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SÃO BENEDITO, ESCOLA BRASILEIRA, SÉCS. XVII-XVIII, MUSEU DA HORTA. MUSEU AZUL NÚMERO 0 UMA EDIÇÃO DO MUSEU DA HORTA E DA FÁBRICA DA BALEIA FOTOGRAFIA DE CAPA: TOMÁS MELO H S ARTISTAS LOCAIS SE ÉS ARTISTA ANUNCIA AQUI HELENA BULCÃO Maquilhadora com um curso de maquilhagem profissional em Moda Editorial. Para além disso também têm formação em peles maduras e uma masterclass de noivas. Facebook: @hbulcao Instagram: @helenabulcao_makeupartist ANA CORREIA ARTISTA ‘VENDE-SE’ Licenciada em Artes Plásticas – Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, aceita encomendas nas áreas de desenho, pintura, técnica mista e afins, em papel, madeira, tela, parede ou no que quer que a sua imaginação exija. Espreite-me em anacorreia-pintura.blogspot.com ou contacte-me: +351966770958 /anacoreia.pi@gmail.com ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DO FAROL DOS CAPELINHOS ESCOLA DE ARTESANATO DO CAPELO Criada em 29 de setembro de 1995. Estejam atentos às redes sociais para mais notícias e novidades! Facebook: @amigosdofaroldoscapelinhos - @centroartesanatocapelo Instagram: @escolaartesanatocapelo Email: amigosdofarol.faial@gmail.com ANDRÉ OLIVEIRA FOTÓGRAFO Cinema, Fotografia, Design e Música instagram: @vulcao_____ email: anficaveira@gmail.com FICHA TÉCNICA Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretora: Aurora Ribeiro -- Subdiretores: Carla Dâmaso e José Luís Neto -- Diretor Artístico: Luiz Domanoski -- Revisora: Carla Devesa Rodrigues -- Morada: Largo Duque d’Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta/ Monte da Guia, 9900-124 Horta Email: geral@oma.pt/ museu.horta.info@azores. gov.pt -- Periodicidade: Mensal -- Impressão: Gráfica “O Telegrapho”, Rua Conselheiro Medeiros n.º 30, 9900-144 Horta 2 HAVIA DIAS QUE NÃO SOPRAVA O VENTO Havia dias que não soprava o vento, o mar parecia óleo e o céu No século XIX muitos Açorianos começaram a embarcar nas baleeiras americanas que vinham de New Bedford, a caminho do Pacífico, numa viagem que duraria até ao seu regresso aos E.U.A., entre 3 a 4 anos. Como era difícil encontrar por lá, tripulações para estas tão longas e perigosas viagens, levavam consigo tripulantes dos Açores, em busca do Sonho Americano. tinha a cor de chumbo. O tripulante do baleeiro americano, acabada a faina, procura uma agulha de coser velas e, com o negro dos caldeiros de derreter cachalotes, grava num dente que tinha polido um coração e o nome de uma namorada de porto. Dizem que assim começou a arte náutica do Scrimshaw. Já no final do século XIX, começou-se a fazer-se a caça à baleia nos Açores, a partir de terra. E durante 50 anos, tornou-se a principal indústria das ilhas. O objetivo principal desta atividade, era a produção de óleo. Artesãos e artistas começaram a aproveitar o osso do maxilar e o marfim dos dentes para esculpir e gravar. Depois do Vulcão dos Capelinhos, José Azevedo Peter, acreditando que a caça de baleia ia acabar, não por falta de baleias mas por falta de baleeiros, começou a guardar os trabalhos que mais gostava. Em 1989 abriu o museu do Scrimshaw, onde José Henrique Azevedo tem vindo a aumentar a coleção, tornando-a numa das maiores e mais belas coleções do mundo. MUSEU DO SCRIMSHAW 3 ENTREVISTA JORGE AUGUSTO PAULUS BRUNO COMO DEFINIRIA O QUE É, OU DEVE SER, UM MUSEU? O Diretor do Museu de Angra do Heroísmo será o primeiro convidado das Conversas de MUSEUS a decorrer a partir do próximo outono, na Casa Manuel de Arriaga. Fomos procurar desvelar o véu sobre o que nos trará. Prefiro tomar a questão no sentido de “o que deve ser um museu”. Pois, deve ser um organismo social dinâmico, de caráter cultural, a funcionar em plena articulação e comprometimento com a comunidade em que se insere. Dito isto, importa alargar um pouco os considerandos e os horizontes: um museu é um espaço de memória e, por conseguinte, deve assumir-se como seu guardião, recolhendo, conservando, estudando e divulgando os seus suportes materiais e imateriais, de modo a poder transmitir essa memória não só às gerações seguintes como à atual. Um museu pode ter um acervo mais ou menos rico, mais ou menos antigo, mas não deve servir apenas para guardar a memória. Como estrutura equipamental portadora de uma capacidade crítica mobilizadora, ele tem de se assumir também como um potencial agregador comunitário em torno de uma reflexão e problematização da contemporaneidade. 4 PODEMOS IDENTIFICAR NO PERCURSO HISTÓRICO DO MUSEU DE ANGRA AS PRINCIPAIS ESCOLHAS, EVENTOS OU DECISÕES QUE FIZERAM DESTE O LUGAR DE REFERÊNCIA REGIONAL E NACIONAL QUE HOJE É? Podemos identificar três grandes períodos que consubstanciam o percurso histórico do Museu de Angra do Heroísmo: 1949-1980 (a criação e a constituição do acervo), 1980-2005 (as obras no Edifício de São Francisco decorrentes do Sismo de 1 de Janeiro de 1980, a exposição Do Mar e da Terra… uma história no Atlântico e o inventário do acervo) e de 2005 ao presente (a estruturação das coleções, a valorização do público, a aposta na informação, a preocupação com a imagem, a criação do Núcleo de História Militar Manuel Coelho Baptista de Lima e da Carmina – Galeria de Arte Contemporânea Dimas Simas Lopes, a dinamização cultural e a utilização das redes sociais). Daqui resulta, hoje, uma instituição com uma atividade dinâmica e uma imagem amplamente consolidadas na sociedade, que procura não só oferecer uma leitura interpretativa do passado, como também proporcionar uma intensa e consistente reflexão sobre o presente. ENTREVISTA DE AURORA RIBEIRO 55 DECLARAÇÃO DE AMOR À CIDADE DA HORTA Como és sedutora, fascinante e misteriosa Oh minha querida cidadezinha de mar! Trazes no rosto maquilhado um arzinho cosmopolita E fazes olhinhos bonitos (por detrás das tuas respeitáveis gelosias) Aos navegadores loiros e trigueiros Que vagueiam pelas tuas ruas E bebem “gin” no Peter”! Oh Minha Horta, recatada e feminina, Inchadinha desse insustentável orgulho flamengo!... O mundo inteiro cabe na tua Marina! Mas ficas-te pela gloriazinha Do teu passado mercantil e marítimo! E sonhas com os paquetes iluminados de outros tempos! E recordas ainda os escandalozinhos das festas a bordo Quando à tua Doca vinha uma qualquer esquadra… Ficas-te pelo tempo da laranja, do vinho e dos Dabney! Esse tempo dos navios baleeiros de Nova Inglaterra Ancorados na tua luminosa baía! Esse tempo das banhistas em “maillot” na Praia de Santa Cruz E da moral chique das famílias “smart”. Foste oásis de refrescos à navegação E embeiçada ficaste pelos ingleses e pelos alemães Das companhias dos cabos telegráficos submarinos… E sonhas ainda, com saudadezinha langorosa, A amaragem dos “clippers” da Pan America Na tua baía desportiva, carvoeira e embarcadiça. (Sempre deixaste que os estrangeiros te levantassem a saia e te beliscassem os seios, oh minha desavergonhadinha)… 6 6 Mas amo-te, cidade de Van Huertere, Apesar da mesquinhez do teu pequenismo paroquial E das tuas birras de burguezinha conservadora E da tua apetência para a coscuvilhice da vida alheia!... Amo-te porque é doce e cantado o teu falar E porque são literalmente belas as tuas mulheres! E quero-te, apesar das tuas empertigadas autoridades E apesar da gravidade postiça da tua gente de boa roda (tomada de amores pátrios e maçónicos)… Ah, cidade apetecível de ver o Pico! Tu, que já foste culta e ilustrada, Tens hoje a hospitalidadezinha do português suave: São os teus comerciantes honestíssimos! Os teus manguinhas de alpaca cumpridores! Os teus pescadores pachorrentos! Os teus artistas estimáveis! Os teus professores submissos! Os teus alunos rebeldes! A tua culturazinha dos colarinhos engomados! O teu Parlamento tranquilo! Os teus deputados do “deixem-se ficar como estão”! As tuas Secretarias gloriosamente regionais! E são os teus jornais miudinhos! Os teus clubes do empatezinho a zero bolas! E é o requebro das tuas lúdicas concubinas Espreitando às portas dos cafés! E é o códigozinho do comportamento bem E no entanto, amo-te! (sem mesmo saber como é possível amar assim)… E por mais que, sorridente e atrevida, Namorisques os teus visitantes E ao teu povo te mostres indiferente e desdenhosa, Eu hei-de sempre fazer escala no teu coração Oh Horta magnífica, mítica e minha! VICTOR RUI DORES 7 MICHEL ANGELO 8 MIGUEL ÂNGELO O PORQUÊ DO MUSEU AZUL O fanzine “Museu Azul”, coprodução do Museu da Fábrica da Baleia de Porto Pim e do Museu da Horta, tem por objetivo dar a conhecer o que se faz nos museus, centros interpretativos e coleções visitáveis do Faial e por esse mundo fora, que passarão a dispôr de mais um meio de comunicação direto com o público. De periodicidade mensal e de distribuição gratuita, com existência física na ilha, impresso em papel reciclado para reduzir a pegada ecológica, pretende abrir-se à participação de todos e constituir-se como polo de reflexão crítica, com vista a uma sociedade civil melhor apetrechada para os debates das causas comuns. As instituições museológicas, enquanto guardiãs da memória, procuram cumprir com o seu papel de salvaguarda do património cultural comum, bem como de transmissão deste às futuras gerações, pelo que o “Museu Azul” é mais um instrumento que visa contribuir para esse propósito, que anima ambas as instituições, não esquecendo, todavia, a cooperação que se deve à criação contemporânea, edificadora da história do amanhã. Desejamos aumentar a transparência e o escrutínio comunitário das instituições de natureza museal, pois que estas têm a sua razão de existir plena enquanto casas de uma comunidade. Para atingir o ponto que ambicionamos nas relações entre os cidadãos e estas instituições, é um longo caminho ainda a trilhar, mas que se faz de pequenos passos, no que esta publicação nova poderá ser achega. Um dia, talvez, possamos viver no Faial, o que Orhan Pamuk nos transmitiu do seu Museu da Inocência, romance de fôlego e invulgar sensibilidade, em que “nos seus olhos havia a luz que só se vê em crianças que chegam a um lugar novo, ou nos jovens ainda abertos a novas influências, ainda curiosos quanto ao mundo”... CARLA DÂMASO e JOSÉ LUÍS NETO 9 faz a tua agenda cultural segunda terça quarta sexta quinta sábado domingo 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 17 A 22 AGOSTO Santo Amaro do Pico Por cá... Festival de Música Terra dos Barcos 10 JULHO ~ 15 OUTUBRO Fábrica da Baleia de Porto Pim EXTREMOPHILARUM Instalação Arttistica VERÃO AZUL passeios de fim de tarde onde o património urbano é reconvertido em vitrina do Museu. Por lá... 10 20 AGOSTO Museu da Horta José António Bettencourt Naufrágios da Horta 3 SETEMBRO Casa Manuel de Arriaga Tomás de Melo Como tornar a Horta numa cidade sustentável? DESCONFINAMENTO ANTES DEPOIS A Vista da Baía da Horta, da autoria de Rogério Silva, é pintura a óleo sobre plátex, realizada em 1953, em Angra do Heroísmo, representando a sua Horta, terra natal, constituindo-se como um misto entre o realismo pretensamente fotográfico e a proporcionalidade nostálgica, a partir de um ponto alto, indefinido. Rogério Silva nasceu na Feteira, Faial, em 1929. Viveu em Angra do Heroísmo, entre 1947 e 1971, onde foi professor de artes e responsável pela fundação da revista Gávea e da galeria de arte com o mesmo nome (a primeira a ser criada), no icónico bairro do Corpo Santo. Este trabalho foi encomendado pelo proprietário da Casa de Pasto “Gaspar”, sita então na Rua da Esperança, conhecido sítio pelas meias-bolas, pelas sandes de torresmo do “continente” e pelas de feijão, que as juravam muito saborosas e “colestrólicas”. Aí esteve exposto até 1970, em condições que somente se adivinham, levando a um profundo envelhecimento da camada de proteção, que ocultou o colorido original. Iniciou-se a intervenção, do setor de conservação e restauro do Museu da Horta, a 30 de dezembro de 2020, aquando da chegada das primeiras vacinas Covid-19 aos Açores. Espera-se a conclusão da intervenção de especialidade, recuperando em todo o esplendor da peça oculta, aquando da chegada da imunidade de grupo à RegiãoAutónoma. JOANA BULCÃO e CARINA MAURÍCIO NETO 11 Fábrica da Baleia de Porto Pim Em breve teremos uma nova baleia no pátio de desmanche - uma escultura inspirada no trabalho de Malcom Clarke. Com ela recuperamos a memória baleeira e reimaginamos a ligação dos homens com este gigante dos mares. MUSEU AYUL NÚMERO 1 UMA EDIÇÃO DO MUSEU DA HORTA E DA FÁBRICA DA BALEIA FOTOGRAFIA DE CAPA: NUNO POTES S A T ARTIS S I A C LO TA SE ÉS ARTIS E UITAMENT T A R G I U Q ANUNCIA A UM EMAIL ENVIA-NOS S@OMA.PT OMAACORE FICHA TÉCNICA Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretora: Aurora Ribeiro -- Subdiretores: Carla Dâmaso e José Luís Neto -- Diretor Artístico: Luiz Domanoski -- Revisora: Carla Devesa Rodrigues -- Morada: Largo Duque d’Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta/ Monte da Guia, 9900-124 Horta Email: geral@oma.pt/ museu.horta.info@azores. gov.pt -- Periodicidade: Mensal -- Impressão: Gráfica “O Telegrapho”, Rua Conselheiro Medeiros n.º 30, 9900-144 Horta 2 ALgUnS LUgARES dA HORTA COMO fORAM E COMO SAO Baia de Porto Pim Por ser muito abrigada, a baía de Porto Pim foi sempre espaço alternativo à baía da Horta, quando o vento soprava de sudoeste e os barcos e navios ali rumavam para carregar e descarregar pessoas e bens. Esta baía foi também estaleiro naval e ficou conhecida, na linguagem popular faialense, por “cemitério dos navios”, porque encalhavam e descavilhavam os grandes veleiros de longo curso que ali aportavam com irreparáveis avarias. Nos séculos XIX e XX foi espaço de desmancho de cachalotes, o que se viria a acentuar com a construção da(s) Fábrica(s) da Baleia. Com o fim da baleação, passou a ser local de banhos e lazer. Mas já o era antes. Em 1918, Vitorino Nemésio ficou impressionado com a afoiteza de raparigas faialenses a tomar banho (em fato de malha) na praia de Porto Pim. Talvez tenha sido esta observação que justificou que fosse neste lugar que a “Mulher de Porto Pim”, de Antonio Tabucchi, tivesse casa, de onde cantava secretamente como sereia, encantando quem a visitava. Por isso não é de estranhar que ali tenha sido colocado um palco, do Festival Maravilha, sereias renascidas, em 2021. Vitor Rui Dores 3 fESTIvAL MARAv Não podemos deixar a pandemia parar, a festa, a alegria. Não podemos deixar a pandemia impedir a realização do Festival Maravilha. Foi com esta intenção que se chegou, em 2021, à sua edição flutuante. Levar os artistas e o público para o mar tornava possível a realização do festival e garantia o distanciamento social. A ideia foi lançada nas redes sociais e muitos artistas revelaram vontade em experimentar este novo formato. Garantiu-se música, performances teatrais, artes plásticas e artes circenses trazidas por artistas franceses, belgas, suíços, do continente português e residentes no Faial. Três palcos: uma jangada flutuante na baía de Porto Pim, o pontão das casas de aprestos e um veleiro na doca da marina da Horta serviriam de base para os três fins-de-semana Maravilha. 4 AvILHA O público foi convidado a assistir gratuitamente a todos os espectáculos. Muitas formas criativas foram encontradas para flutuar até aos palcos: braçadeiras insufláveis, bóias redondas, em forma de camelo, de cisne ou de flamingo, caiaques, pranchas de paddle, jangadas, botes baleeiros, dinghys e outras pequenas embarcações, semi rígidos e veleiros. Quem não encontrou autonomamente forma de ir, pôde fazê-lo de barco-táxi pelo preço simbólico de 2 euros. A disposição do público em relação aos palcos autogeriu-se, não por ordem de chegada, mas por tamanho, fragilidade ou robustez. Ficando mais atrás as maiores embarcações, dispostas em semicírculo, como um escudo protector, um anfiteatro improvisado. De alguma forma, foi surpreendente como o próprio público se transformou também em espectáculo. O ambiente que se criou foi especial, ouvia-se a palavra “magia”. Apesar do distanciamento, artistas e público estavam realmente próximos numa nova e bela experiência, todos juntos no “mesmo barco doido”. 5 o MUMA voltou. São seis edições e quase outro tanto de reincarnações. Longínqua vai a temporada invernal de concertos no salão e sede do Sporting da Horta, e já algumas marés se passaram desde o festival de Primavera, em recinto fechado, que ocupava Teatro Faialense e imediações durante um fim de semana. Em 2019 tomámos a cidade da Horta e as suas instituições como palco e como parceiros do MUMA. Juntámos prata da casa com forasteiros, desafiámos encontros entre desconhecidos e promovemos estreias em território açoriano. Criámos um espectáculo de raiz - O Murmurinho #0 - com o Grupo Coral da Horta e com a Filarmónica dos Flamengos. Enchemos o coração e enchemo-nos de mais ideias. E estávamos com a pica toda para a edição de 2020 quando nos tiraram o pão da boca. 6 Os males nunca vêm por bem (por muito que nos tentem enganar), mas uma pessoa lá se remedeia, ou lá se adapta. Mudámos outra vez: MUMA 2020 virou MUMA 2021-22. De festival passou a temporada (ou programação regular, ou conjunto de festas, ou lá o que lhe quiserem chamar). Agora, além de se espalhar pela cidade e pela ilha, vai-se espalhar também pelo ano. Setembro, Janeiro, Março e Maio foram os meses escolhidos para acolher vários concertos, encontros e criações, que o público faialense vai poder descobrir e curtir. Arrancámos no passado 4 de Setembro. A data era de efeméride para a Autonomia Regional, e a Assembleia Legislativa dos Açores juntou-se ao MUMA para um momento de celebração fora do programa oficial (do deles, não do nosso). Faltou o presidente Marcelo, mas não faltou mais nada. Nem a chuva. Originalmente programado para o anfiteatro exterior da ALRA, o serão passou para o plano B de luxo: o Pátio das Ilhas (um espaço exterior coberto localizado directamente por debaixo do hemiciclo da assembleia). Dissenos um espectador ao entrar no espaço: “arranjaram o sí- A próxima noite MUMA chega a 14 Janeiro. Vai ter os faialenses B.I.F. a bifar as “janeiras” em modo multimedia nas paredes da Biblioteca da Horta, e vai ter um dos nomes maiores do jazz nacional, Desidério Lázaro, no Amor da Pátria. Em Março virá rock’n’roll, e em Maio festa da boa. Até lá, prepara-se o tio mais underground do Murmurinho #1 com três grupos folFaial, e no principal ed- clóricos do Faial e a turma de ballet ifício oficial” (é possível que do Conservatório da Horta, mas a a rima tenha vindo com a pará- seu tempo diremos mais coisas. frase, mas registe-se o essencial). 7 1 8 4 Um é o da Matriz da Horta, construído pelo afamado organista olisiponense António Xavier Machado e Cerveira, em 1814, notável e com uso semanal, bem vivo apesar dos mais de duzentos anos. O outro é um de procedência francesa, de 1903, na Matriz da Praia do Almoxarife, impressionante testemunho do período romântico. Ambos são monumentais e pungentes testemunhos da secular apetência dos seus habitantes para a música. MUSEU DO SCRIMSHAW diretor do MUseU de Arte sAcrA dA hortA MArco LUciAno dA rosA cArvALho 2 3 Corria o natal de 1792. O capelão da galera Flora, Frei Bonifácio de Jesus, dominicano, regressado de Macau com destino à metrópole, fez aguada na Horta. Durante esse período, nove dias que aqui ficou, assistiu a celebrações públicas e visitou a casa de alguns ilustres faialenses, tendo pernoitado três vezes em terra. No que respeita às celebrações natalícias, estas consistiam, basicamente, na missa do galo cantada na igreja Matriz da Horta. Aliás, o que sobressai da descrição da experiência aqui vivida, são os dotes musicais dos cantantes da Matriz e das religiosas clarissas do convento de São João Baptista, que o impressionaram, presenteando-o com coro e músicas de cravo e órgão. A Desse período, onde a música e a dança faziam já parte integrante do quotidiano dos faialenses, os bailes profanos eram integrados nas festividades religiosas, dançando-se gavotas, minuetos, lunduns, valsas, quadrilhas, de que somente restam hoje, as seculares chamarritas. Pouco subsiste desses tempos, ainda de navegação à vela e de numerosos enormes navios estacionados no porto, pontuando a baía de mastros como que se de uma floresta se tratasse, provindos de todos os cantos do mundo, convertendo o Faial em ponto de encontro planetário. Porém, do que permaneceu temos poucos, mas magníficos testemunhos, caso de dois soberbos órgãos históricos, classificados pela Resolução do Governo n.º 18/2021, de 26 de janeiro. AgEndA MUSEU dA HORTA Exposições Assinar a Pele, numa cidade portuária do Atlântico Norte, patente na Casa Manuel de Arriaga até 31 de outubro. Cápsulas do tempo: o património cultural subaquático dos Açores, patente na Junta de Freguesia dos Cedros, outubro-novembro. Eventos 30 setembro, 21.30h, casa Manuel de Arriaga Jornadas Europeias do Património – Cinema Mudo musicado ao vivo Tiago Marques, no oboé, Zeca Sousa, na guitarra e Tomás Melo na projeção de imagem 1 de outubro, 18.30h, casa Manuel de Arriaga Tertúlias do Arriaga – Santos da Casa fazem milagres… Nuno Costa Santos – O Faial na literatura portuguesa 15 de outubro, 18.30h, na Casa Manuel de Arriaga Tertúlias do Arriaga – Conversas de Museus Jorge Paulus Bruno – O Museu de Angra do Heroísmo 29 de outubro, 18.30h, na Casa Manuel de Arriaga Tertúlias do Arriaga – Santos da Casa fazem milagres… Carlos Alberto Machado – É possível ser escritor, ou editor, ou livreiro, nos Açores? 12 de novembro, 18.30h, na Casa Manuel de Arriaga Tertúlias do Arriaga – Conversas de Museus Nuno Ribeiro Lopes – Arquitetura e museus 26 de novembro, 18.30h, na Casa Manuel de Arriaga Tertúlias do Arriaga – Santos da Casa fazem milagres… Judite Canha Fernandes – Carta de um vulcão para o mundo 9 fAz A tUA AgendA cULtUrAL SETEMbRO OUTUbRO 10 v vIOLInO1870 Na digressão realizada aos Açores, escolheu fixar-se na Horta. Durante 50 anos contribuiu para o desenvolvimento da música no Faial e no Pico, sendo regente de diversas bandas filarmónicas e orquestras, tendo fundado algumas delas. A família, emigrada nos EUA, herdou o violino, que estimou. O neto John Simaria Silva, consciente da importância de ser preservado e valorizado, escolheu doá-lo ao Museu da Horta. O procurador de John, o seu primo Tony e a sua mulher Teresa, deslocaram-se em agosto de 2021 à ilha do Faial para entregar a peça e uma fotografia do maestro. Foi realizada uma intervenção de conservação no violino, onde se efetuou a sua limpeza e estabilização, de forma a permitir a sua exposição. 11 dEpOIS Francisco Xavier Simaria (1870, Lisboa – Horta, 1946) manifestou talento musical precoce, destacando-se no saxe-trompa e no violino. Aluno distinto do Conservatório Nacional, foi condiscípulo de Francisco de Lacerda. AnTES CERCA dE Futuramente será realizado o ajuste das cordas, de modo a que possa ser novamente tocado. O violino de fabrico francês, é de Jérôme Thibouville-Lamy, de Minecourt, um modelo Mansuy a Paris, que reflete o estilo típico do fabricante. jOAnA bULCAO FOTOGRAFIA DE CAPA: INÊS GATO DE PINHO MUSEU AYUL NÚMERO 2 UMA EDIÇÃO DO MUSEU DA HORTA E DA FÁBRICA DA BALEIA S A T ARTIS S I A C LO TA SE ÉS ARTIS E UITAMENT T A R G I U Q ANUNCIA A UM EMAIL ENVIA-NOS S@OMA.PT OMAACORE FICHA TÉCNICA Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretora: Aurora Ribeiro -- Subdiretores: Carla Dâmaso e José Luís Neto -- Diretor Artístico: Luiz Domanoski -- Revisora: Carla Devesa Rodrigues -- Morada: Largo Duque d’Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta/ Monte da Guia, 9900-124 Horta Email: geral@oma.pt/ museu.horta.info@azores. gov.pt -- Periodicidade: Mensal -- Impressão: Gráfica “O Telegrapho”, Rua Conselheiro Medeiros n.º 30, 9900-144 Horta 2 CIdAdE VISIVEL VERSUS CIdAdES InVISIVEIS A propósito das cidades invisíveis de Italo Calvino... só na Horta... existem três. “Em Esmeraldina, cidade aquática”, para ir de um sítio a outro a única opção é o barco. Todas as casas estão dispostas ao redor do mar e, por isso, é aí mesmo que as crianças se encontram e brincam. Para irem até à escola nadam bastante até ao ensino flutuante, mas vale a pena todo o esforço e todo o tempo despendidos, porque é durante a viagem que mais pensam, todos os dias. “Do caráter dos habitantes de Esmeraldina merecem ser recordadas duas virtudes”: a força de vontade e a prudência. Convencidos de que todas as inovações na cidade têm influência sobre os pesqueiros. Nada fazem, nada mudam e, por mais que conversem sobre todo o peixe que abundava no passado, ele vai continuar a escassear. Em Trude todas as habitações estão dispostas ao redor de uma estrada, muito bem pavimentada, para que os seus habitantes possam chegar do ponto A ao ponto B o mais rápido possível. É muito fácil sair de casa e atravessar a cidade sem perder tempo, isso facilita muito a vida dos habitantes que não têm de “subir e descer escadas, passar por ruas estreitas ou pontes em arco”. Estranhei muito, pois ruas suspensas também não existem nesta cidade. Tudo foi terraplanado para simplificar a vida dos que a habitam, que apenas precisam de dispor de um reboque e de um escravo que o carregue para semovimentarem ao seu bel-prazer por Trude. Limpa e estéril, não esconde o cheiro a fuligem e “as marcas de peões esmagados contra as paredes”. Gardina é uma cidade jardim, as casas estão dispostas em redor de um pasto onde vacas pastam livremente. As deslocações são simples pois a cidade é um círculo perfeito e, no ponto central, todos se encontram. Todos se ficam a conhecer, não pelos sapatos que trazem calçados (em Gardina os habitantes estão sempre descalços) mas porque há habitantes que se desviam, para outros poderem passar, e há habitantes que, de tão gordos que são, têm de esperar que outros se afastem à sua passagem. As cidades são o que os habitantes fazem delas e Gardina está a mudar. Colada à cidade há uma fábrica a crescer todos os dias, cada vez mais habitantes vivem dentro da fábrica onde trabalham, por ser mais confortável, por ter temperatura controlada e porque não se precisam de deslocar; infelizmente, não sentem o ar fresco nem o sol na pele, mas isso é apenas um pormenor. Tomás Melo 3 “um mar profundo coberto de escuridão” “Nas ilhas não poderíamos (Gn. 1, 2). A água é, desde 4 sentir mais essa ligação, mas sempre, o elemento eso seu sentido, em eras mais sencial à vida, a individurecuadas, prendia-se muito al e a coletiva. mais à terra que ao mar. Depois de um primeiro povoado em Porto Pim, “Marco Polo antes de tudo, existia apenas descreve uma ponte, pedra a pedra. Mas qual é a pedra que sustém a ponte? A ponte não é sustida por esta ou aquela pedra, mas sim pela linha do arco que elas formam. Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa. Sem pedras não há arco.” NO princípio dos tempos, entre as duas baías, nos finais do século XV surge a “vila de Orta”, na margem Sul da ribeira da Conceição. De um e de outro lado encontramos ainda vestígios do povoamento primitivo, nas pedras da Calçada da Conceição e do Mirante, este ligando a ribeira ao alto da Matriz, aquela sendo a saída para o Norte da ilha. As pedras foram-se adaptando aos séculos, mas mantêm a técnica e a estética dos primeiros tempos. Entre as duas vias perdeu-se a antiga ponte de pedra, que dataria dos inícios de Quinhentos. “Se Armilla é assim por estar incompleta ou por ter sido demolida, eu ignoro-o.” Cruzando a Travessa do Mirante, entre muros de quinta, passamos por um lintel em pedra talhada no século XVI, testemunho silencioso dos antigos, antes de chegarmos à Torre do Relógio. Era este o local da Igreja Matriz, também fundada por volta de 1500, ao longo de três séculos o símbolo maior da presença da Igreja na comunidade faialense. Queimada por corsários e arruinada por sismos e temporais, acabou por ser abandonada no início de Oitocentos, quando a paróquia do Santíssimo Salvador se mudou solenemente, com toda a dignidade e aparato da circunstância, para a devoluta igreja do Colégio dos Jesuítas.. Antes, ainda nos meados de Setecentos, tinha-lhe a Câmara acrescentado uma torre moderna, virada a Sul, ao centro da vila, para receber o tão almejado relógio público que era reclamado pela população há mais de um século. Fez-se a Torre e recebeu um mecanismo inglês, datado de 1797, importado por uma das firmas internacionais, que então tinham representação na Horta. O relógio deixou há muito de ser usado, mas foi agora restaurado e, em breve, poderemos vê-lo novamente a funcionar. 5 “obrigada permanecera imóvel Descendo um pouco, pisando calçada arcaica e igual a si própria para melhor que teima em espreitar ser recordada, Zora estagnou, no meio do alcatrão, desfez-se e desapareceu.” chegamos ao local onde outrora se erguia a Casa da Câmara, na esquina da Rua Visconde Leite Perry com a Rua Dr. Arriaga Nunes. Diz a tradição que teria existido uma casa primitiva na “Vila Velha”, próxima do actual Tribunal, mas temos apenas como certa esta, onde se administrou o concelho nos séculos XVII e XVIII. Aconteceu, por exemplo, em 1757, quando a vontade régia decidiu centralizar a exportação do vinho do Pico a partir de Angra, o que teria ditado o fim da hegemonia do porto da Horta e, com ele, a estagnação da sua economia e sociedade. A partir daqui se governou a ilha e aqui se reuniram os “homens bons” da vila quando era preciso decidir em conjunto o rumo da comunidade, em momentos de fome, de guerra ou de outras crises. Sabemos que tinha três pisos, com uma escada exterior de acesso ao primeiro, as cadeias no rés-do-chão, a zona de audiência no primeiro e a vereação instalada no segundo. Nas traseiras da Casa da Câmara estava instalada roda dos expostos, onde os recém-nascidos indesejados ou nascidos em berços sem condições eram abandonados e deixados ao cuidado do município – era, por isso, a Rua dos Enjeitados. Na sua frente erguia-se o Pelourinho, coluna de pedra talhada simbolizando as prerrogativas municipais. 6 “Irene é um nome de cidade vista de longe, e se nos aproximarmos muda logo.”.” Em torno do Pelourinho, onde a rua se alarga numa barriga vir da a terra, era, simplesmente, a “Praça”. Aqui existiam granéis e, provavelmente, covas, ambos para o armazenamento do trigo, base da alimentação e do rendimento das famílias abastadas. Do outro lado, no quarteirão hoje ocupado pela Praça da República, erguia-se o Mosteiro da Glória, a segunda casa de freiras concepcionistas erguida em Portugal. As filhas da elite local eram colocadas nos conventos, neste e no de S. João (hoje Jardim Público), onde entravam de tenra idade e nunca mais saíam. Eram “amortalhadas em vida” nos hábitos religiosos, viviam ocultas da sociedade, dedicadas à oração e à produção de doces e artesanato, e, mesmo na morte, recebiam sepultura na sua igreja. Mas se as pudéssemos observar, penetrando as paredes quase fortificadas do convento, veríamos muito mais donzelas nobres que senhoras santas. Copiando os hábitos do exterior, usavam roupas “seculares”, sapatos de salto, penteados cuidados e até maquilhagem, apesar das advertências do prelado diocesano, que se esforçada por fiscalizar e corrigir tais comportamentos. Muitas levavam mesmo as suas criadas consigo e era comum as mais novas trocarem bilhetes e risadinhas no meio de momentos solenes ou desculparem-se com “achaques” para faltar às orações matinais. Nos casos mais extremos, chegaram mesmo a fugir, em conluio com marinheiros aventurosos que as tinham visitado. 7 A portaria do convento ficava virada à Casa do Espírito Santo, único vestígio desse tempo, que o povo se encarregou de apelidar de Império dos Nobres. O motivo, hoje longínquo, mas óbvio na sua génese, prendia-se com os inúmeros membros da nobreza local que habitavam a contígua Rua da Misericórdia, que partia daí até ao Largo do Colégio. “nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve" Os morgados Terra, Lacerda, Labat, Cunha e Brum, todos descendentes dos primeiros povoadores flamengos e de estirpes ilustres portuguesas e de outras nações, partilhavam esta vizinhança, onde por vezes as fronteiras entre a cortesia, a aparência e o escândalo eram difíceis de definir. 8 “A população de Melânia renova-se: os dialogantes morrem um a um e entretanto nascem os quetomarão lugar por sua vez no diálogo.” Mesmo no meio da Ainda no início do século XIX, rua ficava a travessa estando o hospital há muito sem condições, se improvisou com o mesmo nome, uma enfermaria no rés- doque surgia por nela se chão para acolher os contamerguerem a igreja e o inados com doenças venéreas, hospital da Misericór- resultado das interacções condia, instituição quase stantes entre as mulheres da Velha e os marinheiros de tão antiga quanto Rua todas as nações que na Hora vila e de primeira ta tomavam ânimo antes de linha na assistência prosseguir viagem. aos pobres e enfer- Ergue-se ainda, do lado Norte mos desta ilha e das da travessa, o antigo edifício vizinhas, assim como do hospital, guardando a aos marinheiros que memória para os que hoje e amanhã calcorreiam as pedras aqui aportavam. da sua calçada ou lá entram em busca de mantimento. 9 “A verdadeira essência de Leandra é assunto de discussões sem fim. Os Penates julgam ser eles a alma da cidade, mesmo que só tenham chegado no ano passado. Os Lares consideram os Penates visitantes provisórios, importunos e metediços; a verdadeira Leandra é a sua, que dá forma a tudo o que contém, a Leandra que já ali estava antes que chegassem todos estes intrusos e ali ficará quando todos se tiverem ido embora.” Ergue-se ainda, do lado Norte da travessa, o antigo edifício do hospital, guardando a memória para os que hoje e amanhã calcorreiam as pedras da sua calçada ou lá entram em busca de mantimento. Em seu redor, na Rua de Baixo, hoje Serpa Pinto, ficavam as casas dos principais mercadores que no século XVIII prosperaram com o comércio atlântico, sobretudo com os navios do Brasil. Se entrarmos nas suas casas, nas poucas que sobrevivem, ainda encontramos hoje madeiras exóticas, vestígios de naufrágios ou cheiro a canela impregnado na estrutura. No meio, mesmo em frente ao hospital, ficava o Mercado da Boa Viagem, desde tempos imemoriais o centro comercial da urbe, mesmo ao lado da ermida com o mesmo nome e junto de uma das várias portas na muralha que uniam o mar e a terra, num diálogo eterno. Edição citada: Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa, Teorema, 2010, pp. 85, 51, 20, 127, 63, 82 e 81 (com adaptações). Tiago Simões Silva 10 Resgatar a dignidade (in)visível de uma peça marítima, um exemplo... Depois Antes Uma figura de proa, do século XIX, esculpida em pinho resinoso e, originalmente, policromada. Embora se desconheça a identidade da efígie retratada, esta seria, muito possivelmente o proprietário de uma empresa mecante. Trata-se de uma representação de um individuo de meia-idade, com cabelo ondulado e patilhas, a meio corpo, vulto pleno, não apresentado braços; enverga um casaco com dois botões, um laço e um lenço. Nas suas laterais, na zona inferior, existe uma decoração em arabesco.No seu tempo de vida útil, incluindo o após ter sido retirada da sua função original, a peça encontrou-se exposta a intempéries como chuva, vento, água salgada e alterações de temperatura e elevados fatores de humidade relativa. Tendo ainda sido submetida a diversas intervenções inadequadas, como um repinte total com tinta plástica e preenchimentos com espuma de poliuretano e argamassa, apresentando também bastantes elementos metálicos oxidados. Todos estes fatores resultaram em fissuras, fendas, fraturas, lacunas, apodrecimento e enfraquecimento da madeira, apresentando, em suma, muito mau estado de conservação. Assim, realizou-se uma limpeza química dos repintes, a remoção do poliuretano, da argamassa e dos elementos metálicos, a consolidação da madeira, uma desinfestação preventiva, o preenchimento de lacunas e a sua integração cromática e uma proteção final. No final podem-se observar ainda vestígios da policromia original: preto no cabelo, rosa nas carnações, verde no casaco e arabescos e azul na gola. Pretendeu-se, com a intervenção, a remoção de materiais inadequados, a recuperação da legibilidade, a estabilização física e química, a conservação enquanto testemunho histórico e o resgate da dignidade desta peça, que será proveniente de um navio mercante, encalhado na Horta, consequentemente arrematada e, durante muitos anos, exposta num estabelecimento comercial da cidade. Carina Maurício 11 FOTOGRAFIA : TOMÁS MELO NÚMERO 3 Bilhete Postal Ficha Técnica Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretor: Tomás Melo -- Subdiretores: José Luís Neto e Carla Dâmaso -- Diretor artistico: Luis Domanoski -- Design: Sónia Rosa -- Revisão: Carla Devesa Rodrigues -- Moradas: Largo Duque d'Avila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta | Monte da Guia, 9900-124 Horta -- Email: museu.horta.info@azores.gov.pt | geral@oma.pt -Periocidade : Mensal -- Impressão: Gráfica "O Telegrapho", Rua Conselheiro Medeiros, n.º 30, 9900-144 Horta Horta.Chique, chique, a valer 1 3 Baía de Porto Pim Por ser muito abrigada, a baía de Porto Pim foi sempre espaço alternativo à baía da Horta, quando o vento soprava de sudoeste e os barcos e navios ali rumavam para carregar e descarregar pessoas e bens. Esta baía foi também estaleiro naval e ficou conhecida, na linguagem popular faialense, por “cemitério dos navios”, porque encalhavam e descavilhavam os grandes veleiros de longo curso que ali aportavam com irreparáveis avarias. Nos séculos XIX e XX foi espaço de desmancho de cachalotes, o que se viria a acentuar com a construção da(s) Fábrica(s) da Baleia. Com o fim da baleação, passou a ser local de banhos e lazer. Mas já o era antes. Em 1918, Vitorino Nemésio ficou impressionado com a afoiteza de raparigas faialenses a tomar banho (em fato de malha) na praia de Porto Pim. Casa de veraneio dos Dabney Casa do Tufo (Porto Pim) Também conhecida como antiga Fábrica da Baleia, foi construída em 1836 pela Companhia das Pescarias Lisbonense e tinha como principal objetivo processar o bacalhau apanhado na Terra Nova, que seria colocado a secar nas encostas do Monte da Guia. No entanto a elevada humidade não permitiu a concretização deste plano. Foi adquirida em 1855 pelo cônsul norte‐americano Charles William Dabney e convertida na primeira fábrica de extração de óleo de baleia do Faial. Encerrou em 1942 devido à construção da nova Fábrica da Baleia de Porto Pim. Atualmente é propriedade do Governo Regional dos Açores, estando ali instalado o Aquário de Porto Pim – Estação de Peixes Vivos, parte integrante do Complexo do Monte da Guia Antiga casa de veraneio dos Dabney adquirida por Charles William Dabney em 1855. Fez parte de um complexo residencial que incluía a casa onde a família pernoitava, uma adega onde produziam vinho, um pequeno cais com abrigo para dois botes e um miradouro com uma pequena área de vinhas em forma de lira. Era o lugar de eleição das duas últimas gerações dos Dabney como local de lazer e recreio. Passavam aqui longas temporadas, normalmente desde o início do verão até aos finais de outubro, altura em que regressavam às suas residências na cidade (Cedars House, Fredonia e Bagatelle). Atualmente é propriedade do Governo Regional dos Açores, onde estão instalados a sede do Parque Natural do Faial e a Casa dos Dabney, fazendo parte do Complexo do Monte da Guia. Casas dos Cabos Localizadas no istmo entre os montes Queimado e da Guia, assinalam o local de amarração do segundo grupo de cabos submarinos que aqui aportavam em virtude de vários lançamentos verificados nos anos de 1923 a 1928. A partir destas singelas infraestruturas os cabos eram levados até à Estação Conjunta de Cabos por condutas subterrâneas. 4 5 Castelo de Santa Cruz Hoje, Pousada de Portugal, é uma construção do século XVI e teve papel importante aquando da ocupação da ilha pelos espanhóis, em 1583, das invasões, em 1589, do duque de Cumberland e, em 1596, do conde de Essex, cujas forças desembarcaram na então vila da Horta e procederam ao saque e destruição de igrejas. Esta fortificação foi palco, em setembro de 1814, de uma batalha entre uma frota de 3 navios ingleses e um brigue norte‐americano, General Armstrong, afundado pelos ingleses. Tal acontecimento causou sérios embaraços diplomáticos, dada a neutralidade de Portugal no conflito que opunha ingleses e americanos. 6 Largo do Infante D. Henrique Até 1675 este espaço era o Portinho do Beliago. Com as obras realizadas para prolongar a muralha da cidade e ligá‐la ao forte de Santa Cruz, formou‐se um largo a que deram o nome de Largo do Neptuno. Em 1894, no âmbito do 5.º aniversário do nascimento do Infante D. Henrique, a Câmara Municipal da Horta, associando‐se àquelas comemorações, decidiu alterar‐lhe o nome para Largo do Infante. Em 1940 foi ali instalada uma estátua do Infante D. Henrique. E em 1960 foi colocado o busto do Infante, que ainda ali se encontra com a divisa de “talent de bien faire”. O Largo do Infante, com os seus metrosíderos e palmeiras, continua a ser a sala de visitas da cidade da Horta, local de convívio e animação, espaço de lazer de ver o Pico. 5 7 Porto da Horta Desde muito cedo, a Horta serviu de ponto de encontro para as embarcações que atravessavam o Atlântico, tornando‐se um entreposto para trocas comerciais e baldeações. O seu porto transforma‐se num escala intercontinental já que as embarcações, vindas do Novo Mundo e das Índias, aqui aportavam para as imprescindíveis aguadas, reparação, descanso das tripulações e espera da armada que as deveria comboiar até Lisboa. No século XIX, muito por ação da família Dabney, a Horta torna‐se num entreposto baleeiro de inegável importância, estando na rota da laranja e do vinho. A par disso, e dada a excelente localização geo‐estratégica da ilha do Faial, a cidade situar‐se‐á no centro de um emaranhado conjunto de Cabos Telegráficos Submarinos. Seguiu‐se o ciclo da aviação aérea: a baía da Horta é palco de voos experimentais e pioneiros e, entre 1939 e 1945, serve de aeroporto à amaragem dos famosos clippers da Pan American. Depois, durante as duas grandes guerras mundiais, a cidade foi utilizada como base naval, seguindo‐se a presença dos rebocadores holandeses, o que emprestava à cidade um ar cosmopolita. A partir da década de 60 começam a chegar à Horta tripulantes de embarcações de recreio de todo o mundo, e a esses velejadores é dado o nome de “iatistas”. A Horta passa a ser um centro de iatismo internacional com a construção da Marina em 1986, verdadeiro ex‐libris da cidade. Em termos de movimentação dos “pleasure boats” (navegação recreativa), a Marina da Horta é hoje considerada a primeira de Portugal, a segunda da Europa e a quarta a nível mundial. João Carlos Fraga considerava‐a mesmo “a marina oceânica mais internacional do mundo”. 6 Rua Cônsul Dabney Anteriormente conhecida como Canada do Beliago, em 1863 foi elevada a Rua Cônsul Dabney pela Câmara Municipal da Horta, em homenagem à família Dabney e aos atos realizados na ajuda à população faialense. Em 1877 a Câmara da Horta descerrou a fotografia de Charles William Dabney no Salão Nobre dos Paços do Concelho. A sua filantropia valeu‐lhe, após a sua morte, o epíteto de “pai dos pobres”. “Trinity House” Entre 1893 e 1969, a Horta foi local de amarração de Cabos Telegráficos Submarinos que convertiam a cidade num “nó de comunicações” mundiais. Os ingleses, americanos e alemães do “Cabos” haveriam de deixar profundas influências sociais, culturais e desportivas no meio faialense. Sito à Rua Cônsul Dabney, o edifício “Trinity House” foi construído em 1902 com a finalidade de albergar, enquanto estação recetora e transmissora, os serviços das três companhias que ali passaram a operar: a Companhia Inglesa (The Europe and Azores Telehgraph Company), a Companhia Alemã (Deutsche‐ Atltantische Telegraphengesellschaft) e a Companhia Americana (Commercial Cable Company). Nos terrenos anexos foram construídos bairros residenciais destinados aos cabografistas: Colónia Inglesa (atual Hotel Faial e 6 bungalows sitos à Rua Cônsul Dabney), e Colónia Alemã (onde funcionam atualmente várias secretarias regionais). A partir dos anos 70 do século passado e até à atualidade, o edifício da “Trinity House” foi transformado em estabelecimento de ensino. 7 10 “Waldorf” No terreno anexo à “Trinity House” (rua Cônsul Dabney), o edifício que hoje alberga a Direção Regional do Desporto, foi a casa, chamada “Waldorf”, que serviu de residência privativa do técnico eletricista da “Europe and Azores Telegraph Company”. Possui, no terreno fronteiro, um poço de maré que, por questões de segurança, foi entulhado. 11 Fredonia Casa, na Rua Cônsul Dabney, adquirida por Charles William Dabney em 1835. Esta propriedade era composta por várias casas, cisterna, atafona, moinho, jardim e uma estufa. Depois de remodelada, tanto ele como seu filho Samuel Dabney usaram‐na como residência e consulado. Em 1858 foi o local escolhido para um baile em honra do príncipe D. Luís, que reinou em Portugal entre 1861‐1889. Em 1899 os herdeiros de Samuel venderam‐na à Companhia dos Cabos Telegráficos Submarinos “Europe and Azores Telegraph Company” e, em 1969, foi novamente vendida sendo convertida num infantário, qualidade que mantém até aos dias de hoje. 8 Casa do diretor da Companhia Alemã Cedars House Casa construída em 1851 por John Pomeroy Dabney, filho mais velho de Charles Dabney. Foi palco dos mais variados eventos culturais da Horta e residência oficial de John até ao início do século XX, altura em que foi vendida por sua filha Sarah à Companhia dos Cabos Telegráficos “Commercial Cable Company” para residência do seu diretor. Foi adquirida posteriormente pelo Governo Regional dos Açores, sendo, atualmente, a residência oficial do Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores. Na Rua Marcelino Lima, no edifício agora pertencente à ALRAA que alberga a Biblioteca Álvaro Monjardino e onde durante vinte anos funcionou o Conservatório Regional da Horta, foi originalmente a casa do diretor da Companhia do Cabo Telegráfico Submarino Alemã, que ali viveu rodeado de familiares. 13 Bagatelle Foi a primeira residência dos Dabney, tendo sido construída durante o período da Guerra Anglo‐Americana (1812‐1814). Frequentemente visitada por amigos, familiares e estrangeiros que faziam escala no porto da Horta, foi palco de um baile em honra de D. Pedo IV, em 1832, e do príncipe de Joinville, filho dos reis de França, em 1834. É atualmente um condomínio fechado. 14 9 Casa Grande dos Bensaúde Edifício burguês de meados do século XIX, de aparato e impacto urbano pelas proporções relativamente ao enquadramento, boa composição da fachada com eixo de simetria bem marcado na qual sobressaem os balcões, com os respetivos gradeamentos, e os lintéis de portas e janelas, em basalto trabalhado. Alberga atualmente a Biblioteca Pública e Arquivo João José da Graça. Foi propriedade de Walter Bensaúde, abastado comerciante de origem judaica. 10 Victor Rui Dores número 4 Ficha Técnica Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretor: Tomás Melo -Subdiretores: José Luís Neto e Carla Dâmaso -- Diretor artistico: Luiz Domanoski -- Design: Sónia Rosa -Revisão: Carla Devesa Rodrigues -- Moradas: Largo Duque d'Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta | Monte da Guia, 9900-124 Horta -- Email: museu.horta.info@azores.gov.pt | geral@oma.pt -- Periocidade : Mensal -- Impressão: Gráfica "O Telegrapho", Rua Conselheiro Medeiros, n.º 30, 9900-144 Horta O Museu da Horta lançou o repto à população do Faial para que, entre 17 de fevereiro e 30 de abril, cedesse à instituição brinquedos antigos, os quais, caso necessitassem, com a devida autorização dos proprietários, seriam alvo de limpeza e consolidação por parte da Conservação e Restauro. A iniciativa partiu e foi desenvolvida pelo Serviço Educativo que, ao pretender comemorar o Dia Mundial da Criança com uma exposição dos brinquedos recolhidos, decidiu envolver a comunidade para que, mais do que objetos, partilhassem também memórias. Ao longo de cerca de setenta e dois dias, o Museu da Horta, recebeu mais de centena e meia de brinquedos e de jogos. Das peças que se reuniram, representativas do universo infantil, algumas, poucas, foram produzidas localmente, sendo, na sua maioria, objetos de importação, nacional e internacional; destinavam-se a brincadeiras no seio da intimidade dos lares, em agregados urbanos com expressivo poder de compra. A aquisição de brinquedos, tanto no Faial, como nas demais ilhas do arquipélago, seria um luxo de difícil acomodação com os minguados rendimentos da maior parte das famílias. Todos eles refletem, de forma evidente, a separação das infâncias por géneros, masculino e feminino, espelhando a realidade da sociabilização infantil dos tempos, onde as brincadeiras mistas, descritas nos famosos livros de Enid Blyton – como os Cinco, os Sete, o Mistério –, eram a exceção, e não a regra. Conforme à moral que se desejava vigente, as escolas estavam separadas, preferencialmente, por sexo, numa segregação que, repetida em tarefas e em afazeres quotidianos, repassaria para todas as esferas da sociedade. 3 brincar Fazer alguma coisa por brinco e divertimento; divertir-se, folgar, foliar, entreter-se. brincadeira Acção de brincar, folgar, divertir-se, zombar; divertimento, sobretudo entre crianças; folgança. infância Período da vida do homem, que vai desde o nascimento até a puberdade. António de Morais Silva, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, vols. II e V, 10.ª Edição revista, corrigida muito aumentada e actualizada por Augusto Moreno, Cardoso Júnior e José Pedro Machado, Editorial Confluência, Lisboa, 1950, pp. 620 e 946 [respetivamente]. “Gatinho Cheshire” – começou Alice, timidamente, pois não sabia se ele iria gostar do ; mas ele pôs-se a rir, mostrando ainda mais os dentes. “Bom, até agora ele parece estar satisfeito”, pensou Alice, e continuou a falar: – Diga-me, por favor, a partir daqui, que caminho é que devo seguir? – Isso depende bastante do sítio para onde queres ir – respondeu o Gato. – Pouco me importa para onde – disse Alice. Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1977, pp. 69-70. 4 A idade dos infantes ou dos não falantes – daqueles que por não terem os dentes bem ordenados ou firmes não podiam expressar-se bem nem formar palavras perfeitas –, durava até aos sete anos e designava-se por infância; seguia-se a da puerícia que, até aos catorze anos, descrevia o ser como a menina do olho – protegida e (res)guardada; a fase da adolescência, a do vigoroso crescimento e desenvolvimento, podia estender-se até aos 30 ou 35 anos. No quotidiano, as palavras utilizadas – criança, infante, jovem, mancebo, moço ou rapaz –, inúmeras vezes proferidas sem correlação etária, refletiam indefinição e ambiguidade social face à idade. A criança, assim que superava o seu período mais frágil e adquiria relativa destreza e desembaraço físicos, logo se misturava com os crescidos, com os quais partilhava os seus trabalhos e os seus jogos. Por ser tida como um adulto ainda em evolução, a sua vida, ou passava despercebida, com a quase indiferença da invisibilidade ou, semelhando cãezinhos ou macaquinhos, servia para gáudio dos mais velhos. Comum a todo o ocidente europeu, a partir de finais do século XVII, esta realidade, devido à substituição da aprendizagem pela escola, foi-se modificando. 5 Princípio 1.º Estes direitos serão reconhecidos a todas as crianças sem discriminação alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou outra da criança, ou da sua família, da sua origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou de qualquer outra situação. Princípio 2.º A criança gozará de uma protecção especial e beneficiará de oportunidades e serviços dispensados pela lei e outros meios, para que possa desenvolver-se física, intelectual, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Princípio 6.º A criança precisa de amor e compreensão para o pleno e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade. Princípio 7.º A criança deve ter plena oportunidade para brincar e para se dedicar a actividades recreativas, que devem ser orientados para os mesmos objectivos da educação. Princípio 8.º A criança deve, em todas as circunstâncias, ser das primeiras a beneficiar de protecção e socorro. Princípio 9.º A criança deve ser protegida contra todas as formas de abandono, crueldade e Princípio 3.º exploração, e não deverá ser objecto de A criança tem direito desde o nascimento qualquer tipo de tráfico. a um nome e a uma nacionalidade. Princípio 10.º Princípio 4.º A criança deve ser protegida contra as A criança tem direito a uma adequada práticas que possam fomentar a alimentação, habitação, recreio e cuidados discriminação racial, religiosa ou de médicos. qualquer outra natureza. Princípio 5.º A criança mental e fisicamente deficiente ou que sofra de alguma diminuição social, deve beneficiar de tratamento, da educação e dos cuidados especiais requeridos pela sua particular condição. Excertos da Declaração dos Direitos da Criança, Proclamada pela Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas n.º 1386 (XIV), de 20 de Novembro de 1959. 6 “Qual é, então, a maneira certa de viver? A vida deve ser vivida como um jogo, jogando certos jogos [...], cantando e dançando [...].” Platão, Leis, VII, 796. A brincadeira e o jogo diferenciam a espécie humana das restantes que no planeta habitam. Desde cedo, mesmo nas fases mais primitivas da civilização, que estes impulsos, associados ao divertimento e à competitividade, impregnaram toda a vida como um verdadeiro fermento... Os brinquedos, enquanto objetos, mimetizavam, regradamente, os papéis sociais de género que se esperava que as crianças, quando crescessem e se tornassem adultos, assumissem. No caso dos meninos idealizava-se o papel do herói – corajoso, abnegado, providenciador, que se sacrificava em prol dos demais –, centravam a ação no exterior, na manifestação de adrenalina: eram as lutas, com cavaleiros, cowboys, soldados; era a velocidade e a destreza, com os carros de corrida. Para as meninas, idealizava-se o papel de cuidadora do lar e cuidadora – maternal, disponível e sofredora em prol dos demais –, centravam a ação no interior, no universo da casa. Bonecas, berços, casinhas, fogões, ferros de engomar e outras formas de domesticidade eram o modelo incentivado. Esta visão estereotipada encontra-se plasmada em dois pequenos livros que no país, durante grande parte do século XX, granjearam sucesso: Já és um Homenzinho e Já és uma Mulherzinha. 7 Porque, à semelhança do restante arquipélago, as escolas do Faial estavam instaladas em casas alugadas, sendo os edifícios escolares, à exceção dos da cidade, mal conservados, com falta de mobiliário e carestia de material didático, a partir de 1945, integrando do Plano dos Centenários – concebido pelo Estado Novo para que, nenhuma criança deixasse de ter escola ao seu alcance –, foram organizados e instalados, devidamente apropriados para a função, estabelecimentos de ensino primário. Nesses edifícios tipificados, impunha-se um modelo educacional de acordo com um regime que separava meninos de meninas, o tempo de escolaridade obrigatória se reduziu de cinco para três anos e se educava de acordo com os seus interesses ideológicos, sob a máxima: Deus, Pátria, Família. 1– 2– 3– 4– 5– 6– 7– 8– 9– 10 – Escolas do bairro – Bairro das Pedreiras – Angústias Escola das Angústias – Rua Capelo Ivens - Angústias Escola da Portela – Rua da Portela - Feteira Escola do Farrobim – Farrobim do Sul – Feteira Escola da Feteira – Rua do Algar - Feteira Escola da Carreira – Bairro da Carreira – Castelo Branco Escola da Lombega – Bairro da Lombega – Castelo Branco Escola da Ribeira do Cabo – Estrada Regional, Ribeira do Cabo – Capelo Escola do Capelo– Rua da Igreja – Capelo Escola do Norte Pequeno – Estrada Regional – Capelo 8 11 – 12 – 13 – 14 – 15 – 16 – 17 – 18 – 19 – 20 – Escola da Praia do Norte – Estrada Regional – Praia do Norte Escola do Cascalho – Estrada Regional – Cedros Escola da Praça – Estrada Regional – Cedros Escola do Salão – Estrada Regional – Salão Escola dos Espalhafatos – Estrada Regional, Espalhafatos – Ribeirinha Escola da Ribeirinha – Rua da Igreja - Ribeirinha Escola de Pedro Miguel – Rua da Igreja – Pedro Miguel Escola da Volta – Rua Padre Júlio de Andrade – Conceição Escola dos Flamengos – Rua da Praça – Flamengos Escola da Matriz – Largo do Bispo - Matriz 9 Sendo as alfândegas instituições seculares, por elas passava o controlo dos impostos da entrada e da saída de produtos, fazendo reverter para o Estado o que lhe cabia como devido. Eram também elas as responsáveis pela autorização do que podia, ou não, em cada território ser comercializado. De certo modo reticentes quanto confrontadas com novidades, que constituíam um problema, visto não saberem se colocariam em causa, ou não, a saúde pública, a posições político-estratégicas do Estado, ou, simplesmente, se poderiam minar a viabilidade de produções nacionais. Das apreensões, efetuadas pela Alfândega da Horta, houve uma parte percentualmente significativa de brinquedos, a demonstrar uma propensão de defesa das crianças faialenses, talvez que, por vezes, excessiva, mas inequívoca no cuidado, no zelo e no apreço pela infância dos seus agentes. Eis alguns exemplos desses mesmos brinquedos que entre as suas paredes ficaram… Nas escavações arqueológicas realizadas, em 2021, no Castelo da Rocha Negra, nos Cedros, um dos mais emblemáticos monumentos da Horta, encontrou-se um carrinho de corrida, pese embora já não completo. Trata-se, através de um brinquedo, do testemunho de um dos últimos habitantes desse lugar: um menino. 10 O processo de reabilitação da Trinity Hose / Join Cable Station em núcleo dos cabos submarinos do Faial, progride. Será um polo do Museu da Horta que refletirá as existências e transformações vividas na ilha ao longo do século XIX até meados do século XX, uma Idade de Ouro complexa e intensa. Mesmo sendo coleção de brinquedos existente no Museu da Horta diminuta, é nossa intenção nele representar as diversas transformações, à época da visão infantil. Apelou-se à comunidade, a doação de brinquedos enquadráveis nesses 150 anos, de modo a conseguir ultrapassar as limitações impostas pelo atual acervo. Finda a exposição, vários dos brinquedos cedidos, foram doados pelos seus proprietários e integrados no espólio do Museu da Horta. Carla Devesa Rodrigues 11 MU SE U AZ U L NÚMERO 5 Coleção de Vergílio Schneider 1 5 de novembro de 2022 a 27 de fevereiro 2023 Museu da Horta Colégio dos Jesuítas Ficha Técnica Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretor: Tomás Melo -Subdiretores: José Luís Neto e Carla Dâmaso -- Diretor artístico: Luís Domanoski -- Design: Sónia Rosa -- Revisão: Carla Devesa Rodrigues -- Moradas: Largo Duque d'Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta | Monte da Guia, 9900-124 Horta -- Email: museu.horta.info@azores.gov.pt | geral@oma.pt -Periocidade: Mensal -- Impressão: Gráfica "O Telegrapho", Rua Conselheiro Medeiros, n.º 30, 9900144 Horta O Sagrado na encruzilhada entre o Ocidente e Oriente Por mares nunca dantes navegados, foi a Oriente, entre gente remota , que Portugal edificou, não um Novo Reino, mas um império. Assente no mar oceano, e disperso por uma vasta geografia, estendia-se, do lado da Ásia, do Cabo da Boa Esperança ao Golfo Pérsico, e do outro, do Japão chegava a Timor. Por dois séculos, a escolha para a sua capital, recaiu em São Francisco de Goa ou, simplesmente, Goa onde, um sistema de auto-governo, mantido por redes de vassalagem e protetorado, tinha por base as instituições políticas e as administrações locais. “Muitas vezes me espantei de como em tão poucos anos os portugueses têm podido levantar tantos e tão magníficos edifícios de igrejas, mosteiros, palácios, fortalezas e outros ao modo da Europa.” Viagem de Francisco Pyrard de Laval, 1 601 -1 61 1 . À semelhança dos demais subordinados à Coroa Portuguesa, também neste novo e imenso território, se declarava o catolicismo religião oficial e, consequentemente, através da missionação, o sonho da divulgação da Mensagem de Cristo ganhava forma, com a presença de evangelizadores, regulares e seculares: franciscanos, jesuítas, dominicanos, agostinhos e carmelitas descalços. “Porque os reis de Portugal sempre procuraram nesta conquista do Oriente unir tanto os dois poderes, espiritual e temporal, que em nenhum tempo se exercitasse hum sem o outro.” Diogo do Couto, Da Ásia , Década V, 1 61 2. 3 “Uma coisa lhe direi que folgarão de saber, acerca da devoção desta gente. Têm eles muito respeito e acatamento às imagens que folgam de as ter em suas casas para diante delas encomendarem suas almas a Deus. […]; em casa de outro estavam umas cinco cartas de jogar; postas tão bem na parede em cruz por oratório. Parece que se acham pela rua e, cuidando que eram santos, e que os perdera alguém, determinaram aproveitar-se deles.” Carta de Luís Fróis em Goa, aos Irmãos da Companhia de Jesus na Europa, 1 560. Pequenas páginas com imagens de santos, conhecidas como pagelas ou registos devocionais, transformadas em iconografia de combate e de propaganda , permitiriam, pela facilidade do seu transporte até tão longínquas paragens, a divulgação da mensagem cristã, sendo, ao mesmo tempo, influente fonte de inspiração na execução de artefactos – em madeira ou marfim – de cariz religioso, por crentes locais. “E porque não é conveniente que os oficiais gentios fundam, pintem ou lavrem (como até agora se lhes permitiu) imagens e figuras de Cristo Senhor nosso, nem de seus santos, para venderem mandamos que ponhais toda a diligência em o impedir, pondo penas, que, o que se provar que fez alguma imagem de sobreditas, perca sua fazenda, e lhe deem duzentos açoutes, porque sem dúvida parecerão muito mal imagens que representam mistérios tão santos andarem por mãos de idólatras gentios.” Carta de D. João III a D. João de Castro, 4.º vice-rei do Estado Português da índia, 1 546. Esta confluência quotidiana gerou uma expressão decorativa miscigenada, onde motivos ocidentais como cristianismo, história, mitologia e vivências dos europeus se combi- navam com temas pertencentes ao imaginário dos povos locais: as reli-giões, a mitologia, os costumes ou as representações da fauna e da flora, então desconhecidas na Europa. 4 Porque eternizava o fim da sua vida terrena, na crucificação, Cristo também podia surgir como , com a cabeça e as madeixas de cabelos descaídos à direita, os olhos e a boca cerrados e, por vezes, com mais do que uma chaga no torso. Moribundo Bem mais do que colocar Cristo, o Salvador, numa Cruz, exemplo máximo da sua Paixão, a sua representação dividiase em distintas simbologias como, por exemplo, a do : apresentado com a cabeça erguida, os olhos levantados para o Céu, os cabelos em madeixas de ambos os lados do pescoço e a boca entreaberta. Expirante 5 “Eu sou o Bom Pastor: conheço as minhas ovelhas e as Minhas ovelhas conhecem-Me. Assim como o Pai Me conhece, também Eu conheço o Pai e dou a Minha vida pelas Minhas ovelhas.” Evangelho segundo São João , 1 0: 1 4-1 5. Desde a segunda metade do século XVII que mininos pastoris ou Bons Pastores , eram produzidos na Índia e enviados para Portugal , ficando na posse de instituições ou de religiosos, bem seculares, como regulares e tam-bém na de particulares. Combinando a Parábola Joanina com a da Ovelha Perdida, numa evidente preferência de moralização, Cristo é figu-rado como um pastor que se sacrifica para defender o seu rebanho e passar, Ele mesmo, a ser cordeiro no caminho da Salvação; muitas vezes representado numa posição – sentado e apoiando uma perna sobre a outra – semelhante a algumas imagens de Buda. “O Senhor Deus fez desabrochar da terra toda a espécie de árvores agradáveis à vista e de saborosos frutos para comer; a árvore da vida, ao meio do jardim; e as árvores da ciência do bem e do mal.” Génesis , 2 : 9. As ramagens que, inúmeras vezes, acompanhavam o Bom Pastor, podem ser interpretadas como representações da Árvore de Jessé ou da Árvore da Vida , figurando naquela a genealogia de Jesus Cristo e nesta, a materialização do dogma da Santíssima Trindade: Padre Eterno, Espírito Santo e Cristo. Ao mesmo tempo, com as folhas perenes, a simbolizar a Morte e a Ressurreição, recordavam, numa perspetiva oriental, o tema da figueira ou da árvore do cinábrio, junto à qual Sidharta Gotama conhece o bodhi ou, despertar, recebe a iluminação e se torna Buda. 65 “E para a festa ser mais solene, em cada lugar onde se há-de dizer a doutrina armam um altar pequeno na rua, com imagens devotas e velas acesas.” Carta do Padre Leão Henriques ao Provincial Francisco Borgia, Vários e bem distintos foram os santos a que a elegância do marfim deu forma, num ciclo hagiológico de notável variedade: Santa Ana; Santo António de Lisboa ou de Pádua; São Francisco Xavier; São José ou São Sebastião, são apenas, desses muitos, exemplo. A par destes, sairiam das mãos dos gentios , a testemunhar o desejo da omnipresença da religiosidade cristã, um sem número de escul-turas, embora ausentes de atributos individualizantes reconhecíveis pelas vestes apropriadas à sua função: a de missionar e a de, no caso de bispos, apostolar. Uma tentativa de universalidade de fé simbolicamente sublinhada por Cristo, na figura de Salvador do Mundo, em que a mão direita replica o gesto de abençoar e a mão esquerda segura o globo so-berano cruciforme, a orbe terrestre. 7 1 5 66. A Mãe de Deus, a sempre Virgem, a Rainha a sempre Virgem, a Rainha de todos os Santos, a concebida Sem mácula, a Intercessora da Humanidade. Maria. Aquela sobre quem, dentro da religião católica, sob o manto da hiperdulia, a alta veneração , recaíram as mais variadas honras, devoções e cultos. Às representações mais comuns, como Nossa Senhora com o Menino Jesus, Pietá, Nossa Senhora do Rosário e, sobretudo, Nossa Senhora da Conceição, por vezes, com o Menino nos Braços, esta imaginária, outras interpretava: Nossa Senhora da Assunção, das Dores, dos Navegantes, dos Remédios ou do Pilar. “Fazem os irmãos devotos presépios e dos mais ricos sepulcros da Índia.” Sebastião Gonçalves, História da Companhia de Jesus no Oriente , 1 546-1 561 . Dos vários temas alusivos à Infância de Cristo, a representação da Sagrada Família e do Presépio foram os que mais proliferaram. Tendo este último, mais conhecido como Presépio da Adoração, origem no modelo quatrocentista, divulgado pela devoção franciscana onde o infante, desnudado e deitado nas palhas, era adorado por Nossa Senhora e São José, em pé ou de joelhos. Num território em que, pela sua vasteza e longura, a portabilidade de imagens e representações devocionais adquiria sobeja relevância, gravuras soltas serviram de modelo para a criação de placas em marfim, capazes de – com ou sem moldura – serem facilmente transportadas, pousadas e penduradas. Adquirindo tridimensionalidade, estas esculturas de relevo retratavam episódios bíblicos, como por exemplo, a Anunciação do Arcanjo Gabriel a Maria, Jesus com Maria e Santa Ana, a apresentação de Cristo no Templo ou a Pietá . Também nestas representações, o quotidiano do outro, que não o ocidental, se deixa entrever: nos trajes e nos panejamentos, na fácies dos indivíduos ou até na estilização angular de plantas e de nuvens. 8 Também sobre madeira – de teca ou de sissó, com toques de púrpura a variar entre o dourado e o castanho – ao tomar a forma de Virgens com o Menino ou de recetáculos de relíquias. Polícromas, com o auxílio dos orientais índigo e curcuma, podiam também, em particular, se se tratavam de santos de roca ou de vestir, destinados a conventos femininos, receber nas tidas zonas nobres, o rosto, as mãos e os pés, a alvura do marfim. “[…] se gasta em coisas muito polidas, que se fazem na terra, de cofres e pentes e outras muitas coisas.” Garcia da Orta, Colóquios dos Simples e Drogas da Índia , 1 563. As mãos que, com engenho, materializavam o sagrado, seriam as mesmas que, ao mesmo tempo de hostiários e castiçais, criariam caixas, cofres e contadores; é fá-lo-iam juntando ao marfim, o rendilhado da prata, o brilho da madrepérola e a semiopacidade da tartaruga. A Goa, desde o século XVI, confluiriam inúmeras mercadorias: incontáveis especiarias, exóticas madeiras, âmbar, ouro, prata, gemas preciosas, seda e porcelanas; e daí, partiriam as mesmas, com destino ao comércio de uma, cada vez mais, voraz e cobiçosa Europa. A este quase interminável rol, somavam-se as presas de elefante. Desde que, no Oriente, a presença de europeus se fez sentir, o marfim, pelo seu valor estético e material, foi uma constante nas suas encomendas de objetos profanos ou religiosos. Na Ásia, na ilha de Ceilão em particular, encontravam-se os mais doutrináveis e estimáveis destes animais; e em ambas as costas africanas se carregavam naus com os seus dentes. A defesa do elefante africano – por poder atingir os 90 quilos de peso, o comprimento de 2 a 3 metros e ser mais mole , logo, mais fácil de ser trabalhada – tornava-a mais apetecível face à asiática. O crescente tráfico de marfim, decorrente do aumento da procura, levou ao estabelecimento de rotas específicas, das quais duas se destacariam: a da Costa Suaíli à Índia Por-tuguesa e a de Goa, a ligar a Ásia a Moçambique, à Zambézia e a Sofala; podendo, o seu valor comercial-económico chegar a atingir, no Oriente, um preço seis vezes superior ao obtido nas praças africanas . Este incremento exponencial levou, não só à criação de regulamentação própria, como também se monopolizou na Coroa, passando, inclusive, a integrar a lista de produtos que, os portugueses transformaram na obrigatoriedade de tributo. Estima-se que, a sua exportação anual, entre os portos de Sofala e Moçambique e o Oriente tenha, no século XVI, atingido 35 toneladas e, no XVII, alcançado os 44 mil quilos . 10 Virgílio Schneider A partir da entrevista de Mariana Rovoredo para o Tribuna das Ilhas, 1 4 de abril de 2022 Colecionador de arte e antiguidades há mais de 30 anos, Virgílio Schneider tem uma diversificada coleção de objetos, testemunhos da expansão portuguesa no Oriente […]. Expôs pela primeira vez no Palácio de Belém, três sagradas famílias de Goa, e expõe regularmente no Museu de Angra do Heroísmo […]. Com grande interesse pela museologia e tendo já contactado com o Museu da Horta no sentido de criar uma nova dinâmica de exposições, o colecionador conta que surgiu esta oportunidade […] de partilhar com a comunidade esta sua coleção […]. Estas peças de arte constituem prova física do período em que Portugal mais impacto teve no mundo, o da expansão ultramarina […]. Virgílio conta-nos também a sua relação com a sua coleção e a arte em geral: “Eu sou o guardião destas peças. Tenho o privilégio de poder tomar conta delas. Sou efémero, mas a obra de arte ficará e outra pessoa tomará conta delas”. É este espírito e atitude de partilha que pretende promover entre a comunidade e a arte. Pode-se pagar para possuir temporariamente uma obra de arte, mas não se é, verdadeiramente, dono da arte. 11 Bilhete Postal Fotografia de José António Bettencourt MUSEU AZUL NÚMERO 6 Naves submersas Ficha Técnica Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretor: Tomás Melo -Subdiretores: José Luís Neto e Carla Dâmaso -- Diretor artístico: Luis Domanoski -- Design: Sónia Rosa -- Moradas: Largo Duque d'Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta | Monte da Guia, 9900-124 Horta -Email: museu.horta.info@azores.gov.pt | geral@oma.pt -- Periocidade : Mensal -- Impressão: Gráfica "O Telegrapho", Rua Conselheiro Medeiros, n.º 30, 9900-144 Horta A implementação de Centros de Conhecimento e Sensibilização do Património Cultural Subaquático dos Açores, a instalar em cada ilha com centros de mergulho, visa possibilitar ao público em geral, acessibilidade indireta a esse património cultural. O pioneiro do arquipélago, com toda a justiça, é o do Faial, sito na Casa da Guarda do Forte de São Sebastião, Porto Pim, Horta – Cidade Mar (provisoriamente no aBancarte), seguindo-se-lhe o do Pico, na Casa do Peixe, Madalena, criando nova ponte sobre o Canal. Atendendo à secular e simbólica ligação entre a terra e o mar, nas especiais circunstâncias do arquipélago dos Açores, que deu origem a uma cultura muito específica, pretende-se oferecer competências ao visitante, nestes centros interpretativos, a saber, sensibilizar para o sensível meio ambiente marinho; sensibilizar para o frágil património cultural subaquático nele existente; educar para a interação com esse património cultural; facultar a fruição indireta desse património cultural; e, a quem o deseje, incentivar a fruição direta, desse património cultural. No arquipélago dos Açores, a partir de meados do século XVII, a Horta tornou-se relevante porto de passagem, um papel que, como fundamental porto de escala na navegação atlântica à vela, mantém até hoje. Com cerca de 1.000 naufrágios documentalmente registados, uma centena de sítios arqueológicos já identificados e trinta e cinco sítios visitáveis, o património cultural subaquático dos Açores é um dos mais importantes de todo o mundo. Ao largo da ilha do Faial existem cerca de 100. O objetivo de estudar os naufrágios e antigos ancoradouros do arquipélago dos Açores, selecionando, a partir desse estudo, os que possam ser visitados por mergulhadores recreativos e pelo público em geral, tem sido, na Região Autónoma dos Açores, a ação fundamental no que ao património arqueológico diz respeito. A fruição pública desses testemunhos pode oferecer, por um lado, o conhecimento mais profundo da condição insular e, por outro, uma maior compreensão da história europeia, e ao mesmo tempo, sensibilizar o público para o valor, os perigos e a fragilidade com que esses recursos patrimoniais se confrontam, bem como do meio onde se encontram, o Mar Oceano, que urge proteger e salvaguardar. 3 Faial A nau da pimenta Nossa Senhora da Luz partiu como capitânia de uma armada que saiu de Goa em fevereiro de 1615. Soçobrou, em Porto Pim, ilha do Faial, a 7 de novembro. No naufrágio perderam-se mais de 150 vidas, e deram à costa muitos dos seus despojos, que aí foram recolhidos. O local foi descoberto em 1999 e, a partir de 2002, deu-se início a diversas campanhas de investigação e monotorização do sítio arqueológico. Em 2022 descobriu-se parte do casco dessa importante nau da Índia. Trata-se de um naufrágio importantíssimo para a arqueologia subaquática, tanto nacional, como universal, pois é um dos poucos preserva- dos exemplares sobreviventes existentes de naus da pimenta no mundo. Horta 1 ou naufrágio do marfim Faial Primeiro naufrágio identificado nas obras de construção e reabilitação do terminal de passageiros do porto da Horta, foi reconhecido pela car- ga de cerca de uma centena de presas de elefante, entre outros artefactos. Concluíu-se tra- tarem-se dos despojos de um navio inglês da primeira metade do século XVIII, da rota do tráfego africano, dedicado ao comércio de ouro, escravos e marfim. 4 Pico No contexto da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), ocorreu a deportação em massa dos Acadianos, entre 1755 e 1764. Os Acadianos eram os colonos francófonos e católicos da região costeira oriental do Canadá (Acádia), uma região em guerra, pela invasão das forças britânicas. Inicialmente os colonos foram levados para Sul, para as Treze Colónias Inglesas; os que conseguiram escapar a esta perseguição, estabeleceramse nas partes não colonizadas da Acádia, como a Ilha de Saint Jean. A segunda expulsão levou-os a serem deportados para França. É da ilha de Saint Jean, hoje Prince Edward, que, em 1758, partiu o Ruby capitaneado por William Kelly, numa esquadra de oito navios sobrelotados, que transportavam os deportados. Ao chegar aos Açores, já haviam perdido dois barcos numa tempestade, o Violet e o Duke William. A 16 de dezembro o Ruby, que já havia perdido 77 pessoas devido a doença, embateu num baixio na costa sul da ilha e afundou, morrendo 116 pessoas na tragédia. Os 143 sobreviventes, foram transferidos para um navio português, o Santa Catarina, e levados até Inglaterra, passando pouco depois a França. Pico Tendo iniciado a sua última viagem a 1 de janeiro de 1796, em Guadalupe, nas Antilhas Francesas, trazendo carregamento de açúcar e café destinados a França, a fragata L’Astrée trazia 180 marinheiros, passageiros e soldados, para além de 18 peças de artilharia. Apanhando uma tempestade no Atlântico, a embarcação começou a meter água, sendo que quando chegaram ao largo da ilha, já havia vários dias e noites em que as cinco bombas existentes no navio trabalhavam sem interrupção, já sem dar vazão à agua que não cessava de subir nos porões. A situação aflitiva, aliada à exaustão e ao terror, levaram a uma última manobra desesperada, num mar tormentoso. Atirar o navio às rochas foi a solução encontrada e fizeram-no no sítio de Santo Amaro. 123 pereceram, 57 foram os sobreviventes, sete deles prisioneiros de guerra ingleses. 5 Horta 3, de naufrágio, descoberto no acompanhamento arqueológico das obras do porto da Horta, reconhecível pelo considerável número de peças de artilharia. Pelo estudo Faial Sítio das bocas de fogo, foi possível concluir tratar-se de uma embarcação afundada, de origem britânica, cronologicamente enquadrável no final do século XVIII ou começo do XIX. Pico A 14 de janeiro de 1856, William Dabney avistou, pela janela do escritório comercial da família, na cidade da Horta, ilha do Faial, uma embarcação desmastreada que dobrava o monte da Guia, entre um cerrado nevoeiro. Tratava-se do Ravenswood, embarcação americana que acabou por encalhar, e posteriormente afundar, no lugar de Cais do Mourato, na Madalena. Pelos relatos de época, naufragou pela incompetência do seu capitão, embriagado ou entorpecido pelo consumo de láudano, receitado pelos médicos de então. Era uma embarcação de comércio transatlântico, transportando bens de luxo, da Europa para os Estados Unidos da América. A sua última viagem, que acabou por terminar nos Açores, tinha como destino final o seu porto de origem, em Nova Iorque, tendo partido de Le Havre, dias antes. Carregava uma quantidade considerável de espumantes e vinhos franceses. Através do achado fortuito de Michael da Rosa, em 2017, foi possível reconhecer o local e recuperar, pelas técnicas de conservação e restauro, um conjunto de quase mil peças. 6 Horta 6, Faial Atendendo à presença de elementos de forro com fixação feita com cavilhas em liga de cobre, cronologicamente, este naufrágio corresponderá a uma embarcação do século XIX, ou começo do XX. Na sequência das análises laboratoriais efetuadas em amostras de madeira exumadas durante os trabalhos de campo, identificou-se a presença de dois tipos distintos, de origem americana. Conjugando os dados apresentados tratar-se-ia de um barco associado à história da baleação americana. Faial Vapor construído em 1868 pela Caird & Company Greenock, com 1805 toneladas, 101.2 de comprimento e 12.2 m de boca. Entrou no porto da Horta a 23 de novembro de 1892, com um incêndio a bordo, quando navegava entre Nova Orleães, nos Estados Unidos, e Liverpool, em Inglaterra. No dia seguinte foi encalhado no Porto Pim, onde se encontra. É naufrágio visitável. Trata-se do mais acessível naufrágio visitável da Horta. 7 Pico Trata-se de um veleiro construído nos estaleiros de La Loire, em Nantes, em 1895, naufragado ao largo da vila da Madalena a 3 de setembro de 1901. A carga consistia em salitre potássico, fertilizante natural destinado aos já então cansados solos europeus, popularmente denominado Nitrato do Chile. A importância histórica, arqueológica e documental deste naufrágio é de tal forma relevante que foi classificado como terceiro parque arqueológico da Região Autónoma dos Açores. É naufrágio visitável. Pico Vapor americano de 3200 toneladas e 39 tripulantes, naufragado a 27 de dezembro de 1920, ao largo da Costa da Terra do Pão, no Pico. Erigido no estaleiro nº 83 a partir de 20 de junho de 1919, a quilha do casco EFC 817 foi colocada no dia 26 do mesmo mês. Originalmen- te destinado a chamar-se Kahnah, o vapor acabou por assumir o nome de Lakeside Bridge, sendo lançado à água a 31 de outubro de 1919. Entregue à Shipping Board a 22 de dezembro de 1919, o Lakeside Bridge - que arqueava 3.545 toneladas brutas foi atribuído à rota de comércio Estados Unidos-França, sob pavilhão do armador Alexander Sprunt & Son. É naufrágio visitável. 8 Vapor de Entre-os-Montes, Faial Deste naufrágio é possível observar as pontas de popa e proa de um vapor, de pequenas dimensões (cerca de 25 metros de comprimento) que repousa num fundo de areia, que cobriu a embarcação. A embarcação de ferro, rebitada, é enquadrável cronologicamente de entre finais do século XIX aos primeiros anos do século XX. É naufrágio visitável. Trata-se de um naufrágio particularmente acessível. Cabos Submarinos de Entre-os-Montes, Faial É possível observar diversos fragmentos de cabos submarinos, que penetram pelos sulcos entre as pedras, sendo visíveis numerosas pontas. Metros e metros, de cabos subma- rinos, quase tão grossos como mastros, datáveis dos anos 20 do século XX, ainda ali repousam, numa paisagem fantasmagórica e arrebatadoramente bela, onde a vida pulula, habitat que agora é de miríades de peixes, que ali se resguardam dos predadores. É património cultural subaquático visitável. Trata-se de um sítio particularmente acessível. Pico No auge da 2ª Guerra Mundial, durante a Batalha do Atlântico, um submarino alemão de 67 metros foi afundado ao largo do Faial pelo contratorpedeiro inglês Her Majesty Ship Westcott. Este episódio é paradigmático da importância geoestratégica dos Açores durante a Guerra, tanto como base de apoio aos comboios navais dos Aliados, como de refúgio destes às “alcateias” de U-Boats alemães, ambos desrespeitando a apregoada neutralidade portuguesa. É neste contexto que o U-581, perseguindo um navio mercante refu- giado na Horta, foi atacado na noite de 2 de fevereiro de 1942 pelo contratorpedeiro, que após esquivar-se de um torpedo lançado do submarino, atinge-o com duas cargas de profundidade, incapacitando-o fatalmente. Quatro dos tripulantes do U-Boat perderam a vida, sendo os restantes capturados quando o abandonam. Atualmente partido em duas partes, o submarino repousa a cerca de 900 metros de profundidade ao sul do Pico. 9 Núcleo dos canhões, Faial Constituído no âmbito do acompanhamento arqueológico do porto da Horta, é uma reserva museológica subma- rina, constituída por peças de grandes dimensões encontradas, designadamente por numerosas peças de artilharia, que datam entre os séculos XVIII e XIX, resultantes dos vários navios detetados e escavados durante as obras, situado na baía de Entre-os-Montes, a uma profundidade de 18 metros. É património cultural subaquático visitável. pertença da "Sociedade de Pescas de Aveiro", que amarrou no Porto da Horta em abril de 1994, tendo sofrido um incêndio que o inutilizou, foi afundado no dia 21 de novembro. Trata-se de um dos últimos exemplares da secular saga da pesca ao bacalhau, que marcou profundamente a história portuguesa e do qual o prato típico local, bacalhau com minhotes, é deliciosa testemunha dessa narrativa. É afundamento visitável, de notável integridade, mas somente acessível a mergulhadores experientes. Faial Bacalhoeiro 10 Pontão 16, Faial Navio que teve o seu fim de vida e, em sequência disso e por não haver melhor destino, foi afundado ao largo da Praia do Almoxarife. De seu nome original “Pontoon 16”, apesar da sua aparente juventude e da ausência de registos sobre a sua construção, constitui uma peça com alguma relevância histórica pois auxiliou na construção do Porto da Madalena nos anos 80 do século XX. O navio era propriedade da empresa Tecnovia Açores que o decidiu afundar por já não possuir condições de navegabilidade. É afundamento visitável, de notável integridade. Âncoras e farol das Ribeiras, Com uma âncora com cerca de 4,5 metros, datável dos séculos XVII a XVIII e uma segunda, de tamanho mais reduzido, com 2 metros de comprimento, datável do século XIX, junta-se-lhes a presença de uma estrutura submersa. Trata-se de um farolim a petróleo, construído em 1985, submergido dois anos depois, após uma violenta tempestade no porto de Santa Cruz das Ribeiras. A estrutura encontra-se em bom estado, com integridade. É património cultural subaquático visitável. alexandre Monteiro José António Bettencourt José Luís Neto luís borges pedro parreira Fotografia de Catarina Fazenda Pico 11 MUSEU AZUL NÚMERO 7 A Ilha Misteriosa Ficha Técnica Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretor: Tomás Melo -Subdiretores: José Luís Neto e Carla Dâmaso -- Diretor artístico: Luis Domanoski -- Design: Sónia Rosa -- Moradas: Largo Duque d'Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta | Monte da Guia, 9900-124 Horta -Email: museu.horta.info@azores.gov.pt | geral@oma.pt -- Periocidade : Mensal -- Impressão: Gráfica "O Telegrapho", Rua Conselheiro Medeiros, n.º 30, 9900-144 Horta da Horta, u e s u M o d r o ireto papel pioneir m u O primeiro d e v e t , a úlio da Ros xistentes na e is a r u t l u Monsenhor J c s e rda dos ben é conhecido r o b na salvagua a l u e s l. O , tanto na e d ilha do Faia a id n u m o c . pela isa histórica u q reconhecido s e p a n o Júlio da deste, com salvaguarda é menos conhecido é que e ue ea d Contudo, o q endeu desenvolver a ár -lo com a iá ic in Rosa pret ia r e s jo de e o seu dese ia g o r na ermida l a o e iz u l q a e r ar u e d , ue preten enta é, pois s e r p a e s escavação q a r neiro e ra. O que o Santa Bárba ela homenagem a este pio al do g ur mais uma sin fesa do património cult de precursor da Faial. Muitos anos depois, iniciado a 9 de abril de 2022, na sala polivalente da Casa Manuel de Arriaga, começou o Curso-livre de arqueologia, novidade nos Açores, organizado pelo Museu da Horta e pelo Centro do Património Móvel, Imaterial e Arqueológico da Direção Regional da Cultura. Este curso apresentou uma vertente teórica e contemplou uma parte de formação prática. No âmbito teórico foi dividido em doze sessões, que ocorreram semanalmente, aos sábados, com a duração de 120 minutos cada. Para tal, para além do formador principal, o quarto diretor do Museu da Horta, contou com a colaboração de profissionais de renome regional, nacional e internacional, a saber, Jacinta Bugalhão, Pedro Parreira, João Gonçalves Araújo, N’Zinga Oliveira, Paulo Alexandre Monteiro, José António Bettencourt, João Pedro Vieira, Tânia Manuel Casimiro e João Luís Sequeira, totalizando 24 horas teóricas. A parte prática, intensa também, foi lecionada por Luís Borges. Os objetivos da formação visaram dotar os formandos dos conhecimentos básicos da disciplina, bem como fornecer instrumentos que permitam, de forma semiautónoma, a realização de descobertas arqueológicas relevantes no território da ilha do Faial, de modo a que pudessem servir para criar novos sítios arqueológicos a alocar no inventário oficial – a Carta Arqueológica dos Açores. Contudo, a questão pertinente é, que arqueologia terrestre existe no Faial? 3 spontar tudo o A semente que fez de logia no que existe na arqueo o, remonta há arquipélago açorian foi plantada cerca de um século e em todas as ilhas. A semente que fez despontar tudo o que existe na arqueologia no arquipélago açoriano, remonta há cerca de um século e foi plantada em todas as ilhas. Em 1924 deu-se a denominada “Visita dos Intelectuais” aos Açores. A 24 de março desse ano a comitiva zarpou de Lisboa, permanecendo até finais de junho, com o objetivo de fazer ver ao todo nacional o quão precioso era o arquipélago. Nessa comitiva de jornalistas, escritores, artistas e intelectuais, a figura maior era então José Leite de Vasconcelos, o fundador e diretor do Museu Nacional de Arqueologia, fundador da Biblioteca Nacional, criador da Faculdade de Letras de Lisboa e figura de indiscutível e superior golpe de asa. Sobre esta viagem, escreveu um livro que se tornou célebre, integrando os arquipélagos na sua vastíssima obra erudita, denominado “Mês de Sonho”. Contudo, quando queremos tocar o outro, irremissivelmente, seremos tocados por ele também. E Leite de Vasconcelos, nessa viagem, tocou, influenciou e motivou muitos dos jovens que, mais tarde, viriam a criar as condições estruturais para que a arqueologia, por cá, germinasse. O episódio criou raízes e medrou nas ilhas Terceira e de São Miguel, cuja arqueologia remonta aos finais da década de 50, década de 60 do século XX. Porém, no Faial, a primeira ação é muitíssimo mais tardia. Corria o ano de 1998 e arqueólogos, nacionais e estrangeiros, vieram para o Faial desenvolver a primeira campanha arqueológica subaquática de que há memória, mas, como se sabe, no dia 9 de julho, um violento sismo de magnitude 5,8 na escala de Richter, atingiu e soçobrou a ilha. Pese embora alguns bons resultados dessa campanha, o Faial tinha muitíssimo mais em que pensar e a intervenção, compreensivelmente, passou ao lado dos interesses da opinião pública de então. Imagem: Membros que integraram a missão de estudo aos Açores, em Maio de 1924. MNA. Arquivo pessoal JLV. Cx. Relatos de viagens ©DGPC/MNA 4 Cinco anos volvidos, o Forte de Santa Cruz, único Monu mento Nacional do arquipélago, viu um arqueólogo ali acorrer, no ano de 2003. Cinco anos depois, foi enviado, a 2 de janeiro, um pedido de autorização para trabalhos arqueológicos referentes ao empreendimento turístico dos Flamengos, por parte do aqueólogo Pedro Ventura, contratado pela empresa VerdeGolf, Campos dos Açores, S.A., a propósito da pretensão da criação de um lote de moradias T1 e T0 de uso turístico. Do trabalho realizado, tanto em prospeção sistemática no terreno, como em pesquisa documental, nada de relevante foi então encontrado. Porém, nesse mesmo ano de 2008, tiveram início os trabalhos de acompanhamento arqueológico subaquático das obras de construção do terminal de passageiros, que duraram até 2012, o que permitiu que a equipa coordenada por José António Bettencourt tenha replantado a semente novamente no território. Foi verdadeiramente neste caso, de longa duração de permanência dos arqueólogos, que o Faial despertou para esta área da arqueologia. A entidade reguladora das Pousadas modernizava a estalagem, com um aumento da área do seu edifício, instalação de uma piscina e acrescentou de um novo andar. Os trabalhos englobavam o revolvimento de terras por maquinaria pesada, assim como a expansão em altura da edificação. Através de uma informação feita à Direção Regional da Cultura, a arqueóloga Ana Catarina Garcia deslocou-se ao local, com vista a avaliar o risco de destruição de algum valor patrimonial. Chegada ao local, constatou que as remoções do subsolo já iam com quase um metro de profundidade, cota na qual já não surgiam vestígios de ocupação humana. O edifício permanece em funcionamento como Pousada, com a muralha circundante, e alguns dos elementos arquitetónicos antigos preservados, articulando a sua estética com o conceito de um turismo histórico-culturalista. Nessa altura estava já José António Bettencourt a investigar o naufrágio da nau da Índia Nossa Senhora da Luz, em Porto Pim. 5 cinco em E nesta estranha sequência, de -se o deu 7 cinco anos galgados, em 201 à que mais relevante acontecimento no o na arqueologia terrestre diz respeit ilha randos vestígios da primitiva matriz, teve eco na opinião pública e estavam criadas as condições para que a defesa do património cultural alcandorasse a cuidado cimeiro. Evidentemente falamos do caso da antiga Igreja do Santíssimo ito do Salvador e da Torre do Relógio. A Igualmente no ano de 2017, no âmb te de Fren da primeira igreja paroquial da Horta, Projeto de Requal ficação ea u-s lizo implantada nesse pequeno morro, Mar da Cidade da Horta, rea data do final do século XV/início primeira escavação arqueológica do século XVI. Em 1825 foi defini- terrestre, no adro da igreja de Nossa tivamente abandonada, sendo Senhora das Angústias. transferida para a devoluta Igreja Os trabalhos tiveram início a 14 de de N. S. dos Prazeres, do antigo março, tendo sido concluídos a 8 de Colégio de S. Francisco Xavier. Com julho. Foram realizadas cinco sonesta transferência, as imagens e al- dagens arqueológicas e procedeufaias foram levadas para a nova se ao acompanhamento de uma igreja. Após, a igreja foi demolida, pequena intervenção no subsolo ficando apenas a Torre do Relógio, do adro. Foram encontrados vestíem 1842. gios estruturais dos antigos temO espaço, desde então, albergou a plos, tanto da ermida inicial, como feira do gado, tendas e barracas da igreja paroquial do século XVII. em madeira feitas para os sinis- Detetaram-se, igualmente, numerotrados da crise sísmica de 1926, de sos enterramentos desde o final do carácter provisório e sem grande século XV, até, pelo menos, à déintervenção no espaço, e funcionou cada de 30 do século XIX, para como espaço público ajardinado, além de variado espólio móvel, anexo ao jardim Florêncio Terra, que está à guarda do Museu da com o qual se confronta na frente Horta. N'Zinga Oliveira, João Gonoeste. Uma pequena intervenção çalves Araújo, Marla Silva, foram no local durante a década de 1960 os seus obreiros. provocou um abatimento de parte do chão, deixando visível uma Igualmente no âmbito do Projeto estrutura no subsolo, provavel- de Requalificação da Frente de mente uma cripta da igreja desa- Mar da Cidade da Horta, realizouparecida. O sismo de 9 de julho de se, poucos anos depois, o acompa1998 causou alguns danos estru- nhamento das obras diante do turais na torre. Em 2017 ali foi Forte de Santa Cruz e envolvente, instalado um jardim infantil e sendo que não foram detetadas concluiu-se a construção de um estruturas antigas, pois que a zona ringue desportivo. Porém, a contes- já havia sido alvo de revolvimentos tação à obra realizada, assumindo intensos, muitos deles até relatia defesa e valorização dos vene- vamente recentes. 6 Foi realizada, entre os dias 15 abril e 14 de maio de 2021, uma cam panha de sondagens arqueo-lógicas num imóvel sito no Largo do Bispo Dom Alexandre, com vista à instala ção de um hotel de charme. Foram realizadas sete sondagens. Nestas foi possível analisar que era área a que o mar chegava até finais do século XVI/inícios do XVII e que, mercê da construção da muralha marítima, se transformou gradualmente num paul, paul esse que as populações circunvizinhas utilizaram como lixeira. Cerca de 1880 iniciou-se a construção do edificado, cuja fachada se mantém. Numerosas moedas correntes, deixadas no piso da entrada, datam a construção do imóvel de 1880 a 1883. O edifício estava em funcionamento antes de 1 de janeiro de 1882, mas não ainda concluído, sendo pertença do reitor Severino Avelar, que ali acolheu o Liceu da Horta entre essa data e 31 de agosto de 1926. Após o sismo, o imóvel foi alvo de intervenção, com colocação de novo piso de seixo no andar térreo, sobreposto ao anterior, com numerosos numismas coerentes entre si, a datar esse momento, que os pedreiros quiseram deixar bem documentado no terreno, sendo que estas moedas e outro variado espólio móvel, estão à guarda do Museu da Horta. Esta intervenção foi obrada por Cláudia Pereira e José Luís Neto. 7 de junho de Entre os dias 14 e 25 a campanha 2021 foi realizada um elo da de sondagens no Cast s Cedros. Rocha Negra, sito no Foram realizadas três sondagens com vista à deteção das valas de fundação que permitissem datar o período de construção do imóvel, cuja cronologia era tida por incerta. Com base numa fração pequena intervencionada, os indícios, coerentes entre si, apontam que o imóvel terá sido o primeiro edifício no local, datando a sua construção do século XIX, provavelmente de entre as décadas de 1840 e 1870. Não se pode concluir, no entanto, que os elementos pétreos trabalhados, caso dos cunhais, sejam, por isso, contemporâneos da edificação. Estes elementos arquitetónicos, até melhor prova, parecem ser enquadráveis entre as centúrias de seiscentos e setecentos, o que significará que podem corresponder a reaproveitamentos de um edifício de caráter monumental que, entretanto, terá caído em desuso, anterior um par de séculos, e que, em meados do século XIX, aqui foram reutilizados, enobrecendo e singularizando o imóvel de tal modo, que se converteu em “Castelo da Rocha Negra”. O espólio móvel está à guarda do Museu da Horta. Esta intervenção foi obrada por Luís Borges e José Luís Neto. 8 Entre 10 de janeiro e 18 de março de 2022, no âmbito do projeto vencedor da primeira edição do Orçamento Participativo da ilha do Faial, de 2016, foi realizado o acompanhamento arqueológico das obras do Passeio Pedonal de Porto Pim, sendo que não foram detetadas estruturas antigas. Esta intervenção foi obrada por José António Bettencourt e Beatriz Toste. Entre os dias 19 e 28 de julho de 2022 foi realizada uma sond agem na nave da Ermida de Santa Bárb ara. Nesta foi possível comprovar que a ermida teve a sua génese no final do século XV/ início do XVI. Um século depois foi alvo de intervenção de reestruturação, tendo-se o mesmo passado novamente cerca de cem anos depois. Em 1814-1818 teve obras e o mesmo pelos meados do século. Sofreu nova intervenção na década de 60 do século XX e uma última após o sismo de 1998. Ou seja, apesar de muitíssimo transformada pelas diversas campanhas ao longo dos séculos, a base continua a ser a ermida mandada edificar por Pero Pasteleiro e sua mulher, um dos primeiros ilustres povoadores conhcidos do Faial, que veio com o primeiro capitão-do-donatário para a ilha. O espólio móvel está à guarda do Museu da Horta. Esta intervenção foi obrada por Luís Borges, José Luís Neto e Tiago Simões da Silva. 9 O objetivo da intervenção, que consistiu na abertura de sondagens na área do edifício principal, era indagar a possibilidade de preexistências arquitetónicas nessa área, uma vez que aquele lote havia sido adquirido aos padres da Companhia de Jesus e se apontava ali ter existido uma sua casa de veraneio. Sabendo que foi intervencionada uma parte pouco significativa do total da área do corpo principal edificado da Casa do Pilar, constatou-se que não foram encontradas quaisquer preexistências arquitetónicas nas áreas intervencionadas, sendo inclusive de salientar que, pelas caraterísticas geológicas detetadas, se revela pouco provável que seja no edifício principal que se possa encontrar vestígios dessa hipotética preexistência. O espólio móvel está à guarda do Museu da Horta. Esta intervenção foi obrada por Luís Borges e José Luís Neto. de 2022, no Desde 18 de outubro âmbito do Projeto de nte de Mar da Requalificação da Fre rre o Cidade da Horta, deco ralha mu acompanhamento da segmento ao marítima da Horta, no eiro Miguel da longo da Rua Conselh grosso modo, Silveira, que consiste, antiga Rua do a um antigo troço da muralha e o Mar, situada entre a muralha e praia casario, bem como a de cerca de adjacentes, numa área 375 metros lineares. A muralha da Horta situava-se, aproximadamente, entre o Monte Queimado (a sul) e o Tribunal (a norte), numa linha sinuosa de mais de 2 quilómetros, pelo que estamos perante um segmento dessa antiga estrutura. O início da fortificação da Horta data de 1567, retomando-se em 1572, através do financiamento proveniente da taxação de produtos essenciais, casos do vinho, do azeite, da carne e do sal. O processo foi feito de avanços e recuos, sendo retomado nas primeiras décadas de seiscentos e, desde então, alvo de remodelações frequentes. O segmento de muralha, por decisão da autarquia, será musealizado. 10 Imagem: Projecto Frente Mar http://extrastudio.pt/pt/Projects/0fc9fa087 Entre os dias 16 e 26 de agosto de 2022 foram realizada s duas sondagens na Casa do Pilar. Para além da Associação do Turismo Sustentável do Faial e a Horta Histórica terem dado evidente relevância e destaque à arqueologia, nas edições de 2021 e 2022 de “Faial: Descobrir a História, pensar o Futuro” e para lá do Museu da Horta e da Biblioteca Pública e Arquivo Re-gional João José da Graça terem acolhido o “II Seminário Biodiversidade e o Património Cultural Subaquático”, que juntou arqueólogos subaquáticos, biólogos marinhos e museólogos das Canárias, Açores, Madeira, Cabo Verde e Senegal, em outubro de 2022; a 2 de junho de 2023, 99 anos volvidos da vinda de José Leite de Vasconcelos à Horta, atracou António Manuel Gonçalves de Carvalho, atual diretor do Museu Nacional de Arqueologia, o sexto diretor após o fundador, para, perante uma plateia bem composta, na Casa Manuel de Arriaga, no âmbito das “Tertúlias do Arriaga”, nos recordar como começou esta longa viagem de um século, em que ao invés de se destruir o antigo, se começou a caminhar para a salvaguarda e valorização do património cultural, para que se honrem os antepassados, não se perca a memória coletiva – que é o ligante de uma comunidade – e para que pudéssemos até ver fotografias de Manuel de Arriaga, no cargo de Presidente da República, em visita ao Museu Nacional de Arqueologia, testemunhar e destacar, nessa ocasião, o papel formativo e educativo dos museus e da arqueologia na sociedade. Ideias poderosas, defendidas pelo mais ilustre faialense, até hoje. José António Betten court José Luís Neto Luís Borges Pedro Parreira Tiago Simões da Silv a 11 Imagem: «O Presidente da República e o dr. Leite de Vasconcellos» publicada a ilustrar a notícia do jornal A Lucta de 24 de Janeiro de 1912 MNA. Arquivo pessoal JLV. Cx. História do Museu ©DGPC/MNA MUSEU AZUL NÚMERO 8 Ficha Técnica Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretor: Tomás Melo -Subdiretores: José Luís Neto e Carla Dâmaso -- Diretor artístico: Luis Domanoski -- Design: Sónia Rosa -- Revisão: Carla Devesa Rodrigues -- Moradas: Largo Duque d'Ávila e Bolama, s/n, 9900141 Horta | Monte da Guia, 9900-124 Horta -- Email: museu.horta.info@azores.gov.pt | geral@oma.pt -- Periocidade: Mensal -- Impressão: Gráfica "O Telegrapho", Rua Conselheiro Medeiros, n.º 30, 9900-144 Horta porque sujeitos à expansão europeia, vindos de diferentes latitudes, com o tempo, juntaram-se. Porém, a história não ficou por aí…. Pouco tempo depois, as costas açorianas começaram a ser atingidas por piratas que, antes de chegarem à Europa, viram aqui uma oportunidade única de se apoderarem dos tesouros das frotas que vinham de muito longe. Entre eles, destacaram-se os magrebinos, que faziam ataques pontuais para capturar pessoas, levandoas e vendendo-as como escravos, os chamados “cativos”. Dentre os que tal sorte sofreram, cerca de quinhentos foram “resgatados”, ou seja, foram trazidos de volta, entre os séculos XVI e XIX. Quando estas capturas terminaram, a coincidir com o início do processo que levou ao fim da escravatura no Brasil, entre 1850 e 1888, viveu-se o período da escravatura clandestina. Muitos açorianos que emigraram para o Brasil encontraram-se capturados em redes ilegais de tráfico humano, que persistiram até ao final do século, ficando assim conhecido como o período da “escravatura branca”. A todos esses seres humanos, da história olvidados, prestamos homenagem emprestando-lhes a voz. Situado no meio das rotas atlânticas, os Açores correspondem a um arquipélago inicialmente desprovido de seres humanos. A região importou a integridade dos seus recursos e, estes, ao longo das diversas épocas de ocupação, vieram das mais distintas proveniências possíveis e disponíveis. Para lá de portugueses e ibéricos, outros europeus, vindos de mais a norte, contribuíram mensuravelmente para a ocupação das ilhas, sendo que todos eles se encontram bem documentados, sobretudo no que às elites respeita. No entanto, outros houve, daquela outra história, menos falados e que ainda constituem silêncio. A história dos que, desprovidos de vontade, vieram ocupar as ilhas é outra. A somar aos donatários – gente a quem a Coroa portuguesa concedeu um pedaço substancial de terra para administrar – e respetivos súbditos, norte-africanos, africanos subsaarianos e canarinos contribuíram para a colonização dos Açores. Estes, Os Açores são um arquipélago situado no Atlântico Norte, formado por nove ilhas e alguns ilhéus, de constituição vulcânica, ocupando 2333 km2. As ilhas encontram-se distribuídas aproximadamente num eixo NO-SE, dispostas em três grupos definidos por proximidade: sendo o grupo ocidental constituído por Flores e Corvo, o central pela Terceira, Graciosa, São Jorge, Faial e Pico e o oriental constituído por São Miguel e Santa Maria. Tratam-se de ilhas com um clima de tipo sub-tropical atlântico e temperado húmido. Nove territórios insulares, com uma sociedade predominantemente agrária, cuja navegação entre ilhas e com o exterior se realizava predominantemente no verão. 3 O legado cultural dos escravos africanos, fossem magrebinos, canarinos ou subsaarianos, perpetuou-se no arquipélago. São comuns os topónimos “preto” ou “negro” em diversos lugares das ilhas. O consumo do couscous, que se perpetuou na ilha de Santa Maria, foi semelhante em toda a região até meados do século XVIII, aquando da introdução do arroz. Esse manjar magrebino galgou o Atlântico e foi levado pelos casais brasileiros para o Sul do Brasil, onde ainda hoje é consumido. A sua presença marcou profundamente o genoma açoriano, cujos estudos apontam para 81,3% de genomas europeus, 7,5% de genomas do Próximo Oriente e 11,3% de genomas oriundos da África subsaariana. Tanque do Negro no Jardim Duque da Terceira Fotografia: João Melo A presença de escravos resulta evidente da génese do povoamento, decorrente do próprio processo de assenhoreamento das terras descobertas e inabitadas, com recurso à mão-de-obra escrava para viabilizar o aproveitamento económico das mesmas, num país de pequena dimensão como o é Portugal, que não dispunha de contingentes populacionais suficientes para se distribuir pelo vasto império que construía, pelo que, desde cedo, teve de encontrar estratégias alternativas para tornar mais ou menos efetiva essa ocupação. Embora não sistemáticos, os números apontam para que 1% da população de São Miguel fosse de escravos e que, entre 1583 e 1699, os escravos correspondessem entre 2,8 e 6,2% da população de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira. 4 Para a ilha Terceira, quinhentista, teve 51,55% dos escravos provenientes do Golfo da Guiné, 11,34% eram mouriscos e 35% de diversas etnias, onde já estavam, naturalmente, os mulatos, fruto de uma miscigenação bem cedo começada, o que terá valido ao pároco de Rabo de Peixe, na ilha de São Miguel, o apodo de “pai dos mulatos”. No que respeita às atividades que os mesmos praticavam, abundam os serviços domésticos, os agrícolas, pequeno comércio e a marinharia. Quanto aos seus proprietários, vemos eclesiásticos e aristocratas a perfazem 70% dos existentes, aos quais se juntarmos os mercadores, chegamos a quase 90% de todos os escravos com registo. Como fica claro, seria preciso ser abastado para os possuir. Nem sempre os senhores utilizavam os seus escravos em atividades lícitas, pois que Gaspar Frutuoso, por vezes narra casos onde demonstra que os mesmos podiam ajudar a constituir pequenos exércitos privados dos “grandes” da terra, caso que também era recorrente quer em Cabo Verde, quer em São Tomé. Não se tratariam de verdadeiros exércitos privados de escravos, forros e vadios ao serviço dos grandes latifundiários como nos aludidos arquipélagos, mas suficientemente expressivos para salientar o princípio da autoridade dos capitães-donatários e demais senhores do meio atlântico. Mas também existem numerosos registos de casos de abuso e violência, desconfiança e desumanidade. Não será de espantar, portanto, as fugas. A 22 de outubro de 1522, Vila Franca do Campo, na ilha de São Miguel, foi destruída por um sismo violento, que terá alegadamente ceifado 5000 vidas e com elas a Casa do Capitão-Donatário da ilha. Em simultâneo Ponta Delgada foi assolada por um surto de peste. Com este cenário, entende-se que tenha havido desestruturação da ordem social vigente, a qual, em si mesma, derivada da distância e de múltiplos fatores associados ao seu povoamento e que aqui não cabem tratar, seria muito menos vigiada que a metropolitana. O resto não será, então, difícil de calcular: eclodiu a Revolta de Escravos liderada por Badaíl, que incendiou a ilha de São Miguel – muito semelhante, nas suas ações, à de Amador em São Tomé, de 1517 –, ou aos “levantados” de Cabo Verde. Acabou a revolta com a decapitação do mouro e exposição pública do corpo. 5 Tábua curvada do navio negreiro "Mont Ferran" cerca de 1864 Coleção privada Orlando Noronha Outras formas de resistência cultural foram praticadas. Muitas foram as denúncias de práticas desviantes da norma social vigente que, de praticamente todo o arquipélago, entre quinhentos e oitocentos, deram entrada no Tribunal da Inquisição. Os negros e mulatos foram com frequência denunciados, sendo que talvez a mais notável das queixas seja a de Sebastião feiticeiro, mulato forro, de 20 anos, morador na ilha Graciosa, que entrou nos cárceres de Lisboa, em 1691, instigador do sabbat silvestre alegadamente ocorrido na ilha – em quase tudo semelhante a uma cerimónia de candomblé; para lá das práticas de sangue evocadoras das divindades e os contatos físicos com um succubus e um incubus. Tais liberalidades de costumes valeram-lhe prisão, abjuração e três anos de degredo em Castro Marim, no Algarve. O Corvo foi ocupado por uma maioria esmagadora de população escrava negra, produtora de mantas de pássaros que caçavam, onde apenas havia um ou dois casais de rendeiros brancos a fazer-lhes companhia, seguindo o modelo de ocupação das “ilhas-montado” praticado no arquipélago de Cabo Verde. Não será de espantar, pois que os donatários de Cabo Verde fossem os mesmos das ilhas ocidentais dos Açores, Flores e Corvo. Lá moravam 30 vizinhos, conforme narra Gaspar Frutuoso, vivendo em comunidade em torno do único edifício público aí conhecido em quinhentos: a capela de Nossa Senhora do Rosário. "Moço de Recados" José Barros 1750 - 1809 Museu Carlos Machado 6 Os escravos subsaarianos cedo se organizaram em confrarias religiosas, que serviam, talqualmente como na metrópole, como associações de solidariedade e caixa económica para compra das alforrias. Foram três sedeadas nos principais núcleos urbanos do arquipélago, a saber: a confraria de Nossa Senhora da Natividade, dos pretos, imediata a Roma por Bula Apostólica, em Angra do Heroísmo (ilha Terceira); a confraria de Nossa Senhora da Natividade, dos pretos, em São Pedro de Ponta Delgada (ilha de São Miguel); e a confraria de Nossa Senhora do Rosário, na igreja do convento de São Francisco, na Horta (ilha do Faial). A festa de Nossa Senhora das Dores dos pretos da Horta, na ilha do Faial, foi famosa. As celebrações começavam às dez da manhã na igreja onde escravos e senhores se faziam presentes, bem como libertos, devotos e curiosos. Às onze iniciava-se a missa, musicada e com sermão, dedicada à Mater Dolorosa e com coroa do Espírito Santo. Depois coroava-se o escravo, imperador, pagando o seu senhor o bodo comum. Pelas três e meia, de novo na igreja, realizavam-se as vésperas de música, seguindo-se a procissão pelas principais ruas da urbe, com três andores, encimados por Santo Elesbão num, Santa Efigénia noutro e ainda Nossa Senhora das Dores. Depois de todo um dia de comer, beber e procissões, tudo terminava numa festa onde senhores e alguns escravos dançavam o lascivo lundum, música africana, trabalhada e polida em corte que, desde finais de setecentos, independentemente das escandalosas e caraterísticas umbigadas, satisfazia as elites. 7 A aparente lonjura do arquipélago açoriano não durou muito anos. Cedo se converterão, em zonas de fronteira e de guerra, como disse António Cordeiro em setecentos: “guerra sempre viva com Mouros, corsários, que com ninguém tem paz.”. A insegurança e a contingência entranharam-se no sentimento da população, ao ponto de se tornar quotidiano e normal. Em 1596 e 1616 houve o assalto a Santa Maria e às Flores, por piratas argelinos, com mais de 400 cativos; em 1623 deu-se o cerco de piratas argelinos à Graciosa; em 1632 deram-se dois ataques de piratas argelinos, à ilha do Corvo; em 1641 o emissário régio enviado da Terceira a Lisboa foi capturado por piratas argelinos; em 1675, deu-se o ataque de piratas argelinos à freguesia dos Anjos, Santa Maria; em 1714, piratas argelinos atacaram o grupo ocidental, sendo repelidos; e, em 1719, piratas argelinos efetuaram uma razia nas Flores, capturando vários prisioneiros. Estes prisioneiros eram entendidos, pelos captores, como mercadoria. Sede da Associação Escravos da Cadeínha, ilha de Santa Maria Fotografia: Museu de Santa Maria Pese embora, na Península Ibérica, o aprisionamento mútuo de cristãos e muçulmanos ser, como forma de obtenção de resgates e de servos, após a conquista de Ceuta, prática habitual, o quantitativo aumentou para um fenómeno de dimensão até então desconhecida. Portugueses faziam-no e os magrebinos também, com vista ao enriquecimento rápido. As razias terrestres existiam de parte a parte. As condições de escravidão no Norte de África podiam revelar-se particularmente duras, o que fez com que, metade ou ¾ dos cativos cometesse apostasia, ou seja, se tenha convertido ao Islão. Tal era visto como uma grande honra para o dono e comummente resultava na alforria, alteração de nome, corte com os vínculos passados e integração. 8 A maioria dos cativeiros acontecia em atos de corso ou pirataria, revelando a navegação perigosa. O resgate poderia ocorrer a título particular, mas, no entanto, o seu maior número acontecia no âmbito da Mesa da Consciência e das Ordens, do poder do Estado e da Ordem dos Trinitários, do poder religioso, unidos nessa causa comum. Os Trinos, apesar de não terem conventos nos Açores, amiudamente vieram ao arquipélago, com vista à angariação de esmolas em prol do resgate dos cativos. Em conjunto houve doze Resgates Gerais, entre 1640 e 1774 (Marrocos) e 1810 (Argélia), apesar da pia intenção de se organizarem a cada três anos. O número total de cativos das nações europeias, o número total de cativos portugueses e o número total de cativos açorianos é incalculável, sendo que somente é sabido que estes eram a riqueza que justificou a prosperidade secular de Argel. Nos Resgates Gerais foram libertados 2500 portugueses, dos quais 512 eram naturais dos Açores. À exceção do Corvo, todas as outras ilhas estavam representadas: houve mais de 200 resgatados de São Miguel, cerca de 150 da ilha Terceira, 45 do Faial, seguidos de Santa Maria, Pico, Flores, São Jorge e Graciosa. Contudo, é evidente que os resgatados foi parte ínfima do seu total. São Félix de Valois, Trinitário Palácio Capitães-Generais, ilha da Terceira Fotografia: Cristina Brum 9 Açores e Brasil tinham ligação direta desde meados de seiscentos com os denominados “navios de privilégio”, que as ilhas de São Miguel, Terceira e Faial passaram a dispor, comerciando diretamente, permitindo alguma margem de manobra aos mercadores e armadores das ilhas dos Açores, no concurso ao comércio com o Brasil. Para lá seguiam vinhos e aguardentes, os denominados “frutos da terra” e, no regresso chegava o açúcar, o tabaco, as madeiras exóticas e, claro, os escravos. A emigração açoriana para as Terras de Vera Cruz documenta-se, de forma organizada, desde seiscentos e não se interrompeu senão já no século XX. A escravatura branca é um fenómeno que, em traços largos, pode ser definido e compreendido se atendermos à história jurídica e económica do Brasil. O termo é usado desde a década de 40 de oitocentos. Se considerarmos que em 1850 foi publicada a Lei n.º 581/1850, mais conhecida como Lei Eusébio de Queirós, que proibiu a entrada de escravos provenientes de África; que se lhe seguiu o Decreto n.º 731, de 1854, que obrigou a marinha brasileira a fazer cumprir essa proibição; que a 28 de setembro de 1871, foi publicada a Lei do Ventre Livre; que ainda depois foi publicada a Lei n.º 3.270/1885, conhecida como Lei dos Sexagenários, alforriando todos aqueles que tivessem atingido aquela idade; e, finalmente, a Lei n.º 3.353, de 13 de maio de 1888, conhecida como Lei Áurea, que acabou com a escravatura no Brasil – o longo processo de abolição do trabalho forçado sem direitos. O Brasil caminhava para a abolição, não sendo menos verdade também que não acabariam, por isso, os escravocratas. 10 Todo o processo de exploração agrícola, quer açucareira, quer cafezeira, assentava no sistema de mão-de-obra escrava, de modo a facultar estes dois produtos ao mais baixo custo possível, destinados aos mercados europeus e ocidentais. A necessidade de mão-de-obra barata e contínua, provocou uma diversificação das proveniências da mesma, procurando prolongar um determinado modelo arcaico de produção agrícola. Engajadores, capitães de navios, tripulações, responsáveis administrativos, todos estavam envolvidos neste negócio altamente lucrativo, da emigração clandestina, de contingentes populacionais de baixa condição socioeconómica, oriundos da Europa e de Portugal, principalmente do Minho e dos Açores, que eram, à chegada, vendidos como escravos. Palacete Silveira e Paulo, casa de brasileiro de torna-viagem Fotografia: João Melo Neste negócio, surgiram alguns protagonistas incontornáveis, como o armador e capitão Manuel Maria da Silva, faialense, Joaquim Cândido de Freitas, micaelense, o capitão Francisco Cândido Machado d’Almeida, talvez que picaroto ou faialense, com alto grau de probabilidade açoriano e o capitão Augusto Borges Cabral, mariense, pelo menos. A cumplicidade e corrupção das autoridades permitiu a sua perpetuação. Ou seja, tanto a emigração legal, como a ilegal, tiveram como evidentes protagonistas, os próprios açorianos. A galera Maria da Glória e a Nova Maria da Glória, a barca portuguesa Açoriana e o vapor Lidador foram os veículos. Muitos morriam na travessia. Barcos com capacidade para pouco mais de 100 passageiros, carregavam por vezes mais de 400. À chegada, muitos deles, eram vendidos publicamente. A impreparação, o analfabetismo e a falta de perspetivas de melhor vida, levaram a que numerosos contingentes populacionais das classes populares, arriscassem o “salto”, pela publicidade mitificada pelo sucesso excecional de alguns “torna-viagem”, conferindo-lhes qualidades fascinantes, que ocultavam a dura e cruelíssima verdade. José Luis Neto 11 Documento em memória dos ataques dos piratas de 1675 a Santa Maria / Fotografia: Museu de Santa Maria