DOI
10.11606/issn.2525-3123.
gis.2022.185745
IMAGENS DA RELIGIÃO
EM UM CARNAVAL DA
MANGUEIRA
DOSSIÊ RELIGIÕES: SUAS IMAGENS,
PERFORMANCES E RITUAIS
RENATA DE CASTRO MENEZES
ORCID
https://orcid.org/0000-0002-8821-2694
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil,
20940-040 - ppgas@mn.ufrj.br
EDILSON PEREIRA
ORCID
http://orcid.org/0000-0001-8308-661X
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil,
22290-902 - institucional@eco.ufrj.br
INTRODUÇÃO1
Neste ensaio, abordamos as conexões entre religião e
carnaval em desfiles recentes da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, em especial o de 2020 – o
último antes da suspensão da festa em função da pandemia mundial do Covid. Exploramos, particularmente,
o contexto de montagem da performance espetacular:
indo do barracão à “concentração”, na etapa imediatamente anterior e condicionante à entrada da escola
na passarela da Marquês de Sapucaí, no desfile das
campeãs. Frente à magnitude do evento, apresentamos
um ensaio com imagens alternativas às difundidas
nas mídias comerciais, que são feitas no clímax da
festa e perpetuam sua dimensão monumental. Mais
do que uma apreciação estética do desfile, propomos
uma análise de como as imagens e performances “da
religião” se articulam e aparecem em um campo de
pesquisa a priori profano, como o carnaval. Para tanto,
nos valemos do repertório etnográfico que vem sendo
consolidado desde 2015 por membros do Laboratório de
Antropologia do Lúdico e do Sagrado do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ludens/
MN/UFRJ). Este grupo tem analisado por diferentes
frentes o complexo processo de realização de diversas
1. O ensaio resulta da pesquisa Enredamentos entre religião e
cultura no Carnaval Carioca, financiada com recursos da FAPERJ
e do CNPq.
1
São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
festas, dentre as quais o carnaval carioca, procurando compreender o
ritual dos desfiles em si e em relação com aquilo que vai além deles
(Bártolo 2018, Menezes e Bártolo 2020).
Baseando-se em um enredo, que se desdobra em dramatização, canto,
dança, percussão, cenografia, fantasias e diversos apelos visuais, as escolas
de samba operam como “óperas em movimento” (Cavalcanti 2006). Em
síntese, o desfile é uma competição em que os cortejos procuram demostrar
excelência na integração de várias modalidades expressivas a fim de narrar uma história. E, inversa e complementarmente, as escolas se utilizam
de uma história para demonstrar a sua excelência nessas expressões. No
momento do desfile, a grandiosa performance coletiva dá vida e forma à
narrativa do enredo, ao mesmo tempo em que a subverte em vários pontos, pois se canto e música implicam em repetição e harmonia, fantasias
e alegorias devem expressar criatividade e originalidade ao performar
facetas da história. Nesse aspecto, o desfile carnavalesco se assemelha
a outros rituais coletivos e cíclicos – religiosos ou não – que atualizam
macronarrativas com base em dispositivos sensoriais e corporais diversos
(Pereira 2015, 2019, 2020). Do ponto de vista teórico, o estudo das práticas
carnavalescas pode se beneficiar do repertório acumulado em estudos de
outros cortejos e rituais, sejam procissões, marchas, maracatus, afoxés
etc., nos quais se evidenciam lógicas simbólicas de manifestação coletiva.
Quanto à religião, ela se faz notar em vários enredos que evocam personagens ou elementos mitológicos, cosmológicos e ancestrais, sendo
costumeiramente classificados como folclóricos, populares e culturais
(Santos 1999, Simas e Fabato 2015). Enquanto obras-performances em ação,
os desfiles apresentam ideias por meio de formas materiais e sensíveis,
que não apenas recorrem a conteúdos religiosos preexistentes, mas que
os põem em movimento, atualizando-os, colocando-os em destaque ou
em suspensão, permitindo inclusive sua crítica. Assim, os conteúdos simbólicos reconhecidos como religiosos são apropriados sob a lógica própria
da competição e da expressividade carnavalesca, gerando situações tanto
de convergência quanto de divergência entre atores do mundo do carnaval
e das religiões no país.
Tal procedimento produz o interessante efeito de colocar em questão os
próprios limites do domínio religioso, permitindo considerá-lo em sua
dinâmica efetiva, sem lhe projetar contornos predefinidos. No caso das
pesquisas articuladas ao Ludens, os desfiles têm se revelado como casos
de estudo importantes porque possibilitam abordar concepções, conhecimentos e práticas religiosas veiculadas para além de templos e livros
sagrados. Fundamentados na etnografia de experiências socioculturais
efetivas, os pesquisadores do laboratório apontam para a instabilidade e a
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
inadequação da demarcação rígida entre ritual e vida cotidiana, ou entre
religioso e secular (Bártolo 2018, Menezes e Bártolo 2019, Menezes 2020).
MANGUEIRA: ENREDOS RELIGIOSOS EM DESTAQUE
A Mangueira é uma escola de samba que acumula uma longa trajetória
de sucesso e reconhecimento dentro e fora do país2. Nos últimos anos, o
interesse por seus desfiles se intensificou, pois desde o ingresso de Leandro
Vieira como seu carnavalesco, em 2016, a escola venceu dois campeonatos
e terminou os carnavais sempre entre as seis primeiras colocadas.
Os enredos empolgantes de Vieira trouxeram diversos elementos e personagens religiosos para a avenida, atribuindo-lhes nova ênfase, visibilidade e tratamento estético. Já em seu primeiro carnaval na Mangueira
– que, apesar de tradicionalíssima, não vencia um desfile desde 2002 – o
carnavalesco sagrou-se campeão com o enredo Maria Bethânia, a menina
dos olhos de Oyá. O samba-enredo saudava Oyá, “Senhora mãe da tempestade”, bem como “Oxalá, Xeu Êpa Babá!” e aproximava o “Rosário de
Maria” com a dança ritual do xirê. Em 2017, Vieira produziu Só com a ajuda
do Santo, enredo que enfocava as relações de intimidade entre santos e
devotos, anunciadas no desfile do ano anterior. Com uma sequência de
alas e alegorias que começava em um altar e terminava em um terreiro,
o enredo afirmava que “A Mangueira quer passar e comandar a procissão.
Seu verde e rosa, todo mundo sabe, faz tempo já virou religião”3.
Nos anos seguintes, o carnaval do Rio sentiria os efeitos da gestão municipal de Marcello Crivella (Republicanos), bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus e representante de um segmento neopentecostal
articulado a perspectivas conservadoras e a partidos de direita (Menezes e
Santos 2017). Ao assumir a chefia do Executivo, em 2017, Crivella interveio
nos mecanismos de financiamento das escolas de samba, cortando recursos, além de se ausentar dos desfiles – desprestigiando um dos eventos
mais importantes da cidade. Nesse contexto, os enredos da Mangueira
se configuraram como respostas à conjuntura: em 2018, Com dinheiro
ou sem dinheiro eu brinco! defendia a manutenção da folia mesmo com
pouco recursos e apresentava o prefeito como Judas a ser malhado no
último carro alegórico, além de trazer no samba-enredo o refrão: “Eu
2. O Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira surgiu em 1928,
a partir da reunião de vários blocos. O nome veio do morro em que se situa e da estação
de trem próxima, que levava trabalhadores para o centro da cidade. Suas cores, verde e
rosa, foram escolha do compositor Cartola. Outros “bambas” marcam sua trajetória, como
Nelson Cavaquinho, Xangô, Tantinho, Nelson Sargento, Carlos Cachaça, José Ramos, ou
artistas como Alcione, Beth Carvalho, Chico Buarque, Caetano Veloso, Maria Bethânia e
Leci Brandão. Porém, sua base de sustentação encontra-se em famílias negras cariocas,
visto ser uma escola conhecida por ter “chão”, ou ser de “comunidade”. Nos últimos anos,
desfila com aproximadamente 3.500 componentes, mas imensamente maior é o número
de mangueirenses, ligados a esta que costuma se apresentar como “a maior escola do
planeta”. Disponível em http://www.mangueira.com.br/. Acesso em 12 de maio de 2021.
3. Disponível em: https://liesa.globo.com/2017/por/03-carnaval/enredos/mangueira/
mangueira.html Acesso em 10 de abril de 2021.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
sou Mangueira, meu senhor / Não me leve a mal / pecado é não brincar
o carnaval”4.
Em 2019, História para Ninar Gente Grande rendeu um novo título à escola.
Ao enfatizar a “história que a história não conta”, o enredo retomava figuras obliteradas das narrativas oficiais, como Marias, Mahins, Marielles
e Malês, para valorizar o papel dos grupos subalternizados no processo
histórico nacional, além de prestar uma homenagem à vereadora do
PSOL, Marielle Franco, assassinada em 2018. A lógica simbólica, sensorial
e narrativa que caracteriza os desfiles do carnaval reagia, a seu modo, a
aspectos centrais da experiência social na cidade e no país. A consciência
do carnaval como uma plataforma cultural e política transparecia nas
palavras do próprio carnavalesco: “A partir do momento que o desfile
das escolas de samba consegue a notoriedade de falar para milhões de
pessoas, ele passa a ter um papel importante como divulgador de ideia”
(Iphan 2017, 87). E para Vieira, entre as ideias importantes a ressaltar no
contexto atual, de intensificação da disputa de narrativas, está a valorização da diversidade cultural e religiosa brasileira.
Em 2020, o enredo escolhido foi A verdade vos fará livre! A proposta era
recontar a vida de Jesus Cristo em “uma ópera carnavalesca dividida em
cinco atos, que em nada se diferencia do conteúdo de outras abordagens
artísticas debruçadas sobre o tema” (Vieira 2020, 122-123). Para isso, haveria
alegorias e fantasias relacionadas à natividade, à vida adulta de Cristo
em Jerusalém, sua condenação, tortura e morte na cruz, finalizando
com sua ressurreição no morro da Mangueira. Se em anos anteriores a
aposta criativa havia enfatizado a pluralidade religiosa e a combinação de
devoções no país, nessa ocasião, visava-se tirar a figura mítica e histórica
de Jesus do monopólio de interpretações fundamentalistas e eurocêntricas. Ao afirmar que “teu samba é uma reza”, o samba-enredo convertia
a Mangueira na “Estação Primeira de Nazaré”, onde nasceria um Cristo
de feição popular. Dizia Vieira:
(...) Acredito que, se ele voltasse à terra por uma encosta que
toca o céu – para nascer da mesma forma: pobre e mais retinto, criado por pai e mãe humilde, para viver ao lado dos
oprimidos e dar-lhes acolhimento – ele desceria pela parte mais íngreme de uma favela qualquer dessa cidade. (...)
Estaria do lado dos sem eira e nem beira estranhando ver
sua imagem erguida para a foto postal tão distante [o Cristo
Redentor], dando as costas para aqueles onde seu abraço é
tão necessário (Vieira 2020, 119).
A leitura criativa da figura divina e de sua história permitiria à Mangueira
se apropriar de um personagem central no Brasil do “Deus acima de todos”,
associando-lhe outros sentidos. A intenção da escola era estimular o
4. Disponível em: http://liesa.globo.com/memoria/outros-carnavais/2018/mangueira/
samba-enredo.html Acesso em 10 de abril de 2021.
4
São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
pensamento crítico sobre as assimetrias de poder que estruturam relações
de violência e subalternidade quanto a coletivos periféricos, em amplo
sentido:
Na cruz, ele é homem e é também mulher. Ele é o corpo
indígena nu que a igreja viu tanto pecado e nenhuma humanidade. Ele é a ialorixá que professa a fé apedrejada e
vilipendiada. Ele é corpo franzino e sujo do menor que você
teme no momento em que ele lhe estende a mão nas calçadas. Na cruz, ele é também a pele preta de cabelo crespo.
Queiram ou não queiram, o corpo andrógino que te causa
estranheza, também é a extensão de seu corpo. (Vieira 2020,
119).
Contar a história de Cristo de forma carnavalizada; atualizar e desdobrar
sua face fazendo-o renascer como um morador do morro da Mangueira e
em outros grupos subalternizados: essas foram as soluções encontradas
por Vieira e performadas pela Mangueira para apresentar sua versão da
mensagem cristã através do samba. Por sua vez, a narrativa construída
no ensaio fotográfico que apresentamos, com imagens de autoria de Edilson Pereira, excede a tarefa de documentar essa conjuntura. Ela busca
reinterpretar, por ambos os autores, a apropriação artística, oferecendo
uma leitura antropológica de um caso exemplar de carnavalização do
religioso, ao mesmo tempo que aponta para as dimensões da “montagem”
da performance festiva e seus efeitos.
BOTAR O CARNAVAL E A RELIGIÃO NA AVENIDA
A explosão espetacular da escola de samba na avenida – o momento
ápice de sua performance competitiva – é antecedida por um processo
de montagem física e intersubjetiva que relaciona materialidades, imagens e pessoas. Se o desfile é o momento de existência plena da escola, ao
apresentar-se para seus membros, torcedores e competidores, isto é, para
si mesma e para o mundo, o contexto que antecede esse espaço-tempo
ritual, conhecido como a “concentração”, se estabelece como a conjuntura
em que o próprio desfile é transportado e montado para poder entrar em
cena. Por conta da tentativa de arrebatamento, em que a surpresa é um
elemento fundamental da festa, há uma série de mediações e interdições
em relação ao que se pode ver, registrar e divulgar antes do Carnaval.
A monumentalidade e a coerência narrativa experimentadas na avenida
são produzidas a partir do barracão da escola, onde, no entanto, o que se
encontra é uma multiplicidade de materiais, carros alegóricos, fantasias e
pessoas dispostos de forma não-linear. Se compreendermos o carnaval das
escolas de samba como um rito de passagem, marcado pela liminaridade
encarnada no clímax dos desfiles, o barracão é o espaço que antecipa e
cria as condições do posterior estado “subjuntivo” (Turner 2015), fora das
estruturas habituais. Já nos bastidores, porém, surgem inúmeras reconfigurações imprevistas, pois os elementos que integram as alegorias podem
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gerar uma “montagem” não planejada, nem ordenada. Em termos visuais,
o barracão engloba inúmeros planos em conflito, gerando inesperadas
transgressões das formas canônicas de apresentação de personagens como
o Cristo – tombando sua cruz ou cortando-o ao meio, já que só na hora
do desfile as esculturas estarão completamente montadas, assumindo o
acabamento e as posições determinadas ao longo do cortejo. Isso, tanto
para facilitar o transporte até a avenida, como para garantir o mistério
que impactará a audiência.
É justamente na concentração – um trecho da avenida Presidente Vargas, junto à Marquês de Sapucaí, bloqueado na época do carnaval para
preparar o desfile – que serão dados os retoques finais à escola. É ali que
as fantasias, as alas, os carros, os destaques, as baianas, os membros da
bateria, a Velha Guarda etc. se reúnem, todos, horas antes da entrada no
sambódromo. Os carros alegóricos levados ao centro da cidade se inserem
na paisagem urbana como sinais diacríticos do processo de montagem
do espaço dramático. Estando na margem física e simbólica do ritual
carnavalesco – à margem da margem, para recuperar uma ideia proposta
por Dawsey (2013) para tratar de situações liminóides –, a concentração
se compõe como um estado de coisas e pessoas que se encontram e, uma
vez agrupadas, começam a se organizar sequencialmente. Ela se torna
um espaço e, também, um movimento de acabamento e prontidão, que
condicionará a performance subsequente na avenida. Em suma, a concentração é a conjuntura que possibilita a transformação de um carro
alegórico em uma cena e de uma pessoa em um desfilante, membro de
uma ala e parte da Mangueira.
Ao interagir com as pessoas nessa conjuntura, a câmera fotográfica se
torna mais um catalizador da montagem de suas performances, em termos emocionais e físicos. Assim como em outros contextos rituais (Pereira
2019, 2020), ela participa das relações preestabelecidas e pode estimular a
atuação dos performers. Diante da câmera, eles passam a agir de forma
consciente para produzir uma imagem de si, para eles mesmos e para
os outros. Ao se perceberem sendo vistos, muitos sorriem e fazem poses,
como que ensaiando se tornar parte da escola prestes a se apresentar.
Além de servir como mediadora que permite estabelecer relações, por
meio da feitura de retratos e da conversa subsequente que eles geram, a
fotografia aparece como um dos primeiros dispositivos que sinalizam a
entrada na posição de agente a ser percebido, ou melhor, admirado.
Na incursão etnográfica realizada no barracão da escola e na concentração
do desfile, observamos que a participação das pessoas no drama reencenado articula duas dimensões complementares da experiência de assumir
certo personagem: transformation e a transportation (Schechner 1985). A
primeira dessas expressões se refere à transformação que resulta da “saída”
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
de si por parte do performer, olhando a si mesmo sob nova perspectiva,
como no caso daqueles que se transformam em Cristo, Nossa Senhora e
outros personagens das Escrituras. A ideia de transportation, por sua vez,
aponta para um deslocamento: “during the performance the performers
are ‘taken somewhere’”, afirma Schechner (1985, 125-126). Podemos entender que este movimento é também emocional, pois embora a noção de
“transporte” tenha assumido sentidos pouco poéticos ao longo da história,
até o século XVIII o termo designava na literatura europeia um movimento
cinético que ocorreria no interior dos corpos humanos (Nhaoum-Grappe
1994). As emoções resultariam de um estímulo que levasse o sentimento
desde o interior da pessoa até transbordar à flor da pele.
Para aqueles que lidam com o arsenal lúdico do fantasiar-se em conjunto
para desfilar, o sinal diacrítico do início de suas performances está nas
emoções expressas ao concentrar-se – um estado psicológico, corporal
e material que se conjuga à ação de se vestir, incorporar um papel e se
sentir parte de um coletivo dedicado à meta comum de representar bem a
escola. Adentrando no jogo de ver e ser visto, seus corpos e rostos passam
a interagir de forma ritualizada com as câmeras e olhares que se multiplicam desde os bastidores até o ápice da competição. Nessa dinâmica, o
rosto humano, zona sagrada do corpo por concentrar traços da identidade
individual (Le Breton 2019), se transforma gradativamente, abrindo-se
em sorrisos e produzindo vínculos. Os retratos aqui apresentados nos
permitem ver o que se passou nas bordas do desfile e, sobretudo, a diversidade de faces humanas que compuseram, junto às alegorias, a feição
carnavalesca do Jesus mangueirense.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 1
Uma das 80
baianas da
Mangueira com
a fantasia “A
intolerância
é uma cruz”,
representando as
muitas pessoas
perseguidas por
serem adeptas de
religiões de matriz
africana. Ao fundo,
o carro alegórico
“As faces dolorosas
da Paixão”.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 2
Barracão da
Mangueira na
Cidade do Samba:
planos em conflito.
Entre o desfile
de domingo de
Carnaval e o Desfile
das Campeãs, no
domingo seguinte,
as alegorias são
restauradas.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 3
Quarto carro do
desfile: o Calvário,
em que um
gigantesco Jesus
crucificado assume
a face de um jovem
negro, tatuado
e de cabelos
alourados. Deitada
no barracão, a
cruz era erguida
por um guindaste
apenas na entrada
do sambódromo,
tamanho era seu
volume.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 4
O quinto carro
alegórico, “Jesus
Ascende ao Céu”,
traz um Cristo
negro no Morro
da Mangueira. No
barracão, muitas
alegorias ficam
desmontadas para
caber e possibilitar
o seu transporte
posterior.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 5
O quinto carro
sendo montado
na concentração
para a entrada
na Passarela, no
Centro do Rio de
Janeiro.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 6
O carro abrealas simboliza
o nascimento
de Cristo com
presépios que
traziam o Menino
Jesus como negro
e como indígena.
José e Maria foram
representados
no desfile pelo
sambista Nelson
Sargento e pela
cantora Alcione.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 7
Um membro
da diretoria da
escola, vestido
de pastor, ajuda
uma desfilante a
colocar a fantasia
“Corpo de Mulher”.
Enquanto um
personagem
reitera a história de
Jesus, um Galileu
numa terra de
pastores, outra
encarna a sua
atualização, como
vítima de violência
contra a mulher.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 8
Carnavalizando o
milagre dos peixes:
Jesus liberta o povo
de suas angústias
dando-lhe de
comer - e beber.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 9
A bateria,
composta por 250
ritmistas, encarna
a brutalidade
romana em roupas
de centurião. No
Rio de Janeiro, a
imagem da caveira
pode ser associada
a grupos de
extermínio.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 10
Um dos
crucificados se
prepara para
subir no Calvário.
A maquiagem
combina a
cenografia de
ferimentos às
cores verde e rosa,
da Mangueira,
e à barba roxa,
com purpurinas
em modulações
carnavalescas da
paixão.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 11
Nossa Senhora das
Dores interpretada
por um homem:
o dourado e o
prateado remetem
à opulência das
imagens barrocas,
enquanto o roxo
ao sofrimento
rememorado na
quaresma e sextafeira da paixão.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 12
No último ato do
desfile, em que
Jesus renasce
no morro da
Mangueira e
no Carnaval, as
musas da escola,
como “estrelas”,
anunciam a Boa
Nova, em fantasias
que remetem à
estética funk.
19
São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 13
Os Fariseus,
mantenedores
das aparências,
são os hipócritas
e arrogantes,
criticados por
Cristo por se
apegarem à
obediência às
regras. Embora
este seja um
papel negativo na
história bíblica,
a alegria da
desfilante aponta
em outro sentido.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 14
Na ala “Bandido
bom é bandido
morto”, Jesus é
crucificado por
um discurso de
justiçamento que,
muitas vezes, é
defendido por
cristãos.
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
FOTO 15
Bate-bolas ou
Clóvis, tradicionais
personagens dos
carnavais de rua
no Centro e no
subúrbio do Rio,
atualizam a figura
de Cristo em
corpos foliões.
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Livro Abre-Alas ed Liesa. Rio de Janeiro: LIESA.
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE
Mangueira; religião
e performance;
religião e carnaval;
escolas de samba;
materialidades
religiosas.
23
Foto-ensaio dos bastidores do desfile da escola de samba Mangueira em
2020, com o enredo “A verdade vos fará livre!”. A escola propunha uma
leitura atualizada e carnavalizada da vida de Cristo, atribuindo-lhe as
faces de grupos subalternizados do Brasil atual. Mais do que uma documentação, as imagens do ensaio buscam ser uma reinterpretação da
visualidade proposta para o desfile, oferecendo uma leitura antropológica
de um caso exemplar de carnavalização do religioso, ao mesmo tempo
que apontam para as dimensões da “montagem” da performance festiva
e da crítica social que ela engloba.
São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.
ABSTRACT
KEYWORDS
Mangueira; religion
and performance;
religion and
carnival; samba
schools; religious
materialities.
A photo essay containing images taken behind the scenes of the Mangueira
samba school parade from 2020, whose theme was The Truth Will Set You
Free!’ The school proposed a modern carnivalized reading of the life of
Christ, depicting him with faces from subalternized groups of contemporary Brazil. More than a documentation, the images in this essay offer
a reinterpretation of the parade’s visuality, providing an anthropological
reading of an exemplary case of carnivalization of the religious, while
also highlighting the ‘staged’ aspects of the festive performance and the
social critique that it encompasses.
Renata de Castro Menezes é Doutora (UFRJ, 2004) e Mestra (UFRJ, 1996) em Antropologia
Social pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realizou estágio
doutoral na EHESS, em Paris e pós-doutorado no Center for Religion and Media da New York
University. Atualmente, é professora associada do Museu Nacional da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, pesquisadora do CNPq e Cientista do Nosso Estado da Fundação de Amparo
à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro - Faperj. Desenvolve pesquisas nas interfaces entre
religião, rituais, materialidades, formas simbólicas e patrimônios. No Museu, coordena
o Laboratório de Antropologia do Lúdico e do Sagrado (Ludens/MN/UFRJ) e faz parte do
Núcleo de Estudos das Sociedades Complexas (NESCOM). É membro-correspondente do
CéSor – EHESS. E-mail: renata.menezes@mn.ufrj.br
Edilson Pereira é Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ, 2014) e Mestre
em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA (UFRJ, 2008), ambos da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Realizou estágio doutoral na EHESS, em Paris e pós-doutorado na Universitat de
Barcelona, com projeto de antropologia visual sobre a semana santa de Sevilha – cujo acervo
formou o ensaio “Caixa-preta sevilhana”, premiado no IX Prêmio Pierre Verger da RBA (2018).
Atualmente, é professor adjunto da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio
de Janeiro e pesquisador associado ao Ludens (MN/UFRJ) e ao MARES (UFRGS). Coordena o
projeto de extensão Sagrados: imagens da diversidade cultural e religiosa no Brasil (UFRJ)
e desenvolve pesquisas nas interfaces entre arte, religião, imagem e práticas da memória.
Integra o Comitê de Comunicação (2021/2022) da Associação Brasileira de Antropologia.
E-mail: edilson.pereira@eco.ufrj.br
Contribuição de autoria. Os dois autores contribuíram na elaboração do ensaio textual e na
seleção e ordenamento das imagens. A autora realiza pesquisas desde 2016 no universo
mangueirense e as fotografias do ensaio foram produzidas pelo autor.
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Recebido: 15/05/2021
Aprovado: 14/09/2021
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São Paulo, v. 7, e-185745, 2021.