1
RUY SARDINHA LOPES
A IMAGEM NA ERA DE
SUA
REPRODUTIBILIDADE
ELETRÔNICA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
1995
2
RUY SARDINHA LOPES
A IMAGEM NA ERA DE SUA
REPRODUTIBILIDADE ELETRÔNICA
Dissertação
apresentada
ao
de
mestrado
Departamento
de
Filosofia da Faculdade de Filosofia,
Letras
e
Ciências
Universidade
orientação
de
da
São
Profª
Beatriz Fiori Arantes.
São Paulo
1995
Humanas
Paulo
Drª
da
sob
Otília
3
Esta dissertação foi defendida em 02/10/1995
Perante à seguinte banca examinadora:
Profª Drª Otília B. Fiori Arantes (Orientadora)
Profª Drª Iná Camargo Costa
Prof. Dr. Celso Favaretto
4
Aos meus pais e
à Vera Lúcia, minha esposa e presença fundamental na
elaboração deste trabalho.
5
AGRADECIMENTOS
À Otília Beatriz F. Arantes, por sua orientação e
amizade.
À Cecília N. Morelli de Camargo
À Maria Luiza Medeiros Pereira
Aos funcionários da Secretaria do Dept°de Filosofia-USP
À Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível
Superior
6
SUMÁRIO
Introdução.................................................1
CAPÍTULO 1
A IMAGERIE CONTEMPORÂNEA.................................09
1.1.As imagens e o desenvolvimento das forças produtivas.09
1.2.A cultura e o Capitalismo contemporâneo............. 19
1.2.1.O "alto modernismo" e o Capitalismo do pós-guerra..25
1.2.2.A cultura "hedonista" dos anos 60..................30
1.2.3.A "reestruturação" contemporânea do Capitalismo....41
CAPÍTULO 2
AS IMAGENS ELETRÔNICAS E A CULTURA TÁTIL.................49
2.1.Imagens sem aura.....................................55
2.2.A perda da aura e a arte autônoma....................62
2.3.A cultura tátil..................................... 72
2.4.A cultura tátil e as imagens eletrônicas.............75
CAPÍTULO 3
A IMAGEM E SUA REPRODUTIBILIDADE ELETRÔNICA..............83
3.1.Imagens sem perspectiva..............................86
3.2.As imagens dissonantes da videoarte..................99
3.3.O ocaso da câmera...................................110
3.4.A simulação as imagens..............................122
3.5.A interatividade e a performatividade dos sistemas..131
3.6.Experiências ucrônicas..............................142
CONCLUSÃO...............................................155
BIBLIOGRAFIA............................................171
7
" A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se
unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas
com as complicações infinitas da vida diária e que vêem o
objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga
numa interminável perspectiva de meios, surge uma existência
que se basta a si mesma, em cada episódio, do modo mais
simples e mais cômodo, e na qual um automóvel não pesa mais
que um chapéu de palha, e uma fruta na árvore se arredonda
como a gôndola de um balão".
Walter Benjamin
8
INTRODUÇÃO
A
pletora
marcantes
crítica
da
da
de
imagens
cultura
cultura,
constitui
contemporânea.
poderíamos
um
A
afirmar
dos
se
traços
dar
que
a
mais
ouvidos
à
percepção
contemporânea tem nas imagens seu elemento fundante.
No entanto, é preciso que se diga, não se trata de
qualquer imagem1. Se a discussão de
seu estatuto percorre
toda a história da Filosofia, encontrando espaço também no
interior do pensamento científico - desde a neurolinguística
até
a
imagens
psicanálise
-,
técnicas,
isto
trata-se,
é,
agora,
imagens
da
hegemonia
enunciadas
por
das
algum
dispositivo técnico, em nossa cultura. Se a eleição deste
termo traz mais confusão que esclarecimentos- prestando-se
mais para distinguir as imagens mentais das demais imagens
produzidas pelo homem, as quais pressupõem, evidentemente, a
1-
Este termo engloba, na verdade, um domínio vasto e
diversificado da atividade humana. Refere-se tanto às
imagens "internas", dirigidas unicamente ao intelecto,
quanto a um certo estímulo que, vindo do mundo exterior,
dirige-se aos nossos órgãos do sentido e é interpretado por
alguma instância interna. Neste trabalho trataremos somente
de uma variedade de imagens, as imagens que possuem forma
visível e são enunciadas através de alguma mediação
instrumental.
9
mediação de algum
aparato técnico-, ele se presta para
10
evidenciar o papel assumido pela técnica em nossa sociedade
e marcar, desta forma, um percurso a seguir.
Se as técnicas sempre tiveram um papel fundamental no
processo civilizatório é inegável o incremento obtido após a
Revolução Industrial e, contemporaneamente, após a Terceira
Revolução Tecnológica2. No campo das artes isto se traduz
pela importância assumida pelas artes mecânicas no século
XIX e pelas artes eletrônicas no século XX. Neste sentido, a
associação do termo técnico à imagem indicará um percurso
mais restrito, a saber, o que vai da fotografia às imagens
sintéticas,
marcado
pela
intervenção
cada
vez
mais
"estrutural" da técnica a ponto de afetar a própria natureza
da imagem.
De
nossa
reproduzida
parte,
preferimos
eletronicamente,
adotar
ou
o
termo
simplesmente
imagem
imagem
eletrônica3, para marcar sua vinculação com a atual mutação
2 - Embora seja evidente a relação entre a atividade técnica
e a visão simbólica, das relações homem/mundo, é certo que
ela
não
se
constituiu
num
discurso
autônomo
até
recentemente. Sua autonomia, assim como o de outras esferas,
faz parte da sociedade capitalista desenvolvida. O que marca
nossa contemporaneidade é a expansão desse discurso traduzido inclusive pela mudança vocabular de técnica para
"tecnologia" - e sua função de agregador social.
3 - Embora com este recorte definimos um campo alheio às
imagens fotográficas e cinematográficas, é importante
destacar os cruzamentos, os intercâmbios das imagens cada
vez mais frequentes em nossa cultura. Além do meio
eletrônico servir de "suporte" para a exibição de imagens
cinematográficas e fotográficas (ainda que isto implique na
mudança da própria "natureza" destas imagens), é cada vez
11
caracterizada pela conjugação das mídias audiovisuais, da
informática e seus efeitos4.
As novas tecnologias de produção, captação e transmissão
da imagem são uma realidade incontestável e a multiplicidade
dos
sistemas
maquínicos
que
nos
envolve
afeta
todas
as
formas de produção de enunciados, imagens, pensamentos e
afetos. Em virtude da simultaneidade e instantaneidade das
imagens,
as
apreensões
espaço-temporais
são
igualmente
transformadas. Vivemos uma fase de compressão do espaçotempo com consequências desorientadoras e disruptivas sobre
a vida social e cultural (Harvey,1992:257).
A discussão sobre o estatuto das imagens e sobre as
consequências da crescente ingerência das novas tecnologias
sobre a sociedade ganha relevância no processo cultural5.
"Apocalípticos
e
integrados"
expõem
seus
argumentos
ora
afirmando tratar-se de um novo regime de visibilidade, de
uma transformação decisiva na história da representação, de
um
novo
imaginário
-
agora
numérico
-
marcado
pela
mais frequente o "tratamento" eletrônico e digital das
outras imagens técnicas.
4 - Em termos de uma análise mais ampla da cultura termos
como renascença eletrônica, revolução das comunicações,
civilização dos simulacros, idade neo-barroco etc. foram
cunhados para tentar abarcar conceitualmente tal mutação.
5Embora a discussão sobre as relações arte/técnica e
técnica/sociedade seja antiga e recorrente na história, com
o peso crescente das novas tecnologias ela readquire
importância, dando-se sob novos pressupostos.
12
reconciliação dos campos do inteligível e do sensível6; ora
vendo
o
ataque
determinismo
às
ligação
estruturas
social,
sociais,
tecnológico
da
mais
e
o
resistentes
promovendo
linguagem
como
a
do
promotor
do
que
fragmentação
próprio
de
um
resta
da
das
corpo
classes
individual,
remontando às idéias de Heidegger para quem a tecnociência é
sinônimo do esquecimento do ser7.
Tratar
tecnologias
desprovido
desta
da
de
forma
imagem
sentido.
a
é,
discussão
acerca
evidentemente,
Como
bem
observa
um
das
novas
reducionismo
Arlindo
Machado
(1993:11), uniformizar a pluralidade existente neste campo
pode
resultar,
conformistas,
tecnológica
por
onde
é
o
um
a
lado,
melhor
mutismo,
a
legitimadora ou, por outro lado,
a
generalização
necessariamente
das
uma
máquinas
em
posturas
resposta
recusa
à
de
fatalistas
e
produtividade
qualquer
ação
na ilusão da crença em que
enunciadoras
democratização
cultural
ou
representa
um
ganho
criativo, não dando-se conta que:
"O trabalho artístico depende muito pouco dos valores
produção
e
progride
na
direção
contrária
a
tecnocracia; ele precisa de um certo coeficiente
desordem, de um certo espaço de imprevisibilidade, sem
da
da
de
os
6-
Ver a esse respeito Rene Payant, 1986; Alain Renaud e
Anne Sauvageot, 1987; Philipe Queau, 1986, 1993; Edmond
Couchot,1993.
7-
Ver a esse respeito Lefebvre, 1967; Marc Guilhaume, 1989;
Virilio, 1980, 1993, 1994; Baudrillard, 1981.
13
quais degenera na
(Machado, 1993:27).
Se
a
sistemas
atribuição
imagéticos,
metáfora
de
uma
da
utilidade
potência
desvinculados
programada"
diabólica
de
qualquer
a
estes
prática
social mais ampla, nos parece descabida, a desvinculação
desta pragmática de qualquer passado histórico é ilusória.
Neste sentido, a idéia de um corte epistemológico entre as
novas imagens e a produção imagética que as antecedeu especialmente a pintura, a fotografia e o cinema - deve ser
vista com cuidado e será abordada posteriormente(Cap. 3).
Deixemos claro, desde já, que os elementos freqüentemente
apontados como marcas de ruptura destas imagens, isto é, a
auto-referencialidade,
a
matematização,
a
construção
de
sistemas de visibilidade independentes da chamada realidade,
a
"artificialidade"
"naturalidade"
da
da
imagem
imagem
digital
analógica
são
em
oposição
muito
mais
à
a
potencialização de questões já presentes na história da arte
do que a constituição de um novo sistema representativo.
A potencialidade aberta por estes novos processos de
enunciação da imagem deve, portanto, ser pensada a partir de
uma perspectiva mais longa. A ênfase na determinação técnica
de tais imagens- um dos traços ideológicos de nossa época oculta
o
fato
de
que
não
se
pode
considerar
o
desenvolvimento técnico como uma variável independente do
desenvolvimento
da
sociedade
como
um
todo
(Burguer,
1987:78). Caso contrário não encontraríamos explicação para
14
a
observação
dos
mesmos
princípios
operatórios
em
manifestações artísticas onde as inovações técnicas não são
tão presentes como nas imagens eletrônicas - a literatura,
por exemplo.
Tal fato implica em tomarmos as imagens eletrônicas como
inseridas na lógica cultural do Capitalismo contemporâneo,
de vê-las como algo determinado intra-esteticamente e como
transpassadas por forças de produção extra-estética. Com
isso,
não
se
tratará
de
apontar
uma
sobredeterminação
econômica dos fenômenos estéticos, mas de se questionar, na
esteira de Walter Benjamin, como é que a obra de arte, e
neste caso as imagens eletrônicas, se colocam dentro das
relações
de
produção
do
seu
tempo.
De
vermos
o
que
as
configurações sociais contemporâneas e o advento das novas
tecnologias fazem com a arte, que possibilidades e perigos
são colocados para os realizadores artísticos.
Nestes termos, o desalastramento dos conteúdos rígidos,
a
flutuação
impressão
de
dos
valores,
a
uma
realidade
auto-referencialidade,
espetacularizada
etc.
a
serão
tomados muito mais como características da "reestruturação"
contemporânea do Capitalismo do que pertencentes ao domínio
exclusivo das imagens eletrônicas. Reestruturação esta que
encontra na presença avassaladora das novas tecnologias sua
principal
protagonista.
Assim,
ao
analisarmos
as
características das imagens eletrônicas e sua inserção nesta
15
lógica cultural, pretendemos tomá-las como um modo de acesso
privilegiado de nossa prática cultural atual.
Tal
empreitada
reveste-se
de
dificuldades
devido
à
própria natureza do objeto em questão. Seu aspecto múltiplo,
efêmero e polissêmico se furta ao tempo requerido por uma
análise mais sistemática. A sucessão instantânea das imagens
contrapõe-se à estabilidade dos conceitos. A própria posição
central
destas
manifestações
artísticas
e
sua
vinculação
estreita com o desenvolvimento tecnológico fazem com que a
cada
nova
"descoberta"
um
campo
de
possibilidades
seja
aberto sem que as potencialidades anteriores tenham sido
esgotadas
da
8.
Toda análise teórica neste campo corre o risco
obsolescência,
de
se
ver
atropelada
pelos
desenvolvimentos últimos do seu objeto de estudo.
Nosso caminhar por este espaço instável terá como guia
um conceito que
permite sondar, a um só tempo, a vinculação
das imagens eletrônicas com a cultura capitalista bem como
avaliar
o destino das artes nesta sociedade. Tal conceito é
o de tatilidade(cf. Benjamin e Baudrillard )9.
8-
Com isto, boa parte da literatura disponível acaba por
permanecer no nível descritivo de tais procedimentos.
9
- Este é o argumento básico de Otília Arantes na
interpretação que faz da arquitetura contemporânea e suas
relações
com
a
cultura
de
massa
em
"Arquitetura
Simulada"(1993) ao mostrar a preeminência do tátil mesmo no
plano ótico, anulando a oposição tradicional entre o ótico e
o tátil, o distante e o próximo. Proximidade tátil que ela
designará de "obscena", utilizando o conceito na acepção
baudrillardiana, de obliteração da cena.
16
Se, na tradição benjaminiana, tal conceito vinculava-se
às inovações trazidas pelo surgimento das artes mecânicas
(notadamente
potencial
a
fotografia
emancipatório
e
(sem
o
cinema)
esconder,
e
comportava
entretanto,
um
os
perigos de uma utilização regressiva), na era das artes
eletrônicas
tal
possibilidade
parece
esgotada.
Longe
de
oferecer-nos os elementos necessários para uma politização
das artes, a tatilidade de nossa cultura serve de incremento
à estetização do social. Estetização esta que, ao contrário
das intenções vanguardistas, não instaura uma nova práxis no
mundo dos negócios, mas des-realiza a própria realidade,
torna-a um produto estético passível de consumo ligeiro.
Isto
não
implica
na
condenação
total
da
arte
contemporânea (ou, no nosso caso, das imagens eletrônicas).
Implica sim no afastamento do deslumbramento acrítico e na
melhor visualização das forças que perpassam sua pragmática,
contribuindo, desta forma, para usos desviantes e para a
recuperação do potencial crítico que, a nosso ver, a arte
deve preservar.
17
CAPÍTULO 1
A IMAGERIE CONTEMPORÂNEA
1.1. AS IMAGENS E O DESENVOLVIMENTO DAS FORÇAS PRODUTIVAS
Partindo do pressuposto, generalizado na crítica da
cultura atual, de que estamos sob o império da imagem- uma
imagem específica, eletrônica, que se sobrepõe às demais e que, cada vez mais, o acesso à complexidade do mundo se
faz pela intermediação dos aparatos tecnológicos, a postura
diante
destes
novos
Sobrevalorizando-se
feitos
o
tem
caráter
sido
de
de
ruptura
amor
ou
ódio.
destas
novas
tecnologias, enfatiza-se ora seu aspecto democratizante colocando-as a serviço de uma nova iluminação das massas -,
ora
seu
aspecto
reificante
-
contribuindo
para
a
espetacularização da chamada realidade e dos laços sócioculturais estabelecidos.
Ao atribuir-lhes um caráter de ruptura, frequentemente
imputam-lhes a responsabilidade daquilo que são o sintoma. A
ponderação do deslumbre ou do solipsismo causado por estas
tecnologias se dá, portanto, por sua inserção numa prática
cultural mais ampla: tanto referentes ao desenvolvimento dos
modelos representacionais postos em circulação a partir do
18
Renascimento
quanto
das
transformações
da
sociedade
capitalista.
Jean
Baudrillard
foi
um
dos
primeiros
teóricos
que
buscou entender a imagerie contemporânea como transcendente
ao
campo
da
produção
imagética,
relacionando-a
ao
desenvolvimento das forças produtivas. Em sua teoria dos
simulacros (1985) aponta para o paralelismo existente entre
a
ordem
histórica
dos
simulacros,
as
fases
do
desenvolvimento das imagens e as mutações da lei do valor.
Partindo
da
concepção
de
valor
de
Saussure
que
distinguia duas dimensões - a funcional e a estrutural10 - ,
Baudrillard
descreve
o
processo
de
crescente
perda
de
diferenciação entre o signo e a realidade; processo este que
vai da utopia do princípio de equivalência - onde o signo
designava alguma coisa - à indeterminação total, à morte de
toda
referência,
como
a
sucessão
de
três
ordens
de
10 - Para Saussure, o valor de um termo dentro de um sistema
linguístico provém da relatividade de todos os termos entre
si, por oposição a relação de cada termo com aquilo que ele
designa.
Ao primeiro aspecto corresponde a dimensão
estrutural da linguagem; ao segundo, a dimensão funcional. A
primeira parte refere-se à relatividade interna ao sistema,
feita de oposições distintivas; a segunda, à relação de cada
significante com seu significado.
Baudrillard, por sua vez, vê um paralelismo desta
disjunção com a teoria do valor em Marx. O primeiro aspecto,
a
dimensão
estrutural,
Baudrillard
remete
à
"intercambialidade de todas as mercadorias entre si sob a
lei da equivalência". O segundo, à relação entre o valor de
uso/ valor de troca, onde o primeiro é visto como finalidade
do segundo.
19
simulacros - a saber, o simulacro naturalista, o simulacro
produtivista e o simulacro de simulação11.
Trata-se, segundo Baudrillard, de um processo posto em
movimento pela própria lógica do Capital, uma lógica que
dispensa
o
recurso
a
instâncias
determinantes
e
que
é
responsável pelas mutações da lei do valor da Renascença até
nossos dias.
Este
processo
é,
para
Baudrillard,
acompanhado
pelas
fases de desenvolvimento da imagem em nossa cultura. Vai-se
de um momento onde a imagem se dá como reflexo de uma
realidade profunda, ao momento onde esta não se refere a
qualquer realidade, passando por duas etapas intermediárias
- onde ela mascara e desvirtua uma realidade profunda e onde
ela mascara a ausência de realidade profunda ( 1981:17).
As imagens eletrônicas inserem-se neste último momento,
na última etapa do "declínio da referência", etapa esta
- Partindo de uma distinção entre signos que remetem a
uma teoria da verdade e do segredo e signos que dissimulam
uma ausência, Baudrillard vê, neste segundo tipo de signos,
os simulacros, a construção de três ordens:
1ª - os simulacros naturalistas, correspondentes ao período
que vai do Renascimento à Revolução Industrial, construídos
a partir da lei natural do valor.
11
2ª - Os simulacros produtivistas, correspondentes à
industrial, e que possuem a lei mercantil do valor
princípio determinante.
era
por
3ª - Os simulacros de simulação, correspondentes à era pósindsutrial, e construídos à luz da lei estrutural do valor.
(Cf. Baudrillard, 1976:75-128).
20
marcada
pela
hegemonia
dos
significantes
sobre
os
significados, pela intercambialidade de discursos diversos
no interior de uma mesma obra e pela auto-referencialidade
das imagens. As imagens eletrônicas têm, desta forma, o
mérito de tornar manifesta a conjugação de forças diversas
postas em movimento pela sociedade contemporânea.
Este paralelismo entre a ordem das imagens e as mutações
da lei do valor faz com que Baudrillard estenda para todo o
tecido
social
as
características
operatórias
nas
imagens
eletrônicas, não tardando em ver na "auto-referencialidade"
das imagens um princípio de elisão da própria realidade: uma
vez que a realidade é mediatizada pelos mídia, não dá mais
para verificá-la, desaparecem todos os instrumentos de sua
inteligibilidade. Trata-se de um novo espaço repressivo, de
um invólucro
que encontrando sua totalização , além de pôr
fim à toda uma maneira de se perceber e entender as relações
sociais12, pouco espaço destina para a ação individual ou
coletiva, nos aprisionando e nos deixando sem saída (1981).
- " Fim do trabalho. Fim da produção. Fim da economia
política.
Fim da dialética significante/significado que permitia
a acumulação do saber e do sentido, o sintagma linear do
discurso cumulativo. Fim simultâneo da dialética valor de
troca/valor de uso, que tornava possível a acumulação e a
produção social. Fim da dimensão linear do discurso. Fim da
dimensão linear da mercadoria. Fim da era clássica do signo.
Fim da era da produção.
12
21
Embora Baudrillard nos dê inúmeras pistas para se pensar
a
relação
entre
as
imagens
contemporânea, limita-se
à
sua
eletrônicas
e
descrição,
não
a
cultura
explicando
como tais relações são estabelecidas. Com isso, como nota
Sfez(1994),
a
utilização
circularidade,
tautologia
etc.,
artísticos
quanto
de
conceitos
como
auto-referencialidade,
aplicáveis
às
práticas
tanto
os
de
interconexões,
aos
sociais,
procedimentos
sem
as
devidas
conexões e mediações, beira o espaço fictício, sendo mais
aplicável àquilo que Sfez chama de tecnologias do espírito13
que ao tecido social como um todo.
Não é a revolução que pôs fim a tudo isso. É o próprio
capital. É ele quem abole a determinação social pelo modo de
produção. É ele quem substitui a forma mercadoria pela forma
estrutural do valor. É ele quem comanda toda estratégia
atual do sistema"(Baudrillard,1976:20).
- Tomando a diferença estabelecida po Pierre Francastel
entre episteme e forma simbólica, Lucien Sfez concebe a
comunicação como um continuum que vai do núcleo epistêmico,
marcado pela grande diversidade dos saberes comuns à ciência
da comuicação, à forma simbólica, isto é, ao tratamento que
tais conceitos recebem e que, passando para a vida
cotidiana, pouco a pouco contituem a tela através da qual
construímos o mundo.
O núcleo epistêmico é composto tanto das máquinas - de
traduzir, de falar, de saber, de simular, de produzir
comunicação e retrasmiti-la e dos conhecimentos
requisitados para seu funcionamento, quanto das tecnologias
do espírito, isto é, dos procedimentos de emprego da
comunicação pela tecnologia.
Estes
dois
elementos,
imperativo
tecnológico
e
tecnologias do espírito, acabam por produzir uma forma
simbólica que os ultrapassa e confere-lhes um segundo vigor.
A transformação destes elementos em forma simbólica- na tela
através da qual nossas relações individuais e sociais e
13
22
Fredric
mostrar
a
Jameson
é
vinculação
outro
entre
teórico
o
que
se
preocupa
desenvolvimento
das
em
forças
produtivas e da produção cultural contemporânea. Partindo do
princípio
conhecer
que
o
nossa
próprio
sociedade
passado,
perdeu
tendo
a
capacidade
começado
a
viver
de
num
presente perpétuo, sem profundidade, sem definição e sem
identidade
segura,
Jameson
tratará,
em
seu
ensaio
The
Cultural Logic of Late Capitalism, de estabelecer, a partir
da concepção lacaniana da esquizofrenia como uma ruptura na
cadeia
significativa
de
sentido,
uma
relação
entre
a
desordem linguística e a compressão temporal característica
de nossa cultura.
Se a identidade é obtida por meio da unificação do
passado e do futuro diante do meu presente e se a cadeia
significativa
segue,
na
frase,
a
mesma
trajetória;
a
desordem lingüística representa a incapacidade de concatenar
passado, presente e futuro tanto na frase quanto na vida
psíquica14. Estamos diante do reino dos significantes puros
ou
da
personalidade
esquizofrênica.
Em
lugar
das
idéias
fundadoras, a rotação dos significantes; em lugar da razão
nossas relações com o mundo são construídas-, uma vez
interiorizada, aparecerá como a única forma de apreensão da
realidade.
Segundo Sfez, Baudrillard, ao não diferenciar o núcleo
epistêmico da forma simbólica, torna-se prisioneiro daquilo
que descreve (ver Sfez, 1994:9-16).
14 - Voltaremos a isto no capítulo 3.
23
abstrata, a pragmaticidade dos resultados; em lugar da visão
do social como uma totalidade, a descontinuidade sem centro.
Tais características, que Jameson vê operarem na cultura
a partir do início dos anos sessenta, serão responsáveis
pela
predominância
modernista",
capitalismo
de
agora
uma
tomada
tardio".
nova
como
Embora
"a
Jameson
sensibilidade
"pós-
lógica
cultural
persiga
esta
do
lógica
através de manifestações da literatura, da música, do cinema
e arquitetura atuais, não tardará a tomar o vídeo "como modo
de acesso privilegiado a esse tipo de descrição de nosso
sistema cultural em geral"(1985:105).
Neste
sentido,
a
imposição, pelo vídeo experimental, do "tempo da máquina" ao
qual
o
espectador
deve
se
adaptar:
a
justaposição
de
materiais "naturais" e "artificiais", a incapacidade de se
estabelecer
um
conhecimento
optimal
da
obra,
o
desaparecimento do conteúdo e o enfraquecimento dos signos,
faz com que Jameson veja aí o trabalho da própria tecnologia
reprodutora que, num processo
mais universal de reificação
e fragmentação, de acordo com a própria lógica do capital,
faz com que se deslize de uma concepção da referência como
designação
de
um
objeto
"real"
externo
à
unidade
do
Significante e do Significado para uma posição em que o
próprio Significante separa-se do Significado.
24
Este movimento de esfacelamento do signo, sintomático no
vídeo
experimental,
capitalista
tardia
será
e
tomado
como
observável
exemplar
nas
da
lógica
realidades
muito
diversas da história recente, servindo de base para que
Jameson,
em
outro
texto:
"Periodizing
the
60's"(1985a)
analise o período tido como essencial à constituição desta
nova forma cultural.
Tais formulações não estão isentas de problemas e Mike
Davis (Kaplan, 1993) mostrou o quanto é frágil o agrupamento
de realidades diversas em totalizações homogêneas, bem como
a
impropriedade
de
se
aplicar
o
conceito
mandeliano
de
capitalismo tardio, presente em Late Capitalism, ao momento
cultural atual caracterizado como pós-moderno15. Entretanto,
não há como deixar de reconhecer a tese
de que as técnicas
não são somente meios de transformar o mundo, elas são meios
de perceber, isto é, definem um olhar e um modo de apreensão
diferentes,
estruturam
uma
visão
de
mundo;
estando
submetidas, portanto, a normas que não são somente técnicas,
mas ideológicas.
- Enquanto Mandel fala do Capitalismo Tardio como
sucessor dos estágios monopolista e imperialista do capital,
vendo sua origem no pós-guerra [ momento em que se inicia a
"longa onda expansionista" do Capital e que tem seu término,
segundo Mandel, na crise de 1974/75], Jameson aponta os anos
60 como fundamentais à nova ordem cultural.
15
25
Assim,
somos
levados
a
crer
que
as
características
atribuídas às imagens eletrônicas refletem uma mudança da
"estrutura
de
sentimento"(Raymond
Willians)
de
nossa
sociedade como um todo. Neste sentido, Baudrillard e Jameson
têm
razão
em
apontar
imagens eletrônicas
as
características
observáveis
nas
não apenas como um modo de produção
imagética, mas, sobretudo , um novo modo de situar-se e
perceber o mundo. Entretanto, para evitarmos os sobrevôos
apontados, seria necessário empreender uma análise histórica
que apreenda a realidade como um conjunto de linhas de
forças
Seria
contraditórias
necessário
permite
e
como
e
com
verificar
o
funciona
e,
desenvolvimentos
que
o
discurso
sobretudo,
desiguais.
pós-moderno
verificar
seus
próprios limites - o que não é o objetivo deste trabalho.
Gostaríamos, entretanto, de dizer que, embora possuindo
um
papel
decisivo
neste
processo,
as
transformações
apontadas não se explicam somente pelo advento dos novos
mídia, e da imagem eletrônica em particular. O novo estatuto
das
imagens
é
antes
o
sintoma
e
o
termo
lógico
de
um
processo histórico mais amplo, observável em maior ou menor
escala nos diversos domínios da sociedade. No sentido de
visualizarmos
as
forças
intra
e
extra-estéticas
que
perpassam a imagem eletrônica, trataremos de ver a percepção
contemporânea,
bem
como
a
chamada
"Pós-modernidade",
26
marcadas pela articulação de diversas forças caracterizada
pelo:
a) desenvolvimento do sistema capitalista no pós-guerra
que, ao se tornar hegemônico, incorpora as culturas précapitalistas,
contribuindo
assim
para
o
esgotamento
do
potencial crítico das experiências modernistas, a partir de
então
codificadas
num
"alto
modernismo"
totalmente
incorporado.
b)
emergência
conjunção
com
alternativas
ao
falibilidade
do
as
da
"Sociedade
desesperanças
sistema
modelo
de
em
instituído
Consumo"
relação
e
às
que,
em
práticas
apontando
para
a
fordista/keynesiano em resolver a
crise do capital, origina uma crença nas relações imediatas,
desembocando numa cultura "personalizada"e no hedonismo dos
anos 60.
c) processo de "reestruturação" capitalista que, oriundo
da crise dos modelos anteriores, se instala a partir de
1973, tenta restabelecer a ordem econômica sobre a ênfase da
lógica
da
especulação,
sobre
a
presença
marcante
de
um
capital transnacional e sobre uma mobilidade e realocação
cada vez maiores do capital, gerando um aspecto "imaterial"
na forças produtivas e dando, desta forma, o "tom" cultural
do período.
27
1.2.
A CULTURA E O CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
Que atravessamos um período de intensa reestruturação
social parece difícil de negar. O momento contemporâneo,
marcado
pela
recente
tentativa
de
se
buscar
um
arranjo
espaço-temporal voltado para a sobrevivência do capitalismo,
é
tido
como
conseqüência
de
uma
série
de
crises
inter-
relacionadas - cujo ponto crítico foi a crise mundial de
1973/75
pondo
fim
à
"longa
onda
expansionista"
do
capitalismo do pós-guerra - e originou uma infinidade de
contextos
Ordem
interpretativos:"Sociedade
Econômica
Internacional,
Pós-industrial,
Era
do
Capital
Nova
Global,
Sociedade baseada na Informação e sistemas industriais PósFordistas".
Embora nem todos concordem com a explicação de Ernest
Mandel, sobre a origem de tal processo, todos concordam com
a
importância
produtividade
e
da
tecnologia
dos
internacionalização
lucros,
do
na
na
capital
diferenciação
análise
e
da
do
processo
aceleração
de
da
de
sua
mobilidade, nas funções expandidas do Estado nacional, na
crise
dos
sistemas
previdenciários
keynesianos
e
dos
programas de estabilização econômica daí decorrentes. Em que
se pese as diferenças na periodização, na terminologia e nas
implicações
políticas
deste
novo
"arranjo"
do
capital,
quando se trata de estabelecer relações entre as formas
28
culturais, nas quais as imagens eletrônicas estão inseridas,
e
as
fases
esquema
de
desenvolvimento
madeliano
mostra-se
das
mais
forças
produtivas,
profícuo,
desde
o
que
enriquecido pela contribuição das teorias divergentes.
Partindo do princípio de que o Capitalismo é orientado
para
a
busca
de
"superlucros",
Mandel,
em
seu
livro
O
Capitalismo Tardio (1982), vê a história da economia dos
últimos anos como uma articulação das relações de produção
capitalistas,
semi
e
pré-capitalistas.
estendendo-se a novos domínios
O
Capitalismo
suplanta, pela produção de
mercadorias capitalistas, os ramos sobre os quais ainda não
tenha
supremacia,
expansão
esta
determinada,
em
última
análise, por uma diferença no nível de lucro. As diferentes
etapas que a história da economia capitalista passou desde a
revolução industrial - Capitalismo de Livre Concorrência,
Imperialismo e Capitalismo Tardio - representariam, desta
forma, tanto o processo de penetração cada vez mais profunda
das relações capitalistas, quanto o desenvolvimento de sua
busca por superlucros.
Essa busca de superlucros gira em torno de três fontes
fundamentais16 e embora todas existam desde as origens do
- A expansão da massa de capital, a redução do preço de
custo das mercadorias através do uso de maquinaria
aperfeiçoada e de uma composição orgânica de capital mais
elevada ( Mandel, 1985:52).
16
29
capitalismo, cada uma alcança uma proeminência particular em
diferentes períodos históricos. Na era do Capitalismo de
Livre
Concorrência,
os
superlucros
tiveram
origem
na
justaposição regional da indústria, concentrada em apenas
alguns complexos territoriais dos países capitalistas,
e
das regiões agrícolas que serviam para fornecer matériasprimas
e
alimentos,
mercados
para
os
bens
de
consumo
industriais e reservatórios de mão-de-obra barata.
Na era do Imperialismo, a principal fonte de superlucros
foi
a
internacionalização
do
capital
que,
organizando
a
economia internacional através de transações financeiras,
monetárias
e
justaposição
de
investimentos,
internacional
de
assentou-se
um
centro
sobre
a
dominante-
industrial-imperialista e uma periferia mundial dependenteagrícola-subdesenvolvida.
A etapa denominada Capitalismo Tardio, relacionada às
transformações tecnológicas, sociais e econômicas ocorridas
a partir dos anos 40 deste século, representa o momento de
maior abrangência da economia capitalista, onde todos os
setores
da
economia
se
encontram
plenamente
industrializados, e seu aparecimento marcou uma mudança na
fonte dos superlucros. Agora, as rendas tecnológicas, isto
é, os lucros provenientes de progressos da produtividade
baseados
nos
avanços
tecnológicos
e
na
organização
sistemas produtivos, se tornaram predominantes.
dos
30
Importa
reter,
num
primeiro
momento,
do
esquema
mandeliano que cada nova reestruturação capitalista emerge
da crise de seu antecessor, caracterizada pelo declínio da
massa
de
lucros
coordenando
a
e
da
taxa
de
recuperação
lucros.
da
O
novo
depressão
período,
anterior
e
reorganizando a acumulação capitalista sobre novos eixos,
será a base para um novo surto expansivo
até mergulhar em
sua própria fase de crise.
O período do Capitalismo Tardio inaugura a "onda longa
expansiva" que vai dos anos 40 ao fim dos anos 60 e, se nos
períodos anteriores ainda observávamos a presença de setores
pré ou semi-capitalistas na economia, agora podemos falar de
uma economia totalmente capitalista, sujeita portanto, com
muito
mais
vigor,
às
crises
inerentes
de
seu
próprio
desenvolvimento.
Observa-se também, como uma tentativa de se garantir a
expansão
capitalista
correspondente
ao
keynesiana
demanda,
da
baseada
enorme
num
aumento
do
consumo
da
welfare
produção,
state
e
a
de
massa
a
gestão
regulação
estatal das relações entre capital e trabalho, investindo o
Estado
de
uma
responsabilidade
ativa
no
controle
da
conjuntura econômica. Tal gerência dos fundos públicos na
acumulação
de
capital
inclui
desde
os
recursos
para
a
ciência e tecnologia, os diversos subsídios para a produção,
passando pelos juros subsidiados para setores de ponta, como
31
pela sustentação do mercado financeiro através de bancos e
fundos.
O desenvolvimento da cultura e das artes do século XIX
até
aproximadamente
os
anos
40
deste
século
pode
ser
descrito pela articulação de duas linhas divergentes: uma
advinda
de
uma
sociedade
pré-capitalista,
de
tom
aristocrático, que, aliada a uma presença ainda incipiente
das tecnologias industriais, servia de base a uma cultura de
resistência
à
penetração
do
Capitalismo
como
princípio
organizador da cultura; e outra, mais afirmativa do impacto
do Capitalismo Industrial.
Neste sentido, pode-se entender a Moda e a Arquitetura
do
século
XIX,
por
exemplo,
não
como
aberrações
historicistas, mas como a persistência dos valores de uma
classe que, embora superada economicamente, ainda dava o tom
cultural do período17. O esteticismo da segunda metade do
século XIX, com a autonomia da arte e sua separação da
- Neste sentido, podemos entender o excesso de
ornamentação na moda feminina e no ecletismo arquitetô0nico,
como a tentativa da burguesia dar a si mesma um ambiente
"nobre"e digno de sua supremacia econômica. Trata-se,
portanto, da apropriação de valores culturais estabelecidos
e hegemônicos até então. Com isso, assim como em relação ao
colecionismo da época, pretendia-se contrapor-se ao caráter
de mercadoria das coisas e deter a desintegraçãao da cultura
provenientes de sua mercadificação. A arte moderna, e a
Arquitetura
Moderna
em especial, vêm debilitar esta
tendência, devassando o interior burguês e impondo a
racionalidade instrumental capitalista como mais apropriada
à época.
17
32
práxis vital, representa, igualmente, uma tentativa de se
contrapor à racionalidade dos fins da sociedade burguesa18.
- A perda da importância da temática em favor de uma
concentração sobre o próprio meio, isto é, a perda da função
social como essência da arte realizada pelo esteticismo pode
ser entendida como uma tentativa dos artistas, ao se
manterem afastados, realizarem uma crítica à cotidianidade
burguesa. Este processo deve ser entendido de forma
dialética, pois representa igualmente a adoção da tendência
da sociedade burguesa para a progressiva divisão do
trabalho, constituindo então esferas autônomas.
18
33
1.2.1. O "ALTO MODERNISMO" E O CAPITALISMO DO PÓSGUERRA
A vitalidade das experiências estéticas do Modernismo,
sobretudo das vanguardas artísticas, deve-se, como mostra
Perry Anderson (1986), à intersecção de três temporalidades
históricas
diferentes:
um
passado
clássico,
semi-
aristocrático, que institucionalizado nos regimes oficiais
de Estado, dava o tom cultural de uma época onde a indústria
pesada moderna ainda constituía um setor surpreendentemente
pequeno; um presente técnico ainda indeterminável, marcado
pela
novidade
ainda
insipiente
da
segunda
revolução
industrial e um futuro político ainda imprevisível, marcado
pela proximidade imaginativa da revolução social. Destarte,
foram as presenças de uma ordem dominante semi-aristocrática
, fornecendo um conjunto crítico de valores culturais contra
os quais e em termo dos quais as formas insurgentes podiam
medir-se
e
devastações
capitalista
utilizáveis
do
enquanto
mercado
pólo
capitalista;
semi-industrializada,
de
de
servindo
resistência
uma
de
às
economia
estímulo
à
imaginação mas extrapolável das relações sociais de produção
que
os
estavam
criando;
e
um
movimento
operário
semi-
emergente, responsável pela rejeição da ordem social como um
todo,
que
Perry
Anderson
vê
operarem
na
cultura
até
a
Segunda Guerra Mundial, as responsáveis pelo florescimento
34
do Modernismo europeu do final do século XIX até os anos 40
deste século.
O surgimento do Capitalismo Tardio, aqui identificado
com
o
período
do
pós-Segunda
Grande
Guerra,
marcará
a
retirada de cena destes campos de resistência, acabando,
como aponta Mandel, com a velha ordem semi-aristocrática ou
agrária e impondo a ordem capitalista a todos os domínios.
A efetivação do processo de crescimento do Capitalismo
implicou num processo de racionalização da produção em larga
escala e na organização de um mercado massivo que encontra
no FORDISMO sua melhor expressão. Embora surgido nos Estados
Unidos
nos
anos
20,
a
plena
vigência
dos
princípios
organizacionais do Fordismo e do Taylorismo tem uma longa e
complicada história e só será efetivada a seguir à Segunda
Guerra
-
as
imediatamente
condições
históricas
anterior
e
concretas
posterior
à
do
período
Segunda
Guerra,
destruindo, por exemplo, uma série de conquistas históricas
e sociais dos operários, propiciaram o boom econômico do
pós-guerra originando um acréscimo na produtividade.
A administração racionalizada da linha produtiva, fruto
do
impacto
informática,
das
novas
traduzida
tecnologias
numa
como
a
eletrônica
e
a
automação
e
semi-automação,
ocasionou, desta forma, uma forte pressão no sentido da
planificação exata e em detalhe de todas as esferas. Os
altos custos envolvidos tanto em desenvolvimento quanto na
35
produção
requisitaram,
para
seu
êxito,
tanto
uma
racionalização do setor de vendas, isto é, a constituição de
uma "Sociedade de Consumo" e a incorporação capitalista de
setores até então mantidos à margem, como o comércio, os
transportes e os serviços, quanto a redefinição do papel do
Estado, dos ciclos econômicos através de políticas fiscais e
monetárias19.
De qualquer maneira, o Fordismo é muito mais um esforço
para a criação de um novo modo de vida que um mero sistema
de
produção
racionalizado.
Como
afirma
David
Harvey,
baseando-se nos Cadernos de Cárcere de Gramsci:
"O que havia de especial em Ford (e que, em última
análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua
visão, seu reconhecimento explícito de que produção de
massa significava consumo de massa, um novo sistema de
reprodução da força de trabalho, uma nova psicologia, em
suma,
um
novo
tipo
de
sociedade
democrática,
racionalizada, modernista e populista" (1992:121).
Em
termos
culturais,
vitalidade
do
modernismo,
cultura
da
ênfase
e
sentido,
literatura
isto
através
em
seu
podemos
entender
etc.
"alto
do
implicou
a
da
viés
a
interrupção
da
mercadificação
da
funcionalista.
arte,
modernismo"
a
Neste
arquitetura,
a
vinculadas
ao
como
establishment.
Evidentemente,
o
modernismo
não
foi
um
fenômeno
monolítico, nem seu problema restringe-se à possibilidade de
19
- As políticas keynesianas.
36
sua
integração
mudada
a
a
uma
ideologia
configuração
conservadora;
histórica
responsável
entretanto,
pela
utopia
revolucionária do primeiro modernismo, o que restou foi a
impressão de uma arte domesticada e transformada em veículo
de propaganda da guerra-fria.
A arquitetura é exemplar deste destino do modernismo. A
hegemonia do Estilo Internacional representará a objetivação
dos ideais dos CIAMs
na reconstrução da Europa do pós-
guerra, eliminando, no entanto, sua visão social, presente,
por
exemplo,
tornando-se
nos
uma
padronização
programas
mera
e
de
aplicação
construção
abstrata
racionalização,
da
de
Bauhaus,
modelos
desembocando
de
num
funcionalismo muito mais próximo das relações capitalistas
de
mercado
que
de
qualquer
dinâmica
social
mais
ampla
(O.Arantes, 1993:53-56).
A
questão
industrial,
já
da
cooptação
abordada
da
pelos
cultura
teóricos
pelo
da
sistema
Escola
de
Frankfurt como uma comprovação do caráter totalitário do
sistema capitalista, embora represente, como apontou Adorno,
um destino inerente ao material artístico da época
deve
ser
sistema
tomada
como
um
incorporador.
O
mutismo
dos
artistas
desenvolvimento
20,
diante
subseqüente
não
do
da
"instituição arte" mostrou tratar-se de uma relação tensa
20
- Cf. cap 2, 2.2 .
37
onde
concorrem
de
um
lado
a
necessidade
de
legitimação
social das forças produtivas através do imaginário artístico
e de outro lado a necessidade do artista explorar os novos
horizontes abertos pelas inovações tecnológicas explicitando
suas finalidades21.
- Ver a esse respeito o capítulo "Máquina e Imaginário"
de Arlindo Machado ( 1993: 21-44).
21
38
1.2.2. A CULTURA "HEDONISTA" DOS ANOS 60
O desenvolvimento da economia capitalista proposto por
Mandel não representa uma solução das contradições inerentes
a esse sistema, mas ao contrário, sua pontencialização Mandel
mostra
alternância
como
de
a
penetração
expansão,
capitalista
super-produção,
sobrepõe
recessão
a
e
recuperação econômica em ciclos de 7 a 10 anos com ciclos
mais amplos de 30 a 50 anos que permitiriam aumentos na taxa
de lucro, até que tais vantagens tenham se exaurido e o
ciclo chegue ao fim. Desta forma, o ciclo expansionista que
teve origem no pós-guerra
aumentando
consideravelmente
a
produção de mais-valia relativa e os superlucros levou a um
aumento pronunciado da composição orgânica do capital que,
associado ao crescimento do peso objetivo da classe operária
que impossibilitou a alta da taxa de mais-valia nos anos 60,
terminou com a inexorável erosão da taxa média de lucros,
invertendo a "onda longa". Embora este processo só venha a
se evidenciar na década de 70, o fato é que já na década de
60 a rigidez das soluções "fordistas" começa a entrar em
crise e a cultura do período pode ser vista como uma cultura
de fin-de-siècle.
O Capital, não podendo mais se valorizar na indústria
propriamente
serviços,
dita,
gerando,
expande-se
como
para
contraface
o
chamado
setor
de
dos
altos
custos
da
racionalização da linha produtiva, a racionalização deste
39
setor
através
marketing
e
do
desenvolvimento
publicidade,
o
que
das
ficou
estratégias
conhecido
de
como
Sociedade de Consumo.
Tal fato gerará uma grande diferenciação do consumo,
acarretando não uma homogeneização dos indivíduos através da
demanda de produtos padronizados, mas uma "personalização"
da cultura. O Capitalismo Tardio, em sua fase terminal,
opera uma lógica da diferenciação que terá como conseqüência
tanto o culto à novidade, através da estetização dos objetos
[a
da
"estética
mercadoria"(Haug,1985)],
como
a
personalização e o hedonismo dos anos 60.
Trata-se,
como
Richard
Sennett(1988)
e
Christopher
Lash(1988) apontaram, de um longo processo que teve sua
origem na relação entre o Capitalismo Industrial e a cultura
pública no século XIX e que desembocou, em nosso século, num
sobreinvestimento no Eu, na "busca de uma identidade própria
e já não da universalidade como motivo das ações sociais e
individuais" (Lipovetsky, sd:10). Um sobreinvestimento que
leva, no entanto, ao desalastramento dos conteúdos rígidos
do Eu, restando-lhe a incerteza sobre si mesmo e sobre o
mundo.
O
consumo,
tornado
sistema,
enfatiza
tais
características. A questão não é a de conter as necessidades
individuais, mas de reintegrá-las como forças produtivas e
de socializar as massas como forças consumidoras. O sistema
40
passa a funcionar, agora, não pela abundância dos produtos
oferecidos
ou
pela
multiplicação
das
necessidades,
mas
através da "ideologia dos objeto pessoais e de um sistema de
diferenças"
(Baudrillard).
Trata-se
não
da
promoção
de
diferenças reais, mas de sua substituição por diferenças
periféricas22
funcionalidade
que,
dos
embora
totalmente
objetos,
convergem
dispensáveis
para
modelos
à
23
- Trata-se, como Baudrillard analisa com perspicácia, da
incorporação, pelo objeto produzido em série e, portanto,
não personalizado, de "diferenças" totalmente dispensáveis
e, em grande parte, contrário às normas técnicas. Este
acréscimo
é,
no
entanto,
fundamental
para
a
"personalização"do
objeto,
isto
é,
ao
apagar-se
a
característica de produto em série e promovê-lo como objeto
"pessoal", a diferença, por menor que seja, é dada como
específica. Ao tornar essa diferença essencial à lógica do
sistema, este opera, na verdade, uma perda da finalidade
específica e da função do objeto ( seu valor de uso),
restando somente a exploração do objeto como signo. Daí a
importância dada, doravante, à imagem em detrimento da
significação do objeto. Trata-se, portanto, da perda das
diferenças
reais
em
detrimento
das
produzidas
artificialmente, isto é, das diferenças produzidas pelas
relações capitalistas atuantes na esfera do consumo ( para
uma análise mais profunda destes aspectos ver de Jean
Baudrillard
O
Sistema
dos
Objetos,
São
Paulo,Perspectiva,1973
e A Sociedade de Consumo, Lisboa,
Edições 70, sd. ).
22
- Baudrillard faz uma distinção entre série e modelo. O
modelo permaneceria absoluto, ligado a uma transcendência (
o equivalente ao "estilo"), daí sua utilização, por exemplo,
como signo de distinção social, ou modo de vida de uma
minoria social. A série, por sua vez, seria desprovida de
tais atributos. A tendência da sociedade contemporânea é, no
entanto, baralhar tais distinções, quer "funcionalizando" os
modelos, quer "psicologizando" a série, isto é, dotando-a de
23
41
personalizados
e
são
transformados
em
signos
de
uma
liberdade de escolha meramente formal - na medida em que os
termos desta "escolha" são determinados não pelas diferenças
reais
entre
as
pessoas,
mas
pelas
formas
diferenciais,
industrializáveis e comercializáveis (Baudrillard, sd:81).
Trata-se, em suma, não do consumo de valores de uso, mas de
signos, donde a intercambialidade dos diferentes objetos24.
A racionalização da demanda aliada a um decréscimo da
rigidez fordista levará a uma ética mais "permissiva" tanto
cultural como politicamente. O hedonismo e a permissividade
da cultura dos anos 60 caminham, desta forma, de par com o
processo descrito. Da mesma forma, esta lógica geradora de
"diferénces" será a responsável pela emergência de discursos
até então silenciados. Vemos surgir nos anos 60 a ideologia
das minorias através das manifestações da juventude, das
mulheres,
dos
negros,
dos
homossexuais,
dos
países
do
terceiro mundo etc.; minorias estas que não se colocam mais
atributos transcendentes ( cf. O Sistema dos Objetos,
op.cit.,pp.145-146).
Esta é, aliás, uma tendência observada desde as
transformações do comércio varejista no século XIX que, para
freiar a vertente padronizante dos produtos industriais ( o
público consumia até então produtos artesanais), tentavam
estimular as pessoas a comprar tais mercadorias criando do
lado de fora da loja um espetáculo visando dotar as
mercadorias de qualidades humanas e de um interesse que
estas poderiam não ter, daí as análises sobre a fetichização
das mercadorias ( cf. Sennett, 1988: 179-189).
24 - Mais adiante (cap.2) falaremos desta proliferação de
signos como marca da cultura contemporânea.
42
à margem do sistema, mas são incorporadas por sua lógica
interna.
No
domínio
diferencial
das
forneceu
crepúsculo",
artes,
algo
recuperando
esta
como
nova
"um
temporalidade
breve
momentaneamente
o
clarão
no
ethos
de
antagonismo, através da referência a um passado - o "alto
modernismo" - criticável,
que a arte moderna perdera. Merce
Cunnighan
do
e
os
membros
Gran
Union
incorporaram
o
aleatório e o acaso em suas coreografias de "antidança".
Kaprow, Whitman, Claes Oldenburg e outros incorporaram e
transformaram materiais não-artísticos como sucata, objetos
colhidos nas ruas e formas distintas de arte como a pintura,
o teatro e a dança numa síntese distorcida. Os meios de
comunicação
e
a
cultura
popular
foram
incorporados
como
desafios aos cânones da "grande arte", embora sua utilização
fosse repleta de contradições e, em grande parte, acrítica.
O caminho estava aberto para a total intercambialidade
dos objetos e estilos estéticos, resultando na reabsorção do
kitsch e do vernacular, na recuperação do ecletismo, na
aproximação da teoria com a ficção, da autobiografia com a
narrativa ficcional; na convivência, numa mesma obra, de
diversos gêneros, como demonstram, no campo da arquitetura,
o
edifício
decorados
de
de
Phillip
Robert
Johnson
para
Venturi
a
ou
AT&T,
a
os
galpões
imersão
na
43
intercambialidade dos objetos cotidianos promovida pela Pop
art ou ainda as instalações e obras da videoarte nascente.
A crítica que artistas e críticos como Rauschenberg,
Jasper Johns, Kerouac, Gingsberg, Burroughs, Bathelme, Susan
Sontag, Leslie Fiedler e Ihab Hassan fazem nos anos 60,
colocando a necessidade de se por a arte e a crítica sobre
novos trilhos, representa não só uma crítica ao elitismo do
alto modernismo, procurando distanciar-se daquilo que Paolo
Portoghesi chama"uma simples continuação do emprego de um
ponto de vista aristocrático e do mito da originalidade
elitista
romântica/
modernista
através
inigualável"(1983:28),
e
de
um
do
código
gênio
estético
compartilhado de maneira mais geral, como representava a
elisão
das
cultura
de
distinções
massas,
modernistas
sintetizada
através
na
do
época
culto
tanto
da
pela
iconografia Pop quanto pela sensibilidade "Camp" de Susan
Sontag25.
A presença da 3ª Revolução Tecnológica e a importância
adquirida
pelas
capitalismo
do
importante
para
rendas
tecnológicas
pós-guerra
as
artes
na
reestruturação
constituíram
dos
anos
60.
outra
A
do
coordenada
chegada
dos
primeiros computadores - o UNIVAC, por exemplo, fruto dos
- ver a esse respeito: Susan Sontag - "Notas sobre o
Camp" in
Contra a Interpretação, Porto Alegre, LP&M editores, 1987.
25
44
trabalhos de John Mauchleu e J. P. Eckery, com o auxílio do
matemático J. Neumann, ou seja, das máquinas que "pensam,
aprendem
e
informação
criam"-,
-
o
desenvolvimento
desvinculando
a
da
informação
teoria
do
da
conteúdo
semântico das afirmações e codificando-a como uma medida
apenas
quantitativa,
mensurada
bits,
em
de
trocas
comunicativas, ocorridas em um canal mecânico que exige que
a mensagem seja codificada e, a seguir, decodificada em
impulsos
eletrônicos
(Shannon)
-
e
a
eleição
do
modelo
cibernético como adequado aos demais domínios da sociedade conjugando
com
informação
e
a
teoria
linguística
das
estrutural,
percepções,
teoria
pesquisadores
da
como
Wiener passaram a crer que, a partir de agora: " a máquina
revela a verdade sobre a estrutura do corpo, do cérebro, do
discurso,
da
ação,
da
consciência"26
-
criaram
o
solo
propício para a crença na onipotência da tecnologia e nas
vantagens da organização.
Se no início dos anos 60 havia "uma epidemia de aversão
tecnológica"
(Gringrich),
fortes
pressões
econômicas
contribuíram para a mudança desse quadro - concessão de
incentivos fiscais, destinação de grandes somas do orçamento
- Lefevbre, Henri - "Mimesis e praxis" in Metafilosofia,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, p. 236. Ver
ainda, Ashb, W. Ross - Introdução à Cibernética, São Paulo,
Perspectiva, 1970 e Moles, Abraham - Rumos de uma Cultura
Tecnológica, São Paulo, Perspectiva, 1973.
26
45
militar
americano,
a
evidenciação
da
incapacidade
do
fordismo e do keynesianismo, no período de 1965 a 1973, de
conter as contradições inerentes ao capitalismo. A partir de
então, a crença na racionalidade técnica como a única capaz
de solucionar as crises e conflitos se generalizou.
O otimismo tecnológico tomou conta de grande parte dos
artistas
do
representaram
período
e
o
para
parte
que
da
a
fotografia
vanguarda
dos
e
o
anos
cinema
20,
a
televisão, o vídeo e o computador foram para os apologistas
da
sociedade
pós-industrial,
que
tiveram
em
McLuhan
seu
principal profeta. No entanto, este relâmpago vanguardista
não resistiu à consolidação que se seguiu.
Podemos
afirmar,
com
Perry
Anderson,
que,
se
a
construção de um futuro promissor através da crítica de um
passado desolador era a marca da vitalidade modernista, o
que
caracteriza
Ocidente
é
o
a
situação
fechamento
de
do
artista
horizontes:
contemporâneo
sem
um
no
passado
apropriável, o futuro torna-se inimaginável, donde a noção
de um presente interminavelmente recorrente27 (1986:12). O
- Tais características não se aplicam, como P. Anderson,
faz questão de salientar, ao Terceiro mundo. Marcado pela
presença de Oligarquias pré-capitalistas, o que tornava o
desenvolvimento capitalista muito menos estável, a revolução
socialista
rondava
tais
sociedades,
configurando
a
possibilidade de um futuro promissor(Anderson, 1986:12).
F. Jameson ( 1991:84-93), por sua vez, também aponta
para a importância do Terceiro Mundo na criação de modelos
políticos-culturais utilizados nos anos 60. Tal processo
27
46
surgimento
daquilo
minimalista",
aqui
que
Lasch
entendida
(1988)
como
chamou
uma
de
"estética
despersonalização
deliberada da obra, comprova tal aspecto:
"Lá pelos anos 60, uma nova sensibilidade, não linear,
não
livrescaquântica,
digamos,
no
seu
feitio
descontínuo - estava sendo modelada pela TV, a moda, a
publicidade, o design, o rock. Era Pop e gregária,
dionisíaca e contracultural, experimentadora e sem
hierarquias, enfeixando o que seria a revanche pósmoderna dos sentidos contra a inteligência modernista. O
consumo desbancava a Bíblia, McLuhan abalava Marx e Dylan
silenciava Eliot. Aos escritores americanos amadurecidos
no pós-guerra como Barth, Pynchon, Heller, Vonnegut,
Brautingan, só restava, assim, não se oporem a essa
sensibilidade pelo intelectualismo, mas pesquisar um
estilo ou anti-estilo para expor sua face apocalíptica,
sua farsa terminal, em suma, engendrar uma antiforma para
o absurdo sob o guarda-chuva nuclear, numa era de mutação
cultural" (Santos, 1988:60/61).
Em oposição ao expressionismo abstrato que representava
a última tentativa do modernismo em "reviver uma concepção
romântica
do
gênio
artístico,
uma
arte
interessada
em
expressar as emoções humanas básicas" (Mark Rothko) e em
explorar a dimensão interior da subjetividade, os artistas
voltaram
os
Generalizada
olhos
a
para
o
impressão
de
interior
que
a
da
própria
realidade
arte.
superava
a
deve ser visto de forma dialética, lembrando-se que o
processo
de
descolonização
foi
acompanhado
por
um
neocolonialismo e que as novas esperanças foram frustradas
quer pela corrupção institucional dos países africanos, quer
pela total militarização dos regimes da América Latina. De
qualquer modo, fica a impressão da contexto restrito da
produção artística dos anos 60 do Terceiro Mundo, e que este
não se constitui numa fonte de eterna juventude para o
modernismo.
47
imaginação daqueles destinados a relatá-la, descarta-se o
privilégio do artista como intérprete da experiência ou como
guia de acesso a uma subjetividade escondida.
Como uma série de obras atesta - J. G. Ballard, W.
Burroughs, Doctorow, Robbe-Grillet, Pynchon, Ad Reinhardt,
R. Morris - a recusa a qualquer figuração ou traço que
sugerisse a presença do artista é a marca registrada da
época.
Quer
Andre,
F.
recuperando
Stella,
Robert
os
de
ready-made
Morris),
quer
Duchamp
trazendo
(Carl
para
o
interior da obra a hiperrealidade dos objetos cotidianos
como a Pop art, quer ainda, planejando detalhadamente a obra
como os artistas conceitualistas ou satirizando os dogmas
com os quais a literatura moderna - Hemingway, Faulkner,
Elliot
-
tinha
explorado
os
conflitos
sociais,
busca-se
agora uma certa "leveza": a busca da leveza como reação ao
peso do viver (Calvino, 1991:39).
A estética minimalista reflete, assim, uma sensibilidade
solipsista. A derrocada das esperanças modernas arrastou
consigo
a
confiança
do
artista
em
sua
capacidade
de
interpretar e transformar a história. Para além de qualquer
transcendência
resta
a
imersão
na
profusão
de
signos
cotidianos - donde o transbordamento de cenas, imagens e
citações históricas - ou a adoção do vazio como ausência de
significados imanentes ( Ad Reinhardt, por exemplo). Além do
mais,
fica
a
demonstração,
clarificada
pelo
exemplo
das
48
neovanguardas,
primeiro
que,
modernismo
mudada
(aqui
a
temporalidade
identificada
com
histórica
o
tempo
do
das
vanguardas históricas), a recuperação de suas intenções é
ilusória e, neste sentido, podemos associar a cultura dos
anos 60 à culminação do processo expansivo descrito por
Mandel.
49
1.2.3. A "REESTRUTURAÇÃO" CONTEMPORÂNEA DO CAPITALISMO
O
fim
deste
período
expansionista,
embora
observado
desde o final dos anos 60, teve na recessão generalizada da
economia
capitalista
de
1974/75
seu
momento
de
maior
visibilidade. Vários teóricos - Piore e Sabel(1984) e seu
The
New
Industrial
Divide;
Claus
Off
(1985),
com
o
Capitalismo desorganizado; Aglieta (1976) e Alain Lipietz
(1991) e a Acumulação Flexível;
Colapso
da
Modernização
etc.
Robert Kurz (1993) e o
-
tentam
dar
conta
desta
reversão de expectativas e da nova configuração econômica
daí resultante.
Para
Mandel(1990)
superprodução,
trata-se
prevista
de
uma
anteriormente
crise
típica
(1982)
como
de
uma
consequência inevitável da expansão pós-guerra. Agora que os
altos
rendimentos
tecnológicos
e
os
superlucros
monopolísticos realizados pelos setores de ponta reduziramse progressivamente e que as técnicas anticrise - a política
keynesiana - se mostraram, a longo prazo, fundamentalmente
inflacionárias,
inflação,
ao
chegou-se,
após
desmoronamento
a
aceleração
do
sistema
mundial
da
monetário
internacional e à adoção de políticas antiinflacionárias.
Embora os dirigentes dos países imperialistas tentem,
após 1975, adotar medidas de reanimação monetária através da
supressão
das
medidas
de
restrição
ao
crédito
e
de
50
diminuição do crescimento da massa monetária bilhões
circuito
de
dólares
econômico
de
poder
através
de
de
compra
déficits
injetando
suplementar
orçamentários
no
dos
principais países imperialistas - não se pode deixar de
observar a precariedade de tais soluções e a gravidade da
situação atual para o capitalismo - o que leva Robert Kurz
(1993), por exemplo, a prever, exageradamente, o "colapso da
modernização", isto é, a confundir aquilo que talvez seja
uma crise cíclica do capitalismo, com uma crise final do
sistema produtor de mercadorias e o início de uma "era de
trevas, do caos e da decadência das estruturas sociais, tal
como jamais existiu na história do mundo" (p. 222).
Trata-se, como Mandel mostra, da irrupção de todas as
contradições fundamentais do modo de produção capitalista
responsável por uma nova "onda de crescimento lento". Neste
sentido, a recuperação da economia capitalista internacional
no
período
de
1976/80
se
manifestou
sobretudo
pela
dificuldade da produção industrial em retomar o nível mais
elevado que havia atingido às vésperas da recessão
e foi
seguida pela recessão generalizada de 1980/82, combinando
uma baixa média de lucro com uma queda dos investimentos
produtivos.
Nem
mesmo
economistas
capitalismo,
a
retomada
conservadores
combinada,
em
de
1983/85,
como
sinal
1989,
com
alardeada
pelos
do
"triunfo"
do
a
derrocada
do
51
estatismo, pôde se manter. Assentada sobre o aumento da
demanda
proveniente
do
déficit
orçamentário
e
pelo
crescimento dos gastos militares, o que se seguiu a esta
retomada foi a constatação da incapacidade do capitalismo
resolver o problema econômico e político da grande maioria
da população. A desaceleração do crescimento e os altos
níveis de desemprego marcam o contexto atual.
A reestruturação capitalista daí resultante foi descrita
pela Escola da Regulação em termos de uma especialização
flexível
na
produção,
nas
relações
trabalhistas
e
na
localização das atividades produtivas:
"A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por
um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se
apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos
mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo.
Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção
inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de
serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas
altamente
intensificadas
de
inovação
comercial,
tecnológica e organizacional"(Harvey, 1992:140).
A superação da crise significou uma rápida implantação
de novas formas organizacionais e de novas tecnologias de
produção
que,
através
de
subcontratações,
redução
de
estoques, produção em pequenos lotes, aperfeiçoamento dos
sistemas de comunicação e de fluxos de informação, permitiu
a aceleração do ritmo de inovação do produto e deslocou as
bases da concorrência dos preços para a diferenciação do
produto e para a ocupação temporária de "nichos" lucrativos,
diferenciados,
do
mercado.
À
flexibilização
na
produção
52
corresponde uma flexibilidade dos mercados de trabalho, das
qualificações
e
das
práticas
laborais,
aprofundando
o
dualismo dos mercados de trabalho locais e a elevação das
taxas de rotatividade da mão-de-obra e das altas proporções
de
trabalhadores
politicamente
marginalizados.
O
sistema
pós-fordista caracteriza-se também pelo surgimento de novos
distritos industriais localizados e, na medida em que os
mercados
se
tornam
volúveis,
as
firmas
realizam
formas
flexíveis de organização permitindo, desta maneira, rápidas
mudanças na produção.
Várias críticas foram feitas à teoria regulacionista,
quer rejeitando a outrora hegemonia do sistema fordista e a
atual
dominância
pós-fordista,
quer
apontando
para
uma
análise de um número limitado de setores e que ignora o
crescimento
massivo
insuficiência
economia
de
dos
mediações
capitalista
instrumental
serviços28,
-
analítico
o
nas
ou
ainda
questões
que
gera
da
uma
suficientemente
apontando
a
dinâmica
da
"escassez
de
refinado
para
estabelecer conexões entre a dinâmica econômica - e a crise,
em particular e -[ por exemplo ] - distintos cenários de
geração
e
difusão
de
inovações
tecnológicas"
(Possas,
1988:211).
- Ver a esse respeito o artigo de Martin Boddy, 1990 (Ver
também a bibliografia referente à crítica da escola da
regulação sugerida pelo autor neste artigo).
28
53
Outra crítica das mais relevantes refere-se ao fato da
perspectiva
regulacionista
prever
uma
inevitabilidade
determinista na resolução da crise fordista: algo como uma
nova coesão, um "neofordismo" (Aglieta 1979:385 apud Boddy).
Ou
seja,
a
imposição
mais
ou
menos
automática
de
uma
"regulação" do sistema capitalista - sem levar em conta as
contradições
derivadas
da
lei
do
valor
e
do
resultado
incerto da luta de classes, como mostra Mandel , torna-se
utópica e não dá conta do funcionamento contraditório do
sistema (1990:207).
Para
que
uma
reestruturação
econômica
profunda
e
duradoura ocorra será necessário, para Mandel, a articulação
tanto
de
fatores
exógenos
("meio
geográfico,
área
de
operação do capitalismo, ou seja, hoje, essencialmente, as
relações com setores não-capitalistas da economia mundial"),
quanto
endógenos,
parcialmente
autônomos,
produtos
relativamente rígidos do desenvolvimento passado do sistema
("as
relações
de
forças
econômicas
entre
o
capital
e
o
trabalho nas metrópoles imperialistas"). Trata, como podemos
ver, de um campo de possibilidades, encarado como outra
tentativa
do
fundamentais
capitalismo
de
sua
de
restaurar
sobrevivência,
as
distante
condições
tanto
do
determinismo catastrófico de Robert Kurz quanto da regulação
neofordista.
54
O
que
podemos
importância
retomadas
dos
reter
créditos
econômicas
substituirá
a
que
ênfase
destas
análises
não-produtivos
se
nos
sucederam
é
nas
após
princípios
a
crescente
sucessivas
1971;
o
que
residuais
do
produtivismo pela lógica da especulação através da expansão
hipertrofiada
do
setor
financeiro
e
de
serviços.
Agora,
desprendida a forma-mercadoria do seu valor de uso, resta a
livre flutuação da forma-publicidade.
Observamos também
uma internacionalização do capital
produtivo e financeiro29, sustentada por novos acordos de
crédito e liquidez, que, tornando-se transnacional, é capaz
de
explorar
os
mercados
de
bens,
finanças,
consumo
e
trabalho no mundo inteiro, com menos restrições territoriais
do que nunca (Soja, 1993:225). Tal fato, ligado a um capital
cada vez mais móvel e a uma realocação do capital e do
trabalho em sistemas espaciais de produção alargados, gera a
impressão de uma realidade onde as trocas "imateriais", as
"altas velocidades" das transações, a "compressão espaço- Ao contrário do que ocorria nos anos 30 e 40, este novo
mercado financeiro mundial, tornando extremamente grande e
ultrapassando em muitas vezes o próprio negócio de
mercadorias de um país, pode gerar muito mais capital que o
próprio Estado.
Neste sentido, podemos dizer que se
depois da Segunda Guerra a expansão dos mercados era mediada
pelo crescimento do Estado (Welfare State), agora, nesta
virada neo-liberal, a extensão dos mercados monetários e
financeiros ultrapassa o próprio Estado ( uma discussão
interessante sobre esta virada neoliberal é feita em Gentili
(org.) - Pós-neoliberalismo: As políticas sociais e o Estado
democrático, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1995).
29
55
temporal" dão o tom. Sintomática deste estado de crise, a
arte contemporânea - e as imagens eletrônicas em particular
- exibirá o espírito do capital ficcional.
Voltando às "temporalidades" de Perry Anderson, o que
marcará a contemporaneidade será a noção de que "o sonho
acabou" e que os relâmpagos contraculturais não passaram de
revolta infantil. A ausência de uma perspectiva utópica às
mazelas do capitalismo pôs uma pá de cal nas esperanças
emancipatórias da arte e originou uma produção muito mais
"autocentrada" que antes. O recurso ao passado artístico
será visto não como um meio de se evitar a "barbárie" do
presente, mas como um repertório facilmente recuperável pela
flutuação
dos
valores
da
atualidade.
O
presente,
definitivamente povoado pelas novas tecnologias, avizinha-se
como uma realidade totalizante e onde a saída é sujeitar-se
às suas performances.
A simultaneidade de gêneros e estilos presentes numa
mesma obra, a recorrência ao passado tanto no cinema - quer
através
dos
remakes,
quer
pela
"citação"-
como
na
arquitetura, a justaposição de temporalidades diversas na
videoarte e nas imagens sintéticas, a produção teórica e
artística de pessoas como Foucault, Lyotard, McHale, David
Salle, Richard Prince, Serrie Levine, Charles Moore, Peter
Eisenman, o "desconstrutivismo" e o pragmatismo filosófico,
exemplificam, no domínio da produção cultural, uma "estutura
56
de sentimento" caracterizada pela hipervalorização do flou,
do aleatório, da simultaneidade, do efêmero etc.30
Para
concluirmos,
o
desenvolvimento
das
forças
produtivas nos últimos anos assumiu características muito
mais
"desalastradas",
contribuindo,
desta
forma,
para
a
reestruturação do capitalismo sobre novos parâmetros e para
a impressão de uma realidade "espetacularizada". Trata-se,
em última instância, de um movimento operado pela própria
lógica do capital e que encontra na forma-publicidade sua
expressão contemporânea. Ao tentarmos verificar os modos de
inserção das imagens eletrônicas nesta nova
configuração
pretendemos dar uma contribuição para o entendimento de seu
modus operandi
- O predomínio destas coordenadas suscita, por escassez,
um movimento oposto. À compressão espacial soma-se o
interesse por filmes "espaciais" no cinema - Paris Texas; Os
Imperdoáveis etc. À compressão temporal, os ralentis de um
Tarkovsky ou de um Kielovsky. Às saturações imagéticas, o
universo asséptico de Jamurch. À efemeridade das relações, a
nostalgia de Tomates Verdes Fritos e a recuperação da mídia
de Sexo, Mentiras e Videotape. Exemplos em outras áreas
poderiam ser buscados.
30
57
CAPÍTULO 2
AS IMAGENS ELETRÔNICAS E A CULTURA TÁTIL
Aceitando a tese de que a nova topologia colocada pelas
imagens
eletrônicas
imagética,
transcende
constituindo-se
num
o
campo
novo
modo
de
da
produção
situar-se
e
perceber o mundo e que tal topologia encontra sua razão de
ser
na
"temporalidade
histórica
diferencial"
da
contemporaneidade, tratemos de visualizar o modo de inserção
destas
imagens
em
nossa
sociedade
através
de
um
dos
conceitos-chave para sua compreensão: a tatilidade.
Walter Benjamin, em seu texto sobre A Obra de Arte...,
mostra a dominância do tátil sobre o ótico que a era da
reprodutibilidade técnica inaugura - a partir de agora, a
obra de arte reproduzida em série se opõe não só à arte
aurática ou obra de arte única, autêntica e mantida a uma
distância
solene
superficial
e
do
público,
difusa,
tátil,
como
requer
em
oposição
uma
recepção
à
recepção
contemplativa e atenta, ótica, requisitada pelas obras de
arte tradicionais.
58
A dominância do tátil é a marca registrada da cultura de
massa na sociedade contemporânea e as imagens eletrônicas
representam o termo deste processo de liquidação da aura. Um
processo que faz abortar as expectativas emancipatórias de
Benjamin - o declínio da aura e a recuperação da teoria da
distração eram vistas como uma possibilidade da percepção
liberar-se para outras tarefas, tornando-se propícia a um
uso antiburguês e revolucionário da arte . O momento atual
não
é
o
da
liberação
do
potencial
cognitivo,
mas
o
da
ausência de uma distância crítica, não a transformação da
vivência habitual, mas o da afirmação do status quo.
O processo de liquidação da aura caminha de par com o
processo do "declínio
da
referência"31
que
culminará,
em
nossos dias, na proliferação das imagens auto-referentes.
Esta verdadeira rotação de significantes, que se origina com
a
própria
constituição
do
Capitalismo,
tem
sua
presença
marcada num processo cultural mais amplo, surgido a partir
dos
anos
60,
observável
sobretudo
nas
teorias
estruturalistas e pós-estruturalistas sobre a linguagem.
No domínio da lingüística, o "espírito da época" dos
sixties
verá
na
teoria
da
significação
que
inclua
uma
explicação acerca da maneira como as expressões triunfam ou
31-
Cf. as idéias de Baudrillard apontadas anteriormente
(p.12 ss). Anteriormente a Baudrillard, Foucault abordou o
processo de dissociação entre o signo e a referência em sua
obra As Palavras e as Coisas(1992).
59
falham
ao
referir-se
a
objetos
extra-discursivos
uma
manifestação da "metafísica da presença", ou seja, a reapresentação
de
alguma
verdade
ideal,
a
revelação
de
verdades intemporais.
Contrapondo-se
a
uma
concepção
da
literatura
como
portadora de uma situação ontologicamente privilegiada ou da
linguagem como o "lugar da manifestação do Ser", a revolução
estrutural de Frye e Jakobson - recuperando a lingüística de
Saussure e o estruturalismo de Lévi-Strauss - passa a ver a
linguagem
como
um
sistema
de
signos
dispostos
sincronicamente, onde o significado não é a realidade, mas o
resultado
da
diferença
entre
os
signos,
operando
um
verdadeiro corte entre o signo e a realidade. As palavras
significam não em virtude de seus referentes, mas através de
sua relação com outras palavras.
A partir daí, e em sintonia com os demais processos do
período,
modelo
o
caminho
linguístico
estava
que,
aberto
através
para
do
a
exorbitação
estruturalismo,
do
será
aplicado aos diversos domínios da sociedade, tais como a
economia,
a
psicanálise,
a
filosofia,
a
política
e,
de
maneira especial, a semiótica.
O florescimento da semiótica (Barthes, Foucault, Eco,
Genette, Riffatere) - definida , a partir de Peirce, como o
estudo sistemático dos signos - liga-se à proliferação dos
signos abstraídos de qualquer relação produtiva. Uma vez
60
separados de seus referentes extra-discursivos, os signos
encontram sua legitimidade no interior do próprio sistema, o
significado é, desta forma, dado pelo "sistema dos objetos"
sem o recurso a outras instâncias determinantes.
Várias críticas poderiam ser feitas a tal empreitada. A
tentativa
de
aplicar
a
lingüística
a
outros
objetos
extralingüísticos apresenta enormes dificuldades; a análise,
por ser demasiado formalista, acaba isolando a linguagem das
relações sociais; o caráter a-histórico do estruturalismo
impedia o relacionamento da obra com as condições que a
haviam produzido32. De qualquer modo o corte signo/realidade
e sua consequente "atenuação da verdade" e "declínio da
32-
Não obstante o fato da dimensão histórica aparecer nas
preocupações de autores como Foucault e Althusser. Este
último, por exemplo, propondo-se construir o conceito
marxista de história(de tempo histórico) a partir da
concepção marxista da totalidade social, verá a existência
de uma sobredeterminação pelo nível econômico, instância
esta que não anula a existência de temporalidades diversas
dos diferentes níveis do todo, mas , ao contrário, lhes
atribui uma semi-autonomia e uma relativa independência em
sua dependência mesma, dos 'tempos' dos outros níveis.
Embora
a
noção
de contradição sobredeterminada seja
inseparável do corpo social e das próprias instâncias que
ela governa, advindo da imbricação do plano sistemático no
plano histórico, como Althusser lhe atribui por função
articular os elementos da estrutura, mas não estruturá-los
(já que cada nível possui sua própria estrutura e autonomia
relativa), esta relação
tende a se destruir, sob seu
próprio impulso, distendendo a semi-autonomia em autonomia
tout court.
Assim, articuladas por uma causalidade estruturaleliminando-se, enfim, a própria história deste processo - ,
permanece o problema de como relacionar estruturas ou
práticas recortadas arbitrariamente.
61
referência"
foram
decisivos
para
o
desenvolvimento
da
cultura subsequente.
O advento do pós-estruturalismo representa não só uma
ruptura com tal processo mas seu termo. Levando às últimas
consequências a relação de arbitrariedade entre significado
e
referente
estabelecida
estruturalistas
rompem
com
por
a
Saussure,
simetria
os
existente
pós-
para
os
estruturalistas entre o significante e o significado. Agora,
a
significação
interminável
de
é
vista
como
significantes,
o
produto
numa
eterna
de
um
jogo
"rotação"
de
significantes e significados.
A língua será, portanto, "um sistema puro e simples de
significantes flutuantes, sem absolutamente nenhuma relação
determinável
com
qualquer
referente
extralingüístico
(Anderson, 1987:53). A linguagem passa a assemelhar-se a um
emaranhado
infinito,
sem
que
se
chegue
a
nenhuma
base
inatacável ou a um princípio último ou primeiro. Trata-se,
em suma, da adoção do sistema lingüístico como um sistema de
diferenças, não como uma coisa fechada, ordenada, mas móvel,
múltipla, indeterminada.
A sincronicidade destas idéias com a "reestruturação"
capitalista contemporânea e a proliferação das imagens
eletrônicas constitui um dos pontos chaves da lógica
cultural de nossa sociedade e deverá ser apreendida em suas
inter-relações e temporalidades específicas. Antes, porém,
62
de estudar as formas tomadas pela imagem em nossa sociedade
contemporânea convém examinar mais amplamente as etapas
deste "declínio".
63
2.1. IMAGENS SEM AURA
Marcada pelo estigma do sagrado ou do solene, a imagem
permanece
como
privilégio
de
uma
elite
aristocrática
ou
religiosa até o século XVIII, período em que a imagem se
aburguesa através das manifestações da cultura profana, aos
poucos desgarrada de seus empenhos tradicionais33.
33-
Ligada inicialmente ao misterioso e ao sagrado - sendo
durante muito tempo privilégio de chefes e poderosos o
direito aos emblemas e as "represetanções simbólicas"-, a
imagem, devido sua vocação de incitar a superação do aquiagora, de inscrever a ausência numa presença, pretendeu
fazer ver o invisível, colocando a potência sagrada, hic et
nunc, à disposição dos homens, rementendo, portanto, à
profundidade do sentido, a uma troca entre o visível e o
invisível.
Com a perda do referencial divino e a consolidação de
uma racionalidade que passa pelo desencantamento do mundo
promovida pelo Renascimento, o valor da imagens deixa de
estar indexado à escala dos poderes divinos para abrir-se à
natureza física e assumir o papel de um espelho onde se vêem
refletidos a materialidade do mundo e seus proprietários.
Abrindo mão do caráter mediador entre os homens e a
divindade, as imagens, aqui, servem à glória do princípe ou
como auto-retrato da sociedade cortesã, sendo lançadas numa
competição aberta enquanto signos de prestígio social.
Baudrillard (1976) vê nesta passagem o estágio inicial
do declínio da referência, no sentido em que, ao contrário
das trocas simbólicas das sociedades arcaicas até a feudal,
aqui
o
signo
não
passa
de
esquema
formal,não
remetendo,verdadeiramente, a nenhuma realidade externa. Em
sincronicidade com a gênese da forma monetária e com as
características formais que vão sendo abstraídas do valor de
uso
para
atrelaram-se
ao
dinheiro
no
processo
de
constituição
das
mercadorias
capitalistas,
os
signos
reenviam,
enquanto
significantes,
a
um
universo
64
Rompido
estado
de
natureza"
weberiano,
isto
é,
o
momento anterior à ascensão do Capitalismo, onde as regiões
do
cognitivo,
ainda
do
estavam
ético-político
misturados,
e
do
estético-libidinal
passamos,
agora,
para
a
especialização dessas três esferas, donde a autonomia da
arte em relação ao cognitivo, ao ético e ao político. Se,
como aponta Weber, tal movimento é característico do sistema
capitalista, a arte - não estando mais vinculada à práxis
vital
e
passando
a
constituir-se
em
um
âmbito
alheio
racionalidade dos fins que domina a totalidade da vida -
à
é,
por um lado, penetrada pela valorização econômica e, por
outro, abandona os condicionamentos oficiais e se livra de
suas tutelas.
Reduzida sua significação social, a arte aumentará sua
distância
apreensão,
do
uma
ressacralização
público
recepção
-
que
requisitando,
atenta
embora
e
para
sua
melhor
contemplativa.
pressuponha
sua
Uma
total
emancipação do sagrado - assentada, agora, nas formas mais
profanas do culto do Belo e que foi subsumido pelo conceito
de aura por Walter Benjamin: uma figura singular, composta
de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma
coisa distante, por mais perto que ela esteja ( 1993:170 ).
desencantando do significado, denominador comum do mundo
real, com relação ao qual ninguém mais tem compromisso.
65
A arte aurática além de partilhar com o objeto de culto
as características da inacessibilidade e da distância estava
incrustada
Benjamin,
na
a
tradição;
sua
quintessência
autenticidade
de
tudo
aquilo
era,
o
segundo
que
foi
transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua
duração material até seu testemunho histórico (1993:168).
A obra de arte clássica remetia, assim, a um momento
onde o homem ainda conseguia estabelecer uma comunhão com a
natureza,
dotando
sua
existência
de
sentido
e
força
interior. Momento onde prevalece a experiência - um conjunto
de percepções e reflexões assimiladas, que podem voltar-se a
aplicar na práxis vital -, onde certos conteúdos do passado
individual se conjugam com outros do passado coletivo. Neste
sentido, pela aura da cultura o homem se relacionava com a
tradição e com a história. Comportando, desta forma, um
impulso emancipatório.
A teoria da arte pela arte e o esteticismo do século
XIX, ao tentarem reeditar o modo tradicional de apreensão da
arte, tentavam, por um lado, retrouver le temps, opor-se à
degradação
da
experiência
imposta
pelo
Capitalismo34,
subtraindo-se do ciclo material da produção e do consumo.
Por
outro
subsistemas
34-
lado,
como
pertence
à
sua
diferenciação
lógica
do
dos
demais
desenvolvimento
Ver a esse respeito as coordenadas que, segundo
Anderson, marcaram o primeiro modernismo (cf. p.25).
da
P.
66
sociedade burguesa, a figura da autonomia está com os dias
contados.
O fim da aura representa, desta forma, o fim da fantasia
de não se deixar absorver pela lógica do Capital, de se
constituir
um
domínio
determinações.
experiência,
A
de
-
o
da
capacidade,
se
encadear
arte
-
contida
os
alheio
no
às
suas
conceito
acontecimentos
de
passados
aplicando-os na práxis vital encontra-se interditada pela
vivência
moderna.
A
dispersão
caótica
das
coisas
e
a
velocidade das transações da vida moderna tornam os homens
cada vez menos capazes de incorporar os acontecimentos às
suas
experiências.
O
recolhimento
estético
solitário
requerido pela arte aurática transforma-se, à luz dos fatos
históricos do período, num modelo de comportamento antisocial.
As
artes
reproduzidas
mecanicamente,
notadamente
a
fotografia e o cinema, constituem, para Benjamin, o primeiro
grau do declínio da aura, representando, a um só tempo,
tanto o fim dos resquícios de uma estética idealista que,
concebendo a obra de arte como estruturada em todas as suas
partes, prevê uma recepção contemplativa, sob o molde da
unidade do sujeito e do objeto; quanto a instalação de um
novo modelo perceptivo
-
através
do
olhar
da
técnica
-
propondo ao público uma relação harmoniosa com a técnica e a
natureza.
67
Para Benjamin, a crítica da aura fazia parte tanto da
tentativa
de
genialidade,
eliminar
valor
da
de
teoria
eternidade
da
arte
etc.,
noções
que
como
tinham
se
reveladas operatórias para a política cultural fascista,
quanto
uma
maneira
alienação
autônomas
de
marcado
e
agravado
se
pela
pelo
contrapor
ao
novo
compartimentação
divórcio
entre
sistema
das
a
de
esferas
cultura
dos
experts e o mundo vivido.
Em sintonia com o espírito das vanguardas, Benjamin verá
na recepção divertida e racional das massas um "afirmar-se"
diante de um mundo cada vez mais tecnicizado, uma centelha
passível de utilização para a formulação de reivindicações
revolucionárias na política artística.
Não se tratava, evidentemente, de uma adesão cega ao
admirável
avanço
tecnológico
-
Benjamin
sabia
que
esta
recuperação da distração se dicotomizava entre indício de
emancipação e alienação -, mas de uma redefinição da tarefa
do artista diante deste novo espaço. Assim, em 1934, em seu
ensaio "O Autor como Produtor", ao enfocar a relação entre o
desenvolvimento da tecnologia e a técnica da própria arte,
Benjamin
supera
a
infrutífera
divisão
entre
forma
e
conteúdo, reeditada no debate entre tendência e qualidade.
Tomando nas mãos o conceito brechtiano de refuncionalização,
advoga que o artista deixe de ser um mero fornecedor para o
aparelho de produção e distribuição e, por meio de uma
68
inteligência
progressista
-
através
da
percepção
do
seu
papel no processo de produção -, transforme suas formas e
instrumentos, adaptando-os aos fins da revolução proletária.
Nestes
termos,
progressivos
visualizando
da
arte
os
componentes
tecnológica,
regressivos
Benjamin
propõe
e
sua
utilização numa chave emancipatória.
Se ao tratar da produção literária Benjamin já aponta
para a inserção do desenvolvimento das forças de produção
nas
próprias
técnicas
reproduzidas
tecnicamente
própria noção da arte.
arte
tradicional,
cultura
literárias,
como
o
verá
ao
tal
abordar
amálgama
as
artes
alterar
a
Ao abolir a distância aurática da
Capitalismo
tornou
impossível
não
só
dessacralizou
qualquer
a
transcendência
estética. Findo o estado paradisíaco onde o signo e o objeto
estão intimamente unidos, encontramo-nos, segundo Benjamin,
na instrumentalização degradada da linguagem, no mundo vazio
e homogêneo da reificação.
A
arte
pós-aurática,
despojada
de
suas
bases
ritualísticas, não pode manter seu caráter de representação.
Não
se
trata
idealizada
mais
nem
de
de
refletir
a
espartilhá-la
natureza
numa
naturada
ou
racionalidade
produtiva. Não mais a evocação do real, mas sua atualização.
Portanto, a arte atual teria na proximidade sua marca
característica. Ao mesmo tempo, entretanto, enquanto parte
mesma deste real, ela conteria indícios que nos permitiriam
69
repensá-lo: os objetos, aliviados do peso da tradição e
tornados independentes de seu ambiente original, poderiam se
articular em novas correspondências, em que os objetos, fora
do
lugar,
tornar-se-iam
uma
via
de
acesso
a
uma
nova
realidade, propiciando uma nova visão do passado - algo como
uma "iluminação profana" pela qual se instaura um sentido
inesperado.
70
2.2. A PERDA DA AURA E A ARTE AUTÔNOMA
A recuperação materialista da teoria da distração e o
peso
atribuído
artístico
já
à
técnica
foram
na
objetos
transformação
de
crítica,
do
por
subsistema
exemplo,
de
Adorno, que não compartilhava as esperanças depositadas num
uso emancipatório da distração das massas, nem a crença na
oposição entre o caráter aurático e o aspecto tecnológico
que, segundo Adorno, além de não relacionar corretamente o
estado das forças produtivas às relações de produção, pode
torná-la
vítima
daquilo
contra
o
que
ela
se
revolta,
obscurecendo o fato de que a racionalidade técnica fora
convertida, à sua época, num instrumento de dominação das
massas.
Consciente
de
que
a
arte
autônoma
contém
elementos
mágicos, Adorno não vê em sua defesa uma regressão ao mito,
haja vista ela ser dialética: ela encerra em si o mágico com
o sinal da liberdade. Devido à obediência à lei tecnológica
da arte autônoma, a obra se aproximaria de uma postura de
liberdade, da feitura consciente, constituindo uma forma de
oposição à sociedade administrada.
A arte, a um só tempo autônoma
e fato social, não é
mera imitação da realidade, mas negação determinada desta
identidade perversa. Ao associar arte e conduta mimética conduta esta mediada pela construção racional -, Adorno verá
71
na
tentativa
de
fazer-se
igual
a
explicitação
de
sua
diferença; ou seja, a arte apresenta a reconciliação na
inflexibilidade
de
incomunicabilidade
sua
aparência,
donde
sua
com uma sociedade que cada vez mais
aposta suas fichas na intercambialidade abstrata das trocas.
Localizada numa área marginal ao cognitivo, ao ético e
ao
político,
instrumental,
outras,
a
região
do
afetivo/instintivo/não-
transformada em uma mercadoria no meio das
tenta
tornar
vantajosa
para
si
a
adquirida
autonomia:
"A autonomia, no sentido preocupante da pura falta de
função social, é transformada numa autonomia com um
sentido mais produtivo: a arte como um deliberado voltarse sobre si mesma, como gesto mudo de resistência à ordem
social, que, na expressão de Adorno, tem um revólver
apontado contra a própria cabeça. A autonomia estética
transforma-se numa espécie de política negativa. A arte,
como a humanidade, é inteiramente e gloriosamente inútil,
talvez a única forma de atividade não-reificada e nãoinstrumentalizada que sobrou" (Eagleton, 1993:267).
Não assegurando a autonomia da obra de arte como uma
reserva e reconhecendo, com Benjamin, o desaparecimento do
aurático - acima de tudo pelo próprio desenvolvimento da lei
autônoma - , Adorno verá nesta autonomia tanto os elementos
de
transformação
quanto
o
risco
de
integração
e
neutralização de seus efeitos chocantes35.
35-
Para Adorno, como aponta Marc Jimenez, " o fato da obra
moderna dever absorver os mais avançados produtos da técnica
não impede que ela se exponha, por seu radicalismo, a este
tipo de integração, em que a tentativa do artista de escapar
72
Walter Benjamin, por sua vez, também aponta para tal
risco em sua análise da arte reproduzida tecnicamente. O
declínio
da
aura
representa
o
abrir-se
mão
do
caráter
edênico em que, no discurso, o signo e o referente estão
intimamente
unidos,
donde
o
papel
ocupado
pelo
símbolo
nestas culturas tradicionais. Este, ao estabelecer um efeito
comunicativo
direto,
instala
uma
coincidência
entre
o
sujeito e o objeto, exprimindo uma mediação universal, uma
visão
de
totalidade.
Sua
emergência
pressupõe,
portanto,
processos onde homem e natureza compõem uma unidade.
A violentação da natureza pelo progresso técnico e a
dessacralização da cultura pelo Capitalismo aniquilaram o
caráter
simbólico
da
cultura.
Onde
havia
fusão
entre
a
linguagem e o real, um sentido imediato e transparente, há
distância entre significante e significado; onde havia o
alcance
direto
do
universal,
remete-se,
agora,
à
diversidade, não mais a uma suposta unidade do diverso; os
à reificação, intervindo na obra por meio de uma técnica
levada ao extremo, conduza a arte a obedecer a uma
necessidade cega que a ultrapasse e que a faça recair no que
pretendia evitar. Mesmo o radicalismo estético é suscetível
de ser integrado. A pintura 'abstrata'muitas vezes se presta
admiravelmente à decoração mural do novo 'bem-estar'. Um dos
signos da falsa reconciliação é precisamente esta serenidade
com que a época da neutralização total aceita os conteúdos
ditos "chocantes":(...)'Dentre os perigos da nova arte, o
maior é a ausência de perigo'. A busca de objetivação conduz
ao ponto da pura subjetividade, ela própria reutilizada pelo
espírito burguês com fins reacionários"(Jimenez, 1977:124).
73
elementos do universo concreto passam a valer uns pelos
outros. Fim dos pontos fixos, emergência de um universo moderno - fragmentado, arbitrário, desintegrador dos objetos
e do sujeito clássico.
O que caracteriza a modernidade, para Benjamin, é a
realidade onipresente do choque , o excesso de excitações
provenientes do mundo externo e a incapacidade do homem de
conservar vestígios destas excitações. A arte, a literatura
e, sobretudo, o cinema refletem, em seu campo próprio, essa
impregnação da vida cotidiana pela experiência do choque.
Como consequência, o
sistema de percepção-consciência,
encarregado de interceptar e absorver o choque, expulsa-o da
memória sem que este se sedimente em experiências coletivas.
Trata-se da degradação da "experiência" em "vivência", ou
seja,
da
produção
interceptação
e
transformação
em
adaptação
do
de
uma
sensibilidade
neutralização
hábito,
homem
do
choque,
constituindo,
moderno
aos
concentrada
desta
perigos
de
na
sua
forma,
uma
uma
vida
de
turbulenta.
Se Adorno via neste processo a marca da alienação das
massas,
apontando
comunica
inovações
com
a
o
lado
razão
tecnológicas
negativo
instrumental,
fez
com
que
de
a
uma
arte
que
insipiência
Benjamin
e
se
destas
diversos
artistas e teóricos - à esquerda e à direita - apontassem
74
também
para
a
redenção,
vendo-a
como
passível
de
ser
politizada.
A reprodutibilidade ao se comprometer com a reprodução
do sistema de objetos o mantém como referente necessário. Se
o cinema, por exemplo, impõe ao espectador uma sequência de
choques, isto é, uma impiedosa sucessão brusca e rápida de
imagens que não permite ao observador divagar livremente
sobre
o
visto,
donde
o
empobrecimento
da
experiência
promovido por esta nova prática, ele torna-se político, na
acepção
de
realidade,
Benjamin,
ao
fragmentos
lidar
com
arrancados
o
seccionamento
da
da
contextualidade
cotidiana, isto é, das conexões repressivas que ocultam as
ruínas do humano.
As
artes
pós-auráticas,
reconhecendo
haver
entre
o
homem e a natureza uma fratura e recusando a reduplicação da
assim
chamada
realidade,
traz
a
marca
do
inacabado
e
truncamentos de toda ordem. A arte moderna, tematizando na
própria obra o artifício da representação, não traz a boa
forma
organicamente
constituída,
mas
a
consciência
exacerbada do caráter problemático da interpretação. Tornase, desta forma, alegórica36.
36-
Embora Benjamin utilize este conceito para referir-se à
Idade Barroca, época esta marcada pela dilaceração entre a
fé cristã e a imanência terrestre que se impõe cada vez
mais, e onde os signos sagrados não são mais decifráveis
enquanto tais, esta experiência da incompletude e do lado
perecível das coisas se instala com força redobrada nas
75
A modernização capitalista, esta atmosfera de agitação
e turbulência onde tudo que é sólido desmancha no ar, vai
gradualmente
setores
impondo
semi
referente
ou
sua
lógica
dissociadora
pré-capitalistas.
expressa,
assim,
o
A
aos
vastos
separação
signo-
esboroamento,
no
contexto
social, dos referentes sólidos, de sua unidade e coerência
lógica. Ao lidar com este seccionamento da realidade, com os
fragmentos arrancados da contextualidade cotidiana, a arte
pós-aurática proporciona uma atenção tão aguçada que capta
em suas malhas o imperceptível dos objetos (Rouanet, 1981:
36). Possuindo consciência da crise moderna, encara-a
frente,
de
desautorizando qualquer visão ingênua do progresso.
Arruinando a linearidade do sentido definitivo, a alegoria
revela ao observador a facies hippocratica da história. Pelo
fato de mostrar isto, desmistifica e permite, mais adiante,
uma "iluminação profana", um caminho para a felicidade.
Importa-nos
otimismo
ressaltar
diante
das
que
quer
possibilidades
assumindo
um
certo
emancipatórias
das
inovações tecnológicas, quer furtando-se a tal diálogo e
resguardando-se
estes
autores
no
interior
partilham
de
de
uma
uma
autonomia
utopia
pretendida,
estética:
a
arte
constituiria um modelo para as relações interpessoais numa
questões que envolvem a arte moderna. A alegoria moderna
constitui-se, assim, na sensibilidade de uma época marcada
pela vertigem dos sentidos e pela idéia de totalidade como
coleção de momentos e objetos fragmentados.
76
sociedade liberada, tornando-se
um
fator
de
reorientação
total da vida em uma nova sociedade.
De um lado, o fracasso da redenção a ser promovida pela
união entre a arte e a técnica, de outro, a museificação da
dialética
negativa
de
uma
arte
que
foi
facilmente
mercadificada e absorvida pelas políticas de administração
cultural,
vêm
sendo
amplamente
recentes
ao
modernismo
demonstrado
artístico
e
nas
críticas
arquitetônico
-
revelando, ao contrário do que afirmam os que apostam num
desvio retificável, as aporias do Modernismo.
Adorno analisa o envelhecimento do Moderno tomando como
parâmetro a Nova Música. Aproveitando o conceito musical de
"material"37 como instância privilegiada de mediação entre a
arte e a sociedade38, Adorno associa o material artístico
historicamente
tecnicamente
37-
avançado
estruturada
à
necessidade
de
de
acordo
o
com
uma
estágio
arte
de
" ... o material é aquilo com que lidam os artistas: o
que a eles se apresenta em palavras, cores, sons até às
combinações de todos os tipos, até aos procedimentos
técnicos na sua totalidade; nessa medida, podem também as
formas transformar-se em material; portanto, tudo o que a
elas se apresenta e a cujo respeito podem decidir"( Adorno,
1988:170).
38- Jorge Mattos de Almeida (1992) mostra a posição central
ocupada
pela
música
nas
reflexões
de
Adorno
e
o
aproveitamento que este faz do conceito musical de
"material"
para a superação da oposição entre análise
formal-estrutural e análise histórico-sociológica das obras
de arte.
77
desenvolvimento
das
forças
produtivas
de
sua
época.
Os
antagonismos sociais, as contradições do real, entre força
produtiva
e
relação
social
de
produção,
em
suma,
os
problemas não resolvidos da realidade, retornam às obras de
arte como problemas imanentes de sua forma. Ao enfrentar os
problemas que o material lhe impõe, o artista está lidando,
na verdade, com o conteúdo social sedimentado no estágio
correspondente do material e da técnica39.
A
tese
de
subterraneamente
produtivas
fracasso
da
do
um
material
ligado
sociedade
poder
de
ao
faz
choque
historicamente
desenvolvimento
com
da
que
arte
avançado
das
forças
Adorno
vincule
moderna
-
e
o
mais
especificamente da Música Nova-, a total aceitação por parte
da sociedade estabelecida dos conteúdos ditos "chocantes",
ao próprio processo de racionalização da modernidade. Isto
é,
39-
se
a
evolução
artística
da
Modernidade
eliminou
os
Neste sentido, Adorno mostra, por exemplo, como a
passagem do sistema tonal para o atonal, e deste para o
dodecafonismo explica-se não somente pela evolução gradual e
autônoma do som musical: seu momento de maturação,
debilidade e morte natural, como pelo próprio contexto em
que tal envelhecimento se dá. Nestes termos, a regressão da
audição no mundo moderno, a imposição da música ligeira, a
reduzida capacidade de concentração, o estilhaçamento do
todo etc., consequências, em última instância, do principío
de
racionalização
presente
na
sociedade
moderna,
impossibilitam "aquele tempo autônomo no qual os temas vivem
como um elemento próprio e no qual são capazes de se
desenvolver de acordo com suas próprias leis internas, na
perfeita interação de uns com os outros" (Jameson), como
permite um novo posicionamento, por parte dos artistas, em
relação ao material disponível em seu tempo.
78
resíduos da tradição no material emancipado, sua expansão,
pelo menos no caso da música, parece ter atingido seu limite
justamente ao acompanhar o processo social da Aufklärung. A
perda de tensão social nas obras - a racionalização em que
culminaria o dodecafonismo - caracterizaria assim aquilo que
Adorno chamou de "envelhecimento da Nova Música"40.
Neste sentido, a obsessão tecnicista com o material
transforma-se num postura feitichista de uma racionalidade
funcional. O desenvolvimento das forças produtivas acaba,
desta
forma,
determinando
a
conversão
das
esperanças
emancipatórias da arte moderna em seu contrário, esboroando
a tentativa do artista moderno escapar à reificação.
Uma
vez
tecnicamente
esgotadas
avançada,
as
que
possibilidades
a
um
só
de
tempo
uma
arte
retrate
e
contradiga o todo social de sua época, torna-se mais do que
nunca atual a denúncia do próprio Adorno ao "fetichismo do
material" dos modernistas - conceito chave para se entender
a
40-
arte
tecnológica
dos
nossos
dias.
A
sujeição
da
Daí, como sugere Jorge M. de Almeida (1992), os limites,
apontado pelo próprio Adorno, do recurso aos "materiais
historicamente avançados".
Se, no exemplo da música de Schoenberg, o recurso a
tais materiais, encontrando sua razão de ser numa reação
contra a regressão da audição, devia desenvolver todas as
forças e fraquezas do adversário, a condena também - devido
ao impulso em direção a uma organizaçãao total da obra
presente no sistema dodecafônico - , em última instância, ao
fracasso, tornando-se uma espécie de camisa-de-força.
79
funcionalidade estrita à funcionalidade sistêmica41 apontada
por Adorno como um dos elementos do envelhecimento da Música
Nova ganha força redobrada nos estágios mais avançados do
Capitalismo, onde não há mais elementos que se furtem à sua
lógica implacável e onde até mesmo a arte ao ceder aos
ditames
da
técnica
acabou
reduzida
a
uma
mera
forma-
publicitária.
41-
Ou, em termos benjaminianos, a neutralização do choque
em hábito - em choque-vivência repetitivo.
80
2.3.
A CULTURA TÁTIL
A perda do caráter agonístico da arte dá-se num momento
onde a ordem social contra a qual se manifestava também muda
rapidamente. Terminada a época de uma cultura marcada por
profundas
contradições
e
divisões,
codificadas
numa
separação entre o alto e baixo repertórios, a homogeneização
e
a
desdiferenciação
das
esferas
da
produção
cultural
caracterizam, agora, um momento onde o avanço da indústria
de consumo sobre o campo da produção artística e a íntima
associação da tecnologia com a estética, não só
abolem as
antigas contradições - desintegrando os limites entre alta,
média e baixa culturas - como marca o surgimento de uma
cultura rapidamente estetizada.
A época em que se realiza, tardiamente, os ideais de
alargamento do campo estético dá-se como pós-vanguardista;
uma época onde o experimentalismo de outrora, repetido à
exaustão e tornado objeto de consumo, vê exaurir-se seu
potencial
utópico
de
transformação
da
sociedade
como
um
todo. Com a rotinização dos efeitos de estranhamento - em
termos
benjaminianos,
hábito
-
verificou-se
com
não
a
transformação
a
pretendida
do
choque
liberação
em
das
faculdades para novas tarefas emancipatórias, mas a rápida
perda de suas delimitações e a convivência pacífica das
ambiguidades.
81
Agora, com o "fetichismo do estilo e da superfície, o
culto
do
hedonismo
e
da
técnica,
a
reificação
do
significante e o deslocamento do significado discursivo por
intensidades causais" (Eagleton, 1993:269), chega-se a uma
sociedade (que expressa a essência do Capitalismo, diria
Marx)
onde
o
desmantelamento
dos
espaços
sagrados,
a
pluralidade de línguas, o fim da aura de singularidade e a
repetição compulsiva da reprodução mecânica (ibidem, 271)
dão o "tom" de uma arte dirigida à absorção e à fruição
imediatas.
A expansão neutralizadora do econômico deixa, agora,
pouco
espaço
aos
valores desapegados dessa petrificação,
assimilando mais do que nunca a experiência estética a seu
mercado. Como afirma Claude Amey (1991:144):"Desde então não
é
mais
produtivo
isolados,
que
de
atuem
sentido
sobre
o
procurar
real,
pontos
tentando
de
lhe
verdade
opor
um
alhures 'exemplar', nem colocar a arte no diapasão das redes
de
intercompreensão
no
âmago
do
mundo
vivido".
A
arte,
deixando de possuir uma estética da negatividade, difunde-se
por
todo
integral.
o
tecido
Tal
social,
"generalização
dando-se
da
como
fato
estética"-
ou
estético
melhor,
"estetização do social" - visa, mais que a dissolução do
caráter crítico da arte, a neutralização da multiplicidade
dos problemas e das contradições da própria realidade, sua
absorção enquanto obra de arte total.
82
Chegamos assim ao estágio final do processo descrito por
Benjamin a partir das técnicas de reprodução das obras de
arte. Se a arte tecnológica comportava - apesar de seu uso
anti-emancipatório
e
de
identificação
com
a
moderna
sociedade industrial - uma função emancipadora, hoje, quando
o
capitalismo
passa
por
uma
nova
"reestruturação",
a
politização da arte requerida por Benjamin foi desbancada
pela estetização do social, uma estetização que, abolindo a
distância solene entre a obra de arte e o público massivo,
transforma a recepção tátil em consumo ligeiro. Como afirma
Baudrillard, ainda que um tanto exageradamente:
"Todo paradigma da sensibilidade mudou, porque esta
tatilidade não é o sentido orgânico do tato. Significa
simplesmente a contigüidade epidérmica do olho e da
imagem, o final da distância estética do olhar. Nos
aproximamos infinitamente da superfície da tela, nossos
olhos estão como que disseminados dentro da imagem. Já
não temos a distância do espectador em relação à cena, já
não há convenção cênica. E se caímos tão facilmente nesta
espécie de coma imaginária da tela, é porque esta
delineia um espaço vazio perpétuo que estamos prontos a
exaltar. Proximidade das imagens, promiscuidade das
imagens, pornografia tátil das imagens"(1989:31/32).
Fenômeno
culturais
da
este
observável
nas
contemporaneidade,
diversas
mas
que
manifestações
encontra
na
proliferação das imagens eletrônicas seu melhor posto de
observação.
83
2.4. A CULTURA TÁTIL E AS IMAGENS ELETRÔNICAS
A
crítica
conceituação
simulacro,
da
de
uma
cultura
contemporânea
Baudrillard,
época
onde
para
os
uma
signos
acena,
na
civilização
do
auto-referentes
da
atualidade não remetem mais a nenhuma realidade que a sua
própria,
evaporando
a
própria
realidade.
Como
afirma
Deleuze:
"O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma
potência positiva que nega tanto o original como a cópia,
tanto o modelo como a reprodução... Não basta nem mesmo
invocar o modelo do Outro, pois nenhum modelo resiste a
vertigem do simulacro. Não há mais ponto de vista
privilegiado do que objetos comuns a todos os pontos de
vista. Não há mais hierarquia possível; nem segundo, nem
terceiro" (1989: 267).
Do talher à cidade, vivemos esta irrealidade cotidiana
propiciada
pelas
técnicas
modernas
e,
sobretudo,
pelo
advento das imagens eletrônicas. A mistura de materiais e
estilos, a recorrência a temporalidades diversas, o desapego
à realidade estão cada vez mais presentes em nossa cultura
acentuando ainda mais a propalada perda da realidade.
Agora,
segundo
separação entre
formas
passam
por
(1976),
reinando
a
total
o significante e o significado, todas as
a
reprodutibilidade,
"geração
Baudrillard
ser
concebidas
não
modelos",
todas as formas.
mais
donde
a
a
partir
produção
a
de
em
precedência
sua
própria
série,
destes
mas
a
sobre
Se o momento anterior - o da Modernidade
84
- era o da regência da lei mercantil do valor, um universo
onde os signos não remetem mais a um objeto único e singular
mas à produção em série de objetos idênticos, onde não
domina qualquer relação entre o original e a imitação, mas a
indiferença e a equivalência; agora, a ruptura entre as
dimensões funcional e estrutural do valor atinge o momento
de hegemonia da última42, liberando o Capital de qualquer
determinação externa. Reina a indeterminação, chegando-se à
indeterminação total e ao grande jogo da comutação.
Se antes a imagem remetia ao protótipo divino ou à
singularidade
burguesa,
agora
ela
procede
a
sua
própria
sagração, ou mais precisamente, à sagração do modelo que a
engendrou. Se, no limite, a imagem eletrônica não remete a
uma realidade preexistente, ela se reporta a modelos de
significação do real, impondo uma submissão do sensível aos
modelos de sua inteligibilidade.
42-
Para Baudrillard, a 3ª ordem do simulacro é a das
oposições binárias numa relação estritamente operacional.
Estamos sob a hegemonia da dimensão estrutural do valor.
Neste sentido, o processo contraditório do Verdadeio e do
Falso, do Real e do Imaginário, que pressupõe uma dimensão
referencial, é abolido. O domínio do visível definido, em
referência a Walter Benjamin, como o da distância, do
espetáculo, da contemplação e, portanto, como promessa de
significação, é abolido pela "grande cultura da comunicação
tátil... fim do espetáculo e fim do espetacular". Reino da
completa imersão no objeto e da incapacidade de qualquer
distanciamento crítico, donde a obscenidade como uma das
características da cultura contemporânea ( Cf. "Le tactile
et le Digital" e "L'hyperréalisme de la simulation" in
Baudrillard, 1976 e ver também Baudrillard, 1981).
85
A tão propalada "perda da realidade" significa, desta
forma,
o
fim
da
noção
de
um
mundo
enquanto
aquilo
que
resiste ou contradiz minha representação, de um pragma que
é, independentemente de toda percepção ou conhecimento e ao
qual o intelecto deve esforçar-se em reconhecer a razão
formal. Agora, estando a visibilidade reduzida a uma imagem
conceitual, a imagerie contemporânea não expressa mais que a
total racionalização do real. Imagem de um real expurgado de
suas
potencialidades,
mesmo
pré-fabricado
e
preexistente
a
si
(Alliez).
Trata-se, como vimos procurando mostrar, de um processo
que encontra suas origens no desenvolvimento capitalista. A
"estetização
reificação
do
da
valor",
isto
realidade
da
é,
sua
vida
auto-fundação,
social
e
geram
a
um
"desalastramento" dos valores que, agora, passam a flutuar
soltos em seu próprio espaço e que encontra na estética,
auto-referente e afirmada como um constructo tecnológico, um
modelo eficaz para essa estratégia.
Se
crença
Mandel
na
ideologia
(1982:
351-366)
onipotência
no
da
Capitalismo
tinha
razão
tecnologia
tardio,
em
como
donde
a
a
apontar
a
forma
da
crença
na
organização e numa sociedade tecnologicamente arregimentada;
contemporaneamente, tal ideologia encontra na hegemonia das
imagens
eletrônicas
Alliez,
o
seu
determinismo
principal
tecnológico
difusor.
atual
é
Como
"
afirma
o meio de
86
produção da imagem que o Capital deve de si mesmo transmitir
a fim de projetar sua dominação na forma ideal de subsunção
do
Ser
no
Método"(1993:
273).
Desta
forma,
a
auto-
referencialidade das imagens eletrônicas liga-se ao processo
mais amplo da estetização do social, isto é, da experiência
de uma realidade asséptica e desdramatizada, reduzida a um
modelo
programável.
"Surrealização"
da
racionalidade
capitalista de tal modo que nada mais ocorra que antes não
tenha sido controlado e programado (Alliez). Tais imagens,
reconciliando-se
com
o
mundo
dos
negócios,
dirige-se
à
absorção e à fruição imediatas.
O mito da interatividade (como mostraremos a seguir,
cap.3, 3.5) expressa muito bem o que estamos dizendo. Em
sintonia
com
o
espírito
do
tempo
contemporâneo,
vários
teóricos43 postulam como proposta de superação da estética
negativa de Adorno uma reativação da comunicação entre as
obras de arte e sua recepção cotidiana.
Constatando a falência da reflexão filosófica para a
abordagem
das
restituir
a
comunicável.
obras
essa
artísticas,
experiência
Servindo-se
das
Jauss
seu
(1978)
caráter
categorias
de
pretende
fruição
aristotélicas
da
poiesis, aesthesis e catharsis, elabora uma concepção de
arte capaz tanto de “desconceituar” o mundo, renovando a
43-
H. R. Jauss, J. Habermas, A. Wellmer entre outros.
87
percepção
das
coisas
aplainadas
nos
hábitos
quanto
de
restaurar sua função comunicativa. Não se atendo, portanto,
à
mera
reflexividade
identificação
encontra
espontânea
e
na
catarse
prazeirosa
liberatória
com
o
a
outro.
Centrando-se no prazer da recepção a experiência estética
poderia
interferir
na
práxis
cotidiana
e
assumir
uma
dimensão normativa baseada numa sensibilidade emergente do
prazer estético. Embora não se trate de uma comunicação
minoritária de experts, não há como deixar de notar o cunho
neo-iluminista de tal aposta.
Embora os teóricos da recepção sustentem suas teses com
base na mescla de formas e estilos pós-vanguardistas, é
patente
a
ressonância
de
tais
teses
na
valorização
do
caráter interativo das imagens eletrônicas. Devido às suas
especificidades
estas
imagens
intervenção
do
técnicas
se
(tratadas
prestam
receptor,
aos
no
mais
sugerindo
próximo
diversos
uma
capítulo),
tipos
de
comunicabilidade
ideal, a existência de uma comunidade de sentimento, isto é,
um co-pertencimento, do artista e do receptor, a um solo que
os torna aptos a receber e, portanto, a modificar e agir.
Se, entretanto, esta comunicação estética pressuposta
pelo juízo de gosto kantiano estava associada ao advento da
esfera pública burguesa, constituindo-se na contrapartida do
exercício
da
opinião
e
do
debate
genericamente
universalizado numa esfera social em que o consenso é a
88
condição ao exercício livre da política, socialização esta
indeterminável e abstrata; o que se vê hoje em dia é a total
decomposição
modelo
a
desta
uma
esfera44.
Agora,
comunicabilidade
longe
política
de
servir
pretendida,
de
a
recepção estética associa-se à fragmentação da vida pública.
A comunidade de connaisseurs transforma-se na comunidade de
consumidores.
Neste sentido, a interação possibilitada pelas imagens
eletrônicas, longe de propor uma nova práxis, aplaina os
momentos de conflitos entre a obra e a chamada realidade.
Busca-se, aqui, uma intervenção ilusória, uma vez que se
trata de uma reação já conformada pelo sistema. Trata-se não
mais de um conflito entre a estrutura pulsiva do receptor e
a coibição de tais desejos imposta pelo outro - aqui, pela
obra de arte -, mas de se fazer baixar as tensões psíquicas
dos interatores, uma vez que a obra se abre à realização ilusória - de seus desejos.
A
questão
que
se
coloca
não
é,
portanto,
a
da
comunicabilidade ou não da arte com o mundo vivido, mas do
significado desta comunicação - questão esta que não se
resolve no nível da recepção, mas no da criação -. Como
afirma Claude Amey (1991: 139):
44-
Cf. as análises de Habermas(ver seu livro sobre o Espaço
Público) e de Sennett (1988).
89
"será que o sistema sócio-cultural que estrutura o mundo
vivido é tal que a experiência estética, desejada pela
estética comunicativa, possa ser plenamente conduzida
para integrar a condição que lhe é feita por esse próprio
sistema,
ou
seja,
sem
sacrificar
essa
própria
experiência?"
Não se colocar esta questão é esquecer que a própria
recepção
é
socialmente
condicionada,
que
à
produção
racionalizada de uma obra corresponde uma outra produção
qualificada como "consumo".
Se observarmos, ainda, os códigos de leitura vigentes
para o grande público teríamos, ao assumir o pressuposto de
uma intercomunicabilidade estética, que descartar toda uma
produção
artística,
manifestações
ainda
eletrônicas,
mais
que
em
se
impõem
tratando
novas
regras
das
de
leitura. Se considerarmos o contexto cultural onde os jogos
de linguagem atuais se dão, veremos que a comunicabilidade
estética - presente nas diversas "políticas culturais" longe de propiciar uma "iluminação profana" dá-se como forma
legitimadora do establishment.
Como
resume
Otília
Arantes
(1993),
a
tatilidade
contemporânea não representa a afirmação do sujeito diante
da técnica, mas a completa imersão no objeto e anulação de
qualquer diferença do sujeito. Se o recolhimento diante da
obra de arte transformara-se, na época de Benjamin, num
modelo
de
comportamento
anti-social,
aqui,
a
tatilidade
acaba por impedir o olho de se fixar em qualquer imagem,
representando
um
novo
espaço
coercitivo
(o
que
não
90
significa, evidentemente, uma retomada nostálgica dos ideais
de uma obra orgânica nem de uma relação contemplativa e
íntima com a obra de arte).
Situar as imagens eletrônicas neste contexto significa
então visualizar as forças extra-estéticas que perpassam sua
pragmática
e
apontar-lhes
um
campo
de
atuação
possível.
Vejamos, para uma melhor configuração deste território, como
se constituem tais imagens.
91
CAPÍTULO 3
A IMAGEM E SUA REPRODUTIBILIDADE ELETRÔNICA
O surgimento da imagem eletrônica nos coloca diante de
um novo campo imagético. Trata-se, agora, de uma imagem
múltipla, variável e complexa, quer pela diversidade de suas
manifestações
concretas-
fitas
magnéticas,
instalações,
esculturas, performances, programações em tevês comerciais e
alternativas,
teleconferências,
terminais
de
videotextos,
videolasers etc., ou ainda em seu prolongamento informático
como os terminais bancários e as diversas manifestações da
computação gráfica - , quer pelas diferenças de regulagem
dos
monitores
onde
são
apresentadas
ou
ainda
por
se
apropriar, ao se tornar o medium dominante, de formas de
expressão
de
meios
muitas
vezes
avessos
ao
universo
eletrônico.
A imagem eletrônica tornou-se hegemônica- sobretudo com
o predomínio da televisão a partir dos anos 60- passando a
impor seu ritmo e linguagem às demais formas de comunicação.
A imagem eletrônica sai, assim, do âmbito específico dos
processos enunciadores de imagem para constituir-se naquilo
que Kroker chama, a respeito da televisão, de um
"gigantesco e exteriorizado sistema nervoso eletrônico,
amplificando tecnologicamente todos os nossos sentidos e
desenvolvendo funções sensórias em forma processada de
92
imagens e sons mutantes... Ela devolve nossa própria
angústia com signos simulados e hiperreais de vida" (apud
Marcondes Filho, 1991:33).
Trata-se
de
uma
imagem
onde
sua
descrição
é
sempre
problemática. Segundo Jameson (1988:105), o vídeo sempre
escapará de toda tentativa de compreensão ou decifração,
caracterizando-se
significantes.
por
Fargier
uma
incessante
(1987:52)
também
rotação
aponta
de
para
a
dificuldade de se descrever a imagem eletrônica vendo o
"ruído" como o específico do vídeo:
"Trucagens, efeitos especiais - a escrita do vídeo, no
limite, consiste nisto. Nada de grafia sem arranhão. É
preciso que isto quebre para que isto passe. Arranhar,
rasurar, obliterar, flicar, rasgar, grafitar: tudo é bom
para dilacerar. Nenhuma imagem deve sair inteira daí".
Trata-se
de
uma
imagem
onde
o
trabalho
material
é
fundamental: a trama eletrônica, luz/cor, quadro, processo
de
emissão
e
recepção.
Uma
imagem
onde
o
processo
de
enunciação carrega-se de significado. Progressão constante
ou fluxo total de materiais múltiplos.
A busca pelo específico da imagem eletrônica - feedback,
efeitos
especiais,
sobreposições
eletrônicas
etc.-
pode
levar-nos a um obscurantismo tecnicista segundo o qual o
aparecimento de uma nova tecnologia implica necessariamente
o surgimento de uma nova problemática, uma ruptura com os
modelos anteriores. A maioria das manifestações das imagens
eletrônicas,
é
preciso
reconhecer,
não
coloca
problema
algum, representando um uso meramente convencional das novas
93
técnicas. A questão é vermos se a sua presença pode ser
integrada
à
um
devir
estético,
se
diante
destas
novas
manifestações novas questões são colocadas, uma reformulação
dos conceitos que tradicionalmente norteavam a crítica e a
percepção é exigida.
Cabe aqui uma observação importante. Embora venhamos
tratando as imagens eletrônicas como um bloco monolítico, é
necessária ter em vista a diferença existente entre a imagem
videográfica e a imagem sintética - manifesta entre outros
aspectos na oposição entre a "desconstrução" causada pela
imagem videográfica (explícita na videoarte, mas latente em
todas
as
suas
estritamente
manifestações)
calculado
dos
e
o
processos
controle
geradores
total
da
e
imagem
requerido pela imagem gerada por computador. No decorrer
deste
capítulo
sintéticas
falaremos
enquanto
das
imagens
imagens
enunciadas
videográficas
e
eletronicamente,
indicando suas diferenças quando se fizer necessário.
94
3.1. IMAGENS SEM PERSPECTIVA
A imagem eletrônica- o frame- é composta por cerca de
200 mil pixels, compondo 525 ou 625 linhas45, conforme o
padrão adotado, e projetada numa superfície fotossensível e
pulverizada em milhares de retículas. A tela do monitor não
é, propriamente falando, um suporte: a imagem é sua própria
atividade, a trama eletrônica. Segundo Nam June Paik, tudo é
produzido
a
partir
de
um
entrelaçamento
eletrônico
artificialmente produzido, donde o seu interesse - e dos
videastas de uma maneira geral- pelas condições técnicas e
materias
da
fabricação
das
imagens
(Paik
apud
Fargier,
1979:12).
Estas
eletrônica
determinações
-
pelo
técnicas
menos
até
que
fazem
a
com
que
implantação
a
da
imagem
HD-TV
confira-lhe uma "alta definição" -, contrariamente à imagem
fotográfica e à cinematográfica que tornam imperceptíveis a
olho nu sua realidade constitutiva ( os grãos de prata ), se
afaste da "moral da acuidade visual", não sendo possível a
manutenção dos conceitos de clareza, nitidez e precisão. A
própria
"profundidade
de
campo",
tão
cara
aos
sistemas
baseados na perspectiva central não se sustenta no vídeo:
45-
Ou, segundo os experimentos de HD-TV no sistema NHK da
Sony, cerca de um milhão de pixels, compondo um quadro de
1125 linhas hoizontais.
95
"No vídeo, a profundidade de campo é sempre precária,
porque a partir de um certo nível de afastamento do
primeiro plano (foreground) as figuras tendem a se
desmaterializar e a se confundir com as retículas"
(Machado, 1988:46).
Tais fatos fizeram uma série de especialistas pleitear,
hiperbolicamente, a novidade destas imagens na ruptura com a
pintura, a fotografia e o cinema. Em linhas gerais, a imagem
eletrônica
ao
se
automático
(como
espectador
uma
no
afastar
do
registro
caso
da
fotografia),
disposição
em
aceitar
a
perspectivista
não
requer
perspectiva
do
como
ferramenta legítima da representação do real, desvinculandose de uma ideologia historicamente determinada e criticável.
Implícita nestas análises está a crítica da "naturalidade"
da imagem analógica.
É preciso ver que, como mostra Panofsky (1980), nem a
perspectiva
central
possível
(as
pássaro",
as
utilizadas
implantação
é
a
única
perspectivas
de
"espinha
durante
toda
representou
forma
de
"curvilíneas",
de
a
a
peixe",
história
por
da
imposição
"naturalista" de percepção46. Sua presença
46-
representação
as
de
"vôo
exemplo,
arte),
de
um
de
foram
nem
sua
modelo
dá-se como um
Panofsky mostra o quanto a noção de um espaço infinito,
constante e homogêneo é totalmente oposta a do espaço
psicofisiológico, uma vez que a percepção encontra-se unida
a determinados limites da faculdade perceptiva e a um campo
limitado e definido do espaço. O postulado da homogeneidade
do espaço também não se observa na percepção imediata, não
se pondendo falar, aqui, na identidade rigorosa de lugar e
direção. Por outro lado, a tese da constância do espaço
perspectivo contraria o fato de vermos com dois olhos em
96
constructo racional que atende as demandas sócio-culturais
do período (ao aparecimento de um "espaço sistemático", ao
desenvolvimento da ótica geométrica, ao espírito que levou
às "Grandes Descobertas", à forma republicana de governo
etc.), dando-se muito mais como "forma simbólica"47 do que
um mero problema de representação artística.
Desta forma, é preciso reconhecer, como afirma Gombrich
em Arte e Ilusão, que toda representação é convencional,
reunindo elementos de redobramento da realidade visual ( o
aspecto mirror) e múltiplos esquemas de simplificação da
representação oriundos da tradição artística ( o aspecto
map).
Mais,
se
se
nota
que
a
representação
perspectivista
central representava um "espartilhamento" da realidade nos
cânones rígidos da matemática, vinculando a imagem pictórica
às formalizações algébricas de Descartes e Desargues, entre
constante movimento, o que confere ao campo visual uma forma
esferóide(embora neste caso, como observa Aumont (1993:40),
Panofsky confunda a natureza da "imagem" retiniana, que é
apenas um estágio do processamento da informação luminosa, e
que não vemos jamais, com a imagem realmente percebida). Ver
Panofsky, 1980 e Aumont, 1993.
47-
Panofsky (ibidem, 27) utiliza esta noção, devida a
Ernest Cassirer para designar as construções intelectuais e
sociais(a linguagem, a imagem artística, os mitos, a ciência
etc.) pelas quais o homem se relaciona com o mundo e para
mostrar que cada período histórico teve sua forma simbólica
da apreensão do espaço e que esta forma é sobredeterminada
por uma concepção do visível e do mundo.
97
outros,
a
propalada
(neste
caso,
com
ruptura
as
com
imagens
as
imagens
sintéticas)
eletrônicas
torna-se
insustentável. No entanto, essa coincidência matematizante
agiu em sentido contrário às intenções renascentistas.
Retomando a noção de forma simbólica vemos que o que não
se sustenta mais hoje em dia é a noção de um real apreendido
através
do
vínculo
estabelecido
sensíveis. Se tal noção passa
com
suas
aparências
por transformações já no
século XVII, interpondo entre o real e sua representação a
individualidade burguesa48, permanecerá atuante até o século
48-
A eleição do espaço homogêneo e sistemático da
perspectiva central liga-se inicialmente, como mostrou
Foucault (1992), à idéia difundida no século XVI da relação
do microcosmos com o macrocosmos. Tal relação sustenta a
visão da natureza (do microcosmos) como um jogo de signos e
das semelhanças enquanto figura redobrada do macrocosmos.
Daí a importância de uma pintura-ciência onde a imagem,
assemelhando-se
às
estruturas
subjacentes
às
formas
sensíveis - e supondo-se uma ligação ( uma simpatia) entre
as marcas e as coisas designadas - , dava-se como uma
reduplicação, como um espelho do mundo.
No século XVII, desaparecendo o liame que ligava o
signo à coisa representada, as similitudes conduzirão,
agora, ao engano dos sentidos, sendo excluídas como
experiência fundamental do saber. Não se trata mais de
interpretar as marcas do invisível, através da leitura de
suas semelhanças, de suas simpatias, mas de compará-las e de
discenir, através do pensamento intuitivo, as identidades
verdadeiras. A imagem (ou, em sentido mais amplo, o signo)
deixa de ser uma reduplicação do mundo para tornar-se um
desdobramento deste em seu espaço. A relação imagem-mundo
dá-se, agora, no interior do conhecimento, marcando o
paralelismo entre o aparato perspectivista e o momento da
constituição do Sujeito e da singularidade burguesa (embora
tal aproximação deva ser vista com reserva, uma vez que,
como aponta Jacques Aumont (1993:217), o centramento da
representação e sua assimilação à visão humana são fenômenos
98
XIX,
período
em
que
com
a
pintura
acadêmica
e
com
o
surgimento da fotografia atinge seu "estágio supremo". É
igualmente
conhecido
representativo
no
o
esgotamento
século
XIX
deste
através
da
modelo
pintura
impressionista e de Cézanne49.
No cinema, podemos observar igual afastamento através
das vanguardas do início do século. Afastando-se da demanda
de ilusionismo que induziu o cinema nascente a seguir os
passos do teatro e da literatura consolidados no século
XIX50, nos anos 20 cineastas como Abel Gance, Jean Epstein,
Germaine
abriram
Dulac,
fogo
Eisenstein
contra
o
e
Dziga
naturalismo
Vertov
burguês
entre
outros,
e
tensões
as
melodramáticas, recorrendo a uma experimentação visual que
impedia a percepção identitária, liberando o espectador das
hierarquias impostas pelas coordenadas espaço-temporais51.
mais característicos da pintura em torno de 1800 e da
fotografia incipiente).
49- Não se trata, evidentemente, de um percurso linear. Como
mostrou Baltrusaitis (1977), métodos de deformação dos raios
visuais
da
pirâmide albertiana, as
anamorfoses,
são
temporalmente sincrônicos ao aperfeiçoamento do código
perspectivista renascentista, verificando-se desde então uma
direção "especular" e uma direção desconstrutora desta
"objetividade" visual. Estas duas tendências, não sendo
excludentes, se intercalam, observando-se a predominância,
em certas épocas, ora de uma ora de outra, ou de sua
interpenetração.
50- Repondo, portanto, o modelo de figuração do século XV
posto em crise pelas artes plásticas.
51Embora outras experimentações "anamórficas" - as do
cinema surrealista por exemplo - tenham sido realizadas no
99
Ao
tentar
"justapor
todos
os
pontos
do
universo"
(Vertov) pretendia-se criar uma brecha na relação do sujeito
com
o
espaço
da
representação
(Dubois,
1988:273-276).
A
utilização do close up, as alterações das velocidades no
processo de registro, as explorações plásticas das imagens e
dos objetos etc. fazem com que a identidade da pessoa ou do
objeto vistos seja precária e que a unidade do espaço não
passe de uma ficção (Xavier, 1984:92).
A partir dos anos 30 estas experiências são colocadas à
margem em prol da "linguagem cinematográfica institucional",
através de uma "escrita" cinematográfica que, por intermédio
da
decupagem
clássica,
impõe
uma
evolução
histórica
do
repertório que, escondendo as marcas da fratura da montagem
e
ocultando
sua
natureza
convencional,
instaura
o
ilusionismo.
Com Porter, Ince e Griffith, com a invenção do grande
plano, do campo/contra-campo, da profundidade de campo, com
a
interpretação
naturalista
dos
atores
etc
se
entra
no
universo físico e mental da narração, convertendo-a em algo
natural, admitindo-se a hipótese de que o modo normal ou
natural de se combinar as imagens é aquele que não destrói a
"impressão
de
realidade"
da
imagem
cinematográfica.
Estabelece-se, desta forma, a ilusão de que o espectador
sentido de afastar o cinema das imagens naturalistas, elas
se mostraram esporádicas e pontuais.
100
está
em
contato
direto,
sem
mediações,
com
o
mundo
representado. Subjacente a esta prática está a crença num
mundo "pleno de sentido",
captado em sua essência pela
câmera cinematográfica.
Esse movimento de refluxo não significa, evidentemente,
a volta aos ideais de uma sociedade orgânica, uma vez que as
formas de experiência vivida já haviam sido pulverizadas
pela
cidade
marcava
grande
uma
e
onde
a
"existência"
presença
dos
atomizada,
faits
divers
impedindo
a
possibilidade de narrativa. Neste sentido, este movimento se
explica tanto pelo enquadramento das vanguardas- quer pelo
fascismo italiano ou pelo realismo socialista-, quanto por
um compromisso democrático (na forma da frente popular, New
Deal)
que
volta
a
valorizar
as
formas
tradicionais
que
contam com o assentimento de amplas camadas da população -,
bem como pela tentativa de internacionalização da indústria
cinematográfica norte-americana que, não tolerando produtos
que não sejam profissionais, isto é, que não recorram aos
sofisticados
aparatos
sincronização
e
justapor,
nos
de
mixagem
filmes,
de
muitos
gravação,
som,
captação
montagem
objetos
de
etc.,
atração
póspassa
de
a
um
público não predisposto à ida frequente ao cinema (Prokop,
1986).
101
No fim dos anos 50, tais princípios tornaram-se objeto
de crítica52. Opondo-se à impressão de realidade do cinema
clássico, surge toda uma produção teórica nos anos 60 que
verá
na
manutenção
de
tal
ilusionismo
a
presença
da
ideologia burguesa. Quer sob a influência da semiologia,
quer sob influência da psicanálise lacaniana ou do marxismo
althusseriano, critica-se a idéia do espelhamento linguagemmundo (ou, no caso do cinema, imagem-realidade) em prol da
idéia de "produção de significado" pelo próprio trabalho
cinematográfico.
No centro destas críticas encontram-se as teses de que
ao
"naturalizar"
(através
da
decupagem
clássica
e
da
narração realista) a perspectiva central e a profundidade de
campo nos filmes, o cinema clássico reproduz os códigos que
definem a objetividade visual segundo a cultura dominante em
nossa sociedade, impondo a "representação" como "realidade",
daí
seu
caráter
dispositivo-cinema
ideológico
como
e
a
tese
instrumento
que,
de
tomando
o
reprodução
indefinida do sujeito centrado (aqui no sentido do sujeito
transcendental), associa o cinema clássico à manutenção do
idealismo burguês.
52-
Ver a esse respeito a polêmica entre os Cahiers du
Cinéma e a revista Cinéthique matizada por Ismail Xavier em
(Xavier, 1986).
102
Embora a identificação da representação narrativa ou da
imagem
de
perspectiva
central
(automatizada
pela
câmera
fotográfica e cinematográfica) com a ideologia burguesa seja
problemática - como já apontada por Patrick Lebel(1971),
para quem tais críticos adotam uma "concepção monolítica da
ideologia dominante" não percebendo, portanto, que é o uso
social de um aparelho que define seu papel ideológico -
e
não se dê sem as devidas mediações ( que precisariam ser
analisadas caso a caso), o fato é que estas idéias passaram
a valorizar a "crítica da representação" empreendida pela
nova
produção
cinematográfica
dos
anos
60
que
dissolve
qualquer crença no "sentido" ou no "significado". Agora, o
surgimento da imagem eletrônica ao invés de romper com os
demais meios expressivos, alia-se a eles na busca deste novo
topos expressivo.
Apesar
das
produções
tradicionais
de
vídeo
-
a
televisão broadcasting especialmente - pôr-se a serviço da
ilusão da realidade - o que representa, no universo das
imagens
eletrônicas
a
imposição
de
princípios
de
ordem
econômica, tal como se observou na constituição da indústria
cinematográfica
especificidades
-,
a
da
videoarte
imagem
tratou
eletrônica
de
explorar
as
no
sentido
de
ocupou-se
da
transgredir tal ilusionismo.
Uma
grande
parte
da
videoarte
nascente
implosão do visual através da elaboração de um verdadeiro
103
sistema desconstrutivo. Desde os primórdios, Nam June Paik e
Wolf Vostell representam esta tendência diluidora. Em 1963,
Vostell registra sobre película de 16 mm imagens de tevê
desreguladas (Tv Décollage), tornando evidente que sob uma
imagem
eletrônica
há
sempre
uma
outra
imagem
(Fargier,
1986:11). O conceito de décollage: "um princípio de produção
que faz uso da destruição e da autodestruição, ao contrário
da
colagem
intactos"
na
qual
(Vostell)
constitutiva
da
estão
revela
imagem,
reunidos
sua
com
o
objetos
preocupação
incessante
quase
com
a
sempre
trama
movimento
da
multiplicidade inerente a toda imagem eletrônica.
A ira desconstrutora de Vostell dirigia-se até mesmo
para os próprios aparelhos de tevê e sua linguagem. Numa
exposição realizada na Alemanha em 1963, Wolf destrói um
televisor na presença do público:
"Ele enrola os televisores com um fio de arame farpado,
os enterra pela metade, ele os cimenta até três quartos,
os entala num buraco da parede, num sexo de mulher, ele
os enfia na garganta seccionada de um lobo, os joga numa
cama, em cima de um monte de sapatos" ( apud Matuk,
1989:151).
Sessenta e três é também o ano em que Paik apresenta os
resultados de sua pesquisa visual baseada na eletrônica.
Trabalhando com a modulação horizontal e vertical e com
pulsos de sincronização, Paik conseguiu distorcer as imagens
transmitidas pela tevê. Mais tarde, aproxima um ímã circular
da superfície da tela da tevê alterando, desta forma, a
104
trajetória do feixe de elétrons e desregulando a estrutura
harmônica das imagens ( Distorced TV Sets ). Em 1969, Paik e
Suya Abe constróem os primeiros sintetizadores de imagem de
vídeo, mecanismo este capaz de gerar imagens sem o recurso
às
câmeras
de
registro
ótico
e
de
distorcer
imagens
já
enunciadas. O resultado destas experiências pode ser visto
em várias de suas obras como Global Grove (1973),
Tribute
to John Cage (1974) e Good Morning Mr. Orwel(1979).
Global Grove, por exemplo, mostra um comercial japonês
da Pepsi Cola, Allen Ginsberg cantando mantras, John Cage
discorrendo sobre o silêncio, Charlotte Moorman na famosa
sequência do TV-Celo. Fragmentação, simultaneidade, mudança
de escala, perda da unidade: é a multiplicação que põe fim a
unidade
do
corpo
(Fargier,
1986:
em
prol
16).
da
representação
Justaposição,
eletrônica
incrustação,
sobreposição, saturação de imagens: há sempre mais de uma
imagem em uma imagem. Há sempre várias coisas para se ver ao
mesmo tempo.
O pontilhismo da trama eletrônica e a "baixa definição"
aliados com as técnicas de manipulação da imagem fizeram do
vídeo um espaço impróprio para a manutenção da profundidade
de campo e da tradição do cinema hegemônico.
Este questionamento da noção de "representação" e das
concepções
tradicionais
de
verdade,
observado
também
em
105
outros domínios da vida cultural dos sixties53, embora tenha
produzido
aquilo
efeitos
que
radicais
pretende
genuínos,
opor-se
num
acaba
dissolvendo
emaranhado
textual
indefinido. Como afirma Terry Eagleton (1993:273):
"...é simples demais imaginar que todas as ideologias
dominantes operem necessariamente com conceitos de
verdade absolutos e auto-idênticos, que um toque de
textualidade, de desconstrução ou ironia auto-reflexiva
possa desmontar. Uma oposição assim simplista ignora a
complexidade própria dessas ideologias, que são bastante
capazes, de vez em quando, de incluir a ironia e a autoreflexão entre suas armas".
Mais do que o fim da ideologia burguesa, o que se viu
foi
a
inadequação
pressupunha
da
forma
conceitos
de
simbólica
clássica
totalidade
(que
bastante
homogeneizadores) a um contexto sócio-cultural cada vez mais
cambiante
e
instável.
Neste
sentido,
a
"ausência
de
perspectiva" da produção imagética contemporânea representa
sua imersão numa nova formação ideológica.
O fato
deste
modelo
representacional
ter-se
tornado
hegemônico a partir do surgimento das imagens eletrônicas
53-
No teatro, por exemplo, o rompimento com o espaço
representacional
ilusionista
dá-se
pela
atenção
às
convenções do palco - num retorno a Brecht e sobre forte
influência das idéias de Artaud. O teatro experimental,
representado pelas performances, happenings, teatro do
absurdo etc., buscava libertar-se da subserviência do
roteiro, caracteriza-se pelo desdém pelas marcações e pelo
texto, enfatizando o improviso, dissolvendo todo tipo de
coerência, enredo, personagens e ambientes tradicionais. Na
literatura,
experiências como a do Nouveau Roman também
marcam a ruptura com o espaço narrativo clássico.
106
transcende, desta forma, os limites de sua história interna
para aliar-se aos anseios da sociedade do período. Agora, de
modo
nada
surpreendente,
as
dissonâncias
culturais
período não sobreviveram à consolidação que se seguiu.
do
107
3.2. AS IMAGENS DISSONANTES DA VIDEOARTE
Embora a videoarte partilhe com a televisão broadcasting
as
características
eletrônica
-
entrecortada
de
ambas
pela
enunciação
requerem
presença
dos
e
uma
recepção
da
recepção
"próxima",
materiais
imagem
enunciadores
da
imagem -, não podemos esquecer que esta surge como um dos
instrumentos
de
revolta
contra
a
televisão
comercial
e
contra o sistema institucional das artes.
Nos primórdios da videoarte, vários artistas passaram a
usar
as
novas
tecnologias
-
o
portapack54
e
os
sintetizadores de imagem por exemplo - como uma crítica
social à audiência da massa e à postura dos artistas frente
à indústria de entretenimento de massa. A televisão oficial,
julgada
infantil,
é
vista
como
uma
meio
onde
nenhuma
liberdade é deixada ao espectador.
Segundo Ira Schneider (1985), a aparição dos primeiros
equipamentos de vídeo permitiu um tipo de comunicação menos
dominada
pelos
órgãos
diversos
tipos
de
tradicional
de
comunicação,
experiências.
representava,
desta
A
mais
alteração
forma,
a
aberta
da
aos
imagem
tentativa
de
desregular os mecanismos de visão deste público e lhe propor
um novo tipo de imagem (Bloch, 1986:22).
54-
Marca do primeiro gravador portátil de meia polegada
fabricado pela Sony.
108
Artistas como Frank Gilette, Ira Schneider, Paul Ryan,
Dan
Graham,
Peter
interessantes
Campus
trabalhos
e
neste
Bill
Viola
sentido.
realizaram
Paul
Ryan,
por
exemplo, apresentou em TV as a creative medium,a primeira
mostra coletiva de videoarte organizada em 1969, na Howard
Wise
Gallery
de
Nova
Yorque,
um
dispositivo
no
qual
o
visitante dirigia-se a um confessionário e gravava seu rosto
durante
a
confissão.
Ao
terminar,
ele
circundava
o
confessionário e sentava-se no lugar do padre para assistir
à
gravação
de
sua
própria
confissão.
Frank
Gilette
apresentou na mesma exposição seu Wipe Cycle. Através do uso
do feed-back, Gilette fazia com que o espectador tivesse uma
experiência visual de si mesmo no mesmo instante que sua
imagem era captada por uma câmera e também oito e dezesseis
segundos depois (Matuk, 1989: 166-167). Bill Viola, em sua
instalação He Weeps For You, fazia com que o espectador se
visse projetado numa tela deformadamente por sua reflexão em
uma gota d'água; a gota, ao cair devido o seu próprio peso,
desfazia a imagem até que se formasse uma nova gota e uma
nova
imagem
Manhattan
(Bonet,
is
an
1979:
Island,
104).
Ira
coloca
24
Schneider,
em
monitores
seu
e
6
videogravadores dispostos circularmente exibindo visões da
cidade de diferentes pontos de vista: as partes alta, baixa
e
central
transporte.
de
O
Manhatan
tomadas
espectador,
por
além
diferentes
de
ter
um
meios
de
panorama
109
hiperconcentrado e virtual da ilha, ouvia uma justaposição
de sons aleatórios.
Várias outras mostras (com a participação de artistas
como Acconci, Fox, Naumam, Oppenheim etc.) foram organizadas
no período. Fica a impressão recorrente em todas as obras de
que
se
trata
de
uma
arte
que
tira
proveito
de
uma
manipulação da grande comunicação televisual. Possibilitando
uma interferência direta no meio, lidando com pontos de
vista distintos, vivenciando uma temporalidade diversa etc.
A
"guerrilha
crescimento
de
televisual"55
vários
foi
grupos
também
observada
independentes
-
pelo
Raindance,
TVTV, People's Video Theatre, Videofreex, Global Village,
Paper Tiger Television etc. Produzindo vários "Sreet tapes",
suas fitas eram espontâneas, arbitrárias e frequentemente
caóticas,
revelando
uma
fascinação
pelo
simples
ato
do
registro. Grupos como Videofreex procuram estabelecer uma
relação
entre
estabelecido,
registrando
as
o
movimento
percorrendo
de
o
manifestações
contracultura
país
dos
no
seu
movimentos
e
o
poder
"video-bus",
alternativos
Termo aqui utilizado em referência ao livro Guerrilla
Television, publicado em 1971 de autoria de M. Shamberg,
que, imerso no espírito da contracultura do período e
fascinado com as qualidades do novo meio, vê os portapacks,
a tevê a cabo e os videocassetes constituindo uma
alternativa ao papel alienador dos mass-media na sociedade
americana. Tal termo foi utilizado pelo autor para
caracterizar a proliferação de grupos independentes de
vídeo-artistas que se seguiu a 1969.
55-
110
com as mídia dominantes. Raindance, por sua vez, produz
irônicos
comentários
complexidade
das
sobre
relações
o
de
estado
poder
da
sociedade
manifestadas
na
e
a
vida
cotidiana, através da justaposição dos mass media com as
mídia alternativas, explorando os pontos de junção entre a
televisão, a arte e a mudança social.
As intensas movimentações sociais e o idealismo extremo
dos anos 60 formaram um solo propício para que este novo
meio,
sem
nenhuma
tradição
no
sistema
das
artes,
contemporâneo das performances, da arte conceitual, da land
art ou da body art, fosse visto como um meio privilegiado
para se questionar os mass media,o tradicional objeto de
arte, e o modernismo institucionalizado ( alguns autores
como Raymond Bellour e Fredric Jameson o vêem como já sendo
um
produto
pós-moderno).
O
vídeo
constitui-se,
desta
maneira, numa forma ideal para se colocar em prática as
teorias
de
Allan
Kaprow,
Merce
Cunninghan,
John
Cage
e
Robert Rauschenberg que desejavam suprir as fronteiras entre
as
diferentes
artes,
rompendo
como
a
especificidade
e
autonomia da obra.
Estes
ensejos
vanguardistas
mostraram-se,
desde
o
início, ambíguos. A relação da videoarte e dos grupos de
111
"guerilha televisiva" com a macrotelevisão56 foi , a um só
tempo, de repulsa e atração. Contrariando o espírito das
vanguardas do início do século, a "guerrilha televisiva"
mostrava-se muito mais "ecológica" que política. Como afirma
o autor do termo:
"Muitos pensam que "radical" é sinônimo de político,
porém não é o nosso caso. Nós cremos em soluções póspolíticas para os problemas culturais, e essas soluções
são radicais em sua descontinuidade com o passado. Assim,
nosso emprego desse adjetivo serve para desviar as
pessoas de um antigo contexto (o político) para o nosso"
(Shamberg, 1971).
A
ambiguidade
destes
novos
meios
pode
ser
observada
através da discussão entre Enzensberger e Baudrillard acerca
do
caráter
emancipatório
ou
regressivo
dos
meios
eletrônicos. Enzensberger, em seu ensaio Elementos para uma
teoria
dos
meios
de
comunicação,pretendendo
fornecer
elementos para uma "teoria socialista dos media", vê os
novos
meios
classes
eletrônicos,
dominantes,
atualmente
desviados
de
sob
seu
o
monopólio
proveito.
das
Nestes
termos, atribuindo às classes dominantes a redução destes
meios
de
comunicação
a
simples
meios
de
distribuição,
caberia à sociedade socialista recuperar
aos media sua
estrutura
reencontrando,
56-
"fundamentalmente
igualitária",
Termo utilizado por René Berger
televisão
convencional:
estatal
privada/comercial (oligopolista).
para se referir a
(monopolista)
ou
112
desta forma, sua autenticidade, sua vocação de comunicação
democrática ilimitada:
"Pela primeira vez na história, os meios de comunicação
possibilitam a participação maciça em um processo
produtivo social e socializado, cujos meios práticos se
encontram nas mãos das próprias massas. Uma utilização
desse tipo conferiria autenticidade
aos
meios
de
comunicação (que até agora levam injustamente esse nome).
Na sua forma atual, técnicas como a televisão e o cinema
não estão a serviço da comunicação, mas até lhe são
obstáculos" (1978:49-50).
Reinvestidos
de
sua
autenticidade,
os
novos
meios
eletrônicos conseguiriam destruir os métodos privados de
produção dos intelectuais burgueses, devido precisamente a
suas potencialidades progressivas, a saber, sua estrutura
coletiva
que,
eliminando
do
isolamento
os
participantes
individuais, possibilitaria sua auto-organização, rompendo,
em
última
instância,
a
oposição
entre
produtores
e
consumidores.
Em
sua
critique
crítica
de
a
Enzensberger,
l'économie
politique
contida
du
em
Pour
une
Baudrillard
signe,
reprova a atribuição de um destino revolucionário aos novos
meios (tal fato se daria pela ilusão de se atribuir um
"valor de uso" social anterior e fundamentalmente oposto ao
"valor
de
burguesa57).
57-
troca"
Vendo
capitalista
a
e
arquitetura
investido
atual
dos
da
ideologia
media
como
Para Baudrillard, a utilidade imediata não antecede a
possibilidade da troca, mas é sua consequência. O valor de
uso é justamente a forma metafísica de que o valor de troca
se reveste, antes sua intensificação do que o seu oposto:
113
antimediadora,
impossibilitando
qualquer
possibilidade
de
troca, isto é, de uma resposta que quebre a unilateralidade
da
comunicação,
Baudrillard
aponta
para
a
ilusão
estratégica de se crer num desvio crítico dos novos meios
eletrônicos. A ideologia dos media está nesta arquitetura,
ao nível da forma.
A
única
colocar
alternativa
todo
valor
à
capacidade
oposicional
a
do
capitalismo
seu
serviço
é
de
uma
resistência ao conceito do valor mesmo, aqui assumindo o
nome
de
"troca
simbólica".
O
simbólico
é,
desta
forma,
assumido como um ato de troca que põe fim a todo tipo de
disjunção,
uma
indissolúvel.
reconciliação
Agora,
revolucionária dos
para
media,
das
além
oposições
de
numa
qualquer
tratar-se-ia
de
sua
unidade
recuperação
destruição
enquanto tais:
"Isto não implica liquidação, tal como a crítica radical
do discurso não implica a negação da linguagem enquanto
material
significante.
Mas
implica
certamente
a
liquidação de toda sua estrutura atual,funcional e
"Se o sistema do valor de uso é produzido pelo sistema do
valor de troca como sua própria ideologia - se o valor de
uso não tem autonomia, sendo apenas o satélite e o álibi
do
valor
de
troca,
se
bem
que
combinando-se
sistematicamente com ele o quadro da economia política,
já não é possível pôr o valor de uso como alternativa ao
valor de troca e, portanto, nem sua "restituição" no
final da economia política, sob o signo da "liberação das
necessidades" e da "administração das coisas", como
perspectiva revolucionária" (1972: 167-168).
114
técnica, de sua forma operacional,
se assim se pode
dizer, que reflete por toda parte a sua forma social. No
limite, certamente, é o próprio conceito de médium que
desaparece, que deve desaparecer: a palavra trocada, a
troca recíproca e simbólica nega a noção e a função de
médium, de intermediário" (Baudrillard, 1972: 218).
Ainda que se dispense todos os matizes apocalípticos
envolvidos
em
tal
posição58,
não
podemos
desprezar
a
relevância da crítica no "destino" revolucionário dos novos
meios, nem o fato deles representarem a operacionalização da
ideologia
em
nossa
sociedade.
Ainda
que
se
advogue
a
possibilidade de transformações - mesmo limitadas - e usos
não regressivos dos meios eletrônicos, não podemos deixar de
concordar que a crença nos usos emancipatórios do feed-back
(transformando-os em meios de comunicação) contribui para
reproduzir aquilo a que se opõe59.
Longe de representar uma oposição à estrutura de poder
dominante,
a
"reversibilidade"
formal
destes
meios
significa uma mudança de estatuto do próprio sistema que,
agora, passa a prescindir do controle orwelliano. Portanto,
a euforia cega nos avanços tecnológicos (em sintonia com a
exaltação dos feitos da 3ª Revolução Tecnológica) aliada ao
teor
antipolítico
artistas
58-
e
de
teóricos
seus
manifestos
envolvidos
com
acabaram
os
novos
levando
meios
Em nossa conclusão discutiremos mais detalhadamente tal
posicionamento e suas consequências para uma análise crítica
dos meios eletrônicos.
59- Voltaremos a isso ao tratar da "interatividade" destes
meios.
115
eletrônicos a subestimar o poder incorporador da indústria
de comunicação.
Em
sintonia
com
as
mutações
da
época
e
com
a
institucionalização das mídia, em meados dos anos 70, os
grupos
de
videoarte
Stephen
"guerillha
se
vê
Burk,
televisiva"
incorporada
Vasulka,
são
pelo
Etra
e
dissolvidos
a
Assim,
establishment.
Emshwiller
e
constróem
seus
sintetizadores com a ajuda das grandes cadeias de televisão
(vários laboratórios de experimentação são montados dentro
das emissoras). O departamento experimental da KQED-TV de
San Francisco realiza experimentos de manipulação eletrônica
de materiais pré-gravados e de exploração estética da imagem
videográfica através da colaboração de artistas de diversas
áreas de expressão: William Allen, William Brown, Richard
Feliciano,
Loren
Sears,
Jepson etc. A WGBH-TV
apresentação
de
algumas
Bill
Roarty,
Stephen
Beck,
W.
de Boston foi a responsável pela
inovações
em
relação
à
produção
standard transmitindo programas experimetais como The Medium
is the Medium, em 1969, Video Variations, em 1972 e Video:
The New Wave, em 1973. A WNET-TV de New York, concentrandose na área documental e videoartística, conta com a presença
de
nomes
Douglas
como:
Davis,
Ed
Bill
Emshwiller,
Viola,
William
Joan
Jonas
Gwin,
N.J.
Paik,
entre
outros.
Na
década de 70, fundações como a Rockefeller Foudation e a New
York State Council on the Arts, distribuem fortes somas a
116
artistas
e
organismos
Syracuse,
Bonino,
de
vídeo.
Everson
Museus,
etc.)
e
galerias
canais
(MOMA,
oficiais
(especialmente o canal 13 de New York) realizaram mostras de
vídeo60.
Deste
contato
surgiram
obras
de
incontestável
cunho
inovador: Em 1979, por exemplo, Doug Hall, Chip Lord e Jody
Proctor, acolhidos por uma cadeia de televisão local no
Texas, produzem Amarillo Tapes, uma fita que questiona a
realidade do jornal televisivo revelando, segundo Bellour
(1986:92),
o
arbitrário,
o
falso
natural
e
a
paranóia
invisível do código. Bill Viola exibe em novembro de 1983,
na WGBH-TV,
seu Reverse Television, onde quarenta e quatro
pessoas apareciam diante da câmera, durante um minuto cada,
em silêncio, sem ser anunciadas, nem localizadas. Anthony
Muntadas,
com
Media
Ecology
Ads,
exibe
no
espaço
dos
comerciais, imagens que levam a uma reflexão sobre o tempo
televisivo.
No
primeiro
plano,
uma
linha
clara
corta
horizontalmente a tela escura. Uma chama, à esquerda, se
acende e a consome. Quando a chama termina de consumir a
linha,
o
tape
termina
(5
minutos
e
quarenta
segundos).
Durante este tempo aparece, da direita para a esquerda, um
texto sobre o tempo de Sang-Tan, um escritor zen do século
II.
60-
Em
1987,
Anthony
Muntadas
e
Hanky
Ver a esse respeito Bonet et all, 1980 e
Bull
editam,
no
Sturken,1988.
117
Canadá,
Cross
Cultural
Television.
Utilizando
apenas
a
justaposição de imagens de tevê captadas em diversos países,
são apresentados segmentos dos sinais de identificação das
redes, das vinhetas e dos apresentadores de telejornais, das
reportagens
do
mercado
financeiro,
de
informações
metereológicas. Num dos segmentos, apresentam-se imagens do
arcebispo Desmond Tutu sem edição e, em seguida, o mesmo
seguimento
editado
pela
rede
americana
CBS
(apud
Matuk,
1989: 177-180).
Não
se
tratava
mais,
entretanto,
como
na
videoarte
nascente, de se propor o portapack como algo necessariamente
radical e esquerdista, signo da esperança revolucionária de
outorgar ao público televisivo o poder de fazer televisão.
Diante
dos
aspectos
financeiros,
de
controle,
de
distribuição etc. envolvidos na arte eletrônica, o que estas
experiências assinalam, além de sua ambiguidade de origem a um tempo radical e cooptada61 - , é uma nova forma de
relacionamento entre a Arte e o establishment.
61-
Ou seja, pode-se aderir ao fluxo incessante da rede
televisiva, cair-se nas armadilhas ideológicas do sistema
contribuindo-se, através do respaldo estético, para sua
legitimação social, ou pode-se resistir a ele, levá-lo a uma
aceleração autofágica, denunciar o aleatório do "verdadeiro"
e o verdadeiro do "falso".
118
3.3.
O OCASO DA CÂMERA
Em entrevista a Jean-Paul Fargier, Nam June Paik diz não
se
questionar
a
propósito
da
imagem,
mas
exclusivamente
sobre seu processo: "não é a imagem que me interessa, mas o
processo de sua fabricação" (apud Fargier, 1979:12). Nestes
termos, a imagem eletrônica não passa do retalhamento de um
campo visual em um campo reticulado que pode ser varrido por
um
feixe
de
elétrons
e
cuja
capacidade
para
produzir
eletricidade varia de acordo com a quantidade de luz que
incide sobre cada um de seus pontos (Machado,1988:41). Para
a imagem eletrônica o registro ótico, isto é, a captação dos
efeitos
luminosos
de
um
objeto
externo
por
um
suporte
fotossensível, é menos importante que a trama eletrônica.
Através
de
modulações
eletrônicas,
pode-se
distorcer
as
imagens do mundo externo até a abstração (Distorced TV Sets)
ou
mesmo
gerar
imagens
inexistentes
através
de
sintetizadores de imagens. Se a videoarte explorou ao máximo
tais características, com a chegada dos processos digitais
de enunciação de imagens o ocaso da câmera dá um salto
definitivo.
Composta de pequenos segmentos - pixels - aos quais são
atribuídos
valores
numéricos,
a
imagem
sintética
se
apresenta como uma matriz numérica sobre a qual se exerce um
controle
total,
podendo-se
conservá-la,
reproduzi-la,
119
alterá-la parcial ou totalmente pela simples manipulação de
seus
números.
objetos
do
Não
é
mundo,
mais
mas
a
as
incidência
da
matemáticas,
luz
os
sobre
os
índices
de
refração, de reflexão, da resistência dos materiais etc. que
trabalham. A imagem numérica tem como suporte os números e
não a matéria. Abre-se com isto uma nova discussão sobre o
estatuto da imagem e sua relação com a chamada realidade.
As imagens formadas a partir do registro ótico foram
tidas
durante
muito
tempo
como
sentido
indiciais(no
de
Charles Peirce, isto é, no sentido em que o índice resulta
de uma relação natural com seu referente). A fotografia, ao
guardar um traço da ação da luz sobre determinados objetos,
isentaria-se
de
dar
sua
interpretação
sobre
determinado
acontecimento, isolando-o (paralisando-o) dos demais e dando
provas de sua existência.
Esta
visão
teve
longa
duração
e
foi
partilhada
por
teóricos como Roland Barthes e Susan Sontag, por exemplo.
Para o primeiro, a fotografia é uma emanação do referente,
uma espécie de vínculo umbilical que liga o meu olhar ao
corpo
da
coisa
fotografada
(1984:121).
A
fotografia
transmite, para Barthes, o real literal e, se é certo que a
imagem não é o real, ela é seu analogon perfeito (1961:1011). Para Susan Sontag, o que diferencia a fotografia das
outras
imagens
(como
a
pintura)
é
o
fato
dela
ser
um
120
vestígio material, como uma pegada ou uma máscara fúnebre,
do objeto fotografado (1981: 148).
Se
esta
imbricação
entre
a
fotografia
e
o
objeto
fotografado parece ser a marca distintiva desta em relação
às demais artes miméticas, tal amálgama só foi possível,
segundo a análise corrente, devido ao uso que a fotografia
faz da construção perspectivista e devido a "automaticidade"
de seu registro, capaz de ultrapassar a intencionalidade do
fotógrafo. Assim entendida, a imagem fotográfica seria o
coroamento
da
tentativa
de
se
representar
o
mundo
objetivamente, tentativa esta que encontraria suas origens
na pintura renascentista.
A base de tal visão [e o motivo de sua impropriedade]
reside menos no automatismo da construção perspectivista e
mais
na
leitura
positiva
que
o
século
XIX
faz
de
seus
procedimentos62. O abandono da postura segundo a qual os
seres
poderiam
ser
apreendidos
como
combinações
de
estruturas visíveis em prol da noção de organização, isto é,
de uma estrutura [interior aos próprios seres] de ordem
superior à qual se refere tudo o que se conhece nos seres
62-
Se a eleição da representação perspectivista associa-se,
ao menos a partir do séc. XVII, à crença de uma ligação
entre as aparências e as coisas designadas e no conhecimento
das estruturas subjacentes ao visível mediado pelo sujeito
cognoscente,
tal
recurso
mostra-se
impróprio
à
"objetividade" requerida pela imagem fotográfica.
121
(Jacob, 1985:84), operada na segunda metade do século XVII,
foi lida, no século XIX, como a imposição de um universo
articulado onde não é mais a imaginação ou a concordância
entre
o
objeto
racionalidade
e
já
o
sujeito
vem
que
inscrita
dá
na
ordem
ao
estrutura
mundo;
mesma
a
da
natureza, podendo, portanto, o sujeito eclipsar-se diante
desta realidade.
Transportada para a estrutura das coisas, a ordem antes
imposta pelo "olho arbitrário do artista" será signo de seu
eclipse. Agora, segundo o espírito positivista da época, se
exige, tanto da ciência como da arte, um apego ao certo
e
indubitável, ao determinado e útil; exatidão científica e
reprodução fiel da realidade na obra de arte. Tal exigência
será vista como realizada pela Fotografia.
Ao
tornar
veracidade,
a
imagem
fotográfica
o
grande
modelo
de
ela poderá substituir o próprio real, fazendo-
se com que se trabalhe sobre essas imagens como se estivesse
trabalhando sobre a própria natureza (trata-se do conceito
de modelo científico).
primeiro
momento,
em
A ilusão de tal visão reside, num
confundir
um
modelo
geométrico
(a
perspectiva linear) com o modelo perceptivo do olho humano
(a perspectiva naturalis)63, naturalizando aquilo que não
passa de constructo arbitrário, concedendo, desta forma, à
63-
Cf. Jacques Aumont( 1993: 37-47)
122
analogia papel de
perspectiva
modelo de toda representação. Ora, nem a
central
é
o
único
sistema
cientificamente
legítimo, nem a imagem mais analógica que se possa conceber
representa aquela que fornece o máximo de informação sobre a
realidade.
A
subjacentes,
vinculação
passíveis
entre
de
o
ser
real
e
suas
apreendidas
estruturas
por
modelo
um
representativo, torna-se ideológica, no sentido preciso do
termo,
ao
ocultar
sua
parcialidade
e
contextualidade
histórica.
O
que
escapa
a
Barthes
e
aos
demais
defensores
do
caráter essencialmente denotativo da fotografia, é que a
passagem
da
natureza
à
imagem
fotográfica
é
uma
transformação (no sentido matemático do termo). A natureza
tornada
imagem
se
constitui
em
signos
substancialmente
diferentes do objeto que ela dá a ler. A natureza tornada
imagem
dá-se
numa
organização,
numa
estruturação,
numa
pigmentação, numa clareza só possível pela refração que a
distorce;
constituindo-se,
necessariamente,
numa
mensagem
segunda. Neste sentido, como afirma Arlindo Machado (1984),
a
imagem
fotográfica
tradicionais,
é
devendo,
tão
simbólica
igualmente,
quanto
ser
as
imagens
decifrada
pelo
leitor.
Ao observar uma foto, o leitor não se depara com seu
significado - mas com um feixe de teorias (óticas, físicas,
químicas etc.) tornadas concretas pela imagem. Se assim
não
123
o
parece
é
porque,
constitutivos
imagem),
a
não
se
ciência
devido
darem
em
ao
à
fato
visão
questão
se
de
seus
(alta
processos
definição
apresenta
como
da
uma
linguagem tão objetiva que é a própria natureza.
A "visão fotográfica" do mundo pressupõe a possibilidade
de um recorte imobilizador da realidade. Para ser apreendido
na foto, os primeiros fotógrafos submetiam as pessoas a
verdadeiras torturas de imobilidade, servindo-se de "appuietête" e de diversos instrumentos para sustentar o corpo:
"A fotografia transformava o sujeito em objeto, e até
mesmo, se é possível falar assim, em objeto de museu:
para fazer os primeiros retratos (em torno de 1840), era
preciso submeter o sujeito a longas poses atrás de uma
vidraça em pleno sol; tornar-se objeto, isso fazia sofrer
como uma operação cirúrgica; inventou-se então um
aparelho, um apoio para a cabeça, espécie de prótese,
invisível para a objetiva, que sustentava e mantinha o
corpo em sua passagem para a imobilidade: esse apoio para
a cabeça era o soco da estátua que eu ia tornar-me, o
espartilho de minha essência" (Barthes, 1984:26-27).
Embora o desenvolvimento tecnológico tenha diminuído a
frações de segundos essa "tortura de imobilidade", permanece
a mesma intenção. Se a Fotografia podia ser vista como cópia
fiel da realidade é porque se supunha uma natureza uniforme
e operável. Compartilha-se a fé em um mundo em que tudo
poderia ser descrito e reproduzido em termos de exemplos
concretos.
Se
A.
Comte
podia
pregar
uma
submissão
à
observação do real, do certo e indubitável, era porque se
supunha
uma
certa
regularidade
dos
fenômenos
naturais:
sempre haveria possibilidade de se comprovar as afirmações
124
da
ciência,
remetendo-as
aos
fenômenos
naturais
de
onde
estas emergiram.
A hegemonia das imagens eletrônicas - e a "visão pósfotográfica" do mundo - representa não só um rompimento com
o
registro
ótico,
mas
uma
nova
forma
de
apreensão
e
compreensão do mundo. Contrariando a crença na apreensão
"objetiva" da realidade, a teoria einsteiniana demonstra que
os conceitos de espaço e de tempo, bem como os de forma,
dimensão, cor etc. são
nossa
consciência64
formas de intuição indissociáveis de
(
Virilio,
1994:42),
restando-nos,
portanto, acerca da realidade externa, somente um conjunto
de informações conformes à re-presentação em nossas imagens
mentais. Agora, e a própria proliferação dos "pontos de
vista" fotográficos já o comprova, o princípio claro de
ordenação dos acontecimentos e de suas provas externas estão
comprometidos.
Se a imagem fotográfica teve a pretensão de "fixar" a
realidade
64-
externa
num
suporte
materialmente
sensível,
a
Embora a física quântica refira-se, evidentemente, às
propriedades das partículas elementares, Virilio faz, a
partir das idéias de Max Planck, Heisenberg e Louis de
Broglie, extensões ao nível macroscópico. Assim como, do
ponto de vista quântico, as relações de incerteza nos
impedem de conhecer, ao mesmo tempo a figura e o movimento,
haveria, na escala macroscópica a mesma crise das dimensões
físicas. O quadro "espaço-tempo", tido como algo dado a
priori e passível de descrição através das coordenadas
cartesianas é desbancado pelo indeterminismo dos atuais
modelos de representação do mundo (Ver Virilio, 1993).
125
ausência de suporte da imagerie contemporânea representa, ao
contrário, a impossibilidade de se fixar qualquer verdade
única. Trata-se, agora, não da monumentalidade de um passado
que
existiu,
mas
da
própria
abolição
do
princípio
de
verdade. Às questões do verdadeiro e do falso superpõem-se
as da verossimilhança e da inverossimilhança. A fronteira
entre
o
verdadeiro
e
o
falso
torna-se
cada
vez
mais
impalpável. A câmera fotográfica não fixa mais uma verdade
insofismável, mas apenas encenações. As imagens não remetem
mais a uma realidade que lhe é exterior, mas ao seu próprio
universo. A chamada "realidade", aqui, não é mais um dado
objetivo
e
exterior
aos
processos
de
sua
enunicação.
A
efetividade, a realidade não é mais pensada enquanto atual,
mas enquanto virtual65- uma realidade segunda, equivalente a
um estado de paramnésia, artificial e puramente ficcional.
Detendo-nos, entretanto, no campo das especificidades
técnicas das novas imagens, a questão colocada não é tanto a
da
substituição
da
realidade
pela
simulação.
O
virtual
informático não é aquilo que se opõe ao real; seu modo de
existência (imaterial) é o da potência, do possível- desde
65-
Em Virilio, assim como em Baudrillard, a noção de
virtual refere-se menos às propriedades técnicas de
enunciação
das
imagens
que
ao
processo
social
de
desmaterialização do real implicando, desta forma, numa nova
forma de apreensão e compreensão do mundo. Neste sentido, as
novas tecnologias da imagem representam não o ponto de
partida, mas o coroamento deste processo.
126
que as condições de atualização sejam realizáveis1. Em sua
utilização
apresentados
infográfica,
segundo
os
objetos
determinada
virtuais
conformação
não
são
visual,
mas
enquanto esquemas cognitivos, uma das formas de percepção
deste real regulado segundo seus parâmetros funcionais.
Neste
sentido,
o
virtual
envolve
uma
camada
de
possibilidades não apenas imaginadas, dá-se como um projeto
de
extensão
capacidade
destas
da
de
realidade.
visualização
potencialidades,
A
inovação
antecipada
propondo,
desta
talvez
e
resida
na
experimentação
forma,
um
novo
relacionamento entre o objeto e sua imagem e propiciando a
co-presença do real e do virtual.
Ao quebrar a dependência da imagem de um objeto que lhe
antecedia, abriu-se a possibilidade do nascimento de objetos
híbridos, situados num espaço de não-separação entre objeto
e imagem66. Os experimentos recentes no campo da realidade
virtual se dão no sentido de permitir teoricamente todas as
66-
Ao abolir a relação biunívoca entre o real e sua imagem,
abre-se espaço para o surgimento de figuras em permamente
mutação, fluidas e escorregarias, para uma hidridização:
Hibridização entre as próprias formas constituintes da
imagem sempre em processo, entre dois estados possíveis diamórficos, meta-estáveis, autogerados. Hibridização
entre todas as imagens, inclusive as imagens óticas, a
pintura, o desenho, a foto, o cinema e a televisão, a
partir do momento em que se encontram numerizadas.
Hibridização entre a imagem e o objeto, a imagem e o
sujeito, - a imagem interativa é o resultado da ação do
observador sobre a imagem - ele se mantém na interface do
real e do virtual, colocando-as mutuamente em contato
(Couchot, 1993: 46-47).
127
passagens entre o real e o virtual. Cada vez mais, toca-se
"realmente" no virtual e se é tocado pelo efeito virtual.
Esta
proximidade
entre
o
real
e
o
virtual
não
está
isenta de contradições e apresenta importantes conseqüências
tecnológicas, psicológicas e ideológicas, como, por exemplo,
as diversas formas de esquizofrenia ou de solipsismo que,
como
Jameson
apontou
(ver
p.8
e
seguintes),
sanciona
a
demanda por estes objetos virtuais. Tomando-se estas imagens
por referência, corre-se o risco de se tomar esta pseudorealidade, mais plástica e mais sedutora que a
original,
como a própria realidade.
Se podemos associar tal processo com a lógica cultural
do
capitalismo
deve-se,
contemporâneo
justamente,
à
(ver
cap.2,
ambigüidade
2.4),
deste
tal
fato
princípio
de
desrealização. Se as imagens eletrônicas tiveram o mérito de
questionar
as
concepções
tradicionais
de
imagem
e,
como
vimos, da própria noção de verdade, absoluta e monológica;
trata-se, agora, da camuflagem daquilo que realmente importa
ao status quo. Como afirma Paul Virilio (1994), a estratégia
decisiva
da
"logística
da
percepção"
contemporânea
é
a
indeterminação entre o atual e o virtual. Pode mais quem
dissimula melhor.
Como
vimos
recentemente
com
a
Guerra
do
Golfo,
a
estratégia agora reside sobre o princípio de indeterminação
das armas. Mais do que a hegemonia na região, importava aos
128
Estados
Unidos
mostrar
ao
mundo
os
"milagres"
da
alta
tecnologia, o sucesso dos "aviões invisíveis", dos patriots,
dos satélites espiões, dos lasers e computadores, marcando
presença como a única potência a deter o monopólio da força
na "nova ordem" mundial.
A
utilização
midiática
da
guerra,
a
veiculação
da
"operação cirúrgica", da precisão tecnológica com que os
alvos eram atingidos, a identificação do campo de batalha
com um show de luzes e cores, a supressão dos mortos e a não
veiculação dos protestos contrários à guerra, demonstraram o
quanto os militares americanos aprenderam a lição do Vietnã,
passando a valer-se do Poder das imagens.
O campo de propagação das ondas hertzianas tornou-se
também um campo de batalhas (Santos, 1993:160). Por parte
dos
Estados
mortos
e
as
Unidos,
as
informações
imagens
sobre
dos
o
soldados
número
de
americanos
soldados
e
armamentos utilizados foram censurados. Sadam Hussein, por
sua vez, impediu a divulgação de imagens das baixas civis e
militares. O cerceamento do acesso às antenas transmissoras,
quer devido ao recurso do corte de energia elétrica, quer
através
da
"queima"
das
faixas
de
onda
com
poderosas
interferências eletromagnéticas (Machado, 1992), demonstrou
a militarização do espaço eletromagnético e um dos paradoxos
mais marcantes das tecnologias de comunicação de nossa época
- a Guerra transmitida "ao vivo" transformou-se num jogo de
129
desinformação. Percebe-se, assim, o quanto os diversos meios
de enganar, distorcer, desvirtuar e dissimular tornam-se
estruturais em nossa sociedade. O fato é que, por trás da
fascinação tecnológica reside a lógica da destruição - dos
significados,
diferenças
da
etc.
verdade,
A
das
repetição,
cidades,
elevada
das
à
vidas,
das
potência,
de
Auschwitz, Hiroshima, Vietnã e demais vítimas silenciadas.
Agora que "a política do questionamento da verdade é tão
ambivalente quanto o estatuto da própria verdade nas nossas
sociedades"(Eagleton, 1993:274), urge estabelecer uma ética
da
imagem
virtual
que
recupere
o
poder
politicamente
explosivo dos fatos verdadeiros e que utilize a virtualidade
não
como
um
apagamento
do
real
mas
como
sua
ascultação
íntima. Como afirma Philippe Quéau:
"O desenvolvimento das redes virtuais nos exigirá uma
atenção crescente a problemas ainda insuspeitados. Os
mundos virtuais dentro dos quais poderemos mergulhar e
navegar
darão
um
aspecto
eminentemente
realista,
palpável, tangível, e aparentemente crível, por exemplo,
a qualquer tipo de simulação. Será imprescindível
instituir critérios, objetivar os "pontos de vistas",
situar com precisão os campos de expressão, os lugares de
onde se fala, estabelecer as bases de uma ética da imagem
virtual. Quanto mais estivermos imersos na imagem, mais
deveremos aprender a desconfiar desta imagem, e evitar de
nos deixar absorver pela pseudo-evidência dos sentidos"
(1993: 97).
130
3.4. A SIMULAÇÃO DAS IMAGENS
A virtualidade das imagens eletrônicas impõe-lhe um novo
estatuto:
não
mais
simulação67.Ao
procuram
re-apresentação
a
contrário
apreender
o
dos
sistemas
mundo
com
do
mundo,
mas
sua
representativos
que
precisão
e
fineza,
a
simulação visa criar as condições de produção de um "pequeno
mundo"
-
funciona
modelo.
um
como
Ou
réplica
seja,
um
sistema
computacional
da
abstrato
que
estrutura,
do
comportamento ou das propriedades de um fenômeno real ou
imaginário
(Machado,
1993:117).
A
modelização
funciona,
desta forma, como uma condensação, uma redução formal da
realidade.
Trata-se,
agora,
do
domínio
matemático
e
da
antecipação simbólica do real. Modelizadas matematicamente
ou em programas informáticos, apenas em um segundo momento,
e de uma maneira parcial e relativa, elas podem oferecer-nos
uma forma sensível do modelo que a engendrou, uma
A
noção
de
simulação
liga-se
à
"imagem".
experimentação
das
performances destes modelos, isto é, à experimentação de sua
coerência interna e de sua confrontação com o contexto real:
"Formalmente se trata de explorar o "espaço de fases" de
todos os estados possíveis do modelo. Aqui, exploração
quer dizer pesquisa das propriedades encontradas na
67-
Não se trata, aqui, de retirarmos o conceito de
simulação da categoria da representação, mas de marcarmos a
diferença entre dois registros: o ótico e o sintético e,
destarte, entre dois modelos perceptivos.
131
reserva das relações algébricas ou lógicas existentes
entre
os
diferentes
parâmetros
e
os
diferentes
"observáveis". O modelo se comporta como um "pequeno
mundo" do qual se trata de traçar o mapa e observar a
'flora' e a 'fauna'" (Queàu, 1987:112).
A construção de um modelo teórico e o teste de sua
performance
não
é
uma
exclusividade
dos
sistemas
infográficos. A escrita, por exemplo, é também o resultado
de uma hipótese teórica que produz um modelo cognitivo e que
se
submete
ao
juízo
da
verificação
sígnica
(Bettetini,
1988:71). A diferença é que o real ao qual a simulação
recorre para testar seus modelos não lhe é exterior, faz
parte do mesmo espaço abstrato e formalizado. As imagens
numéricas são tributárias dos modelos empregados e dependem
dos limites dos próprios modelos.
Tal como os modelos representativos do século XVI/XVII,
trata-se,
aqui,
do
domínio
matemático
do
espaço,
da
apreensão da realidade fugaz numa malha algébrica. Ao se
afastar, entretano, da crença numa correspondência entre o
visível e o invisível, os "criadores" das imagens sintéticas
abandonam
os
efeitos
óticos
sobre
uma
realidade
fotossensível e "descem" às profundidades da matéria, às
leis óticas, aos princípios físico-químicos.
Ao sintetizar o movimento das ondas e a ação do vento
sobre o tecido das bandeiras Alain Fournier (Flages and
Waves, 1987) se apoiou sobre o conhecimento das correntes
marítimas e dos ventos, construiu um modelo matemático que
132
simula o comportamento do mar e das ondas, animando as
partículas de água sobre órbitas circulares ou elípticas. A
simulação
de
fontes
de
luz
para
se
conseguir
imagens
realistas requer que se calcule o trajeto de cada raio de
luz que entra na cena, modificando a cor e a sombra das
superfícies na medida em que passa através de uma ou é
refletido pela outra (método Ray-tracing). Tudo aqui deve
ser estritamente calculado e ordenado: desde as estruturas
caóticas
e
(através
da
vagas
das
encostas
utilização
da
das
montanhas
geometria
ou
do
de
fractal
fogo
Benoit
Mandelbrot68), o vôo dos pássaros ou o movimento de cardumes
(através dos estudos de Briam Partridge69), até mesmo as
expressões do rosto humano
(vide Tony de Peltrie, 1985
de Philippe Bergeron e Pierre Lachapelle) e o movimento
humano
(vide
os
trabalhos
de
Keith
Waters
e
o
famoso
esqueleto de Davis, Georges).
Não se trata simplesmente de tornar visível o invisível,
mas de simular as estruturas subjacentes que o engendram.
Frequentemente, referindo-se aos resultados das pesquisas
médicas, neurofisiológicas, físicas, químicas, matemáticas
68-
Trata-se de algorítmos matemáticos que permitem a
descrição de domínios irregulares, de linhas de dimensões
intermediárias entre 1 e 2 e de certas superfícies entre 2 e
3 (ver Mandelbrot, 1975).
69- Referimo-nos ao trabalho idealizado por Craig Reynolds
para a empresa Symbolics Incorporated de Los Angeles (ver
Reynolds, 1987).
133
etc. estas imagens refletem o esforço do homem contemporâneo
em dominar o mundo que lhe envolve e escapa:
"Dando a ver mais que a superfície, ligando-se às
estruturas funcionais dos objetos, incorporando suas
dimensões funcionais, ela (a imagem sintética) carrega em
seu paroxismo a tentativa mimética até a fonte da
figuração onde a imagem é o objeto e possui seus
atributos, princípio da iconografia do antigo Egito ou de
certas práticas do culto vodú por exemplo" (Weissberg,
1988:42).
A imagem torna-se, desta forma, um modo de existência do
objeto e uma via de acesso para sua criação, manipulação e
transformação. A imagem sintética já não é o termo visível
de um corte que manifesta, através da substituição icônica,
uma
essência
objetiva
atribuída
ao
mundo.
A
chamada
"realidade" aqui, não é mais um dado objetivo e exterior aos
processos de sua enunciação.
Se é certo que os modernos meios de concepção da imagem
(CAO, CAD/CAM, IA etc) generalizaram os feitos da simulação,
oferecendo-nos importantes instrumentos de conhecimento e
percepção do mundo, é preciso tomar um certo cuidado ao se
exacerbar os efeitos tecnológicos destas imagens.
Em
primeiro
lugar,
simulação
numérica
descrição
formalizada.
é
não
preciso
lida
A
com
ter-se
o
em
real,
experimentação
conta
mas
numérica
que
a
com
sua
só
tem
sentido na medida em que se abstrai do mundo real (Couchot,
1987:92). Não obstante todo o esforço das matemáticas em
"capturar"o mundo real em malhas cada vez mais finas, não se
134
deve esquecer que tal esforço representa uma redução. Como
afirma Thiery Cazals:
"Do mundo, do homem, essas imagens aplicadas retém de
fato o estritamente necessário, uma grade de informações
fortemente redutora. Dos fenômenos, se percebe e se
registra
somente
o
que
será
útil,
significante,
manipulável" (1987:53).
Devido
ao
próprio
substrato
"material"
de
que
é
constituída - a linguagem formal - esta é uma imagem que
pouco se presta às ambigüidades do mundo natural. Mais, se
todo o matematismo renascentista servia para expressar as
"paixões da alma" humana, com os novos meios isto parece não
se dar. A linguagem formal se define por parâmetros alheios
à pragmaticidade da semântica usual, tornando-se
difícil
expressar
"amor",
"raiva",
por
intermédio
"surpresa"
formalização
70-
seu
de
tais
etc
70.
aspectos
sentimentos
Mesmo
isso
que
só
como
se
será
chegue
à
possível
Edmond Couchot nota, acertadamente, que além de nem todo
modelo de simulação numérica ser de natureza matemática, sua
submissão às matemáticas e à lógica formal é relativa.
Modelos provenientes de outras áreas do conhecimento, as
ciências humanas e a biologia por exemplo, vêm sendo
utilizados. O que não quer dizer, ao contrário do que sugere
Couchot, que estes modelos tornam-se mais "plásticos",
suscetíveis às intervenções "não-programáveis" por parte do
experimentador. As passagens entre o real e o virtual (ou
entre o mundo e sua modelização) dá-se pela codificação
estrita do primeiro, por seu espartilhamento a um código
inteligível (Couchot, 1993:37-47).
135
articificialmente, mudando-se a própria natureza do que está
sendo representado71.
O implacável rigor e a atribuição de valores calculáveis
a todos os dados do sensível- na verdade uma reedição do
conceitualismo - torna difícil sua aplicação à arte, ou,
pelo menos, muda os cânones do que é tido como procedimentos
inerentes à atividade artística.
A
criação
da
imagem
sintética
obriga
o
"artista"a
exprimir muito precisamente suas intenções numa linguagem
que não admite as ambigüidades da linguagem
própria
arte.
Se,
como
afirma
E.
Couchot,
usual
a
e
da
linguagem
programática é a verdadeira geradora da imagem, o fato é que
não é qualquer dado que pode entrar na máquina, assim como é
necessário uma forma específica dos mesmos. No computador,
tudo precisa passar pela assepsia da linguagem formal, tudo
precisa ser programado. As noções de dé-collage, a elevação
semiótica do ruído, as atitudes desconstrutivas tão caras à
videoarte
não
têm
sentido
no
universo
numérico.
Aqui,
desprogramar é ainda programar, a gestão do aleatório é
ainda uma gestão (Méredieu, 1988:67).
71-
Ver, por exemplo, todo o trabalho necesário para tornar
visível um objeto construído na memória de um computador e
todo o matematismo necessário para se representar imagens
naturalistas por intermádio, por exemplo, das fractais em "A
imagem digital" (Machado, 1988:37/156).
136
Não obstante o fato de que cada vez mais os algoritmos
se aproximem do realismo fotográfico, tornando-se, em alguns
casos,
a
distinção
pesquisas
e
impossível
empresas
-
comerciais
vários
institutos
New
(Lucasfilm,
de
York
Institute of Technology, Universidade de Tókio, Thompson
Digital Image, Institut National de l'audiovisuel etc.) vêm
obtendo
nos
sentido
últimos
-;
anos
resultados
sobretudo
sem
significativos
negarmos
o
neste
interesse,
principalmente o epistemológico, desta empreitada, seu uso
em busca de um realismo cada vez mais aperfeiçoado talvez
não
explore
as
representando
a
reais
manutenção
potencialidades
de
percepções
deste
de
meio,
gostos
já
consagrados. Corremos, desta forma, o risco de ratificarmos
a
dependência
dos
nossos
sistemas
perceptivos
de
nossa
vivência sócio-cultural, não nos arriscando à "aventura do
olhar".
Mais
do
naturalistas
que
ou
um
novo
reproduzir
meio
de
representar
fotograficamente
montanhas
uma
cena
da
realidade exterior, as imagens eletrônicas - sintética e
videográfica - trazem à percepção uma outra realidade: a do
fluxo
de
corrente
elétrica,
a
dos
conceitos
e
dos
algoritmos. Trazem à tona as formas puras e sua inscrição
temporal. A mutação contínua, o "escorregamento fluido dos
conceitos":
137
"As
anamorfoses
e
dissoluções
de
figuras,
os
imbricamentos de imagns através do chromakey, a inserção
de textos escritos ou falados, os efeitos de edição ou de
collage, os jogos das metáforas e das metonímias não são
meros artifícios de valor decorativos: eles constituem,
antes, os elementos de articulação do vídeo enquanto
sistema de expressão" (Machado, 1993:17).
Explorar
estas
potencialidades -
como fazem artistas
como o japonês Yochiro Kawaguchi através de programas como o
meta-balls e Morphogenesis Model(Growth III: Origin, 1985 e
Ecology:
Ocean,
exposição
1986),
Frontiers
os
of
trabalhos
apresentados
realizados
Chaos
a
partir
na
da
geometria fractal de Benoit Madelbrot, Zbignew Rybczinsky em
The Fourth Dimension ou Ko Nakajima em Mt. Fuji entre outros
- é possibilitar, como nos mostra Anne Sauvageot (1987:105),
que
o
olhar
se
aventure,
se
indetermine,
abandone
parcialmente sua lógica, investindo-se na complicação das
figuras moventes e mutantes.
Aí
reside
um
campo
privilegiado
para
o
trabalho
artístico profícuo, não a sujeição à destinação originária
destes
modelos
científicos,
mas
a
subversão
de
sua
produtividade programada. Subversão esta que não passa mais
pela
recusa
do
modelo
gerador
ou
pela
incorporação
de
materiais contrários à sua lógica, mas que se dá em seu
interior,
num
espaço
híbrido,
entre
o
pensamento
formalizável e o pensamento criador, de natureza diversa,
que os modelos jamais poderão anexar (Couchot, 1993: 47).
Como vimos procurando mostrar, tal empreitada é das mais
138
difícies,
cheia
de
contradições,
e
correndo
risco de afirmar aquilo que pretende negar.
o
constante
139
5.
A INTERATIVIDADE E A PERFORMATIVIDADE DOS SISTEMAS
As trucagens eletrônicas e o suporte numérico conferem à
imagem eletrônica uma manipulabilidade até então impossível.
Anteriormente, para se manipular a imagem - no registro
ótico - era necessário "maquiar" o referente ou submeter o
suporte material a demorados tratamentos físico-químicos.
Com
o
computador
matriz
definidora
instantaneamente.
imagem
basta
A
totalmente
alterar
para
que
imagem
as
margens
a
imagem
gerada
penetrável,
numéricas
se
por
computador
sempre
preste
da
altere
é
a
uma
ser
retrabalhada pelo cálculo.
A necessidade de se ter um controle imediato da imagem
no momento de sua visualização levou à concepção de um modo
de programação que torna a resposta às instruções o mais
rápido possível. Pode-se interagir com o sistema informático
de várias maneiras: simples transações, manipulação de dados
e de imagens, chaves de comandos, pedais, canetas luminosas,
mouses, reconhecimento da voz, do tato, dos olhos etc.
Devido
numérica
a essa manipulabilidade diz-se que a imagem
"interage"
com
o
espectador,
abre-se
à
sua
intervenção direta. Como o computador guarda em sua memória
todas as imagens possíveis de um objeto construído, basta
que o usuário lhe "peça" determinada atualização para que
140
este
lhe
"responda"com
a
forma
solicitada,
podendo-se
estender este jogo ao infinito.
A possibilidade de se visualizar as várias faces de um
objeto
sintetizado
perspectiva
traz
central
-
o
fim
da
visão
processo
este
privilegiada
já
contido
da
nas
experiências cubistas - e torna possível explorar os objetos
nos seus mínimos detalhes e sob todos os ângulos.
Do
ponto
de
vista
estético,
a
manipulabilidade
das
imagens eletrônicas representa a visualização de um processo
constante
artistas
na
produção
clássicos
realizadas.
Como
artística.
não
concebeu
demonstram
os
A
potência
suas
obras
"estudos"
de
criativa
de
prontamente
Leonardo
da
Vinci ou de Picasso, por exemplo, se produzia uma infinidade
de obras intermediárias, "virtuais", até se optar pela obra
final (Méredieu, 1988:61). O computador tornou mecânico e
acessível ao público aquilo que era artesanal e restrito ao
criador da obra.
A manipulabilidade destas imagens faz com que o uso de
modelos
e
simulações
sintéticas
se
generalize.
Pode-se
construir modelos de carros ou se desenhar cidades inteiras
corrigindo-se imediatamente as imagens intermediárias ou o
próprio modelo. Através de simuladores de vôo é possível
interferir-se nos diversos parâmetros envolvidos num plano
de vôo sem os custos de uma operação. Os "benefícios" da
interatividade
chegaram
até
mesmo
aos
consultórios
de
141
cirurgia
antecipar
plástica
e
e
aos
alterar
salões
"ao
de
gosto
beleza
do
-
freguês"
é
possível
os
vários
resultados possíveis de uma intervenção cirúrgica ou de um
penteado ou maquiagem.
Embora estas imagens proporcionem uma garantia de dupla
intervenção - e de uma certa autonomia - do usuário e da
máquina, dizer que tudo é virtualmente possível é inexato.
As
possibilidades
abertas
dependem
inexoravelmente
dos
limites dos modelos empregados e não se pode empurrá-los
para além de seus próprios limites (isto seria construir um
novo modelo). As virtualidades do sistema limitam-se, até o
presente
momento,
a
algumas
variáveis:
percursos,
iluminação, cor, texturas, ângulos de visualização etc.
Como estas "respostas" estão presentes na memória do
computador, isto é, estão pré-vistas no modelo que as gerou,
não se trata, na verdade, de uma interferência essencial,
que altere os rumos do jogo, ou que ponha em evidência o
inesperado, o inusitado. Trata-se muito mais de se testar o
desempenho das performances do sistema.
A
panacéia
criada
em
torno
da
interatividade
destas
imagens, ou sobre o poder de "decibilidade" do usuário devese
muito
tecnológica,
mais
a
questões
ligando-se,
desta
de
ordem
forma,
à
ideológica
ideologia
da
que
3ª
142
Revolução Tecnológica72
na
racionalidade
e contribuindo para gerar a crença
tecnológica
como
a
única
capaz
de
solucionar as crises e conflitos sociais.
A "profanização" dos dogmas desta religião tecnológica,
através da incorporação de esferas até então periféricas à
economia oficial, como o universo doméstico e a indústria de
lazer,
devido
a
generalização
de
e
hardwares
softwares
compatíveis com o uso individual - dão ao usuário a ilusão
de participar da comunidade dos experts, revivendo o mito do
sujeito burguês singular e autodeterminado.
Trata-se,
agora,
não
conhecimento
real
sintética
videográfica
e
dos
de
um
processos
(
o
interesse
produtivos
que
se
dá
e
de
da
em
um
imagem
nível
da
elaboração dos modelos e algorítmos ou da manipulação da
trama
eletrônica),
ou
seja,
não
se
trata
de
uma
democratização dos meios de produção imagético, mas de uma
relação distraída e personalizada73. Trata-se de divertir-se
com a infinita manipulabilidade destas imagens.
72-
Cf. p.35 e seguintes.
Richard Sennett (1988) mostrou que o advento da
"personalidade como princípio social" tem sua origem nas
profundas transformações das cidades, no advento de uma nova
classe social, nas transformações do comércio varejista e no
novo secularismo promovidos pela relação entre o Capitalismo
Industrial e a Cultura Pública no século XIX. Como resultado
temos uma ideologia da intimidade assentada na crença de que
relacionamentos sociais são reais e críveis, quanto mais
próximo se estiver das preocupações interiores de cada um.
O culto da personalidade conduz, assim, a uma procura
do Eu próprio - a busca de uma identidade própria e já não
73-
143
A obra de arte, tornando-se permeável ao receptor, não
mais
apresenta
pulsiva74,
uma
mas,
a
estrutura
exemplo
contrária
dos
à
demais
sua
estrutura
sistemas
sob
a
hegemonia da Sociedade de Consumo e dos meios de comunicação
de
massa,
imediata
parece
ter
gratificação
sua
dos
existência
seus
justificada
desejos,
pela
baixando-se
as
tensões psíquicas dos interatores.
Ao remeter esta satisfação às performances do sistema
(uma
vez
indivíduo
que
as
vê
sua
"respostas"
autonomia
já
estão
determinada
programadas),
pelos
limites
o
do
da
universalidade
como
motivo
das
ações
sociais
e
individuais (Lipovetsky). Com a dissolução dos elos de uma
intersubjetividade determinante - a impossibilidade de uma
Gemeinschaft - o Eu torna-se a preocupação central, donde o
Narcisismo
contemporâneo,
assentado,
no
entanto,
no
desalastramento de seus conteúdos rígidos, incerto de si
mesmo e do mundo.
A
convergência,
em
nossos
dias,
da
cultura
personalizada e da relação distraída, contribui, assim, não
para a liberação da atenção para atividades emancipatórias,
mas para a vulnerabilidade deste Eu flutuante aos modelos de
comportamento postos pelo mercado.
74Sabe-se que o princípio de realidade representa uma
coibição à estrutura pulsiva, deixando vir à consciência os
desejos e necessidades oriundos desse crivo. Quando os
desejos inconscientes vêm à consciência, O Ego utiliza-se da
fantasia, pois é através de uma satisfação ilusória desses
desejos (situações imaginadas sem custos reais) que o Ego
evita entrar em conflito com o social.
Como a obra de arte tradicional não é regida pelo
princípio do prazer do receptor, sua recepção pressupunha um
conflito entre a estrutura pulsiva deste e a coibição de
tais desejos, um Logro do Ego. Desta forma, o receptor
poderia vivenciar novas formas de associação de seus desejos
com o princípio de realidade (formação simbólica), essencial
à emergência da subjetividade.
144
sistema.
A
recepção
destas
imagens,
colocada
entre
os
limites do connaisseur e do público distraído, torna-se,
desta forma, não um meio libertador da atenção para fins
emancipatórios, mas, ao contrário, uma forma afirmadora do
status
quo.
A
intensa
manipulabilidade
das
imagens
eletrônicas levou as massas a uma apreensão superficial e
descartável das obras de arte75. Chegamos, na expressão de
Peter Sloterdijk, ao período da Fast Aesthetics.
Se antes o espectador recebia a obra, agora se pede sua
autoconstituição enquanto sujeito ativo em relação ao que
lhe é destinado. Segundo Lyotard (1993:265), esta atividade
tão almejada, na verdade significa apenas reagir, na melhor
das hipóteses, conformar-se febrilmente a um jogo já dado ou
instalado.
Esta
para
"participação"
as
happenings
artes
e
proporcionavam
o
do
público
participativas
dos
novo
teatro
uma
interatividade
remete-nos
anos
americano
60
que,
bem
igualmente
-
como
diga-se,
mais
os
nos
rica
e
diferenciada. Preocupado com a dissolução de todo tipo de
coerência,
teatro
enredo,
experimental
personagem
promoveu
e
a
cenários
tradicionais,
elevação
da
o
performance,
mudando o foco da figura do autor-diretor para uma produção
75-
Trata-se, como vimos mostrando, de um processo extensivo
às diversas manifestações artísticas da contemporaneidade,
não reservando-se às imagens eletrônicas qualquer imputação
de responsabilidade exclusiva.
145
cooperativa, onde o público tinha uma participação ativa.
Este
desejo
obteve
vanguardistas.
parcos
Como
afirma
resultados
Herbert
em
seus
Blau
(
propósitos
apud
Connor,
1992:121), as aparentes subversões da autoridade do texto,
do
autor
ou
do
diretor,
são
restritos
pelo
fato
da
teatralidade, isto é, toda performance ocorre num contexto
institucional
e
vê
sua
autonomia
neutralizada
pelo
maquinário do teatro. Neste sentido, a mistura dos atores e
do público, a "interatividade teatral" não faz do espectador
um comungante; ela proporciona a oportunidade de admirar-se
a si mesmo no novo papel de pseudo-ator (Lasch).
Se a ênfase nas performances representava um desejo de
impedir
sua
mercadificação
-
o
que
se
contrapunha
e
subestimava toda tentativa de manter registros documentais
dessas performances -, o desenvolvimento dos modernos meios
de informação, comunicação, registro e reprodução, como o
vídeo, o disc-laser etc., interligou esses termos de forma
complexa.
A
"interatividade"
destas
imagens
representa,
desta forma, a incorporação de uma estrutura anteriormente
avessa
ao
mercado
aos
domínios
deste
último.
A
"performatividade" tornou-se não um elemento que retira a
obra da estrutura mercadológica, mas o modo de consumo par
excellence.
Generaliza-se,
a
partir
da
presença
das
técnicas
em
todos os domínios da vida social e da imposição de sua
146
lógica performática, a idéia de uma nova legitimação das
práticas
sociais
assentada
não
mais
sobre
os
ideais
humanistas-liberais, mas sobre o critério do desempenho:
"A administração da prova, que em princípio não é senão
uma
parte
da
argumentação
destinada
a
obter
o
consentimento dos destinatários da mensagem científica,
passa assim a ser controlada por um outro jogo de
linguagem onde o que está em questão não é a verdade mas
o desempenho, ou seja a melhor relação input/output"
(Lyotard, 1986:83).
Também
no
"enfraquecimento
exemplos.
universo
da
do
é
ser"
imagem
videográfica
observado.
Tomemos
tal
alguns
Em Returning to Fiji,1984, Nan Hoover mostra um
processo de desorganização/reorganização da paisagem. Vê-se,
num primeiro momento, a dissolução dos contornos azuis da
montanha
sob
Gradualmente,
as
nuvens
as
nuvens
solidificando-se
na
outros
azuis
contornos
parte
se
que
lhe
perdem
central
formam
estão
sua
da
no
superpostas.
transparência,
montanha,
alto.
A
enquanto
paisagem
é
temporariamente fixada para, a seguir, voltar ao processo de
dissolução/reorganização (Ross, 1988:17/18).
Zbigniew Rybczinsky mostra, em Fourth Dimension, 1988,
com a ajuda de um computador programado para "refilmar" uma
imagem 480 vezes, linha por linha, diferentes momentos do
movimento
dos
corpos,
anamorfoses
incomuns,
lentos
turbilhões, figuras elásticas, contorcidas em torno de si
mesmas ou de um ponto de referência, enfim, "o atestado de
uma possibilidade insuspeitável do Ser"(Fargier, 1989:62).
147
Em Still, Thierry Kuntzel mostra sobre o fundo de uma
praia uniformemente azul, a aparição e desaparição de uma
forma. Pontos luminosos surgem sobre a tela, confundindo-se
inicialmente com a trama. Brancos sobre o azul, os pontos de
cor nascem como pérolas da sutura da trama e voltam, mais
tarde,
a
luminosa
se
se
confundir
despedaça
com
e
se
circulam como transparentes
a
trama
refaz
sem
inicial.
cessar.
ectoplasmas.
A
A
matéria
As
tela
formas
funciona
como uma espaço de sutura onde a imagem pode ou bem se
perder ou reaparecer (Méredieu, 1988:250/251).
Fruto de uma metamorfose, isto é, da passagem daquilo
que
é
captado
magnéticos
ou
pela
"emanação
digitais,
a
do
referente"
mobilidade
em
destas
sinais
imagens
desinveste o espectador de qualquer tentativa de conferir
uma estabilidade significativa a estas imagens, uma vez que
jamais se chega a um conhecimento optimal, a partir do qual
se desencadearia uma leitura formal e globalizadora destas
imagens.
É preciso ter-se em vista que este "desalastramento dos
conteúdos
eletrônicas
tecnologias
rígidos
não
da
do
é
sujeito"
uma
imagem.
observado
conseqüência
A
abulia
e
nas
direta
apatia
das
imagens
novas
contemporâneas
fazem parte da sensibilidade solipsista observada em nossa
cultura a partir dos anos 60 (ver cap.1, 1.4.2) e que, com a
crença no determinismo tecnológico, ganha força redobrada. O
148
homem contemporâneo não se apega a nada e suas opiniões
refletem sua indiferença em relação a tudo:
"Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-se, mas
toda a gente se está a lixar para isso, eis a jubilosa
nova, eis o limite do diagnóstico de Nietzsche a respeito
da decadência européia" (Lipovetsky, sd:35)
Segundo
boa
contemporâneo
pelo
parte
explorar
instrumento,
da
as
crítica,
resta
possibilidades
submetendo-se,
ao
artista
pré-determinadas
portanto,
à
realidade
interna
dos meios técnicos. O interesse desloca-se do mundo
lá
para
fora
sistema.
A
concentrar-se
atenção
passa
nos
a
mecanismos
recair
sobre
funcionais
do
a
de
criação
algoritmos suficientemente ricos, cuja potencialidade supere
a do usuário.
Uma "boa" imagem deve ser julgada menos pelo que dá a
ver e mais pelos processos, ou melhor, pelos cálculos que a
engendram. Agora, pessoas treinadas em avaliar a capacidade
de se construir algoritmos, de se manipular a linguagem
formal, de interagir com as máquinas disponíveis constituem
a comunidade ideal dos receptores.
Trata-se,
racionalismo
aqui,
de
uma
tecnológico,
verdadeira
elevando-o
mistificação
a
um
do
mecanismo
independente dos objetivos e decisões humanas. Ao apregoarem
a natureza imutável das determinações técnicas esconde-se o
fato de que sua utilização vigente explica-se muito mais
149
pelos
interesses
e
leis
econômicas
que
por
qualquer
determinismo inerente a tal mecanismo.
Isto representa um risco para o domínio das artes. Com a
absorção
do
sensível
no
conceito
perdemos,
como
sugere
Lyotard, aquilo que, não sendo controlado, nos causava um
atingimento estético. Nestas situações calculadas, onde tudo
deve ser "pré-visto", corremos o risco de nos atermos tanto
aos mecanismos, que nos perdemos da arte e de sua obra, de
não distinguirmos entre possibilidade técnica e realização
artística. Como apontamos anteriormente, não se trata aqui
de opor a imaginação criativa às determinações técnicas, mas
de tomar o trabalho artístico como transpassado por estas
forças
contraditórias,
de
se
questionar
os
procedimentos
tecnológicos e ideológicos a partir da própria criação, de
se articular seus determinantes a partir da inventividade de
suas determinações (Leão, 1983).
150
3.6. EXPERIÊNCIAS UCRÔNICAS76
Um dos pontos fundamentais levantado pelo cruzamento das
imagens
eletrônicas
e
da
lógica
cultural
da
sociedade
contemporânea é o do tempo. Embora a visão compreenda antes
de tudo um sentido espacial, o tempo está inscrito, de modo
fundamental
em
nossa
percepção77.
Por
outro
lado,
se
considerarmos, a exemplo da física contemporânea, que nem ao
tempo
nem
ao
espaço
podem
ser
atribuídos
significados
objetivos, veremos que o tempo é sempre concebido como uma
representação
sensações,
mais
isto
ou
é,
menos
abstrata
compreende
uma
de
conteúdos,
perspectiva
de
temporal
(Aumont.1993:107). Destarte, os diferentes sentidos de tempo
observados na evolução histórica da humanidade, compreendem
formas diferenciais de representá-lo. Para Fredric Jameson
(1984), por exemplo, o que caracteriza nossa sociedade é
justamente uma crise da nossa experiência do espaço e do
76-
Referimo-nos aqui a uma noção de tempo, contrário ao
sentido usual, posta pelas novas tecnologias da imagem .
Aqui, o tempo não se desenvolve mais de uma maneira linear e
irreversível, mas se ramifica em uma arborescência de
possíveis sempre reiteráveis e jamais atualizáveis em sua
totalidade (Couchot,1988:94).
77 - Jacques Aumont(1993:31) aponta três razões pelas quais
os fatores temporais afetam a percepção:
1. A variação temporal dos estímulos visuais
2. A constante movimentação dos olhos, o que faz variar a
informação recebida pelo cérebro
3. o fato da própria percepção não ser um processo
instantâneo, mas compreender temporalidades distintas
151
tempo,
crise
equipamento
"espaço
esta
causada
perceptual
do
alto
experiências
-
pela
formado,
modernismo"
-
espaço-temporais
tecnologias.
As
forma,
experiência
a
imagens
inadequação
segundo
em
eletrônicas
desta
nosso
Jameson,
relação
abertas
de
às
novas
pelas
novas
representam,
perspectiva
no
desta
temporal
contemporânea.
Embora a representação do tempo nas imagens envolva
diversos aspectos78,quase todas as imagens transmitem uma
sensação de tempo. A fotografia, normalmente encarada como
um mecanismo de suspensão do tempo, isto é, da redução da
experiência da duração aos limites do sensível, ao instante,
traz em si as marcas do tempo. Por maiores que sejam as
velocidades
de
obturação
dos
equipamentos
fotográficos,
permanece utópica a tentativa de se retirar um acontecimento
do
fluxo
temporal;
como
demonstram
as
fotografias
que
registram uma duração mais ou menos longa, uma anotação do
movimento, vê-se, sempre, o tempo.
Se a fotografia pode ser tida como capaz de capturar o
tempo, tal fato deveu-se à noção, oriunda da pintura, de
instante
pregnante,
isto
é,
de
um
instante
que
pudesse
resumir toda a significação de um acontecimento real. Embora
78-
Imagens que se modificam ao longo do tempo, imagens que
permanecem idênticas a si mesmas; imagens fixas, imagens
móveis; tempo do espectador, tempo da imagem etc.
152
o desenvolvimento do automatismo fotográfico tenha permitido
a retenção de qualquer instante, permanece o valor estético
desta inclusão temporal nos trabalhos de diversos fotógrafos
como
Cartier-Bresson e Robert Doisneau.
Embora a fotografia inscreva o tempo79 em si, trata-se,
evidentemente, de uma imagem fixa que tem de recorrer à
tradução
mais
representá-lo.
fabricar
um
ou
O
menos
cinema
tempo
arbitrária
representou
sintético.
Além
desse
a
de
tempo
tentativa
para
de
se
representar
um
movimento, o movimento das imagens do filme possuem uma
duração própria, podendo-se chegar a reproduzir o tempo de
forma idêntica (quando a duração de um plano cinematográfico
tem
a
mesma
distendê-lo.
duração
do
Entretanto,
acontecimento),
como
observa
condensá-lo
Arlindo
ou
Machado
(1993:102), uma vez que o elemento significante do cinema
continua sendo o fotograma, a percepção do tempo no cinema
dá-se através da intervenção no ordenamento dos fotogramas e
planos.
Destarte,
trata-se,
na
verdade,
de
uma
tradução
(ilusão) do movimento e do tempo para o universo das imagens
fixas80, embora, neste caso, a ilusão temporal seja mais
79-
Trabalhos interessantes neste sentido foram realizados
por Eadweard Muybridge, Étienne-Jules Marey, Jacques-Henri
Lartigue, David Hockney e Andrew Davidhazy (ver Machado,
1993:100-116).
80- Quer, no caso do movimento aparente, através do efeito
phi, isto é, através da projeção de dois estímulos luminosos
(os fotogramas) separados por um intervalo de tempo muito
pequeno (a faixa preta que os separa); quer, no caso do
153
convincente
e
envolva
diferentes
matizes
(ver
Deleuze,
1985).
Ao contrário do registro ótico (fotografia e cinema), as
imagens registradas por varredura eletrônica consistem num
conjunto de linhas horizontais superpostas, varredura esta
que
se
dá
de
modo
contínuo
(obturações)
da
imagem
e
fotográfica,
forma, inscrever um deslocamento
único
quadro.
Contrariamente
cinematográficas,
as
sem
medidas
interrupções
conseguindo,
desta
e o tempo dentro de um
às
e
as
imagens
fotográficas
e
quantidades espaciais são
frequentemente atomizadas pelo fluxo constante de elétrons:
a imagem assim obtida não é senão uma síntese temporal
assentada sobre a permanente descontinuidade (Zunzunegui,
1987:58). Ao papel da reta no espaço geométrico euclidiano
sucede-se a projeção de pontos alinhados no espaço-tempo de
uma sucessão instantânea de imagens; fazendo com que, como
diz Paik, o vídeo não seja do espaço, mas do tempo81.
tempo, pelos diversos meios de simbolização do tempo (fusão
de imagens, superposição, aceleração etc).
81- Também nas figuras de representação digital observa-se a
predominância desta "profundidade de tempo", uma vez que a
extensão das superfícies observadas ou simuladas está
submetida à profundidade de tempo da gravação dos dados
numéricos (os pixels).
154
Embora, em termos perceptivos, este aspecto genealógico
não
faça
muita
diferença
82,
este
saber
torna-se
determinante, em alguns artistas, gerando toda uma gama de
manipulações específicas vinculadas a tal dispositivo.
Se
a
imagem
fotográfica,
por
exemplo,
remete
a
um
acontecimento passado, a um tempo vivido e perdido pelo
espectador, o registro eletrônico, aliado com as técnicas de
manipulação desta imagem: feed-back, incrustação, operação
em tempo presente etc., permitiram não só uma justaposição
de imagens diversas, mas de tempos distintos. Além disso,
contrariamente à tecnologia da fotografia e do cinema, o
universo da imagem eletrônica é capaz de lidar com o tempo
real, uma vez que a análise da imagem pela câmera e sua
exibição no monitor, pode se dar de forma simultânea com sua
enunciação, dispensando todo processamento intermediário.
A obra de Ira Schneider, Manhattan is an Island, citada
anteriormente,
permite
ao
espectador
uma
experiência
de
compressão do tempo, como codex de reconhecimento da fluidez
do
visível.
multiplicidade
82-
A
de
justaposição
imagens
e
de
sons
várias
de
telas
diversas
e
a
fontes
Não há, como aponta Jacques Aumont (1993:171) nenhuma
diferença percetível entre o vídeo e o cinema no que se
refere ao movimento aparente, entre outros aspectos devido à
velocidade das linhas de varredura ultrapassar nossa
capacidade de perceptiva; tratando-se, em suma, de um mesmo
tipo de imagem: a imagem temporalizada.
155
possibilitam
uma
leitura
complexa
do
eixo
espacial
e
temporal.
Em Present, continuous, past(1974), Dan Graham constrói
um dispositivo composto de uma sala na qual se encontra,
numa parede um monitor de tevê e acima dele a objetiva de
uma câmera de vídeo. A parede em frente e uma das laterais
são cobertas por espelhos. A câmera grava o que está em
frente a ela e o refletido na parede oposta que, por sua
vez, reflete tudo o que está presente na sala. A imagem
captada pela câmera aparece no monitor, por um processo de
feed-back,
oito
segundos
depois.
O
espectador
é,
assim,
confrontado com duas imagens simultâneas de si mesmo, uma do
presente,
refletida
nos
espelhos,
outra
já
passada,
refletida no monitor. Presente e passado passam a coexistir
no
mesmo
espaço,
a
continuidade/contigüidade
temporal
é
vivenciada pelo sujeito.
Em Archéologie du présent(1973), Fred Forest registra
com
uma
câmera
transmite
as
fixa
imagens
a
maior
parte
colhidas
no
da
rua
Guénégaud
interior
da
e
galeria
Germain, diretamente, sobre uma grande tela. O espectador,
vindo
de
fora,
reencontra
o
exterior
no
interior;
confrontando, desta forma, duas temporalidades distintas,
uma ação presente e uma ação ação passada.
Embora os exemplos acima refiram-se às instalações, a
maioria
das
obras
de
videoarte
apresentam,
de
maneira
156
intencional ou não, uma reflexão sobre a temporalidade [o
videoclip, por exemplo,
na sua ruptura súbita e descontínua
dos elementos áudio/visuais, quebra a seqüência lógica do
relato,
possibilitando
sentidos
e
significações
polissêmicas].
Também no universo das imagens numéricas trata-se de um
tempo
que
se
infinidade
de
expõe
instantaneamente.
instantes
sempre
Composto
renováveis
e
de
uma
diferentes,
atualizáveis em momentos que nem o objeto nem o sujeito
viveram anteriormente, o tempo numérico é um tempo simulado,
virtual. Ele não tem passado próprio, não é o registro de
qualquer acontecimento. Trata-se de um registro ucrônico(
Couchot, 1988).
Tudo nos é dado instantaneamente. Não precisamos esperar
longos meses para visualizarmos os resultados de um projeto
paisagístico,
por
exemplo,
bastam
alguns
segundos
para
obtermos sua versão sintetizada. Para obtermos uma imagem de
um povoado do final do século XVII - o povoado de São Miguel
das Missões, no Rio Grande Sul - uma equipe do Laboratório
de tecnologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos criou
uma maquete eletrônica a partir do que sobrou das casas e o
computador recriou o povoado quando foi construído.
Outro exemplo é dado por Nancy Burson e David Kramilch
que,
desenvolvendo
algoritmos
de
"envelhecimento"
e
de
"rejuvenescimento" de imagens fotográficas, são capazes de
157
fornecer imagens de como éramos há quinze anos ou de como
seremos daqui a alguns anos.
Na impossibilidade de representar dois lugares ao mesmo
tempo,
o
temporal
aparato
que
os
perspectivista
situava
impunha
uma
temporalmente,
hierarquia
representava
a
duração como o escoamento linear e uniforme de um fluido
(Weissberg,
1988:21);
as
experimentações
eletrônicas
permitem uma percepção diferenciada do fluxo temporal, um
deslocamento do espectador e uma fragmentação do sentido em
uma multiplicidade de sentidos possíveis.
Composta
de
uma
infinidade
de
instantes
sempre
renováveis e diferentes, onde, através da intercambialidade
das
formas,
temporalidades
diversas
interagem,
a
imagem
eletrônica torna possível a experimentação tanto de um tempo
condensado
e
multisensorial-
instantaneidade
das
onde,
operações,
o
em
razão
tempo
da
torna-se
quase
uma
categoria mais vaga e sem espessura-, quanto do tempo real,
levando o espectador a vivenciar o "peso da existência", a
transformação e o crescimento da imagem no tempo, "cultivar
a capacidade de ver através dos objetos" - como podemos ver
em várias obras de Bill Viola.
Utilizando-se
de
pouquíssimos
efeitos
tecnológicos,
Viola coloca sobre a natureza a responsabilidade dos efeitos
especiais. Filmando o contínuum, o passar do tempo, ele
acaba por nos revelar o aleatório, o descontínuo. Utilizando
158
apenas uma super zoom (800 mm), Bill registra a dissolução
dos corpos pelo calor do deserto e uma "flutuação" dos
corpos em relação à paisagem (Chott-el Djerid, 1979). Em I
do
not
know
what
it
is
I
am
like,
1986,
Viola
mostra
intermináveis minutos de um boi no pasto, de um pássaro
dormindo,
de
corujas
revelando-se
etc.,
descontínua.
registra
Efeitos
de
a
continuidade
incrustação
sem
recursos tecnológicos. Em todas as suas obras - e de uma
forma
mais
intensa
investigação
sobre
principalmente
pela
em
a
The
vida
e
Passing
o
recuperação
-
existir
do
observa-se
e
olhar
isto
se
cuidadoso
uma
dá
e
reflexivo.
Esta co-presença, ou esta compressão, de temporalidades
diversas observáveis nas imagens eletrônicas constitui um
dos principais vetores da condição pós-moderna. A noção de
tempo
como
a
seqüência
passado-presente-futuro,
para o Iluminismo (que assentava seu projeto
marcante
de construção
de uma realidade que estaria por vir na superação de um
antes e de um agora), é substituída por uma descontinuidade
da experiência temporal.
Verificando a supremacia assumida pelo vetor velocidade
no mundo contemporâneo(que se tem no automóvel do século XIX
seu ponto de partida, encontra nas tecnologias audiovisuais
159
da atualidade seu clímax83), Paul Virilio vê a desmontagem
da realidade perceptiva tradicional, dominada pela ortodoxia
ortogonal, e o surgimento de uma nova ordem de visibilidade
marcada pela videoperformance da transmissão e representação
de dados. Como principal conseqüência da ubiqüidade do tempo
real
das
máquinas
de
visão
contemporâneas,
teríamos
a
suplantação do espaço das aparências sensíveis, a ausência
da percepção imediata da realidade concreta e a contração
das durações - a experiência de um tempo intensivo84
Não
físicas
obstante
clássicas
o
fato
por
uma
da
substituição
representação
das
mais
dimensões
"instável"
ligar-se ao advento da mecânica quântica, Virilio verá o
mesmo processo "desmaterializante" e "compressor" em toda a
cultura contemporânea, encontrando nas imagens eletrônicas
seu principal difusor:
83-
Se com o automóvel diminuia-se o tempo entre a partida e
a
chegada
(implicando
na
destruição
geográfica
das
distâncias),
as
novas
técnicas
de
teleobservação
possibilitam abranger as mais vastas extensões jamais
percebidas. Além deste "horizonte negativo", temos o aumento
da velocidade entre a captação, a transmissão e a recepção
das imagens, donde a importância assumida pelo conceito de
"profundidade de tempo", onde o povoamento do tempo de
transporte e de transmissão suplanta o povoamento do espaço
(Virilio, 1993: 11).
84- Um tempo ultra-curto e associado ao surgimento das novas
tecnologias, em oposição ao tempo extensivo, da cronologia e
da longa duração (ver Virilio, 1990).
160
"Se,a partir de agora, a representação teórica na escala
microscópica (as partículas atômicas) é resultado da
mecânica quântica, ou seja, do QUANTUM de ação, de
energia, este grão de matéria ou de luz (neutron,
elétron, fóton...) e da incerteza de sua velocidade ou de
sua posição, em um meio fundamentalmente incerto, a
representação prática na escala macroscópica (humana)
torna-se o efeito de uma espécie de mecânica PUNTICA
(alfa-numérica) que, se por um lado parece sacrificar as
coordenadas cartesianas clássicas às capacidades da
memória da trama, por outro repousa também, e de forma
essencial, sobre as videoperformances de um PUNCTUM de
ação, o PIXEL (ou ponto luminoso da ótica eletrônica), a
forma-imagem
sintética
resultando
não
somente
das
propriedades codificadas no programa, mas de partículas
elementares (elétrons) que nos lembra, como se fosse
necessário, que a "telemática" não resulta somente da
associação da informática com a transmissão instantânea a
distância, mas antes do efeito de instantaneidade de
emissão local de uma figura, de um movimento ou de uma
extensão aparente na interface de uma tela; figura
analógica ou digital que, por sua vez, resulta da
ausência de campo, de profundidade de campo, já que esta
"profundidade" é apenas a das videoperformances temporais
do PIXEL" ( 1993: 39)85
Apesar de as extrapolações de um nível micro para uma
escala macro serem sempre problemáticas, correndo o risco de
não atender a nenhum dos campos, podemos reconhecer uma
certa "instabilidade" - ainda que de outra ordem86 - nos
fenômenos sociais. Acelerações do tempo de giro na produção,
aumento da velocidade de consumo de bens e serviços, fluxos
85-
Virilio sugere,com isto, tratar-se de uma mudança de
paradigma, nos termos elaborados por Thomas S. Khun em A
estrutura
das
revoluções
científicas,
mudança
esta
responsável pela nova "visão de mundo" contemporânea.
86Muito
mais
econômico-social
que
"quântica"
ou
informacional
161
de
informações
transmitidos
na
velocidade
da
luz,
as
possibilidades simultâneas de ação, de trabalho, de lazer
etc. abertas pelas novas tecnologias, tudo isto radicalmente
comprimido. Como conseqüência, o envelhecimento precoce de
tudo aquilo que surge no horizonte, a acentuada volatilidade
e efemeridade das modas, produtos, processos de trabalho,
idéias
e
ideologias,
valores
e
práticas
estabelecidas
(Harvey, 1993:258). Agora, as pessoas se vêem obrigadas a
lidar com a descartabilidade e a obsolescência instantânea.
Vive-se a dificuldade
de se manter qualquer sentido firme
de continuidade, de materialidade, donde o "enfraquecimento
do
sentido
do
tempo
histórico"87,
a
flutuação
das
rotação
dos
identidades e a imaterialidade contemporânea.
Em
lugar
das
idéias
fundadoras,
a
significantes; em lugar da razão abstrata, a pragmaticidade
dos
resultados;
em
lugar
da
visão
social
como
uma
totalidade, a descontinuidade sem centro. Agora, este ser
vagueante e privado das ideologias integradoras elegerá a
performatividade das redes como seu último refúgio. Aí, isto
é,
87-
nos
mitos
em
torno
das
novas
tecnologias
e
de
sua
Que levará , segundo Christopher Lasch (1983/1987) a uma
"mentalidade sitiada", a uma época onde "viver para o
momento é a paixão predominante". Tal fato será o
responsável pelo caráter narcísico e esquizofrênico de nossa
cultura (ver a noção jamensoniana de esquizofrenia, p.18).
162
interatividade,
talvez
resida
o
ponto
de
atuação
privilegiado da ideologia em nossa sociedade.
A pragmática da imagem eletrônica, sua auto-fundação,
sua
performatividade,
seu
caráter
"imaterial",
sua
experiência temporal "ucrônica" etc. e seu modo de inserção
na
sociedade
contemporânea
tornam-se,
como
procuramos
mostrar, sincrônicos ao processo de "espectralização" do
Capital
e
à
agudização
do
processo
de
reificação
da
realidade da vida social.
Se, na época de seu surgimento, tais processos puderam ser
saudados como libertários e denunciadores dos discursos que
carregavam
atrás
de
si
uma
fonte
produtora
e
seus
interesses, o que se viu foi a derrocada deste "destino" por
um uso muito mais simpático ao sistema. Não se trata aqui,
evidentemente, de uma condenação da alta tecnologia "em si",
nem de uma "atribuição de responsabilidade" pelo processo
descrito anteriormente. Trata-se, como dissemos, de tomar as
imagens
eletrônicas
e,
de
uma
maneira
geral,
a
alta
tecnologia, como um "posto de observação" exemplar de um
processo
que
as
ultrapassa
e
engloba.
Trata-se,
da
visualização das ambigüidades e complexidades que envolvem a
prática artística na sociedade contemporânea, ao mesmo tempo
radical e cooptada, e de encontrar, não obstante a "falta de
perspectiva"
destas
imagens,
seus
"pontos
de
fuga".
163
CONCLUSÃO
Uma
vez
que
vimos
tratando
o
desenvolvimento
das
imagens eletrônicas vinculado ao desenvolvimento das forças
produtivas contemporâneas- vinculação esta não imediata e
comportando desenvolvimentos desiguais e conflituosos -, a
visualização
das
possibilidades
abertas
por
esses
novos
meios a seus criadores depende, evidentemente, da análise
deste relacionamento.
Retomando as análises de Perry Anderson acerca do ciclo
modernista,
vimos
que
sua
ambigüidades
de
florescência
origem,
isto
é,
tanto
à
ligava-se
presença
de
as
um
presente técnico ainda indeterminável quanto de um futuro
político
imprevisível
mas
marcado
pela
proximidade
da
revolução social. Esta incerteza de origem podia medir-se
pelo surgimento de uma imaginação criadora, extrapolável das
relações sociais produtivas que a estava criando e que teria
na
insurreição
estética
seu
momento
redentor.
Se
tal
constelação fora a responsável pelo aparecimento de obras de
inquestionável valor artístico e cultural, o seu fim marcará
a época contemporânea ressituando o papel das artes neste
novo contexto.
164
O
fim
das
esperanças
de
uma
Sociedade
do
Trabalho
representa, da mesma forma, o fim de uma atitude ingênua em
relação ao desenvolvimento tecnológico. Se, à sua época, os
vanguardistas
podiam
alimentar
esperanças
de
um
uso
contraposto à lógica do poder estabelecido; agora, a partir
do Capitalismo Tardio, as rendas tecnológicas tornaram-se
seu ponto nevrálgico. Aliado a este presente tecnológico
determinado, encontramos a ausência, ainda que imaginativa,
de um futuro político que rompa com este estado de coisas.
Tal
percurso,
solucionar
suas
estendendo
movido
próprias
seus
pela
crises-
domínios
às
tentativa
processo
mais
do
Capitalismo
pelo
qual vai
diversas
regiões
geográficas e aos diferentes setores econômicos -, fará com
que a sociedade adote, a cada época, uma nova configuração
sócio-cultural:
da
predominância
de
uma
cultura
racionalizada e funcional, passamos pela "permissividade"
dos anos 60 até à "imaterialidade" atual.
Agora, nesta nova tentativa do Capitalismo se reerguer
de suas crises inerentes, as relações "imateriais"- ou seja,
os mercados monetários e financeiros, os sistemas produtivos
auto-gerenciados,
as
"altas
velocidades"
das
transações
etc.-, incrementadas pela "globalização" tecnológica superam
em muito o poder irradiador do modelo "produtivista".
Mais, se antes, o capitalismo tinha de se confrontar
com
setores
semi
ou
pré-capitalistas,
em
suma,
se
seu
165
funcionamento dependia do confronto com realidades de outra
ordem; agora não é este o caso. Sua lógica tornou-se autofundante
e
auto-referenciada,
não
pressupondo
nenhuma
realidade externa a si88. Aí reside, talvez, a origem da
propalada "perda de realidade" e a "auto-referencialidade"
da cultura contemporânea e, ao mesmo tempo, na tentativa de
se
generalizar
tal
processo,
a
marca
da
ideologia
do
Capitalismo atual.
Se
a
seu
tempo
Walter
Benjamin
já
apontava
para
o
amálgama existente entre as forças intra e extra-estética
explicitado a partir das artes reproduzidas mecanicamente,
tal junção dá-se, agora, de tal maneira que faz parecer
brincadeira de criança o anarquismo vanguardista, frustrando
qualquer tentativa de sua reedição89.
Hoje, mais do que nunca, a "marca de qualidade" da arte
é
apanágio
do
mercado.
Nem
mesmo
sua
proclamada
"inutilidade" contraposta ao mundo dos negócios pode ser
88-
É interessante observar, neste sentido, o quanto as
políticas econômicas não se atém a nenhuma realidade que não
a sua mesma. Medidas de exclusão social são cada vez mais
propostas como essenciais à operacionalidade capitalista e,
como afirma Atílio Borón , sugerindo uma resposta de Hayek
ao esgotamento dessas políticas: "se a democracia que se
equivoca e - sem poder administrar eficientemente a medicina
neoliberal - avança contra o mercado, será necessário,
então, cancelar a democracia"(Gentili, 1995: 172).
89-
Donde a impropriedade de termos como "revolução", "neovanguarda", "ruptura" etc para se referir às imagens
eletrônicas.
166
mais sustentada numa época onde se consome justamente o
supérfluo. Na época do "Estado Cultural"90(Debray, 1994) onde a cultura tornou-se um bem como qualquer outro, ou
melhor, tudo tornou-se cultura91 - a expansão avassaladora
do
econômico
perímetro
"cultural"
da
assimila
o
indústria
de
tem
como
experimentalismo
consumo.
conseqüência
O
a
estético
no
esgarçamento
do
neutralização
da
potencialidade do choque da estranheza. Os experimentalismos
artísticos
já
surgem
em
resposta
às
demandas
culturais
sempre em alta, vêm de encontro à lógica de um mercado cada
vez mais segmentado e "sofisticado".
90-
É interessante observar como a emergência do cultural
liga-se ao desmantelamento do welfare state. À compressão
orçamentária nos gastos sociais substituía-se a expansão dos
negócios culturais. Neste sentido, tomando-se como exemplo a
França, é significativa a passagem da fase Malraux(19581969) para a fase Lang(1981-1993), passagem esta que
exemplifica uma ressemantização do "cultural": deixando de
lado a necessidade racional da formação do cidadão
eleitor(do exercício da autonomia) e a extensão das "luzes"
republicanas aux enfants, através da multiplicação das
Maisons de la Culture, passa-se à animação cultural, a uma
liberdade concebida em termos de "espontaneidade", donde o
incentivo ao cultivo de "sua [dos franceses] capacidade de
inventar e criar, exprimam livremente seus talentos"(Lang).
O "cultural" torna-se "publicitário": "o cálculo custoutilidade de um investimento cultural não tem como parâmetro
o crescimento efetivo da preferência ou dos talentos, na
população e a longo prazo, mas a superfície de exposição
midiática (S.E.M.) com a qual, no imediato, o decididor
poderá contar"(Debray, 1993:103).
91- E aqui cabe ressaltar, mais uma vez, a posição central
ocupada pelas novas tecnologias neste "tudo-cultural".
167
Se a configuração contemporânea nos faz duvidar das
potencialidades libertárias da arte, tem o mérito de tornar
claro
as
aporias
do
Movimento
Moderno
que
ao
tentar
instaurar uma nova práxis- abstraindo-se, entretanto, das
forças
produtivas
contrário.
A
do
nova
momento-
transformava-se
constelação
traz
o
em
benefício
seu
da
visualização dos erros do passado, sem que nos conceda o de
antever o futuro.
Aparentemente a arte eletrônica reforça os argumentos
de Adorno a propósito dos desdobramentos da arte-técnica e
do esgotamento da arte-autônoma, no entanto o debate sobre
as possibilidades emancipatórias, até quem sabe maiores,
desses novos meios não pára por aí. Assim, Enzensberger, ao
menos
nos
anos
7092,
chegou
a
falar
em
"essência
igualitária"93 nos novos meios eletrônicos - tratar-se-ia,
portanto, para sua recuperação progressita, do incremento da
92-
Aliás,
postura
já
abandonada,
se
tomarmos
como
referência um de seus últimos textos: "os teóricos
educacionais e críticos que continuam a suspeitar de forças
produtivas na mídia eletrônica que, se liberadas, serviriam
para colocar em movimento processos de aprendizado social
com os quais até hoje ninguém sequer sonhou (uma boa notícia
que se pode extrair com algum esforço a partir de alguns
velhos
briquedinhos
de
montar
pertencentes
à
mídia)"(1995:77).
93"Quanto
à
sua
estrutura,
os
novos
meios
são
igualitários. Com um simples acionar de botão, qualquer
pessoa pode participar...
Os novos meios tendem a eliminar todos os privilégios
culturais, e com isso o monopólio cultural da intelligentsia
burguesa" (Enzensberger, 1979:71).
168
influência recíproca entre o emissor e o receptor.
que Enzensberger apontasse
Ainda
a necessidade de uma sociedade
socialista livre para o uso correto dos meios eletrônicos,
acaba sugerindo que sua presença em todas as situações de
conflito social - locais de trabalho, escolas, repartições
públicas etc - possibilitaria uma "iluminação profana" das
massas,
permitindo
uma
opinião
pública
de
contorno
agressivo.
Apostando nas "potencialidades progressivas" dos novos
meios - capaz de por em questão, pela primeira vez, os
métodos privados de produção dos intelectuais burgueses -,
Enzensberger chega a opor os "programas descentralizados", a
"transformação
de
cada
receptor
em
um
transmissor
em
potencial", a "interação dos participantes", a "produção
coletiva" etc propiciada pela tecnologia eletrônica ao uso
repressivo dos meios de comunicação.
Se tal aposta, nos termos expostos, parece extemporânea
a
uma
época
que
retirou
de
seu
horizonte
a
proximidade
imaginativa de uma revolução socialista, permanece em alta a
sobrevalorização destes meios. Nicholas Negroponte, um dos
fundadores
do
Media
Lab
do
Massachusetts
Institute
of
Technology e autor de A Vida Digital, por exemplo, além de
apontar
os
méritos
"tecnológicos"
da
digitalização
-
a
compressão de dados e a correção de erros, para ficarmos nos
exemplos mais óbvios -, aponta também para a "inteligência"
169
destes veículos. Assim, contra a "mesmice da informação"
poderíamos ter, no receptor, um sistema editor de notícias
que,
diante
da
quantidade
selecionaria
umas
receptor.
libertar
Ao
poucas,
o
enorme
de
material
dependendo
receptor
dos
do
recebido,
interesse
"átomos"94
da
do
vida
cotidiana, o uso do computador dá-lhes "mais poder e tempo
de sobra para se divertir e trabalhar produtivamente"95.
Da mesma forma, análises de autores como Edmond Couchot
e
Philippe
Quéau,
embora
não
apontem
para
uma
função
socialmente emancipadora das imagens eletrônicas, ao não
inserir tal pragmática no contexto da situação histórica
concreta, correm o risco de cair num excesso de tecnicismo,
não avaliando corretamente o caráter "inovador" destes novos
meios.
Neste
"recepção
sentido,
esclarecida"
conversacional"
intervenção
na
,
isto
imagem
por
é,
exemplo,
a
exaltação
possibilitada
pelas
diversas
eletrônica
ou
pelo
duma
"modelo
modalidades
na
de
programação
transmitida (através do controle remoto) -, quando vista na
sua
94-
relação
com
a
cultura
capitalista
atual,
revela-se
Negroponte usa este termo para se referir aos suportes
"materiais" de informação: jornais, revistas e livros, de
entretenimento: discos, filmes, fotos etc.
95- Para além de uma maior satisfação individual, Negroponte
chega a falar numa diminuição do abismo existente entre os
países pobres e ricos oriunda do barateamento dos preços dos
computadores (ver sua entrevista à Revista Veja de
26/07/1995).
170
conformada pelo sistema, constituindo-se - a personalização
da cultura - num dos modos do "Estado cultural".
Inverte-se assim, o argumento básico de Enzensberger,
revelando-se, entretanto, sua outra face. Aqui, a aposta não
reside mais nos usos coletivos destes novos meios, mas
nível
da
individualidade:
"na
era
da
pós-informação,
em
o
público que se tem é, com frequência, composto de uma única
pessoa.
Tudo
extremamente
é
feito
por
encomenda,
e
personalizada"(Negroponte,
a
informação
1995:143).
Não
é
é
mais, portanto, o sujeito que se abre ao mundo, mas este que
se abre ao indivíduo, que lhe chega sem resistências e para
satisfazer suas necessidades mais remotas.
Também em nosso país boa parte da crítica parece ceder
às potencialidades das novas tecnologias. Quer enfatizando
os benefícios de uma recepção "zapeadora",
quer apostando
na abolição da divisão entre autor e leitor, artista
e
receptor propiciada pela interatividade numérica, quer ainda
apostando no potencial inovador destes "navegadores" das
redes
-
na
possibilidade
de
descobertas
imprevistas
e
revolucionárias96 - , autores como Arlindo Machado, Julio
Plaza, Gilberto Prado97, entre outros, lançam suas apostas
96-
Não no sentido político, mas no da descoberta de
potencialidades não ante/vistas, da aposta na indeterminação
dos sistemas.
97- Há diferenças nas abordagens de cada autor, requerendo,
portanto, análises mais detida nas especificidades de cada
um- o que, entretanto, não realizaremos neste estudo. Um bom
171
nesta hibridização de diferentes perspectivas, num "salto
revolucionário",
qualitativamente
representativo,
nas
melhor,
explorações
do
sistema
"tecno-poéticas
do
tecnológico"(Júlio Plaza).
Numa época de globalização das redes de informação, a
própria tese de que o volume de informações disponíveis e
colocadas, em princípio, ao alcance de todos representa um
estímulo
decisivo
emancipatórias
excesso
de
ao
desenvolvimento
transforma-se
oferta
com
em
das
potencialidades
ideologia.
democracia,
Confude-se
des-centralização
com
autonomia, flexibilidade com autonomia. Oculta-se, com isso,
o
fato
de
que
a
simples
suficiente
para
uma
diferenças
sociais
presença
utilização
essenciais
destes
meios
transformadora
são
repostas
e
não
que
com
é
as
força
redobrada.
A origem econômica do conceito de globalização mostra
seu caráter excludente. Trata-se da organização da produção,
distribuição e consumo de bens e serviços a partir de uma
estratégia
mundial,
e
Deslocalização
e
anteriormente,
liga-se
voltada
flexibilidade
à
para
que,
um
mercado
conforme
"reestruturação"
do
mundial.
analisamos
Capitalismo
contemporâneo. Neste sentido, a "globalização" implica um
exemplo destas posições pode ser encontrado na coletânea
organizada por Andre Parente, Imagem-Máquina(1993) e no
número 3 da revista Imagem publicada pela UNICAMP.
172
conjunto de transformações nada libertário: subcontratações,
enfraquecimento
dos
sindicatos,
rotatividade
da
trabalhadores
politicamente
elevação
mão-de-obra,
altas
das
taxas
proporções
marginalizados,
de
de
aumento
do
deram
aos
desemprego etc.
Se
a
aplicação
das
medidas
neo-liberais
países de capitalismo avançado a ilusão da saída da crise,
recuperando, em parte, suas taxas de lucro, tal fato não
implicou, evidentemente, uma globalização dos lucros. Ao
contrário, vivenciamos hoje um retrocesso social muito mais
pronunciado, com o agravamento das desigualdades sociais.
Criticando
aqueles
que
não
se
"integram"
às
redes
neo-
liberais, esta "globalização vai, desta forma, estendendo
sua malha de excluídos sociais98.
Agora, se o pensar a realidade mundial a partir dos
aspectos específicos de cada cultura, isto é, tomar este
movimento "globalizador" no confronto com as especificidades
"locais", poderia fornecer uma visão enriquecedora e crítica
98-
Como Afirma Alain Touraine em artigo à Folha de São
Paulo de 13/8/95: "Essa noção tão cômoda, porém, choca-se
com duas realidades contrastantes. A primeira é o crescente
dualismo presente na grande parte dos países: todos
participam do mercado mundial, mas, nos países ricos, 20% da
população ficam de fora do processo econômico - cifra que
atinge na América Latina o patamar de 50% e eleva-se em
determinadas regiões, sobretudo na África, a 80%. Uma tal
realidade, de tão evidente, faz o tema da globalização
parecer mais ideológico do que descritivo..."
173
desse processo, a tese de uma cultura "globalizada" vê-se
exaurida de qualquer potencial crítico. Serve apenas para
dar
nome à difusão generalizada de uma sociedade de consumo
que, à primeira vista, como afirma Alain Touraine(1995:513), transformaria o mundo num imenso "duty-free"99.
Diante da impossibilidade de se socializar os lucros,
oferece-se a ilusão de uma fruição cultural generalizada.
Uma
cultura
totalmente
capitalizar,
tal
publicitárias,
inteligíveis
e
desterritorializada
como
signos
fazem
e
as
uma
que
grandes
referências
consumíveis100.Em
e
palavra,
busca
agências
imediatamente
uma
cultura
reduzida a sua forma-publicitária.
99-
Isto é, aliás, o que se pode constatar na mundialização
da cultura analisada por Renato Ortiz que chega a reconhecer
na base de uma cultura internacional-popular a presença do
mercado consumidor: "Afirmar a existência de uma memória
internacional-popular é reconhecer que no interior da
sociedade de consumo são forjadas referências culturais
mundializadas.
Os
personagens,
imagens,
situações,
veiculadas pela publicidade, histórias em quadrinhos,
televisão,cinema constituem-se em substratos desta memória.
Nela se inscrevem as lembranças de todos. As estrelas de
cinema, Greta garbo, Marilyn Monroe ou Brigitte Bardot,
cultuadas nas cinematecas, pôsteres e anúncios, fazem parte
de um imaginário coletivo mundial. Neste sentido pode se
falar de uma memória cibernética, banco de dados das
lembranças desterritorializadas dos homens, Marcas de
cigarro, carros velozes, cantores de rock, produtos de
supermercado, cenas do passado ou de science-fiction são
elementos heteróclitos, estocados para serem utilizados a
qualquer momento(Ortiz, 1994:126).
100-
bens
O que não implica, como vimos mostrando, a imposição de
culturais padronizados, mas em se tomar a própria
174
Teria, então, razão Baudrillard em pregar, em relação
aos meios eletrônicos, a liquidação de toda sua estrutura
atual,
funcional
Convencido
da
Baudrillard
e
técnica,
de
sua
unilateralidade
do
processo
verá
os
novos
meios
forma
como
de
operacional?
informação,
promotores
da
desestruturação do social e da dissolução do sentido, não
por um desvio de sua essência, mas por sua própria forma,
sendo, neste sentido, efetuadores de ideologia.
Submetida à cultura dos simulacros, a comunicação assim como a arte contemporânea - torna-se autônoma com
relação ao mundo e se desenrola através de uma rede circular
e sem fim num processo tautológico. Como não se trata, aqui,
de
um
processo
Baudrillard
restrito
estende
aos
esta
novos
meios
circularidade
-
uma
vez
estrutural
que
aos
diversos domínios da sociedade contemporânea, constituindo
uma
das
marcas
decisivas
do
simulacro
hiperreal
-
não
haveria saída a isso: só uma 'exacerbação' lógica e uma
resolução catastrófica. Agora, não haveria objeto exterior
representado
pelos
mass
media,
como
também
não
haveria
sujeito comunicante dotado do poder de construção ou de
influência
(Sfez,
1994:101).
Restaria,
portanto,
à
arte
segmentação do mercado, propiciada, aliás, pelas novas
tecnologias, como a ideologia do "pós-industrialismo". Neste
sentido, é apenas aparente a contradição existente entre o
processo "globalizador" da economia e o atendimento a um
mercado
cada
vez
mais
"local",
aproximando-se
da
individualidade do consumidor.
175
parodiar
a
pertuba(sic)
ordem,
essa
ilustrá-la,
ordem
que
é
simulá-la,
também
a
mas
nunca
sua(Baudrillard,
1972:125).
Embora
Baudrillard
descreva
com
perspicácia
vários
traços essenciais de nossa época e aponte para a importância
das
novas
tecnologias
na
formação
do
zeitgeist
contemporâneo, peca em sua absolutização de tais fenômenos.
Se é incontestável que a presença desta hiperrealidade
afeta as nossas relações individuais e sociais bem como
nossas relações com o mundo construído, é também certo, como
mostra Sfez, tratar-se de um filtro ou quadro simbólico,
como um meio de conhecimento entre outros que, embora cada
vez mais interiorizado e não percebido como tal, é passível
de crítica e intervenções desviantes. A absolutização destes
fenômenos além de não apreender a realidade em suas forças
contraditórias, pode tomar como causa aquilo que não passa
de
sintoma,
não
dando
conta
da
pragmática
das
imagens
eletrônicas em nossa sociedade.
No momento em que a "auto-determinação"
capitalista
configura um novo quadro de exclusão social, esta estranha
coalização dos que defendem, sem qualquer mediação crítica,
os ganhos epistemológicos e sociais dos novos mídia
aqueles
101-
que
apostam
na
tese
da
simulação
com
generalizada101
Insistindo na incapacidade de se distinguir entre a
realidade e a ficção.
176
corre o risco de obliterar a própria realidade, de passá-la
por uma "assepsia" que mascare aquilo que não é para ser
visto (assim como a "operação cirúrgica"da Guerra do Golfo
mascarou os corpos das vítimas).
Uma postura mais afeita as interrelações entre as novas
tecnologias e o atual contexto histórico é dada por Paul
Virilio para quem o advento das novas tecnologias são o
sintoma de uma nova temporalidade que, colocando em crise os
diversos sistemas de referências do passado, permite uma
nova experiência perceptiva.
Da mesma forma como os regulacionistas apostam numa
"regulação" mais ou menos automática do sistema capitalista,
sem levar em conta seu funcionamento contraditório, Virilio
chegou a apostar numa "ecologia CINZA". Uma "reorganização"
do
ecossistema
tecnológico,
dedicada
ao
aparecimento
intempestivo desta "Cidade-Mundo" totalmente dependente das
telecomunicações (Virilio, 1993).
Falando da redução da cidade a um sistema de audiência
eletrônica,
flutuar
onde
"em
espaciais,
difusão
um
mas
os
éter
elementos
eletrônico
inscrito
instantânea",
na
arquitetônicos
desprovido
temporalidade
Viriliio
serve
de
de
passam
a
dimensões
única
de
uma
referência
aos
partidários da "Cidade Digital", uma netrópolis(net=redes)
composta de infovias que começa a se delinear em torno das
redes
de
comunicação
via
computador.
As
possibilidades
177
comunicacionais- tidas como ilimitadas- abertas por estas
redes estão sendo enaltecidas sobretudo pelos teóricos e
profissionais da comunicação102 que vêem, na generalização
das redes e na ausência de um emissor central, a abertura de
leituras plurais.
Entretanto,
como
reconhece
o
próprio
Virilio,
tal
processo não é isento de contradições e não representa,
necessariamente,
um
ganho
social
e
político,
mas
uma
"interpretação óptica 'subjetiva' dos fenômenos observados"
que
levaria
cegamento
a
sociedade
a
voluntário".
um
mergulho
Aos
na
ganhos
"noite
de
oriundos
um
do
desenvolvimento das infovias se somaria uma "desorientação
fundamental"103: um desdobramento da realidade sensível entre
o real e o virtual visto como uma novo tipo de tirania. Um
risco
comparável
ao
da
bomba
atômica-
"La
bombe
informatique, aprés l'atomique"104.
Embora
tal comparação nos pareça apressada e não haja
como negar a importância e os ganhos obtidos com estas novas
tecnologias,
tecnológico
uma
não
possibilidades,
102-
"reorganização"
passa,
dependente
entretanto,
da
do
de
articulação
"ecossistema"
um
de
campo
de
diversos
Ver, por exemplo, a publicação do Grupo de Estudos "Nova
Teoria da Comunicação" da ECA-USP - Atrator Estranho.
103- Trata-se, segundo Virilio, de um processo tecnológico
que acompanha a desregulação social e a desregulamentação
dos mercados financeiros.
104- Cf. Virilio, 1995.
178
fatores contraditórios, parcialmente autônomos e, na maior
parte das vezes, independente das especificidades técnicas
dos meios.
Apesar de a história parecer ter dado razão a Adorno,
comprometendo os vínculos comunicacionais entre a arte e a
sociedade
antagônica,
nem
por
isso
devemos
deixar
de
imaginar a possibilidade de "pontos de fuga". Na medida em
que os criadores tomem consciência das limitações inerentes
ao fazer artístico no mundo contemporâneo e se desfaçam do
otimismo
acrítico
tecnologias,
que
talvez
cerca
possam
a
utilização
refuncionalizar
das
novas
seus
meios,
transformando-os em veículos produtores de novos sentidos e
sensibilidades.
Esta
é,
no
entanto,
uma
aposta
que,
coerentemente com as nossas análises a respeito da lógica
cultural do Capitalismo avançado, deve obrigatoriamente vir
acompanhada
Capitalismo
de
uma
mudança
e
na
de
configuração
sua
deste
mesmo
lógica.
179
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