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Desafios da comunicação em tempo de pandemia: um mundo e muitas vozes | 1ª edição Copyright © 2020 dos autores dos textos, cedidos para esta edição à Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação Intercom Organização Nair Prata, Sônia Jaconi e Genio Nascimento Projeto gráfico, diagramação e capa Gênio Editorial - genioeditorial.com Ficha Catalográfica Desafios da comunicação em tempo de pandemia: um mundo e muitas vozes [recurso eletrônico] / Nair Prata, Sônia Jaconi e Genio Nascimento (orgs). São Paulo: INTERCOM, 2020, 461 p.:il. Inclui bibliografias. E-book. ISBN 978-65-990485-2-4 1. Comunicação. 2. Interdisciplinar. 3. Pandemia. 4. Grupos de Pesquisa Intercom. 5. Brasil. I. Prata, Nair (org.). II. Jaconi, Sônia (org.). III. Nascimento, Genio (org.). CDD: 659 Todos os direitos desta edição reservados à: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação- Intercom Avenida Brigadeiro Luís Antonio, 2050 - conjunto 36 - Bela Vista CEP 01318-002 - São Paulo - SP Tel.: (11) 3892 7558 Site: portalintercom.org.br - E-mail: secretaria@intercom.org.br SUMÁRIO Prefácio ......................................................................................................... 9 Margarida M. Krohling Kunsch Apresentação ............................................................................................. 15 Nair Prata, Sônia Jaconi e Genio Nascimento Um mundo e muitas vozes: da utopia à distopia? ........................... 23 Giovandro Ferreira e Nair Prata Os desafios da Comunicação Gerencial no mundo em transformação .......................................................................................... 44 Raphael Cortezão e Sônia Jaconi Jornalismo em tempos de pandemia e autoritarismo ................... 69 Felipe Pena e Monica Martinez Flagelo dos corpos: a pandemia e o agravamento das precariedades ........................................................................................... 87 Sônia Caldas Pessoa e Carlos Magno Camargos Mendonça Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social ........................................................ 112 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares Utopias e Distopias do Trabalho Digital: diálogo com Rafael Grohmann ............................................................................................... 126 Rafael Grohmann, Willian Fernandes Araújo, Beatriz Polivanov, Caio Cesar G. Oliveira Fake news, mídias sociais e religião .................................................. 145 Alexandre Brasil Fonseca, Juliana Dias e Priscila Vieira-Souza A mediação segundo a Economia Política da Comunicação .... 171 Verlane Aragão Santos, César Bolaño, Manoel Dourado Bastos e Anderson David Gomes dos Santos Os sons que ecoam em tempos de pandemia - Estudos iniciais dos pesquisadores do GP Comunicação, Música e Entretenimento sobre as mudanças no universo do som e da música em decorrência da Covid-19 ............................................................................................ 193 Nadja Vladi Gumes, Adriana Amaral, Jeder Janotti Jr., Marcelo Bergamin Conter, Mario Arruda, Micael Herschmann, Simone Pereira de Sá, Thiago Soares, Tobias Queiroz e Victor de Almeida Nobre Pires As múltiplas missões do rádio na crise da Covid-19 .................... 213 Marcelo Kischinhevsky, Debora Cristina Lopez, Luiz Artur Ferraretto, Valci Zuculoto e Fernando Morgado Polifonia e Alteridade: Comunicação e Educação em época de pandemia da Covid-19 ........................................................................ 233 Rose Mara Pinheiro e Ana Luísa Zaniboni Gomes Perspectivas Contemporâneas da Folkcomunicação .................. 246 Marcelo Pires de Oliveira e Marcelo Sabbatini A (re)-invenção do telejornalismo em tempos de pandemia ..... 266 Flávio Porcello, Edna Mello, Ariane Pereira, Cárlida Emerim, Cristiane Finger e Iluska Coutinho Esporte, Olimpíadas e Paralimpíadas: entre utopias e distopias .... 280 Rafael Duarte Oliveira Venancio e Tatiane Hilgemberg O Café Intercom e as safras comunicacionais de José Marques de Melo .......................................................................................................... 300 Eliane Mergulhão e Rodrigo Gabrioti O Fim do Cinema? A Reconfiguração do Circuito Cinematográfico sob a Pandemia ...................................................................................... 316 Luíza Alvim, Luíza Lusvarghi, Pedro Butcher e Talitha Ferraz A escassez dos recursos de comunicação em diferentes escalas – A utopia de um país conectado na pandemia de 2020 .................... 339 Sonia Virgínia Moreira, Nélia Rodrigues Del Bianco e Jacqueline da Silva Deolindo A pesquisa de televisão e televisualidades na Intercom: continuidades, rupturas e perspectivas ............................................ 358 Bruno de Souza Leal, Carlos Eduardo Marquioni e Gustavo Daudt Fischer Comunicação para a Cidadania em tempos de Covid-19 ......... 374 Cicilia M. Krohling Peruzzo, Rozinaldo Antonio Miani, Denise Teresinha da Silva, Cláudia Regina Lahni, Patrícia Gonçalves Saldanha, Pablo Nabarrete Bastos e Suelen de Aguiar Silva Entre bytes e vírus: as mídias na pandemia .................................. 401 Ana Claudia Munari Domingos, Antonio Hohlfeldt, Cristiane Finger, Juliana Tonin e Mágda Rodrigues da Cunha Sobre os autores ..................................................................................... 432 PERFORMANCES EM REDE DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19: PRESENÇA E NOSTALGIA NO ISOLAMENTO SOCIAL Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares Introdução O acontecimento da pandemia do Coronavírus no ano de 2020 suspendeu o mundo em um estado de anormalidade, com habitações e partilhas refeitas diante da lógica necessária do distanciamento social. Com uma série de expressões ainda não vistas, o consumo e as relações em quarentena trouxeram formas outras de presença e interação. É na fragorosa crise sanitária do século XXI que a sociabilidade se vê chacoalhada, e surgem, então, novos fenômenos que despertam o olhar reflexivo da Comunicação. Para expandi-los em uma conversa amigável, este texto discute a presença, a nostalgia e a articulação em múltiplas plataformas de expressão de anseios, medos e juízos. Em formato de entrevista, as ideias apresentadas nesse espaço são o resgate do debate ocorrido em 19 de maio de 2020, organizado pelo Grupo de Pesquisa Estéticas, Políticas do Corpo e Gêneros da INTERCOM. Logo após a atividade, Desafios da comunicação em tempo de pandemia: um mundo e muitas vozes 112 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares os quatro colegas de profissão e amigos se mantiveram online, para celebrar a oportunidade de estarem, mais uma vez, juntos, mesmo que de maneira remota. Optamos, neste texto final, por apresentar um formato híbrido, no qual as informações partilhadas durante o debate foram organizadas com um grau de fabulação, tecido com a vantagem de poder refletir posteriormente sobre os acontecimentos e com o olhar mais distanciado da entrevistadora, Danielly Bezerra, convidada para contribuir nessa organização final. Esperamos que o resultado seja útil para aqueles que buscam desenvolver trabalhos de reflexão e pesquisa sobre as experiências sociais durante a pandemia de Covid-19, no Brasil, mas também com quem pesquisa nos temas da performance e presença. Origem da proposição Danielly Bezerra: Por que propor uma mesa de debate com esse tema “Performances em rede durante a pandemia de Covid-19”? O que vocês esperavam poder discutir naquele momento, em que ainda estávamos no início da pandemia no Brasil? Jorge Cardoso Filho: É mesmo uma pergunta importante porque nós estávamos ainda muito sob o efeito imediato de vivermos “privados” da possibilidade de contato com público. Então esperávamos que o debate pudesse dar oportunidade de refletirmos juntos sobre aqueles aspectos que pareciam muito centrais para quem estava vivendo em isolamento social. Quando seria possível contato com outros corpos presentes? Por que aqueleas experiências de nostalgia constante? Seria necessário o desenvolvimento de maiores camadas de performance na vida social digital? Tudo isso se relaciona aos aspectos da experiência estética e políticos dos corpos e, portanto, dizem respeito ao tipo de discussão que nos interessa no grupo de pesquisa Estéticas, Políticas do Corpo e Gêneros. Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 113 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares Luciana Xavier: As manifestações artísticas e culturais, nesse contexto, têm sido impactadas pelo isolamento social. E chamam a atenção as maneiras pelas quais a mediação tecnológica têm sido operacionalizadas para o seu consumo. Pensando em momentos de ruptura, a cultura sai da condição de possibilidade para a condição de necessidade. Pensando na gripe de 1918, a pandemia gerou uma sociedade mais permissiva, mais aberta e que valoriza o prazer e a diversão. E estamos vendo agora, durante a pandemia do Covid-19, a importância da cultura e do entretenimento, sobretudo da mídia e da cultura popular massiva, em especial. Apesar dos prejuízos com fechamentos de cinemas e teatros, cancelamentos de shows, na crise do showbusiness mais tradicional, percebemos o surgimento de novas formas de entretenimento e a consagração do consumo da cultura digital. Isso nos fez pensar que seria uma boa chance de pautar esse debate das performances em rede. Gabriela Almeida: Estávamos nos sentindo presos num eterno presente. Os dias eram quase sempre iguais. Qualquer coisa que acontecia na semana passada parecia que tinha sido há meses. Nos confudíamos com os dias da semana e não conseguíamos enxergar o futuro. Era praticamente impossível fazer planos. Ao mesmo tempo, como alguém que dedica atenção às relações entre estética e política, estava pensando muito sobre os regimes que atuam sobre os corpos, de um lado autorizando a morte com a ausência de políticas públicas efetivas de combate à pandemia e o incentivo à uma exposição suicida e, do outro, num nível micropolítico, os mesmos regimes atuando sobre os corpos e subjetividades aniquilando o desejo e colocando em cena uma questão fundamental: “o que eu posso querer nesse momento, no Brasil de Bolsonaro e de pandemia, além de estar viva?”. Estar viva é bastante, mas é pouco. Me parece que ambas as formas de violência produziam consequências de longo prazo Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 114 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares que ainda éramos (e ainda não somos) capazes de perceber, mas sabíamos que deviam ser compartilhadas com um grupo maior de pessoas, por isso o tema dessas performances em rede pareceu importante para nós. DB: Mas o que seriam essas performances? Thiago Soares: A noção de Performance já conta com um largo conjunto de reflexões no campo da Comunicação no Brasil. Dos estudos em torno da espetacularização do eu, passando por um debate mais circunscrito às redes sociais digitais, tangenciando as performances de gosto e as formas de encenação dos afetos por fãs, para citar apenas alguns dos importantes trabalhos. Parece-nos relevante fazer novos movimentos teóricos na tentativa de promover reordenamentos conceituais e avanços metodológicos. Performances midiáticas são acionamentos corporais de sujeitos em ambientes de mídia envolvendo a formação de uma “vida cênica” em contextos de alta visibilidade e a construção de redes de sentido do biográfico, ou seja, o vivido e o relatado, em dinâmicas cotidianas. Performances midiáticas, na medida em que se projetam para o Outro, formam espaços especulativos de exibição, articulando prazer e convivência mas também vigilância, controle e punição. Pressupõem valores ligados ao narcisismo e ao individualismo, mas também à conjunção e aproximação, promovendo atravessamentos de mídias e enlaces entre a vida comum, as indústrias da cultura e do entretenimento e conglomerados transnacionais de mídias. Num contexto de redes sociais digitais, a mudança de estatuto afetivo, a concordância com linhagens políticas, a crítica a produtos culturais, entre outras disposições performativas, instauram estatutos relacionais entre sujeitos: acionam aproximações, afastamentos, rompimento de laços de amizade, engajamentos e comunhão. O estatuto performativo das ações em redes sociais digitais criou espaços liminares Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 115 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares no tecido social, entendendo a liminaridade como esfera limítrofe nos ritos de passagem do vivido e de suas relações com outras ambiências do social e ainda com o reordenamento das mobilizações em torno dos sujeitos que protagonizam o performativo. JCF: Para nós foi interessante perceber como, durante a pandemia, exacerbou-se a dimensão performática do capitalismo, em função da indisponibilidade momentânea das experiências presenciais. No capitalismo contemporâneo, o produto a ser vendido é a experiência com algo (ir ao show, ir ao evento). Nessa circunstância, a valorização da presença de corpos é fundamental. No capitalismo de experiência há uma demanda crescente por essas ocasiões onde os corpos se encontram (mesmo passando por variados processos de exclusão em função das estruturas sociais) porque faz parte deste modelo uma noção de presença física, de fato. Associado ao processo de construção do produto no capitalismo de experiência, está uma dimensão de consumo performático deste produto que chamamos de capitalismo de performance. Durante o consumo do produto, emula-se de maneira intensificada a experiência com algo, restituída a partir de comportamentos restaurados reconhecíveis e organizados mediantes signos específicos. Nossas relações com empresas, marcas e até celebridades se tornaram amplamente marcadas pelo modo como elas se comportam, nesse âmbito do capitalismo de performance, em relação a determinados temas. A rede de restaurantes Madero, por exemplo, sofreu duras críticas após uma manifestação de seu CEO, que era contrário às medidas de isolamento social durante a pandemia porque afirmava que a economia brasileira não aguentaria um lockdown. Até mesmo mesmo o grupo Folha de São Paulo, que, ao se posicionar de forma a defender as medidas sanitárias recomendadas, passou a ser chamado pejorativamente de “imprensa comunista” por apoiadores do governo Bolsonaro, sobretudo nas redes digitais. Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 116 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares LX: Me parece que estamos redefinindo a fruição coletiva e nossas performatizações de gosto, ao mesmo tempo em que demarcamos nossa individualidade de várias maneiras. Estamos reconfigurando o self nos ambientes digitais e reafirmando nossa presença - mesmo que seja uma presença mediada digitalmente em sites de redes sociais, por exemplo. E também estamos consumindo, claro. Postamos fotos e stories vendo lives no Instagram (sendo que todos têm acesso à mesma live quando, por exemplo, o evento está sendo disponibilizado gratuitamente no Youtube), comentamos e brigamos sobre a live no Facebook, percebemos outros aspectos do show no Twitter que não vimos na hora (como o tombo de Ludmilla na piscina durante o show ou o comentário transfóbico de Marília Mendonça no meio da transmissão). Essa conversação coletiva aponta para exercícios de distinção de alguma outra ordem, já que a maioria das pessoas com acesso à Internet pode ter acesso ao mesmo conteúdo, demonstrando publicamente um certo tipo de capital cultural (“estou tendo essa experiência, que outros têm também”). Isso evidencia não só o pertencimento a uma coletividade, demarcado pelo sentimento de “estar junto e ao vivo”, ainda que os sujeitos estejam corporalmente isolados, como também um exercício coletivo e público de felicidade (ainda que choremos durante a live de Marília Mendonça). São vários os efeitos de presença e partilha de uma experiência coletiva, marcados por disputas, consensos e descobertas sobre os outros e sobre nós mesmos. A produção e a performance DB: Então, podemos pensar que há uma relação forte entre as performances em rede e o sistema de produção capitalista. JCF: Sim, sem dúvida. As indústrias de entretenimento parecem estar encontrando alternativas para reinventar o capitalismo durante a pandemia e que certamente trazem Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 117 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares incidências marcantes, mesmo num cenário posterior, ampliando as assimetrias entre os já consolidados e os ainda em busca de espaço. Um elemento que me instigou muito a pensar no papel que desempenhamos neste capitalismo de performance foram as iniciativas encontradas pelas ligas de futebol mundial, sobretudo a Bundesliga (que voltou às atividades em meados de maio), para promover a simulação da presença dos torcedores no estádios com placas de PVC. O que me fez pensar que, mesmo com toda espetacularização do futebol mundial e da indústria de entretenimento, de maneira geral, há uma função a ser cumprida por um determinado público presente - que, na situação da pandemia, não está disponível. Inclusive, passou-se a simular os cânticos das torcidas nos estádios e ginásios, a fim de que a transmissão esportiva não rompesse tanto com o padrão de performance reconhecido pelos telespectadores. Ou seja, sem essa performance co-presente, a mercadoria perde um pouco de seu caráter mágico e fascinante. LX: Essa é uma estratégia que evidencia o processo de comodificação da subjetividade pela emulação do estar junto, que tem operado no interior capitalismo de experiência. O Brasil é um dos maiores países em consumo de serviços digitais do mundo. E a taxa de engajamento aqui é enorme, ainda que acessar internet de banda larga seja um privilégio de poucos. O acesso à internet no Brasil ainda é extremamente precário - quase 46 milhões de brasileiros não possuem conexão, segundo o levantamento do IBGE realizado no quarto trimestre de 2018 por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). DB: É possível reconhecer, não somente nas figuras públicas, mas nas redes pessoais dos indivíduos, trejeitos de uma constante teatralização da própria vida pessoal, de simples postagens de fotos à construção de toda uma narrativa para envolver o pequeno circuito de seguidores? Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 118 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares TS: Uma questão cara para aqueles que se desafiam a entender o tempo presente em pleno real time do contexto sanitário caótico é buscar compreender o que ocorre quando o ecossistema midiático é tomado pela pauta da pandemia do Coronavírus, onde sujeitos célebres narram suas vivências com a doença. Seriam roteiros performáticos e pactos discursivos construídos por e para essas existências tão particulares em rede, em epidemia global e generalizada? A hipótese que se desenha é que sim: ao performatizarem a doença em suas redes sociais digitais as celebridades despertaram uma face de sensibilidade no público que ancora, a partir de então, a posição de fragilidade na construção narrativa daquela doença (a ver as capas de jornais e revistas que retratam, em comiseração, as dificuldades de vida que se tornarão associadas àquele quadro patológico dali em diante). Além desse aspecto, a exposição performática das celebridades brasileiras dos exemplos de contágio trazidos - a digital influencer Gabriela Pugliesi, conhecida por “musa fitness”, a cantora Preta Gil, e a atriz Fernanda Paes Leme - acentuaram a percepção de uma ideia de desigualdade no Brasil a partir das possibilidades e recursos que cercam o grupo desta classe social por si só. O impacto dessas formas de descrever e encenar a doença será, com efeito, determinante no imaginário dos circulantes dessas redes sociais digitais. O performativo é, portanto, central no debate sobre teatralidade, na medida em que faz ressaltar o aspecto declaratório e temporal dos atos. No caso da pandemia do Coronavírus, trata-se do momento em que se “diz” a doença, em que ela é anunciada, e das instâncias performativas do ato. Reconhecer a teatralidade no debate sobre cenas enunciativas pressupõe enfrentar as diferentes espacialidades e ambiências de onde emergem estas ações e como o especular integra o próprio espaço. No ambiente midiático, a noção de intenção (que é tão cara à ideia de teatralidade) aparece como Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 119 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares uma perspectiva que nos coloca diante do apagamento da transparência das ações. Ressaltam-se, portanto, as conexões entre o que se evidencia e um invisível-intencional que está presente a partir da aparição. GA: Tomemos aqui o exemplo do Instagram. A rede passa a ter outra função além do registro cotidiano do agora e passa a ser um lugar onde todo dia é dia de “throwback thursday” (de sigla TBT, para o sentido ‘Quinta-feira da nostalgia’). E acho que isso não tem a ver apenas com essa memória afetiva que as fotos de viagens, no caso, podem evocar, mas também a uma certa sensação de que nada no presente é interessante o suficiente para compor as performances na rede. As fotos de viagens acionam um elemento de distinção que está ligado a um certo imaginário cosmopolita associado a determinados lugares que produz distinção de gosto e também econômica, e essas imagens ajudam a compor algo da ordem do extraordinário da vida de cada um. Dificilmente uma foto antiga é de uma viagem a Feira de Santana – e aqui não há nenhum juízo sobre a cidade em si, e sim sobre o fato de que existe um capital associado a determinados lugares e a outros não e, nesse sentido, Feira de Santana não é um lugar desejável. Certamente é um recorte que percebo a partir da minha própria experiência de acesso ao Instagram e de contatos com pessoas que em geral são jovens e adultos de classe média ligados ao contexto universitário (seja na condição de alunos ou de professores), além de profissionais liberais e artistas, para quem a evocação de uma certa ideia de cosmopolitismo parece muito central. As fotos costumam ser de viagens internacionais, especialmente cidades importantes europeias ou lugares como Nova Iorque, Buenos Aires, São Paulo ou Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo em que performo, a rede também performa para mim. Mas a evocação do cosmopolitismo e da distinção aparece não só nas fotos de viagens, mas também nas manifestações de gosto no consumo cultural: o que as pessoas Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 120 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares querem mostrar que consomem, especialmente na música, no cinema e na literatura, durante a pandemia. Experiência e Nostalgia DB: E esse sentimento de nostalgia que experimentamos durante o isolamento social se articula a tais performances... GA: Não assumo o sentido conservador e perigoso do termo nostalgia como desejo de retorno a um passado idealizado ou um mundo anterior, e sim como experiência no presente resultante do acionamento de uma memória afetiva relativa a lugares e pessoas que nos fizeram companhia. Uma memória que se torna pública e compartilhada nas redes sociais e passa a integrar o gesto performativo do sujeito nessas redes, especialmente no Instagram. Há um sentido não-conservador para a nostalgia que está presente em alguns autores que relacionam nostalgia e melancolia, inclusive. Já no caso da melancolia, existem dois enquadramentos vigentes mais comuns para o termo, que são antagônicos e têm diferentes implicações: de um lado, o enquadramento oriundo da patologização da melancolia, que em alguns círculos psiquiátricos pode ser vista como uma forma de depressão. Do outro, a melancolia como uma sensibilidade, uma forma de estar no mundo com uma capacidade reflexiva que se manifesta principalmente sob a forma da ironia ou da utopia e sob uma percepção de insuficiência absoluta do presente. Subjacente a esse enquadramento, está o entendimento de que a melancolia seria uma sensibilidade reservada, segundo André Antonio Barbosa (2013), “aos gênios sofisticados que resistem dolorosamente à banalidade da ordem corrente”. O interessante é pensar os cruzamentos possíveis entre nostalgia e melancolia não como fuga ou escape do presente, mas como sensibilidades que, em um momento de absoluta exceção – no caso do Brasil, dupla: a pandemia e o governo – convocam fortemente o desejo. Nesse momento que estamos Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 121 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares vivendo, desejar é bastante coisa, ainda que esse desejo se dirija a outro lugar ou, nesse caso, a outro tempo. Num sentido então bastante benjaminiano, é possível pensar que a nostalgia pode se constituir como forma de escapar do otimismo do progresso, como afastamento defensivo do presente e evidência da perda de fé no futuro. LX: Esse isolamento se mostrou absolutamente eficiente para o consumo de realities, especialmente daqueles em que pessoas também estão confinadas como o BBB, The Circle, Casamento às Cegas. Se antes havia um fascínio e estranhamento sobre o confinamento, agora há identificação. E o aspecto conversacional foi amplificado pelas redes, chegando a comemorações públicas, como em um campeonato de futebol, quando dado participante sai ou vence o programa. Um exemplo é como essa conversação coletiva potencializada pelo isolamento - porque precisamos mais de contato virtual e conversas online agora - catapultou a audiência e a intensidade da experiência durante a transmissão do BBB neste ano de 2020. Intensificou-se o efeito do ‘sentir-se dentro da casa’, vivenciando com os outros participantes o conflito, enquanto afirmávamonos individual e politicamente ao nos identificarmos com dados personagens-participantes. Via redes sociais, manifestamos nossas opiniões dentro de uma coletividade de telespectadores, e até alteramos o roteiro do programa, não apenas nos momentos de votação, mas na construção de protagonistas e antagonistas que variavam de acordo com a história ali contada. Presença e corpo DB: Corpos presentes se tornaram uma demanda, certo? Comentem um pouco mais sobre isso. LX: Exato. Ao fruirmos esses produtos culturais e partilharmos coletivamente os processos de apreensão e Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 122 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares produção de sentidos, nós sempre temos a possibilidade de nos perder naquela manifestação que está ocorrendo. Isso é um aspecto que constitui a experiência e que evidencia a presença do outro e a nossa própria. Assim, apesar da facilidade, inédita, de estarmos juntos via ambiente digital sem estarmos presentes fisicamente, percebemos que, enquanto espécie, precisamos de toque, de contato físico, e especialmente do contato com o diferente. Não só por uma questão de saúde mental, mas social. Isolamento gera fragilidade, medo e intolerância. A gente precisa do ao vivo sendo ao vivo mesmo. Pode ser óbvio, mas não estávamos valorizando isso antes da pandemia. Talvez estejamos criando outras maneiras de fruir a coletividade, a cultura e o entretenimento. Se a pandemia aponta para o acontecimento imponderável e para a fragilidade da existência, a cultura é aquilo que preenche o vazio, é a cola das nossas fraturas e tem o poder de nos unir aos outros, nos fazendo pertencer a alguma coisa, e nos lembrando que a vida permanece. TS: Não só os corpos presentes, mas o próprio regime de verdade mudou. Como apontou Igor Sacramento, no contexto de disseminação da pandemia e diante do amplo acesso às redes sociais digitais, a vivências pessoais têm legitimado o conhecimento próprio frente à verdade apresentada pelo outro. É intensamente valorizada um tipo distinto de autoridade: a autoridade experiencial. “Ela enfatiza o caráter testemunhal: eu vivi, eu sei. Produz na primeira pessoa (naquele que viu, viveu, sentiu) da experiência e da narrativa de um determinado acontecimento a origem da verdade ou um documento de que o narrado realmente existiu” (SACRAMENTO, 2018, p. 5). Para Sacramento, a experiência evoca uma presença participativa, um contato sensível com o mundo a ser compreendido, uma relação de afinidade emocional, uma concretude de percepção. O que a guinada subjetiva da cultura contemporânea diz está relacionado à primeira acepção de experiência: na configuração Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 123 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares de um sistema de produção enunciativa e também de crença na relação entre experiência pessoal e narrativa. Indicações de leitura Deixamos aqui algumas indicações de leitura, para aqueles que tiverem interesse em se aprofundar nos debates que surgiram nessa entrevista. AMARAL, Adriana; POLIVANOV, Beatriz; SOARES, Thiago. Disputas sobre performance nos estudos de Comunicação: desafios teóricos, derivas metodológicas. Revista INTERCOM – RBCC. São Paulo, v.41, n.1, jan./abr. 2018. P.63-79. BARBOSA, André Antonio. Nostalgia e melancolia nos cinemas de Philippe Garrel e Sofia Coppola. Dissertação de mestrado defendida junto ao PPG em Comunicação da UFPE. 2013. CARRERA, Fernanda. O imperativo da felicidade em sites de redes sociais: materialidade como subsídio para o gerenciamento de impressões (quase) sempre positivas. Revista Eptic Online, v.16 n.1 p.3344, jan.-abr. 2014. DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo: historia del arte o anacronismo de las imagenes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006. FÉRAL, Josette. Além dos Limites: Teoria e Prática do Teatro. São Paulo, Perspectiva: 2015. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença – o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto e PUC-Rio, 2010. LOPES, Denilson. Nós os mortos: melancolia e neo-barroco. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. LOPES, Denilson. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: Ed UNB, 2007. PIRES, Victor de Almeida Nobre. Rastros da música ao vivo: dos palcos aos shows em salas de estar. 1. ed. Curitiba: Appris Editora, 2019. Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 124 Danielly Bezerra, Gabriela Almeida, Jorge Cardoso Filho, Luciana Oliveira e Thiago Soares SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. SÁ, Simone Pereira de; POLIVANOV, Beatriz. Auto-Reflexividade, Coerência Expressiva e Performance como Categorias para Análise dos Sites de Redes Sociais. Revista Contemporanea - Comunicação e Cultura. v.10, n.03, set-dez 2012. p. 574-596. SACRAMENTO, Igor. A saúde numa sociedade de verdades. Reciis – Revista Eletrônica de Comunicação, Informação, Inovação e Saúde. 2018. jan.-mar. n. 12. v.1. p. 4-8. STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza. São Paulo: Cia das Letras, 2016. Performances em rede durante a pandemia de Covid-19: presença e nostalgia no isolamento social 125