SÃO BENEDITO, ESCOLA BRASILEIRA, SÉCS. XVII-XVIII, MUSEU DA HORTA.
MUSEU
AZUL
NÚMERO 0
UMA EDIÇÃO DO MUSEU DA HORTA E DA FÁBRICA DA BALEIA
FOTOGRAFIA DE CAPA: TOMÁS MELO
H
S
ARTISTAS LOCAIS
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HELENA BULCÃO
Maquilhadora com um curso de maquilhagem profissional em Moda Editorial. Para
além disso também têm formação em peles maduras e uma masterclass de noivas.
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ANA CORREIA
ARTISTA ‘VENDE-SE’
Licenciada em Artes Plásticas – Pintura pela Faculdade
de Belas Artes da Universidade de Lisboa, aceita
encomendas nas áreas de desenho, pintura, técnica
mista e afins, em papel, madeira, tela, parede ou no que
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DOS CAPELINHOS ESCOLA DE
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FOTÓGRAFO
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FICHA TÉCNICA
Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretora: Aurora Ribeiro -- Subdiretores: Carla
Dâmaso e José Luís Neto -- Diretor Artístico: Luiz Domanoski -- Revisora: Carla Devesa Rodrigues -- Morada: Largo Duque
d’Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta/ Monte da Guia, 9900-124 Horta Email: geral@oma.pt/ museu.horta.info@azores.
gov.pt -- Periodicidade: Mensal -- Impressão: Gráfica “O Telegrapho”, Rua Conselheiro Medeiros n.º 30, 9900-144 Horta
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HAVIA DIAS QUE NÃO
SOPRAVA O VENTO
Havia dias que não soprava o
vento, o mar parecia óleo e o céu
No século XIX muitos Açorianos
começaram a embarcar nas
baleeiras americanas que vinham de
New Bedford, a caminho do Pacífico,
numa viagem que duraria até ao seu
regresso aos E.U.A., entre 3 a 4 anos.
Como era difícil encontrar por lá,
tripulações para estas tão longas e
perigosas viagens, levavam consigo
tripulantes dos Açores, em busca do
Sonho Americano.
tinha a cor de chumbo. O tripulante
do baleeiro americano, acabada a
faina, procura uma agulha de coser
velas e, com o negro dos caldeiros
de derreter cachalotes, grava num
dente que tinha polido um coração e
o nome de uma namorada de porto.
Dizem que assim começou a arte
náutica do Scrimshaw.
Já no final do século XIX,
começou-se a fazer-se a caça à
baleia nos Açores, a partir de terra.
E durante 50 anos, tornou-se a
principal indústria das ilhas. O
objetivo principal desta atividade,
era a produção de óleo. Artesãos e
artistas começaram a aproveitar
o osso do maxilar e o marfim dos
dentes para esculpir e gravar.
Depois
do
Vulcão
dos
Capelinhos, José Azevedo Peter,
acreditando que a caça de baleia
ia acabar, não por falta de baleias
mas por falta de baleeiros, começou
a guardar os trabalhos que mais
gostava. Em 1989 abriu o museu
do Scrimshaw, onde José Henrique
Azevedo tem vindo a aumentar
a coleção, tornando-a numa das
maiores e mais belas coleções do
mundo.
MUSEU DO SCRIMSHAW
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ENTREVISTA
JORGE AUGUSTO PAULUS BRUNO
COMO DEFINIRIA O QUE É,
OU DEVE SER, UM MUSEU?
O Diretor do Museu de Angra
do Heroísmo será o primeiro
convidado das Conversas de
MUSEUS a decorrer a partir
do próximo outono, na Casa
Manuel de Arriaga. Fomos
procurar desvelar o véu sobre
o que nos trará.
Prefiro tomar a questão no sentido de “o que deve ser um museu”.
Pois, deve ser um organismo social
dinâmico, de caráter cultural, a funcionar em plena articulação e comprometimento com a comunidade
em que se insere. Dito isto, importa
alargar um pouco os considerandos
e os horizontes: um museu é um espaço de memória e, por conseguinte,
deve assumir-se como seu guardião,
recolhendo, conservando, estudando
e divulgando os seus suportes materiais e imateriais, de modo a poder
transmitir essa memória não só às
gerações seguintes como à atual.
Um museu pode ter um acervo mais
ou menos rico, mais ou menos antigo, mas não deve servir apenas para
guardar a memória. Como estrutura
equipamental portadora de uma capacidade crítica mobilizadora, ele
tem de se assumir também como um
potencial agregador comunitário em
torno de uma reflexão e problematização da contemporaneidade.
4
PODEMOS IDENTIFICAR NO PERCURSO HISTÓRICO
DO MUSEU DE ANGRA AS PRINCIPAIS ESCOLHAS,
EVENTOS OU DECISÕES QUE FIZERAM DESTE O
LUGAR DE REFERÊNCIA REGIONAL E NACIONAL QUE
HOJE É?
Podemos identificar três grandes
períodos que consubstanciam o
percurso histórico do Museu de
Angra do Heroísmo: 1949-1980 (a
criação e a constituição do acervo),
1980-2005 (as obras no Edifício de
São Francisco decorrentes do Sismo
de 1 de Janeiro de 1980, a exposição
Do Mar e da Terra… uma história no
Atlântico e o inventário do acervo) e de
2005 ao presente (a estruturação das
coleções, a valorização do público, a
aposta na informação, a preocupação
com a imagem, a criação do Núcleo
de História Militar Manuel Coelho
Baptista de Lima e da Carmina –
Galeria de Arte Contemporânea Dimas
Simas Lopes, a dinamização cultural e
a utilização das redes sociais).
Daqui resulta, hoje, uma instituição
com uma atividade dinâmica e uma
imagem amplamente consolidadas
na sociedade, que procura não só
oferecer uma leitura interpretativa
do passado, como também proporcionar uma intensa e consistente reflexão sobre o presente.
ENTREVISTA DE
AURORA RIBEIRO
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DECLARAÇÃO DE AMOR
À CIDADE DA HORTA
Como és sedutora, fascinante e misteriosa
Oh minha querida cidadezinha de mar!
Trazes no rosto maquilhado um arzinho cosmopolita
E fazes olhinhos bonitos
(por detrás das tuas respeitáveis gelosias)
Aos navegadores loiros e trigueiros
Que vagueiam pelas tuas ruas
E bebem “gin” no Peter”!
Oh Minha Horta, recatada e feminina,
Inchadinha desse insustentável orgulho flamengo!...
O mundo inteiro cabe na tua Marina!
Mas ficas-te pela gloriazinha
Do teu passado mercantil e marítimo!
E sonhas com os paquetes iluminados de outros tempos!
E recordas ainda os escandalozinhos das festas a bordo
Quando à tua Doca vinha uma qualquer esquadra…
Ficas-te pelo tempo da laranja, do vinho e dos Dabney!
Esse tempo dos navios baleeiros de Nova Inglaterra
Ancorados na tua luminosa baía!
Esse tempo das banhistas em “maillot” na Praia de Santa Cruz
E da moral chique das famílias “smart”.
Foste oásis de refrescos à navegação
E embeiçada ficaste pelos ingleses e pelos alemães
Das companhias dos cabos telegráficos submarinos…
E sonhas ainda, com saudadezinha langorosa,
A amaragem dos “clippers” da Pan America
Na tua baía desportiva, carvoeira e embarcadiça.
(Sempre deixaste que os estrangeiros te levantassem a saia
e te beliscassem os seios, oh minha desavergonhadinha)…
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6
Mas amo-te, cidade de Van Huertere,
Apesar da mesquinhez do teu pequenismo paroquial
E das tuas birras de burguezinha conservadora
E da tua apetência para a coscuvilhice da vida alheia!...
Amo-te porque é doce e cantado o teu falar
E porque são literalmente belas as tuas mulheres!
E quero-te, apesar das tuas empertigadas autoridades
E apesar da gravidade postiça da tua gente de boa roda
(tomada de amores pátrios e maçónicos)…
Ah, cidade apetecível de ver o Pico!
Tu, que já foste culta e ilustrada,
Tens hoje a hospitalidadezinha do português suave:
São os teus comerciantes honestíssimos!
Os teus manguinhas de alpaca cumpridores!
Os teus pescadores pachorrentos!
Os teus artistas estimáveis!
Os teus professores submissos!
Os teus alunos rebeldes!
A tua culturazinha dos colarinhos engomados!
O teu Parlamento tranquilo!
Os teus deputados do “deixem-se ficar como
estão”!
As tuas Secretarias gloriosamente regionais!
E são os teus jornais miudinhos!
Os teus clubes do empatezinho a zero bolas!
E é o requebro das tuas lúdicas concubinas
Espreitando às portas dos cafés!
E é o códigozinho do comportamento bem
E no entanto, amo-te!
(sem mesmo saber como é possível amar assim)…
E por mais que, sorridente e atrevida,
Namorisques os teus visitantes
E ao teu povo te mostres indiferente e desdenhosa,
Eu hei-de sempre fazer escala no teu coração
Oh Horta magnífica, mítica e minha!
VICTOR RUI DORES
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MICHEL ANGELO
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MIGUEL ÂNGELO
O PORQUÊ DO
MUSEU
AZUL
O fanzine “Museu Azul”, coprodução do Museu da Fábrica da Baleia
de Porto Pim e do Museu da Horta, tem por objetivo dar a conhecer o
que se faz nos museus, centros interpretativos e coleções visitáveis do
Faial e por esse mundo fora, que passarão a dispôr de mais um meio de
comunicação direto com o público.
De periodicidade mensal e de distribuição gratuita, com existência física
na ilha, impresso em papel reciclado para reduzir a pegada ecológica,
pretende abrir-se à participação de todos e constituir-se como polo de
reflexão crítica, com vista a uma sociedade civil melhor apetrechada
para os debates das causas comuns.
As instituições museológicas, enquanto guardiãs da memória, procuram
cumprir com o seu papel de salvaguarda do património cultural comum,
bem como de transmissão deste às futuras gerações, pelo que o “Museu
Azul” é mais um instrumento que visa contribuir para esse propósito,
que anima ambas as instituições, não esquecendo, todavia, a cooperação
que se deve à criação contemporânea, edificadora da história do amanhã.
Desejamos aumentar a transparência e o escrutínio comunitário das
instituições de natureza museal, pois que estas têm a sua razão de
existir plena enquanto casas de uma comunidade.
Para atingir o ponto que ambicionamos nas relações entre os cidadãos
e estas instituições, é um longo caminho ainda a trilhar, mas que se faz
de pequenos passos, no que esta publicação nova poderá ser achega. Um
dia, talvez, possamos viver no Faial, o que Orhan Pamuk nos transmitiu
do seu Museu da Inocência, romance de fôlego e invulgar sensibilidade,
em que “nos seus olhos havia a luz que só se vê em crianças que chegam
a um lugar novo, ou nos jovens ainda abertos a novas influências, ainda
curiosos quanto ao mundo”...
CARLA DÂMASO e JOSÉ LUÍS NETO
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faz a tua agenda cultural
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17 A 22 AGOSTO
Santo Amaro do Pico
Por cá...
Festival de Música
Terra dos Barcos
10 JULHO ~ 15 OUTUBRO
Fábrica da Baleia de Porto Pim
EXTREMOPHILARUM
Instalação Arttistica
VERÃO AZUL
passeios de fim de tarde
onde o património urbano é
reconvertido em vitrina do
Museu.
Por lá...
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20 AGOSTO
Museu da Horta
José António Bettencourt
Naufrágios da Horta
3 SETEMBRO
Casa Manuel de Arriaga
Tomás de Melo
Como tornar a Horta numa
cidade sustentável?
DESCONFINAMENTO
ANTES
DEPOIS
A Vista da Baía da Horta, da autoria de Rogério Silva, é pintura a óleo
sobre plátex, realizada em 1953, em Angra do Heroísmo, representando
a sua Horta, terra natal, constituindo-se como um misto entre o realismo pretensamente fotográfico e a proporcionalidade nostálgica, a partir de um ponto alto, indefinido. Rogério Silva nasceu na Feteira, Faial,
em 1929.
Viveu em Angra do Heroísmo, entre 1947 e 1971, onde foi professor de
artes e responsável pela fundação da revista Gávea e da galeria de arte
com o mesmo nome (a primeira a ser criada), no icónico bairro do Corpo Santo. Este trabalho foi encomendado pelo proprietário da Casa de
Pasto “Gaspar”, sita então na Rua da Esperança, conhecido sítio pelas
meias-bolas, pelas sandes de torresmo do “continente” e pelas de feijão,
que as juravam muito saborosas e “colestrólicas”.
Aí esteve exposto até 1970, em condições que somente se adivinham,
levando a um profundo envelhecimento da camada de proteção, que
ocultou o colorido original. Iniciou-se a intervenção, do setor de conservação e restauro do Museu da Horta, a 30 de dezembro de 2020, aquando da chegada das primeiras vacinas Covid-19 aos Açores. Espera-se a
conclusão da intervenção de especialidade, recuperando em todo o esplendor da peça oculta, aquando da chegada da imunidade de grupo à
RegiãoAutónoma.
JOANA BULCÃO e CARINA MAURÍCIO NETO
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Fábrica da Baleia
de Porto Pim
Em breve teremos uma nova baleia no pátio de desmanche - uma escultura
inspirada no trabalho de Malcom Clarke. Com ela recuperamos a memória
baleeira e reimaginamos a ligação dos homens com este gigante dos mares.
MUSEU
AYUL
NÚMERO 1
UMA EDIÇÃO DO MUSEU DA HORTA E DA FÁBRICA DA BALEIA
FOTOGRAFIA DE CAPA: NUNO POTES
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OMAACORE
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d’Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta/ Monte da Guia, 9900-124 Horta Email: geral@oma.pt/ museu.horta.info@azores.
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ALgUnS LUgARES
dA HORTA
COMO fORAM E
COMO SAO
Baia de Porto Pim
Por ser muito abrigada, a baía de Porto Pim foi sempre espaço alternativo à baía da Horta, quando o vento soprava
de sudoeste e os barcos e navios ali rumavam para carregar e descarregar pessoas e bens. Esta baía foi também
estaleiro naval e ficou conhecida, na linguagem popular
faialense, por “cemitério dos navios”, porque encalhavam
e descavilhavam os grandes veleiros de longo curso que ali
aportavam com irreparáveis avarias.
Nos séculos XIX e XX foi espaço de desmancho de cachalotes, o que se viria a acentuar com a construção da(s)
Fábrica(s) da Baleia. Com o fim da baleação, passou a ser local de banhos e lazer. Mas já o era antes. Em 1918, Vitorino
Nemésio ficou impressionado com a afoiteza de raparigas
faialenses a tomar banho (em fato de malha) na praia de
Porto Pim. Talvez tenha sido esta observação que justificou que fosse neste lugar que a “Mulher de Porto Pim”, de
Antonio Tabucchi, tivesse casa, de onde cantava secretamente como sereia, encantando quem a visitava. Por isso
não é de estranhar que ali tenha sido colocado um palco, do
Festival Maravilha, sereias renascidas, em 2021.
Vitor Rui Dores
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fESTIvAL
MARAv
Não podemos deixar a pandemia parar, a
festa, a alegria. Não podemos deixar a pandemia
impedir a realização do Festival Maravilha. Foi com
esta intenção que se chegou, em 2021, à sua edição
flutuante. Levar os artistas e o público para o mar
tornava possível a realização do festival e garantia o
distanciamento social.
A ideia foi lançada nas redes sociais e muitos
artistas revelaram vontade em experimentar este
novo formato. Garantiu-se música, performances
teatrais, artes plásticas e artes circenses trazidas
por artistas franceses, belgas, suíços, do continente
português e residentes no Faial. Três palcos: uma
jangada flutuante na baía de Porto Pim, o pontão
das casas de aprestos e um veleiro na doca da
marina da Horta serviriam de base para os três
fins-de-semana Maravilha.
4
AvILHA
O público foi convidado a assistir gratuitamente a
todos os espectáculos. Muitas formas criativas foram
encontradas para flutuar até aos palcos: braçadeiras
insufláveis, bóias redondas, em forma de camelo,
de cisne ou de flamingo, caiaques, pranchas de
paddle, jangadas, botes baleeiros, dinghys e outras
pequenas embarcações, semi rígidos e veleiros.
Quem não encontrou autonomamente forma de
ir, pôde fazê-lo de barco-táxi pelo preço simbólico
de 2 euros. A disposição do público em relação aos
palcos autogeriu-se, não por ordem de chegada,
mas por tamanho, fragilidade ou robustez. Ficando
mais atrás as maiores embarcações, dispostas
em semicírculo, como um escudo protector, um
anfiteatro improvisado.
De
alguma forma, foi surpreendente como o próprio público se
transformou também em espectáculo. O ambiente que se criou foi
especial, ouvia-se a palavra “magia”. Apesar do distanciamento,
artistas e público estavam realmente próximos numa nova e bela
experiência, todos juntos no “mesmo barco doido”.
5
o MUMA
voltou. São seis edições e quase
outro tanto de reincarnações.
Longínqua vai a temporada invernal de concertos no salão e sede
do Sporting da Horta, e já algumas marés se passaram desde o
festival de Primavera, em recinto
fechado, que ocupava Teatro Faialense e imediações durante um
fim de semana. Em 2019 tomámos a cidade da Horta e as suas
instituições como palco e como
parceiros do MUMA. Juntámos
prata da casa com forasteiros, desafiámos encontros entre desconhecidos e promovemos estreias
em território açoriano. Criámos
um espectáculo de raiz - O Murmurinho #0 - com o Grupo Coral
da Horta e com a Filarmónica dos
Flamengos. Enchemos o coração
e enchemo-nos de mais ideias. E
estávamos com a pica toda para
a edição de 2020 quando nos tiraram o pão da boca.
6
Os males nunca vêm por
bem (por muito que nos tentem
enganar), mas uma pessoa lá se
remedeia, ou lá se adapta. Mudámos outra vez: MUMA 2020 virou
MUMA 2021-22. De festival passou a temporada (ou programação
regular, ou conjunto de festas, ou
lá o que lhe quiserem chamar).
Agora, além de se espalhar pela
cidade e pela ilha, vai-se espalhar também pelo ano. Setembro,
Janeiro, Março e Maio foram os
meses escolhidos para acolher
vários concertos, encontros e
criações, que o público faialense
vai poder descobrir e curtir.
Arrancámos no passado 4
de Setembro. A data era de
efeméride para a Autonomia Regional, e a Assembleia Legislativa
dos Açores juntou-se ao MUMA
para um momento de celebração
fora do programa oficial (do deles,
não do nosso). Faltou o presidente Marcelo, mas não faltou mais
nada. Nem a chuva.
Originalmente programado para
o anfiteatro exterior da ALRA, o
serão passou para o plano B de
luxo: o Pátio das Ilhas (um espaço exterior coberto localizado directamente por debaixo do
hemiciclo da assembleia). Dissenos um espectador ao entrar no
espaço: “arranjaram o sí-
A próxima noite MUMA chega a 14 Janeiro. Vai ter os faialenses B.I.F. a bifar as “janeiras”
em modo multimedia nas paredes
da Biblioteca da Horta, e vai ter um
dos nomes maiores do jazz nacional,
Desidério Lázaro, no Amor da Pátria.
Em Março virá rock’n’roll, e em Maio
festa da boa. Até lá, prepara-se o
tio mais underground do Murmurinho #1 com três grupos folFaial, e no principal ed- clóricos do Faial e a turma de ballet
ifício oficial” (é possível que do Conservatório da Horta, mas a
a rima tenha vindo com a pará- seu tempo diremos mais coisas.
frase, mas registe-se o essencial).
7
1
8
4
Um é o da Matriz da Horta, construído pelo
afamado organista olisiponense António
Xavier Machado e Cerveira, em 1814, notável
e com uso semanal, bem vivo apesar dos
mais de duzentos anos. O outro é um de
procedência francesa, de 1903, na Matriz
da Praia do Almoxarife, impressionante
testemunho do período romântico. Ambos
são monumentais e pungentes testemunhos
da secular apetência dos seus habitantes
para a música.
MUSEU DO SCRIMSHAW
diretor do MUseU de
Arte sAcrA dA hortA
MArco LUciAno
dA rosA cArvALho
2
3
Corria o natal de 1792. O capelão da galera Flora, Frei Bonifácio de Jesus, dominicano, regressado de
Macau com destino à metrópole, fez aguada na Horta. Durante esse período, nove dias que aqui ficou,
assistiu a celebrações públicas e visitou a casa de alguns ilustres faialenses, tendo pernoitado três vezes
em terra. No que respeita às celebrações natalícias, estas consistiam, basicamente, na missa do galo
cantada na igreja Matriz da Horta. Aliás, o que sobressai da descrição da experiência aqui vivida, são os
dotes musicais dos cantantes da Matriz e das religiosas clarissas do convento de São João Baptista, que
o impressionaram, presenteando-o com coro e músicas de cravo e órgão.
A
Desse período, onde a música e a dança
faziam já parte integrante do quotidiano
dos faialenses, os bailes profanos eram
integrados nas festividades religiosas,
dançando-se gavotas, minuetos, lunduns,
valsas, quadrilhas, de que somente restam
hoje, as seculares chamarritas. Pouco
subsiste desses tempos, ainda de navegação
à vela e de numerosos enormes navios
estacionados no porto, pontuando a baía
de mastros como que se de uma floresta
se tratasse, provindos de todos os cantos
do mundo, convertendo o Faial em ponto
de encontro planetário. Porém, do que
permaneceu temos poucos, mas magníficos
testemunhos, caso de dois soberbos órgãos
históricos, classificados pela Resolução do
Governo n.º 18/2021, de 26 de janeiro.
AgEndA MUSEU dA HORTA
Exposições
Assinar a Pele, numa cidade portuária do Atlântico Norte, patente
na Casa Manuel de Arriaga até 31 de outubro.
Cápsulas do tempo: o património cultural subaquático dos Açores,
patente na Junta de Freguesia dos Cedros, outubro-novembro.
Eventos
30 setembro, 21.30h, casa Manuel de Arriaga Jornadas Europeias do
Património – Cinema Mudo musicado ao vivo
Tiago Marques, no oboé, Zeca Sousa, na guitarra e Tomás Melo na
projeção de imagem
1 de outubro, 18.30h, casa Manuel de Arriaga
Tertúlias do Arriaga – Santos da Casa fazem milagres…
Nuno Costa Santos – O Faial na literatura portuguesa
15 de outubro, 18.30h, na Casa Manuel de Arriaga
Tertúlias do Arriaga – Conversas de Museus
Jorge Paulus Bruno – O Museu de Angra do Heroísmo
29 de outubro, 18.30h, na Casa Manuel de Arriaga
Tertúlias do Arriaga – Santos da Casa fazem milagres…
Carlos Alberto Machado – É possível ser escritor, ou editor, ou livreiro,
nos Açores?
12 de novembro, 18.30h, na Casa Manuel de Arriaga
Tertúlias do Arriaga – Conversas de Museus
Nuno Ribeiro Lopes – Arquitetura e museus
26 de novembro, 18.30h, na Casa Manuel de Arriaga
Tertúlias do Arriaga – Santos da Casa fazem milagres…
Judite Canha Fernandes – Carta de um vulcão para o mundo
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fAz A tUA AgendA cULtUrAL
SETEMbRO
OUTUbRO
10
v
vIOLInO1870
Na digressão realizada aos Açores, escolheu fixar-se na Horta. Durante 50
anos contribuiu para o desenvolvimento da música no Faial e no Pico, sendo
regente de diversas bandas filarmónicas e orquestras, tendo fundado algumas delas.
A família, emigrada nos EUA, herdou o violino, que estimou. O neto John Simaria Silva,
consciente da importância de ser preservado e valorizado, escolheu doá-lo ao Museu
da Horta. O procurador de John, o seu primo
Tony e a sua mulher Teresa, deslocaram-se
em agosto de 2021 à ilha do Faial para entregar a peça e uma fotografia do maestro.
Foi realizada uma intervenção de conservação no violino, onde se efetuou a sua limpeza e estabilização, de forma a permitir a
sua exposição.
11
dEpOIS
Francisco Xavier Simaria
(1870, Lisboa – Horta,
1946) manifestou talento
musical precoce, destacando-se no saxe-trompa
e no violino. Aluno distinto do Conservatório Nacional, foi condiscípulo
de Francisco de Lacerda.
AnTES
CERCA dE
Futuramente será realizado o ajuste das
cordas, de modo a
que possa ser novamente tocado. O violino de fabrico francês,
é de Jérôme Thibouville-Lamy, de Minecourt, um modelo
Mansuy a Paris, que
reflete o estilo típico
do fabricante.
jOAnA bULCAO
FOTOGRAFIA DE CAPA: INÊS GATO DE PINHO
MUSEU
AYUL
NÚMERO 2
UMA EDIÇÃO DO MUSEU DA HORTA E DA FÁBRICA DA BALEIA
S
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ARTIS
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I
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C
LO
TA
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E
UITAMENT
T
A
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Dâmaso e José Luís Neto -- Diretor Artístico: Luiz Domanoski -- Revisora: Carla Devesa Rodrigues -- Morada: Largo Duque
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CIdAdE VISIVEL
VERSUS
CIdAdES InVISIVEIS
A propósito das cidades invisíveis de Italo Calvino...
só na Horta... existem três.
“Em Esmeraldina, cidade aquática”, para ir de um sítio a outro a única
opção é o barco. Todas as casas estão dispostas ao redor do mar e, por isso,
é aí mesmo que as crianças se encontram e brincam. Para irem até à escola
nadam bastante até ao ensino flutuante, mas vale a pena todo o esforço e
todo o tempo despendidos, porque é durante a viagem que mais pensam,
todos os dias. “Do caráter dos habitantes de Esmeraldina merecem ser recordadas duas virtudes”: a força de vontade e a prudência. Convencidos
de que todas as inovações na cidade têm influência sobre os pesqueiros.
Nada fazem, nada mudam e, por mais que conversem sobre todo o peixe
que abundava no passado, ele vai continuar a escassear.
Em Trude todas as habitações estão dispostas ao redor de uma estrada,
muito bem pavimentada, para que os seus habitantes possam chegar do
ponto A ao ponto B o mais rápido possível. É muito fácil sair de casa e atravessar a cidade sem perder tempo, isso facilita muito a vida dos habitantes que não têm de “subir e descer escadas, passar por ruas estreitas
ou pontes em arco”. Estranhei muito, pois ruas suspensas também não existem nesta cidade. Tudo foi terraplanado para simplificar a vida dos que
a habitam, que apenas precisam de dispor de um reboque e de um escravo
que o carregue para semovimentarem ao seu bel-prazer por Trude. Limpa
e estéril, não esconde o cheiro a fuligem e “as marcas de peões esmagados
contra as paredes”.
Gardina é uma cidade jardim, as casas estão dispostas em redor de um
pasto onde vacas pastam livremente. As deslocações são simples pois a cidade é um círculo perfeito e, no ponto central, todos se encontram. Todos
se ficam a conhecer, não pelos sapatos que trazem calçados (em Gardina os
habitantes estão sempre descalços) mas porque há habitantes que se desviam, para outros poderem passar, e há habitantes que, de tão gordos que
são, têm de esperar que outros se afastem à sua passagem. As cidades são
o que os habitantes fazem delas e Gardina está a mudar. Colada à cidade há
uma fábrica a crescer todos os dias, cada vez mais habitantes vivem dentro
da fábrica onde trabalham, por ser mais confortável, por ter temperatura
controlada e porque não se precisam de deslocar; infelizmente, não sentem
o ar fresco nem o sol na pele, mas isso é apenas um pormenor.
Tomás Melo
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“um mar profundo coberto de escuridão”
“Nas ilhas não poderíamos (Gn. 1, 2). A água é, desde
4
sentir mais essa ligação, mas sempre, o elemento eso seu sentido, em eras mais sencial à vida, a individurecuadas, prendia-se muito al e a coletiva.
mais à terra que ao mar.
Depois de um
primeiro povoado
em Porto Pim,
“Marco Polo
antes de tudo, existia apenas
descreve uma ponte, pedra a pedra.
Mas qual é a pedra que sustém a ponte?
A ponte não é sustida por esta ou aquela pedra,
mas sim pela linha do arco que elas formam.
Porque me falas das pedras? É só o arco que me
importa. Sem pedras não há arco.”
NO princípio
dos tempos,
entre as duas baías, nos finais do século XV surge a “vila de Orta”, na margem Sul da ribeira da
Conceição. De um e de outro lado encontramos ainda vestígios do povoamento primitivo, nas
pedras da Calçada da Conceição e do Mirante, este ligando a ribeira ao alto da Matriz, aquela
sendo a saída para o Norte da ilha. As pedras foram-se adaptando aos séculos, mas mantêm
a técnica e a estética dos primeiros tempos. Entre as duas vias perdeu-se a antiga ponte de
pedra, que dataria dos inícios de Quinhentos.
“Se Armilla é assim por
estar incompleta ou por ter
sido demolida, eu ignoro-o.”
Cruzando a Travessa
do Mirante,
entre muros de quinta, passamos por um lintel
em pedra talhada no século XVI,
testemunho silencioso dos antigos, antes de chegarmos à Torre do Relógio.
Era este o local da Igreja Matriz, também fundada por volta de 1500, ao longo de três
séculos o símbolo maior da
presença da Igreja na comunidade faialense.
Queimada por corsários e arruinada por
sismos e temporais, acabou por ser abandonada no início de Oitocentos, quando a
paróquia do Santíssimo Salvador se mudou
solenemente, com toda a dignidade e aparato da circunstância, para a devoluta
igreja do Colégio dos Jesuítas..
Antes, ainda nos meados de Setecentos, tinha-lhe a Câmara
acrescentado uma torre moderna, virada a Sul, ao centro da vila,
para receber o tão almejado relógio público que era reclamado
pela população há mais de um século.
Fez-se a Torre e recebeu um mecanismo inglês, datado de 1797,
importado por uma das firmas internacionais, que então tinham
representação na Horta. O relógio deixou há muito de ser usado, mas foi agora restaurado e, em breve, poderemos vê-lo novamente a funcionar.
5
“obrigada
permanecera imóvel
Descendo um pouco,
pisando calçada arcaica
e igual a si própria para melhor que teima em espreitar
ser recordada, Zora estagnou, no meio do alcatrão,
desfez-se e desapareceu.”
chegamos ao local onde outrora se erguia a Casa da
Câmara, na esquina da Rua Visconde Leite Perry com
a Rua Dr. Arriaga Nunes. Diz a tradição que teria
existido uma casa primitiva na “Vila Velha”,
próxima do actual Tribunal, mas temos apenas
como certa esta, onde se administrou o
concelho nos séculos XVII e XVIII.
Aconteceu, por exemplo,
em 1757, quando a vontade régia decidiu centralizar a exportação do
vinho do Pico a partir de
Angra, o que teria ditado o fim da hegemonia
do porto da Horta e, com
ele, a estagnação da sua
economia e sociedade.
A partir daqui se governou
a ilha e aqui se reuniram
os “homens bons” da vila
quando era preciso decidir em conjunto o rumo da
comunidade, em momentos de fome, de guerra ou
de outras crises.
Sabemos que tinha três pisos, com uma escada exterior de
acesso ao primeiro, as cadeias no rés-do-chão, a zona de
audiência no primeiro e a vereação instalada no segundo.
Nas traseiras da Casa da Câmara estava instalada roda dos
expostos, onde os recém-nascidos indesejados ou nascidos
em berços sem condições eram abandonados e deixados ao
cuidado do município – era, por isso, a Rua dos Enjeitados. Na
sua frente erguia-se o Pelourinho, coluna de pedra talhada
simbolizando as prerrogativas municipais.
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“Irene
é um nome de cidade vista de longe, e se nos
aproximarmos muda logo.”.”
Em torno do
Pelourinho,
onde a rua se alarga numa barriga vir
da a terra, era, simplesmente, a “Praça”.
Aqui existiam granéis e, provavelmente,
covas, ambos para o armazenamento do
trigo, base da alimentação e do rendimento das famílias abastadas. Do outro
lado, no quarteirão hoje ocupado pela
Praça da República, erguia-se o Mosteiro
da Glória, a segunda casa de freiras concepcionistas erguida em Portugal.
As filhas da elite local eram colocadas nos conventos, neste e no de S.
João (hoje Jardim Público), onde entravam de tenra idade e nunca mais
saíam. Eram “amortalhadas em vida” nos hábitos religiosos, viviam
ocultas da sociedade, dedicadas à oração e à produção de doces e artesanato, e, mesmo na morte, recebiam sepultura na sua igreja.
Mas se as pudéssemos observar, penetrando as paredes quase
fortificadas do convento, veríamos muito mais donzelas nobres
que senhoras santas.
Copiando os hábitos do exterior, usavam roupas “seculares”, sapatos de salto, penteados cuidados e até maquilhagem, apesar das
advertências do prelado diocesano, que se esforçada por fiscalizar
e corrigir tais comportamentos.
Muitas levavam mesmo as suas criadas consigo e era comum as mais
novas trocarem bilhetes e risadinhas no meio de momentos solenes
ou desculparem-se com “achaques” para faltar às orações matinais.
Nos casos mais extremos, chegaram mesmo a fugir, em conluio com
marinheiros aventurosos que as tinham visitado.
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A portaria do convento ficava virada à
Casa do Espírito Santo, único vestígio
desse tempo, que o povo se encarregou
de apelidar de Império dos Nobres.
O motivo, hoje longínquo, mas óbvio na sua génese,
prendia-se com os inúmeros membros da nobreza local que habitavam a contígua Rua da Misericórdia, que
partia daí até ao Largo do Colégio.
“nunca se deve
confundir a cidade
com o discurso que
a descreve"
Os
morgados Terra, Lacerda, Labat, Cunha
e Brum, todos descendentes dos primeiros
povoadores flamengos e de estirpes ilustres
portuguesas e de outras nações, partilhavam
esta vizinhança, onde por vezes as fronteiras
entre a cortesia, a aparência e o escândalo
eram difíceis de definir.
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“A população de Melânia renova-se: os dialogantes morrem
um a um e entretanto nascem
os quetomarão lugar por sua vez
no diálogo.”
Mesmo no meio da Ainda no início do século XIX,
rua ficava a travessa estando o hospital há muito
sem condições, se improvisou
com o mesmo nome, uma
enfermaria no rés- doque surgia por nela se chão para acolher os contamerguerem a igreja e o inados com doenças venéreas,
hospital da Misericór- resultado das interacções condia, instituição quase stantes entre as mulheres da
Velha e os marinheiros de
tão antiga quanto Rua
todas as nações que na Hora vila e de primeira ta tomavam ânimo antes de
linha na assistência prosseguir viagem.
aos pobres e enfer- Ergue-se ainda, do lado Norte
mos desta ilha e das da travessa, o antigo edifício
vizinhas, assim como do hospital, guardando a
aos marinheiros que memória para os que hoje e
amanhã calcorreiam as pedras
aqui aportavam.
da sua calçada ou lá entram em
busca de mantimento.
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“A verdadeira essência de Leandra é assunto de discussões sem fim. Os Penates julgam
ser eles a alma da cidade, mesmo que só tenham chegado no ano passado. Os Lares
consideram os Penates visitantes provisórios, importunos e metediços; a verdadeira Leandra é a sua, que dá forma a tudo o que contém, a Leandra que já ali estava antes que
chegassem todos estes intrusos e ali ficará quando todos se tiverem ido embora.”
Ergue-se ainda, do lado Norte da travessa,
o antigo edifício do hospital, guardando a
memória para os que hoje e amanhã calcorreiam as pedras da sua calçada ou lá
entram em busca de mantimento. Em seu
redor, na Rua de Baixo, hoje Serpa Pinto,
ficavam as casas dos principais mercadores que no século XVIII prosperaram
com o comércio atlântico, sobretudo com
os navios do Brasil. Se entrarmos nas
suas casas, nas poucas que sobrevivem,
ainda encontramos hoje madeiras exóticas, vestígios de naufrágios ou cheiro
a canela impregnado na estrutura. No
meio, mesmo em frente ao hospital, ficava
o Mercado da Boa Viagem, desde tempos
imemoriais o centro comercial da urbe,
mesmo ao lado da ermida com o mesmo
nome e junto de uma das várias portas na
muralha que uniam o mar e a terra, num
diálogo eterno.
Edição citada: Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, trad.
José Colaço Barreiros, Lisboa, Teorema, 2010, pp. 85, 51,
20, 127, 63, 82 e 81 (com adaptações).
Tiago Simões Silva
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Resgatar a dignidade (in)visível de uma peça
marítima, um exemplo...
Depois
Antes
Uma figura de proa, do século XIX, esculpida em pinho resinoso e, originalmente, policromada. Embora se desconheça a identidade da efígie retratada, esta seria, muito possivelmente o proprietário de uma empresa mecante.
Trata-se de uma representação de um individuo de meia-idade, com cabelo
ondulado e patilhas, a meio corpo, vulto pleno, não apresentado braços; enverga um casaco com dois botões, um laço e um lenço.
Nas suas laterais, na zona inferior, existe uma decoração em
arabesco.No seu tempo de vida útil, incluindo o após ter sido
retirada da sua função original, a peça encontrou-se exposta
a intempéries como chuva, vento, água salgada e alterações
de temperatura e elevados fatores de humidade relativa.
Tendo ainda sido
submetida a diversas intervenções inadequadas, como um
repinte total com tinta plástica e preenchimentos com espuma de poliuretano e argamassa, apresentando também
bastantes elementos metálicos oxidados.
Todos estes fatores resultaram em fissuras,
fendas, fraturas, lacunas, apodrecimento e
enfraquecimento da madeira, apresentando, em suma, muito mau estado de conservação.
Assim, realizou-se uma limpeza química
dos repintes, a remoção do poliuretano,
da argamassa e dos elementos metálicos,
a consolidação da madeira, uma desinfestação preventiva, o preenchimento de lacunas e a sua integração cromática e uma
proteção final.
No final podem-se observar ainda vestígios
da policromia original: preto no
cabelo, rosa nas carnações, verde no casaco
e arabescos e azul na gola.
Pretendeu-se, com a intervenção, a remoção de materiais inadequados, a
recuperação da legibilidade, a estabilização física e química, a conservação
enquanto testemunho histórico e o resgate da dignidade desta peça, que será
proveniente de um navio mercante, encalhado na Horta, consequentemente
arrematada e, durante muitos anos, exposta num estabelecimento comercial
da cidade.
Carina Maurício
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FOTOGRAFIA : TOMÁS MELO
NÚMERO 3
Bilhete Postal
Ficha Técnica
Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretor: Tomás Melo -- Subdiretores: José Luís Neto e Carla
Dâmaso -- Diretor artistico: Luis Domanoski -- Design: Sónia Rosa -- Revisão: Carla Devesa Rodrigues -- Moradas: Largo Duque d'Avila
e Bolama, s/n, 9900-141 Horta | Monte da Guia, 9900-124 Horta -- Email: museu.horta.info@azores.gov.pt | geral@oma.pt -Periocidade : Mensal -- Impressão: Gráfica "O Telegrapho", Rua Conselheiro Medeiros, n.º 30, 9900-144 Horta
Horta.Chique, chique, a valer
1
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Baía de Porto Pim
Por ser muito abrigada, a baía de Porto Pim foi sempre espaço alternativo à baía da Horta, quando o vento
soprava de sudoeste e os barcos e navios ali rumavam para carregar e descarregar pessoas e bens. Esta baía
foi também estaleiro naval e ficou conhecida, na linguagem popular faialense, por “cemitério dos navios”,
porque encalhavam e descavilhavam os grandes veleiros de longo curso que ali aportavam com irreparáveis
avarias. Nos séculos XIX e XX foi espaço de desmancho de cachalotes, o que se viria a acentuar com a
construção da(s) Fábrica(s) da Baleia. Com o fim da baleação, passou a ser local de banhos e lazer. Mas já
o era antes. Em 1918, Vitorino Nemésio ficou impressionado com a afoiteza de raparigas faialenses a
tomar banho (em fato de malha) na praia de Porto Pim.
Casa de veraneio dos Dabney
Casa do Tufo
(Porto Pim)
Também conhecida como antiga Fábrica da
Baleia, foi construída em 1836 pela Companhia
das Pescarias Lisbonense e tinha como principal
objetivo processar o bacalhau apanhado na Terra
Nova, que seria colocado a secar nas encostas do
Monte da Guia. No entanto a elevada humidade
não permitiu a concretização deste plano. Foi
adquirida em 1855 pelo cônsul norte‐americano
Charles William Dabney e convertida na
primeira fábrica de extração de óleo de baleia do
Faial. Encerrou em 1942 devido à construção da
nova Fábrica da Baleia de Porto Pim.
Atualmente é propriedade do Governo Regional
dos Açores, estando ali instalado o Aquário de
Porto Pim – Estação de Peixes Vivos, parte
integrante do Complexo do Monte da Guia
Antiga casa de veraneio dos Dabney adquirida por
Charles William Dabney em 1855. Fez parte de um
complexo residencial que incluía a casa onde a
família pernoitava, uma adega onde produziam
vinho, um pequeno cais com abrigo para dois botes
e um miradouro com uma pequena área de vinhas
em forma de lira. Era o lugar de eleição das duas
últimas gerações dos Dabney como local de lazer e
recreio. Passavam aqui longas temporadas,
normalmente desde o início do verão até aos finais
de outubro, altura em que regressavam às suas
residências na cidade (Cedars House, Fredonia e
Bagatelle). Atualmente é propriedade do Governo
Regional dos Açores, onde estão instalados a sede
do Parque Natural do Faial e a Casa dos Dabney,
fazendo parte do Complexo do Monte da Guia.
Casas dos Cabos
Localizadas no istmo entre os montes Queimado e da Guia, assinalam o local de amarração do segundo
grupo de cabos submarinos que aqui aportavam em virtude de vários lançamentos verificados nos anos de
1923 a 1928. A partir destas singelas infraestruturas os cabos eram levados até à Estação Conjunta de Cabos
por condutas subterrâneas.
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Castelo de Santa Cruz
Hoje, Pousada de Portugal, é uma construção do século XVI e teve papel
importante aquando da ocupação da ilha pelos espanhóis, em 1583, das invasões,
em 1589, do duque de Cumberland e, em 1596, do conde de Essex, cujas forças
desembarcaram na então vila da Horta e procederam ao saque e destruição de
igrejas.
Esta fortificação foi palco, em setembro de 1814, de uma batalha entre uma frota
de 3 navios ingleses e um brigue norte‐americano, General Armstrong, afundado
pelos ingleses. Tal acontecimento causou sérios embaraços diplomáticos, dada
a neutralidade de Portugal no conflito que opunha ingleses e americanos.
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Largo do Infante D. Henrique
Até 1675 este espaço era o Portinho do Beliago. Com as obras realizadas para
prolongar a muralha da cidade e ligá‐la ao forte de Santa Cruz, formou‐se um
largo a que deram o nome de Largo do Neptuno.
Em 1894, no âmbito do 5.º aniversário do nascimento do Infante D. Henrique, a
Câmara Municipal da Horta, associando‐se àquelas comemorações, decidiu
alterar‐lhe o nome para Largo do Infante. Em 1940 foi ali instalada uma estátua
do Infante D. Henrique. E em 1960 foi colocado o busto do Infante, que ainda
ali se encontra com a divisa de “talent de bien faire”.
O Largo do Infante, com os seus metrosíderos e palmeiras, continua a ser a sala
de visitas da cidade da Horta, local de convívio e animação, espaço de lazer de
ver o Pico.
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Porto da Horta
Desde muito cedo, a Horta serviu de ponto de
encontro para as embarcações que atravessavam o
Atlântico, tornando‐se um entreposto para trocas
comerciais e baldeações. O seu porto transforma‐se
num escala intercontinental já que as embarcações,
vindas do Novo Mundo e das Índias, aqui
aportavam para as imprescindíveis aguadas,
reparação, descanso das tripulações e espera da
armada que as deveria comboiar até Lisboa.
No século XIX, muito por ação da família Dabney,
a Horta torna‐se num entreposto baleeiro de
inegável importância, estando na rota da laranja e
do vinho. A par disso, e dada a excelente localização
geo‐estratégica da ilha do Faial, a cidade situar‐se‐á
no centro de um emaranhado conjunto de Cabos
Telegráficos Submarinos. Seguiu‐se o ciclo da
aviação aérea: a baía da Horta é palco de voos
experimentais e pioneiros e, entre 1939 e 1945, serve
de aeroporto à amaragem dos famosos clippers da
Pan American.
Depois, durante as duas grandes guerras mundiais,
a cidade foi utilizada como base naval, seguindo‐se
a presença dos rebocadores holandeses, o que
emprestava à cidade um ar cosmopolita.
A partir da década de 60 começam a chegar à Horta
tripulantes de embarcações de recreio de todo o
mundo, e a esses velejadores é dado o nome de
“iatistas”.
A Horta passa a ser um centro de iatismo
internacional com a construção da Marina em 1986,
verdadeiro ex‐libris da cidade. Em termos de
movimentação dos “pleasure boats” (navegação
recreativa), a Marina da Horta é hoje considerada a
primeira de Portugal, a segunda da Europa e a
quarta a nível mundial. João Carlos Fraga
considerava‐a mesmo “a marina oceânica mais
internacional do mundo”.
6
Rua Cônsul Dabney
Anteriormente conhecida como
Canada do Beliago, em 1863 foi
elevada a Rua Cônsul Dabney
pela Câmara Municipal da
Horta, em homenagem à família
Dabney e aos atos realizados na
ajuda à população faialense. Em
1877 a Câmara da Horta
descerrou a fotografia de Charles
William Dabney no Salão Nobre
dos Paços do Concelho. A sua
filantropia valeu‐lhe, após a sua
morte, o epíteto de “pai dos
pobres”.
“Trinity House”
Entre 1893 e 1969, a Horta foi local de amarração de Cabos
Telegráficos Submarinos que convertiam a cidade num “nó de
comunicações” mundiais. Os ingleses, americanos e alemães do
“Cabos” haveriam de deixar profundas influências sociais,
culturais e desportivas no meio faialense.
Sito à Rua Cônsul Dabney, o edifício “Trinity House” foi
construído em 1902 com a finalidade de albergar, enquanto estação
recetora e transmissora, os serviços das três companhias que ali
passaram a operar: a Companhia Inglesa (The Europe and Azores
Telehgraph Company), a Companhia Alemã (Deutsche‐
Atltantische Telegraphengesellschaft) e a Companhia Americana
(Commercial Cable Company).
Nos terrenos anexos foram construídos bairros residenciais
destinados aos cabografistas: Colónia Inglesa (atual Hotel Faial e
6 bungalows sitos à Rua Cônsul Dabney), e Colónia Alemã (onde
funcionam atualmente várias secretarias regionais).
A partir dos anos 70 do século passado e até à atualidade, o edifício
da “Trinity House” foi transformado em estabelecimento de
ensino.
7
10
“Waldorf”
No terreno anexo à “Trinity House”
(rua Cônsul Dabney), o edifício que
hoje alberga a Direção Regional do
Desporto, foi a casa, chamada
“Waldorf”, que serviu de residência
privativa do técnico eletricista da
“Europe and Azores Telegraph
Company”.
Possui,
no
terreno
fronteiro, um poço de maré que, por
questões de segurança, foi entulhado.
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Fredonia
Casa, na Rua Cônsul Dabney, adquirida por Charles
William Dabney em 1835. Esta propriedade era
composta por várias casas, cisterna, atafona, moinho,
jardim e uma estufa. Depois de remodelada, tanto ele
como seu filho Samuel Dabney usaram‐na como
residência e consulado. Em 1858 foi o local escolhido
para um baile em honra do príncipe D. Luís, que
reinou em Portugal entre 1861‐1889. Em 1899 os
herdeiros de Samuel venderam‐na à Companhia dos
Cabos Telegráficos Submarinos “Europe and Azores
Telegraph Company” e, em 1969, foi novamente
vendida sendo convertida num infantário, qualidade
que mantém até aos dias de hoje.
8
Casa do diretor
da Companhia Alemã
Cedars House
Casa construída em 1851 por John Pomeroy
Dabney, filho mais velho de Charles Dabney.
Foi palco dos mais variados eventos culturais
da Horta e residência oficial de John até ao
início do século XX, altura em que foi
vendida por sua filha Sarah à Companhia dos
Cabos Telegráficos “Commercial Cable
Company” para residência do seu diretor. Foi
adquirida posteriormente pelo Governo
Regional dos Açores, sendo, atualmente, a
residência oficial do Presidente da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma
dos Açores.
Na Rua Marcelino Lima, no edifício
agora pertencente à ALRAA que alberga
a Biblioteca Álvaro Monjardino e onde
durante vinte anos funcionou o
Conservatório Regional da Horta, foi
originalmente a casa do diretor da
Companhia do Cabo Telegráfico
Submarino Alemã, que ali viveu rodeado
de familiares.
13
Bagatelle
Foi a primeira residência dos Dabney,
tendo sido construída durante o período
da Guerra Anglo‐Americana (1812‐1814).
Frequentemente visitada por amigos,
familiares e estrangeiros que faziam
escala no porto da Horta, foi palco de um
baile em honra de D. Pedo IV, em 1832, e
do príncipe de Joinville, filho dos reis de
França, em 1834. É atualmente um
condomínio fechado.
14
9
Casa Grande dos Bensaúde
Edifício burguês de meados do século XIX, de aparato e impacto urbano pelas proporções
relativamente ao enquadramento, boa composição da fachada com eixo de simetria bem marcado na
qual sobressaem os balcões, com os respetivos gradeamentos, e os lintéis de portas e janelas, em
basalto trabalhado.
Alberga atualmente a Biblioteca Pública e Arquivo João José da Graça. Foi propriedade de Walter
Bensaúde, abastado comerciante de origem judaica.
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Victor Rui Dores
número 4
Ficha Técnica
Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretor: Tomás Melo -Subdiretores: José Luís Neto e Carla Dâmaso -- Diretor artistico: Luiz Domanoski -- Design: Sónia Rosa -Revisão: Carla Devesa Rodrigues -- Moradas: Largo Duque d'Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta | Monte
da Guia, 9900-124 Horta -- Email: museu.horta.info@azores.gov.pt | geral@oma.pt -- Periocidade : Mensal
-- Impressão: Gráfica "O Telegrapho", Rua Conselheiro Medeiros, n.º 30, 9900-144 Horta
O Museu da Horta lançou o repto à população do Faial para que,
entre 17 de fevereiro e 30 de abril, cedesse à instituição brinquedos
antigos, os quais, caso necessitassem, com a devida autorização dos
proprietários, seriam alvo de limpeza e consolidação por parte da
Conservação e Restauro.
A iniciativa partiu e foi desenvolvida pelo Serviço Educativo que, ao
pretender comemorar o Dia Mundial da Criança com uma exposição
dos brinquedos recolhidos, decidiu envolver a comunidade para que,
mais do que objetos, partilhassem também memórias.
Ao longo de cerca de setenta e dois dias, o Museu da Horta, recebeu
mais de centena e meia de brinquedos e de jogos.
Das peças que se reuniram, representativas do universo infantil,
algumas, poucas, foram produzidas localmente, sendo, na sua maioria,
objetos de importação, nacional e internacional; destinavam-se a
brincadeiras no seio da intimidade dos lares, em agregados urbanos
com expressivo poder de compra. A aquisição de brinquedos, tanto no
Faial, como nas demais ilhas do arquipélago, seria um luxo de difícil
acomodação com os minguados rendimentos da maior parte das
famílias.
Todos eles refletem, de forma evidente, a separação das infâncias por
géneros, masculino e feminino, espelhando a realidade da sociabilização
infantil dos tempos, onde as brincadeiras mistas,
descritas nos famosos livros de Enid Blyton –
como os Cinco, os Sete, o Mistério –, eram a
exceção, e não a regra.
Conforme à moral que se desejava
vigente, as escolas estavam
separadas, preferencialmente, por
sexo, numa segregação que,
repetida em tarefas e em afazeres
quotidianos, repassaria para todas
as esferas da sociedade.
3
brincar
Fazer alguma coisa por brinco e divertimento;
divertir-se, folgar, foliar, entreter-se.
brincadeira
Acção de brincar, folgar, divertir-se, zombar;
divertimento, sobretudo entre crianças; folgança.
infância
Período da vida do homem, que vai desde o
nascimento até a puberdade.
António de Morais Silva, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, vols. II
e V, 10.ª Edição revista, corrigida muito aumentada e actualizada por
Augusto Moreno, Cardoso Júnior e José Pedro Machado, Editorial
Confluência, Lisboa, 1950, pp. 620 e 946 [respetivamente].
“Gatinho Cheshire” – começou Alice,
timidamente, pois não sabia se ele
iria gostar do ; mas ele pôs-se a rir,
mostrando ainda mais os dentes.
“Bom, até agora ele parece estar
satisfeito”, pensou Alice, e continuou
a falar:
– Diga-me, por favor, a partir daqui,
que caminho é que devo seguir?
– Isso depende bastante do sítio para
onde queres ir – respondeu o Gato.
– Pouco me importa para onde –
disse Alice.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas,
Publicações Europa-América, Mem Martins,
1977, pp. 69-70.
4
A idade dos infantes ou dos não
falantes – daqueles que por não
terem os dentes bem ordenados ou
firmes não podiam expressar-se bem
nem formar palavras perfeitas –,
durava até aos sete anos e
designava-se por infância; seguia-se a
da puerícia que, até aos catorze
anos, descrevia o ser como a menina
do olho – protegida e (res)guardada;
a fase da adolescência, a do vigoroso
crescimento e desenvolvimento, podia
estender-se até aos 30 ou 35 anos.
No quotidiano, as palavras utilizadas
– criança, infante, jovem, mancebo,
moço ou rapaz –, inúmeras vezes
proferidas sem correlação etária,
refletiam indefinição e ambiguidade
social face à idade.
A criança, assim que superava o seu
período mais frágil e adquiria relativa
destreza e desembaraço físicos, logo
se misturava com os crescidos, com os
quais partilhava os seus trabalhos e
os seus jogos. Por ser tida como um
adulto ainda em evolução, a sua
vida, ou passava despercebida, com
a quase indiferença da invisibilidade
ou, semelhando cãezinhos ou
macaquinhos, servia para gáudio dos
mais velhos.
Comum a todo o ocidente europeu, a
partir de finais do século XVII, esta
realidade, devido à substituição da
aprendizagem pela escola, foi-se
modificando.
5
Princípio 1.º
Estes direitos serão
reconhecidos a todas as
crianças sem discriminação
alguma, independentemente
de qualquer consideração de
raça, cor, sexo, idioma,
religião, opinião política ou outra da
criança, ou da sua família, da sua origem
nacional ou social, fortuna, nascimento
ou de qualquer outra situação.
Princípio 2.º
A criança gozará de uma protecção
especial e beneficiará de oportunidades e
serviços dispensados pela lei e outros
meios, para que possa desenvolver-se
física, intelectual, moral, espiritual e
socialmente de forma saudável e normal,
assim como em condições de liberdade e
dignidade.
Princípio 6.º
A criança precisa de amor e
compreensão para o pleno e
harmonioso desenvolvimento da sua
personalidade.
Princípio 7.º
A criança deve ter plena oportunidade
para brincar e para se dedicar a
actividades recreativas, que devem ser
orientados para os mesmos objectivos da
educação.
Princípio 8.º
A criança deve, em todas as circunstâncias,
ser das primeiras a beneficiar de protecção
e socorro.
Princípio 9.º
A criança deve ser protegida contra todas
as formas de abandono, crueldade e
Princípio 3.º
exploração, e não deverá ser objecto de
A criança tem direito desde o nascimento qualquer tipo de tráfico.
a um nome e a uma nacionalidade.
Princípio 10.º
Princípio 4.º
A criança deve ser protegida contra as
A criança tem direito a uma adequada práticas que possam fomentar a
alimentação, habitação, recreio e cuidados discriminação racial, religiosa ou de
médicos.
qualquer outra natureza.
Princípio 5.º
A criança mental e fisicamente deficiente
ou que sofra de alguma diminuição social,
deve beneficiar de tratamento, da
educação e dos cuidados especiais
requeridos pela sua particular condição.
Excertos da Declaração dos Direitos da
Criança, Proclamada pela Resolução da
Assembleia Geral das Nações Unidas n.º 1386
(XIV), de 20 de Novembro de 1959.
6
“Qual é, então, a maneira certa de viver?
A vida deve ser vivida como um jogo,
jogando certos jogos [...], cantando e
dançando [...].”
Platão, Leis, VII, 796.
A brincadeira e o jogo diferenciam a espécie
humana das restantes que no planeta habitam.
Desde cedo, mesmo nas fases mais primitivas da
civilização, que estes impulsos, associados ao
divertimento e à competitividade, impregnaram toda
a vida como um verdadeiro fermento...
Os brinquedos, enquanto objetos,
mimetizavam, regradamente, os papéis
sociais de género que se esperava que
as crianças, quando crescessem e se
tornassem adultos, assumissem. No caso
dos meninos idealizava-se o papel do
herói – corajoso, abnegado, providenciador, que se sacrificava em prol dos
demais –, centravam a ação no exterior, na manifestação de adrenalina:
eram as lutas, com cavaleiros, cowboys, soldados; era a velocidade e a
destreza, com os carros de corrida. Para as meninas, idealizava-se o papel
de cuidadora do lar e cuidadora – maternal, disponível e sofredora em
prol dos demais –, centravam a ação no interior, no universo da casa.
Bonecas, berços, casinhas, fogões, ferros de
engomar e outras formas de domesticidade
eram o modelo incentivado.
Esta visão estereotipada encontra-se
plasmada em dois pequenos livros que
no país, durante grande parte do
século XX, granjearam sucesso: Já és
um Homenzinho e Já és uma
Mulherzinha.
7
Porque, à semelhança do restante arquipélago, as escolas do
Faial estavam instaladas em casas alugadas, sendo os edifícios
escolares, à exceção dos da cidade, mal conservados, com falta de
mobiliário e carestia de material didático, a partir de 1945, integrando do
Plano dos Centenários – concebido pelo Estado Novo para que,
nenhuma criança deixasse de ter escola ao seu alcance –, foram
organizados e instalados, devidamente apropriados para a função,
estabelecimentos de ensino primário.
Nesses edifícios tipificados, impunha-se um modelo educacional de
acordo com um regime que separava meninos de meninas, o tempo de
escolaridade obrigatória se reduziu de cinco para três anos e se educava
de acordo com os seus interesses ideológicos, sob a máxima: Deus, Pátria,
Família.
1–
2–
3–
4–
5–
6–
7–
8–
9–
10 –
Escolas do bairro – Bairro das Pedreiras – Angústias
Escola das Angústias – Rua Capelo Ivens - Angústias
Escola da Portela – Rua da Portela - Feteira
Escola do Farrobim – Farrobim do Sul – Feteira
Escola da Feteira – Rua do Algar - Feteira
Escola da Carreira – Bairro da Carreira – Castelo Branco
Escola da Lombega – Bairro da Lombega – Castelo Branco
Escola da Ribeira do Cabo – Estrada Regional, Ribeira do Cabo – Capelo
Escola do Capelo– Rua da Igreja – Capelo
Escola do Norte Pequeno – Estrada Regional – Capelo
8
11 –
12 –
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20 –
Escola da Praia do Norte – Estrada Regional – Praia do Norte
Escola do Cascalho – Estrada Regional – Cedros
Escola da Praça – Estrada Regional – Cedros
Escola do Salão – Estrada Regional – Salão
Escola dos Espalhafatos – Estrada Regional, Espalhafatos – Ribeirinha
Escola da Ribeirinha – Rua da Igreja - Ribeirinha
Escola de Pedro Miguel – Rua da Igreja – Pedro Miguel
Escola da Volta – Rua Padre Júlio de Andrade – Conceição
Escola dos Flamengos – Rua da Praça – Flamengos
Escola da Matriz – Largo do Bispo - Matriz
9
Sendo as alfândegas instituições seculares, por elas passava o
controlo dos impostos da entrada e da saída de produtos, fazendo
reverter para o Estado o que lhe cabia como devido. Eram também
elas as responsáveis pela autorização do que podia, ou não, em cada
território ser comercializado. De certo modo reticentes quanto
confrontadas com novidades, que constituíam um problema, visto
não saberem se colocariam em causa, ou não, a saúde pública, a
posições político-estratégicas do Estado, ou, simplesmente, se
poderiam minar a viabilidade de produções nacionais.
Das apreensões, efetuadas pela Alfândega da Horta, houve uma
parte percentualmente significativa de brinquedos, a
demonstrar uma propensão de defesa das crianças
faialenses, talvez que, por vezes, excessiva, mas
inequívoca no cuidado, no zelo e no
apreço pela infância dos seus
agentes. Eis alguns exemplos
desses mesmos brinquedos que
entre as suas paredes ficaram…
Nas escavações arqueológicas realizadas, em 2021, no Castelo da
Rocha Negra, nos Cedros, um dos mais emblemáticos monumentos
da Horta, encontrou-se um carrinho de corrida, pese embora já não
completo. Trata-se, através de um
brinquedo, do testemunho de um
dos últimos habitantes desse
lugar: um menino.
10
O processo de reabilitação da Trinity Hose / Join
Cable Station em núcleo dos cabos submarinos do
Faial, progride. Será um polo do Museu da Horta
que refletirá as existências e transformações vividas
na ilha ao longo do século XIX até meados do
século XX, uma Idade de Ouro complexa e intensa.
Mesmo sendo coleção de brinquedos existente no
Museu da Horta diminuta, é nossa intenção nele
representar as diversas transformações, à época
da visão infantil.
Apelou-se à comunidade, a doação de brinquedos
enquadráveis nesses 150 anos, de modo a
conseguir ultrapassar as limitações impostas pelo
atual acervo.
Finda a exposição, vários dos brinquedos cedidos,
foram doados pelos seus proprietários e integrados
no espólio do Museu da Horta.
Carla Devesa Rodrigues
11
MU SE U
AZ U L
NÚMERO 5
Coleção de Vergílio Schneider
1 5 de novembro de 2022
a 27 de fevereiro 2023
Museu da Horta
Colégio dos Jesuítas
Ficha Técnica
Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretor: Tomás Melo -Subdiretores: José Luís Neto e Carla Dâmaso -- Diretor artístico: Luís Domanoski -- Design: Sónia Rosa
-- Revisão: Carla Devesa Rodrigues -- Moradas: Largo Duque d'Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta |
Monte da Guia, 9900-124 Horta -- Email: museu.horta.info@azores.gov.pt | geral@oma.pt -Periocidade: Mensal -- Impressão: Gráfica "O Telegrapho", Rua Conselheiro Medeiros, n.º 30, 9900144 Horta
O Sagrado
na encruzilhada
entre o
Ocidente e Oriente
Por mares nunca dantes navegados, foi a Oriente,
entre gente remota , que Portugal edificou, não um Novo Reino, mas
um império. Assente no mar oceano, e disperso por uma vasta
geografia, estendia-se, do lado da Ásia, do Cabo da Boa Esperança
ao Golfo Pérsico, e do outro, do Japão chegava a Timor. Por dois
séculos, a escolha para a sua capital, recaiu em São Francisco de
Goa ou, simplesmente, Goa onde, um sistema de auto-governo,
mantido por redes de vassalagem e protetorado, tinha por base as
instituições políticas e as administrações locais.
“Muitas
vezes me espantei de como em tão poucos
anos os portugueses têm podido levantar tantos e
tão magníficos edifícios de igrejas, mosteiros,
palácios, fortalezas e outros ao modo da Europa.”
Viagem de Francisco Pyrard de Laval, 1 601 -1 61 1 .
À semelhança dos demais subordinados à Coroa Portuguesa, também
neste novo e imenso território, se declarava o catolicismo religião
oficial e, consequentemente, através da missionação, o sonho da divulgação da Mensagem de Cristo ganhava forma, com a presença de
evangelizadores, regulares e seculares: franciscanos, jesuítas,
dominicanos, agostinhos e carmelitas descalços.
“Porque
os reis de Portugal sempre procuraram
nesta conquista do Oriente unir tanto os
dois poderes, espiritual e temporal, que em
nenhum tempo se exercitasse hum sem o outro.”
Diogo do Couto, Da Ásia , Década V, 1 61 2.
3
“Uma coisa lhe direi que folgarão
de saber, acerca da devoção desta
gente. Têm eles muito respeito e acatamento às
imagens que folgam de as ter em suas casas para
diante delas encomendarem suas almas a Deus. […];
em casa de outro estavam umas cinco cartas de jogar;
postas tão bem na parede em cruz por oratório.
Parece que se acham pela rua e, cuidando que eram
santos, e que os perdera alguém, determinaram
aproveitar-se deles.”
Carta de Luís Fróis em Goa, aos Irmãos da Companhia de Jesus na Europa, 1 560.
Pequenas páginas com imagens de santos, conhecidas como pagelas
ou registos devocionais, transformadas em iconografia de
combate e de propaganda , permitiriam, pela facilidade do seu
transporte até tão longínquas paragens, a divulgação da mensagem
cristã, sendo, ao mesmo tempo, influente fonte de inspiração na
execução de artefactos – em madeira ou marfim – de cariz
religioso, por crentes locais.
“E
porque não é conveniente que os oficiais gentios
fundam, pintem ou lavrem (como até agora se lhes
permitiu) imagens e figuras de Cristo Senhor nosso,
nem de seus santos, para venderem mandamos que
ponhais toda a diligência em o impedir, pondo penas,
que, o que se provar que fez alguma imagem de
sobreditas, perca sua fazenda, e lhe deem duzentos
açoutes, porque sem dúvida parecerão muito mal
imagens que representam mistérios tão santos
andarem por mãos de idólatras gentios.”
Carta de D. João III a D. João de Castro, 4.º vice-rei do Estado Português da índia, 1 546.
Esta confluência quotidiana gerou uma expressão decorativa
miscigenada, onde motivos ocidentais como cristianismo, história, mitologia e vivências dos europeus se combi-
navam com temas pertencentes ao imaginário
dos povos locais: as reli-giões, a mitologia, os costumes
ou as representações da fauna e da flora, então desconhecidas na Europa.
4
Porque eternizava o fim da sua vida
terrena, na crucificação, Cristo também
podia surgir como
,
com a cabeça e as madeixas de
cabelos descaídos à direita, os olhos e a
boca cerrados e, por vezes, com mais
do que uma chaga no torso.
Moribundo
Bem mais do que colocar Cristo, o Salvador, numa Cruz, exemplo máximo da
sua Paixão, a sua representação dividiase em distintas simbologias como, por
exemplo, a do
: apresentado com a cabeça erguida, os olhos
levantados para o Céu, os cabelos em
madeixas de ambos os lados do
pescoço e a boca entreaberta.
Expirante
5
“Eu sou o Bom Pastor:
conheço as minhas ovelhas e as Minhas
ovelhas conhecem-Me. Assim como o Pai
Me conhece, também Eu conheço o Pai e
dou a Minha vida pelas Minhas ovelhas.”
Evangelho segundo São João
,
1 0: 1 4-1 5.
Desde a segunda metade do século XVII que mininos
pastoris ou Bons Pastores , eram produzidos na Índia
e enviados para Portugal , ficando na posse de instituições ou de religiosos, bem seculares, como regulares e
tam-bém na de particulares.
Combinando a Parábola Joanina com a da Ovelha
Perdida, numa evidente preferência de moralização,
Cristo é figu-rado como um pastor que se sacrifica para
defender o seu rebanho e passar, Ele mesmo, a ser
cordeiro no caminho da Salvação; muitas vezes representado numa posição – sentado e apoiando uma perna
sobre a outra – semelhante a algumas imagens de Buda.
“O
Senhor Deus fez desabrochar da terra
toda a espécie de árvores agradáveis à
vista e de saborosos frutos para comer; a
árvore da vida, ao meio do jardim; e
as árvores da ciência do bem e do mal.”
Génesis
,
2 : 9.
As ramagens que, inúmeras vezes, acompanhavam o Bom
Pastor, podem ser interpretadas como representações da
Árvore de Jessé ou da Árvore da Vida , figurando
naquela a genealogia de Jesus Cristo e nesta, a materialização do dogma da Santíssima Trindade: Padre
Eterno, Espírito Santo e Cristo. Ao mesmo tempo, com as
folhas perenes, a simbolizar a Morte e a Ressurreição,
recordavam, numa perspetiva oriental, o tema da figueira
ou da árvore do cinábrio, junto à qual Sidharta Gotama
conhece o bodhi ou, despertar, recebe a iluminação e se
torna Buda.
65
“E para a festa ser
mais solene, em cada
lugar onde se há-de
dizer a doutrina
armam um altar
pequeno na rua, com
imagens devotas e
velas acesas.”
Carta do Padre Leão Henriques ao Provincial Francisco Borgia,
Vários e bem distintos foram os santos a
que a elegância do marfim deu forma,
num ciclo hagiológico de notável variedade: Santa Ana; Santo António de
Lisboa ou de Pádua; São Francisco
Xavier; São José ou São Sebastião, são
apenas, desses muitos, exemplo. A par
destes, sairiam das mãos dos gentios , a
testemunhar o desejo da omnipresença
da religiosidade cristã, um sem número
de escul-turas, embora ausentes de
atributos individualizantes reconhecíveis
pelas vestes apropriadas à sua função: a
de missionar e a de, no caso de bispos,
apostolar. Uma tentativa de universalidade de fé simbolicamente sublinhada
por Cristo, na figura de Salvador do
Mundo, em que a mão direita replica o
gesto de abençoar e a mão esquerda
segura o globo so-berano cruciforme, a
orbe terrestre.
7
1 5 66.
A Mãe de Deus, a sempre Virgem, a Rainha
a sempre Virgem, a Rainha de todos os Santos, a concebida Sem
mácula, a Intercessora da Humanidade. Maria. Aquela sobre quem,
dentro da religião católica, sob o manto da hiperdulia, a alta
veneração , recaíram as mais variadas honras, devoções e cultos.
Às representações mais comuns, como Nossa Senhora com
o Menino Jesus, Pietá, Nossa Senhora do Rosário e, sobretudo,
Nossa Senhora da Conceição, por vezes, com o Menino nos
Braços, esta imaginária, outras interpretava: Nossa Senhora da
Assunção, das Dores, dos Navegantes, dos Remédios ou do Pilar.
“Fazem os irmãos devotos
presépios e dos mais ricos
sepulcros da Índia.”
Sebastião Gonçalves, História da Companhia de Jesus no Oriente , 1 546-1 561 .
Dos vários temas alusivos à Infância de Cristo, a representação da
Sagrada Família e do Presépio foram os que mais proliferaram.
Tendo este último, mais conhecido como Presépio da Adoração,
origem no modelo quatrocentista, divulgado pela devoção franciscana onde o infante, desnudado e deitado nas palhas, era adorado
por Nossa Senhora e São José, em pé ou de joelhos.
Num território em que, pela sua vasteza e longura, a portabilidade
de imagens e representações devocionais adquiria sobeja relevância, gravuras soltas serviram de modelo para a criação de
placas em marfim, capazes de – com ou sem moldura – serem
facilmente transportadas, pousadas e penduradas. Adquirindo
tridimensionalidade, estas esculturas de relevo retratavam episódios bíblicos, como por exemplo, a Anunciação do
Arcanjo Gabriel a Maria, Jesus com Maria e Santa Ana, a
apresentação de Cristo no Templo ou a Pietá .
Também nestas representações, o quotidiano do outro, que não o
ocidental, se deixa entrever: nos trajes e nos panejamentos, na fácies
dos indivíduos ou até na estilização angular de plantas e de nuvens.
8
Também sobre madeira
– de teca ou de sissó, com toques de púrpura a
variar entre o dourado e o castanho – ao tomar a
forma de Virgens com o Menino ou de recetáculos
de relíquias. Polícromas, com o auxílio dos
orientais índigo e curcuma, podiam também, em
particular, se se tratavam de santos de roca ou de
vestir, destinados a conventos femininos, receber nas tidas zonas nobres, o rosto, as mãos
e os pés, a alvura do marfim.
“[…] se gasta em coisas
muito polidas, que se fazem
na terra, de cofres e pentes
e outras muitas coisas.”
Garcia da Orta, Colóquios dos Simples e
Drogas da Índia , 1 563.
As mãos que, com engenho, materializavam o sagrado, seriam as mesmas
que, ao mesmo tempo de hostiários
e castiçais, criariam caixas, cofres
e contadores; é fá-lo-iam juntando
ao marfim, o rendilhado da prata, o
brilho da madrepérola e a semiopacidade da tartaruga.
A Goa, desde o século XVI,
confluiriam inúmeras mercadorias:
incontáveis especiarias, exóticas
madeiras, âmbar, ouro, prata,
gemas preciosas, seda e
porcelanas; e daí, partiriam as
mesmas, com destino ao comércio
de uma, cada vez mais, voraz e
cobiçosa Europa. A este quase
interminável rol, somavam-se as
presas de elefante.
Desde que, no Oriente, a presença de europeus se fez sentir, o
marfim, pelo seu valor estético e material, foi uma constante nas
suas encomendas de objetos profanos ou religiosos. Na Ásia, na
ilha de Ceilão em particular, encontravam-se os mais doutrináveis e
estimáveis destes animais; e em ambas as costas africanas se
carregavam naus com os seus dentes. A defesa do elefante
africano – por poder atingir os 90 quilos de peso, o comprimento
de 2 a 3 metros e ser mais mole , logo, mais fácil de ser trabalhada
– tornava-a mais apetecível face à asiática.
O crescente tráfico de marfim, decorrente do aumento da procura,
levou ao estabelecimento de rotas específicas, das quais duas se
destacariam: a da Costa Suaíli à Índia Por-tuguesa e a de Goa, a
ligar a Ásia a Moçambique, à Zambézia e a Sofala; podendo, o seu
valor comercial-económico chegar a atingir, no Oriente, um preço
seis vezes superior ao obtido nas praças africanas . Este incremento
exponencial levou, não só à criação de regulamentação própria,
como também se monopolizou na Coroa, passando, inclusive, a
integrar a lista de produtos que, os portugueses transformaram na
obrigatoriedade de tributo.
Estima-se que, a sua exportação anual, entre os portos de Sofala e
Moçambique e o Oriente tenha, no século XVI, atingido 35
toneladas e, no XVII, alcançado os 44 mil quilos .
10
Virgílio
Schneider
A partir da entrevista de
Mariana Rovoredo para o
Tribuna das Ilhas,
1 4 de abril de 2022
Colecionador de arte e antiguidades há mais de 30 anos, Virgílio
Schneider tem uma diversificada
coleção de objetos, testemunhos da
expansão portuguesa no Oriente
[…]. Expôs pela primeira vez no
Palácio de Belém, três sagradas
famílias de Goa, e expõe regularmente no Museu de Angra do
Heroísmo […].
Com grande interesse pela museologia e tendo já contactado com o
Museu da Horta no sentido de
criar uma nova dinâmica de exposições, o colecionador conta que
surgiu esta oportunidade […] de
partilhar com a comunidade esta
sua coleção […].
Estas peças de arte constituem prova física do período em que Portugal mais impacto teve no mundo,
o da expansão ultramarina […].
Virgílio conta-nos também a sua
relação com a sua coleção e a arte
em geral:
“Eu sou o guardião destas
peças. Tenho o privilégio
de poder tomar conta delas.
Sou efémero, mas a obra de
arte ficará e outra pessoa
tomará conta delas”.
É este espírito e atitude de partilha
que pretende promover entre a
comunidade e a arte. Pode-se pagar
para possuir temporariamente uma
obra de arte, mas não se é, verdadeiramente, dono da arte.
11
Bilhete Postal
Fotografia de José António Bettencourt
MUSEU
AZUL
NÚMERO 6
Naves
submersas
Ficha Técnica
Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretor: Tomás Melo -Subdiretores: José Luís Neto e Carla Dâmaso -- Diretor artístico: Luis Domanoski -- Design: Sónia Rosa
-- Moradas: Largo Duque d'Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta | Monte da Guia, 9900-124 Horta -Email:
museu.horta.info@azores.gov.pt | geral@oma.pt -- Periocidade : Mensal -- Impressão:
Gráfica "O Telegrapho", Rua Conselheiro Medeiros, n.º 30, 9900-144 Horta
A implementação de Centros de Conhecimento e Sensibilização do Património
Cultural Subaquático dos Açores, a instalar
em cada ilha com centros de mergulho, visa
possibilitar ao público em geral, acessibilidade indireta a esse património cultural.
O pioneiro do arquipélago, com
toda a justiça, é o do Faial, sito na
Casa da Guarda do Forte de São
Sebastião, Porto Pim, Horta –
Cidade Mar (provisoriamente no
aBancarte), seguindo-se-lhe o do
Pico, na Casa do Peixe, Madalena,
criando nova ponte sobre o Canal.
Atendendo à secular e simbólica
ligação entre a terra e o mar, nas
especiais circunstâncias do arquipélago dos Açores, que deu origem
a uma cultura muito específica, pretende-se oferecer competências ao
visitante, nestes centros interpretativos, a saber, sensibilizar para o
sensível meio ambiente marinho;
sensibilizar para o frágil património cultural subaquático nele existente; educar para a interação com
esse património cultural; facultar a
fruição indireta desse património
cultural; e, a quem o deseje, incentivar a fruição direta, desse património cultural.
No arquipélago dos Açores, a
partir de meados do século XVII,
a Horta tornou-se relevante porto
de passagem, um papel que, como
fundamental porto de escala na
navegação atlântica à vela, mantém até hoje.
Com cerca de 1.000 naufrágios
documentalmente registados, uma
centena de sítios arqueológicos já
identificados e trinta e cinco sítios
visitáveis, o património cultural subaquático dos Açores é um dos mais
importantes de todo o mundo. Ao
largo da ilha do Faial existem
cerca de 100. O objetivo de
estudar os naufrágios e antigos
ancoradouros do arquipélago dos
Açores, selecionando, a partir desse
estudo, os que possam ser visitados por mergulhadores recreativos
e pelo público em geral, tem sido,
na Região Autónoma dos Açores,
a ação fundamental no que ao
património arqueológico diz respeito. A fruição pública desses
testemunhos pode oferecer, por
um lado, o conhecimento mais
profundo da condição insular e,
por outro, uma maior compreensão
da história europeia, e ao mesmo
tempo, sensibilizar o público para
o valor, os perigos e a fragilidade
com que esses recursos patrimoniais se confrontam, bem como do
meio onde se encontram, o Mar
Oceano, que urge proteger e
salvaguardar.
3
Faial
A nau da pimenta Nossa Senhora da
Luz partiu como capitânia de uma
armada que saiu de Goa em fevereiro de 1615. Soçobrou, em Porto Pim,
ilha do Faial, a 7 de novembro. No
naufrágio perderam-se mais de 150
vidas, e deram à costa muitos dos
seus despojos, que aí foram recolhidos. O local foi descoberto em 1999
e, a partir de 2002, deu-se início a
diversas campanhas de investigação
e monotorização do sítio arqueológico. Em 2022 descobriu-se parte do
casco dessa importante nau da Índia.
Trata-se de um naufrágio importantíssimo para a arqueologia subaquática, tanto nacional, como universal,
pois é um dos poucos preserva-
dos exemplares sobreviventes
existentes de naus da pimenta
no mundo.
Horta 1 ou naufrágio do marfim
Faial
Primeiro naufrágio identificado nas
obras de construção e reabilitação do
terminal de passageiros do porto da
Horta, foi reconhecido pela car-
ga de cerca de uma centena
de presas de elefante, entre
outros artefactos. Concluíu-se tra-
tarem-se dos despojos de um navio
inglês da primeira metade do século
XVIII, da rota do tráfego africano,
dedicado ao comércio de ouro, escravos e marfim.
4
Pico
No contexto da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), ocorreu a
deportação em massa dos Acadianos, entre 1755 e 1764. Os
Acadianos eram os colonos francófonos e católicos da região
costeira oriental do Canadá (Acádia), uma região em guerra,
pela invasão das forças britânicas. Inicialmente os colonos
foram levados para Sul, para as Treze Colónias Inglesas; os
que conseguiram escapar a esta perseguição, estabeleceramse nas partes não colonizadas da Acádia, como a Ilha de Saint
Jean. A segunda expulsão levou-os a serem deportados para
França. É da ilha de Saint Jean, hoje Prince Edward, que, em
1758, partiu o Ruby capitaneado por William Kelly,
numa esquadra de oito navios sobrelotados, que
transportavam os deportados. Ao chegar aos Açores,
já haviam perdido dois barcos numa tempestade, o Violet e o
Duke William. A 16 de dezembro o Ruby, que já havia perdido
77 pessoas devido a doença, embateu num baixio na costa sul
da ilha e afundou, morrendo 116 pessoas na tragédia. Os 143
sobreviventes, foram transferidos para um navio português, o
Santa Catarina, e levados até Inglaterra, passando pouco
depois a França.
Pico
Tendo iniciado a sua última viagem a 1 de janeiro de 1796, em
Guadalupe, nas Antilhas Francesas, trazendo carregamento
de açúcar e café destinados a França, a fragata L’Astrée
trazia 180 marinheiros, passageiros e soldados, para além de
18 peças de artilharia. Apanhando uma tempestade no
Atlântico, a embarcação começou a meter água, sendo que
quando chegaram ao largo da ilha, já havia vários dias e
noites em que as cinco bombas existentes no navio trabalhavam sem interrupção, já sem dar vazão à agua que não
cessava de subir nos porões. A situação aflitiva, aliada
à exaustão e ao terror, levaram a uma última
manobra desesperada, num mar tormentoso. Atirar o
navio às rochas foi a solução encontrada e fizeram-no no
sítio de Santo Amaro. 123 pereceram, 57 foram os sobreviventes, sete deles prisioneiros de guerra ingleses.
5
Horta 3,
de naufrágio, descoberto no acompanhamento arqueológico das
obras do porto da Horta, reconhecível pelo considerável número de peças de artilharia. Pelo estudo
Faial Sítio
das bocas de fogo, foi possível concluir
tratar-se de uma embarcação afundada,
de origem britânica, cronologicamente
enquadrável no final do século XVIII ou
começo do XIX.
Pico
A 14 de janeiro de 1856, William Dabney
avistou, pela janela do escritório comercial da família, na cidade da Horta, ilha
do Faial, uma embarcação desmastreada
que dobrava o monte da Guia, entre um
cerrado nevoeiro. Tratava-se do Ravenswood, embarcação americana que acabou
por encalhar, e posteriormente afundar,
no lugar de Cais do Mourato, na Madalena. Pelos relatos de época, naufragou
pela incompetência do seu capitão, embriagado ou entorpecido
pelo consumo de láudano, receitado
pelos médicos de então. Era uma embarcação de comércio transatlântico, transportando bens de luxo, da Europa para os
Estados Unidos da América. A sua última
viagem, que acabou por terminar nos
Açores, tinha como destino final o seu porto
de origem, em Nova Iorque, tendo partido
de Le Havre, dias antes. Carregava uma
quantidade considerável de espumantes
e vinhos franceses. Através do achado
fortuito de Michael da Rosa, em 2017, foi
possível reconhecer o local e recuperar,
pelas técnicas de conservação e restauro,
um conjunto de quase mil peças.
6
Horta 6,
Faial
Atendendo à presença de elementos de forro com fixação
feita com cavilhas em liga de cobre, cronologicamente, este
naufrágio corresponderá a uma embarcação do século XIX,
ou começo do XX. Na sequência das análises laboratoriais
efetuadas em amostras de madeira exumadas durante os
trabalhos de campo, identificou-se a presença de dois tipos
distintos, de origem americana. Conjugando os dados apresentados tratar-se-ia de um barco associado à história
da baleação americana.
Faial
Vapor construído em
1868 pela Caird & Company
Greenock, com 1805 toneladas, 101.2 de
comprimento e 12.2 m de boca. Entrou
no porto da Horta a 23 de novembro de 1892, com um incêndio a bordo, quando navegava entre
Nova Orleães, nos Estados Unidos, e
Liverpool, em Inglaterra. No dia seguinte
foi encalhado no Porto Pim, onde se encontra. É naufrágio visitável. Trata-se do
mais acessível naufrágio visitável da Horta.
7
Pico
Trata-se de um veleiro construído
nos estaleiros de La Loire, em
Nantes, em 1895, naufragado ao
largo da vila da Madalena a 3 de
setembro de 1901. A carga consistia em salitre potássico, fertilizante natural destinado aos já então
cansados solos europeus, popularmente denominado Nitrato do
Chile. A importância histórica, arqueológica e documental deste
naufrágio é de tal forma relevante que foi classificado como
terceiro parque arqueológico da Região Autónoma dos
Açores. É naufrágio visitável.
Pico
Vapor americano de 3200 toneladas e 39 tripulantes, naufragado a
27 de dezembro de 1920, ao largo
da Costa da Terra do Pão, no Pico.
Erigido no estaleiro nº 83 a partir
de 20 de junho de 1919, a quilha do
casco EFC 817 foi colocada no dia
26 do mesmo mês. Originalmen-
te destinado a chamar-se
Kahnah, o vapor acabou por
assumir o nome de Lakeside
Bridge, sendo lançado à água a
31 de outubro de 1919. Entregue à
Shipping Board a 22 de dezembro
de 1919, o Lakeside Bridge - que arqueava 3.545 toneladas brutas foi atribuído à rota de comércio
Estados Unidos-França, sob pavilhão do armador Alexander Sprunt
& Son. É naufrágio visitável.
8
Vapor de Entre-os-Montes,
Faial Deste naufrágio é possível observar as pontas de popa e proa
de um vapor, de pequenas dimensões (cerca de 25 metros de
comprimento) que repousa num fundo de areia, que cobriu a
embarcação. A embarcação de ferro, rebitada, é enquadrável cronologicamente de entre finais do século XIX aos
primeiros anos do século XX. É naufrágio visitável. Trata-se de um
naufrágio particularmente acessível.
Cabos Submarinos de Entre-os-Montes,
Faial É possível observar diversos fragmentos de cabos submarinos,
que penetram pelos sulcos entre as pedras, sendo visíveis numerosas pontas. Metros e metros, de cabos subma-
rinos, quase tão grossos como mastros, datáveis
dos anos 20 do século XX, ainda ali repousam, numa
paisagem fantasmagórica e arrebatadoramente bela, onde a
vida pulula, habitat que agora é de miríades de peixes, que ali
se resguardam dos predadores. É património cultural subaquático visitável. Trata-se de um sítio particularmente acessível.
Pico
No auge da 2ª Guerra Mundial, durante a Batalha do
Atlântico, um submarino alemão de 67 metros foi afundado
ao largo do Faial pelo contratorpedeiro inglês Her Majesty
Ship Westcott. Este episódio é paradigmático da importância
geoestratégica dos Açores durante a Guerra, tanto como base
de apoio aos comboios navais dos Aliados, como de refúgio
destes às “alcateias” de U-Boats alemães, ambos desrespeitando a apregoada neutralidade portuguesa. É neste contexto
que o U-581, perseguindo um navio mercante refu-
giado na Horta, foi atacado na noite de 2 de
fevereiro de 1942 pelo contratorpedeiro, que após
esquivar-se de um torpedo lançado do submarino, atinge-o
com duas cargas de profundidade, incapacitando-o fatalmente. Quatro dos tripulantes do U-Boat perderam a vida,
sendo os restantes capturados quando o abandonam. Atualmente partido em duas partes, o submarino repousa a cerca
de 900 metros de profundidade ao sul do Pico.
9
Núcleo dos canhões,
Faial Constituído no âmbito do acompanhamento arqueológico do
porto da Horta, é uma reserva museológica subma-
rina, constituída por peças de grandes dimensões encontradas, designadamente por numerosas
peças de artilharia, que datam entre os séculos XVIII e
XIX, resultantes dos vários navios detetados e escavados
durante as obras, situado na baía de Entre-os-Montes, a uma
profundidade de 18 metros. É património cultural subaquático
visitável.
pertença da "Sociedade de Pescas de Aveiro",
que amarrou no Porto da Horta em abril de 1994, tendo
sofrido um incêndio que o inutilizou, foi afundado no dia 21 de
novembro. Trata-se de um dos últimos exemplares da
secular saga da pesca ao bacalhau, que marcou
profundamente a história portuguesa e do qual o prato típico
local, bacalhau com minhotes, é deliciosa testemunha dessa
narrativa. É afundamento visitável, de notável integridade,
mas somente acessível a mergulhadores experientes.
Faial Bacalhoeiro
10
Pontão 16,
Faial Navio que teve o seu fim de vida e, em sequência disso e por
não haver melhor destino, foi afundado ao largo da Praia do
Almoxarife. De seu nome original “Pontoon 16”, apesar da sua
aparente juventude e da ausência de registos sobre a sua
construção, constitui uma peça com alguma relevância
histórica pois auxiliou na construção do Porto da
Madalena nos anos 80 do século XX. O navio era
propriedade da empresa Tecnovia Açores que o decidiu
afundar por já não possuir condições de navegabilidade. É
afundamento visitável, de notável integridade.
Âncoras e farol das Ribeiras,
Com uma âncora com cerca de 4,5 metros, datável
dos séculos XVII a XVIII e uma segunda, de tamanho mais reduzido, com 2 metros de comprimento,
datável do século XIX, junta-se-lhes a presença de
uma estrutura submersa. Trata-se de um farolim a
petróleo, construído em 1985, submergido dois anos depois,
após uma violenta tempestade no porto de Santa Cruz das
Ribeiras. A estrutura encontra-se em bom estado, com integridade. É património cultural subaquático visitável.
alexandre Monteiro
José António Bettencourt
José Luís Neto
luís borges
pedro parreira
Fotografia de Catarina Fazenda
Pico
11
MUSEU
AZUL
NÚMERO 7
A
Ilha
Misteriosa
Ficha Técnica
Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretor: Tomás Melo -Subdiretores: José Luís Neto e Carla Dâmaso -- Diretor artístico: Luis Domanoski -- Design: Sónia Rosa
-- Moradas: Largo Duque d'Ávila e Bolama, s/n, 9900-141 Horta | Monte da Guia, 9900-124 Horta -Email: museu.horta.info@azores.gov.pt | geral@oma.pt -- Periocidade : Mensal -- Impressão: Gráfica
"O Telegrapho", Rua Conselheiro Medeiros, n.º 30, 9900-144 Horta
da Horta,
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Santa Bárba ela homenagem a este pio al do
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ur
mais uma sin fesa do património cult
de
precursor da
Faial.
Muitos anos depois, iniciado a 9 de
abril de 2022, na sala polivalente
da Casa Manuel de Arriaga, começou o Curso-livre de arqueologia,
novidade nos Açores, organizado
pelo Museu da Horta e pelo Centro
do Património Móvel, Imaterial e
Arqueológico da Direção Regional
da Cultura. Este curso apresentou
uma vertente teórica e contemplou
uma parte de formação prática. No
âmbito teórico foi dividido em doze
sessões, que ocorreram semanalmente, aos sábados, com a duração de 120 minutos cada.
Para tal, para além do formador
principal, o quarto diretor do Museu
da Horta, contou com a colaboração de profissionais de renome regional, nacional e internacional, a
saber, Jacinta Bugalhão, Pedro
Parreira, João Gonçalves Araújo,
N’Zinga Oliveira, Paulo Alexandre
Monteiro, José António Bettencourt,
João Pedro Vieira, Tânia Manuel
Casimiro e João Luís Sequeira,
totalizando 24 horas teóricas. A
parte prática, intensa também, foi
lecionada por Luís Borges.
Os objetivos da formação visaram
dotar os formandos dos conhecimentos básicos da disciplina, bem
como fornecer instrumentos que
permitam, de forma semiautónoma,
a realização de descobertas arqueológicas relevantes no território
da ilha do Faial, de modo a que
pudessem servir para criar novos
sítios arqueológicos a alocar no
inventário oficial – a Carta Arqueológica dos Açores. Contudo, a questão pertinente é, que arqueologia
terrestre existe no Faial?
3
spontar tudo o
A semente que fez de
logia no
que existe na arqueo
o, remonta há
arquipélago açorian
foi plantada
cerca de um século e
em todas as ilhas.
A semente que fez despontar
tudo o que existe na arqueologia
no arquipélago açoriano, remonta há cerca de um século e foi
plantada em todas as ilhas. Em
1924 deu-se a denominada “Visita
dos Intelectuais” aos Açores. A 24
de março desse ano a comitiva
zarpou de Lisboa, permanecendo
até finais de junho, com o objetivo
de fazer ver ao todo nacional o
quão precioso era o arquipélago.
Nessa comitiva de jornalistas,
escritores, artistas e intelectuais,
a figura maior era então José
Leite de Vasconcelos, o fundador
e diretor do Museu Nacional de
Arqueologia, fundador da Biblioteca Nacional, criador da Faculdade de Letras de Lisboa e figura
de indiscutível e superior golpe
de asa. Sobre esta viagem, escreveu um livro que se tornou célebre,
integrando os arquipélagos na sua
vastíssima obra erudita, denominado “Mês de Sonho”.
Contudo, quando queremos tocar
o outro, irremissivelmente, seremos
tocados por ele também. E Leite
de Vasconcelos, nessa viagem, tocou, influenciou e motivou muitos
dos jovens que, mais tarde, viriam
a criar as condições estruturais para que a arqueologia, por cá, germinasse. O episódio criou raízes e
medrou nas ilhas Terceira e de São
Miguel, cuja arqueologia remonta
aos finais da década de 50, década de 60 do século XX. Porém,
no Faial, a primeira ação é muitíssimo mais tardia. Corria o ano
de 1998 e arqueólogos, nacionais e
estrangeiros, vieram para o Faial
desenvolver a primeira campanha
arqueológica subaquática de que
há memória, mas, como se sabe,
no dia 9 de julho, um violento
sismo de magnitude 5,8 na escala
de Richter, atingiu e soçobrou a
ilha. Pese embora alguns bons resultados dessa campanha, o Faial
tinha muitíssimo mais em que pensar e a intervenção, compreensivelmente, passou ao lado dos interesses da opinião pública de então.
Imagem: Membros que integraram a missão de
estudo aos Açores, em Maio de 1924.
MNA. Arquivo pessoal JLV. Cx. Relatos de viagens
©DGPC/MNA
4
Cinco anos volvidos,
o Forte de
Santa Cruz, único Monu
mento Nacional
do arquipélago, viu um
arqueólogo
ali acorrer, no ano de
2003.
Cinco anos depois, foi enviado, a 2
de janeiro, um pedido de autorização para trabalhos arqueológicos
referentes ao empreendimento turístico dos Flamengos, por parte do
aqueólogo Pedro Ventura, contratado pela empresa VerdeGolf,
Campos dos Açores, S.A., a propósito da pretensão da criação de um
lote de moradias T1 e T0 de uso
turístico. Do trabalho realizado,
tanto em prospeção sistemática no
terreno, como em pesquisa documental, nada de relevante foi então
encontrado. Porém, nesse mesmo
ano de 2008, tiveram início os
trabalhos de acompanhamento arqueológico subaquático das obras
de construção do terminal de passageiros, que duraram até 2012, o
que permitiu que a equipa coordenada por José António Bettencourt
tenha replantado a semente novamente no território. Foi verdadeiramente neste caso, de longa duração
de permanência dos arqueólogos,
que o Faial despertou para esta
área da arqueologia.
A entidade reguladora das Pousadas modernizava a estalagem,
com um aumento da área do seu
edifício, instalação de uma piscina
e acrescentou de um novo andar.
Os trabalhos englobavam o revolvimento de terras por maquinaria
pesada, assim como a expansão
em altura da edificação. Através
de uma informação feita à Direção
Regional da Cultura, a arqueóloga
Ana Catarina Garcia deslocou-se
ao local, com vista a avaliar o risco
de destruição de algum valor patrimonial. Chegada ao local, constatou que as remoções do subsolo
já iam com quase um metro de
profundidade, cota na qual já
não surgiam vestígios de ocupação humana. O edifício permanece
em funcionamento como Pousada,
com a muralha circundante, e alguns dos elementos arquitetónicos
antigos preservados, articulando a
sua estética com o conceito de um
turismo histórico-culturalista. Nessa
altura estava já José António
Bettencourt a investigar o naufrágio da nau da Índia Nossa Senhora
da Luz, em Porto Pim.
5
cinco em
E nesta estranha sequência, de
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7
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mais relevante acontecimento no
o na
arqueologia terrestre diz respeit
ilha
randos vestígios da primitiva matriz,
teve eco na opinião pública e estavam criadas as condições para que
a defesa do património cultural alcandorasse a cuidado cimeiro.
Evidentemente falamos do caso
da antiga Igreja do Santíssimo
ito do
Salvador e da Torre do Relógio. A Igualmente no ano de 2017, no âmb
te de
Fren
da
primeira igreja paroquial da Horta, Projeto de Requal ficação
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lizo
implantada nesse pequeno morro, Mar da Cidade da Horta, rea
data do final do século XV/início
primeira escavação arqueológica
do século XVI. Em 1825 foi defini- terrestre, no adro da igreja de Nossa
tivamente abandonada, sendo
Senhora das Angústias.
transferida para a devoluta Igreja Os trabalhos tiveram início a 14 de
de N. S. dos Prazeres, do antigo março, tendo sido concluídos a 8 de
Colégio de S. Francisco Xavier. Com julho. Foram realizadas cinco sonesta transferência, as imagens e al- dagens arqueológicas e procedeufaias foram levadas para a nova se ao acompanhamento de uma
igreja. Após, a igreja foi demolida, pequena intervenção no subsolo
ficando apenas a Torre do Relógio, do adro. Foram encontrados vestíem 1842.
gios estruturais dos antigos temO espaço, desde então, albergou a plos, tanto da ermida inicial, como
feira do gado, tendas e barracas da igreja paroquial do século XVII.
em madeira feitas para os sinis- Detetaram-se, igualmente, numerotrados da crise sísmica de 1926, de sos enterramentos desde o final do
carácter provisório e sem grande século XV, até, pelo menos, à déintervenção no espaço, e funcionou cada de 30 do século XIX, para
como espaço público ajardinado, além de variado espólio móvel,
anexo ao jardim Florêncio Terra, que está à guarda do Museu da
com o qual se confronta na frente Horta. N'Zinga Oliveira, João Gonoeste. Uma pequena intervenção çalves Araújo, Marla Silva, foram
no local durante a década de 1960 os seus obreiros.
provocou um abatimento de parte
do chão, deixando visível uma Igualmente no âmbito do Projeto
estrutura no subsolo, provavel- de Requalificação da Frente de
mente uma cripta da igreja desa- Mar da Cidade da Horta, realizouparecida. O sismo de 9 de julho de se, poucos anos depois, o acompa1998 causou alguns danos estru- nhamento das obras diante do
turais na torre. Em 2017 ali foi Forte de Santa Cruz e envolvente,
instalado um jardim infantil e sendo que não foram detetadas
concluiu-se a construção de um estruturas antigas, pois que a zona
ringue desportivo. Porém, a contes- já havia sido alvo de revolvimentos
tação à obra realizada, assumindo intensos, muitos deles até relatia defesa e valorização dos vene- vamente recentes.
6
Foi realizada, entre os dias 15
abril
e 14 de maio de 2021, uma cam
panha
de sondagens arqueo-lógicas
num
imóvel sito no Largo do Bispo
Dom
Alexandre, com vista à instala
ção de
um hotel de charme.
Foram realizadas sete sondagens.
Nestas foi possível analisar que
era área a que o mar chegava
até finais do século XVI/inícios do
XVII e que, mercê da construção
da muralha marítima, se transformou gradualmente num paul, paul
esse que as populações circunvizinhas utilizaram como lixeira. Cerca
de 1880 iniciou-se a construção do
edificado, cuja fachada se mantém.
Numerosas moedas correntes, deixadas no piso da entrada, datam
a construção do imóvel de 1880 a
1883. O edifício estava em funcionamento antes de 1 de janeiro de
1882, mas não ainda concluído,
sendo pertença do reitor Severino
Avelar, que ali acolheu o Liceu da
Horta entre essa data e 31 de
agosto de 1926. Após o sismo, o
imóvel foi alvo de intervenção,
com colocação de novo piso de
seixo no andar térreo, sobreposto
ao anterior, com numerosos numismas coerentes entre si, a datar
esse momento, que os pedreiros
quiseram deixar bem documentado no terreno, sendo que estas
moedas e outro variado espólio
móvel, estão à guarda do Museu
da Horta. Esta intervenção foi
obrada por Cláudia Pereira e José
Luís Neto.
7
de junho de
Entre os dias 14 e 25
a campanha
2021 foi realizada um
elo da
de sondagens no Cast
s Cedros.
Rocha Negra, sito no
Foram realizadas três sondagens
com vista à deteção das valas de
fundação que permitissem datar
o período de construção do imóvel, cuja cronologia era tida por
incerta. Com base numa fração
pequena intervencionada, os indícios, coerentes entre si, apontam
que o imóvel terá sido o primeiro
edifício no local, datando a sua
construção do século XIX, provavelmente de entre as décadas de
1840 e 1870. Não se pode concluir,
no entanto, que os elementos
pétreos trabalhados, caso dos
cunhais, sejam, por isso, contemporâneos da edificação. Estes elementos arquitetónicos, até melhor
prova, parecem ser enquadráveis
entre as centúrias de seiscentos e
setecentos, o que significará que
podem corresponder a reaproveitamentos de um edifício de caráter
monumental que, entretanto, terá
caído em desuso, anterior um par
de séculos, e que, em meados do
século XIX, aqui foram reutilizados, enobrecendo e singularizando o imóvel de tal modo, que se
converteu em “Castelo da Rocha
Negra”. O espólio móvel está à
guarda do Museu da Horta. Esta
intervenção foi obrada por Luís
Borges e José Luís Neto.
8
Entre 10 de janeiro e 18 de março de 2022,
no âmbito do projeto vencedor da primeira edição do Orçamento Participativo da
ilha do Faial, de 2016, foi realizado o
acompanhamento arqueológico das obras
do Passeio Pedonal de Porto Pim, sendo
que não foram detetadas estruturas antigas. Esta intervenção foi obrada por
José António Bettencourt e Beatriz Toste.
Entre os dias 19 e 28
de julho de 2022
foi realizada uma sond
agem na nave da
Ermida de Santa Bárb
ara.
Nesta foi possível comprovar que a
ermida teve a sua génese no final
do século XV/ início do XVI. Um
século depois foi alvo de intervenção de reestruturação, tendo-se o
mesmo passado novamente cerca
de cem anos depois. Em 1814-1818
teve obras e o mesmo pelos
meados do século. Sofreu nova
intervenção na década de 60 do
século XX e uma última após o
sismo de 1998. Ou seja, apesar
de muitíssimo transformada pelas diversas campanhas ao longo
dos séculos, a base continua a
ser a ermida mandada edificar por Pero Pasteleiro e sua
mulher, um dos primeiros ilustres povoadores conhcidos do
Faial, que veio com o primeiro capitão-do-donatário para
a ilha. O espólio móvel está
à guarda do Museu da
Horta. Esta intervenção foi
obrada por Luís Borges,
José Luís Neto e Tiago
Simões da Silva.
9
O objetivo da intervenção, que consistiu na abertura de sondagens
na área do edifício principal, era
indagar a possibilidade de preexistências arquitetónicas nessa
área, uma vez que aquele lote
havia sido adquirido aos padres
da Companhia de Jesus e se
apontava ali ter existido uma sua
casa de veraneio. Sabendo que
foi intervencionada uma parte
pouco significativa do total da
área do corpo principal edificado
da Casa do Pilar, constatou-se que
não foram encontradas quaisquer
preexistências arquitetónicas nas
áreas intervencionadas, sendo inclusive de salientar que, pelas caraterísticas geológicas detetadas,
se revela pouco provável que seja
no edifício principal que se possa
encontrar vestígios dessa hipotética preexistência. O espólio móvel
está à guarda do Museu da Horta.
Esta intervenção foi obrada por
Luís Borges e José Luís Neto.
de 2022, no
Desde 18 de outubro
âmbito do Projeto de
nte de Mar da
Requalificação da Fre
rre o
Cidade da Horta, deco
ralha
mu
acompanhamento da
segmento ao
marítima da Horta, no
eiro Miguel da
longo da Rua Conselh
grosso modo,
Silveira, que consiste,
antiga Rua do
a um antigo troço da
muralha e o
Mar, situada entre a
muralha e praia
casario, bem como a
de cerca de
adjacentes, numa área
375 metros lineares.
A muralha da Horta situava-se,
aproximadamente, entre o Monte
Queimado (a sul) e o Tribunal (a
norte), numa linha sinuosa de mais
de 2 quilómetros, pelo que estamos perante um segmento dessa
antiga estrutura. O início da fortificação da Horta data de 1567,
retomando-se em 1572, através do
financiamento proveniente da taxação de produtos essenciais, casos
do vinho, do azeite, da carne e do
sal. O processo foi feito de avanços e recuos, sendo retomado nas
primeiras décadas de seiscentos e,
desde então, alvo de remodelações
frequentes. O segmento de muralha, por decisão da autarquia, será
musealizado.
10
Imagem: Projecto Frente Mar
http://extrastudio.pt/pt/Projects/0fc9fa087
Entre os dias 16 e 26
de agosto de
2022 foram realizada
s duas
sondagens na Casa do
Pilar.
Para além da Associação do Turismo Sustentável do Faial e a Horta
Histórica terem dado evidente relevância e destaque à arqueologia,
nas edições de 2021 e 2022 de
“Faial: Descobrir a História, pensar
o Futuro” e para lá do Museu da
Horta e da Biblioteca Pública e Arquivo Re-gional João José da Graça
terem acolhido o “II Seminário Biodiversidade e o Património Cultural
Subaquático”, que juntou arqueólogos subaquáticos, biólogos marinhos e museólogos das Canárias,
Açores, Madeira, Cabo Verde e Senegal, em outubro de 2022; a 2 de
junho de 2023, 99 anos volvidos da
vinda de José Leite de Vasconcelos
à Horta, atracou António Manuel
Gonçalves de Carvalho, atual diretor
do Museu Nacional de Arqueologia, o sexto diretor após o fundador,
para, perante uma plateia bem
composta, na Casa Manuel de
Arriaga, no âmbito das “Tertúlias do
Arriaga”, nos recordar como começou esta longa viagem de um século, em que ao invés de se destruir o
antigo, se começou a caminhar
para a salvaguarda e valorização
do património cultural, para que se
honrem os antepassados, não se
perca a memória coletiva – que é o
ligante de uma comunidade – e para que pudéssemos até ver fotografias de Manuel de Arriaga, no
cargo de Presidente da República,
em visita ao Museu Nacional de Arqueologia, testemunhar e destacar,
nessa ocasião, o papel formativo e
educativo dos museus e da arqueologia na sociedade. Ideias poderosas, defendidas pelo mais ilustre
faialense, até hoje.
José António Betten
court
José Luís Neto
Luís Borges
Pedro Parreira
Tiago Simões da Silv
a
11
Imagem: «O Presidente da República e o dr. Leite de Vasconcellos» publicada a ilustrar a notícia do jornal A Lucta de 24 de Janeiro de 1912
MNA. Arquivo pessoal JLV. Cx. História do Museu ©DGPC/MNA
MUSEU
AZUL
NÚMERO 8
Ficha Técnica
Propriedade e Edição: Museu da Horta e Fábrica da Baleia de Porto Pim -- Diretor: Tomás Melo -Subdiretores: José Luís Neto e Carla Dâmaso -- Diretor artístico: Luis Domanoski -- Design: Sónia
Rosa -- Revisão: Carla Devesa Rodrigues -- Moradas: Largo Duque d'Ávila e Bolama, s/n, 9900141 Horta | Monte da Guia, 9900-124 Horta -- Email: museu.horta.info@azores.gov.pt |
geral@oma.pt -- Periocidade: Mensal -- Impressão: Gráfica "O Telegrapho", Rua Conselheiro
Medeiros, n.º 30, 9900-144 Horta
porque sujeitos à expansão europeia,
vindos de diferentes latitudes, com o
tempo, juntaram-se. Porém, a história
não ficou por aí…. Pouco tempo depois,
as costas açorianas começaram a ser
atingidas por piratas que, antes de
chegarem à Europa, viram aqui uma
oportunidade única de se apoderarem
dos tesouros das frotas que vinham de
muito longe. Entre eles, destacaram-se
os magrebinos, que faziam ataques
pontuais para capturar pessoas, levandoas e vendendo-as como escravos, os
chamados “cativos”. Dentre os que tal
sorte sofreram, cerca de quinhentos
foram “resgatados”, ou seja, foram
trazidos de volta, entre os séculos XVI e
XIX. Quando estas capturas terminaram, a coincidir com o início do processo que levou ao fim da escravatura
no Brasil, entre 1850 e 1888, viveu-se o
período da escravatura clandestina.
Muitos açorianos que emigraram para
o Brasil encontraram-se capturados
em redes ilegais de tráfico humano,
que persistiram até ao final do século,
ficando assim conhecido como o período da “escravatura branca”. A todos
esses seres humanos, da história olvidados, prestamos homenagem emprestando-lhes a voz.
Situado no meio das rotas
atlânticas, os Açores
correspondem a um
arquipélago inicialmente
desprovido de seres
humanos.
A região importou a integridade dos
seus recursos e, estes, ao longo das
diversas épocas de ocupação, vieram
das mais distintas proveniências possíveis e disponíveis. Para lá de portugueses e ibéricos, outros europeus,
vindos de mais a norte, contribuíram
mensuravelmente para a ocupação das
ilhas, sendo que todos eles se encontram bem documentados, sobretudo
no que às elites respeita. No entanto,
outros houve, daquela outra história,
menos falados e que ainda constituem
silêncio. A história dos que, desprovidos de vontade, vieram ocupar as
ilhas é outra. A somar aos donatários –
gente a quem a Coroa portuguesa
concedeu um pedaço substancial de
terra para administrar – e respetivos
súbditos, norte-africanos, africanos
subsaarianos e canarinos contribuíram
para a colonização dos Açores. Estes,
Os Açores são um arquipélago situado no Atlântico Norte,
formado por nove ilhas e alguns ilhéus, de constituição
vulcânica, ocupando 2333 km2. As ilhas encontram-se
distribuídas aproximadamente num eixo NO-SE,
dispostas em três grupos definidos por proximidade:
sendo o grupo ocidental constituído por Flores e Corvo, o
central pela Terceira, Graciosa, São Jorge, Faial e Pico e o
oriental constituído por São Miguel e Santa Maria.
Tratam-se de ilhas com um clima de tipo sub-tropical atlântico e temperado
húmido. Nove territórios insulares, com uma sociedade predominantemente
agrária, cuja navegação entre ilhas e com o exterior se realizava predominantemente no verão.
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O legado cultural dos escravos africanos, fossem
magrebinos, canarinos ou subsaarianos, perpetuou-se
no arquipélago. São comuns os topónimos “preto” ou
“negro” em diversos lugares das ilhas. O consumo do
couscous, que se perpetuou na ilha de Santa Maria, foi
semelhante em toda a região até meados do século XVIII,
aquando da introdução do arroz.
Esse manjar magrebino galgou o Atlântico e foi levado pelos casais brasileiros para o Sul do Brasil, onde ainda hoje é consumido. A sua presença
marcou profundamente o genoma açoriano, cujos estudos apontam para
81,3% de genomas europeus, 7,5% de genomas do Próximo Oriente e 11,3%
de genomas oriundos da África subsaariana.
Tanque do Negro no Jardim Duque da Terceira
Fotografia: João Melo
A presença de escravos resulta evidente da génese do povoamento, decorrente
do próprio processo de assenhoreamento das terras descobertas e inabitadas,
com recurso à mão-de-obra escrava para viabilizar o aproveitamento económico das mesmas, num país de pequena dimensão como o é Portugal, que
não dispunha de contingentes populacionais suficientes para se distribuir pelo
vasto império que construía, pelo que, desde cedo, teve de encontrar estratégias
alternativas para tornar mais ou menos efetiva essa ocupação. Embora não
sistemáticos, os números apontam para que 1% da população de São Miguel
fosse de escravos e que, entre 1583 e 1699, os escravos correspondessem entre
2,8 e 6,2% da população de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira.
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Para a ilha Terceira, quinhentista, teve 51,55% dos escravos
provenientes do Golfo da Guiné, 11,34% eram mouriscos e
35% de diversas etnias, onde já estavam, naturalmente, os
mulatos, fruto de uma miscigenação bem cedo começada, o
que terá valido ao pároco de Rabo de Peixe, na ilha de São
Miguel, o apodo de “pai dos mulatos”. No que respeita às
atividades que os mesmos praticavam, abundam os serviços
domésticos, os agrícolas, pequeno comércio e a marinharia.
Quanto aos seus proprietários, vemos eclesiásticos e aristocratas a perfazem 70% dos existentes, aos quais se juntarmos os mercadores, chegamos a quase 90% de todos os
escravos com registo. Como fica claro, seria preciso ser abastado para os possuir.
Nem sempre os senhores utilizavam os seus
escravos em atividades lícitas, pois que
Gaspar Frutuoso, por vezes narra casos onde
demonstra que os mesmos podiam ajudar a
constituir pequenos exércitos privados dos
“grandes” da terra, caso que também era
recorrente quer em Cabo Verde, quer em São
Tomé.
Não se tratariam de verdadeiros exércitos privados de escravos, forros e vadios ao serviço dos grandes latifundiários
como nos aludidos arquipélagos, mas suficientemente expressivos para salientar o princípio da autoridade dos
capitães-donatários e demais senhores do meio atlântico.
Mas também existem numerosos registos de casos de abuso
e violência, desconfiança e desumanidade. Não será de
espantar, portanto, as fugas.
A 22 de outubro de 1522, Vila Franca do Campo, na ilha de São
Miguel, foi destruída por um sismo violento, que terá alegadamente ceifado 5000 vidas e com elas a Casa do Capitão-Donatário da ilha. Em simultâneo Ponta Delgada foi assolada
por um surto de peste. Com este cenário, entende-se que tenha
havido desestruturação da ordem social vigente, a qual, em si
mesma, derivada da distância e de múltiplos fatores associados
ao seu povoamento e que aqui não cabem tratar, seria muito
menos vigiada que a metropolitana. O resto não será, então,
difícil de calcular: eclodiu a Revolta de Escravos liderada por
Badaíl, que incendiou a ilha de São Miguel – muito semelhante,
nas suas ações, à de Amador em São Tomé, de 1517 –, ou aos
“levantados” de Cabo Verde. Acabou a revolta com a decapitação do mouro e exposição pública do corpo.
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Tábua curvada do navio
negreiro "Mont Ferran"
cerca de 1864
Coleção privada Orlando
Noronha
Outras formas de resistência cultural foram praticadas. Muitas foram as
denúncias de práticas desviantes da norma social vigente que, de praticamente todo o arquipélago, entre quinhentos e oitocentos, deram entrada
no Tribunal da Inquisição. Os negros e mulatos foram com frequência
denunciados, sendo que talvez a mais notável das queixas seja a de Sebastião
feiticeiro, mulato forro, de 20 anos, morador na ilha Graciosa, que entrou
nos cárceres de Lisboa, em 1691, instigador do sabbat silvestre alegadamente ocorrido na ilha – em quase tudo semelhante a uma cerimónia de
candomblé; para lá das práticas de sangue evocadoras das divindades e os
contatos físicos com um succubus e um incubus. Tais liberalidades de
costumes valeram-lhe prisão, abjuração e três anos de degredo em Castro
Marim, no Algarve.
O Corvo foi ocupado por uma maioria esmagadora de
população escrava negra, produtora de mantas de
pássaros que caçavam, onde apenas havia um ou dois
casais de rendeiros brancos a fazer-lhes companhia,
seguindo o modelo de ocupação das “ilhas-montado”
praticado no arquipélago de Cabo Verde.
Não será de espantar, pois que os donatários de Cabo Verde fossem os
mesmos das ilhas ocidentais dos Açores, Flores e Corvo. Lá moravam 30
vizinhos, conforme narra Gaspar Frutuoso, vivendo em comunidade em
torno do único edifício público aí conhecido em quinhentos: a capela de Nossa
Senhora do Rosário.
"Moço de Recados"
José Barros
1750 - 1809
Museu Carlos Machado
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Os escravos subsaarianos cedo
se organizaram em confrarias
religiosas, que serviam,
talqualmente como na
metrópole, como associações de
solidariedade e caixa
económica para compra das
alforrias.
Foram três sedeadas nos principais núcleos urbanos do arquipélago, a saber: a
confraria de Nossa Senhora da Natividade,
dos pretos, imediata a Roma por Bula
Apostólica, em Angra do Heroísmo (ilha
Terceira); a confraria de Nossa Senhora da
Natividade, dos pretos, em São Pedro de
Ponta Delgada (ilha de São Miguel); e a
confraria de Nossa Senhora do Rosário, na
igreja do convento de São Francisco, na
Horta (ilha do Faial).
A festa de Nossa Senhora das Dores dos
pretos da Horta, na ilha do Faial, foi famosa.
As celebrações começavam às dez da manhã
na igreja onde escravos e senhores se faziam
presentes, bem como libertos, devotos e
curiosos. Às onze iniciava-se a missa,
musicada e com sermão, dedicada à Mater
Dolorosa e com coroa do Espírito Santo.
Depois coroava-se o escravo, imperador, pagando o seu senhor o bodo comum. Pelas três
e meia, de novo na igreja, realizavam-se as
vésperas de música, seguindo-se a procissão
pelas principais ruas da urbe, com três
andores, encimados por Santo Elesbão num,
Santa Efigénia noutro e ainda Nossa Senhora
das Dores. Depois de todo um dia de comer,
beber e procissões, tudo terminava numa
festa onde senhores e alguns escravos dançavam o lascivo lundum, música africana,
trabalhada e polida em corte que, desde
finais de setecentos, independentemente das
escandalosas e caraterísticas umbigadas,
satisfazia as elites.
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A aparente lonjura do arquipélago açoriano não durou
muito anos. Cedo se converterão, em zonas de fronteira
e de guerra, como disse António Cordeiro em
setecentos: “guerra sempre viva com Mouros,
corsários, que com ninguém tem paz.”.
A insegurança e a contingência entranharam-se no sentimento da população,
ao ponto de se tornar quotidiano e normal. Em 1596 e 1616 houve o assalto a
Santa Maria e às Flores, por piratas argelinos, com mais de 400 cativos; em
1623 deu-se o cerco de piratas argelinos à Graciosa; em 1632 deram-se dois
ataques de piratas argelinos, à ilha do Corvo; em 1641 o emissário régio
enviado da Terceira a Lisboa foi capturado por piratas argelinos; em 1675,
deu-se o ataque de piratas argelinos à freguesia dos Anjos, Santa Maria; em
1714, piratas argelinos atacaram o grupo ocidental, sendo repelidos; e, em
1719, piratas argelinos efetuaram uma razia nas Flores, capturando vários
prisioneiros. Estes prisioneiros eram entendidos, pelos captores, como
mercadoria.
Sede da Associação Escravos da Cadeínha, ilha de Santa Maria
Fotografia: Museu de Santa Maria
Pese embora, na Península Ibérica, o aprisionamento mútuo de cristãos e
muçulmanos ser, como forma de obtenção de resgates e de servos, após a
conquista de Ceuta, prática habitual, o quantitativo aumentou para um
fenómeno de dimensão até então desconhecida. Portugueses faziam-no e os
magrebinos também, com vista ao enriquecimento rápido. As razias terrestres existiam de parte a parte. As condições de escravidão no Norte de
África podiam revelar-se particularmente duras, o que fez com que, metade
ou ¾ dos cativos cometesse apostasia, ou seja, se tenha convertido ao Islão.
Tal era visto como uma grande honra para o dono e comummente resultava
na alforria, alteração de nome, corte com os vínculos passados e integração.
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A maioria dos cativeiros acontecia em atos
de corso ou pirataria, revelando a navegação
perigosa. O resgate poderia ocorrer a título
particular, mas, no entanto, o seu maior
número acontecia no âmbito da Mesa da
Consciência e das Ordens, do poder do
Estado e da Ordem dos Trinitários, do poder
religioso, unidos nessa causa comum.
Os Trinos, apesar de não terem
conventos nos Açores,
amiudamente vieram ao
arquipélago, com vista à
angariação de esmolas em prol
do resgate dos cativos. Em
conjunto houve doze Resgates
Gerais, entre 1640 e 1774
(Marrocos) e 1810 (Argélia),
apesar da pia intenção de se
organizarem a cada três anos.
O número total de cativos das nações europeias, o número total de cativos portugueses e
o número total de cativos açorianos é incalculável, sendo que somente é sabido que estes
eram a riqueza que justificou a prosperidade
secular de Argel. Nos Resgates Gerais foram
libertados 2500 portugueses, dos quais 512
eram naturais dos Açores. À exceção do Corvo,
todas as outras ilhas estavam representadas:
houve mais de 200 resgatados de São Miguel,
cerca de 150 da ilha Terceira, 45 do Faial,
seguidos de Santa Maria, Pico, Flores, São
Jorge e Graciosa. Contudo, é evidente que os
resgatados foi parte ínfima do seu total.
São Félix de Valois, Trinitário
Palácio Capitães-Generais, ilha da Terceira
Fotografia: Cristina Brum
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Açores e Brasil tinham ligação
direta desde meados de
seiscentos com os denominados
“navios de privilégio”, que as
ilhas de São Miguel, Terceira e
Faial passaram a dispor,
comerciando diretamente,
permitindo alguma margem de
manobra aos mercadores e
armadores das ilhas dos Açores,
no concurso ao comércio com o
Brasil.
Para lá seguiam vinhos e aguardentes, os
denominados “frutos da terra” e, no regresso
chegava o açúcar, o tabaco, as madeiras exóticas e, claro, os escravos. A emigração açoriana
para as Terras de Vera Cruz documenta-se, de
forma organizada, desde seiscentos e não se
interrompeu senão já no século XX.
A escravatura branca é um fenómeno que, em
traços largos, pode ser definido e compreendido se atendermos à história jurídica e económica do Brasil. O termo é usado desde a década
de 40 de oitocentos. Se considerarmos que em
1850 foi publicada a Lei n.º 581/1850, mais
conhecida como Lei Eusébio de Queirós, que
proibiu a entrada de escravos provenientes de
África; que se lhe seguiu o Decreto n.º 731, de
1854, que obrigou a marinha brasileira a fazer
cumprir essa proibição; que a 28 de setembro
de 1871, foi publicada a Lei do Ventre Livre; que
ainda depois foi publicada a Lei n.º 3.270/1885,
conhecida como Lei dos Sexagenários, alforriando todos aqueles que tivessem atingido
aquela idade; e, finalmente, a Lei n.º 3.353, de
13 de maio de 1888, conhecida como Lei Áurea,
que acabou com a escravatura no Brasil – o
longo processo de abolição do trabalho forçado
sem direitos. O Brasil caminhava para a
abolição, não sendo menos verdade também
que não acabariam, por isso, os escravocratas.
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Todo o processo de exploração agrícola, quer açucareira,
quer cafezeira, assentava no sistema de mão-de-obra
escrava, de modo a facultar estes dois produtos ao mais
baixo custo possível, destinados aos mercados europeus e
ocidentais.
A necessidade de mão-de-obra barata e contínua, provocou uma diversificação das proveniências da mesma, procurando prolongar um determinado modelo arcaico de produção agrícola. Engajadores, capitães de navios,
tripulações, responsáveis administrativos, todos estavam envolvidos neste
negócio altamente lucrativo, da emigração clandestina, de contingentes
populacionais de baixa condição socioeconómica, oriundos da Europa e de
Portugal, principalmente do Minho e dos Açores, que eram, à chegada, vendidos como escravos.
Palacete Silveira e Paulo, casa de brasileiro de torna-viagem
Fotografia: João Melo
Neste negócio, surgiram alguns protagonistas incontornáveis, como o armador
e capitão Manuel Maria da Silva, faialense, Joaquim Cândido de Freitas,
micaelense, o capitão Francisco Cândido Machado d’Almeida, talvez que
picaroto ou faialense, com alto grau de probabilidade açoriano e o capitão
Augusto Borges Cabral, mariense, pelo menos. A cumplicidade e corrupção das
autoridades permitiu a sua perpetuação. Ou seja, tanto a emigração legal,
como a ilegal, tiveram como evidentes protagonistas, os próprios açorianos. A
galera Maria da Glória e a Nova Maria da Glória, a barca portuguesa Açoriana e o
vapor Lidador foram os veículos. Muitos morriam na travessia. Barcos com
capacidade para pouco mais de 100 passageiros, carregavam por vezes mais de
400. À chegada, muitos deles, eram vendidos publicamente. A impreparação, o
analfabetismo e a falta de perspetivas de melhor vida, levaram a que numerosos contingentes populacionais das classes populares, arriscassem o
“salto”, pela publicidade mitificada pelo sucesso excecional de alguns “torna-viagem”, conferindo-lhes qualidades fascinantes, que ocultavam a dura e
cruelíssima verdade.
José Luis Neto
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Documento em memória dos ataques dos piratas de 1675 a Santa Maria / Fotografia: Museu de Santa Maria