A mais antiga polémica não opôs um homem a um deus, ou um homem a outro homem, ou um homem a outros homens; opôs inevitavelmente um homem a uma mulher, ou, se é que é importante saber quem começou a peleja, uma mulher a um homem. A Bíblia...
moreA mais antiga polémica não opôs um homem a um deus, ou um homem a outro homem, ou um homem a outros homens; opôs inevitavelmente um homem a uma mulher, ou, se é que é importante saber quem começou a peleja, uma mulher a um homem.
A Bíblia diz-nos que a serpente enganou Eva e que Eva levou Adão a cometer o primeiro pecado; e mostra-nos ainda esse livro sagrado como Deus, que não quis entrar em polémicas, puniu exemplarmente os três. Poder-se-ia imaginar o que Adão terá dito a Eva e o que ela, que não se fez rogada nem para comer o fruto proibido nem para o dar a comer ao seu marido, terá sabido responder ou calar eloquentemente; poder-se-ia, mas haveria dúvidas, hesitações, críticas, polémicas entre os meus leitores, que haveriam de querer ouvir-me pessoalmente, confrontar-me com os meus erros, as minhas parcialidades e absurdidades.
Interessa-me por isso mais a leitura, de tipo antropológico, etnográfico e sociológico, baseada em depoimentos das duas partes; nesses depoimentos luminosos que são as quadras do cancioneiro tradicional português, que para muitos serão polémicas e inaceitáveis, mas que são, acima de tudo, partes de uma polémica tão antiga quanto o homem e a mulher.
Quadras polémicas e luminosas que ainda não caíram em desuso, nem muito menos são anacrónicas. Quem quiser comprovar que assim é precisará apenas de propor o tópico da guerra dos sexos. Se o fizer em certos lugares e em certos contextos, como nas vindimas do Douro, ouvirá quadras como esta, que nenhuma mulher que se preze desconhece:
Estes homens de agora
São poucos mas são valentes:
Pegam na pia dos porcos
Atravessada nos dentes.
(...)
A única conclusão válida a que poderemos chegar com tal diversidade de textos é esta, que todavia não agradará a muitos e a muitas: nunca saberemos se tem mais razão quem diz “Diabos levem os homens” ou quem diz “A mulher é bicho fino”:
Diabos levem os homens,
Que eu aos homens quero bem:
Quem mos dera ver assados
Ou fritos, numa sertem. A mulher é bicho fino
Até no calçar da meia;
Quando vai chamar o homem,
Já leva a barriga cheia.
Mas terá sempre razão quem souber dizer que nestas quadras homens e mulheres elevaram e elevam a sua criatividade e o seu humor a um nível que não fica nada a dever à criatividade e ao humor de todos aqueles que, nos nossos dias, com ou sem razão, se dizem senhores ou senhoras de muita criatividade e de muito humor.