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CEMITÉRIOS DE FAZENDA Cambará do Sul – RS Airton André Gandon Cardoso Daniela Cristina Martins Muller Egiselda Brum Charão Orientador: Prof. Mestre Harry R. Bellomo Este trabalho versará sobre os cemitérios de fazenda localizados fora do perímetro urbano da Cidade de Cambará do Sul, serão abordados os aspectos históricos, geográficos, culturais, de preservação da memória e patrimônio histórico, as cercas de taipas (pedras) e da religiosidade local. Tem por objetivo, entender a organização espacial e social dos cemitérios de fazenda, estudar as manifestações religiosas e simbologias presentes em alguns cemitérios e também a ausência destas manifestações. Ao mesmo tempo busca refletir sobre a preservação do patrimônio histórico local: arte local, origens das famílias e taipas de pedra. Visando tornar esta investigação verossímel, foi realizada uma saída de campo, com incursão e registro fotográficos, elaborou-se bibliografia criteriosa pertinente ao assunto e buscou-se apoio nos documentos do Arquivo Histórico do RS. A presente investigação e as considerações serão apresentados no evento Raízes de Cambará do Sul – XVIII Encontro dos Municípios originários de Santo Antônio da Patrulha que se realizará de 28/10 a 01/11/2007. Este texto versará sobre a organização espacial e social dos cemitérios da zona rural de Cambará 1 , as manifestações religiosas e simbólicas presentes em alguns deles bem como a ausência destas manifestações tendo em vista que: As sociedades humanas estão em constante transformação ao longo do tempo e os cemitérios constituem-se vestígios a céu aberto que propiciam aos historiadores interpretações históricas dessas sociedades. São fontes para a reconstrução do passado pois viabilizam a compreensão das relações sociais que se desenvolvem continuamente dentro de determinado grupo social. (BELOMO, 2000) Nele constará uma síntese de imagens e possibilidades que fornecem um panorama dos referidos campos santos, levando em conta que: O costume dos antigos era enterrar seus mortos não em cemitérios ou à beira da estrada, mas no campo de cada família... A sepultura estabelecera um vínculo indissolúvel da família com a terra, isto é, com a propriedade. (COULANGES, 2006, Pg. 70) e também o: O túmulo tinha grande importância na religião dos antigos; porque, por um lado devia cultuar-se os antepassados e, por outro a principal cerimônia desse culto, o banquete fúnebre, devia realizar-se no local onde os mortos repousavam .(COULANGES, 2006, Pg. 69) Tem por objetivo refletir sobre a preservação e memória patrimônio analisando a arte, a s famílias e estudando as construções de cercas de pedra nos campos santos. O referido trabalho tornou-se viável com a apoio da prefeitura municipal da cidade que forneceu guia e meio de locomoção através da zona rural, o que possibilitou o registro fotográfico dos locais. Com o material em mãos, realizouse análise das imagens em função de bibliografia pertinente ao estudo. Antes, evidentemente traçamos uma síntese geográfica e histórica do local conforme segue: Cambará do Sul localiza-se a 187 Km da capital está limitada Pelos municípios de São Francisco de Paula, Bom Jesus e o estado de Santa Catarina é conhecido pela beleza dos canyons2 inexplorados de Fortaleza e Itaimbézinho (Parque Nacional dos Aparados da Serra), o que caracteriza o município dentro do contexto nacional) Fortaleza 3 Itaimbézinho4 O povoamento da região iniciou-se com a doação de 20 hectares de terra à igreja, realizada em 17 de abril de 1864, por Dna. Ursula Maria da Conceição em retribuição de uma promessa ao padroeiro São José. O local foi 2 denominado “Campo Bom” e aos poucos foram surgindo as primeiras casas construídas no inicio de barro entremeado de varas, inclusive as divisórias. Além dos primitivos habitantes a cidade deve ter se iniciado com membros da família da doadora. Com a criação do município de São Francisco de Paula em 23 de dezembro de 1902, a localidade passou a ser denominada de São José do Campo Bom e se constituiu município de Cambará do sul à partir do decreto do governo de 20 de dezembro de 1963. Anterior a fundação da cidade existiam as antigas fazendas oriundas das primeiras estâncias5 ou sesmarias em virtude da divisão das terras tanto pela venda, quanto pela partilha relacionada a heranças. Das fazendas existentes e seus respectivos campos santo conseguiu-se catalogar as seguintes: Cemitério da Fazenda Continental, da Fazenda da Tapera, da Fazenda do Enésio, da Fazenda Guabiroba (Cel. Zeca..), da Dona Neci (Hotel Parador), do Dario Cardoso e o cemitério Itaimbézinho. Parte desses campos, perderam seus referenciais de origem, contudo ainda é possível encontrar seus vestígios entre florestas e matos pelos seus marcos (feitos de pedra). Na antiguidade: “cada campo6 deveria estar cercado, separado do domínio de outras famílias... através de uma faixa de terra de alguns pés de largura que deveria ficar inculta e que o arado jamais deveria tocar” (COULANGES, 2006, Pg. 69). Essa era a indicação que o chão se tornava para sempre propriedade da famílias, portando acreditava-se que ao violar um marco se estava violando a família, essa idéia se estendeu aos campos santos conforme exemplos que estarão relacionados nesta análise. 1- CEMITÉRIO DA FAZENDA CONTINENTAL Entre os enterramentos da década de 30 e 50 e algumas famílias identificadas foram: Silva, Klein, Paz, Borges, Ribeiro e Pereira. 3 2- CEMITÉRIO DA FAZENDA TAPERA Este campo-santo não foi encontrado, provavelmente tenha sido engolido pela plantação de pinos. 3- CEMITÉRIO DA FAZENDA DO ENÉSIO Não foi possível coletar dados, tendo em vista que a porteira da propriedade onde se encontra o mesmo estava chaveada 4- CEMITÉRIO DA FAZENDA GUABIROBA (Cel. Zeca) 5- CEMITÉRIO DA FAZENDA DA DONA NECI (Hotel Parador) Identificados apenas a Lápide da Família André Alves da Silva 7- CEMITÉRIO DE ITAIMBÉZINHO 4 Não foi possível identificar nenhum tumulo neste local. 8- CEMITÉRIO DA FAZENDA DO DARIO CARDOSO Identificada somente as lápides de Ivo de Souza e Lucila de Souza, também nota-se a mortandade infantil elevado em razão da existência dos enterramentos infantis. . Em uma análise geral a segregação está presente nos campos santos das fazendas, em alguns de forma velada, em outros de forma gritante, conforme observa-se nos cemitérios da Fazenda Guabiroba e no cemitério da Fazenda Continental7 onde os espaços eram bem divididos. Para os ricos, zelo e ostentação. Aos pobres, desleixo e descaso. As imagens salientam uma realidade muito comum na sociedade – a segregação social como um fato que também se estendia e estende além da vida, com reflexos claramente perceptíveis também no “mundo dos mortos”. Todos os cemitérios localizavam-se no topo de colinas de forma a ser avistado da casa grande, fato que pressupunha a presença espiritual do ausente protegendo os familiares viventes. Propiciavam dessa maneira a re- elaboração mental da presença do ausente através da recordação visual constante do morto, advindo assim desse laço invisível, a lembrança diária do morto que sobrevivia idealizada na memória dos viventes. Percebe-se que todos os campos santos refletem o esquecimento de suas origens, isso tornou-se real nos cemitérios: de Itaimbézinho, da Tapera e no da Fazenda do Dario Cardoso tanto pelo abandono como pela depredação, os mortos são relegandos ao esquecimento em decorrência da fragmentação 5 das propriedades familiares que prestavam culto em memória dos entes queridos. A limitação do espaço geográfico tinha o mesmo significado que a limitação entre a vida e a morte, assim, construíram cercas de pedra, isto é marcos8, para proteção da alma e do corpo do morto. Acredita-se que o espaço era sagrado e ao ultrapassar o campo sagrado violava-se a família do morto, portanto o estranho que ousasse adentrar ao campo santo, estaria sujeito a penas terrenas como morte dos animais, colheita e familiares. Essa idéia deu origem a histórias fantásticas, crendices populares como fantasmas e assombrações, e também santos de devoção. Os conjuntos escultóricos dos cemitérios foram confeccionadas em série, na sua grande maioria, sendo que alguns raros foram esculpidos de forma rudimentar , isso abre possibilidade de pesquisa relacionada com arte sobre a origem e datação das mesmas, bem como procedência de seus autores entre outros estudos. SIMBOLOS9 E ALEGORIAS ENCONTADOS NOS CEMITÉRIOS Os símbolos cristãos transmitem mensagens complexas e diferenciadas e são encontrados nos túmulos nas lápides, nas esculturas. Carregam um sentido religioso de múltiplos significados e idéias cristãs. Segundo definição do Prof. Dr. Moacyr Flores: O símbolo representa uma realidade, uma idéia, através de um objeto, gesto, traço, quantidade, palavra ou figura. O significado do símbolo religioso estava envolvido no mistério e contido num espaço mágico (FLORES, In: NEUBERGER (Org.), 2000, 184) Nos campos-santos de Cambará foram encontrados vários signos representativos e baseando-se no estudo da simbologia cristã formulou-se variantes interpretativas sobre seus conteúdos: 6 (1) (2) (3) Entre as imagens analisadas pode-se citar a imagem de Cristo (1) apontando com a mão esquerda o coração e a direita o céu, interpreta-se a mesma, no sentido que Deus não vê como homem que olha a aparência, Deus olha o coração e somente as virtudes contidas nele conduzirão aos caminhos do céu. Outra é a Imagem de Cristo pregando (2) que condiciona a entrada do paraíso através da palavra, pois ela é o caminho, a verdade que levam a Deus, já a figura de Cristo a com a mão esquerda apontando o coração e a direita aponta quem observa (3) pode ser entendida como amor e amizade que o coração encerra, o coração é o abrigo da alma e o lugar onde Cristo faz morada através da fé. (DALMAZ, 2000, Pg. 391) 10 (4) (5) (6) (7) (8) A cruz lembra a morte, o nada, o mundo presente (trave horizontal). Mas também aponta para cima, para a eternidade, para a ressurreição (trave vertical). Em todos os cemitérios estudados existem várias tipologias de cruzes11 as quais não serão analisadas, 7 apenas se observará que foram encontradas vários modelos, formas e materiais de confecção das mesmas (madeira, cimento, pedra, mármore e ferro). No entanto salientaremos abaixo o significado universal das cruzes nos campos santos: Não queremos dizer que o cristão, colocando a cruz em cima de um túmulo, tivesse consciência de toda a riqueza deste sinal. Dizemos apenas que este sinal carregou sempre em si em todas as civilizações antigas, um conteúdo simbólico extraordinário, como se fosse uma PROFECIA DA REDENÇÃO UNIVERSAL, presente em todas as culturas. Num túmulo raso e simples, a cruz enterrada no chão aponta para o nada e aponta para o além.12 (10) (11) 12 As imagens de anjos que aparecem geralmente possuem asas como os exemplos acima, verifica-se que são anjos segurando palmas(10), alguns portando sobre a cabeça a estrela (11) e outros de mãos postas em oração(12). Os anjos são tidos como mensageiros de Deus, aqueles que conduzem a alma do morto aos céus, a palma identifica os mártires pelo duplo sentido: dor e vitória. Assim, entende-se que o sofrimento conduzirá ao céu pela mão do anjo de Deus e a representação do mesmo de mãos postas é sinal de sua intersecção junto a Deus, pela alma do morto. (13) Frequentemente nas pesquisas cemiteriais são encontras esculturas em baixo relevo do aperto de mãos (13), alguns entendem ser um símbolo maçônico, contudo o aperto de mão maçônico, é caracterizado pela posição do dedo indicador, ressaltado dos outros, e geralmente pressionando o pulso 8 do colega. Então esse aperto de mão, nos cemitérios em geral pode significar a representação do amor fraternal, isto é, a mão do anjo que conduz à Deus, essa idéia deve-se ao fato da existência de mais de uma representação em um conjunto produzido em série. (14) (15) A alegoria de São Sebastião(14) , santo guerreiro e protetor da natureza, estilizando a Imagem de Cristo (contém rosas esculpidas em baixo relevo, estas, tem relação com o renascimento místico e amor divino; e também ramos de videira interpretadas como sendo as noções cristãs do homem com a família (bem precioso), na mesma obra, uma espécie de saquinho de dinheiro aos seus pés) sem formulação de interpretação visto desconhece-se o histórico da família. Esta estátua juntamente com outras possui sua elaboração de forma artesanal. As colunas grego-romanas representadas conjunto escultórico do cemitério da Fazenda Guabiroba, no túmulo do Cel. Zeca, assemelham-se as colunas da ordem coríntia, da qual Thiago Nicolau Araújo faz a seguinte observação: A ordem coríntia foi muito usada nas épocas helenística e romana como uma forma diferente do capitel jônico, sendo este ricamente ornamentado com folhas de acanto. As colunas gregas em geral possuem o fuste estriado, sendo que as romanas são lisas. (ARAÚJO, In: BELOMO (Org.), 2000, 273) Entende-se que a representação dos valores atribuídos ao Cel. Zeca indicam que o mesmo pertencia a família evoluída ou em evolução e esta simbolizava a força de sustentação da comunidade ou agregados. Portanto, o conjunto escultórico em sua totalidade afirma uma instituição familiar economicamente poderosa e com bases religiosas amparadas no catolicismo ou na fé cristã. 9 CERCAS DE PEDRAS OU TAIPAS NOS CEMITÉRIOS Ao analisar-se cemitérios rurais de Cambará, considera-se que no inicio do seu povoamento, esta era uma região inóspita, à qual os primeiros colonizadores tiveram que adequar seu modo de vida aos recursos naturais ali existentes e a pedra era o material que aflorava da terra. Entre os colonizadores, presume-se um grau de conhecimento relativo em construções de cercas para demarcar as propriedades, conhecimento este originado na Europa e introduzido por portugueses e espanhóis. Inicialmente as taipas eram utilizadas como cercamento para aprisionar gado alçado em determinado espaço, era habitual não só nessa região, mas também em São Gabriel, São Francisco de Paula, Bagé entre outras cidades do estado13. Enfatiza-se que nos cemitérios estudados existe uma nova abordagem referentes a esses marcos demarcatórios que soma-se ao seu conteúdo de origem novas dimensões de leitura e entre elas podemos citar: - Função Imaginária: Separar o mundo terreno do mundo celeste - Função Prática: demarca fronteira geográfica protegendo os mortos contra invasão e profanação dos túmulos dos seres viventes. - Função Folclórica: Limitação dos dois mundos associada ao temor da morte favorece o surgimento de estórias e lendas - Função Social: Proteger os monumentos à memória14 ou seja os túmulos - Função Coletiva: guardar vestígios relacionados cultura social, política e econômica das famílias, das vilas, cidades, estados e países. A situação atual que se observa nos cemitérios é de completo abandono, com a maioria de seus túmulos depredados. Notas-se raras inscrições com nomes das famílias e ausência de epitáfios tumulares que demonstravam a crença que o ser continuaria a viver embaixo da terra e lá conservaria a sensação de bem viver ou de sofrimento: No epitáfio, escrevia-se que o defunto ali repousava: afirmação essa que sobreviveu às próprias crenças e que, atravessando os séculos, chegou até nossos dias. Empregamo-la ainda hoje, embora já ninguém acredite que um ser imortal repouse no túmulo. (COULANGES, 2006, Pg. 15) Também percebe-se a escassez dos vestígios de rituais como velas, flores, pintura, limpeza que são realizados em função da lembrança e da afetividade. Isso decorre em função da desmistificação da morte; também em função das as transformações das famílias patriarcais em nucleares e da 10 urbanização (mudança das famílias para a cidade). Esses fatos ocasionaram uma espécie de perda coletiva da memória que Thiago Araújo ressalta dando a seguinte definição em sua tese de mestrado: ...podemos definir que a memória construída no presente, a partir de demandas dadas por este e não necessariamente pelo passado em si, pode ser pensada como fator fundamental para a construção de pertencimentos sociais, aos mais diversos níveis associativos. De certa forma, a busca do controle sobre a memória institui uma identidade para o agente social nela envolvido. Assim o cemitério passa a ser um agente de manutenção de memórias que constroem uma identidade cultural.(ARAÚJO, 2006, Pg. 51) Após elaboração desse texto, ponderamos antes de encerrar, que tendo em vista a constatação da precariedade em que se encontram os cemitérios rurais de Cambará do Sul são necessárias soluções emergenciais tais como: 1- Mapeamento geográfico dos cemitérios de fazendas da cidade (placas de identificação) 2- Levantamento documental nos arquivos da cidade sobre famílias enterradas em cada cemitério a fim de reconstituir a história das fazendas e as pessoas que ali habitaram contribuindo para a formação do município fossem eles anônimos e proeminentes, ricos ou pobres, tropeiros e campeiros escravos índios ou mestiços 3- Limpeza, cercamento e conscientização da comunidade incluindo também os cemitérios de fazendas nas rotas turísticas da cidade de Cambará do Sul Neste estudo, considera-se que para preservar os cemitérios de fazenda de Cambará do Sul e seus muros de pedra, que por si, já se constituíram monumentos à memória é imprescindível a conscientização coletiva relativa a importância do conteúdo histórico contidos dentro e fora dos mesmos. Essas medidas tornar-se-ão realidade se houver o envolvimento de órgãos oficiais (Secretaria de Educação, Cultura e Turismo ) em conjunto com as escolas e a comunidade por meio da elaboração de projetos de resgate revitalização do patrimônio histórico e cultural e social da comunidade contidos nos campos santos das fazendas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Thiago Nicolau de. Túmulos Celebrativosde Porto Alegre: múltiplos olhares sobre o espaço cemiterial(1889 – 1930).Tese de Mestrado PUCRS, 2006 11 BARROSO, Vera Lúcia Maciel (Org) Raízes de Santo Antônio da Patrulha e Caraá. Porto Alegre: Este Edições, 2000. BECKER, Dr. Klaus(Org.) Enciclopédia Rio Grandense.A religiosidade católica na colônia Italiana. Rio Grande Antigo 2. Canoas: La Salle, 1956. p. 24 ____________________ Enciclopédia Rio Grandense.Os três núcleos Colonização Italiana. Rio Grande Antigo 1. Canoas: La Salle, 1956. p 135-147 da BELLOMO, Harry (org). Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: EDIPUCRS,2000 CATROGA, Fernando. “Memória e História”: In: Fronteiras do Milênio. PESAVENTO, Sandra Jatahy(Org.). P. Alegre: Edit. Univ/UFRGS, 2001. CARDOSO, Airton André Gandon. Igrejas de Origem Ítalo-Brasileiras na Colônia de Sananduva In. Raízes de Sananduva. Porto Alegre. EST. 2004. pg.240-244 CEMITÉRIOS:Fontes primárias em estudo COSTA, Rovílio. Antropologia visual da Imigração Italiana. Caxias do Sul: EST, 1996 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2006 DALMÁS, Mateus, Cemitérios dos Municípios Originários de Santo Antônio da Patrulha: Seus simbolos e significados religiosos. In. Raízes de Santo Antonio da Patrulha. Porto Alegre. Est, 2000. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d GOFF, Le Jacques. História e memória. Campinas, UNICAMP, 1996 Pg. 127-146 e 423-477. NEUBERGER, Lotário (Org.), RS no contexto do Brasil. Porto Alegre: Ediplat, 2000 Periódico Zero Hora . Porto Alegre. Data: 04/12/1988 Pg. 06 Periódico Zero Hora . Porto Alegre. Data: 09/12/1989 Pg. 37 RODRIGUES, Elusa Maria Silveira e outros. Bom Jesus e o Tropeirismo no Cone Sul. Porto Alegre, EST, 2000 VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros. Brasília: MEC-RJ, 1972. XAVIER, Paulo. In: A Estância. Rio Grande do Sul Terra e Povo. Porto Alegre: Editora Globo: 1969 ZILLES. Urbano. A Significação dos Símbolos Cristãos. 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Barranco alto e pedregoso apresentando uma extensão de 5800m e uma altura variável de 600 a 200m , com uma profundidade média de 600 Km. Palavra de origem tupi, formada de ita ( pedra) e aimbé (afiado, áspero) As rochas encontradas na região têm de 137 à 150 milhões de anos e são chamadas de basalto, isto é, rocha vulcânica também chamada de pedra-ferro. 5 XAVIER, Paulo. In: A Estância. Rio Grande do Sul Terra e Povo. Porto Alegre: Editora Globo: 1969. Primitivo núcleo de produção rural, ou seja , complexo familiar e comunal aplicado a criação, que se constituía em linha mestra do desenvolvimento de determinada região, daí surgiu um tipo de vida com linguajar, hábitos e atitudes característicos de cada região do Rio Grande do Sul. 6 E extensão de terra de determinada família. 7 Consta enterramentos fora do cemitério conforme imagens. 8 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2006. Pg. 73-74. Colocar o termo na terrra equivalia, digamos a implantar a religião doméstica no solo, para indicar que este chão se tornava, para todo o sempre , propriedade da família....] O uso dos termos ou marcos sagrados dos campos parece ter sido universal entre a raça indo-européia. 2 9 10 BARROSO, Vera Lúcia Maciel (Org) Raízes de Santo Antônio da Patrulha e Caraá. Porto Alegre: Este Edções, 2000. Cruz Cristã ou Latina (4) A cruz latina é o símbolo do cristianismo. Os romanos a utilizavam para executar criminosos. Por conta disso, ela nos remete ao sacrifício que Jesus Cristo ofereceu pelos pecados das pessoas. Além da crucificação, ela representa a ressurreição e a vida eterna. Cruz Simples ou Grega (de Ferro 1920-1940) surgiram em substituição as cruzes de madeira(5) Em sua forma básica a cruz é o símbolo perfeito da união dos opostos, mantendo seus quatro "braços" com proporções iguais. Alguns estudiosos denominam esta como Cruz Grega. Cruz com escultura de anjo orante em sua base (6) Variante da Cruz Cristã. Cristo Crucificado (7) Significa sofrimento e morte que dignificam . Em geral sua iconografia exprime: espiritualidade e grandeza Cruz da trindade (8) Caracteriza-se pelos remates de três círculos inter-seccionados que representam a Trindade , ou seja pai e filho unidos pelo Espírito Santo , um ser uno. 12 http://www.pime.org.br/noticias.inc.php?&id_noticia=4281&id_sessao=2 Data da revista: 01/04/2003, nº 71 Pg. 31, mês abril/2003 – consulta site01/01/2008 17:19 13 A reportagem do Jornal Nacional realizada dia 08/09, enfatiza o tombamento das cercas de pedra, que as mesmas se originaram na Península Ibérica, e no Rio Grande do Sul tornaram-se marcos de divisas entre fronteiras , eram geralmente construídas pedras sobre pedra sem argamassa, calcula-se que em torno de trezenas pessoas (entre jesuítas, índios e escravos) construíam o equivalente a cinco metros de taipa por dia possuíam em torno de um metro e meio de altura por um metro de largura e eram destinadas a cercar as terras para a criação de gado, cavalos, mulas e ovelhas para comércio ou troca. 14 A palavra monumento deriva da raiz indo européia men e esta nos remete a uma das funções do espírito: mens ou seja a memória. O monumento é um traço do passado entendido através da afetividade e pela ritualidade. 11 1 Quando o corpo incomoda: o(dor)es da morte e os novos padrões de higiene, uma discussão acerca do nascimento dos cemitérios no Seridó, século XIX Alcineia Rodrigues dos Santos Maria Elizia Borges – Orientadora FCHF - UFG Resumo O objetivo desse artigo é analisar como o impacto dos surtos epidêmicos que atingiram o Seridó a partir de 1850, contribuiu para a ação transformadora sobre os costumes fúnebres e as atitudes da população para com a morte e dos mortos. As atitudes dos habitantes da Província do Rio Grade do Norte com relação à finitude da vida tinham como eixo central, durante toda a extensão do oitocentos e primeira metade do século XIX, a familiaridade entre vivos e mortos, relação esta, definida pelas inumações no interior das igrejas. Esse costume, largamente utilizado pelos cristãos católicos, permitia o contato direto entre vivos e mortos, pois, uma vez que os fiés freqüentavam as igrejas estariam sentando, passeando e fazendo suas orações sobre as sepulturas. O impacto das epidemias nas transformações na cultura funerária foi fundamental, pois, as doenças provocavam alto índice de mortalidade. Logo, tornou-se um dos elementos catalisadores para o discurso higienista que a tempos lutava, sob influência européia, contra o enterramento ad sanctos, com base na prevenção dos males e a favor da higienização pública. Dentro dessa conjuntura, o Seridó, a exemplo de outras regiões brasileiras como São Paulo e Rio de Janeiro, também iniciam o processo de laicização da morte. É esse processo que pretendo analisar, tendo como base, o uso de documentação oficial produzida pelos Presidentes de Província e Comarca Municipal, além da utilização de registros fotográficos feitos nos cemitérios da região. Palavras Chave: Secularização. Epidemia. Cemitério. Morte. Este artigo tem como finalidade discutir o processo de secularização dos costumes fúnebres na região do Seridó1. A partir de 1850, o nordeste brasileiro foi atingido por várias doenças, o que provocou grande índice de mortalidade. No seridó, as epidemias de colera morbus, sarampo e bexiga, que assolou grande parte seus municípios, serviu de motivação na tomada de decisões no sentido de pensar os velhos costumes mortuários como práticas insalubres. Nesse sentido, queremos observar como esses surtos epidêmicos contribuíram para a ação transformadora sobre os costumes fúnebres e as atitudes da população para com a morte e dos mortos. Após dizimar parte da população do Nordeste e Sul do Brasil, além de aterrorizar outras tantas, as epidemias foram utilizadas pelas autoridades médicas e imperiais como forma de justificar a implementação de medidas proibitivas aos costumes fúnebres. O discurso médico higienista, que não era favorável a essa prática, vem mostrar que estar perto dos mortos se tornara perigoso, já que eles representavam ausência de salubridade. O costume de enterrar os mortos no interior das igrejas ocasionava sérios problemas. Embasados nessa teoria os médicos 2 alertavam a população para os perigos decorrentes do ar pútrido e dos gases e vapores produzidos pelos cadáveres em decomposição - os miasmas, gases que contaminavam o ar, suscitando o aparecimento de várias doenças. Logo a sociedade médica do século XVIII começou a discutir sobre a possibilidade de implementar medidas proibitivas e sanitárias em relação aos costumes fúnebres, que então vinha causando um número considerável de doenças. A discussão em torno dos problemas causados pelos surtos epidêmicos e sua relação com a insalubridade serviu de motivação para as transformações das atitudes da população em relação à morte e aos mortos. Essas epidemias teriam representado o argumento final de que os médicos necessitavam para persuadir o governo imperial e a população sobre importância da implementação de um projeto medicalizador da morte, especialmente normalizando e disciplinando os costumes fúnebres. A favor dessa política sanitarista, as pessoas começaram a questionar o enterramento dos mortos e a defender a construção de cemitérios fora das cidades. Durante toda a extensão do século XIX, o Brasil foi acometido por diversas epidemias, as quais se constituíram em grande problema, tanto para a população como para as autoridades provinciais. As dificuldades eram maiores devido à falta de higiene e de uma medicina propícia, o que causava intensa mortalidade. A ausência de condições para assegurar uma boa saúde tornou-se, via de regra, um grave problema também na Província do Rio Grande do Norte, por vezes obrigando os presidentes a pedirem ajuda às demais províncias para conterem as epidemias. A partir da leitura dos relatórios provinciais, podemos observar uma série de dificuldades encontradas no trato com a saúde pública: os medicamentos eram poucos, as vacinas - que eram as principais responsáveis pela cura das doenças na maioria das vezes chegavam estragadas e sem condições de uso, não produzindo maiores efeitos. Além da precariedade de medicamentos, quase não existiam médicos para cuidar da população, o que dava margem ao surgimento de curiosos em medicina. A atuação desses curiosos fez com que a província levasse o caso à Câmara dos Deputados, incentivando os parlamentares a convidarem, oferecendo ordenado, um médico hábil, para a Vila do Príncipe. 2 Os anos que sucederam o de 1838 foram extremamente difíceis para a província, pois a epidemia de bexiga 3 ameaçou grande parte da população. A ajuda das demais Vilas foi, nesse momento, de grande importância na solução desse 3 problema. Ainda em 1840, as vacinas chegaram às Vilas de São José, Goianinha, Flor e Príncipe - atual Caicó. Diante da ineficiência da medicina provincial, a imunização foi feita pelos curiosos, “que para isto se ofereceram gratuitamente” 4. Além dessas epidemias, nos anos posteriores o sertão continuou sendo alvo de inúmeras doenças. Foi, porém, em 1856, com a presença da colera morbus, que a população da Província do Rio Grande do Norte se sentiu profundamente ameaçada. Nesse período, dentre outras providências, tratou-se de construir um hospital com “dimensões tais que pudessem acomodar 40 doentes do sexo masculino, e outros tantos do feminino, além dos repartimentos necessários para outros misteres do serviço a que eram destinados” 5. Ademais, colocou-se em discussão a necessidade de construção de um campo-santo, uma vez que o enterramento nos espaços sagrados, especialmente para os indivíduos que haviam falecido de cólera, estava sendo questionado, devido à grande contaminação promovida por tal doença. Algumas medidas preventivas foram tomadas, entre as quais a limpeza das ruas tornou-se urgente. Ainda em 1856, antes que a epidemia invadisse toda a província, o presidente Bernardo Passos iniciou a criação de comissões de beneficência em todas as freguesias, encarregando-as “de promover subscripções, preparar casas, a que fossem recolhidos os pobres afectados, distribuir os socorros que pela constituição a nação, deve principalmente aos pobres nas calamidades, tomar as providências convenientes à salubridade, etc.” 6. Apesar dos esforços, os surtos de cólera conseguiram dizimar parte significativa da população da província. A incidência desses surtos epidêmicos propiciou a criação de cemitérios em toda a província, e na Vila do Príncipe não foi diferente. Todavia os primeiros mortos vitimados por essas pestes foram sepultados em cemitérios improvisados, haja vista as necrópoles oficiais só terem sido efetivadas a partir de 1870, depois do segundo surto da cólera e quando a população ainda sofria as ameaças causadas pela varíola. O ano de 1856 apresenta os primeiros indícios da existência de cemitérios na Vila do Príncipe, hoje Caicó. Através do Livro dos mortos nº. 03 da Paróquia de Sant’Ana (1838 -1857), podemos perceber referências aos cemitérios da Pedra do Moleque, cemitério do Estreito, cemitério dos Batentes, entre outros, espaços geralmente fora das cidades, numa evidência concreta do medo da contaminação difundido através do discurso médico higienista. 4 A documentação oficial produzida pela Comissão da Câmara Municipal da Cidade do Príncipe em 27 de outubro de 1874 nos mostra a aprovação do cemitério público, sendo definidas às condições seguintes: “CAPITULO I - Art. 1. O cemitério fundado na cidade do Príncipe, em virtude da lei provincial n. 664 de 21 de Julho de 1873. Art. 32: é determinada a sepultura de pessoas fallecidas dentro, ou fora da Freguezia”. 7 O Regulamento do Cemitério da cidade do Príncipe prescrevia algumas das normas que ainda são observadas nos tempos atuais. Além de modos como manter o local bem asseado e decente de modo que sua limpeza e conservação se mantivessem da melhor forma possível, os artigos 20 e 21 do capítulo IV, determinavam que: O povo terá entrada franca no cemiterio das 6 horas da manhã as 6 da tarde; e somente durante este tempo se poderá receber cadaveres, salvo em casos extraordinarios, apreciados pelo presidente da camara. As pessoas que dentro do cemiterio não portarem-se com respeito devido as cinzas dos mortos e desobedecerem as reflexões feitas pelo administrador serão expulsas pelo mesmo administrador e coveiro, si se mostrarem contumases, serão levadas á autoridade policial.8 A preocupação com a limpeza, inscrita no parágrafo 12, do art. 6, cap. II do Regulamento antes citado nos indica que o discurso médico em relação à salubridade estava surtindo efeitos. Além disso, a paz e o sossego no interior do recinto deveriam ser mantidos, conforme observamos nos artigos 20 e 21 do capítulo IV desse documento. Nesse capitulo também fica claro a necessidade de separação entre a vida e a morte. A hora que os vivos podem estar no local – das 6 da manhã às 6 da tarde – e, aquela destinada somente ao morto – à noite –, numa clara distinção entre a luz e as trevas, ou seja, espaço da vida, lugar da morte. Dentre as ações determinadas pelo discurso de normatização da morte ainda estavam previstos os cuidados com os corpos enterrados, uma preocupação que refletia o desejo em resguardar a vida, a higiene e o controle social. A saúde pública volta sua atenção para o espaço do morto. As intervenções político-sanitárias para a higienização e a individualização da morte vêm aos poucos transformar os costumes fúnebres, em virtude das novas práticas mortuárias impostas pelos médicos. Os cemitérios deveriam ser construídos em 5 locais cujo terreno não comprometesse os mantos dos rios, evitando ameaças à saúde dos vivos. Aos poucos o discurso social contribuiu cada vez mais para que as posturas perante o ato de bem morrer fossem sendo esquecidas. Tão logo a saúde torna-se objeto de controle do Estado, morrer se torna um ato solitário, isolado, que ocorre num espaço longe do convívio social - o hospital - donde o morto sairá para o campo-santo este último cercado por altos muros e resguardado por um responsável pela manutenção da ordem. A morte não mais está sob domínio coletivo, como ocorria nas associações leigas, passando ao comando do Estado. Ao entrar nos cemitérios seridoenses, a primeira impressão que temos e a de que estamos em um espaço com características urbanas que não perdeu suas origens rurais. O Seridó guarda consigo características singulares, com uma vida diária pensada nos moldes regionais, sobretudo, destacando elementos que marcam uma configuração pensada a partir da terra, do homem e de sua produção. É especialmente pensando essas características que pretendemos analisar as cidades dos mortos, dentro de uma visão representativa de uma sociedade urbana, onde podemos potencialmente compreender as estruturas sociais, ainda que essas se apliquem apenas a uma parte da população, a saber, que a arte funerária esta permeada por fatores sociais e religiosos, econômicos e culturais. Os cemitérios seridoenses não fogem a regra espacial e de esquadrinhamento observado na maioria das cidades brasileiras, geralmente constituídos por uma estrutura semelhante aquela presente na distribuição espacial urbana, com avenidas, quadras e ruas comumente arborizadas. Essa cidade em miniatura apresenta uma disposição de forma a compor um modulo quadrangular em repetição. As sepulturas são organizadas tendo como base o passeio – ala central do cemitério, que geralmente da cesso a capela, que esta sempre alinhada com a porta de entrada ao recinto, e que direciona as alas em esquerda e direita. Durante as nossas visitas feitas aos campos-santo percebemos que teríamos que sair de uma visão puramente artístico analítico para adentrarmos no universo dos rituais populares, especialmente pela singularidade cultural que os mesmos apresentam. Nesse sentido, muitas de nossas apreciações estão sendo construídas com base na observação que pudemos realizar durante a pesquisa de campo. E mesmo que esta visão possa ser pensada como pouco cientifica, foi 6 necessária sua utilização dado ao fato de que não existe na região produção bibliográfica que pudesse nos auxiliar no desenvolvimento da pesquisa. De certo modo, buscamos o entendimento de como a secularização dos costumes fúnebres foi processada e incorporada na região seridoense, sem com isso pretender esgotar a pesquisa, o que da a esse ensaio, um caráter de abertura sobre o estudo da arte funerária no Seridó. As manifestações artísticas no espaço cemiteral acompanham necessariamente os estilos da época e de cada região em particular. Desse modo, tomando a arte mortuária como representativa de uma sociedade podemos compreender suas relações sociais, econômicas e culturais. Para nossa incursão no universo signico dos cemitérios seridoenses utilizamos a metodologia adotada por Tânia Lima Andrade no momento em que essa autora analisou cemitérios na cidade do Rio de Janeiro, onde “dois tipos de signos foram reconhecidos: os verbais (epigrafia tumular) e os não-verbais (elementos escultorios e arquitetônicos)” 9. Ademais essa perspectiva pode ser enriquecida por meio da observação de uma forte presença da arte vernacular 10 , expressão que confere o gosto popular. Os cemitérios seridoenses apesar de serem um espaço de caráter publico, possui um universo bem particular. Assim como outros, confere um lugar de memória, que por sua abrangência, e capaz de promover uma apropriação de valores sócio-culturais e religiosos. No Seridó quase todos os cemitérios estão voltados para o nascente e, em geral, a fachada principal tem forma arqueada e/ou piramidal. Ilustração 1 – Frontispício do Cemitério São Vicente de Paulo – Caicó – RN 7 Ilustração 2 – Frontispício do Cemitério Nsa. Sra. da Conceição - Acari – RN É importante não perder de vista que esse formato se assemelha necessariamente as inúmeras igrejas católicas da região, o que nos permite investigar acerca da idéia de que o seridoense realmente desejou continuar sendo enterrado dentro de um solo sagrado e, para isso reproduziu dentro dos cemitérios, túmulos miniatura de igrejas, a começar pelo próprio campo-santo. Para alem de sua forma, trazem em sua parte central e/ou mais elevada, o mais popular dos símbolos cristãos: a cruz. A arquitetura em forma de templo (ilustrações 1 e 2) dada ao frontispício do cemitério nos mostra o desejo que o individuo tinha de não fugir da dinâmica de enterramento em solo sagrado. Nesse sentido, percebemos que se procura manter um ideário de salvação pelo enterramento ad sancto mesmo dentro dos campossanto, uma vez que, ele transfere sua igreja matriz para esses espaços. E certo, porém, que essa laicização aconteceu em nível institucional, posto que, a organização desses espaços não mais está sob a responsabilidade eclesiástica ou com as Irmandades. Contudo, a grande incidência de símbolos cristãos católicos nos permite pensar que a construção dos cemitérios na região seridoense, mesmo motivada pelo discurso médico higienista, não concretizou uma adesão total aos preceitos da secularização. O esforço para não romper com as tradições mortuárias dentro dos cemitérios seridoense e percebido por meio de vários elementos signico. Consolo para os cristãos e instrumento de suplicio, a cruz compreende o mais popular entre os signos observados nos cemitérios. Marco da crucificação de cristo representa o vinculo entre Deus e os homens, além de ser o registro material da morte de Jesus 8 pelos pecadores e salvação da humanidade. Elemento constitutivo da redenção de cristo e do cristianismo, a cruz, como símbolo, muito antes de ser conhecida no ocidente cristão, já era utilizada por muitos povos na antiguidade. Símbolo universal de mediação entre homem e Deus, a ela representa, por meio de suas ligações de pontos diametralmente opostos, a perfeição. Desde o inicio da colonização, com as missões, a cruz teve forte significado para o Brasil, especialmente em se tratando da dominação portuguesa. Nos cemitérios seridoenses a cruz é repetida de acordo com um projeto estético que se acumula aos demais símbolos da cultura mortuária. Trata-se de um símbolo definidor de uma pratica cultural, um ritual de passagem, que por sua expressividade torna-se o ícone de maior presença em seus túmulos. Como materialização das crenças e práticas culturais elas se apresentam de varias formas, apresentando desde a versão mais simples, em linhas retas cruzadas e sem decoração, feitas de madeira ou metal, a exemplares decorados com flores e ramalhetes, sendo esculpidas em mármore ou granito. Presente desde a entrada do cemitério, as cruzes se manifestam qualitativamente no interior dos mesmos, estando presente em praticamente todos os túmulos, independente da condição social do morto. Os mausoléus com motivos inaltecedores se mostram como uma das características próprias dos cemitérios seridoenses. Comumente esses jazigos são suntuosos túmulos com elementos ornamentais particulares. Apresentam bases sobrepostas, seguido de uma elevação em forma piramidal, onde se localiza o baldaquírio, espaço reservado a uma imagem de santo ou anjo. Geralmente são padronizados e seguem uma estrutura comum. Contudo, as imagens e os detalhes ornamentais mostram uma grande variedade em modelos que vão desde o mais simples ao mais elaborado dos jazigos. Suas esculturas registram uma iconografia que é, ao mesmo tempo, folclórica e erudita. E, apesar de que nos cemitérios brasileiros predomina uma forte influência européia, os materiais regionais não deixam de ter seu espaço, com o emprego de valores locais, sejam eles, religiosos, políticos e sócio culturais. Esses túmulos têm grande valor expressivo e, em geral, são construídos logo após a morte primeira da pessoa da família, que pode ou não ser o mais velho, sendo especialmente para guardar sua honra. A cultura e o gosto local tenderam a se sobressair e diferentemente de outras cidades brasileiras como Rio de Janeiro e São Paulo, onde foi bastante 9 difundido o uso de mármore de Carrara, os túmulos seridoenses do início do século XIX foram construídos seguindo o uso de materiais simples, aqueles mesmos utilizados na edificação de residências. Isso nos mostra que os profissionais da construção civil também são aqueles que se ocupam da edificação da cidade dos mortos. Desse modo, observamos que diferentemente do que foi percebido em outras cidades brasileiras, o uso de material da construção civil foi bastante difundido na arquitetura funerária seridoense. Quanto a isso, podemos advertir que essas famílias, no momento da edificação de seus jazigos, contaram com a ajuda dos profissionais da pedra e cal - os pedreiros e, certamente utilizaram sobras de materiais comprados para construção ou reformas de suas residências. Nesse sentido, o uso de adornos na decoração tornou-se, via de regra, o diferencial. Esses detalhes ornamentais carregam consigo complexo simbolismo, deixando transparecer uma polissemia de significados. Em sua maioria os símbolos se associam ao gosto religioso, com predominância de imagens advindas do ideário cristão católico. Para além dessas considerações, é importante observar que na construção desses túmulos o proprietário teve a liberdade de escolher que tipo de material a utilizar. Essa intimidade que a família tem em decidir sobre o uso de objetos para a edificação de suas sepulturas é conferida segundo uma ação permissiva que o cemitério tem e que se diferencia daquela vigente na própria cidade. Ademais fizemos outras constatações, como é o caso de túmulos que mostram, mesmo que de forma tímida, imagens de anjos, tochas e símbolos antropomórficos. Ainda verificamos a presença de túmulos gradeados e com um considerável percentual de linguagens verbais postas por meio das lápides funerárias. Esses elementos estão sendo analisados e, sem dúvidas comporão a avaliação final de nossa tese. Considerações Finais Em fins da primeira metade do século XIX a Província do Rio Grande do Norte, deparou-se com um fato novo que viria a promover agitações nas atitudes de sua população em relação à vida e a morte: a incidência de surtos epidêmicos de cólera. Antes de essa terrível doença assolar parte do nordeste e sul do Brasil, os 10 mortos compartilhavam do mesmo espaço dos vivos, pois eram inumados dentro dos templos cristãos católicos, espaço onde haviam vivenciado momentos importantes de suas vidas. Contudo, o ato de enterrar dentro das igrejas começou a incomodar as autoridades, já que essa prática ia de encontro as políticas de saneamento e higiene pública, idéias trazidas principalmente pelos Viajantes e Presidentes de Província, que sendo aceitas pela sociedade local, tornaram-se prejudiciais a saúde, principalmente pelas possíveis emanações cadavéricas e seus gases maucheirosos. A construção de cemitérios no Seridó envolve um longo processo e, de acordo com os Relatórios dos Presidentes de Província, arrastou uma longa discussão. Essa documentação nos mostra indícios de que desde 1850, quando toda a Província sofria com os efeitos dos surtos de varíola e sarampo, houve determinação de verbas para obras em alguns municípios, o que nos mostra a preocupação em retirar os mortos do espaço dos vivos. Apesar de que essa motivação teve inicio no período das epidemias, o Seridó só veio a ter um cemitério devidamente regulamentado no ano de 1873, dentro de uma proposta de reordenamento urbano. A retirada dos mortos do espaço sagrado para os cemitérios não se deu sem manifestações. Contudo, ao contrário do que ocorreu em Salvador, onde a população destruiu o campo-santo, no Seridó elas ocorreram de uma forma menos materializada, porém, não com menos força. Acreditamos que a edificação de cemitérios na região, definindo um novo local para os enterramentos, e mais ainda, um espaço laicizado, conforme ocorreu em outras regiões, não resultou em mudanças imediatas e, apesar de ter provocado transformações na forma de pensar a morte e por sua vez, conceber a vida, não causou grandes impactos, uma vez que, os antigos costumes continuaram muitos deles ignorando a existência do Cemitério. Em todos os cemitérios pesquisados percebemos a presença de elementos que mostram a permanência de rituais que se mantém mesmo que reconfigurados. O cemitério, por sua vez, apareceu como um novo espaço, provocando mudanças, sem, contudo, alterar por completo com as antigas atitudes. 11 Referências Bibliográficas ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Tradução de Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. BEZERRA, Paulo. Cartas dos sertões do Seridó. Natal. Lidador, 2000. BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890 - 1930). ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto = Funerary Art in Brazil (1890 - 1930): italian marble carver craft in Ribeirão Preto. Belo Horizonte, Editora C/ Arte, 2002. CASCUDO, Luís da Câmara. Anúbis, ou o culto dos mortos. In_____. Anúbis, ou outros ensaios: Mitologia e folclore. 2 ed., Rio de Janeiro: FUNART/INF: Achiamé; Natal: UFRN, 1983. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. 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Ensaios da cultura 8, Edusp, 1996. 1 O Seridó, de acordo com a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE está localizado na Messoregião Central do Rio Grande do Norte, dividido em duas Microrregiões: Seridó Ocidental e Seridó Oriental. 2 Relatório de Presidente da Província, 1836 (grifos acrescidos). 3 Bexiga é o mesmo que varíola, doença infecto-contagiosa, a peste das cataporas, como era chamada na época. 4 Relatório de Presidente da Província, 1840. 5 Relatório de Presidente da Província, 1857. 6 Idem. 7 Regulamento do Cemitério da Cidade do Príncipe. Coleção particular do pesquisador Joaquim Martiniano Neto Madureira -. Acervo do Laboratório de Documentação Histórica, do Centro de Ensino Superior do Seridó. 8 Idem. 9 LIMA, Tânia Andrade. De morcegos e caveiras a cruzes e livros: a apresentação da morte nos cemitérios cariocas do século XIX (Estudo de Identidade e Mobilidade Sociais). São Paulo: Anais do Museu Paulista vol. 2, 1994, p. 97. 10 BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890 - 1930): Oficio de marmoristas italianos em Ribeirão Preto. GÓTICOS E CEMITÉRIOS, CULTURA DOMINANTE VS SUBCULTURA Bruno Leonardo Cardoso Universidade Federal de Goiás seth_blc@hotmail.com Resumo Como forma de manifestação do espaço e construção da realidade, a cultura apresenta grande importância na organização da sociedade contemporânea, de modo que seu estudo se faz imprescindível a compreensão das relações entre os homens e com o meio. Os cemitérios são desta maneira um bom exemplo da organização espacial da cultura, de sua importância e dos paradoxos produzidos no decorrer da história, pois representam um importante registro do passado e que permitem a compreensão dos gêneros de vida, traduzidos em nossa relação com a espiritualidade. Assim, o presente texto avalia os aspectos da formação cultural dos Góticos em relação aos cemitérios comparada cultura dominante que a ela se opõem. Coexistem na mesma sociedade ainda que em oposição. Palavras-chave: Góticos, cemitérios, cultura INTRODUÇÃO Situada no universo dos sentidos e dos valores sociais, a cultura pode ser definida como conjunto de práticas, habilidades, idéias, linguagens, relações e simbolismos comuns a uma sociedade que se constroem constantemente, por meio de experiências vividas no cotidiano, presente nas relações humanas. Sendo assim, a cultura é parte do espaço social, pois é inerente ao homem social e, conseqüentemente, às formas de dominação do meio. Dentro deste espaço social, surge um grupo de pessoas com características distintas de comportamentos e credos que os diferenciam de uma cultura mais ampla da qual elas fazem parte o que podemos chamar de uma sub-cultura. A sub-cultura pode se destacar devido à idade de seus integrantes, ou por sua etnia, classe e/ou gênero, e as qualidades que determinam uma sub-cultura como distinta podem ser de ordem estética, religiosa, ocupacional, política, sexual, ou por uma combinação desses fatores. Neste sentido, buscando compreender a influência dos cemitérios, suas manifestações/representações na sub-cultura gótica. De maneira geral, os cemitérios apresentam um grande valor artístico e cultural, no sentido de que são um importante registro do patrimônio cultural, material e imaterial, de uma sociedade. Desta forma, os cemitérios apresentam algumas características que nos permitem compreender a influência da cultura no desenvolvimento histórico de uma cidade. Assim, ao pensar o cemitério, por meio de uma sub-cultura, estamos tentando, de certa forma, analisa-lo não apenas no sentido do patrimônio cultural, material e imaterial de uma sociedade. Procuramos analisar a dimensão que o mesmo atinge dentro de uma sub-cultura, principalmente com referência aos pertencimentos e identidades humanas apreendidas no cotidiano. Desta forma, o presente trabalho tem como objetivo observar a dimensão cultural dos cemitérios presente dentro da sub-cultura gótica, visto que eles exercem sobre esta sub-cultura se tornando um ícone muito apreciado pelos Góticos, tanto por conterem um grande número de manifestações culturais distintas, inseridas em um mesmo espaço, bem como por ser a junção de um lugar que normalmente representa a paz ou descanso eterno. A partir daí, fomos analisando as contradições decorrentes do choque entre a cultura dominante e esta sub-cultura, existente no mesmo ambiente. Além disso, procuramos compreender o simbolismo que o cemitério exerce dentro da sub-cultura gótica. CEMITÉRIOS, HISTÓRIA, CULTURA E SIMBOLISMO Devido a uma série de circunstâncias que permearam o final do século XVII, tais como o crescimento urbano acelerado, a introdução de novos conceitos de higienização dos espaços, além do rompimento, dos Estados Nacionais nascentes, com a tradicional dominação católica, foi observada, no cenário europeu uma modificação nas práticas de inumação, levando os sepultamentos a serem realizados fora das cercanias das igrejas, dando origem aos cemitérios, que vigoram até os dias atuais. A este respeito, Beatrix Algrave afirma que: “A urbanização acelerada e o crescimento das cidades é também uma importante razão para a criação dos cemitérios coletivos a céu aberto, visto que o crescimento populacional desenfreado não permitia mais o sepultamento em capelas e igrejas, que já não comportavam o aumento da demanda1.” Esses acontecimentos provocaram uma série de modificações culturais e de pensamento, na sociedade ocidental. A necessidade de auto-afirmação humana, perante a sociedade, se faz presente mais do que nunca, propiciando a apropriação dos conceitos neoclássicos pela burguesia emergente do período, que se manifesta não só na literatura e nas artes, mas também nas formas de organização da vida cotidiana, nas habitações e, naturalmente, na arquitetura dos cemitérios e na monumentalização da morte. Com efeito, de acordo com MOUSNIER (1973), a respeito do pensamento burguês do século XVII, “O burguês capitalista sofre a influência dos humanistas. Recorta nos livros dos Antigos, nos dos Estóicos e de Xenofonte, de Catão, de Columela, as passagens e as máximas que, destacadas do conjunto, formulam seu ideal2”. Isto se relaciona com as formas de manifestação de poder no espaço, inclusive depois da morte e com a tentativa de eternização do indivíduo, tal qual os grandes nomes da História. A partir de então, temos o desenvolvimento de uma arte tumulária que carrega consigo os simbolismos e misticismos de seus idealizadores, bem como os valores culturais reinantes na época, e cuja evolução através dos séculos, ficou registrada nos cemitérios, em todo o mundo. No entanto, apesar de serem um importante registro sócio-cultural e histórico de uma sociedade e contarem com artistas conceituados em sua construção, dado o local em que se encontram, muitas vezes as obras cemiteriais não são devidamente apreciadas, ficando relegadas ao esquecimento e à degradação. Contemporaneamente, devido a iniciativas de higienização e novos parâmetros de vida saudável, associados ao alto custo da construção de mausoléus, vem ocorrendo um amplo declínio das formas de manifestação artística, no interior dos cemitérios. Fatores econômicos, ambientais e culturais vêm, progressivamente, incentivando o aparecimento de cemitérios jardins, no interior dos quais a presença de grandes edificações e a construção de mausoléus estão quase extintas. Assim, as obras artísticas e culturalmente tão valiosas, presentes nos cemitérios tradicionais, correm sérios riscos de desaparecerem. Sujeitas ao vandalismo e às intempéries, essas obras vêm sofrendo um grande desgaste, que põe em risco este admirável registro histórico da transformação do pensamento de uma sociedade. A valorização desses registros é, portanto, um importante passo para a compreensão dos processos que permitiram a transformação cultural de uma sociedade e do espaço em que ela se desenvolveu3. CULTURA, UMA MANIFESTAÇÃO DO ESPAÇO A formação das diferentes sociedades se dá por diversos fatores, mas neste estudo privilegiamos as diferenciações culturais existentes no urbano, que agem sobre os espaços de maneiras distintas, de acordo com suas necessidades, desenvolvendo, a partir deles, uma cultura singular. Podemos dizer que não existe uma sociedade igual a outra, da mesma forma que uma cultura não se repete. A pluralidade das práticas culturais acompanha a pluralidade da mente humana, e se manifesta de forma individual e particular. Neste sentido, a “Cultura é uma estrutura sensória e psíquica que o homem possui e que o possibilita apreender o espaço, compreendê-lo, sistematizar esta compreensão e transformar este mesmo espaço através da materialização de seu subjetivo, ou seja, através de seu trabalho” (DAVIM. S/d). Assim, a cultura é o referencial do homem, que se vale dos conhecimentos adquiridos por meio de suas experiências e sistematizados pela técnica, que aparece no cotidiano em sua forma de agir sobre a realidade, transformando o espaço de acordo com suas necessidades e interesses. De caráter subjetivo e objetivo, a cultura está presente nas práticas sociais e no campo dos pertencimentos mentais e psicológicos do homem (crenças, mitos, tradições), mas manifestasse de maneira prática, de modo a influenciar na construção do conhecimento, das ciências, das manifestações artísticas, da produção material e imaterial do espaço, da política, entre outras formas de atuação. Assim, a cultura é dinâmica e vai norteando o desenvolvimento do homem, agindo como uma importante variável na produção do espaço. Desta forma, pensar o espaço para dominá-lo é também um ato cultural, pois cada homem age de acordo com os conhecimentos que carrega consigo, desde o nascimento, Mas trata-se de algo constantemente aprendido com a família, com a religião e com a escola, por meio dos contatos, experiências cotidianas, ou seja, podemos entender que cada um constrói seu pensamento baseado em sua carga cultural, de modo que a construção do espaço, feita posteriormente, vai retratar as práticas sociais e particularidades culturais engendradas nesse processo. 3.3 Os Góticos Como Grupo Informal e Sub-cultura Na sociedade moderna, a pulsão agregativa, encarnada em agrupamentos humanos específicos, oferece uma compensação a uma carência humana fundamental, negligenciada pela sociedade moderna: a relação afetiva. Para Maffesoli, a pulsão agregatória do homem faz da identidade uma questão não apenas individual, mas também coletiva. Existem dois tipos fundamentais de agrupamentos humanos: os grupos formais, mais conhecidos por instituições, e os grupos informais (de amigos, por exemplo). Os grupos formais estão encarregados da reprodução da estrutura social a qual pertencem e, mais do que isso, foram criados por e para ela. Os valores culturais estão intimamente relacionados com as necessidades dos membros de cada comunidade. Quando as necessidades se alteram, o mesmo acontece aos valores dominantes nessa mesma comunidade. Este processo torna-se mais complexo quando se constata que, aparentemente, as necessidades não mudam ao mesmo tempo para todos os indivíduos que fazem parte dessa comunidade ou sociedade, para falar em termos globais. Determinada sociedade é regida por uma lei formal, determinada pelo quadro valorativo referencial, o da classe dominante dessa mesma sociedade, e uma série de leis informais, tantas quantas as comunidades que coexistem nessa sociedade. Dentro destes grupos informais, o nosso destaque vai para o Gótico, que se regem por leis informais ou costumes. Tais costumes revestem-se das mais variadas formas, como o vestuário, por exemplo. Este em particular, aparece entre os jovens como um instrumento de integração grupal, munido de um poder simbólico. Com o vestuário, os jovens pretendem realçar um estilo de vida4 Bourdieu (1974: p. 34) como um meio de afirmação e de diferenciação de status. Status, não apenas no sentido de lugar na estratificação da nossa sociedade, mas também: entre os diversos grupos juvenis e não-juvenis; entre diferentes grupos juvenis; e mesmo no interior de cada grupo particular. Todos os membros de uma comunidade obedecem a um padrão cultural, veiculado aos costumes característicos dessa mesma comunidade. Contudo, estes costumes endogrupais podem não coincidir com as leis formais, ou nem mesmo com as leis informais dominantes, levando ao defasamento cultural por parte dos indivíduos de diferentes setores ou grupos da sociedade. Os indivíduos pertencentes aos grupos informais, podem estar deste modo, sujeitos a rótulos5. As instituições tradicionais de socialização, como a família, e até a própria escola, tem perdido o seu poder de influência em favor de contextos mais informais ou subterrâneos de socialização como aqueles que envolvem os grupos de amigos. Verifica-se um manifesto desinteresse dos jovens envolvidos com o Gótico pelos organismos institucionais formais, e subseqüente participação social (pelos moldes e veículos institucionais pré-estabelecidos – forte abstenção no exercício do direito de voto, por exemplo) em detrimento da valorização do grupo de amigos. A importância dada aos grupos informais, remete para segundo plano, ou mesmo até para a indiferença, as instituições formais (de caráter político, religioso, etc.). Erving Goffman nas suas investigações de base interacionista, estudou a apresentação que fazemos de nós próprios, no fornecimento de elementos para que os outros nos classifiquem num quadro estereotipado, e as implicações que isso tem nos comportamentos dos atores sociais; o modo como o indivíduo em situações habituais, se apresenta a si próprio e à sua atividade perante os outros, as maneiras como orienta e controla a impressão que os outros formam dele, as diferentes coisas que poderá fazer ou não fazer enquanto desempenha perante os outros o seu papel. A fachada social (Goffman, 1999) do indivíduo nunca consegue corresponder com rigor à sua identidade real. Ao revelar um comportamento diferente do aceite na sociedade em que se insere, é esta que sobressai, tornando-se a principal, quando não a única fonte de informação para a definição de uma identidade. O conhecimento de um equipamento de sinais socialmente conotados positivamente, possibilita a atribuição de uma categoria social favorável, nos desempenhos quotidianos do indivíduo. Quem não possuir este conhecimento (ou rejeitar o seu uso – como é o caso) deve em princípio, procurar controlar a informação o melhor possível, de modo a evitar o rótulo, o subseqüente estigma6, e as suas conseqüências. O estigma nasce deste modo, de uma grande separação entre identidade virtual e real. A questão que se coloca então é a da manipulação de informação sobre o seu "defeito". Exibilo ou ocultá-lo; contá-lo ou não contá-lo; revelá-lo ou esconde-lo; mentir ou não mentir; e, em cada caso, para quem, como, quando, e onde. O controle exercido pelas instituições, gera formas de desvio7 estereotipadas. Para que o comportamento de um indivíduo seja considerado desviante, ele tem de viver à margem de um ou mais padrões fundamentais que sejam considerados "normais" na sociedade em que vive. Tudo o que se afaste da normalidade torna-se estigma e tem um impacto relevante em todos os grupos sociais e indivíduos. No caso dos Góticos, o gosto baseado na temática da fugacidade da vida, da morte como algo que está presente o tempo inteiro dando significado a existência, etc, a atração pelos cemitérios seja para refletir sobre o sentido da vida ou para zombar da morte acaba por se tornar uma forma de desvio segundo Goffman. "Em vez de ter que alimentar um modelo de expectativas e de tratamento diferentes perante cada ator e cada desempenho por ligeiras que pareçam as suas diferenças, o espectador poderá ser levado a colocar a situação no âmbito de uma categoria genérica que lhe torna mais fácil recorrer à experiência passada e a juízos estereotipados. O espectador contenta-se assim com o conhecimento de um vocabulário reduzido e por isso facilmente moldável de fachadas habituais, respondendo a cada uma delas com uma prontidão que lhe permite orientar-se numa vasta situações" (Goffman, 1993: 39). gama de (...) permitimos que certos símbolos de condição social impliquem o direito do ator a certo tratamento (…), continuamos apesar disso, sempre dispostos a apontar brechas da sua armadura simbólica a fim de desacreditarmos as suas pretensões. (“...) o ator estará ou não autorizado a exibir o comportamento em questão” (idem, p75). Neste caso em concreto, os indivíduos são freqüentemente desacreditados, pois há um estigma exposto (aparência), um estigma que é visível pelo qual estes são identificados, pelo que terão que gerir a tensão assim criada com os normais (os que não divergem das expectativas normativas da sociedade). Este contexto leva a alinhamentos; neste caso, o alinhamento é intragrupal, ou seja, com companheiros com o mesmo estigma que criam valores próprios, em desafio à sociedade estigmatizadora. CONSIDERAÇÕES FINAIS No presente artigo, procuramos pensar a construção do estigma, desvio na sociedade moderna, utilizando, para isso, o simbolismo e misticismo apregoado a uma sub-cultura. Neste sentido, abordamos o Gótico como uma manifestação cultural que apresenta uma estrutura psíquica que capacita aqueles que dela participa a intervir na realidade, a partir de sentimentos e valores sociais, resultantes de suas relações com o grupo no qual estão inseridos, de modo que o espaço produzido por essa intervenção constitui-se uma manifestação da sub-cultura. Pensar pelo olhar do outro, é considerar, também, a redefinição das suas formas de cultuar os mortos, visto que toda sociedade, em seus complexos processos históricos, sociais e espaciais, desenvolve suas formas específicas de se relacionar com o outro. Os valores morais e éticos de uma sociedade são, neste sentido, motivados pelas suas práticas sociais as quais vão resultar das experiências exercitadas no cotidiano comum e que persistem graças à força dos costumes e das tradições. Somadas aos avanços técnicos, às descobertas científicas, as práticas sociais propiciam choques, embates com outras formas de pensar, que vão levando a humanidade a desenvolver outras idéias, propiciando superações. Assim, o nosso estudo a respeito da sub-cultura gótica, e sua relação com os cemitérios e teve como objetivo demonstrar, por meio das manifestações estéticas e de pensamento, as representações sociais, se diferem da cultura dominante. Assim, com a identidade, deteriorada pelos processos de rotulagem e estigmatização, o jovem, vê-se numa situação de “marginalidade normativa”, que o torna mais propenso à fixação de forma duradoura nesta sub-cultura. Essa adesão está fortemente enquadrada pela gama de valores que o jovem possui. Isto inclui os compartilhados com as gerações mais velhas, pelo processo de socialização e aqueles que derivam da sua capacidade de produzir expressões culturais próprias, incorporando elementos de variadas proveniências. São as redes de inter-conhecimentos em cujo padrão se revê e (e em cuja construção participa) que lhes proporcionam uma oportunidade de integração. É no seio destas (ou de grupos mais restritos) que se forjam os elementos simbólicos comuns com que afirmam aos outros a sua identidade e a sua crença na legitimidade do seu estilo de vida. NOTAS 1 Disponível em http://www.beatrix.pro.br/cultobsc/origemcemetry.html 2Disponível em: http://www2.prudente.unesp.br/eventos/semana_geo/daviddavim.pdf 3 Idéia original retirada do sitio www.spectrumgothic.com.br 4 O estilo de vida é "o conjunto sistemático de traços distintivos que caracterizam todas as práticas e as obras de um agente singular ou de uma classe de agentes (classe ou fração de classe)". Estilo de vida refere-se assim à maneira como cada indivíduo ou família organiza sua vida quotidiana. 5 Este processo, não implica obrigatoriamente que o indivíduo se deixe afetar pelo sentimento de estigma por parte de quem é rotulado. De referir ainda, que o rótulo, além de poder ser aplicado pelos grupos formais, pode ser igualmente imposto pelos membros de um grupo informal a indivíduos de outro grupo informal, quando existem valores discrepantes entre estes. Pode ocasionar-se igualmente, um fenômeno de rotulagem aplicada a sujeitos dentro de um mesmo grupo, numa situação de diferenciação pela negativa segundo os valores defendidos pela maioria influente e atuante desse grupo. 6 Marca imposta pela sociedade a um dos seus membros, que se expressa nas normas de identidade social. Ou seja, quem não tiver certos atributos, é excluído, pois revela um comportamento diferente do grupo. O indivíduo nestas condições possui uma característica diferente da esperada pela comunidade. 7 A noção de desvio é tida como a diferença entendida negativamente. Paradoxalmente, é um fenômeno de conformidade; de conformidade em relação a um grupo que se não identifica com o padrão valorativo, normativo e comportamental predominante. As características do objeto que, na nossa sociedade, consideramos que terão alta probabilidade de serem tidas como desviantes, são a (bi) sexualidade, o consumo de drogas ilícitas, e a aparência. Por fim, no que diz à aparência, observamos que o modelo Gótico se afasta nitidamente do modelo de apresentação hegemônico, podendo facilmente ser considerado "exótico". REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, Difel, 1989. GOFFMAN, Erving , A apresentação do Eu na vida de todos os dias, Relógio de Água, 1993. GOFFMAN, Erving, Estigma – Notas Sobre a Manipulação da Identidade deteriorada, Editora Guanabara, 4ª edição, 1988. MAFFESOLI, Michel, O Tempo das Tribos - O Declínio do Individualismo nas Sociedades de Massa. Rio de janeiro, Forense, 1987. MENESES, Ulpiano T. Bezerra. “Os usos culturais” da cultura. In YÁGIZI, Eduardo et all. Turismo: Espaço, Paisagem e Cultura. São Paulo: Hucitec, 1996, pg 88-89 Cemitério do Campo Santo: História e Memória perpetuadas no mármore Século XIX – Salvador – Bahia Cibele de Mattos Mendes Museóloga Profª. Substituta Escola de Belas Artes/UFBA Dinorah Arão Jaqueline Ferreira dos Santos Mona Ribeiro dos Santos Rafaela Caroline Noronha Almeida Estudantes de Museologia FFCH/ UFBA Gualberto Conceição Estudante de História e Patrimõnio IFCH/ UCSAL Larissa Magalhães Fagundes Aline Cardoso dos Santos Hamona Oliveira Glardston Bonfim dos Santos Júnior Estudantes de Artes Plásticas EBA/ UFBA Resumo: Constitui objeto desta investigação os monumentos funerários referentes ao séc. XIX localizados no Cemitério do Campo Santo, em Salvador – Ba; confeccionados pela Família Salles de Portugal, que simbolizam e mantém a recordação dos mortos, bem como as atitudes e representações sócioculturais referentes às interpretações da morte, que contribuíram para a formação de um imaginário coletivo perpetuado no mármore, através de símbolos, formas, dimensões e temas. Palavras – Chave: Cemitério. Mausoléus. Identidade. No Cemitério do Campo Santo estão contidas as representações da História e preservação da Memória visual fúnebre da Cidade do Salvador, assim como o processo de luto vivido até o século XIX, expressos nos túmulos e mausoléus de mármore, importados de Lisboa e Itália. Pertencente à Santa Casa de Misericórdia, esta necrópole surgiu em meio às discussões das autoridades com a ameaça dos mortos à saúde dos vivos, cuja recomendação era de que se parassem os enterros nas igrejas, pois eram considerados insalubres. Muitas leis regulamentaram essas práticas, mas a primeira lei colonial que combatia todo tipo de enterramento dentro dos limites urbanos foi a Carta Régia nº. 18, de 14 de janeiro de 1801, no entanto não foi posta em prática. Em novembro de 1825, um decreto imperial atacava as práticas tradicionais de enterro como anti-higiênicas e supersticiosas, e, o imperador ordenava que os sepultamentos fossem transferidos para fora da cidade. Em outubro de 1828 foi promulgada a lei imperial que regulava a estrutura, funcionamento, eleições, funções e outras matérias referentes às câmaras municipais do Império do Brasil 1. A criação dos cemitérios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades e instauração de uma vida civilizada, cujo objetivo era a expulsão dos mortos das cidades, por estarem os mortos associados a águas infectas e à “corrupção do ar”. O movimento de medicalização estendeu-se por muitos anos, sendo o ano de 1835, decisivo na campanha contra enterros nas igrejas de Salvador, ganhando adeptos até no clero e inimigos entre as irmandades, que eram as responsáveis pelos funerais baianos 2. Uma representação é enviada à Assembléia Provincial pelos empresários José Augusto Pereira de Matos & Cia, para a construção de um novo cemitério, denominado Campo Santo, cujo requerimento segue para avaliação, foi aprovado e sancionado em junho de 1835, como lei provincial nº 17. O texto do projeto que vai ao público omite o monopólio de construção e transportes de cadáveres pelo prazo de trinta anos. Para a construção do Cemitério do Campo Santo foi escolhida uma área elevada e arejada fora dos domínios da Cidade, na antiga estrada do Rio Vermelho, em terras da então Fazenda São Gonçalo. A construção desse Cemitério teve início com grande confusão, com a liderança do Visconde de Pirajá e entidades interessadas nos resultados financeiros dos enterros, como: as confrarias, irmandades, mosteiros, conventos e paróquias. O anúncio da inauguração concorreu para acirrar os ânimos dos descontentes, que anunciavam que a inauguração não aconteceria. Dois dias após a inauguração as entidades promoveram uma passeata de protesto pelas ruas de Salvador, constituindo-se no episódio denominado “Cemiterada”. A resistência do povo e, principalmente das Ordens Terceiras foi muito grande, mas não houve jeito. No dia 1º de maio de 1844 tiveram início os sepultamentos no Cemitério do Campo Santo em 3. O Cemitério do Campo Santo, um dos mais belos e antigos do país, no gênero “Campo Santo”, apresenta a tipologia de um cemitério denominado de convencional, por organizar-se de maneira comum, seguindo o padrão europeu, com alamedas internas, direcionadas para a igreja e/ ou cruzeiro 4. Está localizado entre os bairros da Federação, Graça e Barra, reunindo túmulos e mausoléus pomposos, capelas e obeliscos em mármore, talhados e esculpidos, importados de Lisboa (um dos maiores acervos conservados no Brasil em arte). A partir de 1875 escasseiam os túmulos mandados fazer em Lisboa, cessando os reflexos do Neoclassicismo na estatuária e canteiros, surgindo em seu lugar importações de túmulos da Itália e França, bem como aqueles túmulos produzidos por artesãos Rio de Janeiro e São Paulo 5. Neste Cemitério encontram-se sepultados desde escravos, ricos comerciantes, traficantes, magistrados, freiras, barões e personalidades das artes e ciências, destacando-se: Antônio de Castro Alves; Joaquim Pereira Marinho, Francisco José Godinho e Antônio Pedroso de Albuquerque; José Alves da Cruz Rios; Alfredo Thomé Britto; Aloysio de Carvalho Filho; Anfrísia Santiago Antônio de Lacerda; Aristides Maltez; Barão de Cajayba; Bernardo Martins Catharino; Cipriano Barbosa Betâmio; Edgar Santos; J. J. Seabra; Raimundo Nina Rodrigues, Francisco Marques de Góes Calmon, Luis Tarquínio 6. Nos anos de 1853 e 1858, foi incentivada a compra de campas e lotes de jazigos, motivo pelo qual são identificados nesta data um elevado número de túmulos importados, na maioria dos marmoristas Francisco, Germano e Cesario Salles, de Lisboa. Dos numerosos túmulos monumentais procedentes dos marmoristas lisboetas, há uma quantidade maior entre os anos de 1855 e 1870. Para a confecção desses túmulos foram gastas enormes fortunas, com riqueza de materiais em mármore, com ornatos em folhas de acanto e de liz; retratos de porcelana; alegorias e epígrafes sob a forma de acróstico; urnas funerárias com garra e bola; caveiras com tíbias; figuras de anjos orantes e mãos postas; anjos sexuados; urnas funerárias; ânforas; caveiras com tíbias em santor; cruzes góticas; colunas partidas; globos; corujas; guirlandas; festões, etc. Há túmulos e capelas neo-góticas pertencentes a famílias que deixaram de existir ou as abandonaram, cabendo a sua manutenção à administração da Santa Casa de Misericórdia, que, na atualidade, inseriu a necrópole como parte do circuito turístico de Salvador. Particularmente neste cemitério não foi realizado um estudo sobre a História e Memória preservadas no mármore dos túmulos importados de Lisboa; fato este revelado pelo pesquisador Francisco Queiroz, afirmando não possuir ainda informações dos arquivos da Alfândega brasileira, acerca desses monumentos funerários. As pesquisas realizadas no Cemitério do Campo Santo aprofundam as questões lançadas na dissertação de Mestrado de Cibele Mendes (2007) sobre os Cemitérios do Convento de São Francisco e Venerável Ordem Terceira do Carmo, ambos localizados em Salvador – Ba; em que foram identificados túmulos e artistas, também, provenientes de Portugal. O Cemitério do Campo Santo perpetua o status quo das famílias baianas, através do mármore dos seus túmulos, dado o vínculo que mantêm com as representações do luto, alicerçadas no discurso religioso, moral e econômico da sociedade baiana do século XIX, tornando-se necessária uma maior reflexão da História e Memória perpetuadas no mármore, bem como a análise iconográfica e iconológica desses monumentos. As construções de rara beleza existentes neste Cemitério partiram de uma nova dimensão social, surgida no âmago da sociedade baiana e católica do século XIX, que convencida a mudar suas tradições, em detrimento das teorias de higienização e urbanização, transferiram das igrejas para os túmulos do cemitério extra-muros, os seus anseios de reconhecimento e ostentação. O cerne desta Pesquisa está situado nos túmulos e mausoléus importados de Lisboa, num período em que a mudança dos enterramentos das igrejas para fora dos muros da cidade implicou numa mudança de atitudes, práticas e representações, expressos através da opulência dos monumentos funerários, eternizando um momento, um desejo, um pedido, estilo e /ou padrão. Esta pesquisa objetiva identificar os túmulos importados de Portugal e confeccionados pela Família Salles, analisando as influências históricas que impulsionaram a construção de determinados estilos de túmulos, bem como a distinção das atitudes e práticas como representações advindas da mudança de mentalidade da Europa. Dessa forma, acredita-se possível alcançar uma visão mais ampla e aprofundada dos aspectos históricos, econômicos, políticos, sociais e culturais implicados nesse tipo de procedimento artístico, buscando contribuir para preencher algumas lacunas na historiografia da arte fúnebre baiana, embasada nos postulados da História das Mentalidades e das Artes. Pela sua riqueza iconográfica é possível identificar convenções criadas, sentimentos e motivos de uma época, elementos componentes de uma ideologia; mitos e idéias capazes de estimularem uma atividade social, aspectos mentais representativos do cotidiano, questões de saúde, enfermidade e morte. Em termos gerais, esta pesquisa propõe decifrar a realidade do passado baiano, por meio das representações fúnebres, identificando atitudes e intenções dos homens que as construíram, imprimindo diferentes entendimentos. Os cuidados no trabalho com este tipo de fonte são muitos, pois as imagens são fontes que se dão aos mais diversos tipos de leitura e interpretação, assim, uma mesma imagem pode ter seu significado mudado de acordo com o tipo de olhar que é lançado sobre ela. Deve-se sempre ter em mente também que a imagem não se esgota em si mesma. O historiador que utiliza a imagem como fonte histórica precisa enxergar além da imagem, ler suas lacunas, silêncios, decifrar seus códigos. As imagens são representações do mundo elaboradas para serem vistas. Como afirma Pesavento 7: “As imagens estabelecem uma mediação entre o mundo do espectador e do produtor, tendo como referente a realidade, tal como, no caso do discurso, o texto é mediador entre o mundo da leitura e o da escrita. Afinal, palavras e imagens são formas de representação do mundo que constituem o As imagens estabelecem uma mediação entre o mundo do espectador e do produtor, tendo como referente a realidade, tal como, no caso do discurso, o texto é mediador entre o mundo da leitura e o da escrita. Afinal, palavras e imagens são formas de representação do mundo que constituem o imaginário”. Dessa forma pode-se perceber que a imagem serve como elo entre o tempo de seu produtor e o tempo de seu observador, transmitindo conceitos e modos de ver e entender a vida, permitindo conhecer como o mundo seria visto por outras culturas de outras temporalidades. Como visto, a abordagem culturalista entende a cultura como sendo socialmente construída através da escolha de determinados símbolos e representações para explicar a visão de mundo, os valores, enfim, a realidade de um determinado povo situado no espaço e no tempo. Assim Chartier 8, na introdução de seu livro “A História Cultural”, apresenta uma excelente definição para esta história: “A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objecto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa desse tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito às classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. Variáveis consoante as classes sociais ou os meios intelectuais, são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado”. Ainda na introdução de seu livro 9, salienta a importância de se perceber que “as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam”. Nesta pesquisa são utilizados como fontes os monumentos funerários, sob a metodologia proposta por Erwin Panofsky, no seu livro “Significado nas Artes Visuais”, em que propõe que a análise de um objeto visual seja feita seguindo alguns passos, quais sejam: a descrição pré-iconográfica (e análise pseudoformal); a análise iconográfica, no sentido mais estrito da palavra; e a interpretação iconológica, em sentido mais profundo. O primeiro passo na apreensão do significado dos objetos visuais é dado a partir de sua precisa descrição e distinção dos objetos e elementos que constituem a obra a ser analisada. Obedecendo a esses passos o pesquisador reconhecerá o que é denominado por Panofsky 10 como o momento da identificação do tema natural ou primário, apreendido, (...) pela identificação das formas puras, ou seja, certas configurações de linha e cor, ou determinados pedaços de bronze ou pedra de forma peculiar, como representativos de objetos naturais tais que seres humanos, animais, plantas, casas, ferramentas e assim por diante; pela identificação de suas relações mútuas como acontecimentos, e pela percepção de algumas qualidades expressionais, como o caráter pesaroso de uma pose ou gesto, ou a atmosfera doméstica e pacífica de um interior. O mundo das formas puras assim reconhecidas como portadoras de significados primários ou naturais pode ser chamado de mundo dos motivos artísticos. Uma enumeração desses motivos constituiria uma descrição pré-iconográfica de uma obra de arte. Feita essa primeira etapa, onde se identifica a expressão contida no objeto a ser analisado, busca-se o conteúdo secundário ou convencional, que consiste na relação existente entre o objeto já identificado e o tema ou conceito específico que ele representa. Para tal é necessário o conhecimento de fontes literárias que possibilitem a compreensão do processo civilizatório em que o objeto visual foi produzido. Nessa etapa a utilização de grandes dicionários e enciclopédias torna-se indispensável para a identificação e familiarização com os temas e conceitos retratados no objeto visual. Realizada essa segunda etapa, resta a interpretação iconológica, que consiste na procura do que Panofsky chama de significado intrínseco ou conteúdo propriamente dito do objeto visual que consiste na descoberta dos valores simbólicos deste objeto. Para ele, uma, (...) interpretação realmente exaustiva do significado intrínseco ou conteúdo poderia até nos mostrar técnicas características de um certo país, período ou artista (...) são sintomáticos de uma mesma atitude básica, que é discernível em todas as outras qualidades específicas de seu estilo. Ao concebermos assim as formas puras, os motivos, imagens, estórias e alegorias, como manifestações de princípios básicos e gerais, interpretamos todos estes elementos como sendo o que Ernest Cassirrer chamou de valores ‘simbólicos’. Para Panofsky 11, a análise de um objeto visual deve partir da sua descrição e correlação com o significado intrínseco e sua função naquela sociedade, transformando-o em registro de uma época. A realização destas etapas chega-se ao ponto em que o objeto visual, descrito, identificado e decodificado, passa a explicar, em conjunto com outros documentos ou solitariamente (no caso de ser ele o único registro restante), o momento histórico, a conjuntura em que foi concebido, finalidades e objetivos. Notas: 1 REIS, J.J. A morte é uma festa, 1998, p.274-276. 2 Ibid. Ibidem, p. 288. 3 COSTA, Paulo Segundo da. Campo Santo: Resumo Histórico. Salvador: Contexto Arte Editorial LTDA, 2003. pp. 62-65; 68. 4 BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890–1930): oficio de marmoristas italianos em Ribeirão Preto. Funerary Art in Brazil (1890-1930): Italian Marble Carver Craft. In: Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002, p.144. 5 VALLADARES, C. do P. Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. Um estudo da arte cemiterial ocorrida no Brasil desde as sepulturas de igrejas e as catacumbas de ordens e confrarias até as necrópoles secularizadas. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972, v. 1. pp. 1.313 – 1.325. 6 COSTA, Paulo Segundo da. Campo Santo: Resumo Histórico. Salvador: Contexto Arte Editorial LTDA, 2003. pp. 101-102. 7 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, (Coleção História &.Reflexões), 2003, p. 86. 8 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 17. 9 Ibid.Ibidem, p. 17. 10 PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 50. 11 Ibid.Ibidem, p. 53. Referências bibliográficas: BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890–1930): oficio de marmoristas italianos em Ribeirão Preto. Funerary Art in Brazil (1890-1930): Italian Marble Carver Craft. In: Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990. COSTA, Paulo Segundo da. Campo Santo: Resumo Histórico. Salvador: Contexto Arte Editorial LTDA, 2003. MENDES, Cibele de Mattos. Práticas e Representações Artísticas nos Cemitérios do Convento de São Francisco e Venerável Ordem Terceira do Carmo: EBA/ UFBA, 2007. PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, (Coleção História &.Reflexões), 2003. REIS, João José. A Morte é uma Festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1998. SILVA, Sérgio Roberto Rocha da. SABALLA, Viviane Adriana. Pelotas: A arte imortalizada. Pelotas. Ed. da UFpel, 1998. VALLADARES, C. do Prado. Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura – Departamento de Imprensa Nacional. 1972. Cemitério de Mucugê: em busca de uma identidade Cibele de Mattos Mendes Museóloga. Mestre em Artes Visuais EBA/ UFBA Profª. Substituta Escola de Belas Artes/UFBA Rafaela Caroline Noronha Almeida Graduanda em Museologia FFCH/ UFBA Marília Dourado Graduanda de História e Patrimônio IFCH/ UCSAL Resumo Este Projeto parte da observação de que o Cemitério de Santa Isabel, situado a noroeste da Cidade de Mucugê, no sopé de uma das elevações da Serra do Sincorá, tombado pelo IPHAN em 1980, possui um conjunto de mausoléus em alvenarias de pedra e /ou tijolos, revestidos de reboco e caiados, ornamentados com arcos e pináculos, semelhantes a miniaturas de igrejas e capelas, sendo denominado pela população de “Bizantino”; constituindo-se num rico acervo artístico representativo de práticas religiosas e sócio-culturais referentes às interpretações da morte, não suficientemente estudado nos meios acadêmicos, do que representa de preservação da memória visual da cidade de Mucugê, no quesito arte funerária. Palavras – Chave: Cemitério. Identidade. História Esta pesquisa parte da observação de que o Cemitério de Santa Isabel, tombado pelo IPHAN em 1980, situado a noroeste da Cidade de Mucugê, no sopé de uma das elevações da Serra do Sincorá. A cidade de Mucugê localiza-se numa latitude 13º00'19" sul e, a uma longitude 41º22'15" oeste, apresentando uma altitude de 983 metros, com um clima ameno de 19º C em média, ao ano. Encravada na Chapada Diamantina, em meio a grandes serras, grutas, abismos e rios, distando 458 km de Salvador. A população do município foi estimada em 2006, em 16.124 habitantes, com área de 2491,82 km². Seu nome é originário de uma fruta comum na região, servindo de alimento para os índios, o chamado mucugezeiro, que se encontra em extinção (Couma rigida). Situada nos vales dos rios Paraguaçu e de Contas, e com território inteiramente incluído no “polígono das secas”, limita-se com os municípios de Andaraí, Barra da Estiva, Palmeiras, Piatã e Rio de Contas. Sua topografia é acidentada, atravessando a Cordilheira da Chapada Diamantina na parte da Serra de Sincorá. A cidade de Mucugê está numa baixada entre serras da Chapada Diamantina, tendo em cada extremidade da rua principal uma igreja. O município possui duas igrejas e onze capelas. Mucugê passou a ser Comarca através do Decreto Lei n° 512, de 19 de junho de 1943. Destaca-se por ter sido provavelmente o berço do ciclo do diamante na região, onde foram identificadas as primeiras pedras de diamante no rio Cumbuca, tornando a cidade um importante centro urbano com contato com a cultura européia. Nesta época, o município chegou a abrigar mais de 25 mil pessoas, cujos ocupantes eram sepultados no interior da Igreja de São João Batista. Por várias vezes, a cidade mudou de nome: Foi conhecida como Santa Isabel do Paraguaçu, depois como São João do Paraguaçu, mas preservou o nome de Mucugê, uma cidade pequena, compreendendo seis ruas principais, típicas de um local sem planejamento para o uso de veículos com rodas (FUNCH, 1997, p.114). Oficialmente fundada em 1844 pouco tempo depois, passou a abrigar uma população flutuante de 12.000 pessoas, lideradas por senhores de grandes posses vindos de Minas e Europa com suas famílias e riquezas. Pessoas de vários locais do país e estrangeiros (árabes, judeus, franceses) misturavam-se com centenas de escravos vindos da África. Desmembrada da cidade de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas, muda seu nome para Freguesia de São João do Paraguaçu, voltando se chamar Mucugê em 1917. Na tentativa de controlar o caos da concentração urbana, os "homens importantes" da região (sempre os mais ricos) reuniam-se para discutir regras de crescimento e convívio social. Foram tentativas quase sempre frustradas de regular o tamanho das construções, as medidas usadas no comércio e até a limpeza das ruas. Quem atirasse lixo no chão, seria multado e preso por cinco dias. Já na década de 1870 a exploração do diamante entra em crise, em parte pela descoberta de jazidas no sul da África, obrigando a região a buscar atividades alternativas. A criação de gado, explorada pelas tradicionais famílias locais, voltou a ser a principal fonte de renda de Mucugê, assim como o cultivo de café e cereais. Com a proibição oficial do tráfico de escravos, sua venda por preços até três vezes maiores também se tornou uma forma de compensar a escassez de diamantes. Este crescimento descontrolado causou diversos problemas e dificuldades sociais. Em busca do rápido enriquecimento, valia a lei das armas e do dinheiro. Jagunços matavam em nome de seus senhores, sempre ávidos por terras, escravos e, conseqüentemente, diamantes. Na tentativa de controlar o caos da concentração urbana, os "homens importantes" da região (sempre os mais ricos) reuniam-se para discutir regras de crescimento e convívio social. Foram tentativas quase sempre frustradas de regular o tamanho das construções, as medidas usadas no comércio e até a limpeza das ruas (quem atirasse lixo no chão podia ser multado e preso por cinco dias). A força e influência política dos coronéis ditavam as leis na cidade. Em 1926 foi a vez da Coluna Prestes, em campanha por todo território nacional, sentir a força das armas locais e ser expulsa da cidade. No entanto, a primeira metade do século XX trouxe uma definitiva decadência econômica para a região, que registrou um enorme êxodo populacional. A solução imediata foi explorar os campos de Sempre-Viva, planta que tem cerca de 400 variações nos campos rupestres da região. Exportada em grandes quantidades para a Europa como artigo de decoração, chegou a estar ameaçada de extinção. Também a fauna da região foi muito prejudicada pela caça indevida nessa época. O território deste município fez parte primitivamente, da vasta extensão territorial pertencente ao sargento-mor Francisco da Rocha Medrado, poderoso senhor de terras e escravos dos tempos provinciais, que estabeleceu aí fazendas de gado. Na atualidade, é conhecida por possuir uma necrópole com características de cemitérios do Mar Mediterrâneo, e que a população acredita tratar-se do estilo “Bizantino”. Este Cemitério foi tombado pelo IPHAN em 1980 e possui um conjunto de mausoléus em alvenarias de pedra e /ou tijolos, revestidos de reboco e caiados, ornamentados com arcos e pináculos, semelhantes a miniaturas de igrejas e capelas, sendo denominado pela população de “Bizantino”; constituindose num rico acervo artístico representativo de práticas religiosas e sócio-culturais referentes às interpretações da morte. Cemitério de relevante interesse arquitetônico, dividido em duas partes: uma plana, murada (situada sobre os terrenos de aluvião do vale), onde estão localizadas covas rasas; e outra, constituída por um conjunto de mausoléus, (implantados sobre a encosta rochosa da serra). Os sepultamentos realizados em Mucugê até o ano de 1855 foram realizados nas igrejas de São João Batista e de Santa Isabel, ou em suas proximidades, constituindo-se uma prática arraigada às tradições baianas. Porém, desde as determinações da Carta Régia de 1801, promulgada pelo Imperador D. Pedro I, em 1828, proibia-se os sepultamentos no solo dos templos católicos, recomendando-se a construção de cemitérios extra-muros. Mas, somente a partir de 1855, influenciados pelas teorias higienistas dos miasmas e a ocorrência da Epidemia do Cólera em Salvador, atingindo também a população mucugeense, os sepultamentos passam a ser realizados fora dos muros da cidade. A ameaça da Epidemia do Cólera espalhou-se pelo Brasil e, procurando-se seguir as instruções médicas, o lugar escolhido para a construção do cemitério seria “fora da cidade, longe de fontes d’água, em terrenos altos e arejados, onde os ventos não soprassem sobre a cidade e murados para evitar a entrada de animais (REIS,1991, p. 338). Na Ata da Câmara Municipal de Santa Isabel do Paraguaçu, a 1º de outubro de 1855, está registrada “para evitar a terrível epidemia de Cólera Morbus, que nos parece ameaçar”, a contratação de um médico para o município: Francisco de Paula Soares. Coube a ele em assistência ao delegado e ao reverendo vigário, uma vistoria para definir o local do cemitério público, que seria feito às custas da municipalidade. No dia seguinte, tamanha era a urgência e o pavor da epidemia, que o registro do local já consta na Ata: a comissão comunica à mesa que havia encontrado um local ideal, perto da “Biquinha” (CORREIO DA BAHIA, 03 de set. de 2006). A construção do Cemitério se prolongou por mais de trinta anos, reunindo construções de rara beleza, cuja concepção partiu de uma nova dimensão social surgida no âmago da sociedade mucugeense e católica do século XIX, que procurou mudar o foco do ritual fúnebre, transferindo para os túmulos os seus anseios de reconhecimento. O seu caráter é coletivista, o que resulta numa certa uniformidade dos conjuntos artísticos desde os túmulos com datação mais antiga até os construídos na atualidade. Há uma harmonia singela na arquitetura modular e, originalmente nas soluções decorativas, o que pode também ser observado em cemitérios das cidades vizinhas, como o cemitério de Igatu, no distrito de Andaraí, que está passando por um processo de intervenção. Ao redor da Capela de São Sebastião, existe um cemitério semelhante ao Cemitério de Santa Isabel, no que se refere à implantação e tratamento dado aos mausoléus. Para esta pesquisa foram secionados 342 mausoléus, em detrimento das covas rasas, posto que os mausoléus, apresentam formas, representações e composições com características próximas às das Capelas existentes na região e, possivelmente, correspondem a um padrão estético e estilístico a ser identificado. Os mausoléus foram selecionados, por serem categorias de construções de grande porte, que comportam sepultamentos primários, secundários, podendo ser efetuados em caixões ou urnas. Podem, também pertencer a vários indivíduos, de uma mesma família, grupo, organização, entidade civil ou religiosa. Os mausoléus do Cemitério de Santa Isabel de Mucugê correspondem, tanto, uma capela, por apresentarem uma arquitetura eminentemente religiosa e cristã, como também, um monumento, porque correspondem a uma homenagem ao falecido. A estatuária fúnebre é quase inexistente neste cemitério, e quando presente é dependente do mausoléu. Há ornatos, arcos e ogivas, bem como formas piramidais No entanto, os dados obtidos, não permitem estabelecer comparações com a arquitetura bizantina, sendo necessário, portanto, aprofundar as pesquisas através de documentação secundária e entrevistas a profissionais, que, na atualidade, mantém o mesmo tipo de construção funerária. Referências Bibliográficas CATHARINO, José Martins. Garimpo, Garimpeiros, Garimpagem, Rio de Janeiro: Philobiblion. Salvador: Fundação Econômico Miguel Calmon, 1986. DERBY, Orville Adalbert. Lavras Diamantinas. Relatório apresentado ao Secretário da Agricultura do Estado da Bahia. Boletim da Secretaria da Agricultura, Viação e Indústria e Obras Públicas do Estado da Bahia, nº. 30. Mining Magazine, XII. nº. 2, New York, Economic, Geologic, I, nº.2, Urbana Estados Unidos, Smilhsonian Reporter for 1906. FUNCH, Roy. Um Guia para o visitante da Chapada Diamantina. O Circuito do Diamante. O Parque Nacional da Chapada Diamantina Lençóes, Palmeiras, Mucugê, Andaraí. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo: EGBA, 1997. GUIMARÃES, Archimedes P. As Lavras Diamantinas. Separata da Revista Gemologia, Ano II, nº. 8. 1/7, 1957. NETO, Otoniel Neto. Theodoro Sampaio e a Chapada Diamantina. Trechos da Expedição de 1879/1880. Brasília: Ed. Do Autor, 2005. SAPUCAIA, Roberto. Trilhas e Caminhos. Guia Turístico e do Meio Ambiente. Salvador: Secretaria d Cultura e Turismo do Estado da Bahia, 1997. SALES, Fernando. Memória de Mucugê. Salvador: EGBA, 1994.SAMPAIO, Theodoro. O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina. Bahia: Ed. Cruzeiro, 1938. TEIXEIRA, Cid. Mineração na Bahia. Ciclos históricos e panorama atual: Salvador: Secretaria da Indústria e Comércio e Mineração, 1998. Construindo um conceito e um inventário: Espaços Cemiteriais Claudia Helena Campos Nascimento. Arquiteta e Urbanista, especialista em Semiótica e Artes Visuais. Técnica em Gestão Cultural do Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural da Secretaria de Estado de Cultura do Pará. Resumo O texto se propõe a discutir o cemitério como conceito suficientemente amplo, abrangente e preciso, de forma a suprir as demandas da diversidade cultural do estado do Pará. Palavras-chave: Patrimônio cultural paraense, Cemitérios, Metodologia de inventário Um dos principais desafios ao se construir um instrumento de inventário é torná-lo suficientemente específico para não suprimir informações essenciais, porém abrangente de forma a atender às demandas que se associam à temática. O Projeto Inventário do Patrimônio Cultural do Estado do Pará, desenvolvido pelo Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural, através da Diretoria de Patrimônio da Secretaria de Estado de Cultura (DPHAC/DPAT/SECULT), visa constituir um corpo de informações sobre a diversidade cultural do estado em seus múltiplos aspectos, com o objetivo de identificar, registrar e divulgar o patrimônio cultural paraense em sua diversidade. Uma das questões a se considerar na construção destes instrumentos, para todas as temáticas propostas – arquivos, documentação e bibliotecas; artes cênicas; artesanato; artilharia; azulejos; bens imóveis e patrimônio industrial; bens móveis; cemitérios; comunidades tradicionais; espaços culturais; literatura; manifestações culturais: celebrações, formas de expressão e saberes; monumentos; música; patrimônio natural; sítios arqueológicos; tesouros humanos – era abarcar a diversidade cultural das manifestações, de um território como o Estado do Pará, de múltiplas influências, fugindo da visão centralizada, a partir da realidade da capital e sua identidade, promovendo a preservação do patrimônio cultural paraense, compreendido em sua amplitude de atuação através de ações para a salvaguarda, conservação, valorização, reconhecimento e apropriação da memória, identidades, diversidade étnica, 1 social, cultural e ambiental do homem amazônico, permitindo a ampliação da compreensão dos seus múltiplos aspectos formadores.1 No que tange ao tema cemiterial, a tendência a se considerar a tipologia colonial e posterior, especialmente a dos cemitérios construídos entre os séculos XVIII e XX como referência, é reforçada pela existência de alguns espaços cemiteriais onde a imponência de seus túmulos nos conduz a um universo de sintaxes plásticas e históricas ricas, dignas de uma sistematização minuciosa. Neste sentido é fonte de atenção em vários segmentos o Cemitério de Nossa Senhora da Soledade2, em Belém. Por sua localização, na área central da atual Belém, é foco e vítima de ações depredatórias e, por isto, fragilizado em sua condição de guardião da memória pretérita. Outro aspecto cultural relevante na Amazônia é a força mitológica e folclórica das construções do imaginário popular. Não esqueçamos que a própria denominação do território amazônico se deve a uma dessas lendas, quando frei Gaspar de Carvajal, escrivão da frota espanhola de Francisco Orellana, em sua viagem de desbravamento dos sertões da América, registrou a presença das chamadas Icamiabas3. Porém um sem-número de lendas e relatos associados ao imaginário, tanto do Cemitério da Soledade quanto e especialmente do Santa Isabel, também em Belém, circulam pelas ruas de Belém. Muitos destes temas foram e vem sendo trabalhados por artistas locais de várias linguagens4. Fora o complexo de manifestações de culto popular, inerentes a estes espaços, que dão ao dimensões espaço além cemiterial de sua Fotos da performance dos artistas Armando Queiroz e Lilo Karsten no Cemitério da Soledade, com desmembramento na exposição Revendo Anastácia, na Galeria Theodoro Braga, em abril de 2007. materialidade e historicidade. Como foi dito anteriormente, contudo, embora a riqueza simbólica destes espaços seja grande, tratar um inventário partindo da tipologia do Soledade e do Santa Isabel seria restringir a visão de cemitérios, reafirmando o modelo europeu. Sendo assim, uma discussão mais ampliada do espaço cemiterial 2 seria necessária para atingir de forma satisfatória a complexidade que o tema requer. O QUE É UM CEMITÉRIO? Esta é a primeira pergunta que devemos fazer para iniciar uma discussão que nos permita conhecer o tema. Quando usamos o termo “cemitério”, podemos fazer dois tipos de associação: a semântica e a lógica. A primeira remete-nos a etimologia do termo5, dentro do conceito cristão de campo de descanso após a morte e como referencial cultural de espaço constituído para tal a partir dos últimos anos do século XVIII. O cemitério é, então o espaço destinado exclusivamente ao sepultamento, distante dos núcleos urbanos, a fim de evitar os miasmas, de acordo com os conceitos sanitaristas em voga na época. A outra leitura possível do termo nos remete à lógica de uso e função primordiais destes espaços, isto é, de sepultamento humano. Em ambos os casos, o papel cultural e testemunhal dos cemitérios nos revela signos, não só construções simbólicas e alegóricas de mausoléus, mas no próprio processo de destinação dos restos humanos. No processo de construção dos instrumentos de levantamento de dados do Inventário do Patrimônio Cultural do Estado do Pará, o impulso no sentido do levantamento simbólico, artístico e histórico dos cemitérios patrimoniais, mormente àquela tipologia a que faz referência sua semântica, precisava ser revista para atender à visão ampliada de uso e tipos de configurações dos espaços cemiteriais. Não se poderiam negar os processos históricos plurais da cultura paraense, conduzindo o referido inventário a uma visão fragmentada, fortalecendo a construção etnocêntrica e do colonialismo cultural. Desta forma, o conceito de cemitério foi tratado como todo território delimitado onde pudessem ser encontrados restos mortais humanos, intencionalmente depositados. Este conceito poderia atender a um universo cultural múltiplo, desde as culturas pré-cabralinas até sítios de sepultamentos políticos, onde a maneira de deposição dos corpos, a presença ou ausência de representações associadas também denunciam aspectos históricos e culturais referentes àquela cena. Desta forma, embora o cemitério seja um conceito eurocêntrico, expressões 3 como “cemitério indígena” ou “cemitério quilombola” não seriam contraditórias, mas interfaces culturais. Nestes sítios teríamos signos de vários níveis para interpretação e entendimento. Nesta linha de raciocínio, o conceito de Cemitério Patrimonial foi ampliado como a área ou conjunto de enterramentos/ sepultamentos que configuram uma unidade simbólica que revela a partir de seus índices6 - formas de deposição, de distribuição, de tratamento dos mortos – informações sobre o contexto histórico e cultural, sendo assim testemunho, registro e memória. Não importa, a princípio, o tratamento simbólico e plástico de suas tumbas, mas o próprio procedimento de sepultamento, trazendo em si conjunto de informações que se constituem em bem patrimonial. O documento físico de um sítio cemiterial é potencialmente fonte de informação e referência para pesquisa, mesmo que ele não se configure como um cemitério, etimologicamente falando. CONFIGURAÇÕES HISTÓRICAS DOS SÍTIOS CEMITERIAIS NO PARÁ A geologia do solo amazônico não é das mais propícias à manutenção de traços arqueológicos de matéria orgânica por conta da alta umidade, fluxo e refluxo dos grandes rios e sedimentação muito recente, embora existam registros de inumações que remontam 1.500 anos atrás e a presença de sambaquis na costa nordeste do estado7. Contudo, os sepultamentos são elementos fundamentais na caracterização histórica e cultural paraense. Os povos pré-cabralianos marajoaras e tapajônicos nos legaram um enorme acervo icônico através de suas cerâmicas, que os estudos registram terem usos os mais diversos. Os grandes vasos repletos de símbolos característicos eram utilizados como urnas e são elementos do imaginário e do culto à morte destes povos. Assim como alguns povos da Idade Antiga, o sistema de sepultamento dos povos amazônicos trazia em si um processo ritual e simbólico. Inicialmente era feito o sepultamento primário, com a deposição do corpo diretamente ao solo. Depois da decomposição, o sepultamento secundário nas urnas decoradas, onde além dos ossos eram depositados outros apetrechos. O acervo arqueológico do Museu Paraense Emílio Goeldi mantém algumas peças do acero marajoara8, inclusive contas de vidro e fibras, 4 que foram mantidas no interior dessas urnas cerâmicas, o que permitem novas leituras do processo de colonização do continente americano. Com a colonização européia, especialmente a lusitana no estado do Pará, o processo de sepultamento seguiu os mesmos padrões das demais colônias. O sepultamento associado a templos, especialmente igrejas e conventos, sendo feitos no seu interior ou em seus arredores. Muitos desses sepultamentos careceram de registros, ou o perderam. Entre estes casos destaca-se o do arquiteto italiano Antônio Landi9, que fez de sua obra e devoção o seu mausoléu. Tendo projetado, construído e custeado parcialmente a Igreja de Sant’Anna10, santa de sua devoção, faleceu em 22 de junho de 1791 em sua fazenda no Murutucu, arredores de Belém, aos 78 anos, havendo indícios históricos de seu sepultamento naquele templo, porém não há registros precisos da localização de seus restos mortais. Outro padrão de sepultamento comum do período colonial é em campossantos anexos a igrejas. No interior do Pará é possível encontrar essa situação. Em Belém existem registros arqueológicos da antiga Igreja do Rosário dos Homens Brancos, no Largo do Carmo, onde foram identificados em pesquisa arqueológica sepultamentos tanto no interior quanto na área externa dos alicerces do antigo templo. No segundo quartel do século XIX, os ventos libertários da Europa e América do Norte começaram a soprar no Brasil. No Pará culminaram no que ficou conhecido como Movimento da Cabanagem11, que se tornou um marco histórico e cultural que permeia o imaginário local. Entre os eventos que antecederam a tomada do poder provincial pelos cabanos, a Tragédia do Brigue Palhaço é registrada por Raiol12 da seguinte forma: O problema foi o destino dos 256 paraenses, soldados e civis, presos na noite de 16 de outubro de 1823 e que se encontravam nos subterrâneos da cadeia. Sob pretexto de que as prisões em terra não podiam contê-los, a junta Governativa requisitou que os presos fossem transferidos para bordo do brigue chamado “Palhaço”. Os presos foram removidos e lançados, como lixo humano, no porão do navio. O calor, a falta de ar, a sede insuportável, cal derramado e talvez o envenenamento da água, provocaram uma asfixia geral. Depois de três horas de suplício e de agonia generalizada, reinou o porão o silêncio dos túmulos. 13 5 Pesquisas recentes do historiador João Lúcio Mazzini da Costa dão conta que estes corpos foram enterrados em cova rasa nos arrabaldes de Belém à época, na área conhecida atualmente como Miramar14. Vários relatos indicam o aparecimento de ossadas em construções nesta e em outras áreas. Por se tratar de movimento anti-legalista, os revolucionários, se não combatidos e sepultados nos próprios campos de batalha ou em situações como o Penacova15, o eram em seu exílio em postos de resistência no interior do estado. Para reforçar a segurança desses focos de resistência, muitos sepultamentos, neste caso, eram feitos de forma singela. Por conta da fragilidade da pesquisa histórica, cuja bibliografia de referência foi produzida pelo segmento que combateu os Cabanos, algumas situações têm sido objeto de questionamento do resgate dos marcos cemiteriais da Cabanagem. Um deles é por conseqüência da falta de referenciais: é lugar-comum atribuir à Cabanagem qualquer achado de ossada, às vezes com desconhecimento do espaço geográfico onde ela se desenvolveu, isto é, no nordeste do estado do Pará. Outro motivo são os vínculos históricos-políticos que fazem do tema uma vaga que vem à tona, ou é obscurecida, dependendo do perfil político vigente. Culturalmente ainda é francamente observável esta dicotomia social – que no passado constituiu-se em territórios e oposições que culminaram na Revolução Cabana. Paralelamente a este contexto político local soma-se a comoção provocada pelo aumento de falecimentos provocados pelos surtos que assolaram a capital, Belém, no final do XIX. Nem os templos nem a visão higienista suportavam mais que as igrejas abrigassem os mortos. A bem da verdade, este era um problema da burguesia católica, visto que aos pobres e escravos era dada outra solução. No Largo da Pólvora eram sepultados os negros e aqueles que, por sua condição, não eram contados como “almas”. Era um lugar distante da Cidade, próximo aos principais caminhos mata adentro e das bicas, onde os escravos e serviçais passavam diariamente em sua faina de servir. Atualmente este espaço é denominado Praça da República, no Centro Histórico de Belém. Outros grupos se instalavam no Pará e construíram suas necrópoles. A sinagoga Shaar Hashamaim (A Porta do Céu), em Belém do Pará, logo depois de proclamada a Independência, é o marco do judaísmo livre em solo 6 brasileiro. Também foi em terras paraenses que começou no Brasil a Igreja Anglicana, com o primeiro missionário anglicano, Richard Holden, vindo dos Estados Unidos para atuar como capelão, em 1860. Em 1912, o Reverendo Moss, também americano, chega ao Pará, fundando a Catedral de Santa Maria sobre um cemitério britânico. Nos arredores das necrópoles israelita e anglicana é construído o Cemitério Nossa Senhora da Soledade, um pouco além do Largo da Pólvora, conhecido como cemitério mais antigo do Pará16. Neste que é o maior ícone do patrimônio cemiterial do estado, foram sepultados indistintamente negros, brancos, senhores e serviçais. Contudo, as diferenças entre classes, poderes, raças e condições, também se estabelecem visivelmente no espaço do Soledade através da partição dos quadrantes das irmandades e da imponência dos mausoléus da aléia principal. Um novo padrão simbólico se estabelece, em contraste às outras formas culturais de sepultamento, e mesmo entre outros modelos católicos. Mas é interessante observar que, entre panteões e mausoléus de heróis da Guerra do Paraguai, como general Henrique Gurjão, políticos eminentes e outros nomes importantes, abatidos pela febre amarela ou pela cólera17, são sepulturas de anônimos e viventes comuns que mantém a vida naquele lugar: a do menino Zezinho e o túmulo anônimo onde é feita escrava a adoração Anastácia, à toda segunda-feira, no culto às almas. O culto às almas faz de outros cemitérios que surgiram posteriormente pontos de referência. É o caso do Cemitério de Santa Isabel (1873), que foi construído com configuração Soledade. Sua a mesma tipológica distância do do Imagem do vídeo de animação Visagem! A primeira animação em stop-motion feita no Pará. Ficha Técnica: Livre adaptação da obra de Walcyr Monteiro Direção e Produção de Roger Elarrat Roteiro de Adriano Barroso Modelagem Nelson Nabiça Fotografia e câmera Adalberto Junior Trilha original de Leonardo Venturieri Duração de 11 minutos. centro era ainda maior, porém os limites de Belém também se ampliam. Com o fechamento do Soledade ele é inaugurado, vindo a suprir a demanda18, sendo este muito maior. Além de 7 também possuir acervo escultórico relevante, este cemitério ainda em funcionamento, tem personagens de culto popular como o médico Camilo Salgado (1874-1938), cujo túmulo tornou-se uma espécie de santuário19 e da chamada “Moça do Táxi” 20 , que diz passear pelas ruas de Belém à noite, de táxi. Não esqueçamos ainda os sítios recentes, de enterramento de militantes políticos, como por exemplo da Guerrilha do Araguaia 21 (década de 1970), no sul do estado do Pará, que também se configurariam como espaços cemiteriais, portadores de informações valiosas para a compreensão de nossa história. INTERFACES DE UM INVENTÁRIO Entre tantos aspectos que o Projeto Nossas Memórias: Inventário do Patrimônio Cultural do Estado do Pará visa alçar, a temática cemiterial se constituirá em um acervo informacional especial. Contudo não há como desconsiderar as interfaces que se fazem. Não podemos perder o foco de que, entre os temas que serão tratados individualmente, várias relações se estabelecem. É mais clara a interseção entre a História, a Arqueologia, as Artes Visuais, entendidas no registro escultórico e simbólico dos mausoléus. Mas para entendermos o texto cultural22 em sua totalidade, constituído em fios de discursos entrelaçados, o instrumento do inventário só seria útil se pudesse fragmentar e agrupar tematicamente os conteúdos, de forma a permitir que as interfaces se construíssem de acordo com a situação. Assim sendo, o inventário de cemitérios, assim como as demais fichas, deverá indicar, caso a caso, as inter-relações possíveis e estudadas, de maneira que o registro não se restrinja ao conteúdo da ficha, mas, de forma dinâmica, se construa e reedifique de acordo com a abordagem da pesquisa. Cremos que a riqueza cultural do estado do Pará é maior que qualquer estudioso é capaz de prever, assim como a capacidade de reinterpretação constante das manifestações, espaços e signos. Contudo acreditamos também na construção de um processo de sistematização consistente, capaz de responder à multiplicidade de manifestações culturais, materiais e imateriais, que fazem o duo corpo-e-alma paraense. 8 1 “A percepção do olhar sobre o patrimônio cultural, evoluiu da visão monumentalista da preservação, quase que exclusivamente identificada pelos exemplares arquitetônicos pautados nos valores de antiguidade, histórico e artístico para o reconhecimento do arcabouço que envolve o monumento, incorporando o encontro paisagístico e antropológico para além dos bens materiais. Essa apreensão reforça a importância dos processos de criação e manutenção do conhecimento sobre os seus produtos, isto é, enfatizando que interessa mais como patrimônio o conhecimento, o processo de criação e o modelo, do que propriamente o resultado, embora este seja sua expressão material sobre o produto. Diante disto, é importante destacar que a construção da identidade cultural de um povo é resultante de um processo histórico e dinâmico, de um conjunto de criações que se fundem diante das diferentes necessidades e interesses, costumes e valores assimilados e transmitidos por uma dada população, grupo ou comunidade em seu tempo e espaço, bem como das contribuições que se somam continuamente nos processos de trocas e acumulações históricas, sociais e culturais. A política cultural deve ser pautada na democratização e disseminação dos saberes, bem como, no reconhecimento das diversidades e valorização das comunidades tradicionais. A consolidação da participação da sociedade é incentivada através dos fóruns, conferências, congressos e seminários. O acesso tanto aos saberes quanto aos incentivos devem ser democratizados e universalizados, construídos de forma participativa e efetiva pela sociedade.” Texto-base dos Programas de Patrimônio Cultural da SECULT. Fonte: Arquivo digital do DPHAC/DPAT/SECULT. 2 Por conta da epidemia da febre amarela que assolou Belém, em 1850 foi determinada a construção do Cemitério de Nossa Senhora da Soledade, sendo então governador o Conselheiro Jerônimo Francisco Coelho, sendo responsável pela mudança de mentalidade quanto aos anteriores enterramentos nas igrejas, adros ou em cemitérios a ela anexos, estabelecendo pela Resolução nº. 181, de 9 de dezembro de 1850, a obrigatoriedade do enterramento no Cemitério Público de todas as pessoas falecidas na cidade de Belém do Pará. Desde 1880 não há mais enterros no Soledade, que abriga hoje 444 túmulos.O Soledade é tombado pelo município de Belém, através da Lei Municipal 7.709 de 18 de maio de 1994 e pelo IPHAN, com data de 23 de janeiro de 1964, por conseqüência ao movimento de mobilização surgido posteriormente ao artigo do eminente historiador Mário Barata, publicado em 29 de dezembro de 1963, no jornal "A Província do Pará" (ver http://www.hcgallery.com.br/cemiterio_1.htm). O Soledade é o mais antigo cemitério construído no Pará. Várias intenções visam à sua valorização, inclusive transformando-o como núcleo de documentação e memória, museu escultórico, e outras. Foi objeto de vários projetos e estudos, contudo pouco ou quase nada de intervenção. É atualmente um próprio municipal administrado pela Fundação Cultural do Município de Belém. 3 Icamiabas = mulheres guerreiras e sem marido. Cavajal teria feito uma construção imagética das Amazonas a partir do mito grego da Capadócia, que não encontra respaldo histórico até os dias de hoje. 4 Podemos citar que, apenas na Galeria Theodoro Braga, da Fundação Cultural Tancredo Neves, em um ano, a temática dos cemitérios de Belém foram expostas nas linguagens escrita (produção do escritor Walcyr Monteiro, de sua série Visagens, Assombrações e Encantamentos da Amazônia), audiovisual (vídeo de animação em “stop motion” Visagem!, de Roger Elarrat, resultado da Bolsa de Pesquisa, Experimentação e Criação Artística do Instituto de Artes do Pará), plástica (performance e exposição de desenhos e objetos que culminaram na exposição Revendo Anastácia, dos artistas plásticos Armando Queiroz e a alemã Lilo Kasten) e fotográfica (exposição Cinzas, de Eduardo Souza, que buscou um cruzamento de registros do Pere La Chaise com o Soledade, porém restringindo a exposição apenas no primeiro). Deve-se registrar que o termo “visagem” é utilizado para o conjunto de manifestações sobrenaturais ou místicas que permeiam a cultura local, tais como fantasmas, almas ou lendas, como da Iara ou do Boto. Sobre alguns dos nomes citados podemos consultar http://pt.wikipedia.org/wiki/Walcyr_Monteiro; http://www.culturapara.art.br/artesplasticas/armandoqueiroz/index.htm;http://www.curtagora.com/filmografia.asp? Profissional=Roger%20Elarrat. 5 Do grego, “koimetérion”, que significa dormitório. 6 Entendidos sob a óptica da semiótica de Charles Saunders Peirce, para quem “tudo é signo”, porém em três níveis: os icônicos, os indiciais e os signos em sua totalidade. Desta forma, entender um sítio arqueológico cemiterial como unidade é aceitar a hipótese de que nele encontramos os três níveis de signo, com seus potenciais interpretativos e dimensões simbólicas em cada um destes níveis. 7 Conhecida como Costa do Salgado. 8 O povo marajoara é assim denominado por ter sua distribuição espacial na Ilha do Marajó, constituindo-se como sociedade complexa que ali viveu entre 400 e 1450 dC, aproximadamente. 9 Sobre Antônio Landi indicamos www.forumlandi.com.br, endereço eletrônico do projeto cultural da Universidade Federal do Pará que visa estimular os estudos a respeito deste artista que foi o precursor do estilo neoclássico no Brasil, anteriormente à vinda da Missão francesa e Grandjean de Montigny (Paris, 15 de julho de 1776/Rio de Janeiro, 2 de março de 1850), quando chega ao Brasil com a Primeira Comissão Demarcadora de Limites (1750). 10 Construção executada entre 1761 e 1782. Posteriormente outras intervenções lhe acrescentaram duas torres sineiras e outros elementos. Contudo o projeto original de Landi se insere no período citado. 11 A Cabanagem, como é também conhecida foi um movimento popular que tomou o poder provincial em 7 de janeiro de 1835, precedido de vários e sangrentos episódios. Em outubro de 1823, o povo revoltava-se contra a Junta Governativa, que se posicionava avessa à emancipação política do Pará, referendada na Proclamação da Independência do Brasil há mais de um ano. Essa revolta foi sufocada violentamente com fuzilamentos sumários em praça pública. Cônego Batista Campos, um dos principais líderes do movimento, foi preso e amarrado à boca de um canhão no Forte do Castelo, tendo sua pena sido suspensa a tempo. Contudo é o episódio conhecido com a “Tragédia do Brigue Palhaço” que poderíamos ilustrar a barbárie desses tempos e compreender o momento histórico na diversidade da pesquisa cemiterial. 12 RAIOL, Domingos Antônio. Motins Políticos. Belém:UFPA, 1970 (original de 1865). Por ter sido contada sob a óptica legalista, a história da Cabanagem sofreu distorções que somente a atenção e pesquisa têm permitido o olhara na perspectiva de seus autores. 14 Local conhecido como Sítio Penacova, de propriedade da Companhia Docas do Pará, antiga residência funcional dos presidentes da C.D.P.. 15 Apropriado popularmente como “Pé-na-cova”. 16 O que reforça a necessária compreensão dos contextos culturais e históricos de forma ampliada a fim de não sermos excludentes. 13 17 “O registro do número de mortos pela epidemia de cólera reinante em 1855, no Grão-Pará, é extremamente imperfeito, pois mesmo com todo o empenho das autoridades, as dificuldades eram enormes. As gentes não apenas ‘enterraram-se dentro da própria casa’ por falta de caridade, como refere o vigário na citação, mas ficaram insepultas pelas ruas, pelas picadas, nas embarcações, por onde caíam para não mais levantar.” Em BELTRÃO, Jane Felipe. Cólera e gentes de cores ou o acesso aos socorros públicos no século XIX, in Physis: Revista da Saúde Coletiva. vol.14 n°.2, Rio de Janeiro Jul./Dez. 2004, disponível em versão digital no sítio http://www.scielo.br/scielo.php? pid=S0103-73312004000200005&script=sci_arttext. Este artigo traz várias informações sobre as diferenças nas formas de tratamento dos restos mortais no século XIX, seus custos e influência das condições raciais e sociais no sepultamento. “Supõe-se que a distância, da vivenda ou das casas ao cemitério, possa ter contribuído para a nãonotificação de inúmeras mortes. A distância não era, pois, unicamente física; era sobretudo social. A morte, ‘silenciosamente’, anunciava as desigualdades, tinha endereço e, sobretudo, cor.” 18 Foram encerrados as atividades no Soledade trinta anos após sua inauguração (1850 a 1880), devido ao esgotamento dos espaços de sepultamento. 19 “O local reúne centenas de pessoas, que levam pacotes de velas, batem três vezes na ponta da lápide de mármore negro, ofertado pela colônia portuguesa como reconhecimento à sua atuação no Hospital Dom Luiz I, em Belém. A sepultura costuma estar rodeada por placas de agradecimento, fitinhas com o nome de pessoas e de doenças, muitas flores e velas. Na busca por intervenção, as pessoas fazem orações e procuram tocar na sepultura e no retrato do médico.” Em http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI1227052-EI306,00.html, acessado em 27 de abril de 2008. 20 Josefina Conti, falecida em 1931 e sepultada em jazigo da família no Cemitério de Santa Isabel. Sobre ela, foi produzido um video-documentário. PASSARINHO FILHO, Ronaldo & MAGALHÃES, Moisés. Belém – mitos e mistérios: a moça do táxi. Lendas amazônicas. Direção de Ronaldo Passarinho Filho e Moisés Magalhães. Produção executiva de Marcelo Magalhães. Roteiro de Ronaldo Passarinho Filho e Lázaro Araújo. Música de Sebastião Tapajós. Belém: SUDAM / FUNARTE / Governo do Estado do Pará / Assembléia Legislativa do Pará / Prefeitura Municipal de Belém, 1999. 21 “O nome foi dado à operação por se localizar as margens do rio Araguaia, próximo às cidades de São Geraldo e Marabá no Pará e de Xambioá, no norte de Goiás (região onde atualmente é o norte do Estado de Tocantins, também denominada como Bico do Papagaio). Estima-se que participaram em torno de setenta a oitenta guerrilheiros sendo que, destes, a maior parte se dirigiu àquela região em torno de 1970.”. Em http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerrilha_do_Araguaia, acessado em 27 de abril de 2008. 22 Entendido tanto no conceito da Semiosfera de Iuri Lotman quanto os entrelaçamentos culturais de Michel de Certeau. O que buscamos aqui é fortalecer a idéia de que a construção cultural se faz pela interpenetração de códigos culturais, quer como processos de comunicação (ou lingüísticos) defendidos por Lotman, quer históricos, conforme defende Certeau. Memória cristã riscada na pedra: análise de túmulos do Cemitério Municipal de Bela Vista – GO Déborah Rodrigues Borges Mestre em Cultura Visual – FAV/UFG Resumo O Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás, fundado em 1893, apesar da simplicidade da maior parte de suas construções, guarda importantes registros da tradição religiosa e cultural da cidade. Embora não haja construções tumulares muito suntuosas no local, percebe-se que a população belavistense, desde o século XIX, faz uso de determinado conjunto simbólico para expressar suas crenças e sua mentalidade sobre a morte. Em Bela Vista, nota-se o quanto fé cristã – católica – orienta a construção coletiva de um imaginário sobre a morte, expresso nos elementos escolhidos para adornar os túmulos. Palavras-chave: cemitério, simbologia cristã, Bela Vista de Goiás Este trabalho tem por objetivo identificar e analisar alguns dos elementos pictóricos mais recorrentes dentro da iconografia cristã utilizada pelos riscadores de pedra na confecção de peças para adornar os túmulos do Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás. Trata-se de uma necrópole pequena, secularizada desde o seu surgimento, posto que, sendo o único cemitério da cidade, todos os mortos eram lá enterrados, independente de eventuais opções religiosas diferentes do Catolicismo, predominante na região. Conforme expõe Maria Elizia Borges (2004, p. 102), o cemitério convencional secularizado tornou-se ‘uma instituição cultural’, além de religiosa. Faz parte da invenção moderna, compartilha da reestruturação da sociedade que, desde o tempo em que ele surgiu (século XVIII), trabalha com o confronto dialético de duas realidades conceituais de vida: a cidade dos mortos e a cidade dos vivos. Embora, como veremos posteriormente, não se constate na cidade de Bela Vista, em fins do século XIX, a existência de uma sociedade burguesa nos moldes europeus ou das grandes cidades brasileiras, perceberemos que os belavistenses do período comungavam do mesmo imaginário coletivo burguês sobre a morte, a religiosidade e suas formas de representação imagética. O estudo de elementos pictóricos presentes nas construções tumulares do Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás revela a maciça presença de símbolos cristãos, especialmente importantes dentro do Catolicismo. São cruzes, sagrados corações de Jesus, rosas, pombas, enfim, uma série de figuras que integram a ritualística católica e que, uma vez transpostos para o cemitério, são acrescidos de outros valores e significados. Entretanto, para compreender a importância destes elementos dentro do imaginário belavistense sobre a morte, expresso no cemitério, é importante conhecer um pouco da história do município, a fim de percebermos como se deu a inserção da fé católica na construção da tradição cultural da cidade. Segundo Alves e Jesus (2003), o local onde hoje se localiza o município de Bela Vista de Goiás começou a ser habitado ainda no século XVIII. Neste período, várias expedições bandeirantes começam a explorar o território goiano à procura de minerais preciosos. Neste contexto, surge a figura dos tropeiros, que viajavam pelas trilhas abertas pelos bandeirantes, transportando e comercializando uma série de produtos. Eles forneciam um apoio fundamental para os exploradores, que se embrenhavam cada vez mais pelo interior de Goiás. Ao longo dos caminhos percorridos pelos bandeirantes e tropeiros, surgem vários pontos de pouso, como o que deu início à povoação que mais tarde formaria a cidade de Bela Vista de Goiás. Não é possível delimitar uma data exata para o surgimento das primeiras construções no local, pois os documentos oficiais – e mesmo a história repetida pelos moradores do município – registram apenas a data de doação de terras para construção da Capela em homenagem a Nossa Senhora da Piedade. Tal fato ocorreu em 9 de junho de 1852. Os doadores eram membros de uma mesma família: José Bernardo Pereira, sua esposa, Inocência Maria de Jesus e o irmão desta, José Inocêncio Telles. As obras da capela foram concluídas em 1872, e o surgimento da cidade de Bela Vista é tradicionalmente atribuído a essa construção. Entretanto, por que justamente Nossa Senhora da Piedade foi escolhida para ser homenageada por esta capela que foi tão importante nos primeiros tempos da povoação? Segundo pesquisa feita por Alves e Jesus (2003), a partir de relatos orais de antigos moradores da cidade, foi possível apurar a existência de diferentes versões para que tenha se desenvolvido na região a fé nesta santa. Uma delas diz que José Honorário Teles, residente na fazenda São Bento, foi picado por uma cobra numa plantação de fumo1 do Sr. Silvério Lemos, na primeira metade do século XIX. Sua recuperação foi atribuída às orações de um certo Tomás, benzedor natural de Bonfim (atual Silvânia), dirigidas a Nossa Senhora da Piedade. Diz esta versão que a primeira estampa da santa veio de Pouso Alto (atual Piracanjuba), trazida por Dona Vergina, e a primeira imagem, esculpida em madeira, teria sido feita por um artista desconhecido, de Pirenópolis. Há, ainda outra explicação para o surgimento da fé em Nossa Senhora da Piedade na região. Segundo Alves e Jesus (2003, p. 16) descrevem, esta versão diz que a devoção à santa começou com uma imagem de trinta centímetros que Jacinta e Maria da Glória trouxeram para o local. Estas eram pessoas das famílias de inconfidentes, que fugiram de Vila Rica, Minas Gerais, para se livrarem das perseguições sofridas após a prisão dos envolvidos. Aqui chegando, todos mudaram seus nomes para não serem descobertos. Segundo conta a tradição popular, um dia, Jacinta e Maria da Glória colocaram a imagem ao pé de uma grande árvore, onde hoje está localizado o obelisco de São Sebastião – Praça Getúlio Vargas – para a reza do terço (que cumpriam diariamente). Deste dia em diante, a imagem desaparecia de seu oratório e reaparecia ao pé dessa árvore, repetindo-se o fato por cinco vezes. Foi feito, então, um oratório de pedra para a Santa e um rancho de folhas de buriti sobre o referido oratório no local em que a imagem reaparecia. A terceira versão do início da fé na Santa envolve os doadores das terras onde foi construída a Capela em homenagem a Nossa Senhora da Piedade. Consta que todos eram muito devotos da santa, por motivo não esclarecido, o que os levou a destinarem parte de seus terrenos para erguerem um templo para Nossa Senhora. Nota-se, por estes relatos, a existência de uma cultura religiosa católica que não deixa de conter, também, aspectos de um misticismo mágico, uma vez que se apóia sobre histórias de milagres, aparições e outros fenômenos sobrenaturais. E isto também se revela na própria história da surgimento do Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás. O primeiro cemitério do lugarejo ficava onde, atualmente, se localiza a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade, na Praça José Lobo. Não há maiores informações sobre esta necrópole. Entretanto, sobre o Cemitério Municipal de Bela Vista, cuja inauguração ocorreu em 1893, Genivaldo Antônio Pereira (1995) relata um acontecimento interessante: Antônio Cândido da Costa Moraes construiu o cemitério, plantou umas palmeiras em volta e ficaram todos na expectativa de quem seria a primeira pessoa a ser enterrada no cemitério. Essa pessoa acabou sendo a própria filha de Antônio Cândido. Ela morreu aos sete anos, vítima de tifo. Tem-se, aí, uma infeliz ironia: o construtor do cemitério acaba inaugurando a construção (que se vê na figura 01) com o enterramento de sua única filha, conforme se percebe pelo relato registrado na lápide deste túmulo 2, que ainda se encontra no cemitério. Observa-se, também, que ao contrário do que relata Pereira (1995), de acordo com os dados do texto da lápide, a criança teria morrido aos 10 anos de idade. Assim diz o texto: Aqui jaz Anna Cândida da Costa Moraes Filha legítima e única de Antônio Cândido da Costa Moraes E Ludovina de Araújo Moraes Nascida a 11 de janeiro de 1888 Fallecida a 7 de agosto de 1893 Figura 01: Túmulo de Anna Cândida da Costa Moraes. Acervo particular: Maria Elizia Borges O Cemitério Municipal de Bela Vista possui estrutura simples. A economia do município baseia-se em atividades agropastoris, e a região nunca esteve inserida em nenhum dos grandes ciclos econômicos existentes na história do Brasil. Logo, constituiu-se no local uma sociedade de características predominantemente rurais, com algumas poucas famílias mais abastadas. Isto se reflete no cemitério, nas construções quase sempre simples, destituídas de grandes refinamentos nos monumentos e adornos tumulares, como se vê pelo próprio túmulo de Anna Cândida, o qual é adornado apenas por uma cruz esculpida na pedra e um gradil que circunda a construção, como forma de protegê-lo. O Cemitério Municipal é o único existente na cidade desde 1893. Por isso, há no local centenas de túmulos, sendo que quase todos se encontram voltados para o leste. Há 3 anos a área do cemitério foi ampliada para suprir à demanda do município. Devido, em grande parte, às condições sócio-econômicas, e mesmo geográficas, do município de Bela Vista, não se encontram muitas construções tumulares grandiosas no cemitério, a exemplo do que ocorre em outros lugares. Trazer esculturas de mármore de outros estados era complicado numa época de estradas sem pavimentação, na qual o transporte de mercadorias se fazia, quase sempre, em carros de bois. Assim, encontram-se aqui outras soluções estéticas, como o uso de pedras menos nobres do que o mármore carrara, largamente utilizado no Sudeste, por exemplo. Assim, os túmulos acabaram ganhando adornos mais singelos, por meio de desenhos riscados nestas pedras, as quais posteriormente compunham a construção tumular. Entretanto, apesar da simplicidade, a análise de alguns elementos constantes nestes desenhos riscados apresenta uma riqueza muito grande sobre como se fazia a representação das relações entre morte, eternidade e religiosidade na região, conforme veremos pelos exemplos seguintes. Na figura 02 temos um túmulo em cujas pedras riscadas identificamos os seguintes elementos: Flores: na porção superior do túmulo, vemos o desenho de um ramo ascendente de flores. Embora haja significados específicos para certas flores, neste caso parece que o artista não se preocupou em registrar fielmente um determinado tipo de flor: não conseguimos identificar a espécie. Entretanto, as flores, de modo geral, possuem grande importância nos ritos fúnebres, e suas simbologia integra constantemente as construções tumulares. De acordo com Keister (2004, p. 41), “as plantas, especialmente as flores, lembram-nos da beleza e da brevidade da vida. Elas têm servido como símbolos de lembranças desde que começamos a homenagear nossos mortos.”3 Neste caso, não se trata de um símbolo exclusivamente cristão, embora tenha sido, há muito, incorporado às narrativas religiosas e, desta forma, ao imaginário cristão, especialmente no que versa sobre a morte. Espírito Santo: abaixo das flores, outra pedra com o desenho que, tradicionalmente, representa o Espírito Santo. Como analisa Keister (2004, p. 142), “uma pomba, mergulhando dos céus, com um ramo de oliveira ou uma cruz em seu bico é o símbolo do Espírito Santo. Sua representação como uma pomba vem de João 1: ‘E João recorda-se, dizendo, Eu vi o Espírito descendo do céu como uma pomba, e ele pousou sobre mim.’”4 Misturam-se, portanto, neste túmulo, símbolos de origem desconhecida, como as flores, e outros com uma antiga história dentro da tradição pictórica cristã, apoiados em narrativas religiosas. Cabe ressaltar que a cidade de Bela Vista realiza, desde o século XIX, uma festa anual em homenagem a Nossa Senhora da Piedade, no mês de julho, ocasião na qual também se homenageiam São Benedito e o Divino Espírito Santo, que sai nos andores das procissões representado, justamente, pela figura de uma pomba. Figura 02: Túmulo do Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás. Acervo Parcicular – Maria Elizia Borges Na figura 03 identificamos como elementos de adorno tumular: Sagrado Coração de Jesus: símbolo católico, apresenta um coração envolvido por uma coroa de espinhos com uma chama na parte superior. Representa o sofrimento da crucificação de Jesus Cristo, e sua imortalidade. Entretanto, segundo Keister (2004, p. 149), há outro significado para o coração representado desta maneira: “(...) um coração rodeado por espinhos é um emblema de Santa Catarina de Sena”5. De qualquer maneira, ainda segundo o autor, o coração possui inúmeras significações dentro da simbologia cristã, e seu uso neste sentido remonta à Idade Média. Rosas: as rosas foram dispostas, neste túmulo, ao lado do emblema que representa o Sagrado Coração de Jesus. Além do significado geral atribuído às flores, explorado anteriormente, as rosas possuem interpretações específicas. Conforme expõe Keister (2004, p. 54), na mitologia cristã a rosa não tinha espinhos no Paraíso, mas os adquiriu na Terra para lembrar aos homens sua queda; além disso, a fragrância e a beleza da rosa remanesceram para sugerir ao homem como o Paraíso é. Às vezes a Virgem Maria é chamada de ‘a rosa sem espinhos’ devido à crença de que ela foi eximida do pecado original6. Como se percebe, a rosa, muito mais do que um bonito adorno para o morto, tanto no velório quanto no túmulo, traz uma mensagem para os vivos: a esperança de que o morto se encontra no Paraíso, perdido para os homens após o pecado original, e a lembrança de que os homens devem evitar os erros e pecados caso desejem alcançar esse Paraíso algum dia. Símbolo Chi-Rho (XP): segundo Keister, este é o mais antigo símbolo cristão. Chi e Rho são as duas primeiras letras da palavra grega para Cristo. (...) Quando as duas letras são sobrepostas elas formam um design de cruz. Diz-se que a reversão das letras para PX significa uma abreviação da palavra latina pax, que significa “paz”7. Temos aqui um bom exemplo de como o cristianismo e sua simbologia se constitui de uma mistura de referências culturais diversas. Neste caso, um símbolo grego que ganha também uma conotação de origem latina. Em todo caso, trata-se de um símbolo mais do que apropriado para adornar um túmulo, pois informa, ao mesmo tempo, a condição cristã do morto, além do desejo dos vivos para que esteja em paz no reino dos céus. Figura 03: Túmulo do Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás. Acervo Particular – Maria Elizia Borges Finalmente, no túmulo da figura 04 identificamos outra série de elementos: Estrela: na porção superior do túmulo nota-se a presença deste símbolo. Neste caso, por se tratar de uma estrela solitária, remete à Estrela do Oriente, que guiou os Reis Magos a Belém (Keister, 2004). No contexto do túmulo e, por conseguinte, da morte, esta simbologia da estrela indica uma esperança dos vivos de que seu ente querido tenha tido sua alma conduzida aos céus, assim como os Reis Magos foram conduzidos pela estrela até o local do nascimento de Cristo. Urna com véu: representada no desenho da pedra logo abaixo da estrela, representa, de fato, uma urna funerária semi-coberta com um véu. Conforme explica keister (2004, p. 137), trata-se do mais comum símbolo funerário do século XIX. (...) O tecido pode ser visto mais um acessório de reverência ou como um símbolo do véu entre a terra e os céus. A urna é para as cinzas assim como o sarcófago é para o corpo, o que faz da urna um curioso mecanismo funerário do século XIX, uma vez que a cremação raramente era praticada.8 Entretanto, podemos considerar que a urna representasse o sentimento de proteção que os vivos esperavam que tivesse a alma do falecido. Ou, talvez, ela traga mesmo a idéia das cinzas, mas não do corpo, e sim dos pecados cometidos pelo morto. Libertada de suas impurezas – simbolicamente encerradas na urna – a alma poderia ascender aos céus, em paz. Figura 04: Túmulo do Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás. Acervo Particular – Maria Elizia Borges. A partir da análise destes túmulos, espero ter conseguido explorar alguns aspectos sobre os significados dos símbolos incorporados aos jazigos, como forma de adornar as construções. Estes desenhos, além de solução mais econômica para a elaboração dos túmulos, constituem importantes registros da importância da fé católica na mentalidade sobre a morte existente entre os belavistenses. Conforme se percebeu, o Catolicismo teve papel fundamental na formação da tradição cultural do município, e isso se transfere também para os costumes mortuários, o que inclui os desenhos escolhidos para serem riscados nas pedras dos túmulos. Referências Bibliográficas ALVES, Nilva Geralda do Nascimento; JESUS, Terezinha do Carmo de. A cidade de Bela Vista de Goiás da origem à emancipação. 2003. 56 fl. Monografia (Conclusão do curso de História) – Universidade Estadual de Goiás, 2003. BORGES, Maria Elizia. A estatuária funerária no Brasil: representação iconográfica da morte burguesa. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, João Pessoa, Vol. 3, N. 8: 252 – 267, 2004. KEISTER, Douglas. Stories in stone. A field guide to cemetery symbolism and iconography. Salt Lake City: Gibbs Smith, 2004. PEREIRA, Genivaldo Antônio. Depoimento. (mai. 1995). Entrevistadores: alunos da 8ª Série do antigo Centro Educacional Terezinha de Jesus, atual Colégio TJ. Bela Vista de Goiás, 1995. 1 O cultivo do fumo foi, durante muito tempo, uma das principais atividades econômicas da cidade de Bela Vista de Goiás. 2 Foi feita, em 2007, alguma espécie de limpeza neste túmulo; a pedra, que já se encontrava bastante enegrecida pela ação do tempo e das intempéries, hoje está branca, como se percebe pelas fotografias presentes neste estudo. 3 Tradução da Autora. 4 Tradução da Autora. 5 Tradução da Autora. 6 Tradução da Autora. 7 Tradução da Autora. 8 Tradução da Autora. TRAJETÓRIA E ESTRATÉGIAS – um estudo de caso do Cemitério de São Miguel da cidade de Goiás Deuzair José da Silva Doutorando em História / FCHF - UFG Resumo A presente comunicação se propõe estudar o processo de criação do Cemitério de São Miguel, localizado na cidade de Goiás. A trajetória e as estratégias percorridas pelos proponentes, explicitadas principalmente nas doutrinas higienistas em voga na época, numa mudança de sensibilidade coletiva com a separação dos espaços entre vivos e mortos e que culmina na secularização crescente dos rituais em torno da morte, exemplo: a transferência dos sepultamentos das igrejas para os cemitérios. As resistências à sua criação, etc. Outro ponto será debater o cemitério como um espaço que reflete a divisão social e hierárquica imperante no meio social, de memória, de saberes, das expectativas de mundo. Ele está intimamente relacionado com a cultura deste povo, explicitado na arte empregue na construção dos túmulos, nos adornos funerários e nos epitáfios. ABSTRACT: This communication proposes to study the process of creating the Cemetery of San Miguel, located in the city of Goiás The trajectory and strategies covered by the tenderers, explained mainly in the hygiene doctrines in vogue at that time, a change of collective sensitivity to the separation of space between living and dead and culminating in the growing secularization of the rituals surrounding the death, example: the transfer of burials from the churches to cemeteries. The resistance to its creation and so on. Another point will be discussing the cemetery as a space that reflects the social division and hierarchical prevailing in the social, memory, knowledge, expectations of world. It is closely related of this people’s culture, explained the art used in the construction of tombs in the funeral dress and epitaphs. KEYWORDS: cemetery - secularism - City of Goiás - nineteenth century. Os estudos de caso têm, nos últimos anos, ocupado grande espaço na produção histórica. São exemplos os trabalhos de Natalie Zemon Davis, Carlo Ginzburg e outros. Estes trabalhos acompanham uma mudança em curso que se verifica mais claramente a partir dos anos oitenta com o renascimento da narrativa. (VAINFAS, In: CARDOSO & VAINFAS, 1997: 147-8). No decorrer do século XIX a doutrina sanitarista vive o auge. O discurso em voga nos meios médicos refere-se à necessidade das cidades empregarem todos os esforços no sentido de combater e melhorar o quadro sanitário das mesmas. Objetiva-se com isso combater as epidemias e melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes. Na última metade do século o discurso ganha mais força. Minha hipótese é de que isto indica a gestação de um novo comportamento frente à morte – a laicização –. O crescimento urbano, a maior circulação de informação e as críticas que vinha sofrendo a Igreja – muitos pregavam a necessidade da separação entre Estado e Igreja, justificando que esta deveria cuidar estritamente dos assuntos sacros – certamente contribuíram para o fortalecimento dos princípios médicos. Um dos principais alvos das críticas dos membros da saúde era o sepultamento no interior das igrejas. Costume antigo e já estudado, que por isso mesmo não entrarei no mérito do assunto. A criação de cemitérios extra-muros das cidades entra na ordem do dia. Os debates tornam-se acalorados a favor e contra a idéia. Província distante, mas não isolada dos grandes centros, Goiás também vive as mudanças em curso. O presidente da província Francisco Ferreira dos Santos Azevedo propõe no ano de 1842 à Assembléia Provincial a criação de um cemitério para a capital, que receberá o nome de São Miguel. “Não podendo a Camara Municipal desta Cidade construir pelas suas rendas hum Cemitério, continua se a enterrar os Corpos dos desgraçados no Campo da Forca, aonde naó há nem se quer huma cerca, que vede a entrada dos porcos, que continuamente entaó a fossar as sipulturas, de maneira que as vezes chegaó a apparecer os mesmos corpos, exalando sempre, e principalmente quando o Sol esta mais ardente, hum fétido terrivel, o que na verdade he bem prejudicial. Para evitar a continuaçaó destes terriveis inconvenientes peço-vos mui encarecidamente Decreteis desde ja a quantia de 200U000 reis, para formar hum Cemiterio em lugar proprio, para o qual seraó transferidos os ossos, que existirem no Campo da Forca, se elle naó for ali mesmo estabelecido fazer, com tudo naó me animo a pedir maior, naó só por conhecer o estado de nossas Rendas, como por estar certo de que naó faltará quem concorra para huma obra taó justa. Este Cemitério deve ficar a cargo do Hospital de Caridade, para nelle se enterrarem os Corpos dos desgraçados, e mesmo para outros quaesquer, mediante uma módica quantia, marcada pelo Governo Provincial, beneficio do mesmo Hospital”. (Memórias Goianas 3, 1986:209-10). O conteúdo do pedido citado é um rico filão das condições higiênicas e sanitárias de nossas cidades à época. Os miasmas e o cheiro pútrido dos cadáveres em decomposição incomodavam a todos. Em muitos casos as covas rasas e a falta de cercas como afirma o Presidente da Província faziam com que a ação de animais deixasse restos de corpos à mostra, um espetáculo tétrico aos olhos e muito nocivo a saúde. Será sobre situações como esta que os médicos mais questionarão para justificar suas medidas sanitárias e por fim aos sepultamentos intra-muros. Tarefa com certeza difícil diante de um costume já fortemente arraigado pelas pessoas. Chama atenção, também, no pedido do Presidente um dos componentes do imaginário da época: o sentimento de piedade cristã para com os mortos, bem como, a expectativa de caridade por parte de todos na empreitada de construção do cemitério. As fontes estudadas até o momento não permitem afirmar se o presidente conclamou, de fato, a população para ajudar na construção. Neste mesmo raciocínio pode-se aventar que os cofres públicos provinciais, assim como o da Câmara estavam passando por dificuldades, a julgar pelo apelo à caridade das pessoas. Percebe-se também que a estrutura administrativa não era das mais aperfeiçoadas, tendo em vista entregar a administração do referido cemitério ao Hospital de Caridade de São Pedro de Alcântara, bem como, demonstra a influência que a Igreja ainda possuía. A economia provincial segue crescendo em ritmo lento. Os estudos sobre a economia goiana no período são discordantes. Para alguns autores logo após a escassez do ouro, Goiás teria passado por uma forte decadência, para outros essa decadência deve ser relativizada. Estes últimos fazem o seguinte questionamento: como falar em decadência para uma capitânia que nunca foi assim tão próspera. No século XIX, as alterações não são grandes a pecuária e a lavoura de subsistência é a base econômica da época. Voltando à questão sanitária, Goiás não diferia das demais províncias. Já nos anos trinta uma leitora do jornal Matutina Meiapontense que circulou por alguns anos desta década escrevia ao redator solicitando a sua intervenção e apoio por ser este um importante meio de comunicação da época. Com o pseudônimo de Roceira Zelosa conclamava o jornal para que chamasse a atenção sobre os problemas dos miasmas cadavéricos e da insalubridade das igrejas com os sepultamentos nos interiores e proximidades destas. “FEDIA-SE POR TODA A IGREJA No dia 2 de Novembro do corrente ano, dia em que se celebram os Divinos ofícios pelas almas dos nossos fiéis defuntos, me achei na Catedral dessa Cidade de Goiás para enviar as A manifestação fala por si só. Continuando o debate com a leitora pode-se perguntar o que motivou o seu repúdio a uma situação por demais corriqueira naquela época? Não encontrei nada ainda em particular que pudesse estabelecer alguma ligação com os protestos destacados, a não ser o fato de estar em voga os princípios higienistas propagados pela medicina social, que crescerá muito no decorrer do século. Acredito tratar-se de uma pessoa de algumas posses pela maneira de referir às demais senhoras que lhe acompanha nas orações e também porque a leitura era um privilégio de poucos. O fato de ter acesso a jornais e a outras informações e assuntos em voga, pode daí ser uma das razões da sua postura. O Jornal não informa maiores detalhes sobre a remetente. A sua identificação poderia nos permitir avaliar de onde provém e poder entender a sua adesão ao movimento higienizador, que crescia na sociedade. Mas não deixa de ser uma posição inusitada e/ou até a frente de sua época, mesmo não tendo ainda índicos que me permitam afirmar que o movimento de criação dos cemitérios em Goiás tenha enfrentado ou não oposição dentro da população. Ademais, a questão é também de ordem social, preocupada com o grande fluxo de vagabundos e indigentes perambulando pelas ruas. A classe dominante busca meios de se proteger e garantir sua posição. Transfere ao poder público o controle da situação, mas também o ônus da repressão. São mudanças importantes na estrutura social que implica uma nova relação no jogo de poder. O Estado a cada dia amplia os seus tentáculos e que se consolida ao longo da república, rompendo devagar as heranças patrimonialistas herdadas da colônia. Mas isso não significa alterações radicais no status quo social que mantém praticamente intacta as relações de classe e os privilégios das classes dominantes reforçadas pela divisão entre livres e escravos. No decorrer da segunda metade do século a luta contra escravidão cresce, possibilitando alterações na composição social. Deixo claro que a discussão em torno da escravidão não é meu objetivo, mas tão somente mostrar como a hierarquização atravessava de alto a baixo todos os setores e campos da comunidade. As disposições higiênicas vividas no Império fazem parte deste amplo processo de mudanças que vem desde a independência com uma progressiva atuação, burocratização e regulamentação por parte do Estado. Isto altera de algum modo o cotidiano das pessoas, impondo novas regras de sociabilidade. Vale lembrar que estas não se estabelecem por mão única, o grupo também impõe suas vontades. Longe do consenso, as alterações são frutos do conflito. É aquilo que Homi Bhaba chama do entre-lugar (Cf. BHABA, 2001: 70-104). É aí que se dá o novo, a cultura de um povo. A propósito destas alterações nos fala Moraes: “Podemos observar, partindo da Lei de 1828 e das Posturas Municipais de Goiás, de 1830, o aumento das preocupações com os odores sociais e urbanos. O trabalhador é disciplinado para perceber o fedor da água estancada, do cadáver e da carniça pelos perigos inerentes aos mesmos. O Hospital de Caridade de São Pedro de Alcântara encarrega-se do cuidado com o obcecante charco humano transferindo para o espaço público da cadeia pública, das praças e das ruas, as estratégias sanitárias experimentadas no espaço privado”. (MORAES, 1995:57) As palavras de Moraes são elucidativa daquilo que estou debatendo. São questões que estão imbricadas no conjunto de mudanças do período. As doutrinas sanitaristas e a criação dos cemitérios secularizados é tão somente uma célula. “PARTE OFFICIAL PRESIDÊNCIA DA PROVÍNCIA EXPEDIENTE 26 de Agosto - Resolução. O presidente da província resolve nomear uma comissão composta do procurador fiscal da thesouraria das rendas provinciaes – Antonio Gonsalves Dias, do Capitão Ignácio Xavier da Silva, membro da junta de Caridade, do tenente coronel Antonio José de Castro, do capitão Joaquim Manoel da Chagas Artiaga e de Joao Parode para proceder aos convenientes exames no cemitério da capital, que a pouco foi concluído e entregue pelo empresário o tenente coronel Josè Rodrigues de Moraes, a fim de emittir o seu parecer sobre o gráo de solidez e perfeição d`aquella obra, avaliando ao mesmo tempo a despeza total, que deve ter feito o empresário com a construção do dito cemitério, para que se possa cumprir o disposto no art. 5º § 7º da lei provincial nº 11 de 9 de novembro de 1857. – Fação-se as necessarias comunicações. – Communicou-se aos nomeados, dizendose-lhes que espera de seu zelo o satisfatório desempenho da dita incumbência”1. 1 GAZETA OFFICIAL DE GOYAZ. Ano I. nº 40. Sabbado 6 de Outubro de 1858. p.4. Exemplar microfilmado existente no IPEH-BC. Goiana-Go. Preocupação normal por parte de um administrador público competente. Infelizmente não são citadas as profissões ou formação dos mesmos que permitiria analisar melhor a capacidade de exame da obra por parte da referida comissão. O cemitério de São Miguel é inaugurado em 1858. Mas os vínculos com a Igreja não foram totalmente rompidos, haja vista que este ficou primeiro a cargo do Hospital de Caridade de São Pedro de Alcântara administrado pela Santa Casa de Misericórdia. “Capítulo 1º Do cemitério Art. 1º A inspeção e a administração do Cemitério fundado nesta capital comete a Junta do Hospital de Charidade de São Pedro d’Alcântara ao qual fica pertencendo a receita de estabelecimento com a obrigação de fazer as despesas necessárias á sua manutenção na forma da citada Resolução nº 11de 29 de Julho do ano passado”1. Em 1925 o município assume definitivamente o controle administrativo do cemitério na gestão do interventor municipal Dr. Agenor de Castro. A sociedade como um todo caminha lentamente rumo a uma maior secularização. Não quero dizer aqui, que isto signifique um rompimento total com a Religiosidade. Esta ainda continua a ter forte presença no nosso meio. Não acontece aqui o abandono dos preceitos religiosos, a secularização atinge basicamente o aspecto administrativo. No mais a religião continua tendo forte influência. A presença de cruzes, de imagem de anjos e de santos nos túmulos, de epitáfios de cunho idêntico denota isto. A presença da capela logo na entrada constitui também uma evidência do peso da religião. Prosseguindo, passo a discussão sobre a distribuição espacial do cemitério de São Miguel. A chaga dos atritos entre livres e escravos interfere, tendo “presença” até mesmo no outro lado da vida. O cemitério de São Miguel reflete claramente isto ao prever localizações distintas para cada membro da sociedade de acordo com sua posição social. (Ver foto e descrição ao final). Ao estabelecer locais distintos de inumação para livres e cativos a lei nada mais fazia que ratificar uma legislação que já continha em seu bojo a separação. Separação esta não como algo alienígena, mas dotada de toda uma instrumentalização jurídica dentro do direito moderno. 1 Fonte: Livro 1º de Regulamentos expedidos pelo Presidente – 1858... Ano 1859. Regulamento para Cemitério. P. 10. Arquivo Histórico Estadual. Nº Atual do AHE: 380. CANTOS FÚNEBRES DE GOIÁS Edna de Jesus Goya Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás Resumo O objetivo do texto é falar do Canto Fúnebre, como tradição oral, ou oralidade, experiência transmitida na cultura pelo boca a boca e compreender como a tradição oral acontece do ponto de vista prático e vivencial, e na mesma concretude de outras manifestações culturais, tradicionais, regionais de Goiás, a exemplo do Canto de Trabalho das Fiandeiras, cantados durante a fiação do algodão, para explicar a cultura oral. Buscamos na Semiótica da Cultura os fundamentos teóricos para orientar como esse acontecimento se dá. O Carpir caracteriza-se como manifestação feminina, pela figura da carpideira, que tem como ofício lamentar o morto, ou moribundo, através de rezas e benditos. A ela cabe a reza, as lágrimas, os lamentos e cantar durante o cortejo fúnebre. A carpideira canta para o moribundo e na morte, com o intuito da abrandar o sofrimento e preparar a transição da alma do morto para o céu. Palavras-chaves: cultura oral, morte, carpir O Canto Fúnebre, canto mortuário, ou Excelência é praticado nas regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste, com diversidade de expressões dessa natureza. O interesse pelo tema se deu pela riqueza cultural que o objeto proporciona, mas é claro que para que haja o entendimento do assunto é necessário se abordar, ainda que superficialmente, conceitos de cultura sob o ponto de vista da oralidade conforme a teoria. Falar do Canto Fúnebre remete-nos a pensar tanto nas questões que motivam o homem a reverenciar o passado, quanto à necessidade de se conservar as tradições: ritos, costumes e crenças. Preservar tradições é uma forma de movimentar, de guardar e de rememorar, de carregar as memórias do homem para outros tempos, situações e contextos. É fazer-nos pensar na cultura como capital humano fundamental e necessário à própria sobrevivência da espécie, além de provocar reflexão sobre a cultura, como produto que é selecionado, acumulado, guardado, depositado, arquivado/esquecido, armazenado, conservado, transmitido, transportado e assimilado. Isso envolve princípios vários de aquisição e programas de ação que envolve o lembrar e o esquecer, o selecionar e o guardar. Assim sendo, leva-nos, conseqüentemente a refletir a necessidade de se guardar memórias1, ou de se lembrar de determinados fatos, coisas, costumes. Preservar tradições é fazer com que elas sobrevivam ao esquecimento como valores. O Canto Fúnebre, enquanto cultura oral faz parte de uma prática quase universal e tem como finalidade reverenciar e lamentar os mortos. Evidencia-se como expressão musical, considerado de cunho religioso, católico popular. Tem como propósito reunir os parentes e amigos do morto, desde os primeiros momentos da agonia, até a partida do corpo para o sepultamento. Faz parte de o ofício Carpir. Os Cantos Fúnebres, as cantorias mortuárias, são conhecidos como excelências, inselências ou inselenças. Inicialmente a função do canto fúnebre era de despertar no moribundo o horror ao pecado, induzindo-o ao arrependimento, ou para conduzir o morto ao céu. Faz parte do cotidiano rural e urbano, sendo que na região nordeste o morto é velado, geralmente, deitado na rede. Há casos em que as mulheres dividem o trabalho, sendo que uma fica à porta para receber autoridades, como o padre, que vem para dar ao moribundo a extrema unção. A recepção é feita pelas mulheres sempre cantando, enquanto outras permanecem carpindo ao lado do corpo. O canto fúnebre reflete as dores, os sentimentos, as crenças e a cultura de um grupo social. O ato de carpir busca evidenciar ao morto o sofrimento dos vivos. Embora Cascudo (1950), pesquisador da cultura popular, afirme não ter encontrado, no Brasil, a carpideira profissional para lamentar o defunto alheio, de forma paga, à origem do canto fúnebre está relacionada ao trabalho remunerado, pois surge como profissão e trabalho é definido por Max (Apud Ficher, 1981, p. 21) como: ... atividade deliberada ... para a adaptação das substâncias naturais aos humanos; é a condição geral necessária para que se efetue um intercâmbio entre homem e a natureza; é a condição permanente imposta pela natureza à vida humana, por conseguinte, independe das formas da vida social – ou melhor, é comum a todas as formas sociais. Ao se considerar a raiz dessa prática; do canto fúnebre ou carpir como trabalho remunerado, se percebe que duas ações se entrelaçam e se confundem, ou seja, ao mesmo tempo em que ato de cantar o Canto Fúnebre se evidencia como trabalho revela-se com o ato de aliviar o esforço de trabalhar. As mulheres, pagas para carpir: rezar, velar, lamentar ou chorar o morto, ou moribundo, parecem aliviar, pelos cantos, os esforços físicos, causados pelo ato de trabalhar que é o próprio cantar, ainda que estes emanem tristeza e sofrimento. Nos Cantos de Trabalho das Fiandeiras da Cidade de Anápolis o ato de cantar tem função de aliviar e alegrar, de amenizar e tornar os esforços físicos menos dolorosos e mais prazerosos. No costume de carpir, ou de prantear o defunto, o trabalho dá-se pelo esforço físico, materializado na maneira dramática, performática com que as mulheres choram o morto. Os cantos fúnebres, assim como a cultura oral, não têm autor definido, ou um lugar certo de origem, uma vez que é passada de geração a geração, pelo boca a boca. Foram experienciados em diferentes espaços, tempos e culturas, por sociedades heterogêneas. A diversidade de formas de carpir representa a ressemantização da cultura oral; a sua atualização, recriação e mudança de significados no decorrer dos tempos e culturas. Enquanto memória, armazenada, nos permite revisitar o passado e transformar o presente. São as culturas que dão sentido ao objeto; ao canto, o explicam e justificam o seu uso. Pelo ritual, contido no objeto, é possível se reconhecer traços de uma cultura, denunciados pela maneira como este se revela. O Canto Fúnebre, como os demais cantos de tradição oral, tem origem remota, já que sempre foi inadmissível para as sociedades, tanto para as do passado, como do presente, enterrar um defunto sem choro, sem velório (sem vela), sem honrarias, sem coroas, sem flores, sem missa de corpo presente, ou sem cortejo, pois seria a mesma coisa que enterrar um defunto indigente; sem parentes. Sabe-se que o costume de carpir foi praticado em Roma, como ritual quase obrigatório, sendo praticado de duas formas: a Prefica, em que a carpideira era paga para cantar os benditos e rezas, e a Bustuária, ritual para acompanhar o defunto ao local de cremação, com níveis de choros estabelecidos pelos preços. Na Idade Média, era de costume se cultuar “A arte de Bem Morrer” (GOMBRICH, 1978, p.213). A Igreja se utilizava de estampas xilográficas como “sermão ilustrado”, sendo que a finalidade das imagens era lembrar aos fieis a hora da morte, que deveria ser preparada ao longo da vida, cultuada pela devoção e pelo cumprimento dos deveres para com a Igreja. Outra categoria simbólica de carpideira destacada por Cascudo (1950) é a chorona, representada por bonecas, dispostas sobre o caixão do morto, durante a missa, denominada de missa de corpo presente, ou sobre a sepultura, no dia dos mortos. Esse costume foi praticado pelas famílias mais abastadas da cidade de Vitórias de Santo Antão (PE). A prática de carpir espontânea e vocacional é de origem portuguesa. No Brasil, o carpir perde o valor de trabalho remunerado e adquiri sentido de solidariedade, de compartilha aos momentos difíceis, de fraternidade e amizade para com a família do morto. É de praxe a carpideira não receber pagamentos, mas apenas agrados, ou recompensas em roupas, alimentos ou dinheiro, pelo sofrimento compartilhado. Os Cantos Fúnebres são praticados em vários estados do Brasil, como em Alagoas, Rio Grande do Norte, em Vitória de Santo Antão, interior de Pernambuco, em Juazeiro do Norte, interior do Ceará, terra de padre Cícero Romão Batista e interior de Minas Gerais. O canto fúnebre é conduzido por uma rezadeira ou puxadeira, mulher que conduz a cantoria, reza, terço, ou bendito (no caso de agonia prolongada) reza que ajuda a morrer. O ritual fúnebre revela, de certa forma, desapego à vida matérica, conduzindo à família e entes-queridos à compreensão e à aceitação da morte. Apresenta diversidade de letras, cantadas em uníssono, e sem acompanhamento instrumental. Assim como os Cantos de Trabalho das Fiandeiras de Goiás, também são cantados de improviso. Pelos tons nasalados, tristes, induz ao choro coletivo e a tristeza. Existem cantos e rezas para diferentes momentos e situações: para moribundos (doentes) e para o velório. Há cantos e rezas para o estado moribundo (antes do falecimento); para o preparo do corpo (banho e vestir); para velar o morto (realizado aos pés do defunto); e para a despedida (para o funeral, saída do corpo para o cemitério). O morto é preparado: banhado, enxugado, penteado, unhas cortadas, vestido e deitado no caixão ou rede. Os olhos são fechados. O nariz, a boca e os ouvido são vedados com algodão. É de praxe se escolher a melhor roupa ou fazer a mortalha para vesti-lo. No sertão do estado de Tocantins era de costume se vestir o defunto, homem, com os trajes do casamento. A mulher é vestida com mortalha, de cor clara; azul ou branca, que representam o céu e a paz. Adorna-se o corpo com flores de papel (seda ou crepom), plástico ou natural, sendo que o rigor dos trajes depende da condição da família. O caixão é colocado na sala, com os pés do morto, direcionados à de saída, para representar a partida do plano terreno. Durante o velório o caixão deverá ficar aberto. O corpo é cercado por quatro velas, distribuídas em formato de cruz. Além do canto de lamento, realizado durante o estado moribundo, velório e enterro, são rezadas orações (benditos), acompanhadas de cantigas, de melodias regulares. Os benditos são rezados à cabeça do defunto, ou para despertar as almas do purgatório, geralmente cantados, pelas ruas, na Semana Santa, à meia noite. Uma vez iniciado o canto este não pode ser interrompido, pois conforme carpideiras a interrupção pode atrapalhar o encaminhamento da alma. Os versos são compostos com frases rimadas, sempre em número de 1 a 12, para defunto adulto e de 1 a 9 para criança. Um canto de excelências geralmente tem início no cerimonial de quarto e se estende ao acompanhamento do cortejo fúnebre, até o cemitério. Há caso em que a cantadeira é seguida pelas carpideiras, mulheres que prestam serviços aos familiares do defunto. A ferramenta de trabalho da carpideira é a sua voz e o terço, mas é através da cantoria que elas provocam os mais intensos sentimentos, cujo propósito é confortar os familiares para superarem a perda do ente querido. O Canto Fúnebre representa um grito simbólico, um manifesto contra o esquecimento daquele que irá partir para sempre para que não seja esquecido. Existe uma grande diversidade de cantos de trabalho no Brasil, e nos remetem ao período colonial, paralelamente à implementação da mão-de-obra escrava, empregada tanto no campo quanto nas áreas urbanas. No momento atual, pouco dessas práticas sobrevivem em virtude do processo de modernização da sociedade. Em Goiás, identifica-se o Canto de trabalho das Fiandeiras e o de Aboio. Ao ser indagado sobre a sobrevivência dessas tradições no decorrer do tempo, Ortega y Gasset (apud Zumthor, p. 13) nos diz que “a tradição é uma colaboração que pedimos ao nosso passado para resolver nossos problemas atuais”. Hoje se questiona o funcionamento da tradição e da conservação da memória durante tempos mais longos. Estaria o problema da conservação da memória excessiva correlacionada à crise existencial da humanidade frente a tantas transformações decorrentes da Pós-Modernidade, que nos colocou numa grande “aldeia global”, ou dentro de uma cultura de tendência “planetária” que busca a unicidade e faz desaparecer aparentemente as diferenças? Podemos pensar que estamos vivendo um momento de desesperada busca da recuperação da identidade (grifo nosso) – termo aqui colocado no sentido da busca do reconhecimento por parte de um povo dentro de um texto cultural. Duarte (1979), refere-se a busca da referência como maneira para se defender frente a desidentificação). Ferreira (2003) nos responde a esta pergunta, dizendo-nos que dentro de um grupo social a preocupação, para com a memória armazenada, é assegurar somente aquilo que é essencial à cultura. Desse modo, aquilo que é desnecessário é esquecido e descartado. Colombo (1991) nos fala que a obsessão mnemônica estaria ligada a um século em que o homem conheceu grandes tragédias bélicas e, com isso, passou a viver sob o terror de um próximo e talvez irreversível declínio. Isso, entre outras coisas, provocou uma espécie de corrida ao passado, a um tipo de mania arquivística. Nesta direção, Zumthor (1997) nos diz também que a memória visa a assegurar a ocorrência de um indivíduo na proposição de sua duração, ou seja, ela cria a possibilidade de se ordenar na sua existência. Logo, para se assegurar a permanência daquilo que é essencial à seleção do texto cultural, deve-se deixar de lado aquilo que é considerado irrelevante. Dessa forma, esquece-se o que se considera descartável e assegura-se a sobrevivência do texto cultural via recriação. Canto de Trabalho das Fiandeiras de Goiás, diferentemente do Canto Fúnebre, é um dos casos em que os grupos buscam manterem-se vivos pelas suas práticas e, com isto, fazer sobreviver no tempo suas lembranças, ao lutar pela permanência de valores de um passado distante. São cantados por donas de casa, tradicionais, casadas, mães, e ligadas por valores de uma época cuja linguagem lhes remete a uma mesma experiência vivencial; época em que a atividade da mulher sertaneja limitava-se de forma exclusiva ao trabalho doméstico, ou seja, de cuidar dos afazeres do lar: zelar da casa, dos filhos, do marido e ajudar na lavoura quando necessário. Salienta-se que desempenhavam atividades tidas como impróprias ao homem, tais como: costurar, bordar, cozinhar, fiar, tecer redes e até mesmo tecidos mais finos para confecção de roupas. Atividades essas que as qualificavam para o casamento. As mulheres fiandeiras representam uma época e refletem, por um lado, a condição feminina rural hierarquizada, numa situação de submissão dentro da família e de uma vida difícil. Por outro lado, a permanência existencial destes grupos busca assegurar a sua existência. Representam um estado de luta, uma conquista atualizante e progressiva, ao mesmo tempo sofrida em virtude da tentativa de manter viva uma tradição oral que para a sociedade tecnológica perdeu o seu valor. O grupo fiandeiras da comunidade de Anápolis esforça-se para se fazer existir e pela cultura, para garantir a permanência daquilo que é considerado vivo dentro do grupo e do que as cidades consideram herança cultural, valores que, para elas, não devem ser relegados ao esquecimento, “deixar de existir” (Fernandes e Park, 2006, p. 40), mas sim, preservados. Reviver esse passado é, para elas, uma forma de assegurar a própria identidade, ou do que se pode chamar de "Eu" (Proust, citado por CHAUI, p. 125) e, com isso, poder reunir, pelo canto, tudo o que foram e fizeram, e tudo o que são e fazem. A memória coletiva2 desse grupo, ou a forma como os cantos de trabalho da fiação são preservadas dá-se através da organização social, sistematizada em forma de associação, meio de assegurar o interesse coletivo. Por meio da organização as mulheres da comunidade reagem contra a inércia imposta pelo cotidiano e contra a sua própria exclusão. Ao cantar e recantar os cantos lutam contra o esquecimento do seu modo de vida, em direção à captura e reorganização dos fragmentos os quais sentem ser importantes e significativos para o futuro delas, e para a garantia de sua existência. Assim sendo, as histórias-cantos não ficam presas ao passado, mas são reconstruídas pela “experiência” (Benjamin, 1913, p. 09) acumuladas e transmitidas oralmente, por meio de narrativas espontâneas, decorrentes de uma organização social comunitária, cujo foco centra-se em torno do artesanato. Apesar de a cultura popular ser considerada subordinada à cultura dominante ela exerce uma função histórica; no sentido de alimentar um sonho de desalienação, de reconciliação do homem com o próprio homem e com o seu mundo. Por meio dela, novos sentidos são dados à vida cotidiana, o que, segundo Zumthor (1997), isso não implica em sua identificação com as denominadas tradições populares, hoje transformadas em objetos de museu, de curiosidade ou de consumo, ao serem resgatadas ou preservadas apenas como recuperação dos aspectos regionalísticos ou de animação turística. Os Cantos de Trabalho das Fiandeiras estão armazenados na memória do grupo de fiandeiras e, neste sentido, estão sendo tratados como informação, como comunicação poética, embora se refira ao religioso ou a morte. Ao resistirem ao esquecimento nos faz pensar como Lotman (Apud Ferreira, DEZ/FEV, 1994/1995, p. 117) ao nos indicar que a “cultura é um mecanismo complexo e dúctil da consciência e que o âmbito da cultura é o teatro de uma batalha ininterrupta de tênues desencontros e conflitos de toda ordem lutando-se para o monopólio da informação”. É neste sentido que se leva a afirmar que a essência da cultura como informação significa colocar o problema relacional entre cultura e essas categorias fundamentais de sua transformação e conservação, e às noções de língua e texto. Os cantos de Trabalho das Fiandeiras, hoje, pertence ao que a cultura "erudita" (Grifo nosso) denomina como folclore ou cultura popular, termo que após várias transformações adquiriu sentido mais abrangente, e numa perspectiva sociológica de “folclore – em – situação”, o que para Zumthor (1997) significa um processo de comunicação. Na prática vocal M. Jousse (apud por Zumthor, 1997 p. 34), distingue dois modos de comunicação; o vocal e o falado. O primeiro corresponde a todo tipo de enunciado feito pela boca e o segundo ao comunicado formalizado de um modo específico. Do ponto de vista social, a voz realiza dois modos de oralidades: um primeiro fundado na experiência imediata de cada sujeito e o outro, sobre saber mediado, mesmo que parcialmente mediado por tradição. Ambos os modos são práticas que se desenvolvem por meio de vínculo social e se oficializam via força de persuasão, dando-se pelo testemunho que constitui a comunicação. Neste sentido somos levados a pensar numa memória não fixa capaz de adequar-se às várias exigências de existência. No pensamento de McLuhan (apud por Zumthor, 1997, p.34), no universo da oralidade o homem está diretamente ligado aos ciclos naturais da comunicação, e os textos são interiorizados sem a conceituação de sua experiência histórica; de acordo com a força de sua interiorização, o conceito de espaço é sentido como a dimensão do nomadismo. Desse modo, as normas coletivas é que determinam os seus comportamentos, processo contrário ao uso da comunicação escrita que implica uma desvinculação entre pensamento e ação, levando ao enfraquecimento da linguagem e da predominância de uma concepção linear do tempo e cumulativa do espaço, individualização, enfim, a normatização das relações. Os Cantos Fúnebres, assim como os de fiação, cantados pelas Fiandeiras de Goiás enquadram-se numa oralidade que coexiste com a escrita, e, de acordo com essa coexistência, pode funcionar de duas maneiras: como oralidade mista, caso a influência da escrita seja externa, parcial ou retardada (isto, no caso de sociedades analfabetas de países subdesenvolvidos), ou como oralidade segunda, recomposta a partir da escrita e no interior de um meio em que esta é sobreposta aos valores da voz, na prática e no imaginário. São contrárias a ponto de vista em questão, ou seja, são sustentadas pela escrita. Tais tipos de oralidades opõem-se à oralidade primária ou pura (das sociedades arcaicas), daquelas que não têm contato com a escrita e a oralidade mecânica, mediatizada. Porém, o que difere os Cantos Fúnebres dos de Trabalho de Fiação é que estes se encontram, em Goiás, em processo de esquecimento profundo. Estão quase sepultados na memória das mulheres. Para elas não há possibilidade da narrativa permanecer, deslizar-se sobre outros cantos, sob outras formas nas narrativas (Ferreira, 2003) ou de serem ressemantizadas, pois perdera o seu sentido para as gerações mais jovens. Apenas duas, das 36 mulheres, mais idosas, que fazem parte do grupo de fiandeiras: Dona Maria Costa dos Santos e Dona Firmina Josefa Pinto, se lembram dos versos, pois caírem em desuso, sendo relegados ao esquecimento. Ao cantarem os versos as mulheres revelam forte emoção ao reviverem e relembrarem seus entesqueridos. Os cantos abaixo são praticados nas Regiões Norte (Estado do Tocantins), e Centro-Oeste (Goiás) e parte da Região Nordeste. Em Goiás, hoje, são existentes apenas na memória dos velhos que armazenam em suas lembranças os antigos rituais mortuários, sertanejos, de seus antepassados. Canto de Alerta às Almas Pecadoras do Purgatório Este canto é realizado, na quinta-feira santa, à noite pelas ruas das cidades, ou pelos caminhos e estradas do sertão, em direção ao cemitério. A finalidade do canto é acordar as almas sofredoras do purgatório, sensibilizá-las e ajudá-las a encontrar o caminho da luz e da salvação. Cristo, ao ressuscitar, também poderá levantar os mortos, pecadores do purgatório, e lhes conceder o perdão. Então, as orações servem de incentivo às almas. Ao terminar cada verso a puxadeira faz súplicas e rezas para as almas adormecidas. As demais mulheres respondem dizendo: Tende misericórdia, senhor... Amém. As senhoras que cantaram os versos ficaram bastante emocionadas, pois os cantos lhes fizeram lembrar seus entes-queridos. As letras foram transcritas, na originalidade conforme cantadas pelas mulheres. Canto a alma pecadora Pecador agora é tempo De cumprir sal e temor Serve a Deus desprezada o mundo Não seja mais pecador De pecado em pecado Quem no mundo pais honrrô Por blinda Santas Missões Já não seja pecador Oração de súplicas : Vós Senhor que sois misericordioso tende piedade de todas almas do purgatório. Ajudai-vos a encontrar o caminho da luz para a salvação dos seus pecados. Senhor Jesus Cristo que padeceu e ressuscitou ao terceiro dia, tende piedade de todas as almas pecadoras que sofrem e vivem na escuridão. Ajude as almas a encontrarem o caminho da luz e da verdade. Amém. (Continua-se o canto) Canto do ato de morte A excelência é cantada pelas mulheres, conduzida pela puxadeira, (condutora da reza). Ela canta o primeiro verso e as demais repetem numa voz desigualada e roca (voz nasalada). Para que a cantoria se estenda ao um longo do velório deve-se ir aumentando o número de excelências até 12. Nos intervalos, entre um verso outro, são rezados benditos, feitas súplicas ou rezado terço em benefício da alma do morto. Após as 12 excelências, e para terminar cantoria, e no último verso, não se deve dizer a quantidade de excelências, mas tantas excelências Canto de inselênça Uma inselênça das Virgens Senhora da solidade Ela é nossa mãe santíssima Ela é dolorosa Ela é imaculada (Bis) (Rezas e súplicas) Duas inselênças das virgens Senhora da solidade Ela é nossa mãe santíssima Ela é dolorosa Ela é imaculada (Bis) Tantas inselênças das virgens Senhora da solidade Ela é nossa mãe santíssima Ela é dolorosa Ela é imaculada Canto do ato de morte Uma espada de dor No coração de Jesus passou Foi uma dor que me fez chorar No tormento da paixão Ô, ô dô que Jesus padeceu E sua mãe no seu coração (Bis) (Rezas e súplicas) Duas espadas de dor No coração de Jesus passou Foi uma dô que me fez chorar No tormento da paixão Ô, ô dô que Jesus padeceu E sua mãe no seu coração (Bis) (Rezas e súplicas) Tantas espadas de dor... As excelências de despedida do morto são intercaladas com terços e súplicas em benefício da alma do morto. Após as 12 excelências e para encerrar a cantoria, canta-se o último verso sem dizer a quantidade excelências, mas tantas excelências. Canto de despedida do morto para o cemitério Uma inselênça Dizendo que a é hora Ajunta os carregadores Que o defunto Quer ir embora (Bis) (Oração e súplicas) Duas inselênças Dizendo que a é hora Ajunta os carregadores Que o defunto Quer ir embora (Bis) Tantas inselênças Dizendo que a hora é hora Já vem os carregadores O defunto já vai embora Adeus! Adeus! Que o defunto Já vai embora (ou Que o defunto quer ir embora) (Bis) Referências Bibliográficas BADAN, Rosane Costa. A Memória Coletiva. Apostila.doc. Goiânia, 25 de março de 2002. 1 arquivo (40,960 bytes). Disquete 3.1/2. Word for 2000. BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin ou a história aberta In Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. 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Palavras-chave: Cemitérios – Cidade – São Paulo – Túmulos – Igrejas. A cidade de São Paulo conta atualmente com quarenta cemitérios, sendo vinte e dois públicos e dezoito particulares, o mais antigo já desapareceu (Aflitos 1774), porém, resta a sua pequena capela no bairro da Liberdade. O Cemitério dos Aflitos já não mais existe, entretanto, muitos habitantes da cidade ficam intrigados quando passam na Rua dos Estudantes e observam aquela capela no fundo do beco, grudada com as casas, o seu sino pode ser alcançado pela mão dos moradores vizinhos. Outro fato enigmático envolvendo o Cemitério dos Aflitos é o sepultamento do antigo professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Júlio Frank, que foi enterrado na calada da noite na própria faculdade. A empreitada ocorreu quando alguns estudantes ficaram inconformados com a ida do corpo de Júlio Frank ao Cemitério dos Aflitos, e resolveram transladar o caixão para dentro da faculdade. Júlio só foi mandado aos Aflitos porque não era católico, e, portanto não podia ser enterrado em nenhuma igreja de São Paulo. Durante muitos anos, no dia dezenove de junho, o pátio onde está enterrado Júlio Frank era aberto à visitação e seu túmulo ficava iluminado e enfeitado, tradição que se desfez no ano de 1972.1 Um acontecimento trágico também envolvendo cemitérios e estudantes do Largo São Francisco foi a morte da Rainha dos Mortos. No tempo em que São Paulo era uma pequena vila sobravam poucas opções de lazer para os estudantes. Nesse período, reinavam as prostitutas e os personagens que viviam a boêmia paulistana, como o Padre Bacalhau e a prostituta Ritinha Sorocabana, a preferida dos poetas e boêmios da cidade. As farras e algazarras que os estudantes promoviam, também eram outras formas de passar o tempo na pacata vila de São Paulo. A estudantada (como eram conhecidas essas farras) mais trágica foi o episódio que ficou conhecido como Rainha dos Mortos. Durante uma madrugada, os estudantes resolveram levar a prostituta Eufrásia para dentro do Cemitério da Consolação, e para isso arrumaram um caixão, e em procissão pela cidade os estudantes levaram Eufrásia viva até o cemitério, quando abriram o caixão perceberam que Eufrásia estava morta. A idéia era fazer uma celebração, onde Eufrásia seria coroada Rainha dos Mortos, todavia, a rainha deveria estar viva e não morta como Inês Pereira. O caixão fechado asfixiou Eufrásia. Como os envolvidos no caso eram de famílias influentes o processo acabou sendo arquivado. Um dos estudantes nessa farra era o poeta Fagundes Varella. Um grande drama vivido por Fagundes Varella também envolveu o Cemitério da Consolação. Ele se apaixona por uma artista circense da Companhia Loande, que chega ao antigo Teatro São José. Com o casamento de Alice Guilhermina Loande e Fagundes Varella nasce um menino de nome Emiliano, que morre precocemente, então Fagundes Varella faz o belo Cântico do Calvário e toda noite ele ia recitar o verso no Cemitério da Consolação. Cântico do Calvário Eras na vida a pomba predileta Que sobre um mar de angústias conduzia O ramo da esperança. – Eras a estrela Que entre as névoas do inverno cintilava Apontando o caminho ao pegureiro Eras a messe de um dourado estio Eras o idílio de um amor sublime Eras a glória, - a inspiração, - a pátria O porvir de teu pai! Ah! no entanto, Pomba, - varou-te a flecha do destino! Astro, - engoliu-te o temporal do norte! Teto, - caíste! – Crença, já não vives! ... 2 As histórias dos cemitérios de São Paulo não ficam restritas apenas ao passado, os enigmas também estão presentes nos fatos recentes da história da cidade. O Cemitério de Santo Amaro tem um túmulo rodeado de placas de agradecimentos, trata-se de Bento do Portão, um mendigo morador das ruas de Santo Amaro, que faleceu e posteriormente começaram a atribuir milagres a ele. As mesmas sinas de milagreiros tiveram treze vítimas do incêndio do Edifício Joelma, sepultadas no Cemitério São Pedro (Vila Alpina). Elas ficaram conhecidas como "As Treze Almas do Joelma”. Outras vítimas do Joelma, que foram enterradas no Cemitério da Vila Formosa, acabaram sendo objetos de uma inusitada coincidência, pois sepultadas na quadra cinqüenta, acabaram sendo exumadas e na mesma quadra vieram oitenta e sete vítimas da chacina do Carandiru. O mistério ainda paira no ar quando o assunto é desaparecidos políticos do período da ditadura militar, As associações de desaparecidos políticos lutam e sofrem com as informações dos sepultamentos clandestinos realizados nos vários cemitérios da cidade. Uma das maiores descobertas das ossadas de desaparecidos políticos foi feita no Cemitério de Perus. Com uma grande vala comum desenterrada, os legistas agora podem identificar alguns dos desaparecidos. O Cemitério de Perus não é o único que abrigou as vítimas dos assassinatos políticos. No Cemitério da Vila Formosa, durante muito tempo, foi possível ver a sepultura de Carlos Marighella É o primeiro ano da minha vó morta e estou na quadra 349 do Cemitério de Vila Formosa. 'O maior da América Latina' – minha mãe me diz no ônibus. Próximo do lugar, numa região de covas bem arrumadas com flores e lápides de cimento, o que me chama a atenção é uma tumba revolvida - acintosamente revolvida pelo contorno organizado da vizinhança. Me aproximo desse monte de terra onde as formigas fazem a festa. A cruz de madeira que caíra tem a metade de um dos braços enterrada. Tento ler: gella, quella, ghella... Penso berinjela com molho. É uma época em que me surpreende o desenho das letras, o som, e o significado das palavras. Sorrio. A poeira faz redemoinho. Sinto uma mão me puxando violentamente para trás. É meu pai. Ele continua me arrastando enquanto olha amedrontado para os lados das colinas e das gavetas das ossadas que cercam tudo. Ordena que eu nunca mais me aproxime daquele túmulo. Diz que é o túmulo de um terrorista; que a polícia podia estar vigiando. Demorei a entender o interesse da polícia em vigiar os mortos naqueles tempos. Para mim, daquele dia em diante, 'terrorista' vinha da 'terra', a terra fofa e varada de formigas do maior Cemitério da América Latina.” 3 Os restos mortais de Marighella ficaram no Cemitério de Vila Formosa até 1979, quando foram transferidos para a Bahia, onde foi sepultado novamente com o epitáfio “Não Tive tempo de ter medo”. Os cemitérios da cidade de São Paulo, entretanto, não são só enigmáticos, eles podem ser palco de desvendamentos da História, Geografia e Arte da cidade, Vamos agora fazer um pequeno roteiro com três túmulos que revelam aspectos peculiares da cidade de São Paulo e do Brasil. A primeira vista, esse túmulo causa estranheza, uma associação de funcionários da indústria de chapéus de São Paulo numa metrópole como São Paulo recheada de trajes estadunidenses (calça jeans, camiseta, moletons). Teria um túmulo para os chapeleiros? A parte posterior do túmulo nos dá pista sobre esse questionamento dos chapeleiros, nela vemos uma gravura retratando a primeira indústria de São Paulo a utilizar energia a vapor. A fábrica de chapéus pertencia ao alemão João Adolfo Schritzmayer e foi fundada em 1853, que mais tarde foi homenageado, virando nome de rua (Rua João Adolfo), que ficou famosa por abrigar o Edifício Joelma, aquele do grande incêndio. A localização da fábrica é onde agora temos a estação de metrô Anhangabaú, próximo à Praça da Bandeira, mas uma dúvida ainda fica, por que São Paulo tinha uma fábrica de chapéus tão grande, com mais de 200 funcionários? A principal resposta é o hábito europeu que o paulistano tinha de usar chapéus na década de 20, 30, 40 do século XX, costume que decaiu no final da Segunda Guerra Mundial, e passou-se a adotar o modelo estadunidense. Nas fotos de São Paulo, anteriores a Segunda Guerra Mundial, é raro você notar alguém sem chapéu, praticamente todos os habitantes usavam chapéu (homens, mulheres e crianças), assim como na Europa. Atualmente (2005) o brasileiro, principalmente o jovem urbano, usa o boné, inspirado nos times de baseball dos E.U.A, ou seja, um modelo estadunidense implantado para o Brasil. Outra pergunta que pode ser suscitada, é a compra de jazigo coletivo por parte de operários da indústria. Para entender essa questão, temos que remontar ao contexto da época, quando o sindicalismo, através das associações de mútuo socorro, que além de garantir assistência médica aos associados, tinha também uma preocupação com a assistência funerária. Algumas vezes, em detrimento de adquirir uma sede própria para a associação era comprado o jazigo coletivo. Portanto, esse túmulo guarda uma visão espacial da cidade de São Paulo que já não mais existe, porque São Paulo tem uma incessante produção e reprodução do espaço, como diz a música Sampa “da força da grana que ergue e destrói coisas belas”, ou seja, o sistema econômico capitalista vive produzindo espaços, depois com a desvalorização desses espaços eles são destruídos para serem reconstruídos, ou melhor, reproduzidos. Esses conceitos de produção e reprodução do espaço podem ser trabalhados com as imagens desse túmulo, que traz outra temporalidade da cidade de São Paulo, onde o centro da cidade abrigava uma indústria, essa visão só é possível graças ao congelamento dessa temporalidade que ficou impressa no Cemitério da Consolação. Outro aspecto possível de ser abordado utilizando o Cemitério da Consolação é a relação entre o rural e o urbano, e para isso um túmulo que pode ilustrar essa relação é o de Eduardo Prado. O membro da família de ricos cafeicultores e com grande influência no Império, Eduardo viveu uma época em Paris, onde se tornou grande amigo do escritor português Eça de Queirós que acabou inspirando-se em Eduardo para escrever o personagem Jacinto de Tormes, protagonista do livro A Cidade e as Serras. A temática do livro gira em torno das diferenças entre o campo (puro e rudimentar) e as cidades (sofisticadas e corrompidas), assim como o personagem Jacinto de Tormes, Eduardo Prado acaba retornando ao campo no final da vida para a Fazenda Brejão4 O assunto tratado no livro pode ser transportado para nossa atual realidade, onde buscamos viagens redentoras ao campo, procurando o contato com a escassa natureza dos nossos territórios construídos. Ademais a nossa fuga fugaz da cidade tem o objetivo principal de recarregar a pilha do trabalhador, injetar ânimo e disposição na força de trabalho, para que ela continue sendo devidamente e rentavelmente explorada. O lazer programado pelo trabalho exige novos cenários para que os trabalhadores esqueçam momentaneamente a condição de explorados, tema que podemos discutir não só do ponto de vista dos espaços especializados para o turismo e lazer, mas também com relação ao tempo principalmente o período de férias e feriados. O livro de Eça de Queirós está focado ao pertencimento aos lugares e o (des) encantamento como o moderno que a cidade representava na época, essa perspectiva histórica da gênese das grandes cidades é importante para entendermos as diferenças da vida nas pequenas e grandes cidades. Atualmente a grande cidade (metrópole) permitiu certo anonimato para os habitantes, algo muito difícil de ocorrer numa cidade pequena, entretanto a cidade pequena não traz problemas como a poluição. Sobre o pertencimento, o próprio Eduardo Prado deixa claro sua predileção pela simplicidade do campo: “Considerava o Brejão sua verdadeira e única morada; o mais eram pousos passageiros; quadros, livros, armas, curiosidades, tudo ali concentrava.” 5 Essa sensação de pertencer a uma região, esse regionalismo também faz parte de um dos conceitos mais importantes para a Geografia, o de região, e que foram retratados por muitos escritores brasileiros do século XX como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e outros. Portanto, a discussão da relação cidade/campo pode ser ilustrada a partir desse túmulo resgatando o livro de Eça de Queirós, assim como outros autores da literatura (Monteiro Lobato também está sepultado no Consolação), fazendo uma intersecção com essa outra área do conhecimento. O último túmulo a ser visitado por esse nosso breve passeio pelo Cemitério da Consolação é o túmulo de Luiz Gama, tendo por objetivo abordar o tema transversal preconceito através do movimento abolicionista e também os cortejos fúnebres que andam cada vez mais raros nas metrópoles brasileiras. Essa possibilidade educativa no túmulo de Luiz Gama vem reforçar a questão da herança cultural dos africanos na formação do povo brasileiro, questão obrigatória no currículo escolar através da determinação da Lei de Diretrizes de Base da Educação (LDB). Luiz Gama era escravo e foi vendido pelo seu pai na Bahia, em virtude de uma dívida de jogo, indo parar no Rio de Janeiro, Santos, Campinas e por último em São Paulo, onde aprendeu a ler com o Conselheiro Furtado. Na capital paulista, cursou a faculdade de Direito do Largo São Francisco e passou a defender os escravos e alforriados nos tribunais, montando ainda a Caixa Emancipadora Luiz Gama, uma espécie de sociedade de ajuda mútua para alforriar escravos. A luta de Luiz Gama pela abolição durou toda a sua vida, e ele partiu antes da abolição dos escravos, pois morreu em 1882, como comenta Raul Pompéia: Caminhava triste, refletindo na catástrofe que significava a morte de Luiz Gama. Lembrava-me de que me haviam mostrado na véspera, em casa do morto, uma pequena guarnição de tijolos com que Luiz Gama andava cercando os alegretes do jardim... A guarnição estava em meio... Eis um trabalho do homem, que fica por concluir, observam-me... Eu refletia que, como a guarnição dos alegretes, uma outra obra de Luiz Gama ficara em meio transformada em fuste partido para adornar-lhe o túmulo, - o sonho de todos os seus dias: a abolição.6 Apesar da coluna interrompida da abolição, que Luiz Gama não chegou a presenciar, hoje temos as políticas afirmativas e talvez fosse a hora de Luiz Gama ser o símbolo dessa luta contra o preconceito que continua em voga. Os enterros que durante muito paralisavam regiões da cidade por alguns momentos, atualmente são cada vez menos perceptíveis nas grandes cidades e talvez o primeiro grande enterro que parou a cidade tenha sido o de Luiz Gama. As grandes vias da cidade foram construídas para a circulação dos automóveis, o primeiro congestionamento da cidade foi na inauguração do Teatro Municipal em 1911. De lá para cá, apesar do aumento das vias de circulação, a fluidez dos veículos não melhorou muito, a velocidade da carroça é semelhante à média da velocidade dos veículos na cidade: 17 km por hora. Quando ocorrem manifestações de trabalhadores ou de qualquer outro grupo, o trânsito pára. A Avenida Paulista que foi palco de muitas manifestações, hoje está restrita a poucos eventos. Agora imaginem se colocássemos os enterros dentro do atual contexto do trânsito, isso atrapalharia o fluxo de veículos e de mercadorias, por isso os féretros são cada vez mais raros. Observem a descrição de parte do enterro de Luiz Gama e vejam a diferença para um enterro de hoje, é lógico não era um enterro qualquer, pois Luiz Gama era bem relacionado e muito conhecido na cidade. Era o enterro. Devia fazer-se a pé. O cemitério estava longe, no extremo oposto da cidade, para as bandas da Consolação... A considerável distância, que separa os dois arrabaldes, devia ser percorrida a pé, para que a muitos fosse possível a honra de levar aquele glorioso cadáver... Ao entrar na cidade, uma comissão de seis membros do Centro Abolicionista de São Paulo tomou as alças do caixão. A cidade estava triste. Inúmeras lojas tinham as portas fechadas, em manifestação de pesar, as bandeiras das sociedades musicais e beneficentes da capital pendiam a meio mastro. Apinhava-se o povo nos lugares por onde devia passar o enterro. Ia sepultar-se o amigo de todos. Nunca houve coisa igual em São Paulo, dizia-se pelas esquinas. 7 Esse trajeto feito num longo tempo mostra que os habitantes (da época) queriam enfatizar as relações humanas que tiveram durante a vida, além de homenagear o morto, participando desse rito de passagem. Cabe no caso, não de enaltecer outra temporalidade, ou se tratar de saudosismo, o que podemos perceber é o tempo de exaltação ao morto na nossa sociedade atual não tem mais lugar, porque a mercadoria e os veículos precisam circular, e os mortos não interessam mais, pois já não fazem parte da cadeia produtiva. Referências Bibliográficas ABREU, J. Capistrano de. Eduardo Prado. In Ensaios e Estudos (Críticas e História). Rio de Janeiro: Livraria Briguiet,1931. BARROS, Frederico Pessoa de. Poesia e Vida de Fagundes Varela. São Paulo: Edameris, 1965. BONASSI, Fernando. 100 Histórias Colhidas na Rua. São Paulo: Scritta, 1996. D’AVILA, Luiz Felipe. Dona Veridiana: A trajetória de uma dinastia paulista. São Paulo: A Girafa, 2004. POMPÉIA, Raul. A Morte de Luiz Gama. São Paulo: Gazeta de Notícias, 24 de agosto de 1882. São Paulo Não Comemorou Júlio Frank – Tribuna da Imprensa 20/06/1972. 1 São Paulo Não Comemorou Júlio Frank – Tribuna da Imprensa 20/06/1972 Frederico Pessoa de Barros. Poesia e Vida de Fagundes Varela. Edameris. 1965. p.96. 3 Fernando Bonassi. 100 Histórias Colhidas na Rua. Scritta. 1996 4 Luiz Felipe D’avila, Dona Veridiana: A trajetória de uma dinastia paulista. São Paulo, A Girafa, 2004. p. 367 5 J. Capistrano de Abreu. Eduardo Prado. In Ensaios e Estudos (Críticas e História). Rio de Janeiro, Livraria Briguiet, 1941 p. 339-348. 6 Raul Pompéia, A Morte de Luiz Gama, Gazeta de Notícias, 24 de agosto de 1882. 7 Raul Pompéia, A Morte de Luiz Gama, Gazeta de Notícias, 24 de agosto de 1882 2 A arte no espaço da morte Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé Elaine Maria Tonini Bastianello Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural/UFPEL Resumo A arte tumular no Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé, durante o século XIX, é investigada neste estudo. Para examiná-la, foi necessário percorrer alguns caminhos: localizar e inventariar a arquitetura tumular para fazer sua cartografia artística; agenciar algumas tipologias encontradas com significações inscritas pela sociedade na busca de eternizar seus mortos; compreender a arte tumular como memória coletiva. O estudo está inserido dentro de uma moldura teórica que percebe a arte cemiterial como suportes de registros históricos da sociedade. Foram analisados túmulos representativos das arquiteturas escolhidas para estudar as ocorrências das tipologias. As análises apontam para existência de continuidades de segregação econômica entre os espaços da vida e da morte. Palavras-chave: arte tumular, registros históricos, memória coletiva. OLHARES INICIAIS As sociedades têm, no transcorrer do tempo, evidenciado diversas maneiras de responder sobre a morte. No ocidente-cristão, em seus rituais fúnebres tem predominado o enterramento de seus mortos. A criação de espaços para morte surge com o novo o pensamento urbano ocidental, a partir do século XIX, o qual determina usos e funções diferenciadas para os espaços dentro da cidade, entre eles, os cemitérios. Aliada, a esta perspectiva, junta-se as idéias da mentalidade da época em perpetuar o morto. Assim, o túmulo passa a assegurar este pensamento. Neste novo espaço, a sociedade tenta estabelecer conexão entre os espaços da morte com o da vida, como local de visitas, de passeios e de meditações. São formas de “embelezamento” de um espaço que possibilita a refletir sobre a tentativa de igualar a paisagem ante da morte. A existência do conjunto de monumentos tumulares evidencia isto, glorificando a memória dos mortos. Nos cemitérios, como salienta Bellomo (2000, p. 15) são projetados valores, crenças, estruturas socioeconômicas e ideologias. Neste sentido, o estudo nesse espaço proporciona conhecer diversos aspectos da sociedade, constituindo-se em importantes fontes para conhecimento histórico. Diante dos argumentos, trago como foco norteador deste estudo o de analisar o Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé como espaço de memória e identidade social, no período de meados do século XIX e XX através da arte tumular. Justifica-se tal objetivo, fato de neste período a sociedade bageense, aristocrática e latifundiária, vivenciava todo um “glamour” desse momento histórico. PERCURSO INVESTIGATIVO O cemitério analisado, apesar de vivenciar o processo de modernização e, porque não da massificação de sepultar os mortos, apresenta um rico e vasto acervo de mobiliário funerário, possibilitou inventariar uma vasta gama de significados em suas edificações tanto na arquitetura, quanto na estatuária e nos adornos. No entanto, sabe-se muito pouco sobre elas, por isso ser de extrema pertinência realizar um estudo sobre elas. Com esta perspectiva, busca-se reconhecer, compreender e valorizar este espaço como portador da história dessa cidade. O cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé é o principal espaço da morte da cidade, está situado no final da Avenida Sete de Setembro. Sua localização evidencia as políticas urbanas: situar no último vetor de expansão urbana. Foi construído em meados do século XIX com a intenção de durar séculos. O antigo portão de entrada está direcionado para essa avenida; ambos os lados da alameda principal existem pomposos túmulos e no seu final a Capela. É nesta rua que se encontra o seu mais rico acervo tumular, onde está sepultada a sociedade aristocrática e latifundiária. A proposta deste estudo foi de uma tentativa de elaborar um inventário e registro das manifestações artísticas nas suas edificações tumulares. A finalidade é não apenas constatar a presença, mas também realizar uma tentativa de explicação para os eventos. Isto é, tratar os achados como um fluxo, não como código apenas. Para este exercício de agenciamento entre arte e registro, os dados foram buscados em três ruas da 1° Divisão, pela ocorrência da maior pomposidade tumular, onde se localizam 58 túmulos pertinentes para análises. Os Mapas 1 e 2 ilustram o local estudado. Neste local estão sepultados os primeiros mortos, das famílias mais tradicionais e de poder aquisitivo mais elevado da sociedade bageense. Esse ordenamento espacial criou uma segregação socioeconômica entre os sepultados, pois esta área é hoje a mais valorizada comercialmente. Tal fato é ocasionado pela ausência da oferta de terrenos vazios, pelo alto valor alcançado pelas edificações tumulares e pela beleza de suas monumentalidades. Mapa 1 – Vista aérea da área da 1° Divisão Legenda: - Ruas inventariadas Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento de Bagé, 2002. Para atender a proposta deste estudo foram fotografadas todas as manifestações consideradas importantes nas edificações registradas em fichas-padrão elaboradas previamente. tumulares e As fichas foram catalogadas para compor o inventário tipológico. Por uma opção didática para este trabalho, foi selecionada apenas uma representação de cada arquitetura tumular. Mapa 2 – Localização dos túmulos inventariados Fonte: Elaborado por Elaine M. T. Bastianello, 2007. A arte cemiterial é indicativa de diversas manifestações simbólicas, inscritas na arquitetura, na escultura e nos adornos tumulares. Pare este recorte de pesquisa foi elaborado uma tipologia inspirada e o agrupamento da arquitetura dos túmulos nos estudos de Borges (2002) e Bellomo (2000) para integrar o inventário, as quais foram norteadores das análises. Quadro 1 mostra o esquema elaborado. Quadro 1 - Distribuição da Tipologia Arquitetura Jazigo-Capela Jazigo-Monumental Túmulo Porte Médio Túmulo Simples Escultura Adornos (n° de 15) Imagens Religiosas (n° de 36) Alto-relevo (n° de 50) (n° de 14) Imagens Profanas (n° de 12) Baixo-relevo (n° de 24) (n° de 10) Grades (n° de 14) (n° de 09) Total: 48 OBS: o número da arte tumular corresponde as suas ocorrências. DISCUSSÃO DOS ACHADOS Examinar a arte tumular como suporte de memória de uma época é relevante para preservação identitária ao resgatar seu inestimável valor histórico e artístico para a cidade. Com este intuito passo a analisar a arte cemiterial do local elegido. 1. Jazigo-Capela: nº 48, da família Alamon Descrição formal: É um jazigo-capela, com estilo neoclássico, com tipologia religiosa, de maior riqueza no cemitério da Santa Casa pela sua monumentalidade e exclusividade quanto a sua cúpula, porta e portão em bronze e vidros bizotados. Sua estrutura simétrica segue os padrões da arquitetura clássica ao empregar na sua fachada quatro colunas de estilo coríntio, sendo duas de sustentação e as outras duas de embelezamento. Em cima do pórtico de colunas existe uma cruz, ladeada por duas piras. Este jazigo-capela possui ventilação e iluminação na sua cúpula. Esta obra funerária possui duas esculturas longelíneas de anjos com estrela no alto da cabeça, cuja função é de guiar os caminhos do novo local de morada. Toda essa produção foi realizada em mármore de carrara e é de autoria de Aliboni Santini, de Buenos Aires/Argentina. Escultura funerária: No topo do monumento a presença do anjo simboliza a aceitação da morte. Para Steyer (2000) a representação do morto pelo o anjo significa admissão pela família, em que “a morte de seu ente querido como um fato consumado” (p. 74). A alegoria da saudade expressada ns feição do anjo evidencia o entrelaçamento sentimental entre o falecido e seus familiares. As asas abertas permitem a interpretação que esta em movimento, em passagem para outra vida, evidenciado na Figura 1. Adornos: As presenças das duas piras no topo ladeiam o jazigo-capela, as quais significam a finitude da vida terrestre. No topo do frontão também apresenta uma cruz, símbolo da fé cristã sempre presente nos espaços sagrados e nas atividades religiosas (DALMÁZ, 2000). Assim, a cruz estabelece a representação material da morte, da dor e do sofrimento. Todo estes ornamentos em alto relevo, típico da estética do período neoclássico, exercem um papel relevante na estrutura construtiva do monumento funerário pelo seu caráter decorativo muito utilizado pela classe burguesa para monumentalizar o morto frente a comunidade (BORGES, 2002). Estado de Conservação: Muito bom, não sendo considerado ótimo por apresentar pequenas rachaduras nas laterais e um de seus vidros está quebrado. 2. Jazigo Monumental: nº 1, da família de Francisco Ilarregui. Descrição formal: Trata de uma obra funerária de tipologia celebrativa, com características de estética eclética, inspirada na Antiguidade Clássica formando uma composição atípica neste espaço cemiterial por ser único. Esta edificação tumular apresenta toda gradeada por ferro fundido e ostenta uma decoração refinada e bem distribuída. Existe nas lateriais dois vasos de mármores; no centro seis degraus conduzem para o acesso ao nicho, na parte superior do mausoléu. Este nicho é ladeado por quatorze colunas, em estilo coríntio, onde está localizado o sarcófago. Em cima do sarcófago encontra-se o busto do homenageado. Este jazigo perpétuo, verdadeiro espetáculo arquitetônico todo elaborado em mármore de carrara é de autoria de A. Barsante, de Pelotas/RS. Escultura funerária: A escolha de escultura humana, neste caso um busto, mostra a negação da morte, é a manifestação do sentimento de continuidade da vida, em que o falecido continua com sua vida terrena (STEYER, 2000). O uso do busto na arte funerária mostra a continuidade do período da Antiguidade clássica, em que tinha o significado de marcar sua presença mesmo após a morte, em celebrar a memória do vulto morto (BORGES, 2002). O busto, neste túmulo, representa a imagem fiel do morto, equivalente aos bustos romanos. O espanhol Sr. Franscisco Ilarregui, radicado em Bagé, tornou-se um próspero comerciante da cidade. Seu jazigo chama a atenção pela imponência e reflete a riqueza de um homem que, depois de morto, quer ser representado como um herói letrado entre as colunas de sua própria acrópole. Adornos: Este monumento apresenta como ornamentos de alto relevo encontrados no frontão do jazigo: um pergaminho nominado e datado o nascimento e falecimento do Sr. Francisco Ilarregui; uma ampulheta alada, representando o tempo que se esvai e a certeza da morte, destacada pelas tochas viradas para baixo, reafirmando a finitude da vida terrena. Estado de conservação: Bom, apresenta pequenas rachaduras e ausência de parte do arremate do topo do monumento. Isto pode Ter sido ocasionado por intempéries do tempo ou pelo vendaval acontecido na cidade em 2001 um túmulo limpo. Observa-se que não está abandonado pelos cuidados com sua limpeza que apresenta. 3. Túmulo Porte Médio: nº 7, da família de Amado Loreiro de Souza. Descrição formal: É uma arte funerária com estética do perídio art noveau, em mármore de carrara com tipologia profana. O túmulo está todo gradeado em ferro fundido, constituído de uma carneira, coberto com uma tampa levemente inclinada. A carneira, por sua vez, está encostada em um muro parietal, que sustenta uma escultura no seu topo, este conjunto escultório é assinado por A. Canessa, proveniente de Genova/Itália. Escultura funerária: Esta escultura é de uma jovem, com alegoria sentimental. Encontra-se representada com total clareza registros da leveza e suavidade, tributos do estilo art-noveau. A figura de uma jovem para representar a morta mostra à negação da morte pelos familiares. Seu olhar para o céu com serenidade e os pés descalços significam humildade, em suas mãos um buquê de flores pode apresentar vários significados, entre eles, feminilidade e pureza. Segundo Dalmáz (2000) isto aproxima dos valores característicos da Virgem Maria. Também as flores são ligadas a idéia de amor divino. Nesse sentido, evidencia o amor dos familiares com a finada. Adornos: Pouquíssimo, este túmulo está centrado na escultura, apresentando como adorno somente o buquê de flores. Estado de conservação: Péssimo por o mármore apresentar desgastes devido às intempéries, com rachaduras em toda sua carneira. Também encontra-se em total estado de abandono. 4. Túmulo Simples: nº 50, da família Michelena. Descrição formal: Trata-se de um modelo muito empregado no cemitério da Santa Casa de Bagé, apresenta-se em forma de catacumba. É constituído de dois andares, todo revestido em mármore de carrara. Este túmulo-catacumba apresenta-se com gradios de ferro fundido em seu entorno. Esta obra funerária é assinada pelo espanhol aqui radicado, o artesão tumular José Martinez. Escultura: A Cruz é a sua única escultura, localiza-se no topo da catacumba, é um dos principais símbolos representativos do cristianismo. A forma desta cruz para Dalmáz (2000), com quatro braços transversais, significa a morte vencida e seus braços às virtudes da alma humana. Adornos: Ornamentos em alto relevo de vasos nas laterais, que significam a vida terrena separada da alma; ramos de palma, representando a vida eterna; coroa de flores e fitas rodeiam o retrato principal, indicativo de alegria divina; colunas de embelezamento; E de baixo relevo é mostrado pelo rolo de pergaminho, significando que sua vida é um livro aberto (BORGES, 2002; DALMÁZ, 2000). Estado de conservação: Muito bom, com pequenas rachaduras laterais e apresenta cuidados com sua limpeza. ALGUNS FRAGMENTOS FINAIS O cemitério denota um vínculo a um passado, seus proprietários tentam perpetuar seus valores, seus pensamentos através de suas edificações monumentais. As construções dessas obras evidenciam a tendência estética de uma época. Após diversas observações realizadas em campo, esboço uma primeira reflexão de inventariar e registrar a arte tumular. É uma temática que a cada ida a campo abrem outras tantas possibilidades de análises, novos olhares são direcionados, outros entrelaçamentos vão sendo possíveis de ser realizados. O que fiz neste trabalho foi apenas um recorte. Observou-se que neste cemitério a arte encontrada segue os padrões estéticos europeus nos estilos neo-gótico, art novau, art-deco, eclético típicos dos meados do século XIX e iniciais do XX. A predominância da arquitetura tumular de Jazigo-Capela e JazigoMonumental, neste local da 1ª Divisão, mostra o quanto este cemitério estabelecia vínculos com a sociedade aristocrática e latifundiária na determinação do local de sepultamento de seus mortos. São poucos os Túmulos- Simples encontrados neste espaço cemiterial. É possível apontar através da datação desta pomposidade e beleza da sua arquitetura marmórea sinais de status dentro da sociedade, correspondendo ao período de próspero desenvolvimento da pecuária da cidade. Tal fato é corrobado pela autoria dos túmulos e pelos ilustres personalidades ali sepultadas. Também é possível constatar a relação da sociedade com a Igreja, tanto pela localização da maioria dos Jazigo-Capela ao lado da Igreja como a predominância do uso de imagens sacras em seus ornamentos nos diversos tipos de túmulo. A arte de alto-relevo foi a mais usual, em sua maioria, elementos ligados a símbolos do cristianismo como a cruz, rosário, flores. A valorização do espaço cemiterial possibilita desenvolver o sentimento de pertencimento com a memória e a identidade social da cidade, destacando seu valor patrimonial. Concordando com Nora (1993, p. 16) ao afirmar que o cemitério é um dos “lugares de memória assim como os museus, os arquivos e os santuários. Ele também está associado à vida, pois ali se instala uma rede articulada de identidades diferentes, uma organização inconsciente da memória coletiva, que nos faz tomar consciência do seu significado cultural”. Referências Bibliográficas BELLOMO, Harry, (org.). Cemitérios do Rio Grande do Sul. Arte, Sociologia e Ideologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890 – 1930). Belo Horizonte: Com Arte, 2002. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Hibrídas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1998. CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: UNESP, 2006. DALMÁZ, Mateus. 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Elisiana Trilha Castro Historiadora e mestranda do PGAU da UFSC Alice de Oliveira Viana Arquiteta, mestranda do PPGAV da UDESC Resumo Este artigo procura apresentar alguns elementos presentes na estética dos cemitérios de imigrantes alemães pesquisados na região da Grande Florianópolis e apresentados no “Inventário de Cemitérios de Imigrantes alemães da região da grande Florianópolis”. Entendendo a crença como uma atitude de negação da morte, manifestada, dentre outros pela adoção de ornamentação e símbolos na estética funerária, estes cemitérios, contrariamente aos católicos ou tradicionais, apresentam formas de expressão mais circunspectas e comedidas, o que não descarta, diferente do que comumente se supõe, também a negação da morte e a existência de uma crença e religiosidade praticadas e renovadas através dos poucos elementos adotados. Palavras-chave: Cemitério, estética e religiosidade Diante da morte podemos assumir duas posturas: ser melancólicos ou tautológicos é o que assinala o historiador Georges Didi-Huberman (1998). Trata-se de situações que indicam muitas vezes nossa atitude perante o que é irremediável, a finitude, talvez de nós mesmos. De acordo com este autor o tautológico olha para a imagem do túmulo, do caixão, e vê ali somente uma caixa prismática vazia. Ele olha para o vazio, vê ali nada mais que uma inscrição, uma representação, ele nega que ali embaixo haja um sólido, um morto. Já para o melancólico, o crente, o corpo também não está mais ali, ele está longe. Ele pensa no ente querido que se encontra agora distante em um lugar que pode ser de descanso e paz, belo e saudável, no Além, em um local melhor, talvez o Paraíso ou o Céu. A crença, diferente da tautologia, é da dimensão do invisível, ela é fruto da imaginação. Podemos ter estas duas atitudes talvez porque quando olhamos o túmulo é ele que nos olha profundamente, impedindo nossa capacidade de simplesmente olhá-lo. Ele nos olha e indica que ali há um volume que em breve poderá ser o nosso; o túmulo, que através de um volume só, anuncia de forma incontestável o que seremos um dia - um corpo jazente, inerte, horizontal (DIDI-HUBERMAN, 1998). Talvez por isto tanto a atitude de tautologia quanto a de crença nada mais são do que resultado da negação, do evitamento da morte, devido ao reconhecimento da inexorável finitude humana, da qual ninguém é imune: os dois pensam no túmulo vazio. A estética cristã foi profundamente marcada pela atitude de produzir imagens geradas pela crença, imagens que eram resultado de uma ação de escape, de fuga, dessa situação inexorável da morte e justamente por isso criam um tempo fictício, de uma teleologia, para superar nossos temores. Assim a estética cristã carrega o que o Didi-Huberman (1998) chama de melancolia, e tal característica deixou traços na arquitetura e na tradição cemiterial. Já que: O homem da crença prefere esvaziar os túmulos de suas carnes putrecentes, desesperadamente informes, para enchê-los de imagens corporais sublimes, depuradas, feitas para confortar e informar – ou seja, fixar – nossas memórias, nossos temores e nossos desejos (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 48). Assim diferentes maneiras de se materializar a forma ou o local onde enterramos nossos mortos encerram, em grande medida, a negação da morte e são, portanto, resultados de crenças. Isto parece estar expresso tanto em cemitérios onde são encontradas farta ornamentação e inserção de elementos arquitetônicos alusivos à memória do morto - pois nesta atitude podemos perceber uma negação da morte, através da crença geralmente centrada na sobrevivência do morto no Paraíso do que na aceitação de sua finitude quanto em cemitérios ou túmulos mais timidamente ornamentados que, apesar de apresentarem poucas formas de expressão estética, estas não deixam de existir e de ser produto de crenças. Mas é fato que geralmente os cemitérios com uma arquitetura mais comedida, como no caso dos cemitérios protestantes ou dos cemitérios jardins, são associados à falta de religiosidade e de uma atitude de reverência àqueles que se foram. Mas será que podemos afirmar que há pouca religiosidade na discreta arquitetura destes cemitérios? São questões que se põem quando nos deparamos com cemitérios que possuem uma arquitetura funerária que se distancia da comumente encontrada naqueles mais convencionais ou cemitérios secularizados espalhados por muitas cidades do Brasil, caracterizados por serem marcadamente católicos e com uma sacralidade afirmada por uma profusão de anjos, santos e demais referenciais religiosos. Alguns como os encontrados durante a realização do “Inventário de cemitérios de imigrantes alemães da Grande Florianópolis”1, que chamam a atenção por suas particularidades e que em grande medida, exigem um olhar mais atento ao lugar da afirmação do sagrado em suas formas quase sempre horizontais e sóbrias. Figura 01 – Elementos funerários dos cemitérios inventariados. Através deste inventário foi possível perceber uma simbologia, que apesar de comedida, faz-se presente e aparece em diferentes cemitérios ligados aos imigrantes teuto-brasileiros. A observação de um conjunto de elementos e ritos, repetidos em diferentes localidades visitadas com a pesquisa apontou que a discreta postura funerária deste grupo étnico guarda em pequenos detalhes seus valores religiosos. Menos monumental, menos alegórica, mas reconhecível na forma como estes imigrantes encontraram para despedir-se de seus mortos. A atitude de ornamentar um túmulo parece estar ligada à esta atitude de crença que é expressada de diversas maneiras pelos diferentes credos das sociedades ocidentais. Neste sentido, os cemitérios encontrados em comunidades teuto-brasileiras da Grande Florianópolis, apresentaram práticas e formas funerárias diferentes daquelas encontradas em outros cemitérios a céu aberto, o que inclui desde a opção por poucos símbolos decorativos até pela quase ausência de mausoléus, outra opção arquitetônica funerária bastante encontrada nos cemitérios convencionais brasileiros. Em um outro artigo2 tratamos da relação entre a crença sobre o morto e a morte e as representações funerárias dos protestantes, que tiveram grande influência na arquitetura cemiterial da Alemanha, por meio de cemitérios conhecidos como Beaux-Arts - uma união do ambiente natural com regras de simetria produzidas a partir de discursos do pitoresco com pouca ornamentação e monumentalidade (Oliveira, 2007). Para o protestante luterano, o qual acredita que não há Purgatório e que o fiel se salva em vida, uma série de investimentos como ritos e elementos arquitetônicos no lugar dos sepultamentos perdem o sentido. Agora neste artigo tal relação será analisada através de alguns elementos encontrados nestes cemitérios de paisagem marcadamente influenciada por esta postura cemiterial. As práticas funerárias consideradas como características destas comunidades foram percebidas depois da análise de um universo de 104 cemitérios presentes, com sepultamentos de católicos e luteranos em 13 municípios da região da Grande Florianópolis formada por Antônio Carlos, Angelina, Anitápolis, Águas Mornas, Santo Amaro da Imperatriz, São Bonifácio, São Pedro de Alcântara, Rancho Queimado, São José, Palhoça, Biguaçu, Governador Celso Ramos e a capital do Estado, Florianópolis. Dentre estes elementos percebidos como característicos das comunidades teuto-brasileiras da Grande Florianópolis destacam-se as cabeceiras proeminentes, as cruzes, símbolos decorativos como a palma, as flores, o coração e as mãos juntas e as flores em ritos funerários, dentre outros enumerados nos resultados apresentados de forma preliminar no inventário. Para este artigo, serão analisados estes elementos acima destacados. Figura 02 - Elementos funerários dos cemitérios inventariados. Cabeceiras proeminentes Uma das características que marcam a paisagem destes cemitérios é a presença das cabeceiras proeminentes. Apesar de uma opção arquitetônica que praticamente nivela visualmente os túmulos presentes nestes cemitérios, foi possível perceber, principalmente no período que vai desde as últimas décadas do século XIX até a primeira década do XX a presença destas cabeceiras como elementos de destaque arquitetônico. A presença marcante destas conduziu à utilização do termo “proeminentes” no Inventário de forma a ressaltar que no conjunto de sepultamentos que primam pela pouca estatura e volume, “proeminente” foi o termo mais adequado já que quer dizer aquele que: “fica sobranceiro ao que o circunda, elevado, dominante” (PRIBERAM, 2008). Tal elemento parece ocupar lugar de destaque perante os demais sepultamentos, dado que não são encontrados outros elementos de distinção na postura funerária desses imigrantes, como por exemplo, mausoléus ou pequenas capelas. Dentre estas cabeceiras proeminentes, muitas cujos sepultamentos são do final do século XIX apresentam uma estética mais sóbria que remete ao neoclássico, com alguns elementos que marcam esse estilo como cimalhas, frontões clássicos, pedestal, o arco de meia volta, divisão da cabeceira em três partes, a saber: base, corpo e coroamento, o desenho de colunas clássicas, alguns poucos elementos decorativos, dentre outros. Outras poucas se apresentam bastante ornamentadas, com detalhes como curvas, volutas, flores em relevo, colunas com capitéis floridos, dentre outros, alinhando-se mais com a estética do ecletismo, pela profusão de elementos ornamentais. Entretanto, pode-se inferir que grande parte destas cabeceiras de médio e grande porte faz alusão à imagem da casa e do pórtico, muitas encimadas por cruzes, outras por pequenas estátuas de anjos, como se percebe na figura 01, dando nítida impressão de formarem telhados e portas onde geralmente estão colocados epitáfios. Os teóricos Gilles Deleuze e Félix Guatarri afirmam que a arte tem início com a casa, pois ambas se relacionam com esses dois elementos que seriam “a Casa e o Universo, o Heimlich e o Umheimlich, o território e a desterritorialização” (DELEUZE;GUATARI, 1992, p.240). Estas imagens que são encontradas não só nas cabeceiras proeminentes, mas também em cruzes e lápides, parecem remeter, em grande medida, a uma tentativa de ligar-se à Casa Primordial, ao Cosmos, como um retorno à Casa do Pai Celestial ou até mesmo, à afirmação da representação da última morada. Tanto as casas como os pórticos apresentam nichos que seriam as aberturas, portas ou passagens (ver figura 01). As fendas, as aberturas podem ser entendidas nestas imagens como um limite, limiar que separa o olho do olhar, o visual do visível. Tanto as portas como os pórticos possuem um duplo caráter, um de obstáculo e outro de abertura. Muro – anteparo, e labirinto – entrada de um templo ou lugar temível, “um lugar aberto diante de nós, mas para nos manter à distancia e nos desorientar ainda mais” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.232). A porta foi extensamente tematizada pela religião, por narrativas míticas e contos arcaicos, possuindo esse duplo valor de um local a ser atravessado e a ser obstaculizado. Nas passagens da Bíblia, a porta ou o portão aparece como elemento constante, como um símbolo de passagem ao reino dos mortos, ao Inferno ou ao mundo do Paraíso3. A porta como umbral, como um rito de passagem, como uma transição entre aquilo que seremos e aquilo que deixamos de ser, entre o futuro e o passado, entre a vida profana e a sagrada é notada em diferentes cabeceiras encontradas nos cemitérios visitados durante o inventário. Tais observações acima citadas apontam para uma possível relação entre estas formas adotadas e a religiosidade que nestas podem estar previstas. Detalhes que podem fugir quando se observam tais cemitérios em busca de símbolos e signos da religiosidade destes espaços, mas a forma das mesmas lembrando casas e portas, torna possível a referência à imagens religiosas como do mítico Retorno a Casa do Pai ou até mesmo à representação da última morada. Quanto a apresentação destas cabeceiras, as mesmas como também os túmulos encontrados evidenciam em grande medida as mudanças estéticas ocorridas ao longo das décadas e que também se expressam nos cemitérios. Encontram-se túmulos construídos com alusões ao neoclássico, ao ecletismo, além daqueles com formas mais simples quase sem ornamentos, características da modernidade do século XX. A estética do século XX passou a negar o ornamento e linhas sinuosas em detrimento da sobriedade e do despojamento da geometria da máquina. A partir da década 1930, somada à já ausência de alegorias e santos, muitos túmulos passam a apresentar formas mais sóbrias, limpas, tendo como ornamento tão somente a presença de uma cruz na superfície, como se percebe na figura 01, algo que se afirmou de forma marcante nos cemitérios encontrados nestas localidades, como característica dos mesmos e não da mesma forma nos cemitérios convencionais que só mais tardiamente nas últimas décadas do século XX adotariam tais posturas arquitetônicas em seus espaços cemiteriais. Cruzes Outro elemento bastante encontrado nestes cemitérios é a cruz, um dos ornamentos mais recorrentes. Elas foram encontradas em diferentes materiais de acabamento tanto em cima de lápides e também como sendo a única demarcação do local da sepultura, cumprindo também a função de lápide, trazendo inscrições e epitáfios. As cruzes apresentavam-se principalmente em madeira e ferro e muitas são trabalhadas artisticamente com detalhes variados Algumas cruzes de ferro possuem detalhes de flores, folhas, como também corações, muitas vezes comportando epitáfios e dados de identificação do morto (figura 01). Também as cruzes de madeira primam por diferentes detalhes e ornamentos. Em algumas é possível encontrar lambrequins, elementos trabalhados em ferro que beiram as bordas de pequenos telhados encimados nas cruzes, remetendo à questão da casa já citada anteriormente. Estes elementos, um dos principais símbolos do cristianismo, afirma de forma marcante a religiosidade destes espaços, guardando referências a Salvação em Cristo, crucificado e ressuscitado. Ritos funerários – as flores As flores aparecem nos elementos decorativos dos túmulos, mas têm destaque dentre os rituais funerários principalmente na utilização das flores artificiais em forma de coroas e também em ramos em vasos. Nos cemitérios pesquisados destacou-se a utilização de flores artificiais em formato de coroas coloridas como ritual funerário, o que parece ser uma prática comum principalmente em período de Finados. Algo que foi percebido em visitas anteriores a um alguns desses cemitérios logo após o dia de finados, onde a presença destas coroas era vista em grande quantidade e o colorido das mesmas destacou-se de forma marcante. O uso destas flores chama a atenção pelas cores adotadas, geralmente em tons de roxo e amarelo formando uma paisagem diferente daquelas encontradas em muitos cemitérios em diferentes cidades brasileiras, como apresentado na figura 02. Também foi comum encontrar nestes cemitérios arranjos feitos a partir dessas flores artificiais montados sobre placas de isopor, geralmente envoltos com plásticos transparentes e que adornavam alguns sepultamentos (figura 02). Ainda com relação às flores, uma prática comum encontrada foi o plantio de flores naturais sobre os túmulos. Tal prática encontrada em vários cemitérios parece ser uma referência ao costume difundido nas localidades formadas por imigrantes teutos, o da adoção de jardins domésticos (figura 02). Esta prática dos imigrantes de origem germânica até hoje marca profundamente suas cidades, que atraem visitantes também por seus jardins domiciliares. Notou-se tanto pelas coroas de flores artificiais como pelas flores naturais plantadas sobre sepulturas somadas aos jardins que enfeitam as casas, que a flor é um elemento valorado por esses imigrantes e que também aparece em seus cemitérios, lá se destacando pelos rituais supracitados. Aqui cabe destacar que, de forma correlata, estes imigrantes parecem adotar através das flores, como também dos lambrequins encontrados em cruzes, formas e posturas que também adotaram em seus lares, o que corrobora a afirmação já citada de Deleuze e Gautarri (1992) de que a arte inicia-se com a casa, podendo o cemitério também ser entendido como uma segunda morada, e evidenciando este como um importante espaço de afirmação de elementos culturais destes imigrantes. Símbolos decorativos Também na composição dos túmulos verifica-se que alguns símbolos decorativos entalhados ou desenhados nestes ou nas cabeceiras são comumente adotados e se repetem em vários cemitérios, destacando-se dentre estes a palma, as flores, o coração e as mãos juntas. A partir de modelos de túmulos padronizados em diferentes épocas é possível perceber, principalmente com relação com à palma, que esta é um dos símbolos de uso mais freqüente. A palma, símbolo fartamente encontrado nestes cemitérios e também encontrado de forma significativa por outros pesquisadores em outros cemitérios (BELLOMO, 2000), possui um significado geralmente associado à vitória, estando geralmente relacionado à passagem bíblica da entrada de Jesus em Jerusalém. A palma também pode representar o renascimento e a alegria dentro da concepção cristã (figura 02). O coração parece remeter ao lugar dos sentimentos ou ao lugar vazio deixado pelo ente querido. Também pode ser relacionado com sentimentos de virtudes, ou à crença Mariana, na qual a Virgem teve seu coração transpassado de dor pela perda do filho no momento da crucificação de Cristo (figura 02). As flores também são encontradas em entalhes de túmulos e cabeceiras. Dentre as mais freqüentes estão as rosas que aparecem em forma de ramos ou coroas e parecem dar o sentido de uma oferta de flores ao ente querido, flores que por serem marcadas na pedra da lápide nunca morrem. As flores aparecem em vários túmulos e são geralmente ligadas ao cristianismo, podendo representar a vitória sobre as trevas e a saudade (figura 02). As mãos juntas é um símbolo freqüente em formatos tumulares padronizados em acabamento de cimento e parece remeter à união dos vivos com seus mortos, uma união que permanece mesmo depois da morte, com a certeza de que os laços afetivos não se desfazem com o sepultamento. Um símbolo que aponta para sentimentos de fraternidade e união (figura 02). Estes são parte dos elementos característicos encontrados na pesquisa para o inventário. Mas apesar dos símbolos e características aqui apresentadas como elementos funerários comuns dos cemitérios pesquisados, percebe-se de forma destacada uma característica geral na arquitetura desses cemitérios: uma postura formal mais sóbria que opta por criar túmulos ou lápides com poucos ornamentos, em linhas retas, sem mausoléus, com poucas alegorias e santos praticamente ausentes, uma paisagem que chama atenção pela uniformidade. Considerações finais Com a proposta de perceber nos elementos e ritos funerários dos cemitérios localizados nas comunidades teuto-brasileiras da Grande Florianópolis traços de sua religiosidade, que muitas vezes se manifesta de forma circunspecta, este artigo analisou alguns desses elementos com o objetivo de destacar em seus discretos detalhes a manifestação da crença e a afirmação de seus valores religiosos. Tal qual a arquitetura monumental presente em outras propostas cemiteriais, a arquitetura e os ritos destes cemitérios parecem se impor como forma também de tratar a morte, ou melhor, bem como nos destacou DidiHuberman, a negação da mesma através de uma crença. Enfim, uma estética que se compromete com formas sóbrias e comedidas, mas que não descarta a religiosidade e os sentimentos presentes na despedida e na lembrança, representando apenas formas diferentes de materializar o sentimento pelos que se foram. Referências Bibliográficas BELLOMO, Harry Rodrigues (Org.). Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução Centro bíblico católico. 34ª edição. São Paulo: Ave Maria, 1982. DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. O que é filosofia. RJ: Ed. 34, 1992. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. OLIVEIRA, Maria Manuel Lobo Pinto de. In memorian, na cidade. Tese de Doutoramento em Arquitetura – Concentração Cultura Arquitetônica. Universidade do Minho: Braga, 2007. PRIBERAM, 2008. Dicionário de língua portuguesa. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx>. Acesso em: 08 de abril de 2008. 1 Projeto aprovado pelo Conselho Estadual de Cultura, na forma prevista nos Artigos 20, 22 e 23 do Decreto nº 3.115, 29 de abril de 2005 e homologado pelo Comitê Gestor, de acordo com o Artigo 11, item II, do mencionado Decreto, sob PTEC - 1261/053. 2 VIANA, Alice de Oliveira; CASTRO, Elisiana Trilha. A arte que nasce da saudade: a representação funerária do cemitério alemão de Florianópolis (SC). In: Anais do III Simpósio Internacional de História. Goiás, 2007. 3 Respectivamente aparecem em Isaías (38,10); no Evangelho de Mateus(16,18); no Gênesis(28,17) e Apocalipse(4,1). Patrimônios da finitude: o inventário como ferramenta de preservação cemiterial Elisiana Trilha Castro Historiadora e Mestranda em Arquitetura e Urbanismo PGAU/UFSC Resumo A proposta deste artigo é apresentar o projeto “Inventário de Cemitérios de imigrantes alemães da Grande Florianópolis” que foi realizado em 2007 e que terá seus resultados publicado em um livro. O inventário teve por objetivo principal registrar os cemitérios que possuíssem elementos funerários característicos das comunidades teuto-brasileiras presentes nas áreas de colonização alemã na Grande Florianópolis (SC) formada por 13 municípios. O artigo apresenta os objetivos, metodologia e parte dos resultados deste inventário e destaca a importância da realização de trabalhos de preservação, bem como, da utilização de inventários, como forma de destacar o valor cultural dos cemitérios e de incentivar ações complementares de preservação. Palavras-chaves: Cemitério; inventário; patrimônio cultural. Foi durante pesquisas sobre os cemitérios em Santa Catarina que o estado de muitos cemitérios, principalmente nas áreas de colonização alemã, chamou a atenção: problemas como a erosão, conservação e ações de vandalismo impactaram significativamente tais lugares ao longo dos anos fazendo desaparecer muitos de seus registros. A preocupação com o estado dos mesmos apontou para a necessidade de realizar um trabalho, ao menos de registro, destes bens culturais, onde surgiu a proposta de um inventário. O “Inventário de cemitérios de imigrantes alemães da Grande Florianópolis”1 foi realizado com o propósito de contribuir para a preservação destes lugares através da coleta de imagens e de características destes cemitérios, buscando destacar o valor destes como bens culturais e evidenciar, por exemplo, como por meio das construções funerárias, a história de uma localidade ou de um determinado grupo pode ser apreendida. Os cemitérios são, por sua função, um dos primeiros lugares a serem instalados na formação das cidades e assim não foi diferente nas colônias formadas por imigrantes, constituindo-se assim, em um dos mais pretéritos espaços de manifestações culturais destes homens e mulheres em Santa Catarina, como destaca a citação a seguir: Os grupos que chegavam da Europa estabeleciam-se em vale nas margens dos rios, formando uma comunidade isolada que se organizava de modo a garantir sua sobrevivência material e cultural. O primeiro passo era a instalação dos equipamentos urbanos, iniciada com a construção de uma igreja, um cemitério, uma escola (ALENCASTRO; RENAUX, 1997, p. 322). Santa Catarina é um Estado que se destaca pela presença de diferentes etnias que deixaram suas marcas culturais em várias cidades e dentre as mesmas está a etnia alemã2 que foi foco desta pesquisa. São muitas as contribuições recebidas de diferentes povos na história de nosso país. A vinda de imigrantes para o Brasil, decorrente, dentre outros motivos, das crises econômicas e sociais que atingiram a Europa no século XIX, permitiu que alemães, italianos e espanhóis, por exemplo, participassem da composição da história catarinense como de outros estados brasileiros (ALENCASTRO e RENAUX, 1997). Uma história que começou a ser contada nas primeiras décadas do século XIX e que resultou na formação da maioria das localidades que fazem parte deste inventário. A primeira colônia alemã em Santa Catarina foi São Pedro de Alcântara, instalada em 1829, em um Estado que até o momento constituía-se somente por uma cidade - Desterro, sua capital, e por três vilas, Laguna, Lages e São Francisco - sendo sua população predominantemente de origem lusitana. Parte dos imigrantes instalados em São Pedro de Alcântara ainda nos primeiros anos, retiraram-se desta colônia e estabeleceram-se em regiões próximas, formando núcleos como Vargem Grande, no atual município de Águas Mornas e, entre 1847-1860, outros núcleos populacionais foram criados como: Piedade, Santa Isabel, Leopoldina e Teresópolis (KLUG, 1994). A formação destes núcleos deu origem à maioria dos municípios que fizeram parte do inventário, formam a região da Grande Florianópolis3 que foi a área escolhida para a pesquisa composta por 13 municípios, são eles: Antônio Carlos, Angelina, Anitápolis, Águas Mornas, Santo Amaro da Imperatriz, São Bonifácio, São Pedro de Alcântara e Rancho Queimado. Além destes São José, Palhoça, Biguaçu, Governador Celso Ramos e a capital Florianópolis. Nestes últimos 5 municípios, diferente daqueles citados primeiramente, destacam-se em sua formação outras etnias, principalmente a açoriana, fato também confirmado nas pesquisas em seus cemitérios que apresentaram dentre as contribuições de determinados grupos étnicos, poucas ou nenhuma referência dos imigrantes germânicos e outros. Cabendo destacar que no caso da capital Florianópolis, a presença dos alemães na formação cultural da cidade - destacada em obra do historiador João Klug (1994) - pôde ser vista de forma significativa no cemitério da Comunidade luterana, localizado dentro do cemitério São Francisco de Assis, no bairro do Itacorubi, cemitério mantido pela ACCAF (Associação do Cemitério da Comunidade Alemã de Florianópolis) e que preserva um importante conjunto tumular. O inventário procurou destacar como os cemitérios expressam em sua forma e rituais, os costumes e referenciais identitários dos imigrantes alemães. É fato que para muitos, o cemitério é só o lugar onde sepultamos os mortos, mas a proposta deste inventário é de promover a preservação destes lugares ao divulgar a pesquisa e evidenciar a forma como os cemitérios guardam em suas lápides, em seus túmulos e em sua disposição espacial, importantes informações. Destacando que, no caso dos imigrantes luteranos, são os cemitérios, em grande medida, o primeiro local de manifestação religiosa e cultural, dado que tiveram que criar lugares próprios para o sepultamento dos fiéis, já que dentre diversas interdições impostas uma [...] outra restrição imposta aos protestantes dizia respeito aos cemitérios (MATOS, 2006, p. 12). Foi priorizada a busca pelos cemitérios mais antigos instalados nos municípios da Grande Florianópolis, espaços de sepultamento utilizados por imigrantes alemães chegados a partir de 1829, data da fundação da primeira colônia São Pedro de Alcântara e ocorridos até as primeiras décadas do século XX, que apresentam características identitárias destes imigrantes, dentre elas, sobrenomes e epitáfios em alemão. A datação foi definida considerando como o período da grande imigração alemã o ano de 1829 até as primeiras décadas do século XX, como destaca a autora Giralda Seyferth (1993): “O contingente imigratório de origem alemã não foi o mais significativo, apesar da sua continuidade: entre 1850 e 1938 não houve interrupção do fluxo [...].” Os cemitérios que participaram deste levantamento são cemitérios conhecidos como a “céu aberto” ou secularizados, em sua maioria, surgidos no Brasil no século XIX e que se caracterizam pela presença de sepultamentos realizados em construções funerárias, como túmulos ou mausoléus, podendo também aparecer na forma de cova simples, fora do espaço interno das igrejas, já que até por volta de 1850, os sepultamentos no Brasil ocorriam muitas vezes dentro das igrejas em suas paredes e chão (PAGOTO, 2004). O cemitério, ao contrário de muitos lugares, costumes e construções, ainda não é, na maioria das vezes, lembrado ou destacado como um referencial para a reflexão acerca da história e da memória, ou seja, como parte de um conjunto de práticas culturais que são transmitidas através de referências como: tamanho e formato de túmulos, o uso de flores e de velas, adoção de determinados símbolos, dentre outros. Possivelmente, o não reconhecimento dos cemitérios como parte da história das cidades seja o motivo pelo qual, muitos destes, encontram-se em estado de abandono, algo percebido principalmente na situação dos túmulos mais antigos encontrados, que não contam muitas vezes com quem possa zelar pelos mesmos. Figura 1: Imagens de diferentes cemitérios visitados. Na perspectiva do patrimônio cultural, os cemitérios são parte da produção humana que pode ser considerada como representante ou como referência para determinado grupo, ou seja: “poderíamos mesmo dizer, que o patrimônio cultural é tudo aquilo que constitui um bem apropriado pelo homem, com suas características únicas e particulares” (FUNARI, PINSKY, 2005, p. 8). A opção pelo inventário deu-se por este ser uma etapa fundamental para o desenvolvimento de políticas de preservação, um importante instrumento metodológico para recolher informações, que permite identificar bens culturais, informar sobre o estado de conservação e fornecer dados para a sua preservação e pesquisa. De acordo com o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), “o inventário é a primeira forma para o reconhecimento da importância dos bens culturais e ambientais, por meio do registro de suas características principais (IPHAN, 2007)”. Diante da proposta de inventariar cemitérios considerados como representativos dos imigrantes alemães na Grande Florianópolis, dentre os 104 visitados num total de 13 municípios, 60 deles apresentavam elementos ou características que, de forma significativa os relacionavam com os imigrantes alemães, tendo sido apresentados em fichas inventariais. Para a seleção destes 60, em um conjunto formado por cemitérios de diferentes períodos e formatos, foram consideradas algumas especificidades constatadas principalmente a partir da presença e estudo dos túmulos com datação mais pretérita visível - a partir de 1829 até as primeiras décadas do século XX. Verificou-se que estes cemitérios apresentavam determinados elementos que se repetiam em outros sepultamentos do mesmo período e também em outros cemitérios, como: epitáfios em alemão, cruzes de madeira que geralmente apresentam detalhamento artístico utilizadas como lápides e muitas com epitáfio, certos formatos tumulares, utilização de poucas imagens de anjos, santos e de alegorias como ornamentos, adoção de tons de azul em lápides e cabeceira, localização em morros ou pequenos aclives, dentre outros. Os demais 44 cemitérios que apresentavam pouca ou nenhuma referência das práticas funerárias relacionadas com os cemitérios das comunidades teuto-brasileiras, geralmente formados por sepultamentos recentes a partir da década de 1950 ou localizados em municípios que não possuem marcante presença de imigrantes alemães em sua formação - foram listados no inventário em tabelas presentes em seus respectivos municípios. Cada um destes recebeu um texto com características gerais como: localização, tipos de materiais construtivos e de acabamento, ornamentos, ritos e outros, juntamente com uma imagem panorâmica do mesmo. Tal seleção buscou atender a proposta do projeto como também viabilizar a publicação dos resultados, destacando que o inventário também é composto por um banco de imagens de todos os cemitérios visitados4. Figura 2: Formatos de túmulos e detalhes da arquitetura funerária dos cemitérios inventariados. Para localizar os cemitérios de cada município foi realizada uma pesquisa a partir dos mapas municipais do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, nas prefeituras, em listas de genealogistas, bibliografias e também através da colaboração de moradores das localidades visitadas. Apesar de tais medidas, não se descarta a possibilidade de algum cemitério não ter sido localizado, dado que mesmo aqueles que constavam de mapas e outras fontes, eram muitas vezes localizados com dificuldade. A metodologia utilizada para a realização deste inventário compreendeu o recolhimento de dados - a partir de fichas inventariais - e imagens, ambos coletados nas pesquisas de campo. As fichas inventariais foram elaboradas com a adequação dos dados e quesitos a partir dos estudos de Tânia Andrade de Lima (1994), também com base nas pesquisas desenvolvidas no Cemitério dos Imigrantes de Joinville (FONTOURA, 2007) e um manual elaborado por Eliane Veras da Veiga (2004) que indicou quais as categorias que deveriam compor um inventário. Sobre o desenvolvimento do trabalho a equipe foi formada por: Elisiana Trilha Castro (Coordenação, Consultoria e Pesquisa de campo), Fátima Regina Althoff (Consultoria e Pesquisa em Arquitetura), Alice de Oliveira Viana (Consultoria em Arte e Arquitetura), Adelson André Brüggemann (Pesquisa de campo e Consultoria), Juliano Anderson Pacheco (Editoração, Imagens e Pesquisa de campo) e Valber Furine Mendes (Fotos Cemitério São Francisco de Assis/Florianópolis). A ficha (em anexo neste artigo) foi definida a partir de uma metodologia de registro que buscou registrar as características gerais dos bens inventariados, contendo informações do cemitério encontrado e não somente dos elementos funerários relacionados com os imigrantes alemães. Desta forma, permitem-se outras pesquisas e a obtenção de diferentes informações acerca do bem inventariado e não limita as informações do inventário à temática da imigração alemã. Foi realizada uma coleta de dados dos materiais, tipos de túmulos, ornamentos, além de outras informações como acesso, tipo de pavimentação localização e conservação, presença de conjunto de sepultamentos de inocentes destacado, localização dos sepultamentos mais antigos e sua datação, os ornamentos mais recorrentes, presença de epitáfios em alemão, formatos tumulares singulares, observações acerca da conservação, espaço para novas sepulturas e outros. A relevância de cada cemitério dentro do conjunto de bens culturais das comunidades teuto-brasileiras foi apresentada em “Informações Complementares”, sendo que cada ficha também é composta por 8 imagens do cemitério. Considerações Finais O inventário possibilitou o registro de diferentes características dos cemitérios e destacou, dentre outros, o preocupante estado de conservação de parte do patrimônio funerário dos municípios visitados. Tal constatação comprovou, não só a necessidade de projetos de preservação destes espaços, como também de debates e pesquisas sobre o tema da preservação do patrimônio cemiterial. Ficou evidente não só a importância de ações e propostas que discutam o valor patrimonial destes espaços e que possam contribuir para minimizar ações como, a retirada de túmulos antigos, mas também o potencial destes lugares para reflexões acerca do passado e também do presente. Enfim, destaca-se que um trabalho de preservação destes lugares é imprescindível e que o inventário é apenas um primeiro passo além de um importante registro destes bens. Bens que são patrimônio, feitos da saudade diante do fim, mas que são parte do conjunto de bens culturais que ainda precisam de maior atenção das políticas de preservação em nosso país. Referências Bibliográficas ALENCASTRO, Luiz Felipe de; RENAUX, Maria Luiza. Caras e modos dos migrantes e imigrantes, In: NOVAIS, Fernando. A (coord.); ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). Historia da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. FONTOURA, Arselle de Andrade da (coord.). Relatório final do projeto “Cemitério do Imigrante: pesquisa, interdisciplinaridade e preservação”. Joinville: 2007. FUNARI, Pedro Paulo; PINSKY, Jaime (orgs). Turismo e Patrimônio cultural. São Paulo: contexto, 2005. IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal>. Acesso 23 maio 2007. KLUG, João. Imigração e luteranismo em Santa Catarina: a comunidade alemã de Desterro-Florianópolis. Florianópolis: Papa-Livro, 1994. LIMA, Tânia Andrade de. De morcegos e caveiras a cruzes e livros: representação da morte nos cemitérios cariocas do século XIX. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 2, n. , p.2-45, dez. 1994. MATOS, Alderi Souza de. O Cemitério dos Protestantes de São Paulo: Repouso dos Pioneiros Presbiteriana. In: Portal da Igreja Presbiteriana no Brasil, 2005. Disponível em: <www.ipb.org.br/artigos/artigo_inteligente.php3?id=53>. Acesso em 21 ago. 2006. PAGOTO, Amanda Aparecida. Do âmbito sagrado da igreja ao cemitério público: transformações fúnebres em São Paulo (1850-1860) São Paulo: Arquivo do Estado ; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. SEYFERTH, Giralda. Identidade étnica, assimilação e cidadania: a imigração alemã e o estado brasileiro. In: Anais XVII Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, Minas Gerais: outubro de 1993. Disponível em: < http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/rbcs26_08.htm>. Acesso em: 05 out. 2007. VEIGA, Eliane Veras da. Apostila de Reabilitação e Restauro: Memórias de Aula. Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unisul. 2004. Ed. dig. ANEXOS – FICHA INVENTARIAL AMY08 - Cemitério de Loeffeischeidt IDENTIFICAÇÃO DO CEMITÉRIO Loeffeischeidt Localidade:  Isolado Área aprox.: Distância da Sede: APRESENTAÇÃO Estado de Conservação: Data do registro: 25/08/2007  Centro 112,5m x 62,5m 8,8Km  Bom  Bairro Coordenada 27°41'25,13" S s: 48°55'07,36" O  Regular Condição atual:  Em utilização  Abandonado Tipo: Traçado:  Regular  Irregular Delimitaç ão: No de sepulturas (total aprox.): Sepultamento mais antigo (ano): ARQUITETURA FUNERÁRIA Material de acabamento ou construtivo:  Azulejo  Cimento  Madeira  Ladrilho hidráulico Tipos de sepultamento:  Cova simples Composição dos sepultamentos:  Cabeceira proeminente Ornamentos:  Anjo  Cruz  Símbolo decorativo 130 1889  Ruim  Municipal  Confessional  Cerca de Arame  Muro em alvenaria  Muro de pedra  Sem delimitação  Outra  Basalto  Granitina  Mármore  Vidro  Cerâmica  Granito  Metal  Outros  Mausoléu  Túmulo  Epitáfio  Lápide  Alegoria  Oratório  Imagem Sacra  Fotografia INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES O cemitério localiza-se em um terreno elevado, próximo à igreja, com acesso fácil. O terreno possui dois níveis, ambos sem pavimentação. Os sepultamentos estão voltados para o sudeste e os dos inocentes estão dispersos no cemitério. Os sepultamentos mais antigos, compostos em sua maioria por cruzes, estão na parte superior do terreno e são datados entre 1860 e as primeiras décadas do XX. Os ornamentos mais recorrentes são as cruzes de cimento pré-moldada, de madeira e de ferro com trabalho de serralheria artística como na Imagem 6. Na parte mais nova, apresentada na Imagem 8, encontram-se imagens de Cristo crucificado em metal e lápides de diferentes materiais e formatos. Possui epitáfios em alemão e sepultamentos femininos acrescidos do sobrenome de solteira na lápide, ambos encontrados dentre os sepultamentos mais antigos. Como ritos funerários apresenta as flores artificiais em forma de coroas e ramos, além de fitas coloridas presas em alguns sepultamentos. Os materiais de acabamento e construtivos mais comuns são o cimento, dentre os sepultamentos antigos, e o granito na parte mais nova. Com relação ao estado de conservação, destaca-se o problema da erosão como principal ameaça aos sepultamentos (Imagem 7). Apresenta formato tumular padronizado, como mostram a Imagem 3 e a Imagem 4. Possui espaço para novas sepulturas. Sobrenomes como Beppler, Fritzen, Hinckel, Horr, Jochen, Meurer, Krauss, variadas cruzes de madeira e de ferro, formatos tumulares, sepultamentos femininos com o acréscimo do sobrenome de solteira e lápides com epitáfios em alemão são alguns dos elementos funerários que destacam este cemitério com um bem cultural característico das comunidades teutobrasileiras. Imagem 1: Vista aérea Imagem 2: Vista panorâmica Imagem 3: Formato tumular padronizado Imagem 4: Formato tumular padronizado Imagem 5: Vista do cemitério Imagem 6: Ornamento em ferro Imagem 7: Erosão ameaça conjunto tumular Imagem 8: Vista da parte nova 1 Projeto aprovado pelo Conselho Estadual de Cultura, na forma prevista nos Artigos 20, 22 e 23 do Decreto nº 3.115, 29 de abril de 2005 e homologado pelo Comitê Gestor, de acordo com o Artigo 11, item II, do mencionado Decreto, sob PTEC - 1261/053. A publicação do Inventário tem data prevista para junho/2008. 2 A opção por esta etnia é decorrente dos estudos desenvolvidos pela coordenadora desta pesquisa sobre os cemitérios ligados aos imigrantes de origem germânica. No contexto desta análise o termo germânica (o) é utilizado de forma correlata ao termo alemã (o) e teuto-brasileiro. 3 Oficializada pela Lei Estadual Complementar nº 162/98 do Estado de Santa Catarina. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 12 out. 2007. 4 O Banco de imagens está sob responsabilidade da SOL (Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte de Santa Catarina) que decidirá a forma de acesso ao mesmo. O Cemitério dos ingleses da Bahia através da sua iconografia Ernesto Regino Xavier de Carvalho Arquiteto Urbanista Mestre em Conservação e Restauração Taba- Arquitetura, Idéias e Soluções Resumo O presente artigo pretende analisar o desenvolvimento físico do sítio Cemitério dos Ingleses da Bahia a parir da sua iconografia (Mapas, desenhos, gravuras, pinturas, fotografias etc.). Dentro dessa análise poderá ser observada parte da história documental desse monumento último remanescente da arquitetura anglicana do século XIX na Bahia e um dos três únicos do Brasil. O objetivo desse artigo é estabelecer uma linha histórica do objeto de pesquisa e resgatar elementos arquitetônicos poderão ser observados da análise das imagens registradas em um determinado período e dessa forma esses mesmos elementos poderão fornecer dados preciosos sobre a cronologia de um sítio edificado. Palavras-chave: Cemitérios na Bahia — História —Iconografia. Apresentação O primeiro registro fotográfico que se tem notícia no Brasil foi feito em 1833, por Hercules Florence, que registrou o termo Photografie, antes de a palavra que descrevia esse processo fosse de uso generalizado. A partir de então, a fotografia, que surgiu no Brasil entre as décadas de trinta e quarenta do século XIX, evoluiu da daguerreotipia, inventada pelo francês Louis Jacques Mande Daguerre, em colaboração com JosephNicéphore Niépce e seu filho Isidore Niépce, para o calótipo ou talbótipo, um negativo de papel, que possibilitava a cópia em papel salinizado, num processo em que, em filosofia, dura até hoje: a obtenção de fotos a através do negativo, através do qual podemos gerar um número infinito de cópias iguais em qualidade e valor1. É dessa época em diante que chegaram ao Brasil muitos fotógrafos estrangeiros, que vendiam seus produtos a quem pudesse pagar, fotografando pessoas, paisagens e mesmo processos de trabalho, como foi o caso de Benjamim Mulock, contratado pelos Vignoles para fotografar a construção da Bahia and San Francisco Railway. Os processos fotográficos foram evoluindo e se tornando cada vez mais acessíveis, e, a partir da sua popularização, surgiram os cartões postais, de início em preto e branco, mas que logo passaram a ser animados (colorizados), 1 numa evidente mostra de expressão artística que visa à aproximação da realidade, uma vez que os cartões em preto e branco estavam sendo considerados distantes dela. O então novo meio de se representar a realidade veio se modernizando até os dias de hoje com a fotografia digital, onde o uso das imagens passa a interagir com um sem número de técnicas a tecnologias associadas, permitindo uma nova revolução na fotografia e na forma das pessoas se relacionarem com as imagens. A fotografia tem se constituído como uma grande ferramenta para os processos de pesquisa históricos e de restauração, por reunir informações muitas vezes detalhadas de uma obra de arte estática no tempo. Subseqüentes às imagens de mapas, gravuras, desenhos e pinturas, as fotografias trazem a vantagem de não estarem sujeitas a deformações ou outras interpretações artísticas, mantendo-se fiel à realidade retratada, além de ser mais facilmente difundida, dada a sua condição de reprodução em escala ilimitada. O Cemitério dos Ingleses da Bahia, não seria uma exceção à esta regra, e associado à conjuntura espacial que o compõe – O outeiro de Santo Antônio da Barra, com a Igreja homônima, a igreja de Nossa Senhora da Vitória, e, aos pés desse outeiro o Forte de São Diogo, formam uma bela paisagem do painel da cidade, largamente explorada por artistas e fotógrafos estrangeiros principalmente no começo do século XIX através da abertura dos portos às nações amigas em 1808 e os corolários tratados de Aliança e Amizade e de Comércio e Navegação firmados estes com a Inglaterra. Esse cemitério é o primeiro da Bahia e um dos primeiros do Brasil, enquanto edificação européia voltada a tal finalidade, e tem a da permissão para a compra de seu terreno para a sua implantação, concedida pelo Conde dos Arcos, em 1811, em pleno período joanino, um ano após os Tratados de 1810, corolários da Abertura dos Portos operada em 1808. Contudo, mesmo a despeito da privilegiada situação de implantação deste cemitério, a pesquisa de base documental textual histórica de arquitetura desse monumento, onde se pode tentar definir uma linha sucessória de eventos de caráter históricos pode conter lacunas de diferentes escalas de tempo. O estudo iconográfico, então, começa onde nos falta a base textual. São dados que, muitas vezes estão somente presentes em uma imagem corretamente datada em sua época de origem. Onde estão “congelados” tantos dados visuais é que se podem garimpar informações preciosas acerca da evolução cronológica de um monumento arquitetônico. Onde faltam as palavras para descrever minuciosamente detalhes arquitetônicos ou mesmo se cometem equívocos ao descrevê-los é que se encontra, na imagem, a absoluta sinceridade captada pelas lentes, através do olhar do fotógrafo ou da rigidez acadêmica de um pintor documental. É nesse ambiente de pesquisa visual que nos propomos a entender a evolução física do Cemitério dos Ingleses da Bahia, de onde se pôde pesquisar ao longo de mais de dois anos de desenvolvimento da minha dissertação de mestrado, intitulada “Uma Necrópole Renascida – A História do Cemitério dos Ingleses da Bahia” através da união das vertentes documental, iconográfica e de campo ( A restauração total deste sítio como de suas feições originais no século XIX), trabalhando de forma paralela, interativa e complementar, é fundamental para se construir um cenário ou uma linha de raciocínio, em que pelo menos uma auxilie, ratifique ou esclareça os objetivos das outras. A análise do local e sua evolução físico-urbana a tendo como base plantas, mapas e documentos antigos, e a recriação da topografia original do trecho imediato ao objeto da pesquisa, esta última fruto das conclusões chegadas após a análise e pesquisa física, da Ladeira da Barra e do monumento em si, também servirá para elucidar a origem deste sítio histórico. A pesquisa iconográfica, que foi desenvolvida desde o começo da elaboração do projeto de restauração, terminou por se revelar um evento à parte no processo de pesquisa, que envolveu não só o projeto de restauração do Cemitério dos Ingleses como também esta dissertação. A despeito de certo preconceito atribuído aos cemitérios, consegui pesquisar e apresentar nesta dissertação vinte e quatro fotografias, que retratam o período à partir de 1860 até 1960, nove pinturas mostrando vários períodos, oito cartões postais, contendo fotos e pinturas do século XIX, três gravuras e cinco mapas da cidade do Salvador no século XIX. A dificuldade inicial em se encontrar imagens, além das divulgadas em publicações mais conhecidas do público, foi compensada pelo fato de o Cemitério dos Ingleses se situar entre as igrejas do Santo Antonio da Barra e a Igreja da Vitória, em um local muito apreciado e aprazível desde o século XIX, o que facilitou a localização deste material. Pesquisas feitas nos arquivos fotográficos do Museu do Tempostal, do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, Fundação Gregório de Mattos e do Centro de Estudos da Arquitetura Baiana, Biblioteca da Fundação Clemente Mariani, e a colaboração de voluntários foram muito importantes no desenvolvimento dessa fase. Origens O cemitério dos Ingleses está localizado na meia encosta da Ladeira da Barra, entre as igrejas da Vitória e de Santo Antônio da Barra e é constituído basicamente na capela e na da área de enterramentos, dividida em três patamares de enterramentos; o primeiro patamar segue a cota de implantação da Ladeira da Barra, o segundo aproximadamente a quatro metros e meio abaixo na encosta do primeiro patamar e o terceiro patamar (não mais existente), seis metros abaixo do segundo patamar na área ocupada atualmente por um estacionamento utilizado pelos freqüentadores do Yatch Club da Bahia. Conforme afirmamos, o Cemitério dos Ingleses tem a sua origem à partir da permissão para a compra de seu terreno para a sua implantação, concedida pelo Conde dos Arcos, em 1811nos seguintes termos: Do Cônsul da Nação Britannica,Três Negociantes da mesma Nação, Supplicando a S. Ex ª a graça de aprovar converter o terreno q’elles se achão de posse....... pª cemitério dos mortos da sua Nação. Respondido em 10 de Fevereiro de 1811 Ilmo.e Exo. Senhor. Os abaixo assignados, Cônsul de Sua Magestada Britanica, na Província da Bahia Deputados dos Negociantes Inglezes, rezidentes nesta Cidade, tendo legal e devidamente comprado o dominio útil de huma Roça sita na Estrada, que pela, parte do Mar, vai da Victória para o Forte Grande da Barra, pertencente Capella de Santo Antônio a cuja Confraria he foreiro, desejão converter aquelle Terrêno em Cemitério próprio, e decente para nelle, se enterrarem os Vassalos de S.M.B. que nesta Cidade fallecerem e que ahí dezejarem de enterrar-se. Para este effeito os abaixo assignados tem a honra de se dirigirem à Respeitavel Presença de Vossa Excellencia, supplicando a Vossa Excellencia, como submissamente supplicão, a Graça de Aprovar e concentir que o sobredito Terrêno, de muros a dentro possa de hoje em diante servir para Cemitério da Nação Britanica, conformemente à Provisão por sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal facultada aos Vassalos Britanicos, na Letra do Artigo 12° do Tratado do Comercio formado entre os Plenipotenciários das respectivas Coroa Britamca e Portugueza, em 19 de Fevereiro de 1810, que diz assim: Liberty shall be granted to bury the Subjects of His Britanic Magesty who may die in the Territories of his Royal Hisgne.... the Prince Regnt of Portugal in convenient Places to be appointed for that Purpose = Conformando-se, os abaixo assignados por si, e por seus futuros Sucessores, na administração do mesmo Cemitério, às restricçoens acordadas no supra dito Artigo, na parte que regula a privação do exercicio publico de outra cumunhão que não seja a da Religião dominante no Paiz. Os abaixo assignados, aproveitão esta occazião para renderem à Vossa Excellencia os sentimentos da sua alta consideração, e profundo respeito. A Sua Excellencia o Senhor Conde dos Arcos General da Provincia da Bahia, Frederico Lindeman Consul de S.MBra Jorge Car..... Moir Henrique Harrison. Geo I... S.... Consulado G. Britanico, 8 de Fevereiro de 1811.2 Tomamos então a data de 1811 como ponto de partida para a pesquisa iconográfica, e de forma paralela a data de 1808 como data de chegada da Família Real ao Brasil. Figura 2: Detalhe do Cemitério dos Ingleses e Igreja de Santo Antonio da Barra Fonte: PEARCE, Aquarelas feitas durante a viagem ao Brasil da H. M.S. Favorite em 1819 e 1820... O Olhar do Artista Partindo do pressuposto de que só seria possível encontrar imagens do Cemitério Britânico à partir da década de 30, não restaria outra opção que não a busca por pinturas, mapas ou gravuras que indicassem a sua presença efetiva, e dessa forma a primeira imagem na qual podemos identificar de forma indubitável este cemitério foi a aquarela marítima feita pelo tenente Robert Pearce3 feita entre os anos de 1919 a 1920 quando de sua visita ao Brasil nessa data. Outra aquarela ainda seria encontrada, desta vez de autoria de Emeric Essex Vidal entre 1835-1837 também em visita a Bahia. O que a imagem produzida por Pearce nos trás de interessante é que apenas oito anos depois da data de permissão para a implantação do mesmo podemos observar este sítio totalmente constituído na paisagem a qual pertence. De fato ainda temos como enterramento remanescente mais antigo neste cemitério o túmulo de John Sharp em 1813, justamente em local de difícil edificação, por se localizar no ponto comum de dois cortes de morro com contenção (o morro do Outeiro de Santo Antônio da Barra e o morro dos Clemente Mariani) em um local que estaria situado a mais de cinco metros de profundidade do nível original do seu solo, já quase no limite do terreno do cemitério com a casa vizinha da Igreja de Santo Antonio, que seria em tese um dos últimos locais de construção dada a dificuldade técnica necessária4. FOTO 01:5 Benjamim Mulock; Outeiro da Barra em 1860 Quadro 1: Fragmento da Lista de Enterramentos Nome John Sharp Origem Data de Idade Liverpool falecimento 11/09/1813 36 Fonte: Checagem in loco dos enterramentos. Daniel Parish Kidder no século XIX, quando reportava a existência de um cemitério americano na Bahia relata sobre a política britânica de incentivos a construções religiosas em outros países: A Bahia é a única cidade brasileira onde existe um cemitério norte-americano. Sendo muito mais numerosa a colônia inglesa – e ainda contando com o auxílio financeiro de seu governo para diversos empreendimentos sociais e religiosos, tais como a construção de igrejas e a manutenção de capelães em países estrangeiros, - mantém ela cemitérios em quase todas as cidades importantes do Império. Não somente os súditos britânicos se beneficiam dessa louvável atitude do governo inglês. Protestantes de todas as nacionalidades, especialmente cidadãos norte-americanos, devem grande soma de obrigações à colônia inglesa, pelo fato de frequentemente facilitar, à esta última, o enterramento de seus mortos. 6 A presença deste enterramento neste local citado, cruzada com o testemunho de Kidder e ratificada pela aquarela de Pearce nos leva a entender que a construção deste sítio se deu em um período de tempo relativamente curto de tempo e que, além disso, ainda teria se dado em uma etapa somente. As primeiras fotografias encontradas por essa pesquisa se reportam ao ano de 1860 de autoria de Benjamim Mulock, logo em seguida temos Guilherme Gaensly (1865-80), Augusto Riedel1868, J.Schleier: 1876 e a partir daí temos uma série de fotógrafos até os dias de hoje, nem sempre tendo o Cemitério dos Ingleses como plano principal, mas sim todo o conjunto do outeiro e da Ladeira da Barra. Conclusões Essas fotos trazem registros imprescindíveis para a o entendimento da evolução física do Cemitério dos Ingleses ao longo da sua existência e da evolução urbana do seu trecho de influência – a Ladeira da Barra. É a partir da análise das imagens coletadas que divide-se as seguinte observações conclusivas; Capela A capela interna ao cemitério apresentou poucas modificações ao longo do tempo. Podemos observá-la desde a aquarela marítima de Pearce em 1919, o que indica que a mesma pode ter sido construída desde o início da implantação do sítio no terreno. O que podemos observar posteriormente, pela análise das fotografias é que a cobertura do seu adro tem pequenas mudanças relativas ao acabamento frontal em meia água ou em uma água exclusiva para minimizar a influência da chuva neste compartimento. Ela se diferencia das demais capelas anglicanas de sua época, com torres sineiras e arquitetura neoclássica por conta da instituição do artigo décimo segundo, do Tratado de Comércio e Navegação de 1810, que segunda a sua constituição, relatava: Que vassalos de S.M. Britânica residentes nos territórios e domínios portugueses não poderiam ser perturbados, inquietados, perseguidos ou molestados por causa de sua religião, e teriam perfeita liberdade de consciência, bem como licença para assistirem e celebrarem o serviço em honra do Todo-Poderoso Deus, quer dentro de suas casas particulares, quer nas suas particulares igrejas e capelas, sob as únicas condições de que estas externamente se assemelhassem às casas de habitação e também que o uso dos sinos lhes não fosse permitido para o fim de anunciarem publicamente as horas do serviço divino, e que os vassalos britânicos e quaisquer outros estrangeiros de comunhão diferente da religião dominante nos domínios de Portugal não seriam perseguidos ou inquietados por matéria de consciência, tanto nas suas pessoas como nas suas propriedades.7 Para, além disso, essa capela, além de se parecer com uma casa ainda possuía um elemento que alterava a simetria bilateral do formato da sua planta de templo Greco romano no momento em que adicionava uma varanda voltada para o limite oeste suavizando os efeitos do poente e valorizando a vista para a Baía de Todos os Santos. Área de Enterramentos Podemos observar inicialmente que o Cemitério dos Ingleses teve seus limites externos e sua capela edificados em uma primeira etapa. Inicialmente se procedia aos enterramentos em apenas um primeiro patamar, no mesmo nível de cota de implantação da Ladeira da Barra. Com o aumento da população desta necrópole, se construiu, em 1925, uma escadaria externa que dava acesso a um segundo patamar de enterramentos e uma rampa que dava acesso ao o terceiro patamar – originalmente parte da propriedade do Cemitério dos Ingleses, uma vez que essa propriedade tinha como seu limite oeste o mar. De qualquer maneira como a ocupação dos segundo e terceiro patamar parece ter sido dado de maneira efetiva quando da necessidade de construção da escadaria externa em 1925, o que se pode observar nas fotografias mais recentes, do começo do século XX é a evolução no número de sepulturas nestes locais, contudo, o que se pode aferir, tanto nas pinturas quanto nas fotografias, é basicamente a presença de vegetação demarcada apenas pelos muros de limita da propriedade. Ladeira da Barra (área de Influência) Através das imagens coletadas podemos ter uma idéia da urbanização da Ladeira da Barra (local de implantação do sítio e sua área de influência). O Cemitério dos Ingleses surge como conseqüência da forma da Ladeira da Barra, como a conhecemos hoje, pelo aproveitamento do lado da encosta do trecho de terreno que restou. Segundo o historiador Cid Teixeira: Essa ladeira, com o traçado atual é muito diferente daquilo que foi antes o Caminho do Conselho. Se nós observarmos o seu atual traçado veremos que ela é um corte de meia encosta. Aquele mesmo Edouard Parker que foi o empreiteiro do nivelamento do Campo Grande; é ele que aparece, agora, fazendo o novo traçado da ladeira da Barra, de tal sorte que fosse possível aos animais fazerem a tração do boné, na subida, diminuindo sensivelmente o declínio. Muda o traçado e, quem observar, vai ver que há um remanescente de terreno, do lado direito de quem desce, que correspondia à antiga fábrica de xales da Cidade de Salvador, que é hoje o Yatch Club da Bahia, e o remanescente que deu margem a implantação do Cemitério Inglês. Não por acaso Edouard Parker além de empreiteiro, era o capelão da colônia inglesa na Bahia. A modificação se fez, de tal sorte, que a ladeira deixou de fazer uma esquina para a direita e passar e frente ao forte de São Diogo, para descer até o largo da Barra possibilitando uma sobra do terreno, onde foram feitos dois ou três edifícios e o atual Hotel da Barra.8 Observamos a procedência da afirmação de Cid Teixeira, segundo o qual a construção do Cemitério dos Ingleses só foi possível pela da compra do terreno, resultante do aproveitamento, de um lote que teria surgido em meio aos cortes feitos na topografia, cortes estes que possibilitaram a configuração da Ladeira da Barra como se encontra nos dias de hoje, com sua inclinação e gabarito atuais. Na verdade, contudo, não encontramos como procedente, a informação de que Parker a tenha construído, mesmo porque Parker somente chegou à Bahia em 1836 e teria partido em 1855, período este que não observamos no entorno imediato, pelas fotografias, nenhuma infra-estrutura de beneficiamento, esta somente se pode verificar pelo registro iconográfico a partir de 1865. Daí em diante, podemos observar a pavimentação desse trecho, inserção de postes de iluminação (provavelmente a gás), e linhas aéreas provavelmente de telégrafo. Referências Bibliográficas BELUZZO, Anna Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. 3 ed. São Paulo: Metalivros/Objetiva, 2000. FERREZ, Gilberto. Bahia velhas fotografias: 1858-1900. Rio de Janeiro/ Salvador: Kosmos Ed./Banco da Bahia Investimentos S.A, 1998. FUNDAÇÃO Emílio Odebrecht. Mapa: imagens da formação territorial brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Emílio Odebrecht, 1993. GOVERNO do Estado da Bahia. A Grande Salvador: posse e uso da terra. 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Plano piloto para intervenção no centro de Salvador. Salvador: OCEPLAN/PLANDERB, 1978. 176p. __________, Prefeitura Municipal. Consolidação das leis de uso do solo – Código de obras: Leii 3377/84. Lei 3853/88. Salvador: SEPLAN/SUCOM, 1988. 309p. VIDAL, Emeric Essex. Salvador da Baía de Todos os Santos: vista panorâmica aquarelas. 1835-1837. (Edição fac-similar) Rio de Janeiro, Banco da Bahia Investimentos S. A., 1996.. NOTAS 1 KOSSOY, Boris – Dicionário histórico-fotográfico brasileiro: Fotógrafo e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910). São Paulo – Instituto Moreira Salles, 2002. p15-16. 2 APEB – Sessão de Arquivos Coloniais, Série Correspondência recebida de autoridades diversas, 1814, maço n° 226, caderno 8. 3 PEARCE, Tenente Robert. Aquarelas feitas durante a viagem ao Brasil da H. M. S. Favorite em 1819 e 1820. Rio de Janeiro, Banco da Bahia Investimentos/Livraria Kosmos Editora, 1991. – Panorama da Bahia 4 SSJCB; Lista de Enterramentos do Cemitério Britânico. 5 FERREZ, Gilberto. Bahia velhas fotografias: 1858-1900. Rio de Janeiro/Salvador: Kosmos/Banco da Bahia Investimentos S.A, 1998. p. 60-61. 6 KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. p.55. 7 Apud RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Brasil Monárquico. São Paulo: Pioneira. 1973. p.17. 8 TEIXEIRA, Cid. Salvador: História Visual. Fascículo 6. Salvador: Correio da Bahia, 2001.p 09 As necrópoles urbanas de Salvador e a ótica higienista no século XIX Ernesto Regino Xavier de Carvalho Arquiteto Urbanista Mestre em Conservação e Restauração Taba- Arquitetura, Idéias e Soluções Resumo O presente artigo pretende demonstrar, a influência do pensamento higienista na redefinição dos espaços físicos da cidade do Salvador do século XIX, com ênfase nas suas necrópoles urbanas, e da nova relação de responsabilidade dos habitantes com a cidade a partir da tradução da ótica higienista nas posturas (leis) municipais - representantes do aumento do poder de intervenção do estado nos hábitos e costumes da população, a partir de uma análise articulada da breve descrição do histórico da rede de cemitérios de Salvador, e das respectivas localizações dessas necrópoles na cidade, no século XIX, no sentido de entendermos a abrangência desse pensamento comparada ao efeito que essas novas arquiteturas assumem, a partir de então na sua estrutura urbana social, política e religiosa. Palavras-chave: Cemitérios na Bahia — História —Bahia. Apresentação Desde o século XVI até os meados do século XIX, as igrejas no Brasil, serviram como última morada dos fiéis, fazendo às vezes de nossos atuais cemitérios. Esse hábito passou a ser revisado a partir de uma conjuntura marcada pela escalada do pensamento científico baseado no iluminismo europeu que ganhou terreno com a abertura dos portos do Brasil em 1808. Acreditava-se, até então, dentro do meio científico, que os miasmas odores oriundos da putrefação da matéria orgânica, tidos como fluidos invisíveis, eram malignos à saúde e que respondiam pelo surgimento de doenças e epidemias e, por vezes, até a morte, contribuindo para a insalubridade e para a desordem das cidades. No caso dos enterros alegava-se que o acondicionamento de mortos nas igrejas era inadequado e favorecia a proliferação dos mesmos. Dr. Francisco d’Assis de Sousa Vaz, em sua Memória sobre a inconveniência dos enterros nas igrejas e utilidade da construcção de cemitérios no dá idéia da evolução desse cenário. Entre o grande número de abusos perigosos, que concorrem para alterar a Saúde pública, deve contar-se a prática até agora usada em Portugal de enterrar os mortos 1 nas Igrejas. Nenhum Facultativo ignora, que as sepulturas nestes logares pouco arejados são extremamente nocivas. (...) He bem sabido que as exhalações das sepulturas causam grande número de doenças, muitas vezes mortaes, e que o enterramento nas Igrejas tem sido frequentemente funesto em razão dos miasmas putridos, ou vapores cadavéricos que alli se conservão condensados. A salubridade pública exige pois imperiosamente que cesse para sempre esta prática nociva, e que o logar das sepulturas seja a huma distancia considerável das povoações. (...) O corpo de todo animal sugeito às leis da matéria, privado de vida, soffre uma decomposição dos seus princípios, elevando-se n’este acto miasmas, isto he, huma exalação das moléculas mais moveis d’estas diferentes substancias e partes constitutivas dos animaes, que espalhadas na atmosfera, são capazes de perturbar as funcções vitaes d’aqueles que as respirão.1 No século XIX, consolidava-se a nova idéia da necessidade de sanear as cidades a partir dos pressupostos higienistas. Os médicos sanitaristas passaram, então, a reler o espaço urbano do ponto de vista da saúde e do seu saneamento. Esse pressuposto serviu não somente como forma de mudança de se pensar a cidade como também terminou por dar legitimidade às intervenções do poder público2, segundo Maria Clélia Lustosa Costa “Desenvolve-se, então, uma medicina a acentuar o meio ambiente, as relações entre o homem doente, a natureza e a sociedade, assentada no neo hipocratismo.”3. Os reflexos na esfera urbana mostram-se, inexoravelmente, no desenho das novas cidades. Os urbanistas e pré-urbanistas progressistas dos séculos XIX e XX lançaram os modelos utópicos de uma cidade higienizada, salubre, e harmônica, baseada no racionalismo e na eficientização, com ruas ordenadas, e arborizadas ”onde seja garantido o bem-estar social da população”4. Caberia naquele momento aos médicos sanitaristas os “grandes planos de atuação nos espaços públicos e privados da nação”5 ao passo em que os higienistas seriam os principais responsáveis pelas “pesquisas e pela atuação cotidiana no combate às epidemias e às doenças que mais afligiam as populações.”6, onde higienizar a cidade significa estabelecer o controle nos ambientes suscetíveis ao prejuízo do bem comum das cidades7. A cidade de Salvador passou por um grande processo de remodelação, na primeira metade do século XIX que atingiria e modificaria toda sua feição urbanística e comercial8, e logo as condutas higienistas gerariam leis específicas nas, que atuariam em todos os espectros da sociedade onde se pode observar nas posturas municipais da Câmara da Cidade do Salvador em 1829-18599, aprovadas nestes termos em 25 de fevereiro de 1831: Postura nº. 19 As pessoas que forem convencidas de haverem lançado, ou mandado lançar cadáveres nas Igrejas, ou quaisquer outros lugares serão multados em 30$000 e oito dias de prisão. Os cadáveres que assim forem encontrados irão a sepulturas no Cemitério à custa do cofre municipal, se as parochias o não fiserem immediatamente.” Postura nº. 20 He absolutamente prohibido enterrarem-se corpos dentro das Igrejas, e nos seus adros (...). A presente postura só terá vigor dois annos depois da sua publicação dentro de cujo tempo deverão as confrarias, e parochias estabelecer seus cemitérios em lugares approvados pela Câmara, fora da cidade. Postura nº. 22 Determina que os enterramentos deverão ser feitos a 6 palmos abaixo da superfície Postura nº. 23 Os corpos deveriam ser inumados em sepultura coberta ou caixão fechado Postura nº. 29 As valas e riachos da Cidade de subúrbios, que atravessarem por terrenos particulares deverão ser limpos, e desentupidos pelos proprietários, ou locatários de taes terrenos: assim como deverão ser dessecadas pelos mesmos os pântanos, e agoas estagnadas: penna de 10$000 réis, ou 5 dias de prisão. Postura nº. 32 O despejo immundo da casas será levado ao mar à noite em vasilhas cobertas, sob pena de 2$000 réis ou 24 horas de prisão e ficão os senhores responsáveis por seus escravos. Postura nº. 35 Proibição de criação de porcos nas cidades e povoados Postura nº. 38 Os Hospitais são obrigados a ter licença da Câmara Os cemitérios de Salvador no século XIX Salvador contava com uma série de cemitérios no século XIX. O Campo da Pólvora, ou Campo dos Mártires, porque lá haviam sido executados os líderes da Revolução Pernambucana, de 1817, condenados pelo oitavo Conde dos Arcos-Dom Marcos de Noronha e Brito. Este era o local destinado aos suicidas, criminosos, indigentes, escravos e rebeldes10. Inicialmente era destinado aos pagãos, se tornou cemitério de escravos e outros destituídos da sociedade11. Localizava-se praticamente no meio da cidade e de início sequer era chamado de cemitério, aos poucos se tornava um problema de saúde pública. “O cemitério tinha área de 16 braças de frente e 24 ½ de fundo, totalmente murado”12 13. Segundo Antonio Damázio, quando da execução do tombamento dos bens da Santa Casa: Ignora-se inteiramente quando, e como ella alli estabeleceu: é todavia certo que, ou pelas falsas idéias religiosas que predominavão nas passadas eras, a respeito das sepulturas, ou pela insignificância do cemitério, ou mesmo porque fosse de principio destinado ao enterramento dos enfermos do Hospital, dos escravos e dos justiçados, nenhuma pessoa notável, teve lá o descanso da vida.14 Na lista de tombamento dos bens da Santa Casa, consta que a terra não consumia mais os mortos, sendo assunto para a administração da dita Irmandade. Um contemporâneo, funcionário da Santa Casa, observou que: Em 1835 estava o Cemitério nas piores condições. Formado um pequeno quadrilátero (...) completamente murado, não tinha por onde se estender; com a terra fatigada de tanto consumir cadáveres, de modo que já mal os absorvia; constrangido de contínuo a prestar covas aos desvalidos (...) era o Cemitério do Campo da Pólvora um verdadeiro pesadelo para a Santa Casa, e um foco ameaçador para esta terra vagarosa.15 Foi removido o cemitério, em princípios de 1840, “como negocio summamente útil à saúde pública.”16. Segundo o historiador João José Reis, o ano de 1835 foi decisivo para a campanha contra os enterros nas igrejas de Salvador e, a essa altura, a proposta, “embora antipática a vários setores da sociedade”, já mostrava aceitação até mesmo entre o clero que, embora se beneficiasse com o costume, já enfrentava transtornos em sua manutenção, até mesmo pela escassez de espaço para os sepultamentos, a ponto do pároco da freguesia da Vitória, Joaquim de Almeida, apresentar uma representação à Assembléia Legislativa Provincial - na época presidida por D. Romualdo Seixas, arcebispo da Bahia - advogando a causa e sugerindo a concessão a particulares, caso o Governo não tivesse recursos para levar a idéia a cabo17. Em 23 de outubro de 1835, tendo em vista os “inconvenientes à salubridade publica, e degradantes à magestade dos templos, os enterramentos nas Igrejas18”, foi promulgada pela Câmara Municipal da cidade do Salvador, uma concessão de 30 anos a José Augusto de Matos & Cia composta pelos negociantes José Augusto Pereira de Matos, José Antônio de Araújo e pelo juiz de direito Caetano Silvestre da Silva. Surgia, a partir daí o Cemitério do Campo Santo - cujo novo nome buscava unir - e conciliar - as referências ao espaço (não mais a igreja, mas o campo) e ao caráter do enterro (que continuaria santo, sagrado)19. O terreno, previamente escolhido pela Câmara, localiza-se “na antiga estrada do Rio Vermelho, no topo de uma colina arejada, conforme as recomendações dos higienistas, proibindo-se, a partir de então, os enterros nas igrejas20. O espaço próprio para os enterros foi assim dividido: de um lado, túmulos (sepulturas individuais e jazigos perpétuos) e catacumbas (ou “carneiras”) particulares, e, de outro, covas comuns, destinadas aos mortos menos abastados. O primeiro grupo de sepulturas seria guarnecido por “bordados [...] de arbustos próprios” ou “lúgubres árvores, que decorem a habitação dos mortos”. De acordo com Reis, “a organização das sepulturas do novo cemitério sugere uma arqueologia dos diferentes estilos de enterramento, equivalente a uma sociologia da desigualdade entre os mortos” 21. Além disso, tal hierarquização foi reforçada, a princípio, por uma segregação de cunho religioso, uma vez que, de acordo com o arcebispo, no novo cemitério só haveria lugar para aqueles que em vida tivessem passado pelo batismo católico.22 Apenas dois dias após a sua inauguração, o Campo Santo foi arrasado por parte da população da cidade, inconformada com a mudança no regime de enterros, mudança esta que seria agravada no dia seguinte com a entrada em vigor de uma lei que proibia os enterros nas igrejas e concedia, pelo período de trinta anos (ao fim dos qual, o cemitério passaria à administração pública), o monopólio dos enterros a José Augusto de Matos & Cia. O episódio - que ficou conhecido como Cemiterada - resultou na desistência da companhia, que recebeu do Governo indenização devida23. Segundo Afrânio Peixoto, os tais protestos foram de responsabilidade das Ordens Terceiras, “que, a 5 de outubro de 1836, fizeram, ao Presidente da Província, petição, suspensiva da lei” e, não recebendo resposta dos seus pleitos, rumaram em direção ao Campo Santo ”e arrasaram tudo, exceto a capela.”24. Em janeiro de 1840, a Santa Casa de Misericórdia comprou o cemitério a dez contos, e iniciou melhoramentos e obras de reconstrução transferindo para lá, entre os anos de 1843 e 1844, os restos mortais do Campo da Pólvora, ali sepultando, em covas comuns, a partir de 01 de maio de 1844, todos os que faleciam no hospital da Santa Casa e também os escravos. Em 1847, foram feitas as principais obras, como o jardim, muralhas, nivelamento, galeria de carneiros, mausoléus, quadros de inumação25. A capela foi inaugurada em 07 de junho de 1870, com projeto do arquiteto Carlos Croesy26. Deste modo, nos relatava Damázio, 1862, que ficou introduzido o gosto dos mausoléus, e definitivamente abolido o uso dos enterros nas Igrejas para que contribuiu em primeiro lugar a prohibição feita pela Mesa e Junta de 11 de dezembro de 1853 de os executar na Igreja da Santa Casa, e em segundo – de maneira decisiva a medonha epidemia do cholera-morbus em 1855.27 De acordo com o artigo 1º do novo regulamento, publicado em 1866, o novo cemitério do Campo Santo destinava-se a: dar sepultura aos Irmãos da S. casa, suas mulheres e filhos - em quanto menores; aos doentes pobres, ou sob dependência della; aos indigentes, quando enviados pela Policia, ou pelos Irmãos Provedor, Escrivão, Thesoureiro ou Mordomo respectivo; aos que mediante a compra de chão, tiverem no mesmo Cemitério jazigos construídos por si, seus parentes ou amigos, conforme os contractos de taes compras; e a todos os que, por esmola previamente entregue ao Irmão Thesoureiro, forem para lá conduzidos por aquelles que dispozerem de seus enterros.28 Em 1870, iniciou-se a construção da atual igreja substituindo a antiga capela, que, além de menor e menos vistosa (a atual é uma igreja neogótica de 478 metros quadrados), abrigava um painel da Ascensão do Senhor que foi, “intitulado pelos mal intencionados de emblema maçônico.”29. Este foi substituído por uma imagem de Nossa Senhora da Piedade, entronizada no altar-mor no dia da inauguração da nova igreja, em 7 de junho de 1874. Fundada em 1552, a Irmandade da Misericórdia foi a mais poderosa e importante da Bahia Colonial. Ser irmão da Santa Casa de Misericórdia era título de prestígio na sociedade colonial30. Dentre suas assistências estavam asilos, a Roda dos Expostos, o Recolhimento, Casas de Orates, e os Cemitérios da Pólvora e, posteriormente, do Campo Santo. Possuía o privilégio, dado à Misericórdia de Lisboa por Felipe II, de Portugal, em 1622, e assumida pela Misericórdia da Bahia31, de usar e alugar as tumbas em que eram transportados os mortos à sepultura. Dos esquifes de madeira, para as elites coloniais, ou os improvisados bangüês, para os escravos, e com exceção de padres, soldados e algumas irmandades negras, somente a Misericórdia realizava os serviços fúnebres no século XVIII32. A lei municipal de 28 de outubro de 1828, que regulava a limpeza da pública, imbuído de idéias liberais, civilizadores e higienizadores, foi estabelecido no artigo 66 a construção de “cemitérios fora do recinto dos templos”33: No principio não eram proibidos os enterros nas igrejas e nas capelas, mas logo que houve consciência da falta de higiene proveniente desse costume tradicional, interditavam esses funerais, tão ao gosto da população e dos associados das Irmandades, e os corpos foram levados aos cemitérios. As vítimas da epidemia eram transportadas para serem enterradas nos cemitérios da Maçaranduba, da Santa Casa e do Campo Santo, também pertencentes à mesma Irmandade.34 Em 1855, a população de Salvador era de 56.000 habitantes e cerca de 16,8% deles foram dizimados pela peste35. Pela lei nº 404 de 2 de agosto de 1850 que deve ter sido imperada pela verificação da falta de higiene que derivava da prática de enterrar os mortos de uma epidemia no interior dos templos, ficavam proibidos essas inumações, com as únicas exceções dos Prelados, das religiosas dos conventos ou mosteiros, e das recolhidas em estabelecimento de cunho religioso.36 “Comprou-se a Quinta do Tanque por espólio dos jesuítas, por 6 contos de réis37”, tendo sido aberto por ordem do Governador e Capitão Geral D. Rodrigo José Menezes e Castro, em 21 de agosto de 178738. “Foi especialmente destinado a recolher, tratar e curar morphéticos de ambos os sexos, sem distinção de condição, naturalidade e religião.”39 “Este cemitério veio a ser público quando, ao tempo da cólera, foi impedido o sepultamento nas igrejas, para esta zona da Bahia, sendo chamada (...) Cemitério das Quintas.”40, ou Quinta dos Lázaros, que segundo Peixoto, era destinado aos leprosos41. “Tinha um altiplano de morro, suficiente e muito adequado para se fazer uma verdadeira necrópole, nos conceitos sanitaristas e urbanísticos da época.42”,onde seriam construídos os cemitérios das principais ordens e irmandades religiosas na Bahia, “nos quais as diversas sociedades beneficentes encontraram terreno para suas quadras e mausoléus coletivos.”43. O Império Britânico teve a sua representação bem como o Germânico. “As relações do emergente Estado brasileiro com este último estreitaram-se a partir do casamento de D.Pedro, em 1818, com a imperatriz Leopoldina, que, por sua vez, apoiou a vinda de cientistas e artistas germânicos para a América portuguesa.”44. Pode-se ter uma idéia desta representação na capital Com a abertura do consulado de Hamburgo na Bahia, em 1820. Os registros da Alfândega de Salvador apontam, entre 1856 e 1864, a presença de 299 imigrantes tidos como alemães45, atestando que um número significativo destes passou pela Bahia ou ali se fixou.”46. Em 1827, através dos Tratados Comerciais assinados com as cidades de Lübeck, Bremen e Hamburgo, o Brasil formalizou as suas relações comerciais com a Alemanha, acarretando um fluxo crescente de germânicos, que aportavam em Salvador, vindos de Hamburgo – considerado o mais importante porto alemão.47. Em 1851, fora fundado em Salvador um cemitério conhecido como Associação Cemitério dos Estrangeiros, também conhecido pelo nome de Cemitério dos Alemães, que existe até hoje, sob o nome de Sociedade Cemitério Federação48. A preocupação com os óbitos levou os alemães à criação de um cemitério próprio, em frente ao Campo Santo, e outro em São Félix, em 1853, segundo suas crenças não católicas. O Hospital Couto Maia, ou Isolamento de Mont Serrat, foi planejado para tratamento dos estrangeiros, principalmente britânicos, acometidos por alguma das epidemias típicas os séculos XIX e XX, como a febre amarela (1849, 1857), cólera (1855), peste bubônica (1904), gripe espanhola (1918), varíola (1919), febre tifóide (1924) e outras chamadas doenças tropicais. Foi construído em 9 de abril de 1853 em ato expedido pelo então Presidente da Província da Bahia, Mauricio Wanderley em local afastado, alto e pouco povoado. Foi construído nas terras da fazenda de Antonio de Freitas Paranhos. Devido à alta taxa de mortalidade dessas epidemias, o hospital recebeu, no inicio do século XX, o apelido de “lugar que a morte freqüenta.”49. O seu difícil acesso levou a se edificar um pequeno cemitério destinado às pessoas que morriam dessas estranhas e temidas doenças. Inicialmente esses enterramentos eram feitos nas imediações do próprio hospital, segundo a historiadora Lorenzo50. A área não se verificou adequada, devido à proximidade de fontes de água utilizada na enfermaria, “e por formigas que por vezes deixavam os mortos descobertos”, os enterramentos começaram a ser feitos nos cemitérios de Bom Jesus em Mont Serrat e de Massaranduba, a partir da década de 70 do século XIX. Figura 1: Cemitérios de Salvador no século XIX Fonte: Ernesto Carvalho A Cidade do Salvador possuía o pequeno cemitério na Mouraria para soldados do Segundo Regimento51. O cemitério dos Quinze Mistérios, que pertencia à Irmandade dos Quinze Mistérios, na freguesia do Santo Antônio, foi construído em 1825 e acolhia inclusive não irmãos52. Havia ainda o cemitério de Massaranduba, ou Bom Jesus da Massaranduba, que pertencia à Ordem Terceira da Santíssima Trindade, e já estava em funcionamento entre 1835-1836 - destinava-se a pobres e escravos53. Kidder, ainda em sua viagem por Salvador, fez referência a um lote, “nas fraldas do Morro da Vitória”, que teria sido comprado a partir de angariações feitas à comunidade norte-americana e servia como uma área de enterramentos para estes cidadãos. Por ele foi denominada cemitério norteamericano, ao que tudo indica no topo da Ladeira da Barra, relativamente próximo ao Cemitério dos Ingleses: A Bahia é a única cidade brasileira onde existe um cemitério norte-americano. Sendo muito mais numerosa a colônia inglesa – e ainda contando com o auxílio financeiro de seu governo para diversos empreendimentos sociais e religiosos, tais como a construção de igrejas e a manutenção de capelães em países estrangeiros, - mantém ela cemitérios em quase todas as cidades importantes do Império. Não somente os súditos \britânicos se beneficiam dessa louvável atitude do governo inglês. Protestantes de todas as nacionalidades, especialmente cidadãos norte-americanos, devem grande soma de obrigações à colônia inglesa, pelo fato de frequentemente facilitar, à esta última, o enterramento de seus mortos. 54 A área descrita por Kidder não era edificada, e possuía poucos túmulos, muitos de não americanos. “Sobre eles o mato crescia livremente e o cemitério estava inteiramente aberto.” Não se constituía, portanto, de uma edificação, apenas de um local de enterramentos. O Cemitério dos Ingleses (British Cemetery) tem a sua origem a partir da permissão para a compra de seu terreno para a sua implantação, concedida pelo Conde dos Arcos, em 1811, e surge em pleno período joanino e é o último remanescente da arquitetura anglicana do séc. XIX, um dos três do Brasil, logo após os Tratados de 1810 (Tratado de aliança e Amizade e de Comércio e Navegação) corolários da Abertura dos Portos operada em 1808, nos seguintes termos: Do Cônsul da Nação Britannica,Três Negociantes da mesma Nação, Supplicando a S. Ex ª a graça de aprovar converter o terreno q’elles se achão de posse....... pª cemitério dos mortos da sua Nação. Respondido em 10 de Fevereiro de 1811 Ilmo.e Exo. Senhor. Os abaixo assignados, Cônsul de Sua Magestada Britanica, na Província da Bahia Deputados dos Negociantes Inglezes, rezidentes nesta Cidade, tendo legal e devidamente comprado o dominio útil de huma Roça sita na Estrada, que pela, parte do Mar, vai da Victória para o Forte Grande da Barra, pertencente Capella de Santo Antônio a cuja Confraria he foreiro, desejão converter aquelle Terrêno em Cemitério próprio, e decente para nelle, se enterrarem os Vassalos de S.M.B. que nesta Cidade fallecerem e que ahí dezejarem de enterrar-se. Para este effeito os abaixo assignados tem a honra de se dirigirem à Respeitavel Presença de Vossa Excellencia, supplicando a Vossa Excellencia, como submissamente supplicão, a Graça de Aprovar e concentir que o sobredito Terrêno, de muros a dentro possa de hoje em diante servir para Cemitério da Nação Britanica, conformemente à Provisão por sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal facultada aos Vassalos Britanicos, na Letra do Artigo 12° do Tratado do Comercio formado entre os Plenipotenciários das respectivas Coroa Britamca e Portugueza, em 19 de Fevereiro de 1810, que diz assim: Liberty shall be granted to bury the Subjects of His Britanic Magesty who may die in the Territories of his Royal Hisgne.... the Prince Regnt of Portugal in convenient Places to be appointed for that Purpose = Conformando-se, os abaixo assignados por si, e por seus futuros Sucessores, na administração do mesmo Cemitério, às restricçoens acordadas no supra dito Artigo, na parte que regula a privação do exercicio publico de outra cumunhão que não seja a da Religião dominante no Paiz. Os abaixo assignados, aproveitão esta occazião para renderem à Vossa Excellencia os sentimentos da sua alta consideração, e profundo respeito. A Sua Excellencia o Senhor Conde dos Arcos General da Provincia da Bahia, Frederico Lindeman Consul de S.MBra Jorge Car..... Moir Henrique Harrison. Geo I... S.... Consulado G. Britanico, 8 de Fevereiro de 1811.55 Conclusões Com a remodelação da cidade do Salvador os novos pensamentos higienistas tomaram forma e força de leis municipais O nível de responsabilidade do cidadão com a sua cidade cresce à mesma proporção em que cresce a atuação do poder público, agora em esferas mais íntimas da população – seus hábitos diários e sua religião, sua própria relação da morte com a saúde coletiva ganham uma nova consciência comportamental, mais evoluída e com ares europeus. Os cemitérios tinham, portanto, atenção especial, uma vez que serviam agora como único espaço para acolher os corpos, uma vez que as igrejas não mais poderiam fazê-lo. Sujeitos às novas regras deveriam se localizar afastado das áreas povoadas, nos sub urbs, no alto de colinas, e ter muros altos, e a devida profundidade dos túmulos e forma correta de um enterramento. Os cemitérios estrangeiros como o Germânico e dos Ingleses já traziam incorporados esses pressupostos, este último de forma pioneira por ter se estabelecido ainda em 1811. NOTAS 1 VAZ, Francisco d’Assis de Souza. Memória sobre a inconveniência dos enterros nas igrejas e utilidade da construção de cemitérios. Bahia, Imprensa de Gandra e Filhos, 1835, pp. 5 e 18. 2 COSTA, Maria Clélia Lustosa. “Teorias Médicas e gestão urbana: a seca de 1877-79 em Fortaleza.” História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. 11 (1) (jan.-abr. 2004), p. 58. 3 Ibid, p. 59. 4 Ibid, p. 68. 5 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 206. 6 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 206. 7 COSTA, Maria Clélia Lustosa. “A Cidade e o pensamento médico: uma leitura do espaço urbano.” Mercator - Revista de Geografia da UFC, n. 02 (2002), p.63. 8 RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1996. p. 292-295. 9 AMFGM; POSTURAS MUNICIPAIS da Câmara da cidade de Salvador. 1829-1859. 10 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.192. 11 Ibid, p. 196. 12 RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Ed. UNB, 1981. p. 183. 13 Tais dimensões foram estipuladas se formos considerar a medida de uma braça igual a 2,2 metros. (algo em torno de 35 por 55 metros) 14 DAMÁZIO, Antonio Joaquim. Tombamento dos bens immoveis da Santa Casa da Misericórdia da Bahia em 1862. Bahia: Typographia de Camillo de Lellis Masson & Companhia, 1862. p. 55. 15 Ibid, p. 55. 16 Ibid, p. 57. 17 REIS, Op, cit. p. 292 e 294. 18 DAMÁZIO, Op, cit, p..156. 19 Ibid, p. 318, 293 e 295. 20 Ibid, p. 56. 21 Ibid, p. 295-296. 22 APEB, Religião. Governador do arcebispado, 1836-38, maço 5211; Apud REIS, Op. cit., p. 306. 23 REIS, Op. cit., p. 336. 24 PEIXOTO, Afrânio. Breviário da Bahia. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1946. p. 253. 25 DAMÁZIO, Op. cit. p.57-58. 26 DANTAS, Manuel Pinto de Souza. Relatório apresentado a junta da Irmandade da Casa da Santa Misericórdia da Capital da Bahia. Bahia: Typographia do Diário, 1874. 27 DAMÁZIO, Op, cit. p.58. 28 REGULAMENTO do Cemitério Campo Santo. Bahia: Typographia de Tourinho & Cia, 1866. p. 3. 29 RELATÓRIO de 1844, Apud: COSTA, Paulo Segundo da. Op. cit., p. 71-72. 30 RUSSEL-WOOD, Op. cit. p. 153-155. 31 Ibid. p. 73. 32 REIS, Op. cit. p. 146. 33 Ibid. p..276. 34 NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da cidade do Salvador: aspectos sociais e urbanos do século XIX. Salvador: FCEBa/EGBa, 1986. p. 154. 35 Ibid. p. 161. 36 Ibid. p.165. 37 PEIXOTO, Op. cit. p.102. 38 BOCCANERA JR, Sílio. Bahia cívica e religiosa: subsídios para a história. Bahia: A Nova Graphica, 1926. p. 317. 39 Ibid. p. 317. 40 PEIXOTO, op. cit. p. 103. 41 Ibid. p. 97. 42 VALLADARES.Arte e sociedade nos cemitérios: um estudo da arte cemiterial no Brasil desde as sepulturas de igrejas e as catacumbas de ordem e confrarias até as necrópoles secularizadas realizado no período de 1960 a 1970. [s.n.], Rio de Janeiro, 2v, 1972.. p. 115. 43 Ibid. p. 115. 44 BARRETO, Maria Renilda Nery; ARAS, Lina Maria Brandão de. Salvador, cidade do mundo: da Alemanha para a Bahia. Hist. cienc. Saúde-`Manguinhos, v. 10, n. 1 (2003). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0104-59702003000100005&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 13 Out 2006. 45 LYRA, Henrique Jorge B. Colonos e colônias — uma avaliação das experiências agrícolas na Bahia na segunda metade do século XIX. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, 1982. p. 141 46 AUGEL, Moema Parente. Viajantes estrangeiros na Bahia oitocentista. São Paulo/Brasília, Cultrix/INL, 1980. p. 30 47 MENEZES, Albene Miriam Ferreira. “Os alemães, uma presença secular”. Revista da Bahia, n. 16 (mar-maio 1990), p. 34 apud BARRETO e ARAS, Op cit, P34. 48 Ibid. p. 36. 49 JORNAL Correio da Bahia, Caderno Domingo Repórter. 20/102002, p. 3. 50 LORENZO, Fátima. Breve História do Hospital Couto Maia: manual de procedimentos em doença infecciosas e parasitárias. Salvador: Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, 1994. 51 VALLADARES, Op. cit. p. 157. 52 REIS, Op. cit. p. 197. 53 Ibid. p. 197-198. 54 KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. p. 55. 55 APEB – Sessão de Arquivos Coloniais, Série Correspondência recebida de autoridades diversas, 1814, maço n° 226, caderno 8. A memória coletiva e as tecnologias de rememoração no Cemitério Santana de Inhumas (1970-2007) Eurimar Nogueira Garcia Graduando em História pela Universidade Estadual de Goiás. Este artigo é parte do primeiro capítulo do TCC em andamento. Resumo Neste artigo abordo resumidamente a histórica valorização das sepulturas no Ocidente e principalmente sobre o potencial de auxiliar e consolidar a memória coletiva, no sentido a ela atribuído por Maurice Halbwachs (2006), contido nas sepulturas do Cemitério Santana de Inhumas (inseridas no recorte 1970-2007), graças ao seu tempo de construção e localização espacial. Sepulturas essas que reúnem em torno de si o que Peter Burke (2006) denomina como comunidade de memória, um grupo que nesse caso é movido basicamente por sentimentos religiosos. Palavras-chave: morte; cemitério; memória. Fustel de Coulanges em sua obra A Cidade Antiga, analisando a preocupação com a lembrança dos mortos, a importância dada ao sepultamento e a “alimentação” dispensada aos mortos-deuses, na Grécia, Roma e Índia antiga, atribuiu tal importância a esses rituais que chegou a afirmar: (...)Antes de conceber e adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os mortos: temeu-os e dirigiu-lhes preces. Parece que aí se originou o sentimento religioso. Talvez diante da morte o homem tenha tido pela primeira vez a idéia do sobrenatural e esperado encontrar algo além daquilo que via. A morte foi o primeiro mistério e encaminhou o homem para outros mistérios. Elevou-lhe o pensamento do visível para o invisível, do transitório para o eterno, do humano para o divino. (Coulanges, 2003, p. 44). A importância do sentimento religioso para a origem da valorização das sepulturas é convergente entre Fustel de Coulanges, afirmando que a crença antiga era de que a alma sem sepultura seria desgraçada para sempre, e Elizabeth Kübler que em sua obra Sobre a morte e o Morrer afirma que: (...) “A tradição do túmulo pode advir do desejo de sepultar bem fundo os maus espíritos, e a pedrinha que muitos enlutados jogam como homenagem traduz símbolos do mesmo desejo.” (...)(Kübler, 1998, p.8). Considerando as afirmações de Fustel de Coulanges, temos uma breve noção da importância de analisar as construções humanas dedicadas aos seus ancestrais, pois nelas se pode notar a manifestação de concepções históricoreligiosas, fruto de uma mentalidade marcada por crenças e valores que inevitavelmente regem atitudes humanas em diferentes épocas e lugares, haja vista que a preocupação com os mortos é uma constante na cultura da humanidade, como afirma Norbert Elias em Solidão dos Moribundos: (...) “Uma mãe macaca pode carregar sua cria morta durante certo tempo antes de largála em algum lugar e perdê-la. Nada sabe da morte, de sua cria ou de sua própria. Os seres humanos sabem, e assim a morte se torna um problema para eles.” (Elias, 2001, p. 11). Analisando especificamente umas das formas de tratamento dispensadas aos mortos, a inumação e a construção tumular, percebe-se que a essência deste é a valorização da rememoração familiar e pública, movida pela perceptível preocupação com o destino do ente-querido, que em grande parte das mentalidades históricas pareceram depender das ações dos vivos. Para a antiguidade greco-romana “o cuidado de levar os alimentos até os mortos não foi deixado ao sabor do capricho ou dos sentimentos variáveis dos homens: era obrigatório,” (Coulanges, 2003, p. 40). Ao longo da Idade Média, o esquecimento ficou estabelecido como modo de castigo e penitência à alma do defunto, através dos sínodos de Reisbach em 798 e Elne em 1027, e a lembrança consagrada através da eleição dos dois de novembro como dia de comemoração dos defuntos no século IX, e principalmente com o “surgimento” do purgatório em fins do século XII, que torna compreensível o maior destaque dado pelos católicos à memória de seus ancestrais ainda na contemporaneidade. Sobre as mudanças de atitudes dos ocidentais para com seus mortos, fruto de suas respectivas mentalidades, essencialmente no que diz respeito às inumações Josefina Eloína (1999) afirma: Passou-se de um sepultamento simples ao longo das estradas, como na Antiguidade Romana, para dentro das igrejas na Idade Média. Nas Luzes, surgiram cemitérios simples, a céu aberto, e depois os jardins ingleses, com os sepulcros situados em parques privativos de uma sociedade aristocrática. Finalmente, chega-se aos cemitérios modernos no século XIX, quando o jazigo 2 passa a ser construído como a própria casa, dotado de um estilo que o distingue dos demais. (Eloína, 1999, ps 22 e23). Sendo Inhumas uma cidade formada a partir do final do século XIX nunca foi comum o hábito de enterrar os mortos em igrejas, haja vista que da metade desse século em diante começou-se a colocar em prática a lei de 1828, que exigia das câmaras municipais construção de cemitérios extramuros, e que a partir de 1835 as assembléias provinciais começam a redigir leis que obrigam o fim da prática dos enterros nas Igrejas, isso tudo graças aos discursos médico-sanitários que ganhou muita força naquela época de cólera e febre amarela. Assim os espaços dos mortos na mesma sempre foram seculares. A ausência de documentos dificulta a afirmação sobre a origem do Cemitério Santana, mas de acordo com Jamil Miguel (2000) teria sido construído por padres redentoristas em 1912. Para Peter Burke (2006) as variadas formas de memórias devem ser tratadas como documentos, fazendo-se as devidas críticas e análises desses vestígios do passado, visando assim estudar a própria memória social como um fenômeno histórico, procurando entender o conteúdo através das formas (oral, escrita, imagética, comemorações, e espaciais) que são os meios de transmissão do passado de geração para geração. Sobre essas formas de perpetuação da memória Peter Burke afirma: “Do ponto de vista da transmissão da memória, cada veículo tem suas próprias forças e fraquezas” (Burke, 2006: 76). Partindo dessa colocação pode-se afirmar que o Cemitério Santana é um veículo extremante forte, pois carrega em si três desses meios de transmissão de memória social, sendo eles a escrita (epitáfios), a imagem ( esculturas e fotografias) e o lugar ( parcialmente integrado ao centro urbano). Mas que em ocasiões específicas, principalmente no dia 2 de novembro também assume as outras duas formas quando os indivíduos ali enterrados são comentados e “comemorados”. Observando principalmente as sepulturas construídas entre 1970 e 2007, pode-se notar a importância atribuída à anamnese1 através de epitáfios como o de Francisca Fernandes (“Orai por ela”), também encontrado em dezenas de outras sepulturas, um caso ideal para mostrar a essência da 3 lembrança fúnebre nos cemitérios predominantemente católicos, as orações pela alma do defunto. Definindo então o Cemitério como um legítimo espaço ligado à transmissão e ao auxílio da memória, tem-se que resolver algumas problemáticas ligadas a definição desse conceito. Para Jacques Le Goff (1992): A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas (1992, p. 423) Considerando que o Cemitério Santana é um espaço que colabora com essas funções psíquicas, não apenas de um indivíduo, mas de toda uma sociedade, pode-se então considera-lo como espaço auxiliar de uma memória eminentemente coletiva, mas que no presente (2008) essa função estaria apenas com parte do mesmo, aproximadamente as sepulturas de 1970 em diante. As razões para essa consideração estão embasadas nas analises feitas por Maurice Halbwachs (2006) em sua obra A Memória Coletiva. Para ele a essência da memória coletiva é que sempre é mantida por um grupo limitado em seu tempo e espaço, graças às experiências vividas nessa coletividade e a um pensamento contínuo, tendendo a ser proporcional à duração da vida e dependente da existência dos respectivos grupos. Difere assim da memória histórica, pois essa começaria com o fim daquela, não dependendo da experiência, apresentando uma tendência universal, observando a realidade de fora e tendo como base longas durações. Seguindo a definição de que “se pode falar de memória coletiva quando evocamos um fato que tivesse um lugar na vida de nosso grupo e que víamos, que vemos ainda agora no momento em que o recordamos, do ponto de vista desse grupo” (Halbwachs, 2006, p. 41), as sepulturas estariam à serviço de uma memória coletiva baseada principalmente no grupo familiar, pois o indivíduo ali enterrado, muito provavelmente passou maior tempo de sua vida junto aos seus consangüíneos do que com quaisquer outros grupos, assim a “representificação” dele é feita principalmente pela família e sua existência 4 reafirmada e reidentificada como um ser-pai, ser-mãe, ser esposo, ser-esposa e ser-irmão, ser-sogro e ser-sogra. Isso fica evidente quando observamos os monumentos em si, como a sepultura de Georges Gebrael, enterrado em 1997 que tem como epitáfio: “Sentiremos muitas saudades. De seus filhos, genros, noras netos e bisntetos”. O mesmo teor encontrado no epitáfio de Antonio Cerozinho, sepultado em 1971: “Saudades de sua esposa, filhos, e netos. Orai por ele”. E também quando se observa as visitas recebidas pelos túmulos, como podemos notar na fotografia que se segue (foto 01), quando no dia 02 de novembro de 2007, esposa, filha, genro, nora e neta visitam o jazigo de Batista Jacinto, reidentificando um ser-pai, ser-esposo, ser-sogro, podendo até assumir um seravô, não na memória mas sim na imaginação, pelo fato da criança não ter lembranças dele, e de que a visita para ela desempenhe outras funções, menos a rememoração. Foto 01- Visita ao jazigo de Batista Jacinto Acervo particular de Eurimar Nogueira Garcia Tem-se então que a grande maioria das sepulturas construídas de 1960 até o presente momento desempenham a função de tecnologias de recordação, 2 estando assim a serviço da memória coletiva, pois as que ficam mais afastadas no tempo guardam indivíduos que os vivos de hoje muito provavelmente não conheceram e não tiveram experiências, como a quebrada e enlodada sepultura de Benedita Frutuosa, enterrada em 1952, ficando assim caracterizadas como uma memória histórica. 5 O que foi afirmado é válido se se aceita a proposição de Maurice Halbwachs (2006) de que “toda memória coletiva tem como suporte um grupo limitado no tempo e no espaço”. Então as sepulturas como suporte desses grupos consequentemente também possuem seus limites, pois, como já foi afirmado, o grupo familiar normalmente busca os seus ascendentes e/ou descendentes em aproximadamente duas gerações, fazendo com que esse limite temporal raramente ultrapasse os cinqüenta anos. Já o grau de importância do espaço como limitador do grupo ao qual tal memória é compartilhada pode ser notado na escolha do lugar para o sepultamento. Assim é possível notar que, pelo menos mentalmente, a possibilidade da proximidade ou da distancia do grupo e de sua tecnologia de lembrança colaborar ou dificultar esse mesmo grupo em sua prática de rememoração, fazer com que exista uma tendência histórica de opção pela proximidade. Sobre isso notamos na História uma fortíssima preocupação com o enterro em solo pátrio, ou o mais próximo possível da comunidade em qual o morto possuía suas raízes, evidenciando assim um aparente medo da “força dos estádios” ou da “força dos quilômetros”, seja na antiguidade ocidental, como se pode notar em Eurípedes mencionado por de Coulanges: “Frixos fora forçado a deixar a Grécia e fugira para a Cólquida, onde morreu; mas, embora morto, queria retornar à Grécia.” (2003, p.34), seja no oriente contemporâneo, como o ocorrido em janeiro de 2008, quando o governo japonês atendendo às pressões de familiares e do governo da Coréia do Sul, permitiu a repatriação dos restos mortais de soldados coreanos mortos durante a segunda guerra mundial3. No caso do Cemitério Santana tem-se vários indivíduos mortos em outras cidades, estados e países, como é o caso de Renato Balestra, morto em um acidente de avião nos Estados Unidos em 1993, mas que após sua cremação foi trazido para o agora solo pátrio da família Balestra 4, dando indícios de que o espaço que pode limitar a memória coletiva não é apenas aquele em que o grupo viveu, mas também o lugar que se encontra alguma matéria denunciadora de seu respectivo passado, no caso que se trata o túmulo. Assim a morte distante significou, entre outras coisas, a preocupação de que a lembrança também ficasse distante. 6 A função do espaço como colaborador para a manutenção de uma memória coletiva é clara no caso do Cemitério Santana, pois mesmo tendo os fundos fazendo divisa com uma chácara, desde a sua fundação ele fica integrado ao núcleo urbano, distando apenas aproximadamente 600 metros da Biblioteca Central e da Igreja Nossa Senhora de Santana, estando localizado na Rua da Celg esq. c/ Olídio Filinto Almeida no Setor Central. Assim a única barreira física que separa esse espaço do mundo dos vivos, o muro, é aniquilada pela proximidade, e pelos jazigos que se mostram para quem quer que passe pela rua, pois se sobrepõem ao muro e parecem falar: “estamos aqui, próximos e dispostos a ajudá-los em vossas recordações”! Se a essência da memória coletiva é a experiência vivida por um determinado grupo, pois ela “é uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, pois não retém do passado senão o que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém” (Halbwahcs, 2006, p. 102), tem-se que o Cemitério ao colaborar com a prática da anamnese também contribui para solidificar laços sociais, haja vista sua capacidade de mobilizar uma determinada coletividade, que Peter Burke denominou como comunidade de memória. A partir de uma observação feita no dia de finados, em 2008, foi possível notar nessa comunidade de memória envolvida no Cemitério Santana, uma tendência que se aproxima com o que Philippe Áries notou nos Estados Unidos (American Way of death), onde: “Deseja-se transformar a morte, maquiá-la, sublimá-la, mas não se quer fazê-la desaparecer. (...) A visita ao cemitério e uma certa veneração ao túmulo também subsistirão.” (2003, p.96). O que pude notar no Cemitério Santana, em comum com a afirmação de Philippe Áries, está em desacordo com uma das idéias de Elias contida em Solidão dos Moribundos, que é a afirmação de que na contemporaneidade: (...) A memória da pessoa morta pode continuar acesa; os corpos mortos e as sepulturas perderam significação. A Pietá de Michelangelo, a mãe em prantos com o corpo de seu filho, continua compreensível como obra de arte, mas dificilmente imaginável como situação real. (Elias, 2001, p. 37). Esta constatação está embasada no fato de que em apenas 30 minutos (08h15min às 08h45min) que fiquei na entrada única do cemitério pude contar a entrada de 524 pessoas pelo portão único do Cemitério. Considerando que 7 Inhumas possui uma população de aproximadamente 45.000 habitantes e que a cidade ainda conta com outro cemitério (Cemitério São Judas Tadeu) 524 pessoas é um número bastante significativo. Outro interessante dado que pude colher é que dessas 524 pessoas, 310 eram mulheres, 184 eram homens e o restante crianças, ficando assim explícito uma maior preocupação das mulheres para com seus entes queridos. Sobre a tendência de a mulher assumir um importantíssimo papel na lembrança familiar Jacques Le Goff afirma e interroga: “O pai nem sempre é retratista de família: a mãe o é muitas vezes. Devemos ver aí um vestígio da função feminina de conservação da lembrança ou, pelo contrário, uma conquista da memória do grupo pelo feminismo?” (1992, p. 466). Quase a mesma problemática fica em relação a essa preponderância das mulheres nessa comunidade de memória. Em relação a esses números aparece uma outra problemática: Pode-se considerar que a morte e seus lugares são ocultados das crianças inhumenses, uma vez que dessas 524 pessoas 30 eram crianças? Dependendo da importância que se dê a esses números, é possível afirmar que a interdição da morte na sociedade inhumense não passe pelo ocultar da necrópole às crianças. Outro detalhe ali notado foi a marcante presença de japoneses, mesmo que as sepulturas de seus entes queridos sejam apenas quatro, dando mostras que mesmo na diáspora das famílias Watanabe e Arataque para a cidade na primeira metade século XX, foi mantida a milenar tradição japonesa de lembrança e valorização dos mortos, mesmo tendo o Festival budista de Obon (geralmente comemorado no dia 15 de agosto, e ainda hoje um dos principais feriados daquele país) ressignificado no finados católico. Assim o que pude ver no dia 02 de novembro dentro do Cemitério Santana foi uma eminente ação social de caráter religioso, que contou com a presença do padre da cidade (Padre José) em uma cerimônia que reuniu aproximadamente 100 pessoas, movidas pela fé e pela preocupação com os que já não se vê, corroborando assim a afirmação de Hanna Arendt em Entre o Passado e o Futuro, de que o passado é tão potente que: (...) “ao invés de puxar para trás, empurra para frente, e, ao contrário do que seria de esperar, é o futuro que nos impele de volta ao passado” (1972, pg. 37). 8 Foto 02-Velas queimadas no cruzeiro Arquivo pessoal: Eurimar Nogueira Garcia Concluindo, o fogo notado no cruzeiro acima, mantido graças às velas depositadas pela comunidade de memória, expressa o que se disse no início, a lembrança dos mortos quase sempre estiveram envolvidas e entrelaçadas com elementos religiosos, no caso do Cemitério Santana elementos católicos, fazendo com que o passado seja um fogo renovado a cada ano, onde se procura queimar o perigo do esquecimento oferecido pelo tempo e valorizar as tecnologias de lembrança dispostas no espaço do cemitério. Assim a fumaça do cruzeiro metaforiza a confusão de passados e espelha a religiosidade do presente, que como instância do sacro tem por hábito evitar o inquérito, como no olhar estranho que este pesquisador notava no momento em que registrava algumas sepulturas. Referências Bibliográficas Arendt, Hanna. Entre o passado e o futuro. 2 ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. ÁRIES, Philippe. História da Morte no Ocidente. Ed. Ediouro. SP. 2004 9 Burke, Peter+ ,istória e teoria social. Tradução Klauss Brandini Paulo: Editora Unesp, 2002. Gerhardt. São Burke, Peter. Variedades de história cultural. Tradução: Alda Porto. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. Durkheim, Émile. As formas da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. Tradução: Paulo Neves. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Focault, Michel; Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado. 23ª ed. Rio de Janeiro: Editora graal, 1979. Halbwachs, Maurice. A memória Coletiva. Tradução: Beatriz Sidou. 1ª ed. São Paulo: Centauro, 2006. Howard Williams. Death and Memory in Early Medieval Britain. Cambridge: Cambridge, 2006. Le Goff, Jacques; História e Memória; Tradução: Bernardo Leitão e Irene Ferreira. 2ª ed. São Paulo: Editora da Unicamp, 1992. Pesavento, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2005. Ross-Kübler, Elizabeth. Sobre a Morte e o Morrer. Tradução: Paulo Menezes; 8ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998. 10 1 Para Sandra Jataí Pesavento em História e História Cultural, a anamnese “é a memória voluntária, na qual existe um empenho de recuperar, pelo espírito alguma coisa que tenha ocorrido no passado. O final desse processo de rememoração seria dado pelo reconhecimento, por aquele que rememora, da certeza do acontecido: foi ele, foi lá, foi então, foi assim. O reconhecimento se opera por um ato de confiança, que confere veracidade a rememoração. (2005, p. 95) 2 O termo 'technologies of remembrance' ( tecnologias de recordação) foi utilizado por Howard Williams (2006) em sua obra Death and Memory in Early Medieval Britain para se referir aos monumentos funerários dos cemitérios ingleses da alta idade média. 3 Notícia emitida pelo site: http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2008/01/23/ult1808u110493. Consulta feita no dia 01 de janeiro de 2008. 4 Família de italianos que migraram para Inhumas na década de 1920, de acordo com aquivos do cartório municipal de Inhumas. Fortalecendo os laços cristãos: epitáfios no Cemitério Municipal da Lapa - PR Fábio Augusto Steyer Professor de Literatura na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Doutor em Letras (UFRGS) e Mestre em História (PUCRS). RESUMO Este trabalho tem como objetivo analisar os epitáfios presentes no cemitério municipal da Lapa, cidade histórica localizada nas proximidades de Curitiba, no Paraná, defendendo a tese de que, contrariando a tendência geral das manifestações antropológicas da morte na contemporaneidade, suas inscrições tumulares representam um fortalecimento do ideário cristão, especialmente a idéia de reencontro na outra vida. Palavras-chave: Cemitérios – Epitáfios - Paraná Nas últimas décadas, como bem demonstram autores que estudaram o fenômeno antropológico da morte, como Edgar Morin e Jean-Pierre Bayard, por exemplo, a tendência geral das relações do homem com a morte é de um afrouxamento dos valores cristãos tradicionais e de uma supervalorização da individualidade/biografia do morto. Nas pesquisas que realizamos desde 1995, especialmente no Rio Grande do Sul e agora também no Paraná, isso é perceptível em praticamente todas as regiões estudadas, principalmente quando comparamos os túmulos mais antigos com os mais recentes. Desta forma, os símbolos cristãos aos poucos vão perdendo seu significado original, esvaziando-se de sentido e se tornando meros adornos nas sepulturas, sem que as famílias compreendam seu valor simbólico. Nas inscrições tumulares, as referências à Bíblia, aos santos e aos valores cristãos vão sendo substituídas por aspectos da biografia do morto, de sua vida mundana, digamos assim, e até mesmo por citações literárias. Os mausoléuscapela, com altares e imagens de santos, com o passar dos tempos vão sendo substituídos pelos mausoléus-casa, que lembram as pirâmides do Egito, e que às vezes mais parecem casas do que mausoléus, com jardins, cortinas, janelas e até mesmo reproduções do que seria o “quarto” do morto, com móveis e objetos pessoais que fazem referência à sua biografia. No cemitério municipal da Lapa (e escrevo “da” Lapa, e não “de” Lapa, pois é assim que seus habitantes carinhosamente se referem a ela), embora estas referências à biografia e à individualidade do morto apareçam, chama a atenção a significativa e representativa quantidade de representações simbólicas e de epitáfios recentes em que há um fortalecimento das idéias cristãs, especialmente as noções de reencontro e eternidade, contrariando a tendência geral de esvaziamento destes valores. Talvez isso possa ser explicado pelo fato de Lapa ser uma cidade histórica, bastante tradicional, uma das mais antigas do Paraná, fundada em 1769 pelos tropeiros que saíam de Viamão, no Rio Grande do Sul, com destino a Sorocaba, no interior paulista. Mantém-se como uma cidade de tamanho médio, com cerca de 45 mil habitantes, com um centro histórico muito bem preservado, e que sabe valorizar como nunca sua memória e sua história. Foi inclusive palco de um importante episódio da Revolução Federalista (1893 – 1895), o que a liga diretamente com a cultura e a história do Rio Grande do Sul. A tradição, portanto, parece ser um aspecto muito forte no município, o que também aparece em grande parte dos epitáfios pesquisados. Num túmulo bastante recente, de dezembro de 2007, as idéias de reencontro e vida eterna são explicitamente postas nos epitáfios: “Que a luz divina ilumine sua nova vida”; “A família fica na certeza do reencontro”. O mesmo acontece nesta inscrição de 1980: “A saudade que punge, hoje, fomenta o sublime reencontro de logo mais...” Em outra lápide, de 2003, os familiares também reafirmam a crença na eternidade do casal morto: “Na vida terrena plantaram honestidade, fraternidade, solidariedade e amor. Na eternidade colhem as preces saudosas de todas as pessoas que com eles conviveram”. O mesmo acontece com o epitáfio a seguir, de 2004, que fala na morte como um retorno à “casa do Pai”: “Fagulhas brilhantes de luz e amor formam a escada em rumo ao Pai. A volta à casa se faz necessária para a integração no verdadeiro amor que nada mais é que a formação de uma grande constelação de brilhantes fagulhas de amor e de luz. Cada fagulha de amor e luz é a vitória de todos nós que cremos, amamos, temos paz e certeza na subida atenta para voltar à casa do Pai.” Uma curiosidade sobre este epitáfio é que, de acordo com a lápide, ele teria sido escrito pela própria falecida, três meses antes de sua morte. Em outro túmulo, com lápides de 1982 e 1964, o post mortem aparece como a “verdadeira vida”, e a existência terrena como apenas uma “visita” feita ao nosso mundo pelo ente querido, no caso um bebê que faleceu com cinco meses de idade: “Neste mundo procuraste o caminho e a verdade no Evangelho. Que tenhas encontrado na eternidade a verdadeira vida. O Cristo.” (1982) “Agradecemos sua visita. Nos dias que conosco permaneceu tratamos com amor e carinho e, depois, você partiu para o céu. Aprendemos muito com você. Do sofrimento, do amor e da luz. Deixou-nos muita saudade na hora que partiu para Jesus.“ (1964) Mais um exemplo de epitáfio relativamente recente em que as crenças cristãs são fortalecidas. Em lápide de 1984, junto à valorização das qualidades do morto está clara a idéia de eternidade: “Nascendo: fostes a fonte que nos deu a vida. Vivendo: fostes a razão por termos vencido. Morrendo: és a esperança que não será esquecida. Deixaste: o exemplo, a força e a luz que nos levará ao Pai eterno junto ao qual estás.” Outro exemplo é um túmulo de duas crianças, esse já mais antigo, o que se pode perceber pelo seu feitio, embora sem data. O epitáfio é acompanhado de uma tocha virada para baixo (em relevo), símbolo da morte: “Aqui repousam (NOMES DAS CRIANÇAS), anjinhos que foram gozar no seio de Deus a felicidade que não encontraram na Terra. Jesus, que tanto amou as criancinhas, tenha-os a seu lado rogando-lhe por seus inconsoláveis pais”. Mais duas inscrições que apresentam a idéia de “reino dos céus” e “lei de Deus”: “Nascer, viver, morrer e renascer de novo! Tal é a lei. Que Deus ilumine seu caminho.” (1957) “A fatalidade levou-o de nosso convívio. Mas tua lembrança viverá sempre em nossos corações e as nossas preces subirão a Deus e transformarse-ão em luz para tua alma no reino do céu.” (1965) Outro tipo de texto que aparece no cemitério da Lapa é o que poderíamos chamar de “epitáfio de homenagem”, em que a comunidade exalta a biografia e os feitos do morto para a sociedade local, não deixando de apresentar as idéias básicas do cristianismo sobre a vida depois da morte. É o caso do túmulo do Dr. Manoel Pedro dos Santos Lima: “Aqui repousa na paz do derradeiro sono o pranteado e humanitário médico Dr. Manoel Pedro dos Santos Lima. (...) Sábio e devotado a sua profissão, aqui a exerceu como verdadeiro apóstolo da caridade. Rende-lhe o povo lapeano este tributo de eterna gratidão. Oremos pela sua alma.” “Ao sábio e humanitário médico. Gratidão do povo lapeano.” “Tão grande seja sua glória no Céu quanto foram os benefícios que na Terra prestou.” Ao benemérito clínico. Saudade eterna. Respeito e homenagem.” Neste mesmo estilo também temos o túmulo do Monsenhor Henrique Osvaldo Falarz, uma espécie de santo popular da cidade, o que pode ser percebido pela grande quantidade de placas de agradecimento a graças alcançadas que podem ser encontradas no local. Além de duas placas de homenagem ao religioso (uma dos professores do Colégio Estadual General Carneiro e outra da Irmandade de São Benedito da Lapa), temos outra com seu epitáfio: “Na sua longa caminhada sacerdotal, deu exemplo de pastor, amando suas ovelhas. Disse antes de morrer: ‘O pastor deve ficar no meio de suas ovelhas’. Dai-nos a graça de ser boas ovelhas. Por nosso Senhor Jesus Cristo, que vive e reina convosco na unidade do Espírito Santo. Amém.” De se destacar ainda no Cemitério Municipal da Lapa o túmulo de um médico, em que foi colocada a placa de seu consultório, numa clara alusão e supervalorização de sua biografia e individualidade; e a sepultura de uma jovem de 27 anos em que encontramos um epitáfio que poderíamos classificar como “literário”, cujo autor infelizmente não foi possível identificar. Trata-se de um belo e triste soneto sobre a morte, que transcrevemos a seguir: “Não foi tua vida mais que um sonho vago Tecido de esperança e de ventura Não pôde o mundo dar-te um doce afago Nem sorrir-te a existência com doçura. E assim partiste no florir dos anos Rica de bens que não outorga a vida Alheia ao mundo com seus desenganos Em demanda da terra prometida. De vaidades despidas de misérias Que malograda a vida se reveste Feliz repousas no porvir celeste. Tua alma voou para as regiões etéreas Teu corpo ao triste badalar de um sino Chocou-se inanimado ao cru destino.”. Estas foram as principais inscrições tumulares encontradas no Cemitério Municipal da Lapa. Como foi dito anteriormente, um cemitério de uma cidade em que a tradição parece ser forte o suficiente para resistir ao afrouxamento dos valores cristãos, tão perceptível nas manifestações antropológicas das relações homem-morte encontradas em outros municípios, inclusive de mesmo porte. As referências ao ideário cristão aparecem fortalecidas neste “campo santo” em que parece não haver muito espaço para representações simbólicas mais típicas da sociedade contemporânea, as quais muitos relacionariam à própria idéia de pós-modernidade... Uma interpretação antropológica das relações homem-morte nos cemitérios de Sananduva - RS Fábio Augusto Steyer Professor de Literatura na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Doutor em Letras (UFRGS) e Mestre em História (PUCRS). Resumo Este trabalho tem como objetivo apresentar uma síntese das manifestações antropológicas das relações homem-morte encontradas nos cemitérios de Sananduva, cidade localizada no norte do Rio Grande do Sul, a partir de pesquisa realizada em mais de vinte localidades da sede e interior do município. As atitudes humanas diante da morte revelam muitas características da cultura local e das crenças religiosas da comunidade, além de suas formas particulares para cultuar os entes queridos já falecidos.. As atitudes humanas diante da morte têm no cemitério um dos locais mais propícios para uma série de manifestações e representações simbólicas, que vão desde as fotografias, os epitáfios e a arquitetura tumular, entre outros, até os objetos colocados nos túmulos, muitos deles um tanto inusitados, como chocolates, brinquedos e até mesmo bilhetes para uma possível “comunicação” com os parentes falecidos. Este variado rol de manifestações nos permite compreender um pouco melhor as relações do homem com a morte, pensadas a partir da Antropologia e outras áreas afins. Nosso grupo de pesquisa visitou o município de Sananduva, no norte do Rio Grande do Sul, e pesquisou vinte (20) cemitérios, onde foi possível encontrar uma série de manifestações relevantes para o estudo que temos desenvolvido em todo o Estado há mais de dez anos. Neste relato de pesquisa, não nos cabe desenvolver todas as questões teóricas que norteiam a pesquisa, pois elas já foram suficientemente abordadas nos encontros Raízes dos anos anteriores (1). O que interessa é abordar as principais manifestações antropológicas das relações homem-morte presentes nos cemitérios de Sananduva, esta simpática cidade onde fomos muitíssimo bem recebidos e vivemos alguns momentos inesquecíveis, como a homenagem ao padre da paróquia local e a apresentação do coral italiano. O primeiro cemitério visitado foi o Municipal, sem dúvida o que apresentou maior riqueza de manifestações. Neste cemitério, em sua grande maioria organizado através de mausoléus construídos praticamente com o mesmo padrão arquitetônico, característica bastante singular de regiões de imigração italiana em nosso Estado, há uma série de epitáfios que reafirmam a crença nos valores do Cristianismo e que servem de consolo às famílias durante as visitas aos túmulos dos falecidos. Exemplo disso é o epitáfio que diz: “Na vida nossa alegria, na morte nossa certeza de fé” (2). O mesmo ocorre com o epitáfio que segue, com o acréscimo do culto à memória do morto, que permanece nos corações dos familiares: “Você partiu para Deus, mas sua lembrança continuará viva no coração da mamãe e do papai que muito lhe amaram”. Outro tipo de epitáfio que aparece no cemitério municipal é o “epitáfio de homenagem”, que visa destacar as qualidades do morto enquanto alguém de destaque na sociedade sananduvense. Este é o caso dos epitáfios a seguir, dois deles escritos para vereadores da cidade e um para o pároco local: 1) “Uma homenagem do município de Sananduva, pelo seu exemplo de mãe, pela sua dedicação, seus ensinamentos e sua humildade”; 2) “Homenagem – Poder Legislativo de Sananduva – [nome do falecido], receba de Deus a recompensa pelo bem feito à comunidade. Descanse na paz do Senhor”. Segundo nos foi informado, este vereador teve morte trágica, através de enforcamento. Além de vereador, teria sido o primeiro a gravar um LP no município; 3) “Homenagem do Poder Legislativo de Sananduva. Vereador [nome do falecido], receba de Deus a recompensa pelo bem feito à comunidade. Descanse na paz do Senhor”; 4) “Pároco desta cidade de 1933 a 1939 e 1953 a 1967. A ele se deve a construção da Igreja Matriz. Sentidas saudades eternas. Gratidão do povo sananduvense”. No mesmo cemitério, há um outro tipo de epitáfio, em que a homenagem ao morto é feita como se um membro da família estivesse falando com o morto, em 1a pessoa: “Querida mãe! Sabe, mãe. Hoje sonhei com a senhora! Te vi do mesmo jeitinho, de quando estavas com a gente Sentada ao lado do fogão, agulha e linha na mão Sorrindo de satisfação. Você estava tão feliz, com aquele teu jeitinho lindo Com o mesmo olhar suave e meigo, a sonhar ficava. Aquele mesmo blusão de lã colorido que usava Sentada a fazer seu tricô, que linda mamãe, você estava. (...) É, mãe, confesso que chorei, chorei de saudade Mas ao mesmo tempo, também de felicidade. Porque tua lembrança é uma luz, que me ilumina e me conduz. Sei que estás junto a Jesus, de Deus e Nossa Senhora. Amo muito você!” 06/07/2003. Outro tipo de epitáfio bastante parecido é aquele em que a família coloca palavras na boca do morto, como se ele estivesse falando em primeira pessoa, tranqüilizando os familiares e dizendo que está bem, vivendo na eternidade cristã junto de Deus. Também merece destaque um epitáfio padrão em forma de oração colocado num túmulo de criança, onde também temos a presença de um ursinho de pelúcia: “Deus abençoe você sempre (título) Deus lhe abençoe de manhã, Já no primeiro raio de sol, E lhe abençoe ao meio-dia, Até a hora do pôr-do-sol. Deus lhe abençoe à noitinha, E a cada hora que você viver, Com a paz perfeita No coração e mente Que só Seu amor pode trazer”. É com bastante freqüência que encontramos nos cemitérios gaúchos referências explícitas a mortes trágicas. No cemitério municipal há um túmulo em que o nome do morto é acompanhado da inscrição: “Assassinado”. Mas o caso mais curioso é a referência a um incêndio que vitimou uma família inteira na cidade de Tapera, sendo que todos os corpos foram transladados para Sananduva: Placa – “Aqui restos mortais de [nomes dos falecidos] Vítimas de incêndio ocorrido em Tapera-RS em 15/04/1931. Por morte natural: [nome dos falecidos]. Transladados de Tapera para Sananduva em março de 2001”. O culto às singularidades do morto também aparece no cemitério municipal. Há dois casos em que a ligação com o regionalismo gaúcho é explícita. Além de uma foto em que o falecido aparece tocando um acordeon, temos um epitáfio que diz o seguinte: “Aqui descansa um gaúcho que honrou a tradição”. Outra temática presente em alguns epitáfios é a idéia de que temendo a Deus o fiel será recompensado na eternidade, o que está de acordo com alguns costumes e interpretações mais tradicionais do Cristianismo: “O temor do Senhor é honra e glória, coroa de júbilo que dá vida longa. Quem teme o Senhor sempre acaba bem, até no dia de sua morte será abençoado”. Impossível deixar de destacar a estratificação social presente no cemitério municipal. Um dos aspectos mais interessantes nesse sentido é que as famílias que doaram os terrenos para o cemitério ganharam uma praça exclusiva, fechada e separada dos demais jazigos por cercas. A estratificação social é bastante comum nos cemitérios gaúchos, não sendo uma exclusividade de Sananduva. No Cemitério Três Pinheiros, ocupado quase que exclusivamente por famílias de origem portuguesa (e algumas poucas de origem italiana), podemos destacar alguns epitáfios. Um deles reafirma a crença cristã na idéia de reencontro após a vida terrena: “Não choreis por mim, orais apenas que um dia nos encontraremos no paraíso”. Outro é um típico “epitáfio de despedida”, em que as pessoas próximas dirigem a palavra ao morto (funcionário de uma escola), “consolando-o”, o que, na verdade, nos mecanismos de culto e de memória, é uma forma de consolar a eles próprios pela perda do ente querido: “Tio [nome do falecido]! Neste dia tão especial, em que todos lembramos daquelas pessoas que sempre estão ao nosso lado, nós aqui tio, também lembramos das horas em que largavas tudo, para ser, aqui, o nosso Pai, nos dando apoio e testemunho. Sentimos a sua falta, mas temos a certeza de que estás junto de Cristo, olhando por nós. Aqui está uma prova de nossa gratidão e desejamos um Feliz Dia dos Pais. Dos tios e jovens do (não identificado) Colégio (...)”. No Cemitério Nossa Senhora do Carmo, a marca católica é bastante forte, com intensa presença de imagens de Nossa Senhora do Carmo e do Sagrado Coração de Jesus nos túmulos, predominando famílias italianas, com algumas de origem alemã. Na parte antropológica da pesquisa, destaque para o epitáfio presente no mausoléu de um ex-prefeito do município, que reafirma a fé cristã e também pode ser classificado como “epitáfio de despedida”: “Hoje, de algum lugar, longe destas terras há um doce olhar só para você. Um olhar especial, de alguém especial de distantes origens. Um olhar, de um justo coração que pulsa só a vida, que sorri, porque ama plenamente sem julgamentos, preconceitos nem prisões. Hoje, como ontem, longe desse céu, há um encantado olhar só para você, a magia da luz, a simplicidade do perdão, a força para comungar uma vida, a esperança de dias mais radiantes de paz. Hoje, de algum lugar dentro de você, alguém que já o amou muito e ainda o ama, diz para você, que valeu a pena ter estado nestas terras, sob estes céus falando de união, paz, amor e perdão, poder sentir a força que faz você sorrir e continuar o caminho, que um dia aquele doce olhar iniciou para você. Tudo isso, só para você saber que a vida continua e a morte é uma realidade, uma passagem...uma viagem...” Nos demais cemitérios pesquisados, embora o grupo tenha encontrado uma série de informações relevantes para diversas vertentes da pesquisa como um todo, com relação às questões antropológicas, ou seja, às atitudes humanas diante da morte, não foram encontradas manifestações de grande importância. Mesmo assim, cabe aqui destacar alguns dados, especialmente com relação à presença das diferentes etnias nos cemitérios. No Cemitério São José predominam os sobrenomes italianos, embora também tenham sido encontrados alguns poloneses e portugueses. No Cemitério São Domingos, de maioria italiana, não há epitáfios relevantes, mas uma foto de formatura destaca um aspecto singular da vida do morto, o que reforça o culto aos aspectos marcantes de sua biografia. No Cemitério Boa Vista, onde também há uma predominância de sobrenomes de origem italiana, dois aspectos chamam atenção: a grande quantidade de imagens do Sagrado Coração de Maria e de Jesus, o que revela a crença católica da comunidade; e o descaso com relação a alguns túmulos e lápides mais antigos, que estão abandonados nos fundos do cemitério. Em Vila Paraíso, todos os túmulos têm sobrenomes italianos, exceto um deles, com sobrenome português. Em Mão Curta encontramos um dos cemitérios mais pobres desta pesquisa, com muitos túmulos sem dados e indicações. Mesmo assim, há algumas interessantes inscrições em italiano, o que revela a predominância étnica dos moradores do local. O mesmo acontece no Cemitério de Tigre, onde encontramos várias inscrições em italiano: “Qui ripoza la salma di [nome do falecido] – Nato in Itália nel 1858 e morto il 4 setenbre Del 1923”. Em Quati Alto estão enterradas pessoas com sobrenomes de origem italiana e alguns alemães, o mesmo ocorrendo na Linha Gaúcho. Em São Geraldo, há italianos, portugueses e poloneses. Em São João da Forquilha, são italianos e portugueses. No Cemitério Santa Lúcia, predominam os italianos. No de São Pedro há inscrições em italiano indicando datas de nascimento e falecimento, em epitáfios bem simples. O mesmo acontece em Lajeado Bonito, onde também encontramos diversas representações do Sagrado Coração de Jesus e de Maria. Eis algumas inscrições: “A qui ripoza alieterni [nome do falecido] nato Del 1848 morto Del 1924”. “Aquí está o finado [nome do falecido] nacido a 1855 e falec. A 1921”. “Qui ripoza lê osse di [nome do falecido] morto nel 1913 com 18 ani de eta”. No Cemitério Bom Conselho, além da grande quantidade de representações do Sagrado Coração de Jesus e Maria (muito comuns em Sananduva, o que revela a intensa devoção da comunidade) há inscrições em língua italiana. No Cemitério São Jorge, sobrenomes italianos e portugueses dividem os túmulos, com a presença de algumas inscrições interessantes, como a que segue: “Aqui as ocas de Manoel Gonçalves de Asevedo voou para o seo no dia 2 de setembro de 1918 com 62 anos de idade”. Numa placa de metal, há uma ilustração com uma caveira, algo comum no final do século XIX e início do século XX, mas bastante tétrico para os tempos atuais. Em Guabiroba Alta há uma inscrição curiosa, que nunca havíamos encontrado antes. Nos dados do túmulo aparece não apenas a data de falecimento, mas o horário: “Nascida 1937 falecida aos 6 de 03 de 1949 às 10:30h.” No Cemitério de São Caetano, o destaque mais uma vez são as representações do Sagrado Coração de Jesus e de Maria em túmulos predominantemente de sobrenomes italianos. Em síntese, estas foram as manifestações encontradas nos cemitérios pesquisados. Com relação à parte antropológica da pesquisa, cabe destacar mais uma vez o Cemitério Municipal, que sem dúvida alguma foi o mais rico entre todos os que foram visitados. (1) Estas questões teóricas também podem ser conhecidas a partir da leitura de nosso livro “Cemitérios do Rio Grande do Sul: Arte, Sociedade, Ideologia” (EDIPUCRS, 2000), em que o grupo de pesquisa apresenta os estudos desenvolvidos até o ano de 2000. (2) Cabe lembrar que neste artigo omitiremos os nomes das famílias para evitar maiores constrangimentos. A morte e suas implicações para os vivos na Belém do século XIX Francisco R. Silva Neto (UEPA) Resumo O artigo propõe compreender as práticas e implicações sócio-políticas dos enterramentos que passaram a ser efetivados no cemitério da Soledade a partir de sua inauguração no ano de 1850. Inauguração esta que, aconteceu sob vários protestos contra a nova prática dos enterramentos na cidade de Belém, Estado do Pará. O estudo teve por metodologia a análise de documentos da época, tabelas e anotações dos livros de registro de entrada no referido cemitério, além das fontes primárias, a leitura de trabalhos desenvolvidos por autores que tratam da mesma temática foram de fundamental importância. Em nossas análises ficou evidente que o contexto social foi bastante modificado sobre a forma de encaminhar os enterramentos, principalmente pelo fato das pessoas apresentarem diferenciações em relação ao acesso do “campo santo”, nem todos tiveram acesso a derradeira morada. Palavras-chave: Morte. Ritos funerários. Sociedade. INTRODUÇÃO “Por fim a morte com sua mão gelada Com o tempo acariciará teus seios”. (Hofmannswaldau, séc. XVII) As transformações no Grão Pará do século XIX não se limitaram aos aspectos econômicos e sociais, mas também a uma mudança na forma de sentir e de pensar da sociedade paraense, as mentalidades. Dentro dessa estrutura temos a mudança no que se refere o comportamento diante da morte, Cemitério da Soledade exemplo dessas transformações. Com a mudança de local dos sepultamentos das igrejas e áreas sacralizadas para os cemitérios, houveram resistências por parte da burguesia local, onde não aceitavam essa transferência, por conta disso surgiu a Resolução de nº 181 de 19 de Dezembro de 1850, uma das disposições afirmava a obrigatoriedade de enterrar todas as pessoas falecidas na cidade. Na capital, onde as vítimas deveriam ser enterradas no cemitério de N. Sra. da Soledade, provavelmente, houve sepultamentos fora do campo santo, tanto pela falta de braços para cumprir com o “dever cristão”, como pelos preços das esmolas para o enterramento. Arthur Vianna (1975, p. 159) informa 2 que: “[...] ao provedor deveu a população paraense o inestimável concurso da regularidade do serviço funerário, durante a epidemia”. Os escravos da Santa Casa conduziam os mortos em tumbas até o cemitério e, lá, outros escravos encarregavam-se da abertura das covas para o sepultamento. Quando as vítimas fatais somaram em torno de 40 a 50 óbitos por dia, o provedor passou a utilizar carro fúnebre de propriedade particular, pelo qual a Santa Casa pagava 10$000 réis de aluguel por dia, o que encarecia ainda mais o preço de aquisição da “derradeira morada”. A reflexão sobre o evento epidêmico no Grão-Pará permitiu estabelecer um diálogo com a literatura historiográfica sobre a cólera, no período de dez meses entre 1855 e 1856, na qual a discussão sobre os impactos sociais geraram posições diferenciadas acerca da enfermidade. Os historiadores divergem, sobretudo, ao avaliarem os índices de mortalidade produzidos pela tuberculose e pela cólera (BELTRÃO, 2002). O número de enterros no Soledade no período da epidemia da cólera contabilizou 1.049 vítimas sendo que o maior período de registros de vítimas fatais ocorreu em no mês de junho de 1855 com total de 427 mortes, em julho o índice caiu para quase a metade em se manteve em 208 óbitos registrados e que deram entrada no Soledade. O índice, a partir de então, manteve-se em decréscimo até registrar, em fevereiro de 1856, apenas uma entrada por causa mortis relacionada à cólera, segundo dados coletados por Beltrão (2000, p. 838; 2004, p. 260) Apesar de a ausência de dados demográficos e históricos para a tuberculose no Grão-Pará impedir a comparação entre as duas enfermidades, constatou-se que as concepções sobre morrer de cólera ou morrer tuberculoso são diversas. A primeira produz horror, e a segunda consome as vítimas, mas as visões sobre o morrer tuberculoso chegam a ser românticas. A forma de representar a enfermidade produz um impacto diferenciado. O medo amplia o impacto social da cólera, apesar de o número de mortos não ser tão elevado. E, com isso, mudou a mentalidade da população local, visto que os enterramentos passaram a ter um local especifico. 2 3 O COTIDIANO DA MORTE EM BELÉM NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX Destacamos a morte e o sexo como os principais interditos da civilização Ocidental. O que temos de mais biológico é ao mesmo tempo o espaço que nos causa mais medo e excitação. Se com o sexo a censura tem se diluído ao longo das épocas, com a morte numa sociedade cada vez mais tecnológica e concentrada no trabalho, percebe-se um esvaziamento e uma dessacralização da natureza humana onde o homem procura minimizar cada vez mais suas fraquezas, dessa forma, o ato de morrer passa a ser vergonhoso, uma coisa inominável. Como nos conta Maranhão (1998): Atualmente, existe a preocupação de iniciar as crianças desde muito cedo nos ‘mistérios da vida’: mecanismo do sexo, concepção, nascimento e, não tardará muito, também nos métodos de contracepção. Porém, se oculta sistematicamente das crianças a morte e os mortos, guardando silêncio diante de suas interrogações... a morte, não o sexo, é agora o tabu que violamos – a ‘pornografia da morte’ causa-nos excitação. O grande avanço tecnológico da medicina levou ainda ao deslocamento do lugar da morte. Se antes uma boa morte era em seu domicílio próximo aos familiares, hoje se busca o mais rápido possível os hospitais para o prolongamento máximo dos últimos momentos em vida. Segundo Castra, (2003), passou-se a delegar aos médicos e a equipe técnica a tarefa de zelar pela vida e pela morte a partir dos cuidados paliativos, médicos e sua equipe intermediam a fronteira entre vida e morte, dessa forma, observa-se um novo entendimento ideológico do morrer bem1. Cria-se um corpo de especialistas, assim como políticas públicas, para oficializar a ação pública na qual a ação do Estado passa a ser legítima. De acordo com Elias (2001) ao criticar a análise de Ariès deixa claro que este autor não explicou como ocorreram as diversas mudanças de comportamento e de atitudes que forças motivaram tais mudanças. Para Elias, todas essas transformações foram possíveis graças ao “processo civilizador”, ao desenvolvimento do capitalismo, das ciências médicas. Para Norbert Elias, no período compreendido até meados do século XIX, as pessoas apresentavam menos possibilidades de aliviar o tormento da morte: a morte, 1 idéologie collective du bien mourir. [trad. Minha] Ver : Castra (2003, p. 331). 3 4 portanto, fazia-se mais presente, a expectativa de vida era baixa, a peste, a fome, as guerras, ceifavam muitas almas. Neste sentido, Elias (2001) considera esta, a verdadeira “morte selvagem” o que posteriormente serviria de crítica ao trabalho de Ariès. Este autor caracterizava a morte de antigamente como “domesticalizada” e a da sociedade contemporânea, como “morte selvagem”, Elias, no entanto, considera o oposto. Dessa forma, segundo Elias (2001, p. 103) “o problema da relação das pessoas com os moribundos assume uma forma especial nas sociedades mais desenvolvidas, porque nelas o processo de morrer está isolado da vida social normal numa medida maior que antigamente”. O velório antes realizado na casa da família, onde o corpo era exposto para todos que quisessem ver agora é conduzido por um discreto carro funerário para um local que cada vez mais distante e se diferencia dos antigos velórios. Daí, lembrarmos do antigo costume colonial de enterrar os ricos nas igrejas da cidade de Belém, acabou gradativamente quando o cemitério da Soledade foi inaugurado, por Jerônimo Coelho, em 1850, mesmo período da urbanização do bairro do Umarizal. O cemitério da Soledade foi palco do enterro simbólico que coroaram assim as manifestações da efetividade pública para com o compositor Carlos Gomes em 20 de setembro de 1896. A figura triunfante de Carlos Gomes representa tanto o mito como a imaginação social da época. As exéquias de Carlos Gomes, realizadas solenemente a 16 de setembro de 1896, representa de forma veemente as representações do imaginário republicano em Belém no final dos Oitocentos. A pompa fúnebre do compositor foram fortemente contigenciadas pelo simbolismo físico do positivismo e reuniram nas ruas de Belém mais de dez mil pessoas (COELHO, 1995, p. 140). Quanto à história local podemos tomar como referência aos estudos de Schimdt & Cainelli (2004, p. 113), analisam a importância da compreensão da história local com objetivo de entender outras possibilidades e sentidos inclusive de micro-histórias enquanto pertencentes a outras histórias e que “ao mesmo tempo reconheça as particularidades”. O Cemitério da Soledade se enquadra nesse sentido, no momento em que, guarda em seu seio, restos mortais de pessoas ilustres da história local e 4 5 regional. É o caso dos grandes vultos que fizeram parte da História local, como exemplo, o cabano Francisco Pedro Vinagre, que foi presidente do Pará durante a Revolução Cabana, e que faleceu em 22 de Novembro de 1872; General Hilário Maximiano Gurjão, herói da guerra do Paraguai, que faleceu em 17 de Janeiro de 1869; como as santas populares Raimundinha Picanço (Raimunda Chermont Picanço), preta Domingas e o menino José, entre outras personalidades que marcaram nossa história. O SOLEDADE NO QUADRO DE TRANSFORMAÇÕES NO GRÃO-PARÁ Na segunda metade do século XIX a capital do Grão-Pará foi palco de grandes transformações urbanísticas, sociais e mentais. Mudanças essas que foram alimentadas pelo boom da economia gomífera da Amazônia. No período de 1860 a 1910 ocorre na Amazônia Brasileira o apogeu da exploração da borracha natural que coincide com a belle époque, caracterizado pelo crescimento econômico, avanço das técnicas no território e também pelo aumento dos males sociais nas cidades. A expansão da exploração da borracha para o interior da Amazônia possibilitou a criação de vilas e cidades em especial na área que corresponde ao Estado do Amazonas, porém foi um fator limitante do seu desenvolvimento. Nesse período, Belém se tornou uma das mais desenvolvidas cidades da América Latina. A elite paraense passou a moldar seu comportamento aos padrões europeus, e em particular ao francês. É dentro deste contexto que temos a construção do Cemitério da Soledade. Segundo Geraldo Mártires Coelho (1995, p. 154): O cemitério da Soledade aberto em 1850, quando Belém praticamente saíra do quadro dramático da Cabanagem e a borracha iniciava a trajetória da sua afirmação econômica, possuía certas características dos cemitérios franceses do começo do Romantismo. Ajardinado e arborizado, reunia (e ainda reúne), nas áreas de sepultamentos destinados aos mortos das famílias de posses, exemplares bens expressivos da arquitetura e da escultura funerárias do século XIX, agrupando um significativo conjunto de símbolos, metaforizando, por oposição, o sentido na vida e a idéia da morte. Com seu marcante pórtico erguido em pedra de cantaria, vinda de Portugal e o seu gradeamento de ferro batido, oriundo da Inglaterra. Destacava-se na paisagem urbana por sua imponência e pelo seu valor para historia social do Pará. Alguns governadores do período entraram para a 5 6 história da cidade em função do trabalho realizado. Em 1700, por exemplo, Antonio Carvalho expandiu a cidade para o lado da Campina, fazendo transpor o Piry, um igarapé que, saindo da baía do Guajará, inundava grande área da cidade. Um século depois, o Piry seria aterrado pelo Conde dos Arcos. Antes, porém, Antonio Landi, sob chancela de Mendonça Furtado, adornou Belém de palácios, igrejas e capelas ao [bom] gosto neoclássico da época O maranhense Antonio José de Lemos chegou a Belém como taifeiro da Marinha. Trabalhava na contabilidade, setor de compras. Gostava de ler e sabia escrever bem, qualidades que o levaram à redação do jornal A Província do Pará, pelas mãos do proprietário, Dr. Assis. Trabalhou na equipe de revisores, fez carreira dentro do jornal, conquistou a confiança e a amizade da direção (SARGES, 2002). Com a morte do Dr. Assis, Antonio Lemos, à época ocupando o cargo de redator-chefe, adquiriu o periódico por um valor simbólico e o transformou no terceiro jornal do Brasil, adquirindo modernos equipamentos de impressão na Inglaterra e instalando-o em imponente prédio, hoje abrigando o Instituto de Educação do Pará. Líder do antigo Partido Republicano no Pará, foi eleito para a intendência de Belém em 1897. A República acabara de se instalar. O ambiente político era de ruptura com qualquer resquício do regime anterior. Antonio Lemos se apropriou dos ideais da época, segundo os quais as cidades, urbes doentes que padeciam dos resquícios da Monarquia, clamavam por higiene e modernidade.( SARGES, 2002) No caso de Belém, de fato, isso se concretizou, graças à fase áurea da borracha que ofereceu condições técnicas e financeiras para tal e à vontade política de Antonio Lemos em aplicar os rendimentos auferidos da exportação no embelezamento da cidade. Ele foi buscar na França, centro irradiador da cultura mundial, os fundamentos para o seu plano de modernização. Paris acabara de passar por uma profunda reforma empreendida pelo urbanista Haussmann, que se cercara de um grupo de colaboradores de alta qualidade. O urbanismo de Haussmann caracterizou-se pela criação de uma vasta rede de grandes artérias que cortam indistintamente Paris, por bairros centrais e zonas periféricas. Paralelamente, adota-se uma política ativa em matéria de serviços públicos com sistema viário, 6 7 rede de esgoto, distribuição de água e gás, mercados cobertos, feiras, estações, hospitais, espaços verdes, entre outros elementos, relata o pesquisador, (SARGES, 2002) Com base em planta de Nina Ribeiro de 1886, o grupo desenvolveu um plano para Belém, organizando o espaço da cidade e definindo objetivos, que culminou com a planta de 1905, desenhada por José Sidrim. Essa planta projetou avenidas, ruas e bairros inteiros onde só havia florestas e áreas alagadas. Comparada à planta atual, no que concerne a 1ª Légua Patrimonial, o plano de Lemos continua inalterado. A cidade surge dividida em bairros comerciais, residenciais, industriais e de serviços. "Com apurado gosto, o intendente embelezou a cidade, tornandoa atraente. Desenvolveu-a a ponto de fazê-la o maior empório comercial do vale amazônico. Os calçamentos de madeira foram substituídos pelo granito. Foram construídos o mercado de ferro, o quartel dos bombeiros, o asilo de mendicidade e o necrotério público. Foi iniciada a rede de esgotos, os largos foram transformados em praças ajardinadas, ruas largas, com 30 e 40 metros, foram abertas no bairro do Marco e promoveu-se o melhoramento do perímetro urbano. O interventor Antônio Lemos conduziu Belém à modernidade, definida pela República, como nenhuma outra cidade brasileira até então havia experimentado. Só depois é que Pereira Passos faria a grande reforma no Rio de Janeiro. O depoimento insuspeito do escritor Euclides da Cunha dá a exata medida do cenário que encontrou na passagem por Belém em 1904: nunca esquecerei a surpresa que me causou aquela cidade. Nunca São Paulo e Rio de Janeiro terão as suas avenidas monumentais, largas de 40 metros e sombreadas de filas sucessivas de árvores enormes. Não se imagina no resto do Brasil o que é a cidade de Belém, com os seus edifícios desmesurados, as suas praças incomparáveis e com a sua gente de hábitos europeus, cavalheira e generosa. Foi a maior surpresa de toda a viagem. Também sob influência do urbanismo de Haussmann, o intendente Antonio Lemos se valeu de um Código de Postura que impunha à população normas para a construção de novos prédios. Além de legislar dentro da propriedade privada, o código era autoritário e excludente. Por causa dele, a 7 8 população de baixa renda foi afastada da área central para a periferia da cidade (SARGES, 2002) Até então, Belém agrupava freqüentemente as diversas categorias sociais no mesmo lugar. Após a aprovação do Código de Postura na Câmara Municipal, elas se encontravam separadas de maneira radical. "Assim como o de Haussmann, em Paris, o urbanismo de Lemos induz à formação de um espaço da burguesia numa enorme parte da cidade", ressalta Célio Lobato. O Código de Postura de Belém era bastante detalhista. A lei que proibiu a construção de barracos na Avenida Tito Franco, atual Almirante Barroso, por exemplo, exigia que as novas construções mantivessem espaço nunca inferior a 2 metros entre elas para a circulação do ar e que nenhum prédio poderia receber o vigamento a menos de um metro de altura sobre o nível do solo. As barracas que continuavam e destoavam com a nova paisagem urbana em ficar foram removidas pela Intendência. Na Avenida Nazaré, por exemplo, reservada aos ricos, as casas cobertas de telhas, que jogavam água na calçada, tiveram que construir platibandas na fachada para esconder o telhado. As janelas tiverem que se enquadradas segundo uma determinada dimensão para facilitar a ventilação e a insolação, de acordo com a saúde pública. Por toda a cidade, os moradores foram obrigados a construir fossas e proibidos de jogar nas ruas as águas fecais, um costume de então. Amparado no seu Código de Postura, Antonio José de Lemos governou por quase 14 anos, deixando sua marca indelével na história da cidade. Ao longo de sua curta existência no período de 1850 a 1880, o Cemitério da Soledade provocou admiração face sua suntuosidade, retratada em seus túmulos e mausoléus, sem contar com as inúmeras personalidades históricas ali enterradas. Em 1880, o Cemitério da Soledade fechava seus portões, sob a chancela do presidente da província José Coelho da Gama, com seus 444 túmulos e um total de 31.872 almas enterradas, sob alegação das autoridades de que o local já estava muito no centro da cidade e a análise química do solo demonstrava que ele seria inadequado para a continuidade de enterramentos no local. Considerou-se também para efetivar o cerramento dos portões do 8 9 Soledade, a expansão acelerada da região ao seu redor, no entanto, em 1874 outro cemitério havia sido inaugurado. No ano de 1874, surgiria um novo cemitério para Belém, localizado na atual Avenida José Bonifácio, no bairro do Guamá, em virtude de uma epidemia de varíola: o cemitério Santa Isabel. Então em 14 de agosto de 1880, encerram-se os sepultamentos no Soledade, assinada pelo Presidente Jose Coelho da Gama e Abreu. Neste período foram enterradas 31.872 pessoas. Referências Bibliográficas ALVES, Rubem. A morte como conselheira. 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Universidade da Amazônia [Monografia de Especialização], Belém, 2001. 10 A Dialética do Corpo na Representação da Morte Sertaneja Gleidson de Oliveira Moreira Mestre em História – Professor na UEG Resumo O objetivo desse texto é discutir os ritos de tempo e espaço na morte sertaneja. Importa saber as atitudes dos homens diante a morte, fenômeno que não se limita a questão meramente natural, mas menciona um construto sócio-cultural. Palavras-chave: morte sertaneja; rito de tempo; rito de espaço. A morte, o sobrenatural e a continuação da vida são banidos do cotidiano da sociedade moderna. A racionalidade e a lógica moderna não só desencontram o mundo, mas limitam ao que se pode ser percebido pelos cinco sentidos, mesmo quando pouco se saiba sobre esses sentidos. A reflexão ou pesquisa sobre a temática morte é vista com certa restrição, uma vez que ainda constitui um tabu social. Por isso o objetivo desse texto é discutir os ritos fúnebres como ritos de tempo e espaço na roça. Importa saber as atitudes dos homens diante a morte, fenômeno que não se limita à questão meramente natural, mas menciona um construto sócio-cultural. O desafio, portanto é pensar a ação conflituosa de forças entre a natureza e a cultura. As crenças que o homem vem desenvolvendo no decorrer do tempo, e que o acompanham em seus momentos de felicidade, tristeza e incerteza se afastam cada vez mais, deixando o homem sozinho diante o mundo. No sertão, a vida e a morte estão juntas e opostas. Ao se falar da vida, não se pode deixar de falar da morte, porque é uma coisa só. O que se pode fazer é opor o tom de voz que se usa para falar, para que a mesma fala, ao reconhecer a unidade da vida e da morte, não desconheça, também, que uma é contrária da outra. Assim como o tom de voz distingue a fala sobre a vida da fala sobre a morte, há outros recursos culturais que o povo do sertão utiliza para distinguir aquilo que socialmente pertence à morte daquilo que socialmente pertence à vida. Essas distinções estão fortemente baseadas nas observações que Benedita Vicente de Oliveira-86 anos-, ao mencionar que, ao nascer, cada um já carrega consigo o destino da morte, o tempo certo para morrer. É esse fato que permite entender toda a complexidade e variedade dos ritos fúnebres no sertão, que obriga cada pessoa a conhecer os procedimentos, rezas, interdições necessárias a que se situe diante da morte, dos outros e da sua própria. Para Benedita Vicente de Oliveira, o tempo de vida e morte ocorre entre o nascimento e a finitude orgânica do corpo. Nascer e morrer devem ter tempo certo. O rompimento desse ciclo natural representa um perigo não só para aquele que deixa de cumpri-lo, mas a toda sociedade. As pessoas não podem, ou não devem morrer antes nem depois. A hora da morte deve ser a hora destinada à morte. Por essa razão, os ritos relativos à morte, de acordo com Phillipe Áries, constituem ritos de tempo. Ritos de tempo são atitudes para evitar que a pessoa morra depois do tempo. Ilustrada na mitologia grega pelas Moiras, filhas de Zeus, afiandeiras do destino, as três deusas (Cloto, Láquesis e Átropos) impiedosamente decidem sobre o destino da vida e morte dos homens. Representando o começo e o fim, a vida e a morte, o simbolismo do corte do fio dourado tecido, medido e cortado pelas irmãs exerce dos vivos todos os cuidados que devem ter no tratamento do corpo. No caso do sertanejo, o vivo evita o contato com o morto para não contaminar outros sobreviventes pela morte e, portanto ao evitar culturalmente esse contágio significa impedir que o destino natural do vivo passe a ser determinada pelo morto, que já está fora da natureza, inserido na ordem do sobrenatural. Nesse arranjo, há uma relação conflitiva e de força entre a natureza e a cultura. Benedita Vicente de Oliveira enfatiza que o tempo de morrer chega para aquelas pessoas que já não podem trabalhar, já estão velhas, já fizeram o que tinham para fazer; o a vida está por um fio. O povo do sertão mobiliza concepções culturais, ritos, crenças, rezas, para que a natureza cumpra o seu ciclo de nascimento-crescimentoenvelhecimento-morte, para que o homem viva e morra como a árvore do campo. A natureza se transfigura, assim, em produto da cultura. Quem morre antes do tempo fica à espera do tempo certo para receber a sua sentença. Essa é uma situação de extremo perigo, porque é a situação da alma que não está no seu lugar, nem na ordem dos vivos nem na ordem dos mortos, nem é uma coisa nem é outra – é o morto não assimilado pelo mundo dos mortos e que, por isso, ameaça o mundo dos vivos. Um dos cultos populares ricos e arraigados na cidade de Anicuns, interior de Goiás, são as encomendadeiras das almas. Mulheres (carpideiras) que cantam por meio de rezas, a proteção e iluminação às almas, mesma situação averiguada no sul da Bahia, na cidade de Correntina. Nesse último caso, mulheres trajam-se de branco, simbolizando a luz emanada de seus corpos em movimento. Segue em procissão tangida pela fé que as opera por meio de rezas cantadas. Os que morreram antes do tempo ou os que não encontraram em luz, devem ter suas almas guiadas a um lugar definitivo. Assim, os ritos impedem que as pessoas morram depois do tempo. No sertão goiano ou baiano, as carpideiras são especialistas na quebra da oração do moribundo, que apegado ao seu santo de devoção recusando-se a morrer. August Saint-Hillaire, viajante europeu que percorreu o interior do Brasil no século XIX, observou que os ritos fúnebres implicavam um tempo de agonia e aflição. Nem todos cristãos, adultos apesar de conceber a morte como necessária ao empenho de salvação da alma, a esperava sem manifestar um comportamento de inquietude. Se o momento da agonia constituiu-se num momento de conflito entre o moribundo e os circundantes, o medo implicava em preparar-se para o que se chamou no século XIX, de bem morrer. Em Saint-Hillaire os ritos de morte para os adultos não eram os mesmos observados entre os anjinhos (crianças). No caso destes, o choro e desespero familiar pela dor da morte infantil era contida. Acreditava-se que como anjos, crianças mortos não alçassem vôo por terem as asas carregadas das lágrimas dos entes, uma vem que os parentes esperassem das crianças, anjos de guarda a proteger a alma dos adultos no caminho percorrida por estes até o céu. Aqui o agonizante e o morto assumem uma dupla posição. De um lado os ritos para evitar a contaminação da morte e os vivos que administrando a morte do outro, submetem a morte ao seu controle. Mas é possível prever e aceitar a morte do outro? Controlar a morte pode parecer uma ação de domesticação o sem sentido, contudo, a morte se situa na ordem dos vivos e da vida. Porque embora vítima da morte, a pessoa é também senhor dela, o que de fato pertence à sociedade. As rezas dos que ajudam a morrer parecem ter como finalidade ocupar os sentidos de quem morre nesse momento de perigo - os olhos, ouvidos e boca, são lugares por onde entra a salvação ou a danação. A prática religiosa observada na repetição das palavras sagradas das carpideiras tinha por objetivo ocupar a boca e ouvidos do moribundo e do morto. Simbolicamente travava-se em torno do mesmo uma guerra em busca da alma. O propósito da grande batalha é que em nome de Deus a guerra contra o demônio fosse vencida. É por causa dessa guerra travada no campo da agonia, que o moribundo não ficava só. A casa não é apenas a moradia da família, mas o recanto para os amigos, espaço para os vizinhos, lugar da morte, porque é socialmente o lócus onde são criados e geridos códigos, práticas e ritos funerários indispensáveis à proteção da família e da casa. Engendrado à tradição sertaneja, a casa é o espaço privado no qual, morto o corpo, as visitações tornam-na pública. A casa passa a decodificar pelo uso de seus espaços (quarto) a compor uma nova ordem constitutiva: os espaços sagrados da casa como espaços de sentimentos. O luto e o choro transcendem o mero espaço dos cômodos como espaço para movimentação dos vivos. Um direito social dos vivos rompe o quarto como espaço do sagrado. Antes de acesso restrito da parteira e do padre, o quarto é profanado. Parentes e não parentes ocupam o quarto para lavar e amortalhar o corpo. Atitudes ritualizadas para o morto afetam e modificam a concepção de um mundo íntimo e introspecto dos vivos. Após o desenlace do corpo e da alma, realidades distintas e relacionadas entre si, os parentes de primeiro grau (filhos menores...), não seguiam ao cortejo fúnebre. Cabe ressaltar o perigo na interferência da alma do morto entre os vivos e o respeito ao corpo morto quando do luto, momento de silêncio. Momento em que até portas e janelas eram fechadas. Assim, os ritos da agonia tornam-se ritos de tempo e os ritos relativos ao corpo morto, constituem-se ritos de espaço. Se por um lado é a reza que separa o corpo da alma, por outro o corpo do morto aproxima a oposição entre os vivos. Parentes distantes, pessoas que viveram em desavenças... A morte atrai respeito e consternação. Entre a família do morto se estabelece uma relação real e simbólica entre alma e defunto. O corpo representa morte, por isso a adoção de práticas envolvidas nos ritos fúnebres. Por isso a crença comum é de quem toca o morto a ele pertence. Discussão em que se acha indispensável o uso de artifícios para afastar os maus espíritos: cruzes, crucifixos, terços. Objetos muitas vezes sepultados com o próprio defunto ou utilizados para purificar lugares ou pessoas envolvidas com o morto. Tirado o morto de dentro da casa, com os pés para frente e a cabeça para trás, associando a casa ao útero materno, simulando a morte o ato do renascimento, o caixão ou bangüê não é carregado por mulheres. O cuidado com o corpo morto corresponde à idéia de uma biblioteca e o caixão a um livro. Fechado múltiplos tempos e espaços em um corpo os ritos reativarão sua memória. Referência Bibliográfica ÁRIES, Philippe. História da Morte no Ocidente. Ed. Ediouro. SP. 2004 ______________O homem diante da morte. Vol. II. Francisco Alves. S.P. 1990 BORGES, Maria Elizia. Arte funerária no Brasil (1890-1930): ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002. CERTAU. Michel. A invenção do cotidiano. Artes de Fazer. 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O CEMITÉRIO COMO FONTE PARA PESQUISA HISTÓRICA, SOCIOLÓGICA E ANTROPOLÓGICA Ao longo dos tempos, cada civilização apresentou sua resposta para o problema da morte. Pirâmides, túmulos subterrâneos, templos funerários, catacumbas, cremações, rituais funerários têm sido usados como uma tentativa de conservar os corpos e se preservar a memória dos mortos. A conservação da memória dos mortos é um dos fatores da identidade e de coesão das famílias, das tribos e das comunidades. Esta função dos mortos darem coesão à família e à comunidade é tão relevante que os índios do Brasil costumam fazer grandes rituais coletivos – Quarup – em honra aos mortos, enquanto outras tribos bebem as cinzas dos mortos como forma de manter a coesão da família. O cristianismo, com sua mensagem de ressurreição, criou uma nova concepção de como vencer a morte e preservar a memória dos mortos. Assim surgiram os cemitérios1 cristãos, sugestivamente também chamados “campos santos”. Os cemitérios reproduzem a geografia social das comunidades e definem as classes locais. Existe a área dos ricos, onde estão os grandes mausoléus, a área da classe média, em geral com catacumbas na parede, e a parte dos pobres e marginais. A morte igualitária só existe no discurso, pois, na realidade, a morte acentua as diferenças sociais. As sociedades projetam nos cemitérios seus valores, crenças, estruturas socioeconômicas e ideologias. Deste modo, a análise permite conhecer múltiplos aspectos da comunidade, constituindo-se em grandes fontes para o conhecimento histórico. Vamos analisar as várias áreas do conhecimento em que os campos santos podem nos dar valiosas informações, tanto na área da preservação da memória como na do patrimônio cultural. 1.1 Os cemitérios: fonte para conhecer a formação étnica Analisando os nomes das famílias e as fotografias, podemos saber a origem e a etnia dos habitantes da área. No caso, podemos constatar a presença majoritária, nos cemitérios de Porto Alegre, de famílias de origem italiana, alemãs ou lusobrasileiras. 1.2 Os cemitérios como fonte para o estudo da genealogia O estudo dos nomes presentes nos túmulos, especialmente das sepulturas coletivas onde aparecem várias gerações, nos mostra as relações familiares e a presença da endogamia ou exogamia2. 1.3 Os cemitérios e a preservação da memória familiar e da comunidade Levando em conata que a memória coletiva é fundamental para a formação da identidade e da coesão da família ou da comunidade, a análise das inscrições, fotos, datas, títulos (doutor, comendador, etc.) e dados pessoais ou profissionais, nos leva a conhecer a atuação das várias gerações e o processo histórico local. 1.4 Os cemitérios como fonte de estudo nas crenças religiosas As inscrições, símbolos, estátuas, pinturas nos mostram a religiosidade local e a relação existente entre religião e morte. Cristos, anjos, crucifixos e estátuas de santos nos revelam a visão cristã e as devoções mais comuns da região. Na região pesquisada, existem poucas inscrições bíblicas e poucos dizeres reveladores de uma crença maior no céu, na ressurreição e em outros dogmas do cristianismo. Constatamos pouca presença, no Interior, de representações do Calvário, da Sagrada Família e da Trindade Divina. No entanto, a inscrição “Saudades Eternas”, reveladora da idéia de morte como um fim completo e comum em Porto Alegre, quase não aparece no Interior, predominando a inscrição “Saudades da Família”, reveladora de um laço emocional dos vivos em relação aos mortos e deixando aberta a possibilidade de um novo encontro. Nos cemitérios protestantes são mais comuns as inscrições bíblicas. Nos cemitérios pesquisados, os símbolos mais usados são a cruz, símbolo da fé cristã, e o PX. Os símbolos do Espírito Santo e da Esperança aparecem poucas vezes, assim como a representação da Caridade. Não existem também sinais de um culto maior aos mortos, como orações gravadas na pedra, cruz das almas ou oratórios públicos, encontrando-se apenas altares nos mausoléus. No entanto, a estatuária representativa das crenças religiosas é bastante significativa. 2 INVENTÁRIO TIPOLÓGICO DA ESCULTURA FUNERÁRIA 2.1 Inspiração cristã 2.1.1 Cristo e a morte cristã Existe um paradoxo evidente entre a ideologia cristã da sociedade portoalegrense e a representação artística, assim como entre as crenças na vida eterna e as inscrições tumulares. Para o cristão, a morte leva à perspectiva da vida eterna, a morte traz em si o germe da ressurreição gloriosa. Sofrer e morrer é imitar Cristo. O cristão é filho da eternidade e, portanto, como afirma Santo Inácio de Antioquia, deveria estar possuído do amor da morte. No dia da ressurreição, o corpo libertado da morte a destruirá para sempre. A cruz, desde a antigüidade, surgiu como símbolo da morte cristã. A cruz é o símbolo da celebração da morte e da esperança na ressurreição. Na mensagem cristã existem duas situações fundamentais: a crucificação, a morte dignificada pelo exemplo de Cristo, e a ressurreição, o triunfo da vida sobre a morte. Tomas Kempis, na sua obra Imitação de Cristo diz que “(...) não há outro caminho para a vida e para a paz interna verdadeira a não ser o caminho da Santa Cruz”3. Apesar da sociedade gaúcha não ter uma formação religiosa profunda, pois o estudo teológico ficou limitado a círculos bastante restritos, através da prática religiosa, principalmente das devoções da Páscoa, a identificação da crucificação com a morte dignificada do cristão era bastante compreendida. Este fator levava os artistas e famílias locais a escolherem o tema da crucificação como um dos preferidos. Crucifixos, Pietàs, calvários e o sepultamento de Cristo são encontrados com relativa abundância na arte funerária de Porto Alegre. As representações com temáticas cristãs, em geral, seguem os padrões da arte neoclássica, inclusive para as estátuas de Cristo e dos santos. As figuras de Cristo, segundo os cânones neoclássicos, devem expressar espiritualidade, grandeza, personalidade bem característica, santidade, profundidade de sentimentos, dor e sofrimento sereno. Por sua vez, seus inimigos devem estar caracterizados como malvados, ferozes, raivosos e bárbaros, enquanto seus amigos aparecem como homens atraídos pelo divino que há em Cristo. Os momentos mais favoráveis para representar Cristo são os do nascimento, pregação, morte, ressurreição e ascensão. 2.1.2 A ressurreição A morte, na mensagem cristã, é vista como a passagem para a eternidade. Corpo e alma não são coisas paralelas mas, sim, uma unidade que é o ser humano. Daí, que a fé na ressurreição passa a ser a espinha dorsal da fé em Cristo. Cristo é a explicação da morte e da ressurreição. “Eu sou a ressurreição e a vida” (João 11). “Quem crê em mim viverá, mesmo que tenha morrido” (Mateus 12). Estes textos bíblicos respondem, ao cristão, a pergunta: “Como superar a morte”? Na teologia antiga o juízo particular e o juízo final eram momentos diferenciados mas, atualmente, são considerados coincidentes, de qualquer maneira permanece a idéia da justificação pós-morte. O corpo é ressuscitado no fim dos tempos para reunião final entre espírito e corpo, para comparecer ao juízo final que inclui a justificação do homem, tanto nas suas relações para com Deus, como nas suas relações para com os outros homens. A ressurreição é o lugar definitivo, o acabamento do processo cósmico, a unidade completa entre espírito e matéria. Como será o corpo ressuscitado? Esta velha pergunta tem sido respondida através dos tempos de maneiras diferentes, mas a tradição cristã concorda em alguns aspectos. A ressurreição é universal e os corpos glorificados manterão sua identidade pessoal. Na concepção tradicional do juízo final, Jesus aparecerá cercado de apóstolos, santos e anjos. O corpo ressuscitado e glorificado refletirá o fulgor da alma. A diferença de sexos será mantida, mas não as diferenças de idade e tamanho. O corpo ressuscitado será perfeito, nem alto nem baixo, mostrando a idade de 30 anos, época do apogeu do vigor físico. Será incorruptível, terá o dom da ubiqüidade e estará isento de dor. Ao longo da história os artistas têm utilizado o juízo final e a Ressurreição como temas para a iconografia cristã, assim como a simbologia tradicional da ressurreição, a ave fênix, o ovo, a águia, o casulo, a borboleta e a árvore verdejante. Portanto, é natural que a arte funerária, em Porto Alegre, também utilizasse esses temas. 2.1.3 A devoção de Maria, dos santos e anjos Nas devoções do Cristianismo católico o culto dos santos e da Virgem Maria, intermediários entre Deus e os homens, caracteriza-se por um sistema de relações onde fica explícita a aliança entre o devoto e o santo protetor, assim as graças, recebidas são retribuídas por práticas rituais. As práticas devocionais organizadas, além dos rituais, exigem um comportamento ético, daí que o pagamento da graça alcançada é do indivíduo e não da comunidade. Dado a este caráter privado e a sua diversificação, as devoções do catolicismo romano adaptam-se a todas as classes, sexo e idade. Existem modelos éticos de virtude para todos. Deste modo, a medida em que as devoções se propagam, transmitem-se aos fiéis os conteúdos éticos nelas embutidos. Em um período de questionamento da família, aumenta a devoção da Sagrada Família; os movimentos operários voltam-se para o culto de São José; no período da expansão missioneira da Igreja, aumenta o culto aos santos ligados à expansão da fé. Na década de 1930-40, a reação ao crescente materialismo era estimular o culto do Sagrado Coração de Maria e Jesus. Esta diversidade de devoções favoreceu muito a conquista das classes urbanas que não mais sintonizavam com o tradicional sistema religioso rural e, uma vez incorporados estes padrões de comportamento religioso pela sociedade local, todas estas manifestações de devoção irão se refletir na estatuária funerária. Virgens Marias e santos irão povoar os túmulos locais, símbolos de devoções familiares. A iconografia católica costuma apresentar a Virgem em três situações básicas: Maria mística na Anunciação; Maria mulher real, mãe de Jesus, na Sagrada Família; e Maria mulher, mãe dolorosa, nas Pietàs. Destes três tipos de representação da Mãe de Deus, apenas o segundo e o terceiro são encontrados em nossos monumentos fúnebres. 2.1.4 Os cemitérios como forma de expressão da ideologia política Nos cemitérios da região pesquisada, existem poucas inscrições, dizeres ou textos representativos da ideologia política da comunidade. Em alguns cemitérios existem bustos e estátuas celebrativas das lideranças locais. 2.2 A tipologia celebrativa O positivismo surgiu no século XIX, em plena revolução industrial, criado e divulgado por Augusto Comte. De acordo com o pensamento de Comte, a humanidade está em permanente evolução em direção ao progresso, mas dentro de uma ordem pré-estabelecida. A ordem é a harmonia entre as diversas condições da existência e o progresso é visto como o desenvolvimento ordenado da sociedade, de acordo com as leis sociais naturais. Portanto, tudo que altere a ordem é considerado como negativo e, por isso, o positivismo é anti-revolucionário. O progresso é visto como a parte dinâmica da sociedade e a ordem como a parte estática. Cabe ao Estado promover a esta cidade a ordem e o ajustamento do indivíduo à sociedade. O Estado positivista deverá ser dirigido pelos industriais e sábios ilustrados. Como a monarquia fundamentava-se no direito divino dos reis, para Comte seria a forma de governo correspondente ao Estado teológico da civilização e, portanto, um sistema superado. Comte opta, então, pela ditadura republicana que seria a única forma de governo capaz de atingir os objetivos propostos. A ditadura republicana é temporal, com a autoridade centrada em um só indivíduo, tendo um caráter vitalício e devendo garantir a justiça e a liberdade, apoiada no tripé da responsabilidade, autoridade e liberdade. O líder é preparado pelos seus antecessores e prepara os seus sucessores, percebe quais as transformações necessárias e as propõe aos seus seguidores, e orienta seus contemporâneos para a construção das doutrinas e instituições necessárias para proporcionar as transformações. No caso de seus planos serem adequados à realidade, as mudanças se consolidam quase imediatamente. A função da liderança é despertar e conduzir a ação de novas forças sociais. Apesar desta função importante, o seu papel é menor do que o das condições criadas pelo processo civilizatório. As leis naturais são independentes do querer do líder. Este pode direcionar o processo histórico, mas não alterá-lo. As doutrinas positivistas chegaram ao Rio Grande do Sul através de duas vertentes principais: os militares que cursavam a Escola Militar do Rio de Janeiro, onde a pregação positivista dirigida por Benjamin Constant era intensa, e os estudantes que faziam seus estudos superiores em São Paulo e no Rio de Janeiro. A primeira manifestação positivista no Rio Grande do Sul foi o artigo Duas palavras, sobre literatura, escrito por Augusto Luis. Nos primeiros tempos da pregação positivista destacou-se Júlio de Castilhos, nascido em 1860, estudou de 1877 a 1888 em São Paulo, onde se converteu à doutrina de Comte. Fundou o Jornal A Federação, em 1884, órgão oficial de propaganda republicana positivista. A pregação de Júlio de Castilhos se identificou com a dos jovens militares positivistas no seu caráter idealista, republicano, antiliberal, tradicionalista, patriarcal e anti-socialista, combinando muito bem com o caráter autoritário do positivismo como caudilhismo rio-grandense. Com o golpe militar que proclamou a República, Júlio de Castilhos e seu grupo de positivistas chegaram ao poder, impondo ao Estado uma constituição autoritária e positivista, única no mundo, garantindo um predomínio políticoideológico, de mais de um quarto de século nas estruturas de poder do governo estadual. Ora, fazia parte do pensamento oficial a celebração cívica dos líderes políticos vinculados ao grupo dominante. Desta forma, o Governo patrocinou não só a construção de monumentos públicos, como o de Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, mas, também, de uma série de jazigos monumentais no Cemitério da Santa Casa, reafirmando seus valores políticos e também atendendo ao princípio positivista do culto cívico no líder e da conservação de sua memória, única imortalidade possível no ser humano. O primeiro destes monumentos funerários foi o de Júlio de Castilhos (morto em 4 1903) , seguido do jazigo de Pinheiro Machado5, Otávio Rocha, Maurício Cardoso e outros. A terceira tipologia a ser inventariada foi Cívico-celebrativa. Nesta categoria estão colocados os jazigos-monumentos possuidores de uma dupla função: • servir de sepultura; • celebrar a memória de vultos destacados do mundo político, econômico, social e cultural. Devido a esta dupla função, estes túmulos costumam ter a imagem do morto e alegorias representativas das atividades exercidas ao longo da vida ou da sua ideologia. Em geral, estas sepulturas foram financiadas pelo Governo Estadual, corporações, entidades empresariais ou, mesmo, por grupos de amigos e familiares. Nas primeiras décadas do século era usual que, em torno destes túmulosmonumentos, existisse um verdadeiro culto cívico, realizado geralmente na data da morte. Este culto consistia em visitações organizadas, oferendas florais e discursos laudatórios. Com o declínio do positivismo este hábito desapareceu quase inteiramente. O túmulo do Coronel Plácido de Castro, o conquistador do Acre, aparece com exceção, pois faz, não só a glorificação do herói assinalado mas, também, a denuncia do sistema político vigente6. 2.2.1 Os cemitérios como expressão do gosto artístico No caso dos cemitérios do interior estudados, existem poucas obras de escultura, em geral, baixos-relevos, anjos, santos, crucifixos padronizados e Sagrado Coração de Jesus, muitos de fabricação artesanal e sem expressão artística. Constatamos que existem poucas estátuas alegóricas (saudade, dor, desolação), tão comuns em cemitérios do Rio Grande do Sul, de maior porte. 2.3 A tipologia alegórica O classicismo tem uma tendência a fazer a apoteose de um indivíduo cuja perfeição não é apenas ética. O culto do herói é um dos centros da teoria neoclássica, assim como o culto das virtudes. A partir de um certo momento a arte passa a representar os dois cultos através da celebração de um indivíduo. Segundo Goethe, o artista procura no particular o universal, daí nascendo a alegoria. A alegoria tem duas finalidades: a expressão de um conceito e a expressão de uma idéia personificada. Desta forma, a alegoria passa a ser uma forma de expressão. A alegoria é uma substituição da idéia, ao contrário do símbolo que é o próprio conceito corporificado. Nos tempos modernos, a antiga predileção pela representação visual se manifesta nas representações alegóricas de caráter ético e político, tornando visíveis determinadas verdades. A alegoria na Idade Média é didática e cristã, enquanto a alegoria barroca e neoclássica volta à antigüidade. Winckelmann, ao analisar as alegorias, recomenda esboçar as imagens com o máximo de simplicidade, de tal modo que possa expressar a coisa a ser significada com o mínimo de dispersão. Esta seria a explicação da permanência das alegorias da antigüidade clássica, exemplo a ser seguido7. A época barroca fragmentou a alegoria pelo excesso de símbolos8. A melhor alegoria de um ou vários conceitos é a que é condensada em uma figura única. Esta personificação alegórica tinha a intenção de tornar as coisas mais imponentes. A novidade trazida pelo romantismo foi a introdução das alegorias das emoções e dos sentimentos, tais como a dor, a saudade, a desolação, a meditação, o amor-materno, a alegria, a tristeza e outros9. Ao mesmo tempo, introduz as alegorias referentes a novas realidades políticas e econômicas, como a revolução, a república, a indústria e a navegação. No caso das obras de arte alegóricas de nossos cemitérios, verifica-se que, normalmente, as alegorias são representadas dentro das concepções do classicismo, mesmo quando representam um conteúdo romântico. A segunda tipologia encontrada nos cemitérios de Porto Alegre é a alegórica. As alegorias funerárias aparecem desde os primeiros tempos. À medida em que os anjos vão se humanizando, ganhando aparência terrena e perdendo suas características celestiais, a ocorrência das alegorias vai aumentando em número e variedade. Finalmente, os anjos quase desaparecem e passam a predominar as alegorias. As alegorias, em geral, são figuras femininas, representadas nos padrões do academicismo clássico, personalizando a dor, a meditação, a consolação, a saudade, a desolação, a oração, a fé, a caridade e a esperança. Assim, pode-se constatar que tanto aparecem alegorias de princípios cristãos como alegorias de emoções. As alegorias do juízo final (anjo com trombeta) e da morte (figura segurando uma tocha para baixo) também aparecem em todo o Rio Grande do Sul. 2.3.1 Os cemitérios como indicadores da evolução econômica e dos padrões da população local Através dos túmulos, podemos verificar o potencial econômico da cidade nas suas várias fases. Sepulturas pobres revelam fases menos prósperas, sepulturas ricas, revelam fases de crescimento econômico. Nos cemitérios pesquisados, os mausoléus, que seguem o modelo tradicional brasileiro de mausoléu-capela, são, em sua maioria de construção recente, revelando que nas últimas décadas o potencial econômico da cidade aumentou. Os túmulos maiores e mais ricos correspondem à elite local. Nota-se, também, uma tendência de maior organização do espaço cemiterial nos últimos tempos. Ultimamente em algumas regiões do Estado estão aparecendo os mausoléus-casas. 2.3.2 Os cemitérios como fonte reveladora da perspectiva de vida Fazendo um levantamento estatístico no período de vida registrado nos túmulos, podemos constatar qual é a média de vida dos vários grupos locais: homens/mulheres, pobres/ricos, etc. 2.3.4 Os cemitérios como fonte reveladora das posições da população local perante a morte Em geral, as inscrições tumulares, fotos e decoração das sepulturas são reveladoras de como a população elabora a morte de pessoas próximas e como o morto é visto pelo seu grupo familiar e social. As inscrições evidenciam uma idealização do morto que é, muitas vezes, apontado como exemplo. As fotos quase sempre mostram os mortos mais jovens e saudáveis, forma de esconder a realidade da morte. Há, também, visões diferentes da morte, se o morto for criança, jovem, mulher ou homem. Encerrando esta análise sucinta dos cemitérios como fonte histórica, podemos afirmar que os mesmos são uma das fontes escritas e não-escritas mais ricas que o historiador, o sociólogo e o antropólogo têm ao seu dispor para conhecer uma região. BIBLIOGRAFIA ALDRICH, Virgic. Filosofia del Arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. ALMEIDA, Antônio Rocha. Vultos da Pátria. Porto Alegre: Editora Globo, 1965. V. III. ANTONACCI, Maria Antonieta. A Revolução de 1923: as oposições na República. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979. ARIES, Philipe. L’Homme devant la mort. Paris: Editions du Servil, 1977. BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/data. BAZIN, Germain. História da Arte. Lisboa: Editora Martins Fontes, 1976. 1Cemitério: palavra de origem latina, significa lugar onde se dorme. 2 Endogamia: casamento dentro do grupo familiar. Exogamia: casamento fora do grupo 3KEMPIS, Tomas. Imitação de Cristo. In HINKELAMMERT, As armas ideológicas da morte, p. 252. 4No túmulo de Júlio de Castilhos, além dos lemas positivistas, aparece a alegoria da Pátria cobrindo o túmulo com a Bandeira Brasileira 5No túmulo do Senador Pinheiro Machado aparecem as alegorias da Pátria Republicana, a história e as novas gerações. 6Cemitério Santa Casa, em Porto Alegre. 7WINCKELMANN. In Reflexões sobre a Arte Antiga, p. 39, afirma: “O único meio de nos tornarmos grandes e, se possível inimitáveis, é imitar os antigos”. 8Para READ, in O sentido da Arte, define o símbolo como “A Arte de escolher analogias para idéias abstratas...”, p. 135. 9BENJAMIN, Walter. In Documentos de cultura e Documentos de Barbarie, p. 18. “O classicismo tem uma tendência bastante clara a fazer a apoteose da existência num indivíduo cuja perfeição não é apenas Ética, um traço tipicamente romântico vem a ser a colocação desse indivíduo perfeito dentro de um processo infinito, mas sagrado”. 1 Crônica de uma morte anunciada: o Cemitério do Catumbi (RJ) Henrique Sérgio de Araújo Batista Doutorando em História Social (PPGHIS – UFRJ) Resumo O uso da pedra na construção de memória não garante sua perenidade. Na peleja entre o lembrar e o esquecer, nas necrópoles, o suporte material sofre não só o desgaste da chuva e do inclemente sol, mas principalmente a ação dos homens. O cemitério do Catumbi perde, a partir do final do século XIX, lugar privilegiado de construção de memória de certa elite de emigrantes portugueses e seu mais pomposo mausoléu, o do visconde de Guaratiba, foi demolido, assim como o de seu sobrinho (2º barão de Guaratiba) na década de oitenta do século passado. Palavras-chave: Memória; Patrimônio; Cemitério. Clemilda Silva, uma babá de 49 anos, possivelmente jamais imaginaria que seria atingida por um tiro depois de morta. Mas, uma bala perdida, talvez de fuzil, disparada do Morro da Mineira, vizinho ao Cemitério do Catumbi, onde estava sendo velada, na capela H, estilhaçou a vidraça da janela, atravessou o caixão e alojou-se em sua barriga. O jornal “Povo”, em sua edição de 27 de julho de 2005, estampa na primeira página “Bala perdida atinge até defunto”(1). Indignada, quando a ocasião pedia a dor do luto provocada por um prosaico e fulminante 2 enfarte, Maria de Lourdes Pereira da Silva, irmã da morta, exclama “Onde já se viu? Nem na hora da morte há sossego! Depois de morta, levar um tiro. Será que nem na hora da morte tem direito à paz?”. Cenário onde foram erguidos, principalmente na segunda metade do século XIX, suntuosos mausoléus, o cemitério do Catumbi tornou-se não mais território onde a morte, fim último, não mais reina absoluta, mas palco da violência urbana com outros senhores, e distintas mortes. Denunciando o que considerava um grave ataque a Memória Nacional, Ariosto Berna escreve a ministra da Educação e Cultura, Esther Ferraz, em 13 de junho de 1984. Neto de José Berna, o marmorista responsável pelo mausoléu de Joaquim Antonio Ferreira, 1º barão e depois visconde de Guaratiba, Ariosto Berna pede abertura de sindicância para investigar a venda criminosa e demolição do referido túmulo que fora até mesmo visitado por D. Pedro II . Em correspondência não datada(2) ao presidente da Fundação Pró-memória Nacional, Marcos Vilaça, Ariosto Berna denuncia novamente o desmantelamento do jazigo do visconde de Guaratiba acreditando se tratar de um caso para inquérito policial pois soubera que seriam construídos trinta e um túmulos na mesma área onde fora erguido, de acordo com Clarival do Prado Valladares, o mais pomposo mausoléu do cemitério da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula, no Catumbi. A família do Visconde de Guaratiba, falecido em 1859, enviou um representante a Gênova, cidade na qual, segundo Ariosto Berna, os mortos se sentem ofendidos, se não merecerem a homenagem de um artístico mausoléu, para convidar o escultor Monteverde(3) para vir ao Brasil executar o mausoléu. Alegando não poder se afastar da cidade, o artista indicou outro para substituí-lo – seu melhor discípulo José Berna, filho do também escultor João Berna, que havia sido laureado com a medalha de ouro pela Academia Real de Belas Artes de Genova. Aceitando o convite, Berna parte para o Brasil. Após a aprovação da concepção do mausoléu, que, em sua parte central, encontrava-se a escultura jacente do titular do Império sobre um sarcófago sustentado por quatro anjos ajoelhados sobre almofadões, foi firmado o contrato de execução no valor de cerca de noventa contos de réis e o escultor retorna á Itália objetivando a compra do mármore de Carrara, formar uma equipe de 3 artífices para auxiliá-lo na execução da obra e também para trazer a esposa, tendo, já no rio de Janeiro, instalado sua oficina de mármore na rua da Ajuda no número 17(4). Intitulando-se herdeira – como descendente direta – do visconde de Guaratiba, Celeste Ferreira Amorim, e alegando problemas financeiros para pagar as diárias do quarto duplo onde vivia no Hospital Geriátrico São Sebastião consegue judicialmente a venda do mausoléu. Não se sabe como a requerente provou sua descendência já que o visconde – conforme testamento (5) publicado no Jornal do Comercio era solteiro. Todavia Celeste Ferreira Amorim (6) afirmava que o principal herdeiro do visconde – o segundo barão de Guaratiba – era filho do referido visconde fruto de um relacionamento que o mesmo teria tido com sua governanta. Somente o acesso à petição judicial para a realização da alienação poderá indicar os probantes argumentos da autora da ação, mas em seu testamento o visconde intitula como um de seus herdeiros e testamenteiro o seu sobrinho Joaquim José Ferreira – “Cumpridas estas disposições, o resto de seus bens será dividido em duas partes iguaes, uma das quaes em favor de Joaquim José Ferreira, filho de sua irmãa Anna Maria, e a outra em favor de Rodrigo Pereira Felício, filho de sua sobrinha Maria Benta, aos quaes por esta forma institue seus herdeiros, e por morte destes a seus sucesssores”(7). Quando de reunião do Conselho Consultivo da SPHAN, em 06 de agosto de 1984, o conselheiro e historiador Pedro Calmon inicia sua intervenção afirmando que, se vivo fosse, seria Clarival do Prado Valladares a tratar da preservação da arte existente nos cemitérios brasileiros. Depois de protestar contra a destruição do mausoléu do citado nobre “atentando sofrido pelo patrimônio artístico e tradicional do Rio de Janeiro”, Calmon clama por ações que impeçam a demolição de outro túmulo da família Ferreira – o do 2º barão de Guaratiba: “Que fazer? Intervir (é o que requeiro) junto à SPHAN, aqui representada por nosso dinâmico e ilustre Marcos Vinicios Vilaça, para que de imediato interpele a Irmandade a que pertence o cemitério, notificando-a de que perpetuas são as sepulturas assim classificada, nem há descendentes ou herdeiros que as retomem sem a indispensável decisão judicial, que os reconheça. E em complemento a essa providencia sumária (e inadiável), promova 4 o tombamento, para o devido resguardo legal, dos sepulcros que por seu valor histórico (grandes personagens) e artístico (escultura merecedoras de conservação) sejam dignos de cautela e zelo que amparam os bens constitucionalmente isentos de alienação e abandono. Outrossim poderá a SPHAN organizar um ante-projeto de lei que supra no particular as omissões da legislação existente, visando à preservação que recomendamos, como essencial à política de defesa e honra da memória nacional”. Joaquim Antônio Ferreira, O HOMENAGEADO Mas, quem seria o homenageado com tamanha magnificência? Ao chegar ao Rio de Janeiro,em 1796, com 19 anos, nascido em Valença do Minho em Portugal, o futuro visconde de Guaratiba foi trabalhar com o comerciante João Gomes do Valle. Essa ligação determinará sua trajetória comercial que o levará a ser o responsável por mais de trinta por cento de todas as expedições do trafico negreiro, no período de 1811-1812 e 1821-1830, Joaquim Antonio Ferreira traficou 25.850 escravos em 82(8) dessas expedições(9). Como sociedade de Corte, o enriquecido Joaquim Antonio Ferreira, visando desvincular-se da pecha de “negreiro” e adquirir certa respeitabilidade em sua 5 ascensão social nobiliárquica, canaliza sua fortuna em atividades socialmente respeitadas, como o investimento em prédios urbanos e transforma-se em um dos maiores beneméritos da Santa Casa de Misericórdia, pois, de acordo com Valladares “o mercado de escravos carecia e procurava, sobretudo, o respeito público. Seus gestos de caridade tinham que ser bem maiores e desafiantes que os dos latifundiários de bens de raízes, mas de economia imolada”(10) E tais vultuosas doações para irmandades e obras de caridade formam o principal eixo da construção de uma memória, com seus embates e suas estratégias de legitimação. Nem a morte interrompeu suas doações para a Santa Casa, e para irmandades da quais era filiado, mas, apesar de também ser da confraria proprietária do Cemitério do Catumbi, não deixou, para a mesma, nenhum legado. De um total de quase noventas contos de réis, não existe um centavo sequer para a confraria de São Francisco de Paula e nem mesmo na notícia de sua morte publicada no Jornal do Commercio existe referência à tal filiação – “Pertencia as irmandades de Nossa Senhora do Carmo, S. Pedro Santíssimo Sacramento e almas de Santa Rita, da Santa Casa de Misericórdia, de Nossa Senhora das Dores, da Candelária e do Senhor dos Passos da capella imperial”(11). A escolha do Cemitério do Catumbi, mesmo quando já funcionava o da Santa Casa de Misericórdia, é um seguro indício da importância do mesmo para os portugueses que cá enriqueceram e tornaram tal necrópole a preferida dessa elite em busca de afirmação social e sedenta de títulos de nobreza. O cemitério do Catumbi ocupa uma área que se inicia ao pé e se estende pela encosta de um morro. Devido às características geológicas do terreno os artefatos tumulares foram erguidos seguindo tais delimitações. No primeiro plano da necrópole que compreende o espaço do portão principal até o início do morro por ser uma área alagadiça sujeita a inundações(12) foram fixados os jazigos, ao longo da alameda central, que existiam nos jardins da igreja da Ordem. A escolha do local considerou tais características, e o terreno adquirido situava-se em plano elevado (chamada de “Secção primeira”, mas que corresponde a um nível intermediário entre o primeiro e o segundo e inclinado plano). Erguido nesse local, o mausoléu seria visto por todos que passassem próximo ao cemitério, e até mesmo a uma certa distância se descortinariam as esculturas que o ornavam. 6 Um pouco mais de um mês após a intervenção de Pedro Calmon, Domingos de Lima Bernasconi, em 18 de setembro, dirige-se ao sub-secretario da sub-Secretaria do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional, Irapuan Cavalcante de Lyra, informando que a demolição do mausoléu do 2º barão de Guaratiba, por ele adquirido junto a Celeste de Andrade Ferreira Amorim e demais herdeiros havia sido paralisada por ordem da administração do cemitério. Tal paralisação, segundo a administração, fora determinada por telegrama, de 05 de setembro, de Irapuan Lyra, pois a referida construção passava por um processo de tombamento. Alega Bernasconi que na proposta de compra apresentada aos herdeiros constava expressamente a pretensão de demolir o jazigo e, em seu lugar, erguer carneiros perpétuos; todavia, o adquirente preservaria os restos mortais depositados no jazigo. Dizendo-se “confuso”, pois, segundo a administração da necrópole, não existiria o precedente de um artefato tumular tombado pelo Patrimônio, Bernasconi emite negativo parecer sobre os atributos artísticos e históricos da sepultura em questão e alerta ao órgão responsável pelo zelo desse patrimônio a existência, no Catumbi, de túmulos que se enquadram nesses atributos: “Confuso sim, pois não consegui entender esse súbito interesse por uma Capela que. No meu modesto entender não tem valor artístico e histórico. Artisticamente existem muitas outras Capelas e Mausoléus, verdadeiras obras de arte abandonadas. Historicamente, existem nesse Cemitério sepulturas onde repousaram figuras das mais ilustres da nossa história. Cunha Barbosa, Teófilo Otoni, Barão de Mauá, Catulo da Paixão Cearense, maestro Francisco Braga e dezenas de outros vultos aí foram sepultados sem que suas sepulturas merecessem desse órgão o resguardo de um Tombamento para protegê-las de futuras demolições”. Para alguém que estava preocupado com os prejuízos financeiros de um possível tombamento, Bernasconi não só se apresenta com um fundamentado conhecimento de representantes das elites sepultados no Catumbi, como também ousa alertar e ensinar aos responsáveis pela proteção do patrimônio histórico e nacional como os mesmos deveriam se portar. Ou seja, realçava a importância de se proteger o que ele estava a destruir. 7 Todavia, seu mais contundente argumento para a demolição do mausoléu estaria na origem do dinheiro que possibilitou tal investimento em mármore: o tráfico negreiro. Invertendo e tornando visível um dos motivos inaugurais do investimento da família do visconde de Guaratiba em obras de caridade e ostensivos jazigos, Bernasconi, com surpreendente argumento, traz motivações éticas para essa destruição. Tal atividade atingia, não somente sólidos jazigos, mas principalmente uma memória familiar que estava a perder, com tais demolições, seu principal suporte pois, como afirma o historiador Fernando Catroga, a memória nunca se desenvolverá, no interior dos sujeitos, sem suportes materiais, sociais e simbólicos de memórias”(13). Na luta entre o olvidar e o lembrar, o branco mármore de Carrara vê-se tingido de flamejantes e acusatórios tons avermelhados do sangue dos mais de vinte e cinco mil africanos traficados por Joaquim Antônio Ferreira. As tentativas de purificar e apagar as origens da imensa fortuna dessa família sofrem incisivo ataque de um outro comerciante que busca, não negociar com carne e sangue, mas com matéria tão vital quanto: a memória. Afinal, o esquecimento é um tipo de morte. Todavia, surge, em 1985, outro guardião da memória familiar. Apresentando-se, em 28 de maio de 1985, como trineto do visconde de Souto, e sobrinho-trineto do Duque de Caxias, Francisco Souto Neto envia correspondência ao então ministro da cultura Aluísio Pimenta para denunciar o abandono do que intitulou de “setor histórico” do cemitério do Catumbi. Ao levar, no inicio de 1985, flores aos túmulos de seus antepassados, Souto Neto informa que foi necessário “derrubar mato cerrado, encontrando os jazigos dos nossos vultos históricos violados, as lapides quebradas, os mármores fragmentados, as campas rompidas, e os túmulos, inúmeros deles, abertos contendo em seus interiores lixo e cacos de garrafas, ossadas humanas expostas, vegetação e até arvores frutíferas nascendo de dentro de alguns, restos de caixões mortuários usados, com pedaços de roupas, empilhados ou esparramados pelo caminho, tudo isso em meio a quase intransponível matagal de quase dois metros. Para chegar ao tumulo de meu trisavô, tive que derrubar mato com as mãos nuas, para ir encontrá-lo danificado e cheio de sacos plásticos de lixo, contendo restos de 8 outros mortos. E é ali eu estão sepultados os nossos grandes vultos históricos! Isso jamais poderia ocorrer numa nação que se pretenda civilizada”. Diante desse quadro, Souto Neto apresentou denuncia ao interventor da Venerável Ordem Terceira e ao cardeal D. Eugenio Sales. Todavia, quando em 13 de março de 1985, o Jornal do Brasil publica matéria sobre o leilão, do acervo da igreja de São Francisco de Paula, determinado judicialmente, para pagamento das dividas da referida irmandade, resolve, segundo o mesmo, iniciar um movimento para preservar a memória nacional e sensibilizar o IPHAN a agilizar seus estudos, que já durariam vinte anos, para o “o tombamento do Cemitério do Catumbi, antes que ele desapareça, irreversivelmente”. Um dos motivos que levaram Souto Neto a apresentar sua denuncia ao então ministro foi, ainda de acordo com o denunciante, a falta de interesse das autoridades competentes. Ao contrario do emocional quando da interpelação ao interventor da confraria, outros motivos fundamentaram sua opção - a razão e o patriotismo que o fizeram a levar “o assunto às últimas conseqüências, procurando evitar o prima do escândalo, mas tentando abrir um amplo diálogo nacional”, pois a causa, continua, não seria só dele, mas de “todo cidadão consciente”. Imbuído desse sentimento cívico, Souto Neto divulga sua denuncia em jornais do Rio de Janeiro e de Curitiba onde mora, e, objetivando o debate nacional em torno de questões da memória, escreve para a apresentadora Hebe Camargo cujo programa era transmitido pela rede Bandeirantes de televisão. Como sugestão para um futuro programa da apresentadora, indica o tema da “MEMÓRIA NACIONAL” que, partindo do Cemitério do Catumbi, discutiria questões sobre memória e cultura. Como partícipes do debate, sugere Souto Neto, o presidente do IPHAN e a atriz Maria Fernanda, filha de Cecília Meireles. Com elogios a apresentadora, Souto Neto encerra esperançoso de que “o programa“Hebe” possa ser o mais precioso instrumento para que se sensibilizem as autoridades a influir sobre os destinos daquele fragmento de nossa Historia, sou-lhe gratíssimo pela atenção para esta batalha em prol da preservação de nossa Memória, uma causa que, espero, venha a ser, um dia, comum a todo brasileiro”. O incansável Francisco Souto Neto, em 29 de julho de 1985, escreve para o subsecretário do Patrimônio, Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, pedindo 9 informações sobre o processo de tombamento do “setor histórico” da necrópole. Tal solicitação seria respondida pelo arquiteto Umberto Napoli que seria o autor de significativo parecer defendendo o tombamento do Cemitério do Catumbi. Em ofício a coordenadora do setor de Tombamento da D.T.C., em 30 de agosto de 1985, Sra.Dora Alcântara, Napoli condena a destruição do mausoléu do 2º barão de Guaratiba – “É portanto, acertado dizer que a demolição deste túmulo, ato lamentável para a memória nacional, não invalida o seguimento dos estudos para tombamento, nem tampouco desmerece as qualidades excepcionais do conjunto restante, alertando-nos do perigo eminente de desaparecimento desse tipo tão representativo de arquitetura”. Introduz Napoli um ponto fundamental - a destruição de um tipo de sepultura e de estatuária tumular, pois, não mais se constroem cemitérios como o do Catumbi. Ao contrário de uma difundida igualdade proporcionada pela morte, as necrópoles não só reproduzem as desigualdades sociais das cidades dos vivos (seus construtores), mas também criam possibilidades de novas elaborações. São “as relações de poder que estruturam o território dos mortos, que assim são celebrados não tendo somente em vista a salvação da alma, mas também, através da ilusão de perenidade da memória, a confirmação da posição social dos vivos”(14). A ereção de mausoléus inspirados nos modelos clássicos (e até mesmo egípcios) faz parte da constituição dessa trama de poder, legitimação e distinção social, pois, em meados do século XIX, descobre-se outra forma de “valorização social, de aquisição de respeitabilidade: a jactância tumular”(15). Para obtenção dessa legitimidade vinculada àquelas civilizações, buscam-se em um passado longínquo, como no esplendor da Roma Imperial, os símbolos para perpetuar o nome e família(16). Não se rende homenagem somente ao parente morto, mas ao que ele significou em vida. E, de certa forma, trata-se de uma modalidade de autocelebração: “O homem morto ainda é, de certo modo, homem social. E, no caso de jazigo ou monumento, o morto se torna expressão ou ostentação de poder, de prestígio, de riqueza dos sobreviventes, dos descendentes, dos parentes, dos filhos, da família” (17). Passados mais de dez anos do parecer de Napoli, em 24 de março de 1997, a chefe de Divisão de Proteção Legal, Cláudia Girão Barroso pede a abertura de processo de tombamento do Cemitério do Catumbi ao Dr. Sabino 10 Barroso, diretor do Departamento de Proteção do IPHAN – “Entendemos que cumpre atender, ainda que tardiamente, ao pedido de tombamento apresentado em 1985. (...) recomendamos que seja dirigido ao Departamento de Identificação e Documentação o pedido de instauração do processo com a titulação “Setor Histórico da (sic) Cemitério do Catumbi, no Município do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro”. Finalmente, em 16 de maio de 1997, é enviado um ofício, pelo citado diretor do Departamento de Proteção, a Francisco Souto Neto, que, com sua ritualização revificadora (18) da memória familiar ao visitar e levar flores aos seus mortos, em um lugar por excelência de memória (19), teve seu pedido de tombamento instaurado sob o numero 1.390 – T-97. O cemitério do Catumbi perdeu lugar privilegiado de construção de memória de certa elite e a memória do visconde de Guaratiba e de sua família seus principais suportes - os títulos de visconde e 2º barão de Guaratiba adornam um dentre vinte oito outros erguidos na área onde antes se firmava apenas o do 2 º barão. O mármore de Carrara foi substituído por granito – iguais a outros em seu redor, e as águias dos brasões dos referidos nobres voaram para outras paragens. Dois anjos que pousavam na cúpula do mausoléu do visconde de Guaratiba, assim como partes de sua balaustrada, hoje, adornam um túmulo construído na centúria passada. E a estátua jacente do visconde que ficava ao centro do mausoléu, com suas condecorações e medalhas, dorme o sono eterno na reserva técnica do Museu Histórico Nacional. Se, como afirma Françoise Choay, mesmo combinada com medidas penais, uma lei não basta para a proteção do patrimônio, pois a preservação desses monumentos antigos é “antes de tudo uma mentalidade” (20), a preservação dos artefatos tumulares passa necessariamente pela problematização em torno das atitudes frente à finitude. Se, de acordo com Philippe Áries (21), a morte, principalmente, a partir da segunda metade da centúria passada, tornou-se um assunto interdito, a proteção dos jazigos, ou a ausência de interesse em preserválos, antes de ser somente uma problemática a cerca do estatuto artístico desses túmulos, é também uma questão de qual seria o lugar – ou lugares, da morte, nas sociedades contemporâneas. 11 Esta é uma escrita em aberto, sem ponto final, sem conclusões. Trata-se de crônica de uma morte (ou mortes) infelizmente ainda anunciada. NOTAS ∗ Todas as citações com tal símbolo (∗) fazem parte do pedido de tombamento instaurado no IPHAN sob o numero 1.390 – T-97. 1. Jornal Povo, ano X, nº 3364. 2. A data de registro da correspondência no gabinete do SPHAN (RJ) é 26 de julho de 1984. 3. Monteveverde é o autor de várias esculturas existentes no cemitério de Staglieno como o Monumento Celle e o Oneto. Neste – reproduzido em cemitérios brasileiros como o da Santa Casa de Misericórdia no Rio Grande do Sul – um anjo feminino está guardando uma urna funerária, enquanto a mão esquerda segura uma trombeta invertida que provavelmente será tocada no dia do Juízo Final, a esquerda se apóia dramaticamente em seu colo desnudo. 4. Informações retiradas de manuscrito da família Berna que foi doada a Sra. Marisa Guimarães Dias e desta para mim. 5. O testamento do visconde foi feito em 26 de junho de 1852. 6. Jornal O Globo, de 05 de agosto de 1984. 7. Jornal do Commercio, nº 72, de 13 de março de 1859. 8. No período de 1811-1812 e 1821-1830, Joaquim Antonio Ferreira traficou 25850 escravos. FLORENTINO, Manolo Garcia. Em costas negras : uma historia do trafico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro : seculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional, 1995. 9. Joaquim Antonio Ferreira também redistribuía os cativos - “Dos cinco maiores redistribuidores de escravos para as cidades litorâneas e do interior fluminense, três (Joaquim Antônio Ferreira, Diogo Gomes Barroso e Tomé José Ferreira Tinoco) eram consignatários que haviam recebido escravos diretamente da África, sendo responsáveis por 22,7% do total de cativos redistribuídos”. FLORENTINO, Manolo Garcia. Em costas negras, op. cit., p. 146. 10. VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura - MEC, 2 v, 1972, p. 896. 11.Idem. 12.GERSON, Brasil. História das ruas do Rio. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000. 13.CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p. 23. 14.CATROGA, Fernando. O cemitério romântico. In: O Neomanuelino ou a reinvenção da arquitetura dos Descobrimentos. Lisboa: Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses, 1994, p. 82. 15.VALLADARES, Op. Cit., p. 896. 16. PEARSON, Michael Parker apud LIMA, Tânia Andrade. De morcegos e caveiras a cruzes e livros: a representação da morte nos cemitérios cariocas do século XIX (estudo de identidade e mobilidade sociais). Anais do Museu Paulista. São Paulo: USP, Nova Série, v.2, 1994. 17. FREYRE, Gilberto. Introdução à 2a edição. In Sobrados e Mocambos. 12a Edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000, p. 736. 18. no dizer de Catroga. CATROGA, Fernando. O céu da memória - cemitério romântico e culto cívico dos mortos. Coimbra: Minerva, 1999. 12 19. como afirma Pierre Nora “Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivo, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elegias fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais”. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, 1993, p. 13. 20. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade/Editora UNESP, 2001, p. 149. 21. ARIÈS, Philippe. Sobre a história da morte no ocidente desde a Idade Média. Lisboa: Teorema, 1975. ____. Images de l´homme devant la mort. Paris: Seuil, 1983. ____. O homem diante da morte, v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. ____. O homem diante da morte, v. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. Sobre cemitérios e símbolos: a Região dos Sepulcros conta a fé e conta o município de Farroupilha/RS João Luís dos Santos Licenciado em História pela UCS. Professor de História, Sociologia, Filosofia, Geografia, Psicologia e Ensino Religioso do Colégio Estadual Farroupilha/ município de Farroupilha/Rio Grande do Sul. Áthina Marcks Aluna do segundo ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Farroupilha/ município de Farroupilha/Rio Grande do Sul Diana Ribeiro Monegate Aluna do segundo ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Farroupilha/ município de Farroupilha/Rio Grande do Sul Emanuele Flores Pinheiro Aluna do terceiro ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Farroupilha/ município de Farroupilha/Rio Grande do Sul Resumo A pesquisa que está sendo desenvolvida no COLÉGIO ESTADUAL FARROUPILHA, no município de Farroupilha/RS, propõe-se a investigar a religiosidade dos descendentes de imigrantes italianos através do impacto sofrido frente à morte, das transformações e adaptações nos ritos funerários, da elaboração dos seus jazigos familiares nos cemitérios, das frases de despedida e da simbologia empregada nas lápides e no estatuário cemiterial, das cruzes e suas derivações, entre outros. Trata-se de um projeto transdisciplinar, orientado pelo Prof. João Luís dos Santos, envolvendo Filosofia, Psicologia, História, Geografia, Sociologia e Ensino Religioso. O projeto compreende oficinas sobre cidadania, direitos e valorização da mulher e do idoso, tolerância às diferenças, motivação pessoal e trato interpessoal, work shop nos cemitérios do município, sob múltiplos olhares e inferências que dialogam com estudos histórico/sociológicos da realidade local, regional e brasileira, visão de estética e da arte, da arquitetura, da simbologia, índices/causas de morte na juventude, divisão geográfica espacial e social etc. Palavras-chave: Imigração Italiana, Morte, Cemitérios e Símbolos. Os cemitérios trazem um universo de produções para o visual, para o “olhar”. Um arcabouço de olhares, leituras e sentimentos em cada elemento da composição tumular, fazendo através dele, que o espectador - vivo - seja impactado pela ação das idéias nele empregadas. 1 A pesquisa obstina um olhar sociocultural sobre a imigração italiana, e, o estudo da interação destes grupos sociais, observado nos jazigos farroupilhenses em interface com outros cemitérios da região e do estado do Rio Grande do Sul. “SOBRE CEMITÉRIOS E SÍMBOLOS: A REGIÃO DOS SEPULCROS CONTA A FÉ E CONTA O MUNICÍPIO DE FARROUPILHA/RS” foi o título escolhido para o projeto. Região1, segundo a professora Heloísa Eberle Bergamaschi (2006), não significa apenas um espaço, mas “teatro das ações humanas” que “reproduz a totalidade social na medida em que estas transformações são determinadas por necessidades sociais, econômicas e políticas”. A região, como espaço dentro dos objetos sociais é o que tem maior imposição sobre o homem, estando presente no cotidiano do indivíduo a casa, a cidade onde mora, seu entorno, enfim tudo que o rodeia, aquilo que condiciona a prática dos homens e comanda sua prática social. Dessa forma, segundo a mesma autora, a sociedade e os indivíduos que habitam em determinada região se articulam de acordo com formas particulares de produção e com um conjunto de valores que definem seus padrões de comportamentos e de ideologia, convivência e identidade cultural. “SOBRE CEMITÉRIOS E SÍMBOLOS: A REGIÃO DOS SEPULCROS CONTA A FÉ E CONTA O MUNICÍPIO DE FARROUPILHA/RS” contempla-se com as premissas de VOVELLE e ARIÈS acerca da morte. Segundo o VOUVELLE (1991), experimentamos todos, em nossas próprias atitudes em face da morte, um conjunto de representações e de comportamentos que remetem a estratificações diferentes. O mesmo diz ARIÈS quando destaca que a morte é exemplo ilustrativo da possibilidade de diferentes leituras coexistentes. A morte é muitas vezes interpretada de momento nivelador e equalizador, que reduziria os homens ao mesmo destino, é segundo VOVELLE (1991) uma leitura apresada, pois nada há mais de desigual ou desigualitário do que a última passagem quando “Os vestígios que ela deixa são testemunhos para os ricos, porém muito menos para a massa anônima dos pobres”. Exemplo desta premissa é o estudo do geógrafo Eduardo Rezende (SP), ele vai nos elucidar sobre os enterramentos no cemitério paulista de Vila 2 Formosa – São Paulo – “aos pobres resta apenas um lugar feio para ser enterrado2”. Buscamos resgatar “os traços socioculturais da morte e suas especificidades” VOVELLE (1991), nos jazigos de imigrantes italianos, em farroupilha/RS. Seguindo a idéia de VOVELLE, o cemitério é um dos locais essenciais de compromisso entre o discurso das igrejas e a prática espontânea dos fiéis. Neste caso focaremos o discurso, rito e costume católico principalmente. O cemitério é um lugar onde encontramos as vozes dos pósteros, da família, dos entes amados que nos amaram, lugar do testemunho anônimo e da presença das visões projetadas pelos vivos para o além-mundo. Na leitura inicial dos cemitérios escolhidos para a pesquisa foi possível identificar a hierarquização da morte alertada por VOVELLE (1991), pois ao lado das fontes escritas, as iconográficas, (e neste projeto pesquisamos as cruzes) adquirem uma importância fundamental na interpretação da morte e na compreensão da História como Processo. “A história tradicional oferece uma visão de cima, no sentido de que tem sempre se concentrado nos grandes feitos dos grandes homens, estadistas, generais, ou ocasionalmente eclesiásticos. Ao resto da humanidade foi destinado um papel secundário na trama da história”. (BURKE, 1992) A História era vista como resultado exclusivo da ação heróica de príncipes, generais, reis, banqueiros e presidentes. Jacques Le Goff em sua biografia do rei francês Luis IX: “São Luis não caminha imperturbavelmente rumo a seu destino de rei santo, nas condições do século XIII e segundo os modelos dominantes de seu tempo. Constrói-se a si próprio e constrói sua época, tanto quanto é construído por ela. E essa construção é feita de acasos, hesitações, de escolhas”. (Le Goff, J. São Luis. Biografia. Rio de Janeiro: RC, 1999, p.23). Nos cemitérios também encontramos a presença da memória política, social, étnica e cultural da comunidade. Como o mundo Ocidental ergueu-se sobre a herança Greco/Romana nos nossos cemitérios. Esta herança aparece pela preferência do estilo clássico. Em Farroupilha podemos encontrar algumas destas características romanas nos cemitérios: 3 Catacumbas nas paredes: no cemitério municipal encontramos grande área com este tipo de sepultura, que crescem cada vez mais pelo número de pessoas que procuram este tipo de sepulcro. Mausoléu/Capela: encontramos principalmente na entrada principal do Cemitério Público Municipal de Farroupilha, pois são sepulturas mais antigas, quando este modelo era usado mais frequentemente. Estelas: algumas sepulturas apresentam uma lápide com inscrições ou informações sobre a pessoa ali sepultada. Colunas: alguns sepulcros apresentam variações de uma ou duas colunas que podem ser romanas (toscana e composta) ou gregas (Dóricas, Jônicas, Coríntia). Símbolos: é mais comum vermos anjos portando diversos componentes da simbologia pagã romana como flores (saudade), papoula (sono eterno), também podemos ver alguns componentes da simbologia romana dos primeiros cristãos tais como a cruz (salvação, fé) e o peixe (Cristo). O que um povo espera de uma nova terra? O que representa o desenho de duas retas que se cruzam? Às vezes um pequeno símbolo, tem uma infinidade de significados para cada pessoa, e cada significado tem uma infinidade de explicações para existir. Os imigrantes italianos chegaram a região de Nova Milano e Farroupilha no ano de 1875 em busca de um recomeço numa nova terra. Os italianos eram acima de tudo um povo de muita fé, que trouxeram consigo suas crenças, seus símbolos religiosos e contribuíram para transformar a cultura brasileira no que ela é hoje. “No momento em que os cemitérios preservam a memória das sociedades, também evidenciam os contextos sob o ponto de vista sócioeconômicos. No período de 1889 a 1930, observamos uma profusão de túmulos que celebravam o enriquecimento da burguesia. Desse modo os túmulos expressam as diferenças sociais, através de obras suntuosas, marcando identidades particulares”. (THIAGO ARAÚJO, 2006) Segundo o mesmo historiador, “os cemitérios reproduzem a geografia social das comunidades e definem as classes locais. Existe a área dos ricos, onde estão os grandes mausoléus, a área da classe média, em geral com catacumbas na parede, e a parte dos pobres e marginais, constando apenas 4 um número de classificação. A morte igualitária só existe no discurso, pois, na realidade, a morte acentua as diferenças sociais. As sociedades projetam nos cemitérios os seus valores, crenças, estruturas sócioeconômicas e ideologias. Deste modo, a análise permite conhecer múltiplos aspectos da comunidade, constituindo-se em grandes fontes para o conhecimento histórico”.(THIAGO ARAÚJO, 2006) Segundo Tiago Araújo (2006) os túmulos podem demonstrar fontes de informações culturais, artísticas, sociais e ideológicas, de forma a analisar a construção de uma ou mais identidades culturais contidas nos cemitérios. Sempre foi o desejo dos agraciados pelo sistema em distinguirem-se por uma marca (supostamente) “perene”; por um objeto de consagração e propaganda de seus feitos sociais e ou políticos - o Túmulo – pela intenção de comparar-se aos ilustres vultos da história Oficial. Segundo Harry Bellomo (2000) no Brasil, durante o período colonial, a tradição determinava que os mortos fossem enterrados nas igrejas, o mais modestamente possível. A morte era vista em uma perspectiva de humildade, de simplicidade, de despojamento. Era a grande niveladora dos seres humanos, diante da qual todos os orgulhos e vaidades desapareceriam. Portanto, os túmulos colocados nas igrejas coloniais eram muito semelhantes: uma inscrição, uma lápide, às vezes um brasão para destacar a origem nobre da família do morto, eram suficientes. Apontando para um olhar sociológico sobre as obras de arte contidas nas necrópoles, Clarival do Prado Valladares em 1972 faz um levantamentodos principais cemitérios brasileiros e suas esculturas. Ele evidencia os cemitérios de São Paulo e Rio de Janeiro. Esta é a obra mais citada pelos pesquisadores do tema. Maria Elízia Borges tem sua pesquisa voltada à produção do estatuário funerário no Brasil, analisa especificamente o trabalho dos marmoristas italianos na região de Ribeirão Preto no estado de São Paulo no período de 1890 a 1930. O geógrafo Eduardo Rezende analisa as atividades sócio-espaciais e geográficas do cemitério de Vila Formosa em São Paulo, analisa a igualdade entre sexos e etnias nos sepultamentos. Segundo o autor, o cemitértio de vila Formosa é de aspecto símples, e de acordo com a consepção dada pelo poder 5 público ele é de terceira classe, criando assim uma hierarquia social, onde os pobres saão enterrados em um lugar feio. Ou seja: os ricos podem ter diferenciações entre os monumentos funerários, mas os pobres conseguem no máximo uma cova onde se enterrar, o que gera a igualdade. No Rio Grande do Sul, o estudo mais citado sobre o espaço cemiterial é a dissertação de mestrado em História (PUCRS-1988) do Professor Harry Rodrigues Bellomo, intitulada “A Estatuária Funerária em Porto Alegre – 1900 a 1950”. Bellomo analisa a produção da estatuária funerária na capital gaúcha, Porto Alegre, através dos ateliês e dos artístas, suas influências européias em relção ao contexto positivista. Bellomo cria um inventário tipológico da escultura funerária e os divide em três categorias que procuram estabelecer relações entre as obras funerarias e o seu contexto sócio-político, são elas: Tipologia Cristã, engloba a transmição da mensagem cristã. Tipologia Alegórica, envolve as obras alegóricas de sentimentos e de princípios religiosos. Tipologia Cívico-Celebrativa que apresenta obras destinadas a celebrar a memória cívicade grandes vultos do mundo social, político e cultural de Porto Alegre. Também organizado pelo Professor Bellomo, está a obra Cemitérios do Rio Grande do Sul, Arte, Sociedade e Ideologia. A obra traz uma coletânia de artigos sobre múltiplas abordagens aos cemitérios do Rio Grande do Sul. Os historiadores Sérgio Silva e Viviane Saballa, na obra Pelotas: A Arte imortalizada; utiliza da tipologia desenvolvida pelo Professor Bellomo para analisar o cemitério municipal de Pelotas. Do contexto histórico do periodo estabelecem uma relação do estatuário, os artistas e os ateliês. O trabalho sobre o Estatuário em Porto Alegre do historiador Arnoldo Doberstein, inclui uma analise dos túmulos de expressão positivista no cemitério da Santa Casa de Porto Alegre. Fora do Brasil existem estudos relevantes sobre cemitérios e suas implicações nas diversas áreas do conhecimento. Segundo Tiago Araújo (2006) um exemplo é a “Association for Gravestone Studies”, sediada em Greenfield, Massachusetts, USA. A associação foi fundada em 1977 com finalidade de promover o estudo e a preservação dos túmulos. Define-se como uma organização internacional com interesse nos túmulos de todos os estilos. 6 Através de suas publicações, conferências, oficinas e exibições, a AGS promove o estudo dos cemitérios nas perspectivas histórica e artística, expande a conciência pública do significado dos cemitérios, e incentiva indivíduos e grupos a estudar e preservar as necrópoles. 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Júlio César Medeiros da Silva Pereira Doutorando em história da Medicina e das Doenças pela Fiocruz; Diretor de pesquisa do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos Resumo Este artigo pretende examinar os sepultamentos realizados no cemitério dos Pretos Novos, a luz da abordagem da história cultural. Buscando analisar os aparelhos simbólicos partilhados por ambas culturas, a fim de resgatar a especificidade do referido campo santo e o seu lugar na sociedade brasileira dos séculos XVII a XVII. Palavras-chave: Morte, Escravidão, cultura, prática religiosa e funerária. A proposta inicial desta artigo é o de analisar a forma dos sepultamentos realizados no cemitério dos Pretos Novos que evidenciam a sua especificidade histórica e reconstruindo uma parcela da história dos africanos que morriam tão logo desembarcavam no porto do Rio de Janeiro, durante a primeira metade do século XIX, e que ficaram conhecidos como pretos novos, que era uma designação dos escravos recém-chegados. Também é nossa intenção demonstrar a importância da cultura africana para manutenção dos laços de identidade étnica entre os escravos recém-chegados. Em Janeiro de 1996, a residência de n.º 36 da rua Pedro Ernesto, os pedreiros contratados pelo casal, dono da casa, Petruccio e Mercedez, para fazerem a reforma, não poderiam imaginar o que o destino lhes reservava. Assustados, os pedreiros informaram ao casal que ossos brotavam do solo a cada incisão feita no solo. Depois do susto, e de várias conjecturas, chegaram à conclusão sobre o ocorrido: aquele era o cemitério dos “Pretos Novos” do qual se havia a muito, perdido a localização, e que Freireyss havia visitado centenas de anos atrás, o único cemitério do qual se tem notícia de que fora o destino dos corpos dos escravos recém-chegados ao porto do Rio de Janeiro, destino dos corpos dos escravos mortos no Valongo, mas voltemos um pouco no tempo para compreendermos a dimensão deste achado. Vários viajantes, dentre eles o alemão Freireyss, que esteve no Brasil no início do XIX, descreveram escandalizados, o Cemitério dos Pretos Novos e a forma pela qual os escravos eram ali enterrados.1 O terreiro se situava no antigo caminho da Gamboa, que ficou conhecido como Rua do Cemitério e mais tarde Rua da Harmonia (a atual Pedro Ernesto). O Cemitério foi criado em 17222 e viveu a sua fase final no período de 1824 a 1830, tendo recebido nesse intervalo de tempo cerca de 6.122 corpos em um espaço físico menor que 50 braças. Os registros foram arrolados no livro de Óbitos da freguesia de Santa Rita, responsável pelo campo santo. Nesse livro de óbitos encontramos principais dados para a elucidação dessa questão. O crescimento desordenado da cidade, bem como um intenso tráfico negreiro, presenciado fortemente após a vinda da família Real para o Brasil, faz com que os habitantes da Corte tenham os mortos por parede meia, gerando um conflito de interesses onde estavam em jogo, como veremos, o prestígio dos traficantes de escravos, o poder eclesiástico e a viabilização do discurso higienista, todos esses elementos contrapostos à imobilidade decisória do Estado. O cemitério dos Pretos Novos pode se revelar tanto como medidor das tensões sociais e conflitos de interesses como pode dar indícios de elementos comuns de toda a sociedade,3 no qual a noção de lucro, religiosidade e cultura estão definitivamente permeadas pelas ações cotidianas expressas nos fazeres de pessoas comuns, em suas vidas e, por que não dizer, em suas mortes. 4 O livro de óbitos do cemitério ainda nos indica um outro dado importante: a origem de cada escravo sepultado. Assim pudemos verificar que quase 90 % deles eram provenientes da África Central Atlântica, ou seja do grupo banto5 e que possuíam uma forma diferenciada de entender e de se comportar diante da morte.6 Na cosmologia congolesa, o mundo encontrava-se dividido em duas partes que se completavam, ou seja duas dimensões: a do mundo “perceptível” que seria essa na qual vivemos, e a do mundo “coisas invisíveis”. Eles acreditavam que qualquer acontecimento excepcional, fosse bom ou ruim, era fruto de obras realizadas nesse mundo invisível. Além disso, os bantos praticavam o culto aos ancestrais, no qual a figura dos antepassados era de suma importância para cada linhagem bem como para o sucesso nas colheitas, na pesca, e para a manutenção da própria vida. O Cemitério dos Pretos Novos tem sua história colada à história do Rio de Janeiro desde a Colônia. Por volta de 1700, o cemitério da Santa Casa não comportava mais o grande número de enterros de escravos, 7 tendo em vista o incremento do tráfico que começa a se fazer mais intenso ano após ano. Segundo Manolo Florentino, entre as décadas de 1710 e 1720, houve um aumento de cerca de 40% no volume de importações de escravos pela cidade do Rio.8 Logo, o Governador na época determinou que o cemitério fosse transferido para o Largo da Igreja de Santa Rita situado em frente à mesma9. Assim se fez. Naquele momento, o cemitério foi entregue aos cuidados do padre de Santa Rita o qual se encarregara de lavrar os óbitos em livro e cuidar das inumações. Entrementes, o Marques do Lavradio, por volta de 1769, insatisfeito com modo precário pelo qual os escravos eram expostos no mercado que funcionava próximo ao Paço Imperial e ao longo da Rua 1º de Março, antiga Rua Direita, mandou que o mesmo fosse transferido para o Valongo que, hoje compreende a atual zona portuária, formada pelos bairros da Gamboa e Santo Cristo. Essa mudança do mercado da Praça XV para o Valongo fez com que o cemitério dos Pretos Novos fosse transportado do largo de Sta. Rita para a rua que ficou conhecida como a antiga rua do Cemitério, depois rua da Harmonia e hoje, Rua Pedro Ernesto pertencente ainda à jurisdição da freguesia de Santa Rita. Entrementes, No final do século XVIII, a concentração comercial no local trouxe um aumento populacional intenso,10 fazendo com que o cemitério fosse cercado de casas. Ocorreu um “adensamento populacional na região do bairro Saúde, Valongo e da Gamboa, onde morros, encostas e enseadas foram paulatinamente ocupadas por residências”.11 O entorno do cemitério foi tomado por casas, geralmente por famílias pobres e que não tinham condição de se mudar da freguesia de Santa Rita, sobretudo negros libertos que precisavam estar junto ao porto e ao centro comercial da cidade para poder ganhar alguns parcos réis. Dessa forma, os vivos, por forças das circunstâncias, se tornaram vizinhos dos mortos. Seguir os vestígios do cemitério dos Pretos Novos é, também, seguir os rastros deixados pelas reclamações e ofícios de queixas contra o mesmo. A partir de 1820, pode-se encontrar vários protestos que descrevem o cemitério da pior forma possível, geralmente versando sobre o mau cheiro ali exalado, 12 e acusando-o dos miasmas que grassavam na cidade.13 Não tardou muito e, em 1821, os vizinhos do “indesejável” cemitério redigiram dois requerimentos endereçados ao príncipe regente, nos quais pediam que o cemitério fosse transferido para um local “mais remoto”, em razão dos grandes males” produzidos à população local. O primeiro destes dizia que os moradores “sofriam” enfermidades, e o segundo destes requerimentos tinha um teor bem parecido: Já não podem sofrer mais danos nas suas saúdes. Por causa do cemitério dos pretos novos, que se acha sito entre eles, em razão de nunca serem bem enterrados os cadáveres; como também por ser mito impróprio em semelhante lugar haver o referido cemitério, por ser hoje ema das grandes povoações....14 Como se pode ver no requerimento a cima, os corpos não eram enterrados, ou seja, eram deixados à flor da terra, sem nenhum tipo de cuidado, o que deve ter feito com que os odores dos cadáveres insepultos incomodassem os vizinhos sobremaneira. No caso do cemitério dos Pretos Novos, o intendente de polícia João Inácio da Cunha solicitou ao juiz do Crime do bairro de Santa Rita que fosse averiguar os fatos. Quando o juiz se dirigiu ao cemitério, teve péssimas impressões e, mais tarde, responderia em outro ofício o que havia constatado. Segundo o seu parecer, o cemitério já era pequeno para tantos corpos o local era “impróprio para semelhante fim”, e, por outro lado, o drama dos moradores era o de agora, depois do crescimento da cidade, se verem lado a lado a um cemitério de escravos. As testemunhas do Valongo foram arroladas e ouvidas pelo juiz do Crime e todas elas contaram a mesma versão: o cemitério incomodava, cheirava mal e estava abandonado. Observando o rol de testemunhas, nota-se que todas eram brancas, apenas um era militar e o restante era em sua maioria comerciantes que, provavelmente, mais do que as suas saúdes, viram ameaçados os seus bolsos, não só pelo empobrecimento da região agora repleto de negros, assim como a certeza de terem os seus negócios arruinados pela proximidade com um cemitério de escravos novos.15 É importante observar que esse número de pessoas arroladas como testemunhas não pode servir como única fonte de amostragem da condição social dos moradores do Valongo; por certo, esses moradores que redigiram as petições tinham acesso às informações médicas que circulavam nos meios de comunicação disponível aos letrados. No ano seguinte, em 12 de março de 1822, o intendente de polícia se dirigiu até a Secretaria de Estado para prestar as informações e sugerir soluções sobre o caso. Em primeiro lugar ele disse que se achava “aquele lugar já quase todo rodeado de casas.” Em seguida, relatou: Pelo lado do fundo está tudo aberto, dividido do quintal de uma propriedade vizinha por uma cerca de esteiras, e pelo outros dois lados com muí baixo muro de tijolos, e no meio uma pequena cruz de paus toscos muí velhos, e a terra do campo revolvida, e juncada de ossos mal queimados.16 Como se pode notar, o cemitério tinha apenas uma cerca de esteiras como fundo do terreno, paredes laterais baixas que davam ao cemitério a impressão de inacabado e uma pequena “cruz de paus toscos”, por lembrança da égide da Igreja naquele local. Em seguida, ele fala do crescimento da população local e ao mesmo tempo dum tráfico intenso que aumentara grandemente o fluxo de escravos que adentravam o porto do Rio de Janeiro: “Se aquele espaço de terreno, e local era suficiente, e próprio para cemitério dos pretos novos no tempo em que foi para isso destinado, não se pode dizer, que o é presentemente”17 Em seguida, o intendente relatou as dificuldades de se encontrar um novo local disponível para este fim e reconhece que o melhor lugar é justamente próximo ao porto. Por último, o intendente dá as ordens para que se melhore o enterramento naquele local: “Que se ordene ao vigário da freguesia da Santa Rita, a cujo distrito pertence o cemitério, que contrate o terreno que lhe fica contíguo para aumentar o cemitério existente”. 18 Os documentos do Arquivo Geral da Cidade não possibilitaram a verificação se o cemitério de fato fora aumentado ou se fora trazida uma “pessoa capaz em fazer enterrar os corpos”. No entanto, as reclamações dos moradores cessaram pelo menos por um tempo e, entre 1823 e 1828, não se ouviu mais falar no cemitério. Em 23 de janeiro de 1829, o editorial do jornal Aurora Fluminense rompeu esse silêncio e publicou uma matéria contra o “cemitério dos Pretos Novos”.19 O teor do publicado é praticamente o mesmo de 1822. Voltavam as mesmas reclamações após seis anos, com os moradores mobilizados novamente para pressionar o poder público. Mais uma vez os vivos já não aceitavam conviver “parede e meia” com os mortos. Outro ponto importante é que o Juiz Bastos, o qual recebera o caso, em 1829, menciona o fato de ter recebido vários requerimentos da parte dos moradores insatisfeitos que clamavam pela transferência do cemitério, o que demonstra que, aparentemente, os moradores continuavam mobilizados em combater o cemitério, a despeito do tempo passado e da luta sem sucesso. “Covas abertas tanto à superfície do terreno, que apenas um palmo resta para cobrirem-se os corpos que nelas se lançam aos pares”, 20 afirmou o juiz, procurando descrever cada vez mais o cemitério mostrando a insensatez que era mantê-lo funcionando. Entretanto, para a frustração do juiz e dos moradores do Valongo, a Câmara respondeu que não seria da sua alçada tomar providências quanto ao assunto, já que a lei de 1828 regulava apenas o estabelecimento de “novos cemitérios” e não o caso de um cemitério tão antigo. O requerente não se deu por vencido e, sem demora discordou da posição da Câmara “dizendo ser da sua atribuição não só a questão de cemitérios antigos, mas igualmente a inspeção da saúde pública”.21 Não foi possível determinar se o juiz foi respondido ou não; nesse momento, ele desaparece de cena sem deixar vestígios, pelo menos aparentes, em relatos ou ofícios. Em 15 de janeiro de 1830 é criada a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro. Em 13 de março de 1830, se deu o último sepultamento no cemitério dos Pretos Novos, fim do cemitério. As pesquisas podem indicar que o fim provável do cemitério, não tenha sido ocasionado pela pressão higienista, nem dos meios de comunicação, ou mesmo fruto do clamor dos moradores. A hipótese levantada é a de que em 1830, por ter se dado o acordo de proibição de tráfico de escravos, firmado entre Brasil e Inglaterra, o Brasil tenha sido forçado a extinguir o campo santo por não poder justificar a existência de um cemitério de escravos recém chegados da África, em face de, pelo menos em tese, não haver mais tráfico negreiro.22 Sabemos que, do século XIV até o século XVIII, o local de inumação foi se diferenciando de acordo com a classe social à qual pertencia o morto, bem como o seu lugar de enterro e o modo de fazê-lo. Entretanto, a desigualdade terrena se refletia na hora derradeira em que, a alma iria prestar contas do que fez por aqui. Entende-se, pois, que logo há separação entre “mortos” e “mortos”, de sorte que os despossuídos desta vida terrena podiam ser lançados em um lugar qualquer, sem assistência, nem ritual fúnebre, ou seja, à flor da terra. Assim, o Cemitério dos Pretos Novos cumpria o seu papel que era o de receber os corpos dos africanos que nem chegaram a ser vendidos e por isso, na hierarquia social deveriam prefigurar em último lugar. Se assim era em vida, também o deveria ser na morte. Desta feita, o cemitério passou a ser um “lugar de reprodução simbólica do universo social.”23 Para os escravos recém-chegados morrer sem um sepultamento digno, ou mesmo sem um sepultamento um corte drástico na manutenção da vida dentro da comunidade. Morrer dessa maneira significava ficar sem linhagem e sem honra, portanto, sem uma perspectiva de vida futura ao lado dos seus antepassados. 24 Além disso, o mar era visto como o um local da travessia para o mundo do além, ou, como na língua banto, a “Kallunga”, que fazia divisa com o lugar onde os mortos habitavam, habitados por homens brancos. 25 É nesse sentido que o conhecimento da cultura africana e o seu modo de encarar a morte nos serve como chave de interpretação para o motivo pelo qual os escravos buscaram filiação a diversas irmandades, como no caso da irmandade do Rosário. 26 Em primeiro lugar eles temiam que seus corpos fossem inumados sem nenhum tipo de ritual, lançados à terra sem nenhum paramento religioso, não porque temessem as covas da indigência, mas porque para eles morrer assim significava, antes de tudo, morrer longe dos seus ancestrais; em segundo, ser sepultado no cemitério dos Pretos Novos significaria, no pensamento africano, a impossibilidade de reviverem junto aos seus do outro lado do Atlântico, no continente africano. Aos escravos, comprados feito mercadorias, fora-lhes vedada a oportunidade de morrer entre os seus, e por eles serem sepultados. Fora-lhes negada ainda, uma oportunidade de ser sepultados, ao menos, conforme a cultura católica, restando-lhes, apenas um poucochinho de terra e um registro sumário em um livro de óbitos onde nem mesmo seus nomes figuraram, pois eram chamados pela forma de preto novo, preta nova, moleque novo, molequa (sic) nova e cria os quais além de possuírem as marcas da ignomínia da escravidão, possuíam, apenas, o céu por testemunha dos seus corpos que putrefaziam-se ao relento. O tema do enterramento pode ajudar a esclarecer o motivo pelo qual os escravos se inseriam nas irmandades, sob os auspícios da igreja, como que praticantes dos mesmos ritos e significados. Muitos trabalhos anteriores julgaram que este fato poderia ser um exemplo de aculturação e até mesmo de dominação, desprezando ou não levando em conta toda a gama de articulações e simbolismos dos quais os africanos já eram portadores em África. No presente texto, evitou-se essa análise um tanto engessada, ao mesmo tempo em que desviamos o nosso olhar para toda uma bagagem cultural trazida pelos cativos que, ao chegarem aqui, amalgamaram e apropriaram-se do que lhes fora concebido para criarem algo novo, 27 diferenciado e único, como no caso das apropriações que fizeram das irmandades, um espaço legítimo e próprio de sociabilidade escrava, representante dos anseios de milhares de cativos em terras estrangeiras. Finalmente, podemos ressaltar que o estudo do cemitério dos Pretos Novos pode, em certa medida, nos revelar como eram as práticas das inumações no Brasil, pelo menos do século XVII aos meados do XIX, e mostrar que, mesmo na hora da alma passar para o além, o cuidado com o corpo inerte nem sempre foi uma preocupação entre os homens que dominavam esse poder. Enterramos o “outro” como alguém eqüidistante de nós e como não merecedor das mesmas considerações que dispensamos aos nossos. Desta feita, a forma e o lugar no qual se é inumado varia de acordo com a posição social do morto, o que nos faz lembrar a oração que dizia, certamente, carregada de outro um sentido: “...assim na terra como nos céus”. 28 Seja qual for a interpretação que possamos dar a essa frase bíblica, o que nos fica é a forte sensação de que a desigualdade terrena espelha uma desigualdade social, onde as práticas inumistas e locais de sepultamento estão carregados de implicações simbólicas. Fontes Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro Livro de Óbitos de escravos da Freguesia de Santa Rita (1824-1830). Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro Códice 58 – 2.1. “cemitério de pretos novos”. Códice 58-2.2. “Posturas sobre enterros”. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro Jornal Aurora Fluminense. nº 145 de 23 de Janeiro de 1829. “Sobre o depósito de pretos novos e a necessidade de um cemitério”. Loc. Pr- sor 36(2), 1829. Parecer de João Inácio da cunha, II-34,26.3. Referências Bibliográficas ABREU, Maurício Almeida. A Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO/Zahar, 1987. ALTUNA, Raul Ruiz de ASUS. A Cultura tradicional banto. Luanda: Secretariado Arquidiocesano de Pastoral, 1985. ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: desce a Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997. ______________. O Homem Diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. (v.1) ______________. O Homem Diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. (v.2) BIRNINGHAN, David. A África central até 1870. Trad. Jorge M. Fragoso. Angola: ENDIPIU/UEE, [1978?] CHARTIER, Roger. História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1990. FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. ______. (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, século XVII-XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2005. GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. _________________. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Cia das Letras, 1987. KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850).São Paulo: Companhia das Letras, 2000. KI-ZERBO, Joseph. 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Identidade Étnica, Religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro no Século 18. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2000. 1 FREYREYSS, G.W. Viagem ao Interior do Brasil. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, EDUSP, 1982. SOARES, Mariza de C. Devotos da Cor. Identidade Étnica, Religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro no Século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 143. 3 GINZBURG. Carlo. A Micro-história e outros ensaios. Tradução de Antônio Narino. Lisboa: Difel, 1991. 4 ARIÈS, Philippe. O Homem Diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. 5 Nesse trabalho, entende-se por banto um grupo lingüístico de várias etnias africanas que vieram sobre tudo para o Rio de Janeiro. 6 Para o historiador Robert Slenes a cultura banto é importante posto que o Rio de Janeiro recebera, durante a vigência do tráfico negreiro, um contingente expressivo de africanos oriundos de regiões que compartilhavam essa mesma cultura. SLENES, Robert W. ”Malungu, Ngoma Vem!” África coberta e descoberta no Brasil. Cadernos do museu da escravatura. N.1. Ministério da Cultura. Luanda. 1995. 7 RODRIGUES, Cláudia Lugares dos Mortos na Cidade dos Vivos: Tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, DGD e Informação cultural, 1997. p. 70. 8 FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 44. 9 FAZENDA, José Vieira. Opus. Cite. p. 350. 10 LAMARÃO, S. T. de Niemeyer. Dos Trapiches ao Porto: um estudo sobre a área portuária do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1991. (Biblioteca Carioca, v.17) p. 29. 11 RODRIGUES, Cláudia. Opus. Cit. p, 71. 12 João Reis, estudando a “cemiterada” na Bahia, chega a conclusão de que a partir de um dado momento, o “cheiro dos defuntos” começa a incomodar as pessoas, principalmente os defuntos que eram inumados nas igrejas, e os enterrados no Campo da Pólvora, o qual passou a desfrutar do ódio dos seus vizinhos. In: REIS, João José. Opus Cit. 13 O historiador J. J. Reis alerta que fora justamente no século anterior, séc. XVIII, que se alastrara por toda a Europa, especialmente pela comunidade científica de França, a doutrina dos “miasmas”, na qual se acreditava que “matérias orgânicas em decomposição, especialmente de origem animal, sob influencia de elementos atmosféricos”, tais como calor, direção dos ventos, “formavam vapores ou miasmas daninhos à saúde”, logo os “gazes” emanados dos cadáveres foram acusados de serem causadores de várias doenças, das quais os moradores do Valongo se queixavam com freqüência. In: REIS, João José. Opus Cite, p. 75. 14 RODRIGUES, Cláudia. Opus. Cit. p, 75. 15 Ibidem 16 Parecer de João Inácio da cunha, intendente geral de polícia, dirigido a José Bonifácio de Andrada e Silva, sobre as reclamações dos habitantes do bairro do Valongo, que pedem que seja removido o cemitério dos pretos novos, que se erguia naquele local. Local: B.N. Rio de Janeiro. Localização: II-34,26.3. 17 Ibidem. 18 Ibidem 19 Jornal Aurora Fluminense. (23 de jan. de 1829. BN. II- 34, 26, 3, ) 20 Ibidem 21 RODRIGUES, Cláudia. Opus. Cite. p, 77. 22 Entre 1824 e 1826, foi firmado um acordo contra o tráfico, assinado em 23 de novembro de 1826. No qual o Brasil se comprometia a extinguir o tráfico negreiro ao fim de três anos. Porém um novo acordo foi tratado para que de 1827, fim do prazo de extinção, fosse prorrogado até 13 de março de 1830. A partir desta data, os negreiros que estivessem atuando no litoral africano teriam um prazo de seis meses para retornarem ao Brasil, porém, como se sabe, está lei se transformou em um verdadeiro engodo, e ficou conhecida como a “lei para inglês ver”. Conf. FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 50. 23 URBAIN, Jean-Didier. La societé de conservation: étude semiologique dês cimetiéres de l’occident. Paris, Payot, 1978.p. 85. 24 SILVA, Alberto da Costa e, A Manilha e o Libambo. A África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Fundação Biblioteca Nacional, 2002. 25 Não só a cor branca significava a morte mas também os homens brancos eram tidos como os próprios mortos, uma vez que habitavam o outro lado da Kalunga. É o que observa Mary Karash quando traz um relato onde um exemplo de “crença de canibalismo”, presenciado pelo francês Dabadie, que presenciara “gritos agudos” de um “escravo novo”, que gritava aterrorizado se escondendo em baixo da cama de um hotel. Espantado o francês procurou indagar aos presentes o motivo do acontecido e de pronto, recebeu explicações de um garçom que lhe afirmara que era comum entre os africanos recém chegados, a idéia de que seriam literalmente devorados pelos brancos. O escravo retirado de baixo da cama, ressalta o francês, “tremia da cabeça aos pés” Cf. KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 78. 26 SOARES, Mariza de C. Opus Cit. p.175. 27 GUINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Trado. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Cia das Letras, 1987. 28 Bíblia Sagrada, Mateus cap. VI-9. Parte b. 2 Associação Juvenil de Estudos Cemiteriais (AJEC) Um sonho conquistado! Kate Fabiani Rigo Mestre em História pela PUCRS. Professora da Rede Particular. Resumo No presente artigo, irei relatar a experiência que venho desenvolvendo há dois anos com alunos de ensino fundamental e médio de uma escola particular da região sul do Brasil. Considerando que grandes parte das depredações aos túmulos e estatuária dos cemitérios são executadas por adolescentes que não dão o menor valor para a preservação patrimonial, considerei importante desenvolver um trabalho informativo sobre o assunto durante minhas aulas de História, que evoluiu para formação de um grupo de teatro e pesquisa, e por fim, numa associação de estudos. Palavras chave: Educação Patrimonial – Cemitério – Artes A comunicação “Associação Juvenil de Estudos Cemiteriais (AJEC) Um sonho conquistado!” tem como objetivo apresentar um grupo de pesquisa cemiterial composto por estudantes adolescentes no Colégio Kennedy. A idéia de montar o grupo surgiu a partir do interesse dos próprios alunos quando, durante as aulas de História, o tema cemiterial era abordado e relacionado com o conteúdo. No começo, poucos se interessaram pela pesquisa e com o decorrer do projeto, comentários se espalharam entre as turmas. Logo, contávamos com um grupo de 15 integrantes. Estava então atingido um objetivo: o que parecia, talvez, tão incomum no ensino médio; a formação de um grupo de pesquisa extra-classe tendo como tema “O estudo cemiterial”, o que veio a despertar curiosidade em torno da temática já que a mesma propicia estudos de cunho histórico-cultural e artístico. Formado o grupo, foram então definidos encontros semanais, onde foram apresentadas as possibilidades de pesquisa sobre a temática cemiterial e uma breve explanação sobre conceitos definidos pela antropologia, história e arte. Contou-se com a exposição e análise de fotografias de túmulos do cemitério da Santa Casa de Porto Alegre, onde os alunos estabeleceram um prévio contato com os objetos de estudo. Com isso tiveram a oportunidade de desenvolver um novo olhar sobre o que antes era culturalmente visto como espaço próprio para manifestações de tristeza. Depois deste contato fotográfico, foi marcada uma visita guiada ao Cemitério da Santa Casa, que teve como propósito a definição das linhas de pesquisa de acordo com identificação pessoal. Durante a visita, os alunos tiveram dois momentos: o primeiro com a orientação de um pesquisador da área e o segundo foi livre, onde os alunos tiveram a oportunidade de explorar o espaço pesquisado. Após a visitação guiada, os alunos tiveram mais um encontro teórico, onde os mesmo tiveram a tarefa de elaborar uma reflexão por escrito sobre a sua percepção do Espaço Cemiterial antes e depois da formação do grupo de estudo. E o resultado deste exercício de análise e reflexão os professores responsáveis pelo grupo elaboraram uma apresentação para ser explanada no II Encontro de Estudos sobre Cemitérios Brasileiros. Para que a comunidade escola pudesse apreciar o trabalho de pesquisa desenvolvido pelos alunos integrantes do grupo extracurricular, foi montada uma exposição interativa intitulada “Conflitos Torturantes, Cemitérios Fascinantes”. O resultado desta exposição foi excelente, já que pais e filhos puderam discutir e compreender que podemos trabalhar com a temática cemiterial numa escola de ensino regular, saindo um pouco do reduto acadêmico. No ano de 2007, o grupo incorporou a prática de técnicas cênicas ao estudo e a pesquisa cemiterial e aumentou significativamente seu número de integrantes. Em menos de seis meses, criou e produziu duas peças infantis e duas intervenções cênicas com a temática cemiterial, além de prosseguir com as saídas de campo aos cemitérios da grande Porto Alegre. O interesse dos alunos de fazerem parte do grupo e a necessidade de se diferenciarem resultou na criação do nosso logotipo e na intenção de transformar esse grupo numa associação cultural que pretende espalhar esta idéia para outras escolas de ensino regular. A novidade de trabalharmos com a temática cemiterial, que tanto assusta as pessoas, com adolescentes está despertando a curiosidade por saber mais e o interesse da imprensa local. Para melhor ilustrar este projeto, pedi para que os alunos fizessem alguns depoimentos e acredito que seja relevante os registrar neste artigo. Segundo o aluno-pesquisador Eduardo Tomasini Nunes: “Antes de conhecer a arte cemiterial, meu conhecimento sobre cemitério era vago. Afinal não tinha interesse sobre o assunto, tinha ido poucas vezes aos cemitérios. Para mim era apenas o lugar onde eram enterradas as pessoas mortas. (...) Após estes estudos e pesquisas que fizemos ao longo destes dois meses, com encontros e uma visita ao cemitério da Santa Casa, pude entender que tudo o que se encontra em um cemitério tem significado. Na maioria das vezes um anjo não colocado em um jazigo sem ter um significado, como tristeza, desolação, consolação, e as colunas também tem um nome especial, como dóricos, jônicos e Coríntia, cada uma com uma arquitetura diferente. Muita gente também encontra no cemitério uma forma de ganhar dinheiro com o vandalismo, ou seja, muitos epitáfios e peças de bronze são roubadas, derretidas e vendidas, um fato que agrava muito este tipo de arte, pois algumas coisas roubadas como se fosse qualquer peça pode ter um valor histórico muito maior que material.” De acordo com Fabrizio Frapf Costa: “Antes, como quase todos os jovens, via o cemitério apenas como “o lugar onde os mortos estão”. Além disso, tinha a visão que é passada pela família de que o cemitério é um lugar ruim. Agora, vejo o cemitério assim como um museu, um patrimônio cultural e histórico que, infelizmente, não recebe a devida importância: o estado não valoriza e não cuida, as pessoas roubam objetos por dinheiro. A pesquisa está me ensinando a valorizar o cemitério como deveria ser (...); apenas com a análise de algumas fotos já entendo um pouco como as pessoas pensavam na época, como a sociedade era, como era a hierarquia familiar. (...) Em suma, o cemitério é uma peça muito importante para o estudo da história. Infelizmente, a sociedade hipócrita em que vivemos não nos mostra isso, jovens não têm a mínima idéia de que um cemitério representa. Felizmente estou tendo a oportunidade e não pretendo desperdiça-la. Obs: Como patrimônio histórico, não deveria o cemitério ser preservado e valorizado como os outros (ex: museu)’? Para Fagner Augusto Silva Ligabur: “Antes de conhecer um pouco da arte cemiterial, eu já ia em cemitério só por ir mesmo, mas agora vi que há coisas muito interessantes em um cemitério; história, arte romana, grega, egípcia, etc. Falando a verdade, a aparte que mais gostei foi a das estátuas, que expressam muitas coisas como dor, consolação, tristeza. (...). Realmente achei muito interessante , não pensei que existiriam coisas assim em cemitérios.” Juliano Freitas Ramos percebe que: “A pesquisa é muito interessante, pois fez eu mudar completamente a minha opinião em relação aos cemitérios. Antes eu não sabia que as fotos dos túmulos podiam ser reutilizadas. Pois há pessoas furtam essas fotos dos cemitérios para vender.. E sem falar nas estátuas que são depredadas pelo valor que tem, como por exemplo, algumas que são de bronze. Fiquei maravilhado com alguns jazigos, são de luxo, mas não foi isso que eu gostei e sim das perfeições dos anjos e estátuas. Muitas famílias enterram seus familiares juntos, eu achei impressionante um túmulo no Cemitério da Santa Casa, não havia foto da família e sim pedras brancas, simbolizando o pai e a mãe e os filhos.” Kenya Lampert diz que : É principalmente aprender a não temer o desconhecido ! É aprender a viver intensamente cada sentimento que a vida nos mostra. É ter feito amigos, é sentir uma emoção enorme quando estamos no palco, representando o nosso esforço, nossa lutas e principalmente, o nome do grupo ! Por fim a aluna- pesquisadora Yádini Winter dos Santos comenta que: “Antes de começar este projeto eu julgava os cemitérios como "depósitos de lixo" e desperdício de dinheiro e espaço geográfico. Admirava as estatuas e arte dos mesmos, mas sem ao menos entender a simbologia que elas representam. Mas agora sei que os cemitérios podem ser muito mais que isso, são ótimas fontes históricas, principalmente com a sua simbologia, que envolve arte também. Agora vejo os cemitérios com outros olhos, os vejo como mais uma fonte de estudo e cultura.” A partir destes relatos percebemos a importância de desenvolver um projeto deste tipo em Escolas do Ensino Médio, já que normalmente a pesquisa cemiterial esta associada ao meio acadêmico. Assim, no ano de 2008, conquistamos o status de Associação Juvenil de Estudos Cemiteriais (AJEC) que tem como fim promover ações culturais que envolvam a temática cemiterial a partir da pesquisa histórica, do teatro, da dança e da literatura. Pretendemos com este grupo e com os próximos que virão conscientizá-los da importância da sua preservação devido aos valores históricos, culturais e artísticos que envolvem o espaço cemiterial. Acreditamos que despertando o gosto pela pesquisa cemiterial em adolescentes estaremos conquistando, futuramente, fortes aliados ao nosso processo de preservação e reconhecimento dos Cemitérios como um Museu a Céu Aberto. Batalha Simbólica: A Resistência ao Efêmero Lenise Grasiele de Oliveira (apoio Fapemig) Resumo As sociedades humanas constroem sistemas protetores para preencher a lacuna instaurada pela morte. Através dos rituais simbólicos, da antropofagia, do luto e da arte tumular, o homem trava uma verdadeira batalha com a não-existência. Há preocupação de “salvar” a individualidade, de presentificar a ausência. Proponho-me a apresentar algumas articulações sobre o assunto através de um enfoque psicanalítico e antropológico. Palavras-chave: morte, batalha, resistência As sociedades humanas constroem sistemas protetores para preencher a lacuna instaurada pela morte. “A idéia da morte propriamente dita é uma idéia sem conteúdo, ou melhor, cujo conteúdo é o vazio sem fim. Ela é a mais vazia das idéias vazias,(...) é o impensável, o inexplorável(...)” (MORIN, 1997, p.33) Através dos rituais simbólicos, da antropofagia, do luto e da arte tumular, o homem trava uma verdadeira batalha com a não-existência. Há preocupação de “salvar” a individualidade, de presentificar a ausência. No inconsciente, cada um de nós está convicto de sua imortalidade, afirma Freud em seu texto “De Guerra e de Morte”(1915) Constatação paradoxal, pois cercamos a efemeridade, tentando de todas as formas transcendê-la. A morte introduz entre o homem e o animal uma ruptura espantosa, isto porque a espécie humana tem acesso a via simbólica introduzida pela linguagem. Tal constatação vai de encontro à afirmação de Edgar Morin(1970) “ A morte introduz entre o homem e o animal uma ruptura mais espantosa que a linguagem.”A espécie humana é a única para a qual a morte está presente ao longo da vida, por isso, desde cedo, refletiu-se sobre ela, tanto nas religiões como na filosofia. A filosofia epicurista acreditava que a alma humana não seria outra coisa que a junção de átomos, estando esses fadados a se separem. Para Epicuro não havia morte, mas união e separação de átomos. Posição que não se sustentava no Ocidente cristão: O Evangelho de Mateus, em relação às tradições pagãs e egípcias em particular, já continha toda a concepção medieval do Além, do juízo final, do Inferno. O antiguíssimo Apocalipse de Paulo descreveria um Paraíso e um Inferno ricos de suplícios (ARIÈS, 1989,p.105). A morte se apresenta através de oposições significativas. Instalada em um determinado sistema de crenças ela representa,simultaneamente, ruptura e continuidade. Acontecimento que cessa a existência biológica do ser e, ao mesmo tempo, anuncia a passagem para um outro plano. Sob esse aspecto, pode-se afirmar que morrer é nascer. Vida, morte e alimento estão intimamente ligados. Nas tribos indígenas brasileiras e nas comunidades primitivas africanas, a morte ritual do inimigo resultava em refeição comunitária. Sustentaríamos que tais grupos praticavam o canibalismo se o ato fosse meramente instintivo. Contudo, alimentar-se da carne inimiga não significava uma simples refeição, o ritual antropofágico sugeria uma conotação simbólica, uma forma de resistência à morte: trazer para dentro de si a carne de seus parentes mortos que, outrora, haviam sido devorados pelo inimigo. E indo mais além, ao alimentar-se dessa carne, acreditavam que conseguiriam apoderar-se da força vital do prisioneiro. No México, como parte do ritual do dia de Finados, é comum ofertar às crianças, doces em forma de esqueletos e crânios com uma legenda que identifica o nome do parente morto. O ritual mexicano, ainda que simbólico, está intimamente ligado à idéia dos indígenas brasileiros de homenagear os antepassados e potencializar os atributos deixados por eles, acrescentando-os à personalidade dos parentes vivos. Los cultos de las reliquias (la parte simboliza al todo), (...) obedecen a esa misma finalidad, se trata frecuentemente, ya de objetos que pertenecieron al difunto, en especial las armas; ya de símbolos aptos para provocar una presencia; ya se osamentas, particularmente los cráneos (THOMAS, 1983, p.523). O culto das relíquias é comum em países africanos como Zaire e Congo. No Ocidente cristão, tal prática é habitual, mas, diferentemente desses países, para que ela aconteça, é necessário que o morto seja santificado pela Igreja Católica. Veneram-se a língua de Santo Antônio, supostas partes da cruz de Cristo, medalhas milagrosas, etc. Entretanto, não só a religiosidade leva ao culto de objetos materiais. Observa Áries(1989) que um fetichismo espontâneo subsiste sempre em nós, estando ele associado à conservação dos objetos que lembram pessoas amadas e respeitadas. O ritual eucarístico que recorda a última refeição de Cristo, pode também, ser analisado como uma forma de antropofagia, visto que pretende “provocar uma presença” através da ingestão do corpo e do sangue de Cristo, materializados na hóstia e no vinho. No texto “Além do Princípio de Prazer”(1920), Freud destaca o impulso inerente à vida orgânica de restaurar um estado anterior de coisas, que ele denomina de compulsão à repetição ou pulsão de morte. Há uma tensão no organismo entre as pulsões do ego e as pulsões sexuais. A vida se movimenta em um ritmo dividido entre as duas. As pulsões sexuais são as verdadeiras conservadoras, já que trabalham “contra o propósito das outras pulsões, que conduzem, em razão de sua função, à morte(...)”(FREUD,1920,p.51). Essa tendência leva a concluir que o objetivo de toda a vida é a morte, pois segundo ele tudo o que vive almeja retornar ao estado inanimado. A perda de uma pessoa querida promove um estranhamento da realidade e uma tentativa desesperada de tentar reter o objeto que lhe escapou. O enredo freudiano do luto pode ser narrado da seguinte forma: quem está de luto se relaciona com o morto como se ele tivesse levado consigo um pequeno pedaço do enlutado. Esse por sua vez, corre atrás do objeto, sem perceber a impossibilidade de conseguir recuperá-lo. O morto é identificado como ladrão. O luto não seria somente pela perda de alguém, mas pelo pedaço de si que aquele que parte, carrega consigo. Se o túmulo designava o local necessariamente exato do culto funerário é porque também tinha por objetivo transmitir às gerações seguintes a lembrança do defunto. Daí o seu nome de monumentum de memória: o túmulo é um memorial. A sobrevivência do morto não devia ser apenas assegurada no plano escatológico por oferendas e sacrifícios, dependia também do renome que era mantido na terra, fosse pelo túmulo com os seus signa, e suas inscrições, fosse pelos elogios dos escrivães (ARIÈS,1989,p.218). Várias são as maneiras de realizar a ruptura total do corpo morto com o mundo dos vivos. Nas antigas civilizações escandinavas e babilônicas era comum o ritual da incineração do cadáver, mas não objetivando, necessariamente, sua destruição. O ato representava a libertação da impureza e do apodrecimento. Entretanto, as cinzas eram guardadas e reverenciadas. Os povos antigos tinham verdadeira aversão à decomposição do corpo. Para eles, o período coincidia com o luto. Todos aqueles que, de alguma forma, tiveram algum contato com o morto eram considerados impuros: a viúva, os filhos e principalmente aqueles que estiveram junto à pessoa, nos seus últimos momentos de vida. É a mesma obsessão da decomposição que num sentido contrário, determinou o embalsamento e a mumificação do corpo praticados no Antigo Egito(...) as cinzas e a múmia egípcia constituem duas vitórias contra a podridão (MORIN, 1997,p.140). A partir do século VI, o temor da morte na religiosidade medieval provoca atos de reflexão e contemplação. É nesse período que surgem os temas macabros que invadem a literatura e a iconografia da Idade Média. A grande mortalidade do “Período das Trevas” acrescentou à morte um aspecto de tragédia e drama excessivos, aspecto esse que deu origem à necessidade de expressão em suas variadas formas. A representação do corpo em decomposição era o que se chamava macabro. Ele iniciava-se com a morte e chegava ao término com o esqueleto dissecado, estando situado na transição do processo. O macabro medieval não tinha por objetivo provocar o medo da decomposição, mas, constatar que o apego exacerbado à vida não impedia sua fragilidade. Para Morin(1970), a sepultura serve para preencher o estado de impessoalidade que o corpo adquire com a morte e, portanto, até os povos mais bárbaros tinham a preocupação de enterrar seus mortos. No mito grego de Antígona, a filha de Édipo luta para oferecer ao irmão Polinices o direito à sepultura, violando a ordem do rei. Como castigo, é condenada à morte. O que caracteriza a espécie humana é justamente cercar o cadáver de algo que constitua uma sepultura, de sustentar o fato de que isso durou. A lápide ou qualquer outro sinal de sepultura merece o nome de símbolo. É algo humanizante (LACAN,2005 p.36). Lacan defende que tudo que é humano deve ser conservado como tal, justificando o esforço do homem para fazer subsistir tudo que, sob algum aspecto, denota humanidade e sobretudo, o próprio homem. Nessas condições, o ritual se constitui como indispensável, porque permite instaurar a estabilidade e a ordem perdidas com a morte. O fato é que essa se tornou prisioneira daquele que, outrora, pretendia dar-lhe um caráter de dignidade. Basta observar o mecanicismo do comportamento humano nos funerais, de modo que, alguns chegam a adquirir um aspecto de comicidade. Lo comico del duelo no está fuera del alcance del análisis fenomenológico. Basta con haber tenido contacto un tanto lateralmente con las reacciones del entorno de un muerto para verlo aflorar: frases vanas proferidas entonces, rara son las ocasiones en que la palabra suena más falsa,(...) gestos o gesticulaciones notables (emotivos abrazos repentinos entre personas que, salvo en esas circunstancias, se ignoram(...) (ALLOUCH, 2006,p.25). É como se a ritualização do velório se transformasse em um teatro superficial, dando espaço para atitudes exaltadas e algumas vezes, falsas. Em contrapartida, a ausência de ritos e por conseguinte, a não vivência subjetiva do luto, resulta naquilo que Allouch(1996) denomina de morte seca, metáfora apropriada para representar a pobreza de rituais simbólicos do homem ocidental. Desnudar a morte de rituais e se comportar com indiferença, cria no homem, a ilusão de um afastamento em relação a ela. Observa Ariès que, no século XX, a morte não tem mais o caráter de generalidade absoluta. Ela não desestabiliza a vida coletiva, sendo escamoteada e reservada ao ambiente hospitalar. Entretanto, desmistificar o temor à morte não significa banalizá-la, ou transformá-la em morte seca. Significa aceitá-la e assegurar a ela o seu devido lugar com a riqueza de seus rituais simbólicos e com a experiência subjetiva do luto. A idéia de finitude deve estar presente em nova vida mas, não com uma complacência alienada, de quem acredita que não pode aprender com ela. Referências Bibliográficas ALLOUCH,J. Erótica del Duelo en tiempos de la muerte seca.Buenos Aires: Ediciones Literales,2006 ARIÉS, P. O Homem diante da morte . Vol. I e II, 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. FREUD,S. Reflexões para os tempos de guerra e morte. Trad. Jayme Salomão. In: Obras completas (vol.XIV, pp. 310-341) Rio de Janeiro: Imago 1974. (Publicada originalmente em 1915). _______. Luto e Melancolia. Obras Completas, Vol. XVI ed. Standard, 1917. _______. Além do princípio do prazer. Obras Completas, Vol. XVIII, ed.Standard,1920 KOK, G. Os Vivos e os Mortos na América Portuguesa: da antropofagia à água de batismo. Campinas,SP: Editora da UNICAMP,2001 LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. ________. Nomes do Pai. Trad.André Telles.Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2005 MORIN, E. O Homem e a Morte. Trad.Cleone Augusto Rodrigues.Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1997 THOMAS, L.V. Antropología de la muerte. México:Fondo de Cultura Económica, 1983 A balavra para o historiador da arte – a palavra como historia da arte: O Noticiário Semanal da Casa Aloys e algumas considerações a partir dos escritos de Jacob Aloys Friederichs Luiza Fabiana Neitzke de Carvalho Bolsista CAPES - Mestrado em História, Teoria e Crítica –PPGAV/ UFRGS. Resumo Este artigo hrocura fazer uma análise da contribuição do registro escrito para a pesquisa em arte funerária, bem como para reconstrução de uma possível história a partir dos mesmos. A intenção é apresentar além dos escritos, algumas questões pertinentes para a análise da práxis desenvolvida pelas marmorarias, que pontuam valores que transitam entre o postulado da arte e o ofício relativo à arte fúnebre. Palavras-chave: Arte funerária, marmorarias, Jacob Aloys Friederichs. Junto às imagens, o documento escrito constitui uma das principais evidencias para o pesquisador da arte e a escrita pode aparecer de forma complementar ou autônoma. O documento escrito é um achado que atua como confirmatório e indicial – ele acusa as diretrizes que devem ser estipuladas no trabalho da pesquisa histórica. Para o pesquisador da arte funerária, a escrita vai aparecer nos epitáfios, nos documentos de trabalho dos artistas e artesões (anotações, notas fiscais, orçamentos, textos publicados em anuários, jornais e álbuns) e obviamente na fundamentação teórica. A escrita é junto da fotografia, registro indispensável. Ainda mais que a fotografia, ela constitui o corpo quase total de um relatório de pesquisa, tal como em uma dissertação. A fotografia captura uma imagem e a palavra, a descreve. A escrita da palavra é a forma de tornar os pensamentos perenes. Aprisionar as idéias que escapam incessantemente ao pensamento. É reler e lembrar. Em minha pesquisa, procuro estabelecer uma correspondência entre a arte funerária encontrada nos cemitérios de Porto Alegre e a presença de referenciais provenientes de um repertório cultural do paganismo, que se dá pela adoção de certos índices iconográficos nos túmulos. Naturalmente, a carga histórica deste trabalho vem à tona quando tento traçar as possíveis origens ou procedências destes índices iconográficos, seja pela inspiração que moveu seu uso, seja pela fatura das peças. Buscando documentos para amparar uma possível história da arte funerária para o RS, felizmente me deparei com um item raro e essencial na pesquisa: o álbum de 1945-1950 publicado pela Casa Aloys, estabelecimento que considero o mais importante dentre os que ofereceram ornamentação para os cemitérios gaúchos. Em 1884, o imigrante alemão Miguel Friederichs fundou uma oficina de mármores na cidade de Porto Alegre: NOVA OFICINA DE CANTARIA Aos habitantes de Pôrto Alegre e arredores faço público que estabelecime nesta praça com uma oficina de cantaria que se acha situada no Caminho Novo N.º 62. Pelo longo tirocínio e dispondo de material superior, estou habilitado a aprontar Monumentos e fornecer Cantaria e Ornamentos para obras segundo quaisquer desenhos e gostos. Porto Alegre, Janeiro de 1884. Miguel Friederichs. NB. Um aprendiz robusto que queira aprender a profissão de cantaria encontrará aqui colocação. Casa Aloys Ltda. Indústria do mármore, granito e bronze. Casa Aloys: 1884-1949. Pg.9. O aprendiz a quem Miguel se refere viria a ser Jacob Aloys Friederichs, irmão de Miguel, que compra a oficina em 1 de fevereiro 1891 e passa a chamá-la de Casa Aloys. Sendo escassos registros sobre a temática arte funerária, e principalmente, escritos dos envolvidos com o processo, tais como artistas ou artesãos, textos que elucidem ou ambientalizem as peças que hoje chegam até nós por meio dos cemitérios são como relíquias e por mais gerais ou meramente registrais que sejam, atuam como dispositivos que autenticam os dados levantados no processo da pesquisa e amparam os argumentos decorrentes da mesma. Assim, apresento aqui um texto de autoria de Jacob Aloys Friederich, Mestre da Casa Aloys, onde discorre sobre seu episódio na Exposição de 1901 dando-nos pistas para refletir sobre o status da ornamentação funerária como uma produção meramente profissional - um ofício, ou como arte. A GRANDE EXPOSIÇÃO ESTADUAL DO RIO GRANDE DO SUL – 1901 Sob a direção do notável e benemérito Presidente do Estado Dr. Antonio Augusto Borges de Medeiros, e, do igualmente operoso e benemérito Intendente Municipal, Dr. José Montaurí de Aguiar Leitão, foi organizada nos anos de 1899 e 1900, uma exposição estadual, que foi inaugurada solenemente em 24 de Fevereiro de 1901; esta exposição, foi um grande êxito para o Estado Sulino do Brasil, tanto para suas fontes de produção, como para a indústria e profissão, para a arte e a arte profissional, assim como para o Governo do Estado. O mestre Aloys, expôs o seguinte: Um monumento em Grêz Um monumento em mármore. Uma cruz em mármore com o cruxificado Uma cruz em mármore ricamente ornamentada com flôres. Estes trabalhos fizeram juz a medalha de ouro pela Secção de Belas Artes. Sôbre êste assunto, o mestre Aloys relata mais alguns pormenores: Os trabalhos acima mencionados, tinham sido classificados naturalmente no grupo <<Artes Profissionais>> e julgados pelos juizes dêste grupo. Entre estes juizes se contava o Snr. Joaquim da Silva Ribeiro, proprietário de uma das primeiras fábricas de artigos de cimento. Durante a inspeção e exame dos dois monumentos, êste Snr., quando, como perito, verificou que as duas coluninhas laterais do Monumento em grês havia sido executadas no próprio bloco, quasi teve um extasi profissional; ele caminhava em redor do Monumento, chamando a atenção de seus colegas de julgamento para esta maravilha da arte profissional. Assim como o monumento e as cruzes de mármore foram aprovados como muito bom, o laudo dos juizes foi: Medalha de ouro com distinção. A decisão e confirmação final estava em mãos do presidente da exposição, sendo também presidente dos juizes de julgamento. Dr. José Montaurí de Aguiar Leitão, Intendente Municipal. Aguardei com crescente impaciência a publicação no jornal oficial <<A Federação>> o edital com o resultado do julgamento. Porém, em vão, até que um dia fiquei ciente de que o Dr. Montaurí, não havia confirmado o vereditum dos juizes, classificando-os no grupo de artes profissionais e que haviam transferido meus trabalhos para o grupo <<Belas Artes>>. Quasi me sentí lisonjeado com esta transferência para o elevado grupo de Belas Artes, porém, logo, o meu indefectível realismo, me disse que neste elevado grupo, poderia ser-lhe conferido apenas a medalha de prata. No grupo Arte profissional, no qual meus trabalhos verdadeiramente pertenciam – a medalha de ouro com distinção –e, no grupo mais elevado, no qual foram classificados erradamente, talvez só a medalha de prata! – Isto era uma injustiça, contra a qual tinha de protestar. – Imediatamente me encaminhei para a Intendência Municipal, afim de falar a respeito com o eminente e popular intendente Dr. Montaurí. Quando subia as escadas no edifício da intendência, encontrei no corredor o Sr. Dr. Montaurí, em palestra com auxiliares e visitantes. Perguntado qual o motivo de sua visita, formulei o meu pedido e reclamação. O snr. Dr. Montaurí, porém, não estava inclinado a ceder e dentro de poucos momentos, estabeleceu-se uma agitada discusão tendo o Snr. Dr. Montaurí terminado com voz alterada: <<e eu lhe declaro que os seus trabalhos pertencem ao grupo <<Belas Artes>> e aí serão julgados>>. – Retrucando também com voz mais alta: <<eu lhe declaro, que o Snr. está enganado, os meus trabalhos pertencem ao grupo <<Artes profissionais>>, e eu lutarei pelos meus direitos.>> - E agitado me retirei correndo escada abaixo, porém, chegando em baixo, verifiquei que havia esquecido meu chapéu e guarda-sol. Imediatamente voltei, subindo a escada apressado de dois a três degraus. Lá encima ainda estavam em animada discussão, o Dr. Montaurí e os outros Snrs., quando apareci. O Dr. Montaurí instintivamente deu um passo atraz, assim como quem espera um ataque. Quando notei êste fato, nesse momento então o meu humor rhenano venceu a agitação, e meu aborrecimento desapareceu, e com algumas palavras clarou-se a situação, peguei no chapéu e no guarda-sol e – me despedi. Uma semana após êste episódio encontrei-me com o Dr. Montaurí em companhia do Snr. Major Alberto Bins, no parque da exposição; um pouco mais tarde o Snr. Bins comunicou-me que por ocasião daquele encontro, o Dr. Montaurí lhe disse: <<Agora pode estar tranquilo, êle recebeu a medalha de ouro em Belas Artes>>. Porém, a primeira orgulhosa alegria, estava um pouco turvada para mim. Casa Aloys Ltda. Indústria do mármore, granito e bronze. Casa Aloys: 1884-1949. Pgs. 54, 56, 57. Figura 1: as obras premiadas na Exposição Estadual de 1901 em Porto Alegre. O texto transcrito acima relata uma situação participada pelo Mestre Aloys, projetista e canteiro da Casa Aloys mármores e granitos. A partir deste escrito podemos pensar: - Que já no primeiro parágrafo é pontuada uma distinção entre arte e arte profissional. - Que os trabalhos do Mestre Aloys, ao serem enquadrados na categoria arte profissional denotam uma condição relativa à profissão ou ofício, sendo um produto de uma firma ou de um trabalho plausível de venda, já que a condição de profissão subentende aptidão para designar algum serviço. - Como arte profissional, os trabalhos apresentavam uma execução primorosa – por isso arte, e tal primor ofereceu a possibilidade de elevá-los a categoria da arte somente – desvinculando sua fatura do ofício profissional (que designa também uma relação pedido-encomenda) e colocando-a em uma condição mais autônoma na sua execução, mesmo sendo ainda uma encomenda – ou o que poderíamos definir como o talento do artista. - Na categoria arte profissional o trabalho poderia ser agraciado com medalha de ouro pela sua primazia, já na categoria arte o trabalho iria receber apenas medalha de prata, o que não está claro se é uma limitação da categoriaque chegaria apenas ao nível prata ou se uma limitação da fatura do trabalho – que como arte profissional poderia ser ouro, mas como arte apenas prata. Destas hipóteses, inferimos ainda outras considerações: a) se o trabalho vale ouro como profissional e prata como arte, a arte funerária na época era vista mais como um ofício do que como uma obra de arte. b) se a categoria arte chegava apenas ao nível prata, a arte estava subordinada ao profissional, sendo relegada a um nível secundário e a profissão sendo muito mais valorosa que a criação. - O Mestre Aloys reconhece que o grupo das artes é o mais elevado e por um instante sente-se lisongeado com a elevação de sua produção ao estatuto da arte. Porém seu anseio é o de que seus trabalhos sejam reconhecidos como nível ouro, atribuindo mérito à sua laboriosa execução em monumentos, mesmo que para isso continuem pertencendo ao nível profissional, defendendo-os como produto de seu ofício, reconhecido no Estado. - O mestre defende seus trabalhos como profissionais e não como arte. A medalha ouro lhe é atribuída na categoria arte, mas este sente-se aborrecido, pois ao que se subentende, a medalha foi concedida não pela argüição do mestre, mas pela ocasião do encontro – talvez pela influência do próprio Alberto Bins. O aborrecimento de Aloys pode ser atribuído ainda ao fato de que este gostaria de receber a medalha de ouro como artes profissionais, da forma que fora julgado pelos juizes da exposição e não como arte, como fora avaliado por Montaurí. Desta análise dos fatos, podemos entender que o próprio Mestre Aloys via mais sua produção como ofício do que como arte, o que apresenta um ponto de vista importante entre a querela das artes menores e das artes por excelência. A execução da arte funerária envolvia a repetição e a produção seriada ou moldada de certos elementos, justificando sua condição profissional ou industrial. Porém, não podemos excluir a fatura de peças únicas, que requerem alto grau de habilidade elevando o executor da obra a categoria de artista ou a obra a categoria de arte. O próprio Mestre Aloys reconhece a autoridade de André Arjonas, escultor atuante na Casa como artista: (...) ANDRÉ ARJONAS, 1901 até hoje! – Este verdadeiramente genial artista entrou como aprendiz em 1901 e em menos de 10 anos era o escultor e criador de projetos e o artista da casa, o qual juntamente com o mestre Aloys em reciproco complemento proporcionou o desenvolvimento artístico da Casa Aloys. Casa Aloys Ltda. Indústria do mármore, granito e bronze. Casa Aloys: 1884-1949. Pg. 104. Mais que isto, reconhece a importância do desenvolvimento artístico como uma condição valorosa ao ofício de sua Casa, e por conseqüência da arte funerária. É justamente a fatura da peça como única, que aparece no escrito como o ponto que impulsiona a mudança da categoria para os trabalhos em questão, quando o juiz, Dr. Joaquim da Silva Ribeiro verificou que as duas coluninhas laterais do Monumento em grês havia sido executadas no próprio bloco, o que evidencia a execução do labor dispensando moldes ou outros artifícios referentes à duplicata e a produção serial. Analisamos neste ensaio alguns dos escritos encontrados no Noticiário Semanal da Casa Aloys, publicado por Jacob Aloys Friederich, por ocasião dos 100 anos do fundador da casa (Miguel Friederichs) e dos 65 anos da fundação da mesma. Definido pelo autor como um calendário-folhinha, o álbum conta a história da oficina de mármores e cantarias, apresentando reproduções de documentos, brasões de família e variadas fotografias. Friederichs foi um líder atuante na comunidade germânica do Rio Grande do Sul. Na tese de doutorado A trajetória de uma liderança étnica – J. Aloys Friederichs (1868-1950), Haike R. K. da Silva investiga o papel de Friederichs na sociedade e apresenta em seu relato o caráter de escritor do qual ele se utilizava para apresentar suas idéias. A autora define o Noticiário Semanal como uma autobiografia de Friederichs como um personagem, empresário e envolvido com a arte funerária gaúcha. Ele produz o anuário ao editá-lo, organizá-lo e finalmente, assinar como autor: (...) Reproduzirei, em conseqüência,nas presentes páginas de retrospeto histórico a evolução da atual Casa Aloys Ltda., usando da forma descritiva e da ilustração, tal como um filme de indústria que, por vezes, será até uma modesta pelicula de arte. Pôrto Alegre, Janeiro de 1949. Mestre ALOYS. Casa Aloys Ltda. Indústria do mármore, granito e bronze. Casa Aloys: 1884-1949. Pg. 1. Concluímos que o documento em questão representa um dos mais importantes registros sobre a arte funerária no Rio Grande do Sul, e que a partir de seus textos, propiciou a explanação das questões levantadas neste ensaio. Uma análise mais minuciosa e completa pode gerar um relatório fidedigno da pesquisa, apresentando com originalidade o surgimento e o ápice da arte funerária na caracterização dos cemitérios modernos do estado, já que o anuário de Mestre Aloys ilustra túmulos que hoje são quase perdidos no esquecimento em que jazem as necrópoles, entre o ritmo veloz da vida (pós-moderna) que simplifica o túmulo e supre o momento de reflexão e o espaço de convívio que foram estes cemitérios em outros tempos. Referências Bibliográficas DAMASCENO, A. Artes plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. Globo, 1971. FRIEDERICHS, J. A. Noticiário Semanal. Histórico da Casa Aloys Ltda. Indústria do mármore, granito e bronze. Oferecido aos seus amigos e fornecedores em comemoração aos 65 anos de sua fundação e atividade:1884-1949. Para o ano de 1950. Porto Alegre: Sul Impressora, 1950. SILVA, H. R. K. A trajetória de uma liderança étnica J. Aloys Friederichs (1868-1950). Tese de doutorado. Porto Alegre, UFRGS, 2005. CEMITÉRIOS OITOCENTISTAS, CEMITÉRIOS ROMÂNTICOS: uma interpretação acerca das necrópoles luso-brasileiras. Marcelina das Graças de Almeida Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais Faculdades Promove de Sete Lagoas/MG Resumo Esta comunicação tem como objetivo avaliar as características inerentes aos espaços fúnebres que se configuram nos cemitérios oitocentistas. Nascidos na confluência de uma série de fatores que perpassam pela reordenação social, política e mental; a urbanização, a absorção e aplicação dos discursos médicos e higienistas; a consolidação da burguesia como classe dirigente, a supremacia do individualismo e a adoção de novas condutas em relação aos mortos e à morte; os espaços de enterramento, naquela ocasião, tornam-se lugares de especial significado para o entendimento dos sentimentos e do imaginário. O foco é o Cemitério do Nosso Senhor do Bonfim de Belo Horizonte e os Cemitérios Agramonte e Prado do Repouso, situados na cidade do Porto em Portugal. Palavras-chave: cemitérios oitocentistas, Belo Horizonte, Porto. L’histoire de l’humanité peut s’ecrire á l’aide des seuls tombeaux. Pierre de Bouchard Cuidar e zelar pelos mortos é um gestos de civilização, entretanto o hábito de transformar os templos, os lugares de culto divino, em repositórios de cadáveres traduziam-se exatamente na antítese daquilo que seria civilizado, moderno e adequado ao progresso humano, pelo menos este era o ponto de vista da elite “esclarecida” em meados do século XVIII e início do século XIX. As sepulturas ad sanctos apud ecclesium fazem parte de um rito religioso que marcou o comportamento cultural do homem ocidental durante séculos e a coabitação entre mortos e vivos, num mesmo espaço, não era considerado um problema. Entretanto em meados do século XVIII esta questão entra em pauta de discussão, tornando-se intolerável a convivência. O aumento populacional nos séculos XVII e XVIII somado à urbanização crescente ampliou a sensibilidade no tocante à impropriedade dos sepultamentos ad sanctos.Entretanto além destas questões outro fator condicionador de mudanças no tocante ao lugar dos mortos, foi a disseminação do pensamento iluminista que eclodiu no século XVIII, tendo seu ápice na evolução dos eventos que culminaram na Revolução Francesa. Foi a partir do século XVIII que uma elite letrada e instruída ampliaram o discurso acerca da necessidade de se coibir os enterramentos nas igrejas. Estes questionamentos não se restringiram à França iluminista, mas repercutiram por vários países europeus, com maior ou menor intensidade. Em Roma, 1706, o papa Clemente XI era aconselhado pelo Monsenhor Giovanni Maria Lancesi a erguer cemitérios fora da urbe romana, e o reverendo Lewis, na Inglaterra, editou, em 1721, uma obra alertando acerca dos riscos dos sepultamentos eclesiásticos. O mesmo sobreaviso pode ser constatado nas obras dos franceses Haguenot e do abade Charles-Gabriel Porée, respectivamente Mémoire sur les Dangers des Inhumations e Lettre sur la Sépulture dans les Églises, ambas datadas dos meados dos setecentos. Este debate levado a cabo pela elite ilustrada representada por membros da igreja, nobreza e burguesia acabou por influenciar os atos políticos que buscavam reorientar o cuidado com os mortos e os cemitérios. Podemos citar como exemplos a determinação do Parlamento, em Paris, 1737, sobre avaliação científica dos problemas de salubridade e dos enterramentos na cidade. A discussão foi retomada em 1763, e no final do século XVIII, 1776, ocorreu a Declaração do Rei Luís XVI proibindo os enterramentos nas igrejas, acontecimento que culminou na desativação do cemitério medieval de SaintsInnocents em Paris. Este cemitério era o principal da cidade. Localizado intramuros ocupava um quarteirão, possuía um grande claustro, assemelhando-se ao Campo de Pisa (1277). Após um estudo das condições sanitárias dos cemitérios parisienses, realizado em 1777, detectou-se que os cadáveres haviam rompido os limites do cemitério e já invadiam os subterrâneos das casas. Revelava-se inadequado, inconveniente. Possuía fossas comuns que eram esvaziadas de 30 em 30 anos, quando os ossos eram alocados em uma cripta. Em 1780 em razão da “invasão” dos corpos, dos vapores e mau cheiro, o mefitismo, decretou-se o encerramento do cemitério com a demolição cinco anos após. A efetiva laicização dos cemitérios franceses consolidou-se com a culminância da Revolução Francesa (1789) que impôs um novo modelo de organização social e, por conseguinte afetou o universo da morte, e do culto aos mortos. A secularização da sociedade refletiu na laicização dos ritos fúnebres, indicando até mesmo um sinal de desrespeito em relação aos mortos. Entretanto foi sob o pulso forte de Napoleão que se regulamentou a questão dos cemitérios e normalizou o culto aos mortos. A Lei de 12 de junho de 1804 (Decreto do dia 23 Prairial Ano XII) proibia os sepultamentos em qualquer edifício religioso, independentemente de credo; em qualquer ambiente fechado ou que estivesse no espaço urbano. As normas de higiene eram claras e rígidas e seriam fiscalizadas pelas autoridades civis. Este decreto deu origem ao Cemitério Père Lachaise, o mais famoso e referência para maioria dos cemitérios que surgem no século XIX. Estas ações repercutiram tanto no Velho quanto no Novo Mundo. A Espanha sofreu influências do modelo francês na constituição e implantação do Cemitério de Málaga e, em Portugal, a instalação dos cemitérios fora do espaço das igrejas espelha, em parte, a abrangência deste modelo. No Brasil, esta matéria vinha sendo estudada desde o final do século XVIII, ocasião em que D. Maria de Portugal, em 1789, orientava para a construção de cemitérios na colônia. No início do XIX uma através de Carta-régia determinava-se a proibição dos enterramentos nas igrejas e ordenava-se a construção de cemitérios pelo bem da saúde pública. Em 1825 uma nova portaria legisla sobre os sepultamentos. Em 1828 o Imperador decretava, através da Lei de 28 de outubro, o fim dos sepultamentos nos recintos religiosos, conferindo às câmaras o dever de zelar e fazer cumprir as normas. Apesar destas leis não terem sido colocadas em prática, de forma efetiva, revelam a crescente preocupação do poder público na matéria concernente ao lugar dos mortos, bem como o interesse o em sanear e higienizar as cidades. Em Portugal, até os idos do século XIX, era difícil estabelecer uma distinção entre “cemitério” e “igreja”. A construção de espaços de enterramento estava, por norma, condicionada à prévia existência de uma igreja ou capela. Era a forma aceita como prática sacralizadora, conferindo dignidade e respeito ao cemitério. Por outro lado qualquer igreja era, salvo exceções, lugar propício para sepultamentos. Em situações de emergência, como epidemias, guerras, crises geradoras de mortandade excessiva, construía-se cemitérios provisórios. Estes, geralmente, eram alocados junto a colinas, próximos às capelas ou em locais isolados, sendo abandonados após uso emergencial. Eram retomados mediante novo susto. A despeito das leis e interesses, as razões que culminaram na construção dos cemitérios públicos em Portugal, se justificam diante da uma necessidade, da urgência imposta pelos fatos. As epidemias, em especial, a cólera foi mais convincente que as idéias liberais e iluministas, naquilo que se referem à adoção dos novos modos de sepultamento e culto aos mortos. As epidemias que varreram o país entre 1833 e 1855 reforçaram de modo contundente, a imperiosidade da medida e acabaram por condicionar o nascimento dos cemitérios fora dos espaços da igreja. Os cemitérios portugueses e os do Porto em particular, apresentam características que os tornam singulares face aos outros cemitérios seculares. Embora construídos fora do espaço sagrado das igrejas, só eram considerados dignos de uso depois de serem consagrados, todos deveriam ter uma capela para celebração dos cultos, ou seja, embora públicos mantiveram-se sob a égide da Igreja Católica. Se não eram administrados diretamente, certamente eram dirigidos sob o ponto de vista da fé. No Porto os cemitérios públicos oitocentistas, além da existência das capelas e da benção oficial possuem espaços privados dirigidos pelas ordens religiosas. Era uma solução para o aceitamento, por parte da população essencialmente católica, dos cemitérios públicos como espaços dignos ao uso, uma forma de contornar a estranheza provocada pelas mudanças. A cidade do Porto possui onze cemitérios. Sendo dois municipais, três particulares e seis paroquiais. Em dezembro de 1839 foi inaugurado o primeiro cemitério público da cidade do Porto, o Cemitério do Prado do Repouso, numa vasta quinta que pertencia ao bispado. Neste local seriam sepultados os portuenses mais pobres. A elite e os mais ricos preferiam a inumação no Cemitério da Lapa ou nos cemitérios das Ordens e Irmandades. Desta forma o Prado do Repouso ficou estigmatizado durante muitos anos como um lugar indigno para os sepultamentos. Entretanto, em 1855, uma nova epidemia grassou pelas ruas do Porto e um novo espaço de enterramento público teve que ser erguido, era o Agramonte. O fato de ter sido construído para inumação dos coléricos, fez com que a população passasse a olhar o Prado do Repouso de um modo diferente. Prado do Repouso é o nome mais romântico de todos os cemitérios em Portugal considerando, inclusive, que esta alcunha suaviza a difícil função que cumpre. É dividido em seções, sendo que sessenta e cinco administradas pelo município, enquanto as seções privadas são dirigidas pelas respectivas ordens religiosas que as mantêm. São elas a da Santa Casa de Misericórdia, Irmandade de Nossa Senhora do Terço e Caridade e a Confraria do Santíssimo Sacramento de Santo Idelfonso. De planta triangular é organizado espacialmente como um grande tabuleiro cortado por duas alamedas sob forma de cruz latina. O Prado possui crematório, miradouro, a capela dedicada a São Vítor, além de ter sido erguido recentemente um monumento evocativo aos cento e cinqüenta anos de aniversário do cemitério. Figura 1, Alegoria da Saudade, Cemitério do Agramonte, Porto. Arquivo Particular da autora. Em 1855, outro espaço público para enterramentos foi instalado na cidade. Mais uma vez reticência e rejeição. Era o cemitério ocidental, sito no lado oposto ao Prado. Nasceu sob a pressão da nova onda epidêmica do cólera. No ano de 1846, a Câmara Municipal manifestava a necessidade de se erguer um novo cemitério no outro extremo da cidade. Entretanto, só nove anos depois, foi destinado um terreno na parte ocidental do Porto para instalação de um novo local de inumação, face à epidemia do Cholera-morbus. Foram desapropriados os terrenos pertencentes a uma Quinta, a Quinta do Agra Monte, patrimônio de uma família da cidade. A benção do novo espaço realizou-se a 2 de setembro e para os serviços fúnebres construiu-se uma capela de madeira, que viria a ser substituída por um prédio condigno alguns anos adiante. A princípio tendo sido construído para inumação dos coléricos, o Agramonte não era bem visto pela população que, na altura já utilizava o Prado do Repouso. Em 1869 o Agramonte passou por uma reestruturação tornando- se mais atrativo. Foi inclusive negociada junto ao poder público a cessão de espaços privativos às Ordens Terceiras. Sendo elas: do Carmo (1869), São Francisco (1871) e Santíssima Trindade (1872). O Agramonte está organizado sob um traçado quadrangular. É dividido em cinqüenta e uma quadras administradas pelo município e as seções privativas estão sob a jurisdição das respectivas ordens. Como previsto há a capela para a realização dos ofícios fúnebres. O Cemitério do Nosso Senhor do Bonfim, ao contrário, dos cemitérios portuenses não nasce sob a pressão de uma epidemia, entretanto não deixa de ter uma ligação com os princípios higienistas que caracterizam o século XIX. O Bonfim é parte de uma estratégia de planejamento e concepção de uma cidade moderna. O referencial para os engenheiros, técnicos e planejadores da cidade será, basicamente, o universo europeu. As reformas operadas na cidade de Paris através do Barão de Haussmann, em 1853 e a urbanização da Ringstrasse em Viena, quase que no mesmo período, serão modelos freqüentemente referenciados e copiados pelos técnicos que pretenderam, aqui, erguer uma cidade totalmente nova e que refletisse todas as conquistas que o século XIX havia aberto ao mundo a partir da consolidação da Revolução Industrial e das novas percepções em relação ao planejamento e estética urbana. Deste modo, portanto, desde a planta até as construções, o planejamento e delimitação de características eram criteriosamente pensados. A ordenação era o princípio de tudo, havia lugares definidos para todos os equipamentos necessários para o funcionamento da capital. A organização da cidade impunha aos seus moradores os lugares e os espaços que deveriam ocupar. A grande avenida contornava, delimitando até onde a modernidade urbana deveria alcançar. Camada protetora que abrigava em seu interior a tão sonhada e feérica cidade com suas ruas desenhadas à régua e compasso, prédios previamente concebidos adotando modelos arquitetônicos e estéticos que pudessem em toda sua carga simbólica revelar os novos tempos. Foi, então, deste novo contexto que o Arraial do Belo Horizonte desapareceu sob o pó levantado pelas picaretas em contínuo e laborioso empenho para concretizar os desenhos das pranchetas. E foi neste movimento que a morte foi banida do centro urbano da capital. Cidade de espacialidade definida, todos os habitantes, inclusive os mortos, tiveram seu lugar demarcado na nova capital de Minas Gerais. E se havia projetos para os vários espaços a serem ocupados na cidade, o do cemitério foi, também, pensado. O terreno com área aproximada de cento e setenta mil e trinta e seis metros quadrados, num local conhecido como “Menezes”, distante seiscentos e cinqüenta metros do perímetro urbano foi o ponto escolhido. O lugar era alto e arejado, de solo seco e argiloso - arenoso, tendo em sua proximidade uma pedreira o que facilitaria a construção. As obras de preparação dos terrenos e construção do cemitério e necrotério foram iniciadas tendo como empreiteiro o Conde de Santa Marinha. A localização estratégica do cemitério nos fornece subsídios para compreendermos as atitudes mentais da época. O cemitério deveria ser amplo, arejado, a céu aberto, ocupando espaço suficiente para expansão e abrigo dos mortos que a cidade dos vivos, naturalmente iria produzir, sem, contudo perder o caráter de modernidade sob a qual era engendrada. A região onde está situado o cemitério é também conhecida como Lagoinha. A Lagoinha é mais antiga que a própria Belo Horizonte. Situada na região nordeste, há alusões à sua existência em documentos datados de 1711 como limite da Fazenda do Cercado, tendo ganhado este nome em decorrência das constantes inundações causadas pelas enchentes do Rio Arrudas. É uma localidade significativa no espaço geográfico da capital, mesmo estando localizada fora do perímetro da Avenida do Contorno, adquiriu ao longo do tempo status emblemático que foi se remodelando ao longo dos anos. A princípio a Lagoinha é área de passagem, de trânsito dos tropeiros e mercadores que viajavam pela região se deslocando de Santa Luzia, Venda Nova e adjacências e se deslocavam para o Arraial. Com a construção da capital e a chegada de muitos imigrantes a Lagoinha foi “invadida”, em sua maior parte, pelos italianos que ali adquiriram chácaras e sítios e construíram naquele lugar uma espécie de reduto da saudosa Itália. Posteriormente tornouse cenário da boêmia e da vida noturna, confrontando-se com os mistérios e lendas que envolvem o cemitério que abriga. Na ocasião da construção da instalação do cemitério, a Lagoinha, era o lugar mais adequado e aprazível consoante com os projetos da Comissão Construtora, bem como o discurso médico e higienistas amplamente difundido naquela altura. Em consonância com o padrão arquitetônico imposto na nova capital, o cemitério teve sua planta elaborada por arquitetos e desenhistas da Comissão Construtora da Nova Capital. Além do traçado espacial foram projetados o portão principal, casa do zelador e necrotério. Trabalhou nos projetos o eminente José de Magalhães (1851-1899) chefe da Seção de Arquitetura da mencionada Comissão, além de outros profissionais talentosos que deixaram seu registro em vários espaços da capital mineira. Figura 2 – Projeto portão principal do Cemitério Municipal, 1895. Fonte: Acervo do Museu Histórico Abílio Barreto, Belo Horizonte. O traçado arquitetônico do cemitério segue o plano geométrico da cidade. É composto por cinqüenta e quatro quadras divididas entre duas alamedas principais e diversas ruas secundárias. A ocupação destas quadras não seguiu a numeração, inicialmente foram utilizadas as quadras dezesseis e dezessete, sendo que novas quadras eram abertas e preparadas ao longo do tempo, conforme a necessidade. Por exemplo, em 1923 havia vinte quadras em uso, no seguinte vinte e duas, no início da década de 30, trinta e seis quadras eram utilizadas e na década de 40 todos os espaços já estavam em uso. A parte central do cemitério que é o cruzamento das principais alamedas encontra-se uma praça redonda ajardinada, tendo a imagem de Cristo, esculpida em bronze, neste local está sepultado Otacílio Negrão de Lima, exprefeito de Belo Horizonte, à esquerda da praça, distando cinco quadras, encontra-se um edifício. Trata-se de uma construção pequena, elaborada na mesma época que o cemitério foi inaugurado, apresenta características estéticas condizentes com o ecletismo, estilo inclusive que predomina nos edifícios da capital. Na atualidade é utilizado como capela, onde se celebram cultos, por ocasião do dia de finados, entretanto foi projetado e funcionou durante muito tempo como necrotério. Os cemitérios do Porto e Belo Horizonte tornam-se espaços privilegiados para a consolidação da experiência romântica através das obras funerárias e da linguagem estética neles expressadas. A rejeição romântica do morto como um cadáver em decomposição impôs uma relação nova em relação à morte, ou seja a vivência da morte, em que a finitude da vida se apresentasse por metáforas, por odores de flores e de ciprestes por imagens de mármores que simbolizam – através do belo – aquilo que a morte tinha de horrível. Era preciso sublimar a idéia da morte como putrefação. A morte era a ausência e a saudade. Para apagar a imagem de putrefação era fundamental prolongar de forma idealizada a memória do defunto. Primeiramente, afastando a morte para longe do olhar e do olfato. Depois, embelezando-a e embebendo-a de sentimento, bem ao gosto do espírito romântico. É nesta conjugação que surge o cemitério romântico, carregado de pompa, símbolos que expressavam visualmente e de forma limpa aquilo que a morte e a saudade tinham de mais cruel. Os epitáfios, as ornamentações passam a ser uma arte própria. O ausente passa a ser o herói a ser elogiado, rememorado e representado na arte tumular. E assim os cemitérios refletem esta nova sensibilidade no tratamento das questões que envolvem a morte: o culto aos mortos, a evocação da memória, a eternidade. O desejo de imortalidade é traduzido através da construção de marcos de memória, as sepulturas revelam-se como um sonho de perenidade. Analisando os cemitérios oitocentistas como portadores dos sentimentos que subjazem o Romantismo é possível compreender o uso desta nomenclatura pela historiografia portuguesa e aproximá-la do Cemitério do Nosso Senhor do Bonfim, bem como a outros cemitérios brasileiros nascidos no mesmo período e que se traduzem como espelhos evocadores desta emotividade, da melancolia e ao mesmo tempo da permanente reatualização da memória. Entretanto os cemitérios em seus espaços quadriculados sejam os do Porto ou o cemitério de Belo Horizonte, reproduzem em suas quadras os conflitos e contradições experimentadas nas cidades que os abrigam. Os cemitérios oitocentistas refletem uma época, na qual, se estabelece uma nova modalidade de culto aos mortos, através da evocação, da memória, da construção de marcos e ao mesmo tempo reatualizam as distinções, na medida em que revelam ostentação e poder. Os cemitérios, as sepulturas, as construções funerárias são os testemunhos materiais que permitem refletir sobre concepções, expectativas e desejos. Possuem elementos que, numa complexa teia, relatam dados significativos acerca da cultura material, do simbólico e das múltiplas atividades do labor e criatividade humana. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Morte, Cultura, Memória – Múltiplas Interseções: Uma interpretação acerca dos cemitérios oitocentistas situados nas cidades do Porto e Belo Horizonte. 2007, 402 p., Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. CATROGA, Fernando José de Almeida. A Militância Laica e a Descristianização da Morte em Portugal: 1865-1911. 1988, 02 volumes, Tese (Doutorado em História) Universidade de Coimbra. QUEIROZ, José Francisco Ferreira. Cemitérios do Porto Roteiro. Porto: Direcção Municipal de Ambiente e Serviços Urbanos da Câmara Municipal do Porto-Divisão Municipal de Higiene Pública, 2000. QUEIRÓZ, José Francisco Ferreira. O Ferro na Arte Funerária do Porto Oitocentista O Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa 1833-1900. 1997. 03 Volumes. Dissertação. (Mestrado em História da Arte) - Faculdade de Letras da Universidade do Porto. QUEIRÓZ, José Francisco Ferreira. Os Cemitérios do Porto e a Arte Funerária Oitocentista em Portugal Consolidação da Vivência Romântica na Perpetuação da Memória. 2002. 03 Volumes. Tese (Doutorado em História da Arte) - Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Inhumaciones infantiles en de provincia de Buenos Aires, entre 1900 y 1910 Dra. María Amanda Caggiano Lic. Sandra Gabriela Adam Ing. Francisco Bardi Dñdor. Guillermo H. Scola Dñdor. Diana B. Mondino CONICET UNLP IMIACH, UNLP UNCPBA IMIACH, UNCPBA IMIACH, UNLP. Resumen Hablar de la muerte en nuestra cultura no es nada fácil. Tendemos a negar esta realidad como si fuese ajena a la vida y cuando por fin hablamos de la muerte, nos referimos a conceptos como vejez, enfermedad o accidentes. Nunca pasa por nuestra mente que un niño pueda morir. Y sin embargo, también los niños mueren. Abordamos el tratamiento brindado en algunas inhumaciones de infantes. Para este fin se analizaron dos cementerios de la provincia de Buenos Aires, uno ubicado al oeste, en Chivilcoy, y el otro en el centro, Azul. Registramos solo la primera década del siglo XX. Relevando y describiendo alguna de las unidades arquitectónicas utilizadas para este fin, su simbología, comparación de elementos arquitectónicos específicos que las distinguen del contexto; así mismo se tomaron algunos aspectos paleodemográficos. Palabras claves: Niños- Funebria- Paleodemografía. Introducción Ante la muerte, el rol conmemorativo, simbólico, o simplemente estético que se observa en el contexto de una necrópolis, no es monótono ni general, por el contrario, se trata de llenar ese espacio funerario con una obra que lo mantendrá vivo en el recuerdo de quienes acuden a el por generaciones. Por este motivo el individualizar a quienes ocupan esos espacios es una práctica habitual en la cual se hace referencia a roles específicos que cumplió esa persona en vida o simplemente se hace referencia a la edad de su deceso cuando la particularidad de la muerte se centra en esta variable como es el caso de los niños. Objetivo de la investigación Con este trabajo se pretende abordar el tratamiento que se brindaba en inhumaciones de párvulos. Para este fin se analizaron dos cementerios pertenecientes a ciudades de la provincia de Buenos Aires Argentina (Chivilcoy y Azul). Cronológicamente nos situamos en la primera década del siglo XX. Relevando algunos aspectos paleodemográficos y describiendo algunas de las unidades arquitectónicas utilizadas para este fin que las distingue del resto del contexto funerario. Material y método Este trabajo forma parte de un proyecto encarado a través del Instituto Municipal de Investigaciones Antropológicas de Chivilcoy (IMIACH) en convenio con la UNLP y el CONICET. La documentación analizada fue extraída del Archivo Histórico Municipal de Chivilcoy “S. F. Barrancos” (hemeroteca, libros de registros de inhumaciones y libros de ordenanzas, convenios y contratos municipales), Archivo Histórico “Enrique Squirru “de Azul, Archivo Histórico Municipal de Azul y en actas parroquiales de la Parroquia de Nuestra Señora del Rosario de la ciudad de Azul. Prov. Bs. As. Se estudiaron dos muestras, una correspondiente a la ciudad de Chivilcoy que cuenta con los 209 niños sepultados entre 1900 y 1927 en una nichera destinada solo para infantes, y la otra en Azul, conformada por 316 niños fallecidos entre 1910 y 1915 enterrados en el Cementerio Central y las defunciones infantiles del Cementerio del Oeste o “de los Pobres”, esta última cuenta con 873 niños. Los datos que se tuvieron en cuenta fueron: edad, sexo y causa de muerte. Además se describieron algunas de las unidades arquitectónicas utilizadas para este fin en particular. Chivilcoy A meses de habilitarse el nuevo cementerio (1.893), el Concejo Deliberante sanciona una ordenanza contemplando un espacio exclusivo para niños en pabellones especiales de 1º y 2º categoría, con galería o alero y a la intemperie o sin alero, respectivamente (AHCH 21: 77). Recién se edifica un pabellón exclusivo para niños, a la intemperie, según contrato firmado el 16 de febrero de 1900 entre el constructor Ángel Maderna y Prudencio Moras -a cargo del ejecutivo municipal-, de acuerdo a los planos elaborados por el Ing. Fernando Ortiz en el mismo se especifican los detalles técnicos de la construcción de otro pabellón destinado a adultos de similares características, aunque la dimensión de los nichos es superior; ambos pabellones equidistantes a la rotonda central. (AHCH 322: 5 a 12). El pabellón de párvulos se identifica con la letra A, sección 2º y la nichera de adultos también con la letra A, pero ubicado en la sección 3º Se trata de un pabellón de doble faz que alberga 210 nichos, 105 en cada frente, de 7 filas y 15 nichos en cada una. Recién a partir de 1909 el tributo al municipio por ocupar un nicho difiere su valor de acuerdo a la ubicación, los de menor costo situado hacia la hilera superior. (AHCH 24: 11 y 92) Las medidas de los nichos son 0,50 metros de luz x 0,40 metros de alto en el centro x 1,40 metros de largo interior. La parte superior de las bovedillas, que es lo que constituye el piso de los nichos, “se rellena con mezcla de cal y cascotitos para que queden horizontales. Tanto el piso como los costados planos llevarán revoque en cal alisado a cuchara la parte inferior de la bovedilla no deberá revocarse”. De acuerdo al convenio, la excavación de los cimientos no serán menores de 0,80 metros, el fondo plano y nivelado. La tierra obtenida deberá ser esparcida a una distancia que no so supere los 50 metros de la periferia de la obra. El ladrillo utilizado deberá ser de clase superior, la cal de Córdoba y el polvo de ladrillo sin tierra. La mezcla será en proporción 1 cal en pasta y 4 ½ polvo de ladrillo. El techo del pabellón de párvulos está formado por “las bovedillas de la última serie de nichos, rellenadas con mezcla de cal y cascotitos, teniendo la pendiente que marcan los planos”. Sobre la superficie se colocarán baldosas de Marsella, especial para este tipo de techo y se pegarán con una mezcla constituida por 2 de arena oriental, zarandeada y 1 de Pórtland. Luego de terminada la edificación se prevé su cobertura con pasto verde, con un espesor de 0,10 metros para que se seque lentamente y luego se quitará el pasto. Cada nicho llevará un marco de planchuela de hierro, provistos de tope para que apoye la tapa de mármol y de “cuatro patitas con forma de gancho para asegurarse al muro”. Antes de colocarse, los marcos llevarán como mínimo dos manos de pintura. Las lápidas serán todas de mármol blanco de 0,20 cm. De espesor y “entrarán exactamente en el marco de modo que en la parte exterior quede en un mismo plano” y provista de dos manijas formadas por un botón de zinc o de vidrio con aldabilla. Se contemplan “4 desagües de zinc Nº 14, embutidos en los muros con un codo en su parte inferior que pasará por debajo de la vereda”. Se prevé un sistema de ventilación en cada nicho, que “asegura la salida de los gases a la atmósfera” y el acceso de aire a cada nicho. Concluida la construcción, deberá efectuarse “tres manos de blanqueo de color gris perla, debiendo ser más claras las molduras y partes salientes que el fondo”. La abertura de cada nicho “irán cerradas con vidrios fijados con el mismo revoque y se romperán cuando se vaya a utilizar”, previendo, tal vez, la usurpación de lugar por palomas tan habituales en la actualidad en nichos en desuso. Elementos artísticos simbólicos Las lápidas del pabellón de párvulos están talladas en bajo relieve con las técnicas tradicionales de “primer golpe” y / o “punta de diamante”, presentado algunas la rúbrica del maestro lapidario. Solamente en una placa de mármol se observa el diseño en relieve y que posiblemente incluyera la fotografía del difunto. Las correspondientes a las primeras décadas no poseen florero o jardinera para depositar ofrenda, sí los nichos que fueron ocupados posteriormente. En general los elementos gráficos comunicacionales, son tres: tipografía, grafica alegórica y marcos de encierro. Estos presentan múltiples variables dadas las características de ejecución y diseño, desarrolladas mediante plantillas. Las tipografías realizadas sobre estos mármoles son de molde y manuscritas, a veces estableciendo jerarquías en cuanto al uso de los tamaños. Las hay de familias romanas egipcias, palo seco. Variable mayúscula, mayúscula-minúscula; normal, versalita y gótica. Las escasas figuras utilizadas en los diseños, constituyen alegorías relacionadas a temas religiosos, como el querubín y angelito, y a la naturaleza. Se percibe el uso de elementos minerales para enfatizar la grafica mediante la aplicación de pórtland que, para una mayor adherencia, el fondo del grabado presenta pequeñas perforaciones. Una lápida, donde el tallerista no grabó su rúbrica, el ornato fue esculpido en relieve conformando un marco de encierro. A ambos lados de los datos del difunto, contorneados por un óvalo, ramas con flores de pensamientos y pimpollos de rosas se cruzan en la parte inferior y están unidas por un moño. La porción superior del óvalo presenta un círculo del que fue extraído la porción del mármol, donde presumimos se habría colocado una fotografía de porcelana de la difunta, de 22 meses de edad. A más de presentar la particularidad de no estar provista de las dos manijas formadas por un botón con aldabilla. La ocupación La primera inhumación en la nichera de párvulos se realizó el 23 de noviembre de 1900. De acuerdo al libro de registro de difuntos, a continuación se revela la sucesiva ocupación de párvulos en esta unidad arquitectónica: 1900 / 2; 1901/ 9; 1902/ 14; 1903/ 8, 1904/ 25; 1905/16; 1906/ 18; 1907 /16; 1908/30; 1909/ 25; 1910/ 12; 1911/ 19; 1912/ 12; 1913/2; 1927/ 1. Detectamos solo 3 párvulos exhumados de la extinguida necrópolis de Chivilcoy (1.854 – 1.932) trasladados a éste pabellón. Debemos resaltar que el actual cementerio de Chivilcoy es el segundo en erigirse, ya que el pueblo contaba con otro que databa de la época fundacional. Edades y causas de muerte en párvulos Analizado el registro de inhumaciones, las edades se precisan desde “nació muerto”, horas, hasta los 8 años. Las edades más abundantes corresponden a recién nacidos hasta los 24 meses. Con respecto a las nacionalidades todos son argentinos. Hemos observados que los titulares de los nichos en algunos casos son de familias asentadas desde hace varias décadas del siglo XIX, como Emilio Ayarza, Félix Moyano, o que han cumplido cargos públicos como Ernesto Barbagelata. De acuerdo al registro de difuntos donde unos de los datos que contamos son las patologías que produjeron las muertes de los párvulos, cada una de ellas fue tomada en cuenta separándolas con respecto al sistema que afecta. Las neuropatías asentadas son la meningitis (aguda, cerebral), meningoencefalitis, absceso cerebral, encefalitis, derrame cerebral, congestión cerebral y mielitis. Las patologías del sistema respiratorio comprende la bronconeumonía, bronquitis (neumonía o pulmonía) congestión pulmonar; tuberculosis, enfermedad que se produce por la presencia del Bacilo de Koch; coqueluche o tos convulsiva o ferina. Se incluyen dentro de las patologías del sistema digestivo gastroenteritis y enteritis que afectó sobre todo a lactantes. La patología del sistema urinario asentada es la nefritis. Las causas de muerte por infecciosas comprenden al tétano; la erisipela, que se manifiesta como un exantema febril caracterizado por la aparición de placas rojas más o menos extensas producidas por un Estreptococo; fiebre tifoidea o tifus que produce además de desórdenes intestinales tumefacción del bazo, una erupción de manchas rosadas; difteria, caracterizada por la formación de falsas membranas en las mucosas, especialmente en la laríngea, y en la piel desprovista de epidermis; septicemia, o simplemente infección. Entre las originadas por accidentes figuran quemadura, fractura, contusión cerebral. Causas varias: atresia, falta de desarrollo, nació muerto, púrpura hemorrágica. En algunos casos figura la uremia como la anemia como causa de muerte, pero esto no corresponde al término de patologías, sino a una sintomatología de alguna enfermedad. La meningitis, la enfermedad que causó más decesos, sobre todo en niños menores de 24 meses, lo mismo la gastroenteritis y con respecto a las vías respiratorias la neumonía y bronquitis. Cabe acotar que hemos considerado como sin especificar las que carecían de datos, ya sea no solo por el mal estado del documento, sino que era ilegible la patología asentada como causal de deceso. En este período de densificación la nichera en estudio, no se observó ningún caso de epidemia que haya ocurrido en la población infantil. Algunas de las defunciones sucedieron en otros años, ya que hay casos donde los restos fueron exhumados del cementerio antiguo e inhumados en la nueva necrópolis. Azul Creemos importante reconstruir el contexto de la funebria en ese momento. A principio del siglo se instala en Azul un cementerio destinado a la población de bajos recursos, integrada por indios, pardos, criollos y algunos negros, en condiciones de indigencia, que tenían lugar de residencia en las afueras del pueblo. El mismo llevó el nombre de Cementerio del Oeste o “de los Pobres”. En forma simultánea seguía funcionando el Cementerio Central pero en este período destinado a sectores sociales pudientes, en su mayoría de origen europeo. Sin embargo desde que la necrópolis se inaugura (1856) no presenta discriminaciones previstas en relación a la edad y tanto párvulos como adultos son inhumados en mausoleos, bóvedas, nicheras, o bien, enterrados. Aunque existe una salvedad ya que en el sector de tierra ubicado en el cuadrante II sección S O del Cementerio Central todavía encontramos 27 sepulturas que datan de 1898 a 1924 con una iconografía particular cuyos moradores son niños de 0 a 15 años de edad. Lamentablemente este sector está siendo reutilizado por la municipalidad, debido a la superpoblación de la necrópolis y estas lapidas son remplazadas por sencillas cruces de hierro. Del Cementerio del oeste no se tiene datos por que el mismo se desactiva y es trasladado para 1953/55. (Expediente N° 4/951, correspondiente al 1-3-951) Edades y causas de muerte en párvulos Los resultados que obtuvimos muestran que de los 1.189 casos que estudiamos, 316 correspondieron al Cementerio Central y 873 al cementerio del Oeste. En ambas muestras, el nivel etário 0- 6 meses le corresponde el mayor número poblacional, con 550 infantes muertos para el CO (Cementerio del Oeste), dividido en: 1910, 98 neonatos. 1911, 97 neonatos, 1913, 112 neonatos, 1914, 79 neonatos y 1915, 86 neonatos. Mientras que en el Cementerio Central la cifra es inferior 125 infantes a lo largo del lustro que se distribuyeron en 17, 23, 29, 7, 22, y 27 respectivamente desde 1910 a 1915. En la categoría 6 meses a 1 año el Nº muestral va disminuyendo aunque es todavía elevado, los valores para el CO son 130 párvulos en total divididos en 12, 29, 27, 25, 21 y 16 según el orden cronológico antes mencionado. Para el CC en la misma categoría de edad el número total es de 51 individuos distribuidos en 5, 9, 10 11 y 7 infantes. De 1 a 3 años en el CO el número sigue disminuyendo con 112 casos mientras que en el CC hay un incremento con 68 casos. La distribución por año es de 22, 11, 24, 28, 14, y 12 para CO y 5, 4, 4, 4, 0, 4 en el CC. De 3 a 5 años y de 5 a 7 años en el CC decrece el número notablemente con 21 y 17 individuos en total y lo mismo ocurre en el CO con 23 y 22 individuos, son período que ambas muestras se encuentran casi equilibradas en número y distribución temporal. En la categoría siguiente 7 a 9 años la distribución de la mortalidad en ambas muestras si bien es equilibrada por año, en el CO se observa que el número se duplica con respecto al CC los valores son 10 individuos en total para el CC distribuidos en 2, 1, 1, 3, 1, 2 por año y para el CO el total es de 19 individuos divididos en 5, 4, 3, 4, 2, 2, respectivamente. Para la última categoría 9 a 12 años encontramos que en el CC el número de infantes muertos es de 24, superior al del CO que es de 18 casos para todo el lustro esto creemos que es debido a un brote de Meningitis que se produce en 1915. En cuanto a la etiología de muerte en líneas generales se aprecia que la mayor causa de muerte está dada en lo que dimos a llamar Neonatal, hecho que creemos lógico en esa época por los condicionamientos que tenían los embarazos y partos. Más aún si se trataba de población indigente como el caso del CO donde los números son abrumadores en los cinco años en cuestión. La segunda causa de muerte está relacionada con patologías a nivel del Sist. Respiratorio, luego existiría una diferencia intermuestral muy marcada ya que la tercera causa de muerte en el CO son patologías a nivel del Sist. Digestivo mientras que para el CC son del Sist. Nervioso, especialmente la Meningitis hace estragos en este sector social, en 1913 es el mayor pico de este tipo de enfermedad, superando ampliamente a causas Neonatales. Las causas de muerte debidas al Aparato cardiovascular si bien su número es significativo en ambas muestras, no sobrepasa el porcentaje esperado. En tanto la Eclampsia y la Atrepsia muestran un acentuado incremento al tratarse de la Población del CO. Elementos artísticos simbólicos Si bien no encontramos ninguna ordenanza o documento que dé cuenta de la existencia de sitios específicos dentro del Campo Santo para el entierro de párvulos, al recorrer el mismo encontramos una salvedad ya que en el sector de tierra ubicado en el cuadrante II sección S O del Cementerio Central todavía encontramos 27 sepulturas que datan de 1898 a 1924 con una iconografía particular cuyos moradores son niños de 0 a 15 años lo cierto es que parecería que este emplazamiento se dio en forma espontánea. Las mismas presentan una iconografía particular en la que distinguimos dos variables: la primera se trata de una imagen femenina de pasta piedra de cemento que remplazaría a la cruz. La moldería utilizada tiene elementos que nos remiten a facciones típicas de la gráfica hindú. Se trata de una mujer de 150 cm. de alto por 80cm. de ancho que tiene entre sus brazos un niño y que según testimonios cada unidad habría sido cercada por rejas artísticas en forma perimetral a la sepultura. El otro motivo para estas sepulturas se trata de la recreación fitomorfa de troncos en cemento que recorren la sepultura en forma perimetral encabezando la misma con una cruz de iguales características. En los dos tipos descriptos se da en forma aleatoria el uso de fotografías no así el dedicar la tumba en homenaje al niño muerto que por lo general lo hacen sus padres y hermanos. Conclusiones Del análisis de los datos estudiados se desprende que para la primera década del siglo XX tanto en Chivilcoy como en Azul, se observan prácticas funerarias específicas al tratarse de párvulos. Los mismos tienen la particularidad que se los separa muchas veces del resto de la familia por más que esta sea propietaria de una unidad arquitectónica de mayor envergadura y dentro de la misma necrópolis. Este hecho se puede interpretar como alguna creencia o hipótesis teológica que se propuso a partir del siglo XIII para explicar el destino de los que mueren sin haber cometido pecado mortal a temprana edad con o sin el bautismo. En la pastoral se hablaba del limbo sobre todo en referencia a los niños que morían sin ser bautizados. Después del Concilio Vaticano II el concepto del limbo fue abandonado. El Catecismo actual confía el destino de los no bautizados en las manos de Dios. Y es un hecho que los niños actualmente no tienes un lugar particular y diferente que el del resto de los difuntos. En cuanto a los datos sobre causas de muerte en líneas generales las afecciones son similares tanto para el oeste como para el centro de la provincia con la salvedad que en Azul al estar discriminado los sectores sociales en cementerios diferentes, se puede hacer otra lectura como resultado de una sociedad dispar. Nichera de párvulos, Chivilcoy Funebria de infante, Azul Agradecimiento A la Lic. Gabriela R. Poncio, Profesional Principal Comisión de Investigaciones Científicas del Gobierno de la Provincia de Buenos Aires (CICPBA). Bibliografía - Adam, Sandra G., Juan F. Bardi, María A. Caggiano, Héctor Díaz, Olga B. Flores y Víctor H. Garay. 2007. “Ancestrías poblacionales en los orígenes de fortín Azul”. Undécimo Congreso de Historia de los Pueblos de la Provincia de Buenos Aires. Archivo Histórico “Dr. Ricardo Levene”. - Archivo Histórico Municipal de Chivilcoy “S. F. Barrancos” (AHCH) 21:77; 24: 11 y 92; 320: 1 a 9 y 322: 5 a 12, Hemeroteca 18, 33 y 50. Libros defunciones. - Borrero Rivera. 1992. “Azul la avanzada en el desierto.” Imprenta de Azul, Azul. - Caggiano, M. A. 1997. Chivilcoy, biografía de un pueblo pampeano. Editora La Razón, S. A. - Caggiano, María Amanda, Sandra G. Adam, Olga B. Flores, Víctor Hugo Garay, Guillermo Scola. 2003. "Entre tumbas". En: Boletín de Historia de la Ciencia, nº 43, Año 22, 1º semestre. Editorial FEPAI. - Caggiano, María Amanda; Sandra G. Adam, Olga B. Flores; Gabriela Poncio y Víctor H. Garay. 2005. “Historias de usos y desusos de los cementerios en la Provincia de Buenos Aires”. En “Patrimonio Cultural en Cementerios y Rituales de la Muerte”. Primeras Jornadas Nacionales de Patrimonio Simbólico en Cementerios, Tomo II, Buenos Aires - Caggiano, María Amanda y Gabriela R. Poncio. 2006. “Transitando entre difuntos”. En: Continuidad y Cambio Cultural en Arqueología Histórica. 3º Congreso Nacional Arqueología Histórica. Facultad de Humanidades y Artes, UNR. - Caggiano, María Amanda, Víctor Hugo Garay, Diana B. Mondino, Gabriela Rosana Poncio y Guillermo Horacio Scola. 2006. “Lápidas y lapidarios. Comunicación visual en el arte funerario, cementerio de Chivilcoy”. VII Encuentro Iberoamericano de Valoración y Gestión de Cementerios Patrimoniales, Buenos Aires. CD Rom. - Caggiano, María Amanda, María Susana Fahey y Mirta Graciela Santucci. 2007. “Lugar del reposo eterno. Evolución y vicisitudes de las necrópolis chivilcoyanas”. En: Indios, gauchos, milicos y gringos. Familias, bienes y ritos entre los habitantes pampeanos: 333 - 390. Instituto Municipal de Investigaciones Antropológicas de Chivilcoy. - Guía Aramburu de la ciudad y partido de Chivilcoy. 1907. Imprenta La Aurora. - Constitución de la Provincia de Buenos Aires. 1889 - Libro de Muertos I, II, III y IV. Archivo Parroquial. Iglesia Ntra. Sra. Del Rosario, Azul - Libro de asientos de defunciones del Cementerio del Oeste. Archivo Municipal de Azul. - Libro de asientos de defunciones del Cementerio Central. Archivo del Cementerio Municipal de Azul. - Ortega Exequiel, 1996. “Diez grandes olvidados en un siglo de historia Azuleña”. Ensayo. Publicación del diario El Tiempo, Azul A MORTE E O CEMITÉRIO DA PIEDADE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX EM CUIABÁ Maria Aparecida Borges de Barros Rocha – UFMT Resumo Na segunda metade do século XIX a cidade de Cuiabá se deparou com a morte, representada por quatro terríveis acontecimentos: a eclosão da Guerra do Paraguai, a varíola, as enchentes do rio Cuiabá e a fome. Os soldados que voltavam para casa depois da guerra trouxeram a varíola para a cidade enquanto as enchentes do rio Cuiabá trouxeram a fome para toda a região. Palavras-chave: Cuiabá, Cemitério da Piedade, Guerra do Paraguai 1.1 – A GUERRA DO PARAGUAI E A PROVÍNCIA DE MATO GROSSO Este texto pretende discutir a realidade vivida pela população da Província de Mato Grosso e da cidade de Cuiabá na segunda metade do século XIX, ao se defrontar com uma realidade trágica, envolvendo a guerra, a fome, a peste e a morte. A Guerra do Paraguai teve início durante o Governo do General Alexandre Manoel Albino de Carvalho, a partir de hostilidades geradas pelo apresamento do navio brasileiro Marquês de Olinda e detenção de seus passageiros, entre os quais o novo presidente da província e vários oficiais, que seguiam para Cuiabá. No desenrolar dessa guerra a Província de Mato Grosso foi invadida. A Província de Mato Grosso, pela proximidade do Paraguai e pela baixa densidade demográfica, parecia presa fácil aos paraguaios, mas, enquanto Solano Lopez proclamava vitórias no território mato-grossense, o Império brasileiro preparava uma contra-ofensiva para levar o embate ao solo inimigo. Em janeiro de 1865, Augusto Leverger partiu para a colina de Melgaço, a fim de enfrentar a flotilha paraguaia que ameaçava a capital. Retornando à Cuiabá, Leverger assumiu o governo, acumulando também o cargo de comandante das armas. A 13 de Julho de 1867 o ten-cel Antônio Maria Coelho, saiu de Cuiabá com o 1º Corpo de Vanguarda, retomando Corumbá, cidade que estava assolava pela epidemia de varíola que foi levada à Cuiabá pelos soldados que regressaram. Mais da metade da população de 12.000 habitantes teria perecido, conforme relato de Moutinho: Em 1867, a ceifa de inumeráveis vidas pelo flagelo das bexigas acabou de abater o animo da população, que no curto período de dois meses foi reduzida a menos da metade na capital1. A segunda metade da década de 1860 foi um período penoso para a população de Cuiabá, estabelecendo uma forte relação de proximidade com a morte. Em novembro de 1864 deu-se a inauguração do Cemitério da Piedade. Em dezembro do mesmo ano as tropas paraguaias invadem o sul da província. Na mesma época as águas do rio Cuiabá invadem a cidade e devastam plantações ribeirinhas, trazendo a fome. Em 1867 a população cuiabana é assolada pela epidemia de varíola. 1.2 - A CIDADE DE CUIABÁ E O GRANDE CONFLITO - O MEDO DA GUERRA A notícia da invasão paraguaia no sul da Província de Mato Grosso trouxe medo aos cuiabanos. Parecia a todos que os inimigos paraguaios poderiam a qualquer momento chegar à capital da Província e que nada poderia ser feito para impedir seu avanço2. Instalou-se na cidade um clima de pânico geral, e aqueles que podiam se preparavam para fugir da capital da Província antes que os paraguaios chegassem. O medo da guerra e da morte tomou conta das pessoas de uma forma geral3. A cidade de Cuiabá e seus moradores viviam sob um clima de terror e insegurança gerado pelo medo do outro, do estrangeiro, daquele que até então era vizinho, mas, sua presença poderia significar a morte iminente. A Guerra do Paraguai e suas funestas conseqüências como a peste e a fome trazem transformações nas relações de homens e mulheres com a morte. Delumeau avalia essas transformações à partir da peste: Que diferença do tratamento reservado em tempo comum aos doentes que parentes, médicos e padres cercam de seus cuidados diligentes! Em período 1 MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícias sobre a Província de Mato Grosso. S VOLPATO, op. cit. p. 58 3 MOUTINHO, Joaquim Ferreira. p.69 2 de epidemia, ao contrário, os próximos se afastam, os médicos não tocam os contagiosos, ou fazem-no o menos possível.4 Podemos considerar que em tempos de normalidade a morte não se apresenta sem seus principais rituais característicos obedecendo a liturgias religiosas, tradições e costumes locais. Em tempos de guerra, de fome ou de peste faz-se a abolição de todos os paramentos e cuidados que tornava a morte individualizada, personalizada e ritualizada. Em Cuiabá na segunda metade do século XIX temos a determinação de um campo santo específico para os enterramentos dos mortos pela varíola, a peste que assola a cidade. Para os vivos, é uma tragédia o abandono dos ritos apaziguadores que em tempo normal acompanham a partida deste mundo. Quando a morte é a esse ponto desmascarada, indecente, dessacralizada, a esse ponto coletiva, anônima e repulsiva, uma população inteira corre o risco do desespero ou da loucura, sendo subitamente privada das liturgias seculares que até ali lhe conferiam segurança e identidade5. Delumeau considerando o romance, o teatro e o discurso literário, ressalta a valentia individual dos heróis como característica individual dos nobres, enquanto o medo seria o quinhão vergonhoso e característica coletiva dos pobres6. Talvez devêssemos nos perguntar se um dia esse sentimento de medo deixará de nos acompanhar ou será menos inerente à nossas vidas. 1.3 – COMO PREPARAR-SE PARA MORRER, OU O MEDO DA MORTE NOS TESTAMENTOS OITOCENTISTAS De acordo com as leituras dos testamentos da época, uma nova condição se apresenta a essa população, pois, a morte estaria sempre à espreita e o medo da morte sempre presente fosse ela representada pela guerra, pela peste, ou pela fome. O medo da morte, o mais lancinante dos medos envolve homens e mulheres arrebatando a todos, podemos tentar imaginar como se desenrolou em Cuiabá o enfrentamento de uma conjunção de fatores extremamente perigosos como já apresentados, quando então, já não era possível se preparar para esse momento fatal. Um dos passos mais 4 DELUMEAU, op. cit. p.123 Ibidem, idem, p. 125 6 Ibidem, idem, p. 15 5 importantes nos momentos que antecedem a hora da morte,era a preparação do testamento. Avaliava-se o risco caracterizado pela morte súbita sem as últimas disposições e vontades registradas, o que poderia prejudicar a salvação da alma. A História de Mato Grosso indica que os bandeirantes quando partiam para o interior, sabendo dos perigos que enfrentariam e das desventuras que poderiam sofrer nessas jornadas faziam testamentos. Redigir um testamento fazia parte dos preparativos para essas viagens. Aqueles que empreenderiam longas viagens e temiam os males reinantes em uma terra pouco conhecida e pouco povoada; aqueles que se viam acometidos por males súbitos; aqueles que mesmo em perfeita saúde, mas, temendo a morte que a todos era natural, procuravam também dispor de seus bens através dos testamentos. Sabe a morte coisa mui ordinária, natural aos homens. Reconhece que, como humano, é mortal e pode morrer, no dizer simplório de um deles. Arreceia-se da morte, porque, no dizer saboroso de outro, somos alfim de fraco metal. E, por não saber da morte nem da vida, aparelha-se para a jornada terrível7. No século XIX, a morte é para todos, uma passagem e essa passagem que, conforme Ariès, não admite fraudes, deveria ser organizada através de cerimônias. Nenhum homem ou mulher oitocentista duvida que haja no Universo uma parte invisível e incognoscível, assim como acham que entre o mundo em que vivemos e esse outro mundo haja uma fronteira transponível. A partir dos testamentos oitocentistas percebemos uma relação com a morte diferente daquela que vivemos hoje. Pensamos como Duby que: A morte tornava-se certamente menos aterrorizante pela certeza que se tinha de não desaparecer completamente, pela garantia de sobreviver, senão corporalmente, pelo menos sob uma outra forma, esperando a ressurreição dos mortos8. Ainda que faça parte da vida, a morte não pode ser identificada como um acontecimento comum. Para homens e mulheres do século XIX, a morte causava grande angústia e medo, merecendo cuidados especiais, podemos perceber esses sentimentos de intranqüilidade nos testamentos oitocentistas. 7 8 Ibidem, idem, p. 213 Ibidem,idem, p. 127 Uma das fontes mais utilizadas nos estudos do comportamento de homens e mulheres diante da morte, os testamentos, geralmente efetuados nos momentos que a precedem, são fartos documentos indicadores das relações com a vida e com a morte, pois expressam as últimas vontades dos testadores quanto aos seus bens materiais, assim como quanto às suas necessidades da alma9. Os testamentos, em tempos de guerra, de peste ou de paz, são utilizados como espaços de negociação com o além. Pois, o principal motivo ou a principal preocupação do testador ao fazer redigir um testamento era o temor da morte que poderia se fazer presente em qualquer momento, principalmente numa região de fronteira que se encontrava, naquela ocasião vivendo um conflito armado. Muitos buscam esse expediente apenas ao se depararem com a iminência da morte. A década de 60 do século XIX em Cuiabá foi uma ocasião propícia para esses cuidados, pois, a população se deparava com a Guerra do Paraguai e a proliferação da varíola. O enfrentamento de um grande conflito como a Guerra do Paraguai trará para a população da Província de Mato Grosso e da cidade de Cuiabá uma realidade totalmente nova que acabará por facilitar a desestruturação de uma organização social que determinava as relações com a morte até então desenvolvidas em torno das irmandades religiosas e dos enterramentos nas igrejas. Os novos enfrentamentos com a morte a partir da Guerra e da peste trará à população uma dura realidade, quando se desenvolverá uma nova relação com a morte, não havendo outra alternativa além da aceitação do Cemitério da Piedade. 1.4 - A CONSTRUÇÃO DO CEMITÉRIO DA PIEDADE – UMA NOVA RELAÇÃO COM A MORTE. A construção do Cemitério da Piedade envolveu um longo processo e foi precedida por intensa discussão em torno de sua necessidade, havendo desde 1835 consignação de verbas para sua construção, assim como a proibição de enterramentos no interior das igrejas e regulamentação interna para os cemitérios. Em 03 de maio 1852 Augusto Leverger, na Presidência da 9 ROCHA, Maria Aparecida Borges de Barros Rocha, Transformações nas práticas de enterramentos em Cuiabá, 1850-1901, p. 123. Província, discorria, em seus relatórios, sobre a necessidade de se abandonar os enterramentos nas igrejas: Entretanto, não deve ser tal a confiança na salubridade do clima que se julguem dispensáveis as providências higiênicas, que foram indicadas em diversos relatórios de meus antecessores na Presidência, como sejam o estabelecimento de cemitérios, a fim de por termo aos enterramentos nas igrejas. Em 1859 o relatório do então Presidente de Província Joaquim Raymundo de Lamare, apresentado à Assembléia Provincial em 03 de maio, sete anos depois denuncia as mesmas práticas de enterramentos e defende a construção de um Cemitério Público para a inumação dos cadáveres. A mesma discussão aparece em 20 de maio de 1861 no Relatório do Presidente de Província, Coronel Antônio Pedro de Alencastro: Torna-se de urgente necessidade um cemitério, a fim de cessar os enterramentos nas igrejas. A Câmara desta capital reconhece como uma das necessidades que reclamam mais pronta providência, a construção de um cemitério fora da cidade e pede para isso um auxílio que, parece-me, se lhe não deve negar. O Presidente de Província Herculano Penna anunciaria em relatório de 1863 que o Cemitério da Piedade estaria quase pronto para ser entregue e servir à população. Em julho do mesmo assumiria a Presidência da Província o Brigadeiro Alexandre Manoel Albino de Carvalho que declara em relatório de 03 de maio de 1864: À minha chegada a esta capital, se tive o desgosto de ver que ainda aqui existia semelhante costume, alegrei-me de observar o estado de adiantamento da Capelinha de Nossa Senhora de Piedade, em construção, logo acima do antigo e mesquinho cemitério desta cidade. A criação do Cemitério ganha maior relevância na gestão do Presidente Manoel Albino, indica no mesmo relatório a urgência da questão, declarando: Não censuro, mas deploro que em 1864 ainda se enterrem cadáveres nas igrejas de Cuiabá, conjuro-vos, pois, senhores, a extirpar um costume atualmente reprovado por todos os povos civilizados, e já extinto em todas as demais províncias do império. O Cemitério da Piedade foi, no entanto, inaugurado pelo bispo da arquidiocesse local, assim como sua capela, no dia 02 de Novembro de 1863. Localizado próximo ao Primeiro Distrito do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, viria a dividir funções com dois outros cemitérios públicos denominados Cemitério de São Gonçalo e Cemitério do Cai Cai, que atendiam respectivamente à região do Segundo Distrito e aos enterramentos dos variolosos de 186710. 1.5- O CEMITÉRIO DA PIEDADE – TÚMULOS E EPITÁFIOS DE HERÓIS DA GUERRA DO PARAGUAI O Regulamento para os Cemitérios Públicos de 1864 propõe rígido controle sobre a utilização de túmulos, epitáfios e inscrições tumulares, determinando que nenhuma inscrição ou epitáfio será admitida nos campos sepulcrais ou monumentos, sem licença da autoridade eclesiástica. Os túmulos e epitáfios do Cemitério da Piedade trazem em suas lápides os sentimentos manifestados pelas famílias dos falecidos, assim como os adornos utilizados e seus significados de acordo com a mentalidade da época. Encontramos nesse cemitério túmulos de procedência da cidade do Rio de Janeiro, então, capital do Império, assim como túmulos de procedência da cidade de Assunção, capital do Paraguai, vindo a confirmar intensas relações comerciais estabelecidas pela Província de Mato Grosso e esses dois centros. O Cemitério conta atualmente com um número reduzido de túmulos datados do século XIX, esses, no entanto, guardam peculiaridades em sua ornamentação, em especial os túmulos daqueles que foram considerados heróis da Guerra do Paraguai. Multiplicam-se os túmulos com epitáfios enaltecedores dos méritos e feitos dos inumados sejam eles pais, esposos, filhos ou cidadãos honrados. Muito mais procurar-se-á fazer quando se trata daqueles que tombam no front de batalha11. A Guerra do Paraguai terá relação direta com a construção do Cemitério da Piedade, não apenas porque esse campo santo será inaugurado no mesmo ano do início da guerra, mas também porque em seu interior encontramos túmulos que guardam restos mortais de 10 11 ROCHA, op. cit. p. 38. CORBIN, História da Vida Privada, Vol. 4, p. 427 soldados que perderam a vida servindo à pátria nessa guerra, muitos desses soldados são anônimos, enquanto poucos são considerados heróis como Augusto Leverger, o Barão de Melgaço. No Cemitério da Piedade o túmulo de número 361 guarda os restos mortais do coronel Rogaciano Monteiro de Lima, exemplo de túmulo de um excombatente que durante a Guerra do Paraguai defendeu as cores do Império contra a invasão inimiga. Um túmulo com porte imponente que é reconhecidamente um monumento àquele que lutou em campo inimigo12. O túmulo do Sr. Antonio Peixoto de Azevedo de número 658, traz várias representação de armas que remetem à sua participação na guerra, como uma espada, um elmo, uma machadinha e uma bandeira além de um epitáfio indicando que ali jaz um ex-combatente reconhecido como herói pela Assembléia Provincial de Mato Grosso. À memória do ilustre cuiabano Antonio Peixoto de Azevedo, um dos heróis de Paysandú. Faleceu em Curuzú a 10 de janeiro de 1867, defendendo o Império contra o governo do Paraguai, contando de idade 47 anos e dois meses. Orai pelo eterno descanso do bom filho, bom esposo, prestante cidadão e amoroso pai. Homenagem da Assembléia Provincial de Mato Grosso. Lei de 2 de julho de 1868. No Cemitério da Piedade, túmulos como os anteriormente citados têm o propósito de preservar a memória daqueles que tombaram nos campos de batalha, seus epitáfios trazem declarações que confirmam suas atividades no desenrolar da Guerra do Paraguai. O túmulo nº 920 também merece ser referenciado porque pode ser identificado como túmulo de um herói de guerra, guarda os restos mortais de Augusto Leverger, personalidade marcante da História de Mato Grosso e personagem central no desenrolar daquele que foi o maior conflito do Império Brasileiro. Por sua participação nesse conflito, recebeu o Título de Barão de Melgaço. Seu epitáfio, no entanto, é bastante sucinto: Ao chefe de esquadra Augusto Leverger Reconhecimento do Estado de Mato Grosso, 1865. Decreto nº 8, de 13 de julho de 1891. 12 ROCHA, op. cit. p. 108 Logo abaixo dessa inscrição o túmulo apresenta uma carta geográfica da Província de Mato Grosso, que teria sido desenhada pelo próprio Augusto Leverger, indicando todos os limites da Província. As preocupações dos familiares dos falecidos se concentravam em representar nos túmulos suas manifestações de pesar pela perda do ente querido, ornamentando-os de modo a buscar a perpetuação de sua memória, daí a apresentação de dados biográficos valorizando as principais virtudes morais ou cívicas do falecido para o reconhecimento no pós-morte. Os heróis da Guerra do Paraguai não deveriam jamais ser esquecidos13. 7 - CONCLUSÃO O conhecimento e a reflexão sobre esses fatos do passado não nos possibilita o advento de respostas prontas para diversas questões do presente que nos remetem a pensar a morte a partir de conflitos armados, epidemias e intempéries naturais a nos surpreender quando tolhem grande número de comunidades, cujo sofrimento acompanhamos, através dos noticiários da TV ou das informações da Internet. Temos a convicção de que os acontecimentos históricos não se repetem e que as pessoas possuem inesgotável capacidade de luta utilizando criatividade além da vontade inata de permanecerem vivas. Mas, sabendo também da fragilidade humana, não nos esquecemos dos povos que se digladiam em guerras, assim como determinadas epidemias que continuam matando em nosso país. Não podemos deixar de relacionar essas realidades com o pânico vivido pelos cuiabanos no século XIX diante da Guerra do Paraguai ou diante da varíola, afinal é o medo da morte afligindo a todos, mesmo aqueles mais jovens. Da mesma forma pensamos nas enchentes e outras intempéries naturais que tem surpreendido e devastado vidas humanas. Nessas ocasiões podemos identificar o risco de morte que se apresenta revestida das mais diversas e violentas formas de aniquilamento, enquanto homens e mulheres percebem que nada podem contra ela. 13 ROCHA, op. cit. p. 109 Referências Bibliográficas CORBIN, Alain. Bastidores. In: Ariès, Philippe & Duby, Georges (org). História da vida privada. V. 4 São Paulo: Cia das Letras,1995. DELUMEAU, Jean. História do medo do Ocidente( 1300-1800). São Paulo: Cia das Letras, 1989. DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000 – Na pista de nossos medos. São Paulo: Ed. Unesp, 1985. MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Itartiaia/USP,1980. MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícias sobre a Província de Mato Grosso. São Paulo: Typ. Henrique Schroeder, 1869. ROCHA, Maria Aparecida Borges de Barros. Transformações nas práticas de enterramento – Cuiabá, 1850-1889. Cuiabá: Central de Texto. VOLPATO, Luiza. Cativos do Sertão – Vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850-1888. Cuiabá: Marco Zero/EdUFMT, 1993. La arquitectura funeraria masónica en cementerios latinoamericanos María Carlota Sempé1 Rizzo Antonia2 Emiliano Gómez Llanes3 Resumen Los cementerios urbanos latinoamericanos con su planificación de avenidas y calles de su parquización, y arquitectura de panteones familiares y públicos, son parte sustancial de la ciudad y un lugar de memoria social donde se preserva una parte importante del patrimonio cultural. El registro de los monumentos funerarios en los cementerios de La Plata, Central y del Buceo de Montevideo y el de Colón en Cuba y su estudio iconológico permitió adscribir parte de sus manifestaciones al simbolismo masónico. A través de la aplicación de conceptos como campo y habitus (Bourdieu, 2005: 26) y el análisis iconológico (Panofski, 1984) del simbolismo funerario se establece la existencia de una práctica funeraria masónica. Palabras clave: cementerios – prácticas funerarias - masonería Introducción Los cementerios urbanos latinoamericanos con su planificación de avenidas y calles de su parquización, y arquitectura de panteones familiares y públicos, son parte sustancial de la ciudad y un lugar de memoria social donde se preserva una parte importante del patrimonio cultural. El registro de los monumentos funerarios en los cementerios de La Plata, Central y del Buceo de Montevideo y el de Colón en Cuba y su estudio iconológico permitió adscribir parte de sus manifestaciones al simbolismo masónico. Metodología A través de la aplicación de conceptos como campo y habitus (Bourdieu, 2005: 26) y el análisis iconológico (Panofski, 1984) del simbolismo funerario se establece la 1 Doctora en Ciencias Naturales, Licenciada en Antropóloga. Investigadora Principal CONICET. Profesora Titular y Docente e investigadora FCNYM UNLP. Directora Laboratorio de Análisis Cerámico. Facultad de Ciencias Naturales y Museo .UNLP. Tiene publicados libros y numerosos trabajos en Jornadas, Simposios, Encuentros, Congresos Nacionales e Internacionales. Asistencias a numerosos eventos nacionales e internacionales. Directora de Tesis Doctorales .Directora del Proyecto de Investigación “Estudio antropológico integral del cementerio de La Plata y su comparación con otros cementerios urbanos”. carlota_sempe@yahoo.com.ar 2 Doctora en Historia. Arqueóloga. Docente e investigadora .Carrera Antropología Miembro del Laboratorio de Análisis Cerámico. Facultad de Ciencias Naturales y Museo .UNLP. Tiene publicados libros y numerosos trabajos en Jornadas, Simposios, Encuentros, Congresos Nacionales e Internacionales. Asistencias a numerosos eventos nacionales e internacionales. Directora de Tesis Doctorales .Codirectora del Proyecto de Investigación “Estudio antropológico integral del cementerio de La Plata y su comparación con otros cementerios urbanos” ninarizzopucci@yahoo.com.ar 3 Alumno de la carrera de Sociología Universidad de La República. Uruguay. Investigador libre adscripto al Laboratorio Análisis Cerámico. UNLP E mail : emilianollanes@yahoo.com.ar existencia de una práctica funeraria masónica. Cada campo tiene su lógica específica, basada en la reputación, la opinión y la representación sociales (Bourdieu, op. cit. 2005: 113). Los monumentos funerarios, como forma de representación, exponen el capital simbólico acumulado por el individuo en vida y las manifestaciones simbólicas, expresadas en la arquitectura funeraria están estrechamente ligadas con el sistema de creencias e ideologías sustentadas por los individuos en vida (Sempé et al., 2004) La lógica interna del campo social masónico, posibilita a sus integrantes una red de relaciones, institucionalizadas, que pueden visualizarse como prácticas de reconocimiento que se objetivan en el campo funerario a través del uso de emblemas, símbolos, placas conmemorativas y epitafios. Aún dentro de la uniformidad en la simbología masónica, sus integrantes darán una diferente significación a la misma de acuerdo a su posición y capital simbólicos acumulados dentro del campo masónico. Un símbolo, dentro del carácter polisémico inherente al mismo (Gombrich, 1999: 243), tiene un significado en el grado de aprendiz, para el compañero adquiere nueva significación y para el maestro otra. Se podría decir que a medida que se ascienden en los grados masónicos aumenta la polisemia del símbolo. Contexto Histórico A fines del siglo XIX y primera mitad del XX la acción de la masonería, positivista, progresista y laicista dejó una impronta profunda en las instituciones de los estados latinoamericanos. La participación en las logias de importantes políticos, intelectuales, profesionales, empresarios, comerciantes, ganaderos y agricultores, le dieron a la masonería una inserción social fundamental de la cual sacó su poder para generar cambios en la estructura social y política. En las ciudades de ambas márgenes del Río de La Plata la influencia masónica se observa en edificios públicos, mansiones y palacios de las asociaciones de socorros mutuos de las comunidades inmigrantes y que han posibilitado establecer la existencia de un “Montevideo Masónico” (Dotta Ostria, 2005: 7). Expresiones funerarias masónicas A diferencia de Argentina, en Uruguay y Cuba hay monumentos funerarios de carácter institucional, posiblemente esta clara explicitación de la existencia de logias y de pertenencia por parte de sus integrantes esta relacionada a la independencia del Estado respecto a la Iglesia. Se observa en los epitafios la alusión a la condición masónica del inhumado o de los panteones institucionales. Tal el caso de los homenajes de las instituciones uruguayas como el Supremo Consejo de Grado 33,’. uno de ellos, lleva el emblema del águila bicéfala, dice ‘EL SUPREMO CONSEJO EN SU 150 ANIVERSARIO A SUS HERMANOS PASADOS AL ORIENTE ETERNO’ 1855 - 24 DE JUNIO - 2005’(fig.1). Lo mismo ocurre en Cuba con el Panteón de la Gran Logia (fig.2) con las placas con los nombres de todos sus asociados fallecidos. Otras logias se expresan a través de sus epitafios tomando como ejemplo en Uruguay Les Amis de la Patrie (fig. 3) fundada en Montevideo en 1827, dependiente en sus orígenes del Oriente Francés y a la que perteneció Garibaldi. El Panteón de Libertad y Unión que levantó columnas en 1889 (Fig. 4), que muestra la imagen de la espada flamígera con un gorro frigio en su extremo, las manos tomadas a la manera masónica y las ramas de laurel cruzadas detrás del pomo de la espada. También están representados, el compás y la escuadra, la plomada, el triángulo y la regla, cruzados sobre un mallete. Encontramos dedicatorias como ‘SUS AMIGOS LIBREPENSADORES A MANUEL RAUL DELIOTTI’ (Fig.5); otro dedicado a Ariel Raúl Leirós Coppola con la frase ‘AL LIBRE PENSADOR EN TU MEMORIA EL RECUERDO DE TU ESPOSA, HIJOS Y HERMANOS DE LA MASONERÍA’. (Fig.6). En el cementerio de Colón, en La Habana Cuba son innumerables los monumentos funerarios institucionales pertenecientes a logias, registramos el de la Logia La Habana nº 4 perteneciente a la orden independiente de los Odd Fellow con sus Tres Lazos (fig.7 ); la logia Perseverancia (fig.8) con sus tres escalinatas que con sus escalones señalan a los aprendices, compañeros y maestros y que presentan en la entrada las columnas de Jachim y Boas. En la Argentina panteones con el icono de la escuadra y el compás se encuentran en el cementerio de Chivilcoy perteneciente a Prudencio Moras (Fig. 9), donde este emblema de la masonería se asocia a la estrella flamígera y en Mar del Plata el de Sampietro ( Fig. 10 a y b), donde se asocia al triángulo, el reloj de arena alado, el ouroboros y el disco solar, ambos propietarios fueron venerables de las logias Luz del Oeste nº 55 y 7 de junio de 1891 Capital simbólico funerario La ornamentación de los monumentos funerarios esta compuesta por signos que tienen una significación masónica, adquiriendo así el carácter de símbolos. El estilo Neoclásico fue usado por los miembros de la masonería por su racionalismo y pureza de líneas, tal el caso del pórtico neoclásico del Panteón Nacional Uruguayo cuya metopa, alterna los símbolos masónicos del cráneo cruzado por huesos y la clepsidra alada rodeada por el oruroboros (fig. 11). El primero presente en la medalla masónica de la logia uruguaya Caridad 2ª de Dolores (Lozano Nell, 1992: 62) que comenzó a funcionar en 1862 y el segundo se registra en diversas bóvedas masónicas de integrantes conspicuos de la masonería argentina como Manuel Langenheim, (Fig. 12) y Regino Letchos (Figura 13) en La Plata (Sempé y Rizzo, 2003: 127, 134 y 141) y en monumentos funerarios de los cementerios de Montevideo (fig.14). Algunas logias aluden al simbolismo egipcio, expresado arquitectónicamente a través de la apropiación de las estéticas periféricas realizada por el art decó en la década de 1920 (Viera, Sempé y García, 2006). Tal el caso de las denominadas Osiris e Isis uruguayas, en el cementerio del Buceo montevideano se registran la esfinge (fig.15), el sol alado, las columnas lotiformes (fig. 16) y las pirámides (fig. 17). La adscripción masónica de estos símbolos ha sido señalada en el cementerio de La Plata (Sempé, 2003), como el panteón de Carbonell (fig.18), integrante de la logia La Plata 80, y Pelanda Ponce (Fig.19). En el cementerio general de Chile son varias las bóvedas con arquitectura egipcia, esfinges y soles alados (fig.20), lo mismo ocurre en el cementerio de Colón (fig.21 ). Significación de los iconos funerarios encontrados. El Reloj de arena alado (o clepsidra) representa el fluir del tiempo y su consumación con la muerte del hombre. Como creación humana, es solo una apariencia, en el pensamiento el presente se eslabona con el pasado y el futuro, lo concreto es la eternidad (Chevalier y Gheerbrant, 1995: 877). El disco solar alado representa la sublimación y transfiguración y en concordancia con ello es el símbolo de la inmortalidad y la resurrección (op. cit., 1995: 423). Ouroboros: es la serpiente que se muerde la cola y adquiere una forma circular para significar el universo sin principio ni fin, la eternidad, también dentro de sus múltiples significados indica el cumplimiento de un ciclo, del de la vida. Dentro de las herramientas de construcción, emblemas usados en la masonería, la plomada simboliza el eje cósmico y significa la rectitud del esfuerzo espiritual y del conocimiento. La escuadra y el compás representan una forma de reconocimiento. Su significación es profunda y esta relacionada con el grado de conocimiento alcanzado. Es notable que el compás se convierte en escuadra cuando su abertura es de 90 grados, que marcan los límites del hombre y del logro de la armonía entre el espíritu y la materia, momento en que posiblemente se produce el acto creador. Cuando el compás marca los 45 grados significa que el espíritu aún no ha dominado a la materia. Si la escuadra se sobrepone al compás, la materia domina al espíritu y viceversa, si ambos se entrecruzan las fuerzas de la materia y el espíritu están equilibradas. El mallete, símbolo de la autoridad del maestro, tiene como significado la inteligencia que dirige al pensamiento y se acompaña del cincel que representa al discernimiento humano. La regla simboliza el perfeccionamiento, se utiliza en la iniciación del aprendiz. Esta dividida en 24 grados cuyo significado se corresponde con el ciclo solar diario. La llana es el instrumento de igualar La Estrella de cinco puntas o pentalfa es uno de los símbolos mas frecuentes en las tumbas masónicas de los cementerios de Uruguay, representada como estrella flamígera ‘es el emblema del genio que eleva el alma a cosas grandes’, también es el producto de la síntesis de la fuerzas complementarias (Chevalier y Gheerbrant, 1995:811). El enlozado mosaico en blanco y negro (ajedrezado), simboliza la complementariedad de los principios cósmicos, lo positivo y lo negativo. Es un signo de reconocimiento masónico (op cit. 1995:507). El triángulo flamígero o Delta luminosa tiene significación ternaria, define a las tríadas como la sabiduría, la fuerza y la belleza; pasado, presente y porvenir; ocupa siempre una posición central. Simboliza la eternidad del tiempo y es el germen de inmortalidad (Chevalier y Gheerbrant, 1995: 1020-21). Los rayos que salen del triángulo representan la gloria de la razón y la verdad. Suelen tener inscripto el ojo que todo lo ve que es la omnisciencia de la razón superior (Guenon, 1976), o la letra G que representa al Gran Arquitecto del Universo o la Gnosis. El Ouroboros es una serpiente mordiendo su cola, un círculo eterno donde nada muere o se destruye, simplemente se transforma, este es el concepto de muerte masónico (Pérez Ruiz, op. cit.), a la vez que es la representación de la eternidad porque su circularidad da base al concepto de universo sin principio ni fin. La esfinge es el futuro ineluctable, como expresión de lo infinito es el comienzo de un destino al cual lo finito fluye (Chevalier y Gheerbrant, 1995: 469-470). Las columnas ubicadas a ambos lados de la puerta de entrada al templo o monumento funerario, simbolizan las columnas Jachim y Boas del templo de Salomón. Su significado es la guarda de la entrada al lugar sagrado marcan el paso simbólico de la vida terrenal a la muerte como verdadera vida, el oriente eterno. El oriente eterno es el lugar de los muertos, en el que se encuentran los masones, es un lugar de verdadera vida, donde los Maestros se han consumado en su proceso de perfeccionamiento interior, es el lugar donde se superan los fracasos y los prejuicios al enfrentarse con el cosmos (Pérez Ruiz, 1996). Conclusiones Si la ritualidad es la observancia de formalidades prescritas para hacer una cosa, en los cementerios latinomericanos se visualizan los habitus de los integrantes de las logias masónicas que utilizan un conjunto de signos, como recordatorios o ideas guías para la acción. La simbología usada tiene un alto grado de estandarización en sus iconos, tal como corresponde a la ritualidad masónica que sobresale por su fuerte estructuración. Los contextos de asociación y características particulares de los iconos usados, como en el caso de las diferenciadas encontradas en los grados de abertura del compás en las distintas sepulturas o su forma de superpoción con respecto a la escuadra, muestran el capital simbólico acumulado por los individuos en vida y el proceso de perfeccionamiento interior y desarrollo del conocimiento de los integrantes de la comunidad masónica, por lo cual la hipótesis que, los individuos darán una diferente significación a los mismos de acuerdo a su posición y capital simbólico acumulado dentro del campo masónico, consideramos queda demostrada. La simbología usada en las expresiones funerarias esta claramente relacionada con la de los ritos y emblemas de las logias masónicas, tal como lo demuestra la simbología egipcia como ornamentación del frente de la logia Hijos del Trabajo de Buenos Aires, por lo cual la estética periférica del Art Decó referida a la arquitectura de raíz egipcíaca, no fue solo una moda sino que tuvo una intencionalidad relacionada con el sistema de creencias masónicas. Las expresiones institucionales de pertenencia a la masonería se encuentran claramente explicitadas en los monumentos funerarios, a diferencia de lo que ocurre en los cementerios urbanos de la Argentina, lo cual puede atribuirse a la profunda tradición liberal y progresista de la comunidad uruguaya y a la separación del culto religioso del estado, que posibilita a las instituciones sociales y a los individuos que la integran una mayor libertad de acción. Los epitafios y sus contenidos se pueden clasificarse dentro de las prácticas de reconocimiento institucionales o de sectores sociales, como los amigos, colegas y familiares. Bibliografía Bourdieu P., 2005 Cosas Dichas. Gedisa. Barcelona Corbiere, E. J. 1998 La masonería, Política y Sociedades Secretas en la Argentina. Buenos Aires. Ed. Sudamericana Chevalier, J. y. Gheerbrandt A, 1995: Diccionario de los Símbolos. 5ª edición. Barcelona. Herder Dotta Ostria M., 2005 De inmigrantes, curas y masones. Montevideo. Ed. de La Plaza Guenon R., 1976 El reino de la cantidad y los signos de los tiempos. Madrid. Ayuso. Gombrich, E.H., 1999 El sentido del Orden. Madrid. Debate. Lappas, A. 2000 La Masonería Argentina a través de sus hombres. 3ª ed. Buenos Aires. Logia Panamérica (ed). Lozano Nell, P. D. 1992 Catálogo de Medallas Masónicas. Gran Logia de la Masonería de Uruguay, Tomo II. Uruguay. Comisión Patrimonio Histórico Masónico (ed.). Pérez Ruiz, M., 1996 Masonería. Una introducción al tema. 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O resultado dos desenhos lavrados na superfície da pedra é estilizado, compõem-se de alegorias cristãs de fácil reconhecimento, bem ao nível da arte popular. No período colonial, nas igrejas brasileiras, os artesãos de época também lavravam as lápides sepulcrais com símbolos escatológicos, uma influencia da cultura européia. Palavras-chaves: Riscadores de pedra; Estado de Goiás; lápides sepulcrais; Estado do Maranhão. Os “riscadores de pedra” eram artesãos que trabalhavam nas marmorarias, no setor de produção, responsáveis por certos tipos de acabamento em túmulos considerado de modelo simples. Provavelmente este tipo de artista-artesão surgiu no Brasil a partir do século XX. Eles tinham como função colocar inscrições, alegorias e ornatos nos túmulos dentro de um processo artístico que visa lavrar na pedra, isto é, gravar na superfície da mesma. O pesquisador Clarival do Prado Valladares, no livro Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros (1972), fez um levantamento escasso de lápides sepulcrais primitivas instaladas no chão de igrejas seiscentistas e setecentistas no Brasil, que foram lavradas na superfície do mármore róseo português ou em pedra de lioz, muitas provenientes de Portugal. Elas eram produzidas por “canteiros”, aqueles artesãos que tinham a arte de cortar e lavrar a pedra (CUNHA, 2005) e eles antecedem ao método utilizado pelos riscadores de pedra. Valladares afirma a existência desse tipo de artesão capacitado para este gênero de artesania no país. “Os canteiros e entalhadores de pedra constituíram uma das profissões pioneiras e de necessidade da colônia, habilitados originalmente para o trabalho com o calcário português, mas logo em seguida capacitados para o exercício da mesma artesania na matéria diversa de nossos arenitos, calcários e granitos” (1972:122). Ele considera estar ali os nossos mais antigos documentos epigráficos e artísticos, de boa qualidade artesanal acoplada à criação artística. 1 As primeiras lápides sepulcrais normalmente contêm no epitáfio dizeres sobre a história de vida da pessoa, sua condição social e dados biográficos. Completa a lápide com ornatos emblemáticos e florais. Como exemplo a lápide do Bispo D. Luiz de Figueiredo, lavrada em pedra de lioz, datada de 1735, hoje exposta no Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia, Salvador, proveniente do claustro do Convento de Santa Teresa. As inscrições sobre o falecido estão envolvidas por uma moldura bem como a emblemática da ordem religiosa. Atenta-se pela repetição simétrica dos motivos decorativos expressos nestas molduras com folhas de acanto e conchas, determinando com precisão as características do estilo barroco. No transcorrer de nossa pesquisa, visitando a cidade de Alcântara do Maranhão, Antiga capital do Estado do Maranhão, deparamos com outro tipo de lápide sepulcral, na Capela dos Passos dentro da Igreja e Convento de Nossa Senhora do Carmo, século XVIII. Existem seis lápides instaladas nas paredes laterais do altar mor, datadas do século XIX e são de moradores ilustres da cidade. As lápides de Antonio Bernardo de Sá Trindade (1774- 1847) e de sua esposa Anna Raymunda Ferreira Trindade (1776- 1849) provavelmente foram construídas pelo mesmo canteiro, que seguiu o modelo pedido pela filha Maria Joaquina Trindade. Há um longo texto epigrafado sobre o mármore preto; o arremate em mármore branco está composto por festões e volutas; apresenta em alto-relevo o signo escatológico da caveira com tíbias cruzadas, conforme costume da época. Segundo Tânia Andrade Lima (1994: 103), no império escravista, as representações da morte são escatológicas, macabras e mórbidas. “Signos que remetem à consumação dos tempos, como caveiras com tíbias cruzadas; orubouros, a serpente alquímica que engole o próprio rabo”, caso da lápide de D. Anna Benedicta de Viveiros Pires (1804- 1857); “fachos e tochas acesas, porém voltadas para baixo; ampulhetas aladas, foices, machados, globos alados, além de morcegos, corujas e plantas narcóticas”. 2 Germano Salles, 1857, Igreja e Convento de Nossa Senhora do Carmo, Alcântara do Maranhão. Já a lápide de Dona Anna Rosa Mendes de Viveiros (1791- 1849) e do senador Jerônimo José de Viveiros (1796- 1857), posteriores a da família Trindade, também apresenta um longo texto sobre as suas origens familiares, gravado no mármore preto. Sobre o mesmo existem bustos de anjos e um anjo sentado diante de uma urna funerária, esculpidos em alto-relevo, em mármore branco. Esta ultima figura não apresenta sensualidade, ela é esbelta, elegante, está classicamente trajada, em atitude contida e reflexiva. Os arremates da lápide também foram construídos em mármore branco com apropriações de conchas, cortinas, volutas e festões, bem ao gosto do estilo rococó. Estamos diante de modelos que referenciam a importância da cultura européia na arte sepulcral brasileira. Na lápide temos o registro do marmorista Germano, Lisboa. Com certeza trata-se do canteiro Germano José de Sales, considerado pelo pesquisador português Francisco Queiroz, como pertencente à segunda maior dinastia de mestres canteiros de Lisboa. Outras obras de Sales já foram encontradas em cemitérios do nordeste, e estão no site: artefunerariabrasil.com.br. Uma pesquisa mais minuciosa e sistemática nas igrejas brasileiras do período colonial, certamente ampliará o número e as variações de modelos de lápides sepulcrais. Quanto à produção dos “riscadores de pedra” do século XX, a nossa pesquisa se concentrou em levantar os túmulos instalados no Estado de Goiás, região central do país, onde os primeiros cemitérios secularizados ainda conservam seu traçado original e os túmulos riscados não sofreram as primeiras reformas, embora a maioria encontra-se em estado de conservação 3 bastante precário. Para a presente análise catalogamos em torno de 70 túmulos. Os cemitérios investigados foram: Cemitério Santana, Goiânia; Cemitério São Miguel, cidade de Goiás; Cemitério de São Miguel, em Pirenópolis; Cemitério Municipal de Corumbá de Goiás; Cemitério Municipal de Bela Vista; Cemitério Municipal de Morrinhos, Cemitério Municipal de Silvania. Existem poucas marmorarias rubricadas nos túmulos pesquisados, citamos a de José de Jesus, Marmoraria Brasileira, da cidade de Goiânia; a de Domingo Mônaco, Marmoraria Mônaco, da cidade de Uberaba (MG); a de Sebastião Ferreira, Marmoraria Progresso, da cidade de Araguari (MG) (VALLADARES, 1972: 1294). Havia uma seqüência na feitura de um túmulo. Primeiramente o cliente escolhia elementos daqui e de acolá para compor o monumento desejado. No segundo passo, “cabia ao projetista da marmoraria realizar um estudo preliminar, dentro das devidas exigências e proporções e apresenta-lo ao cliente sob forma de desenho na técnica da tinta aguada” (BORGES, 2002:77). Na seqüência estudava-se a redução ou ampliação das alegorias e ornatos a serem elaborados pelos riscadores de pedra. Provavelmente havia um álbum de fotografia ou de riscos com os desenhos a serem reproduzidos. Definido o projeto, este era encaminhado para a prefeitura para obter o alvará da construção. Daí iniciava a feitura propriamente dita do monumento funerário. Uma vez montada as peças do túmulo, as partes a serem lavradas eram encaminhadas aos riscadores de pedra para a elaboração do motivo. Este consistia em lavrar na superfície da pedra cinza-clara ou rósea, isto é, no mármore de Sete Lagoas, pelo processo de picotar e polir partes da pedra, resultando disso um jogo de contraste entre o claro e escuro (BORGES, 2005). A importância dessa técnica está no efeito óptico visual que ela produz: uma caligrafia singela, harmoniosa, de fácil compreensão e de grande apuro artesanal. Em um mesmo túmulo podem-se encontrar procedimentos diferentes no lavrar as inscrições dos epitáfios, dos adornos e das alegorias. Nas inscrições utilizavam letras bem trabalhadas, salientes e polidas. Nos adornos e nas alegorias os motivos apresentam-se em relevo bem polido sobre um fundo picotado e baixo, criando assim um contraste entre as duas áreas. Como 4 resultado tem-se um desenho aplicado dentro de um processo invertido, sem perspectiva, em posição frontal, de forma estilizada, “ao nível da arte popular”, segundo define Valladares (1972: 1294). Riscadores de pedra - Cemitério Santana, cidade de Goiânia. Onde concentra os riscos lavrados dentro do túmulo? Normalmente estes estão distribuídos de modo hierárquico e simétrico, seguindo uma organização espacial própria, na parte da cabeceira do túmulo. O símbolo cristão principal apresenta-se centralizado e ladeado por barrados adornados com motivos geométricos ou derivados da natureza. Os motivos dos barrados podem vir de forma seqüencial ou não, dentro de um espaço horizontal, representando: arcos, argolas, losango, faixa grega, folhas e flores estilizadas. É muito comum encontrar este tipo de acabamento nas laterais do túmulo, na função de grade. Nas lajes marmóreas de formatos variados – dentro de retângulos, quadrados, círculos, frontões, obeliscos e cruzes – estão gravados uma variedade de símbolos cristãos, cuja linguagem é espontaneamente assimilada. Muitas versões de pomba, de cruz latina, de cruz grega, de coração com espinhos, de cálice da Eucaristia, de urna funerária e de coroa de flores. Poucas imagens de santos, da estrela de Davi e das iniciais de Cristo. Em alguns casos aparece a alegoria contornada por uma cortina, como se tivéssemos diante de um altar. No geral estes símbolos vêem acompanhados de elementos florais, como o caso das rosas e das margaridas. Todos estes desenhos gravados, aparentemente aleatórios são reconhecidos facilmente pelos cristãos, eles 5 estão perpetuados dentro de um espaço secularizado, nos cemitérios municipais do Estado de Goiás. Por serem túmulos de porte simples, dada às devidas proporções, Valladares (1972: 1301) deduz que os riscadores de pedra trabalhavam com o refugo do mármore que sobrava das marmorarias mecanizadas, de produção industrial. Pelo grande número de túmulos produzidos desta maneira nos cemitérios visitados, somos levados a pensar que a questão não era só apropriação dos pedaços da matéria prima que visava baratear o monumento, mas também uma demanda de gosto corrente da região centro-oeste do país. “Esses elementos fazem parte daquilo que Michel Vovelle (1987:73) denominou de ‘mobiliário sagrado’, indispensável às construções mais fantasiosas e às mais simples, e que variam de acordo com a quantidade e a qualidade dos adornos empregados” (BORGES, 2005). Referências Bibliográficas BORGES, Maria Elízia. Arte funerária no Brasil (1890-1930) ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto = Funerary Art in Brazil (1890-1930): italian marble carver craft in Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002. ________ Expresiones artísticas de cuño popular em cementerios brasileños. Arte latinoamericano del siglo XX: Otras historias de la Historia. Rodrigo Gutiérrez Vinñuales (diretor) – Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza, 2005. ________. Arte funerária no Brasil: Contribuições para a historiografia da arte brasileira. In: XXII Colóquio Brasileiro de História da Arte, 2003, Rio Grande do Sul: Anais. Rio Grande do Sul: PUCRS. 1 CD. CUNHA, Almir Paredes. Dicionário de Artes Plásticas. Rio de Janeiro: EBA/ UFRJ, 2005. LIMA, Tânia Andrade. Dos morcegos e caveiras a cruzes e livros: a apresentação da Morte nos cemitérios cariocas do século XIX. In: Anais do Museu Paulista: História e cultura Material. São Paulo, v.2, p.87- 150 1994. VALLADARES, C. do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros. Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura – Departamento de Imprensa Nacional. 1972. 2v. 6 Consideraciones etnográficas acerca de la vida y de la muerte en la Puna argentina María Gabriela Morgante. Lic. En Antropología y Dra. En Ciencias Naturales. Cátedra de Etnografía II. Facultad de Ciencias Naturales y Museo. Universidad Nacional de La Plata. Resumen Esta ponencia se propone analizar el concepto de muerte en el marco de la cosmovisión puneña, y su relación con la noción de vida. Desde tal perspectiva –asociada a un conjunto sincrético de creencias producto de la dinámica poblacional de la región-, la muerte se vincula con un principio de temporalidad que combina la linealidad y lo cíclico. En el primer sentido, todo individuo en su trayectoria personal alcanza la muerte física y la trascendencia. A su vez cada vida, y cada muerte, reeditan en términos sociales el circuito ritual asociado a la principal deidad del panteón puneño: la Pachamama o Madre Tierra . El material empleado procede del trabajo de campo en las comunidades de Coranzulí y Susques de la Puna jujeña argentina. Palabras clave: Muerte, ritual, Pachamama Presentación La Puna argentina constituye una altiplanicie que se desarrolla por encima de los 3500 mts de altura, y que se extiende desde el centro oeste de la provincia de Catamarca hasta el noroeste de la provincia de Jujuy. El primer poblamiento de la región es protagonizado por grupos cazadores-recolectores con una antigüedad de más de 5000 años. Éstos constituyen la base de un conjunto de poblaciones que interactúan entre sí con el transcurrir de los siglos, a partir de relaciones de tipo migratorio, comercial y/o bélico, y que involucra a grupos indígenas (locales y regionales) y extranjeros (conquistadores, evangelizadores y comerciantes occidentales). Los actuales pobladores de la Puna argentina son grupos criadores de animales y cultivadores, que combinan esta economía con la explotación minera y la participación en otras ocupaciones no vernáculas -estacionales o anuales-. Su cosmología es consecuencia de la dinámica poblacional aludida, en la que participan seres y espacios sagrados, interactuando en el marco de una temporalidad culturalmente significativa. En relación a la concepción del trayecto de vida en particular, todo individuo en su itinerario personal alcanza la muerte física y, con ella, trasciende más allá del mundo terreno. A su vez cada vida, y cada muerte, reeditan en términos sociales el circuito ritual que se sintetiza en la expresión: “la Tierra nos da, la Tierra nos cría y la Tierra nos come”, asociada a la principal deidad del panteón puneño: la Pachamama o Madre Tierra. La presente ponencia se propone analizar el concepto de muerte en el contexto de la cosmovisión puneña, y su relación con la noción de vida. Se seguirá la ruta que transitan el cuerpo y el alma, como dos componentes que se disocian al final de la existencia física. En este punto se atenderá al rol que juega el cementerio como espacio involucrado en este complejo de ritos de pasaje relacionados con la muerte. Luego, se analizarán las ceremonias que -por oposición a la muerte- promueven la vida, a los fines de estudiar el modo en que los momentos del curso de la existencia individual se articulan con la divinidad telúrica central de esta cosmovisión, desde un principio de sucesión de ciclos. En relación a ello se observará una conceptualización diferencial de la muerte -“buena muerte” o “mala muerte”-, condicionada por la calidad del trayecto de vida particular. A los efectos del análisis resultará interesante la aplicación del paradigma interdisciplinario del trayecto de vida. Como orientación teórica, éste considera al desarrollo humano como un conjunto de procesos que transcurren a lo largo de toda la existencia, desde el nacimiento a la muerte (Settersten, 2003). En particular se destacará que cada etapa del trayecto se asocia a un marco social y cultural -a roles y status de edad específicos-, que estructura la existencia de todos aquellos que acceden al período de vida en cuestión, estableciendo calendarios sociales (Lalive d’Epinay y otros, 2005). La articulación entre las etapas se referenciará a la teoría etnológica de los ritos de pasaje, para analizar la organización de las transiciones. Los datos empleados en este trabajo provienen de las comunidades puneñas de Coranzulí y Susques (Departamento de Susques, suroeste de la Provincia de Jujuy) y fueron recogidos en sucesivos trabajos de campo, realizados entre los años 2001 y 2004. Los resultados presentados parten de un trabajo de investigación cuyo interés inicial consistió en el abordaje etnográfico de la cosmología puneña y que actualmente se centra en la consideración antropológica de la vejez en el marco de esta sociedad. La cosmovisión puneña. A los fines explicativos y poniendo particular énfasis en aquellos aspectos relativos a las nociones de vida y muerte que interesan a esta presentación, destacaremos algunos aspectos de la cosmovisión de las poblaciones puneñas. En dicho sistema de creencias, el tiempo es concebido como una sucesión de generaciones (Morgante, 2001), desde los orígenes hasta el presente, interrumpidas entre sí por circunstancias críticas a través de las cuales el mundo y sus habitantes se descomponen y reestructuran. Dado que -a excepción de la vivida en la actualidadcada generación se considera una superación de la anterior, los sucesos pasados constituyen un referente en cuanto a la optimización en la relación entre las divinidades y los hombres, a los fines de garantizar la supervivencia. El mundo se considera integrado por el funcionamiento coordinado de tres ámbitos: celeste, terrestre y subterráneo, y profundo. De todos ellos, el dominio terrestre y subterráneo es el ámbito por excelencia de acción de la Pachamama o Madre Tierra. La misma es considerada un personaje primordial y poderoso, omnipresente, intangible o corporizada en una anciana obesa portadora de coca y otros productos significativos para la vida del hombre puneño. La afinidad entre la humanidad y su divinidad suprema se expresa en el ritual de la corpachada o de challar a la Tierra, a través del cual -en distintas circunstancias y en diversos sitios- se le entrega coca, alcohol y tabaco. En particular, el primero de Agosto de cada año constituye el momento más importante para dicha celebración ritual, pues de la misma dependerá el éxito del ciclo anual que allí comienza (expresado en la cantidad de lluvias que condicionarán el desarrollo de la vida en un ámbito árido como el de la Puna). En este sentido, se establece una relación contractual por la que la Pachamama provee a los hombres del sustento. Si la misma no se respeta, la divinidad castiga a través de la carestía y, consecuentemente, de la muerte. El ciclo ritual antes descripto se corresponde, en su secuencia, con el ciclo vital que desarrollan los hombres a lo largo de su existencia, tal como desarrollaremos en las próximas páginas. La vida, la muerte: el ciclo vital y el ciclo ritual. Siguiendo el esquema general de la visión andina, el mundo puneño es regido por un principio general de energía que unifica todo el universo, y que puede reducirse y resumirse con relación al trayecto vital. En este marco, la Pachamama constituye el referente fundamental que sintetiza la fuerza reproductora del cosmos. Esto se resume en la expresión siguiente: Porque, claro, la Pacha es la Tierra, como dicen. Porque como dicen la Tierra nos cría y la Tierra nos come. Porque cuando Dios ya quiere que muramos abajo de la tierra van. Somos alimentos de la Tierra...(S. S., Susques, 2001). Los tres actos: dar, criar y devorar se corresponden con las actitudes rituales que los hombres asumen respecto de la diosa telúrica. Entre ellos se funda un tipo de reciprocidad que garantiza el bienestar natural y espiritual. En condiciones ordinarias, cada hombre convida -humecta- a la Tierra con sus ofrendas, retribuyendo el acto de la creación de cada vida y de su continuidad. Pero ocurrida la muerte corpórea de cada hombre, la Tierra se consume el cuerpo y libera el alma. Desde entonces el individuo ya no ofrece ritualmente los productos de su trabajo, sino que entrega su propio cuerpo. La actitud antropofágica asumida por Pachamama es, en este caso, de naturaleza preservadora, y garantiza la continuidad de la existencia espirituali. Sin embargo, en otras oportunidades asume una conducta caníbal bajo la forma del castigo: frente a la desobediencia ritual, la Tierra “pilla” o “seca”, absorbiendo el alma de las personas para tomar su sangre, hasta causar la locura y/o la muerte. La muerte se anuncia de diferentes modos: a través del aullido de los perros o de una mortandad importante de la hacienda, así como por medio del sueño con alguien fallecido o con algún objeto perdido. Otro presagio consiste en que el humo producido por la quema en la ceremonia del lavatorio, que describiremos a continuación, adquiera la forma de un sujeto vivo próximo a expirar. Sucedida la muerte física de una persona, en primer lugar se prepara su velorio. Para ello se disponen, inicialmente, la cruz, la corona y el ajuar. También se elaboran o adquieren comidas y bebidas que se convidarán durante el evento. El recientemente fallecido se baña antes de ser depositado en un cajón de madera, para lo cual se lo viste y se le colocan “zapatos cruzados”ii y nuevos. También se agrega una cinta negra en la cintura. La familia utiliza desde este momento ropa del mismo color, en señal de luto, al menos por el término de un mes. La casa del fallecido es marcada con una cruz y, en ocasiones, permanece cerrada definitiva o temporalmente a los fines de neutralizar la presencia amenazante que pueda promover la muerte en otras personas. El concepto de muerte corporal y el entierro del cadáver van acompañados de la idea de que el cuerpo es “comido por los gusanos”, y así se regresa a la Pachamama que originó la vida. Por su parte, el alma de la persona –que a diferencia de su cuerpo es eterna y nunca muere- se convierte en un espíritu o “Dios chico” que asciende al cielo, o en un “alma en pena”. Un testimonio lo refiere en los siguientes términos: La persona tiene cuerpo y alma. El alma es como un guardián de la persona. No se sabe en qué parte del cuerpo está. Cuando una persona se muere el cuerpo ya no tiene validez. El alma es la que paga si te has portado mal en la vida. Con la muerte se separan cuerpo y alma. Los abuelos también creían en esto y en Dios. El alma se va al cielo y no vuelve más. (G.C., Coranzulí, 2003). Los cementerios puneños presentan particulares características asociadas a la importancia que adquiere el rito de transición que se inicia con el entierro, pero que se sucederá por un conjunto de prácticas que en parten tienen este espacio como escenario. En el caso particular de Susques, el cementerio se separa espacialmente de la Iglesia, rompiendo con la usanza del camposanto en torno a esta última. En este sentido se destaca por su independencia del núcleo original del crecimiento urbano y por la extensión del área cercada y la dimensión del pórtico de acceso al mismo (que reproduce la arquitectura de las estaciones o apachetas cardinales). En su interior se destaca una capilla, en torno a la cual sí se distribuyen –en un espacio imaginariamente establecido entre ésta y la entrada- los enterratorios más antiguos, a flor de tierra o en panteonesiii. Esta pequeña capilla está construida en adobe con techo de pajas y puertas de cardón, y está destinada al rezo en el momento del entierro o en eventuales visitas de los allegados del difunto (Bolsi y Gutiérrez, 1974). Una descripción de comienzos de siglo, realizada por el arqueólogo sueco Eric Boman señala: “El cementerio es un cuadrado bastante grande, rodeado de paredes y con una pequeña capilla, del lado opuesto a la puerta. Sobre las tumbas había cruces de madera de cereus. Todo estaba muy limpio y mantenido, pero era un cementerio como el de los pueblos del altiplano, sin particularidades que pudiesen indicar costumbres paganas. Sin embargo, el día de Todos los Santos, se deposita sobre las tumbas, víveres para los muertos (Boman, 1908). Nueve días más tarde del entierro del cuerpo en el cementerio –durante los cuales se reza la novena-, comienza el rito del “lavatorio”. Parte de la ropa del difunto se lava y se entierra en algún lugar de altura frecuentado por el fallecido pastor. El grupo de parientes permanece en el campo varios días o una semana, acompañando al alma y lavando y enterrando parte de la ropa. Junto con ello se queman los huesos de los animales consumidos durante esos días. El humo que resulta de esta quema, ayuda al alma a abandonar la tierra. En el ritual del lavatorio también se ofrendan los productos para la Pachamama Madre Tierra en señal de ruego, y se acompaña de otra libación al agua para pedir paz para el alma del muerto y prosperidad para el mundo de los vivos. Posteriormente, la mayoría de las almas comienzan su viaje al cielo. En algunos casos el rito de pasaje antes descripto se acompaña de otro conocido como “despacho de almas”. El mismo se realiza para garantizar un buen viaje hasta el espacio celestial, así como un destino certero del espíritu hacia allí. Para eso, se mata al perro del muerto, preferentemente uno negro, el cual se entierra junto con un cordero o una llama, también sacrificada. Al perro se lo mata ahorcándolo y al segundo animal, ahogándolo en alcohol. Al primero se le coloca una montura, para que ayude al espíritu a cruzar la Vía Láctea y el otro oficia de “muletero”, cargando la mercancía que el alma necesita para completar su viaje. A partir de allí, cada primero de Noviembre –luego de transcurrido un año de la muerteiv- se ruega a Todos los Santos para que el alma alcance el destino celeste deseado. En esta fecha se traen las cruces del cementerio a la casa del difunto. Se hace un túmulo cubierto con un paño negro y la cruz se apoya sobre un paño blanco. Ello se acompaña con ofrendas de coca, alimentos, bebidas y, particularmente, las figuras de masa que se han confeccionado en los días previos. Estas ofrendas deben brindarse calientes, porque su vapor es lo que permite que el alimento llegue hasta las almas. El día dos de Noviembre, conocido como la celebración de los Fieles Difuntos o Todos los Muertos, las almas se acercan a la tierra como una “comparsa de Carnaval”, y pese a que no se ven se “notan” (advierten) con el viento. Las almas experimentan sentimientos, razón por la cual si estos dos primeros días de Noviembre llueve, se dice que lloran porque están tristes. Pese a que la práctica ceremonial de retribución a la Pachamama se extiende prácticamente a cualquier sitio que necesite “protegerse”, hay una serie de lugares que se exceptúan o evitan. Se trata en todos estos casos de los espacios asociados a la Iglesia, como la capilla misma o el cementerio. Las manifestaciones de la presencia de la Madre Tierra parecen diluirse en estos sitios claramente identificados con el Dios cristiano. Esto explica el por qué durante los primeros aniversarios de la muerte las cruces se trasladan a los domicilios, atendiendo a la rigurosidad que la práctica ritual requiere en los primeros años de sucedida la muerte. Durante la noche del primer al segundo día de noviembre se rezan oraciones. Hay distintos rezos: para las almas, para los difuntos, para los vivos, para el ganado, y para los santos. Con el nombre del difunto también se puede pasar la misa y hacer ofrendas, aunque el cuerpo esté enterrado en un lugar alejado. Participan dos tumbuleros cuya función consiste en mantener nueve velas prendidas, y un rezador para pronunciar cantos y lamentos. Al otro día se reparten que no se consume allí, sino en los domicilios particulares, junto al consumo de coca y bebidas alcohólicas. Hacia el mediodía, las personas concurren con todas las cruces a la iglesia para hacer la misa y, después, al cementerio. El banquete fúnebre suele terminar de consumirse allí o depositarse en las tumbas. Para ello, se construyen las tumbas cuentan con nichos especialmente protegidos para albergar tan preciadas ofrendas. Las ceremonias fúnebres de Noviembre se repiten durante los tres años posteriores a la muerte de la persona muere. Transcurrido ese tiempo la parentela se quita el luto y las ofrendas se colocan en las tumbas del cementerio (sobre un papel o tela negra), en un lugar reparado construido para ello. Ellas llegan a las almas con ayuda del viento. Al tercer día de colocada la ofrenda, la familia come lo que el espíritu no consumió. Buena muerte y mala muerte La muerte por “despeñamiento”, como motivo mítico (Morgante, 2002), instala en el marco de esta cosmovisión la peligrosidad de la altura y la asociación de este lugar con la presencia demoníaca. Por esta razón es habitual la creencia de que el Diablo intenta empujar a pastores o viajeros hacia el abismo, cuando éstos transitan en soledad por los altos. De no concretar su intención original -el “despeñamiento”-, el ser maligno ocasiona un estado de perturbación definitiva en la persona, que suele conducirlo al suicidio. De uno u otro modo, las víctimas incurren en una “mala muerte”, que queda definida por un fallecimiento violento, dando lugar a la liberación repentina (no progresiva) de un alma vengativa y agresiva, que “condenada” vaga durante las noches. Sin embargo, a diferencia de lo que describiéramos anteriormente, las almas de penados y condenados permanecen bajo tierra junto a sus cuerpos, pagando por las faltas cometidas. Conjuntamente, algunos testimonios asocian estas almas a “los antiguos”, que por su existencia anterior al Infierno, comparten con las “almas malas” la conjunción cuerpo-alma a posteriori de la muerte. Del mismo modo que el antiguo puede “pillar” a la persona que se acerca o profana sus antiguas habitaciones o cementerios en las peñas, el alma en pena o condenada provoca la “locura” de quienes toman contacto con ella e, incluso, la muerte por canibalismo. Su accionar las identifica claramente como una de las manifestaciones del Diablo, que procede igualmente en el caso de las alturas, las minas y los estrechos. Las almas “salen” en las malas horas, en el mismo lugar donde mueren, con la intención llevarse a las personas ante quienes se presentan. Para contrarrestar esta amenaza, los familiares o allegados de estos muertos construyen montículos de piedras o “apachetas” de grandes dimensiones en el mismo lugar en que ocurriera el accidente. De este modo se identifica el espacio peligroso en el que cada viajero deberá repetir el convite ritual a la diosa telúrica para reducir la amenaza de daño, solicitando que las desgracias se aparten de su camino y salud para continuar el viaje. Es común que estas almas se exhiban en los malos sitios si su muerte se produjo violentamente, y por propia voluntad. En otras oportunidades puede ser el resultado de la violación de tabúes, como el de desenterrar al muerto. En este último caso, las manifestaciones de lo profundo ocurren en el cementerio, o bien en los sitios inhóspitos en que han sido enterrados furtivamente. Por esta razón, los martes y los viernes son señalados como días en los que debe evitarse el tránsito por esos sitios. Siguiendo el mismo principio de promover la vida por oposición a la muerte, la mujer encinta debe observar desde el momento mismo en que se advierte su condición una serie de tabúes, entre los que se incluyen el evitar velatorios, cementerios o cualquier otro contacto con un muerto. Consideraciones finales Repitiendo el esquema de esta cosmología, el ciclo vital del hombre susqueño reedita – en una escala de menor grado- el mismo circuito. Éste responde a un conjunto de procesos que transcurren a lo largo de toda la existencia, desde el nacimiento a la muerte y su continuidad espiritual. Durante este proceso, y atendiendo marco social y cultural puneño, reconocemos tres microestados que, al igual que los microespacios cósmicos, funcionan como unidades discretas con límites determinados y zonas variables de influencia que son: el nacimiento, el desarrollo de la vida y la muerte y trascenencia. Esta sucesión de microestados se desarrolla básicamente por el dominio de una sola deidad: la diosa telúrica Pachamama. Siguiendo el calendario social que ella rige, el movimiento se origina con la “fuerza de la vida” asociada al nacimiento de cada ser, que asciende desde el interior del “seno materno” para emerger a la superficie bajo la forma de una conjunción entre un soporte corpóreo y un alma. Dicho evento se vincula a una fuerza que se desarrolla en dirección contraria, representada por el entierro de la placenta del recién nacido. Ambos impulsos encontrados tienen, sin embargo, el objetivo común de promover la vida, ahuyentando la acción de las potencias que puedan ocasionar la muerte del neonato y de su madre. Dicha acción ritual y sus objetivos se refuerzan en la creencia vernácula de que todo lo que sale de la Tierra tiene la ambigüedad característica de lo potente, que requiere de la acción humana para encauzar sus acciones. Luego, durante el desarrollo de la vida de cada ser se suceden innumerables circunstancias que reproducen este acto de retribución inicial, en cada una de las celebraciones rituales que acompañan al trayecto vital. Finalmente, el microestado de la muerte implica el entierro del cuerpo y una serie de actos (que involucran la presencia del agua, como por ejemplo en el caso del lavatorio) que garanticen la supervivencia de un alma libre que pueda encontrar un hábitat definitivo. Esta situación requiere, nuevamente, reducir el desarrollo de las fuerzas negativas como el caso de las almas en pena. De esta manera, cada rito organiza la transición esperable ante una “buena muerte” o pretende encauzar los acontecimientos o reducir el daño ante una “mala muerte”, garantizando que la función generadora de vida prime por sobre la degeneradota de la muerte. En este esquema, el espacio de los modernos cementerios opera en forma ambivalente. Espacialmente se emplaza sobre la matriz de la Madre Tierra, pero su asociación con el culto cristiano le asigna algunas particularidades. Contiene el soporte corpóreo, pero solo transcurridos los primeros años del entierro posibilita el desarrollo del ritual que promueve la reducción del daño potencial. Conjuntamente excede el momento mismo de la muerte física constituyéndose en el escenario de la puesta en escena de ritos calendáricos que desalientan los peligros de las almas liberadas por la mala muerte. En este sentido, establece un espacio de interacción para el conjunto de conductas sincréticas relativas a la promoción de la vida y la contención de la muerte que no escapan la marco general del sistema de creencias de los puneños modernos. Referencias Bianchetti (1996) Cosmovisión sobrenatural de la locura. Pautas populares de salud mental en la Puna Argentina. VMH editor, Salta Bolsi, A y R. Gutierrez (1974). “Susques. Notas sobre la evolución de un pueblo puneño”. Revista del Departamento de Historia de la Arquitectura de la Facultad de Ingeniería, Vivienda y Planeamiento, Universidad Nacional del Nordeste, Chaco. Boman, Eric. (1908) Antiquites de la region andine de la Republique Argentine et du desert d'Atacama. Paris, Imprimerie Nationale Lalive d’Epinay C, Bickel J.-F., Cavalli S., Spini D., (2005), "Le parcours de vie: émergence d'un paradigme interdisciplinaire”, in Guillaume J.-F. (Ed.), Parcours de vie. Regards croisés sur la construction des biographies contemporaines Liège, Les éditions de l'Université de Liège : 187-210. . Morgante, M. G. (2001). “Desde la generación de víboras al presente: relatos orales de Coranzulí y Guairazul”. En: Dupey, A. y M. I. Poduje (comp.) Narrar identidades y memorias sociales. Estructura, procesos y contextos de la narrativa folklórica. Edición del Departamento de Investigaciones Culturales de la Subsecretaría de Cultura de la Provincia de La Pampa: 323-329. Morgante, María Gabriela (2002). “Leer el mito, comprender el mundo: organización del entorno en la cosmovisión puneña”. Trabalhos em Etnologia e Antropologia vol. 43, Porto, Portugal: 145-164. Santander, (1971) Folklore de la Provincia de Jujuy. La fiesta de la Candelaria. Quebrada de Humahuaca y Puna. Publicación de la Dirección Provincial de Cultura de Jujuy, San Salvador de Jujuy. Settersten R.A., (2003). "Propositions and controversies in life-course scholarship", in Settersten R.A. (Ed.), Invitation to the life course. Toward new understandings of later life. Amityville (NY), Baywood:15-45. GRÁFICO . COSMOLOGÍA Y TRAYECTO VITAL. Superficie terrestre (Pachamama) cuerpo y alma NACIMIENTO (DAR) alma VIDA (CRIAR) placenta MUERTE (COMER) cuerpo Ámbito subterráneo (Pachamama) FOTOGRAFÍAS. 1) Detalle de la capilla en el cementerio de Susques, 2) Detalle de las tumbas en el cementerio de Susques, 3) Detalle de las tumbas en el cementerio de Coranzulí i La relación entre la vida y la Tierra ha sido notada por Santander (1971) cuando describe la práctica del alumbramiento sobre el suelo, enterrando como ofrenda la placenta y las prendas sucias. Bianchetti (1996) agrega que la placenta se entierra dentro de la vivienda o, en el exterior, en un lugar poco accesible, intentando desvincular de las fuerzas malignas que atentan contra la vida o que promueven su opuesto, la muerte. ii La expresión hace referencia a la práctica de colocar el zapato derecho en el pie izquierdo y viceversa, para que el muerto camine “en dirección contraria” a como lo hacía en vida, y su alma encuentre destino definitivo. iii A diferencia de Susques que como paraje perteneciente a la región de Atacama se remonta temporalmente al siglo XVII, el desarrollo de Coranzulí tiene algo más de un siglo y es el resultado de la explotación minera en la región. En este sentido, su cementerio respeta el patrón descripto para Susques, aunque con enterratorios más modernos y carece de capilla en su interior. iv Antes de ese tiempo no se puede ofrendar porque el alma está pagando las culpas. Pasado ese lapso el alma está “de franco” o “despachada” por Dios. As representações edificadas como reflexo social Cemitério Municipal São José Maristela Carneiro Universidade Estadual de Ponta Grossa Universidade Estadual do Centro-Oeste Resumo Este trabalho buscou perceber de que maneira as relações sociais, religiosas e culturais são expressas na distribuição espacial do Cemitério Municipal São José e como são demonstradas nos ícones contidos nos túmulos do mesmo, desde a sua instituição em Ponta Grossa, no ano de 1881, até os nossos dias. Através do levantamento fotográfico e quantitativo dos dados cemiteriais, processados em Sistemas de Informações Geográficas, bem como considerando as discussões pertinentes à memória, às práticas identitárias e às representações sociais, constatamos que a referida necrópole é um espaço de múltipla representação simbólica, com o potencial informativo acerca das identidades do meio social ponta-grossense no qual está inserido, para a preservação da memória dos mortos, bem como dos contextos nos quais estavam inseridos enquanto vivos. Palavras-Chave: Cemitério, Representações Sociais e Cidade. A utilização dos mortos em nossa sociedade, destacando o caráter homólogo ao outro mundo, permite a conciliação da rede de relações pessoais em torno dos mesmos e de sua memória. Com a finitude, os mortos imediatamente passam a ser concebidos como exemplos e orientadores de posições e relações sociais, servindo, portanto, como foco para os sobreviventes, vivificando e dando forma concreta aos elos identitários que ligam as pessoas de um grupo. E o espaço cemiterial, por conseguinte, é privilegiado para a concretização e demonstração das conexões entre a memória, as práticas identitárias e as representações sociais, dialeticamente construtoras de relações sociais, bem como construídas pelas mesmas. Entendemos que o culto dos mortos passa por um filtro de percepção, permitindo que somente os valores considerados essenciais pelos vivos, para a recomposição do sentido da vida, sejam expressos no espaço cemiterial, no qual este trabalho encontra-se circunscrito. Assim, a individualização das sepulturas e os valores expressos nas mesmas demonstram o desejo de preservar a identidade e a memória dos mortos, servem à expressão e/ou transmissão dos valores culturais e à própria reconstituição do sentido existencial para os que ficam. Nesse sentido, ao considerarmos o Cemitério Municipal São José como expressão constante e dinâmica de representações sociais, campo de convívio e embates de múltiplas tradições e possibilidades culturais, a discussão aqui proposta buscou perceber de que maneira as relações sociais, religiosas e culturais, de um modo geral, são expressas na distribuição espacial do mesmo e como são demonstradas nos ícones contidos nos túmulos deste, desde a sua fundação em Ponta Grossa, em 1881, até os nossos dias. Para o desenvolvimento desta pesquisa foi realizado, túmulo a túmulo, um levantamento fotográfico e quantitativo dos dados cemiteriais, organizados em fichas catalográficas elaboradas com este fim. 1 Tais dados foram em seguida processados em Sistemas de Informações Geográficas (SIGs SPRING 4.3 e KOSMOS 0.8.3), para a geração de cartogramas e gráficos a fim de instruir a análise qualitativa, contando com o apoio de outros programas específicos (Microsoft Office Excel 2003 e Inkscape). Figura 1 – Cartograma Representativo das Quadras do Cemitério Municipal São José Os SIGs são uma tecnologia do mundo contemporâneo, que tem como característica principal a capacidade de integração e transformação de dados espaciais, entendidos como a descrição quantitativa e qualitativa dos fenômenos ocorridos no “mundo real” e que têm como premissa a reprodutibilidade, desde que satisfeitas as mesmas condições de coleta. Ao mesmo tempo em que a utilização dos SIGs revoluciona a análise das informações, também depende de forma umbilical da racionalidade da construção de um banco de dados, somente possibilitada com o auxilio de técnicas computacionais sofisticadas e de profissional especializado. O modelamento dos dados espaciais é realizado através de estruturações lógicas, para representar variações geográficas em bancos de dados digitais, sendo que os cartogramas, construídos para a análise das informações na configuração espacial do Cemitério Municipal São José, são as representações gráficas destes bancos. 2 Assim, ao considerar a inerência entre técnica e teoria, este trabalho se propôs a demonstrar a utilização dos Sistemas de Informações Geográficas, ferramentas para a investigação científica, para a análise do espaço cemiterial e, indo além, como contribuição reflexiva para a análise e/ou ampliação do próprio campo do historiador, na era do gerenciamento disciplinado de informações. O espaço cemiterial é percebido como reflexo e condição da sociedade, cuja dimensão social corresponde ao espaço urbano em grande escala, de forma temporal e justaposta. Considerando-se que a morte é portadora de múltiplas dimensões, diretamente influenciadas pela relação entre espaço e tempo, observa-se que a paisagem cultural é o conjunto de formas materiais dispostas e articuladas entre si no espaço – “vitrine permanente de todo o saber, expressando a cultura em seus diversos aspectos, possuindo uma faceta funcional e outra simbólica.” 3 Assim as paisagens, dentre as quais a cemiterial, servem como mediadoras na transmissão cultural, contribuindo para transferir de uma geração para outra os saberes, crenças, atitudes sociais, ou seja, as próprias práticas identitárias, para o estabelecimento e reafirmação das relações sociais. Destarte, o espaço define-se como um campo de representações simbólicas, enriquecido com signos que possuem a finalidade de expressão das estruturas sociais em suas múltiplas dimensões. Nesse viés, faz-se pertinente observar que as transformações na contemporaneidade têm conduzido os historiadores a se debruçar sobre os estudos da memória, o que amplia as inquietações acerca do cotidiano e favorece a abordagem do espaço urbano, contribuindo, dessa forma, para redefinir e expandir as noções tradicionais do significado histórico e diversificar as possibilidades de análise sobre a cidade que, de pano de fundo, passou a ser percebida como objeto, questão e/ou problema. Matos aponta que uma das primeiras vias a considerar a cidade enquanto questão, a partir do final do século XIX, foi a higiênico-sanitarista, que buscava neutralizar o espaço e qualificá-lo como universal e manipulável, através do discurso científico. Assim, a cidade passou a ser signo do progresso e da civilidade, permeada pelos pressupostos da disciplina e da cidadania, palco de tensões sociais, assim como o próprio espaço cemiterial. 4 Assim, identificamos o espaço cemiterial enquanto experiência individual e coletiva, reflexivo da cidade na qual está inserido e portador das tensões e representações sociais inerentes à mesma. As representações sociais determinam a interpretação dos comportamentos, designando uma forma de pensamento social segundo a qual o conhecimento provém da observação. Dessa forma, conforme Gregio, as representações sociais da realidade estão sempre “vinculadas às experiências, à cultura assimilada no decorrer de sua vida, à linguagem que utiliza nas relações sociais, enfim à própria história pessoal e do grupo social com o qual convive e se relaciona”. 5 O conhecimento dessas representações oferece a compreensão de como os sujeitos sociais apreendem os acontecimentos da vida diária, as características do meio, as informações que circulam, as relações sociais e as práticas identitárias, elementos estes amplamente demonstrados no espaço cemiterial. Portanto, buscamos analisar o espaço e a paisagem material do Cemitério Municipal São José, considerando as discussões pertinentes à memória, às práticas identitárias e às representações sociais, convergentes no espaço urbano, este refletido no espaço cemiterial, percebido enquanto espaço de “representação simbólica”. 6 Constatou-se que a expressão simbólica da morte assume múltiplos sentidos, aplicados aos rituais funerários, aos cultos religiosos e às manifestações artísticas, em diferentes culturas, construindo-se, dessa forma, respostas à pergunta acerca do sentido da vida e à problemática da morte, ou seja, o perfil simbólico da morte em cada sociedade é resultante da maneira como o fato bruto da finitude foi assimilado, preenchido de significação cultural e inscrito no sistema dos valores que asseguram o funcionamento e a reprodução de uma determinada ordem social e da própria identidade coletiva. Nesse sentido, os cemitérios passaram a ser reflexivos do universo cultural de cada época e sociedade, constituídos como construção da realidade, através dos quais a coletividade designa sua identidade; premissa esta amplamente demonstrada no Cemitério Municipal São José, conforme a análise dos atributos levantados fotográfica e quantitativamente, onde, por meio das sepulturas, registra-se a percepção do ser humano frente à finitude, ainda que de forma fragmentada e justaposta. Portanto, reflexo e condição da sociedade, o Cemitério Municipal São José é inerente ao contexto mais amplo e segmentado da cidade de Ponta Grossa, conforme ressaltado através da análise das providências legislativas, da bibliografia regional e também do conteúdo publicado pelos periódicos locais (Diário dos Campos e Jornal da Manhã), que trazem indicativos de normatização e disciplinarização do convívio social, bem como leituras de civilidade e progresso. Figura 2 - Vista Parcial do Cemitério Municipal São José Década de 1970 Acervo do Museu Campos Gerais Com a recuperação destes discursos produzidos pela Imprensa, pela Igreja e pelo Poder Público, relacionados à fundação e ao desenvolvimento e localização do Cemitério na cidade, percebemos a presença das múltiplas vozes ao se tratar da temática cemiterial: destacam-se as tensões urbanas vivenciadas de forma fragmentada e diversificada, relacionadas ao espaço e aos jogos de memórias e experiências e expressa a complexidade social e os embates travados pelos diversos grupos sociais, tanto concretamente quanto no plano simbólico, para a construção e legitimação de uma determinada perspectiva de cidade. Nesse viés, constatou-se que o poder público promove e reforça a hierarquização no espaço do Cemitério Municipal São José, ao regulamentar as distinções territoriais através das taxas, emolumentos e do processo de constituição da monumentalidade, através dos investimentos na construção do portal de entrada e das alamedas que conduzem ao mesmo. Tais medidas reforçam a percepção de que a necrópole não foi estabelecida somente como o espaço para os mortos na cidade, mas também como representação simbólica de progresso e de higienização, inscrita em um discurso social, político e urbanístico mais amplo. A construção da monumentalidade é obtida por meio da articulação entre os investimentos públicos e privados, não restritos ao entorno da necrópole, mas também presentes na distribuição espacial da mesma, sendo que sua organização é semelhante à estrutura social da cidade que a abriga, também fragmentada pelos diferentes usos, articulados constantemente. Na análise da distribuição dos atributos área, formato, material e estado de conservação das sepulturas, ficaram evidenciadas variações de padrão nas construções, indicativas da configuração do Cemitério Municipal São José, ou seja, uma necrópole urbana e central, destacada com relação às demais, seja pela localização, seja pelos elementos estilísticos, muitos nos moldes europeus, e, especialmente, constituída e/ou justificada sob a lógica da pretensa civilidade. Com efeito, concluímos que o espaço do Cemitério Municipal São José é um ordenador espacial e social. Espacial, considerando-se que foi estabelecido num primeiro momento como limite do perímetro urbano e, após, absorvido pela expansão da cidade, o que influenciou diretamente na configuração do mesmo como ordenador social, tendo em vista que a partir da construção dos demais cemitérios na cidade, o público que teria acesso àquele passou a ser selecionado, até mesmo pelas providências legislativas. A subjetividade dos vivos e suas relações com a sociedade são materializadas no espaço urbano e cristalizadas no espaço cemiterial. Assim, para além dos muros e do concreto do Cemitério Municipal São José, voltamos nosso olhar para o simbólico, que objetiva a transmissão de valores culturais, para o estabelecimento e reafirmação das relações sociais. Ao compreendermos o espaço funerário e as representações semânticosimbólicas constantes no mesmo, como respostas edificadas para o problema da morte, encontramos neste a percepção destas representações, individuais e coletivas, privadas e públicas, vinculadas à religiosidade, à familiaridade, aos valores sociais, especialmente destacadas nas tipologias cristã, alegórica e cívico-celebrativa, analisadas no decorrer do trabalho. Quanto à análise das opções religiosas da sociedade pontagrossense, ainda que um cemitério secular, evidenciou-se que a maioria das construções são vinculadas aos referenciais do cristianismo, principalmente pela forte presença das cruzes no referido campo-santo, ao lado das representações de Jesus, Maria, dos santos e dos anjos, estes últimos muito relacionados aos sentimentos personificados. Isso não significa que outras opções religiosas não se façam presentes, fato que buscamos demonstrar através da representação dos referenciais judaicos, presentes em dois túmulos encontrados na distribuição espacial do Cemitério Municipal São José. Demais manifestações não puderam ser certificadas, frente aos limites deste trabalho. As alegorias, também a serviço dos ideais de civilidade e de monumentalização e demarcação espacial, foram analisadas, levando-nos a concluir que seu sentido está diretamente relacionado à expressão dos sentimentos, cristãos e emocionais, ou seja, podem ser interpretadas como representações sociais, no formato alegórico, às quais é inerente a finalidade de preservar a memória dos mortos através da individualização das sepulturas. Constatamos que o Cemitério Municipal São José, seguindo a função desempenhada pelos “campos santos” presentes na sociedade ocidental e brasileira, de uma maneira geral; é um espaço de múltipla representação simbólica, com o potencial informativo acerca das identidades do meio social ponta-grossense no qual está inserido, para a preservação da memória dos mortos, bem como dos contextos nos quais estavam inseridos enquanto vivos, como por exemplo, os túmulos de manifestações positivistas e maçônicas. Assim, a preservação da memória fortalece a afirmação da identidade cultural, também múltipla, considerando-se que através das expressões funerárias associa-se a memória do morto aos aspectos sociais e culturais com os quais o mesmo mantinha relação antes de morrer, associação esta logicamente mediada pelo olhar dos sobreviventes, para os quais o sentido da vida é elaborado e apresentado. A memória dos mortos é então mediada pela memória dos vivos, sendo que a individualização de cada túmulo é indicativa do desejo de continuidade existencial, fato expressado através das placas de casal e dos nomes de família, por exemplo. De forma significativa, as expressões e as transmissões culturais, através dos valores e do conteúdo simbólico contido nos túmulos, servem ao estabelecimento e à reafirmação das relações sociais, como se demonstrou através das inscrições alemãs, que objetivam a definição da identidade teuto-brasileira. Os túmulos do Cemitério Municipal São José são concebidos neste trabalho tanto como uma realidade mental quanto como uma realidade social e espacial que, conjugadas, constroem o ambiente propício para que os sobreviventes elaborem suas representações sociais, para a constituição de mundos sociais específicos. 7 Através das representações sociais, são reunidos fragmentos de memória, aos quais atribui-se unidade e sentido e, assim, são estabelecidos os filtros de percepção. As tentativas de explicação da morte estão presentes nas necrópoles e influenciam diretamente o culto aos mortos, interagindo com os mecanismos de memória dos vivos, de modo a estabelecer sentido à finitude e resolver a problemática da morte, tão cara aos sobreviventes. Referências Bibliográficas ARAÚJO, T. N. de. Túmulos celebrativos de Porto Alegre: múltiplos olhares sobre o espaço cemiterial (1889-1930). Porto Alegre: PUCRS, dissertação de mestrado, 2006. ARIÈS, P. História da Morte no Ocidente. 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A informática na educação: as representações sociais e o grande desafio do professor frente ao novo paradigma educacional. Revista Digital da CVA - Comunidade Virtual de Aprendizagem da Rede das Instituições Católicas de Ensino Superior. Disponível em: http://www.ricesu.com.br/colabora/n6/artigos/n_6/pdf/id_02.pdf ; acessado em 15/11/2005, p. 5. 6 ARAÚJO, T. N. de. Túmulos celebrativos de Porto Alegre: múltiplos olhares sobre o espaço cemiterial (1889-1930). Porto Alegre: PUCRS, dissertação de mestrado, 2006, p. 113. 7 CHARTIER, R. Introdução: Por uma sociologia histórica das práticas culturais. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 27-28. Lápide e Memória Mayra Lopes de Almeida Reis Faculdade de Medicina de Itajubá Resumo A memória possui uma importante posição na sociedade atual, não só por consolidar o conhecimento, mas também por fornecer ao indivíduo evocações de fatos que faz com que ele consolide sua história e evoque seus hábitos. Há aspectos importantes no mecanismo da memória e no seu desenvolvimento e ampliação no decorrer da história. Um marco no senso de existência e busca por historicidade evidencia-se com o surgimento da lápide completada pelo epitáfio. A lápide assume uma conotação não apenas de construção, mas também simbólica sendo uma evidência da evolução do SNC e no uso atribuído aos centros neuronais, que por necessidade afetiva e social se desenvolvem e culminam em outros progressos para a humanidade. Palavras-chave: lápide, memória, existência. INTRODUÇÃO Memória é a capacidade de reter, recuperar, guardar e evocar informações. A memória humana se consolida, ao focar em objetos determinados e por requerer grande quantidade de energia, tende a se deteriorar com o passar do tempo. Para deter tal deterioração o ser humano criou, no decorrer das eras, para facilitar a evolução, mecanismos que visam manter a memória para dessa forma consolidar a história e tornar a vida facilitada por intermédio da tradição. A tradição que é expressa por meio da arte, que pode ser encontrada em todos os lugares, inclusive nos cemitérios e nas lápides que evocam a memória e funcionam como indicativo implícito do contexto da saúde de uma época, de seus medos e de suas esperanças, da existência de uma vida que jaz em corpo, mas que se insere na história. Aponta ainda para a evidência de que o sistema neuronal adapta os homens ao ambiente nos diversos âmbitos, dentre eles o físico, o social e o afetivo. Serve como indicativo significativo de que a memória precisa de estímulo para se conservar, uma vez que consiste em uma capacidade de atualizar informações necessárias a manutenção da vida. Conhecimento empírico tão antigo quanto às lápides que só recentemente tem sido sistematizado e estudado pela neurociência que deve usar as lápides como prova empírico-histórica para consolidação de suas teorias acerca da memória. LÁPIDE Presença de pedras consolidando as lápides, um hábito ainda vigente na constituição dos cemitérios atuais. Lápide, o mesmo que lápida ou ainda lousa tumular, é um substântivo feminino que no passado já foi indicativo de pedra comemorativa de um fato notável, que com o decorrer da história, passou a celebrar a memória de alguém, uma vez que uma vida que se finda é uma existência que se torna completa, um feito considerável por sua completude. Apesar de atribuirmos sua construção ao século XIV, como uma medida para axiliar na duração das obras, existem inúmeros relatos acerca de sua existência que precedem e muito a tal data. Geralmente os relatos estão associados a textos literários ou históricos, pois a conservação que visava superar a efemeridade encontra-se em sua maioria em cemitérios, igrejas, e outros locais, sendo atualmente encontradas inclusive em museus. Um dos textos mais conhecidos que ilustra a historicidade da lápide é: “Jesus, pois, movendo-se outra vez muito em si mesmo, veio ao sepulcro; e era uma caverna, e tinha uma pedra posta sobre ela.” – Jo 11,38. A pedra pode ser, portanto, considerada como precursora de toda e qualquer lápide, por possuir atributos físicos que vão desde proteção e marcação do lugar onde o corpo deita-se para o sono eterno, até inclusive atributos simbólicos devido a sua lenta deterioração física, conferindo ao imaginário humano a idéia de que não é efêmera, ou, ao menos, não tão efêmera quanto à vida humana. “Os antigos germânicos, por exemplo, acreditavam que os espíritos dos mortos continuavam a existir nas lápides dos seus túmulos. O costume de colocar pedras sobre os túmulos deve ter surgido da idéia simbólica de que algo eterno do morto subsiste, e encontra nas pedras a sua representação mais adequada.” – Jung Inclusive devido a tal analogia pode se estruturar uma relação simbólica entre a pedra e o ser. “Já mencionamos o fato de que o self é simbolizado, com muita freqüência, na forma de uma pedra, preciosa ou de outro tipo qualquer.” Jung As funções física e simbólica da lápide são brilhantemente citadas: “Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida, À sombra de uma cruz, e escrevam nela: Foi poeta - sonhou - e amou na vida. Sombras do vale, noites da montanha Que minha alma cantou e amava tanto, Protegei o meu corpo abandonado, E no silêncio derramai-lhe canto! Mas quando preludia ave d’aurora E quando à meia-noite o céu repousa, Arvoredos do bosque, abri os ramos... Deixai a lua pratear-me a lousa!” (Álvares de Azevedo) Na estrofe inicial, o poeta menciona o esquecimento que vem com a morte, e o desejo de eternizar-se no tempo por meio do seu ofício, contribuição para o mundo, através do que simbolizou a sua existência. Na segunda, menciona a função de protetora e delimitadora de onde o corpo jaz necessitando de abrigo, acolhimento. Na terceira, pede para a natureza abrir-se de forma que permita ao luar iluminar a lápide, ora, se ilumina algo para que seja visto. E o que é visto é imediatamente lembrado, evocado porque existe de certo modo na memória. Tal memória é indicativa da evolução neurológica humana que começa a colocar-se além da memória de procedimento, que é ligada a capacidade de reter e processar informações que podem ser realizadas como andar, por exemplo; Atingindo a memória declarativa que consiste na capacidade de verbalizar um fato, podendo ser imediata ao tratar de fatos muito recentes que são rapidamente esquecidos sem deixar traços, ou mesmo, das memórias de curto ou longo prazo. A memória de curto prazo forma traços de memória e possui a duração de algumas horas, podendo ou não ser consolidada. Se consolidada, pode durar meses e anos sendo chamada de memória de longo prazo. A memória de longo prazo envolve a capacidade de aprendizagem e assume suma importância para a evolução de uma tradição de cultura universal por meio do conhecimento alcançado por gerações ancestrais e acionado por gerações futuras de seres também inseridos no tempo. A lápide enquanto forma material para evocação da memória funciona inclusive como auxiliadora da memória que é base do conhecimento e deve ser trabalhada e estimulada, pois é por meio das experiências cotidianas transmitidas que se atribui significação ao sentido da existência humana. Enquanto ser social, de importância histórica, a lápide tenderá a referir-se ao ofício que dignificou o ser por ela eternizado, evocado, lembrado se tornando um verdadeiro livro de vidas, pois foi completa com um texto, o epitáfio. EPITÁFIO Epitáfio é uma palavra de origem grega, ἐπιτάφιος que significa “sobre a tumba”. Etimologicamente, prefixo epi que designa posição superior acrescido do radical tafos que significa túmulo. São, portanto, frases escritas sobre os túmulos, homenageando a pessoa ali sepultada, geralmente escrito em placa ou pedra. A composição musical mais antiga e completa do mundo ocidental (letra e melodia) de que se tem notícia é o epitáfio de Seikilos. A melodia foi encontrada gravada em grego em uma lápide perto de Aidin na Turquia (próximo de Éfeso). Com o seguinte texto: GREGO (transliterado): Hoson zes, phainou Meden holos su lupou Pros oligon esti to zen To telos ho chronos apaitei PORTUGUÊS: Enquanto viveres, brilha Não sofras nenhum mal A vida é curta E o tempo cobra suas dívidas Além da composição presumivelmente feita para a esposa de Seikilos enterrada no local, há ainda a inscrição: “Eu sou um túmulo, um ícone. Seikilos me pôs aqui como um símbolo eterno da lembrança imortal.” Expressões como “lembrança imortal” servem como indícios do uso de determinadas áreas cerebrais sempre associadas ao aspecto emocional e de linguagem. Desde meados do século XX questiona-se se as funções de memória são localizadas em regiões cerebrais específicas havendo dúvidas quanto a sua possível relação com linguagem e percepção, ou se seria apenas uma função distinta da atenção. Ora, considerando-se as evidências históricas presente nas lápides, percebe-se que essa função, mesmo que centralizada não encontra-se só. Em 1861 Broca demonstrou que lesões restritas à parte superior do lobo frontal esquerdo (área de broca) causavam um defeito específico na linguegem afetando também a memória. Penfield foi o primeiro a mostrar que os processos de memória encontram-se associados a locais específicos no cérebro humano verificando que estimulação elétrica produz resposta experiencial ou retrospecção em que o paciente era capaz de descrever uma lembrança ou experiência vivida. A lápide, também no decorrer da história funciona como um estímulo para a memória mas efetuada por meio de outras vias neuronais mais corticais relacionadas à linguagem, principalmente quando existe a presença do epitáfio. E a questão da memória que é tão atual no que tange ao afinco científico da neurociência e da psicologia, impera de forma prática por muito tempo nas lápides pelos cemitérios mundo afora. LÁPIDE NA HISTÓRIA A lápide está na história e sofre interferência por meio da mesma. Protege a memória e sofre interferência por intermédio das memórias. No século XIV com a presença da peste negra ouve uma devastação de vidas humanas, devastação que só se reduziu a partir de 1350 embora a doença permanecesse no continente europeu de forma endêmica até por volta do século XVIII. As seqüelas deixadas pela peste foram permanentes, alterando a relação das pessoas, abalando a infalibilidade do clero, ampliando o misticismo e reforçando a fé pessoal. Na arte transformou-se a forma com que a morte era representada, mais assustadora agora, levando em seus braços falecidos descarnados e torturados, testemunha permanente da imensa cicatriz psíquica social provocada pela peste negra. E, como toda cicatriz psíquica precisa de uma resimbolização para conferir sentido a dor sentida, gerando esperança e possibilitando a continuidade da vida. Curiosamente, encontra-se nos livros de história o arquiteto Jackson como o primeiro a projetar a primeira lápide em 1366. A lápide vem, portanto, eternizar o homem efêmero e vencer a dor causada pelas perdas ocasionadas pela peste. A lápide pode funcionar inclusive como única via da herança deixada sobre a face da terra pelos homens diante da morte, como tão bem ilustrada na lápide que não existiu na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”– MACHADO DE ASSIS. Sendo assim a lápide assume na história uma função de narrar a memória social da humanidade. O que pode ser ilustrado por algumas lápides famosas, como por exemplo: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. – Machado de Assis “Passant, ne pleure pas ma mort (Passante, não chores minha morte) Si je vivais tu serais mort. (Se eu vivesse tu estarias morto)” - Robespierre “Δεν ελπίζω τίποτα. Δεν φοβούμαι τίποτα. Είμαι ελεύθερος ("Não espero nada. Não temo nada. Sou livre").” - Níkos Kazantzákis “É uma honra para o gênero humano que tal homem tenha existido." Newton "Considero minhas obras como cartas que escrevi à posteridade sem esperar resposta". - Villa-Lobos "Assassinado por imbecis de ambos os sexos". - Nelson Rodrigues Há ainda casos atípicos como o da família de Tancredo Neves que mudou o epitáfio desejado pelo mesmo, que era o seguinte: "Aqui jaz, muito a contragosto, Tancredo de Almeida Neves". EPITÁFIO E SOCIEDADE O epitáfio acabou por se tornar algo importante sob a perspectiva social, e também se tornou forma de expressar a ironia. Mas, sem perder a sua função típica de expor de forma resumida o sentido da vida do sujeito, evocar uma memória. Ao que pode ser ilustrado pelo seguinte texto que caminha pelo correio eletrônico sem referencia de autor, mas que sem dúvida é uma expressão da relação do senso comum com a arte da lápide em uma crítica social. Profissão Agrônomo Alcoólatra Arqueólogo Assistente social Broter Cartunista Delegado Ecologista Espírita Funcionário público Gay Herói Hipocondríaco Humorista Jangadeiro diabético Judeu Pessimista Psicanalista Sanitarista Viciado Lápide Favor regar o solo com Neguvon. Evita vermes. Enfim, sóbrio. Enfim, fóssil. Alguém aí, me ajude! Fui. Partiu sem deixar traços. Ta olhando o que? Circulando, circulando. Entrei em extinção. Volto já. É no túmulo ao lado. Virei purpurina. Corri para o lado errado. Eu não disse que estava doente? Isso não tem a menor graça. Foi doce morrer no mar. O que vocês estão fazendo aqui? Quem está tomando conta da lojinha? Aposto que está fazendo o maior frio no inferno. A eternidade não passa de um complexo de superioridade mal resolvido. Sujou! Enfim, pó. LÁPIDE DO INDIGENTE Ao falarmos da função de memória social para as lápides, fica incógnita a função da mesma para aqueles que por vezes sequer têem túmulos, os indigentes. Mas, mesmo o indigente que faz algo pela humanidade, apesar de não possuir uma tumba clássica, recebe uma espécie de lápide nos centros anatômicos, pois antes da sala das cubas há sempre uma placa que é sem sobra de dúvidas, uma lápide simbólica. Mostrando que a lembrança e a gratidão funcionam como companheiras na construção da história e na consolidação da memória daqueles que antecederam contemporânea na caminhada humana sobre a Terra. a geração Placa sobre a porta da sala das cubas (onde guardam os corpos) no centro anatômico, com dedicatória ao cadáver desconhecido. Eis os dizeres, e a memória que existe na lápide do indigente que contam também no código de ética médica: “Aquele sobre cujo peito não se derramaram lágrimas de saudades, sobre cujo ataúde não se jogaram flores, de cujo nome não se soube, sobre cujo feitos não se escreveu a historia, mas cuja lembrança, em nós, haverá de ser eterna como a saudade, grande como altruísmo, eloqüente como o seu gesto, dando tudo à mesma humanidade que tudo lhe negou em vida.”- Autor desconhecido A lápide atualiza, portanto, aspectos de uma memória que se inicia no singular e que vai até o universal, uma vez que retrata a forma de lidar com uma condição humana universal: a inserção do humano no tempo. Referências Bibliográficas ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Editora Globo. São Paulo. 1997. AZEVEDO, Álvares de. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (ColeçãoPoetas do Brasil) BEE, Helen. O Ciclo Vital. Trad Regina Garcez. – Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Almeida Corrigida e Fiel, 1994. Código de ética do estudante de medicina. Brasília- DF: janeiro de 2004. Terceira edição. Página 13 FREUD, S. [1901] A Psicopatologia da Vida Cotidiana. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980c, v. 6. ___. [1917] Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980e, v. 14. JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. 18 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p 209. LE GOFF, Jacques. As doenças têm história. Lisboa: Terramar, 1990. LOYN, H. R. Dicionário da idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. MACHADO, Ângelo. Neuroanatomia funcional. Editora Ateneu. São Paulo, 2004. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Editora Vozes. Petrópolis, 1997. Luto roubado Mayra Lopes de Almeida Reis Faculdade de Medicina de Itajubá Resumo Além da função de agente promotor da saúde pública no campo biológico, o cemitério possui conotações simbólicas que lhe conferem a capacidade de promover saúde psíquica, pois, por meio dos ritos e da estrutura física do local o sujeito que perdeu um ente, simboliza sua perda, realizando um processo normal de luto. O que impossibilita a instalação de algumas psicopatologias decorrentes de um luto não cumprido devidamente. A mudança da estrutura física do cemitério para o modelo de parque altera o luto normal, pois ao negar a dor da perda por meio da supressão de elementos simbólicos, o sujeito sente culpado por sentir tal dor, e, reprimindo-a aumenta sua propensão para inúmeras psicopatologias. Palavras-chave: cemitério, luto, parque. INTRODUÇÃO Ao avalia-se a estrutura física do cemitério é significativo questionar: “Qual o objetivo de se colocar um corpo debaixo da terra?”. A pergunta pode ser rapidamente respondida pela área da saúde pública, afinal, debaixo da terra o corpo tem seu processo de decomposição longe de insetos, o que reduz o mau cheiro, as bactérias no ambiente, o risco de epidemias. É uma medida higiênica e salubre. Mas observando-se a estrutura do cemitério, torna-se perceptível a existência de rituais e consternação, o que gera um questionamento ainda mais complexo: “Qual o objetivo de se reunir pessoas somente para colocar um cadáver na terra?”. A dúvida se aguça ainda mais quando ao estudar diferentes culturas constata-se que mesmo que tais formas não sejam universais e consonantes no que tange a valores, elas existem em todos os tipos de povos. Afinal, independente da causa do óbito ou da localidade, o morto deixa amigos, familiares, uma tradição na qual vivia imerso, portanto, faz-se necessário lidar com essa morte de alguma forma. Assim, quase todas as culturas criam seus padrões de reação imediata à morte, e essa reação se relaciona ao cemitério e ao ritual fúnebre. Segundo Marshall e Levy: “Os rituais proporcionam... meios através dos quais as sociedades buscam controlar o elemento destroçador da morte, tornando-o significativo... O enterro como um instrumento formal para se realizar o trabalho de finalização de uma biografia, de controle da consternação e da construção de novas relações sociais após a morte”. (pg 246; 253). Independente da variação cultural de se vestir preto ou branco, os funerais auxiliam aos que ficam a desempenhar seu pape social, uma vez que agora faltará um membro nas relações, estabelecendo novas linhas de influência e autoridade, fortalecendo laços familiares, contando a história da vida do sujeito e descrevendo o valor dessa vida, auxiliando assim na aceitação dessa morte, bem como da nova dinâmica familiar a ser instituída. Os rituais ainda se fazem necessários no que toca aspectos filosóficos e religiosos, pois ajudam a responder dúvidas dolorosas como: “Por que agora?”, “Por que dessa forma?”. Oferecendo uma acolhida entre os familiares e amigos, propiciando assim algum conforto nos dias imediatamente após a morte. LUTO NORMAL “O sentido mais difundido da morte, para a maioria dos adultos, é o de perda. (...) Além disso, está é a percepção de que a morte significa perda de relações, perda do gosto e do cheiro, perda do prazer”. – Helen Bee O processo de luto normal envolve a vivência da sensação de perda, de sofrimento, de saudade. Que só vivido e simbolizado de forma adequada pode ser superado, permitindo o novo estabelecimento da dinâmica social que fica abalada pela ausência de um membro. Sendo assim, o processo de luto normal possui os estágios descritos na tabela, segundo o obtido ao considerar os estudos de Bowlby e Sanders: Estágio 1 Bowlby’s entorpeci mento Sander’s choque 2 Compaixão Percepção da perda Descrição geral Características dos primeiros dias, ocasionalmente mais longos; descrença, pertubação, inquietação, sensação de irrealidade, sensação de impotência. O enlutado tenta recuperar a pessoa perdida; pode buscar ativamente ou perambular como que buscando; pode relatar que vê a pessoa morta. Também cheio de ansiedade e culpa, medo e frustração. Pode dormir mal e chorar com freqüência. 3 Desorganização e desespero Conservação e retraimento 4 Reorganização Cicatrização e renovação “No ano após o Período da depressão e do desespero; cessa a busca e a perda é aceita, mas a aceitação da perda traz depressão ou uma sensação de impotência. Costuma ser acompanhada de muito cansaço e de um desejo de dormir o tempo todo. Estágio em que o indivíduo assume o controle outra vez. Há certo esquecimento, uma sensação de esperança, aumento de energia, saúde melhor, melhor padrão de sono, diminuição da depressão. luto, a incidência de depressão eleva-se substancialmente, ao passo que as taxas de morte e doença também aumentam um pouco entre os viúvos.” – Stroebe e Stroebe Mesmo com o cumprimento do luto normal, as taxas de depressão elevam-se em decorrência da culpa que o indivíduo sente por ser impotente perante a morte, porém tal depressão não é patológica, pois tende a ceder num intervalo de tempo de aproximadamente seis meses. LUTO E ROMANTISMO O luto que não se cumpre, se aproxima do ideal proposto pelo estilo literário romântico, como exemplificado por Álvares de Azevedo: “Quando em meu peito rebentar-se a fibra, Que o espírito enlaça à dor vivente, Não derramem por mim nenhuma lágrima Em pálpebra demente. “ A segunda geração do romantismo no Brasil propõe um luto sem sofrimento, ora um luto sem sofrimento não é um enlutamento, e quando o processo não é vivido de forma integral, o luto não se cumpre e há uma tendência do indivíduo a repetir cotidianamente a dor da perda, ficando preso ao sentimento de dor pela impotência e saudade. Ficando impossibilitado a partir daí, a retomar sua nova rotina e dar continuidade a sua existência. Parece óbvio que os românticos se apegam a tal tipo de dor, pois priorizando o amor eterno, consideram que a continuidade do sofrimento pela falta da pessoa amada é a intensidade do próprio amor. Ora, tal processo tende a desencadear inúmeros casos patológicos por impossibilitar e atrapalhar a relação: indivíduo/sociedade. A BUSCA PELA FELICIDADE Diferente da segunda geração romântica, a sociedade atual prima pela felicidade, mas a busca pela felicidade e fuga da dor chegou a um ponto tão exacerbado, que o método de fugir do sofrimento se aproximou ao método de busca pelo sofrimento como forma de amor dos românticos. Quando o romântico pede para não derramar a lágrima, sugere implicitamente que o vivente as guarde na alma. Em contrapartida, a sociedade que elegeu a Fluoxetina como pílula da felicidade, também pede ao sujeito que não derrame lágrima, pois pessoas felizes não choram, e chorar assume uma conotação de infelicidade para muitos, de desequilíbrio emocional, o que por si só culmina em exclusão social. Fica, pois, evidente em ambos os casos há repressão da dor, mas como sentir sofrimento para superar sofrimento é algo da dinâmica existencial humana, a demonstração de uma pseudofelicicade, acaba por culminar em mais dor. A dor reprimida que vai sendo atualizada em toda e qualquer sensação que remete a perda de algo, agravando significativamente os quadros psicopatológicos de uma forma geral. A negação da dor e da tristeza tem se manifestado no modelo estrutural do cemitério. O que á perceptível ao comparar dois modelos de cemitério: o clássico e o parque (tendência atual). CEMITÉRIO CLÁSSICO “É uma honra para o gênero humano que tal homem tenha existido." Epitáfio de Newton. O cemitério clássico ocidental pode ser definido como aquele em que há expressões artísticas nas tumbas, pertencente a um cenário que remete a dor da perda e as suas diversas formas de expressão, tais como flores e velas adornando aos túmulos; Presença de uma capela rebuscada como local de conforto espiritual tanto para o vivente como para o passante; Portões diferenciados que demonstram o ar de sacralidade do local. E a simbolização da dor pela partida do ente querido, fazendo uma analogia entre a importância da existência do indivíduo e os aspectos de seu sepultamento. Há ainda a localização do cemitério que era feita de forma a afastá-lo da cidade por medidas de salubridade pública, mas também para afastar a idéia de morte e perda da rotina social. CEMITÉRIO PARQUE “E nem desfolhem na matéria impura A flor do vale que adormece ao vento: Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento.” Álvares de Azevedo Tal modelo é uma tendência atual que objetiva reduzir a dor e o aspecto fúnebre dos ritos de sepultamento, caracteriza-se por sua semelhança com o parque, o que ajuda a denominá-lo, pois tendem a se chamar “parque.” complementado com uma palavra que remeta a idéia de cemitério, para que não sejam confundidos com os parques de recreação. Seus túmulos se encontram no chão, de forma que o longo gramado verde é predominante o que faz com este se assemelhe ao parque. Sua localização não tende a ser afastada tal qual a do cemitério clássico, pois este foge aos aspectos de tristeza, e se, não remete a morte, não necessita de reservas no que se refere a sua visualização. PARQUE E O LUTO Perdendo o arquétipo de um cemitério clássico, o cemitério parque altera o processo de luto normal, pois ao mascarar a perda de forma a evitar a dor, evita também à simbolização necessária a uma psique saudável que é possível por meio da representação artística presente em um cemitério clássico. A presença do cemitério como um lugar de expressão humana, uma expressão que tem sido tolhida pelos cemitérios parque, é observada por meio da comparação dos aspectos estruturais. A ENTRADA O cemitério clássico possui uma entrada permeada por entalhes simbólicos em seus portões, acompanhados de placas sobre o cemitério, identificando o lugar prontamente, de forma a remeter a aspectos que dão à entonação de solo sagrado. Raramente se encontram pessoas conversando em suas proximidades, ou mesmo crianças, e o ambiente impõe respeito, pois remete em sua arquitetura a efemeridade a que a condição humana está sujeita, mesmo que sua arquitetura seja simples. Em contrapartida, a entrada do cemitério parque possui crianças brincando e pessoas sentadas em seus degraus, conversando, sem possuir uma atitude reflexiva sobre o local em que se encontram e muito menos sobre a condição da existência humana diante da eternidade. Os bancos encontrados se assemelham aos de praça e as flores dão um ar de local de recreação. Sem uma imposição de respeito ou mesmo temor. Cemitério clássico Cemitério tipo parque CAPELA “Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto, o poento caminheiro, ... Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro;” Álvares de Azevedo Alguns cemitérios clássicos, não possuem capelas, pois os ritos religiosos se davam com o corpo presente na igreja ou em outro templo sagrado, o local do culto. Nos cemitérios clássicos com capela, a mesma possui, geralmente, uma série de imagens ou mesmo pinturas e representações artísticas que permitem não só a expressão da fé, mas inclusive a reflexão teológica e de valores. Já nos cemitérios parque as capelas são em geral inter-religiosas, contando de bancos e de um promontório onde o religioso celebra o culto de acordo com a fé assumida pela família e pelo morto. Ora, na avaliação o trabalho não se propõe aos aspectos estéticos da capela, e sim aos aspectos de evocação da reflexão, afinal, a reflexão sobre a condição humana e sua passagem é que são importantes para que o luto se cumpra. A capela do tipo parque possui menor número de aspectos que evocam a reflexão. Mas um outro fator determinante para tal é a profundidade do culto realizado, o que devido a sua variabilidade infinita, é de difícil análise. Cabe ainda ressaltar que ambas as capelas possuem bela decoração independente da quantidade de adornos ou de objetos. Mesmo porque, os cemitérios parque são belos por se aproximarem inclusive mais da idéia de parque do que a de cemitério. O que é avaliado, portanto, é a capacidade da arquitetura auxiliar na efetivação do processo normal de luto. VELÓRIO “Só levo uma saudade... é dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas... De ti, ó minha mãe, pobre coitada, Que por minha tristeza te definhas!” Álvares de Azevedo O velório sofreu uma mudança no decorrer da história. Houve um tempo em que as pessoas eram veladas, cuidadas em seu sono, depois com a significação do sono eterno, os familiares se reuniam em torno do corpo para orar pela alma e despedir-se, o que ocorria em casa mesmo. E ainda existem lugares onde tal procedimento permanece. Posteriormente, criaram-se os lugares chamados de “Velórios”, para que a família fosse lá, facilitando o acesso de mais pessoas à despedida, sem causar transtornos, ou bagunçar as residências. Os cemitérios clássicos, raramente possuem velórios, e quando possuem, são poucas e pequenas as salas para tal. Os cemitérios tipo parque, possuem em média quatro salas, o que denota seu alto índice de movimento e seu caráter mais empresarial e lucrativo. Quanto maior for o número de salas, e maiores as proporções das mesmas, mais impessoal se torna o rito e sua significância é reduzida. O acolhimento do familiar que fica tende a ser mais por uma polidez diante de obrigação social do que uma visitação de pessoas realmente próximas que compartilham da mesma dor. O que é enfatizado pelo surgimento de velório virtual, onde o velório é filmado e transmitido via internet, de forma que qualquer parente em qualquer lugar do mundo possa dar seu último adeus. Mesmo entendendo e considerando as vantagens que consistem no fato de permitir um adeus a aquele que devido a questões geográficas não poderão se despedir, há de se ressaltar que os velórios virtuais, ou mesmo os demais do cemitério parque assumem uma amplitude tal que perde em aspectos humanos e de conforto psicológico destinado aos familiares mais próximos. Pois, tudo ocorre de forma tão normatizada e tão distante, que não possibilita a dinâmica familiar do processo de luto e de uma reaproximação de parentes distantes dos quais sequer tinha-se notícia como uma forma de conforto, de um socorro familiar que se desloca. FLORES E VELAS O cemitério clássico possui, quando bem cuidado, flores e velas em quase todos os túmulos, permitindo que exista singularidade na expressão de dor diante da perda; pois, as famílias escolhem velas das cores preferidas do defunto, e também suas flores preferidas. E aos demais que comparecem ao local, fica óbvio o cuidado que os familiares despendem para com o túmulo que passa a ser a representação do ser completo, do ser morto e da atenção que a família despende aquele lugar. No cemitério parque, não se pode colocar flores ou mesmo velas junto às lápides, pois estes possuem velários. E tal proibição é indicada por placas, o que dá um caráter impessoal ao cemitério, pois a vela no velário não é uma representação bela de uma luz deixada em memória do familiar e sim uma obrigação mais próxima de normatização, uma vez que o velário possui uma estrutura para o tipo de vela mais comum, e as ceras ali encontradas são em sua maioria apenas da cor branca. E as flores são colocadas distante do túmulo de forma que não se perceba que os túmulos são túmulos e sim campos de um parque. A família com essa demonstração distante de afeto tem sua dor normatizada e não simbolizada. É claro que existe uma necessidade de se enquadrar o procedimento de despedida, mas para isso já existem os cemitérios que são o lugar onde essa despedida ocorre, porém tal despedida deve ser atribuída de uma significância única e sentimental dada de forma singular e harmônica com o grupo para assim expressar o sentimento de tais indivíduos. Somente dessa forma o luto toma seu rumo natural. PAISAGEM A paisagem dos velórios clássicos em geral é uma vista da cidade, uma vez que, ele se posiciona nos limites da mesma e em lugares de elevada altitude; Com um cruzeiro em frente. É como sentir que a morrer coloca o ser fora desse mundo, fora da cidade, é uma conscientização de que o morto não pertence mais do mesmo modo a tal sociedade, e que a dinâmica social e familiar deve ser alterada, com as funções do morto sendo distribuídas por entre amigos e parentes. Mesmo um sendo um processo doloroso, se faz necessário pra não prejudicar de forma incorrigível as relações estabelecidas por aqueles que vivem e que permanecem. A localização dos cemitérios tipo parque é mais variável, sendo construídos em loteamentos já dentro do perímetro urbano, o que os distinguem dos clássicos, que tem a cidade crescendo até imbutí-los. Não é necessário que parques sejam colocados fora dos perímetros urbanos a dor abrandada por sua estruturação pode ser abrigada pela cidade. Uma vez que não remete a túmulos, não expressa tanto sofrimento, tamanha efemeridade. O grande problema consiste no fato de que quando a humanidade tenta negar uma condição humana, esta mesma humanidade tende a se tornar mais desumana. Quem perde a dor e a falta também perde um aspecto importante da sua humanidade, de expressar tal dor e transforma-la em beleza, em arte, em tradição. TÚMULO E ARTE “Era da idade de trinta e dois anos quando começou a reinar, e reinou em Jerusalém oito anos: e foi-se sem deixar de si saudades algumas; e o sepultaram na cidade de Davi, porém não no sepulcro dos reis” – Crônicas 21:20 O texto bíblico, na narrativa da morte de Jorão evidência, por meio da narrativa histórica, como a forma de sepultamento pode se tornar uma espécie de punição para o ímpio; Conota um sentido de que ser enterrado sem honras, é não tê-las conquistado durante a vida. Ou seja, não ser um sujeito honrado. Tais honras sempre foram manifestas na forma de arte tumular no decorrer da história. Muito para além do roubo da arte tumular, a tendência do cemitério tipo parque, tem retirado dos seres o direito a viver a dor da perda, e sem vivê-la não há como supera-la; Tem roubado o direito de uma reaproximação dos familiares no momento de dor. É comum ouvir atualmente, que se a pessoa já está morta, não há necessidade de deslocar os familiares para enterrá-las, ora, mais do que enterrar um morto, o adeus é uma vivência no âmbito espiritual, familiar e reflexiva, fazendo o indivíduo repensar a sua própria existência e também a condição humana. A vida que não reflete sobre si mesma perde aspectos fundamentais no que tange a própria existência e completude do ser. Uma humanidade que não avalia a efemeridade do humano, não prima à existência, não conhece a unidade que compõe o todo, não valoriza a unidade e sequer o todo. Pessoas que não completam seu luto de forma normal sofrem da depressão pela culpa de uma impotência não expressa não chorada, não sofrida. Tornam-se niilistas, pois não acreditam em nada, menos ainda na sociedade que não lhe acolheu no momento da sensação de desamparo resultante da perda. A civilização ocidental passa por um período em que inúmeros aspectos humanos têm sido suprimidos em detrimento de um pragmatismo, de comodismo, e os cemitérios têm refletido essa forma de negligência; e a negligência para com fatores tão importantes tal qual o luto tem gerado uma sociedade com aumento de psicopatologias. Referências Bibliográficas BEE, Helen. O Ciclo Vital. Trad Regina Garcez. – Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Almeida Corrigida e Fiel, 1994. BOWLBY, J. Attachment and loss (vol. 3), Loss, sadness, and depression. Basic Books. New York, 1980. MARSHALL, V. W. e LEVY, J. A. Aging and dying. In R.H. Binstock e L.K. George (Eds.), Handbook of aging and the social sciences. San Diego, CA: Academic Press. 1990. REICH, J.W.; Zautra, A.J. e Guarnaccia, C.A. Effects of disability and bereavement on the mental health and recovery of older adults, Psychology and Aging, 4, 57-65. 1989. SANDERS, C. M. The Mourning after. Wiley-Interscience. New York. 1989. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Editora Vozes. Petrópolis, 1997. STROEBE, W. E STROEBE, M.S. Beyond marriage: The impacto f partner loss on health. In R. Gilmour e S. Duck (Eds.), The emerging field of personal relations. Hillsdale, NJ: Erlbaum. 1986. Onoe a morte socorre a vida Mayra Lopes de Almeida Reis. Faculdade de Medicina de Itajubá. Resumo O cemitério é o lugar onde se abriga a morte, e a morte abrigada se compraz em socorrer a vida. Socorrer a vida ao promover a saúde ajudando o humano a lidar com a efemeridade e com suas limitações. E, socorrer a vida de forma holística, pois institui uma forma de lidar com a morte, promove efetivamente a saúde nos âmbitos: corpóreo, psíquico, público e espiritual. Perceptível em cada uma das áreas de modo específico. Considera-se, portanto que o surgimento e sua perpetuação na história se devem ao fato de ser um agente promotor de saúde em diversos âmbitos e que vem sofrendo conseqüências sociológicas que tem afetado sua funcionalidade em decorrência de mudanças no aspecto estético e físico do mesmo. Palavras-chave: cemitério, saúde, sociedade. Introdução Segundo o dicionário, cemitério é um substantivo masculino que designa o lugar onde se sepultam os cadáveres dos mortos. O termo pode ainda assumir diversas conotações que tendo sentido amplo, pode variar desde “local onde ocorre muita mortandade” incluindo até seu uso para adjetivação de situações, indicando lugar silencioso e desértico, como na expressão “paz de cemitério”. Na vida prática, assume conotações simbólicas não só no que tange a vivência religiosa, mas no que alcança conceitos como efemeridade e a saudade relacionada ao enterro do corpo, assumindo um caráter coletivo enquanto local público. Ao avaliar a instituição que é o cemitério em seus diversos aspectos na cultura ocidental, faz com que se levante o questionamento: Por que existem cemitérios? Considerando-se que o cemitério não é o lugar onde ocorre a morte pode excluir-se a hipótese de que ele existe porque a morte existe. Mesmo porque, nem tudo o que morre será sepultado em um cemitério. A curiosidade se aguça para saber não só o que cria a necessidade do cemitério, mas também na busca do porquê de sua existência e permanência no decorrer da história da humanidade. É, portanto, a base ideológica fundante do cemitério que deve ser alcançada. Por meio da dedução lógica, diante de vasta teoria sobre o tema, fica claramente perceptível que a função medular que sustenta o surgimento e a manutenção dos cemitérios encontra-se no fato de este ser uma medida de salubridade completa. Uma medida salubre não só no aspecto bioquímico e epidemiológico que possui, mas por ser uma medida de saúde de abrangência holística, alcançando caracteres humanos básicos tais como: saúde mental da população diante do luto do indivíduo, por ser o último cuidado dispendido para com o corpo, por ser relevante quando a disseminação das epidemias, e ainda por ser no âmbito simbólico responsável pela estruturação do ser inserido na história e diante da eternidade, confluindo para a saúde espiritual no campo religioso. Abrigando a morte Seguindo a lei da conservação, na natureza nada se cria tudo se transforma. O ciclo vital mostra que a morte existe todo tempo e que se o morrer é constante isso se deve ao fato de que é sucessão da vida, que só porque se renova pode extinguir-se sempre. Mesmo defrontados com o constante morrer da natureza não houve um só pensador que ousasse defender a idéia de que o mundo é um macro cemitério. Isso ocorre porque, se o morrer é constante, a morte em si em um fato, um evento que marca o fim do morrer constante das células do metabolismo de um organismo. Além de ser fato, a morte é um marco, pois cada indivíduo só morre em absoluto e efetivamente uma única vez, e nesse momento sua história está fechada, e os que ficam podem considerá-lo um ser completo que cumpriu a sua função. Tem-se então o defunto, tal qual na sua conotação etimológica: defunto, do latim defunctus, formada pelo prefixo de, com functus, que é o particípio passivo do verbo fungi (cumprir, acabar, pagar uma divida), vinculado a idéia de “aquele que cumpriu sua função”. Na sociedade do morrer constante acumula-se história, uma história que culmina em normas e hábitos, que resulta em uma tradição. É exatamente nesse contexto social que a cultura do cemitério se consolida. É justamente quando surge a necessidade de se abrigar uma tradição permeada de história, crenças e imaginário simbólico que aparece a capacidade de se atribuir a tal abrigo um lugar. O lugar escolhido é o mesmo que abriga o corpo do que se foi, e as conotações do luto simbólico: o cemitério. Quando diante da temática do cemitério, as reações são diversas, porque apesar de remeter à morte, a efemeridade e aos limites da condição humana, é o lugar do abrigo do fim, é aonde a sociedade guarda a morte. Inicialmente guarda a morte criando sua tradição, e posteriormente cria uma tradição com formas específicas e regras para guardar a morte (normas de sepultamento). Abrigar a morte é algo assustador, porque abrigá-la é permitir a sua dinâmica, é constatar a sua vida. É saber que a morte é viva visto que não morre. É complexo, por conferir a consciência da constância do evento. Torna-se significativo perceber que saber lidar com a morte é abrigá-la de algum modo. Abrigar a morte é aceitar o princípio da realidade culminando em uma postura saudável do sujeito, no seu bem estar psíquico, físico e social de indivíduo íntegro que consegue superar o luto. O corpo e o cemitério É função de a área médica emitir o atestado de óbito e assim, o corpo ganha sua documentação final. Tal emissão torna-se insuficiente, é necessário fazer algo com esse corpo, “devolver o pó ao pó”. Cuidando para que ele não seja profanado em nenhum aspecto. Afinal, ele é a parte do ser que jaz sem consciência. Ora, para aquele que permanece vivo, existe a saudade do falecido, personificada na falta que se sente do corpo. Mas o corpo se deteriora, e sua presença tem que ser então transferida para o lugar onde descansará. O hábito de visitar cemitérios, bem como o de realizar culto a antepassados livra o familiar que permanece vivo da solidão. Tem um efeito psíquico salubre, por imergir o indivíduo na tradição (por intermédio da arte), reduzindo a sensação de abandono que o sobrevivente sente. A sociedade pós-moderna que ao buscar inovações nega a tradição, que não tem o hábito de consagrar a sucessão familiar, bem como o hábito de visitar cemitérios faz com que essa mesma sociedade passe a tender a remoer a sensação de abandono natural após o luto, e se torne por conseqüência uma sociedade mórbida com altos índices de doenças psíquicas. Faz-se importante se considerar o cemitério como lugar que ao acolher o corpo e a tradição, promova a saúde psicossocial dos familiares do defunto. O que é materializado e intensificado pelo hábito de visitar cemitérios. Cemitério enquanto medida de saúde pública No decorrer da história da humanidade, grande parte dos problemas de saúde pública relacionou-se com a natureza da vida em comunidade. Abrangendo diversos campos, dentre eles: controle das doenças transmissíveis, o controle e a melhoria do ambiente físico (saneamento), a provisão de água e comida puras, e o alívio da incapacidade e do desamparo. A ênfase sobre cada um desses problemas e situações varia no tempo e na história. Grosso modo, a medicina social se forma em três etapas: medicina de estado, medicina urbana, medicina da força de trabalho. A medicina urbana encontra seu exemplo clássico na França, onde a situação dos cemitérios é significativa. “Nasce o cemitério urbano, medo da cidade, angústia diante da cidade que vai se caracterizar por vários elementos: medo das oficinas e fábricas (...); medo, também, das epidemias urbanas, dos cemitérios que se tornam cada vez mais numerosos e invadem pouco a pouco a cidade; (...)” - FOUCAULT. E continua: “darei o exemplo do ‘cemitério dos inocentes’ que existia no centro de Paris, onde eram jogados, uns sobre os outros, os cadáveres das pessoas que não eram bastante ricas ou notáveis para merecer ou poder pagar um túmulo individual. O amontoado no interior do cemitério era tal que os cadáveres se empilhavam acima do muro do clausto e caíam do lado de fora. Em torno do claustro, onde tinham sido construídas casas, a pressão devido ao amontoamento de cadáveres foi tão grande que as casas se desmoronaram e os esqueletos se espalharam em suas caves provocando pânico e talvez mesmo doença. Em todo caso, no espírito das pessoas da época, a infecção causada pelo cemitério era tão grande que, segundo elas, por causa da proximidade dos mortos, o leite talhava imediatamente, a água apodrecia, (...)” – FOUCAULT. Assim como agente estimulador de medidas de medicina urbana, existem inúmeros outros exemplos, dentre eles o do Cemitério da Consolação (SP), que por gerar apreensão em relação à saúde através do medo da transmissão de doenças, alterou sua localização. É difundido o fato dos cemitérios obedecerem a uma ordem sócioespacial situando-se no fim do perímetro urbano, na periferia, não só para não serem vistos, como é o caso das penitênciárias, mas também para evitar epidemias, assim como no caso dos aterros sanitários. Sua localização, aliada a suas condições sanitárias denota significativa importância epidemiológica, funcionando também como limite da urbanização, havendo inclusive uma preocupação durante a sua manutenção no que tange a ser um patrimônio público (passível de ser pichado, depredado...). É ainda relevante uma postura de segurança em relação a aqueles que o visitam, para que não funcione como vetor transmissor de doenças, o que ocorre no caso de alguns casais que contraem doenças bacterianas ou mesmo infecciosa ao realizarem práticas sexuais no cemitério. Na função de promotor da saúde enquanto patrimônios públicos que ao dar lugar aos corpos reduz taxas endêmicas e fatores epidêmicos, o cemitério é, mesmo que de forma aparentemente velada, uma medida de saúde pública desde o seu nascimento, passando pela medicina urbana, até os dias atuais. Cemitério promovendo conforto espiritual “Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, porque naquela está o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração.” – Eclesiastes 7:2 Desde que o humano se conscientizou a respeito da morte, não se sabe o que acontece com a consciência, com a alma, com o espírito daqueles que se foram. Em meio à dúvida, as diversas religiões estruturam inúmeras explicações e hipóteses que não são passíveis de comprovação por seres vivos. Toda incerteza gera conflito, medo e angústias; E, mesmo com toda linguagem mítica religiosa acerca “das almas que voltaram pra Deus”, a insegurança do que acontece ao ser no pós-morte permanece. Mas, sendo o cemitério o abrigo do cadáver, da morte, há também de abrigar o sentido espiritual/mítico conferido a aquele que morre. Assim, há um forte elo entre a religião e as tumbas. E, medidas que eram apenas de saúde pública passam a ganhar contornos religiosos que por meio do mito, confere sentido ao rito do enterro. Além da significância que a religiosidade atribuiu ao sepultamento, o cemitério se faz importante por também acolher a dor e a tristeza de se perder um ente querido. A sociedade pós-moderna ocidental é a sociedade da Fluoxetina, da primazia do bem-sucedido, que exalta o feliz e a felicidade. Há uma depreciação com a tristeza, como se esta não fosse permitida. Valoriza-se aquele que sente a perda de forma atenuada. O que é esquecido, é que um ser humano normal e saudável tem um período de luto, que faz parte do mecanismo de adaptação do sujeito. É natural e até correto diante da morte refletir sobre o que tem sido a vida e sofrer com a perda, com o deparar com o princípio da realidade que tira o humano da ilusão de potência ilimitada. Para quem passa por essa situação natural de encontrar o limite, existe a tristeza. Assim sendo, muitas pessoas não gostam de visitar cemitérios, considerando o lugar fúnebre e triste. E esse seja talvez o principal motivo que faz com que o brasileiro (o feliz que faz festa e carnaval) tenha o hábito de visitar cemitérios apenas quando está em outros países, a título de cultura geral. A prova empírica de que a sociedade passa por um momento de negação da tristeza que culmina em culpa (por uma tristeza recalcada) e gera depressão, é que sequer o cemitério pode ser cemitério. A sociedade da pílula da felicidade nega o sepulcro e a dor da perda e tenta substituí-lo pela alegria do parque. A nomenclatura atual da grande maioria dos cemitérios é parque, que foge tanto a realidade que precisa de complemento nominal para causar a identificação, como por exemplo: “parque da saudade” (...). A civilização da aparente felicidade roubou dos vivos o direito de chorar seus mortos, de expressar sua dor de forma simbólica nos sepulcros. E dessa maneira os lutos não se cumprem, e as pessoas deprimidas passeiam em meio a seus parques. Saber lidar com a morte, não é negá-la, é aceitá-la, abrigá-la com a dor que é intrínseca a ela. É precisar significar o fato de forma mítica, religiosa e artística. A sociedade que prima a existência como felicidade, tende a negar a tristeza que faz parte da experimentação de ser do ser. E, esconde a tristeza, mas intensifica a angústia, o vazio que ficou no lugar da tristeza não significada e não expressa. O que fica evidente quando comparamos a foto de dois túmulos. O primeiro, de um cemitério tradicional municipal. O segundo o de um cemitério do tipo parque, inaugurado há aproximadamente dois anos. Ambos no mesmo município. Os túmulos têm se tornado vazio como a vida mítica e espiritual da civilização, vazios como as almas que negam a tristeza, negando a si mesmas o direito de existir de determinado modo. Túmulo vazio de arte que tem dificultado para que o cemitério efetive sua função simbólica de agente auxiliador do cumprimento do luto, do luto que se cumpre permitindo a saúde. Afinal, é exatamente quando permite e auxilia o cumprimento do luto e suas expressões míticas, que o cemitério cumpre sua função de promotor da saúde espiritual do ser. "A grande coragem é, ainda, a de manter os olhos abertos, tanto sobre a luz quanto sobre a morte" – CAMUS. Referências Bibliográficas BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Almeida Corrigida e Fiel, 1994. CAMUS, Albert. O avesso e o direito. 2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995. FOUCAULT, Michel. 1979. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. FREUD, S. [1901] A Psicopatologia da Vida Cotidiana. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980c, v. 6. ___. [1917] Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980e, v. 14. PACHECO, A.; SILVA, L.M.; MENDES, J.M.B.; MATOS, B.A. (1999) Resíduos de cemitérios e saúde pública. Revista Limpeza Pública, v. 52. p. 25-27. PACHECO (2000) Cemitérios e meio ambiente. São Paulo, 102 p. Tese (Livre Docência) - Instituto de Geociências, Universidade de São Paulo PACHECO, A. (2006). Os cemitérios e o ambiente. Ambientebrasil on line, 2p. PACHECO, A. (2006). Os cemitérios e o ambiente. Revista do CREA - RS, ano III, n. 24, p.30 ROSEN, G. Uma história da saúde pública. São Paulo: UNESP Ed., 1994. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Editora Vozes. Petrópolis, 1997. A ARTE CEMITERIAL DE LUIZ LEONARDI E DA MARMORARIA CARRARA NO CEMITÉRIO DA SAUDADE EM PIRACICABA: levantamento e questões preliminares Paulo Renato Tot Pinto Licenciado em História - UNIMEP Resumo O presente trabalho objetivou, através do levantamento e análise de jazigos localizados no Cemitério da Saudade na cidade de Piracicaba e concebidos por Luiz Leonardi recuperar a memória do artista no que se refere à arte funerária, identificando suas produções dentro do referido campo santo, fazendo apontamentos acerca de possíveis mudanças em aspectos artísticos no período em que o supracitado artista produziu. Palavras-chave: Cemitério, Arte Cemiterial, Marmoristas. 1.Objetivo O presente trabalho objetivou, através do levantamento e análise de jazigos localizados no Cemitério da Saudade na cidade de Piracicaba - SP e concebidos por Luiz Leonardi — fundador proprietário da Marmoraria Carrara, que teve oficinas na cidade de Araras/SP e Piracicaba/SP e executou serviços em toda região e também fora do estado de São Paulo — recuperar a memória do artista no que se refere à arte funerária, identificando suas produções dentro do referido campo santo, fazendo apontamentos acerca de possíveis mudanças em aspectos artísticos no período em que o supracitado artista produziu, além de trazer a possibilidade de identificar diferenças entre esculturas funerárias classificadas como “seriadas” ou de “catálogo”, frente à produção de outros artistas seus contemporâneos. Assim, este trabalho não visa elaborar uma análise iconográfica ou iconológica das sepulturas estudadas. Entretanto, durante o processo de catalogação, levantaram-se algumas questões relativas a determinadas representações alegóricas, que julgo pertinente desenvolver, na medida do possível, em meu trabalho. 2.Arte funerária no Brasil Um dos precursores dos estudos de arte cemiterial no Brasil foi o historiador Clarival do Prado Valladares, que lançou, em 1972, o livro Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros 1 , ainda hoje a principal fonte de referência sobre o tema no Brasil. Tal obra, segundo a historiadora Maria Elizia Borges, foi “a primeira análise de cunho sociológico sobre a história dos cemitérios no Brasil” 2. Resultado de uma grande pesquisa que levou o autor a percorrer dezenas de cemitérios em diversos estados do país, utilizando-se de fontes inusitadas como “livros de guardiões de convento, cartas de viajantes, livros literários, arquivos de cemitério, relatos diversos, etc”3, Valladares tentou compreender a evolução da arte tumular brasileira. Ao lado do estudo de VALLADARES (1972) cabe mencionar o belo trabalho de Maria Elizia Borges, Arte Funerária no Brasil (1890 – 1930) – Ofício de Marmoristas Italianos em Ribeirão Preto4, que é, acima de tudo, um espaço de recuperação da memória dos marmoristas da região de Ribeirão Preto e referência desses novos estudos sobre a arte cemiterial. Nele, a autora busca, através do levantamento histórico, indicar o verdadeiro valor de artistas/artesãos que, segundo ela, “produzem um tipo de obra situada na fronteira ambígua entre a arte e a técnica” 5 e que trouxeram de seus países de origem — a Itália, predominantemente — grandes influências decorativas e técnicas, as quais possibilitam, hoje, uma análise mais detalhada sobre a arte cemiterial no Brasil. Prova disso e, talvez, o aspecto de maior importância na obra, depois da tentativa bem sucedida de recuperar a memória dos marmoristas de Ribeirão Preto e da trajetória da arte funerária no Brasil, é a tipologia criada por BORGES (2002) para classificação das sepulturas concebidas pelos artistas/artesãos. Sua tipologia ajuda a criar uma dimensão acerca das diferenças que se estabelecem no período analisado, que vai de 1890 até meados de 1930. A análise iconográfica por ela aplicada às obras, conforme o método proposto por PANOFSKY (2001) e vislumbrada em seu método, configura-se um importante auxílio para o entendimento das mudanças e aspirações da arte cemiterial no Brasil no período em questão, além de servir de fio condutor para elaboração de uma tipologia aplicável ao objeto de pesquisa do presente trabalho. Outro estudo de referência que proporcionou um olhar diferente quanto à arte cemiterial e, principalmente, quanto à arquitetura nos campos santos, é a proposta de abordagem de Renato Cymbalista em “Cidade dos Vivos” 6, pesquisa que revela claramente as influências sofridas pelo autor graças à sua formação em Arquitetura e Urbanismo, em detrimento de estudos propriamente de natureza histórica. Sua formação direcionou o caminho da pesquisa focalizando especialmente aquilo que o autor interpretou como “Arquitetura sem arquiteto”7: categoria na qual encaixava aquelas sepulturas realizadas por pedreiros e mestre-de-obras e que utilizam materiais comumente empregados na construção cotidiana: o material da “casa dos vivos” aplicado também na edificação da “casa dos mortos”. Embora a grande ênfase de sua análise seja de cunho arquitetônico, tal perspectiva ajudou em muito a aquisição, no presente trabalho, de uma outra possibilidade de interpretação frente aos jazigos construídos por Luiz Leonardi. 3. Metodologia O processo de trabalho que procurei desenvolver começou com a observação in loco das obras construídas por Luiz Leonardi e, conseqüentemente, pela Marmoraria Carrara, localizadas no cemitério municipal de Piracicaba – Cemitério da Saudade. Tais obras foram devidamente catalogadas e classificadas segundo uma tipologia a ser apresentada mais adiante. A análise destes trabalhos fez-se acompanhar pelo confronto das conclusões de campo com uma bibliografia que abrange história da arte e da arquitetura, história do Brasil, história das mentalidades, história de São Paulo, história de Piracicaba, entre outras áreas de conhecimento. Já como referência metodológica para o trabalho com as imagens presentes nas sepulturas, esta pesquisa se apóia nos fundamentos estabelecidos por Erwin Panofsky, e propostos em seu ensaio “Iconografia e Iconologia: Uma Introdução ao Estudo da Arte da Renascença”8. Em virtude do tamanho reduzido do presente trabalho, conforme especificado para sua publicação, tal método não será apresentado de forma tão aprofundada. Frente a essas etapas propostas por PANOFSKY (2001), o presente trabalho vai evidenciar a análise pré-iconográfica. Entretanto, durante o processo, algumas análises que são da esfera da iconografia foram utilizadas, visto que seria difícil proceder sem essas intervenções. 4. O Cemitério de Piracicaba e Luiz Leonardi 4.1. Identificação do Espaço Inaugurado em 1878, o cemitério de Piracicaba é o segundo na cidade a ser erigido extramuro ecclesiam, sua entrada principal encontrava-se na avenida Independência, e dava-se por meio de um portão que até hoje lá se encontra, o qual, diante da atual configuração do cemitério, tornou-se lateral e secundário. Reformado no início do século XX, dotado de um pórtico monumental, seu arruamento foi em boa parte alterado. Iniciei a coleta de informações acerca das obras claramente atribuíveis a esse artista/artesão, que alimentaram um banco de dados no qual encontramse catalogados 117 jazigos, os quais se espalham por uma área de aproximadamente 52.500 m² (a área total do cemitério é de 145 m²). 4.2. Identificação do Artista Além da coleta de dados desenvolvida in loco, procurei informações referentes ao artista/artesão Luiz Leonardi. Consegui contato com Luiz Sérgio Leonardi, neto de Luiz Leonardi, nascido em 1937, e testemunha de grande parte da trajetória da Marmoraria Carrara, além de ter conhecimento de vários fatos anteriores relacionados à marmoraria de Luiz Leonardi. Oriundo de Quercela Lucca, região de Toscana na Itália, Luiz Leonardi nasceu em 20 de junho de 1879. Chegou ao Brasil com oito anos, em companhia de seu pai, nos últimos decênios do século XIX, período de forte imigração para suprir o déficit na mão de obra na lavoura cafeeira. Segundo Luiz Sérgio Leonardi, seu avô não era letrado e, apesar disso, dizia que não viera ao Brasil para apanhar café, pois dizia ter a intenção de fazer “algo mais nobre”. Residiu na região de Uberaba e Ribeirão Preto. Posteriormente transferiu-se para Araras, onde iniciou o ofício de Marmorista. Chegou a ter mais de uma centena de funcionários e uma filial na cidade de Piracicaba, localizada na rua Santo Antônio. 4.2.1 A Marmoraria Carrara Em 1937, o patriarca Leonardi organiza uma sociedade com seu filho Ovídio e seu genro, criando a Marmoraria Carrara Industriais, que se manteve ativa até 1974, quando, por falta de modernização do maquinário, difícil situação financeira e ausência de interesse dos herdeiros, os quais escolheram por outras áreas de atividade, a empresa fechou suas portas, sendo vendida para um artesão de cacos de mármore da cidade de Araras; e, posteriormente, fechada. Dentro desse panorama, entra em cena um personagem que considerei como o mais importante depois de Luiz Leonardi. Seu filho, Ovídio, era quem passou a tomar conta, depois da criação da sociedade, da parte técnica da marmoraria, sendo o responsável pelos desenhos que seriam passados para a parte operacional da empresa. Apesar da importância crescente de Ovídio na marmoraria, quem concebia muitas das obras era o próprio Luiz Leonardi. Em 26/09/1956, Luiz Leonardi perdeu a vida e deixou sob o controle dos sócios a marmoraria. Esta permaneceu em funcionamento até 1974, embora seja possível notar, claramente, uma diminuição no Cemitério da Saudade em Piracicaba quanto a construção de túmulos criados pela empresa no período posterior à morte do patriarca. 5. Análise das obras 5.1.Técnicas e Materiais Chamava a atenção em Luiz Leonardi, segundo relato de seu neto, seu “enorme poder organizacional, fosse na parte das finanças, fosse na sistematização do trabalho”. Este alegado poder de organização abre precedente para verificar, na Marmoraria Carrara, a condição sinalizada por BORGES (2002) quanto às marmorarias de Ribeirão Preto, onde as obras executadas situavam-se na fronteira entre arte e técnica. Mas a técnica, vinculada à organização e até a uma massificação dos trabalhos, não trouxe apenas prejuízos para o campo da arte. Com a ênfase no emprego da técnica, verifica-se a possibilidade de estender aquilo que estava associado apenas às classes elitizadas e abastadas, ao dia-a-dia daqueles até então desprovidos de condições de possuir o que se entendia apenas como “obras de arte”. No que se refere ao conjunto de obras estudadas, os poucos túmulos que são constituídos de mármore já seguem um estilo arquitetônico diferente daqueles do século XIX e o mármore que os compõem é de procedência nacional. O mesmo verifica-se com as esculturas, pois as poucas em mármore que adornam as sepulturas foram feitas de material nacional. A partir dos anos 1920, torna-se constante a utilização de granito. É é comum encontrar, no período de transição entre a utilização do mármore para o granito, jazigos em granito com imagens em mármore. Já a utilização do bronze, em período posterior, surge em substituição às esculturas de mármore. Tal escolha barateava ainda mais o trabalho final e por ser de preparação mais rápida e de reprodução fácil, estas obras tiveram grande utilização nos trabalhos de Leonardi, sobretudo a partir dos anos 1930. 5.2. Tipologia Para o presente trabalho, achei por bem desenvolver uma tipologia que possibilitasse a classificação das obras construídas por Luiz Leonardi e pela Marmoraria Carrara. Para criar esta tipologia, utilizei as referências morfológicas e tipológicas desenvolvidas por CYMBALISTA (2002) e BORGES (2002) e, desta autora, me apropriei de muitas de suas definições no que diz respeito, mais especificamente, à estatuária funerária encontrada nas sepulturas analisadas. É muito difícil precisar a data exata da construção de muitos dos jazigos analisados neste trabalho, sendo que as possíveis datas dos primeiros sepultados em cada jazigo nos dão apenas indícios da data de construção dos mesmos. Além disso, os materiais, estilos e até mesmo a forma como o artista assina suas construções servem de pistas para se estabelecer uma definição mais próxima da possível data de construção. Analisando as datas de falecimento do sepultado mais antigo em cada jazigo, pude verificar que o período referente aos anos entre 1936 e 1950 foi o de maior produção da empresa de Leonardi. Da mesma maneira, o aumento da produção a partir dos anos 1920, com o avanço da utilização do granito como material base, fez-se acompanhar por uma clara tendência moderna, que regia a concepção dessas construções, de linhas retas e muitas vezes com poucos ornatos. As estatuárias que decoram tais túmulos, quando referentes a imagens sacras, seguem um padrão que as torna idênticas umas às outras, variando apenas o tamanho. Já quando se trata de estátuas de anjos ou de figuras profanas, o art-noveau é quase que o partido estilístico exclusivo, combinando com o partido moderno do túmulo, que acaba sendo evidenciado pelo contraste de estilos que rege as referidas construções. Alguns jazigos que remontam ao terceiro decênio do século XX trazem traços do art déco, com construções pesadas de granito bruto. A presença do art déco mostra justamente esse período de transição da arte para o modernismo, que perdurou, no âmbito da arte funerária até meados de 1970, quando o hibridismo que caracteriza a produção artística contemporânea passa a ser notado também dentro dos campos santos. Para definir a forma dessas construções, analisei três aspectos principais, através dos quais procuro estabelecer parâmetros para uma melhor identificação das sepulturas. A primeiro aspecto a se analisar diz respeito ao formato de cada construção. Dividi esse item em três classificações: Jazigo Simples: Construção de até 1,50m de largura com até 2,50m de profundidade. Jazigo Duplo: Construção com mais de 1,80 de largura e com até 2,50m de profundidade. Jazigo Monumento: Construção ampla sem limites máximos definidos, cujas dimensões, deixam clara a intenção de enaltecer a figura do sepultado, seja com um busto ou uma estátua que determine esse aspecto. Definida a largura e profundidade julguei necessário diferenciá-los também pela sua altura. Jazigos duplos são, em sua maioria, classificados como “altos”, entretanto, são encontrados jazigos simples de duas alturas, exigindo assim uma diferenciação para eles: Baixo: Jazigo com menos de 60cm de altura. Alto: Jazigo com mais de 60cm de altura. Além das dimensões dos jazigos, me deparei com outras duas formas de sepultar que mereceram ser classificadas. Alguns jazigos, pela sua aparência externa, sugerem uma determinada disposição interna para os esquifes, que nem sempre corresponde ao que de fato podemos ver. Embora pareçam estar acima do solo, graças ao conjunto arquitetônico, alguns corpos são sepultados em gavetas subterrâneas — uma verdadeira obra de delicada engenharia: Gavetas externas: Jazigo onde os corpos são alocados em um nível superior ao solo. Gavetas internas: Jazigos onde os corpos são dispostos em gavetas, muitas vezes alocadas lateralmente, em um nível inferior ao solo. Alguns jazigos duplos, que visualmente dispõem apenas de duas gavetas para sepultamento, podem dispor de até seis gavetas internas. Normalmente o acesso a essas gavetas é feito por portinholas. As portinholas que compõem os jazigos de gavetas internas são feitas de bronze ou ferro e dispõem, na maioria das vezes, de uma decoração que pode ser identificada e classificada com os preceitos que apresento a seguir. No que diz respeito à estatuária cemiterial, optei por utilizar a tipologia desenvolvida por BORGES (2002). Vale salientar que apesar de me valer da mesma nomenclatura, o material das esculturas analisadas pela autora foi o mármore, diferentemente das encontradas no campo de pesquisa do presente trabalho, que são, em sua maioria, de bronze. Em sua tipologia, BORGES (2002) divide as esculturas em três modalidades: anjos, imagens sacras e imagens profanas.9 Essa divisão vai servir de base para definir a estatuária encontrada nos trabalhos de Luiz Leonardi e caracterizar os desenhos que formam as portinholas que encontramos em algumas das obras. Vale ressaltar que os adornos que encontrei no presente trabalho diferem, em alguns aspectos, dos apresentados por BORGES (2002), já que o material utilizado para sua construção é diferente dos casos trabalhados pela autora e novos ornatos foram empregados com a evolução da arte cemiterial. Esses novos ornatos, que aparecem com bastante freqüência no conjunto de obras estudadas, utilizam das técnicas de alto e baixo relevo, em formatos que ousei chamar de medalhões, painéis, já que visualmente transpassam essa impressão. Além de baixo e alto relevo, outra técnica classificada pela autora é o “relevo gravado”, que aparece com bastante freqüência nas construções em granito. Dessa maneira, o termo “relevo gravado” no presente trabalho, pode identificar tanto desenhos como letras. 5.3. Análise de jazigos Das 117 construções da lavra de Leonardi e de sua empresa, optei por fazer uma seleção de 33 jazigos para serem analisados. Este procedimento visou, principalmente, possibilitar um estudo um pouco mais detalhado de alguns túmulos, que não seria possível por questões de tempo caso o montante total fosse analisado. Para essa seleção, defini alguns critérios, com a finalidade de mostrar algumas diferenças dentro das construções do período estudado; também optei por descartar uma análise mais aprofundada e individualizada quanto a algumas sepulturas cuja estatuária apresentada fosse por demais semelhante a de outras. Assim, preferi por resumi-las a apenas um tipo, para propiciar uma visão mais ampliada das produções que se apresentam no referido campo santo. 6. Considerações Finais Como conclusão, acredito que fazer um balanço dos mais de 74 anos da Marmoraria Carrara e conseqüentemente — ou necessariamente — de Luiz Leonardi é evidenciar um período de evolução da arte cemiterial, percussor do hibridismo contemporâneo que encontramos hoje nos cemitérios do Brasil. Dentro das obras analisadas no Cemitério de Piracicaba, notamos a mudança seja da utilização de materiais, quando o mármore paulatinamente é substituído pelo granito, em primeiro momento pelo granito marrom bruto e depois o granito polido. Essa mudança abarca também as formas das construções que evoluem, saindo daquela configuração mais clássica, em que as esculturas eram quase que obrigatórias e as peças de mármore, tal sua profusão, tornavam as sepulturas semelhantes a altares. Posteriormente, pude notar, em outro momento, a transição para os traços do art dêco, com formas pesadas e ausência de elementos decorativos. Dentro dessa linha também verificamos a diminuição dos motivos cristãos adornando os jazigos, fato que é retomado depois dos anos 30, quando o granito polido assume a frente das construções e o modernismo fica evidente nas construções. Em suma, estas são as primeiras conclusões. Acredito que muito há ainda para ser pesquisado no Cemitério da Saudade, que revele novos enfoques sobre velhas práticas e conceitos. Referências Bibliográficas BORGES, Maria Elizia. Arte funerária no Brasil (1890-1930) ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto = Funerary Art in Brazil (1890-1930): italian marble carver craft in Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002. CYMBALISTA, Renato. Cidade dos Vivos: arquitetura e atitudes perante a morte nos cemitérios do Estado de São Paulo. 1ª ed. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral e memória. São Paulo: Contexto, 1992. MUMFORD, Lewis. Arte e técnica. São Paulo: Martins Fontes. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. 3ª ed. São Paulo, Perspectiva, 2001. VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros. Brasília: MEC-RJ, 1972. 1 VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros. Brasília: MEC-RJ, 1972. BORGES, Maria Elizia. Arte funerária no Brasil: contribuições para a historiografia da arte brasileira. . In: XXII Colóquio Brasileiro de História da Arte, 2003, Rio Grande do Sul: Anais . Rio Grande do Sul: PUCRS. 1 CD. 3 Idem. 4 BORGES, M. E.. Arte funerária no Brasil. 5 Idem, p.14. 6 CYMBALISTA, Renato. Cidade dos Vivos: arquitetura e atitudes perante a morte nos cemitérios do Estado de São Paulo. 1ª ed. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002. 7 CYMBALISTA, Renato. Cidade dos Vivos: arquitetura e atitudes perante a morte nos cemitérios do Estado de São Paulo. p. 15 8 PANOFSKY, Erwin. . 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2001, pp. 47-87. 9 BORGES, M. E.. Arte funerária no Brasil , p.172. 2 O Papel Social da Mulher da Região de Colonização Italiana do Rio Grande do Sul: uma análise através dos cemitérios de Antônio Prado Regina Zimmermann Guilherme Pereira – PUCRS Resumo A partir da observação dos cemitérios do município de Antonio Prado, o presente trabalho pretende analisar o papel da mulher no contexto familiar das comunidades da Região de Colonização Italiana do Rio Grande do Sul. A presença feminina é observada no exímio cuidado com os túmulos e na grande recorrência de objetos artesanais, principalmente os trabalhos de linha e agulha, típicos da mulher de origem italiana. Palavras-chave: Mulher, trabalho, imigração. É de conhecimento geral a importância do papel da mulher no contexto familiar das comunidades de origem italiana, porém poucos podem imaginar que este papel possa estar tão bem representado nos cemitérios, como nos da cidade de Antônio Prado. A partir da observação destes cemitérios que pretendemos analisar o papel da mulher da Região de Colonização Italiana do Rio Grande do Sul. Ao entrarmos em qualquer um dos tantos cemitérios de Antônio Prado, percebemos a presença feminina. Em todos os cemitérios de Antônio Prado podemos observar um exímio cuidado com os túmulos, cuidado este que se destaca em relação aos demais cemitérios do Estado. Pode-se observar que muitas famílias cuidam diariamente dos seus mortos, considerando que alguns túmulos possuem nichos com flores naturais que requerem cuidados permanentes. Os túmulos são muito enfeitados e há uma enorme presença de objetos artesanais, o que nos remete, logo, ao trabalho da mulher de origem italiana. Sabemos que diferentemente das comunidades de origem alemã que se formavam em torno da casa de comércio e davam destaque ao comerciante, a colônia italiana de profunda formação católica teve sua convergência social em torno da capela que, além do culto religioso, congregava toda a vida civil da comunidade. Nesta comunidade o destaque era o padre. Segundo Celci Favaro a Igreja exercia uma forte pressão sobre as pequenas comunidades imigrantes em formação nesta região. A imagem externa e a coesão interna deveriam ser, a qualquer preço, mantidas pela família e pelo núcleo social e econômico, pois era por seu intermédio que o controle da sociedade se efetivava. Favaro afirma que os jornais católicos exerciam uma grande influência na manutenção dos papéis familiares tradicionais. A religião ensina que Maria deve ser para as mulheres, exemplo de abnegação em nome da família. Esta grande devoção pode ser percebida pelo grande número de imagens da Virgem Maria nos túmulos de Antônio Prado. A Pietá é o grande símbolo da mãe piedosa, dedicada e sofredora. A base econômica da colonização estava na economia familiar de subsistência, portanto todos os membros da família tinham papel vital neste sistema. Nos cemitérios pesquisados podemos perceber que o trabalho artesanal ainda está presente nesta comunidade e, algumas vezes, relacionado ao trabalho masculino. Porém, o papel da mulher sempre teve uma importância destacada, apesar de não ser reconhecida do ponto de vista econômico. Economicamente falando, o trabalho feminino sempre teve grande importância, nele se incluía a procriação que significava a reprodução da força de trabalho, indispensável ao desenvolvimento da pequena propriedade rural. Além disso, elas dedicavam a maior parte de sua vida ao marido e aos filhos. Estas mulheres tinham em média entre doze e quinze filhos como podemos observar no seguinte relato: A imigrante Maria Tedesco, esposa do falecido João Tedesco, chegou em Alfredo Chaves em 1887, se orgulha dos 13 filhos que criou e sente-se feliz pelos seus 90 netos, 850 bisnetos e cada dia novos tataranetos. Disse ser sua preocupação recordar os nomes de tantos anjos que Deus colocou na história de sua vida.1 Em 1974 Rovílio Costa dizia: “A família do imigrante italiano fundamenta-se no casamento monogâmico e indissolúvel, com profunda vivência cristã.” 2 O sobrenome da família é dado pelo marido. A esposa perdia o seu sobrenome com o casamento. Portanto, o casamento era o único meio viável para que a mulher pudesse aparecer no núcleo da comunidade e o surgimento 2 dos filhos ampliaria sua evidência. A Nossa Senhora do Caravaggio é uma das grandes devoções desta comunidade e não é surpreendente que ela esteja acompanhada de uma criança. Além da reprodução vegetativa familiar, a mulher contribuía na economia doméstica ajudando o marido nos trabalhos da lavoura e cuidava dos afazeres domésticos. Dentre estes afazeres estava o trabalho de fiar, tecer e costurar as roupas da família, tendo em vista o alto custo dos tecidos. A importância deste trabalho é comprovada pela tradição do filó, que é conhecido até os dias atuais. Este era realizado durante as visitas a amigos e parentes, enquanto os homens jogavam ou contavam frótolas, as mulheres junto ao fogão preparavam comida ou faziam artesanato. Esta era também uma forma de manter as mulheres ocupadas, evitando, assim, que elas pudessem se desvirtuar de seus papéis. Os trabalhos com a agulha permanecem na cultura e podem ser observados nos cemitérios. (Figuras 1 e 2) Fig. 1 - Flores e toalha em crochê 3 Fig. 2 – Anjo em crochê e vários anjos em bisqui. Mas esta é uma discussão bastante polêmica, pois se por um lado, a mulher das comunidades italianas vivia em uma condição de submissão nos primeiros tempos da colonização, por outro, esta condição não era muito diferente nas famílias brasileiras ou de outra origem qualquer. A grande diferença está na relação das mulheres de origem italiana com o trabalho e no seu envolvimento com a manutenção econômica da família. Na verdade a submissão da mulher era de certa forma, muito mais formal e aparente, tendo em vista que a maternidade lhe conferia uma grande autoridade. Esta é uma visão defendida por Favaro: A mamma acabava por se constituir numa verdadeira rede de poder e dominação por parte das mulheres no interior da família (...) promovendo socialmente o chefe da família e reproduzindo mão-de-obra barata.” (...) ... cabendo à mãe o papel de mantenedora da sobrevivência física da família, através do controle sobre a divisão do trabalho (...) pouco ou muito pouco espaço restaria para que ela se constituísse verdadeiramente em “uma fonte inexaurível de solicitude amorosa”. 3 O desenvolvimento industrial e a emergência do capitalismo não transformaram completamente a realidade destas mulheres. A suas antigas 4 contribuições econômicas no seio familiar não foram substituídas pela sua inserção neste novo sistema. O que ocorreu, na verdade, foi uma sobreposição de papéis. O trabalho da mulher nas indústrias têxteis e de vestuário, por exemplo, era de certa forma especializada na medida em que elas estavam acostumadas a fiar, tecer e coser desde meninas, confeccionando assim seus enxovais. O casamento ainda era a primeira profissão, mas a sua mão-de-obra era cada vez mais cobiçada pelas indústrias e, por isto, era necessário que se reforçasse o mito do trabalho, além de reforçar os limites de seu espaço no grupo social. Este discurso pode ser observado em um periódico de 1917. O trabalho enobrece e exalta a creatura. Quem trabalha cumpre a sua missão, obedece a vós o creador. Depois da castidade, o amor do trabalho é o primeiro que o homem deve procurar na companheira da sua vida. Enquanto a mulher laboriosa e econômica, não só conserva pequena ou grande fortuna, mas de dia em dia aumenta, ajudando o esposo, se sua posição é medíocre, ou tornando-o duplamente rico, se é abastado. Concedendo-lhe Deus a ventura de ser mãe, seus filhos e filhas educando-se por ella com o bom exemplo, principal incentivo para uma educação serão algum dia cópias de tão bello original. Elles (...) saberão escolher que como tal lhe convém: ellas farão como sua, a aventura d’aquelles a quem se liguem 4 Porém, à medida que a família abandonava a economia de subsistência, se criava um maior distanciamento entre seus membros, com isto, aumentavam os conflitos familiares. As dificuldades de relacionamento entre pais e filhos ou o falecimento de um membro da família, normalmente, recaia sobre os ombros da mulher que deveria continuar sendo a mantenedora da harmonia e do amor familiar. As imagens de pureza, santidade e subserviência em relação à família, estavam no próprio discurso feminino. O afastamento temporário da mulher do espaço doméstico - imposto pelo ingresso, cada vez mais intenso, das mulheres no mercado de trabalho era responsável por um sentimento de culpa. Tanto do ponto de vista da mulher, quanto da comunidade, a família necessitava de uma espécie de compensação. Como procuramos demonstrar acima, o trabalho perpassa toda a relação familiar na Região de Colonização Italiana e a morte rompe não somente com a relação familiar, mas também com o trabalho que se constituiu na grande razão de viver de cada um. Podemos dizer que o trabalho esteve à 5 frente da família na medida em que esta era mantida por aquele. Esta ruptura causada pela morte está bem definida em Braudillard: Quem trabalha continua a ser aquele que não foi condenado à morte, ao qual foi recusado tal honra. E o trabalho é, antes de mais, o sino da objeção de ser julgado digno apenas da vida. O capital explora os trabalhadores até a morte? Paradoxalmente, o pior que lhes inflige é recusar-lhes a morte. Foi ao diferir a sua morte que os fez escravos voltando-os à objeção indefinida da vida no trabalho. 5 Seguindo este raciocínio, a mulher, quando sobrevive ao marido ou aos filhos, vê-se confrontada com a culpa e talvez resida aí o motivo pelo qual ela continua dedicando seu trabalho aos membros da família que já partiram. E, mais do que isto, seus trabalhos, onde os motivos religiosos predominam, reafirmam a sua religiosidade, conseqüentemente a sua retidão e sua dedicação à família. O que podemos concluir com este trabalho é que os valores da mulher da Região de Colonização Italiana não foram suprimidos pelas mudanças causadas pelo capitalismo. Elas continuam seguindo os ensinamentos católicos, tendo o trabalho e a família como razões para a vida. O que há de novo é a necessidade em reafirmar estes valores. O cemitério sempre foi um espaço utilizado como meio de reafirmação de valores. Desta forma, nos cemitérios de Antônio Prado, o papel social da mulher é facilmente evidenciado. Notas 1 FORTINI, 1950 In: COSTA, Rovílio (e outros) ORG. Imigração Italiana: vida, costumes e tradições. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Sulina, 1974. p. 44. 2 COSTA, Rovílio (e outros) ORG. Imigração Italiana: vida, costumes e tradições. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Sulina, 1974. p. 42 3 FAVARO, Celci Eulália. Mulher, Sinônimo de Trabalho: papéis sociais, imaginário e identidade feminina na Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v22, n.2, p. 211-229, 1996. p. 215. 4 O Estímulo, Caxias do Sul, 2/9/1917, p.2. In: FAVARO, Celci Eulália. Mulher, Sinônimo de Trabalho: papéis sociais, imaginário e identidade feminina na Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v22, n.2, p. 211-229, 1996 5 BRAUDILLARD, Jean. A Troca simbólica e a Morte. Lisboa: Edições 70, 1976. p. 76 6 Referências Bibliográficas BRAUDILLARD, Jean. A Troca Simbólica e a Morte. Lisboa: Edições 70, 1976. CASAROTTO, Cadorna Marcílio. Antônio Prado, 50 anos de presença Marista. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1988. COSTA, Rovílio (e outros) ORG. Imigração Italiana: vida, costumes e tradições. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Sulina, 1974. FAVARO, Celci Eulália. Mulher, Sinônimo de Trabalho: papéis sociais, imaginário e identidade feminina na Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul. Estudos IberoAmericanos. PUCRS, v22, n.2, p. 211-229, 1996. FLORES, Moacir. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ediplat, 2003. Rio Grande do Sul. Secretaria do Trabalho e ação Social. Mão Gaúcha. Porto Alegre. [s.n], 1978. PINUS, Lily. A Família e a Morte: Como enfrentar o luto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 7 Entre a História e o Imaginário: representações visuais no Cemitério São Miguel na Cidade de Goiás Samuel Campos Vaz1 Resumo: Este trabalho apresenta algumas reflexões referentes às histórias reproduzidas sobre o cemitério da Cidade de Goiás. Imagens e imaginário refletem a história local trazendo novos sentidos. Estes aspectos são percebíveis nas diversificações das imagens que foram produzidas ao longo do tempo, com isso analiso alguns conceitos que ajudam na relevância das imagens e de seus significados que ficam entre a história e o imaginário. Palavras-chave: Imagem, Representações, Cemitérios, Imaginário. Representações da Vida O Cemitério São Miguel surge em 1859 a partir de uma lei datada de 20 de junho de 1846, que proibia o sepultamento nas Igrejas. O Cemitério São Miguel estava diretamente ligado ao Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara, que o administrava. Em um dos artigos de lei relacionado à proibição de sepultamentos em igrejas, lemos que: “Logo que o cemitério receber a benção, fica proibido os enterros nas igrejas e no recanto delas, sob a pena de multa de dez mil réis aos infratores” (FREITAS, 1999, p. 146). No Cemitério São Miguel existem vários tipos de túmulos que representam monumentalidade, beleza artística, ou simplicidade. Na produção das imagens foram empregadas, especialmente, a pedra sabão e o mármore. Foto 1: Estátua de pedra sabão Foto 2: Estátua de mármore. Conforme diz Bellomo (2000), sobre túmulos cemiteriais no sul do Brasil, os mausoléus eram de ricos ou da classe média. No entanto, observa-se outro 1 aspecto na Cidade de Goiás. Uma análise atenta mostra que no século XIX escravos eram enterrados na sepultura do seu senhor. Esse costume dava ao morto, aquilo que ele não teve em vida uma compensação, que amenizava o sentimento de dívida. Essa atitude não tirava o status do senhor, ao contrário, o escravo passa a representar o senhor, pois de alguma forma seu status e poder estavam representados ali. A terceira sessão do Cemitério São Miguel era ocupada por sepulturas perpétuas: Na sepultura nº 35 da 3ª sessão do cemitério desta capital foi hoje sepultado Justiniano, escravo do Sr. Pedro Loudovico, brasileiro, falecido ontem 11 horas de hepatite chrônica (FREITAS, 1999, p. 149). Mesmo que estejamos fazendo uma análise espacial de túmulos e mausoléus, temos que levar em conta todo o processo histórico social, ainda que nosso objetivo seja somente uma classificação e uma categorização de túmulos. No São Miguel existem imagens que representam muito mais a vida do que a morte. Algumas perguntas são feitas a partir dessas idéias representadas imageticamente no cemitério da cidade de Goiás. O que o morto foi? O que ele tinha? O que ele representava? Fica claro que, esses túmulos repletos de imagens e mensagens representam a vida e não a morte. Foto 1: Lápide com inscrições que cotam a posição social do morto “...idolatrada esposa do Coronel...” 2 É necessária uma boa investigação em documentos, diários e nas imagens, enquanto testemunho, para que tenhamos as representações feitas em cemitérios elucidados pela história em seus múltiplos aspectos. Trabalhar com visualidade dentro do cemitério pode ser uma coisa rica, dependendo de como manuseamos as informações, traduzindo em conhecimento aquilo que seria, simplesmente, algo decorativo, alegórico. Os monumentos e as estátuas estão associados às imagens mentais que se têm da morte, elas corporificam idéias e qualidades significativas para a coletividade. Para refletir sobre o imaginário social devemos considerar implicações temporais, visuais e históricas. Estas implicações provocam mudanças contínuas nas narrativas. Esse processo gera apropriações, hibridações, influências que dão direção para o entendimento da reprodução e suas representações. O que vai restar desse processo é a memória, a visão discreta da cultura. Por outro lado, a cultura material do cemitério deixa visíveis as mudanças da cidade em seus movimentos. Arte e representação Falar de cultura material é de certa forma falar de memória, de lembranças, ou seja, túmulos, estátuas. “Imagem – lembrança. Consciência de um momento único” (BOSI, 1994, p. 49). Muitas vezes as imagens despertam as lembranças. Mas todas as vezes que lembramos o mesmo aspecto, lembramos diferente. Pois os momentos e as circunstâncias são outros, levando em consideração que a lembrança é individual. No cemitério a cultura material é que determina os espaços, categorizando e classificando o que é menos e mais relevante. Bezerra de Menezes (2005) destaca que a cultura material faz parte das relações sócias e tem que ser vista dentro de cada contexto. Compreender imagens, estátuas, escritos, fotografias, entre outros, será possível se houver uma análise consciente do contexto histórico. “As imagens não são puros conteúdos em levitação, ou meras abstrações, mas antes de tudo, constituem coisas materiais, objetos físicos, artefatos” (BEZERRA DE MENEZES, 2005, p.50-51). 3 A arqueóloga Tânia Lima (1994) faz uma análise em cemitérios cariocas do séc. XIX onde busca constatar “mudanças na representação da morte na transição do império escravista para a república progressivamente capitalista” (LIMA, 1994, p. 95). A metodologia empregada nesse estudo classifica os jazigos enquanto cultura material. Reúne uma série de atributos que ela define como sendo signos antropomorfos, zoomorfos, fitomorfos, ligados ao fogo, ligados à nobreza e distinção e objetos. Essa catalogação observa ainda tamanho, significados e outras expressões. Um trabalho minucioso, porém em algum momento descritivo. As imagens de cemitérios, estátuas, túmulos, epitáfios são objetos possíveis de ser analisados como cultura material nas artes, assim como na arqueologia. Apesar dos poucos estudos no campo artístico, as análises ficam em torno de estilos, influências, classificações por produção e descrições formais. Trabalhar o conceito de arte dentro da arte funerária ou arte cemiterial é pensá-la dentro do seu contexto de representação da morte. Nesse mesmo processo encontram-se algumas questões. Raymond Willians (1992) utiliza do exemplo da arte rupestre para levantar questões que ele mesmo tem dificuldades para dar respostas. As pinturas rupestres, por exemplo, são, de modo geral e compreensivelmente, encaradas hoje como arte e, na verdade, como arte maior, em muitos de seus exemplos. Contudo, elas se localizam habitualmente em lugares escuros e inacessíveis, e realmente não sabemos com que freqüência eram geralmente vistas, se é que o eram, no período e na cultura em que foram executadas (WILLIANS, 1992, p.121). Por essa linha de raciocínio podemos fazer alguns questionamentos: arte para quem? Para quem faz? Para quem vê? Arte ou artesanato? São questões que podem ser definidas dentro de visões isoladas. Pois os seus significados dependem de entender tipos de produção e o contexto de seu tempo. Geertz (1997) fala sobre uma combinação de signos produzidos no meio social, compondo novos sentidos aos quais utilizam das representações culturais, em uma conexão interpretativa do cotidiano. Segundo Borges (2002) há uma dificuldade de trabalhar a arte funerária brasileira. O que ela representa, socialmente, para o europeu é diferente do 4 que representa para o brasileiro, que não vêem os objetos enquanto arte, mas pertencente a um modismo ou a um status quo. A representação dessa arte funerária no Brasil está voltada para a representação do morto: Os cemitérios convencionais adotaram maneiras próprias para que os valores burgueses ficassem registrados no seu partido urbanístico e arquitetônico. Por meio de normas peculiares, as construções eram dotadas de funcionalidade, de valor artístico e simbólico, pretendendo sempre cultuar a memória do morto como ser social – pertencente a uma família, a uma determinada classe – como indivíduo – portador dda necessidade de ser perenizado, sair do anonimato, adquirir propriedade perpétua (BORGES, 2002, p. 282). A noção de valor artísticos das imagens é acrescida nesse processo de representação: “A arte funerária contribuiu para desenvolver um certo gosto estético na população da época” (BORGES, 2002, p. 282). É fundamental aplicar os conceitos de arte dentro da arte cemiterial de modo contextualizado ao seu tempo e espaço. Imagem e imaginário Formas, dimensões, técnicas são assimiladas à visualidade, num processo que podemos chamar de produção da cultura material. Desde sua confecção, até o momento em que é colocada sobre o túmulo, a imagem vai construindo sua história ou estória. A posição em que é colocada no jazigo e desse em relação à distribuição espacial do cemitério, torna-se importante para a construção de significados. São atribuídos à imagem alguns sentidos do lugar, ao mesmo tempo em que é construída uma identidade para o lugar. A cultura material ganha a possibilidade de relacionar-se dentro do universo do imaginário social. Em relação ao espaço interno, observa-se que a própria distribuição dos objetos favorece interesses, num primeiro contato, aos valores estéticos. O imaginário social surge do contato com as imagens e das informações nelas contidas. Temporalizar é buscar compreender a complexidade do que representam as formas e imagens do cemitério. É nessa dinâmica que obtemos informações sobre a reprodução coletiva das histórias. No Cemitério São Miguel na Cidade de Goiás tem uma reprodução de estátuas que representam anjinhos, que fazem parte do mesmo estilo, 5 considerando o modelo utilizado Borges (2002) para classificar as imagens em um inventário tipológico e detalhar os aspectos formais, artísticos e representativos. A reprodução é caracterizada pela figura de um anjo com feições de criança que esfrega o olho chorando. Foto 3: Anjo com feição de criança. Foto 4: Anjo com feição de criança com cruz. Espacialmente, as esculturas, estátuas, túmulos estão distribuídos em várias partes do cemitério. Simbolicamente uma escultura que se repete na sua forma tem sentidos diferentes, ou seja, cria sua identidade porque está relacionada ao túmulo, ao morto, a coisas que lhe dão novo sentido. Um desses anjos é conhecido como a “menina da xícara”. Segundo informam os moradores da cidade2 é a representação de uma criança que no século XIX quebrou uma xícara e por isso apanhou até a morte. Devido a falta de documentações não se sabe ao certo quem era a menina do caco, e quando ela morreu. Porém, esta história é divulgada, também, no conto Azul Pombinho de Cora Coralina, poetisa da Cidade de Goiás. No conto, ela descreve a morte de uma menina que quebra a louça e como castigo usa um colar dos cacos, que a leva a morte. 6 Foto 5: ” Menina da xícara”, Cemitério São Miguel, Cidade de Goiás. Foto 6: Detalhe da “menina da xícara”. O imaginário social às vezes transforma estórias em histórias e histórias em estórias.. Diante das representações percebemos que muitas das tradições são inventadas. Um fato curioso, contado por alguns moradores da cidade, diz que a estatua da “menina da xícara” foi roubada em décadas passadas, e resgatada no aeroporto do Rio de Janeiro. Nesse episódio a estatua foi quebrada. Quando foram devolvê-la ao cemitério a imagem foi reconstituída e posta em outro túmulo que não era o lugar de origem. Por esse motivo foi colocada uma grade de proteção sobre a estátua, para evitar novas tentativas. A idéia é de que existe uma cultura autêntica, mas que na verdade não passa de uma invenção. Nesse caso a menina da xícara, uma pequena estátua de anjinho, reproduz, simbolicamente, o sentimento de uma prática do passado. Reforça a memória construindo uma nova história, produzida pelo imaginário social. Esse processo diminui a distância entre o real e o imaginário, dando sentidos a uma pequena estatueta, e poder de representar as histórias do cemitério na Cidade de Goiás. Pensar a reprodução é pensar também em semelhanças, tanto de imagens quanto da produção de sentidos. Perceber as semelhanças é entender o que podemos chamar de mimese, uma representação do real onde uma pequena coisa constitui o diferente. Ou seja, semelhante é diferente de igual. 7 As referências, as formulas, as receitas ditam como fazer. Mas cada um coloca sua impressão, portanto o resultado nunca será o mesmo. Há uma importância no diálogo entre imagens e imaginário. O resultado fica a cargo do discurso, e do mimético. Benjamim (1994) se preocupa não com a semelhança e nem com a mimese, mas com a questão temporal que define as diferenças exemplificadas pelo olhar transitório e efêmero. “Certamente a teoria mimética é uma teoria ilusória, pois por definição a imagem não é o real” (KOURY, 2001, p. 117). Dentro dessa perspectiva Diniz analisa a imagem enquanto reflexo ou enquanto sujeito. Impossibilitando o acesso ao real, estabelecendo novos processos de compreensão do imaginário social. O imaginário social constrói, por sua vez, passagens que conduzem ao sujeito, às mentalidades, a cada tempo. No percurso do processo de mudanças são fundamentais os conceitos que se fixam no diálogo entre a história e o imaginário. No caso da “menina da xícara” alteram-se os sentimentos em relação ao “castigo exemplar”. Esse movimento nos ajuda a compreender as apropriações para as imagens. Contar e recontar histórias de cemitérios, relatar sentimentos em relação aos mortos, identificar as representações dos mortos e da morte no cemitério da Cidade de Goiás dá à coletividade a noção de pertencimento, o sentido de estar onde se quer estar. Referências bibliográficas: ARIES, P. O Homem Diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. BELLOMO, H. (org.) Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte – sociedade – ideologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história cultural. São Paulo: Brasiliense, 1994. BORGES. M.E. Arte Funerária no Brasil (1890-1930): ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Ed. C\Arte, 2002. BORGES, M.E.L. História & Fotografia. Belo Horizonte: Autêntica,2003. 8 BOSI, E. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia das letras, 1994. CORALINA, C. Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. São Paulo: Global Editora, 1988. DARNTON, R. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia da Letras, 1990. FREITAS, L. C. B. F. de (org.) Saúde e Doenças em Goiás: a medicina possível: uma contribuição para a história da medicina em Goiás. Goiânia: Ed. da UFG, 1999. HOBSBAWM, E. e RANGER, T. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. KOURY, M. G. P. (org.) Imagem e Memória: ensaios em Antropologia Visual. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. LAGROU, E. M. Identidade e alteridade a partir da perspectiva kaxinawa. In: ESTERCI, N.; FRY, P. e GOLDENBERG, M. Fazendo Antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2001: 93-127. LIMA, T.A. De morcegos e caveiras a cruzes e livros: a representação da morte nos cemitérios cariocas do século XIX (estudo de identidade e mobilidade sociais). Anais do Museu Paulista, V. 2. São Paulo: 1994, p. 87-150. VOVELLE, M. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987. 9 1Historiador, fotógrafo, Especialização em Gestão do Patrimônio Cultural – UEG, Grupo de Estudos Morte, Rituais de Morte e Cemitérios – UFG. 2Moradores entrevistados: Circe de Camargo Ferreira e Silva, Adriano Alcântara de Almeida, João Chaves da Costa e Maria de Fátima Silva Cançado. Memória e esquecimento: o caso do cemitério de escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, 1848-1888 Thiago de Souza dos Reis Mestrado em História – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. (PPGH/UNIRIO) Resumo: o objeto desse trabalho é o Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, mais especificamente a parte dedicada ao sepultamento dos escravos, nosso recorte abrange o período de fundação do Cemitério até o ano da abolição da escravidão, ou seja, do ano de 1848 a 1888. Temos como objetivo discutir o atual papel do Cemitério da Irmandade na sociedade vassourense diante dos mecanismos de memória e esquecimento, pois hoje o cemitério não é mais visto como local onde foram enterrados grande parte dos escravos no período analisado. Palavras-Chave: memória, esquecimento, cemitério. A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta das flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de bois. Com exames de pedras por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem.1 Temos como objeto o Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. Nele havia uma parte reservada para o sepultamento dos escravos vassourenses, que ali foram enterrados durante grande parte da segunda metade do século XIX. O recorte desse trabalho abrange o período de fundação do Cemitério até o ano da abolição da escravidão, ou seja, do ano de 1848 a 1888. O objetivo de nossa pesquisa é discutir o atual papel do Cemitério da Irmandade na sociedade vassourense diante dos mecanismos de memória e esquecimento2, pois hoje o cemitério não é mais visto como local onde foram enterrados grande parte dos escravos no período analisado. Passemos então a uma breve contextualização acerca do cemitério e da cidade de Vassouras na época estudada. O Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras Em 1834, a mesa da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição designou o terreno localizado atrás da Igreja principal – hoje praça Sebastião de Lacerda – para edificar o cemitério da Irmandade.3 Provavelmente por falta de espaço, alguns anos mais tarde o Cemitério é transferido para um sítio maior, que atualmente se localiza ao final da rua Barão de Massambará, na praça Cristóvão Correa e Castro, edificado desde 1848, como nos leva a concluir a placa afixada no muro frontal. Desse campo-santo, temos o seguinte relato: O mais grácil e aprazível dos sítios de Vassouras é o cemitério. Por toda parte há flores de mistura, não a flor tumular amarela e fanada que na Europa mãos avaras deixam cair nos sepulcros como últimas lembranças. Há a flor animada, a flor virente, a flor de brilho e perfume. Ah! Como compreendem a morte os que a enfeitam como à vida! Fui muitas vezes a esse campo-santo. Detive-me principalmente por detrás da capela em quiosque, em um terreno baixo e descalvado, onde havia algumas cruzes de madeira. Que me diziam esses túmulos? Um grande drama, o das misérias escravas, uma longa epopéia, a das dores miseráveis. Mortos humildes de sangue negro ou de sangue azul, se aí jazeis, quem quer que sejais, grei do labor e do infortúnio, eu vos saúdo.4 Essa passagem, escrita por Charles Ribeyrolles quando da sua visita ao Vale Fluminense do Rio Paraíba do Sul, nos idos dos anos de 1859 e 1860, descreve a impressão do autor sobre o cemitério da cidade de Vassouras. Nessa visita, Charles Ribeyrolles passou por fazendas de café, algumas no auge da produção. Na cidade de Vassouras, descreve a praça central com seu chafariz gracioso e esbelto, o hospital da Misericórdia, amplo e magnífico edifício, o casario composto por mais de trezentas casas, das quais algumas bem confortáveis e os pequeninos palácios de alabastro.5 Mas algo em especial lhe chama a atenção: o Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição – o mais grácil e aprazível dos sítios de Vassouras.6 No cemitério de hoje visualizamos a capela citada por Ribeyrolles, dedicada a Nossa Senhora das Dores, na parte mais central do plano do campo-santo, aos fundos desta se encontram alguns túmulos simples e logo após há um terreno mais acidentado, tomado pelo lixo e pelo mato, onde provavelmente estavam os túmulos de escravos, descritos por Ribeyrolles quando de sua visita. Como podemos perceber, a parte descrita por Ribeyrolles destinada ao sepultamento dos escravos, era localizada nos fundos desse terreno, separada da parte reservada a receber as inumações do restante da sociedade. De certo modo, essa divisão dos locais de enterramento dentro do espaço cemiterial, verificada nesse cemitério, refletia a alta hierarquização reinante na sociedade vassourense da época. Em relação à economia, a década de 1850 foi a idade de ouro do café, e a sociedade de Vassouras funcionava com base nesse produto.7 Essa afirmação é baseada no fato de que, mesmo após a expansão da cultura do café na década anterior, propiciada pelo amplo comércio de escravos, é somente com o fim do tráfico que se iniciou a prosperidade e a opulência, isso porque os proprietários que haviam se endividado nos anos de tráfico viram o valor de seus escravos aumentar rapidamente a partir de 1852, o que lhes possibilitou aumentar as garantias para novos empréstimos.8 A Vassouras visitada por Ribeyrolles, era na época uma cidade de economia voltada para a exportação do café. Há muitos anos a principal força de trabalho utilizada era o braço escravo.9 Ao final da década de 1850, encontrava-se Vassouras em seu apogeu. Contudo, já não existiam as fartas áreas de matas virgens de antes para a expansão da lavoura e já não afluíam massas de trabalhadores escravos para seus campos como antes, devido ao fim do tráfico internacional. Mas a vida social era pujante. Os grandes senhores de terras, proprietários de amplos plantéis de escravos, erguiam as grandes e faustosas sedes de fazenda. Iniciava-se a era dos baronatos. As tensões entre os senhores de escravos e seus cativos mudaram de forma, criaram-se novas formas de relação. A riqueza proveniente do café permitiu que os senhores cedessem diante de algumas reivindicações – poucas é claro, mas significativas – por melhorias nas condições de vida. Os plantéis tomaram nova dinâmica, a crioulização suavizava as discrepâncias anteriores entre os sexos e as idades. A formação de famílias escravas era um fato.10 Em poucos anos uma nova realidade seria moldada. Já na metade da década de 1860, a população escrava se mobilizava em busca de direitos e de novos espaços dentro da sociedade. Esse movimento, visto que a produção cafeeira encontrava-se em declínio, era maximizado diante da já estreita margem de negociação dos senhores de escravos que já não desfrutavam da situação econômica de antes.11 Ainda com relação ao recorte temporal, vale mencionar que Ricardo Salles emprega uma periodização para o desenvolvimento da cultura do café na região de Vassouras, pela qual denomina o período de tempo espaçado entre os anos de 1866 e 1880 de “grandeza” 12, onde Vassouras experimenta, após seu “apogeu”, um lento declínio na produção de café, este decorrente do envelhecimento das lavouras já estabelecidas, da inexistência de áreas de matas virgens para o plantio de novas mudas e da mudança dos interesses dos grandes proprietários, cada vez mais interessados pela vida na Corte. Contudo, mesmo diante desses percalços e de outros mais, como a crescente busca dos escravos por novos espaços sociais e de direitos, o conjunto da produção de café ainda se mostrava eficiente e lucrativo, principalmente diante da perspectiva, em tempos de proibição do tráfico internacional de escravos, da auto-reprodução natural da população escrava.13 Memória e Esquecimento: O monumento tem como característica o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos.14 Foi o Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição, também conhecido pelos contemporâneos de Ribeyrolles como Cemitério Municipal, Cemitério de Vassouras ou, simplesmente Cemitério, que recebeu a maior parte das inumações dos escravos vassourenses. Entre os anos de 1865 e 1888, foram ali enterrados 633 dos 1016 escravos mortos nesse período. Os demais corpos, cerca de 375, foram enterrados nos cemitérios particulares, localizados principalmente nas fazendas.15 Como dissemos, hoje a parte destinada ao enterramento dos escravos encontra-se hoje tomada pelo mato e pelo lixo, parecendo mais um terreno baldio, sem uso, diferentemente do período anterior à abolição da escravidão. Como pode um cemitério, outrora tão importante dentro daquela sociedade escravista, hoje não ser reconhecido como tal? Antes de nos determos mais profundamente no caso do cemitério vassourense, gostaríamos de lembrar o caso de um outro cemitério de escravos, o Cemitério dos Pretos Novos16 da Freguesia de Santa Rita no Rio de Janeiro, próximo ao cais do porto, no início do século XIX. Próximo à rua do Valongo está o cemitério dos que escapam para sempre da escravidão... Na entrada daquele espaço cercado por um muro de 50 braças em quadra, estava assentado um velho, em vestes de padre, lendo um livro de rezas pelas almas dos infelizes que tinham sido arrancados de sua pátria por homens desalmados, a uns dez passos dele, alguns pretos estavam ocupados em cobrir de terra os seus patrícios mortos, e, sem se darem ao trabalho de fazer uma cova, jogam apenas um pouco de terra sobre o cadáver, passando em seguida a sepultar outro.17 Esse é um trecho do relato do alemão G. W. Freireyss em que descreve o Cemitério dos Pretos Novos com muita minúcia, em sua estada no Brasil em 1814 e 1815. O cemitério foi criado em 1722 e desativado em 1830, possuía cerca de 110m2 de área total e, segundo estudos recentes, teria recebido impressionantes 6119 corpos entre os anos de 1824 e 1824.18 Seu funcionamento deve ter atingido o auge nos anos finais do séc. XVIII e as primeiras décadas do séc. XIX, quando, segundo Mary Karasch, aportaram no Rio de Janeiro cerca de 700 mil escravos vindos da África através do tráfico atlântico.19 Interessante notar no comentário de Freireyss a total falta de zelo no enterramento dos escravos, tal atitude também fora notada pela população da vizinhança. A Freguesia de Santa Rita vislumbrou um intenso povoamento desde a chegada da Família Real, em 1808, a abertura dos portos e o incremento no comércio de escravos.20 De certa forma até pioneira, a comunidade no entorno do Cemitério dos Pretos Novos começou a se manifestar já em 1821 com requerimentos contra o cemitério, justificando-os com as possíveis conseqüências que o alto número de enterramentos poderia trazer, exigindo sua imediata remoção.21 Diante do mau cheiro que invadia o ambiente e da possibilidade de infecção por doenças22, os moradores da região se manifestaram. Apesar da prática dos enterramentos no Cemitério dos Pretos Novos ser censurada pela população vizinha, isso não significava que havia um questionamento acerca da legitimidade do ato, do modo como os escravos eram enterrados, hoje considerável desumano. Em momento algum pudemos perceber que a motivação principal da população em seus requerimentos contra o cemitério fosse o modo desumano como os enterramentos eram feitos. Bem na verdade, a motivação principal para os requerimentos era o fato da insalubridade do cemitério se estender às casas da circunvizinhança.23 É interessante notar que a repugnância pelo lugar era generalizada. Outro ponto interessante é que o cemitério estava localizado próximo ao porto, onde africanos desembarcavam e eram negociados cotidianamente. Citando um trecho de Freireyss retirado do livro de Mary Karasch, Cláudia Rodrigues deixa bem claro qual era a situação: Os negros vivos, segundo ele, ficavam localizados tão perto do cemitério de seus companheiros que eles também deveriam ter visto os corpos de seus compatriotas.24 Digo mais, “deveriam ter visto os corpos de seus compatriotas” e sentido o seu mau cheiro. Contudo, o tipo de enterramento e o próprio aparelho simbólico que conferia aos pretos novos a possibilidade de serem lançados à flor da terra, desprovidos, aparentemente, de qualquer aparato ou ritual religioso, era aceito pela população, desde que não lhe oferecesse maiores incômodos. Mas qual idéia de cemitério teria essa comunidade de escravos? Júlio César Medeiros da S. Pereira nos mostra, apoiado em Philipe Ariès, que a partir do séc XIV as sepulturas passaram a representar um monumento, uma peça de um jogo onde a intenção era proclamar aos vivos as virtudes imperecíveis dos seus habitantes.25 Pierre Nora alarga um pouco a visão de Ariès, pois, segundo ele: o sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais de memória porque não há mais meios de memória. Ainda segundo Nora, a memória tomada pela história traz como ônus uma necessidade arquivistica, e a idéia de um desaparecimento rápido e decisivo combina-se com a inquietação do exato significado do presente e com a dúvida do futuro, a memória vai estar preocupada com o presente, em dar significado a ele.26 Achamos que a idéia da “necessidade arquivística” expressa por Nora é ampliada pela idéia de “monumento” de Ariès usada por Júlio César Pereira. Assim, onde cada documento é tratado como monumento, o conjunto de documentos também é um monumento, também é um “lugar de memória”. Vale a observação de Jacques Le Goff: O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, conhecimento de causa.27 um produto detinham o à memória com pleno Quando consideramos as epígrafes das lápides fica ainda mais clara a tentativa de manutenção de uma memória mesmo após a morte. O caso do Cemitério dos Pretos Novos o torna interessante, pois (...) ali não existia inscrição alguma, não existia nome algum, nenhum ‘jaz’ fora escrito nem pronunciado, pois não se pretendia preservar a recordação nem a lembrança dos escravos, nem mesmo grandes feitos de que seus descendentes pudessem se orgulhar mais tarde. Pelo contrário, o desejo premente era o de lançar no esquecimento a existência perene daqueles escravos mortos arrancados de sua terra natal, levados a um reino longínquo para morrerem longe de seu povo e de sua terra.28 Dessa maneira, após sua desativação na década de 1830, diante dos grandes incômodos causados aos seus vizinhos, já não havia mais meios de memória que relembrassem os escravos enterrados no Cemitério dos Pretos Novos, pois os corpos já não estavam à flor da terra. Também não se fixou como um lugar de memória, pois a população optou pelo esquecimento. O caso do Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras parece seguir por esse mesmo caminho. Após a abolição da escravidão a memória do lugar como cemitério que recebeu inumações de escravos parece ser renegada. O cemitério de escravos vassourense foi esquecido. É necessário que os pesquisadores dêem uma atenção especial a esse campo-santo, promovendo o resgate de sua memória, o que ampliará os resultados das pesquisas sobre a escravidão naquela cidade. Reconhecemos, que no caso do cemitério vassourense, ainda nos falta identificar as relações de força e os motivos por trás do esquecimento da área destinada aos escravos, possivelmente essa lacuna será sanada no desenvolvimento da pesquisa. Contudo, esse trabalho antes de tudo é uma proposta. Proposta de resgate da memória do Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição como um cemitério também de escravos. Referências Bibliográficas FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença, 1989. KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 50. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003, p. 535-549. NORA, Pierre. 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Lisboa: Editorial Presença, 1989. p. 249. Cf POLLACK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, RJ, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. 3 TELLES, Augusto C. da Silva. Vassouras: estudo da construção residencial urbana. In. Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1967, p 25-42. 4 RIBEYROLLES, Charles. Brasil Pitoresco. 1º vol. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 231. 5 ibidem, p. 230-231. 6 ibidem, p. 231. 7 ibidem, p. 55. 8 Idem. 9 Cf. STEIN, Stanley J.. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.  SALLES, Ricardo. ... e o Vale era o escravo. Vassouras – século XIX. senhores e cativos no coração do Império. (no prelo) p. 94-95. 11 Ricardo Salles, op. cit. p. 96. 12 O termo “grandeza” foi primeiramente utilizado por Robert Slenes em um trabalho no qual problematiza a questão da decadência da cultura cafeeira no Vale do Paraíba nos idos de 1870. Cf SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O Mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888. In Iraci del Nero da Costa. História econômica e demográfica. São Paulo: IPE/USP, 1986. 13 Ricardo Salles, op. cit. p. 94 – 96. 14 LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003, p. 536. 15 Infelizmente não podemos acrescentar maiores informações quanto ao funcionamento e organização desses cemitérios particulares, visto que não localizamos as fontes para tanto. Cf REIS, Thiago de Souza dos. Livro de Óbitos de Captivos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras: um estudo demográfico, 1865-1888. Monografia de final de curso. Rio de Janeiro: UNIRIO, mímeo., 2007. 16 ‘Pretos Novos’ é um termo de época utilizado para designar os escravos recém-chegados da África. Daqui em diante este termo será usado sistematicamente. 17 PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva Pereira. Os pretos novos que não chegaram a velhos. In: Revista Nossa História. Rio de Janeiro: Editora Vera Cruz, julho de 2006. p.74-77. 18 idem 19 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 50. 20 RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1997. p. 70-71. 21 ibidem, p. 71. 22 Interessante avaliar essas atitudes da população frente ao discurso médico acerca dos miasmas e da morte, que pregava uma verdadeira ‘revolução cultural’ nos hábitos e costumes com uma pedagogia permanente. Cf Cláudia Rodrigues, Lugares dos mortos na cidade dos vivos, op. cit. e REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 23 Cláudia Rodrigues, Lugares dos mortos na cidade dos vivos, op. cit, p. 68-78. 24 ibidem, p. 71. 25 Júlio Pereira, Os pretos novos que não chegaram a velhos: morte e sepultamento de escravos recém chegados de África, no Rio de Janeiro do século XIX. pdf. 26 NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Revista de Estudos pós-graduados em História. São Paulo: PUC São Paulo, 1993. 27 Jacques Le Goff, op. cit. 545. 28 Júlio César Pereira, Os pretos novos que não chegaram a velhos: morte e sepultamento de escravos recém chegados de África, no Rio de Janeiro do século XIX. pdf. 2 Cemitério como Fonte Histórica de Preservação da Identidade Cultural Thiago Nicolau de Araújo Mestre em História pela PUCRS. Professor do Ensino Médio e de Curso Preparatório. Resumo Procuramos evidenciar a importância do cemitério como fonte histórica dos aspectos da cultura regional, pois lá se encontram obras de renomados artistas plásticos, bem como túmulos de personalidades de relevância para história do Rio grande do Sul e brasileira. As lápides também podem ser consideradas como fontes de registros documentais importantes, contendo as mesmas informações que um arquivo público. Percebemos diferentes maneiras das sociedades expressarem o sentimento sobre a morte, mas sempre mantendo a idéia de conservar a memória do morto pela imagem ou pela escrita, numa tentativa de manter viva sua identidade desse modo preservando a identidade cultural do mesmo em determinado período temporal. Palavras – chaves: Cemitérios; Identidade; Cultura ..."Não são os fatos em si que ferem a imaginação coletiva, mas sim o modo pelo qual se lhes apresentam. Os monumentos e as comemorações são, sem dúvida, os meios mais proveitosos, práticos e seguros, para gravar no espírito de um povo as proezas de um herói, a grandeza de um nome ou a importância e o significado de um acontecimento”.1 Gustave Le Bon O cemitério nos permite realizar múltiplos olhares sobre as sociedades, graças às diferentes expressões de identidades culturais particulares e/ou privadas que lá são representadas. Ele apresenta diferentes expressões de linguagem, tanto escritas como simbólicas, devido às diferenciações sociais que lá são identificadas. O cemitério antes de tudo é uma forma de preservação da memória particular e coletiva dos indivíduos de uma região. Todos os túmulos erigidos são propriamente uma forma de preservação desta memória. Neste sentido, se faz necessário analisar a relação entre a preservação da memória e a formação de uma identidade. A aproximação entre memória e identidade é tratada por alguns autores que, nessas análises, relacionam memória e tempo, ambos de natureza social e num tempo que também é relacionado à sociedade. Michael Pollack2, ao caracterizar a relação entre memória e identidade, define que a memória é um fenômeno construído (consciente ou inconsciente), como resultado do trabalho de organização (individual ou socialmente). Sendo um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. Pollack também define a identidade como a imagem que a pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação e também para ser percebida da maneira que quer por outros. A construção da identidade, de acordo com o autor, é um fenômeno que se produz em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, credibilidade e que se faz por meio da negociação direta com outros. De acordo com Eclea Bosi, em Memória e sociedade3 lembrar significa aflorar o passado, combinando com o processo corporal e presente da percepção, misturar dados imediatos com lembranças. A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo atual das representações. A autora ainda declara que “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que muda conforme o lugar que algo ocupa e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios” (Bosi, 1987, p.42). Já Maurice Halbwachs4 destaca que pela memória o passado vem à tona, misturando-se com as percepções imediatas, deslocando-as, ocupando todo o espaço da consciência. Afirma também que a natureza da lembrança é social e que ela nos aparece por efeito de várias séries de pensamentos coletivos emaranhadas, e se não podemos atribuí-las exclusivamente a estes, ela se torna independente, mas necessita de um apoio por si só para se sustentar. Para Halbwachs, uma questão fundamental acerca da memória coletiva, como um fato social seria a sua ancoragem para cada indivíduo. Os homens não só estabelecem elos entre o passado e presente, mas também entre as diversas concepções individuais acerca do passado. Para se ter uma memória coletiva é preciso interligar as diversas memórias dos indivíduos que fazem parte do grupo identificado como proprietário daquela memória (1990, p.43). Jean-Pierre Vernant5 procurou demonstrar o quanto a memória, em seu sentido original entre os gregos, apontava para outras direções que não as que são concebidas no mundo contemporâneo. Pela memória, reconstruímos nosso elo com o mundo, com nossa origem, e menos com uma temporalidade. A memória seria matéria menos de uma cronologia e mais de uma cosmogonia. Memória e esquecimento seriam fontes nas quais tanto homens quanto deuses haveriam de beber, sendo a segunda marcadamente uma entrada para o “inferno”, para a não-superação, e a primeira uma maneira de garantir o tempo cíclico, um caráter mítico em relação ao pertencimento ao mundo desde sempre. Portanto, podemos definir que a memória construída no presente, a partir de demandas dadas por este e não necessariamente pelo passado em si, pode ser pensada como fator fundamental para a construção de pertencimentos sociais, aos mais diversos níveis associativos. De certa forma, a busca do controle sobre a memória institui uma identidade para o agente social nela envolvido. Assim o cemitério passa a ser um agente de manutenção de memórias que constroem uma identidade cultural. Entendemos que as expressões funerárias são intimamente ligadas à preservação da memória individual/coletiva, sendo assim importantes objetos de estudo. Muitas obras funerárias são monumentos, e de acordo com Le Goff, a memória coletiva é aplicada a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos. Os monumentos são heranças do passado e os documentos do historiador. Para a História o monumento, por ser um tipo de documento que reflete a memória, é uma rica fonte de informação. Trataremos as representações funerárias como monumentos, ou seja, como objetos que nos remete a heranças do passado. A própria origem da palavra monumento já representa o sentido de memória: A palavra latina monumentum remete para a raiz indo-européia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (menini). O verbo monere significa “fazer recordar”, de onde “avisar”, “iluminar”, “instruir”. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos. (...) Mas desde a Antiguidade romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco do triunfo, coluna, troféu, pórtico, etc. 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte (Le Goff, 1994, p.535). Assim, desde a sua origem, o sepulcro pode ser considerado um monumento, portanto memória. Estudá-los significa interpretar o contexto em que estão inseridos. Assim, o cemitério é considerado também como lugar de memória onde são erguidos túmulos que portam significados que representam a expressão de sentimentos individuais ou públicos. Esta idéia está presente nos documentos criados para a construção da memória nacional. E o documento, como diz Le Goff, não é alguma coisa que fica por conta do passado. É produto da sociedade que o fabricou, segundo relações de força, em que mais uma vez se apresenta a questão do poder (1994, p.545). Neste sentido podemos definir que a expressão da memória nos cemitérios se dá através de símbolos, observado em diferentes formas, encontrados nos túmulos, sendo as mais usuais: • Os epitáfios – inscrições feitas de diversas formas (esculpidas, pintadas, grafadas ou coladas nas lápides), que expressam uma ou mais idéias ou conceitos do mundo dos vivos para o mundo dos mortos, neste sentido pode ser considerado como um objeto que representa a identidade cultural de uma determinada região em uma determinada época, indicando um ponto de vista particular ou público. • As esculturas – As obras escultóricas contidas nos cemitérios apresentam diversos temas, sendo que em geral a temática predominante é a religiosa. Encontramos crucifixos, santos, símbolos diversos e alegorias. As temáticas invariavelmente refletem o gosto de uma época, pois encerram em si uma iconografia repleta de representações estereotipadas, como reflexo de uma atmosfera coletiva (Borges, 2002, p.162). Estes sistemas de símbolos fortalecem a representação da identidade cultural fortalecendo a construção de uma memória individual/coletiva. Conforme Pierre Nora6, a memória, que tradicionalmente conferia às sociedades suas identidades sociais, teria sido “seqüestrada pela história”, sendo que a primeira seria “a vida”, e a segunda sempre uma “construção problemática e incompleta do que já não existe”. O historiador tenderia ao universal, enquanto o cuidado com a memória remeteria ao concreto, ao que se vincula espacialmente à determinada realidade. A História, segundo o autor, vai transformar a memória em objeto de uma “história possível”. Por isso, segundo Nora, será preciso criar lugares de memória para que a memória exista em algum lugar. Por isso é preciso pensar a institucionalização dos lugares de memória como um entrecruzar de dois movimentos: de um lado, uma transformação em termos de reflexão por parte da História; de outro, o fim de uma tradição de memória. O lugar de memória é, portanto, um marco de transição entre dois eixos. Em suas dimensões concretas, tais lugares vão remeter a museus, arquivos, cemitérios, tratados, entre outros signos de rememoração. Assim, no momento em que uma tradição da memória enquanto processo experimentado e vivenciado coletivamente começa a se esvair, é preciso criar marcos para ancorar essa nova memória (Nora, 1988, p.83). Assim, a história institucionaliza e oficializa a memória e, conforme Nora, já não produzimos mais memória, mas história mesmo. Ela requer indícios, vestígios, não basta mais ser um rememorar pela palavra, é preciso o dado concreto do registro. Daí, para Nora, a obsessão contemporânea pelo arquivo. A partir da concepção de Nora de que os lugares de memória podem ser pensados nos três sentidos da palavra, ou seja, tanto material quanto simbólico e funcional, podemos considerar os meios de comunicação de massa como lugares de memória da sociedade contemporânea. Mais precisamente: seriam eles com certeza espaços privilegiados no arquivamento e produção da memória contemporânea. Os cemitérios para o historiador devem ser pensados como lugares de memória, pois ao enfocar o ato de "lembrar o morto" envolvendo um ritual coletivo " a sociedade expõe relatos de personalidades que desempenham um duplo papel na construção póstuma: de um lado, servem para demonstrar a perenidade do morto e de sua obra e, de outro, servem para atualizar o valor simbólico de vivos e mortos. Essa “construção” das personalidades são realizadas através da representação das mesmas por epitáfios, fotografias e esculturas, contendo muitas vezes significados simbólicos. Muitas expressões simbólicas contidas nos cemitérios são iconográficas, representando a história do sentimento religioso. Esses sistemas de símbolos expressam identidades coletivas que estão diretamente associadas ao contexto histórico de determinadas regiões. Para Áries, a visita ao cemitério foi e ainda é o grande ato permanente da religião. Aqueles que não vão à igreja vão ao cemitério, onde evocam o morto e cultivam sua lembrança (Áries, 2003, p. 75). A análise das representações culturais coletivas levou à diversificação das fontes, pois os elementos iconográficos têm uma importância tão grande quanto o discurso formal, como afirma Vovelle: De certo modo, a indagação sobre o popular levou à diversificação de recursos, relativizando o primado do escrito e valorizando outras fontes, tais como o documento oral e a iconografia (Vovelle, 1997, p. 17). Desse modo, o cemitério passa a ser uma fonte rica de elementos que testemunham, relatam e contribuem para construir o contexto de determinadas sociedades, contextualizadas em um espaço-tempo. As imagens e escritos lá representadas são um reflexo das representações coletivas diante das diferentes manifestações sociais, culturais e políticas do mundo dos vivos. Essa idéia é confirmada por Fernando Catroga: Para representar o seu papel, o cenário cemiterial tinha de ser dominantemente simbólico. Todavia, esta verificação tem de ser interpretada com cautelas. É que, nesta trama, a função metafísica está intimamente colada às suas implicações sociais (...) (Catroga, 1999, p. 112). Conforme Vovelle (1997, p.339), houve na Europa uma idade de ouro do cemitério, pois durante quase um século, de 1830 a 1920, a cidade dos mortos foi terreno de surpreendente proliferação das produções do imaginário coletivo: a arquitetura e a estatuária refletiram profusamente a intensidade do investimento coletivo no cemitério. Entre 1860 e 1930: foi a época da proliferação dos jazigos perpétuos, quando também “a família burguesa, em filas cerradas, se aglomerou dentro desse hábitat póstumo; época das capelas e monumentos funerários” (Vovelle, 1997, p.328). Este sentimento de preservação da memória através das representações funerárias é observado em Portugal a partir da segunda metade do século XIX, e em 1868 é lançada em Lisboa uma revista dedicada à preservação da memória dos falecidos, a “Revista dos Monumentos Sepulchaes”7. Conforme trecho citado por Batista: O túmulo é o cofre em que se arrecadam as preciosas cinzas do herói, do benemérito da pátria, do sempre chorado chefe de família etc.; emquanto o monumento ostensivo, formado de magestoso pedestal de mármore sobre o qual compêa a imponente estátua de bronze, que representa o herói que a vaidade dos homens pretende legar aos vindouros, não passa de um mero capricho (Revista dos Monumentos Sepulchraes, 1868, p. 3. in: Batista, 2002, p.62.). No Brasil, durante o período colonial, a tradição determinava que os mortos fossem enterrados nas igrejas. A morte era vista de uma perspectiva de humildade, portanto os túmulos depositados nas igrejas eram muito semelhantes: uma inscrição, uma lápide ou um brasão da família do morto eram suficientes(Bellomo, 1994, p.64). No início do século XIX começaram a aparecer os túmulos mais significativos no Rio de Janeiro, destinados à Família Real. Após a independência, com a proibição de sepultamentos em igrejas, surgiram os cemitérios com túmulos cada vez mais grandiosos. Tanto a aristocracia como a crescente burguesia começaram a adornar seus túmulos com estatuária. De acordo com Bellomo, a aristocracia gaúcha não via necessidade de enfeitar em demasia seus túmulos. Apenas capelas com lápides no interior, registrando os nomes dos falecidos, e com o seu brasão esculpido, símbolo suficiente de “status” da nobreza (1994, p.64). O aumento da produção de estatuária cemiterial está relacionado com o desenvolvimento da economia gaúcha, no final do século XIX, em que a burguesia começa a se capitalizar. Os túmulos dos cemitérios de Porto Alegre, devido à influência da colonização portuguesa, bem como do materialismo científico resultante dos governos positivistas, representam a idéia de manutenção da memória do falecido e de suas boas qualidades, sentimentos indicados através da estatuária, de símbolos, de epitáfios e de fotos. Assim, a necrópole não é somente um espaço de memória, mas também de representações artísticas. Essa memória é preservada na construção de túmulos, sendo que em muitos casos são feitos monumentos em homenagem ao falecido contendo diversas representações simbólicas que remontam não só à construção da identidade do morto, mas também ao contexto em que estava inserido, fornecendo dessa maneira diversas informações valiosas sobre a história de uma região em uma determinada época. Portanto, os túmulos traduzem de maneira muito mais sugestiva seu reflexo no imaginário coletivo do grupo, a começar pelo que a propósito disso era percebido e condicionado segundo o espírito da época. Referências Bibliográficas BELLOMO, Harry R. A Estatuária Funerária em Porto Alegre (1900 -1950). 1988. 204f. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1988. _________. O Cemitério como fonte Histórica. 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ACTITUDES ANTE LA MUERTE EXPRESADAS EN LOS CEMENTERIOS RURALES DE NUESTRO PAIS (REPÚBLICA ARGENTINA) Victoria de los Ángeles Caamaño; Profesora de Historia y Letras. Especialista en Educación Ambiental y Desarrollo Sustentable. Investigadora del Proyecto de investigación a cargo de la Doctora Antonia Rizzo: El cementerio de Moreno y su contexto histórico; El cementerio de Monte y su contexto histórico social; Cementerios rurales. Docente de Nivel Medio en E. T. Nº13 de la Ciudad. Bs. As. y E.E.M.Nº4 de Tapiales, Pcia. de Bs.As..Tiene numerosos trabajos publicados, asistencia a Congresos Nacionales e Internacionales, ha dictado conferencias sobre su especialidad. viccaamano@live.com.ar RESUMEN: Parte del patrimonio cultural de la República Argentina se encuentra en las zonas rurales, donde un mayor contacto con la naturaleza y creencias populares produce el nacimiento de una tradición oral de gran riqueza. Una tradición que vive entre ritos y mitos religiosos la muerte, que se acepta con la misma naturalidad que cualquier otra de las certidumbres de la vida cotidiana. Los rituales que acompañan la muerte son parte de su accionar cotidiano, de sus tradiciones y creencias. En esta filosofía de vida y muerte lo real y lo ideal conviven cotidianamente y expresan retazos de la identidad local esencial para saber quiénes somos. El objetivo de este trabajo es relevar y comparar creencias, rituales y costumbres de sociedades rurales que están presentes en los cementerios de nuestro país para ser transmitidas a otras generaciones, y a otros tiempos y así trascender su propia circunstancia cultural. PALABRAS CLAVES: actitudes, cementerios rurales, creencias populares. Texto: Parte del patrimonio cultural de la República Argentina se encuentra en las zonas rurales, donde la riqueza de una vida en mayor contacto con la naturaleza y las creencias populares produce el nacimiento de una tradición oral de gran riqueza. Si bien las comunicaciones en la época colonial hasta finales del siglo XIX cobran importancia en el desarrollo de los pueblos debido a que han sido un factor importante para dinamizar el intercambio tanto de bienes como de servicios. También funcionaron como factores de promoción de la cohesión social entre los primeros poblados, por tratarse de evidencias que permiten reconstruir múltiples aspectos relacionados con la interacción cultural y el desarrollo social. En tal sentido, los sistemas de rutas y caminos han 1 constituido vehículos de fundamental importancia para el intercambio y para el traslado de personas portadoras de objetos y tradiciones, de bienes y de ideas. Es fácil constatar la transformación de las ciudades y áreas rurales con la llegada de distintas corrientes inmigratorias, “de las cuales muchas de ellas formarían la mano de obra necesaria para el modelo económico en marcha”. A finales del siglo XIX y principios del siglo XX las esperanzas estaban depositadas en el ferrocarril como abastecedor de la materia prima y expulsor de las mercaderías hacia nuevos mercados y como un motor de desarrollo económico, ajustándose a este naciente modelo agroexportador: ricas tierras, productoras de excelente ganado e importante producción agrícola con un trazado de líneas férreas que le permitía embarcar sus productos a diferentes destinos del interior del país y a la ciudad de Buenos Aires y de allí al exterior. Asimismo, existían gran cantidad de barracas que almacenaban cueros, cereales, etc., y tambos para agilizar el transporte de los productos regionales en el ferrocarril. (Cuarterolo, 2002) Por otro lado, los cambios que se han operado en los últimos años producen nuevos paisajes argentinos. De aquel país soñado y proyectado por otras generaciones, hoy quedan: fábricas abandonadas, refuncionalizadas como shoppings o como pequeñas fábricas manejadas por sus antiguos obreros con un sector denominado “museo fabril”, en venta u ocupadas precariamente como viviendas; pequeños y medianos productores agropecuarios que se ven obligados a arrendar sus tierras grandes empresas transnacionales para poder subsistir. Sin embargo, puede constatarse, al recorrer la Argentina, cómo muchos de los residentes -diversidad de inmigrantes originarios de distintas regiones del mundo, responden a condicionamientos estructurales e individuales como la situación en su lugar de origen, el conocimiento de las nuevas oportunidades, los mercados, las distancias, los transportes, los vínculos, los proyectos y las actitudes personales hacia el desarraigo- han logrado la constitución de identidades inéditas, a partir de la otredad en el vínculo entre naturaleza y cultura, a través de un diálogo de saberes. Y La Argentina posee un amplio abanico de identidades que lleva a interrogar las formas de asentamiento del ser colectivo en cada localidad, a mirar su resistencia y permanencia en el tiempo, a preguntarse sobre esas 2 identidades que se complejizan en un proceso de mestizajes étnicos y de hibridaciones culturales, para constituir identidades inéditas1, que se van conformando a través de estrategias en un vínculo entre naturaleza y cultura a través de un diálogo de saberes, en el intento de construcción de un mundo sustentable fundado en la diversidad cultural y en el rescate de lo local frente a lo global. Toda la actividad humana deja rastros de su actuación y de su memoria. Algunas permanecen más allá de la vida de la comunidad que le dio origen, otras desaparecen; pero cada una ha dado forma a la cultura actual. Esas huellas constituyen los bienes culturales cuyo valor está dado por su significación es decir por el mensaje que trasmite a través del tiempo. La preservación del bien cultural es el paso inicial para que el mismo pueda trasmitirse a las generaciones futuras a la vez que establece lazos con el pasado, ya que constituye un soporte concreto para la memoria histórica y la identidad local (Silvia Ascheri, otros, 2007). Por tal motivo el concepto de patrimonio se interpreta desde lo dinámico, donde el patrimonio es considerado una construcción social dado que los bienes adquieren valor a partir del significado que les atribuye cada comunidad a lo largo de su historia. Y dentro del patrimonio de cada sociedad se encuentran los cementerios o las necrópolis en los que se resume parte de la historia, del comportamiento socio cultural durante un amplio arco temporal. La arquitectura de los cementerios rurales fue proyectado por sus mismos constructores y albañiles, en su mayoría inmigrantes que trajeron la arquitectura de sus países de origen y en donde el diseño y la ornamentación arquitectónica, apuntaban a configurar un ámbito religioso; siendo verdaderos museos al aire libre donde se encuentran ejemplos de arquitectura, escultura, herrería, creencias populares, etc. que pertenecen al patrimonio cultural tangible e intangible de la comunidad. Por eso visitar un cementerio es recorrer las páginas de la historia local ya que constituye un reservorio de información sobre el patrimonio en lo que se refiere a creencias, rituales, oficios y mano de obra especializada de una localidad. Muchos de los inmigrantes trajeron a la Argentina recuerdos y pasatiempos de sus lugares de origen; muchos de carácter religioso y popular. En las celebraciones religiosas no había espectadores pues de alguna manera todos eran protagonistas. Su propósito básico consistía en comprender y 3 describir los mecanismos de adaptación afectiva que provoca el entorno en las personas y la realidad conforme a las apreciaciones subjetivas y socio afectivas para justificar de alguna manera los comportamientos de las personas en su hacer cotidiano. Entre estos comportamientos se encuentran las creencias que impulsan y orientan la acción cotidiana en el mundo, por tanto lo importante de ellas no es de donde provienen sino a dónde llegan en la práctica. Y la fe que se origina en el deseo de hacer o conseguir algo no sólo es legítima sino que puede ser indispensable. Cuando la diferencia entre lo posible depende de la decisión, la fe puede ser muy útil, pero no transformará en posible lo que resulta imposible. En este sentido, el espíritu del fallecido es el conjunto de relaciones simbólicas que no puede ser enterrado con el cuerpo ajeno, porque en parte está dentro de quienes se relacionaban con él. Un extremo de la relación se pierde pero el otro sigue. Cuando la muerte se hace realidad y la pérdida del ser querido es inevitable, solo la esperanza religiosa de una vida en el más allá hace creer en que para Dios todo es posible y puede convertir al que se ha ido en espíritu. En los Cementerios y particularmente en los rurales se comprueba esta creencia en los enterramientos en tierra con las cruces que están orientadas generalmente SE-NO la cual responde a la vieja costumbre de colocar la sepultura orientada al sol naciente en relación con la idea del sol como símbolo de renacimiento2. Creer significa asumir que algo es verdad, o sea, que un estado de cosas se da en la realidad, frente a otros posibles y de expresar tal creencia en la vida práctica. Son creencias vinculadas al tránsito del alma entre la vida y la muerte, señales de las que no tienen miedo, porque son simplemente las almas que se despiden. Y en los Cementerios es común observar ángeles, imágenes de la Virgen en sus distintas advocaciones, crucifijos con la imagen de Cristo y rosarios colgando de la cruz, ya que en el imaginario popular y en las creencias, simbolizan al intercesor entre el cielo y la tierra o la ascensión del alma hacia el reino celestial y la protección del alma en el más allá. La explicación de representaciones mentales tan definidas, está en el origen de quienes poblaron la problemática de la inmortalidad del alma, el tema de los "aparecidos", como algo natural que todos han visto o presentido alguna vez. Un claro ejemplo es “La Tumba del Desconocido” en el Cementerio de 4 Bernardo Larroude –localidad rural de la provincia de La Pampa-, un nicho visitado por todos y que nunca deja de tener flores frescas, la gente del pueblo lo venera pero desconocen su identidad. Aseguran que los cuida y protege ya que porque fue el único nicho que no fue destruido por la gran inundación de fines de los 80- ha destruido también centenares de tumbas-. Representa para muchos que no quiso irse, que no quiso abandonarlos: la pertenencia a Bernardo Larroude. Las comunidades tradicionales viven entre ritos y mitos religiosos la muerte, que aceptan con naturalidad como algo dado y tan real como cualquier otra de las certidumbres de la vida cotidiana. Los rituales que acompañan la muerte son parte de su accionar cotidiano, de sus tradiciones y creencias. En esta filosofía de vida y muerte lo real y lo ideal conviven cotidianamente. Los imaginarios, las cosmovisiones, los mitos y las prácticas, es a través de las cuales cada cultura simboliza, significa y transforma a la naturaleza en un proceso de apropiación de su mundo. Un ejemplo notorio es “La Tumba de la Difunta Correa” un Cementerio particular de veneración y visita permanente en una localidad rural de la provincia de San Juan, que nunca deja de tener flores frescas ni velas encendidas y cuyas ofrendas indican los milagros o gracias concedidas, fundamentalmente a las madres, ya que ella si bien murió en ese lugar desértico milagrosamente pudo dar a luz y su cuerpo muerto amamantar a su hijo recién nacido hasta que una patrulla de soldados pudo rescatarlo. Ello enfrenta al mismo tiempo el problema del rescate de los saberes desconocidos, de las memorias olvidadas, de todo aquello que ya no pervive en las prácticas ni se expresa en los discursos actuales de las comunidades rurales, con la diversidad de culturas y cosmovisiones; pero que se ve en los cementerios rurales cargados de rituales constitutivos de la identidad local; ya que los muertos están enterrados allí donde se ha construido el sentido de pertenencia, los cimientos de la localidad. Y se puede apreciar en todo momento y en cada rincón de estos pueblos: Es muy impactante ver cómo adornan las tumbas de los niños y adolescentes con juguetes, cartas, y objetos preciados por ellos en una capilla que se abre y los familiares las limpian, o ver cómo se corre el cajón para su mejor limpieza(Caamaño, Rizzo; 2007). Este ritual conmovedor no sólo se observa en el Cementerio de Bernardo Larroude, 5 sino en la mayoría de los Cementerios rurales de las provincias argentinas con diferentes matices según las características geográficas y culturales. Por ese camino la búsqueda de raíces, cobra a la vez, una forma definida que suele expresarse en imágenes y simulacros asociadas con un pasado folklórico y que implican una reflexión “interna” de las cosmovisiones, los imaginarios, las conciencias colectivas, las experiencias productivas y los saberes prácticos. Tales imágenes en gran medida portan el valor de la tradición, y expresan retazos de la identidad local esencial para saber quiénes somos. Un testimonio innegable son las capillas con una gran variedad de objetos de la parafernalia funeraria, como floreros con flores artificiales y naturales, jardineras, medio jardineras, portarretratos, estatuillas de la Virgen en sus distintas advocaciones, chupetes, baberos, escarpines, juguetes y emblemas de clubes, crucifijos con la imagen de Cristo y rosarios colgando de la cruz ( Sempé,Rizzo,Flores, 2006). Es sabido que la cultura popular no está escrita. En este caso son los narradores silenciosos de una sociedad los que convierten a los relatos en expresivas representaciones de las vivencias, miedos, fantasías, supersticiones y afectos de la sociedad a la cual pertenecen, en una herencia que se reparte como un eco plural y auténtico. Todos los testimonios constituyen los soportes de la memoria de la comunidad y en tanto tal son los referentes de su cultura a la cual dan sentido y sirven; convirtiéndose en una invalorable fuente para reflexionar sobre la construcción del imaginario social que entreteje las identidades y la relación del pasado con el presente de las relaciones cotidianas. Y teniendo presente que los cementerios son la evidencia concreta de las diversas maneras de sentir y representar la muerte de toda comunidad, sus saberes, creencias y supuestos sobre el mundo están reflejados en el cementerio local, donde es posible apreciar un proceso de reapropiación del patrimonio natural y cultural de la comunidad, en el cual los rituales que acompañan la muerte son parte de su accionar cotidiano y su sentido de pertenencia, sus raíces (Caamaño, Rizzo, 2007). Una prueba tangible es la presencia de las fotos3 de los enterrados colocadas en las cruces o dentro de las capillitas, en general realizadas en blanco y negro, la mayoría están restringidas a la cara del fallecido; ya que como expresara P. Bourdieu “la 6 práctica fotográfica existe y subsiste la mayor parte del tiempo, por su función familiar o , mejor dicho, por la función que le atribuye el grupo familiar, por ejemplo: solemnizar y eternizar los grandes momentos de la vida de la familia, reforzar, en suma, la integración del grupo familiar reafirmando el sentimiento que tiene de sí mismo y de su unidad”. Por lo que estas imágenes permiten la evocación del mismo (Sempé, Rizzo,Flores, 2006). Según Bourdieu (1988), para caracterizar a una sociedad o comunidad particular en un espacio y un tiempo dados se requiere comprender los principios que rigen a las normas de diferenciación objetiva entre las personas. Este enfoque posibilita entender el registro de las disposiciones que guían los comportamientos prácticos observados, las representaciones y las elecciones que realizan las personas. Un ejemplo claro de esto se puede ver en muchas localidades pampeanas como Bernardo Larroude al comprobar que el “mundo telúrico-cultural”se convierte en una acción al anunciar por la calle la casa mortuoria con su furgoneta la hora de defunción, los motivos, y el horario de velatorio y entierro para que asista todo el que quiera. Pero, aun cuando la ceremonia de la muerte se comparte, constituye un acontecimiento del mundo de lo privado, quizá por ello no pueda ser vista como atravesada por lo social, lo histórico, lo político, lo cultural, permaneciendo en las zonas más íntimas de los sujetos. La Argentina actual cuenta con numerosos pueblos con sus cementerios quedados en el tiempo por las inclemencias de la naturaleza y la irresponsabilidad gubernativa de los últimos años: grandes inundaciones y sequías, cierre de ramales ferroviarios, mal uso de los recursos naturales…; que intentan reconstruir vínculos comunitarios en torno a valores y símbolos del pasado que ayudan a edificar una nueva memoria colectiva. En este sentido la sustentabilidad de la ciudad implica repensar ámbitos de vida urbano y rural a partir de las condiciones materiales, ecológicas y culturales de un desarrollo sustentable; y la aceptación de que la conservación del patrimonio cultural es útil a la comunidad como un medio que sirve a las vivencias humanas. Por lo que este trabajo ha tratado de relevar y comparar algunas creencias, rituales y costumbres de sociedades rurales que todavía están presentes en los cementerios de nuestro país para ser transmitidas a otras generaciones, y a otros tiempos y así trascender su propia circunstancia cultural. 7 1 NOTAS: Es desde la identidad que se plantea el diálogo de saberes en la complejidad ambiental -genera lo inédito en el encuentro con la otredad y la diversificación de identidades- como la apertura desde el ser constituido por su historia, hacia lo inédito, lo impensado, hacia una utopía arraigada en el ser y en lo real, construida desde los potenciales de la naturaleza y los sentidos de la cultura. 2 En los cementerios se conservan una gran variedad de cruces, trabajos de herrería de artesanos anónimos locales. Las cruces y las cuasicruces, son de hierro forjado y la mayoría corresponden al barroco popular. Unas más ornamentadas, otras menos y su modestia corresponde al neoclasicismo. Algunas de ellas tienen el centro de chapa en forma de corazón- en algunos casos con flechas-, circular o rectangular. Las más trabajadas sobresalen por su forma de gracia artística adornadas con combinados de volutas, algunas rematadas en flor a modo de trébol estilizado de cuatro hojas. Otras presentan aspecto de cierta rusticidad con asimetrías, torceduras, tal vez debidas al trabajo individual del artesano o al paso del tiempo. (M.A. Caggiano, otros, 2007) 3 La fotografía mortuoria fue una práctica común desde mediados del siglo XIX hasta bien entrado el siglo XX. Las imágenes del difunto eran colocadas en los hogares, obsequiadas a familiares y amigos, en el tradicional formato “carta de visita”, o usadas en relicarios o prendedores. Las casas fotográficas promocionaban los retratos de difuntos, ofreciendo tomas a enfermos o muertos en su propia vivienda. En la fotografía mortuoria algunas imágenes ofrecen al difunto simulando estar vivo, se los presentaba en el regazo de la madre como si estuviera dormido. Imágenes: Tumba que se abre y corre el cajón para su mejor limpieza ángeles, imágenes de la Virgen en sus distintas advocaciones. capillas, fotos, crucifijos con la imagen de Cristo y rosarios colgando de la cruz Rferencias Bibliográficas: -Barceló, J.A. 1984. Elementos para una teoría de la muerte y de los ritos funerarios. ETHNICA, (20):79-102. -Binford Lewis R. 1972 Mortuary practices: their study and potential. An Archaeological Perspectives. Seminar press. New York -Bourdieu Pierre,1997 Razones prácticas sobre la teoría de la acción, Anagrama, Barcelona -Caamaño Victoria y Rizzo Antonia. 2007.Turismo cultural urbano y patrimonial:el caso del Cementerio de la Coleta, Moreno, provincia de Buenos Aires. República Argentina 2º Congreso de Ciencias aplicadas al turismo TURICIENCIA 2007, Bs.As. Rep. 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