Desafios da comunicação em tempo de pandemia: um
mundo e muitas vozes | 1ª edição
Copyright © 2020 dos autores dos textos, cedidos para esta edição
à Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação Intercom
Organização
Nair Prata, Sônia Jaconi e Genio Nascimento
Projeto gráfico, diagramação e capa
Gênio Editorial - genioeditorial.com
Ficha Catalográfica
Desafios da comunicação em tempo de pandemia: um
mundo e muitas vozes
[recurso eletrônico] / Nair Prata, Sônia Jaconi e
Genio Nascimento (orgs). São Paulo: INTERCOM, 2020,
461 p.:il.
Inclui bibliografias.
E-book.
ISBN 978-65-990485-2-4
1. Comunicação. 2. Interdisciplinar. 3. Pandemia. 4. Grupos
de Pesquisa Intercom. 5. Brasil. I. Prata, Nair (org.). II. Jaconi,
Sônia (org.). III. Nascimento, Genio (org.).
CDD: 659
Todos os direitos desta edição reservados à:
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação- Intercom
Avenida Brigadeiro Luís Antonio, 2050 - conjunto 36 - Bela Vista
CEP 01318-002 - São Paulo - SP
Tel.: (11) 3892 7558
Site: portalintercom.org.br - E-mail: secretaria@intercom.org.br
SUMÁRIO
Prefácio ......................................................................................................... 9
Margarida M. Krohling Kunsch
Apresentação ............................................................................................. 15
Nair Prata, Sônia Jaconi e Genio Nascimento
Um mundo e muitas vozes: da utopia à distopia? ........................... 23
Giovandro Ferreira e Nair Prata
Os desafios da Comunicação Gerencial no mundo em
transformação .......................................................................................... 44
Raphael Cortezão e Sônia Jaconi
Jornalismo em tempos de pandemia e autoritarismo ................... 69
Felipe Pena e Monica Martinez
Flagelo dos corpos: a pandemia e o agravamento das
precariedades ........................................................................................... 87
Sônia Caldas Pessoa e Carlos Magno Camargos Mendonça
Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença
e nostalgia no isolamento social ........................................................ 112
Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana
Oliveira e Thiago Soares
Utopias e Distopias do Trabalho Digital: diálogo com Rafael
Grohmann ............................................................................................... 126
Rafael Grohmann, Willian Fernandes Araújo, Beatriz Polivanov, Caio
Cesar G. Oliveira
Fake news, mídias sociais e religião .................................................. 145
Alexandre Brasil Fonseca, Juliana Dias e Priscila Vieira-Souza
A mediação segundo a Economia Política da Comunicação .... 171
Verlane Aragão Santos, César Bolaño, Manoel Dourado Bastos e Anderson
David Gomes dos Santos
Os sons que ecoam em tempos de pandemia - Estudos iniciais
dos pesquisadores do GP Comunicação, Música e Entretenimento
sobre as mudanças no universo do som e da música em decorrência
da Covid-19 ............................................................................................ 193
Nadja Vladi Gumes, Adriana Amaral, Jeder Janotti Jr., Marcelo Bergamin
Conter, Mario Arruda, Micael Herschmann, Simone Pereira de Sá, Thiago
Soares, Tobias Queiroz e Victor de Almeida Nobre Pires
As múltiplas missões do rádio na crise da Covid-19 .................... 213
Marcelo Kischinhevsky, Debora Cristina Lopez, Luiz Artur Ferraretto,
Valci Zuculoto e Fernando Morgado
Polifonia e Alteridade: Comunicação e Educação em época de
pandemia da Covid-19 ........................................................................ 233
Rose Mara Pinheiro e Ana Luísa Zaniboni Gomes
Perspectivas Contemporâneas da Folkcomunicação .................. 246
Marcelo Pires de Oliveira e Marcelo Sabbatini
A (re)-invenção do telejornalismo em tempos de pandemia ..... 266
Flávio Porcello, Edna Mello, Ariane Pereira, Cárlida Emerim, Cristiane
Finger e Iluska Coutinho
Esporte, Olimpíadas e Paralimpíadas: entre utopias e distopias .... 280
Rafael Duarte Oliveira Venancio e Tatiane Hilgemberg
O Café Intercom e as safras comunicacionais de José Marques de
Melo .......................................................................................................... 300
Eliane Mergulhão e Rodrigo Gabrioti
O Fim do Cinema? A Reconfiguração do Circuito Cinematográfico
sob a Pandemia ...................................................................................... 316
Luíza Alvim, Luíza Lusvarghi, Pedro Butcher e Talitha Ferraz
A escassez dos recursos de comunicação em diferentes escalas – A
utopia de um país conectado na pandemia de 2020 .................... 339
Sonia Virgínia Moreira, Nélia Rodrigues Del Bianco e Jacqueline da Silva
Deolindo
A pesquisa de televisão e televisualidades na Intercom:
continuidades, rupturas e perspectivas ............................................ 358
Bruno de Souza Leal, Carlos Eduardo Marquioni e Gustavo Daudt Fischer
Comunicação para a Cidadania em tempos de Covid-19 ......... 374
Cicilia M. Krohling Peruzzo, Rozinaldo Antonio Miani, Denise Teresinha
da Silva, Cláudia Regina Lahni, Patrícia Gonçalves Saldanha, Pablo
Nabarrete Bastos e Suelen de Aguiar Silva
Entre bytes e vírus: as mídias na pandemia .................................. 401
Ana Claudia Munari Domingos, Antonio Hohlfeldt, Cristiane Finger,
Juliana Tonin e Mágda Rodrigues da Cunha
Sobre os autores ..................................................................................... 432
PERFORMANCES EM REDE
DURANTE A PANDEMIA DE
COVID-19: PRESENÇA E NOSTALGIA
NO ISOLAMENTO SOCIAL
Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge
Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago
Soares
Introdução
O
acontecimento da pandemia do Coronavírus no
ano de 2020 suspendeu o mundo em um estado de
anormalidade, com habitações e partilhas refeitas
diante da lógica necessária do distanciamento social. Com
uma série de expressões ainda não vistas, o consumo e as
relações em quarentena trouxeram formas outras de presença
e interação. É na fragorosa crise sanitária do século XXI que
a sociabilidade se vê chacoalhada, e surgem, então, novos
fenômenos que despertam o olhar reflexivo da Comunicação.
Para expandi-los em uma conversa amigável, este texto discute
a presença, a nostalgia e a articulação em múltiplas plataformas
de expressão de anseios, medos e juízos.
Em formato de entrevista, as ideias apresentadas nesse
espaço são o resgate do debate ocorrido em 19 de maio de
2020, organizado pelo Grupo de Pesquisa Estéticas, Políticas
do Corpo e Gêneros da INTERCOM. Logo após a atividade,
Desafios da comunicação em tempo de pandemia: um mundo e muitas vozes
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
os quatro colegas de profissão e amigos se mantiveram
online, para celebrar a oportunidade de estarem, mais uma
vez, juntos, mesmo que de maneira remota. Optamos, neste
texto final, por apresentar um formato híbrido, no qual as
informações partilhadas durante o debate foram organizadas
com um grau de fabulação, tecido com a vantagem de poder
refletir posteriormente sobre os acontecimentos e com o
olhar mais distanciado da entrevistadora, Danielly Bezerra,
convidada para contribuir nessa organização final. Esperamos
que o resultado seja útil para aqueles que buscam desenvolver
trabalhos de reflexão e pesquisa sobre as experiências sociais
durante a pandemia de Covid-19, no Brasil, mas também com
quem pesquisa nos temas da performance e presença.
Origem da proposição
Danielly Bezerra: Por que propor uma mesa de debate
com esse tema “Performances em rede durante a pandemia
de Covid-19”? O que vocês esperavam poder discutir naquele
momento, em que ainda estávamos no início da pandemia no
Brasil?
Jorge Cardoso Filho: É mesmo uma pergunta
importante porque nós estávamos ainda muito sob o efeito
imediato de vivermos “privados” da possibilidade de contato
com público. Então esperávamos que o debate pudesse dar
oportunidade de refletirmos juntos sobre aqueles aspectos
que pareciam muito centrais para quem estava vivendo em
isolamento social. Quando seria possível contato com outros
corpos presentes? Por que aqueleas experiências de nostalgia
constante? Seria necessário o desenvolvimento de maiores
camadas de performance na vida social digital? Tudo isso se
relaciona aos aspectos da experiência estética e políticos dos
corpos e, portanto, dizem respeito ao tipo de discussão que
nos interessa no grupo de pesquisa Estéticas, Políticas do
Corpo e Gêneros.
Performances em rede durante a pandemia de Covid-19:
presença e nostalgia no isolamento social
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
Luciana Xavier: As manifestações artísticas e culturais,
nesse contexto, têm sido impactadas pelo isolamento social.
E chamam a atenção as maneiras pelas quais a mediação
tecnológica têm sido operacionalizadas para o seu consumo.
Pensando em momentos de ruptura, a cultura sai da condição
de possibilidade para a condição de necessidade. Pensando
na gripe de 1918, a pandemia gerou uma sociedade mais
permissiva, mais aberta e que valoriza o prazer e a diversão.
E estamos vendo agora, durante a pandemia do Covid-19, a
importância da cultura e do entretenimento, sobretudo da
mídia e da cultura popular massiva, em especial. Apesar dos
prejuízos com fechamentos de cinemas e teatros, cancelamentos
de shows, na crise do showbusiness mais tradicional,
percebemos o surgimento de novas formas de entretenimento
e a consagração do consumo da cultura digital. Isso nos fez
pensar que seria uma boa chance de pautar esse debate das
performances em rede.
Gabriela Almeida: Estávamos nos sentindo presos
num eterno presente. Os dias eram quase sempre iguais.
Qualquer coisa que acontecia na semana passada parecia que
tinha sido há meses. Nos confudíamos com os dias da semana
e não conseguíamos enxergar o futuro. Era praticamente
impossível fazer planos. Ao mesmo tempo, como alguém que
dedica atenção às relações entre estética e política, estava
pensando muito sobre os regimes que atuam sobre os corpos,
de um lado autorizando a morte com a ausência de políticas
públicas efetivas de combate à pandemia e o incentivo à uma
exposição suicida e, do outro, num nível micropolítico, os
mesmos regimes atuando sobre os corpos e subjetividades
aniquilando o desejo e colocando em cena uma questão
fundamental: “o que eu posso querer nesse momento, no
Brasil de Bolsonaro e de pandemia, além de estar viva?”.
Estar viva é bastante, mas é pouco. Me parece que ambas as
formas de violência produziam consequências de longo prazo
Performances em rede durante a pandemia de Covid-19:
presença e nostalgia no isolamento social
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
que ainda éramos (e ainda não somos) capazes de perceber,
mas sabíamos que deviam ser compartilhadas com um grupo
maior de pessoas, por isso o tema dessas performances em
rede pareceu importante para nós.
DB: Mas o que seriam essas performances?
Thiago Soares: A noção de Performance já conta com
um largo conjunto de reflexões no campo da Comunicação
no Brasil. Dos estudos em torno da espetacularização do
eu, passando por um debate mais circunscrito às redes
sociais digitais, tangenciando as performances de gosto e as
formas de encenação dos afetos por fãs, para citar apenas
alguns dos importantes trabalhos. Parece-nos relevante
fazer novos movimentos teóricos na tentativa de promover
reordenamentos conceituais e avanços metodológicos.
Performances midiáticas são acionamentos corporais de
sujeitos em ambientes de mídia envolvendo a formação
de uma “vida cênica” em contextos de alta visibilidade e
a construção de redes de sentido do biográfico, ou seja, o
vivido e o relatado, em dinâmicas cotidianas. Performances
midiáticas, na medida em que se projetam para o Outro,
formam espaços especulativos de exibição, articulando
prazer e convivência mas também vigilância, controle e
punição. Pressupõem valores ligados ao narcisismo e ao
individualismo, mas também à conjunção e aproximação,
promovendo atravessamentos de mídias e enlaces entre a
vida comum, as indústrias da cultura e do entretenimento e
conglomerados transnacionais de mídias.
Num contexto de redes sociais digitais, a mudança
de estatuto afetivo, a concordância com linhagens políticas,
a crítica a produtos culturais, entre outras disposições
performativas, instauram estatutos relacionais entre sujeitos:
acionam aproximações, afastamentos, rompimento de laços de
amizade, engajamentos e comunhão. O estatuto performativo
das ações em redes sociais digitais criou espaços liminares
Performances em rede durante a pandemia de Covid-19:
presença e nostalgia no isolamento social
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
no tecido social, entendendo a liminaridade como esfera
limítrofe nos ritos de passagem do vivido e de suas relações
com outras ambiências do social e ainda com o reordenamento
das mobilizações em torno dos sujeitos que protagonizam o
performativo.
JCF: Para nós foi interessante perceber como, durante
a pandemia, exacerbou-se a dimensão performática do
capitalismo, em função da indisponibilidade momentânea das
experiências presenciais. No capitalismo contemporâneo, o
produto a ser vendido é a experiência com algo (ir ao show,
ir ao evento). Nessa circunstância, a valorização da presença
de corpos é fundamental. No capitalismo de experiência há
uma demanda crescente por essas ocasiões onde os corpos se
encontram (mesmo passando por variados processos de exclusão
em função das estruturas sociais) porque faz parte deste modelo
uma noção de presença física, de fato. Associado ao processo
de construção do produto no capitalismo de experiência, está
uma dimensão de consumo performático deste produto que
chamamos de capitalismo de performance. Durante o consumo
do produto, emula-se de maneira intensificada a experiência
com algo, restituída a partir de comportamentos restaurados
reconhecíveis e organizados mediantes signos específicos.
Nossas relações com empresas, marcas e até celebridades
se tornaram amplamente marcadas pelo modo como elas se
comportam, nesse âmbito do capitalismo de performance, em
relação a determinados temas. A rede de restaurantes Madero,
por exemplo, sofreu duras críticas após uma manifestação de
seu CEO, que era contrário às medidas de isolamento social
durante a pandemia porque afirmava que a economia brasileira
não aguentaria um lockdown. Até mesmo mesmo o grupo
Folha de São Paulo, que, ao se posicionar de forma a defender
as medidas sanitárias recomendadas, passou a ser chamado
pejorativamente de “imprensa comunista” por apoiadores do
governo Bolsonaro, sobretudo nas redes digitais.
Performances em rede durante a pandemia de Covid-19:
presença e nostalgia no isolamento social
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
LX: Me parece que estamos redefinindo a fruição
coletiva e nossas performatizações de gosto, ao mesmo tempo
em que demarcamos nossa individualidade de várias maneiras.
Estamos reconfigurando o self nos ambientes digitais e
reafirmando nossa presença - mesmo que seja uma presença
mediada digitalmente em sites de redes sociais, por exemplo. E
também estamos consumindo, claro. Postamos fotos e stories
vendo lives no Instagram (sendo que todos têm acesso à mesma
live quando, por exemplo, o evento está sendo disponibilizado
gratuitamente no Youtube), comentamos e brigamos sobre a
live no Facebook, percebemos outros aspectos do show no
Twitter que não vimos na hora (como o tombo de Ludmilla na
piscina durante o show ou o comentário transfóbico de Marília
Mendonça no meio da transmissão). Essa conversação coletiva
aponta para exercícios de distinção de alguma outra ordem, já
que a maioria das pessoas com acesso à Internet pode ter acesso
ao mesmo conteúdo, demonstrando publicamente um certo
tipo de capital cultural (“estou tendo essa experiência, que
outros têm também”). Isso evidencia não só o pertencimento a
uma coletividade, demarcado pelo sentimento de “estar junto e
ao vivo”, ainda que os sujeitos estejam corporalmente isolados,
como também um exercício coletivo e público de felicidade
(ainda que choremos durante a live de Marília Mendonça). São
vários os efeitos de presença e partilha de uma experiência
coletiva, marcados por disputas, consensos e descobertas
sobre os outros e sobre nós mesmos.
A produção e a performance
DB: Então, podemos pensar que há uma relação forte
entre as performances em rede e o sistema de produção
capitalista.
JCF: Sim, sem dúvida. As indústrias de entretenimento
parecem estar encontrando alternativas para reinventar o
capitalismo durante a pandemia e que certamente trazem
Performances em rede durante a pandemia de Covid-19:
presença e nostalgia no isolamento social
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
incidências marcantes, mesmo num cenário posterior,
ampliando as assimetrias entre os já consolidados e os ainda
em busca de espaço. Um elemento que me instigou muito a
pensar no papel que desempenhamos neste capitalismo de
performance foram as iniciativas encontradas pelas ligas
de futebol mundial, sobretudo a Bundesliga (que voltou às
atividades em meados de maio), para promover a simulação
da presença dos torcedores no estádios com placas de PVC. O
que me fez pensar que, mesmo com toda espetacularização do
futebol mundial e da indústria de entretenimento, de maneira
geral, há uma função a ser cumprida por um determinado
público presente - que, na situação da pandemia, não está
disponível. Inclusive, passou-se a simular os cânticos das
torcidas nos estádios e ginásios, a fim de que a transmissão
esportiva não rompesse tanto com o padrão de performance
reconhecido pelos telespectadores. Ou seja, sem essa
performance co-presente, a mercadoria perde um pouco de
seu caráter mágico e fascinante.
LX: Essa é uma estratégia que evidencia o processo de
comodificação da subjetividade pela emulação do estar junto,
que tem operado no interior capitalismo de experiência.
O Brasil é um dos maiores países em consumo de serviços
digitais do mundo. E a taxa de engajamento aqui é enorme,
ainda que acessar internet de banda larga seja um privilégio
de poucos. O acesso à internet no Brasil ainda é extremamente
precário - quase 46 milhões de brasileiros não possuem
conexão, segundo o levantamento do IBGE realizado no
quarto trimestre de 2018 por meio da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD).
DB: É possível reconhecer, não somente nas figuras
públicas, mas nas redes pessoais dos indivíduos, trejeitos
de uma constante teatralização da própria vida pessoal, de
simples postagens de fotos à construção de toda uma narrativa
para envolver o pequeno circuito de seguidores?
Performances em rede durante a pandemia de Covid-19:
presença e nostalgia no isolamento social
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
TS: Uma questão cara para aqueles que se desafiam
a entender o tempo presente em pleno real time do contexto
sanitário caótico é buscar compreender o que ocorre quando
o ecossistema midiático é tomado pela pauta da pandemia do
Coronavírus, onde sujeitos célebres narram suas vivências com
a doença. Seriam roteiros performáticos e pactos discursivos
construídos por e para essas existências tão particulares em rede, em epidemia global e generalizada? A hipótese que
se desenha é que sim: ao performatizarem a doença em suas
redes sociais digitais as celebridades despertaram uma face
de sensibilidade no público que ancora, a partir de então,
a posição de fragilidade na construção narrativa daquela
doença (a ver as capas de jornais e revistas que retratam, em
comiseração, as dificuldades de vida que se tornarão associadas
àquele quadro patológico dali em diante). Além desse aspecto,
a exposição performática das celebridades brasileiras dos
exemplos de contágio trazidos - a digital influencer Gabriela
Pugliesi, conhecida por “musa fitness”, a cantora Preta Gil, e a
atriz Fernanda Paes Leme - acentuaram a percepção de uma
ideia de desigualdade no Brasil a partir das possibilidades e
recursos que cercam o grupo desta classe social por si só. O
impacto dessas formas de descrever e encenar a doença será,
com efeito, determinante no imaginário dos circulantes dessas
redes sociais digitais.
O performativo é, portanto, central no debate sobre
teatralidade, na medida em que faz ressaltar o aspecto
declaratório e temporal dos atos. No caso da pandemia do
Coronavírus, trata-se do momento em que se “diz” a doença,
em que ela é anunciada, e das instâncias performativas
do ato. Reconhecer a teatralidade no debate sobre cenas
enunciativas pressupõe enfrentar as diferentes espacialidades
e ambiências de onde emergem estas ações e como o especular
integra o próprio espaço. No ambiente midiático, a noção de
intenção (que é tão cara à ideia de teatralidade) aparece como
Performances em rede durante a pandemia de Covid-19:
presença e nostalgia no isolamento social
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
uma perspectiva que nos coloca diante do apagamento da
transparência das ações. Ressaltam-se, portanto, as conexões
entre o que se evidencia e um invisível-intencional que está
presente a partir da aparição.
GA: Tomemos aqui o exemplo do Instagram. A rede
passa a ter outra função além do registro cotidiano do agora
e passa a ser um lugar onde todo dia é dia de “throwback
thursday” (de sigla TBT, para o sentido ‘Quinta-feira da
nostalgia’). E acho que isso não tem a ver apenas com essa
memória afetiva que as fotos de viagens, no caso, podem evocar,
mas também a uma certa sensação de que nada no presente
é interessante o suficiente para compor as performances na
rede. As fotos de viagens acionam um elemento de distinção
que está ligado a um certo imaginário cosmopolita associado a
determinados lugares que produz distinção de gosto e também
econômica, e essas imagens ajudam a compor algo da ordem
do extraordinário da vida de cada um. Dificilmente uma foto
antiga é de uma viagem a Feira de Santana – e aqui não há
nenhum juízo sobre a cidade em si, e sim sobre o fato de que
existe um capital associado a determinados lugares e a outros
não e, nesse sentido, Feira de Santana não é um lugar desejável.
Certamente é um recorte que percebo a partir da minha
própria experiência de acesso ao Instagram e de contatos com
pessoas que em geral são jovens e adultos de classe média
ligados ao contexto universitário (seja na condição de alunos
ou de professores), além de profissionais liberais e artistas,
para quem a evocação de uma certa ideia de cosmopolitismo
parece muito central. As fotos costumam ser de viagens
internacionais, especialmente cidades importantes europeias
ou lugares como Nova Iorque, Buenos Aires, São Paulo ou Rio
de Janeiro. Ao mesmo tempo em que performo, a rede também
performa para mim. Mas a evocação do cosmopolitismo e da
distinção aparece não só nas fotos de viagens, mas também nas
manifestações de gosto no consumo cultural: o que as pessoas
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presença e nostalgia no isolamento social
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
querem mostrar que consomem, especialmente na música, no
cinema e na literatura, durante a pandemia.
Experiência e Nostalgia
DB: E esse sentimento de nostalgia que experimentamos
durante o isolamento social se articula a tais performances...
GA: Não assumo o sentido conservador e perigoso
do termo nostalgia como desejo de retorno a um passado
idealizado ou um mundo anterior, e sim como experiência no
presente resultante do acionamento de uma memória afetiva
relativa a lugares e pessoas que nos fizeram companhia. Uma
memória que se torna pública e compartilhada nas redes sociais
e passa a integrar o gesto performativo do sujeito nessas redes,
especialmente no Instagram. Há um sentido não-conservador
para a nostalgia que está presente em alguns autores que
relacionam nostalgia e melancolia, inclusive.
Já no caso da melancolia, existem dois enquadramentos
vigentes mais comuns para o termo, que são antagônicos e têm
diferentes implicações: de um lado, o enquadramento oriundo
da patologização da melancolia, que em alguns círculos
psiquiátricos pode ser vista como uma forma de depressão.
Do outro, a melancolia como uma sensibilidade, uma forma de
estar no mundo com uma capacidade reflexiva que se manifesta
principalmente sob a forma da ironia ou da utopia e sob uma
percepção de insuficiência absoluta do presente.
Subjacente a esse enquadramento, está o entendimento
de que a melancolia seria uma sensibilidade reservada, segundo
André Antonio Barbosa (2013), “aos gênios sofisticados que
resistem dolorosamente à banalidade da ordem corrente”.
O interessante é pensar os cruzamentos possíveis entre
nostalgia e melancolia não como fuga ou escape do presente,
mas como sensibilidades que, em um momento de absoluta
exceção – no caso do Brasil, dupla: a pandemia e o governo –
convocam fortemente o desejo. Nesse momento que estamos
Performances em rede durante a pandemia de Covid-19:
presença e nostalgia no isolamento social
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
vivendo, desejar é bastante coisa, ainda que esse desejo se dirija
a outro lugar ou, nesse caso, a outro tempo. Num sentido então
bastante benjaminiano, é possível pensar que a nostalgia pode
se constituir como forma de escapar do otimismo do progresso,
como afastamento defensivo do presente e evidência da perda
de fé no futuro.
LX: Esse isolamento se mostrou absolutamente
eficiente para o consumo de realities, especialmente
daqueles em que pessoas também estão confinadas como o
BBB, The Circle, Casamento às Cegas. Se antes havia um
fascínio e estranhamento sobre o confinamento, agora há
identificação. E o aspecto conversacional foi amplificado
pelas redes, chegando a comemorações públicas, como em
um campeonato de futebol, quando dado participante sai
ou vence o programa. Um exemplo é como essa conversação
coletiva potencializada pelo isolamento - porque precisamos
mais de contato virtual e conversas online agora - catapultou
a audiência e a intensidade da experiência durante a
transmissão do BBB neste ano de 2020. Intensificou-se
o efeito do ‘sentir-se dentro da casa’, vivenciando com os
outros participantes o conflito, enquanto afirmávamonos individual e politicamente ao nos identificarmos
com dados personagens-participantes. Via redes sociais,
manifestamos nossas opiniões dentro de uma coletividade
de telespectadores, e até alteramos o roteiro do programa,
não apenas nos momentos de votação, mas na construção de
protagonistas e antagonistas que variavam de acordo com a
história ali contada.
Presença e corpo
DB: Corpos presentes se tornaram uma demanda,
certo? Comentem um pouco mais sobre isso.
LX: Exato. Ao fruirmos esses produtos culturais e
partilharmos coletivamente os processos de apreensão e
Performances em rede durante a pandemia de Covid-19:
presença e nostalgia no isolamento social
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
produção de sentidos, nós sempre temos a possibilidade de
nos perder naquela manifestação que está ocorrendo. Isso
é um aspecto que constitui a experiência e que evidencia
a presença do outro e a nossa própria. Assim, apesar da
facilidade, inédita, de estarmos juntos via ambiente digital
sem estarmos presentes fisicamente, percebemos que,
enquanto espécie, precisamos de toque, de contato físico,
e especialmente do contato com o diferente. Não só por
uma questão de saúde mental, mas social. Isolamento gera
fragilidade, medo e intolerância. A gente precisa do ao vivo
sendo ao vivo mesmo. Pode ser óbvio, mas não estávamos
valorizando isso antes da pandemia. Talvez estejamos
criando outras maneiras de fruir a coletividade, a cultura e o
entretenimento. Se a pandemia aponta para o acontecimento
imponderável e para a fragilidade da existência, a cultura é
aquilo que preenche o vazio, é a cola das nossas fraturas e
tem o poder de nos unir aos outros, nos fazendo pertencer a
alguma coisa, e nos lembrando que a vida permanece.
TS: Não só os corpos presentes, mas o próprio regime de
verdade mudou. Como apontou Igor Sacramento, no contexto
de disseminação da pandemia e diante do amplo acesso às
redes sociais digitais, a vivências pessoais têm legitimado o
conhecimento próprio frente à verdade apresentada pelo outro.
É intensamente valorizada um tipo distinto de autoridade: a
autoridade experiencial. “Ela enfatiza o caráter testemunhal:
eu vivi, eu sei. Produz na primeira pessoa (naquele que viu,
viveu, sentiu) da experiência e da narrativa de um determinado
acontecimento a origem da verdade ou um documento de que o
narrado realmente existiu” (SACRAMENTO, 2018, p. 5). Para
Sacramento, a experiência evoca uma presença participativa,
um contato sensível com o mundo a ser compreendido, uma
relação de afinidade emocional, uma concretude de percepção.
O que a guinada subjetiva da cultura contemporânea diz está
relacionado à primeira acepção de experiência: na configuração
Performances em rede durante a pandemia de Covid-19:
presença e nostalgia no isolamento social
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
de um sistema de produção enunciativa e também de crença na
relação entre experiência pessoal e narrativa.
Indicações de leitura
Deixamos aqui algumas indicações de leitura, para
aqueles que tiverem interesse em se aprofundar nos debates
que surgiram nessa entrevista.
AMARAL, Adriana; POLIVANOV, Beatriz; SOARES, Thiago. Disputas
sobre performance nos estudos de Comunicação: desafios teóricos,
derivas metodológicas. Revista INTERCOM – RBCC. São Paulo, v.41,
n.1, jan./abr. 2018. P.63-79.
BARBOSA, André Antonio. Nostalgia e melancolia nos cinemas de Philippe
Garrel e Sofia Coppola. Dissertação de mestrado defendida junto ao PPG
em Comunicação da UFPE. 2013.
CARRERA, Fernanda. O imperativo da felicidade em sites de redes
sociais: materialidade como subsídio para o gerenciamento de
impressões (quase) sempre positivas. Revista Eptic Online, v.16 n.1 p.3344, jan.-abr. 2014.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo: historia del arte o
anacronismo de las imagenes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006.
FÉRAL, Josette. Além dos Limites: Teoria e Prática do Teatro. São Paulo,
Perspectiva: 2015.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença – o que o sentido não
consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto e PUC-Rio, 2010.
LOPES, Denilson. Nós os mortos: melancolia e neo-barroco. Rio de
Janeiro: Sette Letras, 1999.
LOPES, Denilson. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília:
Ed UNB, 2007.
PIRES, Victor de Almeida Nobre. Rastros da música ao vivo: dos palcos
aos shows em salas de estar. 1. ed. Curitiba: Appris Editora, 2019.
Performances em rede durante a pandemia de Covid-19:
presença e nostalgia no isolamento social
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Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho,
Luciana Oliveira e Thiago Soares
SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
SÁ, Simone Pereira de; POLIVANOV, Beatriz. Auto-Reflexividade,
Coerência Expressiva e Performance como Categorias para Análise dos
Sites de Redes Sociais. Revista Contemporanea - Comunicação e Cultura.
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