PAISAGENS EM TRÂNSITO:
O caso da Estrada Parque Taguatinga.
Sued Ferreira da Silva
Mestrado em Teoria, História e Crítica em Arquitetura e Urbanismo
Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB)
Orientador: Luciana Saboia Fonseca Cruz
E-mail: ferreira.sued@gmail.com
RESUMO
O artigo busca investigar a experiência da paisagem no cotidiano a partir dos deslocamentos ao longo das
infraestruturas de mobilidade, tendo como estudo de caso a Estrada Parque Taguatinga (EPTG), DF-085. A
discussão irá delinear-se a partir de um componente teórico e outro empírico. O primeiro irá examinar o
papel das infraestruturas viárias no reconhecimento do território e de suas paisagens, e principalmente os
modos de percepção nos deslocamentos cotidianos e na experiência do próprio movimento. Já o
componente empírico se desenvolverá em função do estudo de caso, iniciando-se com um breve histórico
da via, suas escalas, usos e configurações; como também de análises baseadas na antropologia
interpretativa, com as ferramentas de descrição etnográfica e observação participante, de modo a identificar
tais paisagens, em permanente mutação. Além de situar as narrativas dos praticantes da cidade em seus
percursos, atravessamentos e as experiências sensíveis que estabelecem com o território e a própria via no
cotidiano.
Palavras chave: paisagem, cotidiano, descrição etnográfica, Estrada-parque.
ABSTRACT
This paper investigates the experience of the landscape in everyday life over mobility infrastructures through
the case study Estrada Parque Taguatinga (EPTG), DF-085. The discussion has two components, one
theoretical and another empirical. The first one will examine the role of the road infrastructure in recognition
of the territory and its landscapes, the perception modes in daily commuting and the motion experience itself.
Besides, the empirical component will be developed according to the case study, starting with a brief
parkway historiography, its edges, uses and configurations; as well as analyzes based on interpretative
anthropology, and its ethnographic description and participant observation tools, in order to identify those
landscapes, constantly changing. Besides situating the citizens’ narratives in their paths, crossings and
sensitive experiences which they establish with the territory and with the parkway in the everyday life.
Key words: landscape, everyday life, ethnographic description, Parkways.
1. INTRODUÇÃO
" […] mas não há mais terra, por isso tendemos a crescer em direção ao mar…. As pessoas
se deslocam diariamente ao centro da cidade e devem regressar logo, pela tarde, a suas
casas, situadas fora da cidade. O tempo que o homem médio necessita para esta viagem é
de uma hora. […] neste projeto, o arquiteto pensa no futuro da cidade. Dividiu-a em dois
elementos, um permanente e o outro transitório. […] O elemento estrutural é concebido
como uma árvore - elemento permanente - com as unidades de habitação como folhas elemento temporários - que caem e voltam a brotar segundo as necessidades do momento.
Dentro dessa estrutura, os edifícios podem crescer, desaparecer e voltarem a crescer, mas
a estrutura permanece." (BANHAM, 1978:47)
As superfícies asfaltadas, as sinalizações, os ritmos do trânsito, as perspectivas previamente definidas, os
enquadramentos, as paragens, o tempo, os itinerários, o intervalo entre a origem e o destino são elementos
presentes no cotidiano das cidades contemporâneas, cujas percepções apresentam-se em função da
rapidez, da aceleração, do transitório, das opacidades e vertigens, das metamorfoses e do caos, que vêm a
caracterizar as paisagens urbanas no desenrolar de suas narrativas e deslocamentos diários, na busca da
anulação das distâncias geográficas, e que serão objetos de estudo deste artigo.
Diversos autores têm discutido sobre a apreensão da cidade e de suas paisagens a partir do caminhar, aos
olhos do flâneur e das múltiplas práticas que vêm a viabilizar uma nova experiência estética entre o sujeito e
os espaços de vivência. Do olhar distanciado do viajante que (re)constitui paisagens a medida de seus
anseios, expectativas, na busca intensa pelo novo e pelo inusitado, decifrando as particularidades e as
transformações da metrópole. Mas como se dá a experiência da paisagem nos deslocamentos cotidianos?
Na repetição de seus percursos? No olhar desinteressado e corriqueiro dos “praticantes ordinários da
cidade” que abruma os objetos, possibilidades e irrupções da vida humana?
O presente artigo é resultado de reflexões preliminares do projeto de Dissertação de Mestrado em Teoria,
História e Crítica em Arquitetura e Urbanismo do Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de Brasília sob orientação da prof. Dra. Luciana Saboia. Tem como questões
centrais a investigação da experiência das paisagens cotidianas nos deslocamentos ao longo das
infraestruturas de mobilidade, a partir do caso da Estrada Parque Taguatinga (EPTG), DF 085, principal
corredor de ligação do Eixo Oeste de urbanização do Distrito Federal.
Concebida inicialmente na qualidade de Estrada Parque, inspirada nas parkways americanas para
resguardar o patrimônio natural, arquitetônico e urbanístico do Plano Piloto idealizado por Lúcio Costa, a
EPTG tornou-se um elemento de articulação entre este e as centralidades constituintes da maior
conurbação urbana do Distrito Federal: Guará, Águas Claras, Vicente Pires, Taguatinga e Ceilândia. Nos
seus 56 anos de existência, passou por distintas ampliações, como a implantação de vias marginais,
viadutos, pontes, passarelas, ciclovias e em 2010 foi transformada em via expressa com a denominação
Linha Verde. Esta mudança de tipologia foi resultado de um processo de urbanização ao longo de suas
margens, seja por ocupações irregulares ou por decisão política de produção de novos núcleos urbanos em
um território disperso. Isto coloca a EPTG como um paradoxo, pois a medida que torna-se uma fronteira
1
entre regiões administrativas, as atuais configurações da via reforçam o caráter de segregação espacial e
acentuam os contrastes entre paisagens.
Estas questões irão alimentar a discussão, que estrutura-se a partir de um componente teórico e outro
empírico. O primeiro irá examinar o papel das infraestruturas viárias no reconhecimento do território e de
suas paisagens, e principalmente os modos de percepção nos deslocamentos cotidianos e na experiência
do próprio movimento. Já o componente empírico se desenvolverá em função do caso da Estrada Parque
Taguatinga, subdividindo-se em dois objetivos específicos: o levantamento da historiografia da via, suas
escalas, usos e configurações; a leitura das paisagens lindeiras à via, em constante transformação, e a
captação das narrativas dos praticantes da cidade em seus percursos, atravessamentos e nas experiências
sensíveis que estabelecem com o território e com as paisagens cotidianas.
Adotou-se dentre os referenciais teóricos uma abordagem da antropologia interpretativa, mais precisamente
de descrição etnográfica e observação participante, de modo a tecer reflexões entre o imaginado, o
construído e o vivido. De forma complementar, serão examinadas as propostas de levantamento da
paisagem imediata e em movimento propostas por Panerai (2006, p. 44) e Apleyard, Lynch e Myer (1964),
por intermédio de relatos não estruturados de usuários de transporte público, as quais ajudarão a compor as
imagens e desdobramentos possíveis do objeto de estudo.
2. PAISAGEM E INFRAESTRUTURAS VIÁRIAS: UMA QUESTÃO DE MOVIMENTO
O deslocamento é o evento e se desenrola à medida que o percurso vai sendo
apresentado. Karina Dias.
A cidade contemporânea reúne em seus estratos formais, históricos e sociais contradições e ambiguidades
como resultados das práticas, resquícios e transformações das formas de cidade precedentes, a cidade
industrial e a cidade moderna. Um ajuntamento de fragmentos e racionalidades múltiplas que contribuíram
para a sua percepção como um território de natureza instável, onde opera o caos, a desordem e a
incerteza.
Para Secchi (2006: 90), suas articulações funcionais e morfológicas em uma configuração urbana
fragmentada, heterogênea e dispersa resultaram primeiramente em um movimento de liberação das ordens
e linguagens da urbanística clássica construída sob aspectos unitários; e posteriormente como o próprio
‘lugar da não contemporaneidade’, por reunir em seu território inextricáveis temporalidades e ordenamentos
nascidos do progresso das tecnologias de informação, dos sistemas de mobilidade e das reorganizações
dos processos socioeconômicos.
As descontinuidades e a dilatação do tecido urbano, conseguinte do esmaecimento dos limites consolidados
entre cidade e campo, engendram a formação de uma cidade de alcance regional, a cidade-território
conforme denominada por Cacciari (2009: 31), ao incorporar aglomerações de distintas formas sociais e
espaciais em suas imediações. Isto vem a estabelecer novas significações da dialética centro-periferia e
uma ruptura com os referenciais simbólicos tradicionais, frente ao fluxo e a velocidade das transformações
culturais e de ocupação do território.
2
O tecido urbano prolifera, estende-se, corrói os resíduos de vida agrária. Estas palavras, o
“tecido urbano”, não designam, de maneira restrita, o domínio edificado nas cidades, mas o
conjunto de manifestações do predomínio da cidade sobre o campo. Nessa acepção, uma
segunda residência, uma rodovia, um supermercado em pleno campo, fazem parte do
tecido urbano. Mais ou menos denso, mais ou menos espesso e ativo, ele poupa somente
as regiões estagnadas ou arruinadas, devotas à ‘natureza’. ” (LEFEBVRE, 1999, p. 17)
Tais questões são discutidas por Lefebvre (1999), Secchi (2000), Garreau (1991), Ascher (2010), Panerai
(2006) e denominadas como dispersão urbana, Città Difusa, Edge City, Urban Sprawl, dentre outras; e
passam a ser compreendidas em conjunto com os sistemas e redes de transporte e comunicação,
demarcando o papel destes na viabilização da expansão urbana em direção as áreas periféricas, na
formação de novos limites, núcleos urbanos secundários e estruturações espaciais. Além de permitir
conexões em distintos pontos do território, modificando-os e impactando em sua organização.
Conforme exposto por Panerai (2006), a via é um suporte à urbanização desde as primeiras aglomerações
urbanas, sendo determinante em sua forma e lógica ao garantir os deslocamentos, acessos,
atravessamentos, paragens: “a força da relação caminho/cidade é de tal ordem que certas cidades parecem
ser tão-somente uma sucessão de estradas em torno das quais se organiza o tecido urbano” (Panerai,
2006, p. 18). Paralelamente, uma nova paisagem é conformada a partir das mudanças e transformações
impostas pelas infraestruturas viárias no processo de ocupação do território, alterando não somente as
formas de percepção, mas também de experiência. Além de impactar os idioritmos urbanos, e
consequentemente as concepções de tempo e espaço, geradas em função das temporalidades e ritmos
próprios dos sujeitos e grupos sociais (Secchi, 2009, p. 22), a infraestruturas de mobilidade ao compor os
elementos que configuram o território, determinam também sua leitura e reconhecimento.
A velocidade, e a experiência completamente nova do movimento engendrado pela
velocidade, são dois parâmetros de importância central para os séculos XIX e XX. Através
deles, tudo se reorganizou: o tempo assim como o espaço, as paisagens, as cidades, o
comércio e a sociedade. (FREYTAG in CARDOSO, 2013: 132)
Isto vem a conceber uma distinta forma de olhar e pensar a paisagem e o território, os quais passam a ser
compreendidos não mais a partir de um ponto fixo, mas sim no deslocamento, conformando os múltiplos
pontos de vista do observador que percorre seus espaços. Anne Cauquelin (2008) e Michel Collot (2013)
postulam em seus escritos que a experiência da paisagem 1 esteve moldada por aspirações literárias
(poesia e prosa) e por um logo período de educação estética, dado principalmente pela pintura, com a
instrumentalização da perspectiva, e dos efeitos ilusórios por ela instaurados.
A delimitação de um ponto de vista único, a estruturação das cenas a partir de uma sequência de planos e
de uma razão matemática, além do uso da terceira dimensão, (profundidade), organizando as figuras em
torno das linhas de fuga que se direcionam ao infinito, impeliram representações imagéticas da paisagem
que condicionam construções mentais e sua percepção centrada apenas no sentido do olhar. Isto vem a
1
Etimologicamente, paisagem advém da sufixação de païs (paeses, país) presente nas línguas românicas do século XV, designando
“um quadro que representava uma determinada porção de um país” e registrada em 1549 como paysage, “palavra corrente entre os
pintores” no dicionário de francês/ latim Estienne. (Collot, 2013)
3
reafirmar o papel primordial da arte enquanto formadora de uma consciência e dos modos de apreensão da
paisagem, e em contrapartida, da própria paisagem enquanto orientadora e suporte para o desenvolvimento
da arte.
É no Romantismo que a paisagem deixa de ser praticada e concebida como uma construção a priori, e
passa a ser apropriada pelo sujeito que nela se insere, deixando-se afetar por suas formas concretas
(cores, luz, odores, sons, temperatura etc.), transpondo seu entendimento restrito a um sentido visual, cuja
vivência é dada a distância, como um pano de fundo, para uma dimensão espacial, onde o corpo reside e a
percebe em todos os sentidos. Esta transformação coloca a paisagem enquanto orientadora da vida
humana, quando, segundo Cauquelin (2007, p. 10) passa a dar forma, enquadramento e medida as nossas
percepções e visões de mundo.
Com o desenvolvimento das tecnologias de comunicação e transporte, suprimindo distâncias geográficas e
resultando em novas relações com o tempo-espaço, a experiência da paisagem se dá, primeiramente,
conforme explicitado por Ana Cardoso Matos (2013), a partir de uma mudança de velocidade, pelos
distintos ritmos, temporalidades, frequências, intervalos nos deslocamentos na cidade; em segundo, por
uma mudança de escala, ao expandir o alcance do olhar frente aos desníveis, novas direções e a
transposição de planícies, vales e montes; e finalmente por uma mudança de perspectiva, por instaurar
novos pontos de vista, contínuos e descontínuos, aberturas, coexistências e representações imaginárias a
partir da experiência estética e da impressão destas estruturas no território.
Em vista do que foi exposto e frente uma miríade de definições e aproximações advindas de seu caráter
transdisciplinar, a paisagem então pode ser compreendida como um lugar de trânsito, rompendo com as
ilusões das representações pictóricas, ao exprimir um novo modo de estar no espaço, de vivenciá-lo e
percebê-lo plenamente. A paisagem e suas estruturas já não são concebidas como como um plano dado a
priori, mas onde sua espacialidade constitui-se no movimento, reajustando-se em função dos
deslocamentos, orientações, direções e horizontes.
3. EPTG: UM BREVE HISTÓRICO
Resultante de uma concepção urbanística moderna centrada nos ideais da Carta de Atenas e modelos
urbanos como a Cidade-Jardim de Howard e Villa Radieuse, Brasília e sua extensão enquanto metrópole é
caracterizada pela fragmentação e dispersão territorial, surgidas pela decisão política de criação das
cidades-dormitório e concentração de poder na área central. Para Hollanda (2003), como uma metrópole
polinucleada suas cidades-satélites reproduziram os parâmetros e determinações do modernismo clássico:
“[...]malha hierarquizada, com poucos eixos de acesso; grande quantidade de superfície viária; setorização
funcional; áreas públicas residuais” (Holanda, 2003), diferenciando-se apenas no que se refere as tipologias
edilícias, o sistema de transporte coletivo, configuração do espaço público e uso do solo.
Para Jatobá (2010), a característica de expansão horizontalizada adotada como política de planejamento no
Distrito Federal até a década de 1970 acentuou a descontinuidade urbana entre o Plano Piloto e as cidadessatélites, cuja implantação distanciada, típica de um padrão de periferização urbana, teve como justificativa
a proteção da Bacia do Paranoá por meio de um cinturão verde nos limites do Plano Piloto - um anel
4
sanitário que objetivava preservar seu patrimônio ambiental, urbanístico e arquitetônico. Em 1985, o Plano
de Ocupação Territorial (POT) e, em 1987, o documento Brasília Revisitada consolidaram as propostas do
Plano Estrutural de Ordenamento Territorial (PEOT) de 1977, em que se previa novas áreas de expansão
urbana, como áreas institucionais e residenciais adjacentes a Taguatinga. O documento elaborado por
Lucio Costa previa a implantação de quadras econômicas nos limites da Bacia do Paranoá, ao longo dos
eixos viários, dentre elas o Conjunto Habitacional Lucio Costa às margens da EPTG, inaugurado em 1989,
e posteriormente o bairro de Águas Claras, com plano urbanístico elaborado em 1982, legitimando o
processo de ocupação do grande vazio urbano existente entre Taguatinga e o Guará.
Imagem 01: Sistema viário do Eixo Oeste de Urbanização.
Fonte: autora
O ideário da cidade-jardim somado a estruturação do território através de vias de trânsito rápido
hierarquizadas e especializadas, denominado por Sylvia Ficher (1999) como Urbanismo Rodoviarista, foram
determinantes na constituição do modelo de ocupação polinucleado. O sistema viário baseado em estradasparques, aos moldes das parkways americanas, teve seu início, segundo Brito (2009), antes da implantação
do Plano Rodoviário do Distrito Federal (1964) em conjunto com as obras do embrião de Brasília, em 1958
com a fundação de Taguatinga.
As primeiras estradas-parques traçadas subdividiram o território do DF em quatro quadrantes: no antigo
eixo da estrada de Planaltina, a Estrada-parque Indústria e Abastecimento (EPIA), a espinha dorsal do
sistema viário. Transversalmente, sobre o Anel Rodoviário, a Estrada Parque do Contorno (EPTC). A partir
destas onze rodovias foram traçadas no território interno da Bacia do Paranoá, com o intuito de articular
estradas federais e regionais: Estrada Parque Dom Bosco, Estrada Parque Paranoá, Estrada Parque
Vicente Pires, Estrada Parque Taguatinga, Estrada Parque do Torto, Estrada Parque Península, Estrada
Parque Santa Maria, Estrada Parque Acampamento, Estrada Parque do Valo, Estrada Parque Vereda
Grande e Estrada Parque Ipê.
O projeto de Lúcio Costa – dominado pela justaposição de técnica rodoviária e urbanismo,
que tem como determinante principal a circulação de veículos, recordando a cidade linear
de Soria y Mata – respondia à intenção explícita de Kubitschek de construir uma ‘cidade
para o automóvel’. Esta preocupação está assinalada já no início de seu memorial, como
terceira etapa da definição do plano: ‘E houve o propósito de aplicar os cruzamentos – à
técnica rodoviária – inclusive a eliminação de cruzamentos – à técnica urbanística,
5
conferindo-se ao eixo arqueado... a função circulatória tronco, com pistas centrais de
velocidade e pistas laterais, para tráfego local...’ (FICHER in BRITO, 2009)
Criada em 1960 e com extensão aproximada de 12,7 km e um fluxo diário de 140 mil veículos, a Estrada
Parque Taguatinga tem seu início na Estrada Parque Indústria e Abastecimento (EPIA) e termina na
Estrada Parque do Contorno (EPCT), adjacente à Avenida Central de Taguatinga, estendendo-se até a
Ceilândia através da Avenida Elmo Serejo. Como um dos principais eixos rodoviários ao longo eixo oeste de
urbanização, conecta as Regiões Administrativas do Guará, Águas Claras, Vicente Pires, Taguatinga e
Ceilândia, as quais compõem maior conurbação do Distrito Federal. Dentro do planejamento territorial
estratégico do DF passou por distintas ampliações, como a implantação de vias marginais, viadutos, pontes,
passarelas e ciclovias. Em 2010 foi transformada em via expressa com a denominação Linha Verde, no
Programa de Transporte Urbano para a promoção da acessibilidade, mobilidade e integração dos núcleos
urbanos.
Imagem 02: EPTG em 1972
Fonte: Arquivo Público do Distrito Federal
Imagem 03: EPTG atualmente
Fonte: Autor desconhecido
Concebida inicialmente na qualidade de Estrada Parque - a ser aqui caracterizada como uma tipologia de
via que busca a preservação de áreas de interesse ambiental e cultural, um corredor ecológico que garante
a apreciação paisagística, o lazer e o turismo em seus percursos (Silva, 1996) - a EPTG passou a refletir em
seus traçados a lógica funcionalista do urbanismo rodoviarista, criando barreiras que estabelecem rupturas
de usos e escalas. Além de suscitar descontinuidades entre paisagens naturais e artificiais, vindo a impactar
nas relações estabelecidas com e território e na percepção das múltiplas imagens que compõem a cidade
contemporânea.
Conforme descrito no Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF (PDOT) do ano de 2011, a EPTG,
como uma rede primária do sistema de transporte coletivo, atravessa zonas urbanas consolidadas com alta
densidade demográfica, zonas rurais de uso controlado, a Reserva Ecológica do Guará e a Área de
Relevante Interesse Ecológico: Parque Juscelino Kubitschek (ARIE JK), ambas inseridas na macrozona de
Proteção Integral. Além disso, o PDOT/2011 ao permitir o adensamento e a concentração de atividades de
comércio, habitação e serviços nas áreas limítrofes à via, busca seu posicionamento como elemento
6
integrador e dinamizador dos espaços urbanos fragmentados que conecta, com o intuito de obter uma
continuidade da mancha urbana existente e uma redução do fenômeno da dispersão do território.
Imagem 04: Viaduto de Taguatinga/ EPTG em 1976
Fonte: ArPDF
Imagem 05: Viaduto de Taguatinga/ EPTG em
2012
Fonte: google.com
Nota-se que a EPTG representa um paradoxo, já que a paisagem idealizada das Estradas Parques perdeu
seu significado diante das mutações estruturais em sua tipologia e do adensamento populacional da região
a qual se insere, de modo que as soluções adotadas pelos gestores públicos, visando apenas a ampliação
da capacidade viária, a transformou em um elemento de segregação sócio espacial ao reforçar a
fragmentação e a descontinuidade do tecido urbano. Isto resultou em um processo amplamente denunciado
pela crítica ao urbanismo rodoviarista e denominado por Jane Jacobs (1961) como erosão urbana, a qual se
define pela redução do uso da via aos veículos, transformando os espaços de vivência em espaços de
circulação, e como tais, imprecisos, lugares-algum, onde as referências desaparecem.
Em contrapartida, é por intermédio da própria via que a leitura do território em diferentes momentos é
possível, acompanhando as transformações das paisagens circundantes e da própria história das Regiões
Administrativas que tangencia. Ademais, a EPTG torna-se também uma conciliadora de polaridades em
uma região repleta de complexidades e tensões entre fronteiras administrativas, áreas urbanizadas e rurais
e de preservação ambiental, além de conformar localidades urbanas fabricadas pelas distintas apropriações
ao longo de suas margens.
Assume-se, portanto, enquanto elemento de (re)configuração, justaposição e disjunção das paisagens
intersticiais e dos fragmentos que a compõem, tornando-se um componente ativo na trama urbana. Isto ver
a reforçar uma potencial capacidade de dar suporte às múltiplas leituras da paisagem e do território,
nascidas nos deslocamentos cotidianos, encontros, desencontros, na solidão, na relação com o outro, nas
narrativas, memórias, imaginários e no enfrentamento das questões e incertezas das experiências de
mundo.
4. COTIDIANO URBANO, DESLOCAMENTOS E TRAJETOS
Solomon saith: “There is no new thing upon the earth”. So that as Plato had an imagination,
“that all knowledge was but remembrance”; so Solomon giveth his sentence, “that all novelty
is but oblivion”. Jorge Luis Borges, O imortal, 1949.
Um olhar para as paisagens urbanas expressa uma busca pelos imaginários, personagens e narrativas que
tecem uma complexa rede de símbolos e significados. Narrativas estas que se delineiam nos fazeres e
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errâncias do cotidiano, cuja experiência se dá na ordem do sentir, em perceber os detalhes banais que na
repetição constante tornam-se invisíveis, e nos deslocamentos diários entre os espaços praticados. Neste
sentido, para a análise que aqui se propõe, a utilização de ferramentas conceituais da antropologia
interpretativa tornou-se essencial, objetivando a captação da experiência sensível da paisagem e sua
multiplicidade de dimensões.
Como abordagem metodológica optou-se pela descrição de caráter etnográfico e observação participante,
devido a sua capacidade de exprimir eventos, contextos, fatos, ambiências. Pela proximidade exigida
àquele que observa, permitindo um diálogo cultural relevante com o objeto de estudo. Dessa forma, a
análise se deu em dois momentos: o primeiro tendo como suporte a proposta de leitura da paisagem
imediata de Panerai (2006, p. 44) e Apleyard, Lynch e Myer (1964), as quais auxiliaram na composição de
imagens-movimentos. No segundo momento, explorou-se a experiência da paisagem mediante a relatos de
usuários de transporte público durante o deslocamento ao longo da EPTG, suas impressões e sensações,
como também observações do contexto e de situações.
Panerai (2006) afirma que a compreensão da cidade deve partir de seu interior, em uma sucessão de
deslocamentos. Uma sequência visual resultante das novas formas de olhar e representar o espaço,
originárias da percepção da velocidade, do cinema, do desenvolvimento dos meios de transporte e das
descobertas científicas. O registro das paisagens por meios de relatos, croquis, fotos, vídeos e cartografias
constituem, segundo o autor, um modo de apreensão da cidade, a partir de distintos pontos de vista, que
acabam por intervir no movimento do observador.
É preciso habituar-se a visões fragmentárias, perder a ilusão de tudo ver, aceitar o
engarrafamento e a impossibilidade de estacionar. Memorizar aquilo que mal se teve tempo
de entrever. Orientar-se e encontrar, ler mapas rodoviários, saber parar, trabalhar com
amostras sem perder um entendimento de conjunto. (Panerai, 2006, p. 43)
Assim propõe, primeiramente, uma análise sequencial das paisagens, fundamentada na obra de Lynch,
para compreender as modificações do campo visual durante o deslocamento. Análise esta, que se dá na
sucessão de planos e no reconhecimento de elementos que codificam a paisagem: relações de
simetria/assimetria, abertura/fechamento, superfícies, ondulações, cortes verticais e horizontais, contornos,
aproximações, acessos etc; e na disposição destes planos em sequência, conforme proposto por Apleyard,
Lynch e Myer (1964), considerando as transições de um ao outro, sobreposições, rupturas e o tempo
transcorrido.
Frente a condição das metrópoles, sua estruturação pelos eixos rodoviários, escalas territoriais orientadas
pelas infraestruturas, e escalas locais, dadas pelas massas edificadas, o autor expõe a necessidade de um
método que permita a compreensão dos conflitos existentes entre escalas e a relação de dependência das
periferias com os centros urbanos. Além do reconhecimento das infraestruturas urbanas, ultrapassando seu
entendimento como rupturas da paisagem, para elementos significativos que dão suporte, informam sobre o
território e determinam sua leitura, aqui a ser organizada em três níveis subsequentes:
A paisagem imediata, aquela constituída pela via e suas margens, analisada a partir das
variações no campo visual (Lynch), dos elementos simbólicos (Venturi), das concentrações
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de atividades (Demorgon). A análise pode misturar observações intuitivas; guiadas por
aquilo que impressiona de modo imediato, e observações sistemáticas (...) O território
percebido. Às vezes limitada à própria via, com margens construídas ou arborizadas
impermeáveis ao olhar, a paisagem da estrada inclui, em outros momentos, intervenções
de elementos longínquo, edificado ou não, entre os quais se destacam os marcos (...) O
território
constituído
historicamente,
estudado
cruzando-se
uma
primeira
leitura/interpretação dos dados históricos e cartográficos com a abordagem visual e o
conhecimento concreto do terreno que ela proporciona. Não se trata mais de se interessar
por esta ou por aquela estrada que estrutura uma parte da aglomeração, mas de pesquisar
o sistema pelo qual e organiza a aglomeração e de encontrar na ocupação atual os traços e
as consequências da história. (Panerai, 2006, p. 44)
Desta forma, a primeira leitura do objeto de estudo se deu de forma intuitiva tendo o cuidado de demarcar
inicialmente os limites entre as distintas Regiões Administrativas. O deslocamento foi realizado por meio de
transporte público em 7 de Dezembro de 2015, tendo como ponto de origem a Rodoviária do Plano Piloto às
10:30 horas, Linha 310 Setor O, e com destino a Praça do Relógio em Taguatinga, seguido pelo percurso
de volta ao local de origem. Cada viagem durou em média 35 minutos frente a fluidez do trânsito, fora dos
horários de pico, e em cada sentido, buscou-se registrar por meio de fotografias e vídeos as paisagens do
lado direito da via, de modo compreender de forma mais abrangente as cenas ao longo das suas margens.
A paisagem é percebida em um plano-sequência, sem interrupções. O ônibus torna-se um filtro, um
mediador entre o observador e o que é contemplado. Desta forma, o enquadramento das janelas e a
velocidade de deslocamento limitou a captura de detalhes mais precisos, porém não deixa de ser visível os
fragmentos e rupturas resultantes das transições entre zonas densamente edificadas e espaços livres e
residuais, paisagens industrias (SIA), áreas comerciais (supermercados, centros comerciais, casas de festa,
galpões de abastecimento, postos de gasolina), edifícios institucionais (concessionárias, faculdades, sedes
administrativas) e principalmente o descortinar da paisagem em Águas Claras e Taguatinga com suas
edificações em altura em contraposição a horizontalidade do amontoado de residências unifamiliares na
Colônia Agrícola Samambaia, Vicente Pires e multifamiliares de 2 e 3 pavimentos no Guará.
Sounds, smells, sensations of touch and weather are all diluted in comparison with what the
pedestrian experiences Vision is framed and limited, the driver is relatively inactive. He has
less opportunity to stop, explore, or choose his path than does the man on foot. Only the
speed, scale and grace of his movement can compensate for these limitations. (Apleyard,
Lynch, & Myer, 1964)
Os elementos que compõem a infraestrutura viária como as superfícies asfaltadas, as faixas de trânsito,
faixas exclusivas, pistas marginais, passarelas, viadutos, pontes, ciclovias, calçadas, paradas de ônibus,
linhas de transmissão, mobiliário urbano, iluminação pública, sinalização viária vertical e horizontal,
anúncios, taludes, muros, desníveis também foram registrados e demonstram que a mudança de tipologia
de Estrada Parque para Via Expressa em 2010 agravou o sentido de esvaziamento, conforme evidenciado
por Jacobs em 1961. Posto que, as vias expressas pensadas como planos padronizados e especializados
para a circulação em massa, estabelecem relações distintas entre o usuário e o território, frente a
necessidade de rápido acesso as diversas origens e destinos e da eliminação dos pontos de referências.
9
Marc Augé no livro “Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade” (1994), retrata este
fenômeno quando define tanto as vias expressas quanto aeroportos, salas de espera, estações de metrô,
campos de refugiados etc., como não-lugares, espaços de ninguém, caracterizados por não serem
relacionais, históricos e identitários. Os não-lugares alteram a estrutura interna da cidade e excluem os
“lugares de memória”, conformando uma nova configuração sócio espacial em que o transitório, o efêmero e
a solidão são as principais características. Em contraposição, descreve o espaço antropológico, que é
culturalmente construído, centrado num espaço-tempo definido, capaz de criar identidades e promover de
relações interpessoais.
O tempo do deslocamento, o intervalo entre a origem e o destino são determinantes, seja na configuração
das vias e, por conseguinte do território, como na experiência espacial. Para Godim (2014), a rapidez e
aceleração tornaram-se especificidades nas vias expressas na busca pela anulação das distâncias
geográficas. A questão do tempo apresenta-se como um dos pontos focais nas narrativas coletadas durante
o segundo dia de deslocamentos na EPTG via transporte público, com o intuito de compreender as
percepções das paisagens, seus pontos de interesse, itinerários.
A entrevista se deu de forma não estruturada de modo a permitir ao entrevistado uma flexibilidade nas
respostas, segundo suas próprias referências. A linha 314 foi escolhida para o trajeto com destino a
Rodoviária do Plano Piloto, tendo como ponto de origem a Avenida Hélio Prates, CNN 01, Ceilândia em 11
de Dezembro às 07:20 horas. Os entrevistados, 6 (seis) ao todo, estavam a caminho do trabalho, em
distintas localizações do Distrito Federal: Lucio Costa, SIA, Setor Policial e Asa Sul. O trânsito entre
Ceilândia e Taguatinga apresentava uma morosidade, intensificando a preocupação diária no tempo de
deslocamento, aproximadamente 1 hora a depender do destino, e nos possíveis engarrafamentos,
acidentes, obras e manutenções nas vias.
Envoltos no planejamento das tarefas a realizar no dia que se iniciava, direcionavam a atenção para os
dispositivos tecnológicos, para os acontecimentos do espaço interno do ônibus: faces conhecidas que se
esbarram diariamente na mesma linha; prosas despretensiosas entre passageiros; sons dos motores
interpelados pela fala dos vendedores ambulantes; o fluir do trânsito, o principal atrativo do olhar para além
das janelas do veículo; a passagem das horas, constantemente verificada e o sono que por vezes persistia,
monotonia. A paisagem não existia, anulava-se entre a origem e o destino, um percurso ladeado pelo vazio
e pelas contingências cotidianas.
Quando consigo um lugar para sentar é um alívio! Nada me deixa mais irritada do que
ônibus lotado! Sinto muita dor nas pernas! É desconfortável! Quando estou sentada, eu
durmo até chegar na minha parada, ou fico no Facebook (...). Nada me chama atenção no
caminho (...). Existe paisagem? (Entrevistado I, servidora pública, em 11 de dezembro).
Não, nada.... No máximo quando tem engarrafamento, eu fico olhando os carros, para ver
se foi acidente, fico vendo o movimento, propaganda... (Entrevistado IV, estudante, em 11
de dezembro).
Percebe-se que a estrada e as perspectivas previamente definidas resultam no tolhimento do deslocar-se
livre, nos ritmos do trânsito e dos itinerários impostos aos usuários assim como as vertigens de um olhar
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que já não identifica as faces da paisagem que os envolve: [...] o viajante transportado torna-se um
passageiro: ele próprio não se desloca, mas é deslocado dum lugar ao outro. ” (Ingold in Cardoso, 2013, p.
52)
O deslocamento e a percepção mesclam-se frente a uma paisagem que se conforma a medida do
movimento do sujeito, entre idas e vindas. No ato do atravessamento os significados residem no
movimento, não na materialidade de suas superfícies. Por conseguinte, ao demarcar os ritmos ao território,
a paisagem tem a possibilidade de revelar-se mesmo na repetição inerente ao cotidiano, pois é nele que
residem os seus instantes, na transfiguração do lugar comum, quando o olhar do passageiro transmuta-se
no olhar do viajante.
A paisagem seria então uma maneira singular de ver no mesmo a diferença, seria o
momento onde nos aproximamos dos espaços e somos enlaçados, atravessados por ele.
Ela é ponto de vista, ponto de contato. Esta experiência pode ser pensada como uma
fissura, como um hiato que rompe com o tempo da rotina e instala o tempo de um certo
ponto de vista, o tempo de uma certa vista. É como se a cada experiência da paisagem, o
espaço cotidiano repentinamente ganhasse relevo e se elevasse aos nossos olhos. (Dias,
2012, p. 132)
As questões tratadas neste artigo indicam horizontes ainda a serem expandidos e revelados. A exploração
de ferramentas da Etnografia e do levantamento das paisagens em movimento teve o intuito de situar as
narrativas dos praticantes da cidade em seus percursos e espaços cotidianos. Dessa formar, ao traçar as
vivências, sentimentos, pontos de vista, memórias dos sujeitos e das relações que estabelecem com o
território e a paisagem, é possível a construção de uma multiplicidade leituras, impressões e experiências
reais que indicam caminhos para a apreensão de seus limites, materialidade e especificidades. Ademais,
pensar a paisagem no cotidiano, significa pensar a paisagem enquanto narrativa e experiência, contribuindo
para o entendimento de um conceito ainda impreciso, complexo e que permeia distintos campos do saber e
por tal razão, capaz de evocar memórias, sentimentos e afetos. Uma intermediária que influencia categorias
espaciais e cognitivas, tornando-se um elo para a percepção do mundo.
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