Virginia Kastrup

Em um contexto de expansão da lógica privatista a todas as esferas da existência, a racionalidade neoliberal se manifesta na ordenação do espaço urbano, assim como na própria conformação das nossas subjetividades. A mesma lógica econômica que promove a mercantilização da cidade, tornando-a ‘espaço instrumental’ para a acumulação de capital, infiltra-se em nossos modos de ser e estar no mundo, instrumentalizando, de modo análogo, a própria subjetividade. Concebendo as configurações socioespaciais e as subjetividades que as constituem e são por elas constituídas como processos de coengendramento, buscaremos investigar como as intervenções dos sujeitos na cidade são capazes de produzir simultaneamente novas conformações urbanas e novas subjetividades. Nesse sentido, nos propomos a investigar como experiências de fazer-comum podem se constituir como contraposição à lógica de cerceamento que domina as cidades e subjetividades. Diante de um horizonte de fragmentação social e esvaziamento do espaço público, como reconstruir a cidade como lugar de encontro, partilha e construção coletiva? Em uma cidade marcada pela segregação socioespacial, por processos de descoletivização e privatização de seus territórios, que forças insurgentes podem vir a romper os cercamentos que constituem nossa paisagem existencial urbana? A atual pesquisa partiu da aposta nas hortas comunitárias como iniciativas capazes de produzir modos de existência mais coletivos, cooperativos e solidários, se contrapondo à lógica do medo, ao individualismo e à mercantilização da existência que impera nas metrópoles contemporâneas. Poderiam tais iniciativas se constituir como laboratórios de outros modos de ser e estar no mundo, produzindo sociabilidades mais abertas à alteridade e instituindo relações de solidariedade e cooperação, para além da lógica neoliberal dominante? Todavia, como nos ensina o método cartográfico, a abertura às recalcitrâncias do campo nos conduz a caminhos imprevistos. Ao longo do percurso da pesquisa, acontecimentos inusitados nos confrontaram com as armadilhas proprietárias que fazem obstáculo à construção do comum, apontando capturas e inversões nesse processo e trazendo luz sobre o que apareceu, em um primeiro momento, como os “cercamentos invisíveis” que estruturam as sociabilidades urbanas. Mais adiante, experiências de deslocamento em um campo não previsto redesenham os contornos da pesquisa. Uma oficina de agroecologia em uma aldeia urbana nos inicia em um território singular onde, mais do que hortas, semeia-se uma verdadeira “ecologia de saberes”, em contraposição à tradição canônica das “monoculturas do saber”. (Santos, 2007). Assim, mergulhamos no campo da Aldeia Maracanã, território de re-existência da cultura dos povos originários e resistência à apropriação pela lógica mercantil, onde se realiza o projeto da Universidade Indígena como um espaço de educação popular pluriétnica, intercultural e decolonial. Nesse sentido, a Aldeia Maracanã aparece para nós como uma iniciativa especialmente potente, onde o resgate e a valorização da visão de mundo dos povos originários movimentam um processo de descolonização dos nossos modos de pensar, sentir e agir. As práticas e experiências ali desenvolvidas produzem muito mais do que reflexões teóricas e entendimentos abstratos, possibilitando uma profunda (des)aprendizagem encarnada. Nesse contexto, a perspectiva do Bem Viver, que tem seu fundamento na ética própria dos modos de existência indígenas, caracterizados pela comunalidade, se contrapõe à racionalidade neoliberal e à concepção de progresso que vem legitimando a expropriação do comum. (Acosta, 2016) Por fim, a experiência em campo nos convida a refletir sobre a perpetuação de lógicas excludentes dentro de espaços que se propõem inclusivos e democráticos, colocando em primeiro plano a problemática da subjetividade.