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Elismennia Oliveira

Desigualdades e diferenças sempre estão na mira de pesquisadoras e pesquisadores que adotam perspectivas de gênero e de feminismo. O campo está permeado por ideólogos e praticantes da busca por uma igualdade que, nem quando é encontrada,... more
Desigualdades e diferenças sempre estão na mira de pesquisadoras e pesquisadores que adotam perspectivas de gênero e de feminismo. O campo está permeado por ideólogos e praticantes da busca por uma igualdade que, nem quando é encontrada, configura-se como “igual”. De fato, deleita-se mais na promoção da igualdade do que no seu encontro, justamente porque a igualdade que se busca é uma igualdade que respeita as diferenças. Isto implica em não inserir as diferenças observadas e vividas em quadros ou campos que outorgam mais poder e valorização a uma diferença e menos a outra. Historicamente, nem havia cegueira sobre poder e hierarquias quando quem pesquisava sobre “papéis sociais de sexo” parecia estar encontrando roteiros prescritivos que naturalizavam tais papéis. Qualquer leitura criteriosa da literatura com essa terminologia de “papéis” – atualmente banida da literatura sobre gênero e feminismo – percebia que pesquisadoras e pesquisadores estavam falando de relações hierárquicas!

São justamente estas duas referências: relações e hierarquias, que as crescentes teorias buriladas na área resolveram destacar enquanto se construía um campo politicamente mais atuante de ideias. As desigualdades se denunciam pelos seus conteúdos hierarquicamente diferenciadores, nos quais as mulheres costumavam receber um tratamento percebido como inferior, numa série de dicotomias ou binarismos que exerciam um poder nefasto na busca de um olhar que enxergasse igualdade. Era preciso colocar às claras os prejuízos amontoados na operação impensada de tais hierarquias e mostrar que as relações entre homens e mulheres não chegavam necessariamente “estampadas” com privilégios, e que tais privilégios se construíam socialmente nas relações, sempre negociadas, entre homens e mulheres. Eram (e são) muitos os caminhos a seguir, mas dois se destacam: desvendar como as desigualdades se firmam dentro destas relações hierárquicas que se repetem em tudo que é canto para criar uma documentação irrefutável da reprodução multifacetada das desigualdades de gênero; e realizar uma “inversão simbólica” na qual o que se via como “inferior” de fato não o era, e um outro olhar poderia virar a mesa contra quem queria buscar a construção de inferioridade em seus discursos e pesquisas.

Politicamente astuta, a pesquisa em gênero e feminismo requer uma permanente readequação de olhares sobre uma pletora incontável de assuntos. Nesta coletânea de artigos sobre Relações e Hierarquias Marcadas por Gênero se percebe esta prática política em ação quando se aborda o próprio feminismo, a sexualidade, a masculinidade, a saúde, a violência e o desenvolvimento, entrecortados por diferenças que reportam a fatores como geração, sexo, políticas públicas e movimentos sociais que colorem todas as discussões. Torna-se impossível imaginar alguma relação como fazendo parte de alguma “essência” do ser homem ou do ser mulher, pois as identidades são múltiplas e contrastivas, criando um vai-e-vem de mensagens sobre quem cada um é e quem cada um não é, e com quem compartilha fragmentos da realidade que produzem essa sensação de coletividade. A denúncia faz parte desta prática, pois a inadmissibilidade de sofrimento infringido em pessoas por causa de relações de gênero justifica permanentemente uma atenção de estudiosas(os) e militantes que descortina violências, sejam físicas, institucionais, subjetivas ou de tudo que for nocivamente “disciplinador”. Para isto, percebe-se que algumas instituições disciplinadoras com segmentos sensíveis a gênero e feminismo, como delegacias e programas de saúde, têm pelo menos dois lados: ao mesmo tempo em que elas contribuem diretamente para, na medida do possível, impedir parte dos sofrimentos e desestimular ou mesmo punir agressores, elas também encaminham os serviços e ações de uma maneira que reforce as próprias desigualdades que almejam, aparentemente, diminuir.

Descortinar “desigualdades” e realizar inversões simbólicas são dois processos que se extraem deste conjunto de trabalhos que descreve os múltiplos campos de construção do feminismo e de promoção de uma igualdade que respeita as diferenças. São trabalhos irrequietos que floresceram em estudos, pesquisas e ações sensíveis a padrões e fluxos internacionais. São realizados sobretudo, mas não unicamente, no Nordeste Brasileiro. Inspirados em discussões ocorridas sobre estas questões ocorridas durante o XVIII Encontro da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher e Relações Gênero, em novembro de 2014, os trabalhos publicados aqui elaboram diversas considerações sobre estes assuntos. Cada título dos 16 artigos escritos anuncia com clareza o objeto de estudo das(os) autoras(es) que se reuniram para estudar e escrever, num espaço democraticamente plural, incluindo mais que uma dezena de professores doutores, outro tanto de mestrandos e bacharéis e, todas(os) ativistas ocupantes de espaços institucionais de estudos e ação que, cada um à sua maneira, contribuem para as ações de descortinar e de inverter simbologias.

Nos caminhos trilhados por este livro, encontram-se espaços institucionais voltados para a prevenção e o atendimento de mulheres vítimas de violência e se desvenda uma enorme dificuldade de enxergar a especificidade de violência de gênero sofrida por mulheres mais velhas, a produção de uma maneira de falar “masculina”, num espaço de justiça abertamente favorável às mulheres, e várias realidades repetidas de agressores provenientes de relações da maior proximidade – maridos e parceiros, atuais e anteriores – que encontram na violência formas de controlar os corpos das suas companheiras, às vezes redundando nas estatísticas alarmantes sobre feminicídios.

O acolhimento da(o)s que sofreram de violência não está desprovido de ambiguidades, ora parecendo acolher bem, ora parecendo mais uma instância de exclusão e de criação de estigma(s). Quem cai fora do que as normas e regimentos de serviços de saúde ditam, sente a intensificação do seu sofrimento, como, por exemplo, por ter tido que recorrer a um aborto que suscita atitudes estigmatizantes pelos profissionais que atendem. O mesmo ocorre com a busca de serviços que suscitam atitudes estereotipantes sobre sexualidade por serem provenientes de códigos de vestimentas, ou até de patologias “sexualmente transmitidas” e por correr com uma imagem de um ambiente implícito deles e delas serem “culpados e culpadas” pelo próprio sofrimento.

Aliás, a dimensão de controle que acompanha discursos sobre sexualidade e, especificamente, sobre práticas sexuais, revela-se uma região nebulosa onde o que se chama de proteção e de combate à exploração, por mais bem intencionados e por bem fundamentados em direitos humanos que sejam, bem examinados, exercem uma ação cujas finalidades são muito mais restritivas do que protetoras, seja no que se relaciona com grandes eventos e expectativas de “promiscuidade”, seja no atendimento cotidiano de quem precisa de apoio da área de saúde e de organizações feministas.

Um dos campos que mais informa sobre as dificuldades de “inverter simbologias” é a discussão sobre novas vivências de masculinidade, onde os integrantes deste movimento, frequentemente identificando-se como “feministas”, encontram uma resistência calcada numa recrudescência do
essencialismo que questiona se é possível os homens serem, honestamente, feministas, sem que deixem de estar problematizando as novas masculinidades que são caracterizadas pelo seu sexo biológico.

A dureza de ter que lidar com estes questionamentos, e as possibilidades provocadas pela ideia de que homens e mulheres possuem mais opções do que parecem estar abertas para eles e elas, para agir de acordo com as suas percepções de sexualidade, é justamente um assunto que vem recebendo reforço jurídico institucional formal e informal, intersectando com diversos outros campos, antes insensíveis, de controle institucional. Quando os campos institucionais se confundem com a vivência de espaços públicos e privados o acesso a políticas públicas se torna um campo de produção de imagens sobre o que se quer de homens e mulheres, como o que fazer quando o direito à licença paternidade se intersecta com um campo de emprego rico e transitório – é possível ou interessante reivindicar tal direito, ou apenas pensar em ser provedor? E a bolsa família, preferencialmente feminina, forma atitudes que condicionam o recebimento de uma complementação monetária ao exercício de atividades de cuidados de saúde e de educação, simultaneamente empoderando e disciplinado as mulheres.

Ao intitular esta coletânea Relações e Hierarquias Marcadas por Gênero, pretendemos descentrar a atenção aos lugares específicos tão necessários para podermos perceber como operam os processos que fazem com que as relações de gênero sejam permeadas por questões de poder. Ao incluir sexualidade, saúde, geração, feminismos e políticas no conjunto de temas sem separar cada assunto de acordo com uma dessas áreas de conhecimento e ação identificamos os assuntos concretos tratados de uma forma mesclada e inter-relacionada ao longo da coletânea. Estamos percebendo gênero, como tanto tem se pronunciado, como “transversal”, mas também estamos insistindo que é nas particularidades, de uma delegacia, das estatísticas de uma secretaria, da articulação de uma campanha, da adesão a um ou outro grupo feminista ou não, no tratamento de saúde, da produção de discursos biologizantes e da sua negação, na precária inclusão de homens e mulheres como objetivos de políticas de desenvolvimento, e numa multiplicidade de outras áreas que se pode perceber que, além de ter progredido muito na direção de maior promoção de igualdade de Gênero, o caminho sempre será relacional, e não vai ocorrer fora do ambiente de produção de hierarquias.
Parry Scott
Jorge Lyra
Isolda Belo da Fonte
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