cultural
que o objeto proporciona, mas é claro que para que haja o entendimento do
assunto é necessário se abordar, ainda que superficialmente, conceitos de
cultura sob o ponto de vista da oralidade conforme a teoria.
Falar do Canto Fúnebre remete-nos a pensar tanto nas questões que
motivam o homem a reverenciar o passado, quanto à necessidade de se
conservar as tradições: ritos, costumes e crenças. Preservar tradições é uma
forma de movimentar, de guardar e de rememorar, de carregar as memórias do
homem para outros tempos, situações e contextos. É fazer-nos pensar na
cultura como capital humano fundamental e necessário à própria sobrevivência
da espécie, além de provocar reflexão sobre a cultura, como produto que é
selecionado,
acumulado,
guardado,
depositado,
arquivado/esquecido,
armazenado, conservado, transmitido, transportado e assimilado. Isso envolve
princípios vários de aquisição e programas de ação que envolve o lembrar e o
esquecer, o selecionar e o guardar. Assim sendo, leva-nos, conseqüentemente
a refletir a necessidade de se guardar memórias1, ou de se lembrar de
determinados fatos, coisas, costumes. Preservar tradições é fazer com que
elas sobrevivam ao esquecimento como valores.
O Canto Fúnebre, enquanto cultura oral faz parte de uma prática quase
universal e tem como finalidade reverenciar e lamentar os mortos. Evidencia-se
como expressão musical, considerado de cunho religioso, católico popular.
Tem como propósito reunir os parentes e amigos do morto, desde os primeiros
momentos da agonia, até a partida do corpo para o sepultamento. Faz parte de
o ofício Carpir.
Os Cantos Fúnebres, as cantorias mortuárias, são conhecidos como
excelências, inselências ou inselenças. Inicialmente a função do canto fúnebre
era de despertar no moribundo o horror ao pecado, induzindo-o ao
arrependimento, ou para conduzir o morto ao céu. Faz parte do cotidiano rural
e urbano, sendo que na região nordeste o morto é velado, geralmente, deitado
na rede. Há casos em que as mulheres dividem o trabalho, sendo que uma fica
à porta para receber autoridades, como o padre, que vem para dar ao
moribundo a extrema unção. A recepção é feita pelas mulheres sempre
cantando, enquanto outras permanecem carpindo ao lado do corpo. O canto
fúnebre reflete as dores, os sentimentos, as crenças e a cultura de um grupo
social. O ato de carpir busca evidenciar ao morto o sofrimento dos vivos.
Embora Cascudo (1950), pesquisador da cultura popular, afirme não
ter encontrado, no Brasil, a carpideira profissional para lamentar o defunto
alheio, de forma paga, à origem do canto fúnebre está relacionada ao trabalho
remunerado, pois surge como profissão e trabalho é definido por Max (Apud
Ficher, 1981, p. 21) como:
... atividade deliberada ... para a adaptação das substâncias naturais aos
humanos; é a condição geral necessária para que se efetue um intercâmbio
entre homem e a natureza; é a condição permanente imposta pela natureza à
vida humana, por conseguinte, independe das formas da vida social – ou
melhor, é comum a todas as formas sociais.
Ao se considerar a raiz dessa prática; do canto fúnebre ou carpir como
trabalho remunerado, se percebe que duas ações se entrelaçam e se
confundem, ou seja, ao mesmo tempo em que ato de cantar o Canto Fúnebre
se evidencia como trabalho revela-se com o ato de aliviar o esforço de
trabalhar. As mulheres, pagas para carpir: rezar, velar, lamentar ou chorar o
morto, ou moribundo, parecem aliviar, pelos cantos, os esforços físicos,
causados pelo ato de trabalhar que é o próprio cantar, ainda que estes
emanem tristeza e sofrimento.
Nos Cantos de Trabalho das Fiandeiras da Cidade de Anápolis o ato
de cantar tem função de aliviar e alegrar, de amenizar e tornar os esforços
físicos menos dolorosos e mais prazerosos. No costume de carpir, ou de
prantear o defunto, o trabalho dá-se pelo esforço físico, materializado na
maneira dramática, performática com que as mulheres choram o morto.
Os cantos fúnebres, assim como a cultura oral, não têm autor definido,
ou um lugar certo de origem, uma vez que é passada de geração a geração,
pelo boca a boca. Foram experienciados em diferentes espaços, tempos e
culturas, por sociedades heterogêneas. A diversidade de formas de carpir
representa a ressemantização da cultura oral; a sua atualização, recriação e
mudança de significados no decorrer dos tempos e culturas. Enquanto
memória, armazenada, nos permite revisitar o passado e transformar o
presente. São as culturas que dão sentido ao objeto; ao canto, o explicam e
justificam o seu uso. Pelo ritual, contido no objeto, é possível se reconhecer
traços de uma cultura, denunciados pela maneira como este se revela.
O Canto Fúnebre, como os demais cantos de tradição oral, tem origem
remota, já que sempre foi inadmissível para as sociedades, tanto para as do
passado, como do presente, enterrar um defunto sem choro, sem velório (sem
vela), sem honrarias, sem coroas, sem flores, sem missa de corpo presente, ou
sem cortejo, pois seria a mesma coisa que enterrar um defunto indigente; sem
parentes.
Sabe-se que o costume de carpir foi praticado em Roma, como ritual
quase obrigatório, sendo praticado de duas formas: a Prefica, em que a
carpideira era paga para cantar os benditos e rezas, e a Bustuária, ritual para
acompanhar o defunto ao local de cremação, com níveis de choros
estabelecidos pelos preços.
Na Idade Média, era de costume se cultuar “A arte de Bem
Morrer” (GOMBRICH, 1978, p.213). A Igreja se utilizava de estampas
xilográficas como “sermão ilustrado”, sendo que a finalidade das imagens era
lembrar aos fieis a hora da morte, que deveria ser preparada ao longo da vida,
cultuada pela devoção e pelo cumprimento dos deveres para com a Igreja.
Outra categoria simbólica de carpideira destacada por Cascudo (1950)
é a chorona, representada por bonecas, dispostas sobre o caixão do morto,
durante a missa, denominada de missa de corpo presente, ou sobre a
sepultura, no dia dos mortos. Esse costume foi praticado pelas famílias mais
abastadas da cidade de Vitórias de Santo Antão (PE).
A prática de carpir espontânea e vocacional é de origem portuguesa.
No Brasil, o carpir perde o valor de trabalho remunerado e adquiri sentido de
solidariedade, de compartilha aos momentos difíceis, de fraternidade e
amizade para com a família do morto. É de praxe a carpideira não receber
pagamentos, mas apenas agrados, ou recompensas em roupas, alimentos ou
dinheiro, pelo sofrimento compartilhado.
Os Cantos Fúnebres são praticados em vários estados do Brasil, como
em Alagoas, Rio Grande do Norte, em Vitória de Santo Antão, interior de
Pernambuco, em Juazeiro do Norte, interior do Ceará, terra de padre Cícero
Romão Batista e interior de Minas Gerais. O canto fúnebre é conduzido por
uma rezadeira ou puxadeira, mulher que conduz a cantoria, reza, terço, ou
bendito (no caso de agonia prolongada) reza que ajuda a morrer.
O ritual fúnebre revela, de certa forma, desapego à vida matérica,
conduzindo à família e entes-queridos à compreensão e à aceitação da morte.
Apresenta
diversidade
de
letras,
cantadas
em
uníssono,
e
sem
acompanhamento instrumental. Assim como os Cantos de Trabalho das
Fiandeiras de Goiás, também são cantados de improviso. Pelos tons
nasalados, tristes, induz ao choro coletivo e a tristeza.
Existem cantos e rezas para diferentes momentos e situações: para
moribundos (doentes) e para o velório. Há cantos e rezas para o estado
moribundo (antes do falecimento); para o preparo do corpo (banho e vestir);
para velar o morto (realizado aos pés do defunto); e para a despedida (para o
funeral, saída do corpo para o cemitério). O morto é preparado: banhado,
enxugado, penteado, unhas cortadas, vestido e deitado no caixão ou rede. Os
olhos são fechados. O nariz, a boca e os ouvido são vedados com algodão. É
de praxe se escolher a melhor roupa ou fazer a mortalha para vesti-lo. No
sertão do estado de Tocantins era de costume se vestir o defunto, homem, com
os trajes do casamento. A mulher é vestida com mortalha, de cor clara; azul ou
branca, que representam o céu e a paz. Adorna-se o corpo com flores de papel
(seda ou crepom), plástico ou natural, sendo que o rigor dos trajes depende da
condição da família. O caixão é colocado na sala, com os pés do morto,
direcionados à de saída, para representar a partida do plano terreno.
Durante o velório o caixão deverá ficar aberto. O corpo é cercado por
quatro velas, distribuídas em formato de cruz. Além do canto de lamento,
realizado durante o estado moribundo, velório e enterro, são rezadas orações
(benditos), acompanhadas de cantigas, de melodias regulares. Os benditos são
rezados à cabeça do defunto, ou para despertar as almas do purgatório,
geralmente cantados, pelas ruas, na Semana Santa, à meia noite.
Uma vez iniciado o canto este não pode ser interrompido, pois
conforme carpideiras a interrupção pode atrapalhar o encaminhamento da
alma. Os versos são compostos com frases rimadas, sempre em número de 1
a 12, para defunto adulto e de 1 a 9 para criança. Um canto de excelências
geralmente
tem
início
no
cerimonial
de
quarto
e
se
estende
ao
acompanhamento do cortejo fúnebre, até o cemitério. Há caso em que a
cantadeira é seguida pelas carpideiras, mulheres que prestam serviços aos
familiares do defunto.
A ferramenta de trabalho da carpideira é a sua voz e o terço, mas é
através da cantoria que elas provocam os mais intensos sentimentos, cujo
propósito é confortar os familiares para superarem a perda do ente querido. O
Canto Fúnebre representa um grito simbólico, um manifesto contra o
esquecimento daquele que irá partir para sempre para que não seja esquecido.
Existe uma grande diversidade de cantos de trabalho no Brasil, e nos
remetem ao período colonial, paralelamente à implementação da mão-de-obra
escrava, empregada tanto no campo quanto nas áreas urbanas. No momento
atual, pouco dessas práticas sobrevivem em virtude do processo de
modernização da sociedade. Em Goiás, identifica-se o Canto de trabalho das
Fiandeiras e o de Aboio.
Ao ser indagado sobre a sobrevivência dessas tradições no decorrer do
tempo, Ortega y Gasset (apud Zumthor, p. 13) nos diz que “a tradição é uma
colaboração que pedimos ao nosso passado para resolver nossos problemas
atuais”.
Hoje se questiona o funcionamento da tradição e da conservação da
memória durante tempos mais longos. Estaria o problema da conservação da
memória excessiva correlacionada à crise existencial da humanidade frente a
tantas transformações decorrentes da Pós-Modernidade, que nos colocou
numa grande “aldeia global”, ou dentro de uma cultura de tendência
“planetária” que busca a unicidade e faz desaparecer aparentemente as
diferenças?
Podemos pensar que estamos vivendo um momento de desesperada
busca da recuperação da identidade (grifo nosso) – termo aqui colocado no
sentido da busca do reconhecimento por parte de um povo dentro de um texto
cultural. Duarte (1979), refere-se a busca da referência como maneira para se
defender frente a desidentificação).
Ferreira (2003) nos responde a esta pergunta, dizendo-nos que dentro
de um grupo social a preocupação, para com a memória armazenada, é
assegurar somente aquilo que é essencial à cultura. Desse modo, aquilo que é
desnecessário é esquecido e descartado. Colombo (1991) nos fala que a
obsessão mnemônica estaria ligada a um século em que o homem conheceu
grandes tragédias bélicas e, com isso, passou a viver sob o terror de um
próximo e talvez irreversível declínio. Isso, entre outras coisas, provocou uma
espécie de corrida ao passado, a um tipo de mania arquivística.
Nesta direção, Zumthor (1997) nos diz também que a memória visa a
assegurar a ocorrência de um indivíduo na proposição de sua duração, ou seja,
ela cria a possibilidade de se ordenar na sua existência. Logo, para se
assegurar a permanência daquilo que é essencial à seleção do texto cultural,
deve-se deixar de lado aquilo que é considerado irrelevante. Dessa forma,
esquece-se o que se considera descartável e assegura-se a sobrevivência do
texto cultural via recriação.
Canto de Trabalho das Fiandeiras de Goiás, diferentemente do Canto
Fúnebre, é um dos casos em que os grupos buscam manterem-se vivos pelas
suas práticas e, com isto, fazer sobreviver no tempo suas lembranças, ao lutar
pela permanência de valores de um passado distante. São cantados por donas
de casa, tradicionais, casadas, mães, e ligadas por valores de uma época cuja
linguagem lhes remete a uma mesma experiência vivencial; época em que a
atividade da mulher sertaneja limitava-se de forma exclusiva ao trabalho
doméstico, ou seja, de cuidar dos afazeres do lar: zelar da casa, dos filhos, do
marido
e
ajudar
na
lavoura
quando
necessário.
Salienta-se
que
desempenhavam atividades tidas como impróprias ao homem, tais como:
costurar, bordar, cozinhar, fiar, tecer redes e até mesmo tecidos mais finos
para confecção de roupas. Atividades essas que as qualificavam para o
casamento.
As mulheres fiandeiras representam uma época e refletem, por um
lado, a condição feminina rural hierarquizada, numa situação de submissão
dentro da família e de uma vida difícil. Por outro lado, a permanência
existencial destes grupos busca assegurar a sua existência. Representam um
estado de luta, uma conquista atualizante e progressiva, ao mesmo tempo
sofrida em virtude da tentativa de manter viva uma tradição oral que para a
sociedade tecnológica perdeu o seu valor.
O grupo fiandeiras da comunidade de Anápolis esforça-se para se
fazer existir e pela cultura, para garantir a permanência daquilo que é
considerado vivo dentro do grupo e do que as cidades consideram herança
cultural, valores que, para elas, não devem ser relegados ao esquecimento,
“deixar de existir” (Fernandes e Park, 2006, p. 40), mas sim, preservados.
Reviver esse passado é, para elas, uma forma de assegurar a própria
identidade, ou do que se pode chamar de "Eu" (Proust, citado por CHAUI, p.
125) e, com isso, poder reunir, pelo canto, tudo o que foram e fizeram, e tudo o
que são e fazem.
A memória coletiva2 desse grupo, ou a forma como os cantos de trabalho da fiação
são preservadas dá-se através da organização social, sistematizada em forma de associação,
meio de assegurar o interesse coletivo. Por meio da organização as mulheres da comunidade
reagem contra a inércia imposta pelo cotidiano e contra a sua própria exclusão. Ao cantar e recantar os cantos lutam contra o esquecimento do seu modo de vida, em direção à captura e
reorganização dos fragmentos os quais sentem ser importantes e significativos para o futuro
delas, e para a garantia de sua existência. Assim sendo, as histórias-cantos não ficam presas
ao passado, mas são reconstruídas pela “experiência” (Benjamin, 1913, p. 09) acumuladas e
transmitidas oralmente, por meio de narrativas espontâneas, decorrentes de uma organização
social comunitária, cujo foco centra-se em torno do artesanato.
Apesar de a cultura popular ser considerada subordinada à cultura dominante ela
exerce uma função histórica; no sentido de alimentar um sonho de desalienação, de
reconciliação do homem com o próprio homem e com o seu mundo. Por meio dela, novos
sentidos são dados à vida cotidiana, o que, segundo Zumthor (1997), isso não implica em sua
identificação com as denominadas tradições populares, hoje transformadas em objetos de
museu, de curiosidade ou de consumo, ao serem resgatadas ou preservadas apenas como
recuperação dos aspectos regionalísticos ou de animação turística.
Os Cantos de Trabalho das Fiandeiras estão armazenados na memória do grupo de
fiandeiras e, neste sentido, estão sendo tratados como informação, como comunicação poética,
embora se refira ao religioso ou a morte. Ao resistirem ao esquecimento nos faz pensar como
Lotman (Apud Ferreira, DEZ/FEV, 1994/1995, p. 117) ao nos indicar que a “cultura é um
mecanismo complexo e dúctil da consciência e que o âmbito da cultura é o teatro de uma
batalha ininterrupta de tênues desencontros e conflitos de toda ordem lutando-se para o
monopólio da informação”. É neste sentido que se leva a afirmar que a essência da cultura
como informação significa colocar o problema relacional entre cultura e essas categorias
fundamentais de sua transformação e conservação, e às noções de língua e texto.
Os cantos de Trabalho das Fiandeiras, hoje, pertence ao que a cultura
"erudita" (Grifo nosso) denomina como folclore ou cultura popular, termo que
após várias transformações adquiriu sentido mais abrangente, e numa
perspectiva sociológica de “folclore – em – situação”, o que para Zumthor
(1997) significa um processo de comunicação.
Na prática vocal M. Jousse (apud por Zumthor, 1997 p. 34), distingue
dois modos de comunicação; o vocal e o falado. O primeiro corresponde a todo
tipo de enunciado feito pela boca e o segundo ao comunicado formalizado de
um modo específico. Do ponto de vista social, a voz realiza dois modos de
oralidades: um primeiro fundado na experiência imediata de cada sujeito e o
outro, sobre saber mediado, mesmo que parcialmente mediado por tradição.
Ambos os modos são práticas que se desenvolvem por meio de vínculo social
e se oficializam via força de persuasão, dando-se pelo testemunho que
constitui a comunicação. Neste sentido somos levados a pensar numa memória
não fixa capaz de adequar-se às várias exigências de existência.
No pensamento de McLuhan (apud por Zumthor, 1997, p.34), no
universo da oralidade o homem está diretamente ligado aos ciclos naturais da
comunicação, e os textos são interiorizados sem a conceituação de sua
experiência histórica; de acordo com a força de sua interiorização, o conceito
de espaço é sentido como a dimensão do nomadismo. Desse modo, as normas
coletivas é que determinam os seus comportamentos, processo contrário ao
uso da comunicação escrita que implica uma desvinculação entre pensamento
e ação, levando ao enfraquecimento da linguagem e da predominância de uma
concepção linear do tempo e cumulativa do espaço, individualização, enfim, a
normatização das relações.
Os Cantos Fúnebres, assim como os de fiação, cantados pelas
Fiandeiras de Goiás enquadram-se numa oralidade que coexiste com a escrita,
e, de acordo com essa coexistência, pode funcionar de duas maneiras: como
oralidade mista, caso a influência da escrita seja externa, parcial ou retardada
(isto, no caso de sociedades analfabetas de países subdesenvolvidos), ou
como oralidade segunda, recomposta a partir da escrita e no interior de um
meio em que esta é sobreposta aos valores da voz, na prática e no imaginário.
São contrárias a ponto de vista em questão, ou seja, são sustentadas pela
escrita. Tais tipos de oralidades opõem-se à oralidade primária ou pura (das
sociedades arcaicas), daquelas que não têm contato com a escrita e a
oralidade mecânica, mediatizada.
Porém, o que difere os Cantos Fúnebres dos de Trabalho de Fiação é
que estes se encontram, em Goiás, em processo de esquecimento profundo.
Estão quase sepultados na memória das mulheres. Para elas não há
possibilidade da narrativa permanecer, deslizar-se sobre outros cantos, sob
outras formas nas narrativas (Ferreira, 2003) ou de serem ressemantizadas,
pois perdera o seu sentido para as gerações mais jovens. Apenas duas, das 36
mulheres, mais idosas, que fazem parte do grupo de fiandeiras: Dona Maria
Costa dos Santos e Dona Firmina Josefa Pinto, se lembram dos versos, pois
caírem em desuso, sendo relegados ao esquecimento. Ao cantarem os versos
as mulheres revelam forte emoção ao reviverem e relembrarem seus entesqueridos.
Os cantos abaixo são praticados nas Regiões Norte (Estado do
Tocantins), e Centro-Oeste (Goiás) e parte da Região Nordeste. Em Goiás,
hoje, são existentes apenas na memória dos velhos que armazenam em suas
lembranças os antigos rituais mortuários, sertanejos, de seus antepassados.
Canto de Alerta às Almas Pecadoras do Purgatório
Este canto é realizado, na quinta-feira santa, à noite pelas ruas das
cidades, ou pelos caminhos e estradas do sertão, em direção ao cemitério. A
finalidade do canto é acordar as almas sofredoras do purgatório, sensibilizá-las
e ajudá-las a encontrar o caminho da luz e da salvação. Cristo, ao ressuscitar,
também poderá levantar os mortos, pecadores do purgatório, e lhes conceder o
perdão. Então, as orações servem de incentivo às almas. Ao terminar cada
verso a puxadeira faz súplicas e rezas para as almas adormecidas. As demais
mulheres respondem dizendo: Tende misericórdia, senhor... Amém. As
senhoras que cantaram os versos ficaram bastante emocionadas, pois os
cantos lhes fizeram lembrar seus entes-queridos. As letras foram transcritas, na
originalidade conforme cantadas pelas mulheres.
Canto a alma pecadora
Pecador agora é tempo
De cumprir sal e temor
Serve a Deus desprezada o mundo
Não seja mais pecador
De pecado em pecado
Quem no mundo pais honrrô
Por blinda Santas Missões
Já não seja pecador
Oração de súplicas : Vós Senhor que sois misericordioso tende piedade de todas
almas do purgatório. Ajudai-vos a encontrar o caminho da luz para a salvação dos
seus pecados. Senhor Jesus Cristo que padeceu e ressuscitou ao terceiro dia, tende
piedade de todas as almas pecadoras que sofrem e vivem na escuridão. Ajude as
almas a encontrarem o caminho da luz e da verdade. Amém. (Continua-se o canto)
Canto do ato de morte
A excelência é cantada pelas mulheres, conduzida pela puxadeira,
(condutora da reza). Ela canta o primeiro verso e as demais repetem numa voz
desigualada e roca (voz nasalada). Para que a cantoria se estenda ao um
longo do velório deve-se ir aumentando o número de excelências até 12. Nos
intervalos, entre um verso outro, são rezados benditos, feitas súplicas ou
rezado terço em benefício da alma do morto. Após as 12 excelências, e para
terminar cantoria, e no último verso, não se deve dizer a quantidade de
excelências, mas tantas excelências
Canto de inselênça
Uma inselênça das Virgens
Senhora da solidade
Ela é nossa mãe santíssima
Ela é dolorosa
Ela é imaculada (Bis)
(Rezas e súplicas)
Duas inselênças das virgens
Senhora da solidade
Ela é nossa mãe santíssima
Ela é dolorosa
Ela é imaculada (Bis)
Tantas inselênças das virgens
Senhora da solidade
Ela é nossa mãe santíssima
Ela é dolorosa
Ela é imaculada
Canto do ato de morte
Uma espada de dor
No coração de Jesus passou
Foi uma dor que me fez chorar
No tormento da paixão
Ô, ô dô que Jesus padeceu
E sua mãe no seu coração (Bis)
(Rezas e súplicas)
Duas espadas de dor
No coração de Jesus passou
Foi uma dô que me fez chorar
No tormento da paixão
Ô, ô dô que Jesus padeceu
E sua mãe no seu coração (Bis)
(Rezas e súplicas)
Tantas espadas de dor...
As excelências de despedida do morto são intercaladas com terços e
súplicas em benefício da alma do morto. Após as 12 excelências e para
encerrar a cantoria, canta-se o último verso sem dizer a quantidade
excelências, mas tantas excelências.
Canto de despedida do morto para o cemitério
Uma inselênça
Dizendo que a é hora
Ajunta os carregadores
Que o defunto
Quer ir embora (Bis)
(Oração e súplicas)
Duas inselênças
Dizendo que a é hora
Ajunta os carregadores
Que o defunto
Quer ir embora (Bis)
Tantas inselênças
Dizendo que a hora é hora
Já vem os carregadores
O defunto já vai embora
Adeus! Adeus!
Que o defunto
Já vai embora (ou Que o defunto quer ir
embora) (Bis)
Referências Bibliográficas
BADAN, Rosane Costa. A Memória Coletiva. Apostila.doc. Goiânia, 25 de março de
2002. 1 arquivo (40,960 bytes). Disquete 3.1/2. Word for 2000.
BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin ou a história aberta In Magia e Técnica, Arte e
Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 1º
ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 07/19.
CASCUDO, Luís Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global,
2000.
CHAUI, Marilena. A memória: lembrança e identidade do Eu. In: Convite à Filosofia.
12a ed., São Paulo, Ática, 2002.
COLOMBO, Fausto. Arquivos imperfeitos. Trad. Beatriz Borges. São Paulo,
Perspectiva, 1991.
DUARTE JR. Itinerário de uma crise: a modernidade. Curitiba, Ed. UFPR, 1997.
FERNANDES, Renata Sieiro e PARK, Margareth Brandini. Lembrar-esquecer:
trabalhando com memórias infantis In: CADERNOS CEDES / CENTRO DE ESTUDOS
EDUCAÇÃO SOCIEDADE-Vol. 1. n. (1980). São Paulo: Cortez; Campinas, CEDES,
1980.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Trad. Leandro Konder. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1981.
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória. Cotia (SP): Ateliê Editora, 2003.
______. Cultura é Memória. Revista USP-SP (24):114-120, Dezembro/Fevereiro,
1994/95.
GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1978.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia
D. Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo, Hucitec, 1997.
1 “A memória é uma atualização do passado ou presentificação do passado, e é também registro do presente para que
permaneça como lembrança”. (CHAUI, p. 128).
2 “A memória coletiva (...) envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas. Ela evolui segundo suas leis, e se
algumas lembranças individuais penetram alguma vez nela, mudam de figura assim que estejam recolocadas num conjunto que não é
mais consciência pessoal”. (Halbwachs (1990), citado por Badan, p. 03).
O enigma dos cemitérios da cidade de São Paulo
Eduardo Coelho Morgado Rezende
Mestre em Geografia Humana USP, Professor da UNIBAN
Resumo
Este trabalho aborda os cemitérios da cidade de São Paulo, as antigas igrejas e túmulos
curiosos, além da história das pessoas de São Paulo nos séculos XIX e XX.
Palavras-chave: Cemitérios – Cidade – São Paulo – Túmulos – Igrejas.
A cidade de São Paulo conta atualmente com quarenta cemitérios, sendo
vinte e dois públicos e dezoito particulares, o mais antigo já desapareceu (Aflitos
1774), porém, resta a sua pequena capela no bairro da Liberdade.
O Cemitério dos Aflitos já não mais existe, entretanto, muitos habitantes da
cidade ficam intrigados quando passam na Rua dos Estudantes e observam
aquela capela no fundo do beco, grudada com as casas, o seu sino pode ser
alcançado pela mão dos moradores vizinhos.
Outro fato enigmático envolvendo o Cemitério dos Aflitos é o sepultamento
do antigo professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Júlio Frank,
que foi enterrado na calada da noite na própria faculdade.
A empreitada ocorreu quando alguns estudantes ficaram inconformados
com a ida do corpo de Júlio Frank ao Cemitério dos Aflitos, e resolveram
transladar o caixão para dentro da faculdade. Júlio só foi mandado aos Aflitos
porque não era católico, e, portanto não podia ser enterrado em nenhuma igreja
de São Paulo.
Durante muitos anos, no dia dezenove de junho, o pátio onde está
enterrado Júlio Frank era aberto à visitação e seu túmulo ficava iluminado e
enfeitado, tradição que se desfez no ano de 1972.1
Um acontecimento trágico também envolvendo cemitérios e estudantes do
Largo São Francisco foi a morte da Rainha dos Mortos. No tempo em que São
Paulo era uma pequena vila sobravam poucas opções de lazer para os
estudantes.
Nesse período, reinavam as prostitutas e os personagens que viviam a
boêmia paulistana, como o Padre Bacalhau e a prostituta Ritinha Sorocabana, a
preferida dos poetas e boêmios da cidade.
As farras e algazarras que os estudantes promoviam, também eram outras
formas de passar o tempo na pacata vila de São Paulo. A estudantada (como
eram conhecidas essas farras) mais trágica foi o episódio que ficou conhecido
como Rainha dos Mortos.
Durante uma madrugada, os estudantes resolveram levar a prostituta
Eufrásia para dentro do Cemitério da Consolação, e para isso arrumaram um
caixão, e em procissão pela cidade os estudantes levaram Eufrásia viva até o
cemitério, quando abriram o caixão perceberam que Eufrásia estava morta.
A idéia era fazer uma celebração, onde Eufrásia seria coroada Rainha dos
Mortos, todavia, a rainha deveria estar viva e não morta como Inês Pereira. O
caixão fechado asfixiou Eufrásia.
Como os envolvidos no caso eram de famílias influentes o processo acabou
sendo arquivado. Um dos estudantes nessa farra era o poeta Fagundes Varella.
Um grande drama vivido por Fagundes Varella também envolveu o
Cemitério da Consolação. Ele se apaixona por uma artista circense da Companhia
Loande, que chega ao antigo Teatro São José.
Com o casamento de Alice Guilhermina Loande e Fagundes Varella nasce
um menino de nome Emiliano, que morre precocemente, então Fagundes Varella
faz o belo Cântico do Calvário e toda noite ele ia recitar o verso no Cemitério da
Consolação.
Cântico do Calvário
Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. – Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro
Eras a messe de um dourado estio
Eras o idílio de um amor sublime
Eras a glória, - a inspiração, - a pátria
O porvir de teu pai! Ah! no entanto,
Pomba, - varou-te a flecha do destino!
Astro, - engoliu-te o temporal do norte!
Teto, - caíste! – Crença, já não vives! ... 2
As histórias dos cemitérios de São Paulo não ficam restritas apenas ao
passado, os enigmas também estão presentes nos fatos recentes da história da
cidade.
O Cemitério de Santo Amaro tem um túmulo rodeado de placas de
agradecimentos, trata-se de Bento do Portão, um mendigo morador das ruas de
Santo Amaro, que faleceu e posteriormente começaram a atribuir milagres a ele.
As mesmas sinas de milagreiros tiveram treze vítimas do incêndio do
Edifício Joelma, sepultadas no Cemitério São Pedro (Vila Alpina). Elas ficaram
conhecidas como "As Treze Almas do Joelma”.
Outras vítimas do Joelma, que foram enterradas no Cemitério da Vila
Formosa, acabaram sendo objetos de uma inusitada coincidência, pois sepultadas
na quadra cinqüenta, acabaram sendo exumadas e na mesma quadra vieram
oitenta e sete vítimas da chacina do Carandiru.
O mistério ainda paira no ar quando o assunto é desaparecidos políticos do
período da ditadura militar, As associações de desaparecidos políticos lutam e
sofrem com as informações dos sepultamentos clandestinos realizados nos vários
cemitérios da cidade.
Uma das maiores descobertas das ossadas de desaparecidos políticos foi
feita no Cemitério de Perus. Com uma grande vala comum desenterrada, os
legistas agora podem identificar alguns dos desaparecidos.
O Cemitério de Perus não é o único que abrigou as vítimas dos
assassinatos políticos. No Cemitério da Vila Formosa, durante muito tempo, foi
possível ver a sepultura de Carlos Marighella
É o primeiro ano da minha vó morta e estou na quadra 349 do Cemitério de
Vila Formosa. 'O maior da América Latina' – minha mãe me diz no
ônibus. Próximo do lugar, numa região de covas bem arrumadas com
flores e lápides de cimento, o que me chama a atenção é uma tumba
revolvida
-
acintosamente
revolvida
pelo
contorno
organizado
da
vizinhança. Me aproximo desse monte de terra onde as formigas fazem a
festa. A cruz de madeira que caíra tem a metade de um dos braços
enterrada.
Tento
ler:
gella,
quella,
ghella...
Penso
berinjela
com
molho. É uma época em que me surpreende o desenho das letras, o som, e
o significado das palavras. Sorrio. A poeira faz redemoinho. Sinto uma mão me
puxando
violentamente
para
trás.
É
meu
pai.
Ele
continua
me arrastando enquanto olha amedrontado para os lados das colinas e
das gavetas das ossadas que cercam tudo. Ordena que eu nunca mais me
aproxime daquele túmulo. Diz que é o túmulo de um terrorista; que a
polícia
podia
estar
vigiando.
Demorei
a
entender
o
interesse
da
polícia em vigiar os mortos naqueles tempos. Para mim, daquele dia em
diante,
'terrorista'
vinha
da
'terra',
a
terra
fofa
e
varada
de
formigas do maior Cemitério da América Latina.” 3
Os restos mortais de Marighella ficaram no Cemitério de Vila Formosa até
1979, quando foram transferidos para a Bahia, onde foi sepultado novamente com
o epitáfio “Não Tive tempo de ter medo”.
Os cemitérios da cidade de São Paulo, entretanto, não são só enigmáticos,
eles podem ser palco de desvendamentos da História, Geografia e Arte da cidade,
Vamos agora fazer um pequeno roteiro com três túmulos que revelam aspectos
peculiares da cidade de São Paulo e do Brasil.
A primeira vista, esse túmulo causa estranheza, uma associação de
funcionários da indústria de chapéus de São Paulo numa metrópole como São
Paulo recheada de trajes estadunidenses (calça jeans, camiseta, moletons). Teria
um túmulo para os chapeleiros?
A parte posterior do túmulo nos dá pista sobre esse questionamento dos
chapeleiros, nela vemos uma gravura retratando a primeira indústria de São Paulo
a utilizar energia a vapor. A fábrica de chapéus pertencia ao alemão João Adolfo
Schritzmayer e foi fundada em 1853, que mais tarde foi homenageado, virando
nome de rua (Rua João Adolfo), que ficou famosa por abrigar o Edifício Joelma,
aquele do grande incêndio.
A localização da fábrica é onde agora temos a estação de metrô
Anhangabaú, próximo à Praça da Bandeira, mas uma dúvida ainda fica, por que
São Paulo tinha uma fábrica de chapéus tão grande, com mais de 200
funcionários?
A principal resposta é o hábito europeu que o paulistano tinha de usar
chapéus na década de 20, 30, 40 do século XX, costume que decaiu no final da
Segunda Guerra Mundial, e passou-se a adotar o modelo estadunidense.
Nas fotos de São Paulo, anteriores a Segunda Guerra Mundial, é raro você
notar alguém sem chapéu, praticamente todos os habitantes usavam chapéu
(homens, mulheres e crianças), assim como na Europa. Atualmente (2005) o
brasileiro, principalmente o jovem urbano, usa o boné, inspirado nos times de
baseball dos E.U.A, ou seja, um modelo estadunidense implantado para o Brasil.
Outra pergunta que pode ser suscitada, é a compra de jazigo coletivo por
parte de operários da indústria. Para entender essa questão, temos que remontar
ao contexto da época, quando o sindicalismo, através das associações de mútuo
socorro, que além de garantir assistência médica aos associados, tinha também
uma preocupação com a assistência funerária. Algumas vezes, em detrimento de
adquirir uma sede própria para a associação era comprado o jazigo coletivo.
Portanto, esse túmulo guarda uma visão espacial da cidade de São Paulo
que já não mais existe, porque São Paulo tem uma incessante produção e
reprodução do espaço, como diz a música Sampa “da força da grana que ergue e
destrói coisas belas”, ou seja, o sistema econômico capitalista vive produzindo
espaços, depois com a desvalorização desses espaços eles são destruídos para
serem reconstruídos, ou melhor, reproduzidos.
Esses conceitos de produção e reprodução do espaço podem ser
trabalhados com as imagens desse túmulo, que traz outra temporalidade da
cidade de São Paulo, onde o centro da cidade abrigava uma indústria, essa visão
só é possível graças ao congelamento dessa temporalidade que ficou impressa no
Cemitério da Consolação.
Outro aspecto possível de ser abordado utilizando o Cemitério da
Consolação é a relação entre o rural e o urbano, e para isso um túmulo que pode
ilustrar essa relação é o de Eduardo Prado.
O membro da família de ricos cafeicultores e com grande influência no
Império, Eduardo viveu uma época em Paris, onde se tornou grande amigo do
escritor português Eça de Queirós que acabou inspirando-se em Eduardo para
escrever o personagem Jacinto de Tormes, protagonista do livro A Cidade e as
Serras.
A temática do livro gira em torno das diferenças entre o campo (puro e
rudimentar) e as cidades (sofisticadas e corrompidas), assim como o personagem
Jacinto de Tormes, Eduardo Prado acaba retornando ao campo no final da vida
para a Fazenda Brejão4
O assunto tratado no livro pode ser transportado para nossa atual realidade,
onde buscamos viagens redentoras ao campo, procurando o contato com a
escassa natureza dos nossos territórios construídos. Ademais a nossa fuga fugaz
da cidade tem o objetivo principal de recarregar a pilha do trabalhador, injetar
ânimo e disposição na força de trabalho, para que ela continue sendo
devidamente e rentavelmente explorada.
O lazer programado pelo trabalho exige novos cenários para que os
trabalhadores esqueçam momentaneamente a condição de explorados, tema que
podemos discutir não só do ponto de vista dos espaços especializados para o
turismo e lazer, mas também com relação ao tempo principalmente o período de
férias e feriados.
O livro de Eça de Queirós está focado ao pertencimento aos lugares e o
(des) encantamento como o moderno que a cidade representava na época, essa
perspectiva histórica da gênese das grandes cidades é importante para
entendermos as diferenças da vida nas pequenas e grandes cidades.
Atualmente a grande cidade (metrópole) permitiu certo anonimato para os
habitantes, algo muito difícil de ocorrer numa cidade pequena, entretanto a cidade
pequena não traz problemas como a poluição.
Sobre o pertencimento, o próprio Eduardo Prado deixa claro sua predileção
pela simplicidade do campo: “Considerava o Brejão sua verdadeira e única
morada; o mais eram pousos passageiros; quadros, livros, armas, curiosidades,
tudo ali concentrava.” 5
Essa sensação de pertencer a uma região, esse regionalismo também faz
parte de um dos conceitos mais importantes para a Geografia, o de região, e que
foram retratados por muitos escritores brasileiros do século XX como Guimarães
Rosa, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e outros.
Portanto, a discussão da relação cidade/campo pode ser ilustrada a partir
desse túmulo resgatando o livro de Eça de Queirós, assim como outros autores da
literatura (Monteiro Lobato também está sepultado no Consolação), fazendo uma
intersecção com essa outra área do conhecimento.
O último túmulo a ser visitado por esse nosso breve passeio pelo Cemitério
da Consolação é o túmulo de Luiz Gama, tendo por objetivo abordar o tema
transversal preconceito através do movimento abolicionista e também os cortejos
fúnebres que andam cada vez mais raros nas metrópoles brasileiras.
Essa possibilidade educativa no túmulo de Luiz Gama vem reforçar a
questão da herança cultural dos africanos na formação do povo brasileiro, questão
obrigatória no currículo escolar através da determinação da Lei de Diretrizes de
Base da Educação (LDB).
Luiz Gama era escravo e foi vendido pelo seu pai na Bahia, em virtude de
uma dívida de jogo, indo parar no Rio de Janeiro, Santos, Campinas e por último
em São Paulo, onde aprendeu a ler com o Conselheiro Furtado.
Na capital paulista, cursou a faculdade de Direito do Largo São Francisco e
passou a defender os escravos e alforriados nos tribunais, montando ainda a
Caixa Emancipadora Luiz Gama, uma espécie de sociedade de ajuda mútua para
alforriar escravos.
A luta de Luiz Gama pela abolição durou toda a sua vida, e ele partiu antes
da abolição dos escravos, pois morreu em 1882, como comenta Raul Pompéia:
Caminhava triste, refletindo na catástrofe que significava a morte de Luiz Gama.
Lembrava-me de que me haviam mostrado na véspera, em casa do morto, uma
pequena guarnição de tijolos com que Luiz Gama andava cercando os alegretes
do jardim... A guarnição estava em meio... Eis um trabalho do homem, que fica por
concluir, observam-me... Eu refletia que, como a guarnição dos alegretes, uma
outra obra de Luiz Gama ficara em meio transformada em fuste partido para
adornar-lhe o túmulo, - o sonho de todos os seus dias: a abolição.6
Apesar da coluna interrompida da abolição, que Luiz Gama não chegou a
presenciar, hoje temos as políticas afirmativas e talvez fosse a hora de Luiz Gama
ser o símbolo dessa luta contra o preconceito que continua em voga.
Os enterros que durante muito paralisavam regiões da cidade por alguns
momentos, atualmente são cada vez menos perceptíveis nas grandes cidades e
talvez o primeiro grande enterro que parou a cidade tenha sido o de Luiz Gama.
As grandes vias da cidade foram construídas para a circulação dos
automóveis, o primeiro congestionamento da cidade foi na inauguração do Teatro
Municipal em 1911. De lá para cá, apesar do aumento das vias de circulação, a
fluidez dos veículos não melhorou muito, a velocidade da carroça é semelhante à
média da velocidade dos veículos na cidade: 17 km por hora.
Quando ocorrem manifestações de trabalhadores ou de qualquer outro
grupo, o trânsito pára. A Avenida Paulista que foi palco de muitas manifestações,
hoje está restrita a poucos eventos.
Agora imaginem se colocássemos os enterros dentro do atual contexto do
trânsito, isso atrapalharia o fluxo de veículos e de mercadorias, por isso os féretros
são cada vez mais raros.
Observem a descrição de parte do enterro de Luiz Gama e vejam a
diferença para um enterro de hoje, é lógico não era um enterro qualquer, pois Luiz
Gama era bem relacionado e muito conhecido na cidade.
Era o enterro. Devia fazer-se a pé. O cemitério estava longe, no extremo oposto
da cidade, para as bandas da Consolação... A considerável distância, que separa
os dois arrabaldes, devia ser percorrida a pé, para que a muitos fosse possível a
honra de levar aquele glorioso cadáver...
Ao entrar na cidade, uma comissão de seis membros do Centro Abolicionista de
São Paulo tomou as alças do caixão. A cidade estava triste. Inúmeras lojas tinham
as portas fechadas, em manifestação de pesar, as bandeiras das sociedades
musicais e beneficentes da capital pendiam a meio mastro. Apinhava-se o povo
nos lugares por onde devia passar o enterro. Ia sepultar-se o amigo de todos.
Nunca houve coisa igual em São Paulo, dizia-se pelas esquinas. 7
Esse trajeto feito num longo tempo mostra que os habitantes (da época)
queriam enfatizar as relações humanas que tiveram durante a vida, além de
homenagear o morto, participando desse rito de passagem.
Cabe no caso, não de enaltecer outra temporalidade, ou se tratar de
saudosismo, o que podemos perceber é o tempo de exaltação ao morto na nossa
sociedade atual não tem mais lugar, porque a mercadoria e os veículos precisam
circular, e os mortos não interessam mais, pois já não fazem parte da cadeia
produtiva.
Referências Bibliográficas
ABREU, J. Capistrano de. Eduardo Prado. In Ensaios e Estudos (Críticas e História).
Rio de Janeiro: Livraria Briguiet,1931.
BARROS, Frederico Pessoa de. Poesia e Vida de Fagundes Varela. São Paulo:
Edameris, 1965.
BONASSI, Fernando. 100 Histórias Colhidas na Rua. São Paulo: Scritta, 1996.
D’AVILA, Luiz Felipe. Dona Veridiana: A trajetória de uma dinastia paulista. São Paulo: A
Girafa, 2004.
POMPÉIA, Raul. A Morte de Luiz Gama. São Paulo: Gazeta de Notícias, 24 de agosto
de 1882.
São Paulo Não Comemorou Júlio Frank – Tribuna da Imprensa 20/06/1972.
1
São Paulo Não Comemorou Júlio Frank – Tribuna da Imprensa 20/06/1972
Frederico Pessoa de Barros. Poesia e Vida de Fagundes Varela. Edameris. 1965. p.96.
3
Fernando Bonassi. 100 Histórias Colhidas na Rua. Scritta. 1996
4
Luiz Felipe D’avila, Dona Veridiana: A trajetória de uma dinastia paulista. São Paulo, A Girafa, 2004. p. 367
5
J. Capistrano de Abreu. Eduardo Prado. In Ensaios e Estudos (Críticas e História). Rio de Janeiro, Livraria Briguiet,
1941 p. 339-348.
6
Raul Pompéia, A Morte de Luiz Gama, Gazeta de Notícias, 24 de agosto de 1882.
7
Raul Pompéia, A Morte de Luiz Gama, Gazeta de Notícias, 24 de agosto de 1882
2
A arte no espaço da morte
Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé
Elaine Maria Tonini Bastianello
Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural/UFPEL
Resumo
A arte tumular no Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé, durante o século XIX, é
investigada neste estudo. Para examiná-la, foi necessário percorrer alguns caminhos: localizar
e inventariar a arquitetura tumular para fazer sua cartografia artística; agenciar algumas
tipologias encontradas com significações inscritas pela sociedade na busca de eternizar seus
mortos; compreender a arte tumular como memória coletiva. O estudo está inserido dentro de
uma moldura teórica que percebe a arte cemiterial como suportes de registros históricos da
sociedade. Foram analisados túmulos representativos das arquiteturas escolhidas para estudar
as ocorrências das tipologias. As análises apontam para existência de continuidades de
segregação econômica entre os espaços da vida e da morte.
Palavras-chave: arte tumular, registros históricos, memória coletiva.
OLHARES INICIAIS
As sociedades têm, no transcorrer do tempo, evidenciado diversas
maneiras de responder sobre a morte. No ocidente-cristão, em seus rituais
fúnebres tem predominado o enterramento de seus mortos.
A criação de espaços para morte surge com o novo o pensamento
urbano ocidental, a partir do século XIX, o qual determina usos e funções
diferenciadas para os espaços dentro da cidade, entre eles, os cemitérios.
Aliada, a esta perspectiva, junta-se as idéias da mentalidade da época em
perpetuar o morto. Assim, o túmulo passa a assegurar este pensamento.
Neste novo espaço, a sociedade tenta estabelecer conexão entre os
espaços da morte com o da vida, como local de visitas, de passeios e de
meditações. São formas de “embelezamento” de um espaço que possibilita a
refletir sobre a tentativa de igualar a paisagem ante da morte. A existência do
conjunto de monumentos tumulares evidencia isto, glorificando a memória dos
mortos.
Nos cemitérios, como salienta Bellomo (2000, p. 15) são projetados
valores, crenças, estruturas socioeconômicas e ideologias. Neste sentido, o
estudo nesse espaço proporciona conhecer diversos aspectos da sociedade,
constituindo-se em importantes fontes para conhecimento histórico.
Diante dos argumentos, trago como foco norteador deste estudo o de
analisar o Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé como espaço de
memória e identidade social, no período de meados do século XIX e XX
através da arte tumular. Justifica-se tal objetivo, fato de neste período a
sociedade bageense, aristocrática e latifundiária, vivenciava todo um “glamour”
desse momento histórico.
PERCURSO INVESTIGATIVO
O cemitério analisado, apesar de vivenciar o processo de modernização e,
porque não da massificação de sepultar os mortos, apresenta um rico e vasto
acervo de mobiliário funerário, possibilitou inventariar uma vasta gama de
significados em suas edificações tanto na arquitetura, quanto na estatuária e
nos adornos. No entanto, sabe-se muito pouco sobre elas, por isso ser de
extrema pertinência realizar um estudo sobre elas. Com esta perspectiva,
busca-se reconhecer, compreender e valorizar este espaço como portador da
história dessa cidade.
O cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé é o principal espaço da
morte da cidade, está situado no final da Avenida Sete de Setembro. Sua
localização evidencia as políticas urbanas: situar no último vetor de expansão
urbana. Foi construído em meados do século XIX com a intenção de durar
séculos. O antigo portão de entrada está direcionado para essa avenida;
ambos os lados da alameda principal existem pomposos túmulos e no seu final
a Capela. É nesta rua que se encontra o seu mais rico acervo tumular, onde
está sepultada a sociedade aristocrática e latifundiária.
A proposta deste estudo foi de uma tentativa de elaborar um inventário e
registro das manifestações artísticas nas suas edificações tumulares. A
finalidade é não apenas constatar a presença, mas também realizar uma
tentativa de explicação para os eventos. Isto é, tratar os achados como um
fluxo, não como código apenas.
Para este exercício de agenciamento entre arte e registro, os dados
foram buscados em três ruas da 1° Divisão, pela ocorrência da maior
pomposidade tumular, onde se localizam 58 túmulos pertinentes para análises.
Os Mapas 1 e 2 ilustram o local estudado. Neste local estão sepultados os
primeiros mortos, das famílias mais tradicionais e de poder aquisitivo mais
elevado da sociedade bageense. Esse ordenamento espacial criou uma
segregação socioeconômica entre os sepultados, pois esta área é hoje a mais
valorizada comercialmente. Tal fato é ocasionado pela ausência da oferta de
terrenos vazios, pelo alto valor alcançado pelas edificações tumulares e pela
beleza de suas monumentalidades.
Mapa 1 – Vista aérea da área da 1° Divisão
Legenda:
- Ruas inventariadas
Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento de Bagé, 2002.
Para atender a proposta deste estudo foram fotografadas todas as
manifestações
consideradas
importantes
nas
edificações
registradas em fichas-padrão elaboradas previamente.
tumulares
e
As fichas foram catalogadas para compor o inventário tipológico. Por
uma opção didática para este trabalho, foi selecionada apenas uma
representação de cada arquitetura tumular.
Mapa 2 – Localização dos túmulos inventariados
Fonte: Elaborado por Elaine M. T. Bastianello, 2007.
A arte cemiterial é indicativa de diversas manifestações simbólicas,
inscritas na arquitetura, na escultura e nos adornos tumulares. Pare este
recorte de pesquisa foi elaborado uma tipologia inspirada e o agrupamento da
arquitetura dos túmulos nos estudos de Borges (2002) e Bellomo (2000) para
integrar o inventário, as quais foram norteadores das análises. Quadro 1
mostra o esquema elaborado.
Quadro 1 - Distribuição da Tipologia
Arquitetura
Jazigo-Capela
Jazigo-Monumental
Túmulo Porte Médio
Túmulo Simples
Escultura
Adornos
(n° de 15) Imagens Religiosas (n° de 36) Alto-relevo
(n° de 50)
(n° de 14) Imagens Profanas (n° de 12) Baixo-relevo (n° de 24)
(n° de 10)
Grades
(n° de 14)
(n° de 09)
Total: 48
OBS: o número da arte tumular corresponde as suas ocorrências.
DISCUSSÃO DOS ACHADOS
Examinar a arte tumular como suporte de memória de uma época é
relevante para preservação identitária ao resgatar seu inestimável valor
histórico e artístico para a cidade. Com este intuito passo a analisar a arte
cemiterial do local elegido.
1. Jazigo-Capela: nº 48, da família Alamon
Descrição formal: É um jazigo-capela, com estilo neoclássico, com tipologia
religiosa, de maior riqueza no cemitério da Santa Casa pela sua
monumentalidade e exclusividade quanto a sua cúpula, porta e portão em
bronze e vidros bizotados. Sua estrutura simétrica segue os padrões da
arquitetura clássica ao empregar na sua fachada quatro colunas de estilo
coríntio, sendo duas de sustentação e as outras duas de embelezamento. Em
cima do pórtico de colunas existe uma cruz, ladeada por duas piras. Este
jazigo-capela possui ventilação e iluminação na sua cúpula.
Esta obra funerária possui duas esculturas longelíneas de anjos com estrela no
alto da cabeça, cuja função é de guiar os caminhos do novo local de morada.
Toda essa produção foi realizada em mármore de carrara e é de autoria de
Aliboni Santini, de Buenos Aires/Argentina.
Escultura funerária: No topo do monumento a presença do anjo simboliza a
aceitação da morte. Para Steyer (2000) a representação do morto pelo o anjo
significa admissão pela família, em que “a morte de seu ente querido como um
fato consumado” (p. 74). A alegoria da saudade expressada ns feição do anjo
evidencia o entrelaçamento sentimental entre o falecido e seus familiares. As
asas abertas permitem a interpretação que esta em movimento, em passagem
para outra vida, evidenciado na Figura 1.
Adornos: As presenças das duas piras no topo ladeiam o jazigo-capela, as
quais significam a finitude da vida terrestre. No topo do frontão também
apresenta uma cruz, símbolo da fé cristã sempre presente nos espaços
sagrados e nas atividades religiosas (DALMÁZ, 2000). Assim, a cruz
estabelece a representação material da morte, da dor e do sofrimento. Todo
estes ornamentos em alto relevo, típico da estética do período neoclássico,
exercem um papel relevante na estrutura construtiva do monumento funerário
pelo seu caráter decorativo muito utilizado pela classe burguesa para
monumentalizar o morto frente a comunidade (BORGES, 2002).
Estado de Conservação: Muito bom, não sendo considerado ótimo por
apresentar pequenas rachaduras nas laterais e um de seus vidros está
quebrado.
2. Jazigo Monumental: nº 1, da família de Francisco Ilarregui.
Descrição formal: Trata de uma obra funerária de tipologia celebrativa, com
características de estética eclética, inspirada na Antiguidade Clássica formando
uma composição atípica neste espaço cemiterial por ser único. Esta edificação
tumular apresenta toda gradeada por ferro fundido e ostenta uma decoração
refinada e bem distribuída. Existe nas lateriais dois vasos de mármores; no
centro seis degraus conduzem para o acesso ao nicho, na parte superior do
mausoléu. Este nicho é ladeado por quatorze colunas, em estilo coríntio, onde
está localizado o sarcófago. Em cima do sarcófago encontra-se o busto do
homenageado. Este jazigo perpétuo, verdadeiro espetáculo arquitetônico todo
elaborado em mármore de carrara é de autoria de A. Barsante, de Pelotas/RS.
Escultura funerária: A escolha de escultura humana, neste caso um busto,
mostra a negação da morte, é a manifestação do sentimento de continuidade
da vida, em que o falecido continua com sua vida terrena (STEYER, 2000). O
uso do busto na arte funerária mostra a continuidade do período da
Antiguidade clássica, em que tinha o significado de marcar sua presença
mesmo após a morte, em celebrar a memória do vulto morto (BORGES, 2002).
O busto, neste túmulo, representa a imagem fiel do morto, equivalente aos
bustos romanos. O espanhol Sr. Franscisco Ilarregui, radicado em Bagé,
tornou-se um próspero comerciante da cidade. Seu jazigo chama a atenção
pela imponência e reflete a riqueza de um homem que, depois de morto, quer
ser representado como um herói letrado entre as colunas de sua própria
acrópole.
Adornos: Este monumento apresenta como ornamentos de alto relevo
encontrados no frontão do jazigo: um pergaminho nominado e datado o
nascimento e falecimento do Sr. Francisco Ilarregui; uma ampulheta alada,
representando o tempo que se esvai e a certeza da morte, destacada pelas
tochas viradas para baixo, reafirmando a finitude da vida terrena.
Estado de conservação: Bom, apresenta pequenas rachaduras e ausência de
parte do arremate do topo do monumento. Isto pode Ter sido ocasionado por
intempéries do tempo ou pelo vendaval acontecido na cidade em 2001 um
túmulo limpo. Observa-se que não está abandonado pelos cuidados com sua
limpeza que apresenta.
3. Túmulo Porte Médio: nº 7, da família de Amado Loreiro de Souza.
Descrição formal: É uma arte funerária com estética do perídio art noveau, em
mármore de carrara com tipologia profana. O túmulo está todo gradeado em
ferro fundido, constituído de uma carneira, coberto com uma tampa levemente
inclinada. A carneira, por sua vez, está encostada em um muro parietal, que
sustenta uma escultura no seu topo, este conjunto escultório é assinado por A.
Canessa, proveniente de Genova/Itália.
Escultura funerária: Esta escultura é de uma jovem, com alegoria sentimental.
Encontra-se representada com total clareza registros da leveza e suavidade,
tributos do estilo art-noveau. A figura de uma jovem para representar a morta
mostra à negação da morte pelos familiares. Seu olhar para o céu com
serenidade e os pés descalços significam humildade, em suas mãos um buquê
de flores pode apresentar vários significados, entre eles, feminilidade e pureza.
Segundo Dalmáz (2000) isto aproxima dos valores característicos da Virgem
Maria. Também as flores são ligadas a idéia de amor divino. Nesse sentido,
evidencia o amor dos familiares com a finada.
Adornos: Pouquíssimo, este túmulo está centrado na escultura, apresentando
como adorno somente o buquê de flores.
Estado de conservação: Péssimo por o mármore apresentar desgastes devido
às intempéries, com rachaduras em toda sua carneira. Também encontra-se
em total estado de abandono.
4. Túmulo Simples: nº 50, da família Michelena.
Descrição formal: Trata-se de um modelo muito empregado no cemitério da
Santa Casa de Bagé, apresenta-se em forma de catacumba. É constituído de
dois andares, todo revestido em mármore de carrara. Este túmulo-catacumba
apresenta-se com gradios de ferro fundido em seu entorno. Esta obra funerária
é assinada pelo espanhol aqui radicado, o artesão tumular José Martinez.
Escultura: A Cruz é a sua única escultura, localiza-se no topo da catacumba, é
um dos principais símbolos representativos do cristianismo. A forma desta cruz
para Dalmáz (2000), com quatro braços transversais, significa a morte vencida
e seus braços às virtudes da alma humana.
Adornos: Ornamentos em alto relevo de vasos nas laterais, que significam a
vida terrena separada da alma; ramos de palma, representando a vida eterna;
coroa de flores e fitas rodeiam o retrato principal, indicativo de alegria divina;
colunas de embelezamento; E de baixo relevo é mostrado pelo rolo de
pergaminho, significando que sua vida é um livro aberto (BORGES, 2002;
DALMÁZ, 2000).
Estado de conservação: Muito bom, com pequenas rachaduras laterais e
apresenta cuidados com sua limpeza.
ALGUNS FRAGMENTOS FINAIS
O cemitério denota um vínculo a um passado, seus proprietários
tentam perpetuar seus valores, seus pensamentos através de suas edificações
monumentais. As construções dessas obras evidenciam a tendência estética
de uma época.
Após diversas observações realizadas em campo, esboço uma primeira
reflexão de inventariar e registrar a arte tumular. É uma temática que a cada
ida a campo abrem outras tantas possibilidades de análises, novos olhares são
direcionados, outros entrelaçamentos vão sendo possíveis de ser realizados. O
que fiz neste trabalho foi apenas um recorte.
Observou-se que neste cemitério a arte encontrada segue os padrões
estéticos europeus nos estilos neo-gótico, art novau, art-deco, eclético típicos
dos meados do século XIX e iniciais do XX.
A predominância da arquitetura tumular de Jazigo-Capela e JazigoMonumental, neste local da 1ª Divisão, mostra o quanto este cemitério
estabelecia vínculos com a sociedade aristocrática e latifundiária na
determinação do local de sepultamento de seus mortos. São poucos os
Túmulos- Simples encontrados neste espaço cemiterial.
É possível apontar através da datação desta pomposidade e beleza da
sua
arquitetura
marmórea
sinais
de
status
dentro
da
sociedade,
correspondendo ao período de próspero desenvolvimento da pecuária da
cidade. Tal fato é corrobado pela autoria dos túmulos e pelos ilustres
personalidades ali sepultadas. Também é possível constatar a relação da
sociedade com a Igreja, tanto pela localização da maioria dos Jazigo-Capela ao
lado da Igreja como a predominância do uso de imagens sacras em seus
ornamentos nos diversos tipos de túmulo. A arte de alto-relevo foi a mais usual,
em sua maioria, elementos ligados a símbolos do cristianismo como a cruz,
rosário, flores.
A valorização do espaço cemiterial possibilita desenvolver o sentimento
de pertencimento com a memória e a identidade social da cidade, destacando
seu valor patrimonial. Concordando com Nora (1993, p. 16) ao afirmar que o
cemitério é um dos “lugares de memória assim como os museus, os arquivos e
os santuários. Ele também está associado à vida, pois ali se instala uma rede
articulada de identidades diferentes, uma organização inconsciente da memória
coletiva, que nos faz tomar consciência do seu significado cultural”.
Referências Bibliográficas
BELLOMO, Harry, (org.). Cemitérios do Rio Grande do Sul. Arte, Sociologia e
Ideologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.
BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890 – 1930). Belo Horizonte: Com
Arte, 2002.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Hibrídas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. São Paulo: EDUSP, 1998.
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: UNESP, 2006.
DALMÁZ, Mateus. Símbolos e seus significados na arte funerária cristã. In:
BELLOMO, Harry, (org.). Cemitérios do Rio Grande do Sul. Arte, Sociologia e
Ideologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.
GRASSI, Clarice. Um olhar... a arte no silêncio. Curitiba: C. Grassi, 2006.
PIACESKI, Tiago R.; BELLOMO, Harry R. Pesquisa cemiterial no Estado de Goiás.
Poeto Alegre: Akikópias, 2006.
RESENDE, Eduardo C. Morgado. O céu aberto na terra. São Paulo: E. C. Rezende,
2006.
STEYER, Fábio A. Representações e manifestações antropológicas da morte em
alguns cemitérios do Rio Grande do Sul. In: BELLOMO, Harry, (org.). Cemitérios do
Rio Grande do Sul. Arte, Sociologia e Ideologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.
A morte nos detalhes: religiosidade e elementos da estética funerária dos
cemitérios de imigrantes alemães na Grande Florianópolis (SC).
Elisiana Trilha Castro
Historiadora e mestranda do PGAU da UFSC
Alice de Oliveira Viana
Arquiteta, mestranda do PPGAV da UDESC
Resumo
Este artigo procura apresentar alguns elementos presentes na estética dos cemitérios de
imigrantes alemães pesquisados na região da Grande Florianópolis e apresentados no
“Inventário de Cemitérios de Imigrantes alemães da região da grande Florianópolis”.
Entendendo a crença como uma atitude de negação da morte, manifestada, dentre outros pela
adoção de ornamentação e símbolos na estética funerária, estes cemitérios, contrariamente
aos católicos ou tradicionais, apresentam formas de expressão mais circunspectas e
comedidas, o que não descarta, diferente do que comumente se supõe, também a negação da
morte e a existência de uma crença e religiosidade praticadas e renovadas através dos poucos
elementos adotados.
Palavras-chave: Cemitério, estética e religiosidade
Diante da morte podemos assumir duas posturas: ser melancólicos ou
tautológicos é o que assinala o historiador Georges Didi-Huberman (1998).
Trata-se de situações que indicam muitas vezes nossa atitude perante o que é
irremediável, a finitude, talvez de nós mesmos.
De acordo com este autor o tautológico olha para a imagem do túmulo,
do caixão, e vê ali somente uma caixa prismática vazia. Ele olha para o vazio,
vê ali nada mais que uma inscrição, uma representação, ele nega que ali
embaixo haja um sólido, um morto.
Já para o melancólico, o crente, o corpo também não está mais ali, ele
está longe. Ele pensa no ente querido que se encontra agora distante em um
lugar que pode ser de descanso e paz, belo e saudável, no Além, em um local
melhor, talvez o Paraíso ou o Céu. A crença, diferente da tautologia, é da
dimensão do invisível, ela é fruto da imaginação.
Podemos ter estas duas atitudes talvez porque quando olhamos o
túmulo é ele que nos olha profundamente, impedindo nossa capacidade de
simplesmente olhá-lo. Ele nos olha e indica que ali há um volume que em breve
poderá ser o nosso; o túmulo, que através de um volume só, anuncia de forma
incontestável o que seremos um dia - um corpo jazente, inerte, horizontal
(DIDI-HUBERMAN, 1998).
Talvez por isto tanto a atitude de tautologia quanto a de crença nada
mais são do que resultado da negação, do evitamento da morte, devido ao
reconhecimento da inexorável finitude humana, da qual ninguém é imune: os
dois pensam no túmulo vazio.
A estética cristã foi profundamente marcada pela atitude de produzir
imagens geradas pela crença, imagens que eram resultado de uma ação de
escape, de fuga, dessa situação inexorável da morte e justamente por isso
criam um tempo fictício, de uma teleologia, para superar nossos temores.
Assim a estética cristã carrega o que o Didi-Huberman (1998) chama de
melancolia, e tal característica deixou traços na arquitetura e na tradição
cemiterial. Já que:
O homem da crença prefere esvaziar os túmulos de suas carnes putrecentes,
desesperadamente informes, para enchê-los de imagens corporais sublimes,
depuradas, feitas para confortar e informar – ou seja, fixar – nossas memórias,
nossos temores e nossos desejos (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 48).
Assim diferentes maneiras de se materializar a forma ou o local onde
enterramos nossos mortos encerram, em grande medida, a negação da morte
e são, portanto, resultados de crenças. Isto parece estar expresso tanto em
cemitérios onde são encontradas farta ornamentação e inserção de elementos
arquitetônicos alusivos à memória do morto - pois nesta atitude podemos
perceber uma negação da morte, através da crença geralmente centrada na
sobrevivência do morto no Paraíso do que na aceitação de sua finitude quanto em cemitérios ou túmulos mais timidamente ornamentados que, apesar
de apresentarem poucas formas de expressão estética, estas não deixam de
existir e de ser produto de crenças.
Mas é fato que geralmente os cemitérios com uma arquitetura mais
comedida, como no caso dos cemitérios protestantes ou dos cemitérios jardins,
são associados à falta de religiosidade e de uma atitude de reverência àqueles
que se foram. Mas será que podemos afirmar que há pouca religiosidade na
discreta arquitetura destes cemitérios?
São questões que se põem quando nos deparamos com cemitérios que
possuem uma arquitetura funerária que se distancia da comumente encontrada
naqueles mais convencionais ou cemitérios secularizados espalhados por
muitas cidades do Brasil, caracterizados por serem marcadamente católicos e
com uma sacralidade afirmada por uma profusão de anjos, santos e demais
referenciais religiosos. Alguns como os encontrados durante a realização do
“Inventário de cemitérios de imigrantes alemães da Grande Florianópolis”1, que
chamam a atenção por suas particularidades e que em grande medida, exigem
um olhar mais atento ao lugar da afirmação do sagrado em suas formas quase
sempre horizontais e sóbrias.
Figura 01 – Elementos funerários dos cemitérios inventariados.
Através deste inventário foi possível perceber uma simbologia, que
apesar de comedida, faz-se presente e aparece em diferentes cemitérios
ligados aos imigrantes teuto-brasileiros. A observação de um conjunto de
elementos e ritos, repetidos em diferentes localidades visitadas com a pesquisa
apontou que a discreta postura funerária deste grupo étnico guarda em
pequenos detalhes seus valores religiosos. Menos monumental, menos
alegórica, mas reconhecível na forma como estes imigrantes encontraram para
despedir-se de seus mortos.
A atitude de ornamentar um túmulo parece estar ligada à esta atitude de
crença que é expressada de diversas maneiras pelos diferentes credos das
sociedades ocidentais. Neste sentido, os cemitérios encontrados em
comunidades teuto-brasileiras da Grande Florianópolis, apresentaram práticas
e formas funerárias diferentes daquelas encontradas em outros cemitérios a
céu aberto, o que inclui desde a opção por poucos símbolos decorativos até
pela quase ausência de mausoléus, outra opção arquitetônica funerária
bastante encontrada nos cemitérios convencionais brasileiros.
Em um outro artigo2 tratamos da relação entre a crença sobre o morto e
a morte e as representações funerárias dos protestantes, que tiveram grande
influência na arquitetura cemiterial da Alemanha, por meio de cemitérios
conhecidos como Beaux-Arts - uma união do ambiente natural com regras de
simetria
produzidas
a
partir
de
discursos
do
pitoresco
com
pouca
ornamentação e monumentalidade (Oliveira, 2007). Para o protestante
luterano, o qual acredita que não há Purgatório e que o fiel se salva em vida,
uma série de investimentos como ritos e elementos arquitetônicos no lugar dos
sepultamentos perdem o sentido. Agora neste artigo tal relação será analisada
através de alguns elementos encontrados nestes cemitérios de paisagem
marcadamente influenciada por esta postura cemiterial.
As práticas funerárias consideradas como características destas
comunidades foram percebidas depois da análise de um universo de 104
cemitérios presentes, com sepultamentos de católicos e luteranos em 13
municípios da região da Grande Florianópolis formada por Antônio Carlos,
Angelina, Anitápolis, Águas Mornas, Santo Amaro da Imperatriz, São Bonifácio,
São Pedro de Alcântara, Rancho Queimado, São José, Palhoça, Biguaçu,
Governador Celso Ramos e a capital do Estado, Florianópolis.
Dentre
estes
elementos
percebidos
como
característicos
das
comunidades teuto-brasileiras da Grande Florianópolis destacam-se as
cabeceiras proeminentes, as cruzes, símbolos decorativos como a palma, as
flores, o coração e as mãos juntas e as flores em ritos funerários, dentre outros
enumerados nos resultados apresentados de forma preliminar no inventário.
Para este artigo, serão analisados estes elementos acima destacados.
Figura 02 - Elementos funerários dos cemitérios inventariados.
Cabeceiras proeminentes
Uma das características que marcam a paisagem destes cemitérios é a
presença das cabeceiras proeminentes. Apesar de uma opção arquitetônica
que praticamente nivela visualmente os túmulos presentes nestes cemitérios,
foi possível perceber, principalmente no período que vai desde as últimas
décadas do século XIX até a primeira década do XX a presença destas
cabeceiras como elementos de destaque arquitetônico.
A
presença
marcante
destas
conduziu
à
utilização
do
termo
“proeminentes” no Inventário de forma a ressaltar que no conjunto de
sepultamentos que primam pela pouca estatura e volume, “proeminente” foi o
termo mais adequado já que quer dizer aquele que: “fica sobranceiro ao que o
circunda, elevado, dominante” (PRIBERAM, 2008).
Tal elemento parece ocupar lugar de destaque perante os demais
sepultamentos, dado que não são encontrados outros elementos de distinção
na postura funerária desses imigrantes, como por exemplo, mausoléus ou
pequenas capelas. Dentre estas cabeceiras proeminentes, muitas cujos
sepultamentos são do final do século XIX apresentam uma estética mais sóbria
que remete ao neoclássico, com alguns elementos que marcam esse estilo
como cimalhas, frontões clássicos, pedestal, o arco de meia volta, divisão da
cabeceira em três partes, a saber: base, corpo e coroamento, o desenho de
colunas clássicas, alguns poucos elementos decorativos, dentre outros. Outras
poucas se apresentam bastante ornamentadas, com detalhes como curvas,
volutas, flores em relevo, colunas com capitéis floridos, dentre outros,
alinhando-se mais com a estética do ecletismo, pela profusão de elementos
ornamentais.
Entretanto, pode-se inferir que grande parte destas cabeceiras de médio
e grande porte faz alusão à imagem da casa e do pórtico, muitas encimadas
por cruzes, outras por pequenas estátuas de anjos, como se percebe na figura
01, dando nítida impressão de formarem telhados e portas onde geralmente
estão colocados epitáfios.
Os teóricos Gilles Deleuze e Félix Guatarri afirmam que a arte tem início
com a casa, pois ambas se relacionam com esses dois elementos que seriam
“a Casa e o Universo, o Heimlich e o Umheimlich, o território e a
desterritorialização” (DELEUZE;GUATARI, 1992, p.240). Estas imagens que
são encontradas não só nas cabeceiras proeminentes, mas também em cruzes
e lápides, parecem remeter, em grande medida, a uma tentativa de ligar-se à
Casa Primordial, ao Cosmos, como um retorno à Casa do Pai Celestial ou até
mesmo, à afirmação da representação da última morada.
Tanto as casas como os pórticos apresentam nichos que seriam as
aberturas, portas ou passagens (ver figura 01). As fendas, as aberturas podem
ser entendidas nestas imagens como um limite, limiar que separa o olho do
olhar, o visual do visível. Tanto as portas como os pórticos possuem um duplo
caráter, um de obstáculo e outro de abertura. Muro – anteparo, e labirinto –
entrada de um templo ou lugar temível, “um lugar aberto diante de nós, mas
para nos manter à distancia e nos desorientar ainda mais” (DIDI-HUBERMAN,
1998, p.232).
A porta foi extensamente tematizada pela religião, por narrativas míticas
e contos arcaicos, possuindo esse duplo valor de um local a ser atravessado e
a ser obstaculizado. Nas passagens da Bíblia, a porta ou o portão aparece
como elemento constante, como um símbolo de passagem ao reino dos
mortos, ao Inferno ou ao mundo do Paraíso3.
A porta como umbral, como um rito de passagem, como uma transição
entre aquilo que seremos e aquilo que deixamos de ser, entre o futuro e o
passado, entre a vida profana e a sagrada é notada em diferentes cabeceiras
encontradas nos cemitérios visitados durante o inventário.
Tais observações acima citadas apontam para uma possível relação
entre estas formas adotadas e a religiosidade que nestas podem estar
previstas. Detalhes que podem fugir quando se observam tais cemitérios em
busca de símbolos e signos da religiosidade destes espaços, mas a forma das
mesmas lembrando casas e portas, torna possível a referência à imagens
religiosas como do mítico Retorno a Casa do Pai ou até mesmo à
representação da última morada.
Quanto a apresentação destas cabeceiras, as mesmas como também os
túmulos encontrados evidenciam em grande medida as mudanças estéticas
ocorridas ao longo das décadas e que também se expressam nos cemitérios.
Encontram-se túmulos construídos com alusões ao neoclássico, ao ecletismo,
além
daqueles
com
formas
mais
simples
quase
sem
ornamentos,
características da modernidade do século XX.
A estética do século XX passou a negar o ornamento e linhas sinuosas
em detrimento da sobriedade e do despojamento da geometria da máquina. A
partir da década 1930, somada à já ausência de alegorias e santos, muitos
túmulos passam a apresentar formas mais sóbrias, limpas, tendo como
ornamento tão somente a presença de uma cruz na superfície, como se
percebe na figura 01, algo que se afirmou de forma marcante nos cemitérios
encontrados nestas localidades, como característica dos mesmos e não da
mesma forma nos cemitérios convencionais que só mais tardiamente nas
últimas décadas do século XX adotariam tais posturas arquitetônicas em seus
espaços cemiteriais.
Cruzes
Outro elemento bastante encontrado nestes cemitérios é a cruz, um dos
ornamentos mais recorrentes. Elas foram encontradas em diferentes materiais
de acabamento tanto em cima de lápides e também como sendo a única
demarcação do local da sepultura, cumprindo também a função de lápide,
trazendo inscrições e epitáfios. As cruzes apresentavam-se principalmente em
madeira e ferro e muitas são trabalhadas artisticamente com detalhes variados
Algumas cruzes de ferro possuem detalhes de flores, folhas, como também
corações, muitas vezes comportando epitáfios e dados de identificação do
morto (figura 01).
Também as cruzes de madeira primam por diferentes detalhes e
ornamentos. Em algumas é possível encontrar lambrequins, elementos
trabalhados em ferro que beiram as bordas de pequenos telhados encimados
nas cruzes, remetendo à questão da casa já citada anteriormente. Estes
elementos, um dos principais símbolos do cristianismo, afirma de forma
marcante a religiosidade destes espaços, guardando referências a Salvação
em Cristo, crucificado e ressuscitado.
Ritos funerários – as flores
As flores aparecem nos elementos decorativos dos túmulos, mas têm
destaque dentre os rituais funerários principalmente na utilização das flores
artificiais em forma de coroas e também em ramos em vasos.
Nos cemitérios pesquisados destacou-se a utilização de flores artificiais
em formato de coroas coloridas como ritual funerário, o que parece ser uma
prática comum principalmente em período de Finados. Algo que foi percebido
em visitas anteriores a um alguns desses cemitérios logo após o dia de finados,
onde a presença destas coroas era vista em grande quantidade e o colorido
das mesmas destacou-se de forma marcante.
O uso destas flores chama a atenção pelas cores adotadas, geralmente
em tons de roxo e amarelo formando uma paisagem diferente daquelas
encontradas em muitos cemitérios em diferentes cidades brasileiras, como
apresentado na figura 02.
Também foi comum encontrar nestes cemitérios arranjos feitos a partir
dessas flores artificiais montados sobre placas de isopor, geralmente envoltos
com plásticos transparentes e que adornavam alguns sepultamentos (figura
02). Ainda com relação às flores, uma prática comum encontrada foi o plantio
de flores naturais sobre os túmulos. Tal prática encontrada em vários
cemitérios parece ser uma referência ao costume difundido nas localidades
formadas por imigrantes teutos, o da adoção de jardins domésticos (figura 02).
Esta
prática
dos
imigrantes
de
origem
germânica
até
hoje
marca
profundamente suas cidades, que atraem visitantes também por seus jardins
domiciliares.
Notou-se tanto pelas coroas de flores artificiais como pelas flores
naturais plantadas sobre sepulturas somadas aos jardins que enfeitam as
casas, que a flor é um elemento valorado por esses imigrantes e que também
aparece em seus cemitérios, lá se destacando pelos rituais supracitados. Aqui
cabe destacar que, de forma correlata, estes imigrantes parecem adotar
através das flores, como também dos lambrequins encontrados em cruzes,
formas e posturas que também adotaram em seus lares, o que corrobora a
afirmação já citada de Deleuze e Gautarri (1992) de que a arte inicia-se com a
casa, podendo o cemitério também ser entendido como uma segunda morada,
e evidenciando este como um importante espaço de afirmação de elementos
culturais destes imigrantes.
Símbolos decorativos
Também na composição dos túmulos verifica-se que alguns símbolos
decorativos entalhados ou desenhados nestes ou nas cabeceiras são
comumente adotados e se repetem em vários cemitérios, destacando-se dentre
estes a palma, as flores, o coração e as mãos juntas. A partir de modelos de
túmulos
padronizados
em
diferentes
épocas
é
possível
perceber,
principalmente com relação com à palma, que esta é um dos símbolos de uso
mais freqüente.
A palma, símbolo fartamente encontrado nestes cemitérios e também
encontrado de forma significativa por outros pesquisadores em outros
cemitérios (BELLOMO, 2000), possui um significado geralmente associado à
vitória, estando geralmente relacionado à passagem bíblica da entrada de
Jesus em Jerusalém. A palma também pode representar o renascimento e a
alegria dentro da concepção cristã (figura 02).
O coração parece remeter ao lugar dos sentimentos ou ao lugar vazio
deixado pelo ente querido. Também pode ser relacionado com sentimentos de
virtudes, ou à crença Mariana, na qual a Virgem teve seu coração
transpassado de dor pela perda do filho no momento da crucificação de Cristo
(figura 02).
As flores também são encontradas em entalhes de túmulos e
cabeceiras. Dentre as mais freqüentes estão as rosas que aparecem em forma
de ramos ou coroas e parecem dar o sentido de uma oferta de flores ao ente
querido, flores que por serem marcadas na pedra da lápide nunca morrem. As
flores aparecem em vários túmulos e são geralmente ligadas ao cristianismo,
podendo representar a vitória sobre as trevas e a saudade (figura 02).
As mãos juntas é um símbolo freqüente em formatos tumulares
padronizados em acabamento de cimento e parece remeter à união dos vivos
com seus mortos, uma união que permanece mesmo depois da morte, com a
certeza de que os laços afetivos não se desfazem com o sepultamento. Um
símbolo que aponta para sentimentos de fraternidade e união (figura 02).
Estes são parte dos elementos característicos encontrados na pesquisa
para o inventário. Mas apesar dos símbolos e características aqui
apresentadas como elementos funerários comuns dos cemitérios pesquisados,
percebe-se de forma destacada uma característica geral na arquitetura desses
cemitérios: uma postura formal mais sóbria que opta por criar túmulos ou
lápides com poucos ornamentos, em linhas retas, sem mausoléus, com poucas
alegorias e santos praticamente ausentes, uma paisagem que chama atenção
pela uniformidade.
Considerações finais
Com a proposta de perceber nos elementos e ritos funerários dos
cemitérios
localizados
nas
comunidades
teuto-brasileiras
da
Grande
Florianópolis traços de sua religiosidade, que muitas vezes se manifesta de
forma circunspecta, este artigo analisou alguns desses elementos com o
objetivo de destacar em seus discretos detalhes a manifestação da crença e a
afirmação de seus valores religiosos.
Tal qual a arquitetura monumental presente em outras propostas
cemiteriais, a arquitetura e os ritos destes cemitérios parecem se impor como
forma também de tratar a morte, ou melhor, bem como nos destacou DidiHuberman, a negação da mesma através de uma crença. Enfim, uma estética
que se compromete com formas sóbrias e comedidas, mas que não descarta a
religiosidade e os sentimentos presentes na despedida e na lembrança,
representando apenas formas diferentes de materializar o sentimento pelos
que se foram.
Referências Bibliográficas
BELLOMO, Harry Rodrigues (Org.). Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte,
sociedade, ideologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.
BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução Centro bíblico católico. 34ª edição. São
Paulo: Ave Maria, 1982.
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. O que é filosofia. RJ: Ed. 34, 1992.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
OLIVEIRA, Maria Manuel Lobo Pinto de. In memorian, na cidade. Tese de
Doutoramento em Arquitetura – Concentração Cultura Arquitetônica. Universidade do
Minho: Braga, 2007.
PRIBERAM, 2008. Dicionário de língua portuguesa. Disponível em:
<http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx>. Acesso em: 08 de abril de
2008.
1
Projeto aprovado pelo Conselho Estadual de Cultura, na forma prevista nos Artigos 20, 22 e 23 do Decreto nº 3.115, 29
de abril de 2005 e homologado pelo Comitê Gestor, de acordo com o Artigo 11, item II, do mencionado Decreto, sob
PTEC - 1261/053.
2
VIANA, Alice de Oliveira; CASTRO, Elisiana Trilha. A arte que nasce da saudade: a representação funerária do
cemitério alemão de Florianópolis (SC). In: Anais do III Simpósio Internacional de História. Goiás, 2007.
3
Respectivamente aparecem em Isaías (38,10); no Evangelho de Mateus(16,18); no Gênesis(28,17) e Apocalipse(4,1).
Patrimônios da finitude: o inventário como ferramenta de
preservação cemiterial
Elisiana Trilha Castro
Historiadora e Mestranda em Arquitetura e Urbanismo
PGAU/UFSC
Resumo
A proposta deste artigo é apresentar o projeto “Inventário de Cemitérios de imigrantes alemães
da Grande Florianópolis” que foi realizado em 2007 e que terá seus resultados publicado em
um livro. O inventário teve por objetivo principal registrar os cemitérios que possuíssem
elementos funerários característicos das comunidades teuto-brasileiras presentes nas áreas de
colonização alemã na Grande Florianópolis (SC) formada por 13 municípios. O artigo
apresenta os objetivos, metodologia e parte dos resultados deste inventário e destaca a
importância da realização de trabalhos de preservação, bem como, da utilização de
inventários, como forma de destacar o valor cultural dos cemitérios e de incentivar ações
complementares de preservação.
Palavras-chaves: Cemitério; inventário; patrimônio cultural.
Foi durante pesquisas sobre os cemitérios em Santa Catarina que o
estado de muitos cemitérios, principalmente nas áreas de colonização alemã,
chamou a atenção: problemas como a erosão, conservação e ações de
vandalismo impactaram significativamente tais lugares ao longo dos anos
fazendo desaparecer muitos de seus registros. A preocupação com o estado
dos mesmos apontou para a necessidade de realizar um trabalho, ao menos de
registro, destes bens culturais, onde surgiu a proposta de um inventário.
O “Inventário de cemitérios de imigrantes alemães da Grande
Florianópolis”1 foi realizado com o propósito de contribuir para a preservação
destes lugares através da coleta de imagens e de características destes
cemitérios, buscando destacar o valor destes como bens culturais e evidenciar,
por exemplo, como por meio das construções funerárias, a história de uma
localidade ou de um determinado grupo pode ser apreendida.
Os cemitérios são, por sua função, um dos primeiros lugares a serem
instalados na formação das cidades e assim não foi diferente nas colônias
formadas por imigrantes, constituindo-se assim, em um dos mais pretéritos
espaços de manifestações culturais destes homens e mulheres em Santa
Catarina, como destaca a citação a seguir:
Os grupos que chegavam da Europa estabeleciam-se em vale nas margens
dos rios, formando uma comunidade isolada que se organizava de modo a
garantir sua sobrevivência material e cultural. O primeiro passo era a instalação
dos equipamentos urbanos, iniciada com a construção de uma igreja, um
cemitério, uma escola (ALENCASTRO; RENAUX, 1997, p. 322).
Santa Catarina é um Estado que se destaca pela presença de diferentes
etnias que deixaram suas marcas culturais em várias cidades e dentre as
mesmas está a etnia alemã2 que foi foco desta pesquisa. São muitas as
contribuições recebidas de diferentes povos na história de nosso país. A vinda
de imigrantes para o Brasil, decorrente, dentre outros motivos, das crises
econômicas e sociais que atingiram a Europa no século XIX, permitiu que
alemães, italianos e espanhóis, por exemplo, participassem da composição da
história catarinense como de outros estados brasileiros (ALENCASTRO e
RENAUX, 1997). Uma história que começou a ser contada nas primeiras
décadas do século XIX e que resultou na formação da maioria das localidades
que fazem parte deste inventário.
A primeira colônia alemã em Santa Catarina foi São Pedro de Alcântara,
instalada em 1829, em um Estado que até o momento constituía-se somente
por uma cidade - Desterro, sua capital, e por três vilas, Laguna, Lages e São
Francisco - sendo sua população predominantemente de origem lusitana. Parte
dos imigrantes instalados em São Pedro de Alcântara ainda nos primeiros
anos, retiraram-se desta colônia e estabeleceram-se em regiões próximas,
formando núcleos como Vargem Grande, no atual município de Águas Mornas
e, entre 1847-1860, outros núcleos populacionais foram criados como:
Piedade, Santa Isabel, Leopoldina e Teresópolis (KLUG, 1994).
A formação destes núcleos deu origem à maioria dos municípios que
fizeram parte do inventário, formam a região da Grande Florianópolis3 que foi a
área escolhida para a pesquisa composta por 13 municípios, são eles: Antônio
Carlos, Angelina, Anitápolis, Águas Mornas, Santo Amaro da Imperatriz, São
Bonifácio, São Pedro de Alcântara e Rancho Queimado. Além destes São
José, Palhoça, Biguaçu, Governador Celso Ramos e a capital Florianópolis.
Nestes últimos 5 municípios, diferente daqueles citados primeiramente,
destacam-se em sua formação outras etnias, principalmente a açoriana, fato
também confirmado nas pesquisas em seus cemitérios que apresentaram
dentre as contribuições de determinados grupos étnicos, poucas ou nenhuma
referência dos imigrantes germânicos e outros. Cabendo destacar que no caso
da capital Florianópolis, a presença dos alemães na formação cultural da
cidade - destacada em obra do historiador João Klug (1994) - pôde ser vista de
forma significativa no cemitério da Comunidade luterana, localizado dentro do
cemitério São Francisco de Assis, no bairro do Itacorubi, cemitério mantido pela
ACCAF (Associação do Cemitério da Comunidade Alemã de Florianópolis) e
que preserva um importante conjunto tumular.
O inventário procurou destacar como os cemitérios expressam em sua
forma e rituais, os costumes e referenciais identitários dos imigrantes alemães.
É fato que para muitos, o cemitério é só o lugar onde sepultamos os mortos,
mas a proposta deste inventário é de promover a preservação destes lugares
ao divulgar a pesquisa e evidenciar a forma como os cemitérios guardam em
suas lápides, em seus túmulos e em sua disposição espacial, importantes
informações.
Destacando que, no caso dos imigrantes luteranos, são os
cemitérios, em grande medida, o primeiro local de manifestação religiosa e
cultural, dado que tiveram que criar lugares próprios para o sepultamento dos
fiéis, já que dentre diversas interdições impostas uma [...] outra restrição
imposta aos protestantes dizia respeito aos cemitérios (MATOS, 2006, p. 12).
Foi priorizada a busca pelos cemitérios mais antigos instalados nos
municípios da Grande Florianópolis, espaços de sepultamento utilizados por
imigrantes alemães chegados a partir de 1829, data da fundação da primeira
colônia São Pedro de Alcântara e ocorridos até as primeiras décadas do século
XX, que apresentam características identitárias destes imigrantes, dentre elas,
sobrenomes e epitáfios em alemão. A datação foi definida considerando como
o período da grande imigração alemã o ano de 1829 até as primeiras décadas
do século XX, como destaca a autora Giralda Seyferth (1993): “O contingente
imigratório de origem alemã não foi o mais significativo, apesar da sua
continuidade: entre 1850 e 1938 não houve interrupção do fluxo [...].”
Os cemitérios que participaram deste levantamento são cemitérios
conhecidos como a “céu aberto” ou secularizados, em sua maioria, surgidos no
Brasil no século XIX e que se caracterizam pela presença de sepultamentos
realizados em construções funerárias, como túmulos ou mausoléus, podendo
também aparecer na forma de cova simples, fora do espaço interno das igrejas,
já que até por volta de 1850, os sepultamentos no Brasil ocorriam muitas vezes
dentro das igrejas em suas paredes e chão (PAGOTO, 2004).
O cemitério, ao contrário de muitos lugares, costumes e construções,
ainda não é, na maioria das vezes, lembrado ou destacado como um
referencial para a reflexão acerca da história e da memória, ou seja, como
parte de um conjunto de práticas culturais que são transmitidas através de
referências como: tamanho e formato de túmulos, o uso de flores e de velas,
adoção de determinados símbolos, dentre outros. Possivelmente, o não
reconhecimento dos cemitérios como parte da história das cidades seja o
motivo pelo qual, muitos destes, encontram-se em estado de abandono, algo
percebido principalmente na situação dos túmulos mais antigos encontrados,
que não contam muitas vezes com quem possa zelar pelos mesmos.
Figura 1: Imagens de diferentes cemitérios visitados.
Na perspectiva do patrimônio cultural, os cemitérios são parte da
produção humana que pode ser considerada como representante ou como
referência para determinado grupo, ou seja: “poderíamos mesmo dizer, que o
patrimônio cultural é tudo aquilo que constitui um bem apropriado pelo homem,
com suas características únicas e particulares” (FUNARI, PINSKY, 2005, p. 8).
A opção pelo inventário deu-se por este ser uma etapa fundamental para
o desenvolvimento de políticas de preservação, um importante instrumento
metodológico para recolher informações, que permite identificar bens culturais,
informar sobre o estado de conservação e fornecer dados para a sua
preservação e pesquisa. De acordo com o IPHAN (Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional), “o inventário é a primeira forma para o
reconhecimento da importância dos bens culturais e ambientais, por meio do
registro de suas características principais (IPHAN, 2007)”.
Diante da proposta de inventariar cemitérios considerados como
representativos dos imigrantes alemães na Grande Florianópolis, dentre os 104
visitados num total de 13 municípios, 60 deles apresentavam elementos ou
características que, de forma significativa os relacionavam com os imigrantes
alemães, tendo sido apresentados em fichas inventariais.
Para a seleção destes 60, em um conjunto formado por cemitérios de
diferentes períodos e formatos, foram consideradas algumas especificidades
constatadas principalmente a partir da presença e estudo dos túmulos com
datação mais pretérita visível - a partir de 1829 até as primeiras décadas do
século XX. Verificou-se que estes cemitérios apresentavam determinados
elementos que se repetiam em outros sepultamentos do mesmo período e
também em outros cemitérios, como: epitáfios em alemão, cruzes de madeira
que geralmente apresentam detalhamento artístico utilizadas como lápides e
muitas com epitáfio, certos formatos tumulares, utilização de poucas imagens
de anjos, santos e de alegorias como ornamentos, adoção de tons de azul em
lápides e cabeceira, localização em morros ou pequenos aclives, dentre outros.
Os demais 44 cemitérios que apresentavam pouca ou nenhuma
referência das práticas funerárias relacionadas com os cemitérios das
comunidades teuto-brasileiras, geralmente formados por sepultamentos
recentes a partir da década de 1950 ou localizados em municípios que não
possuem marcante presença de imigrantes alemães em sua formação - foram
listados no inventário em tabelas presentes em seus respectivos municípios.
Cada um destes recebeu um texto com características gerais como:
localização, tipos de materiais construtivos e de acabamento, ornamentos, ritos
e outros, juntamente com uma imagem panorâmica do mesmo. Tal seleção
buscou atender a proposta do projeto como também viabilizar a publicação dos
resultados, destacando que o inventário também é composto por um banco de
imagens de todos os cemitérios visitados4.
Figura 2: Formatos de túmulos e detalhes da arquitetura funerária dos
cemitérios inventariados.
Para localizar os cemitérios de cada município foi realizada uma
pesquisa a partir dos mapas municipais do IBGE - Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, nas prefeituras, em listas de genealogistas,
bibliografias e também através da colaboração de moradores das localidades
visitadas. Apesar de tais medidas, não se descarta a possibilidade de algum
cemitério não ter sido localizado, dado que mesmo aqueles que constavam de
mapas e outras fontes, eram muitas vezes localizados com dificuldade.
A metodologia utilizada para a realização deste inventário compreendeu
o recolhimento de dados - a partir de fichas inventariais - e imagens, ambos
coletados nas pesquisas de campo. As fichas inventariais foram elaboradas
com a adequação dos dados e quesitos a partir dos estudos de Tânia Andrade
de Lima (1994), também com base nas pesquisas desenvolvidas no Cemitério
dos Imigrantes de Joinville (FONTOURA, 2007) e um manual elaborado por
Eliane Veras da Veiga (2004) que indicou quais as categorias que deveriam
compor um inventário.
Sobre o desenvolvimento do trabalho a equipe foi formada por: Elisiana
Trilha Castro (Coordenação, Consultoria e Pesquisa de campo), Fátima Regina
Althoff (Consultoria e Pesquisa em Arquitetura), Alice de Oliveira Viana
(Consultoria em Arte e Arquitetura), Adelson André Brüggemann (Pesquisa de
campo e Consultoria), Juliano Anderson Pacheco (Editoração, Imagens e
Pesquisa de campo) e Valber Furine Mendes (Fotos Cemitério São Francisco
de Assis/Florianópolis).
A ficha (em anexo neste artigo) foi definida a partir de uma metodologia
de registro que buscou registrar as características gerais dos bens
inventariados, contendo informações do cemitério encontrado e não somente
dos elementos funerários relacionados com os imigrantes alemães. Desta
forma, permitem-se outras pesquisas e a obtenção de diferentes informações
acerca do bem inventariado e não limita as informações do inventário à
temática da imigração alemã.
Foi realizada uma coleta de dados dos materiais, tipos de túmulos,
ornamentos, além de outras informações como acesso, tipo de pavimentação
localização e conservação, presença de conjunto de sepultamentos de
inocentes destacado, localização dos sepultamentos mais antigos e sua
datação, os ornamentos mais recorrentes, presença de epitáfios em alemão,
formatos tumulares singulares, observações acerca da conservação, espaço
para novas sepulturas e outros. A relevância de cada cemitério dentro do
conjunto de bens culturais das comunidades teuto-brasileiras foi apresentada
em “Informações Complementares”, sendo que cada ficha também é composta
por 8 imagens do cemitério.
Considerações Finais
O inventário possibilitou o registro de diferentes características dos
cemitérios e destacou, dentre outros, o preocupante estado de conservação de
parte do patrimônio funerário dos municípios visitados. Tal constatação
comprovou, não só a necessidade de projetos de preservação destes espaços,
como também de debates e pesquisas sobre o tema da preservação do
patrimônio cemiterial.
Ficou evidente não só a importância de ações e propostas que discutam
o valor patrimonial destes espaços e que possam contribuir para minimizar
ações como, a retirada de túmulos antigos, mas também o potencial destes
lugares para reflexões acerca do passado e também do presente.
Enfim, destaca-se que um trabalho de preservação destes lugares é
imprescindível e que o inventário é apenas um primeiro passo além de um
importante registro destes bens. Bens que são patrimônio, feitos da saudade
diante do fim, mas que são parte do conjunto de bens culturais que ainda
precisam de maior atenção das políticas de preservação em nosso país.
Referências Bibliográficas
ALENCASTRO, Luiz Felipe de; RENAUX, Maria Luiza. Caras e modos dos migrantes
e imigrantes, In: NOVAIS, Fernando. A (coord.); ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.).
Historia da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
FONTOURA, Arselle de Andrade da (coord.). Relatório final do projeto “Cemitério
do Imigrante: pesquisa, interdisciplinaridade e preservação”. Joinville: 2007.
FUNARI, Pedro Paulo; PINSKY, Jaime (orgs). Turismo e Patrimônio cultural. São
Paulo: contexto, 2005.
IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/portal>. Acesso 23 maio 2007.
KLUG, João. Imigração e luteranismo em Santa Catarina: a comunidade alemã de
Desterro-Florianópolis. Florianópolis: Papa-Livro, 1994.
LIMA, Tânia Andrade de. De morcegos e caveiras a cruzes e livros: representação
da morte nos cemitérios cariocas do século XIX. Anais do Museu Paulista, São Paulo,
v. 2, n. , p.2-45, dez. 1994.
MATOS, Alderi Souza de. O Cemitério dos Protestantes de São Paulo: Repouso
dos Pioneiros Presbiteriana. In: Portal da Igreja Presbiteriana no Brasil, 2005.
Disponível em: <www.ipb.org.br/artigos/artigo_inteligente.php3?id=53>. Acesso em 21
ago. 2006.
PAGOTO, Amanda Aparecida. Do âmbito sagrado da igreja ao cemitério público:
transformações fúnebres em São Paulo (1850-1860) São Paulo: Arquivo do Estado ;
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.
SEYFERTH, Giralda. Identidade étnica, assimilação e cidadania: a imigração alemã e
o estado brasileiro. In: Anais XVII Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, Minas
Gerais:
outubro
de
1993.
Disponível
em:
<
http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/rbcs26_08.htm>. Acesso em:
05 out. 2007.
VEIGA, Eliane Veras da. Apostila de Reabilitação e Restauro: Memórias de Aula.
Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unisul. 2004. Ed. dig.
ANEXOS – FICHA INVENTARIAL
AMY08 - Cemitério de Loeffeischeidt
IDENTIFICAÇÃO DO CEMITÉRIO
Loeffeischeidt
Localidade:
Isolado
Área aprox.:
Distância da Sede:
APRESENTAÇÃO
Estado de Conservação:
Data do registro: 25/08/2007
Centro
112,5m x
62,5m
8,8Km
Bom
Bairro
Coordenada 27°41'25,13" S
s: 48°55'07,36" O
Regular
Condição atual:
Em utilização
Abandonado
Tipo:
Traçado:
Regular
Irregular
Delimitaç
ão:
No de sepulturas (total aprox.):
Sepultamento mais antigo (ano):
ARQUITETURA FUNERÁRIA
Material de acabamento ou construtivo:
Azulejo
Cimento
Madeira
Ladrilho hidráulico
Tipos de sepultamento:
Cova simples
Composição dos sepultamentos:
Cabeceira proeminente
Ornamentos:
Anjo
Cruz
Símbolo decorativo
130
1889
Ruim
Municipal
Confessional
Cerca de Arame
Muro em
alvenaria
Muro de pedra
Sem delimitação
Outra
Basalto
Granitina
Mármore
Vidro
Cerâmica
Granito
Metal
Outros
Mausoléu
Túmulo
Epitáfio
Lápide
Alegoria
Oratório
Imagem Sacra
Fotografia
INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES
O cemitério localiza-se em um terreno elevado, próximo à igreja, com acesso fácil. O
terreno possui dois níveis, ambos sem pavimentação. Os sepultamentos estão
voltados para o sudeste e os dos inocentes estão dispersos no cemitério. Os
sepultamentos mais antigos, compostos em sua maioria por cruzes, estão na parte
superior do terreno e são datados entre 1860 e as primeiras décadas do XX. Os
ornamentos mais recorrentes são as cruzes de cimento pré-moldada, de madeira e
de ferro com trabalho de serralheria artística como na Imagem 6. Na parte mais
nova, apresentada na Imagem 8, encontram-se imagens de Cristo crucificado em
metal e lápides de diferentes materiais e formatos. Possui epitáfios em alemão e
sepultamentos femininos acrescidos do sobrenome de solteira na lápide, ambos
encontrados dentre os sepultamentos mais antigos. Como ritos funerários apresenta
as flores artificiais em forma de coroas e ramos, além de fitas coloridas presas em
alguns sepultamentos. Os materiais de acabamento e construtivos mais comuns são
o cimento, dentre os sepultamentos antigos, e o granito na parte mais nova. Com
relação ao estado de conservação, destaca-se o problema da erosão como principal
ameaça aos sepultamentos (Imagem 7). Apresenta formato tumular padronizado,
como mostram a Imagem 3 e a Imagem 4. Possui espaço para novas sepulturas.
Sobrenomes como Beppler, Fritzen, Hinckel, Horr, Jochen, Meurer, Krauss, variadas
cruzes de madeira e de ferro, formatos tumulares, sepultamentos femininos com o acréscimo do
sobrenome de solteira e lápides com epitáfios em alemão são alguns dos elementos funerários
que destacam este cemitério com um bem cultural característico das comunidades teutobrasileiras.
Imagem 1: Vista aérea
Imagem 2: Vista panorâmica
Imagem 3: Formato tumular padronizado
Imagem 4: Formato tumular padronizado
Imagem 5: Vista do cemitério
Imagem 6: Ornamento em ferro
Imagem 7: Erosão ameaça conjunto tumular
Imagem 8: Vista da parte nova
1
Projeto aprovado pelo Conselho Estadual de Cultura, na forma prevista nos Artigos 20, 22 e 23 do Decreto nº 3.115, 29
de abril de 2005 e homologado pelo Comitê Gestor, de acordo com o Artigo 11, item II, do mencionado Decreto, sob
PTEC - 1261/053. A publicação do Inventário tem data prevista para junho/2008.
2
A opção por esta etnia é decorrente dos estudos desenvolvidos pela coordenadora desta pesquisa sobre os cemitérios
ligados aos imigrantes de origem germânica. No contexto desta análise o termo germânica (o) é utilizado de forma
correlata ao termo alemã (o) e teuto-brasileiro.
3
Oficializada pela Lei Estadual Complementar nº 162/98 do Estado de Santa Catarina. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 12 out. 2007.
4
O Banco de imagens está sob responsabilidade da SOL (Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte de Santa
Catarina) que decidirá a forma de acesso ao mesmo.
O Cemitério dos ingleses da Bahia
através da sua iconografia
Ernesto Regino Xavier de Carvalho
Arquiteto Urbanista Mestre em Conservação e Restauração
Taba- Arquitetura, Idéias e Soluções
Resumo
O presente artigo pretende analisar o desenvolvimento físico do sítio Cemitério dos Ingleses da
Bahia a parir da sua iconografia (Mapas, desenhos, gravuras, pinturas, fotografias etc.). Dentro
dessa análise poderá ser observada parte da história documental desse monumento último
remanescente da arquitetura anglicana do século XIX na Bahia e um dos três únicos do Brasil.
O objetivo desse artigo é estabelecer uma linha histórica do objeto de pesquisa e resgatar
elementos arquitetônicos poderão ser observados da análise das imagens registradas em um
determinado período e dessa forma esses mesmos elementos poderão fornecer dados
preciosos sobre a cronologia de um sítio edificado.
Palavras-chave: Cemitérios na Bahia — História —Iconografia.
Apresentação
O primeiro registro fotográfico que se tem notícia no Brasil foi feito em
1833, por Hercules Florence, que registrou o termo Photografie, antes de a
palavra que descrevia esse processo fosse de uso generalizado.
A partir de então, a fotografia, que surgiu no Brasil entre as décadas de
trinta e quarenta do século XIX, evoluiu da daguerreotipia, inventada pelo
francês Louis Jacques Mande Daguerre, em colaboração com JosephNicéphore Niépce e seu filho Isidore Niépce, para o calótipo ou talbótipo, um
negativo de papel, que possibilitava a cópia em papel salinizado, num processo
em que, em filosofia, dura até hoje: a obtenção de fotos a através do negativo,
através do qual podemos gerar um número infinito de cópias iguais em
qualidade e valor1.
É dessa época em diante que chegaram ao Brasil muitos fotógrafos
estrangeiros, que vendiam seus produtos a quem pudesse pagar, fotografando
pessoas, paisagens e mesmo processos de trabalho, como foi o caso de
Benjamim Mulock, contratado pelos Vignoles para fotografar a construção da
Bahia and San Francisco Railway.
Os processos fotográficos foram evoluindo e se tornando cada vez mais
acessíveis, e, a partir da sua popularização, surgiram os cartões postais, de
início em preto e branco, mas que logo passaram a ser animados (colorizados),
1
numa evidente mostra de expressão artística que visa à aproximação da
realidade, uma vez que os cartões em preto e branco estavam sendo
considerados distantes dela.
O então novo meio de se representar a realidade veio se modernizando
até os dias de hoje com a fotografia digital, onde o uso das imagens passa a
interagir com um sem número de técnicas a tecnologias associadas, permitindo
uma nova revolução na fotografia e na forma das pessoas se relacionarem com
as imagens.
A fotografia tem se constituído como uma grande ferramenta para os
processos de pesquisa históricos e de restauração, por reunir informações
muitas vezes detalhadas de uma obra de arte estática no tempo. Subseqüentes
às imagens de mapas, gravuras, desenhos e pinturas, as fotografias trazem a
vantagem de não estarem sujeitas a deformações ou outras interpretações
artísticas, mantendo-se fiel à realidade retratada, além de ser mais facilmente
difundida, dada a sua condição de reprodução em escala ilimitada.
O Cemitério dos Ingleses da Bahia, não seria uma exceção à esta regra,
e associado à conjuntura espacial que o compõe – O outeiro de Santo Antônio
da Barra, com a Igreja homônima, a igreja de Nossa Senhora da Vitória, e, aos
pés desse outeiro o Forte de São Diogo, formam uma bela paisagem do painel
da cidade, largamente explorada por artistas e fotógrafos estrangeiros
principalmente no começo do século XIX através da abertura dos portos às
nações amigas em 1808 e os corolários tratados de Aliança e Amizade e de
Comércio e Navegação firmados estes com a Inglaterra.
Esse cemitério é o primeiro da Bahia e um dos primeiros do Brasil,
enquanto edificação européia voltada a tal finalidade, e tem a da permissão
para a compra de seu terreno para a sua implantação, concedida pelo Conde
dos Arcos, em 1811, em pleno período joanino, um ano após os Tratados de
1810, corolários da Abertura dos Portos operada em 1808.
Contudo, mesmo a despeito da privilegiada situação de implantação
deste cemitério, a pesquisa de base documental textual histórica de arquitetura
desse monumento, onde se pode tentar definir uma linha sucessória de
eventos de caráter históricos pode conter lacunas de diferentes escalas de
tempo.
O estudo iconográfico, então, começa onde nos falta a base textual. São
dados que, muitas vezes estão somente presentes em uma imagem
corretamente datada em sua época de origem. Onde estão “congelados” tantos
dados visuais é que se podem garimpar informações preciosas acerca da
evolução cronológica de um monumento arquitetônico. Onde faltam as palavras
para descrever minuciosamente detalhes arquitetônicos ou mesmo se
cometem equívocos ao descrevê-los é que se encontra, na imagem, a absoluta
sinceridade captada pelas lentes, através do olhar do fotógrafo ou da rigidez
acadêmica de um pintor documental.
É nesse ambiente de pesquisa visual que nos propomos a entender a
evolução física do Cemitério dos Ingleses da Bahia, de onde se pôde pesquisar
ao longo de mais de dois anos de desenvolvimento da minha dissertação de
mestrado, intitulada “Uma Necrópole Renascida – A História do Cemitério dos
Ingleses da Bahia” através da união das vertentes documental, iconográfica e
de campo ( A restauração total deste sítio como de suas feições originais no
século XIX), trabalhando de forma paralela, interativa e complementar, é
fundamental para se construir um cenário ou uma linha de raciocínio, em que
pelo menos uma auxilie, ratifique ou esclareça os objetivos das outras.
A análise do local e sua evolução físico-urbana a tendo como base
plantas, mapas e documentos antigos, e a recriação da topografia original do
trecho imediato ao objeto da pesquisa, esta última fruto das conclusões
chegadas após a análise e pesquisa física, da Ladeira da Barra e do
monumento em si, também servirá para elucidar a origem deste sítio histórico.
A pesquisa iconográfica, que foi desenvolvida desde o começo da
elaboração do projeto de restauração, terminou por se revelar um evento à
parte no processo de pesquisa, que envolveu não só o projeto de restauração
do Cemitério dos Ingleses como também esta dissertação. A despeito de certo
preconceito atribuído aos cemitérios, consegui pesquisar e apresentar nesta
dissertação vinte e quatro fotografias, que retratam o período à partir de 1860
até 1960, nove pinturas mostrando vários períodos, oito cartões postais,
contendo fotos e pinturas do século XIX, três gravuras e cinco mapas da cidade
do Salvador no século XIX.
A dificuldade inicial em se encontrar imagens, além das divulgadas em
publicações mais conhecidas do público, foi compensada pelo fato de o
Cemitério dos Ingleses se situar entre as igrejas do Santo Antonio da Barra e a
Igreja da Vitória, em um local muito apreciado e aprazível desde o século XIX,
o que facilitou a localização deste material. Pesquisas feitas nos arquivos
fotográficos do Museu do Tempostal, do Instituto do Patrimônio Histórico
Nacional, Fundação Gregório de Mattos e do Centro de Estudos da Arquitetura
Baiana, Biblioteca da Fundação Clemente Mariani, e a colaboração de
voluntários foram muito importantes no desenvolvimento dessa fase.
Origens
O cemitério dos Ingleses está localizado na meia encosta da Ladeira da
Barra, entre as igrejas da Vitória e de Santo Antônio da Barra e é constituído
basicamente na capela e na da área de enterramentos, dividida em três
patamares de enterramentos; o primeiro patamar segue a cota de implantação
da Ladeira da Barra, o segundo aproximadamente a quatro metros e meio
abaixo na encosta do primeiro patamar e o terceiro patamar (não mais
existente), seis metros abaixo do segundo patamar na área ocupada
atualmente por um estacionamento utilizado pelos freqüentadores do Yatch
Club da Bahia.
Conforme afirmamos, o Cemitério dos Ingleses tem a sua origem à partir
da permissão para a compra de seu terreno para a sua implantação, concedida
pelo Conde dos Arcos, em 1811nos seguintes termos:
Do Cônsul da Nação Britannica,Três Negociantes da mesma Nação, Supplicando a S.
Ex ª a graça de aprovar converter o terreno q’elles se achão de posse....... pª cemitério
dos mortos da sua Nação.
Respondido em 10 de Fevereiro de 1811
Ilmo.e Exo. Senhor. Os abaixo assignados, Cônsul de Sua Magestada Britanica, na
Província da Bahia Deputados dos Negociantes Inglezes, rezidentes nesta Cidade,
tendo legal e devidamente comprado o dominio útil de huma Roça sita na Estrada, que
pela, parte do Mar, vai da Victória para o Forte Grande da Barra, pertencente Capella
de Santo Antônio a cuja Confraria he foreiro, desejão converter aquelle Terrêno em
Cemitério próprio, e decente para nelle, se enterrarem os Vassalos de S.M.B. que
nesta Cidade fallecerem e que ahí dezejarem de enterrar-se. Para este effeito os
abaixo assignados tem a honra de se dirigirem à Respeitavel Presença de Vossa
Excellencia, supplicando a Vossa Excellencia, como submissamente supplicão, a
Graça de Aprovar e concentir que o sobredito Terrêno, de muros a dentro possa de
hoje em diante servir para Cemitério da Nação Britanica, conformemente à Provisão
por sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal facultada aos Vassalos Britanicos,
na Letra do Artigo 12° do Tratado do Comercio formado entre os Plenipotenciários das
respectivas Coroa Britamca e Portugueza, em 19 de Fevereiro de 1810, que diz assim:
Liberty shall be granted to bury the Subjects of His Britanic Magesty who may die in the
Territories of his Royal Hisgne.... the Prince Regnt of Portugal in convenient Places to
be appointed for that Purpose = Conformando-se, os abaixo assignados por si, e por
seus futuros Sucessores, na administração do mesmo Cemitério, às restricçoens
acordadas no supra dito Artigo, na parte que regula a privação do exercicio publico de
outra cumunhão que não seja a da Religião dominante no Paiz. Os abaixo assignados,
aproveitão esta occazião para renderem à Vossa Excellencia os sentimentos da sua
alta consideração, e profundo respeito. A Sua Excellencia o Senhor Conde dos Arcos
General da Provincia da Bahia, Frederico Lindeman Consul de S.MBra Jorge Car.....
Moir Henrique Harrison. Geo I... S.... Consulado G. Britanico, 8 de Fevereiro de 1811.2
Tomamos então a data de 1811 como ponto de partida para a pesquisa
iconográfica, e de forma paralela a data de 1808 como data de chegada da
Família Real ao Brasil.
Figura 2: Detalhe do Cemitério dos Ingleses e
Igreja de Santo Antonio da Barra
Fonte: PEARCE, Aquarelas feitas durante a viagem ao Brasil da H. M.S. Favorite em 1819 e 1820...
O Olhar do Artista
Partindo do pressuposto de que só seria possível encontrar imagens do
Cemitério Britânico à partir da década de 30, não restaria outra opção que não
a busca por pinturas, mapas ou gravuras que indicassem a sua presença
efetiva, e dessa forma a primeira imagem na qual podemos identificar de forma
indubitável este cemitério foi a aquarela marítima feita pelo tenente Robert
Pearce3 feita entre os anos de 1919 a 1920 quando de sua visita ao Brasil
nessa data. Outra aquarela ainda seria encontrada, desta vez de autoria de
Emeric Essex Vidal entre 1835-1837 também em visita a Bahia.
O que a imagem produzida por Pearce nos trás de interessante é que
apenas oito anos depois da data de permissão para a implantação do mesmo
podemos observar este sítio totalmente constituído na paisagem a qual
pertence.
De fato ainda temos como enterramento remanescente mais antigo
neste cemitério o túmulo de John Sharp em 1813, justamente em local de difícil
edificação, por se localizar no ponto comum de dois cortes de morro com
contenção (o morro do Outeiro de Santo Antônio da Barra e o morro dos
Clemente Mariani) em um local que estaria situado a mais de cinco metros de
profundidade do nível original do seu solo, já quase no limite do terreno do
cemitério com a casa vizinha da Igreja de Santo Antonio, que seria em tese um
dos últimos locais de construção dada a dificuldade técnica necessária4.
FOTO 01:5 Benjamim Mulock; Outeiro da Barra em 1860
Quadro 1: Fragmento da Lista de Enterramentos
Nome
John Sharp
Origem
Data de
Idade
Liverpool
falecimento
11/09/1813 36
Fonte: Checagem in loco dos enterramentos.
Daniel Parish Kidder no século XIX, quando reportava a existência de
um cemitério americano na Bahia relata sobre a política britânica de incentivos
a construções religiosas em outros países:
A Bahia é a única cidade brasileira onde existe um cemitério norte-americano. Sendo
muito mais numerosa a colônia inglesa – e ainda contando com o auxílio financeiro de
seu governo para diversos empreendimentos sociais e religiosos, tais como a
construção de igrejas e a manutenção de capelães em países estrangeiros, - mantém
ela cemitérios em quase todas as cidades importantes do Império. Não somente os
súditos britânicos se beneficiam dessa louvável atitude do governo inglês. Protestantes
de todas as nacionalidades, especialmente cidadãos norte-americanos, devem grande
soma de obrigações à colônia inglesa, pelo fato de frequentemente facilitar, à esta
última, o enterramento de seus mortos. 6
A presença deste enterramento neste local citado, cruzada com o
testemunho de Kidder e ratificada pela aquarela de Pearce nos leva a entender
que a construção deste sítio se deu em um período de tempo relativamente
curto de tempo e que, além disso, ainda teria se dado em uma etapa somente.
As primeiras fotografias encontradas por essa pesquisa se reportam ao
ano de 1860 de autoria de Benjamim Mulock, logo em seguida temos
Guilherme Gaensly (1865-80), Augusto Riedel1868, J.Schleier: 1876 e a partir
daí temos uma série de fotógrafos até os dias de hoje, nem sempre tendo o
Cemitério dos Ingleses como plano principal, mas sim todo o conjunto do
outeiro e da Ladeira da Barra.
Conclusões
Essas fotos trazem registros imprescindíveis para a o entendimento da
evolução física do Cemitério dos Ingleses ao longo da sua existência e da
evolução urbana do seu trecho de influência – a Ladeira da Barra.
É a partir da análise das imagens coletadas que divide-se as seguinte
observações conclusivas;
Capela
A capela interna ao cemitério apresentou poucas modificações ao longo
do tempo. Podemos observá-la desde a aquarela marítima de Pearce em 1919,
o que indica que a mesma pode ter sido construída desde o início da
implantação do sítio no terreno.
O que podemos observar posteriormente, pela análise das fotografias é
que a cobertura do seu adro tem pequenas mudanças relativas ao acabamento
frontal em meia água ou em uma água exclusiva para minimizar a influência da
chuva neste compartimento.
Ela se diferencia das demais capelas anglicanas de sua época, com torres
sineiras e arquitetura neoclássica por conta da instituição do artigo décimo
segundo, do Tratado de Comércio e Navegação de 1810, que segunda a sua
constituição, relatava:
Que vassalos de S.M. Britânica residentes nos territórios e domínios
portugueses não poderiam ser perturbados, inquietados, perseguidos ou
molestados por causa de sua religião, e teriam perfeita liberdade de
consciência, bem como licença para assistirem e celebrarem o serviço em
honra do Todo-Poderoso Deus, quer dentro de suas casas particulares, quer
nas suas particulares igrejas e capelas, sob as únicas condições de que estas
externamente se assemelhassem às casas de habitação e também que o uso
dos sinos lhes não fosse permitido para o fim de anunciarem publicamente as
horas do serviço divino, e que os vassalos britânicos e quaisquer outros
estrangeiros de comunhão diferente da religião dominante nos domínios de
Portugal não seriam perseguidos ou inquietados por matéria de consciência,
tanto nas suas pessoas como nas suas propriedades.7
Para, além disso, essa capela, além de se parecer com uma casa ainda
possuía um elemento que alterava a simetria bilateral do formato da sua planta
de templo Greco romano no momento em que adicionava uma varanda voltada
para o limite oeste suavizando os efeitos do poente e valorizando a vista para a
Baía de Todos os Santos.
Área de Enterramentos
Podemos observar inicialmente que o Cemitério dos Ingleses teve seus
limites externos e sua capela edificados em uma primeira etapa. Inicialmente
se procedia aos enterramentos em apenas um primeiro patamar, no mesmo
nível de cota de implantação da Ladeira da Barra. Com o aumento da
população desta necrópole, se construiu, em 1925, uma escadaria externa que
dava acesso a um segundo patamar de enterramentos e uma rampa que dava
acesso ao o terceiro patamar – originalmente parte da propriedade do
Cemitério dos Ingleses, uma vez que essa propriedade tinha como seu limite
oeste o mar.
De qualquer maneira como a ocupação dos segundo e terceiro patamar
parece ter sido dado de maneira efetiva quando da necessidade de construção
da escadaria externa em 1925, o que se pode observar nas fotografias mais
recentes, do começo do século XX é a evolução no número de sepulturas
nestes locais, contudo, o que se pode aferir, tanto nas pinturas quanto nas
fotografias, é basicamente a presença de vegetação demarcada apenas pelos
muros de limita da propriedade.
Ladeira da Barra (área de Influência)
Através das imagens coletadas podemos ter uma idéia da urbanização
da Ladeira da Barra (local de implantação do sítio e sua área de influência). O
Cemitério dos Ingleses surge como conseqüência da forma da Ladeira da
Barra, como a conhecemos hoje, pelo aproveitamento do lado da encosta do
trecho de terreno que restou.
Segundo o historiador Cid Teixeira:
Essa ladeira, com o traçado atual é muito diferente daquilo que foi antes o
Caminho do Conselho. Se nós observarmos o seu atual traçado veremos que
ela é um corte de meia encosta. Aquele mesmo Edouard Parker que foi o
empreiteiro do nivelamento do Campo Grande; é ele que aparece, agora,
fazendo o novo traçado da ladeira da Barra, de tal sorte que fosse possível aos
animais fazerem a tração do boné, na subida, diminuindo sensivelmente o
declínio. Muda o traçado e, quem observar, vai ver que há um remanescente
de terreno, do lado direito de quem desce, que correspondia à antiga fábrica de
xales da Cidade de Salvador, que é hoje o Yatch Club da Bahia, e o
remanescente que deu margem a implantação do Cemitério Inglês. Não por
acaso Edouard Parker além de empreiteiro, era o capelão da colônia inglesa
na Bahia. A modificação se fez, de tal sorte, que a ladeira deixou de fazer uma
esquina para a direita e passar e frente ao forte de São Diogo, para descer até
o largo da Barra possibilitando uma sobra do terreno, onde foram feitos dois ou
três edifícios e o atual Hotel da Barra.8
Observamos a procedência da afirmação de Cid Teixeira, segundo o
qual a construção do Cemitério dos Ingleses só foi possível pela da compra do
terreno, resultante do aproveitamento, de um lote que teria surgido em meio
aos cortes feitos na topografia, cortes estes que possibilitaram a configuração
da Ladeira da Barra como se encontra nos dias de hoje, com sua inclinação e
gabarito atuais.
Na verdade, contudo, não encontramos como procedente, a informação
de que Parker a tenha construído, mesmo porque Parker somente chegou à
Bahia em 1836 e teria partido em 1855, período este que não observamos no
entorno imediato, pelas fotografias, nenhuma infra-estrutura de beneficiamento,
esta somente se pode verificar pelo registro iconográfico a partir de 1865. Daí
em diante, podemos observar a pavimentação desse trecho, inserção de
postes de iluminação (provavelmente a gás), e linhas aéreas provavelmente de
telégrafo.
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VIDAL, Emeric Essex. Salvador da Baía de Todos os Santos: vista panorâmica
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NOTAS
1
KOSSOY, Boris – Dicionário histórico-fotográfico brasileiro: Fotógrafo e ofício da fotografia no Brasil
(1833-1910). São Paulo – Instituto Moreira Salles, 2002. p15-16.
2
APEB – Sessão de Arquivos Coloniais, Série Correspondência recebida de autoridades diversas, 1814, maço n°
226, caderno 8.
3
PEARCE, Tenente Robert. Aquarelas feitas durante a viagem ao Brasil da H. M. S. Favorite em 1819 e 1820. Rio
de Janeiro, Banco da Bahia Investimentos/Livraria Kosmos Editora, 1991. – Panorama da Bahia
4
SSJCB; Lista de Enterramentos do Cemitério Britânico.
5
FERREZ, Gilberto. Bahia velhas fotografias: 1858-1900. Rio de Janeiro/Salvador: Kosmos/Banco da Bahia
Investimentos S.A, 1998. p. 60-61.
6
KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil. Belo
Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. p.55.
7
Apud RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Brasil Monárquico. São Paulo: Pioneira. 1973. p.17.
8
TEIXEIRA, Cid. Salvador: História Visual. Fascículo 6. Salvador: Correio da Bahia, 2001.p 09
As necrópoles urbanas de Salvador e
a ótica higienista no século XIX
Ernesto Regino Xavier de Carvalho
Arquiteto Urbanista Mestre em Conservação e Restauração
Taba- Arquitetura, Idéias e Soluções
Resumo
O presente artigo pretende demonstrar, a influência do pensamento higienista na redefinição
dos espaços físicos da cidade do Salvador do século XIX, com ênfase nas suas necrópoles
urbanas, e da nova relação de responsabilidade dos habitantes com a cidade a partir da
tradução da ótica higienista nas posturas (leis) municipais - representantes do aumento do
poder de intervenção do estado nos hábitos e costumes da população, a partir de uma análise
articulada da breve descrição do histórico da rede de cemitérios de Salvador, e das respectivas
localizações dessas necrópoles na cidade, no século XIX, no sentido de entendermos a
abrangência desse pensamento comparada ao efeito que essas novas arquiteturas assumem,
a partir de então na sua estrutura urbana social, política e religiosa.
Palavras-chave: Cemitérios na Bahia — História —Bahia.
Apresentação
Desde o século XVI até os meados do século XIX, as igrejas no Brasil,
serviram como última morada dos fiéis, fazendo às vezes de nossos atuais
cemitérios. Esse hábito passou a ser revisado a partir de uma conjuntura
marcada pela escalada do pensamento científico baseado no iluminismo
europeu que ganhou terreno com a abertura dos portos do Brasil em 1808.
Acreditava-se, até então, dentro do meio científico, que os miasmas odores oriundos da putrefação da matéria orgânica, tidos como fluidos
invisíveis, eram malignos à saúde e que respondiam pelo surgimento de
doenças e epidemias e, por vezes, até a morte, contribuindo para a
insalubridade e para a desordem das cidades.
No caso dos enterros alegava-se que o acondicionamento de mortos nas
igrejas era inadequado e favorecia a proliferação dos mesmos. Dr. Francisco
d’Assis de Sousa Vaz, em sua Memória sobre a inconveniência dos enterros
nas igrejas e utilidade da construcção de cemitérios no dá idéia da evolução
desse cenário.
Entre o grande número de abusos perigosos, que concorrem para alterar a Saúde
pública, deve contar-se a prática até agora usada em Portugal de enterrar os mortos
1
nas Igrejas. Nenhum Facultativo ignora, que as sepulturas nestes logares pouco
arejados são extremamente nocivas. (...)
He bem sabido que as exhalações das sepulturas causam grande número de doenças,
muitas vezes mortaes, e que o enterramento nas Igrejas tem sido frequentemente
funesto em razão dos miasmas putridos, ou vapores cadavéricos que alli se conservão
condensados. A salubridade pública exige pois imperiosamente que cesse para sempre
esta prática nociva, e que o logar das sepulturas seja a huma distancia considerável
das povoações. (...)
O corpo de todo animal sugeito às leis da matéria, privado de vida, soffre uma
decomposição dos seus princípios, elevando-se n’este acto miasmas, isto he, huma
exalação das moléculas mais moveis d’estas diferentes substancias e partes
constitutivas dos animaes, que espalhadas na atmosfera, são capazes de perturbar as
funcções vitaes d’aqueles que as respirão.1
No século XIX, consolidava-se a nova idéia da necessidade de sanear
as cidades a partir dos pressupostos higienistas. Os médicos sanitaristas
passaram, então, a reler o espaço urbano do ponto de vista da saúde e do seu
saneamento. Esse pressuposto serviu não somente como forma de mudança
de se pensar a cidade como também terminou por dar legitimidade às
intervenções do poder público2, segundo Maria Clélia Lustosa Costa
“Desenvolve-se, então, uma medicina a acentuar o meio ambiente, as relações
entre o homem doente, a natureza e a sociedade, assentada no neo
hipocratismo.”3.
Os reflexos na esfera urbana mostram-se, inexoravelmente, no desenho
das novas cidades. Os urbanistas e pré-urbanistas progressistas dos séculos
XIX e XX lançaram os modelos utópicos de uma cidade higienizada, salubre, e
harmônica, baseada no racionalismo e na eficientização, com ruas ordenadas,
e arborizadas ”onde seja garantido o bem-estar social da população”4.
Caberia naquele momento aos médicos sanitaristas os “grandes planos
de atuação nos espaços públicos e privados da nação”5 ao passo em que os
higienistas seriam os principais responsáveis pelas “pesquisas e pela atuação
cotidiana no combate às epidemias e às doenças que mais afligiam as
populações.”6, onde higienizar a cidade significa estabelecer o controle nos
ambientes suscetíveis ao prejuízo do bem comum das cidades7.
A cidade de Salvador passou por um grande processo de remodelação,
na primeira metade do século XIX que atingiria e modificaria toda sua feição
urbanística e comercial8, e logo as condutas higienistas gerariam leis
específicas nas, que atuariam em todos os espectros da sociedade onde se
pode observar nas posturas municipais da Câmara da Cidade do Salvador em
1829-18599, aprovadas nestes termos em 25 de fevereiro de 1831:
Postura nº. 19
As pessoas que forem convencidas de haverem lançado, ou mandado lançar
cadáveres nas Igrejas, ou quaisquer outros lugares serão multados em 30$000 e oito
dias de prisão. Os cadáveres que assim forem encontrados irão a sepulturas no
Cemitério à custa do cofre municipal, se as parochias o não fiserem immediatamente.”
Postura nº. 20
He absolutamente prohibido enterrarem-se corpos dentro das Igrejas, e nos seus
adros (...). A presente postura só terá vigor dois annos depois da sua publicação dentro
de cujo tempo deverão as confrarias, e parochias estabelecer seus cemitérios em
lugares approvados pela Câmara, fora da cidade.
Postura nº. 22
Determina que os enterramentos deverão ser feitos a 6 palmos abaixo da superfície
Postura nº. 23
Os corpos deveriam ser inumados em sepultura coberta ou caixão fechado
Postura nº. 29
As valas e riachos da Cidade de subúrbios, que atravessarem por terrenos particulares
deverão ser limpos, e desentupidos pelos proprietários, ou locatários de taes terrenos:
assim como deverão ser dessecadas pelos mesmos os pântanos, e agoas estagnadas:
penna de 10$000 réis, ou 5 dias de prisão.
Postura nº. 32
O despejo immundo da casas será levado ao mar à noite em vasilhas cobertas, sob
pena de 2$000 réis ou 24 horas de prisão e ficão os senhores responsáveis por seus
escravos.
Postura nº. 35
Proibição de criação de porcos nas cidades e povoados
Postura nº. 38
Os Hospitais são obrigados a ter licença da Câmara
Os cemitérios de Salvador no século XIX
Salvador contava com uma série de cemitérios no século XIX.
O Campo da Pólvora, ou Campo dos Mártires, porque lá haviam sido
executados os líderes da Revolução Pernambucana, de 1817, condenados
pelo oitavo Conde dos Arcos-Dom Marcos de Noronha e Brito.
Este era o local destinado aos suicidas, criminosos, indigentes, escravos
e rebeldes10. Inicialmente era destinado aos pagãos, se tornou cemitério de
escravos e outros destituídos da sociedade11. Localizava-se praticamente no
meio da cidade e de início sequer era chamado de cemitério, aos poucos se
tornava um problema de saúde pública. “O cemitério tinha área de 16 braças
de frente e 24 ½ de fundo, totalmente murado”12 13.
Segundo Antonio Damázio, quando da execução do tombamento dos
bens da Santa Casa:
Ignora-se inteiramente quando, e como ella alli estabeleceu: é todavia certo que, ou
pelas falsas idéias religiosas que predominavão nas passadas eras, a respeito das
sepulturas, ou pela insignificância do cemitério, ou mesmo porque fosse de principio
destinado ao enterramento dos enfermos do Hospital, dos escravos e dos justiçados,
nenhuma pessoa notável, teve lá o descanso da vida.14
Na lista de tombamento dos bens da Santa Casa, consta que a terra não
consumia mais os mortos, sendo assunto para a administração da dita
Irmandade. Um contemporâneo, funcionário da Santa Casa, observou que:
Em 1835 estava o Cemitério nas piores condições. Formado um pequeno quadrilátero
(...) completamente murado, não tinha por onde se estender; com a terra fatigada de
tanto consumir cadáveres, de modo que já mal os absorvia; constrangido de contínuo a
prestar covas aos desvalidos (...) era o Cemitério do Campo da Pólvora um verdadeiro
pesadelo para a Santa Casa, e um foco ameaçador para esta terra vagarosa.15
Foi removido o cemitério, em princípios de 1840, “como negocio
summamente útil à saúde pública.”16.
Segundo o historiador João José Reis, o ano de 1835 foi decisivo para a
campanha contra os enterros nas igrejas de Salvador e, a essa altura, a
proposta, “embora antipática a vários setores da sociedade”, já mostrava
aceitação até mesmo entre o clero que, embora se beneficiasse com o
costume, já enfrentava transtornos em sua manutenção, até mesmo pela
escassez de espaço para os sepultamentos, a ponto do pároco da freguesia da
Vitória, Joaquim de Almeida, apresentar uma representação à Assembléia
Legislativa Provincial - na época presidida por D. Romualdo Seixas, arcebispo
da Bahia - advogando a causa e sugerindo a concessão a particulares, caso o
Governo não tivesse recursos para levar a idéia a cabo17.
Em 23 de outubro de 1835, tendo em vista os “inconvenientes à
salubridade
publica,
e
degradantes
à
magestade
dos
templos,
os
enterramentos nas Igrejas18”, foi promulgada pela Câmara Municipal da cidade
do Salvador, uma concessão de 30 anos a José Augusto de Matos & Cia composta pelos negociantes José Augusto Pereira de Matos, José Antônio de
Araújo e pelo juiz de direito Caetano Silvestre da Silva.
Surgia, a partir daí o Cemitério do Campo Santo - cujo novo nome
buscava unir - e conciliar - as referências ao espaço (não mais a igreja, mas o
campo) e ao caráter do enterro (que continuaria santo, sagrado)19. O terreno,
previamente escolhido pela Câmara, localiza-se “na antiga estrada do Rio
Vermelho, no topo de uma colina arejada, conforme as recomendações dos
higienistas, proibindo-se, a partir de então, os enterros nas igrejas20.
O espaço próprio para os enterros foi assim dividido: de um lado,
túmulos (sepulturas individuais e jazigos perpétuos) e catacumbas (ou
“carneiras”) particulares, e, de outro, covas comuns, destinadas aos mortos
menos abastados. O primeiro grupo de sepulturas seria guarnecido por
“bordados [...] de arbustos próprios” ou “lúgubres árvores, que decorem a
habitação dos mortos”. De acordo com Reis, “a organização das sepulturas do
novo cemitério sugere uma arqueologia dos diferentes estilos de enterramento,
equivalente a uma sociologia da desigualdade entre os mortos” 21. Além disso,
tal hierarquização foi reforçada, a princípio, por uma segregação de cunho
religioso, uma vez que, de acordo com o arcebispo, no novo cemitério só
haveria lugar para aqueles que em vida tivessem passado pelo batismo
católico.22
Apenas dois dias após a sua inauguração, o Campo Santo foi arrasado
por parte da população da cidade, inconformada com a mudança no regime de
enterros, mudança esta que seria agravada no dia seguinte com a entrada em
vigor de uma lei que proibia os enterros nas igrejas e concedia, pelo período de
trinta anos (ao fim dos qual, o cemitério passaria à administração pública), o
monopólio dos enterros a José Augusto de Matos & Cia. O episódio - que ficou
conhecido como Cemiterada - resultou na desistência da companhia, que
recebeu do Governo indenização devida23.
Segundo Afrânio Peixoto, os tais protestos foram de responsabilidade
das Ordens Terceiras, “que, a 5 de outubro de 1836, fizeram, ao Presidente da
Província, petição, suspensiva da lei” e, não recebendo resposta dos seus
pleitos, rumaram em direção ao Campo Santo ”e arrasaram tudo, exceto a
capela.”24.
Em janeiro de 1840, a Santa Casa de Misericórdia comprou o cemitério
a dez contos, e iniciou melhoramentos e obras de reconstrução transferindo
para lá, entre os anos de 1843 e 1844, os restos mortais do Campo da Pólvora,
ali sepultando, em covas comuns, a partir de 01 de maio de 1844, todos os que
faleciam no hospital da Santa Casa e também os escravos.
Em 1847, foram feitas as principais obras, como o jardim, muralhas,
nivelamento, galeria de carneiros, mausoléus, quadros de inumação25. A capela
foi inaugurada em 07 de junho de 1870, com projeto do arquiteto Carlos
Croesy26. Deste modo, nos relatava Damázio, 1862, que ficou
introduzido o gosto dos mausoléus, e definitivamente abolido o uso dos enterros nas
Igrejas para que contribuiu em primeiro lugar a prohibição feita pela Mesa e Junta de
11 de dezembro de 1853 de os executar na Igreja da Santa Casa, e em segundo – de
maneira decisiva a medonha epidemia do cholera-morbus em 1855.27
De acordo com o artigo 1º do novo regulamento, publicado em 1866, o
novo cemitério do Campo Santo destinava-se a:
dar sepultura aos Irmãos da S. casa, suas mulheres e filhos - em quanto menores; aos
doentes pobres, ou sob dependência della; aos indigentes, quando enviados pela
Policia, ou pelos Irmãos Provedor, Escrivão, Thesoureiro ou Mordomo respectivo; aos
que mediante a compra de chão, tiverem no mesmo Cemitério jazigos construídos por
si, seus parentes ou amigos, conforme os contractos de taes compras; e a todos os
que, por esmola previamente entregue ao Irmão Thesoureiro, forem para lá conduzidos
por aquelles que dispozerem de seus enterros.28
Em 1870, iniciou-se a construção da atual igreja substituindo a antiga
capela, que, além de menor e menos vistosa (a atual é uma igreja neogótica de
478 metros quadrados), abrigava um painel da Ascensão do Senhor que foi,
“intitulado pelos mal intencionados de emblema maçônico.”29. Este foi
substituído por uma imagem de Nossa Senhora da Piedade, entronizada no
altar-mor no dia da inauguração da nova igreja, em 7 de junho de 1874.
Fundada em 1552, a Irmandade da Misericórdia foi a mais poderosa e
importante da Bahia Colonial. Ser irmão da Santa Casa de Misericórdia era
título de prestígio na sociedade colonial30. Dentre suas assistências estavam
asilos, a Roda dos Expostos, o Recolhimento, Casas de Orates, e os
Cemitérios da Pólvora e, posteriormente, do Campo Santo. Possuía o
privilégio, dado à Misericórdia de Lisboa por Felipe II, de Portugal, em 1622, e
assumida pela Misericórdia da Bahia31, de usar e alugar as tumbas em que
eram transportados os mortos à sepultura. Dos esquifes de madeira, para as
elites coloniais, ou os improvisados bangüês, para os escravos, e com exceção
de padres, soldados e algumas irmandades negras, somente a Misericórdia
realizava os serviços fúnebres no século XVIII32.
A lei municipal de 28 de outubro de 1828, que regulava a limpeza da
pública, imbuído de idéias liberais, civilizadores e higienizadores, foi
estabelecido no artigo 66 a construção de “cemitérios fora do recinto dos
templos”33:
No principio não eram proibidos os enterros nas igrejas e nas capelas, mas logo que
houve consciência da falta de higiene proveniente desse costume tradicional,
interditavam esses funerais, tão ao gosto da população e dos associados das
Irmandades, e os corpos foram levados aos cemitérios. As vítimas da epidemia eram
transportadas para serem enterradas nos cemitérios da Maçaranduba, da Santa Casa
e do Campo Santo, também pertencentes à mesma Irmandade.34
Em 1855, a população de Salvador era de 56.000 habitantes e cerca de
16,8% deles foram dizimados pela peste35.
Pela lei nº 404 de 2 de agosto de 1850 que deve ter sido imperada pela verificação da
falta de higiene que derivava da prática de enterrar os mortos de uma epidemia no
interior dos templos, ficavam proibidos essas inumações, com as únicas exceções dos
Prelados, das religiosas dos conventos ou mosteiros, e das recolhidas em
estabelecimento de cunho religioso.36
“Comprou-se a Quinta do Tanque por espólio dos jesuítas, por 6 contos
de réis37”, tendo sido aberto por ordem do Governador e Capitão Geral D.
Rodrigo José Menezes e Castro, em 21 de agosto de 178738.
“Foi especialmente destinado a recolher, tratar e curar morphéticos de
ambos os sexos, sem distinção de condição, naturalidade e religião.”39 “Este
cemitério veio a ser público quando, ao tempo da cólera, foi impedido o
sepultamento nas igrejas, para esta zona da Bahia, sendo chamada (...)
Cemitério das Quintas.”40, ou Quinta dos Lázaros, que segundo Peixoto, era
destinado aos leprosos41. “Tinha um altiplano de morro, suficiente e muito
adequado para se fazer uma verdadeira necrópole, nos conceitos sanitaristas e
urbanísticos da época.42”,onde seriam construídos os cemitérios das principais
ordens e irmandades religiosas na Bahia, “nos quais as diversas sociedades
beneficentes encontraram terreno para suas quadras e mausoléus coletivos.”43.
O Império Britânico teve a sua representação bem como o Germânico.
“As relações do emergente Estado brasileiro com este último estreitaram-se a
partir do casamento de D.Pedro, em 1818, com a imperatriz Leopoldina, que,
por sua vez, apoiou a vinda de cientistas e artistas germânicos para a América
portuguesa.”44.
Pode-se ter uma idéia desta representação na capital Com a abertura do
consulado de Hamburgo na Bahia, em 1820. Os registros da Alfândega de
Salvador apontam, entre 1856 e 1864, a presença de 299 imigrantes tidos
como alemães45, atestando que um número significativo destes passou pela
Bahia ou ali se fixou.”46.
Em 1827, através dos Tratados Comerciais assinados com as cidades
de Lübeck, Bremen e Hamburgo, o Brasil formalizou as suas relações
comerciais com a Alemanha, acarretando um fluxo crescente de germânicos,
que aportavam em Salvador, vindos de Hamburgo – considerado o mais
importante porto alemão.47.
Em 1851, fora fundado em Salvador um cemitério conhecido como
Associação Cemitério dos Estrangeiros, também conhecido pelo nome de
Cemitério dos Alemães, que existe até hoje, sob o nome de Sociedade
Cemitério Federação48. A preocupação com os óbitos levou os alemães à
criação de um cemitério próprio, em frente ao Campo Santo, e outro em São
Félix, em 1853, segundo suas crenças não católicas.
O Hospital Couto Maia, ou Isolamento de Mont Serrat, foi planejado
para tratamento dos estrangeiros, principalmente britânicos, acometidos por
alguma das epidemias típicas os séculos XIX e XX, como a febre amarela
(1849, 1857), cólera (1855), peste bubônica (1904), gripe espanhola (1918),
varíola (1919), febre tifóide (1924) e outras chamadas doenças tropicais.
Foi construído em 9 de abril de 1853 em ato expedido pelo então
Presidente da Província da Bahia, Mauricio Wanderley em local afastado, alto e
pouco povoado. Foi construído nas terras da fazenda de Antonio de Freitas
Paranhos. Devido à alta taxa de mortalidade dessas epidemias, o hospital
recebeu, no inicio do século XX, o apelido de “lugar que a morte freqüenta.”49.
O seu difícil acesso levou a se edificar um pequeno cemitério destinado
às pessoas que morriam dessas estranhas e temidas doenças. Inicialmente
esses enterramentos eram feitos nas imediações do próprio hospital, segundo
a historiadora Lorenzo50. A área não se verificou adequada, devido à
proximidade de fontes de água utilizada na enfermaria, “e por formigas que por
vezes deixavam os mortos descobertos”, os enterramentos começaram a ser
feitos nos cemitérios de Bom Jesus em Mont Serrat e de Massaranduba, a
partir da década de 70 do século XIX.
Figura 1: Cemitérios de Salvador no século XIX
Fonte: Ernesto Carvalho
A Cidade do Salvador possuía o pequeno cemitério na Mouraria para
soldados do Segundo Regimento51. O cemitério dos Quinze Mistérios, que
pertencia à Irmandade dos Quinze Mistérios, na freguesia do Santo Antônio, foi
construído em 1825 e acolhia inclusive não irmãos52. Havia ainda o cemitério
de Massaranduba, ou Bom Jesus da Massaranduba, que pertencia à Ordem
Terceira da Santíssima Trindade, e já estava em funcionamento entre
1835-1836 - destinava-se a pobres e escravos53.
Kidder, ainda em sua viagem por Salvador, fez referência a um lote, “nas
fraldas do Morro da Vitória”, que teria sido comprado a partir de angariações
feitas
à
comunidade
norte-americana
e
servia
como
uma
área
de
enterramentos para estes cidadãos. Por ele foi denominada cemitério norteamericano, ao que tudo indica no topo da Ladeira da Barra, relativamente
próximo ao Cemitério dos Ingleses:
A Bahia é a única cidade brasileira onde existe um cemitério norte-americano. Sendo
muito mais numerosa a colônia inglesa – e ainda contando com o auxílio financeiro de
seu governo para diversos empreendimentos sociais e religiosos, tais como a
construção de igrejas e a manutenção de capelães em países estrangeiros, - mantém
ela cemitérios em quase todas as cidades importantes do Império. Não somente os
súditos \britânicos se beneficiam dessa louvável atitude do governo inglês.
Protestantes de todas as nacionalidades, especialmente cidadãos norte-americanos,
devem grande soma de obrigações à colônia inglesa, pelo fato de frequentemente
facilitar, à esta última, o enterramento de seus mortos. 54
A área descrita por Kidder não era edificada, e possuía poucos túmulos,
muitos de não americanos. “Sobre eles o mato crescia livremente e o cemitério
estava inteiramente aberto.” Não se constituía, portanto, de uma edificação,
apenas de um local de enterramentos.
O Cemitério dos Ingleses (British Cemetery) tem a sua origem a partir
da permissão para a compra de seu terreno para a sua implantação, concedida
pelo Conde dos Arcos, em 1811, e surge em pleno período joanino e é o último
remanescente da arquitetura anglicana do séc. XIX, um dos três do Brasil, logo
após os Tratados de 1810 (Tratado de aliança e Amizade e de Comércio e
Navegação) corolários da Abertura dos Portos operada em 1808, nos seguintes
termos:
Do Cônsul da Nação Britannica,Três Negociantes da mesma Nação, Supplicando a S.
Ex ª a graça de aprovar converter o terreno q’elles se achão de posse....... pª cemitério
dos mortos da sua Nação.
Respondido em 10 de Fevereiro de 1811
Ilmo.e Exo. Senhor. Os abaixo assignados, Cônsul de Sua Magestada Britanica, na
Província da Bahia Deputados dos Negociantes Inglezes, rezidentes nesta Cidade,
tendo legal e devidamente comprado o dominio útil de huma Roça sita na Estrada, que
pela, parte do Mar, vai da Victória para o Forte Grande da Barra, pertencente Capella
de Santo Antônio a cuja Confraria he foreiro, desejão converter aquelle Terrêno em
Cemitério próprio, e decente para nelle, se enterrarem os Vassalos de S.M.B. que
nesta Cidade fallecerem e que ahí dezejarem de enterrar-se. Para este effeito os
abaixo assignados tem a honra de se dirigirem à Respeitavel Presença de Vossa
Excellencia, supplicando a Vossa Excellencia, como submissamente supplicão, a
Graça de Aprovar e concentir que o sobredito Terrêno, de muros a dentro possa de
hoje em diante servir para Cemitério da Nação Britanica, conformemente à Provisão
por sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal facultada aos Vassalos Britanicos,
na Letra do Artigo 12° do Tratado do Comercio formado entre os Plenipotenciários das
respectivas Coroa Britamca e Portugueza, em 19 de Fevereiro de 1810, que diz assim:
Liberty shall be granted to bury the Subjects of His Britanic Magesty who may die in the
Territories of his Royal Hisgne.... the Prince Regnt of Portugal in convenient Places to
be appointed for that Purpose = Conformando-se, os abaixo assignados por si, e por
seus futuros Sucessores, na administração do mesmo Cemitério, às restricçoens
acordadas no supra dito Artigo, na parte que regula a privação do exercicio publico de
outra cumunhão que não seja a da Religião dominante no Paiz. Os abaixo assignados,
aproveitão esta occazião para renderem à Vossa Excellencia os sentimentos da sua
alta consideração, e profundo respeito. A Sua Excellencia o Senhor Conde dos Arcos
General da Provincia da Bahia, Frederico Lindeman Consul de S.MBra Jorge Car.....
Moir Henrique Harrison. Geo I... S.... Consulado G. Britanico, 8 de Fevereiro de 1811.55
Conclusões
Com a remodelação da cidade do Salvador os novos pensamentos
higienistas tomaram forma e força de leis municipais
O nível de responsabilidade do cidadão com a sua cidade cresce à
mesma proporção em que cresce a atuação do poder público, agora em
esferas mais íntimas da população – seus hábitos diários e sua religião, sua
própria relação da morte com a saúde coletiva ganham uma nova consciência
comportamental, mais evoluída e com ares europeus.
Os cemitérios tinham, portanto, atenção especial, uma vez que serviam
agora como único espaço para acolher os corpos, uma vez que as igrejas não
mais poderiam fazê-lo. Sujeitos às novas regras deveriam se localizar afastado
das áreas povoadas, nos sub urbs, no alto de colinas, e ter muros altos, e a
devida profundidade dos túmulos e forma correta de um enterramento.
Os cemitérios estrangeiros como o Germânico e dos Ingleses já traziam
incorporados esses pressupostos, este último de forma pioneira por ter se
estabelecido ainda em 1811.
NOTAS
1
VAZ, Francisco d’Assis de Souza. Memória sobre a inconveniência dos enterros nas igrejas e utilidade da
construção de cemitérios. Bahia, Imprensa de Gandra e Filhos, 1835, pp. 5 e 18.
2
COSTA, Maria Clélia Lustosa. “Teorias Médicas e gestão urbana: a seca de 1877-79 em Fortaleza.” História,
Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. 11 (1) (jan.-abr. 2004), p. 58.
3
Ibid, p. 59.
4
Ibid, p. 68.
5
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 206.
6
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 206.
7
COSTA, Maria Clélia Lustosa. “A Cidade e o pensamento médico: uma leitura do espaço urbano.” Mercator - Revista
de Geografia da UFC, n. 02 (2002), p.63.
8
RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1996. p.
292-295.
9
AMFGM; POSTURAS MUNICIPAIS da Câmara da cidade de Salvador. 1829-1859.
10
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p.192.
11
Ibid, p. 196.
12
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Ed.
UNB, 1981. p. 183.
13
Tais dimensões foram estipuladas se formos considerar a medida de uma braça igual a 2,2 metros. (algo em torno de
35 por 55 metros)
14
DAMÁZIO, Antonio Joaquim. Tombamento dos bens immoveis da Santa Casa da Misericórdia da Bahia em
1862. Bahia: Typographia de Camillo de Lellis Masson & Companhia, 1862. p. 55.
15
Ibid, p. 55.
16
Ibid, p. 57.
17
REIS, Op, cit. p. 292 e 294.
18
DAMÁZIO, Op, cit, p..156.
19
Ibid, p. 318, 293 e 295.
20
Ibid, p. 56.
21
Ibid, p. 295-296.
22
APEB, Religião. Governador do arcebispado, 1836-38, maço 5211; Apud REIS, Op. cit., p. 306.
23
REIS, Op. cit., p. 336.
24
PEIXOTO, Afrânio. Breviário da Bahia. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1946. p. 253.
25
DAMÁZIO, Op. cit. p.57-58.
26
DANTAS, Manuel Pinto de Souza. Relatório apresentado a junta da Irmandade da Casa da Santa Misericórdia da
Capital da Bahia. Bahia: Typographia do Diário, 1874.
27
DAMÁZIO, Op, cit. p.58.
28
REGULAMENTO do Cemitério Campo Santo. Bahia: Typographia de Tourinho & Cia, 1866. p. 3.
29
RELATÓRIO de 1844, Apud: COSTA, Paulo Segundo da. Op. cit., p. 71-72.
30
RUSSEL-WOOD, Op. cit. p. 153-155.
31
Ibid. p. 73.
32
REIS, Op. cit. p. 146.
33
Ibid. p..276.
34
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da cidade do Salvador: aspectos sociais e urbanos do
século XIX. Salvador: FCEBa/EGBa, 1986. p. 154.
35
Ibid. p. 161.
36
Ibid. p.165.
37
PEIXOTO, Op. cit. p.102.
38
BOCCANERA JR, Sílio. Bahia cívica e religiosa: subsídios para a história. Bahia: A Nova Graphica, 1926. p. 317.
39
Ibid. p. 317.
40
PEIXOTO, op. cit. p. 103.
41
Ibid. p. 97.
42
VALLADARES.Arte e sociedade nos cemitérios: um estudo da arte cemiterial no Brasil desde as sepulturas de
igrejas e as catacumbas de ordem e confrarias até as necrópoles secularizadas realizado no período de 1960 a 1970.
[s.n.], Rio de Janeiro, 2v, 1972.. p. 115.
43
Ibid. p. 115.
44
BARRETO, Maria Renilda Nery; ARAS, Lina Maria Brandão de. Salvador, cidade do mundo: da Alemanha para a
Bahia. Hist. cienc. Saúde-`Manguinhos, v. 10, n. 1 (2003). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0104-59702003000100005&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 13 Out 2006.
45
LYRA, Henrique Jorge B. Colonos e colônias — uma avaliação das experiências agrícolas na Bahia na segunda
metade do século XIX. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal da Bahia, 1982. p. 141
46
AUGEL, Moema Parente. Viajantes estrangeiros na Bahia oitocentista. São Paulo/Brasília, Cultrix/INL, 1980. p. 30
47
MENEZES, Albene Miriam Ferreira. “Os alemães, uma presença secular”. Revista da Bahia, n. 16 (mar-maio 1990),
p. 34 apud BARRETO e ARAS, Op cit, P34.
48
Ibid. p. 36.
49
JORNAL Correio da Bahia, Caderno Domingo Repórter. 20/102002, p. 3.
50
LORENZO, Fátima. Breve História do Hospital Couto Maia: manual de procedimentos em doença infecciosas e
parasitárias. Salvador: Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, 1994.
51
VALLADARES, Op. cit. p. 157.
52
REIS, Op. cit. p. 197.
53
Ibid. p. 197-198.
54
KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil. Belo
Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. p. 55.
55
APEB – Sessão de Arquivos Coloniais, Série Correspondência recebida de autoridades diversas, 1814, maço n°
226, caderno 8.
A memória coletiva e as tecnologias de rememoração no Cemitério
Santana de Inhumas (1970-2007)
Eurimar Nogueira Garcia
Graduando em História pela
Universidade Estadual de
Goiás. Este artigo é parte do
primeiro capítulo do TCC em
andamento.
Resumo
Neste artigo abordo resumidamente a histórica valorização das sepulturas no Ocidente e
principalmente sobre o potencial de auxiliar e consolidar a memória coletiva, no sentido a ela
atribuído por Maurice Halbwachs (2006), contido nas sepulturas do Cemitério Santana de
Inhumas (inseridas no recorte 1970-2007), graças ao seu tempo de construção e localização
espacial. Sepulturas essas que reúnem em torno de si o que Peter Burke (2006) denomina
como comunidade de memória, um grupo que nesse caso é movido basicamente por
sentimentos religiosos.
Palavras-chave: morte; cemitério; memória.
Fustel de Coulanges em sua obra A Cidade Antiga, analisando a
preocupação com a lembrança dos mortos, a importância dada ao
sepultamento e a “alimentação” dispensada aos mortos-deuses, na Grécia,
Roma e Índia antiga, atribuiu tal importância a esses rituais que chegou a
afirmar:
(...)Antes de conceber e adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os mortos:
temeu-os e dirigiu-lhes preces. Parece que aí se originou o sentimento
religioso. Talvez diante da morte o homem tenha tido pela primeira vez a idéia
do sobrenatural e esperado encontrar algo além daquilo que via. A morte foi o
primeiro mistério e encaminhou o homem para outros mistérios. Elevou-lhe o
pensamento do visível para o invisível, do transitório para o eterno, do humano
para o divino. (Coulanges, 2003, p. 44).
A importância do sentimento religioso para a origem da valorização das
sepulturas é convergente entre Fustel de Coulanges, afirmando que a crença
antiga era de que a alma sem sepultura seria desgraçada para sempre, e
Elizabeth Kübler que em sua obra Sobre a morte e o Morrer afirma que: (...) “A
tradição do túmulo pode advir do desejo de sepultar bem fundo os maus
espíritos, e a pedrinha que muitos enlutados jogam como homenagem traduz
símbolos do mesmo desejo.” (...)(Kübler, 1998, p.8).
Considerando as afirmações de Fustel de Coulanges, temos uma breve
noção da importância de analisar as construções humanas dedicadas aos seus
ancestrais, pois nelas se pode notar a manifestação de concepções históricoreligiosas, fruto de uma mentalidade marcada por crenças e valores que
inevitavelmente regem atitudes humanas em diferentes épocas e lugares, haja
vista que a preocupação com os mortos é uma constante na cultura da
humanidade, como afirma Norbert Elias em Solidão dos Moribundos: (...) “Uma
mãe macaca pode carregar sua cria morta durante certo tempo antes de largála em algum lugar e perdê-la. Nada sabe da morte, de sua cria ou de sua
própria. Os seres humanos sabem, e assim a morte se torna um problema para
eles.” (Elias, 2001, p. 11).
Analisando
especificamente
umas
das
formas
de
tratamento
dispensadas aos mortos, a inumação e a construção tumular, percebe-se que a
essência deste é a valorização da rememoração familiar e pública, movida pela
perceptível preocupação com o destino do ente-querido, que em grande parte
das mentalidades históricas pareceram depender das ações dos vivos. Para a
antiguidade greco-romana “o cuidado de levar os alimentos até os mortos não
foi deixado ao sabor do capricho ou dos sentimentos variáveis dos homens: era
obrigatório,” (Coulanges, 2003, p. 40).
Ao longo da Idade Média, o esquecimento ficou estabelecido como
modo de castigo e penitência à alma do defunto, através dos sínodos de
Reisbach em 798 e Elne em 1027, e a lembrança consagrada através da
eleição dos dois de novembro como dia de comemoração dos defuntos no
século IX, e principalmente com o “surgimento” do purgatório em fins do século
XII, que torna compreensível o maior destaque dado pelos católicos à memória
de seus ancestrais ainda na contemporaneidade.
Sobre as mudanças de atitudes dos ocidentais para com seus mortos,
fruto de suas respectivas mentalidades, essencialmente no que diz respeito às
inumações Josefina Eloína (1999) afirma:
Passou-se de um sepultamento simples ao longo das estradas, como na
Antiguidade Romana, para dentro das igrejas na Idade Média. Nas Luzes,
surgiram cemitérios simples, a céu aberto, e depois os jardins ingleses, com os
sepulcros situados em parques privativos de uma sociedade aristocrática.
Finalmente, chega-se aos cemitérios modernos no século XIX, quando o jazigo
2
passa a ser construído como a própria casa, dotado de um estilo que o
distingue dos demais. (Eloína, 1999, ps 22 e23).
Sendo Inhumas uma cidade formada a partir do final do século XIX
nunca foi comum o hábito de enterrar os mortos em igrejas, haja vista que da
metade desse século em diante começou-se a colocar em prática a lei de 1828,
que exigia das câmaras municipais construção de cemitérios extramuros, e que
a partir de 1835 as assembléias provinciais começam a redigir leis que obrigam
o fim da prática dos enterros nas Igrejas, isso tudo graças aos discursos
médico-sanitários que ganhou muita força naquela época de cólera e febre
amarela.
Assim os espaços dos mortos na mesma sempre foram seculares. A
ausência de documentos dificulta a afirmação sobre a origem do Cemitério
Santana, mas de acordo com Jamil Miguel (2000) teria sido construído por
padres redentoristas em 1912.
Para Peter Burke (2006) as variadas formas de memórias devem ser
tratadas como documentos, fazendo-se as devidas críticas e análises desses
vestígios do passado, visando assim estudar a própria memória social como
um fenômeno histórico, procurando entender o conteúdo através das formas
(oral, escrita, imagética, comemorações, e espaciais) que são os meios de
transmissão do passado de geração para geração. Sobre essas formas de
perpetuação da memória Peter Burke afirma: “Do ponto de vista da
transmissão da memória, cada veículo tem suas próprias forças e
fraquezas” (Burke, 2006: 76).
Partindo dessa colocação pode-se afirmar que o Cemitério Santana é
um veículo extremante forte, pois carrega em si três desses meios de
transmissão de memória social, sendo eles a escrita (epitáfios), a imagem
( esculturas e fotografias) e o lugar ( parcialmente integrado ao centro urbano).
Mas que em ocasiões específicas, principalmente no dia 2 de novembro
também assume as outras duas formas quando os indivíduos ali enterrados
são comentados e “comemorados”.
Observando principalmente as sepulturas construídas entre 1970 e
2007, pode-se notar a importância atribuída à anamnese1 através de epitáfios
como o de Francisca Fernandes (“Orai por ela”), também encontrado em
dezenas de outras sepulturas, um caso ideal para mostrar a essência da
3
lembrança fúnebre nos cemitérios predominantemente católicos, as orações
pela alma do defunto.
Definindo então o Cemitério como um legítimo espaço ligado à
transmissão e ao auxílio da memória, tem-se que resolver algumas
problemáticas ligadas a definição desse conceito. Para Jacques Le Goff (1992):
A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos
em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele
representa como passadas (1992, p. 423)
Considerando que o Cemitério Santana é um espaço que colabora com
essas funções psíquicas, não apenas de um indivíduo, mas de toda uma
sociedade, pode-se então considera-lo como espaço auxiliar de uma memória
eminentemente coletiva, mas que no presente (2008) essa função estaria
apenas com parte do mesmo, aproximadamente as sepulturas de 1970 em
diante.
As razões para essa consideração estão embasadas nas analises feitas
por Maurice Halbwachs (2006) em sua obra A Memória Coletiva. Para ele a
essência da memória coletiva é que sempre é mantida por um grupo limitado
em seu tempo e espaço, graças às experiências vividas nessa coletividade e a
um pensamento contínuo, tendendo a ser proporcional à duração da vida e
dependente da existência dos respectivos grupos. Difere assim da memória
histórica, pois essa começaria com o fim daquela, não dependendo da
experiência, apresentando uma tendência universal, observando a realidade de
fora e tendo como base longas durações.
Seguindo a definição de que “se pode falar de memória coletiva quando
evocamos um fato que tivesse um lugar na vida de nosso grupo e que víamos,
que vemos ainda agora no momento em que o recordamos, do ponto de vista
desse grupo” (Halbwachs, 2006, p. 41), as sepulturas estariam à serviço de
uma memória coletiva baseada principalmente no grupo familiar, pois o
indivíduo ali enterrado, muito provavelmente passou maior tempo de sua vida
junto aos seus consangüíneos do que com quaisquer outros grupos, assim a
“representificação” dele é feita principalmente pela família e sua existência
4
reafirmada e reidentificada como um ser-pai, ser-mãe, ser esposo, ser-esposa
e ser-irmão, ser-sogro e ser-sogra.
Isso fica evidente quando observamos os monumentos em si, como a
sepultura de Georges Gebrael, enterrado em 1997 que tem como epitáfio:
“Sentiremos muitas saudades. De seus filhos, genros, noras netos e bisntetos”.
O mesmo teor encontrado no epitáfio de Antonio Cerozinho, sepultado em
1971: “Saudades de sua esposa, filhos, e netos. Orai por ele”. E também
quando se observa as visitas recebidas pelos túmulos, como podemos notar na
fotografia que se segue (foto 01), quando no dia 02 de novembro de 2007,
esposa, filha, genro, nora e neta visitam o jazigo de Batista Jacinto, reidentificando um ser-pai, ser-esposo, ser-sogro, podendo até assumir um seravô, não na memória mas sim na imaginação, pelo fato da criança não ter
lembranças dele, e de que a visita para ela desempenhe outras funções,
menos a rememoração.
Foto 01- Visita ao jazigo de Batista Jacinto
Acervo particular de Eurimar Nogueira Garcia
Tem-se então que a grande maioria das sepulturas construídas de 1960
até o presente momento desempenham a função de tecnologias de
recordação,
2
estando assim a serviço da memória coletiva, pois as que ficam
mais afastadas no tempo guardam indivíduos que os vivos de hoje muito
provavelmente não conheceram e não tiveram experiências, como a quebrada
e enlodada sepultura de Benedita Frutuosa, enterrada em 1952, ficando assim
caracterizadas como uma memória histórica.
5
O que foi afirmado é válido se se aceita a proposição de Maurice
Halbwachs (2006) de que “toda memória coletiva tem como suporte um grupo
limitado no tempo e no espaço”. Então as sepulturas como suporte desses
grupos consequentemente também possuem seus limites, pois, como já foi
afirmado, o grupo familiar normalmente busca os seus ascendentes e/ou
descendentes em aproximadamente duas gerações, fazendo com que esse
limite temporal raramente ultrapasse os cinqüenta anos.
Já o grau de importância do espaço como limitador do grupo ao qual tal
memória é compartilhada pode ser notado na escolha do lugar para o
sepultamento. Assim é possível notar que, pelo menos mentalmente, a
possibilidade da proximidade ou da distancia do grupo e de sua tecnologia de
lembrança colaborar ou dificultar esse mesmo grupo em sua prática de
rememoração, fazer com que exista uma tendência histórica de opção pela
proximidade.
Sobre isso notamos na História uma fortíssima preocupação com o
enterro em solo pátrio, ou o mais próximo possível da comunidade em qual o
morto possuía suas raízes, evidenciando assim um aparente medo da “força
dos estádios” ou da “força dos quilômetros”, seja na antiguidade ocidental,
como se pode notar em Eurípedes mencionado por de Coulanges: “Frixos fora
forçado a deixar a Grécia e fugira para a Cólquida, onde morreu; mas, embora
morto, queria retornar à Grécia.” (2003, p.34), seja no oriente contemporâneo,
como o ocorrido em janeiro de 2008, quando o governo japonês atendendo às
pressões de familiares e do governo da Coréia do Sul, permitiu a repatriação
dos restos mortais de soldados coreanos mortos durante a segunda guerra
mundial3.
No caso do Cemitério Santana tem-se vários indivíduos mortos em
outras cidades, estados e países, como é o caso de Renato Balestra, morto em
um acidente de avião nos Estados Unidos em 1993, mas que após sua
cremação foi trazido para o agora solo pátrio da família Balestra 4, dando
indícios de que o espaço que pode limitar a memória coletiva não é apenas
aquele em que o grupo viveu, mas também o lugar que se encontra alguma
matéria denunciadora de seu respectivo passado, no caso que se trata o
túmulo. Assim a morte distante significou, entre outras coisas, a preocupação
de que a lembrança também ficasse distante.
6
A função do espaço como colaborador para a manutenção de uma
memória coletiva é clara no caso do Cemitério Santana, pois mesmo tendo os
fundos fazendo divisa com uma chácara, desde a sua fundação ele fica
integrado ao núcleo urbano, distando apenas aproximadamente 600 metros da
Biblioteca Central e da Igreja Nossa Senhora de Santana, estando localizado
na Rua da Celg esq. c/ Olídio Filinto Almeida no Setor Central. Assim a única
barreira física que separa esse espaço do mundo dos vivos, o muro, é
aniquilada pela proximidade, e pelos jazigos que se mostram para quem quer
que passe pela rua, pois se sobrepõem ao muro e parecem falar: “estamos
aqui, próximos e dispostos a ajudá-los em vossas recordações”!
Se a essência da memória coletiva é a experiência vivida por um
determinado grupo, pois ela “é uma corrente de pensamento contínuo, de uma
continuidade que nada tem de artificial, pois não retém do passado senão o
que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a
mantém” (Halbwahcs, 2006, p. 102), tem-se que o Cemitério ao colaborar com
a prática da anamnese também contribui para solidificar laços sociais, haja
vista sua capacidade de mobilizar uma determinada coletividade, que Peter
Burke denominou como comunidade de memória.
A partir de uma observação feita no dia de finados, em 2008, foi possível
notar nessa comunidade de memória envolvida no Cemitério Santana, uma
tendência que se aproxima com o que Philippe Áries notou nos Estados Unidos
(American Way of death), onde: “Deseja-se transformar a morte, maquiá-la,
sublimá-la, mas não se quer fazê-la desaparecer. (...) A visita ao cemitério e
uma certa veneração ao túmulo também subsistirão.” (2003, p.96). O que pude
notar no Cemitério Santana, em comum com a afirmação de Philippe Áries,
está em desacordo com uma das idéias de Elias contida em Solidão dos
Moribundos, que é a afirmação de que na contemporaneidade:
(...) A memória da pessoa morta pode continuar acesa; os corpos mortos e as
sepulturas perderam significação. A
Pietá de Michelangelo, a mãe em
prantos com o corpo de seu filho, continua compreensível como obra de arte,
mas dificilmente imaginável como situação real. (Elias, 2001, p. 37).
Esta constatação está embasada no fato de que em apenas 30 minutos
(08h15min às 08h45min) que fiquei na entrada única do cemitério pude contar
a entrada de 524 pessoas pelo portão único do Cemitério. Considerando que
7
Inhumas possui uma população de aproximadamente 45.000 habitantes e que
a cidade ainda conta com outro cemitério (Cemitério São Judas Tadeu) 524
pessoas é um número bastante significativo. Outro interessante dado que pude
colher é que dessas 524 pessoas, 310 eram mulheres, 184 eram homens e o
restante crianças, ficando assim explícito uma maior preocupação das
mulheres para com seus entes queridos. Sobre a tendência de a mulher
assumir um importantíssimo papel na lembrança familiar Jacques Le Goff
afirma e interroga: “O pai nem sempre é retratista de família: a mãe o é muitas
vezes. Devemos ver aí um vestígio da função feminina de conservação da
lembrança ou, pelo contrário, uma conquista da memória do grupo pelo
feminismo?” (1992, p. 466). Quase a mesma problemática fica em relação a
essa preponderância das mulheres nessa comunidade de memória.
Em relação a esses números aparece uma outra problemática: Pode-se
considerar que a morte e seus lugares são ocultados das crianças inhumenses,
uma vez que dessas 524 pessoas 30 eram crianças? Dependendo da
importância que se dê a esses números, é possível afirmar que a interdição da
morte na sociedade inhumense não passe pelo ocultar da necrópole às
crianças.
Outro detalhe ali notado foi a marcante presença de japoneses, mesmo
que as sepulturas de seus entes queridos sejam apenas quatro, dando mostras
que mesmo na diáspora das famílias Watanabe e Arataque para a cidade na
primeira metade século XX, foi mantida a milenar tradição japonesa de
lembrança e valorização dos mortos, mesmo tendo o Festival budista de Obon
(geralmente comemorado no dia 15 de agosto, e ainda hoje um dos principais
feriados daquele país) ressignificado no finados católico.
Assim o que pude ver no dia 02 de novembro dentro do Cemitério
Santana foi uma eminente ação social de caráter religioso, que contou com a
presença do padre da cidade (Padre José) em uma cerimônia que reuniu
aproximadamente 100 pessoas, movidas pela fé e pela preocupação com os
que já não se vê, corroborando assim a afirmação de Hanna Arendt em Entre o
Passado e o Futuro, de que o passado é tão potente que: (...) “ao invés de
puxar para trás, empurra para frente, e, ao contrário do que seria de esperar, é
o futuro que nos impele de volta ao passado” (1972, pg. 37).
8
Foto 02-Velas queimadas no cruzeiro
Arquivo pessoal: Eurimar Nogueira Garcia
Concluindo, o fogo notado no cruzeiro acima, mantido graças às velas
depositadas pela comunidade de memória, expressa o que se disse no início, a
lembrança dos mortos quase sempre estiveram envolvidas e entrelaçadas com
elementos religiosos, no caso do Cemitério Santana elementos católicos,
fazendo com que o passado seja um fogo renovado a cada ano, onde se
procura queimar o perigo do esquecimento oferecido pelo tempo e valorizar as
tecnologias de lembrança dispostas no espaço do cemitério. Assim a fumaça
do cruzeiro metaforiza a confusão de passados e espelha a religiosidade do
presente, que como instância do sacro tem por hábito evitar o inquérito, como
no olhar estranho que este pesquisador notava no momento em que registrava
algumas sepulturas.
Referências Bibliográficas
Arendt, Hanna. Entre o passado e o futuro. 2 ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva,
1972.
ÁRIES, Philippe. História da Morte no Ocidente. Ed. Ediouro. SP. 2004
9
Burke, Peter+ ,istória e teoria social. Tradução Klauss Brandini
Paulo: Editora Unesp, 2002.
Gerhardt. São
Burke, Peter. Variedades de história cultural. Tradução: Alda Porto. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
Durkheim, Émile. As formas da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália.
Tradução: Paulo Neves. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Focault, Michel; Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado. 23ª ed. Rio de
Janeiro: Editora graal, 1979.
Halbwachs, Maurice. A memória Coletiva. Tradução: Beatriz Sidou. 1ª ed. São Paulo:
Centauro, 2006.
Howard Williams. Death and Memory in Early Medieval Britain. Cambridge:
Cambridge, 2006.
Le Goff, Jacques; História e Memória; Tradução: Bernardo Leitão e Irene Ferreira. 2ª
ed. São Paulo: Editora da Unicamp, 1992.
Pesavento, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 2ª ed. Belo Horizonte:
Editora Autêntica, 2005.
Ross-Kübler, Elizabeth. Sobre a Morte e o Morrer. Tradução: Paulo Menezes; 8ª ed.
São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998.
10
1
Para Sandra Jataí Pesavento em História e História Cultural, a anamnese “é a memória voluntária, na qual existe um
empenho de recuperar, pelo espírito alguma coisa que tenha ocorrido no passado. O final desse processo de
rememoração seria dado pelo reconhecimento, por aquele que rememora, da certeza do acontecido: foi ele, foi lá, foi
então, foi assim. O reconhecimento se opera por um ato de confiança, que confere veracidade a rememoração. (2005,
p. 95)
2
O termo 'technologies of remembrance' ( tecnologias de recordação) foi utilizado por Howard Williams (2006) em sua
obra Death and Memory in Early Medieval Britain para se referir aos monumentos funerários dos cemitérios ingleses da
alta idade média.
3
Notícia emitida pelo site: http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2008/01/23/ult1808u110493. Consulta feita no dia 01 de
janeiro de 2008.
4
Família de italianos que migraram para Inhumas na década de 1920, de acordo com aquivos do cartório municipal de
Inhumas.
Fortalecendo os laços cristãos: epitáfios
no Cemitério Municipal da Lapa - PR
Fábio Augusto Steyer
Professor de Literatura na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
Doutor em Letras (UFRGS) e Mestre em História (PUCRS).
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar os epitáfios presentes no cemitério municipal da
Lapa, cidade histórica localizada nas proximidades de Curitiba, no Paraná, defendendo a tese
de que, contrariando a tendência geral das manifestações antropológicas da morte na
contemporaneidade, suas inscrições tumulares representam um fortalecimento do ideário
cristão, especialmente a idéia de reencontro na outra vida.
Palavras-chave: Cemitérios – Epitáfios - Paraná
Nas últimas décadas, como bem demonstram autores que estudaram
o fenômeno antropológico da morte, como Edgar Morin e Jean-Pierre Bayard,
por exemplo, a tendência geral das relações do homem com a morte é de um
afrouxamento dos valores cristãos tradicionais e de uma supervalorização da
individualidade/biografia do morto. Nas pesquisas que realizamos desde 1995,
especialmente no Rio Grande do Sul e agora também no Paraná, isso é
perceptível em praticamente todas as regiões estudadas, principalmente
quando comparamos os túmulos mais antigos com os mais recentes.
Desta forma, os símbolos cristãos aos poucos vão perdendo seu
significado original, esvaziando-se de sentido e se tornando meros adornos nas
sepulturas, sem que as famílias compreendam seu valor simbólico. Nas
inscrições tumulares, as referências à Bíblia, aos santos e aos valores cristãos
vão sendo substituídas por aspectos da biografia do morto, de sua vida
mundana, digamos assim, e até mesmo por citações literárias. Os mausoléuscapela, com altares e imagens de santos, com o passar dos tempos vão sendo
substituídos pelos mausoléus-casa, que lembram as pirâmides do Egito, e que
às vezes mais parecem casas do que mausoléus, com jardins, cortinas, janelas
e até mesmo reproduções do que seria o “quarto” do morto, com móveis e
objetos pessoais que fazem referência à sua biografia.
No cemitério municipal da Lapa (e escrevo “da” Lapa, e não “de”
Lapa, pois é assim que seus habitantes carinhosamente se referem a ela),
embora estas referências à biografia e à individualidade do morto apareçam,
chama a atenção a significativa e representativa quantidade de representações
simbólicas e de epitáfios recentes em que há um fortalecimento das idéias
cristãs, especialmente as noções de reencontro e eternidade, contrariando a
tendência geral de esvaziamento destes valores.
Talvez isso possa ser explicado pelo fato de Lapa ser uma cidade
histórica, bastante tradicional, uma das mais antigas do Paraná, fundada em
1769 pelos tropeiros que saíam de Viamão, no Rio Grande do Sul, com destino
a Sorocaba, no interior paulista. Mantém-se como uma cidade de tamanho
médio, com cerca de 45 mil habitantes, com um centro histórico muito bem
preservado, e que sabe valorizar como nunca sua memória e sua história. Foi
inclusive palco de um importante episódio da Revolução Federalista (1893 –
1895), o que a liga diretamente com a cultura e a história do Rio Grande do
Sul. A tradição, portanto, parece ser um aspecto muito forte no município, o
que também aparece em grande parte dos epitáfios pesquisados.
Num túmulo bastante recente, de dezembro de 2007, as idéias de
reencontro e vida eterna são explicitamente postas nos epitáfios: “Que a luz
divina ilumine sua nova vida”; “A família fica na certeza do reencontro”. O
mesmo acontece nesta inscrição de 1980: “A saudade que punge, hoje,
fomenta o sublime reencontro de logo mais...”
Em outra lápide, de 2003, os
familiares também reafirmam a crença na eternidade do casal morto: “Na vida
terrena plantaram honestidade, fraternidade, solidariedade e amor. Na
eternidade colhem as preces saudosas de todas as pessoas que com eles
conviveram”.
O mesmo acontece com o epitáfio a seguir, de 2004, que fala na morte
como um retorno à “casa do Pai”:
“Fagulhas brilhantes de luz e amor formam a escada em rumo ao Pai.
A volta à casa se faz necessária para a integração no verdadeiro amor
que nada mais é que a formação de uma grande constelação de brilhantes
fagulhas de amor e de luz.
Cada fagulha de amor e luz é a vitória de todos nós que cremos,
amamos, temos paz e certeza na subida atenta para voltar à casa do Pai.”
Uma curiosidade sobre este epitáfio é que, de acordo com a lápide, ele
teria sido escrito pela própria falecida, três meses antes de sua morte.
Em outro túmulo, com lápides de 1982 e 1964, o post mortem aparece
como a “verdadeira vida”, e a existência terrena como apenas uma “visita” feita
ao nosso mundo pelo ente querido, no caso um bebê que faleceu com cinco
meses de idade:
“Neste mundo procuraste o caminho e a verdade no Evangelho. Que
tenhas encontrado na eternidade a verdadeira vida. O Cristo.” (1982)
“Agradecemos sua visita. Nos dias que conosco permaneceu tratamos
com amor e carinho e, depois, você partiu para o céu. Aprendemos muito com
você. Do sofrimento, do amor e da luz. Deixou-nos muita saudade na hora que
partiu para Jesus.“ (1964)
Mais um exemplo de epitáfio relativamente recente em que as crenças
cristãs são fortalecidas. Em lápide de 1984, junto à valorização das qualidades
do morto está clara a idéia de eternidade:
“Nascendo: fostes a fonte que nos deu a vida.
Vivendo: fostes a razão por termos vencido.
Morrendo: és a esperança que não será esquecida.
Deixaste: o exemplo, a força e a luz que nos levará ao Pai eterno junto
ao qual estás.”
Outro exemplo é um túmulo de duas crianças, esse já mais antigo, o
que se pode perceber pelo seu feitio, embora sem data. O epitáfio é
acompanhado de uma tocha virada para baixo (em relevo), símbolo da morte:
“Aqui repousam (NOMES DAS CRIANÇAS), anjinhos que foram gozar
no seio de Deus a felicidade que não encontraram na Terra. Jesus, que tanto
amou as criancinhas, tenha-os a seu lado rogando-lhe por seus inconsoláveis
pais”.
Mais duas inscrições que apresentam a idéia de “reino dos céus” e “lei
de Deus”:
“Nascer, viver, morrer e renascer de novo! Tal é a lei. Que Deus
ilumine seu caminho.” (1957)
“A fatalidade levou-o de nosso convívio. Mas tua lembrança viverá
sempre em nossos corações e as nossas preces subirão a Deus e transformarse-ão em luz para tua alma no reino do céu.” (1965)
Outro tipo de texto que aparece no cemitério da Lapa é o que
poderíamos chamar de “epitáfio de homenagem”, em que a comunidade exalta
a biografia e os feitos do morto para a sociedade local, não deixando de
apresentar as idéias básicas do cristianismo sobre a vida depois da morte. É o
caso do túmulo do Dr. Manoel Pedro dos Santos Lima:
“Aqui repousa na paz do derradeiro sono o pranteado e humanitário
médico Dr. Manoel Pedro dos Santos Lima. (...) Sábio e devotado a sua
profissão, aqui a exerceu como verdadeiro apóstolo da caridade. Rende-lhe o
povo lapeano este tributo de eterna gratidão. Oremos pela sua alma.”
“Ao sábio e humanitário médico. Gratidão do povo lapeano.”
“Tão grande seja sua glória no Céu quanto foram os benefícios que na
Terra prestou.”
Ao benemérito clínico. Saudade eterna. Respeito e homenagem.”
Neste mesmo estilo também temos o túmulo do Monsenhor Henrique
Osvaldo Falarz, uma espécie de santo popular da cidade, o que pode ser
percebido pela grande quantidade de placas de agradecimento a graças
alcançadas que podem ser encontradas no local. Além de duas placas de
homenagem ao religioso (uma dos professores do Colégio Estadual General
Carneiro e outra da Irmandade de São Benedito da Lapa), temos outra com
seu epitáfio:
“Na sua longa caminhada sacerdotal, deu exemplo de pastor, amando
suas ovelhas. Disse antes de morrer: ‘O pastor deve ficar no meio de suas
ovelhas’. Dai-nos a graça de ser boas ovelhas. Por nosso Senhor Jesus Cristo,
que vive e reina convosco na unidade do Espírito Santo. Amém.”
De se destacar ainda no Cemitério Municipal da Lapa o túmulo de um
médico, em que foi colocada a placa de seu consultório, numa clara alusão e
supervalorização de sua biografia e individualidade; e a sepultura de uma
jovem de 27 anos em que encontramos um epitáfio que poderíamos classificar
como “literário”, cujo autor infelizmente não foi possível identificar. Trata-se de
um belo e triste soneto sobre a morte, que transcrevemos a seguir:
“Não foi tua vida mais que um sonho vago
Tecido de esperança e de ventura
Não pôde o mundo dar-te um doce afago
Nem sorrir-te a existência com doçura.
E assim partiste no florir dos anos
Rica de bens que não outorga a vida
Alheia ao mundo com seus desenganos
Em demanda da terra prometida.
De vaidades despidas de misérias
Que malograda a vida se reveste
Feliz repousas no porvir celeste.
Tua alma voou para as regiões etéreas
Teu corpo ao triste badalar de um sino
Chocou-se inanimado ao cru destino.”.
Estas foram as principais inscrições tumulares encontradas no
Cemitério Municipal da Lapa. Como foi dito anteriormente, um cemitério de
uma cidade em que a tradição parece ser forte o suficiente para resistir ao
afrouxamento dos valores cristãos, tão perceptível nas manifestações
antropológicas das relações homem-morte encontradas em outros municípios,
inclusive de mesmo porte. As referências ao ideário cristão aparecem
fortalecidas neste “campo santo” em que parece não haver muito espaço para
representações simbólicas mais típicas da sociedade contemporânea, as quais
muitos relacionariam à própria idéia de pós-modernidade...
Uma interpretação antropológica das relações
homem-morte nos cemitérios de Sananduva - RS
Fábio Augusto Steyer
Professor de Literatura na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
Doutor em Letras (UFRGS) e Mestre em História (PUCRS).
Resumo
Este trabalho tem como objetivo apresentar uma síntese das manifestações antropológicas das
relações homem-morte encontradas nos cemitérios de Sananduva, cidade localizada no norte do
Rio Grande do Sul, a partir de pesquisa realizada em mais de vinte localidades da sede e interior
do município. As atitudes humanas diante da morte revelam muitas características da cultura local
e das crenças religiosas da comunidade, além de suas formas particulares para cultuar os entes
queridos já falecidos..
As atitudes humanas diante da morte têm no cemitério um dos locais mais
propícios para uma série de manifestações e representações simbólicas, que vão
desde as fotografias, os epitáfios e a arquitetura tumular, entre outros, até os
objetos colocados nos túmulos, muitos deles um tanto inusitados, como
chocolates, brinquedos e até mesmo bilhetes para uma possível “comunicação”
com os parentes falecidos. Este variado rol de manifestações nos permite
compreender um pouco melhor as relações do homem com a morte, pensadas a
partir da Antropologia e outras áreas afins.
Nosso grupo de pesquisa visitou o município de Sananduva, no norte do
Rio Grande do Sul, e pesquisou vinte (20) cemitérios, onde foi possível encontrar
uma série de manifestações relevantes para o estudo que temos desenvolvido em
todo o Estado há mais de dez anos. Neste relato de pesquisa, não nos cabe
desenvolver todas as questões teóricas que norteiam a pesquisa, pois elas já
foram suficientemente abordadas nos encontros Raízes dos anos anteriores (1). O
que interessa é abordar as principais manifestações antropológicas das relações
homem-morte presentes nos cemitérios de Sananduva, esta simpática cidade
onde fomos muitíssimo bem recebidos e vivemos alguns momentos inesquecíveis,
como a homenagem ao padre da paróquia local e a apresentação do coral italiano.
O primeiro cemitério visitado foi o Municipal, sem dúvida o que
apresentou maior riqueza de manifestações. Neste cemitério, em sua grande
maioria organizado através de mausoléus construídos praticamente com o mesmo
padrão arquitetônico, característica bastante singular de regiões de imigração
italiana em nosso Estado, há uma série de epitáfios que reafirmam a crença nos
valores do Cristianismo e que servem de consolo às famílias durante as visitas
aos túmulos dos falecidos. Exemplo disso é o epitáfio que diz: “Na vida nossa
alegria, na morte nossa certeza de fé” (2). O mesmo ocorre com o epitáfio que
segue, com o acréscimo do culto à memória do morto, que permanece nos
corações dos familiares: “Você partiu para Deus, mas sua lembrança continuará
viva no coração da mamãe e do papai que muito lhe amaram”.
Outro tipo de epitáfio que aparece no cemitério municipal é o “epitáfio de
homenagem”, que visa destacar as qualidades do morto enquanto alguém de
destaque na sociedade sananduvense. Este é o caso dos epitáfios a seguir, dois
deles escritos para vereadores da cidade e um para o pároco local: 1) “Uma
homenagem do município de Sananduva, pelo seu exemplo de mãe, pela sua
dedicação, seus ensinamentos e sua humildade”; 2) “Homenagem – Poder
Legislativo de Sananduva – [nome do falecido], receba de Deus a recompensa
pelo bem feito à comunidade. Descanse na paz do Senhor”. Segundo nos foi
informado, este vereador teve morte trágica, através de enforcamento. Além de
vereador, teria sido o primeiro a gravar um LP no município; 3) “Homenagem do
Poder Legislativo de Sananduva. Vereador [nome do falecido], receba de Deus a
recompensa pelo bem feito à comunidade. Descanse na paz do Senhor”; 4)
“Pároco desta cidade de 1933 a 1939 e 1953 a 1967. A ele se deve a construção
da Igreja Matriz. Sentidas saudades eternas. Gratidão do povo sananduvense”.
No mesmo cemitério, há um outro tipo de epitáfio, em que a homenagem
ao morto é feita como se um membro da família estivesse falando com o morto,
em 1a pessoa:
“Querida mãe!
Sabe, mãe. Hoje sonhei com a senhora!
Te vi do mesmo jeitinho, de quando estavas com a gente
Sentada ao lado do fogão, agulha e linha na mão
Sorrindo de satisfação.
Você estava tão feliz, com aquele teu jeitinho lindo
Com o mesmo olhar suave e meigo, a sonhar ficava.
Aquele mesmo blusão de lã colorido que usava
Sentada a fazer seu tricô, que linda mamãe, você estava.
(...)
É, mãe, confesso que chorei, chorei de saudade
Mas ao mesmo tempo, também de felicidade.
Porque tua lembrança é uma luz, que me ilumina e me conduz.
Sei que estás junto a Jesus, de Deus e Nossa Senhora.
Amo muito você!” 06/07/2003.
Outro tipo de epitáfio bastante parecido é aquele em que a família coloca
palavras na boca do morto, como se ele estivesse falando em primeira pessoa,
tranqüilizando os familiares e dizendo que está bem, vivendo na eternidade cristã
junto de Deus.
Também merece destaque um epitáfio padrão em forma de oração
colocado num túmulo de criança, onde também temos a presença de um ursinho
de pelúcia:
“Deus abençoe você sempre (título)
Deus lhe abençoe de manhã,
Já no primeiro raio de sol,
E lhe abençoe ao meio-dia,
Até a hora do pôr-do-sol.
Deus lhe abençoe à noitinha,
E a cada hora que você viver,
Com a paz perfeita
No coração e mente
Que só Seu amor pode trazer”.
É com bastante freqüência que encontramos nos cemitérios gaúchos
referências explícitas a mortes trágicas. No cemitério municipal há um túmulo em
que o nome do morto é acompanhado da inscrição: “Assassinado”. Mas o caso
mais curioso é a referência a um incêndio que vitimou uma família inteira na
cidade de Tapera, sendo que todos os corpos foram transladados para
Sananduva:
Placa – “Aqui restos mortais de [nomes dos falecidos]
Vítimas de incêndio ocorrido em Tapera-RS em 15/04/1931.
Por morte natural:
[nome dos falecidos].
Transladados de Tapera para Sananduva em março de 2001”.
O culto às singularidades do morto também aparece no cemitério
municipal. Há dois casos em que a ligação com o regionalismo gaúcho é explícita.
Além de uma foto em que o falecido aparece tocando um acordeon, temos um
epitáfio que diz o seguinte: “Aqui descansa um gaúcho que honrou a tradição”.
Outra temática presente em alguns epitáfios é a idéia de que temendo a Deus o
fiel será recompensado na eternidade, o que está de acordo com alguns costumes
e interpretações mais tradicionais do Cristianismo: “O temor do Senhor é honra e
glória, coroa de júbilo que dá vida longa. Quem teme o Senhor sempre acaba
bem, até no dia de sua morte será abençoado”.
Impossível deixar de destacar a estratificação social presente no cemitério
municipal. Um dos aspectos mais interessantes nesse sentido é que as famílias
que doaram os terrenos para o cemitério ganharam uma praça exclusiva, fechada
e separada dos demais jazigos por cercas. A estratificação social é bastante
comum nos cemitérios gaúchos, não sendo uma exclusividade de Sananduva.
No Cemitério Três Pinheiros, ocupado quase que exclusivamente por
famílias de origem portuguesa (e algumas poucas de origem italiana), podemos
destacar alguns epitáfios. Um deles reafirma a crença cristã na idéia de reencontro
após a vida terrena: “Não choreis por mim, orais apenas que um dia nos
encontraremos no paraíso”. Outro é um típico “epitáfio de despedida”, em que as
pessoas próximas dirigem a palavra ao morto (funcionário de uma escola),
“consolando-o”, o que, na verdade, nos mecanismos de culto e de memória, é
uma forma de consolar a eles próprios pela perda do ente querido: “Tio [nome do
falecido]! Neste dia tão especial, em que todos lembramos daquelas pessoas que
sempre estão ao nosso lado, nós aqui tio, também lembramos das horas em que
largavas tudo, para ser, aqui, o nosso Pai, nos dando apoio e testemunho.
Sentimos a sua falta, mas temos a certeza de que estás junto de Cristo, olhando
por
nós.
Aqui está uma prova de nossa gratidão e desejamos um Feliz Dia dos Pais.
Dos tios e jovens do (não identificado) Colégio (...)”.
No Cemitério Nossa Senhora do Carmo, a marca católica é bastante forte,
com intensa presença de imagens de Nossa Senhora do Carmo e do Sagrado
Coração de Jesus nos túmulos, predominando famílias italianas, com algumas de
origem alemã. Na parte antropológica da pesquisa, destaque para o epitáfio
presente no mausoléu de um ex-prefeito do município, que reafirma a fé cristã e
também pode ser classificado como “epitáfio de despedida”:
“Hoje, de algum lugar, longe destas terras há um doce olhar só para você.
Um olhar especial, de alguém especial de distantes origens.
Um olhar, de um justo coração que pulsa só a vida, que sorri, porque ama
plenamente sem julgamentos, preconceitos nem prisões.
Hoje, como ontem, longe desse céu, há um encantado olhar só para você, a
magia da luz, a simplicidade do perdão, a força para comungar uma vida, a
esperança de dias mais radiantes de paz.
Hoje, de algum lugar dentro de você, alguém que já o amou muito e ainda
o ama, diz para você, que valeu a pena ter estado nestas terras, sob estes céus
falando de união, paz, amor e perdão, poder sentir a força que faz você sorrir e
continuar o caminho, que um dia aquele doce olhar iniciou para você. Tudo isso,
só para você saber que a vida continua e a morte é uma realidade, uma
passagem...uma viagem...”
Nos demais cemitérios pesquisados, embora o grupo tenha encontrado
uma série de informações relevantes para diversas vertentes da pesquisa como
um todo, com relação às questões antropológicas, ou seja, às atitudes humanas
diante da morte, não foram encontradas manifestações de grande importância.
Mesmo assim, cabe aqui destacar alguns dados, especialmente com relação à
presença das diferentes etnias nos cemitérios.
No Cemitério São José predominam os sobrenomes italianos, embora
também tenham sido encontrados alguns poloneses e portugueses. No Cemitério
São Domingos, de maioria italiana, não há epitáfios relevantes, mas uma foto de
formatura destaca um aspecto singular da vida do morto, o que reforça o culto aos
aspectos marcantes de sua biografia. No Cemitério Boa Vista, onde também há
uma predominância de sobrenomes de origem italiana, dois aspectos chamam
atenção: a grande quantidade de imagens do Sagrado Coração de Maria e de
Jesus, o que revela a crença católica da comunidade; e o descaso com relação a
alguns túmulos e lápides mais antigos, que estão abandonados nos fundos do
cemitério.
Em Vila Paraíso, todos os túmulos têm sobrenomes italianos, exceto um
deles, com sobrenome português. Em Mão Curta encontramos um dos cemitérios
mais pobres desta pesquisa, com muitos túmulos sem dados e indicações. Mesmo
assim, há algumas interessantes inscrições em italiano, o que revela a
predominância étnica dos moradores do local. O mesmo acontece no Cemitério de
Tigre, onde encontramos várias inscrições em italiano: “Qui ripoza la salma di
[nome do falecido] – Nato in Itália nel 1858 e morto il 4 setenbre Del 1923”. Em
Quati Alto estão enterradas pessoas com sobrenomes de origem italiana e alguns
alemães, o mesmo ocorrendo na Linha Gaúcho. Em São Geraldo, há italianos,
portugueses e poloneses. Em São João da Forquilha, são italianos e portugueses.
No Cemitério Santa Lúcia, predominam os italianos. No de São Pedro há
inscrições em italiano indicando datas de nascimento e falecimento, em epitáfios
bem simples. O mesmo acontece em Lajeado Bonito, onde também encontramos
diversas representações do Sagrado Coração de Jesus e de Maria. Eis algumas
inscrições: “A qui ripoza alieterni [nome do falecido] nato Del 1848 morto Del
1924”.
“Aquí está o finado [nome do falecido] nacido a 1855 e falec. A 1921”.
“Qui ripoza lê osse di [nome do falecido] morto nel 1913 com 18 ani de eta”.
No
Cemitério
Bom
Conselho,
além
da
grande
quantidade
de
representações do Sagrado Coração de Jesus e Maria (muito comuns em
Sananduva, o que revela a intensa devoção da comunidade) há inscrições em
língua italiana. No Cemitério São Jorge, sobrenomes italianos e portugueses
dividem os túmulos, com a presença de algumas inscrições interessantes, como a
que segue: “Aqui as ocas de Manoel Gonçalves de Asevedo voou para o seo no
dia 2 de setembro de 1918 com 62 anos de idade”. Numa placa de metal, há uma
ilustração com uma caveira, algo comum no final do século XIX e início do século
XX, mas bastante tétrico para os tempos atuais. Em Guabiroba Alta há uma
inscrição curiosa, que nunca havíamos encontrado antes. Nos dados do túmulo
aparece não apenas a data de falecimento, mas o horário: “Nascida 1937 falecida
aos 6 de 03 de 1949 às 10:30h.” No Cemitério de São Caetano, o destaque mais
uma vez são as representações do Sagrado Coração de Jesus e de Maria em
túmulos predominantemente de sobrenomes italianos.
Em síntese, estas foram as manifestações encontradas nos cemitérios
pesquisados. Com relação à parte antropológica da pesquisa, cabe destacar mais
uma vez o Cemitério Municipal, que sem dúvida alguma foi o mais rico entre todos
os que foram visitados.
(1) Estas questões teóricas também podem ser conhecidas a partir da leitura de nosso livro “Cemitérios do
Rio Grande do Sul: Arte, Sociedade, Ideologia” (EDIPUCRS, 2000), em que o grupo de pesquisa apresenta os
estudos desenvolvidos até o ano de 2000.
(2) Cabe lembrar que neste artigo omitiremos os nomes das famílias para evitar maiores constrangimentos.
A morte e suas implicações para os vivos na Belém do século XIX
Francisco R. Silva Neto (UEPA)
Resumo
O artigo propõe compreender as práticas e implicações sócio-políticas dos
enterramentos que passaram a ser efetivados no cemitério da Soledade a partir de
sua inauguração no ano de 1850. Inauguração esta que, aconteceu sob vários
protestos contra a nova prática dos enterramentos na cidade de Belém, Estado do
Pará. O estudo teve por metodologia a análise de documentos da época, tabelas e
anotações dos livros de registro de entrada no referido cemitério, além das fontes
primárias, a leitura de trabalhos desenvolvidos por autores que tratam da mesma
temática foram de fundamental importância. Em nossas análises ficou evidente que o
contexto social foi bastante modificado sobre a forma de encaminhar os
enterramentos, principalmente pelo fato das pessoas apresentarem diferenciações em
relação ao acesso do “campo santo”, nem todos tiveram acesso a derradeira morada.
Palavras-chave: Morte. Ritos funerários. Sociedade.
INTRODUÇÃO
“Por fim a morte com sua mão gelada
Com o tempo acariciará teus seios”.
(Hofmannswaldau, séc. XVII)
As transformações no Grão Pará do século XIX não se limitaram aos
aspectos econômicos e sociais, mas também a uma mudança na forma de
sentir e de pensar da sociedade paraense, as mentalidades. Dentro dessa
estrutura temos a mudança no que se refere o comportamento diante da morte,
Cemitério da Soledade exemplo dessas transformações.
Com a mudança de local dos sepultamentos das igrejas e áreas
sacralizadas para os cemitérios, houveram resistências por parte da burguesia
local, onde não aceitavam
essa transferência, por conta disso surgiu a
Resolução de nº 181 de 19 de Dezembro de 1850, uma das disposições
afirmava a obrigatoriedade de enterrar todas as pessoas falecidas na cidade.
Na capital, onde as vítimas deveriam ser enterradas no cemitério de N.
Sra. da Soledade, provavelmente, houve sepultamentos fora do campo santo,
tanto pela falta de braços para cumprir com o “dever cristão”, como pelos
preços das esmolas para o enterramento. Arthur Vianna (1975, p. 159) informa
2
que: “[...] ao provedor deveu a população paraense o inestimável concurso da
regularidade do serviço funerário, durante a epidemia”.
Os escravos da Santa Casa conduziam os mortos em tumbas até o
cemitério e, lá, outros escravos encarregavam-se da abertura das covas para o
sepultamento. Quando as vítimas fatais somaram em torno de 40 a 50 óbitos
por dia, o provedor passou a utilizar carro fúnebre de propriedade particular,
pelo qual a Santa Casa pagava 10$000 réis de aluguel por dia, o que encarecia
ainda mais o preço de aquisição da “derradeira morada”.
A reflexão sobre o evento epidêmico no Grão-Pará permitiu estabelecer
um diálogo com a literatura historiográfica sobre a cólera, no período de dez
meses entre 1855 e 1856, na qual a discussão sobre os impactos sociais
geraram posições diferenciadas acerca da enfermidade. Os historiadores
divergem, sobretudo, ao avaliarem os índices de mortalidade produzidos pela
tuberculose e pela cólera (BELTRÃO, 2002).
O número de enterros no Soledade no período da epidemia da cólera
contabilizou 1.049 vítimas sendo que o maior período de registros de vítimas
fatais ocorreu em no mês de junho de 1855 com total de 427 mortes, em julho
o índice caiu para quase a metade em se manteve em 208 óbitos registrados e
que deram entrada no Soledade. O índice, a partir de então, manteve-se em
decréscimo até registrar, em fevereiro de 1856, apenas uma entrada por causa
mortis relacionada à cólera, segundo dados coletados por Beltrão (2000, p.
838; 2004, p. 260)
Apesar de a ausência de dados demográficos e históricos para a
tuberculose no Grão-Pará impedir a comparação entre as duas enfermidades,
constatou-se que as concepções sobre morrer de cólera ou morrer tuberculoso
são diversas. A primeira produz horror, e a segunda consome as vítimas, mas
as visões sobre o morrer tuberculoso chegam a ser românticas. A forma de
representar a enfermidade produz um impacto diferenciado. O medo amplia o
impacto social da cólera, apesar de o número de mortos não ser tão elevado.
E, com isso, mudou a mentalidade da população local, visto que os
enterramentos passaram a ter um local especifico.
2
3
O COTIDIANO DA MORTE EM BELÉM NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO
XIX
Destacamos a morte e o sexo como os principais interditos da civilização
Ocidental. O que temos de mais biológico é ao mesmo tempo o espaço que
nos causa mais medo e excitação. Se com o sexo a censura tem se diluído ao
longo das épocas, com a morte numa sociedade cada vez mais tecnológica e
concentrada no trabalho, percebe-se um esvaziamento e uma dessacralização
da natureza humana onde o homem procura minimizar cada vez mais suas
fraquezas, dessa forma, o ato de morrer passa a ser vergonhoso, uma coisa
inominável. Como nos conta Maranhão (1998):
Atualmente, existe a preocupação de iniciar as crianças desde muito cedo nos
‘mistérios da vida’: mecanismo do sexo, concepção, nascimento e, não tardará muito,
também nos métodos de contracepção. Porém, se oculta sistematicamente das
crianças a morte e os mortos, guardando silêncio diante de suas interrogações... a
morte, não o sexo, é agora o tabu que violamos – a ‘pornografia da morte’ causa-nos
excitação.
O grande avanço tecnológico da medicina levou ainda ao deslocamento
do lugar da morte. Se antes uma boa morte era em seu domicílio próximo aos
familiares, hoje se busca o mais rápido possível os hospitais para o
prolongamento máximo dos últimos momentos em vida. Segundo Castra,
(2003), passou-se a delegar aos médicos e a equipe técnica a tarefa de zelar
pela vida e pela morte a partir dos cuidados paliativos, médicos e sua equipe
intermediam a fronteira entre vida e morte, dessa forma, observa-se um novo
entendimento ideológico do morrer bem1. Cria-se um corpo de especialistas,
assim como políticas públicas, para oficializar a ação pública na qual a ação do
Estado passa a ser legítima.
De acordo com Elias (2001) ao criticar a análise de Ariès deixa claro
que este autor não explicou como ocorreram as diversas mudanças de
comportamento e de atitudes que forças motivaram tais mudanças. Para Elias,
todas essas transformações foram possíveis graças ao “processo civilizador”,
ao desenvolvimento do capitalismo, das ciências médicas. Para Norbert Elias,
no
período compreendido até meados
do século
XIX, as
pessoas
apresentavam menos possibilidades de aliviar o tormento da morte: a morte,
1
idéologie collective du bien mourir. [trad. Minha] Ver : Castra (2003, p. 331).
3
4
portanto, fazia-se mais presente, a expectativa de vida era baixa, a peste, a
fome, as guerras, ceifavam muitas almas.
Neste sentido, Elias (2001) considera esta, a verdadeira “morte
selvagem” o que posteriormente serviria de crítica ao trabalho de Ariès. Este
autor caracterizava a morte de antigamente como “domesticalizada” e a da
sociedade contemporânea, como “morte selvagem”, Elias, no entanto,
considera o oposto. Dessa forma, segundo Elias (2001, p. 103) “o problema da
relação das pessoas com os moribundos assume uma forma especial nas
sociedades mais desenvolvidas, porque nelas o processo de morrer está
isolado da vida social normal numa medida maior que antigamente”.
O velório antes realizado na casa da família, onde o corpo era exposto
para todos que quisessem ver agora é conduzido por um discreto carro
funerário para um local que cada vez mais distante e se diferencia dos antigos
velórios. Daí, lembrarmos do antigo costume colonial de enterrar os ricos nas
igrejas da cidade de Belém, acabou gradativamente quando o cemitério da
Soledade foi inaugurado, por Jerônimo Coelho, em 1850, mesmo período da
urbanização do bairro do Umarizal.
O cemitério da Soledade foi palco do enterro simbólico que coroaram
assim as manifestações da efetividade pública para com o compositor Carlos
Gomes em 20 de setembro de 1896. A figura triunfante de Carlos Gomes
representa tanto o mito como a imaginação social da época.
As exéquias de Carlos Gomes, realizadas solenemente a 16 de
setembro de 1896, representa de forma veemente as representações do
imaginário republicano em Belém no final dos Oitocentos. A pompa fúnebre do
compositor foram fortemente contigenciadas pelo simbolismo físico do
positivismo e reuniram nas ruas de Belém mais de dez mil pessoas (COELHO,
1995, p. 140).
Quanto à história local podemos tomar como referência aos estudos de
Schimdt & Cainelli (2004, p. 113), analisam a importância da compreensão da
história local com objetivo de entender outras possibilidades e sentidos
inclusive de micro-histórias enquanto pertencentes a outras histórias e que “ao
mesmo tempo reconheça as particularidades”.
O Cemitério da Soledade se enquadra nesse sentido, no momento em
que, guarda em seu seio, restos mortais de pessoas ilustres da história local e
4
5
regional. É o caso dos grandes vultos que fizeram parte da História local, como
exemplo, o cabano Francisco Pedro Vinagre, que foi presidente do Pará
durante a Revolução Cabana, e que faleceu em 22 de Novembro de 1872;
General Hilário Maximiano Gurjão, herói da guerra do Paraguai, que faleceu
em 17 de Janeiro de 1869; como as santas populares Raimundinha Picanço
(Raimunda Chermont Picanço), preta Domingas e o menino José, entre outras
personalidades que marcaram nossa história.
O SOLEDADE NO QUADRO DE TRANSFORMAÇÕES NO GRÃO-PARÁ
Na segunda metade do século XIX a capital do Grão-Pará foi palco de
grandes transformações urbanísticas, sociais e mentais. Mudanças essas que
foram alimentadas pelo boom da economia gomífera da Amazônia. No período
de 1860 a 1910 ocorre na Amazônia Brasileira o apogeu da exploração da
borracha natural que coincide com a belle époque, caracterizado pelo
crescimento econômico, avanço das técnicas no território e também pelo
aumento dos males sociais nas cidades. A expansão da exploração da
borracha para o interior da Amazônia possibilitou a criação de vilas e cidades
em especial na área que corresponde ao Estado do Amazonas, porém foi um
fator limitante do seu desenvolvimento.
Nesse período, Belém se tornou uma das mais desenvolvidas cidades
da América Latina. A elite paraense passou a moldar seu comportamento aos
padrões europeus, e em particular ao francês. É dentro deste contexto que
temos a construção do Cemitério da Soledade. Segundo Geraldo Mártires
Coelho (1995, p. 154):
O cemitério da Soledade aberto em 1850, quando Belém praticamente saíra do quadro
dramático da Cabanagem e a borracha iniciava a trajetória da sua afirmação
econômica, possuía certas características dos cemitérios franceses do começo do
Romantismo. Ajardinado e arborizado, reunia (e ainda reúne), nas áreas de
sepultamentos destinados aos mortos das famílias de posses, exemplares bens
expressivos da arquitetura e da escultura funerárias do século XIX, agrupando um
significativo conjunto de símbolos, metaforizando, por oposição, o sentido na vida e a
idéia da morte. Com seu marcante pórtico erguido em pedra de cantaria, vinda de
Portugal e o seu gradeamento de ferro batido, oriundo da Inglaterra.
Destacava-se na paisagem urbana por sua imponência e pelo seu valor
para historia social do Pará. Alguns governadores do período entraram para a
5
6
história da cidade em função do trabalho realizado. Em 1700, por exemplo,
Antonio Carvalho expandiu a cidade para o lado da Campina, fazendo transpor
o Piry, um igarapé que, saindo da baía do Guajará, inundava grande área da
cidade. Um século depois, o Piry seria aterrado pelo Conde dos Arcos. Antes,
porém, Antonio Landi, sob chancela de Mendonça Furtado, adornou Belém de
palácios, igrejas e capelas ao [bom] gosto neoclássico da época
O maranhense Antonio José de Lemos chegou a Belém como taifeiro da
Marinha. Trabalhava na contabilidade, setor de compras. Gostava de ler e
sabia escrever bem, qualidades que o levaram à redação do jornal A Província
do Pará, pelas mãos do proprietário, Dr. Assis. Trabalhou na equipe de
revisores, fez carreira dentro do jornal, conquistou a confiança e a amizade da
direção (SARGES, 2002).
Com a morte do Dr. Assis, Antonio Lemos, à época ocupando o cargo de
redator-chefe, adquiriu o periódico por um valor simbólico e o transformou no
terceiro jornal do Brasil, adquirindo modernos equipamentos de impressão na
Inglaterra e instalando-o em imponente prédio, hoje abrigando o Instituto de
Educação do Pará.
Líder do antigo Partido Republicano no Pará, foi eleito para a
intendência de Belém em 1897. A República acabara de se instalar. O
ambiente político era de ruptura com qualquer resquício do regime anterior.
Antonio Lemos se apropriou dos ideais da época, segundo os quais as cidades,
urbes doentes que padeciam dos resquícios da Monarquia, clamavam por
higiene e modernidade.( SARGES, 2002)
No caso de Belém, de fato, isso se concretizou, graças à fase áurea da
borracha que ofereceu condições técnicas e financeiras para tal e à vontade
política de Antonio Lemos em aplicar os rendimentos auferidos da exportação
no embelezamento da cidade.
Ele foi buscar na França, centro irradiador da cultura mundial, os
fundamentos para o seu plano de modernização. Paris acabara de passar por
uma profunda reforma empreendida pelo urbanista Haussmann, que se cercara
de um grupo de colaboradores de alta qualidade. O urbanismo de Haussmann
caracterizou-se pela criação de uma vasta rede de grandes artérias que cortam
indistintamente Paris, por bairros centrais e zonas periféricas. Paralelamente,
adota-se uma política ativa em matéria de serviços públicos com sistema viário,
6
7
rede de esgoto, distribuição de água e gás, mercados cobertos, feiras,
estações, hospitais, espaços verdes, entre outros elementos, relata o
pesquisador, (SARGES, 2002)
Com base em planta de Nina Ribeiro de 1886, o grupo desenvolveu um
plano para Belém, organizando o espaço da cidade e definindo objetivos, que
culminou com a planta de 1905, desenhada por José Sidrim. Essa planta
projetou avenidas, ruas e bairros inteiros onde só havia florestas e áreas
alagadas. Comparada à planta atual, no que concerne a 1ª Légua Patrimonial,
o plano de Lemos continua inalterado.
A cidade surge dividida em bairros comerciais, residenciais, industriais e
de serviços. "Com apurado gosto, o intendente embelezou a cidade, tornandoa atraente. Desenvolveu-a a ponto de fazê-la o maior empório comercial do
vale amazônico. Os calçamentos de madeira foram substituídos pelo granito.
Foram construídos o mercado de ferro, o quartel dos bombeiros, o asilo de
mendicidade e o necrotério público. Foi iniciada a rede de esgotos, os largos
foram transformados em praças ajardinadas, ruas largas, com 30 e 40 metros,
foram abertas no bairro do Marco e promoveu-se o melhoramento do perímetro
urbano.
O interventor Antônio Lemos conduziu Belém à modernidade, definida
pela República, como nenhuma outra cidade brasileira até então havia
experimentado. Só depois é que Pereira Passos faria a grande reforma no Rio
de Janeiro.
O depoimento insuspeito do escritor Euclides da Cunha dá a exata
medida do cenário que encontrou na passagem por Belém em 1904:
nunca esquecerei a surpresa que me causou aquela cidade. Nunca São Paulo e Rio de
Janeiro terão as suas avenidas monumentais, largas de 40 metros e sombreadas de
filas sucessivas de árvores enormes. Não se imagina no resto do Brasil o que é a
cidade de Belém, com os seus edifícios desmesurados, as suas praças incomparáveis
e com a sua gente de hábitos europeus, cavalheira e generosa. Foi a maior surpresa
de toda a viagem.
Também sob influência do urbanismo de Haussmann, o intendente
Antonio Lemos se valeu de um Código de Postura que impunha à população
normas para a construção de novos prédios. Além de legislar dentro da
propriedade privada, o código era autoritário e excludente. Por causa dele, a
7
8
população de baixa renda foi afastada da área central para a periferia da
cidade (SARGES, 2002)
Até então, Belém agrupava freqüentemente as diversas categorias
sociais no mesmo lugar. Após a aprovação do Código de Postura na Câmara
Municipal, elas se encontravam separadas de maneira radical. "Assim como o
de Haussmann, em Paris, o urbanismo de Lemos induz à formação de um
espaço da burguesia numa enorme parte da cidade", ressalta Célio Lobato.
O Código de Postura de Belém era bastante detalhista. A lei que proibiu
a construção de barracos na Avenida Tito Franco, atual Almirante Barroso, por
exemplo, exigia que as novas construções mantivessem espaço nunca inferior
a 2 metros entre elas para a circulação do ar e que nenhum prédio poderia
receber o vigamento a menos de um metro de altura sobre o nível do solo. As
barracas que continuavam e destoavam com a nova paisagem urbana em ficar
foram removidas pela Intendência.
Na Avenida Nazaré, por exemplo, reservada aos ricos, as casas
cobertas de telhas, que jogavam água na calçada, tiveram que construir
platibandas na fachada para esconder o telhado. As janelas tiverem que se
enquadradas segundo uma determinada dimensão para facilitar a ventilação e
a insolação, de acordo com a saúde pública. Por toda a cidade, os moradores
foram obrigados a construir fossas e proibidos de jogar nas ruas as águas
fecais, um costume de então.
Amparado no seu Código de Postura, Antonio José de Lemos governou
por quase 14 anos, deixando sua marca indelével na história da cidade. Ao
longo de sua curta existência no período de 1850 a 1880, o Cemitério da
Soledade provocou admiração face sua suntuosidade, retratada em seus
túmulos e mausoléus, sem contar com as inúmeras personalidades históricas
ali enterradas.
Em 1880, o Cemitério da Soledade fechava seus portões, sob a
chancela do presidente da província José Coelho da Gama, com seus 444
túmulos e um total de 31.872 almas enterradas, sob alegação das autoridades
de que o local já estava muito no centro da cidade e a análise química do solo
demonstrava que ele seria inadequado para a continuidade de enterramentos
no local. Considerou-se também para efetivar o cerramento dos portões do
8
9
Soledade, a expansão acelerada da região ao seu redor, no entanto, em 1874
outro cemitério havia sido inaugurado.
No ano de 1874, surgiria um novo cemitério para Belém, localizado na
atual Avenida José Bonifácio, no bairro do Guamá, em virtude de uma
epidemia de varíola: o cemitério Santa Isabel. Então em 14 de agosto de 1880,
encerram-se os sepultamentos no Soledade, assinada pelo Presidente Jose
Coelho da Gama e Abreu. Neste período foram enterradas 31.872 pessoas.
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RODRIGUES. Paula. Andréa Caluff. O tempo e a pedra. Universidade da Amazônia
[Monografia de Especialização], Belém, 2001.
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A Dialética do Corpo na Representação da Morte Sertaneja
Gleidson de Oliveira Moreira
Mestre em História – Professor na UEG
Resumo
O objetivo desse texto é discutir os ritos de tempo e espaço na morte sertaneja.
Importa saber as atitudes dos homens diante a morte, fenômeno que não se limita a
questão meramente natural, mas menciona um construto sócio-cultural.
Palavras-chave: morte sertaneja; rito de tempo; rito de espaço.
A morte, o sobrenatural e a continuação da vida são banidos do cotidiano
da sociedade moderna. A racionalidade e a lógica moderna não só
desencontram o mundo, mas limitam ao que se pode ser percebido pelos cinco
sentidos, mesmo quando pouco se saiba sobre esses sentidos.
A reflexão ou pesquisa sobre a temática morte é vista com certa restrição,
uma vez que ainda constitui um tabu social. Por isso o objetivo desse texto é
discutir os ritos fúnebres como ritos de tempo e espaço na roça. Importa saber
as atitudes dos homens diante a morte, fenômeno que não se limita à questão
meramente natural, mas menciona um construto sócio-cultural. O desafio,
portanto é pensar a ação conflituosa de forças entre a natureza e a cultura.
As crenças que o homem vem desenvolvendo no decorrer do tempo, e
que o acompanham em seus momentos de felicidade, tristeza e incerteza se
afastam cada vez mais, deixando o homem sozinho diante o mundo.
No sertão, a vida e a morte estão juntas e opostas. Ao se falar da vida,
não se pode deixar de falar da morte, porque é uma coisa só. O que se pode
fazer é opor o tom de voz que se usa para falar, para que a mesma fala, ao
reconhecer a unidade da vida e da morte, não desconheça, também, que uma
é contrária da outra. Assim como o tom de voz distingue a fala sobre a vida da
fala sobre a morte, há outros recursos culturais que o povo do sertão utiliza
para distinguir aquilo que socialmente pertence à morte daquilo que
socialmente pertence à vida.
Essas distinções estão fortemente baseadas nas observações que
Benedita Vicente de Oliveira-86 anos-, ao mencionar que, ao nascer, cada um
já carrega consigo o destino da morte, o tempo certo para morrer. É esse fato
que permite entender toda a complexidade e variedade dos ritos fúnebres no
sertão, que obriga cada pessoa a conhecer os procedimentos, rezas,
interdições necessárias a que se situe diante da morte, dos outros e da sua
própria. Para Benedita Vicente de Oliveira, o tempo de vida e morte ocorre
entre o nascimento e a finitude orgânica do corpo. Nascer e morrer devem ter
tempo certo. O rompimento desse ciclo natural representa um perigo não só
para aquele que deixa de cumpri-lo, mas a toda sociedade.
As pessoas não podem, ou não devem morrer antes nem depois. A hora
da morte deve ser a hora destinada à morte. Por essa razão, os ritos relativos à
morte, de acordo com Phillipe Áries, constituem ritos de tempo.
Ritos de tempo são atitudes para evitar que a pessoa morra depois do
tempo. Ilustrada na mitologia grega pelas Moiras, filhas de Zeus, afiandeiras do
destino, as três deusas (Cloto, Láquesis e Átropos) impiedosamente decidem
sobre o destino da vida e morte dos homens. Representando o começo e o
fim, a vida e a morte, o simbolismo do corte do fio dourado tecido, medido e
cortado pelas irmãs exerce dos vivos todos os cuidados que devem ter no
tratamento do corpo. No caso do sertanejo, o vivo evita o contato com o morto
para não contaminar outros sobreviventes pela morte e, portanto ao evitar
culturalmente esse contágio significa impedir que o destino natural do vivo
passe a ser determinada pelo morto, que já está fora da natureza, inserido na
ordem do sobrenatural. Nesse arranjo, há uma relação conflitiva e de força
entre a natureza e a cultura. Benedita Vicente de Oliveira enfatiza que o tempo
de morrer chega para aquelas pessoas que já não podem trabalhar, já estão
velhas, já fizeram o que tinham para fazer; o a vida está por um fio.
O povo do sertão mobiliza concepções culturais, ritos, crenças, rezas,
para que a natureza cumpra o seu ciclo de nascimento-crescimentoenvelhecimento-morte, para que o homem viva e morra como a árvore do
campo. A natureza se transfigura, assim, em produto da cultura.
Quem morre antes do tempo fica à espera do tempo certo para receber
a sua sentença. Essa é uma situação de extremo perigo, porque é a situação
da alma que não está no seu lugar, nem na ordem dos vivos nem na ordem
dos mortos, nem é uma coisa nem é outra – é o morto não assimilado pelo
mundo dos mortos e que, por isso, ameaça o mundo dos vivos. Um dos cultos
populares ricos e arraigados na cidade de Anicuns, interior de Goiás, são as
encomendadeiras das almas. Mulheres (carpideiras) que cantam por meio de
rezas, a proteção e iluminação às almas, mesma situação averiguada no sul da
Bahia, na cidade de Correntina. Nesse último caso, mulheres trajam-se de
branco, simbolizando a luz emanada de seus corpos em movimento. Segue em
procissão tangida pela fé que as opera por meio de rezas cantadas.
Os que morreram antes do tempo ou os que não encontraram em luz,
devem ter suas almas guiadas a um lugar definitivo. Assim, os ritos impedem
que as pessoas morram depois do tempo. No sertão goiano ou baiano, as
carpideiras são especialistas na quebra da oração do moribundo, que apegado
ao seu santo de devoção recusando-se a morrer. August Saint-Hillaire, viajante
europeu que percorreu o interior do Brasil no século XIX, observou que os ritos
fúnebres implicavam um tempo de agonia e aflição. Nem todos cristãos,
adultos apesar de conceber a morte como necessária ao empenho de salvação
da alma, a esperava sem manifestar um comportamento de inquietude.
Se o momento da agonia constituiu-se num momento de conflito entre o
moribundo e os circundantes, o medo implicava em preparar-se para o que se
chamou no século XIX, de bem morrer. Em Saint-Hillaire os ritos de morte para
os adultos não eram os mesmos observados entre os anjinhos (crianças). No
caso destes, o choro e desespero familiar pela dor da morte infantil era contida.
Acreditava-se que como anjos, crianças mortos não alçassem vôo por terem as
asas carregadas das lágrimas dos entes, uma vem que os parentes
esperassem das crianças, anjos de guarda a proteger a alma dos adultos no
caminho percorrida por estes até o céu.
Aqui o agonizante e o morto assumem uma dupla posição. De um lado
os ritos para evitar a contaminação da morte e os vivos que administrando a
morte do outro, submetem a morte ao seu controle. Mas é possível prever e
aceitar a morte do outro? Controlar a morte pode parecer uma ação de
domesticação o sem sentido, contudo, a morte se situa na ordem dos vivos e
da vida. Porque embora vítima da morte, a pessoa é também senhor dela, o
que de fato pertence à sociedade.
As rezas dos que ajudam a morrer parecem ter como finalidade ocupar
os sentidos de quem morre nesse momento de perigo - os olhos, ouvidos e
boca, são lugares por onde entra a salvação ou a danação. A prática religiosa
observada na repetição das palavras sagradas das carpideiras tinha por
objetivo ocupar a boca e ouvidos do moribundo e do morto. Simbolicamente
travava-se em torno do mesmo uma guerra em busca da alma. O propósito da
grande batalha é que em nome de Deus a guerra contra o demônio fosse
vencida.
É por causa dessa guerra travada no campo da agonia, que o moribundo
não ficava só. A casa não é apenas a moradia da família, mas o recanto para
os amigos, espaço para os vizinhos, lugar da morte, porque é socialmente o
lócus onde são criados e geridos códigos, práticas e ritos funerários
indispensáveis à proteção da família e da casa.
Engendrado à tradição sertaneja, a casa é o espaço privado no qual,
morto o corpo, as visitações tornam-na pública. A casa passa a decodificar pelo
uso de seus espaços (quarto) a compor uma nova ordem constitutiva: os
espaços sagrados da casa como espaços de sentimentos. O luto e o choro
transcendem o mero espaço dos cômodos como espaço para movimentação
dos vivos. Um direito social dos vivos rompe o quarto como espaço do sagrado.
Antes de acesso restrito da parteira e do padre, o quarto é profanado. Parentes
e não parentes ocupam o quarto para lavar e amortalhar o corpo. Atitudes
ritualizadas para o morto afetam e modificam a concepção de um mundo íntimo
e introspecto dos vivos.
Após o desenlace do corpo e da alma, realidades distintas e
relacionadas entre si, os parentes de primeiro grau (filhos menores...), não
seguiam ao cortejo fúnebre. Cabe ressaltar o perigo na interferência da alma
do morto entre os vivos e o respeito ao corpo morto quando do luto, momento
de silêncio. Momento em que até portas e janelas eram fechadas. Assim, os
ritos da agonia tornam-se ritos de tempo e os ritos relativos ao corpo morto,
constituem-se ritos de espaço.
Se por um lado é a reza que separa o corpo da alma, por outro o corpo
do morto aproxima a oposição entre os vivos. Parentes distantes, pessoas que
viveram em desavenças... A morte atrai respeito e consternação. Entre a
família do morto se estabelece uma relação real e simbólica entre alma e
defunto.
O corpo representa morte, por isso a adoção de práticas envolvidas nos
ritos fúnebres. Por isso a crença comum é de quem toca o morto a ele
pertence. Discussão em que se acha indispensável o uso de artifícios para
afastar os maus espíritos: cruzes, crucifixos, terços. Objetos muitas vezes
sepultados com o próprio defunto ou utilizados para purificar lugares ou
pessoas envolvidas com o morto.
Tirado o morto de dentro da casa, com os pés para frente e a cabeça
para trás, associando a casa ao útero materno, simulando a morte o ato do
renascimento, o caixão ou bangüê não é carregado por mulheres. O cuidado
com o corpo morto corresponde à idéia de uma biblioteca e o caixão a um livro.
Fechado múltiplos tempos e espaços em um corpo os ritos reativarão sua
memória.
Referência Bibliográfica
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______________O homem diante da morte. Vol. II. Francisco Alves. S.P. 1990
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REIS,João José. A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e revolta popular
do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, 357p.
RODRIGUES, Claudia. Nas Fronteiras do Além: o processo de secularização da
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__________________ Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e
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Ed. Companhia das Letras. 2002
VAILATI, Luiz Lima. A Morte Menina: Práticas e Representações da Morte Infantil no
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REIS, João José. A morte é uma festa – ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo. Companhia das Letras, 1991.
Anexos
Cemitérios Sertanejos
Foto-01
Fonte: Cemitério Por enquanto – GO 2007
Foto – 02
Fonte: Cemitério Choupana – GO- 2007
Foto – 03
Fonte: Cemitério da Chapada – GO-2007
Foto – 04
Fonte: Cemitério Choupana – GO- 2007
Foto – 05
Fonte: Cemitério da Chapada – GO-2007
Foto -06
Fonte: Cemitério da Chapada – GO-2007
A Arte Funerária
Harry Rodrigues Bellomo
Mestre em História – Prof. PUCRS
Resumo
No presente artigo, mostraremos que o cemitério pode ser fonte de valiosas informaçõs que nos
indicam seus valores artísticos, culturais, ideológicos, sociais e religiosos. Para verificar estes
elementos, elaboramos uma tipologia de análise dos túmulos contidos nos cemitérios.
Palavras - chave: Cemitério - Tipologia - Arte
1. O CEMITÉRIO COMO FONTE PARA PESQUISA HISTÓRICA, SOCIOLÓGICA E
ANTROPOLÓGICA
Ao longo dos tempos, cada civilização apresentou sua resposta para o problema da
morte.
Pirâmides, túmulos subterrâneos, templos funerários, catacumbas, cremações,
rituais funerários têm sido usados como uma tentativa de conservar os corpos e se
preservar a memória dos mortos. A conservação da memória dos mortos é um dos fatores
da identidade e de coesão das famílias, das tribos e das comunidades. Esta função dos
mortos darem coesão à família e à comunidade é tão relevante que os índios do Brasil
costumam fazer grandes rituais coletivos – Quarup – em honra aos mortos, enquanto
outras tribos bebem as cinzas dos mortos como forma de manter a coesão da família.
O cristianismo, com sua mensagem de ressurreição, criou uma nova concepção de
como vencer a morte e preservar a memória dos mortos. Assim surgiram os cemitérios1
cristãos, sugestivamente também chamados “campos santos”.
Os cemitérios reproduzem a geografia social das comunidades e definem as
classes locais. Existe a área dos ricos, onde estão os grandes mausoléus, a área da
classe média, em geral com catacumbas na parede, e a parte dos pobres e marginais. A
morte igualitária só existe no discurso, pois, na realidade, a morte acentua as diferenças
sociais. As sociedades projetam nos cemitérios seus valores, crenças, estruturas
socioeconômicas e ideologias. Deste modo, a análise permite conhecer múltiplos
aspectos da comunidade, constituindo-se em grandes fontes para o conhecimento
histórico.
Vamos analisar as várias áreas do conhecimento em que os campos santos podem nos
dar valiosas informações, tanto na área da preservação da memória como na do
patrimônio cultural.
1.1 Os cemitérios: fonte para conhecer a formação étnica
Analisando os nomes das famílias e as fotografias, podemos saber a origem e a
etnia dos habitantes da área. No caso, podemos constatar a presença majoritária, nos
cemitérios de Porto Alegre, de famílias de origem italiana, alemãs ou lusobrasileiras.
1.2 Os cemitérios como fonte para o estudo da genealogia
O estudo dos nomes presentes nos túmulos, especialmente das sepulturas
coletivas onde aparecem várias gerações, nos mostra as relações familiares e a presença
da endogamia ou exogamia2.
1.3 Os cemitérios e a preservação da memória familiar e da comunidade
Levando em conata que a memória coletiva é fundamental para a formação da
identidade e da coesão da família ou da comunidade, a análise das inscrições, fotos,
datas, títulos (doutor, comendador, etc.) e dados pessoais ou profissionais, nos leva a
conhecer a atuação das várias gerações e o processo histórico local.
1.4 Os cemitérios como fonte de estudo nas crenças religiosas
As inscrições, símbolos, estátuas, pinturas nos mostram a religiosidade local e a
relação existente entre religião e morte. Cristos, anjos, crucifixos e estátuas de santos nos
revelam a visão cristã e as devoções mais comuns da região. Na região pesquisada,
existem poucas inscrições bíblicas e poucos dizeres reveladores de uma crença maior no
céu, na ressurreição e em outros dogmas do cristianismo. Constatamos pouca presença,
no Interior, de representações do Calvário, da Sagrada Família e da Trindade Divina. No
entanto, a inscrição “Saudades Eternas”, reveladora da idéia de morte como um fim
completo e comum em Porto Alegre, quase não aparece no Interior, predominando a
inscrição “Saudades da Família”, reveladora de um laço emocional dos vivos em relação
aos mortos e deixando aberta a possibilidade de um novo encontro. Nos cemitérios
protestantes são mais comuns as inscrições bíblicas. Nos cemitérios pesquisados, os
símbolos mais usados são a cruz, símbolo da fé cristã, e o PX. Os símbolos do Espírito
Santo e da Esperança aparecem poucas vezes, assim como a representação da
Caridade. Não existem também sinais de um culto maior aos mortos, como orações
gravadas na pedra, cruz das almas ou oratórios públicos, encontrando-se apenas altares
nos mausoléus. No entanto, a estatuária representativa das crenças religiosas é bastante
significativa.
2 INVENTÁRIO TIPOLÓGICO DA ESCULTURA FUNERÁRIA
2.1 Inspiração cristã
2.1.1 Cristo e a morte cristã
Existe um paradoxo evidente entre a ideologia cristã da sociedade portoalegrense
e a representação artística, assim como entre as crenças na vida eterna e as inscrições
tumulares.
Para o cristão, a morte leva à perspectiva da vida eterna, a morte traz em si o
germe da ressurreição gloriosa. Sofrer e morrer é imitar Cristo. O cristão é filho da
eternidade e, portanto, como afirma Santo Inácio de Antioquia, deveria estar possuído do
amor da morte. No dia da ressurreição, o corpo libertado da morte a destruirá para
sempre. A cruz, desde a antigüidade, surgiu como símbolo da morte cristã. A cruz é o
símbolo da celebração da morte e da esperança na ressurreição.
Na mensagem cristã existem duas situações fundamentais: a crucificação, a morte
dignificada pelo exemplo de Cristo, e a ressurreição, o triunfo da vida sobre a morte.
Tomas Kempis, na sua obra Imitação de Cristo diz que “(...) não há outro caminho
para a vida e para a paz interna verdadeira a não ser o caminho da Santa Cruz”3.
Apesar da sociedade gaúcha não ter uma formação religiosa profunda, pois o
estudo teológico ficou limitado a círculos bastante restritos, através da prática religiosa,
principalmente das devoções da Páscoa, a identificação da crucificação com a morte
dignificada do cristão era bastante compreendida. Este fator levava os artistas e famílias
locais a escolherem o tema da crucificação como um dos preferidos. Crucifixos, Pietàs,
calvários e o sepultamento de Cristo são encontrados com relativa abundância na arte
funerária de Porto Alegre.
As representações com temáticas cristãs, em geral, seguem os padrões da arte
neoclássica, inclusive para as estátuas de Cristo e dos santos.
As figuras de Cristo, segundo os cânones neoclássicos, devem expressar
espiritualidade, grandeza, personalidade bem característica, santidade, profundidade de
sentimentos, dor e sofrimento sereno. Por sua vez, seus inimigos devem estar
caracterizados como malvados, ferozes, raivosos e bárbaros, enquanto seus amigos
aparecem como homens atraídos pelo divino que há em Cristo. Os momentos mais
favoráveis para representar Cristo são os do nascimento, pregação, morte, ressurreição e
ascensão.
2.1.2 A ressurreição
A morte, na mensagem cristã, é vista como a passagem para a eternidade. Corpo e
alma não são coisas paralelas mas, sim, uma unidade que é o ser humano. Daí, que a fé
na ressurreição passa a ser a espinha dorsal da fé em Cristo. Cristo é a explicação da
morte e da ressurreição. “Eu sou a ressurreição e a vida” (João 11). “Quem crê em mim
viverá, mesmo que tenha morrido” (Mateus 12). Estes textos bíblicos respondem, ao
cristão, a pergunta: “Como superar a morte”?
Na teologia antiga o juízo particular e o juízo final eram momentos diferenciados
mas, atualmente, são considerados coincidentes, de qualquer maneira permanece a idéia
da justificação pós-morte. O corpo é ressuscitado no fim dos tempos para reunião final
entre espírito e corpo, para comparecer ao juízo final que inclui a justificação do homem,
tanto nas suas relações para com Deus, como nas suas relações para com os outros
homens. A ressurreição é o lugar definitivo, o acabamento do processo cósmico, a
unidade completa entre espírito e matéria.
Como será o corpo ressuscitado? Esta velha pergunta tem sido respondida através
dos tempos de maneiras diferentes, mas a tradição cristã concorda em alguns aspectos. A
ressurreição é universal e os corpos glorificados manterão sua identidade pessoal. Na
concepção tradicional do juízo final, Jesus aparecerá cercado de apóstolos, santos e
anjos. O corpo ressuscitado e glorificado refletirá o fulgor da alma. A diferença de sexos
será mantida, mas não as diferenças de idade e tamanho. O corpo ressuscitado será
perfeito, nem alto nem baixo, mostrando a idade de 30 anos, época do apogeu do vigor
físico. Será incorruptível, terá o dom da ubiqüidade e estará isento de dor.
Ao longo da história os artistas têm utilizado o juízo final e a Ressurreição como
temas para a iconografia cristã, assim como a simbologia tradicional da ressurreição, a
ave fênix, o ovo, a águia, o casulo, a borboleta e a árvore verdejante. Portanto, é natural
que a arte funerária, em Porto Alegre, também utilizasse esses temas.
2.1.3 A devoção de Maria, dos santos e anjos
Nas devoções do Cristianismo católico o culto dos santos e da Virgem Maria,
intermediários entre Deus e os homens, caracteriza-se por um sistema de relações onde
fica explícita a aliança entre o devoto e o santo protetor, assim as graças, recebidas são
retribuídas por práticas rituais. As práticas devocionais organizadas, além dos rituais,
exigem um comportamento ético, daí que o pagamento da graça alcançada é do indivíduo
e não da comunidade. Dado a este caráter privado e a sua diversificação, as devoções do
catolicismo romano adaptam-se a todas as classes, sexo e idade. Existem modelos éticos
de virtude para todos. Deste modo, a medida em que as devoções se propagam,
transmitem-se aos fiéis os conteúdos éticos nelas embutidos.
Em um período de questionamento da família, aumenta a devoção da Sagrada
Família; os movimentos operários voltam-se para o culto de São José; no período da
expansão missioneira da Igreja, aumenta o culto aos santos ligados à expansão da fé. Na
década de 1930-40, a reação ao crescente materialismo era estimular o culto do Sagrado
Coração de Maria e Jesus.
Esta diversidade de devoções favoreceu muito a conquista das classes urbanas
que não mais sintonizavam com o tradicional sistema religioso rural e, uma vez
incorporados estes padrões de comportamento religioso pela sociedade local, todas estas
manifestações de devoção irão se refletir na estatuária funerária.
Virgens Marias e santos irão povoar os túmulos locais, símbolos de devoções
familiares. A iconografia católica costuma apresentar a Virgem em três situações básicas:
Maria mística na Anunciação; Maria mulher real, mãe de Jesus, na Sagrada Família; e
Maria mulher, mãe dolorosa, nas Pietàs. Destes três tipos de representação da Mãe de
Deus, apenas o segundo e o terceiro são encontrados em nossos monumentos fúnebres.
2.1.4 Os cemitérios como forma de expressão da ideologia política
Nos cemitérios da região pesquisada, existem poucas inscrições, dizeres ou textos
representativos da ideologia política da comunidade. Em alguns cemitérios existem bustos
e estátuas celebrativas das lideranças locais.
2.2 A tipologia celebrativa
O positivismo surgiu no século XIX, em plena revolução industrial, criado e
divulgado por Augusto Comte.
De acordo com o pensamento de Comte, a humanidade está em permanente
evolução em direção ao progresso, mas dentro de uma ordem pré-estabelecida. A ordem
é a harmonia entre as diversas condições da existência e o progresso é visto como o
desenvolvimento ordenado da sociedade, de acordo com as leis sociais naturais.
Portanto, tudo que altere a ordem é considerado como negativo e, por isso, o positivismo
é anti-revolucionário. O progresso é visto como a parte dinâmica da sociedade e a ordem
como a parte estática. Cabe ao Estado promover a esta cidade a ordem e o ajustamento
do indivíduo à sociedade. O Estado positivista deverá ser dirigido pelos industriais e
sábios ilustrados.
Como a monarquia fundamentava-se no direito divino dos reis, para Comte seria a
forma de governo correspondente ao Estado teológico da civilização e, portanto, um
sistema superado. Comte opta, então, pela ditadura republicana que seria a única forma
de governo capaz de atingir os objetivos propostos. A ditadura republicana é temporal,
com a autoridade centrada em um só indivíduo, tendo um caráter vitalício e devendo
garantir a justiça e a liberdade, apoiada no tripé da responsabilidade, autoridade e
liberdade. O líder é preparado pelos seus antecessores e prepara os seus sucessores,
percebe quais as transformações necessárias e as propõe aos seus seguidores, e orienta
seus contemporâneos para a construção das doutrinas e instituições necessárias para
proporcionar as transformações. No caso de seus planos serem adequados à realidade,
as mudanças se consolidam quase imediatamente. A função da liderança é despertar e
conduzir a ação de novas forças sociais. Apesar desta função importante, o seu papel é
menor do que o das condições criadas pelo processo civilizatório. As leis naturais são
independentes do querer do líder. Este pode direcionar o processo histórico, mas não
alterá-lo.
As doutrinas positivistas chegaram ao Rio Grande do Sul através de duas vertentes
principais: os militares que cursavam a Escola Militar do Rio de Janeiro, onde a pregação
positivista dirigida por Benjamin Constant era intensa, e os estudantes que faziam seus
estudos superiores em São Paulo e no Rio de Janeiro.
A primeira manifestação positivista no Rio Grande do Sul foi o artigo Duas palavras,
sobre literatura, escrito por Augusto Luis.
Nos primeiros tempos da pregação positivista destacou-se Júlio de Castilhos,
nascido em 1860, estudou de 1877 a 1888 em São Paulo, onde se converteu à doutrina
de Comte. Fundou o Jornal A Federação, em 1884, órgão oficial de propaganda
republicana positivista. A pregação de Júlio de Castilhos se identificou com a dos jovens
militares positivistas no seu caráter idealista, republicano, antiliberal, tradicionalista,
patriarcal e anti-socialista, combinando muito bem com o caráter autoritário do positivismo
como caudilhismo rio-grandense.
Com o golpe militar que proclamou a República, Júlio de Castilhos e seu grupo de
positivistas chegaram ao poder, impondo ao Estado uma constituição autoritária e
positivista, única no mundo, garantindo um predomínio políticoideológico, de mais de um
quarto de século nas estruturas de poder do governo estadual.
Ora, fazia parte do pensamento oficial a celebração cívica dos líderes políticos
vinculados ao grupo dominante. Desta forma, o Governo patrocinou não só a construção
de monumentos públicos, como o de Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, mas, também,
de uma série de jazigos monumentais no Cemitério da Santa Casa, reafirmando seus
valores políticos e também atendendo ao princípio positivista do culto cívico no líder e da
conservação de sua memória, única imortalidade possível no ser humano.
O primeiro destes monumentos funerários foi o de Júlio de Castilhos (morto em
4
1903) , seguido do jazigo de Pinheiro Machado5, Otávio Rocha, Maurício Cardoso e
outros.
A terceira tipologia a ser inventariada foi Cívico-celebrativa.
Nesta categoria estão colocados os jazigos-monumentos possuidores de uma
dupla função:
•
servir de sepultura;
•
celebrar a memória de vultos destacados do mundo político, econômico, social e
cultural.
Devido a esta dupla função, estes túmulos costumam ter a imagem do morto e
alegorias representativas das atividades exercidas ao longo da vida ou da sua ideologia.
Em geral, estas sepulturas foram financiadas pelo Governo Estadual, corporações,
entidades empresariais ou, mesmo, por grupos de amigos e familiares.
Nas primeiras décadas do século era usual que, em torno destes
túmulosmonumentos, existisse um verdadeiro culto cívico, realizado geralmente na data
da morte. Este culto consistia em visitações organizadas, oferendas florais e discursos
laudatórios. Com o declínio do positivismo este hábito desapareceu quase inteiramente.
O túmulo do Coronel Plácido de Castro, o conquistador do Acre, aparece com
exceção, pois faz, não só a glorificação do herói assinalado mas, também, a denuncia do
sistema político vigente6.
2.2.1 Os cemitérios como expressão do gosto artístico
No caso dos cemitérios do interior estudados, existem poucas obras de escultura,
em geral, baixos-relevos, anjos, santos, crucifixos padronizados e Sagrado Coração de
Jesus, muitos de fabricação artesanal e sem expressão artística.
Constatamos que existem poucas estátuas alegóricas (saudade, dor, desolação),
tão comuns em cemitérios do Rio Grande do Sul, de maior porte.
2.3 A tipologia alegórica
O classicismo tem uma tendência a fazer a apoteose de um indivíduo cuja
perfeição não é apenas ética. O culto do herói é um dos centros da teoria neoclássica,
assim como o culto das virtudes. A partir de um certo momento a arte passa a representar
os dois cultos através da celebração de um indivíduo.
Segundo Goethe, o artista procura no particular o universal, daí nascendo a
alegoria. A alegoria tem duas finalidades: a expressão de um conceito e a expressão de
uma idéia personificada. Desta forma, a alegoria passa a ser uma forma de expressão. A
alegoria é uma substituição da idéia, ao contrário do símbolo que é o próprio conceito
corporificado.
Nos tempos modernos, a antiga predileção pela representação visual se manifesta
nas representações alegóricas de caráter ético e político, tornando visíveis determinadas
verdades.
A alegoria na Idade Média é didática e cristã, enquanto a alegoria barroca e
neoclássica volta à antigüidade.
Winckelmann, ao analisar as alegorias, recomenda esboçar as imagens com o
máximo de simplicidade, de tal modo que possa expressar a coisa a ser significada com o
mínimo de dispersão. Esta seria a explicação da permanência das alegorias da
antigüidade clássica, exemplo a ser seguido7.
A época barroca fragmentou a alegoria pelo excesso de símbolos8.
A melhor alegoria de um ou vários conceitos é a que é condensada em uma figura
única. Esta personificação alegórica tinha a intenção de tornar as coisas mais
imponentes.
A novidade trazida pelo romantismo foi a introdução das alegorias das emoções e
dos sentimentos, tais como a dor, a saudade, a desolação, a meditação, o amor-materno,
a alegria, a tristeza e outros9. Ao mesmo tempo, introduz as alegorias referentes a novas
realidades políticas e econômicas, como a revolução, a república, a indústria e a
navegação.
No caso das obras de arte alegóricas de nossos cemitérios, verifica-se que,
normalmente, as alegorias são representadas dentro das concepções do classicismo,
mesmo quando representam um conteúdo romântico.
A segunda tipologia encontrada nos cemitérios de Porto Alegre é a alegórica.
As alegorias funerárias aparecem desde os primeiros tempos. À medida em que os
anjos vão se humanizando, ganhando aparência terrena e perdendo suas características
celestiais, a ocorrência das alegorias vai aumentando em número e variedade.
Finalmente, os anjos quase desaparecem e passam a predominar as alegorias.
As alegorias, em geral, são figuras femininas, representadas nos padrões do
academicismo clássico, personalizando a dor, a meditação, a consolação, a saudade, a
desolação, a oração, a fé, a caridade e a esperança. Assim, pode-se constatar que tanto
aparecem alegorias de princípios cristãos como alegorias de emoções. As alegorias do
juízo final (anjo com trombeta) e da morte (figura segurando uma tocha para baixo)
também aparecem em todo o Rio Grande do Sul.
2.3.1 Os cemitérios como indicadores da evolução econômica e dos padrões da
população local
Através dos túmulos, podemos verificar o potencial econômico da cidade nas suas
várias fases. Sepulturas pobres revelam fases menos prósperas, sepulturas ricas,
revelam fases de crescimento econômico.
Nos cemitérios pesquisados, os mausoléus, que seguem o modelo tradicional
brasileiro de mausoléu-capela, são, em sua maioria de construção recente, revelando que
nas últimas décadas o potencial econômico da cidade aumentou. Os túmulos maiores e
mais ricos correspondem à elite local. Nota-se, também, uma tendência de maior
organização do espaço cemiterial nos últimos tempos. Ultimamente em algumas regiões
do Estado estão aparecendo os mausoléus-casas.
2.3.2 Os cemitérios como fonte reveladora da perspectiva de vida
Fazendo um levantamento estatístico no período de vida registrado nos túmulos,
podemos constatar qual é a média de vida dos vários grupos locais: homens/mulheres,
pobres/ricos, etc.
2.3.4 Os cemitérios como fonte reveladora das posições da população local perante a
morte
Em geral, as inscrições tumulares, fotos e decoração das sepulturas são
reveladoras de como a população elabora a morte de pessoas próximas e como o morto é
visto pelo seu grupo familiar e social. As inscrições evidenciam uma idealização do morto
que é, muitas vezes, apontado como exemplo. As fotos quase sempre mostram os mortos
mais jovens e saudáveis, forma de esconder a realidade da morte. Há, também, visões
diferentes da morte, se o morto for criança, jovem, mulher ou homem.
Encerrando esta análise sucinta dos cemitérios como fonte histórica, podemos
afirmar que os mesmos são uma das fontes escritas e não-escritas mais ricas que o
historiador, o sociólogo e o antropólogo têm ao seu dispor para conhecer uma região.
BIBLIOGRAFIA
ALDRICH, Virgic. Filosofia del Arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
ALMEIDA, Antônio Rocha. Vultos da Pátria. Porto Alegre: Editora Globo, 1965. V. III.
ANTONACCI, Maria Antonieta. A Revolução de 1923: as oposições na República. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1979.
ARIES, Philipe. L’Homme devant la mort. Paris: Editions du Servil, 1977.
BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/data.
BAZIN, Germain. História da Arte. Lisboa: Editora Martins Fontes, 1976.
1Cemitério: palavra de origem latina, significa lugar onde se dorme.
2 Endogamia: casamento dentro do grupo familiar. Exogamia: casamento fora do grupo
3KEMPIS, Tomas. Imitação de Cristo. In HINKELAMMERT, As armas ideológicas da morte, p. 252.
4No túmulo de Júlio de Castilhos, além dos lemas positivistas, aparece a alegoria da Pátria cobrindo o túmulo com a
Bandeira Brasileira
5No túmulo do Senador Pinheiro Machado aparecem as alegorias da Pátria Republicana, a história e as novas
gerações.
6Cemitério Santa Casa, em Porto Alegre.
7WINCKELMANN.
In Reflexões sobre a Arte Antiga, p. 39, afirma: “O único meio de nos tornarmos grandes e, se
possível inimitáveis, é imitar os antigos”.
8Para READ, in O sentido da Arte, define o símbolo como “A Arte de escolher analogias para idéias abstratas...”, p. 135.
9BENJAMIN, Walter. In Documentos de cultura e Documentos de Barbarie, p. 18. “O classicismo tem uma tendência
bastante clara a fazer a apoteose da existência num indivíduo cuja perfeição não é apenas Ética, um traço tipicamente
romântico vem a ser a colocação desse indivíduo perfeito dentro de um processo infinito, mas sagrado”.
1
Crônica de uma morte anunciada: o Cemitério do Catumbi (RJ)
Henrique Sérgio de Araújo Batista
Doutorando em História Social (PPGHIS – UFRJ)
Resumo
O uso da pedra na construção de memória não garante sua perenidade. Na peleja entre o lembrar
e o esquecer, nas necrópoles, o suporte material sofre não só o desgaste da chuva e do
inclemente sol, mas principalmente a ação dos homens. O cemitério do Catumbi perde, a partir do
final do século XIX, lugar privilegiado de construção de memória de certa elite de emigrantes
portugueses e seu mais pomposo mausoléu, o do visconde de Guaratiba, foi demolido, assim
como o de seu sobrinho (2º barão de Guaratiba) na década de oitenta do século passado.
Palavras-chave: Memória; Patrimônio; Cemitério.
Clemilda Silva, uma babá de 49 anos, possivelmente jamais imaginaria que
seria atingida por um tiro depois de morta. Mas, uma bala perdida, talvez de fuzil,
disparada do Morro da Mineira, vizinho ao Cemitério do Catumbi, onde estava
sendo velada, na capela H, estilhaçou a vidraça da janela, atravessou o caixão e
alojou-se em sua barriga. O jornal “Povo”, em sua edição de 27 de julho de 2005,
estampa na primeira página “Bala perdida atinge até defunto”(1). Indignada,
quando a ocasião pedia a dor do luto provocada por um prosaico e fulminante
2
enfarte, Maria de Lourdes Pereira da Silva, irmã da morta, exclama “Onde já se
viu? Nem na hora da morte há sossego! Depois de morta, levar um tiro. Será que
nem na hora da morte tem direito à paz?”. Cenário onde foram erguidos,
principalmente na segunda metade do século XIX, suntuosos mausoléus, o
cemitério do Catumbi tornou-se não mais território onde a morte, fim último, não
mais reina absoluta, mas palco da violência urbana com outros senhores, e
distintas mortes.
Denunciando o que considerava um grave ataque a Memória Nacional,
Ariosto Berna escreve a ministra da Educação e Cultura, Esther Ferraz, em 13 de
junho de 1984. Neto de José Berna, o marmorista responsável pelo mausoléu de
Joaquim Antonio Ferreira, 1º barão e depois visconde de Guaratiba, Ariosto Berna
pede abertura de sindicância para investigar a venda criminosa e demolição do
referido túmulo que fora até mesmo visitado por D. Pedro II . Em correspondência
não datada(2) ao presidente da Fundação Pró-memória Nacional, Marcos Vilaça,
Ariosto Berna denuncia novamente o desmantelamento do jazigo do visconde de
Guaratiba acreditando se tratar de um caso para inquérito policial pois soubera
que seriam construídos trinta e um túmulos na mesma área onde fora erguido, de
acordo com Clarival do Prado Valladares, o mais pomposo mausoléu do cemitério
da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula, no
Catumbi.
A família do Visconde de Guaratiba, falecido em 1859, enviou um
representante a Gênova, cidade na qual, segundo Ariosto Berna, os mortos se
sentem ofendidos, se não merecerem a homenagem de um artístico mausoléu,
para convidar o escultor Monteverde(3) para vir ao Brasil executar o mausoléu.
Alegando não poder se afastar da cidade, o artista indicou outro para substituí-lo –
seu melhor discípulo José Berna, filho do também escultor João Berna, que havia
sido laureado com a medalha de ouro pela Academia Real de Belas Artes de
Genova. Aceitando o convite, Berna parte para o Brasil.
Após a aprovação da concepção do mausoléu, que, em sua parte central,
encontrava-se a escultura jacente do titular do Império sobre um sarcófago
sustentado por quatro anjos ajoelhados sobre almofadões, foi firmado o contrato
de execução no valor de cerca de noventa contos de réis e o escultor retorna á
Itália objetivando a compra do mármore de Carrara,
formar uma equipe de
3
artífices para auxiliá-lo na execução da obra e também para trazer a esposa,
tendo, já no rio de Janeiro, instalado sua oficina de mármore na rua da Ajuda no
número 17(4).
Intitulando-se herdeira – como descendente direta – do visconde de
Guaratiba, Celeste Ferreira Amorim, e alegando problemas financeiros para pagar
as diárias do quarto duplo onde vivia no Hospital Geriátrico São Sebastião
consegue judicialmente a venda do mausoléu. Não se sabe como a requerente
provou sua descendência já que o visconde – conforme testamento (5) publicado
no Jornal do Comercio era solteiro. Todavia Celeste Ferreira Amorim (6) afirmava
que o principal herdeiro do visconde – o segundo barão de Guaratiba – era filho do
referido visconde fruto de um relacionamento que o mesmo teria tido com sua
governanta.
Somente o acesso à petição judicial para a realização da alienação poderá
indicar os probantes argumentos da autora da ação, mas em seu testamento o
visconde intitula como um de seus herdeiros e testamenteiro o seu sobrinho
Joaquim José Ferreira – “Cumpridas estas disposições, o resto de seus bens será
dividido em duas partes iguaes, uma das quaes em favor de Joaquim José
Ferreira, filho de sua irmãa Anna Maria, e a outra em favor de Rodrigo Pereira
Felício, filho de sua sobrinha Maria Benta, aos quaes por esta forma institue seus
herdeiros, e por morte destes a seus sucesssores”(7).
Quando de reunião do Conselho Consultivo da SPHAN, em 06 de agosto
de 1984, o conselheiro e historiador Pedro Calmon inicia sua intervenção
afirmando que, se vivo fosse, seria Clarival do Prado Valladares a tratar da
preservação da arte existente nos cemitérios brasileiros. Depois de protestar
contra a destruição do mausoléu do citado nobre “atentando sofrido pelo
patrimônio artístico e tradicional do Rio de Janeiro”, Calmon clama por ações que
impeçam a demolição de outro túmulo da família Ferreira – o do 2º barão de
Guaratiba: “Que fazer? Intervir (é o que requeiro) junto à SPHAN, aqui
representada por nosso dinâmico e ilustre Marcos Vinicios Vilaça, para que de
imediato interpele a Irmandade a que pertence o cemitério, notificando-a de que
perpetuas são as sepulturas assim classificada, nem há descendentes ou
herdeiros que as retomem sem a indispensável decisão judicial, que os
reconheça. E em complemento a essa providencia sumária (e inadiável), promova
4
o tombamento, para o devido resguardo legal, dos sepulcros que por seu valor
histórico
(grandes
personagens)
e
artístico
(escultura
merecedoras
de
conservação) sejam dignos de cautela e zelo que amparam os bens
constitucionalmente isentos de alienação e abandono. Outrossim poderá a
SPHAN organizar um ante-projeto de lei que supra no particular as omissões da
legislação existente, visando à preservação que recomendamos, como essencial
à política de defesa e honra da memória nacional”.
Joaquim Antônio Ferreira, O HOMENAGEADO
Mas, quem seria o homenageado com tamanha magnificência? Ao chegar
ao Rio de Janeiro,em 1796, com 19 anos, nascido em Valença do Minho em
Portugal, o futuro visconde de Guaratiba foi trabalhar com o comerciante João
Gomes do Valle. Essa ligação determinará sua trajetória comercial que o levará a
ser o responsável por mais de trinta por cento de todas as expedições do trafico
negreiro, no período de 1811-1812 e 1821-1830, Joaquim Antonio Ferreira traficou
25.850 escravos em 82(8) dessas expedições(9).
Como sociedade de Corte, o enriquecido Joaquim Antonio Ferreira, visando
desvincular-se da pecha de “negreiro” e adquirir certa respeitabilidade em sua
5
ascensão social nobiliárquica, canaliza sua fortuna em atividades socialmente
respeitadas, como o investimento em prédios urbanos e transforma-se em um dos
maiores beneméritos da Santa Casa de Misericórdia, pois, de acordo com
Valladares “o mercado de escravos carecia e procurava, sobretudo, o respeito
público. Seus gestos de caridade tinham que ser bem maiores e desafiantes que
os dos latifundiários de bens de raízes, mas de economia imolada”(10) E tais
vultuosas doações para irmandades e obras de caridade formam o principal eixo
da construção de uma memória, com seus embates e suas estratégias de
legitimação.
Nem a morte interrompeu suas doações para a Santa Casa, e para
irmandades da quais era filiado, mas, apesar de também ser da confraria
proprietária do Cemitério do Catumbi, não deixou, para a mesma, nenhum legado.
De um total de quase noventas contos de réis, não existe um centavo sequer para
a confraria de São Francisco de Paula e nem mesmo na notícia de sua morte
publicada no Jornal do Commercio existe referência à tal filiação – “Pertencia as
irmandades de Nossa Senhora do Carmo, S. Pedro Santíssimo Sacramento e
almas de Santa Rita, da Santa Casa de Misericórdia, de Nossa Senhora das
Dores, da Candelária e do Senhor dos Passos da capella imperial”(11). A escolha
do Cemitério do Catumbi, mesmo quando já funcionava o da Santa Casa de
Misericórdia, é um seguro indício da importância do mesmo para os portugueses
que cá enriqueceram e tornaram tal necrópole a preferida dessa elite em busca de
afirmação social e sedenta de títulos de nobreza.
O cemitério do Catumbi ocupa uma área que se inicia ao pé e se estende
pela encosta de um morro. Devido às características geológicas do terreno os
artefatos tumulares foram erguidos seguindo tais delimitações. No primeiro plano
da necrópole que compreende o espaço do portão principal até o início do morro
por ser uma área alagadiça sujeita a inundações(12) foram fixados os jazigos, ao
longo da alameda central, que existiam nos jardins da igreja da Ordem. A escolha
do local considerou tais características, e o terreno adquirido situava-se em plano
elevado (chamada de “Secção primeira”, mas que corresponde a um nível
intermediário entre o primeiro e o segundo e inclinado plano). Erguido nesse local,
o mausoléu seria visto por todos que passassem próximo ao cemitério, e até
mesmo a uma certa distância se descortinariam as esculturas que o ornavam.
6
Um pouco mais de um mês após a intervenção de Pedro Calmon,
Domingos de Lima Bernasconi, em 18 de setembro, dirige-se ao sub-secretario da
sub-Secretaria do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional, Irapuan Cavalcante de
Lyra, informando que a demolição do mausoléu do 2º barão de Guaratiba, por ele
adquirido junto a Celeste de Andrade Ferreira Amorim e demais herdeiros havia
sido paralisada por ordem da administração do cemitério. Tal paralisação,
segundo a administração, fora determinada por telegrama, de 05 de setembro, de
Irapuan Lyra, pois a referida construção passava por um processo de
tombamento.
Alega Bernasconi que na proposta de compra apresentada aos herdeiros
constava expressamente a pretensão de demolir o jazigo e, em seu lugar, erguer
carneiros perpétuos; todavia, o adquirente preservaria os restos mortais
depositados no jazigo. Dizendo-se “confuso”, pois, segundo a administração da
necrópole, não existiria o precedente de um artefato tumular tombado pelo
Patrimônio, Bernasconi emite negativo parecer sobre os atributos artísticos e
históricos da sepultura em questão e alerta ao órgão responsável pelo zelo desse
patrimônio a existência, no Catumbi, de túmulos que se enquadram nesses
atributos: “Confuso sim, pois não consegui entender esse súbito interesse por
uma Capela que. No meu modesto entender não tem valor artístico e histórico.
Artisticamente existem muitas outras Capelas e Mausoléus, verdadeiras obras de
arte abandonadas. Historicamente, existem nesse Cemitério sepulturas onde
repousaram figuras das mais ilustres da nossa história. Cunha Barbosa, Teófilo
Otoni, Barão de Mauá, Catulo da Paixão Cearense, maestro Francisco Braga e
dezenas de outros vultos aí foram sepultados sem que suas sepulturas
merecessem desse órgão o resguardo de um Tombamento para protegê-las de
futuras demolições”.
Para alguém que estava preocupado com os prejuízos financeiros de um
possível tombamento, Bernasconi não só se apresenta com um fundamentado
conhecimento de representantes das elites sepultados no Catumbi, como também
ousa alertar e ensinar aos responsáveis pela proteção do patrimônio histórico e
nacional como os mesmos deveriam se portar. Ou seja, realçava a importância de
se proteger o que ele estava a destruir.
7
Todavia, seu mais contundente argumento para a demolição do mausoléu
estaria na origem do dinheiro que possibilitou tal investimento em mármore: o
tráfico negreiro. Invertendo e tornando visível um dos motivos inaugurais do
investimento da família do visconde de Guaratiba em obras de caridade e
ostensivos jazigos, Bernasconi, com surpreendente argumento, traz motivações
éticas para essa destruição. Tal atividade atingia, não somente sólidos jazigos,
mas principalmente uma memória familiar que estava a perder, com tais
demolições, seu principal suporte pois, como afirma o historiador Fernando
Catroga, a memória nunca se desenvolverá, no interior dos sujeitos, sem suportes
materiais, sociais e simbólicos de memórias”(13).
Na luta entre o olvidar e o lembrar, o branco mármore de Carrara vê-se
tingido de flamejantes e acusatórios tons avermelhados do sangue dos mais de
vinte e cinco mil africanos traficados por Joaquim Antônio Ferreira. As tentativas
de purificar e apagar as origens da imensa fortuna dessa família sofrem incisivo
ataque de um outro comerciante que busca, não negociar com carne e sangue,
mas com matéria tão vital quanto: a memória. Afinal, o esquecimento é um tipo de
morte.
Todavia,
surge,
em
1985,
outro
guardião
da
memória
familiar.
Apresentando-se, em 28 de maio de 1985, como trineto do visconde de Souto, e
sobrinho-trineto do Duque de Caxias, Francisco Souto Neto envia correspondência
ao então ministro da cultura Aluísio Pimenta para denunciar o abandono do que
intitulou de “setor histórico” do cemitério do Catumbi. Ao levar, no inicio de 1985,
flores aos túmulos de seus antepassados, Souto Neto informa que foi necessário
“derrubar mato cerrado, encontrando os jazigos dos nossos vultos históricos
violados, as lapides quebradas, os mármores fragmentados, as campas rompidas,
e os túmulos, inúmeros deles, abertos contendo em seus interiores lixo e cacos de
garrafas, ossadas humanas expostas, vegetação e até arvores frutíferas
nascendo de dentro de alguns, restos de caixões mortuários usados, com
pedaços de roupas, empilhados ou esparramados pelo caminho, tudo isso em
meio a quase intransponível matagal de quase dois metros. Para chegar ao
tumulo de meu trisavô, tive que derrubar mato com as mãos nuas, para ir
encontrá-lo danificado e cheio de sacos plásticos de lixo, contendo restos de
8
outros mortos. E é ali eu estão sepultados os nossos grandes vultos históricos!
Isso jamais poderia ocorrer numa nação que se pretenda civilizada”.
Diante desse quadro, Souto Neto apresentou denuncia ao interventor da
Venerável Ordem Terceira e ao cardeal D. Eugenio Sales. Todavia, quando em 13
de março de 1985, o Jornal do Brasil publica matéria sobre o leilão, do acervo da
igreja de São Francisco de Paula, determinado judicialmente, para pagamento
das dividas da referida irmandade, resolve, segundo o mesmo, iniciar um
movimento para preservar a memória nacional e sensibilizar o IPHAN a agilizar
seus estudos, que já durariam vinte anos, para o “o tombamento do Cemitério do
Catumbi, antes que ele desapareça, irreversivelmente”. Um dos motivos que
levaram Souto Neto a apresentar sua denuncia ao então ministro foi, ainda de
acordo com o denunciante, a falta de interesse das autoridades competentes. Ao
contrario do emocional quando da interpelação ao interventor da confraria, outros
motivos fundamentaram sua opção - a razão e o patriotismo que o fizeram a levar
“o assunto às últimas conseqüências, procurando evitar o prima do escândalo,
mas tentando abrir um amplo diálogo nacional”, pois a causa, continua, não seria
só dele, mas de “todo cidadão consciente”.
Imbuído desse sentimento cívico, Souto Neto divulga sua denuncia em
jornais do Rio de Janeiro e de Curitiba onde mora, e, objetivando o debate
nacional em torno de questões da memória, escreve para a apresentadora Hebe
Camargo cujo programa era transmitido pela rede Bandeirantes de televisão.
Como sugestão para um futuro programa da apresentadora, indica o tema da
“MEMÓRIA NACIONAL” que, partindo do Cemitério do Catumbi, discutiria
questões sobre memória e cultura. Como partícipes do debate, sugere Souto
Neto, o presidente do IPHAN e a atriz Maria Fernanda, filha de Cecília Meireles.
Com elogios a apresentadora, Souto Neto encerra esperançoso de que “o
programa“Hebe” possa ser o mais precioso instrumento para que se sensibilizem
as autoridades a influir sobre os destinos daquele fragmento de nossa Historia,
sou-lhe gratíssimo pela atenção para esta batalha em prol da preservação de
nossa Memória, uma causa que, espero, venha a ser, um dia, comum a todo
brasileiro”.
O incansável Francisco Souto Neto, em 29 de julho de 1985, escreve para o
subsecretário do Patrimônio, Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, pedindo
9
informações sobre o processo de tombamento do “setor histórico” da necrópole.
Tal solicitação seria respondida pelo arquiteto Umberto Napoli que seria o autor de
significativo parecer defendendo o tombamento do Cemitério do Catumbi. Em
ofício a coordenadora do setor de Tombamento da D.T.C., em 30 de agosto de
1985, Sra.Dora Alcântara, Napoli condena a destruição do mausoléu do 2º barão
de Guaratiba – “É portanto, acertado dizer que a demolição deste túmulo, ato
lamentável para a memória nacional, não invalida o seguimento dos estudos para
tombamento, nem tampouco desmerece as qualidades excepcionais do conjunto
restante, alertando-nos do perigo eminente de desaparecimento desse tipo tão
representativo de arquitetura”.
Introduz Napoli um ponto fundamental - a destruição de um tipo de
sepultura e de estatuária tumular, pois, não mais se constroem cemitérios como o
do Catumbi. Ao contrário de uma difundida igualdade proporcionada pela morte,
as necrópoles não só reproduzem as desigualdades sociais das cidades dos vivos
(seus construtores), mas também criam possibilidades de novas elaborações. São
“as relações de poder que estruturam o território dos mortos, que assim são
celebrados não tendo somente em vista a salvação da alma, mas também,
através da ilusão de perenidade da memória, a confirmação da posição social dos
vivos”(14). A ereção de mausoléus inspirados nos modelos clássicos (e até mesmo
egípcios) faz parte da constituição dessa trama de poder, legitimação e distinção
social, pois, em meados do século XIX, descobre-se outra forma de “valorização
social, de aquisição de respeitabilidade: a jactância tumular”(15). Para obtenção
dessa legitimidade vinculada àquelas civilizações, buscam-se em um passado
longínquo, como no esplendor da Roma Imperial, os símbolos para perpetuar o
nome e família(16). Não se rende homenagem somente ao parente morto, mas ao
que ele significou em vida. E, de certa forma, trata-se de uma modalidade de
autocelebração: “O homem morto ainda é, de certo modo, homem social. E, no
caso de jazigo ou monumento, o morto se torna expressão ou ostentação de
poder, de prestígio, de riqueza dos sobreviventes, dos descendentes, dos
parentes, dos filhos, da família” (17).
Passados mais de dez anos do parecer de Napoli, em 24 de março de
1997, a chefe de Divisão de Proteção Legal, Cláudia Girão Barroso pede a
abertura de processo de tombamento do Cemitério do Catumbi ao Dr. Sabino
10
Barroso, diretor do Departamento de Proteção do IPHAN – “Entendemos que
cumpre atender, ainda que tardiamente, ao pedido de tombamento apresentado
em 1985. (...) recomendamos que seja dirigido ao Departamento de Identificação
e Documentação o pedido de instauração do processo com a titulação “Setor
Histórico da (sic) Cemitério do Catumbi, no Município do Rio de Janeiro,
Estado do Rio de Janeiro”.
Finalmente, em 16 de maio de 1997, é enviado um ofício, pelo citado diretor
do Departamento de Proteção, a Francisco Souto Neto, que, com sua ritualização
revificadora (18) da memória familiar ao visitar e levar flores aos seus mortos, em
um lugar por excelência de memória (19), teve seu pedido de tombamento
instaurado sob o numero 1.390 – T-97.
O cemitério do Catumbi perdeu lugar privilegiado de construção de memória
de certa elite e a memória do visconde de Guaratiba e de sua família seus
principais suportes - os títulos de visconde e 2º barão de Guaratiba adornam um
dentre vinte oito outros erguidos na área onde antes se firmava apenas o do 2 º
barão. O mármore de Carrara foi substituído por granito – iguais a outros em seu
redor, e as águias dos brasões dos referidos nobres voaram para outras paragens.
Dois anjos que pousavam na cúpula do mausoléu do visconde de Guaratiba,
assim como partes de sua balaustrada, hoje, adornam um túmulo construído na
centúria passada. E a estátua jacente do visconde que ficava ao centro do
mausoléu, com suas condecorações e medalhas, dorme o sono eterno na reserva
técnica do Museu Histórico Nacional.
Se, como afirma Françoise Choay, mesmo combinada com medidas penais,
uma lei não basta para a proteção do patrimônio, pois a preservação desses
monumentos antigos é “antes de tudo uma mentalidade” (20), a preservação dos
artefatos tumulares passa necessariamente pela problematização em torno das
atitudes frente à finitude. Se, de acordo com Philippe Áries (21), a morte,
principalmente, a partir da segunda metade da centúria passada, tornou-se um
assunto interdito, a proteção dos jazigos, ou a ausência de interesse em preserválos, antes de ser somente uma problemática a cerca do estatuto artístico desses
túmulos, é também uma questão de qual seria o lugar – ou lugares, da morte, nas
sociedades contemporâneas.
11
Esta é uma escrita em aberto, sem ponto final, sem conclusões. Trata-se de
crônica de uma morte (ou mortes) infelizmente ainda anunciada.
NOTAS
∗ Todas as citações com tal símbolo (∗) fazem parte do pedido de tombamento instaurado no IPHAN sob o
numero 1.390 – T-97.
1. Jornal Povo, ano X, nº 3364.
2. A data de registro da correspondência no gabinete do SPHAN (RJ) é 26 de julho de 1984.
3. Monteveverde é o autor de várias esculturas existentes no cemitério de Staglieno como o Monumento Celle
e o Oneto. Neste – reproduzido em cemitérios brasileiros como o da Santa Casa de Misericórdia no Rio
Grande do Sul – um anjo feminino está guardando uma urna funerária, enquanto a mão esquerda segura uma
trombeta invertida que provavelmente será tocada no dia do Juízo Final, a esquerda se apóia dramaticamente
em seu colo desnudo.
4. Informações retiradas de manuscrito da família Berna que foi doada a Sra. Marisa Guimarães Dias e desta
para mim.
5. O testamento do visconde foi feito em 26 de junho de 1852.
6. Jornal O Globo, de 05 de agosto de 1984.
7. Jornal do Commercio, nº 72, de 13 de março de 1859.
8. No período de 1811-1812 e 1821-1830, Joaquim Antonio Ferreira traficou 25850 escravos. FLORENTINO,
Manolo Garcia. Em costas negras : uma historia do trafico atlântico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro : seculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional, 1995.
9. Joaquim Antonio Ferreira também redistribuía os cativos - “Dos cinco maiores redistribuidores de escravos
para as cidades litorâneas e do interior fluminense, três (Joaquim Antônio Ferreira, Diogo Gomes Barroso e
Tomé José Ferreira Tinoco) eram consignatários que haviam recebido escravos diretamente da África, sendo
responsáveis por 22,7% do total de cativos redistribuídos”. FLORENTINO, Manolo Garcia. Em costas negras,
op. cit., p. 146.
10. VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. Rio de Janeiro: Conselho
Federal de Cultura - MEC, 2 v, 1972, p. 896.
11.Idem.
12.GERSON, Brasil. História das ruas do Rio. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000.
13.CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p. 23.
14.CATROGA, Fernando. O cemitério romântico. In: O Neomanuelino ou a reinvenção da arquitetura dos
Descobrimentos. Lisboa: Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses, 1994, p. 82.
15.VALLADARES, Op. Cit., p. 896.
16. PEARSON, Michael Parker apud LIMA, Tânia Andrade. De morcegos e caveiras a cruzes e livros: a
representação da morte nos cemitérios cariocas do século XIX (estudo de identidade e mobilidade sociais).
Anais do Museu Paulista. São Paulo: USP, Nova Série, v.2, 1994.
17. FREYRE, Gilberto. Introdução à 2a edição. In Sobrados e Mocambos. 12a Edição. Rio de Janeiro: Editora
Record, 2000, p. 736.
18. no dizer de Catroga. CATROGA, Fernando. O céu da memória - cemitério romântico e culto cívico dos
mortos. Coimbra: Minerva, 1999.
12
19. como afirma Pierre Nora “Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória
espontânea, que é preciso criar arquivo, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar
elegias fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais”. NORA, Pierre. Entre memória e
história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, 1993, p. 13.
20. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade/Editora UNESP, 2001, p.
149.
21. ARIÈS, Philippe. Sobre a história da morte no ocidente desde a Idade Média. Lisboa: Teorema, 1975.
____. Images de l´homme devant la mort. Paris: Seuil, 1983.
____. O homem diante da morte, v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
____. O homem diante da morte, v. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
Sobre cemitérios e símbolos: a Região dos Sepulcros conta a fé e conta o
município de Farroupilha/RS
João Luís dos Santos
Licenciado em História pela UCS.
Professor de História, Sociologia,
Filosofia, Geografia, Psicologia e Ensino
Religioso do Colégio Estadual
Farroupilha/ município de Farroupilha/Rio
Grande do Sul.
Áthina Marcks
Aluna do segundo ano do Ensino
Médio do Colégio Estadual
Farroupilha/ município de
Farroupilha/Rio Grande do Sul
Diana Ribeiro Monegate
Aluna do segundo ano do Ensino
Médio do Colégio Estadual
Farroupilha/ município de
Farroupilha/Rio Grande do Sul
Emanuele Flores Pinheiro
Aluna do terceiro ano do Ensino
Médio do Colégio Estadual
Farroupilha/ município de
Farroupilha/Rio Grande do Sul
Resumo
A pesquisa que está sendo desenvolvida no COLÉGIO ESTADUAL FARROUPILHA, no
município de Farroupilha/RS, propõe-se a investigar a religiosidade dos descendentes de
imigrantes italianos através do impacto sofrido frente à morte, das transformações e
adaptações nos ritos funerários, da elaboração dos seus jazigos familiares nos cemitérios, das
frases de despedida e da simbologia empregada nas lápides e no estatuário cemiterial, das
cruzes e suas derivações, entre outros. Trata-se de um projeto transdisciplinar, orientado pelo
Prof. João Luís dos Santos, envolvendo Filosofia, Psicologia, História, Geografia, Sociologia e
Ensino Religioso. O projeto compreende oficinas sobre cidadania, direitos e valorização da
mulher e do idoso, tolerância às diferenças, motivação pessoal e trato interpessoal, work shop
nos cemitérios do município, sob múltiplos olhares e inferências que dialogam com estudos
histórico/sociológicos da realidade local, regional e brasileira, visão de estética e da arte, da
arquitetura, da simbologia, índices/causas de morte na juventude, divisão geográfica espacial e
social etc.
Palavras-chave: Imigração Italiana, Morte, Cemitérios e Símbolos.
Os cemitérios trazem um universo de produções para o visual, para o
“olhar”. Um arcabouço de olhares, leituras e sentimentos em cada elemento da
composição tumular, fazendo através dele, que o espectador - vivo - seja
impactado pela ação das idéias nele empregadas.
1
A pesquisa obstina um olhar sociocultural sobre a imigração italiana, e, o
estudo
da
interação
destes
grupos
sociais,
observado
nos
jazigos
farroupilhenses em interface com outros cemitérios da região e do estado do
Rio Grande do Sul.
“SOBRE CEMITÉRIOS E SÍMBOLOS: A REGIÃO DOS SEPULCROS
CONTA A FÉ E CONTA O MUNICÍPIO DE FARROUPILHA/RS” foi o título
escolhido para o projeto. Região1, segundo a professora Heloísa Eberle
Bergamaschi (2006), não significa apenas um espaço, mas “teatro das ações
humanas” que “reproduz a totalidade social na medida em que estas
transformações são determinadas por necessidades sociais, econômicas
e políticas”. A região, como espaço dentro dos objetos sociais é o que tem
maior imposição sobre o homem, estando presente no cotidiano do indivíduo a
casa, a cidade onde mora, seu entorno, enfim tudo que o rodeia, aquilo que
condiciona a prática dos homens e comanda sua prática social.
Dessa forma, segundo a mesma autora, a sociedade e os indivíduos que
habitam em determinada região se articulam de acordo com formas
particulares de produção e com um conjunto de valores que definem seus
padrões de comportamentos e de ideologia, convivência e identidade cultural.
“SOBRE CEMITÉRIOS E SÍMBOLOS: A REGIÃO DOS SEPULCROS
CONTA A FÉ E CONTA O MUNICÍPIO DE FARROUPILHA/RS” contempla-se
com as premissas de VOVELLE e ARIÈS acerca da morte. Segundo o
VOUVELLE (1991), experimentamos todos, em nossas próprias atitudes em
face da morte, um conjunto de representações e de comportamentos que
remetem a estratificações diferentes. O mesmo diz ARIÈS quando destaca que
a morte é exemplo ilustrativo da possibilidade de diferentes leituras
coexistentes.
A morte é muitas vezes interpretada de momento nivelador e
equalizador, que reduziria os homens ao mesmo destino, é segundo VOVELLE
(1991) uma leitura apresada, pois nada há mais de desigual ou desigualitário
do que a última passagem quando “Os vestígios que ela deixa são
testemunhos para os ricos, porém muito menos para a massa anônima dos
pobres”. Exemplo desta premissa é o estudo do geógrafo Eduardo Rezende
(SP), ele vai nos elucidar sobre os enterramentos no cemitério paulista de Vila
2
Formosa – São Paulo – “aos pobres resta apenas um lugar feio para ser
enterrado2”.
Buscamos resgatar “os traços socioculturais da morte e suas
especificidades” VOVELLE (1991), nos jazigos de imigrantes italianos, em
farroupilha/RS. Seguindo a idéia de VOVELLE, o cemitério é um dos locais
essenciais de compromisso entre o discurso das igrejas e a prática espontânea
dos fiéis. Neste caso focaremos o discurso, rito e costume católico
principalmente. O cemitério é um lugar onde encontramos as vozes dos
pósteros, da família, dos entes amados que nos amaram, lugar do testemunho
anônimo e da presença das visões projetadas pelos vivos para o além-mundo.
Na leitura inicial dos cemitérios escolhidos para a pesquisa foi possível
identificar a hierarquização da morte alertada por VOVELLE (1991), pois ao
lado das fontes escritas, as iconográficas, (e neste projeto pesquisamos as
cruzes) adquirem uma importância fundamental na interpretação da morte e na
compreensão da História como Processo.
“A história tradicional oferece uma visão de cima, no sentido de que tem
sempre se concentrado nos grandes feitos dos grandes homens, estadistas,
generais, ou ocasionalmente eclesiásticos. Ao resto da humanidade foi
destinado um papel secundário na trama da história”. (BURKE, 1992)
A História era vista como resultado exclusivo da ação heróica de
príncipes, generais, reis, banqueiros e presidentes.
Jacques Le Goff em sua biografia do rei francês Luis IX: “São Luis não
caminha imperturbavelmente rumo a seu destino de rei santo, nas condições
do século XIII e segundo os modelos dominantes de seu tempo. Constrói-se a
si próprio e constrói sua época, tanto quanto é construído por ela. E essa
construção é feita de acasos, hesitações, de escolhas”. (Le Goff, J. São Luis.
Biografia. Rio de Janeiro: RC, 1999, p.23).
Nos cemitérios também encontramos a presença da memória política,
social, étnica e cultural da comunidade. Como o mundo Ocidental ergueu-se
sobre a herança Greco/Romana nos nossos cemitérios. Esta herança aparece
pela preferência do estilo clássico. Em Farroupilha podemos encontrar algumas
destas características romanas nos cemitérios:
3
Catacumbas nas paredes: no cemitério municipal encontramos grande
área com este tipo de sepultura, que crescem cada vez mais pelo número de
pessoas que procuram este tipo de sepulcro.
Mausoléu/Capela: encontramos principalmente na entrada principal do
Cemitério Público Municipal de Farroupilha, pois são sepulturas mais antigas,
quando este modelo era usado mais frequentemente.
Estelas: algumas sepulturas apresentam uma lápide com inscrições ou
informações sobre a pessoa ali sepultada.
Colunas: alguns sepulcros apresentam variações de uma ou duas
colunas que podem ser romanas (toscana e composta) ou gregas (Dóricas,
Jônicas, Coríntia).
Símbolos: é mais comum vermos anjos portando diversos componentes
da simbologia pagã romana como flores (saudade), papoula (sono eterno),
também podemos ver alguns componentes da simbologia romana dos
primeiros cristãos tais como a cruz (salvação, fé) e o peixe (Cristo).
O que um povo espera de uma nova terra?
O que representa o desenho de duas retas que se cruzam?
Às vezes um pequeno símbolo, tem uma infinidade de significados para
cada pessoa, e cada significado tem uma infinidade de explicações para existir.
Os imigrantes italianos chegaram a região de Nova Milano e Farroupilha
no ano de 1875 em busca de um recomeço numa nova terra.
Os italianos eram acima de tudo um povo de muita fé, que trouxeram
consigo suas crenças, seus símbolos religiosos e contribuíram para transformar
a cultura brasileira no que ela é hoje.
“No momento em que os cemitérios preservam a memória das
sociedades, também evidenciam os contextos sob o ponto de vista sócioeconômicos. No período
de 1889 a 1930, observamos uma profusão de
túmulos que celebravam o enriquecimento da burguesia. Desse modo os
túmulos expressam as diferenças sociais, através de obras suntuosas,
marcando identidades particulares”. (THIAGO ARAÚJO, 2006)
Segundo o mesmo historiador, “os cemitérios reproduzem a geografia
social das comunidades e definem as classes locais. Existe a área dos ricos,
onde estão os grandes mausoléus, a área da classe média, em geral com
catacumbas na parede, e a parte dos pobres e marginais, constando apenas
4
um número de classificação. A morte igualitária só existe no discurso, pois, na
realidade, a morte acentua as diferenças sociais. As sociedades projetam nos
cemitérios os seus valores, crenças, estruturas sócioeconômicas e ideologias.
Deste modo, a análise permite conhecer múltiplos aspectos da comunidade,
constituindo-se em grandes fontes para o conhecimento histórico”.(THIAGO
ARAÚJO, 2006)
Segundo Tiago Araújo (2006) os túmulos podem demonstrar fontes de
informações culturais, artísticas, sociais e ideológicas, de forma a analisar a
construção de uma ou mais identidades culturais contidas nos cemitérios.
Sempre foi o desejo dos agraciados pelo sistema em distinguirem-se por
uma marca (supostamente) “perene”; por um objeto de consagração e
propaganda de seus feitos sociais e ou políticos - o Túmulo – pela intenção de
comparar-se aos ilustres vultos da história Oficial.
Segundo Harry Bellomo (2000) no Brasil, durante o período colonial, a
tradição determinava que os mortos fossem enterrados nas igrejas, o mais
modestamente possível. A morte era vista em uma perspectiva de humildade,
de simplicidade, de despojamento. Era a grande niveladora dos seres
humanos, diante da qual todos os orgulhos e vaidades desapareceriam.
Portanto, os túmulos colocados nas igrejas coloniais eram muito semelhantes:
uma inscrição, uma lápide, às vezes um brasão para destacar a origem nobre
da família do morto, eram suficientes.
Apontando para um olhar sociológico sobre as obras de arte contidas
nas necrópoles, Clarival do Prado Valladares em 1972 faz um levantamentodos
principais cemitérios brasileiros e suas esculturas. Ele evidencia os cemitérios
de São Paulo e Rio de Janeiro. Esta é a obra mais citada pelos pesquisadores
do tema.
Maria Elízia Borges tem sua pesquisa voltada à produção do estatuário
funerário no Brasil, analisa especificamente o trabalho dos marmoristas
italianos na região de Ribeirão Preto no estado de São Paulo no período de
1890 a 1930.
O geógrafo Eduardo Rezende analisa as atividades sócio-espaciais e
geográficas do cemitério de Vila Formosa em São Paulo, analisa a igualdade
entre sexos e etnias nos sepultamentos. Segundo o autor, o cemitértio de vila
Formosa é de aspecto símples, e de acordo com a consepção dada pelo poder
5
público ele é de terceira classe, criando assim uma hierarquia social, onde os
pobres saão enterrados em um lugar feio. Ou seja: os ricos podem ter
diferenciações entre os monumentos funerários, mas os pobres conseguem no
máximo uma cova onde se enterrar, o que gera a igualdade.
No Rio Grande do Sul, o estudo mais citado sobre o espaço cemiterial é
a dissertação de mestrado em História (PUCRS-1988) do Professor Harry
Rodrigues Bellomo, intitulada “A Estatuária Funerária em Porto Alegre – 1900 a
1950”. Bellomo analisa a produção da estatuária funerária na capital gaúcha,
Porto Alegre, através dos ateliês e dos artístas, suas influências européias em
relção ao contexto positivista. Bellomo cria um inventário tipológico da escultura
funerária e os divide em três categorias que procuram estabelecer relações
entre as obras funerarias e o seu contexto sócio-político, são elas:
Tipologia Cristã, engloba a transmição da mensagem cristã.
Tipologia Alegórica, envolve as obras alegóricas de sentimentos e de
princípios religiosos.
Tipologia Cívico-Celebrativa que apresenta obras destinadas a celebrar
a memória cívicade grandes vultos do mundo social, político e cultural de Porto
Alegre.
Também organizado pelo Professor Bellomo, está a obra Cemitérios do
Rio Grande do Sul, Arte, Sociedade e Ideologia. A obra traz uma coletânia de
artigos sobre múltiplas abordagens aos cemitérios do Rio Grande do Sul.
Os historiadores Sérgio Silva e Viviane Saballa, na obra Pelotas: A Arte
imortalizada; utiliza da tipologia desenvolvida pelo Professor Bellomo para
analisar o cemitério municipal de Pelotas. Do contexto histórico do periodo
estabelecem uma relação do estatuário, os artistas e os ateliês.
O trabalho sobre o Estatuário em Porto Alegre do historiador Arnoldo
Doberstein, inclui uma analise dos túmulos de expressão positivista no
cemitério da Santa Casa de Porto Alegre.
Fora do Brasil existem estudos relevantes sobre cemitérios e suas
implicações nas diversas áreas do conhecimento. Segundo Tiago Araújo
(2006) um exemplo é a “Association for Gravestone Studies”, sediada em
Greenfield, Massachusetts, USA. A associação foi fundada em 1977 com
finalidade de promover o estudo e a preservação dos túmulos. Define-se como
uma organização internacional com interesse nos túmulos de todos os estilos.
6
Através de suas publicações, conferências, oficinas e exibições, a AGS
promove o estudo dos cemitérios nas perspectivas histórica e artística,
expande a conciência pública do significado dos cemitérios, e incentiva
indivíduos e grupos a estudar e preservar as necrópoles.
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2
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de Vila Formosa. São Paulo: Carterago Editorial, 2000.
O céu por testemunha: morte e sepultamento de escravos recémchegados no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XIX.
Júlio César Medeiros da Silva Pereira
Doutorando em história da Medicina e das
Doenças pela Fiocruz; Diretor de pesquisa do
Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos
Resumo
Este artigo pretende examinar os sepultamentos realizados no cemitério dos Pretos
Novos, a luz da abordagem da história cultural. Buscando analisar os aparelhos
simbólicos partilhados por ambas culturas, a fim de resgatar a especificidade do
referido campo santo e o seu lugar na sociedade brasileira dos séculos XVII a XVII.
Palavras-chave: Morte, Escravidão, cultura, prática religiosa e funerária.
A proposta inicial desta artigo é o de analisar a forma dos sepultamentos
realizados no cemitério dos Pretos Novos que evidenciam a sua especificidade
histórica e reconstruindo uma parcela da história dos africanos que morriam tão
logo desembarcavam no porto do Rio de Janeiro, durante a primeira metade do
século XIX, e que ficaram conhecidos como pretos novos, que era uma
designação dos escravos recém-chegados. Também é nossa intenção
demonstrar a importância da cultura africana para manutenção dos laços de
identidade étnica entre os escravos recém-chegados.
Em Janeiro de 1996, a residência de n.º 36 da rua Pedro Ernesto, os
pedreiros contratados pelo casal, dono da casa, Petruccio e Mercedez, para
fazerem a reforma, não poderiam imaginar o que o destino lhes reservava.
Assustados, os pedreiros informaram ao casal que ossos brotavam do solo a
cada incisão feita no solo. Depois do susto, e de várias conjecturas, chegaram
à conclusão sobre o ocorrido: aquele era o cemitério dos “Pretos Novos” do
qual se havia a muito, perdido a localização, e que Freireyss havia visitado
centenas de anos atrás, o único cemitério do qual se tem notícia de que fora o
destino dos corpos dos escravos recém-chegados ao porto do Rio de Janeiro,
destino dos corpos dos escravos mortos no Valongo, mas voltemos um pouco
no tempo para compreendermos a dimensão deste achado.
Vários viajantes, dentre eles o alemão Freireyss, que esteve no Brasil no
início do XIX, descreveram escandalizados, o Cemitério dos Pretos Novos e a
forma pela qual os escravos eram ali enterrados.1 O terreiro se situava no
antigo caminho da Gamboa, que ficou conhecido como Rua do Cemitério e
mais tarde Rua da Harmonia (a atual Pedro Ernesto). O Cemitério foi criado em
17222 e viveu a sua fase final no período de 1824 a 1830, tendo recebido nesse
intervalo de tempo cerca de 6.122 corpos em um espaço físico menor que 50
braças. Os registros foram arrolados no livro de Óbitos da freguesia de Santa
Rita, responsável pelo campo santo. Nesse livro de óbitos encontramos
principais dados para a elucidação dessa questão.
O crescimento desordenado da cidade, bem como um intenso tráfico
negreiro, presenciado fortemente após a vinda da família Real para o Brasil, faz
com que os habitantes da Corte tenham os mortos por parede meia, gerando
um conflito de interesses onde estavam em jogo, como veremos, o prestígio
dos traficantes de escravos, o poder eclesiástico e a viabilização do discurso
higienista, todos esses elementos contrapostos à imobilidade decisória do
Estado. O cemitério dos Pretos Novos pode se revelar tanto como medidor das
tensões sociais e conflitos de interesses como pode dar indícios de elementos
comuns de toda a sociedade,3 no qual a noção de lucro, religiosidade e cultura
estão definitivamente permeadas pelas ações cotidianas expressas nos fazeres
de pessoas comuns, em suas vidas e, por que não dizer, em suas mortes. 4
O livro de óbitos do cemitério ainda nos indica um outro dado importante:
a origem de cada escravo sepultado. Assim pudemos verificar que quase 90 %
deles eram provenientes da África Central Atlântica, ou seja do grupo banto5 e
que possuíam uma forma diferenciada de entender e de se comportar diante da
morte.6 Na cosmologia congolesa, o mundo encontrava-se dividido em duas
partes que se completavam, ou seja duas dimensões: a do mundo “perceptível”
que seria essa na qual vivemos, e a do mundo “coisas invisíveis”. Eles
acreditavam que qualquer acontecimento excepcional, fosse bom ou ruim, era
fruto de obras realizadas nesse mundo invisível. Além disso, os bantos
praticavam o culto aos ancestrais, no qual a figura dos antepassados era de
suma importância para cada linhagem bem como para o sucesso nas colheitas,
na pesca, e para a manutenção da própria vida.
O Cemitério dos Pretos Novos tem sua história colada à história do Rio
de Janeiro desde a Colônia. Por volta de 1700, o cemitério da Santa Casa não
comportava mais o grande número de enterros de escravos, 7 tendo em vista o
incremento do tráfico que começa a se fazer mais intenso ano após ano.
Segundo Manolo Florentino, entre as décadas de 1710 e 1720, houve um
aumento de cerca de 40% no volume de importações de escravos pela cidade
do Rio.8 Logo, o Governador na época determinou que o cemitério fosse
transferido para o Largo da Igreja de Santa Rita situado em frente à mesma9.
Assim se fez. Naquele momento, o cemitério foi entregue aos cuidados do
padre de Santa Rita o qual se encarregara de lavrar os óbitos em livro e cuidar
das inumações. Entrementes, o Marques do Lavradio, por volta de 1769,
insatisfeito com modo precário pelo qual os escravos eram expostos no
mercado que funcionava próximo ao Paço Imperial e ao longo da Rua 1º de
Março, antiga Rua Direita, mandou que o mesmo fosse transferido para o
Valongo que, hoje compreende a atual zona portuária, formada pelos bairros
da Gamboa e Santo Cristo. Essa mudança do mercado da Praça XV para o
Valongo fez com que o cemitério dos Pretos Novos fosse transportado do largo
de Sta. Rita para a rua que ficou conhecida como a antiga rua do Cemitério,
depois rua da Harmonia e hoje, Rua Pedro Ernesto pertencente ainda à
jurisdição da freguesia de Santa Rita.
Entrementes, No final do século XVIII, a concentração comercial no
local trouxe um aumento populacional intenso,10 fazendo com que o cemitério
fosse cercado de casas. Ocorreu um “adensamento populacional na região do
bairro Saúde, Valongo e da Gamboa, onde morros, encostas e enseadas foram
paulatinamente ocupadas por residências”.11 O entorno do cemitério foi tomado
por casas, geralmente por famílias pobres e que não tinham condição de se
mudar da freguesia de Santa Rita, sobretudo negros libertos que precisavam
estar junto ao porto e ao centro comercial da cidade para poder ganhar alguns
parcos réis. Dessa forma, os vivos, por forças das circunstâncias, se tornaram
vizinhos dos mortos.
Seguir os vestígios do cemitério dos Pretos Novos é, também, seguir os
rastros deixados pelas reclamações e ofícios de queixas contra o mesmo. A
partir de 1820, pode-se encontrar vários protestos que descrevem o cemitério
da pior forma possível, geralmente versando sobre o mau cheiro ali exalado, 12
e acusando-o dos miasmas que grassavam na cidade.13
Não tardou muito e, em 1821, os vizinhos do “indesejável” cemitério
redigiram dois requerimentos endereçados ao príncipe regente, nos quais
pediam que o cemitério fosse transferido para um local “mais remoto”, em
razão dos grandes males” produzidos à população local. O primeiro destes
dizia que os moradores “sofriam” enfermidades, e o segundo destes
requerimentos tinha um teor bem parecido:
Já não podem sofrer mais danos nas suas saúdes. Por causa do
cemitério dos pretos novos, que se acha sito entre eles, em razão de
nunca serem bem enterrados os cadáveres; como também por ser
mito impróprio em semelhante lugar haver o referido cemitério, por ser
hoje ema das grandes povoações....14
Como se pode ver no requerimento a cima, os corpos não eram
enterrados, ou seja, eram deixados à flor da terra, sem nenhum tipo de
cuidado, o que deve ter feito com que os odores dos cadáveres insepultos
incomodassem os vizinhos sobremaneira.
No caso do cemitério dos Pretos Novos, o intendente de polícia João
Inácio da Cunha solicitou ao juiz do Crime do bairro de Santa Rita que fosse
averiguar os fatos. Quando o juiz se dirigiu ao cemitério, teve péssimas
impressões e, mais tarde, responderia em outro ofício o que havia constatado.
Segundo o seu parecer, o cemitério já era pequeno para tantos corpos o local
era “impróprio para semelhante fim”, e, por outro lado, o drama dos moradores
era o de agora, depois do crescimento da cidade, se verem lado a lado a um
cemitério de escravos.
As testemunhas do Valongo foram arroladas e ouvidas pelo juiz do
Crime e todas elas contaram a mesma versão: o cemitério incomodava,
cheirava mal e estava abandonado. Observando o rol de testemunhas, nota-se
que todas eram brancas, apenas um era militar e o restante era em sua maioria
comerciantes que, provavelmente, mais do que as suas saúdes, viram
ameaçados os seus bolsos, não só pelo empobrecimento da região agora
repleto de negros, assim como a certeza de terem os seus negócios arruinados
pela proximidade com um cemitério de escravos novos.15 É importante
observar que esse número de pessoas arroladas como testemunhas não pode
servir como única fonte de amostragem da condição social dos moradores do
Valongo; por certo, esses moradores que redigiram as petições tinham acesso
às informações médicas que circulavam nos meios de comunicação disponível
aos letrados.
No ano seguinte, em 12 de março de 1822, o intendente de polícia se
dirigiu até a Secretaria de Estado para prestar as informações e sugerir
soluções sobre o caso. Em primeiro lugar ele disse que se achava “aquele
lugar já quase todo rodeado de casas.” Em seguida, relatou:
Pelo lado do fundo está tudo aberto, dividido do quintal de uma
propriedade vizinha por uma cerca de esteiras, e pelo outros dois lados
com muí baixo muro de tijolos, e no meio uma pequena cruz de paus
toscos muí velhos, e a terra do campo revolvida, e juncada de ossos mal
queimados.16
Como se pode notar, o cemitério tinha apenas uma cerca de esteiras
como fundo do terreno, paredes laterais baixas que davam ao cemitério a
impressão de inacabado e uma pequena “cruz de paus toscos”, por lembrança
da égide da Igreja naquele local. Em seguida, ele fala do crescimento da
população local e ao mesmo tempo dum tráfico intenso que aumentara
grandemente o fluxo de escravos que adentravam o porto do Rio de Janeiro:
“Se aquele espaço de terreno, e local era suficiente, e próprio para cemitério
dos pretos novos no tempo em que foi para isso destinado, não se pode dizer,
que o é presentemente”17
Em seguida, o intendente relatou as dificuldades de se encontrar um
novo local disponível para este fim e reconhece que o melhor lugar é
justamente próximo ao porto. Por último, o intendente dá as ordens para que se
melhore o enterramento naquele local: “Que se ordene ao vigário da freguesia
da Santa Rita, a cujo distrito pertence o cemitério, que contrate o terreno que
lhe fica contíguo para aumentar o cemitério existente”. 18
Os documentos do Arquivo Geral da Cidade não possibilitaram a
verificação se o cemitério de fato fora aumentado ou se fora trazida uma
“pessoa capaz em fazer enterrar os corpos”. No entanto, as reclamações dos
moradores cessaram pelo menos por um tempo e, entre 1823 e 1828, não se
ouviu mais falar no cemitério.
Em 23 de janeiro de 1829, o editorial do jornal Aurora Fluminense
rompeu esse silêncio e publicou uma matéria contra o “cemitério dos Pretos
Novos”.19 O teor do publicado é praticamente o mesmo de 1822. Voltavam as
mesmas reclamações após seis anos, com os moradores mobilizados
novamente para pressionar o poder público. Mais uma vez os vivos já não
aceitavam conviver “parede e meia” com os mortos.
Outro ponto importante é que o Juiz Bastos, o qual recebera o caso, em
1829, menciona o fato de ter recebido vários requerimentos da parte dos
moradores insatisfeitos que clamavam pela transferência do cemitério, o que
demonstra que, aparentemente, os moradores continuavam mobilizados em
combater o cemitério, a despeito do tempo passado e da luta sem sucesso.
“Covas abertas tanto à superfície do terreno, que apenas um palmo
resta para cobrirem-se os corpos que nelas se lançam aos pares”, 20 afirmou o
juiz, procurando descrever cada vez mais o cemitério mostrando a insensatez
que era mantê-lo funcionando. Entretanto, para a frustração do juiz e dos
moradores do Valongo, a Câmara respondeu que não seria da sua alçada
tomar providências quanto ao assunto, já que a lei de 1828 regulava apenas o
estabelecimento de “novos cemitérios” e não o caso de um cemitério tão
antigo. O requerente não se deu por vencido e, sem demora discordou da
posição da Câmara “dizendo ser da sua atribuição não só a questão de
cemitérios antigos, mas igualmente a inspeção da saúde pública”.21 Não foi
possível determinar se o juiz foi respondido ou não; nesse momento, ele
desaparece de cena sem deixar vestígios, pelo menos aparentes, em relatos
ou ofícios. Em 15 de janeiro de 1830 é criada a Sociedade de Medicina do Rio
de Janeiro.
Em 13 de março de 1830, se deu o último sepultamento no cemitério dos
Pretos Novos, fim do cemitério. As pesquisas podem indicar que o fim provável
do cemitério, não tenha sido ocasionado pela pressão higienista, nem dos
meios de comunicação, ou mesmo fruto do clamor dos moradores. A hipótese
levantada é a de que em 1830, por ter se dado o acordo de proibição de tráfico
de escravos, firmado entre Brasil e Inglaterra, o Brasil tenha sido forçado a
extinguir o campo santo por não poder justificar a existência de um cemitério de
escravos recém chegados da África, em face de, pelo menos em tese, não
haver mais tráfico negreiro.22
Sabemos que, do século XIV até o século XVIII, o local de inumação foi
se diferenciando de acordo com a classe social à qual pertencia o morto, bem
como o seu lugar de enterro e o modo de fazê-lo. Entretanto, a desigualdade
terrena se refletia na hora derradeira em que, a alma iria prestar contas do que
fez por aqui. Entende-se, pois, que logo há separação entre “mortos” e
“mortos”, de sorte que os despossuídos desta vida terrena podiam ser lançados
em um lugar qualquer, sem assistência, nem ritual fúnebre, ou seja, à flor da
terra.
Assim, o Cemitério dos Pretos Novos cumpria o seu papel que era o de
receber os corpos dos africanos que nem chegaram a ser vendidos e por isso,
na hierarquia social deveriam prefigurar em último lugar. Se assim era em vida,
também o deveria ser na morte. Desta feita, o cemitério passou a ser um “lugar
de reprodução simbólica do universo social.”23
Para os escravos recém-chegados morrer sem um sepultamento digno,
ou mesmo sem um sepultamento um corte drástico na manutenção da vida
dentro da comunidade. Morrer dessa maneira significava ficar sem linhagem e
sem honra, portanto, sem uma perspectiva de vida futura ao lado dos seus
antepassados. 24
Além disso, o mar era visto como o um local da travessia para o mundo
do além, ou, como na língua banto, a “Kallunga”, que fazia divisa com o lugar
onde os mortos habitavam, habitados por homens brancos. 25
É nesse sentido que o conhecimento da cultura africana e o seu modo
de encarar a morte nos serve como chave de interpretação para o motivo pelo
qual os escravos buscaram filiação a diversas irmandades, como no caso da
irmandade do Rosário.
26
Em primeiro lugar eles temiam que seus corpos
fossem inumados sem nenhum tipo de ritual, lançados à terra sem nenhum
paramento religioso, não porque temessem as covas da indigência, mas
porque para eles morrer assim significava, antes de tudo, morrer longe dos
seus ancestrais; em segundo, ser sepultado no cemitério dos Pretos Novos
significaria, no pensamento africano, a impossibilidade de reviverem junto aos
seus do outro lado do Atlântico, no continente africano.
Aos escravos, comprados feito mercadorias, fora-lhes vedada a
oportunidade de morrer entre os seus, e por eles serem sepultados. Fora-lhes
negada ainda, uma oportunidade de ser sepultados, ao menos, conforme a
cultura católica, restando-lhes, apenas um poucochinho de terra e um registro
sumário em um livro de óbitos onde nem mesmo seus nomes figuraram, pois
eram chamados pela forma de preto novo, preta nova, moleque novo, molequa
(sic) nova e cria os quais além de possuírem as marcas da ignomínia da
escravidão, possuíam, apenas, o céu por testemunha dos seus corpos que
putrefaziam-se ao relento.
O tema do enterramento pode ajudar a esclarecer o motivo pelo qual os
escravos se inseriam nas irmandades, sob os auspícios da igreja, como que
praticantes dos mesmos ritos e significados. Muitos trabalhos anteriores
julgaram que este fato poderia ser um exemplo de aculturação e até mesmo de
dominação, desprezando ou não levando em conta toda a gama de
articulações e simbolismos dos quais os africanos já eram portadores em
África. No presente texto, evitou-se essa análise um tanto engessada, ao
mesmo tempo em que desviamos o nosso olhar para toda uma bagagem
cultural trazida pelos cativos que, ao chegarem aqui, amalgamaram e
apropriaram-se do que lhes fora concebido para criarem algo novo,
27
diferenciado e único, como no caso das apropriações que fizeram das
irmandades, um espaço legítimo e próprio de sociabilidade escrava,
representante dos anseios de milhares de cativos em terras estrangeiras.
Finalmente, podemos ressaltar que o estudo do cemitério dos Pretos
Novos pode, em certa medida, nos revelar como eram as práticas das
inumações no Brasil, pelo menos do século XVII aos meados do XIX, e mostrar
que, mesmo na hora da alma passar para o além, o cuidado com o corpo inerte
nem sempre foi uma preocupação entre os homens que dominavam esse
poder. Enterramos o “outro” como alguém eqüidistante de nós e como não
merecedor das mesmas considerações que dispensamos aos nossos. Desta
feita, a forma e o lugar no qual se é inumado varia de acordo com a posição
social do morto, o que nos faz lembrar a oração que dizia, certamente,
carregada de outro um sentido: “...assim na terra como nos céus”.
28
Seja qual
for a interpretação que possamos dar a essa frase bíblica, o que nos fica é a
forte sensação de que a desigualdade terrena espelha uma desigualdade
social, onde as práticas inumistas e locais de sepultamento estão carregados
de implicações simbólicas.
Fontes
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro
Livro de Óbitos de escravos da Freguesia de Santa Rita (1824-1830).
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
Códice 58 – 2.1. “cemitério de pretos novos”.
Códice 58-2.2. “Posturas sobre enterros”.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Jornal Aurora Fluminense. nº 145 de 23 de Janeiro de 1829. “Sobre o depósito de
pretos novos e a necessidade de um cemitério”. Loc. Pr- sor 36(2), 1829.
Parecer de João Inácio da cunha, II-34,26.3.
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______________. O Homem Diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
(v.1)
______________. O Homem Diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
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1
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SOARES, Mariza de C. Devotos da Cor. Identidade Étnica, Religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro no Século
XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 143.
3
GINZBURG. Carlo. A Micro-história e outros ensaios. Tradução de Antônio Narino. Lisboa: Difel, 1991.
4
ARIÈS, Philippe. O Homem Diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
5
Nesse trabalho, entende-se por banto um grupo lingüístico de várias etnias africanas que vieram sobre tudo para o Rio
de Janeiro.
6
Para o historiador Robert Slenes a cultura banto é importante posto que o Rio de Janeiro recebera, durante a vigência
do tráfico negreiro, um contingente expressivo de africanos oriundos de regiões que compartilhavam essa mesma
cultura. SLENES, Robert W. ”Malungu, Ngoma Vem!” África coberta e descoberta no Brasil. Cadernos do museu da
escravatura. N.1. Ministério da Cultura. Luanda. 1995.
7
RODRIGUES, Cláudia Lugares dos Mortos na Cidade dos Vivos: Tradições e transformações fúnebres no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, DGD e Informação cultural, 1997. p. 70.
8
FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio
de Janeiro (séculos XVII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 44.
9
FAZENDA, José Vieira. Opus. Cite. p. 350.
10
LAMARÃO, S. T. de Niemeyer. Dos Trapiches ao Porto: um estudo sobre a área portuária do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1991. (Biblioteca Carioca, v.17) p. 29.
11
RODRIGUES, Cláudia. Opus. Cit. p, 71.
12
João Reis, estudando a “cemiterada” na Bahia, chega a conclusão de que a partir de um dado momento, o “cheiro dos
defuntos” começa a incomodar as pessoas, principalmente os defuntos que eram inumados nas igrejas, e os enterrados
no Campo da Pólvora, o qual passou a desfrutar do ódio dos seus vizinhos. In: REIS, João José. Opus Cit.
13
O historiador J. J. Reis alerta que fora justamente no século anterior, séc. XVIII, que se alastrara por toda a Europa,
especialmente pela comunidade científica de França, a doutrina dos “miasmas”, na qual se acreditava que “matérias
orgânicas em decomposição, especialmente de origem animal, sob influencia de elementos atmosféricos”, tais como
calor, direção dos ventos, “formavam vapores ou miasmas daninhos à saúde”, logo os “gazes” emanados dos
cadáveres foram acusados de serem causadores de várias doenças, das quais os moradores do Valongo se queixavam
com freqüência. In: REIS, João José. Opus Cite, p. 75.
14
RODRIGUES, Cláudia. Opus. Cit. p, 75.
15
Ibidem
16
Parecer de João Inácio da cunha, intendente geral de polícia, dirigido a José Bonifácio de Andrada e Silva, sobre as
reclamações dos habitantes do bairro do Valongo, que pedem que seja removido o cemitério dos pretos novos, que se
erguia naquele local. Local: B.N. Rio de Janeiro. Localização: II-34,26.3.
17
Ibidem.
18
Ibidem
19
Jornal Aurora Fluminense. (23 de jan. de 1829. BN. II- 34, 26, 3, )
20
Ibidem
21
RODRIGUES, Cláudia. Opus. Cite. p, 77.
22
Entre 1824 e 1826, foi firmado um acordo contra o tráfico, assinado em 23 de novembro de 1826. No qual o Brasil se
comprometia a extinguir o tráfico negreiro ao fim de três anos. Porém um novo acordo foi tratado para que de 1827, fim
do prazo de extinção, fosse prorrogado até 13 de março de 1830. A partir desta data, os negreiros que estivessem
atuando no litoral africano teriam um prazo de seis meses para retornarem ao Brasil, porém, como se sabe, está lei se
transformou em um verdadeiro engodo, e ficou conhecida como a “lei para inglês ver”. Conf. FLORENTINO, Manolo
Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVII
e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 50.
23
URBAIN, Jean-Didier. La societé de conservation: étude semiologique dês cimetiéres de l’occident. Paris, Payot,
1978.p. 85.
24
SILVA, Alberto da Costa e, A Manilha e o Libambo. A África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira; Fundação Biblioteca Nacional, 2002.
25
Não só a cor branca significava a morte mas também os homens brancos eram tidos como os próprios mortos, uma
vez que habitavam o outro lado da Kalunga. É o que observa Mary Karash quando traz um relato onde um exemplo de
“crença de canibalismo”, presenciado pelo francês Dabadie, que presenciara “gritos agudos” de um “escravo novo”, que
gritava aterrorizado se escondendo em baixo da cama de um hotel. Espantado o francês procurou indagar aos
presentes o motivo do acontecido e de pronto, recebeu explicações de um garçom que lhe afirmara que era comum
entre os africanos recém chegados, a idéia de que seriam literalmente devorados pelos brancos. O escravo retirado de
baixo da cama, ressalta o francês, “tremia da cabeça aos pés” Cf. KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de
Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 78.
26
SOARES, Mariza de C. Opus Cit. p.175.
27
GUINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Trado.
Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
28
Bíblia Sagrada, Mateus cap. VI-9. Parte b.
2
Associação Juvenil de Estudos Cemiteriais (AJEC)
Um sonho conquistado!
Kate Fabiani Rigo
Mestre em História pela PUCRS.
Professora da Rede Particular.
Resumo
No presente artigo, irei relatar a experiência que venho desenvolvendo há dois anos com
alunos de ensino fundamental e médio de uma escola particular da região sul do Brasil.
Considerando que grandes parte das depredações aos túmulos e estatuária dos cemitérios são
executadas por adolescentes que não dão o menor valor para a preservação patrimonial,
considerei importante desenvolver um trabalho informativo sobre o assunto durante minhas
aulas de História, que evoluiu para formação de um grupo de teatro e pesquisa, e por fim,
numa associação de estudos.
Palavras chave: Educação Patrimonial – Cemitério – Artes
A comunicação “Associação Juvenil de Estudos Cemiteriais (AJEC) Um
sonho conquistado!” tem como objetivo apresentar um grupo de pesquisa
cemiterial composto por estudantes adolescentes no Colégio Kennedy. A idéia
de montar o grupo surgiu a partir do interesse dos próprios alunos quando,
durante as aulas de História, o tema cemiterial era abordado e relacionado com
o conteúdo. No começo, poucos se interessaram pela pesquisa e com o
decorrer do projeto, comentários se espalharam entre as turmas. Logo,
contávamos com um grupo de 15 integrantes. Estava então atingido um
objetivo: o que parecia, talvez, tão incomum no ensino médio; a formação de
um grupo de pesquisa extra-classe tendo como tema “O estudo cemiterial”, o
que veio a despertar curiosidade em torno da temática já que a mesma propicia
estudos de cunho histórico-cultural e artístico.
Formado o grupo, foram então definidos encontros semanais, onde
foram apresentadas as possibilidades de pesquisa sobre a temática cemiterial
e uma breve explanação sobre conceitos definidos pela antropologia, história e
arte. Contou-se com a exposição e análise de fotografias de túmulos do
cemitério da Santa Casa de Porto Alegre, onde os alunos estabeleceram um
prévio contato com os objetos de estudo. Com isso tiveram a oportunidade de
desenvolver um novo olhar sobre o que antes era culturalmente visto como
espaço próprio para manifestações de tristeza.
Depois deste contato fotográfico, foi marcada uma visita guiada ao
Cemitério da Santa Casa, que teve como propósito a definição das linhas de
pesquisa de acordo com identificação pessoal. Durante a visita, os alunos
tiveram dois momentos: o primeiro com a orientação de um pesquisador da
área e o segundo foi livre, onde os alunos tiveram a oportunidade de explorar o
espaço pesquisado.
Após a visitação guiada, os alunos tiveram mais um encontro teórico,
onde os mesmo tiveram a tarefa de elaborar uma reflexão por escrito sobre a
sua percepção do Espaço Cemiterial antes e depois da formação do grupo de
estudo. E o resultado deste exercício de análise e reflexão os professores
responsáveis pelo grupo elaboraram uma apresentação para ser explanada no
II Encontro de Estudos sobre Cemitérios Brasileiros.
Para que a comunidade escola pudesse apreciar o trabalho de pesquisa
desenvolvido pelos alunos integrantes do grupo extracurricular, foi montada
uma exposição interativa intitulada “Conflitos Torturantes, Cemitérios
Fascinantes”. O resultado desta exposição foi excelente, já que pais e filhos
puderam discutir e compreender que podemos trabalhar com a temática
cemiterial numa escola de ensino regular, saindo um pouco do reduto
acadêmico.
No ano de 2007, o grupo incorporou a prática de técnicas cênicas ao
estudo e a pesquisa cemiterial e aumentou significativamente seu número de
integrantes. Em menos de seis meses, criou e produziu duas peças infantis e
duas intervenções cênicas com a temática cemiterial, além de prosseguir com
as saídas de campo aos cemitérios da grande Porto Alegre.
O interesse dos alunos de fazerem parte do grupo e a necessidade de
se diferenciarem resultou na criação do nosso logotipo e na intenção de
transformar esse grupo numa associação cultural que pretende espalhar esta
idéia para outras escolas de ensino regular.
A novidade de trabalharmos com a temática cemiterial, que tanto
assusta as pessoas, com adolescentes está despertando a curiosidade por
saber mais e o interesse da imprensa local. Para melhor ilustrar este projeto,
pedi para que os alunos fizessem alguns depoimentos e acredito que seja
relevante os registrar neste artigo.
Segundo o aluno-pesquisador Eduardo Tomasini Nunes:
“Antes de conhecer a arte cemiterial, meu conhecimento sobre cemitério
era vago. Afinal não tinha interesse sobre o assunto, tinha ido poucas vezes
aos cemitérios. Para mim era apenas o lugar onde eram enterradas as
pessoas mortas. (...)
Após estes estudos e pesquisas que fizemos ao longo destes dois
meses, com encontros e uma visita ao cemitério da Santa Casa, pude entender
que tudo o que se encontra em um cemitério tem significado. Na maioria das
vezes um anjo não colocado em um jazigo sem ter um significado, como
tristeza, desolação, consolação, e as colunas também tem um nome especial,
como dóricos, jônicos e Coríntia, cada uma com uma arquitetura diferente.
Muita gente também encontra no cemitério uma forma de ganhar
dinheiro com o vandalismo, ou seja, muitos epitáfios e peças de bronze são
roubadas, derretidas e vendidas, um fato que agrava muito este tipo de arte,
pois algumas coisas roubadas como se fosse qualquer peça pode ter um valor
histórico muito maior que material.”
De acordo com Fabrizio Frapf Costa:
“Antes, como quase todos os jovens, via o cemitério apenas como “o
lugar onde os mortos estão”. Além disso, tinha a visão que é passada pela
família de que o cemitério é um lugar ruim. Agora, vejo o cemitério assim
como um museu, um patrimônio cultural e histórico que, infelizmente, não
recebe a devida importância: o estado não valoriza e não cuida, as pessoas
roubam objetos por dinheiro.
A pesquisa está me ensinando a valorizar o cemitério como deveria ser
(...); apenas com a análise de algumas fotos já entendo um pouco como as
pessoas pensavam na época, como a sociedade era, como era a hierarquia
familiar. (...)
Em suma, o cemitério é uma peça muito importante para o estudo da
história. Infelizmente, a sociedade hipócrita em que vivemos não nos mostra
isso, jovens não têm a mínima idéia de que um cemitério representa.
Felizmente estou tendo a oportunidade e não pretendo desperdiça-la.
Obs: Como patrimônio histórico, não deveria o cemitério ser preservado
e valorizado como os outros (ex: museu)’?
Para Fagner Augusto Silva Ligabur:
“Antes de conhecer um pouco da arte cemiterial, eu já ia em cemitério
só por ir mesmo, mas agora vi que há coisas muito interessantes em um
cemitério; história, arte romana, grega, egípcia, etc.
Falando a verdade, a aparte que mais gostei foi a das estátuas, que
expressam muitas coisas como dor, consolação, tristeza. (...). Realmente achei
muito interessante , não pensei que existiriam coisas assim em cemitérios.”
Juliano Freitas Ramos percebe que:
“A pesquisa é muito interessante, pois fez eu mudar completamente a
minha opinião em relação aos cemitérios. Antes eu não sabia que as fotos dos
túmulos podiam ser reutilizadas. Pois há pessoas furtam essas fotos dos
cemitérios para vender.. E sem falar nas estátuas que são depredadas pelo
valor que tem, como por exemplo, algumas que são de bronze.
Fiquei maravilhado com alguns jazigos, são de luxo, mas não foi isso
que eu gostei e sim das perfeições dos anjos e estátuas.
Muitas famílias enterram seus familiares juntos, eu achei impressionante
um túmulo no Cemitério da Santa Casa, não havia foto da família e sim pedras
brancas, simbolizando o pai e a mãe e os filhos.”
Kenya Lampert diz que :
É principalmente aprender a não temer o desconhecido ! É aprender a viver
intensamente cada sentimento que a vida nos mostra. É ter feito amigos, é
sentir uma emoção enorme quando estamos no palco, representando o
nosso esforço, nossa lutas e principalmente, o nome do grupo !
Por fim a aluna- pesquisadora Yádini Winter dos Santos comenta que:
“Antes de começar este projeto eu julgava os cemitérios como
"depósitos de lixo" e desperdício de dinheiro e espaço geográfico. Admirava as
estatuas e arte dos mesmos, mas sem ao menos entender a simbologia que
elas representam. Mas agora sei que os cemitérios podem ser muito mais que
isso, são ótimas fontes históricas, principalmente com a sua simbologia, que
envolve arte também.
Agora vejo os cemitérios com outros olhos, os vejo como mais uma
fonte de estudo e cultura.”
A partir destes relatos percebemos a importância de desenvolver um
projeto deste tipo em Escolas do Ensino Médio, já que normalmente a pesquisa
cemiterial esta associada ao meio acadêmico. Assim, no ano de 2008,
conquistamos o status de Associação Juvenil de Estudos Cemiteriais (AJEC)
que tem como fim promover ações culturais que envolvam a temática cemiterial
a partir da pesquisa histórica, do teatro, da dança e da literatura. Pretendemos
com este grupo e com os próximos que virão conscientizá-los da importância
da sua preservação devido aos valores históricos, culturais e artísticos que
envolvem o espaço cemiterial. Acreditamos que despertando o gosto pela
pesquisa cemiterial em adolescentes estaremos conquistando, futuramente,
fortes aliados ao nosso processo de preservação e reconhecimento dos
Cemitérios como um Museu a Céu Aberto.
Batalha Simbólica: A Resistência ao Efêmero
Lenise Grasiele de Oliveira
(apoio Fapemig)
Resumo
As sociedades humanas constroem sistemas protetores para preencher a lacuna instaurada pela
morte. Através dos rituais simbólicos, da antropofagia, do luto e da arte tumular, o homem trava
uma verdadeira batalha com a não-existência. Há preocupação de “salvar” a individualidade, de
presentificar a ausência. Proponho-me a apresentar algumas articulações sobre o assunto através
de um enfoque psicanalítico e antropológico.
Palavras-chave: morte, batalha, resistência
As sociedades humanas constroem sistemas protetores para preencher a
lacuna instaurada pela morte. “A idéia da morte propriamente dita é uma idéia sem
conteúdo, ou melhor, cujo conteúdo é o vazio sem fim. Ela é a mais vazia das
idéias vazias,(...) é o impensável, o inexplorável(...)” (MORIN, 1997, p.33)
Através dos rituais simbólicos, da antropofagia, do luto e da arte tumular, o
homem trava uma verdadeira batalha com a não-existência. Há preocupação de
“salvar” a individualidade, de presentificar a ausência.
No inconsciente, cada um de nós está convicto de sua imortalidade, afirma
Freud em seu texto “De Guerra e de Morte”(1915) Constatação paradoxal, pois
cercamos a efemeridade, tentando de todas as formas transcendê-la.
A morte introduz entre o homem e o animal uma ruptura espantosa, isto
porque a espécie humana tem acesso a via simbólica introduzida pela linguagem.
Tal constatação vai de encontro à afirmação de Edgar Morin(1970) “ A morte
introduz entre o homem e o animal uma ruptura mais espantosa que a
linguagem.”A espécie humana é a única para a qual a morte está presente ao
longo da vida, por isso, desde cedo, refletiu-se sobre ela, tanto nas religiões como
na filosofia.
A filosofia epicurista acreditava que a alma humana não seria outra coisa
que a junção de átomos, estando esses fadados a se separem. Para Epicuro não
havia morte, mas união e separação de átomos. Posição que não se sustentava
no Ocidente cristão:
O Evangelho de Mateus, em relação às tradições pagãs e egípcias em particular, já
continha toda a concepção medieval do Além, do juízo final, do Inferno. O antiguíssimo
Apocalipse de Paulo descreveria um Paraíso e um Inferno ricos de suplícios (ARIÈS,
1989,p.105).
A morte se apresenta através de oposições significativas. Instalada em um
determinado sistema de crenças ela representa,simultaneamente, ruptura e
continuidade. Acontecimento que cessa a existência biológica do ser e, ao mesmo
tempo, anuncia a passagem para um outro plano. Sob esse aspecto, pode-se
afirmar que morrer é nascer.
Vida, morte e alimento estão intimamente ligados. Nas tribos indígenas
brasileiras e nas comunidades primitivas africanas, a morte ritual do inimigo
resultava em refeição comunitária. Sustentaríamos que tais grupos praticavam o
canibalismo se o ato fosse meramente instintivo. Contudo, alimentar-se da carne
inimiga não significava uma simples refeição, o ritual antropofágico sugeria uma
conotação simbólica, uma forma de resistência à morte: trazer para dentro de si a
carne de seus parentes mortos que, outrora, haviam sido devorados pelo inimigo.
E indo mais além, ao alimentar-se dessa carne, acreditavam que conseguiriam
apoderar-se da força vital do prisioneiro.
No México, como parte do ritual do dia de Finados, é comum ofertar às
crianças,
doces em forma de esqueletos e crânios com uma legenda que
identifica o nome do parente morto. O ritual mexicano, ainda que simbólico, está
intimamente ligado à idéia dos indígenas brasileiros de homenagear os
antepassados e potencializar os atributos deixados por eles, acrescentando-os à
personalidade dos parentes vivos.
Los cultos de las reliquias (la parte simboliza al todo), (...) obedecen a esa misma finalidad,
se trata frecuentemente, ya de objetos que pertenecieron al difunto, en especial las armas;
ya de símbolos aptos para provocar una presencia; ya se osamentas, particularmente los
cráneos (THOMAS, 1983, p.523).
O culto das relíquias é comum em países africanos como Zaire e Congo. No
Ocidente cristão, tal prática é habitual, mas, diferentemente desses países, para
que ela aconteça, é necessário que o morto seja santificado pela Igreja Católica.
Veneram-se a língua de Santo Antônio, supostas partes da cruz de Cristo,
medalhas milagrosas, etc. Entretanto, não só a religiosidade leva ao culto de
objetos materiais. Observa Áries(1989) que um fetichismo espontâneo subsiste
sempre em nós, estando ele associado à conservação dos objetos que lembram
pessoas amadas e respeitadas.
O ritual eucarístico que recorda a última refeição de Cristo, pode também,
ser analisado como uma forma de antropofagia, visto que pretende “provocar uma
presença” através da ingestão do corpo e do sangue de Cristo, materializados na
hóstia e no vinho.
No texto “Além do Princípio de Prazer”(1920), Freud destaca o impulso
inerente à vida orgânica de restaurar um estado anterior de coisas, que ele
denomina de compulsão à repetição ou pulsão de morte. Há uma tensão no
organismo entre as pulsões do ego e as pulsões sexuais. A vida se movimenta em
um ritmo dividido entre as duas. As pulsões sexuais são as verdadeiras
conservadoras, já que trabalham “contra o propósito das outras pulsões, que
conduzem, em razão de sua função, à morte(...)”(FREUD,1920,p.51). Essa
tendência leva a concluir que o objetivo de toda a vida é a morte, pois segundo ele
tudo o que vive almeja retornar ao estado inanimado.
A perda de uma pessoa querida promove um estranhamento da realidade e
uma tentativa desesperada de tentar reter o objeto que lhe escapou. O enredo
freudiano do luto pode ser narrado da seguinte forma: quem está de luto se
relaciona com o morto como se ele tivesse levado consigo um pequeno pedaço do
enlutado. Esse por sua vez, corre atrás do objeto, sem perceber a impossibilidade
de conseguir recuperá-lo. O morto é identificado como ladrão. O luto não seria
somente pela perda de alguém, mas pelo pedaço de si que aquele que parte,
carrega consigo.
Se o túmulo designava o local necessariamente exato do culto funerário é porque também
tinha por objetivo transmitir às gerações seguintes a lembrança do defunto. Daí o seu
nome de monumentum de memória: o túmulo é um memorial. A sobrevivência do morto
não devia ser apenas assegurada no plano escatológico por oferendas e sacrifícios,
dependia também do renome que era mantido na terra, fosse pelo túmulo com os seus
signa, e suas inscrições, fosse pelos elogios dos escrivães (ARIÈS,1989,p.218).
Várias são as maneiras de realizar a ruptura total do corpo morto com o
mundo dos vivos. Nas antigas civilizações escandinavas e babilônicas era comum
o ritual da incineração do cadáver, mas não objetivando, necessariamente, sua
destruição. O ato representava a libertação da impureza e do apodrecimento.
Entretanto, as cinzas eram guardadas e reverenciadas. Os povos antigos tinham
verdadeira aversão à decomposição do corpo. Para eles, o período coincidia com
o luto. Todos aqueles que, de alguma forma, tiveram algum contato com o morto
eram considerados impuros: a viúva, os filhos e principalmente aqueles que
estiveram junto à pessoa, nos seus últimos momentos de vida.
É a mesma obsessão da decomposição que num sentido contrário, determinou o
embalsamento e a mumificação do corpo praticados no Antigo Egito(...) as cinzas e a
múmia egípcia constituem duas vitórias contra a podridão (MORIN, 1997,p.140).
A partir do século VI, o temor da morte na religiosidade medieval provoca
atos de reflexão e contemplação. É nesse período que surgem os temas
macabros que invadem a literatura e a iconografia da Idade Média. A grande
mortalidade do “Período das Trevas” acrescentou à morte um aspecto de tragédia
e drama excessivos, aspecto esse que deu origem à necessidade de expressão
em suas variadas formas.
A representação do corpo em decomposição era o que se chamava
macabro. Ele iniciava-se com a morte e chegava ao término com o esqueleto
dissecado, estando situado na transição do processo. O macabro medieval não
tinha por objetivo provocar o medo da decomposição, mas, constatar que o apego
exacerbado à vida não impedia sua fragilidade.
Para Morin(1970), a sepultura serve para preencher o estado de
impessoalidade que o corpo adquire com a morte e, portanto, até os povos mais
bárbaros tinham a preocupação de enterrar seus mortos. No mito grego de
Antígona, a filha de Édipo luta para oferecer ao irmão Polinices o direito à
sepultura, violando a ordem do rei. Como castigo, é condenada à morte.
O que caracteriza a espécie humana é justamente cercar o cadáver de algo que constitua
uma sepultura, de sustentar o fato de que isso durou. A lápide ou qualquer outro sinal de
sepultura merece o nome de símbolo. É algo humanizante (LACAN,2005 p.36).
Lacan defende que tudo que é humano deve ser conservado como tal,
justificando o esforço do homem para fazer subsistir tudo que, sob algum aspecto,
denota humanidade e sobretudo, o próprio homem. Nessas condições, o ritual se
constitui como indispensável, porque permite instaurar a estabilidade e a ordem
perdidas com a morte. O fato é que essa se tornou prisioneira daquele que,
outrora, pretendia dar-lhe um caráter de dignidade. Basta observar o mecanicismo
do comportamento humano nos funerais, de modo que, alguns chegam a adquirir
um aspecto de comicidade.
Lo comico del duelo no está fuera del alcance del análisis fenomenológico. Basta con
haber tenido contacto un tanto lateralmente con las reacciones del entorno de un muerto
para verlo aflorar: frases vanas proferidas entonces, rara son las ocasiones en que la
palabra suena más falsa,(...) gestos o gesticulaciones notables (emotivos abrazos
repentinos entre personas que, salvo en esas circunstancias, se ignoram(...) (ALLOUCH,
2006,p.25).
É como se a ritualização do velório se transformasse em um teatro
superficial, dando espaço para atitudes exaltadas e algumas vezes, falsas.
Em contrapartida, a ausência de ritos e por conseguinte, a não vivência
subjetiva do luto, resulta naquilo que Allouch(1996) denomina de morte seca,
metáfora apropriada para representar a pobreza de rituais simbólicos do homem
ocidental. Desnudar a morte de rituais e se comportar com indiferença, cria no
homem, a ilusão de um afastamento em relação a ela.
Observa Ariès que, no século XX, a morte não tem mais o caráter de
generalidade absoluta. Ela não desestabiliza a vida coletiva, sendo escamoteada
e reservada ao ambiente hospitalar. Entretanto, desmistificar o temor à morte não
significa banalizá-la, ou
transformá-la em morte seca. Significa aceitá-la e
assegurar a ela o seu devido lugar com a riqueza de seus rituais simbólicos e com
a experiência subjetiva do luto. A idéia de finitude deve estar presente em nova
vida mas, não com uma complacência alienada, de quem acredita que não pode
aprender com ela.
Referências Bibliográficas
ALLOUCH,J. Erótica del Duelo en tiempos de la muerte seca.Buenos Aires: Ediciones
Literales,2006
ARIÉS, P. O Homem diante da morte . Vol. I e II, 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1990.
FREUD,S. Reflexões para os tempos de guerra e morte. Trad. Jayme Salomão. In:
Obras completas (vol.XIV, pp. 310-341) Rio de Janeiro: Imago 1974. (Publicada
originalmente em 1915).
_______. Luto e Melancolia. Obras Completas, Vol. XVI ed. Standard, 1917.
_______. Além do princípio do prazer. Obras Completas, Vol. XVIII, ed.Standard,1920
KOK, G. Os Vivos e os Mortos na América Portuguesa: da antropofagia à água de
batismo. Campinas,SP: Editora da UNICAMP,2001
LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1989.
________. Nomes do Pai. Trad.André Telles.Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2005
MORIN, E. O Homem e a Morte. Trad.Cleone Augusto Rodrigues.Rio de Janeiro: Ed.
Imago, 1997
THOMAS, L.V. Antropología de la muerte. México:Fondo de Cultura Económica, 1983
A balavra para o historiador da arte – a palavra como historia da arte:
O Noticiário Semanal da Casa Aloys e algumas considerações a partir dos
escritos de Jacob Aloys Friederichs
Luiza Fabiana Neitzke de Carvalho
Bolsista CAPES - Mestrado em História, Teoria
e Crítica –PPGAV/ UFRGS.
Resumo
Este artigo hrocura fazer uma análise da contribuição do registro escrito para a pesquisa
em arte funerária, bem como para reconstrução de uma possível história a partir dos
mesmos. A intenção é apresentar além dos escritos, algumas questões pertinentes para a
análise da práxis desenvolvida pelas marmorarias, que pontuam valores que transitam
entre o postulado da arte e o ofício relativo à arte fúnebre.
Palavras-chave: Arte funerária, marmorarias, Jacob Aloys Friederichs.
Junto às imagens, o documento escrito constitui uma das principais
evidencias para o pesquisador da arte e a escrita pode aparecer de forma
complementar ou autônoma. O documento escrito é um achado que atua como
confirmatório e indicial – ele acusa as diretrizes que devem ser estipuladas no
trabalho da pesquisa histórica.
Para o pesquisador da arte funerária, a escrita vai aparecer nos epitáfios,
nos documentos de trabalho dos artistas e artesões (anotações, notas fiscais,
orçamentos, textos publicados em anuários, jornais e álbuns) e obviamente na
fundamentação teórica.
A escrita é junto da fotografia, registro indispensável. Ainda mais que a
fotografia, ela constitui o corpo quase total de um relatório de pesquisa, tal como
em uma dissertação. A fotografia captura uma imagem e a palavra, a descreve. A
escrita da palavra é a forma de tornar os pensamentos perenes. Aprisionar as
idéias que escapam incessantemente ao pensamento. É reler e lembrar.
Em minha pesquisa, procuro estabelecer uma correspondência entre a arte
funerária encontrada nos cemitérios de Porto Alegre e a presença de referenciais
provenientes de um repertório cultural do paganismo, que se dá pela adoção de
certos índices iconográficos nos túmulos. Naturalmente, a carga histórica deste
trabalho vem à tona quando tento traçar as possíveis origens ou procedências
destes índices iconográficos, seja pela inspiração que moveu seu uso, seja pela
fatura das peças.
Buscando documentos para amparar uma possível história da arte funerária
para o RS, felizmente me deparei com um item raro e essencial na pesquisa: o
álbum de 1945-1950 publicado pela Casa Aloys, estabelecimento que considero o
mais importante dentre os que ofereceram ornamentação para os cemitérios
gaúchos. Em 1884, o imigrante alemão Miguel Friederichs fundou uma oficina de
mármores na cidade de Porto Alegre:
NOVA OFICINA DE CANTARIA
Aos habitantes de Pôrto Alegre e arredores faço público que estabelecime nesta praça com uma oficina de cantaria que se acha situada no Caminho
Novo N.º 62. Pelo longo tirocínio e dispondo de material superior, estou
habilitado a aprontar Monumentos e fornecer Cantaria e Ornamentos para
obras segundo quaisquer desenhos e gostos.
Porto Alegre, Janeiro de 1884.
Miguel Friederichs.
NB. Um aprendiz robusto que queira aprender a profissão de cantaria
encontrará aqui colocação.
Casa Aloys Ltda. Indústria do mármore, granito e bronze. Casa Aloys:
1884-1949. Pg.9.
O aprendiz a quem Miguel se refere viria a ser Jacob Aloys Friederichs,
irmão de Miguel, que compra a oficina em 1 de fevereiro 1891 e passa a chamá-la
de Casa Aloys.
Sendo escassos registros sobre a temática arte funerária, e principalmente,
escritos dos envolvidos com o processo, tais como artistas ou artesãos, textos que
elucidem ou ambientalizem as peças que hoje chegam até nós por meio dos
cemitérios são como relíquias e por mais gerais ou meramente registrais que
sejam, atuam como dispositivos que autenticam os dados levantados no processo
da pesquisa e amparam os argumentos decorrentes da mesma.
Assim, apresento aqui um texto de autoria de Jacob Aloys Friederich,
Mestre da Casa Aloys, onde discorre sobre seu episódio na Exposição de 1901
dando-nos pistas para refletir sobre o status da ornamentação funerária como uma
produção meramente profissional - um ofício, ou como arte.
A GRANDE EXPOSIÇÃO ESTADUAL DO RIO GRANDE DO SUL –
1901
Sob a direção do notável e benemérito Presidente do Estado Dr.
Antonio Augusto Borges de Medeiros, e, do igualmente operoso e benemérito
Intendente Municipal, Dr. José Montaurí de Aguiar Leitão, foi organizada nos
anos de 1899 e 1900, uma exposição estadual, que foi inaugurada solenemente
em 24 de Fevereiro de 1901; esta exposição, foi um grande êxito para o Estado
Sulino do Brasil, tanto para suas fontes de produção, como para a indústria e
profissão, para a arte e a arte profissional, assim como para o Governo do
Estado.
O mestre Aloys, expôs o seguinte:
Um monumento em Grêz
Um monumento em mármore.
Uma cruz em mármore com o cruxificado
Uma cruz em mármore ricamente ornamentada com flôres.
Estes trabalhos fizeram juz a medalha de ouro pela Secção de Belas
Artes.
Sôbre êste assunto, o mestre Aloys relata mais alguns pormenores:
Os
trabalhos
acima
mencionados,
tinham
sido
classificados
naturalmente no grupo <<Artes Profissionais>> e julgados pelos juizes dêste
grupo. Entre estes juizes se contava o Snr. Joaquim da Silva Ribeiro,
proprietário de uma das primeiras fábricas de artigos de cimento. Durante a
inspeção e exame dos dois monumentos, êste Snr., quando, como perito,
verificou que as duas coluninhas laterais do Monumento em grês havia sido
executadas no próprio bloco, quasi teve um extasi profissional; ele caminhava
em redor do Monumento, chamando a atenção de seus colegas de julgamento
para esta maravilha da arte profissional. Assim como o monumento e as cruzes
de mármore foram aprovados como muito bom, o laudo dos juizes foi:
Medalha de ouro com distinção. A decisão e confirmação final estava em
mãos do presidente da exposição, sendo também presidente dos juizes de
julgamento. Dr. José Montaurí de Aguiar Leitão, Intendente Municipal. Aguardei
com crescente impaciência a publicação no jornal oficial <<A Federação>> o
edital com o resultado do julgamento. Porém, em vão, até que um dia fiquei
ciente de que o Dr. Montaurí, não havia confirmado o vereditum dos juizes,
classificando-os no grupo de artes profissionais e que haviam transferido meus
trabalhos para o grupo <<Belas Artes>>. Quasi me sentí lisonjeado com esta
transferência para o elevado grupo de Belas Artes, porém, logo, o meu
indefectível realismo, me disse que neste elevado grupo, poderia ser-lhe
conferido apenas a medalha de prata. No grupo Arte profissional, no qual
meus trabalhos verdadeiramente pertenciam – a medalha de ouro com distinção
–e, no grupo mais elevado, no qual foram classificados erradamente, talvez só a
medalha de prata! – Isto era uma injustiça, contra a qual tinha de protestar. –
Imediatamente me encaminhei para a Intendência Municipal, afim de falar a
respeito com o eminente e popular intendente Dr. Montaurí.
Quando subia as escadas no edifício da intendência, encontrei no
corredor o Sr. Dr. Montaurí, em palestra com auxiliares e visitantes. Perguntado
qual o motivo de sua visita, formulei o meu pedido e reclamação.
O snr. Dr. Montaurí, porém, não estava inclinado a ceder e dentro de
poucos momentos, estabeleceu-se uma agitada discusão tendo o Snr. Dr.
Montaurí terminado com voz alterada: <<e eu lhe declaro que os seus trabalhos
pertencem ao grupo <<Belas Artes>> e aí serão julgados>>. – Retrucando
também com voz mais alta: <<eu lhe declaro, que o Snr. está enganado, os
meus trabalhos pertencem ao grupo <<Artes profissionais>>, e eu lutarei pelos
meus direitos.>> - E agitado me retirei correndo escada abaixo, porém,
chegando em baixo, verifiquei que havia esquecido meu chapéu e guarda-sol.
Imediatamente voltei, subindo a escada apressado de dois a três
degraus. Lá encima ainda estavam em animada discussão, o Dr. Montaurí e os
outros Snrs., quando apareci. O Dr. Montaurí instintivamente deu um passo
atraz, assim como quem espera um ataque. Quando notei êste fato, nesse
momento então o meu humor rhenano venceu a agitação, e meu aborrecimento
desapareceu, e com algumas palavras clarou-se a situação, peguei no chapéu
e no guarda-sol e – me despedi.
Uma semana após êste episódio encontrei-me com o Dr. Montaurí em
companhia do Snr. Major Alberto Bins, no parque da exposição; um pouco mais
tarde o Snr. Bins comunicou-me que por ocasião daquele encontro, o Dr.
Montaurí lhe disse: <<Agora pode estar tranquilo, êle recebeu a medalha de
ouro em Belas Artes>>.
Porém, a primeira orgulhosa alegria, estava um pouco turvada para
mim.
Casa Aloys Ltda. Indústria do mármore, granito e bronze. Casa Aloys:
1884-1949. Pgs. 54, 56, 57.
Figura 1: as obras premiadas na Exposição Estadual de 1901 em Porto Alegre.
O texto transcrito acima relata uma situação participada pelo Mestre Aloys,
projetista e canteiro da Casa Aloys mármores e granitos. A partir deste escrito
podemos pensar:
- Que já no primeiro parágrafo é pontuada uma distinção entre arte e arte
profissional.
- Que os trabalhos do Mestre Aloys, ao serem enquadrados na categoria
arte profissional denotam uma condição relativa à profissão ou ofício, sendo um
produto de uma firma ou de um trabalho plausível de venda, já que a condição de
profissão subentende aptidão para designar algum serviço.
- Como arte profissional, os trabalhos apresentavam uma execução
primorosa – por isso arte, e tal primor ofereceu a possibilidade de elevá-los a
categoria da arte somente – desvinculando sua fatura do ofício profissional (que
designa também uma relação pedido-encomenda) e colocando-a em uma
condição mais autônoma na sua execução, mesmo sendo ainda uma encomenda
– ou o que poderíamos definir como o talento do artista.
- Na categoria arte profissional o trabalho poderia ser agraciado com
medalha de ouro pela sua primazia, já na categoria arte o trabalho iria receber
apenas medalha de prata, o que não está claro se é uma limitação da categoriaque chegaria apenas ao nível prata ou se uma limitação da fatura do trabalho –
que como arte profissional poderia ser ouro, mas como arte apenas prata. Destas
hipóteses, inferimos ainda outras considerações: a) se o trabalho vale ouro como
profissional e prata como arte, a arte funerária na época era vista mais como um
ofício do que como uma obra de arte. b) se a categoria arte chegava apenas ao
nível prata, a arte estava subordinada ao profissional, sendo relegada a um nível
secundário e a profissão sendo muito mais valorosa que a criação.
- O Mestre Aloys reconhece que o grupo das artes é o mais elevado e por
um instante sente-se lisongeado com a elevação de sua produção ao estatuto da
arte. Porém seu anseio é o de que seus trabalhos sejam reconhecidos como nível
ouro, atribuindo mérito à sua laboriosa execução em monumentos, mesmo que
para isso continuem pertencendo ao nível profissional, defendendo-os como
produto de seu ofício, reconhecido no Estado.
- O mestre defende seus trabalhos como profissionais e não como arte. A
medalha ouro lhe é atribuída na categoria arte, mas este sente-se aborrecido, pois
ao que se subentende, a medalha foi concedida não pela argüição do mestre, mas
pela ocasião do encontro – talvez pela influência do próprio Alberto Bins. O
aborrecimento de Aloys pode ser atribuído ainda ao fato de que este gostaria de
receber a medalha de ouro como artes profissionais, da forma que fora julgado
pelos juizes da exposição e não como arte, como fora avaliado por Montaurí.
Desta análise dos fatos, podemos entender que o próprio Mestre Aloys via
mais sua produção como ofício do que como arte, o que apresenta um ponto de
vista importante entre a querela das artes menores e das artes por excelência. A
execução da arte funerária envolvia a repetição e a produção seriada ou moldada
de certos elementos, justificando sua condição profissional ou industrial. Porém,
não podemos excluir a fatura de peças únicas, que requerem alto grau de
habilidade elevando o executor da obra a categoria de artista ou a obra a
categoria de arte. O próprio Mestre Aloys reconhece a autoridade de André
Arjonas, escultor atuante na Casa como artista:
(...) ANDRÉ ARJONAS, 1901 até hoje! – Este verdadeiramente genial
artista entrou como aprendiz em 1901 e em menos de 10 anos era o escultor e
criador de projetos e o artista da casa, o qual juntamente com o mestre Aloys
em reciproco complemento proporcionou o desenvolvimento artístico da Casa
Aloys.
Casa Aloys Ltda. Indústria do mármore, granito e bronze. Casa Aloys:
1884-1949. Pg. 104.
Mais que isto, reconhece a importância do desenvolvimento artístico como
uma condição valorosa ao ofício de sua Casa, e por conseqüência da arte
funerária.
É justamente a fatura da peça como única, que aparece no escrito como o
ponto que impulsiona a mudança da categoria para os trabalhos em questão,
quando o juiz, Dr. Joaquim da Silva Ribeiro verificou que as duas coluninhas
laterais do Monumento em grês havia sido executadas no próprio bloco, o que
evidencia a execução do labor dispensando moldes ou outros artifícios referentes
à duplicata e a produção serial.
Analisamos neste ensaio alguns dos escritos encontrados no Noticiário
Semanal da Casa Aloys, publicado por Jacob Aloys Friederich, por ocasião dos
100 anos do fundador da casa (Miguel Friederichs) e dos 65 anos da fundação da
mesma. Definido pelo autor como um calendário-folhinha, o álbum conta a história
da oficina de mármores e cantarias, apresentando reproduções de documentos,
brasões de família e variadas fotografias. Friederichs foi um líder atuante na
comunidade germânica do Rio Grande do Sul. Na tese de doutorado A trajetória
de uma liderança étnica – J. Aloys Friederichs (1868-1950), Haike R. K. da Silva
investiga o papel de Friederichs na sociedade e apresenta em seu relato o caráter
de escritor do qual ele se utilizava para apresentar suas idéias. A autora define o
Noticiário Semanal como uma autobiografia de Friederichs como um personagem,
empresário e envolvido com a arte funerária gaúcha. Ele produz o anuário ao
editá-lo, organizá-lo e finalmente, assinar como autor:
(...)
Reproduzirei,
em
conseqüência,nas
presentes
páginas
de
retrospeto histórico a evolução da atual Casa Aloys Ltda., usando da forma
descritiva e da ilustração, tal como um filme de indústria que, por vezes, será
até uma modesta pelicula de arte.
Pôrto Alegre, Janeiro de 1949.
Mestre ALOYS.
Casa Aloys Ltda. Indústria do mármore, granito e bronze. Casa Aloys:
1884-1949. Pg. 1.
Concluímos que o documento em questão representa um dos mais
importantes registros sobre a arte funerária no Rio Grande do Sul, e que a partir
de seus textos, propiciou a explanação das questões levantadas neste ensaio.
Uma análise mais minuciosa e completa pode gerar um relatório fidedigno da
pesquisa, apresentando com originalidade o surgimento e o ápice da arte funerária
na caracterização dos cemitérios modernos do estado, já que o anuário de Mestre
Aloys ilustra túmulos que hoje são quase perdidos no esquecimento em que jazem
as necrópoles, entre o ritmo veloz da vida (pós-moderna) que simplifica o túmulo e
supre o momento de reflexão e o espaço de convívio que foram estes cemitérios
em outros tempos.
Referências Bibliográficas
DAMASCENO, A. Artes plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. Globo, 1971.
FRIEDERICHS, J. A. Noticiário Semanal. Histórico da Casa Aloys Ltda. Indústria do
mármore, granito e bronze. Oferecido aos seus amigos e fornecedores em comemoração
aos 65 anos de sua fundação e atividade:1884-1949. Para o ano de 1950. Porto Alegre:
Sul Impressora, 1950.
SILVA, H. R. K. A trajetória de uma liderança étnica J. Aloys Friederichs (1868-1950).
Tese de doutorado. Porto Alegre, UFRGS, 2005.
CEMITÉRIOS OITOCENTISTAS, CEMITÉRIOS ROMÂNTICOS: uma
interpretação acerca das necrópoles luso-brasileiras.
Marcelina das Graças de Almeida
Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdades Promove de Sete Lagoas/MG
Resumo
Esta comunicação tem como objetivo avaliar as características inerentes aos espaços fúnebres
que se configuram nos cemitérios oitocentistas. Nascidos na confluência de uma série de
fatores que perpassam pela reordenação social, política e mental; a urbanização, a absorção e
aplicação dos discursos médicos e higienistas; a consolidação da burguesia como classe
dirigente, a supremacia do individualismo e a adoção de novas condutas em relação aos
mortos e à morte; os espaços de enterramento, naquela ocasião, tornam-se lugares de
especial significado para o entendimento dos sentimentos e do imaginário. O foco é o
Cemitério do Nosso Senhor do Bonfim de Belo Horizonte e os Cemitérios Agramonte e Prado
do Repouso, situados na cidade do Porto em Portugal.
Palavras-chave: cemitérios oitocentistas, Belo Horizonte, Porto.
L’histoire de l’humanité
peut s’ecrire á l’aide des seuls tombeaux.
Pierre de Bouchard
Cuidar e zelar pelos mortos é um gestos de civilização, entretanto o
hábito de transformar os templos, os lugares de culto divino, em repositórios de
cadáveres traduziam-se exatamente na antítese daquilo que seria civilizado,
moderno e adequado ao progresso humano, pelo menos este era o ponto de
vista da elite “esclarecida” em meados do século XVIII e início do século XIX.
As sepulturas ad sanctos apud ecclesium fazem parte de um rito
religioso que marcou o comportamento cultural do homem ocidental durante
séculos e a coabitação entre mortos e vivos, num mesmo espaço, não era
considerado um problema. Entretanto em meados do século XVIII esta questão
entra em pauta de discussão, tornando-se intolerável a convivência.
O aumento populacional nos séculos XVII e XVIII somado à urbanização
crescente
ampliou
a
sensibilidade
no
tocante
à
impropriedade
dos
sepultamentos ad sanctos.Entretanto além destas questões outro fator
condicionador de mudanças no tocante ao lugar dos mortos, foi a disseminação
do pensamento iluminista que eclodiu no século XVIII, tendo seu ápice na
evolução dos eventos que culminaram na Revolução Francesa. Foi a partir do
século XVIII que uma elite letrada e instruída ampliaram o discurso acerca da
necessidade de se coibir os enterramentos nas igrejas.
Estes questionamentos não se restringiram à França iluminista, mas
repercutiram por vários países europeus, com maior ou menor intensidade. Em
Roma, 1706, o papa Clemente XI era aconselhado pelo Monsenhor Giovanni
Maria Lancesi a erguer cemitérios fora da urbe romana, e o reverendo Lewis,
na Inglaterra, editou, em 1721, uma obra alertando acerca dos riscos dos
sepultamentos eclesiásticos. O mesmo sobreaviso pode ser constatado nas
obras
dos
franceses
Haguenot
e
do
abade
Charles-Gabriel
Porée,
respectivamente Mémoire sur les Dangers des Inhumations e Lettre sur la
Sépulture dans les Églises, ambas datadas dos meados dos setecentos.
Este debate levado a cabo pela elite ilustrada representada por
membros da igreja, nobreza e burguesia acabou por influenciar os atos
políticos que buscavam reorientar o cuidado com os mortos e os cemitérios.
Podemos citar como exemplos a determinação do Parlamento, em Paris, 1737,
sobre avaliação científica dos problemas de salubridade e dos enterramentos
na cidade. A discussão foi retomada em 1763, e no final do século XVIII, 1776,
ocorreu a Declaração do Rei Luís XVI proibindo os enterramentos nas igrejas,
acontecimento que culminou na desativação do cemitério medieval de SaintsInnocents em Paris. Este cemitério era o principal da cidade. Localizado
intramuros
ocupava
um
quarteirão,
possuía
um
grande
claustro,
assemelhando-se ao Campo de Pisa (1277). Após um estudo das condições
sanitárias dos cemitérios parisienses, realizado em 1777, detectou-se que os
cadáveres haviam rompido os limites do cemitério e já invadiam os
subterrâneos das casas. Revelava-se inadequado, inconveniente. Possuía
fossas comuns que eram esvaziadas de 30 em 30 anos, quando os ossos eram
alocados em uma cripta. Em 1780 em razão da “invasão” dos corpos, dos
vapores e mau cheiro, o mefitismo, decretou-se o encerramento do cemitério
com a demolição cinco anos após.
A efetiva laicização dos cemitérios franceses consolidou-se com a
culminância da Revolução Francesa (1789) que impôs um novo modelo de
organização social e, por conseguinte afetou o universo da morte, e do culto
aos mortos. A secularização da sociedade refletiu na laicização dos ritos
fúnebres, indicando até mesmo um sinal de desrespeito em relação aos
mortos. Entretanto foi sob o pulso forte de Napoleão que se regulamentou a
questão dos cemitérios e normalizou o culto aos mortos. A Lei de 12 de junho
de 1804 (Decreto do dia 23 Prairial Ano XII) proibia os sepultamentos em
qualquer edifício religioso, independentemente de credo; em qualquer ambiente
fechado ou que estivesse no espaço urbano. As normas de higiene eram claras
e rígidas e seriam fiscalizadas pelas autoridades civis. Este decreto deu origem
ao Cemitério Père Lachaise, o mais famoso e referência para maioria dos
cemitérios que surgem no século XIX.
Estas ações repercutiram tanto no Velho quanto no Novo Mundo. A
Espanha sofreu influências do modelo francês na constituição e implantação do
Cemitério de Málaga e, em Portugal, a instalação dos cemitérios fora do
espaço das igrejas espelha, em parte, a abrangência deste modelo. No Brasil,
esta matéria vinha sendo estudada desde o final do século XVIII, ocasião em
que D. Maria de Portugal, em 1789, orientava para a construção de cemitérios
na colônia. No início do XIX uma através de Carta-régia determinava-se a
proibição dos enterramentos nas igrejas e ordenava-se a construção de
cemitérios pelo bem da saúde pública. Em 1825 uma nova portaria legisla
sobre os sepultamentos. Em 1828 o Imperador decretava, através da Lei de 28
de outubro, o fim dos sepultamentos nos recintos religiosos, conferindo às
câmaras o dever de zelar e fazer cumprir as normas. Apesar destas leis não
terem sido colocadas em prática, de forma efetiva, revelam a crescente
preocupação do poder público na matéria concernente ao lugar dos mortos,
bem como o interesse o em sanear e higienizar as cidades.
Em Portugal, até os idos do século XIX, era difícil estabelecer uma
distinção entre “cemitério” e “igreja”. A construção de espaços de enterramento
estava, por norma, condicionada à prévia existência de uma igreja ou capela.
Era a forma aceita como prática sacralizadora, conferindo dignidade e respeito
ao cemitério. Por outro lado qualquer igreja era, salvo exceções, lugar propício
para sepultamentos. Em situações de emergência, como epidemias, guerras,
crises geradoras de mortandade excessiva, construía-se cemitérios provisórios.
Estes, geralmente, eram alocados junto a colinas, próximos às capelas ou em
locais isolados, sendo abandonados após uso emergencial. Eram retomados
mediante novo susto. A despeito das leis e interesses, as razões que
culminaram na construção dos cemitérios públicos em Portugal, se justificam
diante da uma necessidade, da urgência imposta pelos fatos. As epidemias, em
especial, a cólera foi mais convincente que as idéias liberais e iluministas,
naquilo que se referem à adoção dos novos modos de sepultamento e culto
aos mortos. As epidemias que varreram o país entre 1833 e 1855 reforçaram
de modo contundente, a imperiosidade da medida e acabaram por condicionar
o nascimento dos cemitérios fora dos espaços da igreja.
Os cemitérios portugueses e os do Porto em particular, apresentam
características que os tornam singulares face aos outros cemitérios seculares.
Embora construídos fora do espaço sagrado das igrejas, só eram considerados
dignos de uso depois de serem consagrados, todos deveriam ter uma capela
para celebração dos cultos, ou seja, embora públicos mantiveram-se sob a
égide da Igreja Católica. Se não eram administrados diretamente, certamente
eram dirigidos sob o ponto de vista da fé. No Porto os cemitérios públicos
oitocentistas, além da existência das capelas e da benção oficial possuem
espaços privados dirigidos pelas ordens religiosas. Era uma solução para o
aceitamento, por parte da população essencialmente católica, dos cemitérios
públicos como espaços dignos ao uso, uma forma de contornar a estranheza
provocada pelas mudanças. A cidade do Porto possui onze cemitérios. Sendo
dois municipais, três particulares e seis paroquiais.
Em dezembro de 1839 foi inaugurado o primeiro cemitério público da
cidade do Porto, o Cemitério do Prado do Repouso, numa vasta quinta que
pertencia ao bispado. Neste local seriam sepultados os portuenses mais
pobres. A elite e os mais ricos preferiam a inumação no Cemitério da Lapa ou
nos cemitérios das Ordens e Irmandades. Desta forma o Prado do Repouso
ficou estigmatizado durante muitos anos como um lugar indigno para os
sepultamentos. Entretanto, em 1855, uma nova epidemia grassou pelas ruas
do Porto e um novo espaço de enterramento público teve que ser erguido, era
o Agramonte. O fato de ter sido construído para inumação dos coléricos, fez
com que a população passasse a olhar o Prado do Repouso de um modo
diferente.
Prado do Repouso é o nome mais romântico de todos os cemitérios em
Portugal considerando, inclusive, que esta alcunha suaviza a difícil função que
cumpre. É dividido em seções, sendo que sessenta e cinco administradas pelo
município, enquanto as seções privadas são dirigidas pelas respectivas ordens
religiosas que as mantêm. São elas a da Santa Casa de Misericórdia,
Irmandade de Nossa Senhora do Terço e Caridade e a Confraria do Santíssimo
Sacramento
de
Santo
Idelfonso.
De
planta
triangular
é
organizado
espacialmente como um grande tabuleiro cortado por duas alamedas sob
forma de cruz latina. O Prado possui crematório, miradouro, a capela dedicada
a São Vítor, além de ter sido erguido recentemente um monumento evocativo
aos cento e cinqüenta anos de aniversário do cemitério.
Figura 1, Alegoria da Saudade, Cemitério do Agramonte, Porto. Arquivo Particular da autora.
Em 1855, outro espaço público para enterramentos foi instalado na
cidade. Mais uma vez reticência e rejeição. Era o cemitério ocidental, sito no
lado oposto ao Prado. Nasceu sob a pressão da nova onda epidêmica do
cólera. No ano de 1846, a Câmara Municipal manifestava a necessidade de se
erguer um novo cemitério no outro extremo da cidade. Entretanto, só nove
anos depois, foi destinado um terreno na parte ocidental do Porto para
instalação de um novo local de inumação, face à epidemia do Cholera-morbus.
Foram desapropriados os terrenos pertencentes a uma Quinta, a Quinta do
Agra Monte, patrimônio de uma família da cidade. A benção do novo espaço
realizou-se a 2 de setembro e para os serviços fúnebres construiu-se uma
capela de madeira, que viria a ser substituída por um prédio condigno alguns
anos adiante.
A princípio tendo sido construído para inumação dos coléricos, o
Agramonte não era bem visto pela população que, na altura já utilizava o Prado
do Repouso. Em 1869 o Agramonte passou por uma reestruturação tornando-
se mais atrativo. Foi inclusive negociada junto ao poder público a cessão de
espaços privativos às Ordens Terceiras. Sendo elas: do Carmo (1869), São
Francisco (1871) e Santíssima Trindade (1872). O Agramonte está organizado
sob um traçado quadrangular. É dividido em cinqüenta e uma quadras
administradas pelo município e as seções privativas estão sob a jurisdição das
respectivas ordens. Como previsto há a capela para a realização dos ofícios
fúnebres.
O Cemitério do Nosso Senhor do Bonfim, ao contrário, dos cemitérios
portuenses não nasce sob a pressão de uma epidemia, entretanto não deixa de
ter uma ligação com os princípios higienistas que caracterizam o século XIX. O
Bonfim é parte de uma estratégia de planejamento e concepção de uma cidade
moderna.
O referencial para os engenheiros, técnicos e planejadores da cidade
será, basicamente, o universo europeu. As reformas operadas na cidade de
Paris através do Barão de Haussmann, em 1853 e a urbanização da
Ringstrasse em Viena, quase que no mesmo período, serão modelos
freqüentemente referenciados e copiados pelos técnicos que pretenderam,
aqui, erguer uma cidade totalmente nova e que refletisse todas as conquistas
que o século XIX havia aberto ao mundo a partir da consolidação da Revolução
Industrial e das novas percepções em relação ao planejamento e estética
urbana. Deste modo, portanto, desde a planta até as construções, o
planejamento e delimitação de características eram criteriosamente pensados.
A ordenação era o princípio de tudo, havia lugares definidos para todos os
equipamentos necessários para o funcionamento da capital.
A organização da cidade impunha aos seus moradores os lugares e os
espaços que deveriam ocupar. A grande avenida contornava, delimitando até
onde a modernidade urbana deveria alcançar. Camada protetora que abrigava
em seu interior a tão sonhada e feérica cidade com suas ruas desenhadas à
régua e compasso, prédios previamente concebidos adotando modelos
arquitetônicos e estéticos que pudessem em toda sua carga simbólica revelar
os novos tempos. Foi, então, deste novo contexto que o Arraial do Belo
Horizonte desapareceu sob o pó levantado pelas picaretas em contínuo e
laborioso empenho para concretizar os desenhos das pranchetas. E foi neste
movimento que a morte foi banida do centro urbano da capital. Cidade de
espacialidade definida, todos os habitantes, inclusive os mortos, tiveram seu
lugar demarcado na nova capital de Minas Gerais.
E se havia projetos para os vários espaços a serem ocupados na cidade,
o do cemitério foi, também, pensado. O terreno com área aproximada de cento
e setenta mil e trinta e seis metros quadrados, num local conhecido como
“Menezes”, distante seiscentos e cinqüenta metros do perímetro urbano foi o
ponto escolhido. O lugar era alto e arejado, de solo seco e argiloso - arenoso,
tendo em sua proximidade uma pedreira o que facilitaria a construção. As
obras de preparação dos terrenos e construção do cemitério e necrotério foram
iniciadas tendo como empreiteiro o Conde de Santa Marinha.
A localização estratégica do cemitério nos fornece subsídios para
compreendermos as atitudes mentais da época. O cemitério deveria ser amplo,
arejado, a céu aberto, ocupando espaço suficiente para expansão e abrigo dos
mortos que a cidade dos vivos, naturalmente iria produzir, sem, contudo perder
o caráter de modernidade sob a qual era engendrada.
A região onde está situado o cemitério é também conhecida como
Lagoinha. A Lagoinha é mais antiga que a própria Belo Horizonte. Situada na
região nordeste, há alusões à sua existência em documentos datados de 1711
como limite da Fazenda do Cercado, tendo ganhado este nome em decorrência
das constantes inundações causadas pelas enchentes do Rio Arrudas. É uma
localidade significativa no espaço geográfico da capital, mesmo estando
localizada fora do perímetro da Avenida do Contorno, adquiriu ao longo do
tempo status emblemático que foi se remodelando ao longo dos anos. A
princípio a Lagoinha é área de passagem, de trânsito dos tropeiros e
mercadores que viajavam pela região se deslocando de Santa Luzia, Venda
Nova e adjacências e se deslocavam para o Arraial. Com a construção da
capital e a chegada de muitos imigrantes a Lagoinha foi “invadida”, em sua
maior parte, pelos italianos que ali adquiriram chácaras e sítios e construíram
naquele lugar uma espécie de reduto da saudosa Itália. Posteriormente tornouse cenário da boêmia e da vida noturna, confrontando-se com os mistérios e
lendas que envolvem o cemitério que abriga. Na ocasião da construção da
instalação do cemitério, a Lagoinha, era o lugar mais adequado e aprazível
consoante com os projetos da Comissão Construtora, bem como o discurso
médico e higienistas amplamente difundido naquela altura.
Em consonância com o padrão arquitetônico imposto na nova capital, o
cemitério teve sua planta elaborada por arquitetos e desenhistas da Comissão
Construtora da Nova Capital. Além do traçado espacial foram projetados o
portão principal, casa do zelador e necrotério. Trabalhou nos projetos o
eminente José de Magalhães (1851-1899) chefe da Seção de Arquitetura da
mencionada Comissão, além de outros profissionais talentosos que deixaram
seu registro em vários espaços da capital mineira.
Figura 2 – Projeto portão principal do Cemitério Municipal, 1895.
Fonte: Acervo do Museu Histórico Abílio Barreto, Belo Horizonte.
O traçado arquitetônico do cemitério segue o plano geométrico da
cidade. É composto por cinqüenta e quatro quadras divididas entre duas
alamedas principais e diversas ruas secundárias. A ocupação destas quadras
não seguiu a numeração, inicialmente foram utilizadas as quadras dezesseis e
dezessete, sendo que novas quadras eram abertas e preparadas ao longo do
tempo, conforme a necessidade. Por exemplo, em 1923 havia vinte quadras
em uso, no seguinte vinte e duas, no início da década de 30, trinta e seis
quadras eram utilizadas e na década de 40 todos os espaços já estavam em
uso. A parte central do cemitério que é o cruzamento das principais alamedas
encontra-se uma praça redonda ajardinada, tendo a imagem de Cristo,
esculpida em bronze, neste local está sepultado Otacílio Negrão de Lima, exprefeito de Belo Horizonte, à esquerda da praça, distando cinco quadras,
encontra-se um edifício. Trata-se de uma construção pequena, elaborada na
mesma época que o cemitério foi inaugurado, apresenta características
estéticas condizentes com o ecletismo, estilo inclusive que predomina nos
edifícios da capital. Na atualidade é utilizado como capela, onde se celebram
cultos, por ocasião do dia de finados, entretanto foi projetado e funcionou
durante muito tempo como necrotério.
Os cemitérios do Porto e Belo Horizonte tornam-se espaços privilegiados
para a consolidação da experiência romântica através das obras funerárias e
da linguagem estética neles expressadas. A rejeição romântica do morto como
um cadáver em decomposição impôs uma relação nova em relação à morte, ou
seja a vivência da morte, em que a finitude da vida se apresentasse por
metáforas, por odores de flores e de ciprestes por imagens de mármores que
simbolizam – através do belo – aquilo que a morte tinha de horrível. Era preciso
sublimar a idéia da morte como putrefação. A morte era a ausência e a
saudade. Para apagar a imagem de putrefação era fundamental prolongar de
forma idealizada a memória do defunto. Primeiramente, afastando a morte para
longe do olhar e do olfato. Depois, embelezando-a e embebendo-a de
sentimento, bem ao gosto do espírito romântico. É nesta conjugação
que
surge o cemitério romântico, carregado de pompa, símbolos que expressavam
visualmente e de forma limpa aquilo que a morte e a saudade tinham de mais
cruel. Os epitáfios, as ornamentações passam a ser uma arte própria. O
ausente passa a ser o herói a ser elogiado, rememorado e representado na
arte tumular.
E assim os cemitérios refletem esta nova sensibilidade no tratamento
das questões que envolvem a morte: o culto aos mortos, a evocação da
memória, a eternidade. O desejo de imortalidade é traduzido através da
construção de marcos de memória, as sepulturas revelam-se como um sonho
de perenidade.
Analisando os cemitérios oitocentistas como portadores dos sentimentos
que subjazem o Romantismo é possível compreender o uso desta
nomenclatura pela historiografia portuguesa e aproximá-la do Cemitério do
Nosso Senhor do Bonfim, bem como a outros cemitérios brasileiros nascidos
no mesmo período e que se traduzem como espelhos evocadores desta
emotividade, da melancolia e ao mesmo tempo da permanente reatualização
da memória.
Entretanto os cemitérios em seus espaços quadriculados sejam os do
Porto ou o cemitério de Belo Horizonte, reproduzem em suas quadras os
conflitos e contradições experimentadas nas cidades que os abrigam.
Os
cemitérios oitocentistas refletem uma época, na qual, se estabelece uma nova
modalidade de culto aos mortos, através da evocação, da memória, da
construção de marcos e ao mesmo tempo reatualizam as distinções, na medida
em que revelam ostentação e poder. Os cemitérios, as sepulturas, as
construções funerárias são os testemunhos materiais que permitem refletir
sobre concepções, expectativas e desejos. Possuem elementos que, numa
complexa teia, relatam dados significativos acerca da cultura material, do
simbólico e das múltiplas atividades do labor e criatividade humana.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Morte, Cultura, Memória – Múltiplas
Interseções: Uma interpretação acerca dos cemitérios oitocentistas situados nas
cidades do Porto e Belo Horizonte. 2007, 402 p., Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
CATROGA, Fernando José de Almeida. A Militância Laica e a Descristianização da
Morte em Portugal: 1865-1911. 1988, 02 volumes, Tese (Doutorado em História) Universidade de Coimbra.
QUEIROZ, José Francisco Ferreira. Cemitérios do Porto Roteiro. Porto: Direcção
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QUEIRÓZ, José Francisco Ferreira. O Ferro na Arte Funerária do Porto
Oitocentista O Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa 1833-1900. 1997.
03 Volumes. Dissertação. (Mestrado em História da Arte) - Faculdade de Letras da
Universidade do Porto.
QUEIRÓZ, José Francisco Ferreira. Os Cemitérios do Porto e a Arte Funerária
Oitocentista em Portugal Consolidação da Vivência Romântica na Perpetuação
da Memória. 2002. 03 Volumes. Tese (Doutorado em História da Arte) - Faculdade de
Letras da Universidade do Porto.
Inhumaciones infantiles en de provincia de Buenos Aires,
entre 1900 y 1910
Dra. María Amanda Caggiano
Lic. Sandra Gabriela Adam
Ing. Francisco Bardi
Dñdor. Guillermo H. Scola
Dñdor. Diana B. Mondino
CONICET UNLP IMIACH, UNLP UNCPBA IMIACH, UNCPBA IMIACH, UNLP.
Resumen
Hablar de la muerte en nuestra cultura no es nada fácil. Tendemos a negar esta realidad como
si fuese ajena a la vida y cuando por fin hablamos de la muerte, nos referimos a conceptos
como vejez, enfermedad o accidentes. Nunca pasa por nuestra mente que un niño pueda
morir. Y sin embargo, también los niños mueren. Abordamos el tratamiento brindado en
algunas inhumaciones de infantes. Para este fin se analizaron dos cementerios de la provincia
de Buenos Aires, uno ubicado al oeste, en Chivilcoy, y el otro en el centro, Azul. Registramos
solo la primera década del siglo XX. Relevando y describiendo alguna de las unidades
arquitectónicas utilizadas para este fin, su simbología, comparación de elementos
arquitectónicos específicos que las distinguen del contexto; así mismo se tomaron algunos
aspectos paleodemográficos.
Palabras claves: Niños- Funebria- Paleodemografía.
Introducción
Ante la muerte, el rol conmemorativo, simbólico, o simplemente
estético que se observa en el contexto de una necrópolis, no es monótono ni
general, por el contrario, se trata de llenar ese espacio funerario con una obra
que lo mantendrá vivo en el recuerdo de quienes acuden a el por generaciones.
Por este motivo el individualizar a quienes ocupan esos espacios es una
práctica habitual en la cual se hace referencia a roles específicos que cumplió
esa persona en vida o simplemente se hace referencia a la edad de su deceso
cuando la particularidad de la muerte se centra en esta variable como es el
caso de los niños.
Objetivo de la investigación
Con este trabajo se pretende abordar el tratamiento que se brindaba
en inhumaciones de párvulos. Para este fin se analizaron dos cementerios
pertenecientes a ciudades de la provincia de Buenos Aires Argentina (Chivilcoy
y Azul). Cronológicamente nos situamos en la primera década del siglo XX.
Relevando algunos aspectos paleodemográficos y describiendo algunas de las
unidades arquitectónicas utilizadas para este fin que las distingue del resto del
contexto funerario.
Material y método
Este trabajo forma parte de un proyecto encarado a través del Instituto
Municipal de Investigaciones Antropológicas de Chivilcoy (IMIACH) en
convenio con la UNLP y el CONICET. La documentación analizada fue extraída
del Archivo Histórico Municipal de Chivilcoy “S. F. Barrancos” (hemeroteca,
libros de registros de inhumaciones y libros de ordenanzas, convenios y
contratos municipales), Archivo Histórico “Enrique Squirru “de Azul, Archivo
Histórico Municipal de Azul y en actas parroquiales de la Parroquia de Nuestra
Señora del Rosario de la ciudad de Azul. Prov. Bs. As. Se estudiaron dos
muestras, una correspondiente a la ciudad de Chivilcoy que cuenta con los
209 niños sepultados entre 1900 y 1927 en una nichera destinada solo para
infantes, y la otra en Azul, conformada por 316 niños fallecidos entre 1910 y
1915 enterrados en el Cementerio Central y
las defunciones infantiles del
Cementerio del Oeste o “de los Pobres”, esta última cuenta con 873 niños.
Los datos que se tuvieron en cuenta fueron: edad, sexo y causa de
muerte. Además se describieron
algunas de las unidades arquitectónicas
utilizadas para este fin en particular.
Chivilcoy
A meses de habilitarse el nuevo cementerio (1.893), el Concejo
Deliberante sanciona una ordenanza contemplando un espacio exclusivo para
niños en pabellones especiales de 1º y 2º categoría, con galería o alero y a la
intemperie o sin alero, respectivamente (AHCH 21: 77). Recién se edifica un
pabellón exclusivo para niños, a la intemperie, según contrato firmado el 16 de
febrero de 1900 entre el constructor Ángel Maderna y Prudencio Moras -a
cargo del ejecutivo municipal-, de acuerdo a los planos elaborados por el Ing.
Fernando Ortiz en el mismo se especifican los detalles técnicos de la
construcción de otro pabellón destinado a adultos de similares características,
aunque la dimensión de los nichos es superior; ambos pabellones equidistantes
a la rotonda central. (AHCH 322: 5 a 12). El pabellón de párvulos se identifica
con la letra A, sección 2º y la nichera de adultos también con la letra A, pero
ubicado en la sección 3º
Se trata de un pabellón de doble faz que alberga 210 nichos, 105 en
cada frente, de 7 filas y 15 nichos en cada una. Recién a partir de 1909 el
tributo al municipio por ocupar un nicho difiere su valor de acuerdo a la
ubicación, los de menor costo situado hacia la hilera superior. (AHCH 24: 11 y
92)
Las medidas de los nichos son 0,50 metros de luz x 0,40 metros de
alto en el centro x 1,40 metros de largo interior. La parte superior de las
bovedillas, que es lo que constituye el piso de los nichos, “se rellena con
mezcla de cal y cascotitos para que queden horizontales. Tanto el piso como
los costados planos llevarán revoque en cal alisado a cuchara la parte inferior
de la bovedilla no deberá revocarse”. De acuerdo al convenio, la excavación de
los cimientos no serán menores de 0,80 metros, el fondo plano y nivelado. La
tierra obtenida deberá ser esparcida a una distancia que no so supere los 50
metros de la periferia de la obra. El ladrillo utilizado deberá ser de clase
superior, la cal de Córdoba y el polvo de ladrillo sin tierra. La mezcla será en
proporción 1 cal en pasta y 4 ½ polvo de ladrillo. El techo del pabellón de
párvulos está formado por “las bovedillas de la última serie de nichos,
rellenadas con mezcla de cal y cascotitos, teniendo la pendiente que marcan
los planos”.
Sobre la superficie se colocarán baldosas de Marsella, especial para
este tipo de techo y se pegarán con una mezcla constituida por 2 de arena
oriental, zarandeada y 1 de Pórtland. Luego de terminada la edificación se
prevé su cobertura con pasto verde, con un espesor de 0,10 metros para que
se seque lentamente y luego se quitará el pasto.
Cada nicho llevará un marco de planchuela de hierro, provistos de
tope para que apoye la tapa de mármol y de “cuatro patitas con forma de
gancho para asegurarse al muro”. Antes de colocarse, los marcos llevarán
como mínimo dos manos de pintura. Las lápidas serán todas de mármol blanco
de 0,20 cm. De espesor y “entrarán exactamente en el marco de modo que en
la parte exterior quede en un mismo plano” y provista de dos manijas formadas
por un botón de zinc o de vidrio con aldabilla.
Se contemplan “4 desagües de zinc Nº 14, embutidos en los muros
con un codo en su parte inferior que pasará por debajo de la vereda”. Se prevé
un sistema de ventilación en cada nicho, que “asegura la salida de los gases a
la atmósfera” y el acceso de aire a cada nicho.
Concluida la construcción, deberá efectuarse “tres manos de blanqueo
de color gris perla, debiendo ser más claras las molduras y partes salientes que
el fondo”.
La abertura de cada nicho “irán cerradas con vidrios fijados con el
mismo revoque y se romperán cuando se vaya a utilizar”, previendo, tal vez, la
usurpación de lugar por palomas tan habituales en la actualidad en nichos en
desuso.
Elementos artísticos simbólicos
Las lápidas del pabellón de párvulos están talladas en bajo relieve con
las técnicas tradicionales de “primer golpe” y / o “punta de diamante”,
presentado algunas la rúbrica del maestro lapidario. Solamente en una placa
de mármol se observa el diseño en relieve y que posiblemente incluyera la
fotografía del difunto. Las correspondientes a las primeras décadas no poseen
florero o jardinera para depositar ofrenda, sí los nichos que fueron ocupados
posteriormente.
En general los elementos gráficos comunicacionales, son tres:
tipografía, grafica alegórica y marcos de encierro. Estos presentan múltiples
variables dadas las características de ejecución y diseño, desarrolladas
mediante plantillas. Las tipografías realizadas sobre estos mármoles son de
molde y manuscritas, a veces estableciendo jerarquías en cuanto al uso de los
tamaños.
Las hay de familias romanas egipcias, palo seco. Variable mayúscula,
mayúscula-minúscula; normal, versalita y gótica.
Las escasas figuras utilizadas en los diseños, constituyen alegorías
relacionadas a temas religiosos, como el querubín y angelito, y a la naturaleza.
Se percibe el uso de elementos minerales para enfatizar la grafica mediante la
aplicación de pórtland que, para una mayor adherencia, el fondo del grabado
presenta pequeñas perforaciones. Una lápida, donde el tallerista no grabó su
rúbrica, el ornato fue esculpido en relieve conformando un marco de encierro. A
ambos lados de los datos del difunto, contorneados por un óvalo, ramas con
flores de pensamientos y pimpollos de rosas se cruzan en la parte inferior y
están unidas por un moño. La porción superior del óvalo presenta un círculo del
que fue extraído la porción del mármol, donde presumimos se habría colocado
una fotografía de porcelana de la difunta, de 22 meses de edad. A más de
presentar la particularidad de no estar provista de las dos manijas formadas por
un botón con aldabilla.
La ocupación
La primera inhumación en la nichera de párvulos se realizó el 23 de
noviembre de 1900. De acuerdo al libro de registro de difuntos, a continuación
se revela la sucesiva ocupación de párvulos en esta unidad arquitectónica:
1900 / 2; 1901/ 9; 1902/ 14; 1903/ 8, 1904/ 25; 1905/16; 1906/ 18; 1907 /16;
1908/30; 1909/ 25; 1910/ 12; 1911/ 19; 1912/ 12; 1913/2; 1927/ 1. Detectamos
solo 3 párvulos exhumados de la extinguida necrópolis de Chivilcoy (1.854 –
1.932) trasladados a éste pabellón.
Debemos resaltar que el actual cementerio de Chivilcoy es el segundo
en erigirse, ya que el pueblo contaba con otro que databa de la época
fundacional.
Edades y causas de muerte en párvulos
Analizado el registro de inhumaciones, las edades se precisan desde
“nació muerto”, horas, hasta los 8 años. Las edades más abundantes
corresponden a recién nacidos hasta los 24 meses.
Con respecto a las nacionalidades todos son argentinos. Hemos observados
que los titulares de los nichos en algunos casos son de familias asentadas
desde hace varias décadas del siglo XIX, como Emilio Ayarza, Félix Moyano, o
que han cumplido cargos públicos como Ernesto Barbagelata.
De acuerdo al registro de difuntos donde unos de los datos que
contamos son las patologías que produjeron las muertes de los párvulos, cada
una de ellas fue tomada en cuenta separándolas con respecto al sistema que
afecta.
Las neuropatías asentadas son la meningitis (aguda, cerebral),
meningoencefalitis, absceso cerebral, encefalitis, derrame cerebral, congestión
cerebral y mielitis. Las patologías del sistema respiratorio comprende la
bronconeumonía, bronquitis (neumonía o pulmonía) congestión pulmonar;
tuberculosis, enfermedad que se produce por la presencia del Bacilo de Koch;
coqueluche o tos convulsiva o ferina. Se incluyen dentro de las patologías del
sistema digestivo gastroenteritis y enteritis que afectó sobre todo a lactantes.
La patología del sistema urinario asentada es la nefritis.
Las causas de muerte por infecciosas comprenden al tétano; la
erisipela, que se manifiesta como un exantema febril caracterizado por la
aparición de placas rojas más o menos extensas producidas por un
Estreptococo; fiebre tifoidea o tifus que produce además de desórdenes
intestinales tumefacción del bazo, una erupción de manchas rosadas; difteria,
caracterizada por la formación de falsas membranas en las mucosas,
especialmente en la laríngea, y en la piel desprovista de epidermis; septicemia,
o simplemente infección. Entre las originadas por accidentes figuran
quemadura, fractura, contusión cerebral. Causas varias: atresia, falta de
desarrollo, nació muerto, púrpura hemorrágica. En algunos casos figura la
uremia como la anemia como causa de muerte, pero esto no corresponde al
término de patologías, sino a una sintomatología de alguna enfermedad. La
meningitis, la enfermedad que causó más decesos, sobre todo en niños
menores de 24 meses, lo mismo la gastroenteritis y con respecto a las vías
respiratorias la neumonía y bronquitis. Cabe acotar que hemos considerado
como sin especificar las que carecían de datos, ya sea no solo por el mal
estado del documento, sino que era ilegible la patología asentada como causal
de deceso.
En este período de densificación la nichera en estudio, no se observó
ningún caso de epidemia que haya ocurrido en la población infantil.
Algunas de las defunciones sucedieron en otros años, ya que hay casos donde
los restos fueron exhumados del cementerio antiguo e inhumados en la nueva
necrópolis.
Azul
Creemos importante reconstruir
el contexto de la funebria en ese
momento.
A principio del siglo se instala en Azul un cementerio destinado a la
población de bajos recursos, integrada por indios, pardos, criollos y algunos
negros, en condiciones de indigencia, que tenían lugar de residencia en las
afueras del pueblo. El mismo llevó el nombre de Cementerio del Oeste o “de
los Pobres”. En forma simultánea seguía funcionando el Cementerio Central
pero en este período destinado a sectores sociales pudientes, en su mayoría
de origen europeo. Sin embargo desde que la necrópolis se inaugura (1856) no
presenta discriminaciones previstas en relación a la edad y tanto párvulos
como adultos son inhumados en mausoleos, bóvedas, nicheras, o bien,
enterrados.
Aunque existe una salvedad ya que en el sector de tierra ubicado en el
cuadrante II sección S O del Cementerio Central todavía encontramos 27
sepulturas que datan de 1898 a 1924 con una iconografía particular cuyos
moradores son niños de 0 a 15 años de edad. Lamentablemente este sector
está siendo reutilizado por la municipalidad, debido a la superpoblación de la
necrópolis y estas lapidas son remplazadas por sencillas cruces de hierro. Del
Cementerio del oeste no se tiene datos por que el mismo se desactiva y es
trasladado para 1953/55. (Expediente N° 4/951, correspondiente al 1-3-951)
Edades y causas de muerte en párvulos
Los resultados que obtuvimos muestran que de los 1.189 casos que
estudiamos, 316 correspondieron al Cementerio Central y 873 al cementerio
del Oeste. En ambas muestras, el nivel etário 0- 6 meses le corresponde el
mayor número poblacional, con 550 infantes muertos para el CO (Cementerio
del Oeste), dividido en: 1910, 98 neonatos. 1911, 97 neonatos, 1913, 112
neonatos, 1914, 79 neonatos y
1915, 86 neonatos. Mientras que en el
Cementerio Central la cifra es inferior 125 infantes a lo largo del lustro que se
distribuyeron en 17, 23, 29, 7, 22, y 27 respectivamente desde 1910 a 1915. En
la categoría 6 meses a 1 año el Nº muestral va disminuyendo aunque es
todavía elevado, los valores para el CO son 130 párvulos en total divididos en
12, 29, 27, 25, 21 y 16 según el orden cronológico antes mencionado. Para el
CC en la misma categoría de edad el número total es de 51 individuos
distribuidos en 5, 9, 10 11 y 7 infantes. De 1 a 3 años en el CO el número sigue
disminuyendo con 112 casos mientras que en el CC hay un incremento con 68
casos. La distribución por año es de 22, 11, 24, 28, 14, y 12 para CO y 5, 4, 4,
4, 0, 4 en el CC. De 3 a 5 años y de 5 a 7 años en el CC decrece el número
notablemente con 21 y 17 individuos en total y lo mismo ocurre en el CO con
23 y 22 individuos, son período que ambas muestras se encuentran casi
equilibradas en número y distribución temporal. En la categoría siguiente 7 a 9
años la distribución de la mortalidad en ambas muestras si bien es equilibrada
por año, en el CO se observa que el número se duplica con respecto al CC los
valores son 10 individuos en total para el CC distribuidos en 2, 1, 1, 3, 1, 2 por
año y para el CO el total es de 19 individuos divididos en 5, 4, 3, 4, 2, 2,
respectivamente. Para la última categoría 9 a 12 años encontramos que en el
CC el número de infantes muertos es de 24, superior al del CO que es de 18
casos para todo el lustro esto creemos que es debido a un brote de Meningitis
que se produce en 1915.
En cuanto a la etiología de muerte en líneas generales se aprecia que
la mayor causa de muerte está dada en lo que dimos a llamar Neonatal, hecho
que creemos lógico en esa época por los condicionamientos que tenían los
embarazos y partos. Más aún si se trataba de población indigente como el caso
del CO donde los números son abrumadores en los cinco años en cuestión. La
segunda causa de muerte está relacionada con patologías a nivel del Sist.
Respiratorio, luego existiría una diferencia intermuestral muy marcada ya que la
tercera causa de muerte en el CO son patologías a nivel del Sist. Digestivo
mientras que para el CC son del Sist. Nervioso, especialmente la Meningitis
hace estragos en este sector social, en 1913 es el mayor pico de este tipo de
enfermedad, superando ampliamente a causas Neonatales. Las causas de
muerte debidas al Aparato cardiovascular si bien su número es significativo en
ambas muestras, no sobrepasa el porcentaje esperado.
En tanto la Eclampsia y la Atrepsia muestran un acentuado incremento
al tratarse de la Población del CO.
Elementos artísticos simbólicos
Si bien no encontramos ninguna ordenanza o documento que dé
cuenta de la existencia de sitios específicos dentro del Campo Santo para el
entierro de párvulos, al recorrer el mismo encontramos una salvedad ya que en
el sector de tierra ubicado en el cuadrante II sección S O del Cementerio
Central todavía encontramos 27 sepulturas que datan de 1898 a 1924 con una
iconografía particular cuyos moradores son niños de 0 a 15 años lo cierto es
que parecería que este emplazamiento se dio en forma espontánea. Las
mismas presentan una iconografía particular en la que distinguimos dos
variables: la primera se trata de una imagen femenina de pasta piedra de
cemento que remplazaría a la cruz. La moldería utilizada tiene elementos que
nos remiten a facciones típicas de la gráfica hindú. Se trata de una mujer de
150 cm. de alto por 80cm. de ancho que tiene entre sus brazos un niño y que
según testimonios cada unidad habría sido cercada por rejas artísticas en
forma perimetral a la sepultura. El otro motivo para estas sepulturas se trata de
la recreación fitomorfa de troncos en cemento que recorren la sepultura en
forma
perimetral
encabezando
la
misma
con
una
cruz
de
iguales
características. En los dos tipos descriptos se da en forma aleatoria el uso de
fotografías no así el dedicar la tumba en homenaje al niño muerto que por lo
general lo hacen sus padres y hermanos.
Conclusiones
Del análisis de los datos estudiados se desprende que para la primera
década del siglo XX tanto en Chivilcoy como en Azul, se observan prácticas
funerarias específicas al tratarse de párvulos. Los mismos tienen la
particularidad que se los separa muchas veces del resto de la familia por más
que esta sea propietaria de una unidad arquitectónica de mayor envergadura y
dentro de la misma necrópolis. Este hecho se puede interpretar como alguna
creencia o hipótesis teológica que se propuso a partir del siglo XIII para explicar
el destino de los que mueren sin haber cometido pecado mortal a temprana
edad con o sin el bautismo. En la pastoral se hablaba del limbo sobre todo en
referencia a los niños que morían sin ser bautizados. Después del Concilio
Vaticano II el concepto del limbo fue abandonado. El Catecismo actual confía el
destino de los no bautizados en las manos de Dios. Y es un hecho que los
niños actualmente no tienes un lugar particular y diferente que el del resto de
los difuntos.
En cuanto a los datos sobre causas de muerte en líneas generales las
afecciones son similares tanto para el oeste como para el centro de la provincia
con la salvedad que en Azul al estar discriminado los sectores sociales en
cementerios diferentes, se puede hacer otra lectura como resultado de una
sociedad dispar.
Nichera de párvulos, Chivilcoy
Funebria de infante, Azul
Agradecimiento
A la Lic. Gabriela R. Poncio, Profesional Principal Comisión de Investigaciones
Científicas del Gobierno de la Provincia de Buenos Aires (CICPBA).
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- Ortega Exequiel, 1996. “Diez grandes olvidados en un siglo de historia Azuleña”.
Ensayo. Publicación del diario El Tiempo, Azul
A MORTE E O CEMITÉRIO DA PIEDADE NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XIX EM CUIABÁ
Maria Aparecida Borges de Barros Rocha – UFMT
Resumo
Na segunda metade do século XIX a cidade de Cuiabá se deparou com a morte, representada
por quatro terríveis acontecimentos: a eclosão da Guerra do Paraguai, a varíola, as enchentes
do rio Cuiabá e a fome. Os soldados que voltavam para casa depois da guerra trouxeram a
varíola para a cidade enquanto as enchentes do rio Cuiabá trouxeram a fome para toda a
região.
Palavras-chave: Cuiabá, Cemitério da Piedade, Guerra do Paraguai
1.1 – A GUERRA DO PARAGUAI E A PROVÍNCIA DE MATO GROSSO
Este texto pretende discutir a realidade vivida pela população da
Província de Mato Grosso e da cidade de Cuiabá na segunda metade do
século XIX, ao se defrontar com uma realidade trágica, envolvendo a guerra, a
fome, a peste e a morte.
A Guerra do Paraguai teve início durante o Governo do General
Alexandre Manoel Albino de Carvalho, a partir de hostilidades geradas pelo
apresamento do navio brasileiro Marquês de Olinda e detenção de seus
passageiros, entre os quais o novo presidente da província e vários oficiais,
que seguiam para Cuiabá. No desenrolar dessa guerra a Província de Mato
Grosso foi invadida. A Província de Mato Grosso, pela proximidade do
Paraguai e pela baixa densidade demográfica, parecia presa fácil aos
paraguaios, mas, enquanto Solano Lopez proclamava vitórias no território
mato-grossense, o Império brasileiro preparava uma contra-ofensiva para levar
o embate ao solo inimigo. Em janeiro de 1865, Augusto Leverger partiu para a
colina de Melgaço, a fim de enfrentar a flotilha paraguaia que ameaçava a
capital. Retornando à Cuiabá, Leverger assumiu o governo, acumulando
também o cargo de comandante das armas. A 13 de Julho de 1867 o ten-cel
Antônio Maria Coelho, saiu de Cuiabá com o 1º Corpo de Vanguarda,
retomando Corumbá, cidade que estava assolava pela epidemia de varíola
que foi levada à Cuiabá pelos soldados que regressaram. Mais da metade da
população de 12.000 habitantes teria perecido, conforme relato de Moutinho:
Em 1867, a ceifa de inumeráveis vidas pelo flagelo das bexigas acabou
de abater o animo da população, que no curto período de dois meses foi
reduzida a menos da metade na capital1.
A segunda metade da década de 1860 foi um período penoso para a
população de Cuiabá, estabelecendo uma forte relação de proximidade com a
morte. Em novembro de 1864 deu-se a inauguração do Cemitério da Piedade.
Em dezembro do mesmo ano as tropas paraguaias invadem o sul da província.
Na mesma época as águas do rio Cuiabá invadem a cidade e devastam
plantações ribeirinhas, trazendo a fome. Em 1867 a população cuiabana é
assolada pela epidemia de varíola.
1.2 - A CIDADE DE CUIABÁ E O GRANDE CONFLITO - O MEDO DA
GUERRA
A notícia da invasão paraguaia no sul da Província de Mato Grosso
trouxe medo aos cuiabanos. Parecia a todos que os inimigos paraguaios
poderiam a qualquer momento chegar à capital da Província e que nada
poderia ser feito para impedir seu avanço2.
Instalou-se na cidade um clima de pânico geral, e aqueles que podiam se
preparavam para fugir da capital da Província antes que os paraguaios
chegassem. O medo da guerra e da morte tomou conta das pessoas de uma
forma geral3.
A cidade de Cuiabá e seus moradores viviam sob um clima de terror e
insegurança gerado pelo medo do outro, do estrangeiro, daquele que até então
era vizinho, mas, sua presença poderia significar a morte iminente. A Guerra do
Paraguai e suas funestas conseqüências como a peste e a fome trazem
transformações nas relações de homens e mulheres com a morte. Delumeau
avalia essas transformações à partir da peste:
Que diferença do tratamento reservado em tempo comum aos doentes que
parentes, médicos e padres cercam de seus cuidados diligentes! Em período
1
MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícias sobre a Província de Mato Grosso. S
VOLPATO, op. cit. p. 58
3
MOUTINHO, Joaquim Ferreira. p.69
2
de epidemia, ao contrário, os próximos se afastam, os médicos não tocam os
contagiosos, ou fazem-no o menos possível.4
Podemos considerar que em tempos de normalidade a morte não se
apresenta sem seus principais rituais característicos obedecendo a liturgias
religiosas, tradições e costumes locais. Em tempos de guerra, de fome ou de
peste faz-se a abolição de todos os paramentos e cuidados que tornava a
morte individualizada, personalizada e ritualizada. Em Cuiabá na segunda
metade do século XIX temos a determinação de um campo santo específico
para os enterramentos dos mortos pela varíola, a peste que assola a cidade.
Para os vivos, é uma tragédia o abandono dos ritos apaziguadores que em
tempo normal acompanham a partida deste mundo. Quando a morte é a esse
ponto desmascarada, indecente, dessacralizada, a esse ponto coletiva,
anônima e repulsiva, uma população inteira corre o risco do desespero ou da
loucura, sendo subitamente privada das liturgias seculares que até ali lhe
conferiam segurança e identidade5.
Delumeau considerando o romance, o teatro e o discurso literário,
ressalta a valentia individual dos heróis como característica individual dos
nobres, enquanto o medo seria o quinhão vergonhoso e característica coletiva
dos pobres6. Talvez devêssemos nos perguntar se um dia esse sentimento de
medo deixará de nos acompanhar ou será menos inerente à nossas vidas.
1.3 – COMO PREPARAR-SE PARA MORRER, OU O MEDO DA MORTE
NOS TESTAMENTOS OITOCENTISTAS
De acordo com as leituras dos testamentos da época, uma nova
condição se apresenta a essa população, pois, a morte estaria sempre à
espreita e o medo da morte sempre presente fosse ela representada pela
guerra, pela peste, ou pela fome. O medo da morte, o mais lancinante dos
medos envolve homens e mulheres arrebatando a todos, podemos tentar
imaginar como se desenrolou em Cuiabá o enfrentamento de uma conjunção
de fatores extremamente perigosos como já apresentados, quando então, já
não era possível se preparar para esse momento fatal. Um dos passos mais
4
DELUMEAU, op. cit. p.123
Ibidem, idem, p. 125
6
Ibidem, idem, p. 15
5
importantes nos momentos que antecedem a hora da morte,era a preparação
do testamento. Avaliava-se o risco caracterizado pela morte súbita sem as
últimas disposições e vontades registradas, o que poderia prejudicar a
salvação da alma.
A História de Mato Grosso indica que os bandeirantes quando partiam
para o interior, sabendo dos perigos que enfrentariam e das desventuras que
poderiam sofrer nessas jornadas faziam testamentos. Redigir um testamento
fazia parte dos preparativos para essas viagens. Aqueles que empreenderiam
longas viagens e temiam os males reinantes em uma terra pouco conhecida e
pouco povoada; aqueles que se viam acometidos por males súbitos; aqueles
que mesmo em perfeita saúde, mas, temendo a morte que a todos era natural,
procuravam também dispor de seus bens através dos testamentos.
Sabe a morte coisa mui ordinária, natural aos homens. Reconhece que, como
humano, é mortal e pode morrer, no dizer simplório de um deles. Arreceia-se
da morte, porque, no dizer saboroso de outro, somos alfim de fraco metal. E,
por não saber da morte nem da vida, aparelha-se para a jornada terrível7.
No século XIX, a morte é para todos, uma passagem e essa passagem
que, conforme Ariès, não admite fraudes, deveria ser organizada através de
cerimônias. Nenhum homem ou mulher oitocentista duvida que haja no
Universo uma parte invisível e incognoscível, assim como acham que entre o
mundo em que vivemos e esse outro mundo haja uma fronteira transponível. A
partir dos testamentos oitocentistas percebemos uma relação com a morte
diferente daquela que vivemos hoje. Pensamos como Duby que:
A morte tornava-se certamente menos aterrorizante pela certeza que se tinha
de não desaparecer completamente, pela garantia de sobreviver, senão
corporalmente, pelo menos sob uma outra forma, esperando a ressurreição dos
mortos8.
Ainda que faça parte da vida, a morte não pode ser identificada como
um acontecimento comum. Para homens e mulheres do século XIX, a morte
causava grande angústia e medo, merecendo cuidados especiais, podemos
perceber esses sentimentos de intranqüilidade nos testamentos oitocentistas.
7
8
Ibidem, idem, p. 213
Ibidem,idem, p. 127
Uma das fontes mais utilizadas nos estudos do comportamento de homens e
mulheres diante da morte, os testamentos, geralmente efetuados nos
momentos que a precedem, são fartos documentos indicadores das relações
com a vida e com a morte, pois expressam as últimas vontades dos testadores
quanto aos seus bens materiais, assim como quanto às suas necessidades da
alma9.
Os testamentos, em tempos de guerra, de peste ou de paz, são
utilizados como espaços de negociação com o além. Pois, o principal motivo ou
a principal preocupação do testador ao fazer redigir um testamento era o temor
da morte que poderia se fazer presente em qualquer momento, principalmente
numa região de fronteira que se encontrava, naquela ocasião vivendo um
conflito armado. Muitos buscam esse expediente apenas ao se depararem com
a iminência da morte. A década de 60 do século XIX em Cuiabá foi uma
ocasião propícia para esses cuidados, pois, a população se deparava com a
Guerra do Paraguai e a proliferação da varíola. O enfrentamento de um grande
conflito como a Guerra do Paraguai trará para a população da Província de
Mato Grosso e da cidade de Cuiabá uma realidade totalmente nova que
acabará por facilitar a desestruturação de uma organização social que
determinava as relações com a morte até então desenvolvidas em torno das
irmandades
religiosas
e
dos
enterramentos
nas
igrejas.
Os
novos
enfrentamentos com a morte a partir da Guerra e da peste trará à população
uma dura realidade, quando se desenvolverá uma nova relação com a morte,
não havendo outra alternativa além da aceitação do Cemitério da Piedade.
1.4 - A CONSTRUÇÃO DO CEMITÉRIO DA PIEDADE – UMA NOVA
RELAÇÃO COM A MORTE.
A construção do Cemitério da Piedade envolveu um longo processo e foi
precedida por intensa discussão em torno de sua necessidade, havendo desde
1835 consignação de verbas para sua construção, assim como a proibição de
enterramentos no interior das igrejas e regulamentação interna para os
cemitérios. Em 03 de maio 1852 Augusto Leverger, na Presidência da
9
ROCHA, Maria Aparecida Borges de Barros Rocha, Transformações nas práticas de enterramentos em
Cuiabá, 1850-1901, p. 123.
Província, discorria, em seus relatórios, sobre a necessidade de se abandonar
os enterramentos nas igrejas:
Entretanto, não deve ser tal a confiança na salubridade do clima que se
julguem dispensáveis as providências higiênicas, que foram indicadas em
diversos relatórios de meus antecessores na Presidência, como sejam o
estabelecimento de cemitérios, a fim de por termo aos enterramentos nas
igrejas.
Em 1859 o relatório do então Presidente de Província Joaquim
Raymundo de Lamare, apresentado à Assembléia Provincial em 03 de maio,
sete anos depois denuncia as mesmas práticas de enterramentos e defende a
construção de um Cemitério Público para a inumação dos cadáveres. A mesma
discussão aparece em 20 de maio de 1861 no Relatório do Presidente de
Província, Coronel Antônio Pedro de Alencastro:
Torna-se de urgente necessidade um cemitério, a fim de cessar os
enterramentos nas igrejas. A Câmara desta capital reconhece como uma das
necessidades que reclamam mais pronta providência, a construção de um
cemitério fora da cidade e pede para isso um auxílio que, parece-me, se lhe
não deve negar.
O Presidente de Província Herculano Penna anunciaria em relatório de
1863 que o Cemitério da Piedade estaria quase pronto para ser entregue e
servir à população. Em julho do mesmo assumiria a Presidência da Província o
Brigadeiro Alexandre Manoel Albino de Carvalho que declara em relatório de
03 de maio de 1864:
À minha chegada a esta capital, se tive o desgosto de ver que ainda aqui
existia semelhante costume, alegrei-me de observar o estado de adiantamento
da Capelinha de Nossa Senhora de Piedade, em construção, logo acima do
antigo e mesquinho cemitério desta cidade.
A criação do Cemitério ganha maior relevância na gestão do Presidente
Manoel Albino, indica no mesmo relatório a urgência da questão, declarando:
Não censuro, mas deploro que em 1864 ainda se enterrem cadáveres nas
igrejas de Cuiabá, conjuro-vos, pois, senhores, a extirpar um costume
atualmente reprovado por todos os povos civilizados, e já extinto em todas as
demais províncias do império.
O Cemitério da Piedade foi, no entanto, inaugurado pelo bispo da
arquidiocesse local, assim como sua capela, no dia 02 de Novembro de 1863.
Localizado próximo ao Primeiro Distrito do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, viria
a dividir funções com dois outros cemitérios públicos denominados Cemitério
de São Gonçalo e Cemitério do Cai Cai, que atendiam respectivamente à
região do Segundo Distrito e aos enterramentos dos variolosos de 186710.
1.5- O CEMITÉRIO DA PIEDADE – TÚMULOS E EPITÁFIOS DE HERÓIS DA
GUERRA DO PARAGUAI
O Regulamento para os Cemitérios Públicos de 1864 propõe rígido
controle sobre a utilização de túmulos, epitáfios e inscrições tumulares,
determinando que nenhuma inscrição ou epitáfio será admitida nos campos
sepulcrais ou monumentos, sem licença da autoridade eclesiástica. Os túmulos
e epitáfios do Cemitério da Piedade trazem em suas lápides os sentimentos
manifestados pelas famílias dos falecidos, assim como os adornos utilizados e
seus significados de acordo com a mentalidade da época. Encontramos nesse
cemitério túmulos de procedência da cidade do Rio de Janeiro, então, capital
do Império, assim como túmulos de procedência da cidade de Assunção,
capital do Paraguai, vindo a confirmar intensas relações comerciais
estabelecidas pela Província de Mato Grosso e esses dois centros.
O Cemitério conta atualmente com um número reduzido de túmulos
datados do século XIX, esses, no entanto, guardam peculiaridades em sua
ornamentação, em especial os túmulos daqueles que foram considerados
heróis da Guerra do Paraguai. Multiplicam-se os túmulos com epitáfios
enaltecedores dos méritos e feitos dos inumados sejam eles pais, esposos,
filhos ou cidadãos honrados. Muito mais procurar-se-á fazer quando se trata
daqueles que tombam no front de batalha11. A Guerra do Paraguai terá relação
direta com a construção do Cemitério da Piedade, não apenas porque esse
campo santo será inaugurado no mesmo ano do início da guerra, mas também
porque em seu interior encontramos túmulos que guardam restos mortais de
10
11
ROCHA, op. cit. p. 38.
CORBIN, História da Vida Privada, Vol. 4, p. 427
soldados que perderam a vida servindo à pátria nessa guerra, muitos desses
soldados são anônimos, enquanto poucos são considerados heróis como
Augusto Leverger, o Barão de Melgaço.
No Cemitério da Piedade o túmulo de número 361 guarda os restos
mortais do coronel Rogaciano Monteiro de Lima, exemplo de túmulo de um excombatente que durante a Guerra do Paraguai defendeu as cores do Império
contra a invasão inimiga. Um túmulo com porte imponente que é
reconhecidamente um monumento àquele que lutou em campo inimigo12. O
túmulo do Sr. Antonio Peixoto de Azevedo de número 658, traz várias
representação de armas que remetem à sua participação na guerra, como uma
espada, um elmo, uma machadinha e uma bandeira além de um epitáfio
indicando que ali jaz um ex-combatente reconhecido como herói pela
Assembléia Provincial de Mato Grosso.
À memória do ilustre cuiabano Antonio Peixoto de Azevedo, um dos heróis de
Paysandú. Faleceu em Curuzú a 10 de janeiro de 1867, defendendo o Império
contra o governo do Paraguai, contando de idade 47 anos e dois meses. Orai
pelo eterno descanso do bom filho, bom esposo, prestante cidadão e amoroso
pai. Homenagem da Assembléia Provincial de Mato Grosso. Lei de 2 de julho
de 1868.
No Cemitério da Piedade, túmulos como os anteriormente citados têm o
propósito de preservar a memória daqueles que tombaram nos campos de
batalha, seus epitáfios trazem declarações que confirmam suas atividades no
desenrolar da Guerra do Paraguai. O túmulo nº 920 também merece ser
referenciado porque pode ser identificado como túmulo de um herói de guerra,
guarda os restos mortais de Augusto Leverger, personalidade marcante da
História de Mato Grosso e personagem central no desenrolar daquele que foi o
maior conflito do Império Brasileiro. Por sua participação nesse conflito,
recebeu o Título de Barão de Melgaço. Seu epitáfio, no entanto, é bastante
sucinto:
Ao chefe de esquadra Augusto Leverger
Reconhecimento do Estado de Mato Grosso, 1865.
Decreto nº 8, de 13 de julho de 1891.
12
ROCHA, op. cit. p. 108
Logo abaixo dessa inscrição o túmulo apresenta uma carta geográfica
da Província de Mato Grosso, que teria sido desenhada pelo próprio Augusto
Leverger, indicando todos os limites da Província.
As preocupações dos
familiares dos falecidos se concentravam em representar nos túmulos suas
manifestações de pesar pela perda do ente querido, ornamentando-os de modo
a buscar a perpetuação de sua memória, daí a apresentação de dados
biográficos valorizando as principais virtudes morais ou cívicas do falecido para
o reconhecimento no pós-morte. Os heróis da Guerra do Paraguai não
deveriam jamais ser esquecidos13.
7 - CONCLUSÃO
O conhecimento e a reflexão sobre esses fatos do passado não nos
possibilita o advento de respostas prontas para diversas questões do presente
que nos remetem a pensar a morte a partir de conflitos armados, epidemias e
intempéries naturais a nos surpreender quando tolhem grande número de
comunidades, cujo sofrimento acompanhamos, através dos noticiários da TV
ou das informações da Internet.
Temos a convicção de que os acontecimentos históricos não se repetem
e que as pessoas possuem inesgotável capacidade de luta utilizando
criatividade além da vontade inata de permanecerem vivas. Mas, sabendo
também da fragilidade humana, não nos esquecemos dos povos que se
digladiam em guerras, assim como determinadas epidemias que continuam
matando em nosso país.
Não podemos deixar de relacionar essas realidades com o pânico vivido
pelos cuiabanos no século XIX diante da Guerra do Paraguai ou diante da
varíola, afinal é o medo da morte afligindo a todos, mesmo aqueles mais
jovens. Da mesma forma pensamos nas enchentes e outras intempéries
naturais que tem surpreendido e devastado vidas humanas. Nessas ocasiões
podemos identificar o risco de morte que se apresenta revestida das mais
diversas e violentas formas de aniquilamento, enquanto homens e mulheres
percebem que nada podem contra ela.
13
ROCHA, op. cit. p. 109
Referências Bibliográficas
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enterramento – Cuiabá, 1850-1889. Cuiabá: Central de Texto.
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1850-1888. Cuiabá: Marco Zero/EdUFMT, 1993.
La arquitectura funeraria masónica en cementerios latinoamericanos
María Carlota Sempé1
Rizzo Antonia2
Emiliano Gómez Llanes3
Resumen
Los cementerios urbanos latinoamericanos con su planificación de avenidas y calles
de su parquización, y arquitectura de panteones familiares y públicos, son parte
sustancial de la ciudad y un lugar de memoria social donde se preserva una parte
importante del patrimonio cultural. El registro de los monumentos funerarios en los
cementerios de La Plata, Central y del Buceo de Montevideo y el de Colón en Cuba
y su estudio iconológico permitió adscribir parte de sus manifestaciones al
simbolismo masónico.
A través de la aplicación de conceptos como campo y habitus (Bourdieu, 2005: 26) y
el análisis iconológico (Panofski, 1984) del simbolismo funerario se establece la
existencia de una práctica funeraria masónica.
Palabras clave: cementerios – prácticas funerarias - masonería
Introducción
Los cementerios urbanos latinoamericanos con su planificación de avenidas y
calles de su parquización, y arquitectura de panteones familiares y públicos, son
parte sustancial de la ciudad y un lugar de memoria social donde se preserva una
parte importante del patrimonio cultural. El registro de los monumentos funerarios en
los cementerios de La Plata, Central y del Buceo de Montevideo y el de Colón en
Cuba y su estudio iconológico permitió adscribir parte de sus manifestaciones al
simbolismo masónico.
Metodología
A través de la aplicación de conceptos como campo y habitus (Bourdieu, 2005: 26)
y el análisis iconológico (Panofski, 1984) del simbolismo funerario se establece la
1
Doctora en Ciencias Naturales, Licenciada en Antropóloga. Investigadora Principal CONICET. Profesora Titular y
Docente e investigadora FCNYM UNLP. Directora Laboratorio de Análisis Cerámico. Facultad de Ciencias Naturales
y Museo .UNLP. Tiene publicados libros y numerosos trabajos en Jornadas, Simposios, Encuentros, Congresos
Nacionales e Internacionales. Asistencias a numerosos eventos nacionales e internacionales. Directora de Tesis
Doctorales .Directora del Proyecto de Investigación “Estudio antropológico integral del cementerio de La Plata y su
comparación con otros cementerios urbanos”. carlota_sempe@yahoo.com.ar
2
Doctora en Historia. Arqueóloga. Docente e investigadora .Carrera Antropología Miembro del Laboratorio de
Análisis Cerámico. Facultad de Ciencias Naturales y Museo .UNLP. Tiene publicados libros y numerosos trabajos
en Jornadas, Simposios, Encuentros, Congresos Nacionales e Internacionales. Asistencias a numerosos eventos
nacionales e internacionales. Directora de Tesis Doctorales .Codirectora del Proyecto de Investigación “Estudio
antropológico integral del cementerio de La Plata y su comparación con otros cementerios urbanos”
ninarizzopucci@yahoo.com.ar
3
Alumno de la carrera de Sociología Universidad de La República. Uruguay. Investigador libre adscripto al
Laboratorio Análisis Cerámico. UNLP
E mail : emilianollanes@yahoo.com.ar
existencia de una práctica funeraria masónica. Cada campo tiene su lógica
específica, basada en la reputación, la opinión y la representación sociales
(Bourdieu, op. cit. 2005: 113). Los monumentos funerarios, como forma de
representación, exponen el capital simbólico acumulado por el individuo en vida y
las manifestaciones simbólicas, expresadas en la arquitectura funeraria están
estrechamente ligadas con el sistema de creencias e ideologías sustentadas por los
individuos en vida (Sempé et al., 2004)
La lógica interna del campo social masónico, posibilita a sus integrantes una red
de relaciones, institucionalizadas, que pueden visualizarse como prácticas de
reconocimiento que se objetivan en el campo funerario a través del uso de
emblemas, símbolos, placas conmemorativas y epitafios. Aún dentro de la
uniformidad en la simbología masónica, sus integrantes darán una diferente
significación a la misma de acuerdo a su posición y capital simbólicos acumulados
dentro del campo masónico. Un símbolo, dentro del carácter polisémico inherente al
mismo (Gombrich, 1999: 243), tiene un significado en el grado de aprendiz, para el
compañero adquiere nueva significación y para el maestro otra. Se podría decir que
a medida que se ascienden en los grados masónicos aumenta la polisemia del
símbolo.
Contexto Histórico
A fines del siglo XIX y primera mitad del XX la acción de la masonería, positivista,
progresista y laicista dejó una impronta profunda en las instituciones de los estados
latinoamericanos. La participación en las logias de importantes políticos,
intelectuales, profesionales, empresarios, comerciantes, ganaderos y agricultores, le
dieron a la masonería una inserción social fundamental de la cual sacó su poder
para generar cambios en la estructura social y política. En las ciudades de ambas
márgenes del Río de La Plata la influencia masónica se observa en edificios
públicos, mansiones y palacios de las asociaciones de socorros mutuos de las
comunidades inmigrantes y que han posibilitado establecer la existencia de un
“Montevideo Masónico” (Dotta Ostria, 2005: 7).
Expresiones funerarias masónicas
A diferencia de Argentina, en Uruguay y Cuba hay monumentos funerarios de
carácter institucional, posiblemente esta clara explicitación de la existencia de logias
y de pertenencia por parte de sus integrantes esta relacionada a la independencia
del Estado respecto a la Iglesia. Se observa en los epitafios la alusión a la condición
masónica del inhumado o de los panteones institucionales. Tal el caso de los
homenajes de las instituciones uruguayas como el Supremo Consejo de Grado 33,’.
uno de ellos, lleva el emblema del águila bicéfala, dice ‘EL SUPREMO CONSEJO
EN SU 150 ANIVERSARIO A SUS HERMANOS PASADOS AL ORIENTE ETERNO’
1855 - 24 DE JUNIO - 2005’(fig.1). Lo mismo ocurre en Cuba con el Panteón de la
Gran Logia (fig.2) con las placas con los nombres de todos sus asociados fallecidos.
Otras logias se expresan a través de sus epitafios tomando como ejemplo en
Uruguay Les Amis de la Patrie (fig. 3) fundada en Montevideo en 1827, dependiente
en sus orígenes del Oriente Francés y a la que perteneció Garibaldi. El Panteón de
Libertad y Unión que levantó columnas en 1889 (Fig. 4), que muestra la imagen de
la espada flamígera con un gorro frigio en su extremo, las manos tomadas a la
manera masónica y las ramas de laurel cruzadas detrás del pomo de la espada.
También están representados, el compás y la escuadra, la plomada, el triángulo y la
regla, cruzados sobre un mallete. Encontramos dedicatorias como ‘SUS AMIGOS
LIBREPENSADORES A MANUEL RAUL DELIOTTI’ (Fig.5); otro dedicado a Ariel
Raúl Leirós Coppola con la frase ‘AL LIBRE PENSADOR EN TU MEMORIA EL
RECUERDO DE TU ESPOSA, HIJOS Y HERMANOS DE LA MASONERÍA’. (Fig.6).
En el cementerio de Colón, en La Habana Cuba son innumerables los monumentos
funerarios institucionales pertenecientes a logias, registramos el de la Logia La
Habana nº 4 perteneciente a la orden independiente de los Odd Fellow con sus Tres
Lazos (fig.7 ); la logia Perseverancia (fig.8) con sus tres escalinatas que con sus
escalones señalan a los aprendices, compañeros y maestros y que presentan en la
entrada las columnas de Jachim y Boas.
En la Argentina panteones con el icono de la escuadra y el compás se encuentran
en el cementerio de Chivilcoy perteneciente a Prudencio Moras (Fig. 9), donde este
emblema de la masonería se asocia a la estrella flamígera y en Mar del Plata el de
Sampietro ( Fig. 10 a y b), donde se asocia al triángulo, el reloj de arena alado, el
ouroboros y el disco solar, ambos propietarios fueron venerables de las logias Luz
del Oeste nº 55 y 7 de junio de 1891
Capital simbólico funerario
La ornamentación de los monumentos funerarios esta compuesta por signos que
tienen una significación masónica, adquiriendo así el carácter de símbolos. El estilo
Neoclásico fue usado por los miembros de la masonería por su racionalismo y
pureza de líneas, tal el caso del pórtico neoclásico del Panteón Nacional Uruguayo
cuya metopa, alterna los símbolos masónicos del cráneo cruzado por huesos y la
clepsidra alada rodeada por el oruroboros (fig. 11). El primero presente en la
medalla masónica de la logia uruguaya Caridad 2ª de Dolores (Lozano Nell, 1992:
62) que comenzó a funcionar en 1862 y el segundo se registra en diversas bóvedas
masónicas de integrantes conspicuos de la masonería argentina como Manuel
Langenheim, (Fig. 12) y Regino Letchos (Figura 13) en La Plata (Sempé y Rizzo,
2003: 127, 134 y 141) y en monumentos funerarios de los cementerios de
Montevideo (fig.14).
Algunas logias aluden al simbolismo egipcio, expresado arquitectónicamente a
través de la apropiación de las estéticas periféricas realizada por el art decó en la
década de 1920 (Viera, Sempé y García, 2006). Tal el caso de las denominadas
Osiris e Isis uruguayas, en el cementerio del Buceo montevideano se registran la
esfinge (fig.15), el sol alado, las columnas lotiformes (fig. 16) y las pirámides (fig.
17). La adscripción masónica de estos símbolos ha sido señalada en el cementerio
de La Plata (Sempé, 2003), como el panteón de Carbonell (fig.18), integrante de la
logia La Plata 80, y Pelanda Ponce (Fig.19). En el cementerio general de Chile son
varias las bóvedas con arquitectura egipcia, esfinges y soles alados (fig.20), lo
mismo ocurre en el cementerio de Colón (fig.21 ).
Significación de los iconos funerarios encontrados.
El Reloj de arena alado (o clepsidra) representa el fluir del tiempo y su
consumación con la muerte del hombre. Como creación humana, es solo una
apariencia, en el pensamiento el presente se eslabona con el pasado y el futuro, lo
concreto es la eternidad (Chevalier y Gheerbrant, 1995: 877).
El disco solar alado representa la sublimación y transfiguración y en concordancia
con ello es el símbolo de la inmortalidad y la resurrección (op. cit., 1995: 423).
Ouroboros: es la serpiente que se muerde la cola y adquiere una forma circular
para significar el universo sin principio ni fin, la eternidad, también dentro de sus
múltiples significados indica el cumplimiento de un ciclo, del de la vida.
Dentro de las herramientas de construcción, emblemas usados en la masonería, la
plomada simboliza el eje cósmico y significa la rectitud del esfuerzo espiritual y del
conocimiento. La escuadra y el compás representan una forma de reconocimiento.
Su significación es profunda y esta relacionada con el grado de conocimiento
alcanzado. Es notable que el compás se convierte en escuadra cuando su abertura
es de 90 grados, que marcan los límites del hombre y del logro de la armonía entre
el espíritu y la materia, momento en que posiblemente se produce el acto creador.
Cuando el compás marca los 45 grados significa que el espíritu aún no ha dominado
a la materia. Si la escuadra se sobrepone al compás, la materia domina al espíritu y
viceversa, si ambos se entrecruzan las fuerzas de la materia y el espíritu están
equilibradas.
El mallete, símbolo de la autoridad del maestro, tiene como significado la
inteligencia que dirige al pensamiento y se acompaña del cincel que representa al
discernimiento humano. La regla simboliza el perfeccionamiento, se utiliza en la
iniciación del aprendiz. Esta dividida en 24 grados cuyo significado se corresponde
con el ciclo solar diario. La llana es el instrumento de igualar
La Estrella de cinco puntas o pentalfa es uno de los símbolos mas frecuentes en
las tumbas masónicas de los cementerios de Uruguay, representada como estrella
flamígera ‘es el emblema del genio que eleva el alma a cosas grandes’, también es
el producto de la síntesis de la fuerzas complementarias (Chevalier y Gheerbrant,
1995:811).
El
enlozado
mosaico
en
blanco
y
negro
(ajedrezado),
simboliza
la
complementariedad de los principios cósmicos, lo positivo y lo negativo. Es un signo
de reconocimiento masónico (op cit. 1995:507).
El triángulo flamígero o Delta luminosa tiene significación ternaria, define a las
tríadas como la sabiduría, la fuerza y la belleza; pasado, presente y porvenir; ocupa
siempre una posición central. Simboliza la eternidad del tiempo y es el germen de
inmortalidad (Chevalier y Gheerbrant, 1995: 1020-21). Los rayos que salen del
triángulo representan la gloria de la razón y la verdad. Suelen tener inscripto el ojo
que todo lo ve que es la omnisciencia de la razón superior (Guenon, 1976), o la letra
G que representa al Gran Arquitecto del Universo o la Gnosis.
El Ouroboros es una serpiente mordiendo su cola, un círculo eterno donde nada
muere o se destruye, simplemente se transforma, este es el concepto de muerte
masónico (Pérez Ruiz, op. cit.), a la vez que es la representación de la eternidad
porque su circularidad da base al concepto de universo sin principio ni fin.
La esfinge es el futuro ineluctable, como expresión de lo infinito es el comienzo de
un destino al cual lo finito fluye (Chevalier y Gheerbrant, 1995: 469-470).
Las columnas ubicadas a ambos lados de la puerta de entrada al templo o
monumento funerario, simbolizan las columnas Jachim y Boas del templo de
Salomón. Su significado es la guarda de la entrada al lugar sagrado marcan el paso
simbólico de la vida terrenal a la muerte como verdadera vida, el oriente eterno.
El oriente eterno es el lugar de los muertos, en el que se encuentran los masones,
es un lugar de verdadera vida, donde los Maestros se han consumado en su
proceso de perfeccionamiento interior, es el lugar donde se superan los fracasos y
los prejuicios al enfrentarse con el cosmos (Pérez Ruiz, 1996).
Conclusiones
Si la ritualidad es la observancia de formalidades prescritas para hacer una
cosa, en los cementerios latinomericanos se visualizan los habitus de los integrantes
de las logias masónicas que utilizan un conjunto de signos, como recordatorios o
ideas guías para la acción. La simbología usada tiene un alto grado de
estandarización en sus iconos, tal como corresponde a la ritualidad masónica que
sobresale por su fuerte estructuración. Los contextos de asociación y características
particulares de los iconos usados, como en el caso de las diferenciadas encontradas
en los grados de abertura del compás en las distintas sepulturas o su forma de
superpoción con respecto a la escuadra, muestran el capital simbólico acumulado
por los individuos en vida y el proceso de perfeccionamiento interior y desarrollo del
conocimiento de los integrantes de la comunidad masónica, por lo cual la hipótesis
que, los individuos darán una diferente significación a los mismos de acuerdo a su
posición y capital simbólico acumulado dentro del campo masónico, consideramos
queda demostrada.
La simbología usada en las expresiones funerarias esta claramente relacionada
con la de los ritos y emblemas de las logias masónicas, tal como lo demuestra la
simbología egipcia como ornamentación del frente de la logia Hijos del Trabajo de
Buenos Aires, por lo cual la estética periférica del Art Decó referida a la arquitectura
de raíz egipcíaca, no fue solo una moda sino que tuvo una intencionalidad
relacionada con el sistema de creencias masónicas. Las expresiones institucionales
de pertenencia a la masonería se encuentran claramente explicitadas en los
monumentos funerarios, a diferencia de lo que ocurre en los cementerios urbanos
de la Argentina, lo cual puede atribuirse a la profunda tradición liberal y progresista
de la comunidad uruguaya y a la separación del culto religioso del estado, que
posibilita a las instituciones sociales y a los individuos que la integran una mayor
libertad de acción. Los epitafios y sus contenidos se pueden clasificarse dentro de
las prácticas de reconocimiento institucionales o de sectores sociales, como los
amigos, colegas y familiares.
Bibliografía
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Corbiere, E. J. 1998 La masonería, Política y Sociedades Secretas en la Argentina.
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Provincia de Buenos Aires Dr. Ricardo Levene.
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Viera M., M. C. Sempé y T. García, 2006 La recepción del Art Decó en el cementerio
de La Plata. 3er. Congreso Nacional de Arqueología Histórica Rosario. Editado en CD
Escuela de Antropología. Universidad Nacional de Rosario.
Os Riscadores de Pedra: produtores de uma alegoria funerária cristã.
Dra. Maria Elizia Borges
FCHF/ FAV - UFG
Resumo
Este artigo parte de um levantamento de um tipo de produção funerária realizada pelos
“riscadores de pedra”, artesãos que concentraram sua produção no Estado de Goiás, no início
do século XX. O resultado dos desenhos lavrados na superfície da pedra é estilizado,
compõem-se de alegorias cristãs de fácil reconhecimento, bem ao nível da arte popular. No
período colonial, nas igrejas brasileiras, os artesãos de época também lavravam as lápides
sepulcrais com símbolos escatológicos, uma influencia da cultura européia.
Palavras-chaves: Riscadores de pedra; Estado de Goiás; lápides sepulcrais; Estado do
Maranhão.
Os “riscadores de pedra” eram artesãos que trabalhavam nas
marmorarias, no setor de produção, responsáveis por certos tipos de
acabamento em túmulos considerado de modelo simples. Provavelmente este
tipo de artista-artesão surgiu no Brasil a partir do século XX. Eles tinham como
função colocar inscrições, alegorias e ornatos nos túmulos dentro de um
processo artístico que visa lavrar na pedra, isto é, gravar na superfície da
mesma.
O pesquisador Clarival do Prado Valladares, no livro Arte e sociedade
nos cemitérios brasileiros (1972), fez um levantamento escasso de lápides
sepulcrais primitivas instaladas no chão de igrejas seiscentistas e setecentistas
no Brasil, que foram lavradas na superfície do mármore róseo português ou em
pedra de lioz, muitas provenientes de Portugal. Elas eram produzidas por
“canteiros”, aqueles artesãos que tinham a arte de cortar e lavrar a pedra
(CUNHA, 2005) e eles antecedem ao método utilizado pelos riscadores de
pedra.
Valladares afirma a existência desse tipo de artesão capacitado para este
gênero de artesania no país. “Os canteiros e entalhadores de pedra
constituíram uma das profissões pioneiras e de necessidade da colônia,
habilitados originalmente para o trabalho com o calcário português, mas logo
em seguida capacitados para o exercício da mesma artesania na matéria
diversa de nossos arenitos, calcários e granitos” (1972:122). Ele considera
estar ali os nossos mais antigos documentos epigráficos e artísticos, de boa
qualidade artesanal acoplada à criação artística.
1
As primeiras lápides sepulcrais normalmente contêm no epitáfio dizeres
sobre a história de vida da pessoa, sua condição social e dados biográficos.
Completa a lápide com ornatos emblemáticos e florais. Como exemplo a lápide
do Bispo D. Luiz de Figueiredo, lavrada em pedra de lioz, datada de 1735, hoje
exposta no Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia, Salvador,
proveniente do claustro do Convento de Santa Teresa. As inscrições sobre o
falecido estão envolvidas por uma moldura bem como a emblemática da ordem
religiosa. Atenta-se pela repetição simétrica dos motivos decorativos expressos
nestas molduras com folhas de acanto e conchas, determinando com precisão
as características do estilo barroco.
No transcorrer de nossa pesquisa, visitando a cidade de Alcântara do
Maranhão, Antiga capital do Estado do Maranhão, deparamos com outro tipo
de lápide sepulcral, na Capela dos Passos dentro da Igreja e Convento de
Nossa Senhora do Carmo, século XVIII. Existem seis lápides instaladas nas
paredes laterais do altar mor, datadas do século XIX e são de moradores
ilustres da cidade.
As lápides de Antonio Bernardo de Sá Trindade (1774- 1847) e de sua
esposa Anna Raymunda Ferreira Trindade (1776- 1849) provavelmente foram
construídas pelo mesmo canteiro, que seguiu o modelo pedido pela filha Maria
Joaquina Trindade. Há um longo texto epigrafado sobre o mármore preto; o
arremate em mármore branco está composto por festões e volutas; apresenta
em alto-relevo o signo escatológico da caveira com tíbias cruzadas, conforme
costume da época.
Segundo Tânia Andrade Lima (1994: 103), no império escravista, as
representações da morte são escatológicas, macabras e mórbidas. “Signos que
remetem à consumação dos tempos, como caveiras com tíbias cruzadas;
orubouros, a serpente alquímica que engole o próprio rabo”, caso da lápide de
D. Anna Benedicta de Viveiros Pires (1804- 1857); “fachos e tochas acesas,
porém voltadas para baixo; ampulhetas aladas, foices, machados, globos
alados, além de morcegos, corujas e plantas narcóticas”.
2
Germano Salles, 1857, Igreja e Convento de Nossa Senhora do Carmo, Alcântara do Maranhão.
Já a lápide de Dona Anna Rosa Mendes de Viveiros (1791- 1849) e do
senador Jerônimo José de Viveiros (1796- 1857), posteriores a da família
Trindade, também apresenta um longo texto sobre as suas origens familiares,
gravado no mármore preto. Sobre o mesmo existem bustos de anjos e um anjo
sentado diante de uma urna funerária, esculpidos em alto-relevo, em mármore
branco. Esta ultima figura não apresenta sensualidade, ela é esbelta, elegante,
está classicamente trajada, em atitude contida e reflexiva. Os arremates da
lápide também foram construídos em mármore branco com apropriações de
conchas, cortinas, volutas e festões, bem ao gosto do estilo rococó. Estamos
diante de modelos que referenciam a importância da cultura européia na arte
sepulcral brasileira.
Na lápide temos o registro do marmorista Germano, Lisboa. Com certeza
trata-se do canteiro Germano José de Sales, considerado pelo pesquisador
português Francisco Queiroz, como pertencente à segunda maior dinastia de
mestres canteiros de Lisboa. Outras obras de Sales já foram encontradas em
cemitérios do nordeste, e estão no site: artefunerariabrasil.com.br. Uma
pesquisa mais minuciosa e sistemática nas igrejas brasileiras do período
colonial, certamente ampliará o número e as variações de modelos de lápides
sepulcrais.
Quanto à produção dos “riscadores de pedra” do século XX, a nossa
pesquisa se concentrou em levantar os túmulos instalados no Estado de Goiás,
região central do país, onde os primeiros cemitérios secularizados ainda
conservam seu traçado original e os túmulos riscados não sofreram as
primeiras reformas, embora a maioria encontra-se em estado de conservação
3
bastante precário. Para a presente análise catalogamos em torno de 70
túmulos.
Os cemitérios investigados foram: Cemitério Santana, Goiânia; Cemitério
São Miguel, cidade de Goiás; Cemitério de São Miguel, em Pirenópolis;
Cemitério Municipal de Corumbá de Goiás; Cemitério Municipal de Bela Vista;
Cemitério Municipal de Morrinhos, Cemitério Municipal de Silvania.
Existem poucas marmorarias rubricadas nos túmulos pesquisados,
citamos a de José de Jesus, Marmoraria Brasileira, da cidade de Goiânia; a de
Domingo Mônaco, Marmoraria Mônaco, da cidade de Uberaba (MG); a de
Sebastião Ferreira, Marmoraria Progresso, da cidade de Araguari (MG)
(VALLADARES, 1972: 1294).
Havia uma seqüência na feitura de um túmulo. Primeiramente o cliente
escolhia elementos daqui e de acolá para compor o monumento desejado. No
segundo passo, “cabia ao projetista da marmoraria realizar um estudo
preliminar, dentro das devidas exigências e proporções e apresenta-lo ao
cliente sob forma de desenho na técnica da tinta aguada” (BORGES, 2002:77).
Na seqüência estudava-se a redução ou ampliação das alegorias e ornatos a
serem elaborados pelos riscadores de pedra. Provavelmente havia um álbum
de fotografia ou de riscos com os desenhos a serem reproduzidos. Definido o
projeto, este era encaminhado para a prefeitura para obter o alvará da
construção. Daí iniciava a feitura propriamente dita do monumento funerário.
Uma vez montada as peças do túmulo, as partes a serem lavradas eram
encaminhadas aos riscadores de pedra para a elaboração do motivo. Este
consistia em lavrar na superfície da pedra cinza-clara ou rósea, isto é, no
mármore de Sete Lagoas, pelo processo de picotar e polir partes da pedra,
resultando disso um jogo de contraste entre o claro e escuro (BORGES, 2005).
A importância dessa técnica está no efeito óptico visual que ela produz: uma
caligrafia singela, harmoniosa, de fácil compreensão e de grande apuro
artesanal.
Em um mesmo túmulo podem-se encontrar procedimentos diferentes no
lavrar as inscrições dos epitáfios, dos adornos e das alegorias. Nas inscrições
utilizavam letras bem trabalhadas, salientes e polidas. Nos adornos e nas
alegorias os motivos apresentam-se em relevo bem polido sobre um fundo
picotado e baixo, criando assim um contraste entre as duas áreas. Como
4
resultado tem-se um desenho aplicado dentro de um processo invertido, sem
perspectiva, em posição frontal, de forma estilizada, “ao nível da arte popular”,
segundo define Valladares (1972: 1294).
Riscadores de pedra - Cemitério Santana, cidade de Goiânia.
Onde concentra os riscos lavrados dentro do túmulo? Normalmente estes
estão distribuídos de modo hierárquico e simétrico, seguindo uma organização
espacial própria, na parte da cabeceira do túmulo. O símbolo cristão principal
apresenta-se centralizado e ladeado por barrados adornados com motivos
geométricos ou derivados da natureza. Os motivos dos barrados podem vir de
forma seqüencial ou não, dentro de um espaço horizontal, representando:
arcos, argolas, losango, faixa grega, folhas e flores estilizadas. É muito comum
encontrar este tipo de acabamento nas laterais do túmulo, na função de grade.
Nas lajes marmóreas de formatos variados – dentro de retângulos,
quadrados, círculos, frontões, obeliscos e cruzes – estão gravados uma
variedade
de
símbolos
cristãos,
cuja
linguagem
é
espontaneamente
assimilada. Muitas versões de pomba, de cruz latina, de cruz grega, de coração
com espinhos, de cálice da Eucaristia, de urna funerária e de coroa de flores.
Poucas imagens de santos, da estrela de Davi e das iniciais de Cristo. Em
alguns casos aparece a alegoria contornada por uma cortina, como se
tivéssemos diante de um altar.
No geral estes símbolos vêem acompanhados de elementos florais, como
o caso das rosas e das margaridas. Todos estes desenhos gravados,
aparentemente aleatórios são reconhecidos facilmente pelos cristãos, eles
5
estão perpetuados dentro de um espaço secularizado, nos cemitérios
municipais do Estado de Goiás.
Por serem túmulos de porte simples, dada às devidas proporções,
Valladares (1972: 1301) deduz que os riscadores de pedra trabalhavam com o
refugo do mármore que sobrava das marmorarias mecanizadas, de produção
industrial. Pelo grande número de túmulos produzidos desta maneira nos
cemitérios visitados, somos levados a pensar que a questão não era só
apropriação dos pedaços da matéria prima que visava baratear o monumento,
mas também uma demanda de gosto corrente da região centro-oeste do país.
“Esses elementos fazem parte daquilo que Michel Vovelle (1987:73)
denominou de ‘mobiliário sagrado’, indispensável às construções mais
fantasiosas e às mais simples, e que variam de acordo com a quantidade e a
qualidade dos adornos empregados” (BORGES, 2005).
Referências Bibliográficas
BORGES, Maria Elízia. Arte funerária no Brasil (1890-1930) ofício de marmoristas
italianos em Ribeirão Preto = Funerary Art in Brazil (1890-1930): italian marble
carver craft in Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002.
________ Expresiones artísticas de cuño popular em cementerios brasileños. Arte
latinoamericano del siglo XX: Otras historias de la Historia. Rodrigo Gutiérrez
Vinñuales (diretor) – Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza, 2005.
________. Arte funerária no Brasil: Contribuições para a historiografia da arte
brasileira. In: XXII Colóquio Brasileiro de História da Arte, 2003, Rio Grande do Sul:
Anais. Rio Grande do Sul: PUCRS. 1 CD.
CUNHA, Almir Paredes. Dicionário de Artes Plásticas. Rio de Janeiro: EBA/ UFRJ,
2005.
LIMA, Tânia Andrade. Dos morcegos e caveiras a cruzes e livros: a apresentação da
Morte nos cemitérios cariocas do século XIX. In: Anais do Museu Paulista: História e
cultura Material. São Paulo, v.2, p.87- 150 1994.
VALLADARES, C. do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros. Rio de
Janeiro, Conselho Federal de Cultura – Departamento de Imprensa Nacional. 1972.
2v.
6
Consideraciones etnográficas acerca de la vida y de la muerte en la Puna
argentina
María Gabriela Morgante. Lic. En Antropología y Dra.
En Ciencias Naturales. Cátedra de Etnografía II.
Facultad de Ciencias Naturales y Museo. Universidad
Nacional de La Plata.
Resumen
Esta ponencia se propone analizar el concepto de muerte en el marco de la cosmovisión
puneña, y su relación con la noción de vida. Desde tal perspectiva –asociada a un conjunto
sincrético de creencias producto de la dinámica poblacional de la región-, la muerte se vincula
con un principio de temporalidad que combina la linealidad y lo cíclico. En el primer sentido,
todo individuo en su trayectoria personal alcanza la muerte física y la trascendencia. A su vez
cada vida, y cada muerte, reeditan en términos sociales el circuito ritual asociado a la
principal deidad del panteón puneño: la Pachamama o Madre Tierra . El material
empleado procede del trabajo de campo en las comunidades de Coranzulí y Susques de la
Puna jujeña argentina.
Palabras clave: Muerte, ritual, Pachamama
Presentación
La Puna argentina constituye una altiplanicie que se desarrolla por encima de los 3500
mts de altura, y que se extiende desde el centro oeste de la provincia de Catamarca
hasta el noroeste de la provincia de Jujuy. El primer poblamiento de la región es
protagonizado por grupos cazadores-recolectores con una antigüedad de más de 5000
años. Éstos constituyen la base de un conjunto de poblaciones que interactúan entre sí
con el transcurrir de los siglos, a partir de relaciones de tipo migratorio, comercial y/o
bélico, y que involucra a grupos indígenas (locales y regionales) y extranjeros
(conquistadores,
evangelizadores
y
comerciantes
occidentales).
Los
actuales
pobladores de la Puna argentina son grupos criadores de animales y cultivadores, que
combinan esta economía con la explotación minera y la participación en otras
ocupaciones no vernáculas -estacionales o anuales-. Su cosmología es consecuencia
de la dinámica poblacional aludida, en la que participan seres y espacios sagrados,
interactuando en el marco de una temporalidad culturalmente significativa. En relación
a la concepción del trayecto de vida en particular, todo individuo en su itinerario
personal alcanza la muerte física y, con ella, trasciende más allá del mundo terreno. A
su vez cada vida, y cada muerte, reeditan en términos sociales el circuito ritual que se
sintetiza en la expresión: “la Tierra nos da, la Tierra nos cría y la Tierra nos come”,
asociada a la principal deidad del panteón puneño: la Pachamama o Madre Tierra.
La presente ponencia se propone analizar el concepto de muerte en el contexto de la
cosmovisión puneña, y su relación con la noción de vida. Se seguirá la ruta que
transitan el cuerpo y el alma, como dos componentes que se disocian al final de la
existencia física. En este punto se atenderá al rol que juega el cementerio como
espacio involucrado en este complejo de ritos de pasaje relacionados con la muerte.
Luego, se analizarán las ceremonias que -por oposición a la muerte- promueven la
vida, a los fines de estudiar el modo en que los momentos del curso de la existencia
individual se articulan con la divinidad telúrica central de esta cosmovisión, desde un
principio de sucesión de ciclos. En relación a ello se observará una conceptualización
diferencial de la muerte -“buena muerte” o “mala muerte”-, condicionada por la calidad
del trayecto de vida particular.
A los efectos del análisis resultará interesante la aplicación del paradigma
interdisciplinario del trayecto de vida. Como orientación teórica, éste considera al
desarrollo humano como un conjunto de procesos que transcurren a lo largo de toda la
existencia, desde el nacimiento a la muerte (Settersten, 2003). En particular se
destacará que cada etapa del trayecto se asocia a un marco social y cultural -a roles y
status de edad específicos-, que estructura la existencia de todos aquellos que
acceden al período de vida en cuestión, estableciendo calendarios sociales (Lalive
d’Epinay y otros, 2005). La articulación entre las etapas se referenciará a la teoría
etnológica de los ritos de pasaje, para analizar la organización de las transiciones.
Los datos empleados en este trabajo provienen de las comunidades puneñas de
Coranzulí y Susques (Departamento de Susques, suroeste de la Provincia de Jujuy) y
fueron recogidos en sucesivos trabajos de campo, realizados entre los años 2001 y
2004. Los resultados presentados parten de un trabajo de investigación cuyo interés
inicial consistió en el abordaje etnográfico de la cosmología puneña y que actualmente
se centra en la consideración antropológica de la vejez en el marco de esta sociedad.
La cosmovisión puneña.
A los fines explicativos y poniendo particular énfasis en aquellos aspectos relativos a
las nociones de vida y muerte que interesan a esta presentación, destacaremos
algunos aspectos de la cosmovisión de las poblaciones puneñas.
En dicho sistema de creencias, el tiempo es concebido como una sucesión de
generaciones (Morgante, 2001), desde los orígenes hasta el presente, interrumpidas
entre sí por circunstancias críticas a través de las cuales el mundo y sus habitantes se
descomponen y reestructuran. Dado que -a excepción de la vivida en la actualidadcada generación se considera una superación de la anterior, los sucesos pasados
constituyen un referente en cuanto a la optimización en la relación entre las divinidades
y los hombres, a los fines de garantizar la supervivencia.
El mundo se considera integrado por el funcionamiento coordinado de tres ámbitos:
celeste, terrestre y subterráneo, y profundo. De todos ellos, el dominio terrestre y
subterráneo es el ámbito por excelencia de acción de la Pachamama o Madre Tierra.
La misma es considerada un personaje primordial y poderoso, omnipresente, intangible
o corporizada en una anciana obesa portadora de coca y otros productos significativos
para la vida del hombre puneño. La afinidad entre la humanidad y su divinidad suprema
se expresa en el ritual de la corpachada o de challar a la Tierra, a través del cual -en
distintas circunstancias y en diversos sitios- se le entrega coca, alcohol y tabaco. En
particular, el primero de Agosto de cada año constituye el momento más importante
para dicha celebración ritual, pues de la misma dependerá el éxito del ciclo anual que
allí comienza (expresado en la cantidad de lluvias que condicionarán el desarrollo de la
vida en un ámbito árido como el de la Puna). En este sentido, se establece una relación
contractual por la que la Pachamama provee a los hombres del sustento. Si la misma
no se respeta, la divinidad castiga a través de la carestía y, consecuentemente, de la
muerte.
El ciclo ritual antes descripto se corresponde, en su secuencia, con el ciclo vital que
desarrollan los hombres a lo largo de su existencia, tal como desarrollaremos en las
próximas páginas.
La vida, la muerte: el ciclo vital y el ciclo ritual.
Siguiendo el esquema general de la visión andina, el mundo puneño es regido por un
principio general de energía que unifica todo el universo, y que puede reducirse y
resumirse con relación al trayecto vital. En este marco, la Pachamama constituye el
referente fundamental que sintetiza la fuerza reproductora del cosmos. Esto se resume
en la expresión siguiente:
Porque, claro, la Pacha es la Tierra, como dicen. Porque como dicen la Tierra nos cría y
la Tierra nos come. Porque cuando Dios ya quiere que muramos abajo de la tierra van.
Somos alimentos de la Tierra...(S. S., Susques, 2001).
Los tres actos: dar, criar y devorar se corresponden con las actitudes rituales que los
hombres asumen respecto de la diosa telúrica. Entre ellos se funda un tipo de
reciprocidad que garantiza el bienestar natural y espiritual. En condiciones ordinarias,
cada hombre convida -humecta- a la Tierra con sus ofrendas, retribuyendo el acto de la
creación de cada vida y de su continuidad. Pero ocurrida la muerte corpórea de cada
hombre, la Tierra se consume el cuerpo y libera el alma. Desde entonces el individuo
ya no ofrece ritualmente los productos de su trabajo, sino que entrega su propio
cuerpo. La actitud antropofágica asumida por Pachamama es, en este caso, de
naturaleza preservadora, y garantiza la continuidad de la existencia espirituali. Sin
embargo, en otras oportunidades asume una conducta caníbal bajo la forma del
castigo: frente a la desobediencia ritual, la Tierra “pilla” o “seca”, absorbiendo el alma
de las personas para tomar su sangre, hasta causar la locura y/o la muerte.
La muerte se anuncia de diferentes modos: a través del aullido de los perros o de una
mortandad importante de la hacienda, así como por medio del sueño con alguien
fallecido o con algún objeto perdido. Otro presagio consiste en que el humo producido
por la quema en la ceremonia del lavatorio, que describiremos a continuación, adquiera
la forma de un sujeto vivo próximo a expirar.
Sucedida la muerte física de una persona, en primer lugar se prepara su velorio. Para
ello se disponen, inicialmente, la cruz, la corona y el ajuar. También se elaboran o
adquieren comidas y bebidas que se convidarán durante el evento. El recientemente
fallecido se baña antes de ser depositado en un cajón de madera, para lo cual se lo
viste y se le colocan “zapatos cruzados”ii y nuevos. También se agrega una cinta negra
en la cintura. La familia utiliza desde este momento ropa del mismo color, en señal de
luto, al menos por el término de un mes. La casa del fallecido es marcada con una cruz
y, en ocasiones, permanece cerrada definitiva o temporalmente a los fines de
neutralizar la presencia amenazante que pueda promover la muerte en otras personas.
El concepto de muerte corporal y el entierro del cadáver van acompañados de la idea
de que el cuerpo es “comido por los gusanos”, y así se regresa a la Pachamama que
originó la vida. Por su parte, el alma de la persona –que a diferencia de su cuerpo es
eterna y nunca muere- se convierte en un espíritu o “Dios chico” que asciende al cielo,
o en un “alma en pena”. Un testimonio lo refiere en los siguientes términos:
La persona tiene cuerpo y alma. El alma es como un guardián de la persona. No se
sabe en qué parte del cuerpo está. Cuando una persona se muere el cuerpo ya no tiene
validez. El alma es la que paga si te has portado mal en la vida. Con la muerte se
separan cuerpo y alma. Los abuelos también creían en esto y en Dios. El alma se va al
cielo y no vuelve más. (G.C., Coranzulí, 2003).
Los cementerios puneños presentan particulares características asociadas a la
importancia que adquiere el rito de transición que se inicia con el entierro, pero que se
sucederá por un conjunto de prácticas que en parten tienen este espacio como
escenario. En el caso particular de Susques, el cementerio se separa espacialmente de
la Iglesia, rompiendo con la usanza del camposanto en torno a esta última. En este
sentido se destaca por su independencia del núcleo original del crecimiento urbano y
por la extensión del área cercada y la dimensión del pórtico de acceso al mismo (que
reproduce la arquitectura de las estaciones o apachetas cardinales). En su interior se
destaca una capilla, en torno a la cual sí se distribuyen –en un espacio
imaginariamente establecido entre ésta y la entrada- los enterratorios más antiguos, a
flor de tierra o en panteonesiii. Esta pequeña capilla está construida en adobe con techo
de pajas y puertas de cardón, y está destinada al rezo en el momento del entierro o en
eventuales visitas de los allegados del difunto (Bolsi y Gutiérrez, 1974). Una
descripción de comienzos de siglo, realizada por el arqueólogo sueco Eric Boman
señala: “El cementerio es un cuadrado bastante grande, rodeado de paredes y con una
pequeña capilla, del lado opuesto a la puerta. Sobre las tumbas había cruces de
madera de cereus. Todo estaba muy limpio y mantenido, pero era un cementerio como
el de los pueblos del altiplano, sin particularidades que pudiesen indicar costumbres
paganas. Sin embargo, el día de Todos los Santos, se deposita sobre las tumbas,
víveres para los muertos (Boman, 1908).
Nueve días más tarde del entierro del cuerpo en el cementerio –durante los cuales se
reza la novena-, comienza el rito del “lavatorio”. Parte de la ropa del difunto se lava y se
entierra en algún lugar de altura frecuentado por el fallecido pastor. El grupo de
parientes permanece en el campo varios días o una semana, acompañando al alma y
lavando y enterrando parte de la ropa. Junto con ello se queman los huesos de los
animales consumidos durante esos días. El humo que resulta de esta quema, ayuda al
alma a abandonar la tierra. En el ritual del lavatorio también se ofrendan los productos
para la Pachamama Madre Tierra en señal de ruego, y se acompaña de otra libación al
agua para pedir paz para el alma del muerto y prosperidad para el mundo de los vivos.
Posteriormente, la mayoría de las almas comienzan su viaje al cielo.
En algunos casos el rito de pasaje antes descripto se acompaña de otro conocido como
“despacho de almas”. El mismo se realiza para garantizar un buen viaje hasta el
espacio celestial, así como un destino certero del espíritu hacia allí. Para eso, se mata
al perro del muerto, preferentemente uno negro, el cual se entierra junto con un cordero
o una llama, también sacrificada. Al perro se lo mata ahorcándolo y al segundo animal,
ahogándolo en alcohol. Al primero se le coloca una montura, para que ayude al espíritu
a cruzar la Vía Láctea y el otro oficia de “muletero”, cargando la mercancía que el alma
necesita para completar su viaje.
A partir de allí, cada primero de Noviembre –luego de transcurrido un año de la
muerteiv- se ruega a Todos los Santos para que el alma alcance el destino celeste
deseado. En esta fecha se traen las cruces del cementerio a la casa del difunto. Se
hace un túmulo cubierto con un paño negro y la cruz se apoya sobre un paño blanco.
Ello se acompaña con ofrendas de coca, alimentos, bebidas y, particularmente, las
figuras de masa que se han confeccionado en los días previos. Estas ofrendas deben
brindarse calientes, porque su vapor es lo que permite que el alimento llegue hasta las
almas. El día dos de Noviembre, conocido como la celebración de los Fieles Difuntos o
Todos los Muertos, las almas se acercan a la tierra como una “comparsa de Carnaval”,
y pese a que no se ven se “notan” (advierten) con el viento. Las almas experimentan
sentimientos, razón por la cual si estos dos primeros días de Noviembre llueve, se dice
que lloran porque están tristes.
Pese a que la práctica ceremonial de retribución a la Pachamama se extiende
prácticamente a cualquier sitio que necesite “protegerse”, hay una serie de lugares que
se exceptúan o evitan. Se trata en todos estos casos de los espacios asociados a la
Iglesia, como la capilla misma o el cementerio. Las manifestaciones de la presencia de
la Madre Tierra parecen diluirse en estos sitios claramente identificados con el Dios
cristiano. Esto explica el por qué durante los primeros aniversarios de la muerte las
cruces se trasladan a los domicilios, atendiendo a la rigurosidad que la práctica ritual
requiere en los primeros años de sucedida la muerte.
Durante la noche del primer al segundo día de noviembre se rezan oraciones. Hay
distintos rezos: para las almas, para los difuntos, para los vivos, para el ganado, y para
los santos. Con el nombre del difunto también se puede pasar la misa y hacer ofrendas,
aunque el cuerpo esté enterrado en un lugar alejado. Participan dos tumbuleros cuya
función consiste en mantener nueve velas prendidas, y un rezador para pronunciar
cantos y lamentos. Al otro día se reparten que no se consume allí, sino en los
domicilios particulares, junto al consumo de coca y bebidas alcohólicas. Hacia el
mediodía, las personas concurren con todas las cruces a la iglesia para hacer la misa
y, después, al cementerio. El banquete fúnebre suele terminar de consumirse allí o
depositarse en las tumbas. Para ello, se construyen las tumbas cuentan con nichos
especialmente protegidos para albergar tan preciadas ofrendas.
Las ceremonias fúnebres de Noviembre se repiten durante los tres años posteriores a
la muerte de la persona muere. Transcurrido ese tiempo la parentela se quita el luto y
las ofrendas se colocan en las tumbas del cementerio (sobre un papel o tela negra), en
un lugar reparado construido para ello. Ellas llegan a las almas con ayuda del viento. Al
tercer día de colocada la ofrenda, la familia come lo que el espíritu no consumió.
Buena muerte y mala muerte
La muerte por “despeñamiento”, como motivo mítico (Morgante, 2002), instala en el
marco de esta cosmovisión la peligrosidad de la altura y la asociación de este lugar con
la presencia demoníaca. Por esta razón es habitual la creencia de que el Diablo intenta
empujar a pastores o viajeros hacia el abismo, cuando éstos transitan en soledad por
los altos. De no concretar su intención original -el “despeñamiento”-, el ser maligno
ocasiona un estado de perturbación definitiva en la persona, que suele conducirlo al
suicidio. De uno u otro modo, las víctimas incurren en una “mala muerte”, que queda
definida por un fallecimiento violento, dando lugar a la liberación repentina (no
progresiva) de un alma vengativa y agresiva, que “condenada” vaga durante las
noches.
Sin embargo, a diferencia de lo que describiéramos anteriormente, las almas de
penados y condenados permanecen bajo tierra junto a sus cuerpos, pagando por las
faltas cometidas. Conjuntamente, algunos testimonios asocian estas almas a “los
antiguos”, que por su existencia anterior al Infierno, comparten con las “almas malas” la
conjunción cuerpo-alma a posteriori de la muerte. Del mismo modo que el antiguo
puede “pillar” a la persona que se acerca o profana sus antiguas habitaciones o
cementerios en las peñas, el alma en pena o condenada provoca la “locura” de quienes
toman contacto con ella e, incluso, la muerte por canibalismo. Su accionar las identifica
claramente como una de las manifestaciones del Diablo, que procede igualmente en el
caso de las alturas, las minas y los estrechos. Las almas “salen” en las malas horas, en
el mismo lugar donde mueren, con la intención llevarse a las personas ante quienes se
presentan. Para contrarrestar esta amenaza, los familiares o allegados de estos
muertos construyen montículos de piedras o “apachetas” de grandes dimensiones en el
mismo lugar en que ocurriera el accidente. De este modo se identifica el espacio
peligroso en el que cada viajero deberá repetir el convite ritual a la diosa telúrica para
reducir la amenaza de daño, solicitando que las desgracias se aparten de su camino y
salud para continuar el viaje.
Es común que estas almas se exhiban en los malos sitios si su muerte se produjo
violentamente, y por propia voluntad. En otras oportunidades puede ser el resultado de
la violación de tabúes, como el de desenterrar al muerto. En este último caso, las
manifestaciones de lo profundo ocurren en el cementerio, o bien en los sitios inhóspitos
en que han sido enterrados furtivamente. Por esta razón, los martes y los viernes son
señalados como días en los que debe evitarse el tránsito por esos sitios.
Siguiendo el mismo principio de promover la vida por oposición a la muerte, la mujer
encinta debe observar desde el momento mismo en que se advierte su condición una
serie de tabúes, entre los que se incluyen el evitar velatorios, cementerios o cualquier
otro contacto con un muerto.
Consideraciones finales
Repitiendo el esquema de esta cosmología, el ciclo vital del hombre susqueño reedita –
en una escala de menor grado- el mismo circuito. Éste responde a un conjunto de
procesos que transcurren a lo largo de toda la existencia, desde el nacimiento a la
muerte y su continuidad espiritual. Durante este proceso, y atendiendo marco social y
cultural puneño, reconocemos tres microestados que, al igual que los microespacios
cósmicos, funcionan como unidades discretas con límites determinados y zonas
variables de influencia que son: el nacimiento, el desarrollo de la vida y la muerte y
trascenencia. Esta sucesión de microestados se desarrolla básicamente por el dominio
de una sola deidad: la diosa telúrica Pachamama.
Siguiendo el calendario social que ella rige, el movimiento se origina con la “fuerza de
la vida” asociada al nacimiento de cada ser, que asciende desde el interior del “seno
materno” para emerger a la superficie bajo la forma de una conjunción entre un soporte
corpóreo y un alma. Dicho evento se vincula a una fuerza que se desarrolla en
dirección contraria, representada por el entierro de la placenta del recién nacido.
Ambos impulsos encontrados tienen, sin embargo, el objetivo común de promover la
vida, ahuyentando la acción de las potencias que puedan ocasionar la muerte del
neonato y de su madre. Dicha acción ritual y sus objetivos se refuerzan en la creencia
vernácula de que todo lo que sale de la Tierra tiene la ambigüedad característica de lo
potente, que requiere de la acción humana para encauzar sus acciones.
Luego, durante el desarrollo de la vida de cada ser se suceden innumerables
circunstancias que reproducen este acto de retribución inicial, en cada una de las
celebraciones rituales que acompañan al trayecto vital.
Finalmente, el microestado de la muerte implica el entierro del cuerpo y una serie de
actos (que involucran la presencia del agua, como por ejemplo en el caso del lavatorio)
que garanticen la supervivencia de un alma libre que pueda encontrar un hábitat
definitivo. Esta situación requiere, nuevamente, reducir el desarrollo de las fuerzas
negativas como el caso de las almas en pena. De esta manera, cada rito organiza la
transición esperable ante una “buena muerte” o pretende encauzar los acontecimientos
o reducir el daño ante una “mala muerte”, garantizando que la función generadora de
vida prime por sobre la degeneradota de la muerte.
En este esquema, el espacio de los modernos cementerios opera en forma
ambivalente. Espacialmente se emplaza sobre la matriz de la Madre Tierra, pero su
asociación con el culto cristiano le asigna algunas particularidades. Contiene el soporte
corpóreo, pero solo transcurridos los primeros años del entierro posibilita el desarrollo
del ritual que promueve la reducción del daño potencial. Conjuntamente excede el
momento mismo de la muerte física constituyéndose en el escenario de la puesta en
escena de ritos calendáricos que desalientan los peligros de las almas liberadas por la
mala muerte. En este sentido, establece un espacio de interacción para el conjunto de
conductas sincréticas relativas a la promoción de la vida y la contención de la muerte
que no escapan la marco general del sistema de creencias de los puneños modernos.
Referencias
Bianchetti (1996) Cosmovisión sobrenatural de la locura. Pautas populares de salud mental en
la Puna Argentina. VMH editor, Salta
Bolsi, A y R. Gutierrez (1974). “Susques. Notas sobre la evolución de un pueblo puneño”.
Revista del Departamento de Historia de la Arquitectura de la Facultad de Ingeniería, Vivienda
y Planeamiento, Universidad Nacional del Nordeste, Chaco.
Boman, Eric. (1908) Antiquites de la region andine de la Republique Argentine et du desert
d'Atacama. Paris, Imprimerie Nationale
Lalive d’Epinay C, Bickel J.-F., Cavalli S., Spini D., (2005), "Le parcours de vie: émergence d'un
paradigme interdisciplinaire”, in Guillaume J.-F. (Ed.), Parcours de vie. Regards croisés sur la
construction des biographies contemporaines Liège, Les éditions de l'Université de Liège :
187-210. .
Morgante, M. G. (2001). “Desde la generación de víboras al presente: relatos orales de
Coranzulí y Guairazul”. En: Dupey, A. y M. I. Poduje (comp.) Narrar identidades y memorias
sociales. Estructura, procesos y contextos de la narrativa folklórica. Edición del Departamento
de Investigaciones Culturales de la Subsecretaría de Cultura de la Provincia de La Pampa:
323-329.
Morgante, María Gabriela (2002). “Leer el mito, comprender el mundo: organización del entorno
en la cosmovisión puneña”. Trabalhos em Etnologia e Antropologia vol. 43, Porto, Portugal:
145-164.
Santander, (1971) Folklore de la Provincia de Jujuy. La fiesta de la Candelaria. Quebrada de
Humahuaca y Puna. Publicación de la Dirección Provincial de Cultura de Jujuy, San Salvador
de Jujuy.
Settersten R.A., (2003). "Propositions and controversies in life-course scholarship", in
Settersten R.A. (Ed.), Invitation to the life course. Toward new understandings of later life.
Amityville (NY), Baywood:15-45.
GRÁFICO . COSMOLOGÍA Y TRAYECTO VITAL.
Superficie terrestre
(Pachamama)
cuerpo y alma
NACIMIENTO
(DAR)
alma
VIDA
(CRIAR)
placenta
MUERTE
(COMER)
cuerpo
Ámbito subterráneo
(Pachamama)
FOTOGRAFÍAS. 1) Detalle de la capilla en el cementerio de Susques, 2) Detalle de
las tumbas en el cementerio de Susques, 3) Detalle de las tumbas en el
cementerio de Coranzulí
i
La relación entre la vida y la Tierra ha sido notada por Santander (1971) cuando describe la práctica del alumbramiento
sobre el suelo, enterrando como ofrenda la placenta y las prendas sucias. Bianchetti (1996) agrega que la placenta se
entierra dentro de la vivienda o, en el exterior, en un lugar poco accesible, intentando desvincular de las fuerzas malignas
que atentan contra la vida o que promueven su opuesto, la muerte.
ii
La expresión hace referencia a la práctica de colocar el zapato derecho en el pie izquierdo y viceversa, para que el muerto
camine “en dirección contraria” a como lo hacía en vida, y su alma encuentre destino definitivo.
iii
A diferencia de Susques que como paraje perteneciente a la región de Atacama se remonta temporalmente al siglo XVII,
el desarrollo de Coranzulí tiene algo más de un siglo y es el resultado de la explotación minera en la región. En este sentido,
su cementerio respeta el patrón descripto para Susques, aunque con enterratorios más modernos y carece de capilla en su
interior.
iv
Antes de ese tiempo no se puede ofrendar porque el alma está pagando las culpas. Pasado ese lapso el alma está “de
franco” o “despachada” por Dios.
As representações edificadas como reflexo social
Cemitério Municipal São José
Maristela Carneiro
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Universidade Estadual do Centro-Oeste
Resumo
Este trabalho buscou perceber de que maneira as relações sociais, religiosas e culturais são
expressas na distribuição espacial do Cemitério Municipal São José e como são demonstradas
nos ícones contidos nos túmulos do mesmo, desde a sua instituição em Ponta Grossa, no ano
de 1881, até os nossos dias. Através do levantamento fotográfico e quantitativo dos dados
cemiteriais, processados em Sistemas de Informações Geográficas, bem como considerando
as discussões pertinentes à memória, às práticas identitárias e às representações sociais,
constatamos que a referida necrópole é um espaço de múltipla representação simbólica, com o
potencial informativo acerca das identidades do meio social ponta-grossense no qual está
inserido, para a preservação da memória dos mortos, bem como dos contextos nos quais
estavam inseridos enquanto vivos.
Palavras-Chave: Cemitério, Representações Sociais e Cidade.
A utilização dos mortos em nossa sociedade, destacando o
caráter homólogo ao outro mundo, permite a conciliação da rede de relações
pessoais em torno dos mesmos e de sua memória. Com a finitude, os mortos
imediatamente passam a ser concebidos como exemplos e orientadores de
posições e relações sociais, servindo, portanto, como foco para os
sobreviventes, vivificando e dando forma concreta aos elos identitários que
ligam as pessoas de um grupo. E o espaço cemiterial, por conseguinte, é
privilegiado para a concretização e demonstração das conexões entre a
memória, as práticas identitárias e as representações sociais, dialeticamente
construtoras de relações sociais, bem como construídas pelas mesmas.
Entendemos que o culto dos mortos passa por um filtro de
percepção, permitindo que somente os valores considerados essenciais pelos
vivos, para a recomposição do sentido da vida, sejam expressos no espaço
cemiterial,
no
qual
este
trabalho
encontra-se
circunscrito.
Assim,
a
individualização das sepulturas e os valores expressos nas mesmas
demonstram o desejo de preservar a identidade e a memória dos mortos,
servem à expressão e/ou transmissão dos valores culturais e à própria
reconstituição do sentido existencial para os que ficam.
Nesse sentido, ao considerarmos o Cemitério Municipal São
José como expressão constante e dinâmica de representações sociais, campo
de convívio e embates de múltiplas tradições e possibilidades culturais, a
discussão aqui proposta buscou perceber de que maneira as relações sociais,
religiosas e culturais, de um modo geral, são expressas na distribuição espacial
do mesmo e como são demonstradas nos ícones contidos nos túmulos deste,
desde a sua fundação em Ponta Grossa, em 1881, até os nossos dias.
Para o desenvolvimento desta pesquisa foi realizado, túmulo a
túmulo, um levantamento fotográfico e quantitativo dos dados cemiteriais,
organizados em fichas catalográficas elaboradas com este fim.
1
Tais dados
foram em seguida processados em Sistemas de Informações Geográficas
(SIGs SPRING 4.3 e KOSMOS 0.8.3), para a geração de cartogramas e
gráficos a fim de instruir a análise qualitativa, contando com o apoio de outros
programas específicos (Microsoft Office Excel 2003 e Inkscape).
Figura 1 – Cartograma Representativo das Quadras do Cemitério Municipal São José
Os SIGs são uma tecnologia do mundo contemporâneo, que
tem como característica principal a capacidade de integração e transformação
de dados espaciais, entendidos como a descrição quantitativa e qualitativa dos
fenômenos ocorridos no “mundo real” e que têm como premissa a
reprodutibilidade, desde que satisfeitas as mesmas condições de coleta.
Ao mesmo tempo em que a utilização dos SIGs revoluciona a
análise das informações, também depende de forma umbilical da racionalidade
da construção de um banco de dados, somente possibilitada com o auxilio de
técnicas computacionais sofisticadas e de profissional especializado. O
modelamento dos dados espaciais é realizado através de estruturações
lógicas, para representar variações geográficas em bancos de dados digitais,
sendo que os cartogramas, construídos para a análise das informações na
configuração espacial do Cemitério Municipal São José, são as representações
gráficas destes bancos. 2
Assim, ao considerar a inerência entre técnica e teoria, este
trabalho se propôs a demonstrar a utilização dos Sistemas de Informações
Geográficas, ferramentas para a investigação científica, para a análise do
espaço cemiterial e, indo além, como contribuição reflexiva para a análise e/ou
ampliação do próprio campo do historiador, na era do gerenciamento
disciplinado de informações.
O espaço cemiterial é percebido como reflexo e condição da
sociedade, cuja dimensão social corresponde ao espaço urbano em grande
escala, de forma temporal e justaposta. Considerando-se que a morte é
portadora de múltiplas dimensões, diretamente influenciadas pela relação entre
espaço e tempo, observa-se que a paisagem cultural é o conjunto de formas
materiais dispostas e articuladas entre si no espaço – “vitrine permanente de
todo o saber, expressando a cultura em seus diversos aspectos, possuindo
uma faceta funcional e outra simbólica.” 3
Assim as paisagens, dentre as quais a cemiterial, servem como
mediadoras na transmissão cultural, contribuindo para transferir de uma
geração para outra os saberes, crenças, atitudes sociais, ou seja, as próprias
práticas identitárias, para o estabelecimento e reafirmação das relações
sociais. Destarte, o espaço define-se como um campo de representações
simbólicas, enriquecido com signos que possuem a finalidade de expressão
das estruturas sociais em suas múltiplas dimensões.
Nesse viés, faz-se pertinente observar que as transformações
na contemporaneidade têm conduzido os historiadores a se debruçar sobre os
estudos da memória, o que amplia as inquietações acerca do cotidiano e
favorece a abordagem do espaço urbano, contribuindo, dessa forma, para
redefinir e expandir as noções tradicionais do significado histórico e diversificar
as possibilidades de análise sobre a cidade que, de pano de fundo, passou a
ser percebida como objeto, questão e/ou problema. Matos aponta que uma das
primeiras vias a considerar a cidade enquanto questão, a partir do final do
século XIX, foi a higiênico-sanitarista, que buscava neutralizar o espaço e
qualificá-lo como universal e manipulável, através do discurso científico. Assim,
a cidade passou a ser signo do progresso e da civilidade, permeada pelos
pressupostos da disciplina e da cidadania, palco de tensões sociais, assim
como o próprio espaço cemiterial. 4
Assim, identificamos o espaço cemiterial enquanto experiência
individual e coletiva, reflexivo da cidade na qual está inserido e portador das
tensões e representações sociais inerentes à mesma. As representações
sociais determinam a interpretação dos comportamentos, designando uma
forma de pensamento social segundo a qual o conhecimento provém da
observação.
Dessa forma, conforme Gregio, as representações sociais da
realidade estão sempre “vinculadas às experiências, à cultura assimilada no
decorrer de sua vida, à linguagem que utiliza nas relações sociais, enfim à
própria história pessoal e do grupo social com o qual convive e se relaciona”.
5
O conhecimento dessas representações oferece a compreensão de como os
sujeitos sociais apreendem os acontecimentos da vida diária, as características
do meio, as informações que circulam, as relações sociais e as práticas
identitárias, elementos estes amplamente demonstrados no espaço cemiterial.
Portanto, buscamos analisar o espaço e a paisagem material
do Cemitério Municipal São José, considerando as discussões pertinentes à
memória, às práticas identitárias e às representações sociais, convergentes no
espaço urbano, este refletido no espaço cemiterial, percebido enquanto espaço
de “representação simbólica”. 6
Constatou-se que a expressão simbólica da morte assume
múltiplos sentidos, aplicados aos rituais funerários, aos cultos religiosos e às
manifestações artísticas, em diferentes culturas, construindo-se, dessa forma,
respostas à pergunta acerca do sentido da vida e à problemática da morte, ou
seja, o perfil simbólico da morte em cada sociedade é resultante da maneira
como o fato bruto da finitude foi assimilado, preenchido de significação cultural
e inscrito no sistema dos valores que asseguram o funcionamento e a
reprodução de uma determinada ordem social e da própria identidade coletiva.
Nesse sentido, os cemitérios passaram a ser reflexivos do
universo cultural de cada época e sociedade, constituídos como construção da
realidade, através dos quais a coletividade designa sua identidade; premissa
esta amplamente demonstrada no Cemitério Municipal São José, conforme a
análise dos atributos levantados fotográfica e quantitativamente, onde, por
meio das sepulturas, registra-se a percepção do ser humano frente à finitude,
ainda que de forma fragmentada e justaposta.
Portanto, reflexo e condição da sociedade, o Cemitério
Municipal São José é inerente ao contexto mais amplo e segmentado da
cidade de Ponta Grossa, conforme ressaltado através da análise das
providências legislativas, da bibliografia regional e também do conteúdo
publicado pelos periódicos locais (Diário dos Campos e Jornal da Manhã), que
trazem indicativos de normatização e disciplinarização do convívio social, bem
como leituras de civilidade e progresso.
Figura 2 - Vista Parcial do Cemitério Municipal São José
Década de 1970
Acervo do Museu Campos Gerais
Com
a
recuperação
destes
discursos
produzidos
pela
Imprensa, pela Igreja e pelo Poder Público, relacionados à fundação e ao
desenvolvimento e localização do Cemitério na cidade, percebemos a presença
das múltiplas vozes ao se tratar da temática cemiterial: destacam-se as
tensões
urbanas
vivenciadas
de
forma
fragmentada
e
diversificada,
relacionadas ao espaço e aos jogos de memórias e experiências e expressa a
complexidade social e os embates travados pelos diversos grupos sociais,
tanto concretamente quanto no plano simbólico, para a construção e
legitimação de uma determinada perspectiva de cidade.
Nesse viés, constatou-se que o poder público promove e
reforça a hierarquização no espaço do Cemitério Municipal São José, ao
regulamentar as distinções territoriais através das taxas, emolumentos e do
processo de constituição da monumentalidade, através dos investimentos na
construção do portal de entrada e das alamedas que conduzem ao mesmo.
Tais medidas reforçam a percepção de que a necrópole não foi estabelecida
somente como o espaço para os mortos na cidade, mas também como
representação simbólica de progresso e de higienização, inscrita em um
discurso social, político e urbanístico mais amplo.
A construção da monumentalidade é obtida por meio da
articulação entre os investimentos públicos e privados, não restritos ao entorno
da necrópole, mas também presentes na distribuição espacial da mesma,
sendo que sua organização é semelhante à estrutura social da cidade que a
abriga,
também
fragmentada
pelos
diferentes
usos,
articulados
constantemente. Na análise da distribuição dos atributos área, formato,
material e estado de conservação das sepulturas, ficaram evidenciadas
variações de padrão nas construções, indicativas da configuração do Cemitério
Municipal São José, ou seja, uma necrópole urbana e central, destacada com
relação às demais, seja pela localização, seja pelos elementos estilísticos,
muitos nos moldes europeus, e, especialmente, constituída e/ou justificada sob
a lógica da pretensa civilidade.
Com efeito, concluímos que o espaço do Cemitério Municipal
São José é um ordenador espacial e social. Espacial, considerando-se que foi
estabelecido num primeiro momento como limite do perímetro urbano e, após,
absorvido pela expansão da cidade, o que influenciou diretamente na
configuração do mesmo como ordenador social, tendo em vista que a partir da
construção dos demais cemitérios na cidade, o público que teria acesso àquele
passou a ser selecionado, até mesmo pelas providências legislativas.
A subjetividade dos vivos e suas relações com a sociedade são
materializadas no espaço urbano e cristalizadas no espaço cemiterial. Assim,
para além dos muros e do concreto do Cemitério Municipal São José, voltamos
nosso olhar para o simbólico, que objetiva a transmissão de valores culturais,
para
o
estabelecimento
e
reafirmação
das
relações
sociais.
Ao
compreendermos o espaço funerário e as representações semânticosimbólicas constantes no mesmo, como respostas edificadas para o problema
da morte, encontramos neste a percepção destas representações, individuais e
coletivas, privadas e públicas, vinculadas à religiosidade, à familiaridade, aos
valores sociais, especialmente destacadas nas tipologias cristã, alegórica e
cívico-celebrativa, analisadas no decorrer do trabalho.
Quanto à análise das opções religiosas da sociedade pontagrossense, ainda que um cemitério secular, evidenciou-se que a maioria das
construções são vinculadas aos referenciais do cristianismo, principalmente
pela forte presença das cruzes no referido campo-santo, ao lado das
representações de Jesus, Maria, dos santos e dos anjos, estes últimos muito
relacionados aos sentimentos personificados. Isso não significa que outras
opções religiosas não se façam presentes, fato que buscamos demonstrar
através da representação dos referenciais judaicos, presentes em dois túmulos
encontrados na distribuição espacial do Cemitério Municipal São José. Demais
manifestações não puderam ser certificadas, frente aos limites deste trabalho.
As alegorias, também a serviço dos ideais de civilidade e de
monumentalização e demarcação espacial, foram analisadas, levando-nos a
concluir que seu sentido está diretamente relacionado à expressão dos
sentimentos, cristãos e emocionais, ou seja, podem ser interpretadas como
representações sociais, no formato alegórico, às quais é inerente a finalidade
de preservar a memória dos mortos através da individualização das sepulturas.
Constatamos que o Cemitério Municipal São José, seguindo a
função desempenhada pelos “campos santos” presentes na sociedade
ocidental e brasileira, de uma maneira geral; é um espaço de múltipla
representação simbólica, com o potencial informativo acerca das identidades
do meio social ponta-grossense no qual está inserido, para a preservação da
memória dos mortos, bem como dos contextos nos quais estavam inseridos
enquanto vivos, como por exemplo, os túmulos de manifestações positivistas e
maçônicas. Assim, a preservação da memória fortalece a afirmação da
identidade cultural, também múltipla, considerando-se que através das
expressões funerárias associa-se a memória do morto aos aspectos sociais e
culturais com os quais o mesmo mantinha relação antes de morrer, associação
esta logicamente mediada pelo olhar dos sobreviventes, para os quais o
sentido da vida é elaborado e apresentado.
A memória dos mortos é então mediada pela memória dos
vivos, sendo que a individualização de cada túmulo é indicativa do desejo de
continuidade existencial, fato expressado através das placas de casal e dos
nomes de família, por exemplo. De forma significativa, as expressões e as
transmissões culturais, através dos valores e do conteúdo simbólico contido
nos túmulos, servem ao estabelecimento e à reafirmação das relações sociais,
como se demonstrou através das inscrições alemãs, que objetivam a definição
da identidade teuto-brasileira.
Os túmulos do Cemitério Municipal São José são concebidos
neste trabalho tanto como uma realidade mental quanto como uma realidade
social e espacial que, conjugadas, constroem o ambiente propício para que os
sobreviventes elaborem suas representações sociais, para a constituição de
mundos sociais específicos. 7 Através das representações sociais, são reunidos
fragmentos de memória, aos quais atribui-se unidade e sentido e, assim, são
estabelecidos os filtros de percepção. As tentativas de explicação da morte
estão presentes nas necrópoles e influenciam diretamente o culto aos mortos,
interagindo com os mecanismos de memória dos vivos, de modo a estabelecer
sentido à finitude e resolver a problemática da morte, tão cara aos
sobreviventes.
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1
O trabalho de campo, incluindo o levantamento fotográfico e catalográfico, foi realizado entre maio/2006 a abril/2007.
2
SILVA, A. de B. Sistemas de Informações Geo-Referenciadas: Conceitos e Fundamentos. Campinas: Unicamp,
2003, p. 17-18.
3
CORRÊA, R. L. A dimensão cultural do espaço: alguns temas. Revista Espaço e Cultura. Rio de Janeiro: UERJ, vol.
1, n°1, 1995, p. 4.
4
MATOS, M. I. S. de. Cotidiano e Cidade. In: Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: Edusc, 2002, p.
32-33.
5
GREGIO, B. M. A. A informática na educação: as representações sociais e o grande desafio do professor frente ao
novo paradigma educacional. Revista Digital da CVA - Comunidade Virtual de Aprendizagem da Rede das Instituições
Católicas de Ensino Superior. Disponível em: http://www.ricesu.com.br/colabora/n6/artigos/n_6/pdf/id_02.pdf ; acessado
em 15/11/2005, p. 5.
6
ARAÚJO, T. N. de. Túmulos celebrativos de Porto Alegre: múltiplos olhares sobre o espaço cemiterial (1889-1930).
Porto Alegre: PUCRS, dissertação de mestrado, 2006, p. 113.
7
CHARTIER, R. Introdução: Por uma sociologia histórica das práticas culturais. A história cultural: entre práticas e
representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 27-28.
Lápide e Memória
Mayra Lopes de Almeida Reis
Faculdade de Medicina de Itajubá
Resumo
A memória possui uma importante posição na sociedade atual, não só por consolidar o
conhecimento, mas também por fornecer ao indivíduo evocações de fatos que faz com que ele
consolide sua história e evoque seus hábitos.
Há aspectos importantes no mecanismo da memória e no seu desenvolvimento e ampliação no
decorrer da história. Um marco no senso de existência e busca por historicidade evidencia-se
com o surgimento da lápide completada pelo epitáfio. A lápide assume uma conotação não
apenas de construção, mas também simbólica sendo uma evidência da evolução do SNC e no
uso atribuído aos centros neuronais, que por necessidade afetiva e social se desenvolvem e
culminam em outros progressos para a humanidade.
Palavras-chave: lápide, memória, existência.
INTRODUÇÃO
Memória é a capacidade de reter, recuperar, guardar e evocar
informações. A memória humana se consolida, ao focar em objetos
determinados e por requerer grande quantidade de energia, tende a se
deteriorar com o passar do tempo.
Para deter tal deterioração o ser humano criou, no decorrer das eras,
para facilitar a evolução, mecanismos que visam manter a memória para dessa
forma consolidar a história e tornar a vida facilitada por intermédio da tradição.
A tradição que é expressa por meio da arte, que pode ser encontrada
em todos os lugares, inclusive nos cemitérios e nas lápides que evocam a
memória e funcionam como indicativo implícito do contexto da saúde de uma
época, de seus medos e de suas esperanças, da existência de uma vida que
jaz em corpo, mas que se insere na história. Aponta ainda para a evidência de
que o sistema neuronal adapta os homens ao ambiente nos diversos âmbitos,
dentre eles o físico, o social e o afetivo.
Serve como indicativo significativo de que a memória precisa de
estímulo para se conservar, uma vez que consiste em uma capacidade de
atualizar informações necessárias a manutenção da vida. Conhecimento
empírico tão antigo quanto às lápides que só recentemente tem sido
sistematizado e estudado pela neurociência que deve usar as lápides como
prova empírico-histórica para consolidação de suas teorias acerca da memória.
LÁPIDE
Presença de pedras consolidando as lápides, um hábito ainda vigente na
constituição dos cemitérios atuais.
Lápide, o mesmo que lápida ou ainda lousa tumular, é um substântivo
feminino que no passado já foi indicativo de pedra comemorativa de um fato
notável, que com o decorrer da história, passou a celebrar a memória de
alguém, uma vez que uma vida que se finda é uma existência que se torna
completa, um feito considerável por sua completude.
Apesar de atribuirmos sua construção ao século XIV, como uma medida
para axiliar na duração das obras, existem inúmeros relatos acerca de sua
existência que precedem e muito a tal data. Geralmente os relatos estão
associados a textos literários ou históricos, pois a conservação que visava
superar a efemeridade encontra-se em sua maioria em cemitérios, igrejas, e
outros locais, sendo atualmente encontradas inclusive em museus.
Um dos textos mais conhecidos que ilustra a historicidade da lápide é:
“Jesus, pois, movendo-se outra vez muito em si mesmo, veio ao sepulcro; e era
uma caverna, e tinha uma pedra posta sobre ela.” – Jo 11,38.
A pedra pode ser, portanto, considerada como precursora de toda e
qualquer lápide, por possuir atributos físicos que vão desde proteção e
marcação do lugar onde o corpo deita-se para o sono eterno, até inclusive
atributos simbólicos devido a sua lenta deterioração física, conferindo ao
imaginário humano a idéia de que não é efêmera, ou, ao menos, não tão
efêmera quanto à vida humana.
“Os antigos germânicos, por exemplo, acreditavam que os espíritos dos
mortos continuavam a existir nas lápides dos seus túmulos. O costume de
colocar pedras sobre os túmulos deve ter surgido da idéia simbólica de que
algo eterno do morto subsiste, e encontra nas pedras a sua representação
mais adequada.” – Jung
Inclusive devido a tal analogia pode se estruturar uma relação simbólica
entre a pedra e o ser. “Já mencionamos o fato de que o self é simbolizado, com
muita freqüência, na forma de uma pedra, preciosa ou de outro tipo qualquer.” Jung
As funções física e simbólica da lápide são brilhantemente citadas:
“Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta - sonhou - e amou na vida.
Sombras do vale, noites da montanha
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!
Mas quando preludia ave d’aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua pratear-me a lousa!”
(Álvares de Azevedo)
Na estrofe inicial, o poeta menciona o esquecimento que vem com a
morte, e o desejo de eternizar-se no tempo por meio do seu ofício, contribuição
para o mundo, através do que simbolizou a sua existência.
Na segunda, menciona a função de protetora e delimitadora de onde o
corpo jaz necessitando de abrigo, acolhimento.
Na terceira, pede para a natureza abrir-se de forma que permita ao luar
iluminar a lápide, ora, se ilumina algo para que seja visto. E o que é visto é
imediatamente lembrado, evocado porque existe de certo modo na memória.
Tal memória é indicativa da evolução neurológica humana que começa a
colocar-se além da memória de procedimento, que é ligada a capacidade de
reter e processar informações que podem ser realizadas como andar, por
exemplo; Atingindo a memória declarativa que consiste na capacidade de
verbalizar um fato, podendo ser imediata ao tratar de fatos muito recentes que
são rapidamente esquecidos sem deixar traços, ou mesmo, das memórias de
curto ou longo prazo.
A memória de curto prazo forma traços de memória e possui a duração
de algumas horas, podendo ou não ser consolidada. Se consolidada, pode
durar meses e anos sendo chamada de memória de longo prazo. A memória
de longo prazo envolve a capacidade de aprendizagem e assume suma
importância para a evolução de uma tradição de cultura universal por meio do
conhecimento alcançado por gerações ancestrais e acionado por gerações
futuras de seres também inseridos no tempo.
A lápide enquanto forma material para evocação da memória funciona
inclusive como auxiliadora da memória que é base do conhecimento e deve ser
trabalhada e estimulada, pois é por meio das experiências cotidianas
transmitidas que se atribui significação ao sentido da existência humana.
Enquanto ser social, de importância histórica, a lápide tenderá a referir-se ao
ofício que dignificou o ser por ela eternizado, evocado, lembrado se tornando
um verdadeiro livro de vidas, pois foi completa com um texto, o epitáfio.
EPITÁFIO
Epitáfio é uma palavra de origem grega, ἐπιτάφιος que significa “sobre a
tumba”. Etimologicamente, prefixo epi que designa posição superior acrescido
do radical tafos que significa túmulo. São, portanto, frases escritas sobre os
túmulos, homenageando a pessoa ali sepultada, geralmente escrito em placa
ou pedra.
A composição musical mais antiga e completa do mundo ocidental (letra
e melodia) de que se tem notícia é o epitáfio de Seikilos. A melodia foi
encontrada gravada em grego em uma lápide perto de Aidin na Turquia
(próximo de Éfeso). Com o seguinte texto:
GREGO (transliterado):
Hoson zes, phainou
Meden holos su lupou
Pros oligon esti to zen
To telos ho chronos apaitei
PORTUGUÊS:
Enquanto viveres, brilha
Não sofras nenhum mal
A vida é curta
E o tempo cobra suas dívidas
Além da composição presumivelmente feita para a esposa de Seikilos
enterrada no local, há ainda a inscrição: “Eu sou um túmulo, um ícone. Seikilos
me pôs aqui como um símbolo eterno da lembrança imortal.”
Expressões como “lembrança imortal” servem como indícios do uso de
determinadas áreas cerebrais sempre associadas ao aspecto emocional e de
linguagem. Desde meados do século XX questiona-se se as funções de
memória são localizadas em regiões cerebrais específicas havendo dúvidas
quanto a sua possível relação com linguagem e percepção, ou se seria apenas
uma função distinta da atenção.
Ora, considerando-se as evidências históricas presente nas lápides,
percebe-se que essa função, mesmo que centralizada não encontra-se só. Em
1861 Broca demonstrou que lesões restritas à parte superior do lobo frontal
esquerdo (área de broca) causavam um defeito específico na linguegem
afetando também a memória. Penfield foi o primeiro a mostrar que os
processos de memória encontram-se associados a locais específicos no
cérebro humano verificando que estimulação elétrica produz resposta
experiencial ou retrospecção em que o paciente era capaz de descrever uma
lembrança ou experiência vivida.
A lápide, também no decorrer da história funciona como um estímulo
para a memória mas efetuada por meio de outras vias neuronais mais corticais
relacionadas à linguagem, principalmente quando existe a presença do epitáfio.
E a questão da memória que é tão atual no que tange ao afinco científico da
neurociência e da psicologia, impera de forma prática por muito tempo nas
lápides pelos cemitérios mundo afora.
LÁPIDE NA HISTÓRIA
A lápide está na história e sofre interferência por meio da mesma.
Protege a memória e sofre interferência por intermédio das memórias. No
século XIV com a presença da peste negra ouve uma devastação de vidas
humanas, devastação que só se reduziu a partir de 1350 embora a doença
permanecesse no continente europeu de forma endêmica até por volta do
século XVIII. As seqüelas deixadas pela peste foram permanentes, alterando a
relação das pessoas, abalando a infalibilidade do clero, ampliando o misticismo
e reforçando a fé pessoal. Na arte transformou-se a forma com que a morte era
representada, mais assustadora agora, levando em seus braços falecidos
descarnados e torturados, testemunha permanente da imensa cicatriz psíquica
social provocada pela peste negra.
E, como toda cicatriz psíquica precisa de uma resimbolização para
conferir sentido a dor sentida, gerando esperança e possibilitando a
continuidade da vida. Curiosamente, encontra-se nos livros de história o
arquiteto Jackson como o primeiro a projetar a primeira lápide em 1366.
A lápide vem, portanto, eternizar o homem efêmero e vencer a dor
causada pelas perdas ocasionadas pela peste.
A lápide pode funcionar inclusive como única via da herança deixada
sobre a face da terra pelos homens diante da morte, como tão bem ilustrada na
lápide que não existiu na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Não tive
filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”–
MACHADO DE ASSIS.
Sendo assim a lápide assume na história uma função de narrar a
memória social da humanidade. O que pode ser ilustrado por algumas lápides
famosas, como por exemplo:
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico
como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. – Machado de Assis
“Passant, ne pleure pas ma mort (Passante, não chores minha morte)
Si je vivais tu serais mort. (Se eu vivesse tu estarias morto)” - Robespierre
“Δεν ελπίζω τίποτα. Δεν φοβούμαι τίποτα. Είμαι ελεύθερος ("Não espero
nada. Não temo nada. Sou livre").” - Níkos Kazantzákis
“É uma honra para o gênero humano que tal homem tenha existido." Newton
"Considero minhas obras como cartas que escrevi à posteridade sem
esperar resposta". - Villa-Lobos
"Assassinado por imbecis de ambos os sexos". - Nelson Rodrigues
Há ainda casos atípicos como o da família de Tancredo Neves que
mudou o epitáfio desejado pelo mesmo, que era o seguinte: "Aqui jaz, muito a
contragosto, Tancredo de Almeida Neves".
EPITÁFIO E SOCIEDADE
O epitáfio acabou por se tornar algo importante sob a perspectiva social,
e também se tornou forma de expressar a ironia. Mas, sem perder a sua função
típica de expor de forma resumida o sentido da vida do sujeito, evocar uma
memória. Ao que pode ser ilustrado pelo seguinte texto que caminha pelo
correio eletrônico sem referencia de autor, mas que sem dúvida é uma
expressão da relação do senso comum com a arte da lápide em uma crítica
social.
Profissão
Agrônomo
Alcoólatra
Arqueólogo
Assistente social
Broter
Cartunista
Delegado
Ecologista
Espírita
Funcionário público
Gay
Herói
Hipocondríaco
Humorista
Jangadeiro diabético
Judeu
Pessimista
Psicanalista
Sanitarista
Viciado
Lápide
Favor regar o solo com Neguvon. Evita vermes.
Enfim, sóbrio.
Enfim, fóssil.
Alguém aí, me ajude!
Fui.
Partiu sem deixar traços.
Ta olhando o que? Circulando, circulando.
Entrei em extinção.
Volto já.
É no túmulo ao lado.
Virei purpurina.
Corri para o lado errado.
Eu não disse que estava doente?
Isso não tem a menor graça.
Foi doce morrer no mar.
O que vocês estão fazendo aqui? Quem está tomando conta
da lojinha?
Aposto que está fazendo o maior frio no inferno.
A eternidade não passa de um complexo de superioridade
mal resolvido.
Sujou!
Enfim, pó.
LÁPIDE DO INDIGENTE
Ao falarmos da função de memória social para as lápides, fica incógnita
a função da mesma para aqueles que por vezes sequer têem túmulos, os
indigentes.
Mas, mesmo o indigente que faz algo pela humanidade, apesar de não
possuir uma tumba clássica, recebe uma espécie de lápide nos centros
anatômicos, pois antes da sala das cubas há sempre uma placa que é sem
sobra de dúvidas, uma lápide simbólica. Mostrando que a lembrança e a
gratidão funcionam como companheiras na construção da história e na
consolidação
da
memória
daqueles
que
antecederam
contemporânea na caminhada humana sobre a Terra.
a
geração
Placa sobre a porta da sala das cubas (onde guardam os corpos) no centro
anatômico, com dedicatória ao cadáver desconhecido.
Eis os dizeres, e a memória que existe na lápide do indigente que
contam também no código de ética médica: “Aquele sobre cujo peito não se
derramaram lágrimas de saudades, sobre cujo ataúde não se jogaram flores,
de cujo nome não se soube, sobre cujo feitos não se escreveu a historia, mas
cuja lembrança, em nós, haverá de ser eterna como a saudade, grande como
altruísmo, eloqüente como o seu gesto, dando tudo à mesma humanidade que
tudo lhe negou em vida.”- Autor desconhecido
A lápide atualiza, portanto, aspectos de uma memória que se inicia no
singular e que vai até o universal, uma vez que retrata a forma de lidar com
uma condição humana universal: a inserção do humano no tempo.
Referências Bibliográficas
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1997.
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MACHADO, Ângelo. Neuroanatomia funcional. Editora Ateneu. São Paulo, 2004.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Editora Vozes. Petrópolis, 1997.
Luto roubado
Mayra Lopes de Almeida Reis
Faculdade de Medicina de Itajubá
Resumo
Além da função de agente promotor da saúde pública no campo biológico, o cemitério possui
conotações simbólicas que lhe conferem a capacidade de promover saúde psíquica, pois, por
meio dos ritos e da estrutura física do local o sujeito que perdeu um ente, simboliza sua perda,
realizando um processo normal de luto. O que impossibilita a instalação de algumas
psicopatologias decorrentes de um luto não cumprido devidamente.
A mudança da estrutura física do cemitério para o modelo de parque altera o luto normal, pois
ao negar a dor da perda por meio da supressão de elementos simbólicos, o sujeito sente
culpado por sentir tal dor, e, reprimindo-a aumenta sua propensão para inúmeras
psicopatologias.
Palavras-chave: cemitério, luto, parque.
INTRODUÇÃO
Ao avalia-se a estrutura física do cemitério é significativo questionar:
“Qual o objetivo de se colocar um corpo debaixo da terra?”.
A pergunta pode ser rapidamente respondida pela área da saúde
pública, afinal, debaixo da terra o corpo tem seu processo de decomposição
longe de insetos, o que reduz o mau cheiro, as bactérias no ambiente, o risco
de epidemias. É uma medida higiênica e salubre.
Mas observando-se a estrutura do cemitério, torna-se perceptível a
existência de rituais e consternação, o que gera um questionamento ainda mais
complexo: “Qual o objetivo de se reunir pessoas somente para colocar um
cadáver na terra?”.
A dúvida se aguça ainda mais quando ao estudar diferentes culturas
constata-se que mesmo que tais formas não sejam universais e consonantes
no que tange a valores, elas existem em todos os tipos de povos. Afinal,
independente da causa do óbito ou da localidade, o morto deixa amigos,
familiares, uma tradição na qual vivia imerso, portanto, faz-se necessário lidar
com essa morte de alguma forma. Assim, quase todas as culturas criam seus
padrões de reação imediata à morte, e essa reação se relaciona ao cemitério e
ao ritual fúnebre.
Segundo Marshall e Levy: “Os rituais proporcionam... meios através dos
quais as sociedades buscam controlar o elemento destroçador da morte,
tornando-o significativo... O enterro como um instrumento formal para se
realizar o trabalho de finalização de uma biografia, de controle da consternação
e da construção de novas relações sociais após a morte”. (pg 246; 253).
Independente da variação cultural de se vestir preto ou branco, os
funerais auxiliam aos que ficam a desempenhar seu pape social, uma vez que
agora faltará um membro nas relações, estabelecendo novas linhas de
influência e autoridade, fortalecendo laços familiares, contando a história da
vida do sujeito e descrevendo o valor dessa vida, auxiliando assim na
aceitação dessa morte, bem como da nova dinâmica familiar a ser instituída.
Os rituais ainda se fazem necessários no que toca aspectos filosóficos e
religiosos, pois ajudam a responder dúvidas dolorosas como: “Por que agora?”,
“Por que dessa forma?”. Oferecendo uma acolhida entre os familiares e
amigos, propiciando assim algum conforto nos dias imediatamente após a
morte.
LUTO NORMAL
“O sentido mais difundido da morte, para a maioria dos adultos, é o de
perda. (...) Além disso, está é a percepção de que a morte significa perda de
relações, perda do gosto e do cheiro, perda do prazer”. – Helen Bee
O processo de luto normal envolve a vivência da sensação de perda, de
sofrimento, de saudade. Que só vivido e simbolizado de forma adequada pode
ser superado, permitindo o novo estabelecimento da dinâmica social que fica
abalada pela ausência de um membro.
Sendo assim, o processo de luto normal possui os estágios descritos na
tabela, segundo o obtido ao considerar os estudos de Bowlby e Sanders:
Estágio
1
Bowlby’s
entorpeci
mento
Sander’s
choque
2
Compaixão
Percepção da
perda
Descrição geral
Características dos primeiros dias, ocasionalmente mais
longos; descrença, pertubação, inquietação, sensação de
irrealidade, sensação de impotência.
O enlutado tenta recuperar a pessoa perdida; pode buscar
ativamente ou perambular como que buscando; pode
relatar que vê a pessoa morta. Também cheio de
ansiedade e culpa, medo e frustração. Pode dormir mal e
chorar com freqüência.
3
Desorganização e
desespero
Conservação e
retraimento
4
Reorganização
Cicatrização e
renovação
“No
ano
após
o
Período da depressão e do desespero; cessa a busca e a
perda é aceita, mas a aceitação da perda traz depressão
ou uma sensação de impotência. Costuma ser
acompanhada de muito cansaço e de um desejo de dormir
o tempo todo.
Estágio em que o indivíduo assume o controle outra vez.
Há certo esquecimento, uma sensação de esperança,
aumento de energia, saúde melhor, melhor padrão de
sono, diminuição da depressão.
luto,
a
incidência
de
depressão
eleva-se
substancialmente, ao passo que as taxas de morte e doença também
aumentam um pouco entre os viúvos.” – Stroebe e Stroebe
Mesmo com o cumprimento do luto normal, as taxas de depressão
elevam-se em decorrência da culpa que o indivíduo sente por ser impotente
perante a morte, porém tal depressão não é patológica, pois tende a ceder num
intervalo de tempo de aproximadamente seis meses.
LUTO E ROMANTISMO
O luto que não se cumpre, se aproxima do ideal proposto pelo estilo
literário romântico, como exemplificado por Álvares de Azevedo:
“Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente. “
A segunda geração do romantismo no Brasil propõe um luto sem
sofrimento, ora um luto sem sofrimento não é um enlutamento, e quando o
processo não é vivido de forma integral, o luto não se cumpre e há uma
tendência do indivíduo a repetir cotidianamente a dor da perda, ficando preso
ao sentimento de dor pela impotência e saudade. Ficando impossibilitado a
partir daí, a retomar sua nova rotina e dar continuidade a sua existência.
Parece óbvio que os românticos se apegam a tal tipo de dor, pois
priorizando o amor eterno, consideram que a continuidade do sofrimento pela
falta da pessoa amada é a intensidade do próprio amor. Ora, tal processo
tende a desencadear inúmeros casos patológicos por impossibilitar e atrapalhar
a relação: indivíduo/sociedade.
A BUSCA PELA FELICIDADE
Diferente da segunda geração romântica, a sociedade atual prima pela
felicidade, mas a busca pela felicidade e fuga da dor chegou a um ponto tão
exacerbado, que o método de fugir do sofrimento se aproximou ao método de
busca pelo sofrimento como forma de amor dos românticos.
Quando o romântico pede para não derramar a lágrima, sugere
implicitamente que o vivente as guarde na alma.
Em contrapartida, a sociedade que elegeu a Fluoxetina como pílula da
felicidade, também pede ao sujeito que não derrame lágrima, pois pessoas
felizes não choram, e chorar assume uma conotação de infelicidade para
muitos, de desequilíbrio emocional, o que por si só culmina em exclusão social.
Fica, pois, evidente em ambos os casos há repressão da dor, mas como
sentir sofrimento para superar sofrimento é algo da dinâmica existencial
humana, a demonstração de uma pseudofelicicade, acaba por culminar em
mais dor.
A dor reprimida que vai sendo atualizada em toda e qualquer sensação
que remete a perda de algo, agravando significativamente os quadros
psicopatológicos de uma forma geral.
A negação da dor e da tristeza tem se manifestado no modelo estrutural
do cemitério. O que á perceptível ao comparar dois modelos de cemitério: o
clássico e o parque (tendência atual).
CEMITÉRIO CLÁSSICO
“É uma honra para o gênero humano que tal homem tenha existido."
Epitáfio de Newton.
O cemitério clássico ocidental pode ser definido como aquele em que há
expressões artísticas nas tumbas, pertencente a um cenário que remete a dor
da perda e as suas diversas formas de expressão, tais como flores e velas
adornando aos túmulos; Presença de uma capela rebuscada como local de
conforto espiritual tanto para o vivente como para o passante; Portões
diferenciados que demonstram o ar de sacralidade do local. E a simbolização
da dor pela partida do ente querido, fazendo uma analogia entre a importância
da existência do indivíduo e os aspectos de seu sepultamento.
Há ainda a localização do cemitério que era feita de forma a afastá-lo da
cidade por medidas de salubridade pública, mas também para afastar a idéia
de morte e perda da rotina social.
CEMITÉRIO PARQUE
“E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.”
Álvares de Azevedo
Tal modelo é uma tendência atual que objetiva reduzir a dor e o aspecto
fúnebre dos ritos de sepultamento, caracteriza-se por sua semelhança com o
parque, o que ajuda a denominá-lo, pois tendem a se chamar “parque.”
complementado com uma palavra que remeta a idéia de cemitério, para que
não sejam confundidos com os parques de recreação.
Seus túmulos se encontram no chão, de forma que o longo gramado
verde é predominante o que faz com este se assemelhe ao parque. Sua
localização não tende a ser afastada tal qual a do cemitério clássico, pois este
foge aos aspectos de tristeza, e se, não remete a morte, não necessita de
reservas no que se refere a sua visualização.
PARQUE E O LUTO
Perdendo o arquétipo de um cemitério clássico, o cemitério parque altera
o processo de luto normal, pois ao mascarar a perda de forma a evitar a dor,
evita também à simbolização necessária a uma psique saudável que é possível
por meio da representação artística presente em um cemitério clássico.
A presença do cemitério como um lugar de expressão humana, uma
expressão que tem sido tolhida pelos cemitérios parque, é observada por meio
da comparação dos aspectos estruturais.
A ENTRADA
O cemitério clássico possui uma entrada permeada por entalhes
simbólicos em seus portões, acompanhados de placas sobre o cemitério,
identificando o lugar prontamente, de forma a remeter a aspectos que dão à
entonação de solo sagrado. Raramente se encontram pessoas conversando
em suas proximidades, ou mesmo crianças, e o ambiente impõe respeito, pois
remete em sua arquitetura a efemeridade a que a condição humana está
sujeita, mesmo que sua arquitetura seja simples.
Em contrapartida, a entrada do cemitério parque possui crianças
brincando e pessoas sentadas em seus degraus, conversando, sem possuir
uma atitude reflexiva sobre o local em que se encontram e muito menos sobre
a condição da existência humana diante da eternidade. Os bancos encontrados
se assemelham aos de praça e as flores dão um ar de local de recreação. Sem
uma imposição de respeito ou mesmo temor.
Cemitério clássico
Cemitério tipo parque
CAPELA
“Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro,
... Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;”
Álvares de Azevedo
Alguns cemitérios clássicos, não possuem capelas, pois os ritos
religiosos se davam com o corpo presente na igreja ou em outro templo
sagrado, o local do culto.
Nos cemitérios clássicos com capela, a mesma possui, geralmente, uma
série de imagens ou mesmo pinturas e representações artísticas que permitem
não só a expressão da fé, mas inclusive a reflexão teológica e de valores.
Já nos cemitérios parque as capelas são em geral inter-religiosas,
contando de bancos e de um promontório onde o religioso celebra o culto de
acordo com a fé assumida pela família e pelo morto.
Ora, na avaliação o trabalho não se propõe aos aspectos estéticos da
capela, e sim aos aspectos de evocação da reflexão, afinal, a reflexão sobre a
condição humana e sua passagem é que são importantes para que o luto se
cumpra.
A capela do tipo parque possui menor número de aspectos que evocam
a reflexão. Mas um outro fator determinante para tal é a profundidade do culto
realizado, o que devido a sua variabilidade infinita, é de difícil análise.
Cabe ainda ressaltar que ambas as capelas possuem bela decoração
independente da quantidade de adornos ou de objetos. Mesmo porque, os
cemitérios parque são belos por se aproximarem inclusive mais da idéia de
parque do que a de cemitério.
O que é avaliado, portanto, é a capacidade da arquitetura auxiliar na
efetivação do processo normal de luto.
VELÓRIO
“Só levo uma saudade... é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!”
Álvares de Azevedo
O velório sofreu uma mudança no decorrer da história. Houve um tempo
em que as pessoas eram veladas, cuidadas em seu sono, depois com a
significação do sono eterno, os familiares se reuniam em torno do corpo para
orar pela alma e despedir-se, o que ocorria em casa mesmo. E ainda existem
lugares onde tal procedimento permanece. Posteriormente, criaram-se os
lugares chamados de “Velórios”, para que a família fosse lá, facilitando o
acesso de mais pessoas à despedida, sem causar transtornos, ou bagunçar as
residências.
Os cemitérios clássicos, raramente possuem velórios, e quando
possuem, são poucas e pequenas as salas para tal.
Os cemitérios tipo parque, possuem em média quatro salas, o que
denota seu alto índice de movimento e seu caráter mais empresarial e
lucrativo.
Quanto maior for o número de salas, e maiores as proporções das
mesmas, mais impessoal se torna o rito e sua significância é reduzida. O
acolhimento do familiar que fica tende a ser mais por uma polidez diante de
obrigação social do que uma visitação de pessoas realmente próximas que
compartilham da mesma dor.
O que é enfatizado pelo surgimento de velório virtual, onde o velório é
filmado e transmitido via internet, de forma que qualquer parente em qualquer
lugar do mundo possa dar seu último adeus.
Mesmo entendendo e considerando as vantagens que consistem no fato
de permitir um adeus a aquele que devido a questões geográficas não poderão
se despedir, há de se ressaltar que os velórios virtuais, ou mesmo os demais
do cemitério parque assumem uma amplitude tal que perde em aspectos
humanos e de conforto psicológico destinado aos familiares mais próximos.
Pois, tudo ocorre de forma tão normatizada e tão distante, que não possibilita a
dinâmica familiar do processo de luto e de uma reaproximação de parentes
distantes dos quais sequer tinha-se notícia como uma forma de conforto, de um
socorro familiar que se desloca.
FLORES E VELAS
O cemitério clássico possui, quando bem cuidado, flores e velas em
quase todos os túmulos, permitindo que exista singularidade na expressão de
dor diante da perda; pois, as famílias escolhem velas das cores preferidas do
defunto, e também suas flores preferidas. E aos demais que comparecem ao
local, fica óbvio o cuidado que os familiares despendem para com o túmulo que
passa a ser a representação do ser completo, do ser morto e da atenção que a
família despende aquele lugar.
No cemitério parque, não se pode colocar flores ou mesmo velas junto
às lápides, pois estes possuem velários. E tal proibição é indicada por placas, o
que dá um caráter impessoal ao cemitério, pois a vela no velário não é uma
representação bela de uma luz deixada em memória do familiar e sim uma
obrigação mais próxima de normatização, uma vez que o velário possui uma
estrutura para o tipo de vela mais comum, e as ceras ali encontradas são em
sua maioria apenas da cor branca. E as flores são colocadas distante do
túmulo de forma que não se perceba que os túmulos são túmulos e sim
campos de um parque.
A família com essa demonstração distante de afeto tem sua dor
normatizada e não simbolizada.
É claro que existe uma necessidade de se enquadrar o procedimento de
despedida, mas para isso já existem os cemitérios que são o lugar onde essa
despedida ocorre, porém tal despedida deve ser atribuída de uma significância
única e sentimental dada de forma singular e harmônica com o grupo para
assim expressar o sentimento de tais indivíduos. Somente dessa forma o luto
toma seu rumo natural.
PAISAGEM
A paisagem dos velórios clássicos em geral é uma vista da cidade, uma
vez que, ele se posiciona nos limites da mesma e em lugares de elevada
altitude; Com um cruzeiro em frente. É como sentir que a morrer coloca o ser
fora desse mundo, fora da cidade, é uma conscientização de que o morto não
pertence mais do mesmo modo a tal sociedade, e que a dinâmica social e
familiar deve ser alterada, com as funções do morto sendo distribuídas por
entre amigos e parentes.
Mesmo um sendo um processo doloroso, se faz necessário pra não
prejudicar de forma incorrigível as relações estabelecidas por aqueles que
vivem e que permanecem.
A localização dos cemitérios tipo parque é mais variável, sendo
construídos em loteamentos já dentro do perímetro urbano, o que os
distinguem dos clássicos, que tem a cidade crescendo até imbutí-los.
Não é necessário que parques sejam colocados fora dos perímetros
urbanos a dor abrandada por sua estruturação pode ser abrigada pela cidade.
Uma vez que não remete a túmulos, não expressa tanto sofrimento, tamanha
efemeridade.
O grande problema consiste no fato de que quando a humanidade tenta
negar uma condição humana, esta mesma humanidade tende a se tornar mais
desumana.
Quem perde a dor e a falta também perde um aspecto importante da sua
humanidade, de expressar tal dor e transforma-la em beleza, em arte, em
tradição.
TÚMULO E ARTE
“Era da idade de trinta e dois anos quando começou a reinar, e reinou em
Jerusalém oito anos: e foi-se sem deixar de si saudades algumas; e o sepultaram na
cidade de Davi, porém não no sepulcro dos reis” – Crônicas 21:20
O texto bíblico, na narrativa da morte de Jorão evidência, por meio da
narrativa histórica, como a forma de sepultamento pode se tornar uma espécie
de punição para o ímpio; Conota um sentido de que ser enterrado sem honras,
é não tê-las conquistado durante a vida. Ou seja, não ser um sujeito honrado.
Tais honras sempre foram manifestas na forma de arte tumular no
decorrer da história.
Muito para além do roubo da arte tumular, a tendência do cemitério tipo
parque, tem retirado dos seres o direito a viver a dor da perda, e sem vivê-la
não há como supera-la; Tem roubado o direito de uma reaproximação dos
familiares no momento de dor. É comum ouvir atualmente, que se a pessoa já
está morta, não há necessidade de deslocar os familiares para enterrá-las, ora,
mais do que enterrar um morto, o adeus é uma vivência no âmbito espiritual,
familiar e reflexiva, fazendo o indivíduo repensar a sua própria existência e
também a condição humana.
A vida que não reflete sobre si mesma perde aspectos fundamentais no
que tange a própria existência e completude do ser.
Uma humanidade que não avalia a efemeridade do humano, não prima à
existência, não conhece a unidade que compõe o todo, não valoriza a unidade
e sequer o todo.
Pessoas que não completam seu luto de forma normal sofrem da
depressão pela culpa de uma impotência não expressa não chorada, não
sofrida. Tornam-se niilistas, pois não acreditam em nada, menos ainda na
sociedade que não lhe acolheu no momento da sensação de desamparo
resultante da perda.
A civilização ocidental passa por um período em que inúmeros aspectos
humanos têm sido suprimidos em detrimento de um pragmatismo, de
comodismo, e os cemitérios têm refletido essa forma de negligência; e a
negligência para com fatores tão importantes tal qual o luto tem gerado uma
sociedade com aumento de psicopatologias.
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Onoe a morte socorre a vida
Mayra Lopes de Almeida Reis.
Faculdade de Medicina de Itajubá.
Resumo
O cemitério é o lugar onde se abriga a morte, e a morte abrigada se compraz em socorrer a
vida. Socorrer a vida ao promover a saúde ajudando o humano a lidar com a efemeridade e
com suas limitações. E, socorrer a vida de forma holística, pois institui uma forma de lidar com
a morte, promove efetivamente a saúde nos âmbitos: corpóreo, psíquico, público e espiritual.
Perceptível em cada uma das áreas de modo específico.
Considera-se, portanto que o surgimento e sua perpetuação na história se devem ao fato de
ser um agente promotor de saúde em diversos âmbitos e que vem sofrendo conseqüências
sociológicas que tem afetado sua funcionalidade em decorrência de mudanças no aspecto
estético e físico do mesmo.
Palavras-chave: cemitério, saúde, sociedade.
Introdução
Segundo o dicionário, cemitério é um substantivo masculino que designa
o lugar onde se sepultam os cadáveres dos mortos.
O termo pode ainda
assumir diversas conotações que tendo sentido amplo, pode variar desde “local
onde ocorre muita mortandade” incluindo até seu uso para adjetivação de
situações, indicando lugar silencioso e desértico, como na expressão “paz de
cemitério”.
Na vida prática, assume conotações simbólicas não só no que tange a
vivência religiosa, mas no que alcança conceitos como efemeridade e a
saudade relacionada ao enterro do corpo, assumindo um caráter coletivo
enquanto local público.
Ao avaliar a instituição que é o cemitério em seus diversos aspectos na
cultura ocidental, faz com que se levante o questionamento: Por que existem
cemitérios?
Considerando-se que o cemitério não é o lugar onde ocorre a morte
pode excluir-se a hipótese de que ele existe porque a morte existe. Mesmo
porque, nem tudo o que morre será sepultado em um cemitério.
A curiosidade se aguça para saber não só o que cria a necessidade do
cemitério, mas também na busca do porquê de sua existência e permanência
no decorrer da história da humanidade.
É, portanto, a base ideológica fundante do cemitério que deve ser
alcançada.
Por meio da dedução lógica, diante de vasta teoria sobre o tema, fica
claramente perceptível que a função medular que sustenta o surgimento e a
manutenção dos cemitérios encontra-se no fato de este ser uma medida de
salubridade completa.
Uma medida salubre não só no aspecto bioquímico e epidemiológico
que possui, mas por ser uma medida de saúde de abrangência holística,
alcançando caracteres humanos básicos tais como: saúde mental da
população diante do luto do indivíduo, por ser o último cuidado dispendido para
com o corpo, por ser relevante quando a disseminação das epidemias, e ainda
por ser no âmbito simbólico responsável pela estruturação do ser inserido na
história e diante da eternidade, confluindo para a saúde espiritual no campo
religioso.
Abrigando a morte
Seguindo a lei da conservação, na natureza nada se cria tudo se
transforma. O ciclo vital mostra que a morte existe todo tempo e que se o
morrer é constante isso se deve ao fato de que é sucessão da vida, que só
porque se renova pode extinguir-se sempre.
Mesmo defrontados com o constante morrer da natureza não houve um
só pensador que ousasse defender a idéia de que o mundo é um macro
cemitério.
Isso ocorre porque, se o morrer é constante, a morte em si em um fato,
um evento que marca o fim do morrer constante das células do metabolismo de
um organismo.
Além de ser fato, a morte é um marco, pois cada indivíduo só morre em
absoluto e efetivamente uma única vez, e nesse momento sua história está
fechada, e os que ficam podem considerá-lo um ser completo que cumpriu a
sua função.
Tem-se então o defunto, tal qual na sua conotação etimológica: defunto,
do latim defunctus, formada pelo prefixo de, com functus, que é o particípio
passivo do verbo fungi (cumprir, acabar, pagar uma divida), vinculado a idéia
de “aquele que cumpriu sua função”.
Na sociedade do morrer constante acumula-se história, uma história que
culmina em normas e hábitos, que resulta em uma tradição.
É exatamente nesse contexto social que a cultura do cemitério se
consolida. É justamente quando surge a necessidade de se abrigar uma
tradição permeada de história, crenças e imaginário simbólico que aparece a
capacidade de se atribuir a tal abrigo um lugar.
O lugar escolhido é o mesmo que abriga o corpo do que se foi, e as
conotações do luto simbólico: o cemitério.
Quando diante da temática do cemitério, as reações são diversas,
porque apesar de remeter à morte, a efemeridade e aos limites da condição
humana, é o lugar do abrigo do fim, é aonde a sociedade guarda a morte.
Inicialmente guarda a morte criando sua tradição, e posteriormente cria
uma tradição com formas específicas e regras para guardar a morte (normas
de sepultamento).
Abrigar a morte é algo assustador, porque abrigá-la é permitir a sua
dinâmica, é constatar a sua vida. É saber que a morte é viva visto que não
morre. É complexo, por conferir a consciência da constância do evento.
Torna-se significativo perceber que saber lidar com a morte é abrigá-la
de algum modo. Abrigar a morte é aceitar o princípio da realidade culminando
em uma postura saudável do sujeito, no seu bem estar psíquico, físico e social
de indivíduo íntegro que consegue superar o luto.
O corpo e o cemitério
É função de a área médica emitir o atestado de óbito e assim, o corpo
ganha sua documentação final. Tal emissão torna-se insuficiente, é necessário
fazer algo com esse corpo, “devolver o pó ao pó”. Cuidando para que ele não
seja profanado em nenhum aspecto. Afinal, ele é a parte do ser que jaz sem
consciência.
Ora, para aquele que permanece vivo, existe a saudade do falecido,
personificada na falta que se sente do corpo. Mas o corpo se deteriora, e sua
presença tem que ser então transferida para o lugar onde descansará.
O hábito de visitar cemitérios, bem como o de realizar culto a
antepassados livra o familiar que permanece vivo da solidão. Tem um efeito
psíquico salubre, por imergir o indivíduo na tradição (por intermédio da arte),
reduzindo a sensação de abandono que o sobrevivente sente.
A sociedade pós-moderna que ao buscar inovações nega a tradição, que
não tem o hábito de consagrar a sucessão familiar, bem como o hábito de
visitar cemitérios faz com que essa mesma sociedade passe a tender a remoer
a sensação de abandono natural após o luto, e se torne por conseqüência uma
sociedade mórbida com altos índices de doenças psíquicas.
Faz-se importante se considerar o cemitério como lugar que ao acolher o
corpo e a tradição, promova a saúde psicossocial dos familiares do defunto. O
que é materializado e intensificado pelo hábito de visitar cemitérios.
Cemitério enquanto medida de saúde pública
No decorrer da história da humanidade, grande parte dos problemas de
saúde pública relacionou-se com a natureza da vida em comunidade.
Abrangendo
diversos
campos,
dentre
eles:
controle
das
doenças
transmissíveis, o controle e a melhoria do ambiente físico (saneamento), a
provisão de água e comida puras, e o alívio da incapacidade e do desamparo.
A ênfase sobre cada um desses problemas e situações varia no tempo e na
história.
Grosso modo, a medicina social se forma em três etapas: medicina de
estado, medicina urbana, medicina da força de trabalho.
A medicina urbana encontra seu exemplo clássico na França, onde a
situação dos cemitérios é significativa. “Nasce o cemitério urbano, medo da
cidade, angústia diante da cidade que vai se caracterizar por vários elementos:
medo das oficinas e fábricas (...); medo, também, das epidemias urbanas, dos
cemitérios que se tornam cada vez mais numerosos e invadem pouco a pouco
a cidade; (...)” - FOUCAULT.
E continua: “darei o exemplo do ‘cemitério dos inocentes’ que existia no
centro de Paris, onde eram jogados, uns sobre os outros, os cadáveres das
pessoas que não eram bastante ricas ou notáveis para merecer ou poder pagar
um túmulo individual. O amontoado no interior do cemitério era tal que os
cadáveres se empilhavam acima do muro do clausto e caíam do lado de fora.
Em torno do claustro, onde tinham sido construídas casas, a pressão devido ao
amontoamento de cadáveres foi tão grande que as casas se desmoronaram e
os esqueletos se espalharam em suas caves provocando pânico e talvez
mesmo doença. Em todo caso, no espírito das pessoas da época, a infecção
causada pelo cemitério era tão grande que, segundo elas, por causa da
proximidade dos mortos, o leite talhava imediatamente, a água apodrecia, (...)”
– FOUCAULT.
Assim como agente estimulador de medidas de medicina urbana,
existem inúmeros outros exemplos, dentre eles o do Cemitério da Consolação
(SP), que por gerar apreensão em relação à saúde através do medo da
transmissão de doenças, alterou sua localização.
É difundido o fato dos cemitérios obedecerem a uma ordem sócioespacial situando-se no fim do perímetro urbano, na periferia, não só para não
serem vistos, como é o caso das penitênciárias, mas também para evitar
epidemias, assim como no caso dos aterros sanitários.
Sua localização, aliada a suas condições sanitárias denota significativa
importância epidemiológica, funcionando também como limite da urbanização,
havendo inclusive uma preocupação durante a sua manutenção no que tange a
ser um patrimônio público (passível de ser pichado, depredado...). É ainda
relevante uma postura de segurança em relação a aqueles que o visitam, para
que não funcione como vetor transmissor de doenças, o que ocorre no caso de
alguns casais que contraem doenças bacterianas ou mesmo infecciosa ao
realizarem práticas sexuais no cemitério.
Na função de promotor da saúde enquanto patrimônios públicos que ao
dar lugar aos corpos reduz taxas endêmicas e fatores epidêmicos, o cemitério
é, mesmo que de forma aparentemente velada, uma medida de saúde pública
desde o seu nascimento, passando pela medicina urbana, até os dias atuais.
Cemitério promovendo conforto espiritual
“Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete,
porque naquela está o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu
coração.” – Eclesiastes 7:2
Desde que o humano se conscientizou a respeito da morte, não se sabe
o que acontece com a consciência, com a alma, com o espírito daqueles que
se foram. Em meio à dúvida, as diversas religiões estruturam inúmeras
explicações e hipóteses que não são passíveis de comprovação por seres
vivos.
Toda incerteza gera conflito, medo e angústias; E, mesmo com toda
linguagem mítica religiosa acerca “das almas que voltaram pra Deus”, a
insegurança do que acontece ao ser no pós-morte permanece.
Mas, sendo o cemitério o abrigo do cadáver, da morte, há também de
abrigar o sentido espiritual/mítico conferido a aquele que morre. Assim, há um
forte elo entre a religião e as tumbas. E, medidas que eram apenas de saúde
pública passam a ganhar contornos religiosos que por meio do mito, confere
sentido ao rito do enterro.
Além da significância que a religiosidade atribuiu ao sepultamento, o
cemitério se faz importante por também acolher a dor e a tristeza de se perder
um ente querido.
A sociedade pós-moderna ocidental é a sociedade da Fluoxetina, da
primazia do bem-sucedido, que exalta o feliz e a felicidade.
Há uma depreciação com a tristeza, como se esta não fosse permitida.
Valoriza-se aquele que sente a perda de forma atenuada.
O que é esquecido, é que um ser humano normal e saudável tem um
período de luto, que faz parte do mecanismo de adaptação do sujeito. É natural
e até correto diante da morte refletir sobre o que tem sido a vida e sofrer com a
perda, com o deparar com o princípio da realidade que tira o humano da ilusão
de potência ilimitada. Para quem passa por essa situação natural de encontrar
o limite, existe a tristeza.
Assim sendo, muitas pessoas não gostam de visitar cemitérios,
considerando o lugar fúnebre e triste. E esse seja talvez o principal motivo que
faz com que o brasileiro (o feliz que faz festa e carnaval) tenha o hábito de
visitar cemitérios apenas quando está em outros países, a título de cultura
geral.
A prova empírica de que a sociedade passa por um momento de
negação da tristeza que culmina em culpa (por uma tristeza recalcada) e gera
depressão, é que sequer o cemitério pode ser cemitério.
A sociedade da pílula da felicidade nega o sepulcro e a dor da perda e
tenta substituí-lo pela alegria do parque. A nomenclatura atual da grande
maioria dos cemitérios é parque, que foge tanto a realidade que precisa de
complemento nominal para causar a identificação, como por exemplo: “parque
da saudade” (...).
A civilização da aparente felicidade roubou dos vivos o direito de chorar
seus mortos, de expressar sua dor de forma simbólica nos sepulcros.
E dessa maneira os lutos não se cumprem, e as pessoas deprimidas
passeiam em meio a seus parques.
Saber lidar com a morte, não é negá-la, é aceitá-la, abrigá-la com a dor
que é intrínseca a ela. É precisar significar o fato de forma mítica, religiosa e
artística.
A sociedade que prima a existência como felicidade, tende a negar a
tristeza que faz parte da experimentação de ser do ser. E, esconde a tristeza,
mas intensifica a angústia, o vazio que ficou no lugar da tristeza não significada
e não expressa.
O que fica evidente quando comparamos a foto de dois túmulos.
O primeiro, de um cemitério tradicional municipal.
O segundo o de um cemitério do tipo parque, inaugurado há
aproximadamente dois anos.
Ambos no mesmo município.
Os túmulos têm se tornado vazio como a vida mítica e espiritual da
civilização, vazios como as almas que negam a tristeza, negando a si mesmas
o direito de existir de determinado modo. Túmulo vazio de arte que tem
dificultado para que o cemitério efetive sua função simbólica de agente
auxiliador do cumprimento do luto, do luto que se cumpre permitindo a saúde.
Afinal, é exatamente quando permite e auxilia o cumprimento do luto e
suas expressões míticas, que o cemitério cumpre sua função de promotor da
saúde espiritual do ser.
"A grande coragem é, ainda, a de manter os olhos abertos, tanto sobre a
luz quanto sobre a morte" – CAMUS.
Referências Bibliográficas
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Almeida Corrigida e Fiel, 1994.
CAMUS, Albert. O avesso e o direito. 2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995.
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ROSEN, G. Uma história da saúde pública. São Paulo: UNESP Ed., 1994.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Editora Vozes. Petrópolis, 1997.
A ARTE CEMITERIAL DE LUIZ LEONARDI E DA MARMORARIA CARRARA
NO CEMITÉRIO DA SAUDADE EM PIRACICABA: levantamento e questões
preliminares
Paulo Renato Tot Pinto
Licenciado em História - UNIMEP
Resumo
O presente trabalho objetivou, através do levantamento e análise de jazigos localizados no
Cemitério da Saudade na cidade de Piracicaba e concebidos por Luiz Leonardi recuperar a
memória do artista no que se refere à arte funerária, identificando suas produções dentro do
referido campo santo, fazendo apontamentos acerca de possíveis mudanças em aspectos
artísticos no período em que o supracitado artista produziu.
Palavras-chave: Cemitério, Arte Cemiterial, Marmoristas.
1.Objetivo
O presente trabalho objetivou, através do levantamento e análise de
jazigos localizados no Cemitério da Saudade na cidade de Piracicaba - SP e
concebidos por Luiz Leonardi — fundador proprietário da Marmoraria Carrara,
que teve oficinas na cidade de Araras/SP e Piracicaba/SP e executou serviços
em toda região e também fora do estado de São Paulo — recuperar a memória
do artista no que se refere à arte funerária, identificando suas produções dentro
do referido campo santo, fazendo apontamentos acerca de possíveis
mudanças em aspectos artísticos no período em que o supracitado artista
produziu, além de trazer a possibilidade de identificar diferenças entre
esculturas funerárias classificadas como “seriadas” ou de “catálogo”, frente à
produção de outros artistas seus contemporâneos.
Assim, este trabalho não visa elaborar uma análise iconográfica ou
iconológica das sepulturas estudadas. Entretanto, durante o processo de
catalogação, levantaram-se algumas questões relativas a determinadas
representações alegóricas, que julgo pertinente desenvolver, na medida do
possível, em meu trabalho.
2.Arte funerária no Brasil
Um dos precursores dos estudos de arte cemiterial no Brasil foi o
historiador Clarival do Prado Valladares, que lançou, em 1972, o livro Arte e
Sociedade nos Cemitérios Brasileiros
1
, ainda hoje a principal fonte de
referência sobre o tema no Brasil. Tal obra, segundo a historiadora Maria Elizia
Borges, foi “a primeira análise de cunho sociológico sobre a história dos
cemitérios no Brasil” 2. Resultado de uma grande pesquisa que levou o autor a
percorrer dezenas de cemitérios em diversos estados do país, utilizando-se de
fontes inusitadas como “livros de guardiões de convento, cartas de viajantes,
livros literários, arquivos de cemitério, relatos diversos, etc”3, Valladares tentou
compreender a evolução da arte tumular brasileira.
Ao lado do estudo de VALLADARES (1972) cabe mencionar o belo
trabalho de Maria Elizia Borges, Arte Funerária no Brasil (1890 – 1930) – Ofício
de Marmoristas Italianos em Ribeirão Preto4, que é, acima de tudo, um espaço
de recuperação da memória dos marmoristas da região de Ribeirão Preto e
referência desses novos estudos sobre a arte cemiterial. Nele, a autora busca,
através
do
levantamento
histórico,
indicar
o
verdadeiro
valor
de
artistas/artesãos que, segundo ela, “produzem um tipo de obra situada na
fronteira ambígua entre a arte e a técnica” 5 e que trouxeram de seus países de
origem — a Itália, predominantemente — grandes influências decorativas e
técnicas, as quais possibilitam, hoje, uma análise mais detalhada sobre a arte
cemiterial no Brasil.
Prova disso e, talvez, o aspecto de maior importância na obra, depois da
tentativa bem sucedida de recuperar a memória dos marmoristas de Ribeirão
Preto e da trajetória da arte funerária no Brasil, é a tipologia criada por
BORGES (2002) para classificação das sepulturas concebidas pelos
artistas/artesãos. Sua tipologia ajuda a criar uma dimensão acerca das
diferenças que se estabelecem no período analisado, que vai de 1890 até
meados de 1930. A análise iconográfica por ela aplicada às obras, conforme o
método proposto por PANOFSKY (2001) e vislumbrada em seu método,
configura-se um importante auxílio para o entendimento das mudanças e
aspirações da arte cemiterial no Brasil no período em questão, além de servir
de fio condutor para elaboração de uma tipologia aplicável ao objeto de
pesquisa do presente trabalho.
Outro estudo de referência que proporcionou um olhar diferente quanto à
arte cemiterial e, principalmente, quanto à arquitetura nos campos santos, é a
proposta de abordagem de Renato Cymbalista em “Cidade dos Vivos” 6,
pesquisa que revela claramente as influências sofridas pelo autor graças à sua
formação em Arquitetura e Urbanismo, em detrimento de estudos propriamente
de natureza histórica. Sua formação direcionou o caminho da pesquisa
focalizando especialmente aquilo que o autor interpretou como “Arquitetura
sem arquiteto”7: categoria na qual encaixava aquelas sepulturas realizadas por
pedreiros e mestre-de-obras e que utilizam materiais comumente empregados
na construção cotidiana: o material da “casa dos vivos” aplicado também na
edificação da “casa dos mortos”.
Embora a grande ênfase de sua análise seja de cunho arquitetônico, tal
perspectiva ajudou em muito a aquisição, no presente trabalho, de uma outra
possibilidade de interpretação frente aos jazigos construídos por Luiz Leonardi.
3. Metodologia
O processo de trabalho que procurei desenvolver começou com a
observação
in
loco
das
obras
construídas
por
Luiz
Leonardi
e,
conseqüentemente, pela Marmoraria Carrara, localizadas no cemitério
municipal de Piracicaba – Cemitério da Saudade. Tais obras foram
devidamente catalogadas e classificadas segundo uma tipologia a ser
apresentada mais adiante. A análise destes trabalhos fez-se acompanhar pelo
confronto das conclusões de campo com uma bibliografia que abrange história
da arte e da arquitetura, história do Brasil, história das mentalidades, história de
São Paulo, história de Piracicaba, entre outras áreas de conhecimento.
Já como referência metodológica para o trabalho com as imagens
presentes nas sepulturas, esta pesquisa se apóia nos fundamentos
estabelecidos por Erwin Panofsky, e propostos em seu ensaio “Iconografia e
Iconologia: Uma Introdução ao Estudo da Arte da Renascença”8. Em virtude do
tamanho reduzido do presente trabalho, conforme especificado para sua
publicação, tal método não será apresentado de forma tão aprofundada.
Frente a essas etapas propostas por PANOFSKY (2001), o presente
trabalho vai evidenciar a análise pré-iconográfica. Entretanto, durante o
processo, algumas análises que são da esfera da iconografia foram utilizadas,
visto que seria difícil proceder sem essas intervenções.
4. O Cemitério de Piracicaba e Luiz Leonardi
4.1. Identificação do Espaço
Inaugurado em 1878, o cemitério de Piracicaba é o segundo na cidade a
ser erigido extramuro ecclesiam,
sua entrada principal encontrava-se na
avenida Independência, e dava-se por meio de um portão que até hoje lá se
encontra, o qual, diante da atual configuração do cemitério, tornou-se lateral e
secundário. Reformado no início do século XX, dotado de um pórtico
monumental, seu arruamento foi em boa parte alterado.
Iniciei a coleta de informações acerca das obras claramente atribuíveis a
esse artista/artesão, que alimentaram um banco de dados no qual encontramse catalogados 117 jazigos, os quais se espalham por uma área de
aproximadamente 52.500 m² (a área total do cemitério é de 145 m²).
4.2. Identificação do Artista
Além da coleta de dados desenvolvida in loco, procurei informações
referentes ao artista/artesão Luiz Leonardi. Consegui contato com Luiz Sérgio
Leonardi, neto de Luiz Leonardi, nascido em 1937, e testemunha de grande
parte da trajetória da Marmoraria Carrara, além de ter conhecimento de vários
fatos anteriores relacionados à marmoraria de Luiz Leonardi.
Oriundo de Quercela Lucca, região de Toscana na Itália, Luiz Leonardi
nasceu em 20 de junho de 1879. Chegou ao Brasil com oito anos, em
companhia de seu pai, nos últimos decênios do século XIX, período de forte
imigração para suprir o déficit na mão de obra na lavoura cafeeira.
Segundo Luiz Sérgio Leonardi, seu avô não era letrado e, apesar disso,
dizia que não viera ao Brasil para apanhar café, pois dizia ter a intenção de
fazer “algo mais nobre”. Residiu na região de Uberaba e Ribeirão Preto.
Posteriormente transferiu-se para Araras, onde iniciou o ofício de Marmorista.
Chegou a ter mais de uma centena de funcionários e uma filial na cidade de
Piracicaba, localizada na rua Santo Antônio.
4.2.1 A Marmoraria Carrara
Em 1937, o patriarca Leonardi organiza uma sociedade com seu filho
Ovídio e seu genro, criando a Marmoraria Carrara Industriais, que se manteve
ativa até 1974, quando, por falta de modernização do maquinário, difícil
situação financeira e ausência de interesse dos herdeiros, os quais escolheram
por outras áreas de atividade, a empresa fechou suas portas, sendo vendida
para um artesão de cacos de mármore da cidade de Araras; e, posteriormente,
fechada.
Dentro desse panorama, entra em cena um personagem que considerei
como o mais importante depois de Luiz Leonardi. Seu filho, Ovídio, era quem
passou a tomar conta, depois da criação da sociedade, da parte técnica da
marmoraria, sendo o responsável pelos desenhos que seriam passados para a
parte operacional da empresa. Apesar da importância crescente de Ovídio na
marmoraria, quem concebia muitas das obras era o próprio Luiz Leonardi.
Em 26/09/1956, Luiz Leonardi perdeu a vida e deixou sob o controle dos
sócios a marmoraria. Esta permaneceu em funcionamento até 1974, embora
seja possível notar, claramente, uma diminuição no Cemitério da Saudade em
Piracicaba quanto a construção de túmulos criados pela empresa no período
posterior à morte do patriarca.
5. Análise das obras
5.1.Técnicas e Materiais
Chamava a atenção em Luiz Leonardi, segundo relato de seu neto, seu
“enorme poder organizacional, fosse na parte das finanças, fosse na
sistematização do trabalho”. Este alegado poder de organização abre
precedente para verificar, na Marmoraria Carrara, a condição sinalizada por
BORGES (2002) quanto às marmorarias de Ribeirão Preto, onde as obras
executadas situavam-se na fronteira entre arte e técnica.
Mas a técnica, vinculada à organização e até a uma massificação dos
trabalhos, não trouxe apenas prejuízos para o campo da arte. Com a ênfase no
emprego da técnica, verifica-se a possibilidade de estender aquilo que estava
associado apenas às classes elitizadas e abastadas, ao dia-a-dia daqueles até
então desprovidos de condições de possuir o que se entendia apenas como
“obras de arte”.
No que se refere ao conjunto de obras estudadas, os poucos túmulos
que são constituídos de mármore já seguem um estilo arquitetônico diferente
daqueles do século XIX e o mármore que os compõem é de procedência
nacional. O mesmo verifica-se com as esculturas, pois as poucas em mármore
que adornam as sepulturas foram feitas de material nacional.
A partir dos anos 1920, torna-se constante a utilização de granito. É é
comum encontrar, no período de transição entre a utilização do mármore para
o granito, jazigos em granito com imagens em mármore.
Já a utilização do bronze, em período posterior, surge em substituição às
esculturas de mármore. Tal escolha barateava ainda mais o trabalho final e por
ser de preparação mais rápida e de reprodução fácil, estas obras tiveram
grande utilização nos trabalhos de Leonardi, sobretudo a partir dos anos 1930.
5.2. Tipologia
Para o presente trabalho, achei por bem desenvolver uma tipologia que
possibilitasse a classificação das obras construídas por Luiz Leonardi e pela
Marmoraria Carrara. Para criar esta tipologia, utilizei as referências
morfológicas e tipológicas desenvolvidas por CYMBALISTA (2002) e BORGES
(2002) e, desta autora, me apropriei de muitas de suas definições no que diz
respeito, mais especificamente, à estatuária funerária encontrada nas
sepulturas analisadas.
É muito difícil precisar a data exata da construção de muitos dos jazigos
analisados neste trabalho, sendo que as possíveis datas dos primeiros
sepultados em cada jazigo nos dão apenas indícios da data de construção dos
mesmos. Além disso, os materiais, estilos e até mesmo a forma como o artista
assina suas construções servem de pistas para se estabelecer uma definição
mais próxima da possível data de construção.
Analisando as datas de falecimento do sepultado mais antigo em cada
jazigo, pude verificar que o período referente aos anos entre 1936 e 1950 foi o
de maior produção da empresa de Leonardi.
Da mesma maneira, o aumento da produção a partir dos anos 1920, com o
avanço da utilização do granito como material base, fez-se acompanhar por
uma clara tendência moderna, que regia a concepção dessas construções, de
linhas retas e muitas vezes com poucos ornatos. As estatuárias que decoram
tais túmulos, quando referentes a imagens sacras, seguem um padrão que as
torna idênticas umas às outras, variando apenas o tamanho. Já quando se trata
de estátuas de anjos ou de figuras profanas, o art-noveau é quase que o
partido estilístico exclusivo, combinando com o partido moderno do túmulo, que
acaba sendo evidenciado pelo contraste de estilos que rege as referidas
construções. Alguns jazigos que remontam ao terceiro decênio do século XX
trazem traços do art déco, com construções pesadas de granito bruto. A
presença do art déco mostra justamente esse período de transição da arte para
o modernismo, que perdurou, no âmbito da arte funerária até meados de 1970,
quando o hibridismo que caracteriza a produção artística contemporânea passa
a ser notado também dentro dos campos santos.
Para definir a forma dessas construções, analisei três aspectos
principais, através dos quais procuro estabelecer parâmetros para uma melhor
identificação das sepulturas.
A primeiro aspecto a se analisar diz respeito ao formato de cada
construção. Dividi esse item em três classificações:
Jazigo Simples: Construção de até 1,50m de largura com até 2,50m de
profundidade.
Jazigo Duplo: Construção com mais de 1,80 de largura e com até
2,50m de profundidade.
Jazigo Monumento: Construção ampla sem limites máximos definidos,
cujas dimensões, deixam clara a intenção de enaltecer a figura do sepultado,
seja com um busto ou uma estátua que determine esse aspecto.
Definida a largura e profundidade julguei necessário diferenciá-los
também pela sua altura. Jazigos duplos são, em sua maioria, classificados
como “altos”, entretanto, são encontrados jazigos simples de duas alturas,
exigindo assim uma diferenciação para eles:
Baixo: Jazigo com menos de 60cm de altura.
Alto: Jazigo com mais de 60cm de altura.
Além das dimensões dos jazigos, me deparei com outras duas formas
de sepultar que mereceram ser classificadas. Alguns jazigos, pela sua
aparência externa, sugerem uma determinada disposição interna para os
esquifes, que nem sempre corresponde ao que de fato podemos ver. Embora
pareçam estar acima do solo, graças ao conjunto arquitetônico, alguns corpos
são sepultados em gavetas subterrâneas — uma verdadeira obra de delicada
engenharia:
Gavetas externas: Jazigo onde os corpos são alocados em um nível
superior ao solo.
Gavetas internas: Jazigos onde os corpos são dispostos em gavetas,
muitas vezes alocadas lateralmente, em um nível inferior ao solo. Alguns
jazigos duplos, que visualmente dispõem apenas de duas gavetas para
sepultamento, podem dispor de até seis gavetas internas. Normalmente o
acesso a essas gavetas é feito por portinholas.
As portinholas que compõem os jazigos de gavetas internas são feitas
de bronze ou ferro e dispõem, na maioria das vezes, de uma decoração que
pode ser identificada e classificada com os preceitos que apresento a seguir.
No que diz respeito à estatuária cemiterial, optei por utilizar a tipologia
desenvolvida por BORGES (2002). Vale salientar que apesar de me valer da
mesma nomenclatura, o material das esculturas analisadas pela autora foi o
mármore, diferentemente das encontradas no campo de pesquisa do presente
trabalho, que são, em sua maioria, de bronze.
Em sua tipologia, BORGES (2002) divide as esculturas em três
modalidades: anjos, imagens sacras e imagens profanas.9 Essa divisão vai
servir de base para definir a estatuária encontrada nos trabalhos de Luiz
Leonardi e caracterizar os desenhos que formam as portinholas que
encontramos em algumas das obras.
Vale ressaltar que os adornos que encontrei no presente trabalho
diferem, em alguns aspectos, dos apresentados por BORGES (2002), já que o
material utilizado para sua construção é diferente dos casos trabalhados pela
autora e novos ornatos foram empregados com a evolução da arte cemiterial.
Esses novos ornatos, que aparecem com bastante freqüência no conjunto de
obras estudadas, utilizam das técnicas de alto e baixo relevo, em formatos que
ousei chamar de medalhões, painéis, já que visualmente transpassam essa
impressão.
Além de baixo e alto relevo, outra técnica classificada pela autora é o
“relevo gravado”, que aparece com bastante freqüência nas construções em
granito. Dessa maneira, o termo “relevo gravado” no presente trabalho, pode
identificar tanto desenhos como letras.
5.3. Análise de jazigos
Das 117 construções da lavra de Leonardi e de sua empresa, optei por
fazer uma seleção de 33 jazigos para serem analisados. Este procedimento
visou, principalmente, possibilitar um estudo um pouco mais detalhado de
alguns túmulos, que não seria possível por questões de tempo caso o
montante total fosse analisado. Para essa seleção, defini alguns critérios, com
a finalidade de mostrar algumas diferenças dentro das construções do período
estudado; também optei por descartar uma análise mais aprofundada e
individualizada quanto a algumas sepulturas cuja estatuária apresentada fosse
por demais semelhante a de outras. Assim, preferi por resumi-las a apenas um
tipo, para propiciar uma visão mais ampliada das produções que se
apresentam no referido campo santo.
6. Considerações Finais
Como conclusão, acredito que fazer um balanço dos mais de 74 anos da
Marmoraria Carrara e conseqüentemente — ou necessariamente — de Luiz
Leonardi é evidenciar um período de evolução da arte cemiterial, percussor do
hibridismo contemporâneo que encontramos hoje nos cemitérios do Brasil.
Dentro das obras analisadas no Cemitério de Piracicaba, notamos a
mudança seja da utilização de materiais, quando o mármore paulatinamente é
substituído pelo granito, em primeiro momento pelo granito marrom bruto e
depois o granito polido. Essa mudança abarca também as formas das
construções que evoluem, saindo daquela configuração mais clássica, em que
as esculturas eram quase que obrigatórias e as peças de mármore, tal sua
profusão, tornavam as sepulturas semelhantes a altares.
Posteriormente, pude notar, em outro momento, a transição para os
traços do art dêco, com formas pesadas e ausência de elementos decorativos.
Dentro dessa linha também verificamos a diminuição dos motivos cristãos
adornando os jazigos, fato que é retomado depois dos anos 30, quando o
granito polido assume a frente das construções e o modernismo fica evidente
nas construções.
Em suma, estas são as primeiras conclusões. Acredito que muito há
ainda para ser pesquisado no Cemitério da Saudade, que revele novos
enfoques sobre velhas práticas e conceitos.
Referências Bibliográficas
BORGES, Maria Elizia. Arte funerária no Brasil (1890-1930) ofício de marmoristas
italianos em Ribeirão Preto = Funerary Art in Brazil (1890-1930): italian marble carver
craft in Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002.
CYMBALISTA, Renato. Cidade dos Vivos: arquitetura e atitudes perante a morte nos
cemitérios do Estado de São Paulo. 1ª ed. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. 1ª reimpressão.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral e memória. São Paulo: Contexto,
1992.
MUMFORD, Lewis. Arte e técnica. São Paulo: Martins Fontes.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. 3ª ed. São Paulo, Perspectiva,
2001.
VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros.
Brasília: MEC-RJ, 1972.
1
VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros. Brasília: MEC-RJ, 1972.
BORGES, Maria Elizia. Arte funerária no Brasil: contribuições para a historiografia da arte brasileira. . In: XXII Colóquio
Brasileiro de História da Arte, 2003, Rio Grande do Sul: Anais . Rio Grande do Sul: PUCRS. 1 CD.
3
Idem.
4
BORGES, M. E.. Arte funerária no Brasil.
5
Idem, p.14.
6
CYMBALISTA, Renato. Cidade dos Vivos: arquitetura e atitudes perante a morte nos cemitérios do Estado de São
Paulo. 1ª ed. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002.
7
CYMBALISTA, Renato. Cidade dos Vivos: arquitetura e atitudes perante a morte nos cemitérios do Estado de São
Paulo. p. 15
8
PANOFSKY, Erwin. . 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2001, pp. 47-87.
9
BORGES, M. E.. Arte funerária no Brasil , p.172.
2
O Papel Social da Mulher da Região de Colonização Italiana do Rio
Grande do Sul: uma análise através dos cemitérios de Antônio Prado
Regina Zimmermann Guilherme Pereira – PUCRS
Resumo
A partir da observação dos cemitérios do município de Antonio Prado, o presente trabalho
pretende analisar o papel da mulher no contexto familiar das comunidades da Região de
Colonização Italiana do Rio Grande do Sul. A presença feminina é observada no exímio
cuidado com os túmulos e na grande recorrência de objetos artesanais, principalmente os
trabalhos de linha e agulha, típicos da mulher de origem italiana.
Palavras-chave: Mulher, trabalho, imigração.
É de conhecimento geral a importância do papel da mulher no contexto
familiar das comunidades de origem italiana, porém poucos podem imaginar
que este papel possa estar tão bem representado nos cemitérios, como nos da
cidade de Antônio Prado. A partir da observação destes cemitérios que
pretendemos analisar o papel da mulher da Região de Colonização Italiana do
Rio Grande do Sul.
Ao entrarmos em qualquer um dos tantos cemitérios de Antônio Prado,
percebemos a presença feminina. Em todos os cemitérios de Antônio Prado
podemos observar um exímio cuidado com os túmulos, cuidado este que se
destaca em relação aos demais cemitérios do Estado. Pode-se observar que
muitas famílias cuidam diariamente dos seus mortos, considerando que alguns
túmulos possuem nichos com flores naturais que requerem cuidados
permanentes. Os túmulos são muito enfeitados e há uma enorme presença de
objetos artesanais, o que nos remete, logo, ao trabalho da mulher de origem
italiana.
Sabemos que diferentemente das comunidades de origem alemã que se
formavam em torno da casa de comércio e davam destaque ao comerciante, a
colônia italiana de profunda formação católica teve sua convergência social em
torno da capela que, além do culto religioso, congregava toda a vida civil da
comunidade. Nesta comunidade o destaque era o padre.
Segundo Celci Favaro a Igreja exercia uma forte pressão sobre as
pequenas comunidades imigrantes em formação nesta região. A imagem
externa e a coesão interna deveriam ser, a qualquer preço, mantidas pela
família e pelo núcleo social e econômico, pois era por seu intermédio que o
controle da sociedade se efetivava. Favaro afirma que os jornais católicos
exerciam uma grande influência na manutenção dos papéis familiares
tradicionais.
A religião ensina que Maria deve ser para as mulheres, exemplo de
abnegação em nome da família. Esta grande devoção pode ser percebida pelo
grande número de imagens da Virgem Maria nos túmulos de Antônio Prado. A
Pietá é o grande símbolo da mãe piedosa, dedicada e sofredora.
A base econômica da colonização estava na economia familiar de
subsistência, portanto todos os membros da família tinham papel vital neste
sistema. Nos cemitérios pesquisados podemos perceber que o trabalho
artesanal ainda está presente nesta comunidade e, algumas vezes, relacionado
ao trabalho masculino. Porém, o papel da mulher sempre teve uma importância
destacada, apesar de não ser reconhecida do ponto de vista econômico.
Economicamente falando, o trabalho feminino sempre teve grande importância,
nele se incluía a procriação que significava a reprodução da força de trabalho,
indispensável ao desenvolvimento da pequena propriedade rural. Além disso,
elas dedicavam a maior parte de sua vida ao marido e aos filhos. Estas
mulheres tinham em média entre doze e quinze filhos como podemos observar
no seguinte relato:
A imigrante Maria Tedesco, esposa do falecido João Tedesco, chegou em
Alfredo Chaves em 1887, se orgulha dos 13 filhos que criou e sente-se feliz
pelos seus 90 netos, 850 bisnetos e cada dia novos tataranetos. Disse ser sua
preocupação recordar os nomes de tantos anjos que Deus colocou na história
de sua vida.1
Em 1974 Rovílio Costa dizia: “A família do imigrante italiano
fundamenta-se no casamento monogâmico e indissolúvel, com profunda
vivência cristã.” 2
O sobrenome da família é dado pelo marido. A esposa perdia o seu
sobrenome com o casamento. Portanto, o casamento era o único meio viável
para que a mulher pudesse aparecer no núcleo da comunidade e o surgimento
2
dos filhos ampliaria sua evidência. A Nossa Senhora do Caravaggio é uma das
grandes devoções desta comunidade e não é surpreendente que ela esteja
acompanhada de uma criança.
Além da reprodução vegetativa familiar, a mulher contribuía na economia
doméstica ajudando o marido nos trabalhos da lavoura e cuidava dos afazeres
domésticos. Dentre estes afazeres estava o trabalho de fiar, tecer e costurar as
roupas da família, tendo em vista o alto custo dos tecidos. A importância deste
trabalho é comprovada pela tradição do filó, que é conhecido até os dias atuais.
Este era realizado durante as visitas a amigos e parentes, enquanto os homens
jogavam ou contavam frótolas, as mulheres junto ao fogão preparavam comida
ou faziam artesanato. Esta era também uma forma de manter as mulheres
ocupadas, evitando, assim, que elas pudessem se desvirtuar de seus papéis.
Os trabalhos com a agulha permanecem na cultura e podem ser observados
nos cemitérios. (Figuras 1 e 2)
Fig. 1 - Flores e toalha em crochê
3
Fig. 2 – Anjo em crochê e vários anjos em bisqui.
Mas esta é uma discussão bastante polêmica, pois se por um lado, a
mulher das comunidades italianas vivia em uma condição de submissão nos
primeiros tempos da colonização, por outro, esta condição não era muito
diferente nas famílias brasileiras ou de outra origem qualquer. A grande
diferença está na relação das mulheres de origem italiana com o trabalho e no
seu envolvimento com a manutenção econômica da família.
Na verdade a submissão da mulher era de certa forma, muito mais
formal e aparente, tendo em vista que a maternidade lhe conferia uma grande
autoridade. Esta é uma visão defendida por Favaro:
A mamma acabava por se constituir numa verdadeira rede de poder e
dominação por parte das mulheres no interior da família (...) promovendo
socialmente o chefe da família e reproduzindo mão-de-obra barata.”
(...)
... cabendo à mãe o papel de mantenedora da sobrevivência física da família,
através do controle sobre a divisão do trabalho (...) pouco ou muito pouco
espaço restaria para que ela se constituísse verdadeiramente em “uma fonte
inexaurível de solicitude amorosa”. 3
O desenvolvimento industrial e a emergência do capitalismo não
transformaram completamente a realidade destas mulheres. A suas antigas
4
contribuições econômicas no seio familiar não foram substituídas pela sua
inserção neste novo sistema. O que ocorreu, na verdade, foi uma sobreposição
de papéis. O trabalho da mulher nas indústrias têxteis e de vestuário, por
exemplo, era de certa forma especializada na medida em que elas estavam
acostumadas a fiar, tecer e coser desde meninas, confeccionando assim seus
enxovais. O casamento ainda era a primeira profissão, mas a sua mão-de-obra
era cada vez mais cobiçada pelas indústrias e, por isto, era necessário que se
reforçasse o mito do trabalho, além de reforçar os limites de seu espaço no
grupo social. Este discurso pode ser observado em um periódico de 1917.
O trabalho enobrece e exalta a creatura. Quem trabalha cumpre a sua missão,
obedece a vós o creador. Depois da castidade, o amor do trabalho é o primeiro
que o homem deve procurar na companheira da sua vida. Enquanto a mulher
laboriosa e econômica, não só conserva pequena ou grande fortuna, mas de
dia em dia aumenta, ajudando o esposo, se sua posição é medíocre, ou
tornando-o duplamente rico, se é abastado. Concedendo-lhe Deus a ventura
de ser mãe, seus filhos e filhas educando-se por ella com o bom exemplo,
principal incentivo para uma educação serão algum dia cópias de tão bello
original. Elles (...) saberão escolher que como tal lhe convém: ellas farão como
sua, a aventura d’aquelles a quem se liguem 4
Porém, à medida que a família abandonava a economia de subsistência,
se criava um maior distanciamento entre seus membros, com isto,
aumentavam os conflitos familiares. As dificuldades de relacionamento entre
pais e filhos ou o falecimento de um membro da família, normalmente, recaia
sobre os ombros da mulher que deveria continuar sendo a mantenedora da
harmonia e do amor familiar. As imagens de pureza, santidade e subserviência
em relação à família, estavam no próprio discurso feminino.
O afastamento temporário da mulher do espaço doméstico - imposto
pelo ingresso, cada vez mais intenso, das mulheres no mercado de trabalho era responsável por um sentimento de culpa. Tanto do ponto de vista da
mulher, quanto da comunidade, a família necessitava de uma espécie de
compensação. Como procuramos demonstrar acima, o trabalho perpassa toda
a relação familiar na Região de Colonização Italiana e a morte rompe não
somente com a relação familiar, mas também com o trabalho que se constituiu
na grande razão de viver de cada um. Podemos dizer que o trabalho esteve à
5
frente da família na medida em que esta era mantida por aquele. Esta ruptura
causada pela morte está bem definida em Braudillard:
Quem trabalha continua a ser aquele que não foi condenado à morte, ao qual
foi recusado tal honra. E o trabalho é, antes de mais, o sino da objeção de ser
julgado digno apenas da vida. O capital explora os trabalhadores até a morte?
Paradoxalmente, o pior que lhes inflige é recusar-lhes a morte. Foi ao diferir a
sua morte que os fez escravos voltando-os à objeção indefinida da vida no
trabalho. 5
Seguindo este raciocínio, a mulher, quando sobrevive ao marido ou aos
filhos, vê-se confrontada com a culpa e talvez resida aí o motivo pelo qual ela
continua dedicando seu trabalho aos membros da família que já partiram. E,
mais do que isto, seus trabalhos, onde os motivos religiosos predominam,
reafirmam a sua religiosidade, conseqüentemente a sua retidão e sua
dedicação à família.
O que podemos concluir com este trabalho é que os valores da mulher
da Região de Colonização Italiana não foram suprimidos pelas mudanças
causadas pelo capitalismo. Elas continuam seguindo os ensinamentos
católicos, tendo o trabalho e a família como razões para a vida. O que há de
novo é a necessidade em reafirmar estes valores. O cemitério sempre foi um
espaço utilizado como meio de reafirmação de valores. Desta forma, nos
cemitérios de Antônio Prado, o papel social da mulher é facilmente
evidenciado.
Notas
1
FORTINI, 1950 In: COSTA, Rovílio (e outros) ORG. Imigração Italiana: vida, costumes e tradições. Porto
Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Sulina, 1974. p. 44.
2
COSTA, Rovílio (e outros) ORG. Imigração Italiana: vida, costumes e tradições. Porto Alegre: Escola
Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Sulina, 1974. p. 42
3
FAVARO, Celci Eulália. Mulher, Sinônimo de Trabalho: papéis sociais, imaginário e identidade feminina
na Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v22, n.2, p.
211-229, 1996. p. 215.
4
O Estímulo, Caxias do Sul, 2/9/1917, p.2. In: FAVARO, Celci Eulália. Mulher, Sinônimo de Trabalho:
papéis sociais, imaginário e identidade feminina na Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul.
Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v22, n.2, p. 211-229, 1996
5
BRAUDILLARD, Jean. A Troca simbólica e a Morte. Lisboa: Edições 70, 1976. p. 76
6
Referências Bibliográficas
BRAUDILLARD, Jean. A Troca Simbólica e a Morte. Lisboa: Edições 70, 1976.
CASAROTTO, Cadorna Marcílio. Antônio Prado, 50 anos de presença Marista.
Porto Alegre: Nova Dimensão, 1988.
COSTA, Rovílio (e outros) ORG. Imigração Italiana: vida, costumes e tradições. Porto
Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Sulina, 1974.
FAVARO, Celci Eulália. Mulher, Sinônimo de Trabalho: papéis sociais, imaginário e
identidade feminina na Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul. Estudos IberoAmericanos. PUCRS, v22, n.2, p. 211-229, 1996.
FLORES, Moacir. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ediplat, 2003.
Rio Grande do Sul. Secretaria do Trabalho e ação Social. Mão Gaúcha. Porto Alegre.
[s.n], 1978.
PINUS, Lily. A Família e a Morte: Como enfrentar o luto. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1989.
7
Entre a História e o Imaginário: representações visuais no Cemitério São
Miguel na Cidade de Goiás
Samuel Campos Vaz1
Resumo:
Este trabalho apresenta algumas reflexões referentes às histórias reproduzidas sobre o
cemitério da Cidade de Goiás.
Imagens e imaginário refletem a história local trazendo novos sentidos. Estes aspectos são
percebíveis nas diversificações das imagens que foram produzidas ao longo do tempo, com
isso analiso alguns conceitos que ajudam na relevância das imagens e de seus significados
que ficam entre a história e o imaginário.
Palavras-chave: Imagem, Representações, Cemitérios, Imaginário.
Representações da Vida
O Cemitério São Miguel surge em 1859 a partir de uma lei datada de 20
de junho de 1846, que proibia o sepultamento nas Igrejas. O Cemitério São
Miguel estava diretamente ligado ao Hospital de Caridade São Pedro de
Alcântara, que o administrava. Em um dos artigos de lei relacionado à proibição
de sepultamentos em igrejas, lemos que: “Logo que o cemitério receber a
benção, fica proibido os enterros nas igrejas e no recanto delas, sob a pena de
multa de dez mil réis aos infratores” (FREITAS, 1999, p. 146).
No Cemitério São Miguel existem vários tipos de túmulos que
representam monumentalidade, beleza artística, ou simplicidade. Na produção
das imagens foram empregadas, especialmente, a pedra sabão e o mármore.
Foto 1: Estátua de pedra sabão
Foto 2: Estátua de mármore.
Conforme diz Bellomo (2000), sobre túmulos cemiteriais no sul do Brasil,
os mausoléus eram de ricos ou da classe média. No entanto, observa-se outro
1
aspecto na Cidade de Goiás. Uma análise atenta mostra que no século XIX
escravos eram enterrados na sepultura do seu senhor. Esse costume dava ao
morto, aquilo que ele não teve em vida uma compensação, que amenizava o
sentimento de dívida. Essa atitude não tirava o status do senhor, ao contrário, o
escravo passa a representar o senhor, pois de alguma forma seu status e
poder estavam representados ali.
A terceira sessão do Cemitério São Miguel era ocupada por sepulturas
perpétuas:
Na sepultura nº 35 da 3ª sessão do cemitério desta capital foi hoje sepultado
Justiniano, escravo do Sr. Pedro Loudovico, brasileiro, falecido ontem 11 horas
de hepatite chrônica (FREITAS, 1999, p. 149).
Mesmo que estejamos fazendo uma análise espacial de túmulos e
mausoléus, temos que levar em conta todo o processo histórico social, ainda
que nosso objetivo seja somente uma classificação e uma categorização de
túmulos.
No São Miguel existem imagens que representam muito mais a vida do
que a morte. Algumas perguntas são feitas a partir dessas idéias
representadas imageticamente no cemitério da cidade de Goiás. O que o morto
foi? O que ele tinha? O que ele representava? Fica claro que, esses túmulos
repletos de imagens e mensagens representam a vida e não a morte.
Foto 1: Lápide com inscrições que cotam a posição social do morto
“...idolatrada esposa do Coronel...”
2
É necessária uma boa investigação em documentos, diários e nas
imagens, enquanto testemunho, para que tenhamos as representações feitas
em cemitérios elucidados pela história em seus múltiplos aspectos.
Trabalhar com visualidade dentro do cemitério pode ser uma coisa rica,
dependendo
de
como
manuseamos
as
informações,
traduzindo
em
conhecimento aquilo que seria, simplesmente, algo decorativo, alegórico. Os
monumentos e as estátuas estão associados às imagens mentais que se têm
da morte, elas corporificam idéias e qualidades significativas para a
coletividade.
Para refletir sobre o imaginário social devemos considerar implicações
temporais, visuais e históricas. Estas implicações provocam mudanças
contínuas nas narrativas. Esse processo gera apropriações, hibridações,
influências que dão direção para o entendimento da reprodução e suas
representações.
O que vai restar desse processo é a memória, a visão discreta da
cultura. Por outro lado, a cultura material do cemitério deixa visíveis as
mudanças da cidade em seus movimentos.
Arte e representação
Falar de cultura material é de certa forma falar de memória, de
lembranças, ou seja, túmulos, estátuas. “Imagem – lembrança. Consciência de
um momento único” (BOSI, 1994, p. 49). Muitas vezes as imagens despertam
as lembranças. Mas todas as vezes que lembramos o mesmo aspecto,
lembramos diferente. Pois os momentos e as circunstâncias são outros,
levando em consideração que a lembrança é individual.
No cemitério a cultura material é que determina os espaços,
categorizando e classificando o que é menos e mais relevante. Bezerra de
Menezes (2005) destaca que a cultura material faz parte das relações sócias e
tem que ser vista dentro de cada contexto. Compreender imagens, estátuas,
escritos, fotografias, entre outros, será possível se houver uma análise
consciente do contexto histórico. “As imagens não são puros conteúdos em
levitação, ou meras abstrações, mas antes de tudo, constituem coisas
materiais, objetos físicos, artefatos” (BEZERRA DE MENEZES, 2005, p.50-51).
3
A arqueóloga Tânia Lima (1994) faz uma análise em cemitérios cariocas
do séc. XIX onde busca constatar “mudanças na representação da morte na
transição
do
império
escravista
para
a
república
progressivamente
capitalista” (LIMA, 1994, p. 95). A metodologia empregada nesse estudo
classifica os jazigos enquanto cultura material. Reúne uma série de atributos
que ela define como sendo signos antropomorfos, zoomorfos, fitomorfos,
ligados ao fogo, ligados à nobreza e distinção e objetos. Essa catalogação
observa ainda tamanho, significados e outras expressões. Um trabalho
minucioso, porém em algum momento descritivo.
As imagens de cemitérios, estátuas, túmulos, epitáfios são objetos
possíveis de ser analisados como cultura material nas artes, assim como na
arqueologia. Apesar dos poucos estudos no campo artístico, as análises ficam
em torno de estilos, influências, classificações por produção e descrições
formais. Trabalhar o conceito de arte dentro da arte funerária ou arte cemiterial
é pensá-la dentro do seu contexto de representação da morte.
Nesse mesmo processo encontram-se algumas questões. Raymond
Willians (1992) utiliza do exemplo da arte rupestre para levantar questões que
ele mesmo tem dificuldades para dar respostas.
As pinturas rupestres, por exemplo, são, de modo geral e compreensivelmente,
encaradas hoje como arte e, na verdade, como arte maior, em muitos de seus
exemplos. Contudo, elas se localizam habitualmente em lugares escuros e
inacessíveis, e realmente não sabemos com que freqüência eram geralmente
vistas, se é que o eram, no período e na cultura em que foram executadas
(WILLIANS, 1992, p.121).
Por essa linha de raciocínio podemos fazer alguns questionamentos:
arte para quem? Para quem faz? Para quem vê? Arte ou artesanato?
São questões que podem ser definidas dentro de visões isoladas. Pois
os seus significados dependem de entender tipos de produção e o contexto de
seu tempo.
Geertz (1997) fala sobre uma combinação de signos produzidos no meio
social, compondo novos sentidos aos quais utilizam das representações
culturais, em uma conexão interpretativa do cotidiano.
Segundo Borges (2002) há uma dificuldade de trabalhar a arte funerária
brasileira. O que ela representa, socialmente, para o europeu é diferente do
4
que representa para o brasileiro, que não vêem os objetos enquanto arte, mas
pertencente a um modismo ou a um status quo. A representação dessa arte
funerária no Brasil está voltada para a representação do morto:
Os cemitérios convencionais adotaram maneiras próprias para que os valores
burgueses ficassem registrados no seu partido urbanístico e arquitetônico. Por
meio de normas peculiares, as construções eram dotadas de funcionalidade,
de valor artístico e simbólico, pretendendo sempre cultuar a memória do morto
como ser social – pertencente a uma família, a uma determinada classe –
como indivíduo – portador dda necessidade de ser perenizado, sair do
anonimato, adquirir propriedade perpétua (BORGES, 2002, p. 282).
A noção de valor artísticos das imagens é acrescida nesse processo de
representação: “A arte funerária contribuiu para desenvolver um certo gosto
estético na população da época” (BORGES, 2002, p. 282). É fundamental
aplicar os conceitos de arte dentro da arte cemiterial de modo contextualizado
ao seu tempo e espaço.
Imagem e imaginário
Formas, dimensões, técnicas são assimiladas à visualidade, num
processo que podemos chamar de produção da cultura material. Desde sua
confecção, até o momento em que é colocada sobre o túmulo, a imagem vai
construindo sua história ou estória. A posição em que é colocada no jazigo e
desse em relação à distribuição espacial do cemitério, torna-se importante para
a construção de significados. São atribuídos à imagem alguns sentidos do
lugar, ao mesmo tempo em que é construída uma identidade para o lugar. A
cultura material ganha a possibilidade de relacionar-se dentro do universo do
imaginário social.
Em relação ao espaço interno, observa-se que a própria distribuição dos
objetos favorece interesses, num primeiro contato, aos valores estéticos. O
imaginário social surge do contato com as imagens e das informações nelas
contidas. Temporalizar é buscar compreender a complexidade do que
representam as formas e imagens do cemitério. É nessa dinâmica que obtemos
informações sobre a reprodução coletiva das histórias.
No Cemitério São Miguel na Cidade de Goiás tem uma reprodução de
estátuas que representam anjinhos, que fazem parte do mesmo estilo,
5
considerando o modelo utilizado Borges (2002) para classificar as imagens em
um inventário tipológico e detalhar os aspectos formais, artísticos e
representativos. A reprodução é caracterizada pela figura de um anjo com
feições de criança que esfrega o olho chorando.
Foto 3: Anjo com feição de criança.
Foto 4: Anjo com feição de criança com cruz.
Espacialmente, as esculturas, estátuas, túmulos estão distribuídos em
várias partes do cemitério. Simbolicamente uma escultura que se repete na sua
forma tem sentidos diferentes, ou seja, cria sua identidade porque está
relacionada ao túmulo, ao morto, a coisas que lhe dão novo sentido.
Um desses anjos é conhecido como a
“menina da xícara”. Segundo informam os
moradores da cidade2 é a representação de
uma criança que no século XIX quebrou uma
xícara e por isso apanhou até a morte.
Devido a falta de documentações não se
sabe ao certo quem era a menina do caco, e
quando ela morreu. Porém, esta história é
divulgada, também, no conto Azul Pombinho de
Cora Coralina, poetisa da Cidade de Goiás. No
conto, ela descreve a morte de uma menina que
quebra a louça e como castigo usa um colar dos
cacos, que a leva a morte.
6
Foto 5: ” Menina da xícara”, Cemitério São Miguel, Cidade de Goiás.
Foto 6: Detalhe da “menina da xícara”.
O imaginário social às vezes transforma estórias em histórias e histórias
em estórias..
Diante das representações percebemos que muitas das tradições são
inventadas. Um fato curioso, contado por alguns moradores da cidade, diz que
a estatua da “menina da xícara” foi roubada em décadas passadas, e
resgatada no aeroporto do Rio de Janeiro. Nesse episódio a estatua foi
quebrada. Quando foram devolvê-la ao cemitério a imagem foi reconstituída e
posta em outro túmulo que não era o lugar de origem. Por esse motivo foi
colocada uma grade de proteção sobre a estátua, para evitar novas tentativas.
A idéia é de que existe uma cultura autêntica, mas que na verdade não
passa de uma invenção. Nesse caso a menina da xícara, uma pequena estátua
de anjinho, reproduz, simbolicamente, o sentimento de uma prática do
passado. Reforça a memória construindo uma nova história, produzida pelo
imaginário social. Esse processo diminui a distância entre o real e o imaginário,
dando sentidos a uma pequena estatueta, e poder de representar as histórias
do cemitério na Cidade de Goiás.
Pensar a reprodução é pensar também em semelhanças, tanto de
imagens quanto da produção de sentidos. Perceber as semelhanças é
entender o que podemos chamar de mimese, uma representação do real onde
uma pequena coisa constitui o diferente. Ou seja, semelhante é diferente de
igual.
7
As referências, as formulas, as receitas ditam como fazer. Mas cada um
coloca sua impressão, portanto o resultado nunca será o mesmo. Há uma
importância no diálogo entre imagens e imaginário. O resultado fica a cargo do
discurso, e do mimético.
Benjamim (1994) se preocupa não com a semelhança e nem com a
mimese, mas com a questão temporal que define as diferenças exemplificadas
pelo olhar transitório e efêmero.
“Certamente a teoria mimética é uma teoria ilusória, pois por definição a
imagem não é o real” (KOURY, 2001, p. 117). Dentro dessa perspectiva Diniz
analisa a imagem enquanto reflexo ou enquanto sujeito. Impossibilitando o
acesso ao real, estabelecendo novos processos de compreensão do imaginário
social.
O imaginário social constrói, por sua vez, passagens que conduzem ao
sujeito, às mentalidades, a cada tempo. No percurso do processo de mudanças
são fundamentais os conceitos que se fixam no diálogo entre a história e o
imaginário. No caso da “menina da xícara” alteram-se os sentimentos em
relação ao “castigo exemplar”. Esse movimento nos ajuda a compreender as
apropriações para as imagens.
Contar e recontar histórias de cemitérios, relatar sentimentos em relação
aos mortos, identificar as representações dos mortos e da morte no cemitério
da Cidade de Goiás dá à coletividade a noção de pertencimento, o sentido de
estar onde se quer estar.
Referências bibliográficas:
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VOVELLE, M. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.
9
1Historiador, fotógrafo, Especialização em Gestão do Patrimônio Cultural – UEG, Grupo de Estudos Morte, Rituais de
Morte e Cemitérios – UFG.
2Moradores entrevistados: Circe de Camargo Ferreira e Silva, Adriano Alcântara de Almeida, João Chaves da Costa e
Maria de Fátima Silva Cançado.
Memória e esquecimento: o caso do cemitério de escravos da Freguesia de
Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, 1848-1888
Thiago de Souza dos Reis
Mestrado em História – Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro.
(PPGH/UNIRIO)
Resumo: o objeto desse trabalho é o Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da
Conceição de Vassouras, mais especificamente a parte dedicada ao sepultamento dos
escravos, nosso recorte abrange o período de fundação do Cemitério até o ano da
abolição da escravidão, ou seja, do ano de 1848 a 1888. Temos como objetivo discutir o
atual papel do Cemitério da Irmandade na sociedade vassourense diante dos
mecanismos de memória e esquecimento, pois hoje o cemitério não é mais visto como
local onde foram enterrados grande parte dos escravos no período analisado.
Palavras-Chave: memória, esquecimento, cemitério.
A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Mas
ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver.
Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o
seu mel, à falta das flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com
paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua
e cangas de bois. Com exames de pedras por geólogos e análises de espadas de
metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que, pertencendo ao homem,
depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a
atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem.1
Temos como objeto o Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da
Conceição de Vassouras. Nele havia uma parte reservada para o sepultamento
dos escravos vassourenses, que ali foram enterrados durante grande parte da
segunda metade do século XIX. O recorte desse trabalho abrange o período de
fundação do Cemitério até o ano da abolição da escravidão, ou seja, do ano de
1848 a 1888.
O objetivo de nossa pesquisa é discutir o atual papel do Cemitério da
Irmandade na sociedade vassourense diante dos mecanismos de memória e
esquecimento2, pois hoje o cemitério não é mais visto como local onde foram
enterrados grande parte dos escravos no período analisado.
Passemos então a uma breve contextualização acerca do cemitério e da
cidade de Vassouras na época estudada.
O Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras
Em 1834, a mesa da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição designou
o terreno localizado atrás da Igreja principal – hoje praça Sebastião de Lacerda –
para edificar o cemitério da Irmandade.3 Provavelmente por falta de espaço,
alguns anos mais tarde o Cemitério é transferido para um sítio maior, que
atualmente se localiza ao final da rua Barão de Massambará, na praça Cristóvão
Correa e Castro, edificado desde 1848, como nos leva a concluir a placa afixada
no muro frontal.
Desse campo-santo, temos o seguinte relato:
O mais grácil e aprazível dos sítios de Vassouras é o cemitério. Por toda parte há
flores de mistura, não a flor tumular amarela e fanada que na Europa mãos avaras
deixam cair nos sepulcros como últimas lembranças. Há a flor animada, a flor
virente, a flor de brilho e perfume.
Ah! Como compreendem a morte os que a enfeitam como à vida!
Fui muitas vezes a esse campo-santo. Detive-me principalmente por detrás da
capela em quiosque, em um terreno baixo e descalvado, onde havia algumas
cruzes de madeira. Que me diziam esses túmulos? Um grande drama, o das
misérias escravas, uma longa epopéia, a das dores miseráveis. Mortos humildes
de sangue negro ou de sangue azul, se aí jazeis, quem quer que sejais, grei do
labor e do infortúnio, eu vos saúdo.4
Essa passagem, escrita por Charles Ribeyrolles quando da sua visita ao
Vale Fluminense do Rio Paraíba do Sul, nos idos dos anos de 1859 e 1860,
descreve a impressão do autor sobre o cemitério da cidade de Vassouras.
Nessa visita, Charles Ribeyrolles passou por fazendas de café, algumas no
auge da produção. Na cidade de Vassouras, descreve a praça central com seu
chafariz gracioso e esbelto, o hospital da Misericórdia, amplo e magnífico edifício,
o casario composto por mais de trezentas casas, das quais algumas bem
confortáveis e os pequeninos palácios de alabastro.5 Mas algo em especial lhe
chama a atenção: o Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição – o
mais grácil e aprazível dos sítios de Vassouras.6
No cemitério de hoje visualizamos a capela citada por Ribeyrolles, dedicada
a Nossa Senhora das Dores, na parte mais central do plano do campo-santo, aos
fundos desta se encontram alguns túmulos simples e logo após há um terreno
mais acidentado, tomado pelo lixo e pelo mato, onde provavelmente estavam os
túmulos de escravos, descritos por Ribeyrolles quando de sua visita. Como
podemos perceber, a parte descrita por Ribeyrolles destinada ao sepultamento
dos escravos, era localizada nos fundos desse terreno, separada da parte
reservada a receber as inumações do restante da sociedade. De certo modo, essa
divisão dos locais de enterramento dentro do espaço cemiterial, verificada nesse
cemitério, refletia a alta hierarquização reinante na sociedade vassourense da
época.
Em relação à economia, a década de 1850 foi a idade de ouro do café, e a
sociedade de Vassouras funcionava com base nesse produto.7 Essa afirmação é
baseada no fato de que, mesmo após a expansão da cultura do café na década
anterior, propiciada pelo amplo comércio de escravos, é somente com o fim do
tráfico que se iniciou a prosperidade e a opulência, isso porque os proprietários
que haviam se endividado nos anos de tráfico viram o valor de seus escravos
aumentar rapidamente a partir de 1852, o que lhes possibilitou aumentar as
garantias para novos empréstimos.8
A Vassouras visitada por Ribeyrolles, era na época uma cidade de
economia voltada para a exportação do café. Há muitos anos a principal força de
trabalho utilizada era o braço escravo.9
Ao final da década de 1850, encontrava-se Vassouras em seu apogeu.
Contudo, já não existiam as fartas áreas de matas virgens de antes para a
expansão da lavoura e já não afluíam massas de trabalhadores escravos para
seus campos como antes, devido ao fim do tráfico internacional. Mas a vida social
era pujante. Os grandes senhores de terras, proprietários de amplos plantéis de
escravos, erguiam as grandes e faustosas sedes de fazenda. Iniciava-se a era dos
baronatos. As tensões entre os senhores de escravos e seus cativos mudaram de
forma, criaram-se novas formas de relação. A riqueza proveniente do café permitiu
que os senhores cedessem diante de algumas reivindicações – poucas é claro,
mas significativas – por melhorias nas condições de vida. Os plantéis tomaram
nova dinâmica, a crioulização suavizava as discrepâncias anteriores entre os
sexos e as idades. A formação de famílias escravas era um fato.10
Em poucos anos uma nova realidade seria moldada. Já na metade da
década de 1860, a população escrava se mobilizava em busca de direitos e de
novos espaços dentro da sociedade. Esse movimento, visto que a produção
cafeeira encontrava-se em declínio, era maximizado diante da já estreita margem
de negociação dos senhores de escravos que já não desfrutavam da situação
econômica de antes.11
Ainda com relação ao recorte temporal, vale mencionar que Ricardo Salles
emprega uma periodização para o desenvolvimento da cultura do café na região
de Vassouras, pela qual denomina o período de tempo espaçado entre os anos de
1866 e 1880 de “grandeza” 12, onde Vassouras experimenta, após seu “apogeu”,
um lento declínio na produção de café, este decorrente do envelhecimento das
lavouras já estabelecidas, da inexistência de áreas de matas virgens para o plantio
de novas mudas e da mudança dos interesses dos grandes proprietários, cada
vez mais interessados pela vida na Corte. Contudo, mesmo diante desses
percalços e de outros mais, como a crescente busca dos escravos por novos
espaços sociais e de direitos, o conjunto da produção de café ainda se mostrava
eficiente e lucrativo, principalmente diante da perspectiva, em tempos de proibição
do tráfico internacional de escravos, da auto-reprodução natural da população
escrava.13
Memória e Esquecimento:
O monumento tem como característica o ligar-se ao poder de perpetuação,
voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória
coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são
testemunhos escritos.14
Foi o Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição, também
conhecido pelos contemporâneos de Ribeyrolles como Cemitério Municipal,
Cemitério de Vassouras ou, simplesmente Cemitério, que recebeu a maior parte
das inumações dos escravos vassourenses. Entre os anos de 1865 e 1888, foram
ali enterrados 633 dos 1016 escravos mortos nesse período. Os demais corpos,
cerca de 375, foram enterrados nos cemitérios particulares, localizados
principalmente nas fazendas.15
Como dissemos, hoje a parte destinada ao enterramento dos escravos
encontra-se hoje tomada pelo mato e pelo lixo, parecendo mais um terreno baldio,
sem uso, diferentemente do período anterior à abolição da escravidão. Como
pode um cemitério, outrora tão importante dentro daquela sociedade escravista,
hoje não ser reconhecido como tal?
Antes de nos determos mais profundamente no caso do cemitério
vassourense, gostaríamos de lembrar o caso de um outro cemitério de escravos, o
Cemitério dos Pretos Novos16 da Freguesia de Santa Rita no Rio de Janeiro,
próximo ao cais do porto, no início do século XIX.
Próximo à rua do Valongo está o cemitério dos que escapam para sempre da
escravidão... Na entrada daquele espaço cercado por um muro de 50 braças em
quadra, estava assentado um velho, em vestes de padre, lendo um livro de rezas
pelas almas dos infelizes que tinham sido arrancados de sua pátria por homens
desalmados, a uns dez passos dele, alguns pretos estavam ocupados em cobrir
de terra os seus patrícios mortos, e, sem se darem ao trabalho de fazer uma cova,
jogam apenas um pouco de terra sobre o cadáver, passando em seguida a
sepultar outro.17
Esse é um trecho do relato do alemão G. W. Freireyss em que descreve o
Cemitério dos Pretos Novos com muita minúcia, em sua estada no Brasil em 1814
e 1815. O cemitério foi criado em 1722 e desativado em 1830, possuía cerca de
110m2 de área total e, segundo estudos recentes, teria recebido impressionantes
6119 corpos entre os anos de 1824 e 1824.18 Seu funcionamento deve ter atingido
o auge nos anos finais do séc. XVIII e as primeiras décadas do séc. XIX, quando,
segundo Mary Karasch, aportaram no Rio de Janeiro cerca de 700 mil escravos
vindos da África através do tráfico atlântico.19
Interessante notar no comentário de Freireyss a total falta de zelo no
enterramento dos escravos, tal atitude também fora notada pela população da
vizinhança. A Freguesia de Santa Rita vislumbrou um intenso povoamento desde
a chegada da Família Real, em 1808, a abertura dos portos e o incremento no
comércio de escravos.20 De certa forma até pioneira, a comunidade no entorno do
Cemitério dos Pretos Novos começou a se manifestar já em 1821 com
requerimentos contra o cemitério, justificando-os com as possíveis conseqüências
que o alto número de enterramentos poderia trazer, exigindo sua imediata
remoção.21
Diante do mau cheiro que invadia o ambiente e da possibilidade de infecção
por doenças22, os moradores da região se manifestaram. Apesar da prática dos
enterramentos no Cemitério dos Pretos Novos ser censurada pela população
vizinha, isso não significava que havia um questionamento acerca da legitimidade
do ato, do modo como os escravos eram enterrados, hoje considerável desumano.
Em momento algum pudemos perceber que a motivação principal da população
em seus requerimentos contra o cemitério fosse o modo desumano como os
enterramentos eram feitos. Bem na verdade, a motivação principal para os
requerimentos era o fato da insalubridade do cemitério se estender às casas da
circunvizinhança.23
É interessante notar que a repugnância pelo lugar era generalizada. Outro
ponto interessante é que o cemitério estava localizado próximo ao porto, onde
africanos desembarcavam e eram negociados cotidianamente. Citando um trecho
de Freireyss retirado do livro de Mary Karasch, Cláudia Rodrigues deixa bem claro
qual era a situação:
Os negros vivos, segundo ele, ficavam localizados tão perto do cemitério de seus
companheiros que eles também deveriam ter visto os corpos de seus
compatriotas.24
Digo mais, “deveriam ter visto os corpos de seus compatriotas” e sentido o
seu mau cheiro. Contudo, o tipo de enterramento e o próprio aparelho simbólico
que conferia aos pretos novos a possibilidade de serem lançados à flor da terra,
desprovidos, aparentemente, de qualquer aparato ou ritual religioso, era aceito
pela população, desde que não lhe oferecesse maiores incômodos.
Mas qual idéia de cemitério teria essa comunidade de escravos? Júlio
César Medeiros da S. Pereira nos mostra, apoiado em Philipe Ariès, que a partir
do séc XIV as sepulturas passaram a representar um monumento, uma peça de
um jogo onde a intenção era proclamar aos vivos as virtudes imperecíveis dos
seus habitantes.25
Pierre Nora alarga um pouco a visão de Ariès, pois, segundo ele: o
sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais de memória
porque não há mais meios de memória. Ainda segundo Nora, a memória tomada
pela história traz como ônus uma necessidade arquivistica, e a idéia de um
desaparecimento rápido e decisivo combina-se com a inquietação do exato
significado do presente e com a dúvida do futuro, a memória vai estar preocupada
com o presente, em dar significado a ele.26
Achamos que a idéia da “necessidade arquivística” expressa por Nora é
ampliada pela idéia de “monumento” de Ariès usada por Júlio César Pereira.
Assim, onde cada documento é tratado como monumento, o conjunto de
documentos também é um monumento, também é um “lugar de memória”. Vale a
observação de Jacques Le Goff:
O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é
da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí
poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite
coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é,
conhecimento de causa.27
um produto
detinham o
à memória
com pleno
Quando consideramos as epígrafes das lápides fica ainda mais clara a
tentativa de manutenção de uma memória mesmo após a morte.
O caso do Cemitério dos Pretos Novos o torna interessante, pois
(...) ali não existia inscrição alguma, não existia nome algum, nenhum ‘jaz’ fora
escrito nem pronunciado, pois não se pretendia preservar a recordação nem a
lembrança dos escravos, nem mesmo grandes feitos de que seus descendentes
pudessem se orgulhar mais tarde. Pelo contrário, o desejo premente era o de
lançar no esquecimento a existência perene daqueles escravos mortos arrancados
de sua terra natal, levados a um reino longínquo para morrerem longe de seu povo
e de sua terra.28
Dessa maneira, após sua desativação na década de 1830, diante dos
grandes incômodos causados aos seus vizinhos, já não havia mais meios de
memória que relembrassem os escravos enterrados no Cemitério dos Pretos
Novos, pois os corpos já não estavam à flor da terra. Também não se fixou como
um lugar de memória, pois a população optou pelo esquecimento.
O caso do Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de
Vassouras parece seguir por esse mesmo caminho. Após a abolição da
escravidão a memória do lugar como cemitério que recebeu inumações de
escravos parece ser renegada. O cemitério de escravos vassourense foi
esquecido.
É necessário que os pesquisadores dêem uma atenção especial a esse
campo-santo, promovendo o resgate de sua memória, o que ampliará os
resultados das pesquisas sobre a escravidão naquela cidade.
Reconhecemos, que no caso do cemitério vassourense, ainda nos falta
identificar as relações de força e os motivos por trás do esquecimento da área
destinada
aos
escravos,
possivelmente
essa
lacuna
será
sanada
no
desenvolvimento da pesquisa. Contudo, esse trabalho antes de tudo é uma
proposta. Proposta de resgate da memória do Cemitério da Irmandade de Nossa
Senhora da Conceição como um cemitério também de escravos.
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1
FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença, 1989. p. 249.
Cf POLLACK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, RJ, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.
3
TELLES, Augusto C. da Silva. Vassouras: estudo da construção residencial urbana. In. Revista do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1967, p 25-42.
4
RIBEYROLLES, Charles. Brasil Pitoresco. 1º vol. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São
Paulo, 1980, p. 231.
5
ibidem, p. 230-231.
6
ibidem, p. 231.
7
ibidem, p. 55.
8
Idem.
9
Cf. STEIN, Stanley J.. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
SALLES, Ricardo. ... e o Vale era o escravo. Vassouras – século XIX. senhores e cativos no coração do Império. (no
prelo) p. 94-95.
11
Ricardo Salles, op. cit. p. 96.
12
O termo “grandeza” foi primeiramente utilizado por Robert Slenes em um trabalho no qual problematiza a questão da
decadência da cultura cafeeira no Vale do Paraíba nos idos de 1870. Cf SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O
Mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888. In Iraci del Nero da Costa.
História econômica e demográfica. São Paulo: IPE/USP, 1986.
13
Ricardo Salles, op. cit. p. 94 – 96.
14
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp,
2003, p. 536.
15
Infelizmente não podemos acrescentar maiores informações quanto ao funcionamento e organização desses
cemitérios particulares, visto que não localizamos as fontes para tanto. Cf REIS, Thiago de Souza dos. Livro de Óbitos
de Captivos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras: um estudo demográfico, 1865-1888.
Monografia de final de curso. Rio de Janeiro: UNIRIO, mímeo., 2007.
16
‘Pretos Novos’ é um termo de época utilizado para designar os escravos recém-chegados da África. Daqui em diante
este termo será usado sistematicamente.
17
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva Pereira. Os pretos novos que não chegaram a velhos. In: Revista Nossa
História. Rio de Janeiro: Editora Vera Cruz, julho de 2006. p.74-77.
18
idem
19
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.
50.
20
RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1997. p. 70-71.
21
ibidem, p. 71.
22
Interessante avaliar essas atitudes da população frente ao discurso médico acerca dos miasmas e da morte, que
pregava uma verdadeira ‘revolução cultural’ nos hábitos e costumes com uma pedagogia permanente. Cf Cláudia
Rodrigues, Lugares dos mortos na cidade dos vivos, op. cit. e REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e
revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
23
Cláudia Rodrigues, Lugares dos mortos na cidade dos vivos, op. cit, p. 68-78.
24
ibidem, p. 71.
25
Júlio Pereira, Os pretos novos que não chegaram a velhos: morte e sepultamento de escravos recém chegados de
África, no Rio de Janeiro do século XIX. pdf.
26
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Revista de Estudos pós-graduados em História.
São Paulo: PUC São Paulo, 1993.
27
Jacques Le Goff, op. cit. 545.
28
Júlio César Pereira, Os pretos novos que não chegaram a velhos: morte e sepultamento de escravos recém
chegados de África, no Rio de Janeiro do século XIX. pdf.
2
Cemitério como Fonte Histórica de Preservação da Identidade Cultural
Thiago Nicolau de Araújo
Mestre em História pela PUCRS.
Professor do Ensino Médio e de Curso Preparatório.
Resumo
Procuramos evidenciar a importância do cemitério como fonte histórica dos aspectos da cultura
regional, pois lá se encontram obras de renomados artistas plásticos, bem como túmulos de
personalidades de relevância para história do Rio grande do Sul e brasileira. As lápides
também podem ser consideradas como fontes de registros documentais importantes, contendo
as mesmas informações que um arquivo público. Percebemos diferentes maneiras das
sociedades expressarem o sentimento sobre a morte, mas sempre mantendo a idéia de
conservar a memória do morto pela imagem ou pela escrita, numa tentativa de manter viva sua
identidade desse modo preservando a identidade cultural do mesmo em determinado período
temporal.
Palavras – chaves: Cemitérios; Identidade; Cultura
..."Não são os fatos em si que ferem a
imaginação coletiva, mas sim o modo pelo qual
se lhes apresentam. Os monumentos e as
comemorações são, sem dúvida, os meios
mais proveitosos, práticos e seguros, para
gravar no espírito de um povo as proezas de
um herói, a grandeza de um nome ou a
importância
e
o
significado
de
um
acontecimento”.1
Gustave Le Bon
O cemitério nos permite realizar múltiplos olhares sobre as sociedades,
graças às diferentes expressões de identidades culturais particulares e/ou
privadas que lá são representadas. Ele apresenta diferentes expressões de
linguagem, tanto escritas como simbólicas, devido às diferenciações sociais
que lá são identificadas.
O cemitério antes de tudo é uma forma de preservação da memória
particular e coletiva dos indivíduos de uma região. Todos os túmulos erigidos
são propriamente uma forma de preservação desta memória.
Neste sentido, se faz necessário analisar a relação entre a preservação
da memória e a formação de uma identidade. A aproximação entre memória e
identidade é tratada por alguns autores que, nessas análises, relacionam
memória e tempo, ambos de natureza social e num tempo que também é
relacionado à sociedade.
Michael Pollack2, ao caracterizar a relação entre memória e identidade,
define que a memória é um fenômeno construído (consciente ou inconsciente),
como resultado do trabalho de organização (individual ou socialmente). Sendo
um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como
coletiva, é também um fator extremamente importante do sentimento de
continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua
reconstrução de si.
Pollack também define a identidade como a imagem que a pessoa
adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e
apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria
representação e também para ser percebida da maneira que quer por outros.
A construção da identidade, de acordo com o autor, é um fenômeno que
se produz em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade,
credibilidade e que se faz por meio da negociação direta com outros.
De acordo com Eclea Bosi, em Memória e sociedade3 lembrar significa
aflorar o passado, combinando com o processo corporal e presente da
percepção, misturar dados imediatos com lembranças. A memória permite a
relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no
processo atual das representações. A autora ainda declara que “cada memória
individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que muda conforme o
lugar que algo ocupa e que este lugar mesmo muda segundo as relações que
mantenho com outros meios” (Bosi, 1987, p.42).
Já Maurice Halbwachs4 destaca que pela memória o passado vem à
tona, misturando-se com as percepções imediatas, deslocando-as, ocupando
todo o espaço da consciência. Afirma também que a natureza da lembrança é
social e que ela nos aparece por efeito de várias séries de pensamentos
coletivos emaranhadas, e se não podemos atribuí-las exclusivamente a estes,
ela se torna independente, mas necessita de um apoio por si só para se
sustentar.
Para Halbwachs, uma questão fundamental acerca da memória coletiva,
como um fato social seria a sua ancoragem para cada indivíduo. Os homens
não só estabelecem elos entre o passado e presente, mas também entre as
diversas concepções individuais acerca do passado. Para se ter uma memória
coletiva é preciso interligar as diversas memórias dos indivíduos que fazem
parte do grupo identificado como proprietário daquela memória (1990, p.43).
Jean-Pierre Vernant5 procurou demonstrar o quanto a memória, em seu
sentido original entre os gregos, apontava para outras direções que não as que
são concebidas no mundo contemporâneo. Pela memória, reconstruímos
nosso elo com o mundo, com nossa origem, e menos com uma temporalidade.
A memória seria matéria menos de uma cronologia e mais de uma
cosmogonia. Memória e esquecimento seriam fontes nas quais tanto homens
quanto deuses haveriam de beber, sendo a segunda marcadamente uma
entrada para o “inferno”, para a não-superação, e a primeira uma maneira de
garantir o tempo cíclico, um caráter mítico em relação ao pertencimento ao
mundo desde sempre.
Portanto, podemos definir que a memória construída no presente, a
partir de demandas dadas por este e não necessariamente pelo passado em si,
pode
ser
pensada
como
fator
fundamental
para
a
construção
de
pertencimentos sociais, aos mais diversos níveis associativos. De certa forma,
a busca do controle sobre a memória institui uma identidade para o agente
social nela envolvido. Assim o cemitério passa a ser um agente de manutenção
de memórias que constroem uma identidade cultural.
Entendemos que as expressões funerárias são intimamente ligadas à
preservação da memória individual/coletiva, sendo assim importantes objetos
de estudo. Muitas obras funerárias são monumentos, e de acordo com Le Goff,
a memória coletiva é aplicada a dois tipos de materiais: os documentos e os
monumentos. Os monumentos são heranças do passado e os documentos do
historiador. Para a História o monumento, por ser um tipo de documento que
reflete a memória, é uma rica fonte de informação. Trataremos as
representações funerárias como monumentos, ou seja, como objetos que nos
remete a heranças do passado. A própria origem da palavra monumento já
representa o sentido de memória:
A palavra latina monumentum remete para a raiz indo-européia men, que
exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (menini). O
verbo monere significa “fazer recordar”, de onde “avisar”, “iluminar”, “instruir”. O
monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o
monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação,
por exemplo, os atos escritos. (...) Mas desde a Antiguidade romana o
monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra
comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco do triunfo, coluna, troféu,
pórtico, etc. 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de
uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a
morte (Le Goff, 1994, p.535).
Assim, desde a sua origem, o sepulcro pode ser considerado um
monumento, portanto memória. Estudá-los significa interpretar o contexto em
que estão inseridos. Assim, o cemitério é considerado também como lugar de
memória onde são erguidos túmulos que portam significados que representam
a expressão de sentimentos individuais ou públicos.
Esta idéia está presente nos documentos criados para a construção da
memória nacional. E o documento, como diz Le Goff, não é alguma coisa que
fica por conta do passado. É produto da sociedade que o fabricou, segundo
relações de força, em que mais uma vez se apresenta a questão do poder
(1994, p.545).
Neste sentido podemos definir que a expressão da memória nos
cemitérios se dá através de símbolos, observado em diferentes formas,
encontrados nos túmulos, sendo as mais usuais:
•
Os epitáfios – inscrições feitas de diversas formas (esculpidas,
pintadas, grafadas ou coladas nas lápides), que expressam uma
ou mais idéias ou conceitos do mundo dos vivos para o mundo
dos mortos, neste sentido pode ser considerado como um objeto
que representa a identidade cultural de uma determinada região
em uma determinada época, indicando um ponto de vista
particular ou público.
•
As esculturas – As obras escultóricas contidas nos cemitérios
apresentam diversos temas, sendo que em geral a temática
predominante é a religiosa. Encontramos crucifixos, santos,
símbolos diversos e alegorias. As temáticas invariavelmente
refletem o gosto de uma época, pois encerram em si uma
iconografia repleta de representações estereotipadas, como
reflexo de uma atmosfera coletiva (Borges, 2002, p.162).
Estes sistemas de símbolos fortalecem a representação da identidade
cultural fortalecendo a construção de uma memória individual/coletiva.
Conforme Pierre Nora6, a memória, que tradicionalmente conferia às
sociedades suas identidades sociais, teria sido “seqüestrada pela história”,
sendo que a primeira seria “a vida”, e a segunda sempre uma “construção
problemática e incompleta do que já não existe”. O historiador tenderia ao
universal, enquanto o cuidado com a memória remeteria ao concreto, ao que
se vincula espacialmente à determinada realidade. A História, segundo o autor,
vai transformar a memória em objeto de uma “história possível”.
Por isso, segundo Nora, será preciso criar lugares de memória para que
a memória
exista
em
algum
lugar. Por isso
é preciso
pensar
a
institucionalização dos lugares de memória como um entrecruzar de dois
movimentos: de um lado, uma transformação em termos de reflexão por parte
da História; de outro, o fim de uma tradição de memória. O lugar de memória é,
portanto, um marco de transição entre dois eixos. Em suas dimensões
concretas, tais lugares vão remeter a museus, arquivos, cemitérios, tratados,
entre outros signos de rememoração. Assim, no momento em que uma tradição
da memória enquanto processo experimentado e vivenciado coletivamente
começa a se esvair, é preciso criar marcos para ancorar essa nova memória
(Nora, 1988, p.83).
Assim, a história institucionaliza e oficializa a memória e, conforme Nora,
já não produzimos mais memória, mas história mesmo. Ela requer indícios,
vestígios, não basta mais ser um rememorar pela palavra, é preciso o dado
concreto do registro. Daí, para Nora, a obsessão contemporânea pelo arquivo.
A partir da concepção de Nora de que os lugares de memória podem ser
pensados nos três sentidos da palavra, ou seja, tanto material quanto simbólico
e funcional, podemos considerar os meios de comunicação de massa como
lugares de memória da sociedade contemporânea. Mais precisamente: seriam
eles com certeza espaços privilegiados no arquivamento e produção da
memória contemporânea.
Os cemitérios para o historiador devem ser pensados como lugares de
memória, pois ao enfocar o ato de "lembrar o morto" envolvendo um ritual
coletivo " a sociedade expõe relatos de personalidades que desempenham um
duplo papel na construção póstuma: de um lado, servem para demonstrar a
perenidade do morto e de sua obra e, de outro, servem para atualizar o valor
simbólico de vivos e mortos. Essa “construção” das personalidades são
realizadas através da representação das mesmas por epitáfios, fotografias e
esculturas, contendo muitas vezes significados simbólicos.
Muitas expressões simbólicas contidas nos cemitérios são iconográficas,
representando a história do sentimento religioso. Esses sistemas de símbolos
expressam identidades coletivas que estão diretamente associadas ao contexto
histórico de determinadas regiões. Para Áries, a visita ao cemitério foi e ainda é
o grande ato permanente da religião. Aqueles que não vão à igreja vão ao
cemitério, onde evocam o morto e cultivam sua lembrança (Áries, 2003, p. 75).
A análise das representações culturais coletivas levou à diversificação
das fontes, pois os elementos iconográficos têm uma importância tão grande
quanto o discurso formal, como afirma Vovelle:
De certo modo, a indagação sobre o popular levou à diversificação de
recursos, relativizando o primado do escrito e valorizando outras fontes, tais
como o documento oral e a iconografia (Vovelle, 1997, p. 17).
Desse modo, o cemitério passa a ser uma fonte rica de elementos que
testemunham, relatam e contribuem para construir o contexto de determinadas
sociedades, contextualizadas em um espaço-tempo. As imagens e escritos lá
representadas são um reflexo das representações coletivas diante das
diferentes manifestações sociais, culturais e políticas do mundo dos vivos.
Essa idéia é confirmada por Fernando Catroga:
Para representar o seu papel, o cenário cemiterial tinha de ser
dominantemente simbólico. Todavia, esta verificação tem de ser interpretada
com cautelas. É que, nesta trama, a função metafísica está intimamente colada
às suas implicações sociais (...) (Catroga, 1999, p. 112).
Conforme Vovelle (1997, p.339), houve na Europa uma idade de ouro do
cemitério, pois durante quase um século, de 1830 a 1920, a cidade dos mortos
foi terreno de surpreendente proliferação das produções do imaginário coletivo:
a arquitetura e a estatuária refletiram profusamente a intensidade do
investimento coletivo no cemitério. Entre 1860 e 1930: foi a época da
proliferação dos jazigos perpétuos, quando também “a família burguesa, em
filas cerradas, se aglomerou dentro desse hábitat póstumo; época das capelas
e monumentos funerários” (Vovelle, 1997, p.328).
Este
sentimento
de
preservação
da
memória
através
das
representações funerárias é observado em Portugal a partir da segunda
metade do século XIX, e em 1868 é lançada em Lisboa uma revista dedicada à
preservação da memória dos falecidos, a “Revista dos Monumentos
Sepulchaes”7. Conforme trecho citado por Batista:
O túmulo é o cofre em que se arrecadam as preciosas cinzas do herói, do
benemérito da pátria, do sempre chorado chefe de família etc.; emquanto o
monumento ostensivo, formado de magestoso pedestal de mármore sobre o
qual compêa a imponente estátua de bronze, que representa o herói que a
vaidade dos homens pretende legar aos vindouros, não passa de um mero
capricho (Revista dos Monumentos Sepulchraes, 1868, p. 3. in: Batista, 2002,
p.62.).
No Brasil, durante o período colonial, a tradição determinava que os
mortos fossem enterrados nas igrejas. A morte era vista de uma perspectiva de
humildade, portanto os túmulos depositados nas igrejas eram muito
semelhantes: uma inscrição, uma lápide ou um brasão da família do morto
eram suficientes(Bellomo, 1994, p.64).
No início do século XIX começaram a aparecer os túmulos mais
significativos no Rio de Janeiro, destinados à Família Real. Após a
independência, com a proibição de sepultamentos em igrejas, surgiram os
cemitérios com túmulos cada vez mais grandiosos. Tanto a aristocracia como a
crescente burguesia começaram a adornar seus túmulos com estatuária.
De acordo com Bellomo, a aristocracia gaúcha não via necessidade de
enfeitar em demasia seus túmulos. Apenas capelas com lápides no interior,
registrando os nomes dos falecidos, e com o seu brasão esculpido, símbolo
suficiente de “status” da nobreza (1994, p.64).
O aumento da produção de estatuária cemiterial está relacionado com o
desenvolvimento da economia gaúcha, no final do século XIX, em que a
burguesia começa a se capitalizar.
Os túmulos dos cemitérios de Porto Alegre, devido à influência da
colonização portuguesa, bem como do materialismo científico resultante dos
governos positivistas, representam a idéia de manutenção da memória do
falecido e de suas boas qualidades, sentimentos indicados através da
estatuária, de símbolos, de epitáfios e de fotos. Assim, a necrópole não é
somente um espaço de memória, mas também de representações artísticas.
Essa memória é preservada na construção de túmulos, sendo que em
muitos casos são feitos monumentos em homenagem ao falecido contendo
diversas representações simbólicas que remontam não só à construção da
identidade do morto, mas também ao contexto em que estava inserido,
fornecendo dessa maneira diversas informações valiosas sobre a história de
uma região em uma determinada época.
Portanto, os túmulos traduzem de maneira muito mais sugestiva seu
reflexo no imaginário coletivo do grupo, a começar pelo que a propósito disso
era percebido e condicionado segundo o espírito da época.
Referências Bibliográficas
BELLOMO, Harry R. A Estatuária Funerária em Porto Alegre (1900 -1950). 1988.
204f. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 1988.
_________. O Cemitério como fonte Histórica. In: Anais do III Encontro de
Pesquisadores do Departamento de História. IFCH – PUCRS. Porto Alegre: (s.e.),
1996.
_________.(org.) Rio Grande do Sul: aspectos da cultura. Porto Alegre: Martins
Livreiro, 1994.
_________ .(org.) Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia.
Porto Alegre: EDIPUCS, 2000.
BORGES, Maria Elizia. Arte funerária no Brasil (1890-1930) ofício de marmoristas
italianos em Ribeirão Preto = Funerary Art in Brazil (1890-1930): italian marble carver
craft in Ribeirão preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002.
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória – Cemitério romântico e culto cívico dos
mortos em Portugal (1756-1911). Coimbra: Livraria Minerva Editora, 1999.
THOMPSON, John. Ideologia e Cultura Moderna: teoria social crítica na época dos
meios de comunicação de massa. RJ: Vozes.
VOVELLE, Michel. Imagens e Imaginário na História: fantasmas e incertezas nas
mentalidades desde a Idade Média até o século XX. São Paulo: Ática, 1997.
1
BON, Gustave Le In QUEIROZ, Eliana. Cemitério da Consolação: arte e história imortais. Disponível na Internet
em www.funerariaonline.com.br. Acesso em 08 de maio 2006.
2
POLLACK, Michael. “Memória e identidade social”. In: Estudos Históricos, 5 (10). Rio de Janeiro: 1992.
3
BOSI, Eclea. Memória e sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz - Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
4
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
5
VERNANT, J. P. “Aspectos míticos da memória e do tempo”. In: Mito e Pensamento entre os Gregos. São Paulo: Difel/
Edusp, 1973.
6
NORA, Pierre. O retorno do fato. In: LE GOFF, J. e NORA, P. História: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1988.
7
Essa informação está contida na obra de Henrique Sérgio Batista, Assim na Morte como na Vida: Arte e Sociedade no
Cemitério São João Batista (1866 – 1915).
ACTITUDES ANTE LA MUERTE EXPRESADAS EN LOS CEMENTERIOS
RURALES DE NUESTRO PAIS (REPÚBLICA ARGENTINA)
Victoria de los Ángeles Caamaño; Profesora de Historia y Letras. Especialista en
Educación Ambiental y Desarrollo Sustentable. Investigadora del Proyecto de
investigación a cargo de la Doctora Antonia Rizzo: El cementerio de Moreno y su
contexto histórico; El cementerio de Monte y su contexto histórico social; Cementerios
rurales. Docente de Nivel Medio en E. T. Nº13 de la Ciudad. Bs. As. y E.E.M.Nº4 de
Tapiales, Pcia. de Bs.As..Tiene numerosos trabajos publicados, asistencia a
Congresos Nacionales e Internacionales, ha dictado conferencias sobre su
especialidad. viccaamano@live.com.ar
RESUMEN:
Parte del patrimonio cultural de la República Argentina se encuentra en las zonas rurales,
donde un mayor contacto con la naturaleza y creencias populares produce el nacimiento de
una tradición oral de gran riqueza. Una tradición que vive entre ritos y mitos religiosos la
muerte, que se acepta con la misma naturalidad que cualquier otra de las certidumbres de la
vida cotidiana.
Los rituales que acompañan la muerte son parte de su accionar cotidiano, de sus tradiciones y
creencias. En esta filosofía de vida y muerte lo real y lo ideal conviven cotidianamente y
expresan retazos de la identidad local esencial para saber quiénes somos.
El objetivo de este trabajo es relevar y comparar creencias, rituales y costumbres de
sociedades rurales que están presentes en los cementerios de nuestro país para ser
transmitidas a otras generaciones, y a otros tiempos y así trascender su propia circunstancia
cultural.
PALABRAS CLAVES: actitudes, cementerios rurales, creencias populares.
Texto:
Parte del patrimonio cultural de la República Argentina se encuentra en
las zonas rurales, donde la riqueza de una vida en mayor contacto con la
naturaleza y las creencias populares produce el nacimiento de una tradición
oral de gran riqueza.
Si bien las comunicaciones en la época colonial hasta finales del siglo
XIX cobran importancia en el desarrollo de los pueblos debido a que han sido
un factor importante para dinamizar el intercambio tanto de bienes como de
servicios. También funcionaron como factores de promoción de la cohesión
social entre los primeros poblados, por tratarse de evidencias que permiten
reconstruir múltiples aspectos relacionados con la interacción cultural y el
desarrollo social. En tal sentido, los sistemas de rutas y caminos han
1
constituido vehículos de fundamental importancia para el intercambio y para el
traslado de personas portadoras de objetos y tradiciones, de bienes y de ideas.
Es fácil constatar la transformación de las ciudades y áreas rurales con
la llegada de distintas corrientes inmigratorias, “de las cuales muchas de ellas
formarían la mano de obra necesaria para el modelo económico en marcha”. A
finales del siglo XIX y principios del siglo XX las esperanzas estaban
depositadas en el ferrocarril como abastecedor de la materia prima y expulsor
de las mercaderías hacia nuevos mercados y como un motor de desarrollo
económico, ajustándose a este naciente modelo agroexportador: ricas tierras,
productoras de excelente ganado e importante producción agrícola con un
trazado de líneas férreas que le permitía embarcar sus productos a diferentes
destinos del interior del país y a la ciudad de Buenos Aires y de allí al exterior.
Asimismo, existían gran cantidad de barracas que almacenaban cueros,
cereales, etc., y tambos para agilizar el transporte de los productos regionales
en el ferrocarril. (Cuarterolo, 2002)
Por otro lado, los cambios que se han operado en los últimos años
producen nuevos paisajes argentinos. De aquel país soñado y proyectado por
otras generaciones, hoy quedan: fábricas abandonadas, refuncionalizadas
como shoppings o como pequeñas fábricas manejadas por sus antiguos
obreros con un sector denominado “museo fabril”, en venta u ocupadas
precariamente
como
viviendas;
pequeños
y
medianos
productores
agropecuarios que se ven obligados a arrendar sus tierras grandes empresas
transnacionales para poder subsistir.
Sin embargo, puede constatarse, al recorrer la Argentina, cómo muchos
de los residentes -diversidad de inmigrantes originarios de distintas regiones
del mundo, responden a condicionamientos estructurales e individuales como
la situación en su lugar de origen, el conocimiento de las nuevas
oportunidades, los mercados, las distancias, los transportes, los vínculos, los
proyectos y las actitudes personales hacia el desarraigo-
han logrado la
constitución de identidades inéditas, a partir de la otredad en el vínculo entre
naturaleza y cultura, a través de un diálogo de saberes.
Y La Argentina posee un amplio abanico de identidades que lleva a
interrogar las formas de asentamiento del ser colectivo en cada localidad, a
mirar su resistencia y permanencia en el tiempo, a preguntarse sobre esas
2
identidades que se complejizan en un proceso de mestizajes étnicos y de
hibridaciones culturales, para constituir identidades inéditas1, que se van
conformando a través de estrategias en un vínculo entre naturaleza y cultura a
través de un diálogo de saberes, en el intento de construcción de un mundo
sustentable fundado en la diversidad cultural y en el rescate de lo local frente a
lo global.
Toda la actividad humana deja rastros de su actuación y de su memoria.
Algunas permanecen más allá de la vida de la comunidad que le dio origen,
otras desaparecen; pero cada una ha dado forma a la cultura actual. Esas
huellas constituyen los bienes culturales cuyo valor está dado por su
significación es decir por el mensaje que trasmite a través del tiempo. La
preservación del bien cultural es el paso inicial para que el mismo pueda
trasmitirse a las generaciones futuras a la vez que establece lazos con el
pasado, ya que constituye un soporte concreto para la memoria histórica y la
identidad local (Silvia Ascheri, otros, 2007). Por tal motivo el concepto de
patrimonio se interpreta desde lo dinámico, donde el patrimonio es considerado
una construcción social dado que los bienes adquieren valor a partir del
significado que les atribuye cada comunidad a lo largo de su historia.
Y dentro del patrimonio de cada sociedad se encuentran los cementerios
o las necrópolis en los que se resume parte de la historia, del comportamiento
socio cultural durante un amplio arco temporal. La arquitectura de los
cementerios rurales fue proyectado por sus mismos constructores y albañiles,
en su mayoría inmigrantes que trajeron la arquitectura de sus países de origen
y en donde el diseño y la ornamentación arquitectónica, apuntaban a configurar
un ámbito religioso; siendo verdaderos museos al aire libre donde se
encuentran ejemplos de arquitectura, escultura, herrería, creencias populares,
etc. que pertenecen al patrimonio cultural tangible e intangible de la comunidad.
Por eso visitar un cementerio es recorrer las páginas de la historia local ya que
constituye un reservorio de información sobre el patrimonio en lo que se refiere
a creencias, rituales, oficios y mano de obra especializada de una localidad.
Muchos de los inmigrantes trajeron a la Argentina recuerdos y
pasatiempos de sus lugares de origen; muchos de carácter religioso y popular.
En las celebraciones religiosas no había espectadores pues de alguna manera
todos eran protagonistas. Su propósito básico consistía en comprender y
3
describir los mecanismos de adaptación afectiva que provoca el entorno en las
personas y la realidad conforme a las apreciaciones subjetivas y socio afectivas
para justificar de alguna manera los comportamientos de las personas en su
hacer cotidiano.
Entre estos comportamientos se encuentran las creencias que impulsan y
orientan la acción cotidiana en el mundo, por tanto lo importante de ellas no es
de donde provienen sino a dónde llegan en la práctica. Y la fe que se origina en
el deseo de hacer o conseguir algo no sólo es legítima sino que puede ser
indispensable. Cuando la diferencia entre lo posible depende de la decisión, la
fe puede ser muy útil, pero no transformará en posible lo que resulta imposible.
En este sentido, el espíritu del fallecido es el conjunto de relaciones simbólicas
que no puede ser enterrado con el cuerpo ajeno, porque en parte está dentro
de quienes se relacionaban con él. Un extremo de la relación se pierde pero el
otro sigue. Cuando la muerte se hace realidad y la pérdida del ser querido es
inevitable, solo la esperanza religiosa de una vida en el más allá hace creer en
que para Dios todo es posible y puede convertir al que se ha ido en espíritu.
En los Cementerios y particularmente en los rurales se comprueba esta
creencia en los enterramientos en tierra con las cruces que están orientadas
generalmente SE-NO la cual responde a la vieja costumbre de colocar la
sepultura orientada al sol naciente en relación con la idea del sol como símbolo
de renacimiento2.
Creer significa asumir que algo es verdad, o sea, que un estado de
cosas se da en la realidad, frente a otros posibles y de expresar tal creencia en
la vida práctica. Son creencias vinculadas al tránsito del alma entre la vida y la
muerte, señales de las que no tienen miedo, porque son simplemente las almas
que se despiden. Y en los Cementerios es común observar ángeles, imágenes
de la Virgen en sus distintas advocaciones, crucifijos con la imagen de Cristo y
rosarios colgando de la cruz, ya que en el imaginario popular y en las
creencias, simbolizan al intercesor entre el cielo y la tierra o la ascensión del
alma hacia el reino celestial y la protección del alma en el más allá.
La explicación de representaciones mentales tan definidas, está en el
origen de quienes poblaron la problemática de la inmortalidad del alma, el tema
de los "aparecidos", como algo natural que todos han visto o presentido alguna
vez. Un claro ejemplo es “La Tumba del Desconocido” en el Cementerio de
4
Bernardo Larroude –localidad rural de la provincia de La Pampa-, un nicho
visitado por todos y que nunca deja de tener flores frescas, la gente del pueblo
lo venera pero desconocen su identidad. Aseguran que los cuida y protege ya
que porque fue el único nicho que no fue destruido por la gran inundación de
fines de los 80- ha destruido también centenares de tumbas-. Representa para
muchos que no quiso irse, que no quiso abandonarlos: la pertenencia a
Bernardo Larroude.
Las comunidades tradicionales viven entre ritos y mitos religiosos la
muerte, que aceptan con naturalidad como algo dado y tan real como cualquier
otra de las certidumbres de la vida cotidiana. Los rituales que acompañan la
muerte son parte de su accionar cotidiano, de sus tradiciones y creencias. En
esta filosofía de vida y muerte lo real y lo ideal conviven cotidianamente. Los
imaginarios, las cosmovisiones, los mitos y las prácticas, es a través de las
cuales cada cultura simboliza, significa y transforma a la naturaleza en un
proceso de apropiación de su mundo. Un ejemplo notorio es “La Tumba de la
Difunta Correa” un Cementerio particular de veneración y visita permanente en
una localidad rural de la provincia de San Juan, que nunca deja de tener flores
frescas ni velas encendidas y cuyas ofrendas indican los milagros o gracias
concedidas, fundamentalmente a las madres, ya que ella si bien murió en ese
lugar desértico milagrosamente pudo dar a luz y su cuerpo muerto amamantar
a su hijo recién nacido hasta que una patrulla de soldados pudo rescatarlo.
Ello enfrenta al mismo tiempo el problema del rescate de los saberes
desconocidos, de las memorias olvidadas, de todo aquello que ya no pervive
en las prácticas ni se expresa en los discursos actuales de las comunidades
rurales, con la diversidad de culturas y cosmovisiones; pero que se ve en los
cementerios rurales cargados de rituales constitutivos de la identidad local; ya
que los muertos están enterrados allí donde se ha construido el sentido de
pertenencia, los cimientos de la localidad. Y se puede apreciar en todo
momento y en cada rincón de estos pueblos: Es muy impactante ver cómo
adornan las tumbas de los niños y adolescentes con juguetes, cartas, y objetos
preciados por ellos en una capilla que se abre y los familiares las limpian, o ver
cómo se corre el cajón para su mejor limpieza(Caamaño, Rizzo; 2007). Este
ritual conmovedor no sólo se observa en el Cementerio de Bernardo Larroude,
5
sino en la mayoría de los Cementerios rurales de las provincias argentinas con
diferentes matices según las características geográficas y culturales.
Por ese camino la búsqueda de raíces, cobra a la vez, una forma
definida que suele expresarse en imágenes y simulacros asociadas con un
pasado folklórico y que implican una reflexión “interna” de las cosmovisiones,
los imaginarios, las conciencias colectivas, las experiencias productivas y los
saberes prácticos. Tales imágenes en gran medida portan el valor de la
tradición, y expresan retazos de la identidad local esencial para saber quiénes
somos. Un testimonio innegable son las capillas con una gran variedad de
objetos de la parafernalia funeraria, como floreros con flores artificiales y
naturales, jardineras, medio jardineras, portarretratos, estatuillas de la Virgen
en sus distintas advocaciones, chupetes, baberos, escarpines, juguetes y
emblemas de clubes, crucifijos con la imagen de Cristo y rosarios colgando de
la cruz ( Sempé,Rizzo,Flores, 2006).
Es sabido que la cultura popular no está escrita. En este caso son los
narradores silenciosos de una sociedad los que convierten a los relatos en
expresivas representaciones de las vivencias, miedos, fantasías, supersticiones
y afectos de la sociedad a la cual pertenecen, en una herencia que se reparte
como un eco plural y auténtico. Todos los testimonios constituyen los soportes
de la memoria de la comunidad y en tanto tal son los referentes de su cultura a
la cual dan sentido y sirven; convirtiéndose en una invalorable fuente para
reflexionar sobre la construcción del imaginario social que entreteje las
identidades y la relación del pasado con el presente de las relaciones
cotidianas.
Y teniendo presente que los cementerios son la evidencia concreta de las
diversas maneras de sentir y representar la muerte de toda comunidad, sus
saberes, creencias y supuestos sobre el mundo están reflejados en el
cementerio local, donde es posible apreciar un proceso de reapropiación del
patrimonio natural y cultural de la comunidad, en el cual los rituales que
acompañan la muerte son parte de su accionar cotidiano y su sentido de
pertenencia, sus raíces (Caamaño, Rizzo, 2007). Una prueba tangible es la
presencia de las fotos3 de los enterrados colocadas en las cruces o dentro de
las capillitas, en general realizadas en blanco y negro, la mayoría están
restringidas a la cara del fallecido; ya que como expresara P. Bourdieu “la
6
práctica fotográfica existe y subsiste la mayor parte del tiempo, por su función
familiar o , mejor dicho, por la función que le atribuye el grupo familiar, por
ejemplo: solemnizar y eternizar los grandes momentos de la vida de la familia,
reforzar, en suma, la integración del grupo familiar reafirmando el sentimiento
que tiene de sí mismo y de su unidad”. Por lo que estas imágenes permiten la
evocación del mismo (Sempé, Rizzo,Flores, 2006).
Según Bourdieu (1988), para caracterizar a una sociedad o comunidad
particular en un espacio y un tiempo dados se requiere comprender los
principios que rigen a las normas de diferenciación objetiva entre las personas.
Este enfoque posibilita entender el registro de las disposiciones que guían los
comportamientos prácticos observados, las representaciones y las elecciones
que realizan las personas. Un ejemplo claro de esto se puede ver en muchas
localidades pampeanas como Bernardo Larroude al comprobar que el “mundo
telúrico-cultural”se convierte en una acción al anunciar por la calle la casa
mortuoria con su furgoneta la hora de defunción, los motivos, y el horario de
velatorio y entierro para que asista todo el que quiera. Pero, aun cuando la
ceremonia de la muerte se comparte, constituye un acontecimiento del mundo
de lo privado, quizá por ello no pueda ser vista como atravesada por lo social,
lo histórico, lo político, lo cultural, permaneciendo en las zonas más íntimas de
los sujetos.
La Argentina actual cuenta con numerosos pueblos con sus cementerios
quedados en el tiempo por las inclemencias de la naturaleza y la
irresponsabilidad gubernativa de los últimos años: grandes inundaciones y
sequías, cierre de ramales ferroviarios, mal uso de los recursos naturales…;
que intentan reconstruir vínculos comunitarios en torno a valores y símbolos del
pasado que ayudan a edificar una nueva memoria colectiva. En este sentido la
sustentabilidad de la ciudad implica repensar ámbitos de vida urbano y rural a
partir de las condiciones materiales, ecológicas y culturales de un desarrollo
sustentable; y la aceptación de que la conservación del patrimonio cultural es
útil a la comunidad como un medio que sirve a las vivencias humanas. Por lo
que este trabajo ha tratado de relevar y comparar algunas creencias, rituales y
costumbres
de sociedades rurales que todavía están presentes en los
cementerios de nuestro país para ser transmitidas a otras generaciones, y a
otros tiempos y así trascender su propia circunstancia cultural.
7
1
NOTAS:
Es desde la identidad que se plantea el diálogo de saberes en la complejidad ambiental -genera lo inédito en el
encuentro con la otredad y la diversificación de identidades- como la apertura desde el ser constituido por su historia,
hacia lo inédito, lo impensado, hacia una utopía arraigada en el ser y en lo real, construida desde los potenciales de la
naturaleza y los sentidos de la cultura.
2
En los cementerios se conservan una gran variedad de cruces, trabajos de herrería de artesanos anónimos locales.
Las cruces y las cuasicruces, son de hierro forjado y la mayoría corresponden al barroco popular. Unas más
ornamentadas, otras menos y su modestia corresponde al neoclasicismo. Algunas de ellas tienen el centro de chapa en
forma de corazón- en algunos casos con flechas-, circular o rectangular. Las más trabajadas sobresalen por su forma de
gracia artística adornadas con combinados de volutas, algunas rematadas en flor a modo de trébol estilizado de cuatro
hojas. Otras presentan aspecto de cierta rusticidad con asimetrías, torceduras, tal vez debidas al trabajo individual del
artesano o al paso del tiempo. (M.A. Caggiano, otros, 2007)
3
La fotografía mortuoria fue una práctica común desde mediados del siglo XIX hasta bien entrado el siglo XX. Las
imágenes del difunto eran colocadas en los hogares, obsequiadas a familiares y amigos, en el tradicional formato “carta
de visita”, o usadas en relicarios o prendedores. Las casas fotográficas promocionaban los retratos de difuntos,
ofreciendo tomas a enfermos o muertos en su propia vivienda. En la fotografía mortuoria algunas imágenes ofrecen al
difunto simulando estar vivo, se los presentaba en el regazo de la madre como si estuviera dormido.
Imágenes:
Tumba que se abre y corre el cajón para su mejor limpieza
ángeles, imágenes de la Virgen en sus distintas advocaciones.
capillas, fotos, crucifijos con la imagen de Cristo y rosarios colgando de la cruz
Rferencias Bibliográficas:
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