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Revista Calundu - vol. 1, n.2, jul-dez 2017 NOTAS SOBRE A RELIGIOSIDADE NO IMAGINÁRIO DA CAPOEIRA Gabriel da Silva Vidal Cid1 Resumo: A capoeira, como prática do universo da cultura afro-brasileira no Brasil, passa por diferentes momentos, indo da repressão à consagração como símbolo da identidade nacional. Ao longo deste processo, diferentes projetos trouxeram um variado repertório de propostas de entendimento à mesma. Estes projetos relacionam memórias coletivas sobre a prática e definem identidades e lugares sociais que a mesma deveria ou poderia ocupar. A proposta deste artigo é discutir como organizou-se determinadas memórias na construção da identidade da capoeira. Focando na continuidade do imaginário da capoeira do século XIX e na definição de sua ritualística nos anos de 1930 em Salvador, a proposta é interpretar como determinados elementos religiosos vincularam-se à identidade da capoeira. Palavras-chave: capoeira; religião; cultura popular Recentemente, com o título 'Capoeira gospel' cresce e gera tensão entre evangélicos e movimento negro, uma publicação da BBC Brasil2 trouxe ao público mais amplo o debate sobre mais uma face das práticas religiosas dentro do universo da capoeira. Ao abordar o movimento denominado como “capoeira gospel”, a matéria apontou para uma questão comum dentro do universo da capoeira. Entre mestres, alunos e pesquisadores, ainda que de forma bem pouco amplificada o crescimento deste movimento é percebido e vem sendo objeto de conversas e tomada de posições em sua defesa ou em seu ataque. Instigado pela emergência deste projeto no interior do campo da capoeira, pretendo discutir ainda que de forma inicial como elementos religiosos estão presentes nas narrativas sobre a capoeira, constituindo um imaginário continuamente em disputa pelas diferentes perspectivas presentes na prática. Esta reflexão é uma continuidade de outras tentativas de desvendamento do universo da capoeira onde busquei pensar como essa prática é perpassada pelos projetos de construção da modernidade no Brasil (CID, 2004, 2010, 2012, 2016). Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor substituto do Departamento de Sociologia, da Universidade de Brasília. Email: gabrielsvcid@gmail.com. 2 disponível em http://www.bbc.com/portuguese/brasil-41572349, acesso em 2 de novembro de 2017. 1 29 Revista Calundu - vol. 1, n.2, jul-dez 2017 A capoeira, como prática do universo da cultura afro-brasileira, passa por diferentes momentos: da repressão à consagração como símbolo da identidade nacional, sua relação com as diferentes perspectivas que indicaram lugares sociais variou. Ao longo deste caminho, diferentes concepções trouxeram um variado repertório de propostas de entendimento à mesma. Entendo que estas concepções podem se tornar projetos que dentre um leque de possibilidades limitadas relacionam memórias coletivas sobre a prática que definem identidades e lugares sociais que a mesma deveria ocupar, seja no presente, seja no futuro. Neste sentido, entendo que a organização destas memórias coletivas estão intimamente relacionadas à construção de identidades, entendendo que aquelas sempre atuam com lembranças e silêncios. Posso afirmar, seguindo reflexão anterior (CID, 2016), que estes projetos buscavam retirá-la do lugar de marginalidade e repressão, propondo uma identidade para a prática que oscilou entre o lugar do esporte e da cultura popular, mantendo uma tensão mesmo hoje frente às políticas de salvaguarda com as quais a capoeira se defronta. O conceito de projeto, conforme usei anteriormente (CID, 2016), nos ajuda a pensar a agência dos indivíduos, em subjetividades individuais e coletivas e contingências ao longo da história. Sigo a proposta do sociólogo José Maurício Domingues quando busca sistematizar um conceito de projeto onde “podem ser igualmente mais ou menos sistemáticos ou difusos, as pessoas podem estar mais ou menos cientes deles” (2002, p. 61). A proposta deste artigo é interpretar que elementos religiosos que se amalgamaram ao imaginário da capoeira, buscando compreender como se define os diferentes projetos para sua localização na sociedade brasileira. Minha interpretação se baseia na ideia de que este imaginário possui a capacidade de influenciar a definição dos projetos para a capoeira. Enquanto recorte temporal a proposta é valorizar especialmente o momento de definição de sua ritualização como conhecemos hoje, por entender a importância dada aos mestres deste momento no universo da capoeira. Entendo que estes projetos são transpassados pelo projeto moderno de racionalização e desencantamento das instituições, como proposto por Weber (2002). Como coloquei acima, entende-se que a capoeira vem, ao longo dos últimos dois séculos, sendo constituída numa relação dialética com os diferentes momentos e tentativas de modernização no Brasil. Deste modo a construção da memória coletiva da prática e sua identidade se fixa no interior de determinados projetos reflexivos. Importante notar que este processo reflexivo pode colocar em “risco”, no dizer de 30 Revista Calundu - vol. 1, n.2, jul-dez 2017 Marshall Sahlins, alguns de seus próprios elementos que a definem. Sahlins (1999) propõe a noção de risco dentro da proposta de que toda “ação histórica é uma relação com a ordem cultural”, ressaltando que não existe cultura estática e que os símbolos estruturantes da cultura também estão sempre em risco. Podemos, partindo desta interpretação, afirmar que a capoeira se reconstruiu nas diferentes situações em que passou ao longo do tempo. Esta perspectiva evita que tomemos a capoeira enquanto prática estática e nos força a considerar elementos de mudança e permanência dentro de ações reflexivas. Outra busca é considerar as possíveis agências dos capoeiristas e suas capacidades para (re)definir sua prática em relação ao universo da modernidade. Trabalho aqui com a noção de reflexividade, como proposto por Giddens (1991), ao considerar que na modernidade as práticas são constantemente analisadas, abrindo ao risco as certezas e depositando a confiança em sistemas mais amplos formados por especialistas. Tomo de empréstimo de Max Weber (2002) o conceito de “desencantamento” para pensar a capoeira como prática que passa por um contínuo processo de racionalização que leva ao abandono de determinados elementos. Inspirado em sua proposta que pensa o desencantamento como afastamento de elementos mágicos da religião, como algo imerso ao universo religioso (PIERUCCI, 1998), proponho o exercício de pensar um semelhante processo de desencantamento na capoeira. Este processo se dá no desenrolar de projetos que irão (re)pensar a capoeira em lugares sociais que a afastavam do espaço social onde se misturava de forma menos estanque o espaço religioso das práticas sociais. Outro ganho que a leitura weberiana pode trazer é compreender que este projeto de duração mais ampla não se fez por completo, mas aponta para articulações do campo da capoeira, onde combina-se de determinada forma elementos diversos dando sentidos que geram valores. Ainda que permeada de tensões estes elementos apresentam-se em determinada combinação nas ações dos capoeiristas ao longo do tempo, definindo o que é a capoeira. 31 Revista Calundu - vol. 1, n.2, jul-dez 2017 Capoeira, repressão e espaço popular Os primeiros registros sobre a capoeira datam entre o final do século XVII e a primeira metade do século XIX3 e a associam aos africanos escravizados no Brasil. Neste contexto a capoeira seria uma prática forjada em solo brasileiro, a partir da junção de um amplo universo de práticas que estes africanos trouxeram e que constituíam determinada memória coletiva. O imaginário da capoeira do século XIX a situa no espectro da marginalidade, os registros que nos permitem vislumbrar sua prática foram produzidos em sua maior parte por profissionais que se opunham a mesma, como jornalistas e escrivães da polícia, produzidos especialmente na segunda metade do século. A dinâmica das transformações sociais e econômicas, acontecidas no Segundo Reinado, transformaram o Rio de janeiro, aumentando sua complexidade urbana. O lento fim da hegemonia escravista trouxe uma nova organização social sem que houvesse a transformação da estrutura desigual de acesso aos benefícios da cidade. Ainda assim, a então capital atraía grande contingente de libertos, imigrantes e brancos pobres, engrossando ainda mais o contingente dos que seriam na virada do século estigmatizados na figura do vadio. A preocupação com o comportamento cotidiano deste setor era constante, como indica a leitura dos jornais impressos ao longo do século XIX e estudados por Luiz Sérgio Dias (1993). Apenas na primeira metade do século XX que intelectuais e jornalistas iniciaram as descrições sobre as maltas de capoeiras4, a partir de um olhar mais simpático à prática. Estes primeiros escritores consideravam o auge das maltas durante o Segundo Reinado, como Alexandre José de Mello Moraes Filho, em Festas e tradições populares do Brasil. Durante o Segundo Império houve a proliferação de diversas maltas. Estas eram conhecidas como Conceição da Marinha, Moura, Lapa, Carpinteiros de São José, Glória entre outras. As “maltas” eram grupos de vinte e até cem capoeiras que tinham nome, gíria e determinado território. Ainda que houvesse reconhecimento de capoeiras não Segundo Nireu Calvalcanti (1999) um escravo foi preso em 1789 por prática da capoeira. Já Carlos Eugênio Líbano Soares identifica que o primeiro romance a retratar a capoeira seria o de Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um sargento de milícia, já o primeiro registro de prisão teria ocorrido em 10 de setembro de 1810. (SOARES 2001, p.35/73). 4 Os diversos registros deste momento se referem aos grupos de capoeiras como Maltas. Os termos capoeiragem e capoeira ao longo do século XIX se referiam a um universo criminalizado. Durante o século XIX, capoeiragem se referia à prática social vinculada aos capoeiras, que seriam os membros que de alguma forma vinculavam-se às maltas. Ao longo da primeira década do século XX, o termo capoeira foi passando a identificar a prática e seus praticantes chamados de capoeiristas, com o termo capoeiragem ficando em desuso. 3 32 Revista Calundu - vol. 1, n.2, jul-dez 2017 ligados a nenhuma malta, representativamente eram as maltas que alarmavam considerável parcela da população. Ao atentarmos para os nomes das maltas, se percebe a ligação da simbologia religiosa com as igrejas. Luzianos eram os capoeiras da malta de Santa Luzia, Lança da malta de São Jorge, Flor da Uva de Santa Rita (SOARES, 1994, p.68). Por volta do final do século há alterações como surgindo Cadeira da Senhora na Freguesia de Santana, Três Cachos na Freguesia de Santa Rita, Franciscanos na de São Francisco de Paula, Flor da Gente na freguesia da Glória, Espada no largo da Lapa, Guaiamum na Cidade Nova, Monturo na praia de Santa Luzia. Toda esta complexidade começa a se organizar em dois grandes grupos por volta da proclamação da República: os nagoas ou nogos e os guaimums (SOARES, 1994, p.40). Importante salientar que o universo da capoeiragem associava-se aos dias de festas e aos espaços de maior liberdade de vigilância. A prática da capoeiragem a aproximava do lúdico, de modo que “a festa, a brincadeira e a violência” se misturavam5 (SOARES, 1994, p. 66). Como exemplo, era nas procissões católicas, o desfile militar e o carnaval que os capoeiras ocupavam o espaço público. Ainda que não tenha vivido o momento que descreve, a descrição de Luiz Edmundo do capoeira é sintomática de um imaginário coletivo da capoeiragem do século XIX. Podemos ter uma noção de como a imagem do capoeira estava vinculado à práticas religiosas pela descrição de Luiz Edmundo em livro publicado em 1938: No fundo ele é mau porque vive onde há comércio do vício e do crime. Socialmente é um quisto, como poderia ser uma flor. (...) Defende aos fracos. Tem alma de D. Quixote. E com muita religião. Muitíssima. Pode faltar-lhe ao sair de casa o aço vingador, a ferramenta de matar, até a própria coragem, mas não se esquece do escapulário sobre o peito e traz na boca o nome de Maria ou de Jesus. (EDMUNDO, 1951, p.41-42). A leitura de jornais de época e da literatura nos mostra que a capoeiragem estava imbricada ao espaço urbano carioca. Sua aceitação deve-se à sua participação no jogo político, mas também à complexa articulação no mundo popular onde os limites entre as diversas práticas se misturavam. Sobre Salvador, Frederico José de Abreu (2005), consegue demonstrar semelhanças entre a situação da capoeiragem no Rio de Janeiro e de lá. Reconhecendo 5 Para além da rua, o espaço das tabernas, bodegas e botequins funcionavam como espaços de reunião e serviam também como esconderijos para as armas utilizadas pelos capoeiras: navalha, faca de ticum e porrete. 33 Revista Calundu - vol. 1, n.2, jul-dez 2017 especificidades às cidades podemos extrapolar que a repressão, embora sentida em ambas, foi mais incisiva na desarticulação da prática na capital. O momento de maior repressão se estabelece um pouco antes de quando em 1890 o novo Código Penal da República transformava a capoeiragem de delito ou contravenção em crime (artigo 402, do Código Penal de 1890)6. No Rio de Janeiro a repressão se deu de forma avassaladora com a prisão e deportação dos capoeiras às centenas com o objetivo de impossibilitar a rearticulação das maltas dentro da cidade. Ainda que consideremos a repressão que também existiu em Salvador, as dinâmicas seguintes nos sugere que no Rio de Janeiro os mais importantes chefes de malta, os mais velhos, os guardiões da tradição foram apartados do espaço social. As práticas nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro assumiram características diferentes nas primeiras décadas do século XX, considerando que em Salvador a repressão foi menos incisiva na desarticulação da transmissão cultural. Os registros de início do século XX começam a nos mostrar uma capoeira mais próxima do que observamos nos dias de hoje. João do Rio, em Presepes, publicado em 1907, descreve uma visita a um cordão carnavalesco de negros baianos chamado Rei de Ouros. Muitos elementos como berimbaus, palmas e pandeiros aparecem, assim como categorias que ainda hoje são usadas para se definir a capoeira. Da a ideia de que se “joga” capoeira, ao uso de termos do universo religioso como “S. Bento” e “mandinga”: Os negros da Angola quando vieram para a Bahia trouxeram uma dança chamada cungu, em que se ensinava a brigar. Cungu com o tempo virou mandinga e S. Bento. (...) Jogar capoeira é o mesmo que jogar mandinga. (João do Rio, Presepes, 1907) Ruth Landes (2002), antropóloga norte-americana, realizou trabalho de campo na Bahia em 1938. Acompanhada de Édison Carneiro, Landes foi à Festa da mãe D’Água e realizou um dos poucos registros da prática da capoeira na década de 1930, em Salvador. A festa que Landes descreve em A Cidade das Mulheres demonstra aproximações entre o candomblé, o samba e a capoeira. Segundo Landes, embora a difícil composição sugerisse um afastamento, o espaço da feira era aglutinador das práticas, “para mim aquela era uma exibição incongruente e maravilhosa, para os outros 6 Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (Decreto número 847, de 11 de outubro de 1890), Capítulo XIII -- Dos vadios e capoeiras, Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. (...)” 34 Revista Calundu - vol. 1, n.2, jul-dez 2017 era maravilhosa e absorvente” (LANDES, 2002, p.154). Nas palavras de Édison Carneiro: “a gente é boa, todos são poetas. As coisas que vimos hoje na feira prosseguem continuamente, de um modo ou de outro. (...) Talvez o candomblé já não lhe pareça tão estranho agora” (LANDES, 2002, p.158). No relato de João do Rio sobre o Rio de Janeiro ou no de Ruth Landes sobre Salvador, percebe-se que no universo da cultura popular, mesmo com a repressão a capoeira se manteve como prática social. Na figura do Bamba7, no Rio de Janeiro, ou na roda de capoeira como espaço de vadiação em Salvador, a capoeira não apagou seus vínculos com a identidade da capoeiragem do XIX. Mesmo com as profundas transformações e os distintos projetos que apontaram para novas identidades, a observação de sua prática demonstra que seus rituais são permeados por diversos elementos da antiga capoeiragem, inclusive do universo religioso. Estes elementos tornam-se uma memória de determinado ethos que é visível na continuidade da capoeira mesmo com as profundas transformações ocorridas a partir da década de 1930. Capoeira, modernização e outras práticas Há certo consenso na literatura especializada que é posteriormente à década de 1930 que se inicia a criação de escolas de capoeira em novo formato em Salvador8. Embora neste momento e ainda nas próximas décadas seja grande o número de registros de uma capoeira ainda dentro do que poderíamos chamar de “informalidade”, podemos afirmar que neste momento se começa a gestar as duas grandes escolas que marcam a identidade da capoeira. Nas décadas seguintes, ainda que dentro de um processo complexo que não cabe ser detalhado neste espaço, as escolas angola e regional determinariam projetos que tencionam o campo continuamente. Pode-se interpretar a partir da literatura especializada que as escolas, na dinâmica de um processo de institucionalização, leva a capoeira a se afastar da aura marginal do século XIX, num sentido de se afirmar como prática esportiva ou cultural (VIEIRA, 1995; PIRES, 2001 e Luiz Sergio Dias (2000) afirma que entre os anos 1910 e 1920 há uma passagem do capoeira para o “bamba”. O “bamba”, seria o herdeiro das técnicas marciais do capoeira e manteve-se imerso na cultura popular da cidade, sendo diferente mas estando próximo à imagem do malandro que vive de pequenos expedientes, do jogo, do contrabando, da proteção de zonas de meretrício e casas noturnas. 8 Estas transformações não são exclusivas à Salvador, mas esta cidade ganha projeção na medida em que hegemonicamente os mestres de capoeira baianos tornaram-se referência na capoeira praticada hoje. Por exemplo, ainda que seja conhecido o trabalho de Sinhozinho na década de 1930 no Rio de Janeiro (LACÉ, 1999), pouco se sabe de continuidades de seu trabalho. 7 35 Revista Calundu - vol. 1, n.2, jul-dez 2017 2010). Neste momento a capoeira passa por um processo de transformação, composto pela sistematização de treinos e institucionalização dos espaços de sua prática. De forma mítica, afirma-se no universo da capoeira que, em oposição a Mestre Bimba que criou o Centro de Cultura Física Regional da Bahia, a Capoeira Angola é organizada tendo como referência Mestre Pastinha9. As figuras de Bimba e Pastinha servem como mitos de origem10 para se pensar uma série de mudanças e continuidades. Entendo que essas alterações são ações reflexivas em diálogo com os processos de modernização da sociedade, urbanização e imigração. Podemos aproximar o caso da capoeira do samba, que por volta deste momento também passa por profundas transformações. Neste momento, por um complexo jogo entre representação e reconstrução da identidade nacional, dentro do projeto varguista do Estado Novo, tanto o samba quanto a capoeira passam a representar signos para a identidade nacional. Neste projeto, o samba que era a voz da comunidade, passa a falar sobre ela, passando a ser um discurso. No entanto é importante perceber que este discurso não se desprende totalmente da comunidade que o produz. Determinadas alterações e realocações destas práticas no cenário da cultura nacional acontecem segundo ações reflexivas de lideranças das próprias comunidades que as mantinham. É perceptível no decorrer do segunda metade do século XX que a entrada da capoeira no universo das políticas públicas para o folclore ou o esporte a afastavam do universo marginal e a aproximavam de concepções que a entendiam como prática disciplinadora ou recurso para o turismo. No entanto, a identidade destes projetos não deixa de se articular numa legitimidade onde o antigo, o caráter de tradição da prática é central. Ou seja, neste contexto, as políticas e ações dos próprios precisam articular o passado, enquanto memória da prática, na construção das novas identidades. Neste projeto há semelhança com o que Baudrillard (2002, p. 86) percebe na ação do arquiteto que prefere manter a viga e a pedra antiga da casa ao invés de derrubar toda a casa antiga. 9 Vale destacar que há uma complexidade pouco trabalhada que gerou certo apagamento de nomes importantes na construção e manutenção de diversos grupos que de alguma forma compartilharam os universos destas diferentes escolas. Sobre a capoeira angola é importante o trabalho de Paulo Magalhães Filho (2013). 10 Marilena Chaui afirma que o mito fundador oferece um repertório inicial de representações da realidade e, em cada momento da formação histórica, esses elementos são reorganizados tanto do ponto de vista de sua hierarquia interna (isto é, qual o elemento principal que comanda os outros) como da ampliação de seu sentido (isto é, novos elementos vêm se acrescentar ao significado primitivo)”(CHAUI, 2000, p.10). 36 Revista Calundu - vol. 1, n.2, jul-dez 2017 Podemos também pensar nas aproximações entre a capoeira e o universo dos cultos de candomblé. Já afirmava Édison Carneiro, em Candomblés da Bahia, que o surgimento dos candomblés esteve relacionado ao ambiente urbano. Esta situação, segundo algumas interpretações, levou à necessidade de se fechar – delimitar - o espaço da prática com a representação do ambiente dos orixás (BASTIDE, 1978, p.64). Esta leitura nos leva à interpretação de que estas práticas culturais definiram ao longo do tempo posturas de afastamento da esfera do público, visto as várias situações de repressão. Contudo, a despeito do caráter violento das diversas perseguições que as práticas da memória afro-brasileira sofreram, o que se percebe é que elas estiveram presentes e resistiram de maneira reflexiva às contingências. Construindo um imaginário de semelhanças e reciprocidades, no território que chamo da cultura popular estas práticas definiram determinado ethos como um repertório cultural mais ou menos comum. Próximo ao ocorrido com o samba e a capoeira, no momento em que estas práticas são acionadas na construção de uma identidade nacional, ao adaptar-se, no universo do candomblé a negociação torna-se uma “treta” 11 . O sincretismo não se coloca como uma antítese à lógica destas práticas, mas uma prática de negociação e sedução graças às analogias de símbolos e funções (SODRÉ, 2002b, p.62). Muniz Sodré identifica um projeto de sedução como estratégia de negociação, com a adequação de seus espaços. Em suas palavras: A perspectiva africana do terreiro, ao contrário, não surgia para excluir os parceiros do jogo (brancos, mestiços etc.) nem para rejeitar a paisagem local, mas para permitir a prática de uma cosmovisão exilada. A cultura não se fazia aí efeito de demonstração, mas uma construção vitalista, para ensejar uma continuidade, geradora de identidade”. (SODRÉ, 2002b, p.57) Foi dessa forma que diferentes elementos, do religioso ao samba, do sagrado ao profano, amalgamaram-se na capoeira na definição de uma identidade própria: “o batuqueiro e o capoeirista reconheciam-se como membros de um clã, publicamente identificável pela valentia, pelo andar gingado, se não pela designação de “capadócio”” (SODRÉ, 2002a, p.27). É neste sentido também que, no imaginário de Salvador, 11 Munis Sodré ao escrever sobre as comunidades negras, fala em “treta” como uma ironia, uma malandragem, uma possibilidade de se lidar com a rigidez. SODRÉ, (2002a, p.15). 37 Revista Calundu - vol. 1, n.2, jul-dez 2017 cenários para diversos dos romances de Jorge Amado12, heróis como Antônio Balduíno e Pedro Archanjo se identificam com trabalhadores e as famílias-de-santo. No imaginário de seus romances, a religiosidade exerce centralidade no desenrolar das aventuras dos capoeiras demonstrando o repertório comum compartilhado que definiu determinada identidade à prática. Breves conclusões A leitura da aproximação da capoeira do universo religioso do candomblé e do samba nos traz o reforço da possibilidade de que a capoeira negociou a cada momento, mas mantendo em seus rituais elementos da ordem do sagrado. Em sua estrutura ritual, na roda de capoeira, o elemento religioso na gestualidade pode se apresentar mais ou menos misterioso, por vezes perceptível apenas aos iniciados. No entanto, na análise das ladainhas, chulas e corridos é muito evidente as diversas referências à religião, de maneira muito semelhante ao jongo e ao samba (DINIZ, et al 2015). Neste sentido, para além da organização de seus instrumentos, ao ir ao pé do berimbau ou no riscado dos dedos antes de cada jogo, é visível os aspectos da religiosidade que impregnava o espaço popular de sua criação e que hoje compõem o repertório gestual dos capoeiristas. Alcançando os fortes vínculos entre a(s) memória(s) e a(s) identidade(s), compreender os sentidos para o(s) elemento(s) religioso(s) no campo da capoeira é pensar em como este imaginário que brevemente apresentei se atualiza na dinâmica da capoeira. O reforço ou o esquecimento de determinados gestos ou cantos articula-se aos sentidos dados à prática. Como apontei acima, seus elementos estão sempre em risco, no complexo jogo de esquecimentos e lembranças. Apontei neste artigo algumas notas iniciais para subsidiar uma reflexão acerca do elemento religioso no universo da capoeira. Cabe um aprofundamento em diversas questões que aqui foram abordadas, assim como uma ampliação de fontes que sejam mais representativas do amplo universo da capoeira. Menos do que a busca por refutar ou não determinada hipótese, penso nestas notas como uma ferramenta aberta de reflexão para o intricado jogo entre a capoeira e a religião. Pretendi trazer alguns 12 Assim como Édison Carneiro, Carybé e Pierre Verger, Jorge Amado faz parte de um conjunto de artistas e intelectuais que tiveram as práticas culturais afro-brasileiras como destaque em suas obras. Podemos destacar: de Édison Carneiro, Antologia do Negro Brasileiro, José Ribeiro, Brasil no Folclore, Odorico Tavares, Bahia : imagens da terra e do povo, Carybé, Sete portas da Bahia, Jorge Amado, Jubiabá e Tenda dos Milagres. 38 Revista Calundu - vol. 1, n.2, jul-dez 2017 apontamentos iniciais que demonstram continuidades de uma religiosidade específica muito própria ao universo popular e afro-brasileiro. Pretendo na continuidade destes apontamentos discutir de que maneira estes elementos são reconstruídos no cenário mais atual, uma vez que, como apontei inicialmente, toda ação cultural se dá numa possibilidade de recriação e transformação. Certamente as transformações pelas quais o espectro religioso no Brasil passou nas últimas décadas devem ser avaliadas e consideradas em meio às continuidades e mudanças na prática. Da mesma forma um aprofundamento na compreensão dos sentidos presentes nos projetos de continuidade da capoeira deve ser realizado em relação à manutenção de determinados símbolos como importantes na construção de suas identidades. Referências Bibliográficas ABREU, Frederico José de, Capoeiras – Bahia, séc. XIX: imaginário e documentação, Salvador, Instituto Jair Moura, 2005. BASTIDE, Roger, O Candomblé da Bahia, São Paulo, ed.: Nacional, (Brasiliana v.313), 2ª edição, 1978 BAUDRILLARD, Jean, O sistema dos objetos, São Paulo, ed. Perspectiva, 4ª edição, 2002. CANDAU, Joel, Memória e identidade, São Paulo, ed. Contexto, 2011. CHAUI, Marilena, Brasil, Mito Fundador e sociedade autoritária, São Paulo, ed. Fundação Perseu Abramo, 2000. 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