Dias em desalinho: a ficcionalização
do diário em Os guarda-chuvas
cintilantes, de Teolinda Gersão
Roberta Guimarães Franco
(Universidade Federal Fluminense)
RESUMO
Este artigo pretende analisar a ficcionalização do gênero diário no livro Os
guarda-chuvas cintilantes (1984), de Teolinda Gersão. Pretendemos, ainda,
observar as aproximações entre a criação estética e o processo de
espelhamento, bem como a relação entre a escrita e a morte.
PALAVRAS-CHAVE: Teolinda Gersão; diário; criação estética
ABSTRACT
This article intends to analyze the Diary as a fiction in the book Os guardachuvas cintilantes (1984), of Teolinda Gersão. We also intend to observe the
approaches between the esthetic creation and the mirror, and the relation
between writing and death.
KEYWORDS: Teolinda Gersão; Diary; aesthetics creation
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Dias em desalinho: a ficcionalização do diário em Os guarda-chuvas cintilantes
Introdução
Os guarda-chuvas cintilantes, livro de Teolinda Gersão publicado em 1984
na sequência d’O Silêncio (1981) e de Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo (1982),
se apresenta como um diário – dado encontrado nas segunda e terceira folhas
do livro, abaixo do título, como um subtítulo ou uma indicação de gênero
literário.
Em entrevista concedida a Inês Pedrosa no ano da publicação do livro,
Teolinda Gersão confessou o seu interesse pelo gênero diário, até o momento
um interesse como leitora:
Por um lado, tenho uma fascinação pelos diários, sou uma
leitora interessadíssima dos diários dos outros, mas por outro
lado, sentia uma recusa em fazê-lo. (...) Eu não quero fazer uma
escrita intimista. O intimismo é uma confissão de certos estados
de alma, porventura secretos, mas sempre conscientes, e a mim
o que me interessa é captar o inconsciente em relâmpago.
(PEDROSA, 1984, p. 4)
No entanto, não é somente do gênero diário que este livro fala. As
temáticas abordadas por Teolinda Gersão são inúmeras e não seguem uma
ordem lógica. O que encontramos em Os guarda-chuvas cintilantes são bruscos
saltos entre um tema e outro. Assim, nos deparamos com uma mulher que
sonha com guarda-chuvas, uma casa com crianças, tarefas domésticas, amores,
notícias de jornal, crítica literária, cães, etc. Mas, sem sombra de dúvidas, a
temática central deste livro é a própria escrita.
Diante de tantos temas, e considerando a escrita como escrita como
elemento mais forte da narrativa, podemos dividir o livro em três partes,
baseando-nos no narrador, figura controversa do romance, partes não
necessariamente sequenciais ou pontuais: num primeiro momento
evidenciamos o desejo de escrever, seguido das várias tentativas e dos seus
impedimentos; e por fim temos uma decisão final por parte deste narrador, que
encontra um caminho mais lúcido para a sua escrita.
1. A ficcionalização do diário e suas múltiplas vozes
Como já dissemos, encontramos a palavra “Diário” nas segunda e
terceira folhas do livro como um subtítulo ou uma indicação de gênero
literário. Se pensarmos em Lejeune (1996) e no seu contrato com o leitor,
deveríamos ler o livro de Teolinda Gersão como um diário. Do mesmo modo,
a estrutura da obra – ao primeiro olhar – se apresenta com uma divisão datada
que mostra o dia da semana seguido do dia do mês: “Domingo, um”.
Para Blanchot, o diário “enraíza o movimento de escrever no tempo,
na humildade do cotidiano datado e preservado por sua data” (BLANCHOT,
1987, p. 20). No entanto, ao olharmos atentamente para a divisão do romance
percebemos que a narrativa é elíptica, não há – entre as cento e cinco entradas
datadas – uma sequência cronológica linear e lógica. Assim, depois de
“Domingo, um” encontramos “Sábado, três” e “Segunda, catorze”, por
exemplo.
Diante disso, o que encontramos no livro de Teolinda Gersão é uma
ficcionalização do diário. Segundo Rogério Puga, este livro é um diário
parodiado, baseando-se no conceito de paródia de Carlos Ceia: “A paródia é a
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deformação de um texto preexistente (...) deforma, censura, imita
(criativamente), desenvolve, referencia e não transcreve um texto preexistente
(...)” (CEIA apud PUGA, 2005, p. 507). Assim, o que Teolinda Gersão faz é
deformar ou imitar criativamente um gênero literário preexistente, colocando
em seu livro uma personagem que deseja escrever.
A primeira referência que encontramos no romance sobre a escrita, e
sobre uma voz narrativa que escreve, está na página doze: “A História começa
onde começa a escrita (a história começa onde começa a escrita), escrevo no
cimo da folha de papel. Antes, é apenas um tempo informe e sem medida”
(GERSÃO, 1984, p. 12). Neste trecho evidenciamos a primeira tentativa da
escrita, na qual ainda reside a dúvida (e por isso a repetição da frase entre
parênteses) entre a “História”, grafada como a ciência ou disciplina, e a
“história”, aquela do cotidiano, a particular. Ainda no mesmo trecho
percebemos que, para aquele que escreve, o tempo passa a ter forma, medida.
Aquele que escreve um diário, com suas passagens datadas, tenta controlar,
medir o tempo.
Sabemos que há alguém iniciando uma tentativa de escrita e chegamos
à conclusão de que o resultado desta tentativa seria um diário. O próprio
romance, através de uma personagem, o “crítico”, além de nos dar uma
definição para o gênero diário, afirma não ser essa a classificação aplicável ao
livro em questão. Assim, a própria narrativa discute o gênero do livro de
Teolinda Gersão, mas também a tentativa de escrita da personagem:
Não é um diário, disse o crítico, porque não é um registo do
que sucedeu em cada dia. Carecendo portanto da característica
determinante de um género ou subgénero em que uma obra
pretende situar-se, a referida obra está à partida excluída da
forma específica em que declara incluir-se. Dixi” (GERSÃO,
1984, p. 20)
Nesse sentido, o romance se apresenta como uma constante
desconstrução. Seja pela questão do gênero literário, seja pelos temas que
apresenta, Os guarda-chuvas cintilantes está repleto de fragmentação e
descontinuidade. Tal questão também é evidenciada ao observarmos as vozes
narrativas do romance, já ao longo do livro fica a dúvida quanto à identidade
do narrador: quem escreve afinal este “diário”?
No início do romance, logo na primeira entrada, datada “Domingo,
um”, nos deparamos com uma voz narrativa em terceira pessoa, exterior à
história, que fala de uma personagem feminina e de guarda-chuvas: “Num
sonho ela roubava guarda-chuvas (...)” (GERSÃO, 1984, p. 7). No entanto, na
segunda página da narrativa – ainda em “Domingo, um” – as pessoas verbais
mudam. Em um mesmo parágrafo, que se inicia com o verbo em terceira
pessoa “Avançou”, encontramos, a partir da terceira linha, todos os verbos e
pronomes possessivos em primeira pessoa, e ainda um pronome pessoal “eu”,
definindo a voz narrativa.
Essa alternância continuará ao longo do romance, confundindo o leitor
não somente pela utilização dos verbos em terceira ou primeira pessoa, mas
também por encontrar em alguns momentos uma indefinição com relação à
temática. A identidade daquele que narra com o “ela” que pratica as ações
começa a se confundir, e o narrador parece já não estar tão afastado da
narrativa. As emoções de um narrador que, em um primeiro momento, parecia
onisciente, nos fazem repensar quem é essa voz:
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A mulher que mora nesta casa começou a escrever um livro,
penso, e não sei se essa ideia é uma constatação ou um suspiro.
Como se algo irreversível, irremediável, há muito suspenso,
desabasse sobre mim, ou como se eu caísse em alguma coisa
sobre a qual estivera muito tempo suspensa.(...)
Dever-se-ia levar para todo o lado a mesa onde se escreve,
decido. Mas na minha vida é sempre tudo transitório, e esta
mesa não durará talvez mais do que um livro. (GERSÃO, 1984,
p. 14)
No trecho acima, percebemos claramente o envolvimento do narrador
com a ação da mulher que começou a escrever um livro. Essa idéia o perturba,
como uma decisão há muito adiada e que agora se impõe. Afinal, chegamos à
conclusão de que “eu” e “ela” são a mesma pessoa, e quem narra desdobra-se
“continuamente em sujeito que descreve e em objecto que é descrito”
(MAGALHÃES, 1987, p. 393).
Trata-se pois de uma narradora única, que se desconstrói e reconstrói
na tentativa de encontrar o caminho ‘certo’ da sua escrita. Ao tentar escrever,
principalmente tratando-se de um diário, fica a dúvida de que pessoa usar.
Segundo Blanchot: “Diz-se que o escritor renuncia a dizer ‘Eu’. Kafka observa,
com surpresa, com um prazer encantado, que entrou na literatura no momento
em que pôde substituir o ‘Eu’ pelo ‘Ele’” (BLANCHOT, 1987, p. 17). No caso
de nossa narradora, esse momento de substituição ainda está longe, o “eu”
ainda se impõe, e incomoda:
“Eu”, disse ela, quando eles perderam a paciência de ouvir a
história e se foram embora e ela voltou tranquilamente ao nó
do problema, recapitulando os dados. Eu, disse, e a palavra era
um caroço de ameixa na boca, rolando sobre a língua, mas
exterior à superfície, eu, repetiu, e olhou o céu como se fosse
um eco, eu ponto de intersecção de pessoas, vidas, tempos,
espaços, dimensões, ponto de intersecção de planos, luzes,
cores, de sons diferentes. (GERSÃO, 1984, p. 33)
“Eu” multiplica-se, desdobra-se, mas ainda não se transforma em
“Ela”. Esse conflito ainda é complicado pelo gênero literário escolhido. Os
diários, normalmente são escritos em primeira pessoa, mas talvez a necessidade
de não se expor a coloque em dúvida, e a terceira pessoa, o “ela”, é
constantemente convocada. Ou ainda, segundo Blanchot, a primeira pessoa, o
“eu”, se impõe para fugir do anonimato que é ser “ela”:
O “Ele” que toma o lugar do “Eu”, eis a solidão que sobrevém
ao escritor por intermédio da obra. “Ele” não designa o
desinteresse objetivo, o desprendimento criador. “Ele” não
glorifica a consciência em um outro que não eu, o impulso de
uma vida humana que, no espaço imaginário da obra de arte,
conservaria a liberdade de dizer “Eu”. “Ele” sou eu convertido
em ninguém, outrem que se torna o outro, é que, no lugar onde
estou não possa mais dirigir-me a mim e que aquele que se me
dirige não diga “Eu, não seja ele mesmo. (BLANCHOT, 1987,
p. 18-19).
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Assim, a narradora se mostra e se esconde, mas ainda não consegue
chegar a um acordo consigo mesma. Talvez essa seja a maior dificuldade da sua
escrita. Ela precisa enfrentar-se para poder enfrentar o papel e a caneta. Ela
ainda precisa lidar com as críticas, críticas que envolvem os dois tipos de
gênero que a cercam: o gênero diário e o inegável gênero feminino.
Essas questões ficam claras em vários momentos do romance, quando,
intercalados ao ‘eu’ e ao ‘ela’, encontramos comentários repletos de teorização
literária. No entanto, esta teorização ganha uma outra voz, uma voz masculina.
A personagem que, na maioria das vezes, é a dona da voz nesses comentários é
o professor Pip. Ele é responsável por duras críticas ao gênero diário, gênero
que entendemos ser o escolhido pela narradora para a sua tentativa de escrita:
Aquilo que eu olhar existe, o que eu ignorar permanece para
sempre no não ser – os diários são profundamente ridículos, diz
Pip, que é professor de filosofia, mas secretamente gostaria de
ser poeta. O mundo não gira à volta do autor, está-se
completamente nas tintas para o autor, o mundo está-se
cagando para que Barthes não gostasse de líchias, está-se
cagando, cagando, cagando – diários e quejandos são a forma
mais ridícula de toda a literatura. (GERSÃO, 1984, p. 24)
É relevante pensarmos o porquê destas passagens terem uma voz
masculina. A princípio os diários eram o espaço destinado à escrita feminina, já
que as mulheres não tinham autonomia e voz para ocuparem outros espaços,
mesmo que literários. Assim, a personagem “Pip” não representa somente a
teorização literária, mas também o embate entre o feminino e o masculino. No
entanto, esse embate não fica claro no romance, já que não há sequer um
diálogo entre Pip e a narradora. Mas as críticas do professor ao gênero diário
são implacáveis:
Os diários são perversos, diz Pip. O autor é um ser
desconjuntado, a que o olhar do leitor dá uma unidade ilusória
– precisar do olho do leitor para existir, para existir
frouxamente, virtualmente, numa rápida aparição de três
minutos sob um foco de luz, diante de um buraco por onde o
leitor voyeur espreita, depois de deitar uma moeda na ranhura
da caixa – os diários são a forma mais idiota e mais perversa de
toda a literatura. (GERSÃO, 1984, pp. 25-26)
Além de criticar o gênero diário, Pip também faz críticas à literatura de
uma forma geral, principalmente ao papel do autor. Para ele a literatura não
pode ser vista como um tipo de experiência e o autor é um fraco, já que coloca
as suas personagens para viver aquilo que ele não tem coragem. No entanto,
ele admite que a autoria também é uma forma de se expor:
As pessoas julgam a literatura um campo adicional de
experiência, diz Pip, mas esquecem que é uma experiência
apenas virtual, que não pode ser utilizada de modo efectivo.
Um autor põe em cena personagens que travam as lutas a que
ele próprio se esquiva, fica tranquilamente sentado enquanto as
personagens se debatem, em sua vez, uma parte dele expõe-se,
enquanto a outra parte fica resguardada em casa, atrás do vidro,
com os pés bem quentes diante da lareira. (GERSÃO, 1984, p.
63)
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Há de se levar em consideração e de se colocar em evidência o porquê
de um livro que, aparentemente, não trabalha questões de gênero
(masculino/feminino) ter uma personagem masculina que assume uma postura
extremamente crítica. Além do sexo, também evidenciamos o fato de Pip ser
professor, ou seja, além de ser homem, é aquele que detém o saber. Assim,
além de comentários metaficcionais, Pip é a oposição clara a uma narradora
que ainda se apresenta frágil e cheia de dúvidas e a sua presença coloca ainda
mais em evidência a força da temática do processo criativo presente no
romance.
2. Tempo, espelho e morte
Como já dissemos, a escrita é, sem dúvida, o tema central d’Os guardachuvas cintilantes, e a relação de desejo entre a narradora e o processo da escrita
está latente durante toda a narrativa. No entanto, nessa relação existe uma
interferência, uma barreira que, na maioria das vezes, parece ser intransponível:
o tempo e, mais especificamente, o tempo dedicado à escrita, ao isolamento
necessário para a realização deste desejo.
Assim, a duração do tempo é marcada de várias maneiras na narrativa,
mas principalmente por essa extrema vontade de escrever e muitas vezes pela
impossibilidade de fazê-lo. Então, o tempo psicológico parece ser
predominante, já que representa o desejo da narradora de ter mais tempo. No
entanto, não há controle sobre tal experiência, o que resulta na sensação de que
tudo passa muito rapidamente: “Esse ano demorou-se um só dia, e fugiu que
nem um pássaro, pela janela entreaberta” (GERSÃO, 1984, p. 9).
Então, já que o tempo parece não dar tréguas, a narradora tenta de
todas as maneiras descobrir um modo de controlá-lo. Então, a escrita do diário
nos parece sua primeira tentativa, mas, diante das dificuldades da tarefa, ela crê
que a economia é uma forma mais fácil de guardar o tempo:
Nesse dia sobraram-lhe duas horas e ela guardou-as para o dia
seguinte. Sempre que calhava fazia assim uma pequena
economia, que deixava para utilizar noutra altura em que se
visse mais aflita. Era também um modo de adiar envelhecer,
adiava sempre, somando essas economias casuais já tinha vários
anos na gaveta. Se um dia precisasse, gastá-los-ia de uma vez.
Mas secretamente esperava não precisar nunca. (GERSÃO,
1984, p. 11)
No entanto, mesmo fazendo essas pequenas economias e rezando para
não precisar usá-las, a narradora confessa que, além de precisar do tempo para
a escrita, também tenta controlá-lo para permanecer viva. Confessa também
que nunca foi muito boa com suas tentativas de contabilidade e o gênero
escolhido por ela para a escrita, o diário, necessita desse controle:
A pequena escrita cotidiana, deixar um risco no tempo, um
traço na areia, para provar que estou viva – segunda, terça,
quinta, dois, cinco, sete, vinte e quatro, essa obrigação, ou
evasão, minuciosa, essa contabilidade estática, passiva, aplicada,
metódica, monótona, escolar – oh céus, tive sempre tão pouco
a ver com isso, errei sempre na vida as contas todas – mas de
onde vem esta íntima convicção de acertar, apesar de tudo, o
problema? (GERSÃO, 1984, p. 23)
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É também nesta tentativa de segurar o tempo que evidenciamos mais
uma vez a questão do gênero feminino nesta obra. A casa aparece em vários
momentos da narrativa, com vários significados distintos. No entanto, a
significação mais relevante é a do ambiente que encerra a mulher, que a prende,
a ocupa e, principalmente, a impede de escrever. As tarefas domésticas ocupam
o tão precioso ‘tempo’, o tempo da escrita:
O meu problema é muito complicado, explico a mim própria,
para ver se entendo. Escrevo pouco desde logo porque não me
sento nunca ou quase nunca, passo semanas em pé de um lado
para o outro, ofegante mas sem parar de correr. É verdade que
as folhas de papel e a caneta me passam pelas mãos, mas não
consigo prendê-las porque tenho sempre as mãos ocupadas
com outras coisas, panos de cozinha, lençóis, livros, legumes,
detergentes, vassouras, há uma infindável multidão de coisas
que se intrometem entre a minha mão a caneta e o papel (...)
(GERSÃO, 1984, p. 83)
Mas apesar dessa falta de controle do tempo, e de todas as tarefas que a
impedem de escrever, a narradora continua em sua tentativa, travando uma luta
contra o tempo e fazendo da folha de papel e da sua escrita um espelho.
Espelho que a multiplica e a ajuda a enganar o tempo:“Porque há sempre dois
lados nas coisas, cada uma é também sempre o contrário de si própria”
(GERSÃO, 1984, p. 12).
Desde o início do livro, mais precisamente desde a sua epígrafe –
“Tudo o que percebemos clara e distintamente é verdadeiro” (Spinoza, Ética)
–, encontramos uma referência ao conceito de ‘verdade’ que, segundo o trecho
utilizado por Teolinda Gersão, depende do seu destinatário, ou seja, a ‘verdade’
depende do ponto de vista daquele que a encara. Assim, para Umberto Eco
também existe uma relação entre a imagem que o espelho produz e a verdade,
já que a imagem é um reflexo:
Tendo apurado que o que percebemos (diante do espelho) é
uma imagem especular, partimos sempre do princípio de que o
espelho ‘diga a verdade’ (...) Ele não traduz. Registra aquilo que
o atinge da forma como o atinge. (...) o espelho não interpreta
os objetos. (ECO, 1989, p. 17)
No entanto, no romance em questão não é a relação com a verdade que
nos interessa ao tratarmos do espelho. Mais do que uma imagem verdadeira,
ou até mesmo autêntica, o espelho pode produzir uma imagem de nós mesmos
que não conhecemos, o reflexo pode ser entendido como a imagem que os
outros veem de nós. Ainda segundo Umberto Eco:
A magia dos espelhos consiste no fato de que sua
extensividade-intrusividade não somente nos permite olhar
melhor o mundo mas também ver-nos como nos vêem os
outros: trata-se de uma experiência única, e a espécie humana
não conhece outras semelhantes. (ECO, 1989, p. 18)
Essa duplicidade que o espelho proporciona, tanto de nos vermos
duplicados, mas também de termos uma dupla visão de nós mesmos (a nossa e
a dos outros), também pode ser comparada ao efeito da escrita. Ao escrever, o
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autor se duplica, colocando nas folhas um eu, que também já é outro. Esse tipo
de comparação não é fruto somente de uma interpretação do romance de
Teolinda Gersão, mas está explícito nas falas da narradora, que ao escrever
tenta ultrapassar essa barreira entre o eu e o outro que se reflete nas páginas de
sua escrita. Mais uma vez é o desdobramento entre o sujeito e o objeto, que na
verdade são o mesmo:
A página como espelho, reflexo, separação e obstáculo, entre
um sujeito e o seu objecto – ela tentava atravessá-la,
escrevendo, furá-la com o aparo fino da caneta e agarrar do
outro lado o seu rosto. (...)
Media-se apenas, escrevendo, a distância entre o eu e o seu
duplo, a sua sombra fugidia, que sempre de novo lhe escapava.
(GERSÃO, 1984, p. 34)
Aqui também justificamos a constante alternância entre a primeira e a
terceira pessoa como voz narrativa do romance. A duplicidade, causada tanto
pela escrita como pelo espelho, causa a duplicidade das vozes. Assim, segundo
Umberto Eco, ao nos posicionarmos em frente a um espelho nos dividimos
em dois e a imagem refletida é a terceira pessoa, o “ela”:
Se as imagens do espelho tivessem que ser comparadas às
palavras, essas seriam iguais aos pronomes pessoais: como o
pronome eu, que se eu mesmo o pronuncio quer dizer ‘mim’, e
se uma outra pessoa o pronuncia quer dizer aquele outro.
(ECO, 1989, p. 21)
Assim, a escrita d’Os guarda-chuvas cintilantes fica dividida entre um
duplo, um jogo que esconde e mostra, que engana e revela. No entanto, a
narrativa não apresenta somente este jogo de alternância das vozes narrativas,
mas também um jogo entre vida e morte, no qual a escrita, a linguagem, é a
peça principal. Segundo Foucault (2006), falar para não morrer é uma prática
tão antiga como a própria palavra, e ainda há nessa relação entre a linguagem e
a morte mais um tipo de espelhamento:
O infortúnio inumerável, dom ruidoso dos deuses, marca o
ponto onde começa a linguagem; mas o limite da morte abre
diante da linguagem, ou melhor, nela, um espaço infinito (...) A
linguagem, sobre a linha da morte, se reflete: ela encontra nela
um espelho; e para deter essa morte que vai detê-la não há
senão um poder: o de fazer nascer em si mesma sua própria
imagem em um jogo de espelhos que não tem limites.
(FOUCAULT, 2006, p. 48)
Outra questão apontada por Foucault é a da finitude do homem. A
única certeza que todos têm durante a vida é a da chegada da morte. Assim, a
linguagem também faria parte da tentativa de se aproximar do que seria a
morte, e consequentemente a literatura seria a experiência mais próxima do
morrer:
Do interior da linguagem experimentada e percorrida como
linguagem, no jogo de suas possibilidades estiradas até seu
ponto extremo, o que se anuncia é que o homem é ‘finito’ e
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que, alcançando o ápice de toda palavra possível, não é ao
coração de si mesmo que ele chega, mas às margens do que o
limita: nesta região onde ronda a morte, onde o pensamento se
extingue, onde a promessa de origem recua indefinidamente...[a
literatura se dá como experiência:] como experiência da morte
(e no elemento da morte), do pensamento impensável (e na sua
presença inacessível), da repetição (da inocência originária,
sempre lá, no extremo mais próximo da linguagem e sempre o
mais afastado); como experiência da finitude (apreendida na
abertura e na coerção dessa finitude). (FOUCAULT, 1987, pp
400-401)
Diante da certeza da finitude, da sua finitude, e da ação irremediável do
tempo, a narradora d’Os guarda-chuvas cintilantes prepara estratégias para burlar o
esquecimento consequente da morte. Já que após a morte definitiva não
poderia mais ter suas pequenas mortes através da escrita, ela resolve deixar
vários retratos (mais um tipo de espelhamento e multiplicação), para que com
o passar do tempo após a morte eles pudessem continuar contando suas
histórias. A narradora, no seu íntimo, busca a imortalidade. Assim, seria como
se sua vida pudesse retornar as páginas, os retratos seriam um tipo de diário
pós-morte:
Iria pintando em cada dia o seu retrato, decidiu, deixaria
retratos sucessivos no tempo, multiplicando-se para aumentar
as suas hipóteses de escapar à morte. Porque a morte levaria
muito mais tempo a apagar todos esses eus do que apenas um
só.
E quando ela estivesse morta e não escrevesse ficariam pelo
menos os retratos dela escrevendo, e seria como se a vida que
ela escrevia pudesse continuar a voltar as páginas. (GERSÃO,
1984, p. 28)
Essas figurações da morte nos levam à questão da subjetividade no
texto contemporâneo, de maneira que os procedimentos estéticos adotados
acabam por encenar essa subjetividade, já que pensam sua própria elaboração.
Para Blanchot a relação entre a escrita e a morte parte do reconhecimento da
segunda por parte do escritor. Sabemos que não há como impedir a morte real,
mas no espaço literário é necessário que se imponha diante da morte para que
a escrita seja soberana:
(...) não se pode escrever se não se permanece senhor de si
perante a morte, se não se estabeleceram com ela relações de
soberania. Se ela for aquilo diante do qual se perde o controle,
aquilo que não se pode conter, então retira as palavras de sob a
caneta, corta a fala; o escritor não escreve mais, ele grita, um
grito inábil, confuso, que ninguém entende ou não comove
ninguém. (BLANCHOT, 1987, p. 87)
No entanto, escrever é também vivenciar a morte. A cada escrita
morre-se um pouco, para ser já outro. É um jogo no qual se pode morrer, mas
também adiar a morte. Blanchot deixa muito clara essa idéia do jogo, no qual
se brinca com a morte: “Talvez a arte exija que se brinque com a morte, talvez
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introduza um jogo, um pouco de jogo, onde já não existe mais recurso nem
controle” (BLANCHOT, 1987, p. 89).
No romance de Teolinda Gersão essa idéia do jogo com a morte
também fica evidente. Diante de tantas impossibilidades nas tentativas de
escrita, a possibilidade da morte através da escrita parece aceitável para a
narradora. Se for necessário entrar em um jogo que leve à morte para
conseguir escrever, a narradora d’Os guarda-chuvas cintilantes está pronta para
jogar:
Ou é um jogo então, a escrita, admito que é apenas um jogo,
concluiu. Mas como qualquer jogo podia levar à morte. Porque
o que conferia ao jogo a tensão e o risco, era que, no limite, o
jogador encontrava sempre a morte. (GERSÃO, 1984, p. 97)
Desse modo encontramos durante a narrativa de Teolinda Gersão as
reflexões de Blanchot sobre a escrita e a morte. Segundo o teórico francês o
espaço literário permite a morte, espaço onde está a obra sempre por vir. E o
escritor escreve para morrer e a sua obra é, na verdade, o meio e o fim para
encontrar a morte:
O escritor é então aquele que escreve para morrer e é aquele
que recebe o seu poder de escrever de uma relação antecipada
com a morte. (...) a própria obra é uma experiência da morte da
qual parece ser imprescindível dispor previamente a fim de se
chegar à obra e, pela obra, à morte. (BLANCHOT, 1987, p. 90)
Assim, encontramos no romance em questão duas possibilidades de
relação entre a escrita e a morte: uma que imortaliza aquele que escreve, por
isso a tentativa da narradora de se perpetuar através de retratos (que seriam um
tipo de escrita) e a outra que significa morrer na escrita, morrer a cada escrita.
Escrever pode ser a salvação da morte, mas também é vivenciá-la:
E então tudo se transforma em escrita: o amor, o tempo, os
dias, o rosto dos que amamos, o próprio corpo, o próprio ar.
Perder a vida, para viver apenas em função da escrita. Viver já
morto, e ser um texto. Apenas texto. (GERSÃO, 1984, p. 68)
Conclusão
Sabemos que ainda haveria muito a ser comentado sobre o romance de
Teolinda Gersão. No entanto, procuramos focalizar as imagens da narrativa
que faziam referência ao processo criativo, ao trabalho da escrita. Assim, a
questão do gênero literário diário que não nos indica o gênero do livro Os
guarda-chuvas cintilantes, mas sim o gênero pretendido pela narradora criada por
Teolinda Gersão.
Logo, desde o início da narrativa identificamos que a temática central
do romance era a tentativa de escrita dessa narradora. Assim, procuramos
mostrar as suas dificuldades em se transpor para o papel, demonstrada pela
alternância entre os pronomes “eu” e “ela”. Do mesmo modo atentamos para
a sua luta contra o tempo, aquele que não é controlável e que atrapalha o seu
processo de escrita.
Como a narradora de Teolinda Gersão tenta escrever um livro,
procuramos abordar na nossa leitura os elementos textuais que apontavam para
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Roberta Guimarães Franco
o processo de criação, como o espelhamento, através do qual a personagemnarradora-escritora multiplica-se, tornando-se “eu” e “ela”. A página como um
espelho, capaz que refletir já um outro, e não o “eu” que conhecemos.
Seguindo as idéias de Blanchot identificamos ainda no texto as possibilidades
de relação entre o processo de escrita e a morte.
Assim, procuramos dar ênfase aos elementos que apontavam para a
tentativa de escrita da narradora d’Os guarda-chuvas cintilantes. A dificuldade da
narradora diante do processo criativo, a dificuldade de estabelecer a sua
identidade diante da própria escrita: mulher, escritora, dona de casa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1989.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências
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Campos (coord.). História(s) da literatura (actas do 1º Congresso Internacional de
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SEIXO, Maria Alzira. Os Guarda-Chuvas Cintilantes: de Teolinda Gersão. In:
SEIXO, Maria Alzira. A palavra do romance – ensaios de genologia e análise.
Lisboa: Horizonte Universitário, 1986, pp. 237-241.
(Recebido para publicação em 29/06/2009,
Aprovado em 11/07/2009)
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