PARA ALÉM DA
QUARENTENA:
REFLEXÕES SOBRE
CRISE E PANDEMIA
ANA LOLE ■ INEZ STAMPA
RODRIGO LIMA R. GOMES [ORGS.]
ANA LOLE ■ INEZ STAMPA
RODRIGO LIMA R. GOMES [ORGS.]
PARA ALÉM DA
QUARENTENA:
REFLEXÕES SOBRE
CRISE E PANDEMIA
APOIO:
ÍNDICE
19
Crise e pandemia da COVID-
•
ANA LOLE
— leituras interseccionais
CARLA CRISTINA LIMA DE ALMEIDA
•
INEZ STAMPA
•
RODRIGO LIMA
RIBEIRO GOMES
Crises históricas e naturalismo capitalista
STEFANO G. AZZARÀ
Pandemia e crise na União Europeia
PAOLO DESOGUS
:
Entre pandemia e crise orgânica
contradições e narrações
hegemônicas do capitalismo em colapso
GIANNI FRESU
A vigência do estado de sítio político na pandemia
•
MARCOS DEL ROIO
VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ
?
Urgente para quem
19
COVID-
A Lei de Urgente Consideração e a pandemia da
no Uruguai
MÓNICA BRUN BEVEDER
A epidemia e o fascismo
LINCOLN SECCO
A pandemia e a
‘
’
inteligência
VICENTE A. C. RODRIGUES
•
do presidente
INEZ STAMPA
.
Cortar ou não cortar, eis a questão
Crise orgânica, tensões no bloco
social dominante e ajustes na austeridade fiscal
RODRIGO CASTELO
:
Globalização e pandemia
o fim da hegemonia e a necropolítica
neoliberal
PEDRO CLÁUDIO CUNCA BOCAYUVA
A morte como projeto
VICTOR LEANDRO CHAVES GOMES
Revolução-restauração em tempos de pandemia
LUCIANA ALIAGA
19
Precarização do trabalho em tempos de pandemia da COVID-
PERCIVAL TAVARES DA SILVA
Aspectos da Educação brasileira em meio aos dilemas de um momento
dramático
RODRIGO LIMA RIBEIRO GOMES
19:
A crise provocada pela COVID-
antigos problemas em um novo
cenário
ANDREIA CLAPP SALVADOR
•
RAFAEL SOARES GONÇALVES
:
Pandemia e crise capitalista
•
VALÉRIA PEREIRA BASTOS
a situação das favelas
REGINALDO SCHEUERMANN COSTA
A violência que não respeita o isolamento
VITOR CASTRO
19:
COVID-
memórias e pesadelos para quase-cidadãos
MARCELO PAIXÃO
•
FLAVIO GOMES
Muito além da perda da libido
GUILHERME ALMEIDA
“
Entre a deriva e o naufrágio
”:
notas sobre a população LGBTI em
19
tempos de pandemia da COVID-
MILENA CARLOS DE LACERDA
19:
Povos indígenas em Alagoas e a COVID-
práticas e cuidados
MARLI DE ARAÚJO SANTOS
19
As mulheres e a pandemia da COVID-
•
RITA DE CÁSSIA SANTOS FREITAS
na encruzilhada do cuidado
CARLA CRISTINA LIMA DE ALMEIDA
•
ANA LOLE
Notas de uma travessia — reflexões de uma assistente social em
19
Portugal em tempo de pandemia da COVID-
MARIA INÊS AMARO
/
:
As os assistentes sociais na linha de frente
19
violência e violações de
direitos na pandemia da COVID-
ANTONIO CARLOS DE OLIVEIRA
19
A pandemia da COVID-
•
ARIANE REGO DE PAIVA
•
IRENE RIZZINI
e o trabalho de assistentes sociais na saúde
MAURÍLIO CASTRO DE MATOS
A relevância do trabalho dos assistentes sociais no enfrentamento à
19
pandemia da COVID-
MÁRCIA BOTÃO
•
NILZA ROGÉRIA NUNES
19:
O cuidado em saúde mental no cenário de pandemia da COVID-
experiência de
( )
re
organização do CAPS UERJ
ANA PAULA PROCOPIO DA SILVA
•
ANÁLIA DA SILVA BARBOSA
:
Monitoramento remoto com idosos
19
uma experiência de cuidado em
tempos de pandemia da COVID-
MARIA HELENA DE JESUS BERNARDOO
[
[
CRÉDITOS
]
LEIA TAMBÉM
]
a
•
TANIA DE OLIVEIRA
19
Crise e pandemia da COVID-
—
leituras interseccionais
1
ANA LOLE
2
CARLA CRISTINA LIMA DE ALMEIDA
3
INEZ STAMPA
4
RODRIGO LIMA RIBEIRO GOMES
Esta coletânea surge do desejo de elaborarmos um material para reflexão
sobre a grave crise societária em curso, agravada pela pandemia da COVID-
19,
que
cruzado
trouxesse
debates
interseccionais,
pois
estamos
vivendo
em
fogo
de múltiplas agendas reacionárias.
Para nossa surpresa e felicidade, todas e todos que convidamos aceitaram
prontamente participar do projeto e escreveram no “calor da hora”. Trata-
se, portanto, de um projeto coletivo viabilizado em parceria com a Mórula
Editorial, neste e-book com distribuição gratuita.
Sabemos que a crise e a pandemia se retroalimentam, pois as condições
de
vida
cada
vez
mais
precarizadas
para
a
imensa
maioria
da
população
aumentam as chances de contágio e de agravamento da doença. A pandemia,
por
sua
vez,
indispensável
uma
exige
para
economia
já
a
distanciamento
prevenção
combalida.
do
e
isolamento
contágio,
Neste
cenário,
social
impactando
o
gesto
da
como
medida
negativamente
editora
merece
registro destacado, assim como a generosidade das autoras e dos autores.
Esta coletânea reúne 27 capítulos e 39 autoras e autores do Brasil e do
exterior
(Itália,
França,
Portugal,
Estados
Unidos
e
Uruguai).
Quanto
à
estrutura, optamos por não dividir os textos por partes ou eixos temáticos,
porém iniciamos das discussões mais gerais e as agrupamos por afinidade de
conteúdo. O material aqui reunido traz reflexões de diversos lugares, tanto
em
termos
geográficos
profissionais,
o
que
como
mostra
em
a
relação
riqueza
de
a
experiências
um
trabalho
vividas
coletivo
e
com
participação plural.
O cenário político pandêmico é diferente nas diversas regiões do país e do
mundo, pois a forma de sociedades e governos lidarem com as medidas de
enfrentamento à COVID-19 não foi linear. Um exemplo foi o deboche do
presidente
da
República,
considerando-a
uma
no
Brasil,
sobre
“gripezinha”,
a
gravidade
denotando
da
uma
pandemia
espécie
de
malthusianismo social e demonstrando que a política de governo é uma práxis
neofascista.
Importante destacar que as ações advindas do governo Bolsonaro podem
ser
caracterizadas
de
diferentes
formas.
Embora
a
melhor
conceituação
ainda esteja em debate, e terá de incorporar o modo de ação do governo na
pandemia, defini-lo como neofascista ou protofascista é uma aproximação
razoável.
Nesta
caracterização,
é
importante
considerar
que
a
linha
que
separa a civilização da barbárie foi rompida quando empresários, acionistas
da
bolsa
de
quarentena,
valores
a
e
despeito
governo
das
se
posicionaram
consequências
para
a
pelo
imediato
vida
humana.
fim
A
da
ideia
subjacente é que a “seleção natural” irá agir na epidemia (darwinismo social):
os
mais
fortes
(como
os
“super-homens”
Bolsonaro,
o
dono
do
Madeiro,
entre outros tantos) sobreviverão, os fracos sucumbirão (LEHER, 2020).
A
Organização
março
de
2020,
mecanismos
capitalista
Mundial
da
acelerou
perversos
totalitário
a
sobre
sobre
a
Saúde
(OMS),
“compreensão
corpos
vida”,
ao
do
concretos”
pois
o
decretar
a
pandemia
neoliberalismo
e
“confirma
“neoliberalismo
o
em
em
seus
controle
mostrou
que
convive perfeitamente com máquinas de morte [...]. Mas agora o vírus, que
não discrimina por classe e não seleciona segundo o passaporte, montou um
ensaio geral da vida neoliberal como um espetáculo que vemos acontecer
online,
com
um
contador
CAVALLERO, 2020).
necropolítico
em
tempo
real”
(GAGO;
No momento em que esta publicação é fechada (29 de maio de 2020), o
mundo
já
computa
quase
seis
milhões
de
infectados
com
o
novo
coronavírus, com mais de 365.000 mortos, mais de 2.600.000 recuperados e
quase
3.000.000
Desses,
mais
de
de
casos
450.000
ativos,
casos
dos
estão
quais
no
53.691
Brasil,
em
onde
já
condição
crítica.
morreram
27.267
pessoas, foram curadas mais de 193.000 e ainda estão com a doença ativa
5
mais de 221.000, dos quais 8.318 são casos críticos.
Enquanto escrevíamos esta apresentação, precisamos acompanhar o site
worldometers.info
constantemente,
porque
os
números
de
vítimas
da
COVID-19 estão sempre em atualização. Embora o pico de mortes diárias no
mundo tenha sido verificado em meados de abril, algumas partes sensíveis
do
planeta,
social
e
que
combinam
pobreza,
como
densidade
Brasil,
Índia
populacional,
e
México,
enorme
desigualdade
apresentam
crescimento
preocupante na velocidade de difusão da doença.
A característica da doença, por si só, já torna difícil qualquer prognóstico
em
relação
à
pandemia,
rapidamente
pelas
manifestação
com
tornando
atitude
a
tarefa
social
cidades
retardo,
das
preventiva
espalhamento
somado
da
a
uma
vez
e
que
explode
auxílios
de
governos
COVID-19,
no
o
regiões
autoridades
dos
que
e
a
é
partir
de
muito
essencial
da
para
Sars-CoV-2
apresenta
saúde
sentido
econômicos
vírus
um
para
contrapor
de
momento,
Por
o
do
espalha
período
dado
difícil.
garantia
se
um
se
isso,
uma
combate
ao
distanciamento
aos
impactos
da
realização
de
quarentena nos empregos e nas empresas.
No
Brasil,
temos
uma
segunda
dificuldade
em
relação
à
qualquer previsão acerca dos impactos sociais e econômicos da pandemia: a
agenda reacionária e a irresponsabilidade política do presidente Bolsonaro,
que gera crises consecutivas, ameaças golpistas e um desdém e uma inépcia
inacreditáveis
em
relação
ao
combate
ao
novo
coronavírus,
sua
descontrolada pelo território nacional e um descaso pelos mortos.
difusão
Em reunião organizada em março deste ano, na qual foram apresentadas
as previsões do Ministério da Saúde sobre a pandemia no Brasil, Solange
Paiva Vieira, assessora do ministro da Economia do Brasil e uma economista
que comanda a Superintendência de Seguros Privados, minimizou os efeitos
sociais da crise sanitária no país, enxergando aspectos positivos em torno do
cenário
idosos
para
[…].
a
economia:
Isso
“É
melhorará
bom
que
nosso
as
mortes
desempenho
se
concentrem
econômico,
entre
pois
os
reduzirá
6.
nosso déficit previdenciário”
A atitude negacionista em relação à ciência, a pressão de empresários e as
ações
na
contramão
conduzindo
o
do
Brasil
a
razoável
por
condições
parte
do
trágicas,
governo
tanto
federal
sanitárias
estão
quanto
econômicas. Por muitos ângulos distintos, as autoras e os autores deste livro
procuram interpretar os movimentos combinados dessas duas crises, com o
intuito
de
contribuir
para
ações
políticas
que
nos
permitam
sair
da
pandemia em condições decentes de civilidade.
Neste sentido, esta coletânea mostra que a pandemia da COVID-19 tem
diferentes
evidentes
impactos
marcas
da
sociais
e
regionais.
violência
colonial
As
e
de
análises
gênero,
aqui
do
tecidas
genocídio
deixam
étnico-
racial, das sexualidades dissidentes, dos corpos invisibilizados e das vidas
sem
importância
que
compõem
as
sociedades
contemporâneas.
Os
impactos epidêmicos, ao longo do tempo, sempre estiveram dependentes
das
profundas
segmentações
exploração-dominação
de
e
relações,
grupos
historicamente
populacionais.
estruturadas,
Sociedades
desiguais
de
de
muitas formas, não apenas no cenário amplo da geopolítica, mas também
nas suas paisagens internas, no seu modus operandi. A COVID-19 conecta-se
com
um
projeto
capitulação
de
de
nação,
longamente
determinados
sujeitos,
(re)
a
formulado,
imposição
que
de
envolve
regimes
a
de
moralidade e sexualidade, de combate aos corpos.
Acontece
que
a
cegueira
ou,
ainda,
a
clara
decisão
de
não
se
ver
essas
violências, constituintes do modelo capitalista de ontem e de hoje, não se
sustentam mais. A pandemia faz cair o véu, o capital-rei está nu em todo
canto do planeta Terra. Não é privilégio de algumas nações.
O
mundo
horror
de
pré-pandemia
mortes
embalava
anunciadas,
o
silêncio
banalizadas
e
cotidiano
até
em
esperadas.
torno
Mas
o
desse
nosso
veneno da madrugada, o novo coronavírus, tal como os pasquins de Gabriel
García Márquez (2014), revela aquilo que tudo mundo já sabe, cumprindo
apenas o ato, a função, de dar-lhes seu endereço.
Os
estudos
epicentro
da
aqui
apresentados
agenda
de
explicitam
enfrentamento
da
que
o
cuidado
pandemia,
em
ascende
suas
ao
várias
e
diversas semânticas. Na memória do eugenismo e higienismo o cuidado se
reatualiza
como
como
fique
em
controle,
casa,
Recomendações
anulação,
higienize
alheias
às
como
se
e
ambientes,
nas
periferias
mãos
vidas
tal
expressa
alimente-se
e
favelas,
em
narrativas
saudavelmente.
à
interdição
do
trabalho digno em nome de ajustes fiscais, às vidas que pulsam nas ruas,
prisões,
aldeias,
multidões
quilombos.
aglomeradas
a
Ou
filas
ainda,
de
humilhação
fome
e
de
e
desespero,
angústia
por
ao
um
lançar
auxílio
emergencial, atiradas à sua própria sorte, ao desgoverno.
Encontramos rotas de fuga nas semânticas do cuidado e muitas agências
de
sujeitos,
sobretudo
solidariedade
assistência
e
de
seus
saúde,
mulheres,
territórios
travam
que
e
no
na
espaço
linha
cotidianamente
doméstico,
de
o
frente
bom
nas
do
redes
trabalho
combate.
de
de
Adoecem,
padecem, se arriscam, sofrem todo tipo de sobrecarga e desprezo, morrem
dentro e fora de suas casas. Histórias que expressam energia ancestral, uma
força-matriz; acende utopias?
Especial destaque é dado ao trabalho de assistentes sociais, profissão que
na
divisão
social
e
social
do
trabalho
profundamente
destruição
de
profissionais
vidas
na
e
gestão
está
historicamente
familiarizada
de
seus
de
com
corpos.
serviços,
na
a
vinculada
perversa
Alguns
textos
assistência,
à
reprodução
engrenagem
mostram
na
da
esses
produção
de
conhecimento,
fabulando
em
muitas
contracorrentes
a
ética
do
cuidado
essencial.
E isso nos faz voltar ao início, sobre o estímulo em reunir em uma mesma
obra estudos, opiniões, relatos tão necessários diante de crise econômica,
política e sanitária de tais proporções, agora potencializada pela pandemia.
A humanidade está sendo interpelada sobre as alternativas possíveis. Neste
campo, a defesa resoluta de direitos sociais é tarefa urgente em qualquer
canto
do
planeta,
mais
ainda
onde
eles
estão
sendo
solapados
visceral
e
ferozmente e em velocidade antes nunca vista, como é o caso do Brasil, a
urgência é ainda maior.
Pelo
que
possível
7
conhecemos
discriminar
quilombola
pesava
já
em
mais”
Cada
vez
Não
[sic]),
mais
o
Paulista.
fazem
nada.
população
índio
é
manifestações
considerados
Eldorado
arrobas.
serve
os
nas
um
Eu
indígena
ser
fracos:
mais
Olha,
o
humano
negros
afrodescendente
acho
(“o
presidenciais,
que
índio
igual
a
nem
para
mudou.
nós”
aqui
seria
(“Fui
num
mais
leve
procriador
Está
[sic]),
lá
ele
evoluindo.
nordestinos
(“Daqueles governos de paraíba, o pior é do Maranhão. Tem que ter nada
com esse cara” [sic]) e marxistas ‘culturais’, todos estes, claro, selecionados
ainda mais negativamente se mulheres. Implicitamente, os moradores das
favelas, em geral” (LEHER, 2020).
Se não existe consenso sobre as medidas protetivas e preventivas para
enfrentar
e
alternativas
conter
após
o
a
pandemia
fim
da
da
COVID-19,
pandemia.
A
menos
ainda
continuidade
das
sobre
as
políticas
neoliberais, cada vez mais extremadas em virtude da crise, não afastará a
possibilidade de que muitos irão perecer por falta de condições materiais de
vida.
A
questão
da
necessidade
de
estabelecimento
de
estratégia,
mundo
afora, para pensar a vida em sociedade pós-pandemia é clara e deve ser o
principal
eixo
importam.
articulador
dos
que
defendem
e
lutam
porque
vidas
que
Esperamos
reflexões
que
sobre
a
os
debates
grave
crise
reunidos
que
nesta
assola
o
coletânea
mundo,
em
contribuam
particular
para
sobre
a
pandemia, mas, também, possam dar pistas para pensarmos sobre os rumos
políticos
do
Brasil.
Uma
“nova
direção
intelectual
7
e
moral”
é
preciso.
Desejamos uma boa leitura!
REFERÊNCIAS
GAGO,
Verónica;
feminista
Teorias
CAVALLERO,
para
e
o
Luci.
Dívida,
pós-pandemia.
Práticas
moradia
Medium,
Feministas
18
e
trabalho:
abril
(PACC
2020.
-UFRJ).
uma
agenda
Laboratório
Disponível
de
em:
https://medium.com/laborat%C3%B3rio-de-teorias-e-pr%C3%A1ticas-
feministas-pacc/d%C3%ADvida-habita%C3%A7%C3%A3o-e-trabalho-
uma-agenda-feminista-para-o-p%C3%B3s-pandemia-9776cad9c302.
Acesso em: 29 maio 2020.
GARCÍA
MÁRQUEZ,
Gabriel.
O
veneno
da
madrugada
(a
má
hora).
Trad.
Joel
Silveira. Ilustrações Carybé. 14 ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.
GRAMSCI,
Antonio.
filosofia.
A
Cadernos
filosofia
de
do
cárcere.
Benedito
Vol.
1:
Croce.
Introdução
Rio
de
ao
Janeiro:
estudo
da
Civilização
Brasileira, 1999.
LEHER,
Roberto.
Darwinismo
social,
epidemia
e
fim
da
quarentena:
notas
sobre os dilemas imediatos. Carta Maior, 29 mar. 2020. Disponível em:
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Darwinismo-social-
epidemia-e-fim-da-quarentena-notas-sobre-os-dilemas-
imediatos/4/46972. Acesso em: 29 maio 2020.
NOTAS
|
1
Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). Membro da Coordenação Nacional da International Gramsci Society Brasil (IGSBrasil).
Pesquisadora
no
Núcleo
de
Estudos
e
Pesquisas
em
Filosofia,
Política
e
Educação
(NuFiPE/UFF) e no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Políticas Públicas e Serviço Social
(TRAPPUS/PUC-Rio).
2
|
Professora Associada da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Coordenadora do Núcleo de Estudos Família e Gênero (UERJ).
|
3
Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro
(PUC-Rio).
Coordenadora
do
Grupo
de
Estudos
e
Pesquisas
sobre
Trabalho,
Políticas
Públicas e Serviço Social (TRAPPUS/PUC-Rio). Membro do Opening The Archives Project.
|
4
Professor
Adjunto
do
Instituto
de
Educação
de
Angra
dos
Reis
da
Universidade
Federal
Fluminense (UFF). Pesquisador no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação
(NuFiPE/UFF). Membro da Conselho Nacional da International Gramsci Society Brasil (IGS-Brasil)
|
5
Disponível
em:
https://www.worldometers.info/coronavirus/.
Acesso
em:
29
maio
2020.
O
Worldometer é um site de referência que fornece contadores e estatísticas em tempo real para diversos
tópicos. Ele pertence e é operado pela empresa de dados Dadax (empresa de soluções de software
focada
em
tecnologias
e
aplicativos
da
web,
situada
em
Xangai),
que
gera
receita
por
meio
de
publicidade online.
|
6
Ver,
entre
outros:
https://revistaforum.com.br/politica/coronavirus-assessora-de-guedes-
enxergava-morte-de-idosos-como-positiva-para-reduzir-deficit-previdenciario/;
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/05/veja-as-perolas-que-ja-foram-ditas-sobrea-pandemia-no-brasil.shtml. Acesso em: 29 maio 2020.
7
|
Gramsci (1999).
Crises históricas e naturalismo
8
capitalista
9
STEFANO G. AZZARÀ
As crises agudas evidenciam as contradições, fragilidades e linhas de falha
de
cada
sociedade
econômico.
Ao
histórica,
longo
dos
bem
como
tempos,
de
todo
guerras
em
sistema
larga
político
escala,
e
quedas
repentinas na produção, erupções revolucionárias, terremotos, fome, mas
também
nações
epidemias
e
sujeitaram
perturbaram
suas
o
funcionamento
estruturas
a
tensões
normal
imprevistas,
da
às
vida
das
vezes
até
mesmo levando-as ao colapso, quando essas tensões ultrapassavam o nível
do
limiar
e,
em
particular,
quando
podiam
alavancar
fraturas
anteriores
profundas que, até então, haviam permanecido mais ou menos ocultas ou
haviam
sido
completar
a
suturadas
pesquisa
redistributivo
dos
de
de
alguma
Walter
“Quatro
forma.
Scheidel
Cavaleiros”
—
Assim,
sobre
o
“guerras
seria
interessante
impacto
de
nivelador
massa,
e
revoluções
transformadoras, fracassos estatais e pandemias letais” —, investigando “se
e
como”
a
assimetrias
presença
de
poderiam
formas
graves
“contribuir
de
para
desigualdade
gerar
esses
social
choques
ou
outras
violentos”
(SCHEIDEL, 2018, pp. 6-7).
Nesse sentido, as sociedades capitalistas — e, sobretudo, aquelas mais
avançadas, como a maioria dos países pertencentes à civilização ocidental
—
deveriam,
em
princípio,
ser
mais
adiantadas
do
que
as
sociedades
tradicionais ou com uma organização de produção e reprodução diferente.
Embora certamente mais complexas do que as formações sociais anteriores
ou
concorrentes,
como
Gramsci
já
havia
compreendido
ao
mapear
sua
“robusta
cadeia
complexidade
de
que,
fortalezas
por
causa
e
casamatas”
de
seu
(Q7,
§
pluralismo,
16,
p.
866)
costuma
ser
—
uma
afirmada
também como uma característica positiva diante de possíveis configurações
alternativas e mais centralizadas do vínculo social —, especialmente desde a
Segunda
Guerra
Mundial,
essas
sociedades
têm
superado
grande
parte
o
problema da subsistência e das necessidades básicas em escala de massa.
Além disso, a racionalidade técnica e científica que preside sua organização,
concebida
cada
vez
mais
para
se
adaptar
às
flutuações
repentinas
do
mercado, deve, em princípio, ser capaz de reagir de forma adaptativa e até
proativa a qualquer contingência: desta forma, pelo menos, como salientou
Richard Sennet (2001), o processo de “especialização flexível” do trabalho
social
“redes
como
um
abertas”,
décadas.
E
todo,
tem
para
a
fim
sido
dar
de
derrotar
promovido
resposta,
os
com
“males
da
insistência
habituando-se
a
rotina”
ao
através
longo
de
“mudanças
de
muitas
súbitas
e
decisivas”, às necessidades de uma época que, dizia-se, com sua contínua
aceleração dos ritmos da vida e do consumo, e com seus problemas cada vez
mais globais, que a cada dia impunham uma sempre nova redefinição just in
time de todas as funções sociais, à medida que as necessidades da própria
sociedade mudavam, em resposta à sua esmagadora evolução interna, bem
como aos estímulos externos — na realidade, para “reduzir o custo direto e
indireto do trabalho” e para “reduzir o risco do negócio”, Luciano Gallino
(2007, p. 27) advertiu mais prosaicamente.
Todavia,
tal
característica
prevalecendo
potencial
mais
e
vantagem
profunda
prejudicando
competitiva
dessas
seu
nossas
desempenho
é
contrastada
sociedades,
no
por
que
momento
uma
acaba
que
são
chamadas aos testes mais extremos, a saber, sua natureza intrinsecamente
religiosa. Obviamente, não estou me referindo à fé religiosa entendida como
devoção
confessional,
que,
em
sociedades
amplamente
secularizadas
e
desencantadas como as da Europa — que seriam diferentes para os Estados
Unidos —, desempenha um papel marginal e que só recentemente retornou
a uma função peculiar, após passar por um processo parcial de redefinição
através
da
radicalização
fundamentalista,
também
como
resultado
do
10 mas sim a algo mais profundo.
impacto dos processos migratórios,
Em
conversa
com
Mauro
Bonazzi,
o
antropólogo
Giovanni
Kezich
observa que “nenhuma cultura é capaz de se conceber num espaço de tempo
infinito”, de modo que cada uma delas é levada da “perspectiva do colapso”
a imaginar até mesmo a aproximação de um “renascimento”, talvez através
11.
da passagem por um doloroso “sacrifício reparador”
menos
uma
exceção
essencial
a
esta
tese.
Para
Entretanto, há pelo
além
de
todas
as
suas
metamorfoses superficiais, a sociedade capitalista, de fato, pensa a si mesma
como fundamentalmente atemporal e, portanto, como permanentemente
suspensa num presente infinito, de modo que o movimento perpétuo que
também ocorre nela é, por sua vez, percebido como a manifestação aparente
de
uma
eternidade
substancial.
Um
falso
movimento
em
que
os
mesmos
mecanismos e relações de produção e as mesmas hierarquias são sempre e
em todo caso reafirmados, ainda que, por vezes, personificados por atores
diferentes,
como
no
contexto
de
uma
liturgia
que
permanece
sempre
idêntica a si mesma ao longo dos séculos e milênios.
Da famosa intuição de Walter Benjamin de que “no capitalismo deve ser
vislumbrada
uma
religião”,
deve-se
sublinhar
sobretudo
o
aspecto
“culpabilizante/indebitante”, isto é, a característica muito particular de que
essa religião “não expia o pecado, mas cria culpa/dívida”, com o resultado de
tornar essa má consciência “universal”, a ponto de até “envolver o próprio
Deus”;
e
foram
questionadas,
consequentemente,
sobretudo
suas
referências possíveis à “forma do dinheiro e do crédito”. Benjamin aponta
também,
religião
no
entanto,
puramente
que
essa
cultural”,
religião
que
é
capitalista
válida
como
é,
antes
pura
fé
de
tudo,
“uma
auto-referencial,
sem “nenhum dogma em particular, nenhuma teologia”. E diz que, para ele,
“não
há
importa
dias
é
de
semana”
apenas
“a
e
“não
duração
há
dia
que
não
permanente
seja
do
feriado”,
culto”.
O
pois
que
o
que
exige
“perseverança até o fim”, ou seja, perseverança como se nunca houvesse um
fim: perseverança eterna, precisamente, porque para ela não existe tal fim
(BEJAMIN, 2013, pp. 41-43,
passim
).
“É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”: é um
estado mental antes mesmo de ser o
foi
destacado
por
Fredric
Leitmotiv
Jameson
e
de uma visão de mundo, o que
depois
lembrado
por
Mark
Fisher.
Ambos se referem, nesta circunstância, à temporalidade particular do pós-
modernismo. Para Jameson, o capitalismo tardio marcou o fim da Utopia
como prefiguração crítica de uma forma alternativa de vida e de socialidade.
Em seu lugar está agora apenas “a invencível universalidade do capitalismo
que desmantela incansavelmente todo o progresso social”, de modo que, em
seu
horizonte,
domina
irreversibilidade
dessa
“a
convicção
tendência,
universal
mas
da
não
apenas
impossibilidade
da
e
não
praticabilidade das alternativas históricas ao capitalismo, a certeza de que
nenhum outro sistema socioeconômico é concebível ou ainda menos viável
na
prática”
(JAMESON,
2007,
pp.
10,
39,
122,
166,
216,
236,
252,
271,
286,
passim
).
Enquanto a “era moderna” ainda deixou uma série de “rotas de fuga” de
um “espaço social” ainda não totalmente “colonizado”, o pós-modernismo
fecha
definitivamente
essas
“fendas”
na
“perspectiva
de
um
concreto
Mercado mundial”. Aqui a Utopia degenerou em uma cópia do existente,
uma
“réplica
do
sistema”,
muitas
vezes
na
figuração
da
“teoria
da
conspiração”. O romance de fantasia, ficção científica, o romance histórico
pós-moderno, implementa programaticamente um “processo de redução ao
presente
e
abolição
do
passado
e
do
futuro”,
numa
espécie
de
“desnaturação” em que “a história se torna uma torrente desconcertante de
puro
e
tempo,
simples
não
devir”,
podemos
“temporalidade
um
nos
vazia,
“fluxo
no
mergulhar
que
na
qual,
nem
realidade
como
uma
Cratilo
vez”.
deixa
Ou
disse
seja,
inalterada
a
há
muito
surge
uma
estrutura
fundamental” e que envolve uma “eliminação da historicidade”: “é o futuro
da globalização em que nada é respeitado na sua particularidade e tudo se
torna presa do lucro e do sistema de trabalho assalariado”. Da mesma forma,
para
Fisher,
político
e
o
“realismo
econômico
capitalista”
viável
hoje”.
constrói-se
Um
sistema
como
ao
qual
“o
é
único
sistema
“impossível
até
mesmo imaginar uma alternativa coerente” e que define as características
de “uma cultura que privilegia apenas o presente e o imediato”, de tal forma
que “a remoção do pensamento de longo prazo se estenda não apenas para
frente
no
tempo,
mas
também
para
trás”,
como
se
o
nosso
tempo
fosse
afetado por gravíssimos “distúrbios de memória” (FISHER, 2018).
Embora seja, hoje, particularmente pervasivo, o fenômeno dessa ilusão
óptica, no entanto, não esperou o advento da “compressão espaço-tempo”
(HARVEY,
1993,
pp.
186,
296
seq.,
et
319
et
seq.)
pós-moderna
para
se
manifestar, pois é uma forma de reflexão que, no capitalismo, se apresenta
como
estrutural
e
congênita.
Como
Marx
observou
em
sua
crítica
à
economia política, através dos funcionários ideológicos que produzem sua
autoconsciência,
sociedade
desde
burguesa
essencialmente
seu
início
considera
“naturais”,
ou
e
já
suas
seja,
as
em
seus
estágios
próprias
leis
considera
preparatórios,
de
como
a
funcionamento
as
leis
normais
e
constantes que regem o desdobramento da atividade econômica como tal e
em
torno
das
terminando
quais
por
todo
recolher
o
complexo
delas
sua
social
própria
sempre
imagem
teria
peculiar
se
da
movido,
natureza
humana mesma. Que “o trabalho representa a si mesmo no valor, e a medida
do valor através da sua duração temporal representa a si mesma na grandeza
de
valor
do
mercadoria,
formação
produto
do
entende-se,
social
na
qual
trabalho”,
assim,
o
a
processo
diz,
falando
origem
de
sobre
destas
produção
o
fetichismo
“fórmulas”
controla
os
em
da
“uma
homens
e
o
homem não controla ainda o processo produtivo” (MARX, 1989, pp. 112-113).
A
“forma
de
valor”
é
concebida
aqui
como
“a
eterna
forma
natural
de
produção social”. Ou seja, são fórmulas historicamente determinadas, que a
“consciência
burguesa”
percebe
como
“necessidade
natural”,
uma
necessidade que é “tão óbvia quanto o próprio trabalho produtivo”.
Segue-se
organismo
religiões
religião
que,
para
social
de
pré-cristãs
do
único
a
economia
produção
são
Deus
são
tratadas
que
política,
“as
tratadas...
pelos
realmente
Padres
existe
formas
mais
da
é
pré-burguesas
ou
menos
Igreja”,
agora
a
do
como
porque
religião
a
as
única
do
Deus
capital. No Robinson Crusoé que encontra, em condições excepcionais, o
estado
da
indivíduo
natureza,
moderno
e
que
nela
se
comporta
potencialmente
espontaneamente
proprietário,
sem
ter
como
consciência
um
do
caráter historicamente condicionado de sua própria reflexão, constituição e
ação — e nas “robinsonatas”, nas “invenções sem imaginação” de Smith e
Ricardo, que fazem iniciar a produção partir do “único e isolado pescador e
caçador”, em vez de indivíduos cuja existência é “socialmente determinada”
— reflete, antes de tudo, a autoconsciência de um modo de produção em
formação,
o
capitalista,
que
se
concebe
como
o
único
mundo
verdadeiramente possível e a única formação social que sempre existiu: são
os traços de um culto sistêmico autorreferencial que funciona como uma
religião
capitalista
implícita.
É
porque
o
tempo
foi,
desde
o
início,
hipotecado pelo capital — portanto, quando esta ideologia se desdobrou e
estabilizou completamente —, que é impossível opor à sociedade capitalista
qualquer possível antecipação de um “novo mundo” que seja diferente dela.
É certamente um paradoxo que esta ideologia naturalista, ou seja, a ilusão
da
naturalidade
permanecido
metafísica
intacta
na
da
cultura
própria
ocidental
ao
constituição
longo
do
social,
século
XX.
tenha
György
Lukács poderia observar, nas primeiras décadas do século, passado que, para
a sociedade burguesa, “é uma questão de vida, por um lado, apreender sua
própria
ordem
produtiva
como
se
sua
forma
fosse
determinada
por
categorias válidas de modo atemporal, portanto, destinadas pelas eternas
leis
da
natureza
e
da
razão
a
uma
eterna
permanência;
e,
por
outro
lado,
avaliar como meros fenômenos superficiais, e não como inerentes à essência
dessa
ordem
reaparecem”
continua
de
produção,
(LUKÁCS,
sendo
urgente
as
1973,
p.
mesmo
contradições
15).
no
No
final
que
entanto,
desse
inevitavelmente
esta
século
e
“questão
no
novo
vital”
milênio.
Única forma de ideologia que mantem sua força em meio à dissolução das
visões
globais
de
mundo
e
do
niilismo
desenfreado
dos
valores,
essa
projeção parece até ter se fortalecido em nossos dias, de modo que a religião
autorreferencial
concorrentes
capitalista
que
agora
não
parece
podem
ter
competir
diante
pelo
de
si
culto
outras
das
divindades
massas.
Mas
a
civilização ocidental não seria caracterizada por uma peculiar capacidade de
autoconsciência? Não tem trazido consigo, pelo menos desde o século XIX,
uma
incessante
autorreflexão
sobre
sua
própria
história,
de
modo
a
se
inebriar, durante muito tempo, por uma cultura historicista sufocante que
“esmaga”
o
sujeito
impedindo-o
de
sob
“a
grande
“sentar-se
no
e
sempre
limiar
do
crescente
carga
momento”,
do
passado”,
inibindo
qualquer
capacidade de ação — como lamentava Nietzsche, ao mostrar que “existe
certo
grau
vivente
é
de
insônia,
atacado
e,
de
ao
ruminação,
fim
perece,
de
sentido
tratando-se,
histórico,
no
qual
posteriormente,
o
de
ser
um
homem, de um povo ou de uma civilização”(NIETZSCHE, 1976, pp. 265-355,
263-264,
chave
)? E não é precisamente nessa consciência historicista, em
inversa,
finitude
toda
passim
que
humana
pretensão
a
à
se
identifica
qual,
na
“verdade
também
medida
em
absoluta”
a
que
e
raiz
dessa
contesta
toda
compreensão
da
intransigentemente
mistificação
que
fala
em
essências sobrenaturais, é, em grande parte, entendida como sinônimo de
liberdade
e
Benedetto
“pluralismo
Croce
de
(2003)
concepções
protestou
éticas”
contra
(ANTISERI,
os
muitos
2005),
como
“formalistas
da
energia” e os “partidários da vida pela vida”, que, já naquela época, queriam
“a imposição de cima do ritmo da vida” e uma “regra” que, “ao invés de ser
criada pelo homem como seu instrumento, deveria ela criar o homem”?
Na realidade, é justamente essa consciência historicista da ligação entre
continuidade e mudança histórica, adquirida de forma sistemática, antes de
tudo, através da reflexão hegeliana sobre a história, que que foi reduzida em
peças por décadas de desconstrução pós-moderna das “grandes narrativas
especulativas e emancipatórias”, e da categoria do progresso. A crítica da
filosofia
da
histórico,
história,
redefiniu
o
a
desafio
de
percepção
toda
teologia
dominante
do
imanente
tempo
em
do
processo
termos
de
uma
simultaneidade eterna em que tudo é contemporâneo a todo o resto, numa
espécie de eterno presente. Não existe sequer a posteriori — segundo aquela
“racionalidade post festum”, para a qual “um evento que, no imediato, parecia
incompreensível,
posterior
do
talvez
completamente
entrelaçamento
das
sem
causas
sentido,
que
o
no
conhecimento
produziram
se
encaixa
perfeitamente no necessário curso causal-legal da história” (LUKÁCS, 1976,
pp. 347-348), como Lukács ainda alegava, com base na Coruja de Minerva, no
Prefácio da Filosofia do Direito — a possibilidade de traçar um sentido geral
da história. Nem, tampouco, este significado pode ser inscrito na história
pela
ação
consciente
e
organizada
dos
homens,
pois
a
consistência
do
sujeito é duvidosa e a própria história nada mais é que um nome, a metáfora
de
um
campo
de
eventos
não
confiáveis,
a
expressão
de
forças
que
interagem de forma completamente aleatória.
Mas,
poderia
consciência
o
trabalho
histórica
se
pós-moderno
não
estivesse
ter
usado
desde
o
tão
início
profundamente
sob
o
controle
a
da
ideologia burguesa, ou seja, a autoconsciência da sociedade capitalista? Para
verificar essa contradição entre o peso da memória e a leveza irresponsável
do imediato, não há necessidade de esperar até a segunda metade do século
XX
para
se
referir
à
reestruturação
específica
da
temporalidade
no
pós-
modernismo. Já em meados do século XIX, Marx sempre pôde notar, com
ironia, como a história já havia existido para os intelectuais burgueses, “mas
agora não existe mais”. Como, na percepção geral, com a generalização do
valor
de
troca
capitalista,
que
e
a
expansão
suplantou
à
da
força
propriedade
toda
burguesa
formação
social
e
do
mercado
anterior
e
mais
atrasada, o espírito do mundo havia chegado ao seu estágio final, definitivo e
eterno de perfeição.
A
força
com
que
se
impõe
um
processo
irrefreável
é,
portanto,
a
naturalização da força com se impõem os interesses determinados de certos
setores sociais e a visão de mundo que os legitima: este é o fato original que
subjaz à peculiar percepção da temporalidade capitalista. Foi o que Francis
Fukuyama (1989) explicou, em sua forma mais vulgar, há vários anos, com
seu
conhecido
intelectuais
absoluto
slogan
burgueses
do
ideológico;
como
liberalismo
a
em
um
slogan
representação
sua
versão
há
do
muito
desejo
abstrata
sonhado
de
um
pelos
consenso
universalista.
E
que
finalmente só foi possível com a vitória sistêmica do Ocidente no final da
Guerra
Fria,
história,
antes
forçando
redescobrir
a
de
o
afundar
último
rapidamente
de
irredutibilidade
seus
das
após
as
sonhadores
identidades
negações
a
mudar
coletivas
pontuais
de
da
posição
e
(FUKUYAMA,
2019). E é justamente essa aceitação da força irresistível do capitalismo, que
é quase inata nos nativos e que, em sua ingenuidade, é comparável às formas
mais primordiais de consciência, que mais uma vez justifica hoje a aplicação
ao
capitalismo
de
categorias
de
culto
religioso,
se
não
aquelas
de
pensamento mágico.
Nessa perspectiva, no momento em que um evento excepcional desafiou
dramaticamente
abalou
também
significados
não
a
atual
só
fé
a
ordem
acrítica
—
“nada
na
estabelecida,
eternidade
será
como
mas,
mais
inescrutável
antes”;
“será
profundamente,
do
que
horizonte
o
de
capitalismo
sobreviverá?”: são os medos, ou as esperanças, ou os exorcismos que, desde
as primeiras horas desta pandemia, ressoaram fortemente em várias frentes
—,
teria
sido
muito
abruptamente
de
útil
seu
para
o
Ocidente,
sonho
de
forçado
de
imortalidade,
repente
a
despertar
excecionalidade
e
autossuficiência, o rompimento do “muro”, com a abertura das “fronteiras
entre ‘nós’ e os ‘bárbaros’”, como escreve Rocco Ronchi, para “tomar conta...
do
destino
da
comunidade
mundial”
e
para
“pensar
em
soluções
12.
‘comuns’”
com
a
sua
dogmático,
Teria sido útil para o Ocidente finalmente acertar as contas
própria
e
poder
teologia
se
implícita,
confrontar
—
com
seu
finalmente
próprio
—
com
monoteísmo
o
outro.
Com
modelos de organização social e com visões do mundo que, já antes da crise
agora
em
curso,
determinados
sobrevalorizar
considerar
vinham
setores
a
a
corroendo
se
que
é
ilusão
considerarem
perspectiva
aquele
a
um
a
partir
pequeno
o
da
gratificante
todo,
qual
ângulo
e
que
os
observam
como
se
que
conduz
estimulam
o
fosse
mundo,
não
“o
a
a
meu
ponto de vista sobre o mundo”, e, portanto, “um dos objetos deste mundo”
—
como
dizia
fenomenológico
Merleau
da
Ponty,
percepção
falando
—,
mas
sobre
“a
o
corpo
geometria
no
[...]
de
processo
todas
as
perspectivas possíveis” (MERLEAU-PONTY, 1965, pp. 113 e 117). “O termo
sem perspectiva a partir do qual é possível derivar tudo”, e esse é o ponto de
vista de Deus. De que outro se trata, então?
Em
seu
livro
A
Conquista
da
América,
Tzvetan
Todorov
colocou
precisamente “o problema do outro” e, à luz da experiência de Colombo e
Cortés, perguntou: “como se comportar em relação ao outro”? (TODOROV,
1984, p. 6). Esse primeiro encontro fortuito em San Salvador, disse ele, terá
“valor paradigmático”, porque a partir desse momento, “a Europa Ocidental
tentou assimilar o outro, fazer desaparecer a alteridade externa, e em grande
parte conseguiu”, já que “seu modo de vida e seus valores se espalharam por
todo
o
mundo”.
Precisamente
a
partir
dessa
experiência,
“impondo
seu
domínio sobre todo o globo em virtude de sua superioridade”, o Ocidente
“esmagou
dentro
de
si
a
capacidade
de
integração
com
o
mundo”
(TODOROV, 1984, p. 119), abrindo um abismo com o qual ainda estamos
lidando.
O poder paradigmático desse evento estava ligado, para Todorov, ao fato
de que, ao contrário de outros encontros anteriores com outras civilizações,
o
de
1492
estava
baseado
em
um
“sentimento
de
estranhamento
radical”
(TODOROV, 1984, p. 7). Justamente porque “ele não consegue perceber o
outro”,
1984,
o
p.
homem
61)
e,
no
encontro/choque
branco
limite,
de
“lhe
o
que
impõe
seus
extermina.
Todorov
próprios
Mas
fala
é
é
valores”
mesmo
(TODOROV,
assim?
realmente
a
O
modelo
experiência
de
mais
original da alteridade? É duvidoso. As “pessoas nuas” que se movem “entre
as
aves
e
as
árvores”,
esses
seres
“privados
de
qualquer
propriedade
cultural”, “de linguagem”, “de leis e de religião”, o que inevitavelmente leva
a “mal-entendidos” e estimula uma “assimilação à natureza” não esgota em
nada
a
fenomenologia
do
outro
(TODOROV,
1984,
p.
41-42).
O
outro
de
Colombo não é na verdade o outro absoluto, mas apenas um outro parcial e
esse
encontro
não
foi
realmente
tão
radical
quanto
parece.
O
próprio
Todorov explica como em sua topologia da alteridade ou o homem branco
“pensa nos índios... como seres humanos completos”, e por isso mesmo não
os
vê
“este
seus
como
tipo
“iguais”,
de
próprios
mesmo
considera-os
comportamento
valores
homem
sobre
branco
os
leva
“idênticos”
à
vontade
outros...
“nega
a
a
si
mesmo,
assimiladora,
considerados
existência
de
uma
de
à
modo
que
projeção
inferiores”;
substância
ou
de
esse
humana
verdadeiramente diferente”, mesmo que “em grau inferior e imperfeito”, e
considera os nativos como meros “objetos vivos”. Bem, em ambos os casos
não temos um encontro real com o outro entendido como o outro absoluto,
porque o que se encontra é o assimilável (o inferior), ou um mero objeto
(TODOROV, 1984, p. 51).
Este
não
é
o
paradigma
do
confronto
verdadeiramente
radical
com
o
outro. Não pode ser o confronto com o outro entendido genericamente, isto
é, com o outro que sabemos muito bem que somos nós mesmos; nem pode
ser o encontro com o outro tornado utilizável e fungível, isto é, com o outro
desumanizado e reificado, que pode ser reconhecido facialmente e incluído
pelo menos em parte por sua utilidade objetiva ou instrumental. François
Jullien nos lembra que “pensar o contrário é a tradicional palavra de ordem
da
filosofia,
acessar
ou
outra
melhor,
coisa,
é
como
o
seu
se
sonho
antigo”
aproximar
dela?
(JULLIEN,
Você
pode
2020).
“Como
realmente
fazer
isso?”,
ele
pergunta.
Na
realidade,
“àquilo
que
atribuímos
a
condição
de
‘outro’”, assim o deixa de ser quando, como acontece na maioria das vezes,
passamos a defini-lo como “o oposto”. Assim concebido, o outro “fica na
op-posicionado’,
frente, ‘em frente’, ‘
“já
definido,
“uma
coisa
inerte
e
diametralmente localizado” e, portanto,
consolidado”
completamente
como
diferente”,
“contrário”
um
“Outro
a
nós.
eficaz
Deixa
que
de
ser
também
se
revela inédito”, para se tornar “igual... mas invertido”, algo em que “nada
excede”. Algo que cessa, que nos coloca “de frente com o desconhecido”. A
verdadeira comparação com o outro, então, é, se alguma coisa, a comparação
com o “totalmente outro”. Com aquele outro que deve ser absolutamente
excluído e cujo descaso também impede aquele entendimento relativo (no
sentido
da
capacidade
elementares)
que
de
Cortés
entender
mostrou
pelo
para
menos
com
a
os
traços
civilização
culturais
asteca,
porque
representa para nós uma alternativa estratégica total, isto é, representa o
inimigo absoluto, aquele cuja existência por si só questiona a nossa própria.
Mas
do
qual,
antagonismo,
ainda
segundo
compreendendo
Jullien,
que
é
a
só
“se
partir
pode
desse,
tentar
através
superar
da
troca
o
de
determinações opostas, que se pode suceder um futuro”.
Se assim for, não é de se admirar, nesse sentido, que, incapaz de qualquer
autocrítica,
secularismo,
Ocidente,
ao
e
a
também
religião
invés
incapaz
de
capitalista,
disso,
seja
ou
zelosa
qualquer
melhor,
em
a
impulso
de
autêntico
autorreferencialidade
procurar
circunscrever
do
aquele
peculiar contágio que parecia vir de um país em particular, de um “outro”
em particular: a República Popular da China. A qual, embora ainda não tenha
saído completamente do subdesenvolvimento e esteja apenas na primeira
etapa de um longo caminho, em virtude de suas características estruturais
básicas da democracia socialista — em primeiro lugar, do papel de direção
que
a
política
consequente
continua
de
a
operar
desempenhar
uma
vasta
em
relação
síntese
à
social
economia,
faz
com
a
prevalecer,
sistematicamente, os interesses da maioria sobre os interesses privados —,
parece, até este momento, ter enfrentado a emergência de modo muito mais
eficaz do que conseguiram as nações capitalistas.
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Tzvetan. La conquista dell’America. Il problema dell’“altro”. Torino:
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NOTAS
8
|
Apresentamos aqui o primeiro capítulo de um livro, Il virus dell’Occidente. Universalismo astratto e
sovranismo
particolarista
di
fronte
allo
stato
d’eccezione,
a
ser
publicado
em
breve.
A
tradução
deste
capítulo do italiano para o português é de Gianni Fresu.
9
10
|
Università di Urbino, Italia.
|
Cf. Miccoli (2011); Bertoletti (2020). Para uma análise acerca do catolicismo fundamentalista, cf.
Mattei (2011).
11
|
“Ci siamo scoperti fragili come Edipo”, conversas de Mauro Bonazzi com Giovanni Kezich,
Corriere
della
Sera
–
La
Lettura,
26
de
abril
de
2020,
pp.
8-9.
Disponível
em:
https://www.pressreader.com/italy/corriere-della-sera-la-lettura/20200426/281625307453038. Acesso
em: 24 maio 2020.
12
|
RONCHI,
Rocco.
Le
virtù
del
virus.
Doppiozero.com,
08
mar.
2020.
https://www.doppiozero.com/materiali/le-virtu-del-virus. Acesso em: 24 maio 2020.
Disponível
em:
13
Pandemia e crise na União Europeia
14
PAOLO DESOGUS
Da crise sanitária à crise econômica, até a crise política: este parece ser o
caminho passo-a-passo do recente caso pandêmico da União Europeia, que
agora se debate com a difícil tentativa de encontrar liquidez financeira para
enfrentar
suas
próprias
dificuldades
econômicas
dentro
de
um
campo
político supranacional pesado, sem os instrumentos democráticos e legais
necessários para dar respostas concretas e rápidas. O cenário político está
evoluindo
rapidamente,
mas
pelo
que
se
pode
inferir,
nem
as
numerosas
reuniões do Eurogrupo (que reúne os ministros da economia dos países da
União), nem as reuniões oficiais entre os primeiros-ministros do Conselho
Europeu
Europeu
(o
e
verdadeiro
da
Comissão
dominus
,
Europeia)
politicamente
parecem
ser
acima
capazes
do
de
Parlamento
elaborar
um
plano eficaz que garanta o reinício e que não sobrecarregue excessivamente
a dívida pública de cada Estado. Por sua vez, a Comissão Europeia, liderada
por Ursula von der Leyen, só conseguiu suspender temporariamente o pacto
de estabilidade, que impõe aos países, individualmente, um rígido controle
do
seu
orçamento
público.
Apesar
de
algumas
proclamações
e
de
alguns
instrumentos genéricos (por exemplo, o Fundo de Recuperação), capazes
de
pôr
em
prática
empréstimos
reestruturação
recursos
mais
ou
econômica
muito
menos
no
limitados,
a
maioria
condicionados
sentido
neoliberal,
por
o
sob
a
forma
programas
continente
de
de
europeu
parece carecer de uma bússola, à mercê dos países europeus individuais, do
seu egoísmo e das suas necessidades únicas.
Uma
exceção
é
o
Banco
Central
Europeu
(BCE)
que,
após
alguma
hesitação da nova presidente Christine Lagarde, ampliou seu programa de
compra da dívida pública dos países europeus lançado por Mario Draghi em
2015 (flexibilização quantitativa) para salvar a moeda europeia. Este plano,
que tem dado oxigênio à economia da zona euro, entrou, no entanto, em
conflito com o sistema legal da República Federal da Alemanha. Em uma
decisão
emitida
em
5
de
maio
de
2020,
o
Tribunal
Constitucional
de
Karlsruhe ordenou ao Bundesbank que não participasse desses programas
de política monetária não convencionais e que saísse do consórcio do BCE
se o conselho liderado por Christine Lagarde não adaptasse o programa de
compra
à
chave
de
capital.
Segundo
o
Tribunal
Constitucional
alemão,
portanto, o BCE não deve intervir de acordo com as necessidades reais e o
risco
corrido
Espanha,
pelos
mas
com
países
base
mais
na
afetados,
participação
na
ordem
acionária
de
da
Itália,
cada
país
França
no
e
banco
europeu, a chave do capital. Mesmo a única boia de salvação real lançada em
favor da economia dos Estados é, portanto, objeto de disputa por estar em
conflito
com
a
Constituição
da
Alemanha,
o
país
economicamente
mais
forte e influente da União Europeia.
No passado, a Alemanha já freou as instituições europeias ao invocar os
tratados e o princípio, reafirmado por seu Tribunal Constitucional, de que a
União Europeia não é uma união política, mas uma união econômica. Suas
instituições, como a chanceler Angela Merkel também apontou em diversas
ocasiões,
orientam
têm
a
uma
função
economia,
técnica,
que
é
uma
refletem
tarefa
os
para
ditames
a
dos
política,
tratados,
ou
seja,
não
para
os
estados nacionais.
Parece então que a crise que a pandemia desvendou tem a ver com um
vazio
jurídico
melhor,
União
na
e
impossibilidade
Europeia.
entretanto,
democrático,
que,
Isso
de
que
política
certamente
apesar
das
resultou
é
posições
na
dentro
em
ausência
do
parte
alemãs,
quadro
o
as
caso.
de
política,
tecnocrático
Deve-se
instituições
ou
da
notar,
europeias
sempre foram políticas. A aplicação dos Tratados de Maastricht, aos quais os
defensores da ordem burocrática da União Europeia apelaram, mesmo antes
da
introdução
oficialmente
da
moeda
técnicas
de
única,
envolveu
reestruturação
desde
o
econômica,
início
mas,
na
medidas
realidade,
coerentes com a ideologia neoliberal. A crise no continente afeta, portanto,
a ordem estrutural da União Europeia. Não se deve simplesmente à falta do
sistema
jurídico
coronavírus,
e
mas
político
à
europeu
substância
diante
ideológica
da
emergência
neoliberal
que
do
novo
molda
as
instituições do continente.
Diante da pandemia e da crise econômica do século, os países europeus se
encontram dentro de um mecanismo supranacional que, por um lado, os
priva
do
através
poder
de
seus
de
administrar
bancos
centrais
a
política
monetária
individuais
de
e,
acordo
portanto,
com
suas
de
agir
próprias
necessidades, mas que, por outro lado, não consegue criar um verdadeiro
estado
federal
economias
capaz
de
individuais
superar
dentro
as
de
peculiaridades
um
sistema
nacionais
que
possa
e
integrar
promover
a
solidariedade, garantindo a todos os cidadãos europeus condições iguais de
bem-estar.
A
tecnocrática
político
isto
que
investido
Europeu,
cujas
se
soma
impede
por
um
funções
as
a
incapacidade
instituições
mandato
são
de
europeias
democrático
atualmente
superar
fracas
e
de
a
hipocrisia
adquirir
através
do
limitadas.
o
poder
Parlamento
Apesar
dessa
retórica, a União Europeia é a expressão de uma visão neoliberal que obriga
os Estados a permanecerem dentro das margens de parâmetros econômicos
arbitrários, marcados pela austeridade, que sufoca a economia, alimentando
um círculo vicioso sem fim que inflou as dívidas soberanas de cada Estado.
Poderíamos
representa
Reagan
a
dizer
forma
“starving
que
o
mecanismo
renovada,
the
beast”,
e
talvez
esfomear
na
mais
a
base
de
perversa,
besta,
ou
seu
do
seja,
funcionamento
velho
slogan
de
comprimindo
a
economia dos estados individuais, empurrando-os para o endividamento e
depois os induzindo a programas de reestruturação econômica em favor do
mercado.
As
principais
questões
subjacentes
à
incompletude
política
da
União
Europeia já haviam se tornado evidentes em várias ocasiões durante a crise
2008-2012
e
especialmente
durante
os
meses
do
colapso
econômico
da
Grécia entre 2009 e 2015. O novo coronavírus destacou as contradições de
um
processo
estrutura
político
neoliberal
que
com
já
a
estava
qual
a
em
curso
União
e
que
Europeia
tem
foi
suas
raízes
concebida
na
desde
a
assinatura dos Tratados de Maastricht, em 1992. Agora, com a nova crise
econômica,
muito
parâmetros
sem
poucos
sacrificar
países
partes
poderão
vitais
de
se
sua
manter
dentro
economia,
fazer
desses
previsões
otimistas sobre as reais chances da União Europeia de se manter é bastante
arriscado. Esfomear ainda mais a besta pode ser arriscado pelos efeitos que
pode
induzir
nas
populações,
cada
vez
mais
orientadas
a
votar
na
direita
ultraconservadora e às vezes inspiradas pelo neofascismo.
O
novo
coronavírus
também
trouxe
aos
olhos
dos
cidadãos
as
contradições da austeridade europeia. Quais países concordarão em cortar
os
cuidados
Quantos
incapaz
de
saúde
continuarão
de
expressar
para
a
cumprir
considerar
qualquer
com
os
válido
forma
de
constrangimentos
o
projeto
europeu
solidariedade,
europeus?
se
ele
for
especialmente
em
um momento crítico como a pandemia?
Mais
do
fronteiras
e
que
os
uma
“união”,
vínculos
de
um
os
Tratados
campo
de
Maastricht
competitivo
entre
traçaram
as
Estados-nação
regido principalmente pelos dogmas de restrições orçamentárias, inflação
zero
e
Estado
forma
liberdade
na
de
de
mercado,
economia.
política
Daí
a
inspirada
o
que
limita
absoluta
pelo
severamente
hostilidade
socialismo,
não
mas
só
até
a
intervenção
contra
mesmo
do
qualquer
contra
as
políticas keynesianas, que no passado também favoreceram a expansão da
economia
2014).
europeia
num
sentido
mais
democrático
e
justo
(ROMANO,
O aparente paradoxo em que a União Europeia se baseia é que ela não
apaga as entidades estatais, mas as mantém vivas, esvaziando-as de qualquer
mandato
razões
democrático
da
economia
perspectiva
liberal
e
transformando-as
de
de
mercado.
que
o
Este
Estado
em
instituições
procedimento
deve
permanecer
dedicadas
derruba
fora
da
a
às
velha
economia,
separando a esfera do Estado da esfera dos agentes econômicos. A ideologia
neoliberal que hoje domina o continente atribui ao Estado uma função de
intervenção nos processos materiais, na medida em que, no entanto, utiliza
todos
os
seus
poderes
—
legal,
militar,
diplomático
—
para
apoiar
os
processos econômicos.
Como tem sido observado por dois pensadores neomarxistas franceses,
Dardot e Laval, o liberalismo clássico pregou a necessidade de o Estado não
interferir
nos
processos
econômicos,
enquanto
o
neoliberalismo
hoje
o
utiliza para conduzir uma nova forma de luta de classes a partir de cima. A
economia não é mais investida do que aquela aura providencialista teorizada
por Adam Smith. Sua mão agora se torna visível e age para remover o que
atrapalha o capital. Não só o fim do Estado-nação, repetidamente anunciado
pelos apologistas da pós-modernidade após a queda do Muro de Berlim, foi
negado,
como
a
Europa
mostra
o
quanto
seu
retorno
em
voga,
segundo
ditames neoliberais, nada mais é do que a forma renovada do “comitê de
negócios
da
comparado
burguesia”
ao
internacional,
que
é
foi
que
já
teorizada
delineado
essa
por
pelos
função
é
Marx
dois
hoje
e
pais
Engels.
do
garantida
O
que
movimento
na
Europa
é
novo,
operário
por
uma
entidade supranacional que define as regras desse comitê, ou seja, a União.
Dentro desta ordem de relações não há espaço para a solidariedade entre os
Estados
se
ela
prejudicar
os
interesses
da
economia.
O
próprio
ministro
alemão da Economia, Peter Altmaier, em entrevista concedida, nos dias em
que começava a discutir os efeitos da pandemia na economia europeia, disse
que
o
principal
objetivo
da
Europa
deve
ser
o
de
fortalecer
a
competitividade entre as economias da União Europeia, ressaltando que a
inovação é mais importante do que a solidariedade e a ajuda. Nas políticas de
cada Estado isso se traduz em uma corrida para baixar os custos trabalhistas
através de políticas que privem os trabalhadores de seus direitos, segurança,
um salário digno e um sistema de serviços adequado. A competição entre
Estados
torna-se,
portanto,
principalmente
a
competição
entre
trabalhadores das diferentes nações.
Não é por acaso que na fase histórica atual não há vestígios do movimento
operário
internacional.
Na
Europa,
os
trabalhadores
nunca
estiveram
tão
divididos como estiveram nos últimos anos. Seu terreno de luta tem sido
reduzido à nação, às vezes a áreas regionais ainda mais restritas. Mesmo no
nível
simples
direita
e,
às
de
filiação
vezes,
para
política
partidos
tem
havido
uma
nacionalistas.
O
forte
mudança
trabalhador
que
para
a
vota
à
esquerda, projeta suas reivindicações em nível internacional e se orgulha de
reivindicar sua classe, lutando por ela e pelos representantes políticos que
ele expressa, é cada vez mais uma miragem do passado.
Neste
contexto,
é
difícil
imaginar
que
o
novo
coronavírus
represente,
como tem sido dito, uma oportunidade para superar as divisões que ainda
impedem
a
Europa
de
formar
um
Estado
federal
capaz
de
enfrentar
os
grandes desafios da globalização, da inovação tecnológica, do bem-estar de
seus
cidadãos
sentença
do
e
da
proteção
Tribunal
de
de
seu
Karlsruhe
patrimônio
mostra
que
cultural
o
que
e
civil.
parecem
A
mesma
ser
meros
contrastes jurídicos a serem harmonizados no âmbito da União são, de fato,
os
elementos
de
sua
própria
constituição,
ou
seja,
os
traços
ideológicos
neoliberais que concebem a Europa como campo assimétrico de competição
em que competem diferentes Estados, com dívidas soberanas financiadas a
taxas não homogêneas, organizadas segundo regimes fiscais incomparáveis
(Irlanda,
fiscais),
Holanda
dotadas
e
de
Luxemburgo
são
instrumentos
muito
políticos,
semelhantes
econômicos,
aos
paraísos
militares
e
diplomáticos completamente diferentes e encontram-se sujeitas às mesmas
restrições
econômicas
e
às
contínuas
no
decorrer
compressões
dos
salários
dos
trabalhadores.
Algo
poderia
mudar
se,
dos
próximos
meses,
a
Alemanha
adaptasse sua Constituição às exigências de uma união econômica também
voltada para se tornar uma união política. No entanto, nenhuma proposta
nesse
sentido
veio
de
Berlim.
O
resto
é
uma
hipótese
remota,
pois,
se
implementada, uma das principais alavancas da chantagem política usada
contra
os
Espanha
Estados
(os
mais
chamados
fracos,
como
15),
PIIGS
Grécia,
Itália,
desapareceria.
Irlanda,
Nesse
caso,
Portugal
o
BCE
e
de
Christine Lagarde tornar-se-ia o emprestador de último recurso e, como os
normais bancos centrais nacionais, poderia intervir ainda mais eficazmente
contra
a
especulação
sobre
as
dívidas
nacionais,
reduzindo
ou
mesmo
anulando as diferenças entre as taxas dos títulos de dívida pública de cada
Estado
europeu
e
pondo
assim
fim
ao
instrumento
abstruso
chamado
spread
, que até agora tem permitido à Alemanha financiar a sua dívida a um
custo muito baixo, contra as taxas mais elevadas do PIIGS.
Mas, como dizíamos, isso não é de modo algum uma conclusão inevitável,
pois faria a Alemanha perder um peso econômico considerável e, sobretudo,
o controle das políticas contra a inflação, um verdadeiro tabu que remonta à
era
de
Weimar.
O
que
é
certo
é
que
tal
viragem
teria
enormes
efeitos
políticos para o futuro da União Europeia. Na verdade, não apenas o atual
impasse
seria
quebrado,
mas
também
a
parte
da
estrutura
tecnocrática
e
antidemocrática que efetivamente proíbe qualquer política genuinamente
keynesiana e ainda mais socialista seria quebrada.
Em comparação com as difíceis previsões que podem ser feitas, a única
certeza é que a manutenção do status quo, ou seja, um retorno às políticas de
austeridade dos Tratados de Maastricht, é cada vez mais insustentável para
muitos
dos
Estados
europeus
e
não
mais
apenas
para
o
PIIGS.
Com
o
retorno da austeridade, a França, que ao longo da curta história da União
Europeia sempre desempenhou um papel de liderança ao lado da Alemanha,
seria
obrigada
a
apertar
os
cortes
nos
gastos
públicos
com
fortes
repercussões sociais. Mesmo antes da pandemia, trabalhadores, estudantes
e cidadãos comuns protestaram amplamente contra o Presidente Macron e
as políticas de insegurança no emprego, cortes nas pensões e redução dos
serviços promovidos por ele à luz dos dogmas neoliberais. Nem mesmo o
crescente
consenso
em
direção
à
extrema-direita,
liderado
pela
Frente
Nacional do neofascista Marine Le Pen, freou Macron, que agora corre o
risco
de
perder
as
próximas
eleições
presidenciais.
O
novo
coronavírus
piorou a situação econômica do país, a dívida pública está crescendo, agora
bem acima de 100% do seu PIB. Até mesmo Paris está cada vez mais exposta
aos ventos dos mercados e à especulação, tanto que, mesmo para o atual
presidente, é vital que o BCE continue com seu programa de compras e que
os
Tratados
econômico,
de
que
Maastricht
não
é
sejam
impossível
reformados.
se
o
No
impasse
na
caso
de
Europa
um
colapso
continuar,
as
portas do Eliseu para a Frente Nacional se abririam e haveria um caso para
um país com armas nucleares liderado por um grupo político neofascista.
Embora seja, portanto, difícil imaginar a Alemanha ceder às necessidades
da França, é ainda mais difícil imaginar que, uma vez superada a crise, tudo
possa
voltar
a
ser
como
era
antes,
de
acordo
com
os
velhos
equilíbrios
políticos. De fato, o futuro próximo prefigura duros conflitos, tanto dentro
dos
países
individuais
que
terão que enfrentar a crise econômica, quanto
fora, no contexto europeu. Se, no passado, a França e a Alemanha foram os
principais Estados da União Europeia — mesmo contra a Grã-Bretanha, que
não saiu por acaso da União — um difícil cabo de guerra com resultados
imprevisíveis está ocorrendo entre esses dois países: por um lado, a França,
gravemente
enfraquecida
capacidades
militares
internacional
(é
um
e
economicamente,
geopolíticas,
dos
cinco
assim
países
do
mas
como
ainda
um
Conselho
com
forte
amplas
prestígio
Permanente
da
Organização das Nações Unidas – ONU), por outro lado, a Alemanha, um
país com capacidades econômicas e industriais muito fortes, ansioso para
superar
sua
condição
de
poder
mutilado
e
recuperar
a
autonomia
militar
que os tratados de paz da Segunda Guerra Mundial ainda hoje excluem. Em
segundo plano, os outros países do continente, com um bloco solidário para
a Alemanha (incluindo Áustria, Finlândia e Holanda) e um segundo bloco
menos coeso que conta com a Bélgica, Grécia, Portugal e Espanha e em uma
posição difícil de definir a Itália.
Apesar
mais
de
ocupar
a
desenvolvidos
terceira
e
posição
entre
industrializados
e
os
de
países
estar
economicamente
entre
os
Estados
fundadores da União Europeia, a Itália é politicamente um dos países mais
frágeis, incapaz de assumir uma linha política no complexo jogo europeu e
mais sucumbido à restrição externa de Maastricht, transformada por suas
elites
políticas
em
uma
verdadeira
bandeira
ideológica.
Sua
própria
estrutura industrial, baseada em pequenas e médias empresas, desenvolveu
uma
sociedade
civil
provincial
e,
não
raro,
rapace,
que
utilizou
o
vínculo
europeu para aplicar as receitas neoliberais da governança europeia com o
único
objetivo
intermediários,
de
desmantelar
precarizar
o
o
Estado
trabalho
e
social,
despolitizar
comprimir
os
os
salários.
órgãos
Apesar
daqueles que imaginavam a entrada na zona euro como uma possibilidade
de modernização e emancipação italiana da influência política e militar dos
Estados Unidos, a aplicação dos dogmas europeus, por vezes interpretados
num
sentido
mais
restritivo
do
que
a
própria
União
Europeia
pedia,
era
funcional ao mero projeto de descarregar todo o peso da concorrência sobre
os ombros dos trabalhadores no contexto do mercado único europeu e da
globalização. De fato, com sua permanência na União Europeia, a Itália não
só está passando pelo mais longo período de estagnação econômica de toda
a
sua
história,
mas
aparece
ainda
mais
condicionada
por
influências
estrangeiras, especialmente as americanas.
Paradoxalmente,
a
maior
limitação
da
Itália
parece
residir
no
seu
europeísmo mesmo diante das forças que se lhe opõem, em particular as da
extrema
direita
da
Liga
de
Matteo
Salvini.
A
direita
ultraconservadora
e
xenófoba extrai sua linfa precisamente das políticas de rigor abraçadas pelos
partidos governantes, em particular o Partido Democrata.
Junto com a França, a Itália é deste ponto de vista o país que melhor ajuda
a
entender
os
limites
e
as
fragilidades
do
projeto
europeu.
E
isso
não
só
porque o colapso da União Europeia poderia vir justamente da explosão da
dívida e da especulação nesses dois países, mas porque o fim da emergência
pandêmica
exigirá
intervenção
para
ambos
econômica
—
maciça,
e
especialmente
possivelmente
para
sem
a
a
Itália
—
uma
contrapartida
de
reformas estruturais que enfraqueceriam ainda mais sua estrutura e que não
fariam
nada
além
de
dar
mais
apoio
à
extrema
direita,
que
em
ambos
os
países é cada vez mais ameaçadora.
Não se pode descartar que tanto na França quanto na Itália, o maior preço
da crise política e econômica, aberta pela pandemia, pesará muito sobre os
partidos
moderados
neoliberal.
E
essa
pró-europeus
atitude,
já
foi
incapazes
de
denunciada
sair
por
da
Colin
jaula
ideológica
Crouch
(2004),
segundo a qual os agentes econômicos podem influenciar a política, mas a
política não pode colocar sua boca na economia. Dadas as atuais relações de
força,
a
necessidade
de
um
reinício
político
e
cultural
de
uma
esquerda
anticapitalista capaz de assumir as demandas populares e, sobretudo, capaz
de conciliar um novo impulso ao socialismo e à justiça social, volta à pauta.
Em outras palavras, há uma necessidade cada vez mais premente de uma
nova
esquerda
poder
capaz
mover-se
de
adquirir
dentro
das
um
ponto
fraturas
de
vista
políticas
político
concretas
realista
abertas
e
de
pelo
neoliberalismo na Europa.
Especialmente na Itália falta uma formação semelhante, mesmo se uma
parte do eleitorado olhou com confiança para o nascimento do “Movimento
5
Stelle”,
um
partido
populista
que,
no
entanto,
devido
à
sua
substancial
adesão aos princípios da economia de mercado e à pobreza cultural de seus
líderes, não foi capaz de se apropriar da bandeira da justiça social como o
movimento liderado por Pablo Iglesias, “Podemos”, sucedeu na Espanha.
Na França, por outro lado, uma área política explicitamente de esquerda em
torno da figura de Jean-Luc Mélenchon tomou forma, embora com muitas
limitações, o que, juntamente com a “France Insoumise”, tem sido capaz de
coalescer
diferentes
denunciando
qualquer
a
forças
da
área
insustentabilidade
ambiguidade
com
o
radical
da
e
que
Europa
neoliberalismo
há
vários
neoliberal.
europeísta
é
anos
Além
cada
vem
disso,
vez
mais
insustentável para os partidos de esquerda.
O resultado da decisão do Tribunal de Karlsruhe contra o programa de
resgate inaugurado pelo BCE e a resistência muito forte do governo alemão
e seus aliados contra o apoio maciço para salvar as economias dos países
mais expostos é uma divisão política com resultados imprevisíveis. Com a
crise
dos
velhos
ultraconservadora,
partidos
é
pró-europeus
essencial
que
o
diálogo
e
o
entre
avanço
as
da
forças
direita
sociais
que
ainda são capazes de se inspirar no socialismo se estabeleça rapidamente,
até para enfrentar um possível colapso das instituições europeias e não ficar
desarmado no conflito entre capital e trabalho. Além disso, mesmo com o
fim da União Europeia e o retorno ao Estado-nação, o neoliberalismo não
perderia
sua
influenciar
seu
nacionalistas
esperem
termos
capacidade
de
passiva
de
de
se
irritar
desenvolvimento
direita.
e
É,
Antonio
que
Gramsci,
instituições
democrático
portanto,
fatalmente
nas
a
essencial
história
diremos
através
que
tome
que
do
o
as
seu
Estado
dos
forças
curso.
e
de
partidos
sociais
não
Assim,
nos
capitalismo
só
cria
continuamente as condições para sua superação se houver uma consciência
política
e
uma
organização
capaz
benefício e no das forças sociais.
de
agarrá-lo
e
usá-lo
em
seu
próprio
REFERÊNCIAS
CROUCH,
ROMANO,
Colin. Postdemocracy. Cambridge UK: Policy Press, 2004.
Onofrio. The Sociology of Knowledge in a Time of Crisis: Challenging
the Phantom of Liberty. New York-London: Routledge, 2014.
NOTAS
13
|
14
|
15
|
A tradução deste capítulo do italiano para o português é de Gianni Fresu.
Faculté des Lettres, Sorbonne Université, França.
No debate político europeu esse acrônimo é utilizado, com significado pejorativo, para indicar os
países europeus (Portugal, Itália, Grécia, Espanha) com a situação financeira mais complicada.
:
Entre pandemia e crise orgânica
contradições e narrações hegemônicas
do capitalismo em colapso
16
GIANNI FRESU
A contradição entre capital e trabalho
Essa
acumulação
primitiva
desempenha
na
economia
política
aproximadamente
o
mesmo papel do pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado
se
abateu
sobre
o
gênero
humano.
Sua
origem
nos
é
explicada
com
uma
anedota
do
passado. Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e
sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e
ainda mais. De fato, a legenda do pecado original teológico nos conta como o homem foi
condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; mas é a história do pecado original
econômico que nos revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade
disso. Seja como for. Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos
acabaram sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original
datam a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho, continua a
não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce
continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar. (MARX, 2011, p. 960961).
Em
meio
à
pandemia
da
COVID-19,
uma
das
argumentações
mais
recorrentes espalhadas pela nova Internacional da direita coordenada por
Steve Bannon, que tem entre os seus afiliados Trump, Bolsonaro, Orbán e
Salvini,
pode
é
a
necessidade
parar”,
como
de
nesses
retomar
dias
eles
as
atividades
vão
produtivas.
repetindo,
apesar
“A
do
vida
não
drama
que
atinge a realidade atual onde o dado mais visível é que a vida, sem os devidos
cuidados e um planejamento político emergencial racional e fundamentado
nas indicações da ciência, não apenas pode parar, mas acabar. Dentro dessa
narrativa,
segundo
a
qual
o
verdadeiro
perigo
mortal
seria
o
colapso
econômico, não temos apenas a tentativa de evitar uma crise que abalaria os
respectivos
governos
hegemônica.
levanta
o
Mundial
problema
dos
da
Trump
Afirmando
apresentando
materiais
de
seus
que
da
Bolsonaro,
preciso
sustentação
(OMS)
voltar
como
ameaçados
e
pelas
mas
também
ao
das
providências
dos
da
retórica
populares
dos
indicações
operação
essa
classes
defensores
pelas
uma
trabalho,
econômica
propagandistas
trabalhadores
Saúde
é
e
interesses
Organização
governadores
que
limitaram a “liberdade de iniciativa econômica”.
Claro que tanto o Presidente quanto os empresários, empenhados nessa
campanha a favor da reabertura das atividades, são hábeis em ocultar como
essa crise tornou ainda mais evidente a contradição entre capital e trabalho.
Para além das funções hegemônicas e demagógicas, o desespero do mundo
dos
negócios
trabalhadores
questionada
exploração
tenham
e
de
vontade
volta
desde
do
que
independentes
o
à
o
produção,
não
durante
capital
do
avassaladora
século
trabalho
tentado
alegando
a
anos
tem
salário,
na
reabrir
confirmam
XIX,
há
de
não
lucro,
novas
cessa
sem
decretar
a
de
lucro
morte
formas
realidade,
uma
o
de
fábricas
verdade
se
e
que,
não
há
capital.
do
remuneração
não
pode
os
embora
manifestar:
cerebral
lucro
trazer
sem
a
Embora
velho
Marx,
totalmente
existir
sem
a
exploração do trabalho. Por outro lado, se não fosse assim, não se explicaria
por
que
estão
explorada
nos
sempre
países
à
procura
em
constante
desenvolvimento
de
e
mão
de
prontos
obra
para
barata
a
relocalizar
ser
sua
produção, nem por que, após cada crise, sua receita de política econômica
permanece inabalavelmente a mesma: aumentar a produtividade e reduzir
os custos de mão de obra.
Depois do prolongado colapso da economia mundial começado em 2008
nos
Estados
Unidos,
que
mostrou
a
natureza
aleatória
e
fraudulenta
do
sistema especulativo financeiro, a pandemia jogou novamente o capitalismo
numa
crise
orgânica
internacional,
abalando
todas
as
certezas
e
as
convicções do mundo ocidental, pondo em questão o paradigma neoliberal,
que
fora
assumido
acriticamente
nas
últimas
décadas
como
única
opção
possível e legítima para os rumos do desenvolvimento histórico. Diante dos
efeitos combinados da pandemia e da crise econômica, a contradição entre o
direito ao lucro privado e o interesse geral tornou-se cada vez mais evidente.
Apenas
onde
pretensões
Onde,
o
do
pelo
poder
público
mercado,
contrário,
essa
conservou
crise
prevaleceu
o
está
um
sendo
domínio
papel
forte
enfrentada
ideológico
da
diante
com
das
sucesso.
metafísica
do
mercado, ou seja, a convicção segundo a qual intervir com medidas públicas
no livre desenvolvimento da lei da oferta e da procura não passa de pura
blasfêmia,
tudo
contradição
econômica,
sobre
as
saúde,
se
entre
nos
miséria
quais
atividades
pesquisa,
inclusão
tornou
social),
mais
complicado.
absoluta
prevalecem
a
e
imensas
estamos
de
públicas
aposentadoria,
observando
um
países
marcados
concentrações
especulação
eminentemente
sistema
Nos
e
a
da
riqueza
lucratividade
privada
(educação,
políticas
autêntico
pela
de
universidade,
assistência
fracasso,
que
e
alcança
proporções inimagináveis se comparamos com a situação de cinco meses
atrás.
A transfiguração ideológica da realidade
A
mística
“mão
do
invisível”,
mercado,
é
a
que
forma
subordina
mais
o
homem
sistemática
e
à
ilusão
alienante
de
ideológica
da
totalitarismo
criada pelo homem. Um artifício retórico que consegue apresentar o direito
à
exploração
escravidão.
O
do
homem
paradigma
como
do
uma
egoísmo
filosofia
absoluto,
de
liberdade,
tornado
e
não
universal
por
de
um
hábil trabalho ideológico de reconstrução interessada da realidade, é uma lei
de ferro que produz riqueza para poucos e miséria para os demais. A suposta
superioridade
econômica
do
liberalismo
é
um
escárnio
colossal;
a
vitória
dos netos de Adam Smith se dá em terreno hegemônico, por meio da auto-
apologia, certamente não do lado do bem-estar e da riqueza social. Marx e
Engels
trataram
acontecimentos
não
apenas
históricos,
das
eles
condições
materiais
investigaram
a
no
função
fundo
dos
política
das
ideologias em relação à tarefa da defesa e da conservação dos equilíbrios
passivos
tradicionais
economia,
a
religião
entre
e
as
todas
classes.
as
A
história,
representações
a
filosofia,
espirituais
o
da
direito,
a
realidade
tornam-se instrumentos de governo de uma classe sobre as outras, por meio
das quais cria-se um conformismo social entre os dominantes e, ao mesmo
tempo,
se
arregimentam
os
dominados
garantindo
sua
passividade.
As
ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, então,
essa
classe
porque
é
não
ao
mesmo
controla
tempo
apenas
os
a
força
meios
material
de
e
espiritual
produção
dominante,
material,
mas
dispõe
também dos meios de produção espiritual. Essas ideias, portanto, sempre se
tornam
como
a
expressão
ideias
entrelaçada
que
a
sublinharam
das
marcam
essa
a
ideal
função
relações
uma
materiais
inteira
especializada
centralidade
da
era
de
separação
dominantes,
histórica.
produção,
entre
concebidas
Estritamente
Marx
trabalho
e
Engels
espiritual
e
material:
A divisão do trabalho expressa-se também no seio da classe dominante como divisão do
trabalho espiritual e material, de tal modo que no interior desta classe uma parte aparece
como
os
pensadores
formação
de
ilusões
subsistência),
desta
desta
enquanto
classe
(seus
classe
que
os
a
ideólogos
respeito
outros
de
ativos,
si
conceptivos,
mesma
relacionam-se
com
seu
estas
que
fazem
da
modo
principal
de
ideias
e
de
ilusões
maneira mais passiva e receptiva, pois são, na realidade, os membros ativos desta classe e
têm pouco tempo para produzir ideias e ilusões acerca de si próprios. (MARX; ENGELS,
2007, p. 47).
O capitalismo vive porque são os homens que lhe dão vida e o fazem
viver
O
capitalismo
não
existe
por
causa
da
objetividade
implacável
de
suas
leis, assim como jamais será superado única e exclusivamente por causa de
suas
contradições
internas.
Esse
modo
social
de
produção
sobrevive
à
sucessão
de
econômica
mesmo
suas
de
crises
seus
através
devastadoras,
equilíbrios,
de
terapias
mas
não
porque
intensivas
e,
pela
os
se
inegável
homens
o
eficiência
mantêm
necessário,
por
vivo
meio
de
involuções autoritárias (a era do fascismo). Isso porque o capitalismo (além
da dominação) não é apenas economia, é também política, filosofia, relações
hegemônicas,
realidade
ou
seja,
(dando
particulares)
a
a
um
formidável
aparência
ponto
de
de
arsenal
capaz
universalidade
tornar-se
a
a
miséria
de
transfigurar
certos
e
a
interesses
a
exploração
17.
“consensualmente” aceitas pelo miserável e pelo explorado
Tanto o liberalismo clássico (segundo o qual o capitalismo não seria um
sistema
artificial,
humana,
quanto
determinada
o
sistema
mas
uma
objetiva
“naturalmente”
determinismo
econômico
realidade
marxista
burguês
pelas
(durante
entraria
independente
leis
da
anos
em
oferta
da
vontade
e
da
procura)
convencido
de
que
esse
de
suas
colapso
por
causa
contradições internas) compartilham a mesma visão metafísica das coisas.
Cada
modo
social
de
produção
sempre
é
o
fruto
de
uma
complexa
combinação de elementos objetivos e subjetivos em que o fator econômico é
sem dúvida predominante, mas não o único. Historicamente, a sociedade
burguesa se afirmou no plano econômico e ideológico, no sentido de que era
o resultado de uma autodeterminação material e espiritual com a qual essa
classe conseguiu escapar tanto das regras corporativas da antiga sociedade
feudal (conquistando sua autonomia econômica) quanto da visão de mundo
da
aristocracia
universal
em
feudal
oposição
(afirmando
ao
o
princípio
particularismo
18.
legal em razão do nascimento)
feudal,
da
que
dignidade
determinou
humana
o
status
O segundo elemento é certamente (em
geral) colocado em condição de dependência em relação ao primeiro, mas
isso
não
significa
capitalismo
seja
que
seja
superado
19.
secundário
por
suas
Por
tudo
contradições
isso,
esperar
internas,
que
quase
o
sem
esforço de luta, portanto, sem a irrupção da vontade ativa das massas, sem
política e ideologia, significa atribuir a esse modo social de produção uma
existência
divindade
autônoma,
que,
por
independente
sua
natureza
da
vida
humana,
transcendente,
para
existe
torná-lo
não
por
uma
causa
da
vontade humana, mas como consequência da fatalidade das coisas. O velho
determinismo
socialista
veiculou
Marx
por
meio
de
Darwin
e
aplicou
à
história a dinâmica evolutiva das ciências naturais, chegando à conclusão de
que
a
humanidade
passaria
do
feudalismo
ao
capitalismo
e,
portanto,
ao
socialismo, por razões internas às leis da economia, evidentemente, assim
como
na
evolução
consequências
da
políticas
espécie
dessa
passa-se
concepção
do
símio
foram
ao
três:
homem.
1)
As
atribuir
aos
protagonistas de sua emancipação (o proletariado) uma função totalmente
secundária
em
relação
aos
líderes
encarregados
de
entender
essas
leis
e
enxergar, dentro delas, a hora fatídica da “crise final”; 2) a ideia de que não
se
deve
fazer
acumulando
destinada
a
a
revolução,
forças;
viver
3)
os
a
mas
preparar
convicção
mesmos
de
sua
que
processos
implacável
toda
a
evolutivos,
inelutabilidade,
humanidade
pois
era
estava
necessário
percorrer o caminho da via crucis do capitalismo (a civilização industrial do
tipo ocidental) para passar à integral emancipação do homem. Este terceiro
termo
levou
camponesa
função
e
o
da
movimento
questão
civilizadora
e
socialista
colonial,
a
a
ponto
modernizadora
do
desinteressar-se
de
olhar
da
questão
positivamente
imperialismo
ocidental.
para
a
Todos
esses três termos foram literalmente varridos pela Revolução de Outubro, e,
mais
genericamente,
duramente
todo
contestado
não
o
conceito
apenas
por
de
positivismo
Lênin,
mas
pelo
determinista
próprio
foi
Friedrich
Engels:
Segundo
a
concepção
materialista
da
história,
o
fator
que
em
última
instância
é
determinante na história é a produção e reprodução da vida real. Mais do que isso nunca
foi afirmado nem por Marx nem por mim. Se agora alguém deturpa as coisas, afirmando
que o fator econômico é o único determinante, transforma aquela proposição em uma
frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos momentos
da superestrutura […] exercem sua própria influência no curso da luta histórica e, em
muitos
casos,
determinam
sua
forma
predominante.
Há
uma
ação
recíproca
de
todos
esses fatores, e é através deles que o movimento econômico termina por afirmar-se como
elemento central em meio à infinidade de acontecimentos acidentais […], se assim não
fosse, a aplicação da teoria em um determinado período da história seria mais simples
que a mais elementar equação de primeiro grau. (ENGELS, 1949, p. 75).
A queda da religião da liberdade e o relativismo liberal
O
capitalismo
é
um
modo
de
produção
social
historicamente
determinado, portanto, historicamente superável como qualquer produto
humano. A questão é que, por sua própria e íntima natureza, esse sistema
não
só
é
técnicas
profundamente
de
produção,
revolucionário
as
formas
de
(sempre
pronto
distribuição,
as
para
relações
mudar
as
sociais
e
institucionais), mas tem um arsenal material e imaterial (hegemônico) que
nenhuma forma social jamais teve antes na história.
Tendo
claro
concentrar
tudo
nossa
isso,
a
atual
investigação
crise
crítica
nos
não
mostra
apenas
a
nas
necessidade
de
contradições
da
estrutura econômica, mas nos aparelhos hegemônicos por meio dos quais
molda-se a opinião pública. Estamos vivendo uma fase de gravíssima crise
sanitária e política que atinge de forma combinada o Brasil e o mundo, em
que tanto a vida das pessoas quanto as liberdades democráticas estão em
perigo
diante
recorrentes
das
constantes
tentações
tensões
autoritárias
entres
que
os
poderes
permeiam
do
parte
Estado
e
das
significativa
das
classes dirigentes e da sociedade brasileira.
Antigamente o liberalismo se definia de início por sua devoção filosófica à
“religião da liberdade”. Assim, Benedetto Croce, um dos maiores filósofos
do liberalismo no século XX, enfatizando que essa doutrina não pode ser
contrária,
em
princípio,
produção”,
ressaltou
liberalismo
econômico
à
que
foi
“socialização
a
e
convergência
apenas
de
[à]
estatização
entre
natureza
dos
liberalismo
empírica
e
meios
político
de
e
provisória,
rejeitando a tendência de apresentar as duas dimensões como idênticas:
Como
já
deveria
ser
pacífico,
o
liberalismo
não
coincide
com
o
chamado
liberalismo
econômico, com o qual teve apenas concomitâncias, e talvez ainda tenha, mas sempre
com uma aparência provisória e contingente, sem atribuir à máxima de deixar outro valor
que não o empírico, como válido em certas circunstâncias e não válido em circunstâncias
diferentes. Portanto, nem pode rejeitar em princípio a socialização ou estatização dos
meios de produção, nem sempre a rejeitou no fato de ter feito, de fato, bastantes obras
desse tipo. (CROCE, 1965, p. 34-35).
Quando isso aconteceu, a recusa foi determinada por razões práticas, não
teóricas,
ou
momento
gerando
seja,
(não
um
pela
em
convicção
termos
de
absolutos)
empobrecimento
geral
que
tal
poderia
sem
escolha
ter
em
determinado
deprimido
reduzir
as
a
economia
desigualdades.
O
julgamento de qualquer reforma, segundo Croce, depende antes de tudo de
um fator: se ela promove ou restringe a liberdade e a vida dos homens. A
devoção à religião da liberdade levou John Stuart Mill a definir o liberalismo
inicialmente como recusa de qualquer monismo de valores ou conformismo
intelectual,
que
pelo
contrário
prevalece
prevalente
na
cultura
liberal
de
hoje:
Se todos os homens, exceto um, tivessem a mesma opinião, e apenas um fosse de opinião
contrária, a humanidade não teria maior justificativa para silenciar esse homem do que
ele teria, se tivesse o poder, para silenciar a humanidade […] o mal singular de silenciar a
expressão de uma opinião é que isso rouba ao gênero humano, tanto a posterioridade
quanto
a
aqueles
geração
que
existente,
estão
de
e
aqueles
acordo.
Se
a
que
discordam
opinião
é
da
correta,
opinião
a
ainda
humanidade
mais
se
do
que
priva
da
oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errada, perde aquilo que quase constitui
um grande benefício; ou seja, a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade,
produzida pela sua colisão com o erro. (MILL, 2019, p. 30).
Falando de outro autor liberal clássico, Isaiah Berlin, o alvo central de sua
obra é o pluralismo dos valores, a convicção de que as visões do mundo que
inspiram
a
vida
diversificadas,
Tanto
ao
mesma
dos
mas,
nível
das
cultura
ou
em
seres
humanos
vários
casos,
culturas
pessoa.
gerais
sejam
não
inconciliáveis
quanto
em
apenas
e
relação
até
aos
muitas
e
incompatíveis.
valores
de
uma
Seria característico das grandes religiões e
das
ideologias monistas achar que existe apenas um jeito correto de viver, uma
só
estrutura
indiscutível,
de
a
valores
de
unicidade
verdade,
de
uma
ou
tese
seja,
que
afirmar,
de
forma
inevitavelmente
fanática
desemboca
e
na
perseguição dos valores críticos ou não homologados. O pluralismo seria o
único antídoto ao fundamentalismo, uma fonte perene de liberalismo e de
tolerância
que
nunca
pretende
apagar
as
outras
visões
do
mundo
por
ter
vieses alternativos a nossas convicções mais profundas (BERLIN, 2005, p.
62).
Por
liberal
concluir
bem
com
ordenada
este
e
tema,
John
regulada
por
Rawls
uma
escreve
que
concepção
uma
política
sociedade
de
justiça
(como equidade) assim o pode ser apenas dentro de um quadro de razoável
pluralismo. Outro objetivo do liberalismo político é descrever como deve ser
concebida e quais bases de unidade social deve ter uma sociedade liberal
bem ordenada, cuja articulação torne possível o relacionamento dialético
entre visões políticas razoavelmente diferentes. A cultura política de uma
sociedade liberal democrática é sempre marcada pela presença de diversas
doutrinas
religiosas,
filosóficas
e
morais
em
conflito:
dialética
que
o
liberalismo considera resultado inevitável do livre exercício das faculdades
da razão humana (RAWLS, 2000, p. 46-47).
Um sinal inequívoco do refluxo democrático desses anos nos é dado pelas
contradições do mundo liberal, justamente no que diz respeito à questão das
liberdades.
A
dimensão
econômica
(liberalismo)
ocupou
definitivamente
toda a cena, de modo que a devoção à metafísica do mercado leva os liberais
de hoje a considerar sagrada apenas a liberdade de iniciativa econômica. A
esfera político-filosófica liberal, por outro lado, acabou encolhendo tanto
que o tema das “liberdades fundamentais” parece ser simples retórica em
defesa
do
mero
individualismo
autodenominam
reivindicações
de
liberais
olham
liberdades
econômico.
com
civis,
Assim,
irritação
sexuais
e
hoje,
mal
aqueles
disfarçada
religiosas,
bem
que
para
como
se
as
para
a
ideia de pluralismo político, cultural, filosófico e científico. Em suma, eles
não
suportam
o
poder
público
quando
se
trata
de
seus
negócios,
mas
gostariam de um Estado autoritário e inquisitorial para comprimir todas as
liberdades humanas, exceto a econômica, é claro.
A
ideia
de
liberdade
e
duradouros
“governo
Hannah
uma
a
relação
extensão
mitos
regulamentar
a
das
de
A
John
que
Locke
condenação
vida
social,
proporcional
atividades
ideológicos,
limitado”
Arendt.
inversamente
do
Estado
tornam
e
as
preventiva
intervir
na
as
sobre
ou
e
esfera
o
dos
do
totalitarismo
à
ambição
fornecer
uma
da
mais
concepções
póstuma
economia
a
tornou-se
comum
teorias
entre
de
de
direção
social à vida de uma comunidade nacional está diretamente entrelaçada com
a mais eficaz representação ideológica do pensamento liberal: a capacidade
natural
de
autorregulamentação
compatível
com
a
artificial
das
irrupção
leis
do
mercado,
ordenadora
da
teoricamente
política.
Mas,
não
como
escreveu Gramsci, atrás dessa visão o erro teórico justifica-se pelo interesse
prático:
A abordagem do movimento de livre comércio baseia-se em um erro teórico do qual não é
difícil identificar a origem prática: na distinção entre sociedade política e sociedade civil,
que é feita e apresentada como uma distinção orgânica. Assim, afirma-se que a atividade
econômica é própria da sociedade civil e que o Estado não deve intervir na sua regulação.
Mas, como na realidade a sociedade civil e o Estado coincidem, é preciso estabelecer que
o liberalismo econômico é uma regulamentação de caráter estatal, introduzida e mantida
por meios legislativos e coercitivos: é um fato de vontade consciente, e não a expressão
espontânea e automática do fato econômico. (GRAMSCI, 1975, Q. 13, p. 1590).
De acordo com essa visão do mundo, atividades reconduzíveis à iniciativa
econômica
autônoma
de
indivíduos
privados
não
podem
ser
objeto
de
interferência política porque, “naturalmente”, as leis da oferta e da procura
sempre
encontram
qualquer
grandes
hipótese
de
empresários
econômico
quando
soluções
quando
arriscam
empresas
veem
regulação
quanto
pode
seus
suas
mais
social.
seus
gerar
ativos,
adequadas,
lucro,
de
realidade
teóricos
porque,
margens
A
mas
assim
lucro
pública para salvar a economia privada.
eficazes
são
se
a
e
mostra
favor
tornam
que
os
reduzidas,
eficientes
que
do
do
que
tanto
os
liberalismo
intervencionistas
bancos
exigem
e
as
grandes
intervenção
Essas situações dramáticas para a humanidade, se de nada mais servirem,
são
úteis
para
entender
tanto
as
contradições
do
liberalismo
quanto
o
relativismo de valores imanentes a essa doutrina: “se a economia cresce, os
lucros são meus, entretanto, quando há uma crise, a queda é de todos”. Os
lucros
são
privados,
normalmente
mínimo,
os
mas
as
apologistas
considerando
perdas
do
devem
“privado
blasfêmia
a
é
ser
socializadas.
melhor”
ingerência
da
Assim,
invocam
política
na
o
se
Estado
capacidade
“natural” do mercado de se regular, durante as recessões invariavelmente
pedem
a
ajuda
do
público.
Como
escreveu
Marx
a
respeito
da
crise
do
capitalismo de 1857, “é bom ver que os capitalistas, que tanto gritam contra
o direito ao trabalho, agora exigem o apoio público dos governos em todos
20.
os lugares, e reivindicam o direito ao lucro às custas da comunidade”
***
Concluindo,
hegemônicas
ideológico,
apesar
que
das
marcam
como
era
transfigurações
tanto
a
luta
inevitável,
ideológicas
política
também
quanto
os
e
o
efeitos
das
narrações
enfrentamento
da
COVID-19
reproduzem um quadro social marcado por uma brutal e unilateral luta de
classes
(de
cima
para
baixo). No início da pandemia, ouvimos jornalistas
falando de um vírus democrático, que não olha a classe social dos atingidos.
Nada
mais
mais
a
errado.
estrutura
estrutura,
essa
coronavírus
daquelas
Pelo
contrário,
oligárquica
doença
chegou
mesmas
ao
e
“classes
pandemia
classista
golpeia
Brasil
a
do
país,
sobretudo
de
nobres”
avião,
que
está
onde,
os
justamente
mais
veiculado
hoje
desmascarando
pobres.
pelos
pretendem
ainda
por
O
tal
novo
representantes
reabrir
tudo
para
retomar as atividades econômicas, todavia, quem está pagando realmente a
conta dos erros políticos e da insensatez social espalhada nesse período pelo
Brasil
são
as
periferias,
as
favelas,
as
áreas
rurais
largadas
ao
seu
próprio
destino e, nelas, os “homens condenados a comer seu pão com o suor de seu
rosto”.
REFERÊNCIAS
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CROCE,
Isaiah. Libertà, (org. Henry Hardy). Milano: Feltrinelli, 2005.
Benedetto. Storia d’Europa nel secolo decimonono. Bari: Laterza, 1965.
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MARX,
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O
capital:
crítica
da
economia
política.
Livro
1:
O
processo
de
produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX,
Karl;
ENGELS,
Martorano,
Nélio
Friedrich.
Schneider
A
e
ideologia
Rubens
alemã.
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Trad.
São
Luciano
Paulo:
Cavini
Boitempo,
2007.
MARX,
Karl;
ENGELS,
Friedrich. Carteggio. Volume III. Roma: Editori Riuniti,
1972.
MILL,
John Stuart. Da liberdade individual e econômica. Barueri: Faro editorial,
2019.
RAWLS,
John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000.
ROBESPIERRE,
Maximilien.
Discurso
sobre
o
governo
revolução jacobina. Roma: Editori Riuniti, 1967.
representativo.
In:
A
NOTAS
|
16
Professor de Filosofia Política da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Presidente da
International Gramsci Society Brasil (IGS-Brasil).
17
|
“Até agora, a arte do governo nada mais tem sido do que a arte de despojar e escravizar a maioria
em benefício de uma minoria; e a legislação nada mais tem sido do que o instrumento para erguer
esses ataques sistêmicos. Reis e aristocratas fizeram seu trabalho perfeitamente: agora cabe a você
fazer o seu.” Discurso sobre o governo representativo, 10 de maio de 1793 (ROBESPIERRE, 1967, p. 127
– a tradução deste trecho do italiano para o português é de minha autoria).
18
|
“Desde este instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à
criação da teoria, da teologia, da filosofia, da moral, puras. Mas ainda que esta teoria, esta teologia,
esta filosofia e esta moral entrem contradição com as relações existentes, isso pode acontecer porque
as relações sociais existentes se encontram em contradição com as forças de produção existentes.”
(MARX; ENGELS, 2007, p. 16).
|
19
“A classe revolucionária, por já se defrontar desde o início com uma
classe,
mas
sim
sociedade
diante
realmente
ainda
como
da
representante
única
coincide
classe
com
o
de
toda
dominante.
interesse
a
sociedade;
Ela
pode
coletivo
de
ela
fazer
todas
aparece
isso
as
porque
demais
classe
, surge não como
como
no
a
massa
início
classes
não
inteira
seu
da
interesse
dominantes
e
porque, sob a pressão das condições até então existentes, seu interesse ainda não pôde se desenvolver
como interesse particular de uma classe particular. […] Toda essa aparência, como se a dominação de
uma
classe
determinada
fosse
apenas
a
dominação
de
certas
ideias,
desaparece
por
si
só,
naturalmente, tão logo a dominação de classe deixa de ser a forma do ordenamento social, tão logo
não seja mais necessário apresentar um interesse particular como geral ou ‘o geral’ como dominante.”
(MARX; ENGELS, 2007, p. 49-50).
20
|
Carta de Karl Marx ao Friedrich Engels de 13 de novembro de 1857 (MARX; ENGELS, 1972, p. 58).
A vigência do estado de sítio político
na pandemia
21
MARCOS DEL ROIO
22
VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ
Utilizamos
demonstrar,
teórico
notas
de
demarcar,
recorta
um
rodapé,
a
a
partir
realidade
Estado
de
de
fontes
proposta
Sítio
Político
jornalísticas,
neste
texto.
(MARX,
a
fim
Nosso
1978),
de
marco
atrelado
ao
capital, que faz uso de medidas de exceção (AGAMBEN, 2004), por meios
jurídicos — por exemplo, desabonando-se e descriminalizando-se ações de
agentes públicos e políticos que não combatem racionalmente a pandemia
—, e que se revela sob a cepa da necropolítica (MBEMBE, 2018). Medidas
Provisórias,
exceptio
de
desrazão,
não
apenas
provocam
inépcia
ao
Poder
Público, uma enormidade de insegurança jurídica, como é lapidar a fim de se
atestar
a
Mundial
própria
da
Lápide
Saúde
–
do
OMS)
23:
Direito
será
um
não
seguir
“normal”
no
a
ciência
país
—
(Organização
Holocausto
de
pobres legalizado em tempos de horror. É a insígnia aposta na lei de eugenia.
Observarmos, deste modo, no intuito de afirmar que, no país, hoje, mais do
que nunca, vigoram antigos ditados: “A lei se aplica a dez mil pessoas, todas
lutam para entrar nesse número”.
O Estado de Sítio Político
O
Estado
de
Exceção
se
confirma/reafirma
como
centralidade,
um
absoluto no sistema do capital no século XX (e XXI), sobretudo, em face das
forças centrífugas — por óbvio — em ação expansiva exponencial em busca
de
mercados,
(“escravos
da
subjetividades,
modernidade”),
reservas
e
que
naturais
espelham
a
e
mão
de
interface
obra
mais
barata
produtiva
(poderosa) em que se apresenta como a “lei do mais forte” (MÉSZÁROS,
2015,
p.
17-18).
O
futuro
está
nas
massas,
desde
que
os
sitiados
sejam
ouvidos. Todavia, cabe indagar, o poder que dá/dará voz aos sitiados?
A verdade desagradável hoje é que se não houver futuro para um movimento radical de
massa, como querem eles, também não haverá futuro para a própria humanidade [...] A
terceira
fase,
potencialmente
a
mais
mortal,
do
imperialismo
hegemônico
global,
que
corresponde à profunda crise estrutural do sistema do capital no plano militar e político,
não nos deixa espaço para tranquilidade ou certeza (MÉSZÁROS, 2003, p. 108-109).
Por seu turno, no século XXI, a principal função do Estado de Exceção é
garantir
a
fluidez
concentração
de
do
sistema
renda),
do
capital
notadamente,
(geração
quando
os
de
riquezas
efeitos
com
disruptivos
abalam seus monólitos, como em 2008/2009. A montanha a ser transposta,
portanto,
é
a
defesa
entrincheirada
que
o
Estado
de
Exceção
Capitalista
oferta como subsídio, “lei do mais forte”, na tônica da “lei sou eu” (FEST,
1976) à ordem sociometabólica do capital disruptivo neste breve século XXI.
Um
antípoda
poderia
ser
vislumbrado
na
Primavera
Árabe
(MÉSZÁROS,
2015, p. 34) e que, em oposição frontal de desmanche, recebeu as revoluções
coloridas como resposta retrógrada: entre a autonomia e a autocracia, não
por acaso, as revoluções coloridas andam entre golpes e Estado de Exceção.
Evidentemente,
autonomia
no
requerida
contragolpe
(Primavera
do
capital
Árabe),
não
e
dos
caberia
aparatos
estatais
nenhuma
forma
à
de
auditoria do poder constituído — ou as revoluções coloridas não seriam o
protótipo do Estado de Exceção no século XXI. É natural, pois, a ingerência
do Estado de Exceção como regulador do metabolismo do capital; diga-se,
24. O fascismo seria
natural, permanente, disruptivo, hegemônico, expansivo
uma
demonstração
dessa
modelagem
violenta
do
Estado
de
Exceção
Capitalista (MÉSZÁROS, 2015, p. 34). Esta passagem estaria em acordo com
25.
o bonapartismo (MARX, 1978) e alinhada à Crítica ao Programa de Gotha
E
neste
conjunto
de
aparatos
repressivos
e
regressivos,
o
bolsonarismo
impõe novo estágio ao cesarismo (GRAMSCI, 2000) e uma cepa de terceiro
mundo ao fascismo.
:
A deformidade fascista brasileira
bolsonarismo racista e messiânico
Quando equipes de vigilância e controle da Pandemia são atacados, posto
que foram identificados com os propósitos sanitários do isolamento, diante
da
pandemia
da
desinteligência
razoabilidade
recorta-se
certo,
—
—
sido
da
firmado
recolonizando
no
aqueles
cultura
que
perguntam
país.
À
como
doutrinação
a
se
ciência,
comportamento
fascista:
porém,
muitos
negacionista
terá
esse
dogmatização
infância,
COVID-19,
de
com
atacam
da
vista,
sem
antirracional,
nação
mitologias
nível
racionalidade
primeira
uma
as
que
e
da
dúvida,
inerente
inteira,
desde
salvacionistas.
equipes
de
médicas
Isto
à
sua
está
socorristas,
especialmente de pobres e negros, não são meros seguidores imbecilizados
em torno de algum chamamento somente messiânico — e ainda que isto
seja muito grave. Esse séquito que investe contra a ciência é formado por
26
agentes do capital, tanto entre os populares
agentes
políticos.
Quando
a
presidência
da
quanto
entre
República
é
a
os
chamados
maior
apólice
securitária pelo uso da Cloroquina, o povo domesticado segue bajulador e
ativista,
como
polo
amplo
e
agressor
contra
a
saúde
pública,
os
direitos
fundamentais do próprio povo (direito à vida) e à democracia em termos
básicos.
A
ciência
é
o
alvo
da
vez
porque
impõe
restrições
racionais,
como
o
isolamento, ao livre curso do capital. Não se importam com a necropolítica
porque o capital não pode parar, e daí que a ciência aplicada à análise da
27. Aliás, outro reflexo da ação dos agentes do capital
pandemia é satanizada
(fascistas)
cesarismo
está
na
contração
repressivo
política
(GRAMSCI,
do
2000)
país,
e
na
observada
regressão
no
avanço
do
dos
marcos
da
“democracia
liberal”;
“democracia
eleitoral”
cômputo
o
país
28.
do
Golpe
de
agora
Uma
2016
e
é
apenas
consideração
do
uso
considerado
que,
como
obviamente,
indiscriminado
de
mera
não
Fake News
faz
desde
29 e as mortes pululam entre os mais pobres
2018. Por isso, a fome, a miséria
e vulneráveis à medida que avança a dança das cadeiras no miolo dos Grupos
30.
Hegemônicos de Poder
que
o
poder
é
detentor
Nesse meio termo, as hostes do poder declaram
de
uma
visão
de
mundo
alternativa,
passando
ao
largo da ciência; afinal, quando se emitem comunicados de aceite ao capital
da
necropolítica,
e
em
mensagens para milhões de analfabetos
plenos
ou
31.
funcionais, pode sim haver uma “alternativa inteligente” à racionalidade
É o momento em que a docilidade se converte em ódio, desmontando-se por
32.
completo o Mito da Cordialidade
:
Estado de Exceção
nem tudo é o que parece
Por outro lado, mesmo críticas bem intencionadas ao cerco à Pandemia
tem
errado
a
mão
na
construção
conceitual,
desajustando-se
sua
teoria
analítica. A crítica de Giorgio Agamben, ao isolamento, sob o decreto de que
todos os países teriam imposto o Estado de Exceção, é um claro exemplo. A
razão disso é o tratamento dispensado ao Estado de Exceção; em resumo,
exceptio implica em usar a democracia contra ela mesma, o Direito que se
transforma
em
não-Direito,
antagônico,
contrário
e
a
Constituição
contraditório
ao
que,
que
é
“lida”
efetivamente,
em
sentido
está
escrito.
Tecnicamente, para que isto ocorra, inocula-se uma exceção no interior da
própria regra: tem-se uma regra dizendo “não” (prisão em 2ª instância) e a
exceção (“exceptio”) atua para que se leia “sim”. As alegações podem ser de
inúmera natureza, de “falta de clareza” ou norma regulamentadora até uma
suposta “hermenêutica” — um tipo de interpretação a bel prazer, seguida de
uma
coleção
de
Constitucional:
retóricas
a
citações.
Constituição
Na
prática,
Federal
de
ocorre
1988
se
uma
Transmutação
transforma
no
seu
contrário, num Frankenstein, quando é interpretada para negar seu próprio
conteúdo. Politicamente, a Constituição Social converte-se em instrumento
neoliberal a serviço dos Grupos Hegemônicos de Poder e de seus exegetas
ou escribas, o cesarismo é aceso contra o processo civilizatório, atentando-
se vertiginosamente contra o Princípio do não-Retrocesso Social. Foi assim
em 2013-2016, com o golpe do impeachment: para nós, instauração de uma
Ditadura
Inconstitucional
Henrique
Cardoso
(MARTINEZ,
(FHC),
não
existe
2019).
mais
a
Todavia,
desde
Constituição
Fernando
Programática
submetida à vigência de uma “reserva do possível”: um espécime vivo até
hoje da regra de exceção, da Lei de Responsabilidade Fiscal à regra de ouro
do
teto
orçamentário
com
os
gastos
sociais.
Dito
isto,
como
elogio
à
abrangência que a tese de Agamben pode nos proporcionar, enceta-se aqui
uma
ressalva
e,
após,
uma
crítica:
ressalte-se
a
aplicabilidade
da
tese
do
Estado de Exceção, vide a Guatemala (2012), em aplicação clássica, a França
com seu Estado de Emergência voltado contra os imigrantes e os latinos, o
Equador e a Hungria, o Brasil antes e durante a pandemia; ressalva-se, com
pesar,
não
termos
lido
Agamben
emprestar
o
conceito
a
nenhum
caso
efetivo de imposição certeira, indubitável, do Estado de Exceção.
Neste sentido, a ressalva é de que o filósofo não tem precisão política, não
observa
o
realismo
político,
seu
conceitual
não
o
remete
a
uma
visão
de
mundo politizada. A crítica se emenda à ressalva, pois, como se viesse a nos
confirmar, quando Agamben olha para baixo, para a concretude política das
instituições,
exatamente
organizações
por
inexistentes.
não
Ou
ter
seja,
o
sociais,
afiado
um
filósofo
para
os
entes
arcabouço
decretou
jurídicos
político,
Estado
de
e
políticos,
observa
realidades
Exceção,
acertando
todos os países e governos que instituíram regras de isolamento diante da
COVID-19; seu decreto filosófico diagnosticou anseio global em restringir e
mitigar direitos fundamentais. Aliás, quanto ao desejo, disso não se duvida, e
Equador e Hungria nos provam as reais intenções. Contudo, em que pese
alguns governos apropriarem-se da pandemia para defenestrar instituições
democráticas e legítimas, como é o caso do Brasil, não podemos chegar a
uma conclusão geral, global, no sentido de que “as medidas de restrições e
de isolamento são decretos do Estado de Exceção”.
Pode
menos
como
ser
que
alguns
isolados”
no
Brasil,
não
governos
podem
utilizam-se
assim
servir
dos
a
ajam,
uma
decretos
mas
análise
da
esses
fatos
“mais
generalizadora.
pandemia
para
ou
Outros,
aprimorar
a
corrupção institucional — o fato de termos uma junta militar no Palácio é
outro assunto, ainda que permita refletir sobre a variedade alcançada pelo
Estado de Exceção, sob a era das Guerras Híbridas (KORYBKO, 2018).
Pois bem, diante da estocada no vento, Agamben reconheceu seu erro,
retirou
o
decreto
sobre
o
isolamento da pandemia ser artifício
incólume,
generalista, global, do Estado de Exceção. Agora, por fim, a retificação não
desabonou nossa ressalva, uma vez que, mesmo retificando-a, não provou
análises onde efetivamente ocorre o fenômeno da
exceptio. Em nosso elogio
final, consignamos interesse em saber como Agamben analisa e interpreta
os decretos imperiais e restritivos dos EUA, com Trump, ou o Brasil desde
2013-2016
Chomsky
(MARTINEZ,
(2002)
desde
2019).
o
11
de
Como
fizeram
Setembro,
muitos,
Umberto
Eco
Boaventura,
(2018)
e
seu
protofascismo, até Bobbio (2016), procurando destruir o “berlusconismo”
— e citado amplamente por Mészáros: “amigo acadêmico respeitado” —,
Agamben está no debate do século XXI. Como dissemos, seria fundamental
verificar o conceito aplicado ao realismo político prático. Seria salutar essa
Filosofia Política, mas na esteira de Maquiavel e seus príncipes e césares.
Breves considerações finais
Com mil mortes por dia, infectados pela Sociopatia que se alimenta da
pandemia, completaremos, sem razão de ser, um século da Arte Moderna —
Semana da Arte Moderna de 1922 —, em ano eleitoral, se houver. Porque, de
moderno,
não
temos
nada,
só
o
vírus
e
a
desinteligência
pós-moderna
baseada
Bom,
na
se
Semana
é
mentira:
que
da
isso
Arte
Porém,
(1928),
Oswald
autofagia,
essa
é
pós-verdade,
moderno...
Moderna,
autofágica.
de
News,
Fake
não
qual
Mas,
seja,
a
há
Andrade,
capacidade
com
como
infinita
de
algo
muito
decretação
confundamos
de
revisionismo
o
de
interessante
que
nossa
Manifesto
crítica
fagocitose
nazi-fascista.
nesta
cultura
é
Antropofágico
realista,
exatamente,
exclusiva
do
capitão
à
do
mato.
A Geração de 30 corresponde ao período trazido pela Revolução de 1930 e
a
década
glorificada
dos
clássicos
“Explicadores
do
Brasil”.
A
isto,
só
acrescentaríamos que nossa cultura tem-se revelado bizarra, mórbida, sob o
bolsonarismo, e que mereceria um Manifesto Autofágico, típico fundador de
uma
Sociologia
do
Desprazer.
No
passado-presente
dos
anos
1930,
dos
“bestializados”, e quando o português era castiço, dizia-se que havia muita
“estultice” e “decrepitude”, mas hoje sabemos que é mau-caratismo e falta
de
ética
civilizatória
sob
o
domínio
perverso
do
capital
disruptivo,
regressivo, e da Idiocracia: regime de governo cleptocrático ou o reino do
“imbecil completo”, e que crescem à base do cultivo neoliberal (medieval).
Nossa corrupção é tão grande, própria de um “gigante adormecido”, que o
nosso
“normal”
é
nos
“alimentarmos
dos
nossos”.
Então,
como
se
vê,
a
cultura meteórica não é metafórica. De todo modo, nossa esperança é que
um
dia
o
bolsonarismo
indubitavelmente
acreditará
numa
estará
leitura
entenda
todo
o
que
vacinado
“alternativa”
escrevemos,
contra
o
fascismo
(invalidável)
da
pois,
e
não
ciência.
o
país
mais
Esta
é
se
a
montanha que temos que conquistar.
Até que este dia chegue, no final deste processo, será que veremos uma
noite de longas facas em nossa Bastilha? Ou saberemos construir um arco
político
de
resistência,
Civilizatório?
recuperando-se
os
limites
mínimos
do
Processo
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MÉSZÁROS,
István.
A
montanha
que
devemos
Estado. São Paulo: Boitempo, 2015.
conquistar:
reflexões
acerca
do
NOTAS
21
|
Professor titular de Ciência Política da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(UNESP), campus Marília.
22
|
Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
|
23
Disponível
em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/nova-mp-de-bolsonaro-traz-
inseguranca-juridica-e-inconstitucionalidade-avaliam-especialistas.shtml?fbclid=IwAR3Dr6hAJNjEyAe836Amt60RfK6l0-Bw6gvOT21o1pUsBlF8j-q3eWZFQY. Acesso: 17 maio 2020.
24
|
“Sem a emergência do Estado moderno, o modo espontâneo de controle metabólico do capital
não
pode
se
transformar
num
sistema
dotado
de
microcosmos
socioeconômicos
claramente
identificáveis — produtores e extratores dinâmicos do trabalho excedente, devidamente integrados e
sustentáveis.
capital
são
Tomadas
não
diametralmente
em
apenas
opostas
a
separado,
de
incapazes
elas,
se
as
lhes
unidades
reprodutivas
coordenação
for
permitido
e
socioeconômicas
totalização
continuar
seu
particulares
espontâneas,
rumo
mas
disruptivo,
do
também
conforme
a
determinação estrutural centrífuga de sua natureza. Paradoxalmente, é esta completa “ausência” ou
“falta” de coesão básica dos microcosmos socioeconômicos constitutivos do capital — devida, acima
de tudo, à separação entre o valor de uso e a necessidade humana espontaneamente manifesta — que
faz existir a dimensão política do controle sociometabólico do capital na forma do Estado moderno
[...]. A articulação do Estado, aliada aos imperativos metabólicos mais internos do capital, significa
simultaneamente a transformação das forças centrífugas disruptivas num sistema irrestringível de
unidades
produtivas,
microcosmos
sistema
reprodutivos
possuidor
e
também
de
fora
uma
de
estrutura
suas
de
fronteiras
comando
[...].
viável
Portanto,
dentro
enquanto
dos
se
tais
puder
manter tal dinâmica expansionista, não há necessidade do Leviatã hobbesiano [...]. É assim que se
redefine de maneira viável o significado do bellum omnium contra omnes hobbesiano no sistema do
capital,
presumindo-se
que
não
haja
limites
para
a
expansão
global
[...].
O
Estado
moderno
—
na
qualidade de sistema de comando político abrangente do capital — é, ao mesmo tempo, o pré-requisito
necessário da transformação das unidades inicialmente fragmentadas do capital em um sistema viável,
e o quadro geral para a completa articulação e manutenção deste último como sistema global. Neste
sentido
fundamental,
o
Estado
—
em
razão
de
seu
papel
constitutivo
e
permanentemente
sustentador — deve ser entendido como parte integrante da própria base material do capital. Ele
contribui de modo significativo não apenas para a formação e a consolidação de todas as grandes
estruturas
reprodutivas
da
sociedade,
mas
também
para
seu
funcionamento
ininterrupto”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 123-125 — grifo nosso).
25
|
“Que é o Estado livre? A missão do proletariado, que se libertou da estreita mentalidade do
humilde súdito, não é, de modo algum, tornar livre o Estado. No Império Alemão o “Estado” é quase
tão “livre” como na Rússia. A liberdade consiste em converter o Estado, de um órgão que paira acima
da sociedade, em um órgão completamente subordinado à sociedade — as formas de Estado seguem
sendo hoje mais ou menos livres na medida em que limitam a “liberdade do Estado” [...]. A “sociedade
atual” é a sociedade capitalista, que existe em todos os países civilizados, mais ou menos livre de
aditamentos
medievais,
e
mais
ou
menos
modificada
pelas
particularidades
do
desenvolvimento
histórico de cada país, mais ou menos desenvolvida. Por outro lado, o “Estado atual” relaciona-se
[cambia] com as fronteiras de cada país. O Império prussiano-alemão é outro que não aquele da Suíça,
da
Inglaterra,
dos
EUA.
O
“Estado
atual”
é,
portanto,
uma
ficção
[...].
Sem
embargo,
os
distintos
Estados dos distintos países civilizados, em que pese a enorme diversidade de suas formas, têm em
comum o fato de que todos eles se assentam sobre as bases da moderna sociedade burguesa, ainda que
esta
se
apresente
em
territórios
mais
desenvolvidos
do
que
outros,
no
sentido
capitalista.
Temos
também, portanto, certos caracteres essenciais comuns. Neste sentido, pode-se falar que o “Estado
atual”, por oposição, no futuro, por sua atual raiz na sociedade burguesa, acabará se extinguindo [...].
Que por “Estado” se entende, na realidade, a máquina do governo ou o Estado enquanto tal, devido à
divisão do trabalho, forma um organismo próprio separado da sociedade, já o indicam estas palavras:
“o Partido Trabalhador Alemão exige como base econômica do Estado: um imposto único e progressivo
sobre a renda”. Os impostos são a base econômica da máquina governamental [...]. No Estado do
futuro,
existente
pressupõe
as
já
na
Suíça,
diferentes
esta
fontes
de
reivindicação
ingresso
das
está
quase
diferentes
realizada.
classes
O
imposto
sociais,
ou
sobre
seja,
a
a
renda
sociedade
capitalista” (MARX, 1979, p. 27-30 — grifos nossos).
26
|
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/equipes-que-coletam-testes-
para-pesquisa-nacional-sobre-coronavirus-sao-detidas-e-agredidas.shtml?
fbclid=IwAR1jk4S2T5OGm1d8V5BIKhGwnFw65LLa_hqirRcokXYwq7aqjnf_uZKGRQc.
Acesso
em:
19 maio 2020.
|
27
Disponível
em:
https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/05/16/coronavirus-
chance-de-disseminacao-e-35-vezes-maior-sem-distanciamento.htm?
fbclid=IwAR13cVp8lTErNXmXTv5BmaehdBBS_vI0Yg9Pgxm5X1E62HGRrcIeTmWcteQ. Acesso em:
19 maio 2020.
|
28
Disponível
em:
https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-05-05/brasil-perde-status-de-
democracia-liberal-perante-o-mundo.html?
ssm=whatsapp&fbclid=IwAR1T99ixyRlO9jSkoQVXk4citz0SBaIiuUHwvMLigssaMRd1iZDTdbGaStI.
Acesso em: 18 maio 2020.
29
|
Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/13/imagem-de-menina-
trocando-mascara-por-comida-viraliza-no-rio-gera-onda-de-solidariedade.ghtml?
fbclid=IwAR1uFwQQAohfROm0uuBfS_RhMCGA0mO_m-irxrexHKLE8W-xrjtmLp4O3jc.
Acesso
em: 20 maio 2020.
30
|
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/05/16/entre-
trocas-de-ministros-numero-de-mortes-avanca-666-no-pais.htm?
fbclid=IwAR16CCq305BQ1XxUrfOfjIDuAFOwQoiO2GzdxRT76OyjlFoUIYTzwZ9__XE.
Acesso
em:
19 maio 2020.
31
|
Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-nao-ignora-ciencia-so-ve-
diferente-diz-ministro,1da17eb13b710f1ee0e302ba1073d006i1brtm3q.html?
utm_source=Whatsapp&utm_medium=SOCIAL&fbclid=IwAR0R0qesExaNIBuYgw2PZvBoTbnfLL
wD-Qu2pzoJyE2Rkpq7WQSMI3L4DYs. Acesso em: 18 maio 2020.
32
|
Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/16/como-o-mito-do-homem-
cordial-embaca-a-percepcao-sobre-o-brasileiro.htm?
fbclid=IwAR2ZeZx9yUe4PVZhsD2PI6fojoQj5VdpNNTq12hMRvVxvezMhgavjH7asXQ.
20 maio 2020.
Acesso
em:
?
Urgente para quem
A Lei de Urgente Consideração e a
19
pandemia da COVID-
MÓNICA BRUN BEVEDER
O
que
atenção,
situação
é
33
urgente?
resposta,
ou
no Uruguai
É
aquilo
ação
contexto
que
imediata,
social
exige,
rápida
tem
demanda,
requer
ou
oportuna.
relação,
portanto,
A
atendimento,
urgência
com
de
uma
necessidades
determinadas por condições sociais e históricas específicas. Não obstante o
caráter
histórico
materialismo
concepção
e
concreto
histórico
da
história,
se
das
necessidades
mantém
como
inaugurada
por
sociais,
o
fundamento
sobredeterminação.
Marx
e
Engels,
o
do
Nesta
primeiro
pressuposto da história da humanidade é que o ser humano deve “estar em
condições de viver para poder ‘fazer história’” (MARX; ENGELS, 2007, p. 33)
e,
para
viver,
necessita
produzir
os
meios
materiais
de
sua
existência.
Portanto, no processo de produção material de sua vida, o ser social já está
“fazendo história”. Este é o primeiro ato histórico e a premissa da história da
humanidade:
sobrevivência.
a
produção
Ao
produzir
dos
os
meios
meios
para
para
satisfazer
satisfazer
as
necessidades
necessidades
de
mais
urgentes — comer, vestir, habitar, proteger-se contra as ameaças — o ser
social
produz,
no
mesmo
processo,
novas
necessidades.
Assim,
o
surgimento de novas necessidades — sejam elas do estômago ou da fantasia
(MARX,
2009)
produtivas.
—
está
condicionado
pelo
desenvolvimento
das
forças
Nesses termos, repensamos e afinamos nossa indagação principal. O que
é urgente numa sociedade onde a produção dos meios de sobrevivência está
subordinada à produção de mercadorias com o objetivo de gerar lucro para
uns
poucos?
relações
Quais
através
as
demandas
das
necessariamente,
quais
relações
de
priorizadas
os
produtos
exploração
e
numa
são
sociedade
produzidos
dominação
onde
[...]
fortalecidas
“as
são,
pelos
distintos processos de alienação que tem expressão em todas as esferas da
vida social, forjando uma sociabilidade que dá as costas para a satisfação das
necessidades humanas” (BEVEDER, 2019, p. 246-247)? Afinando ainda mais,
nos perguntamos: o que é urgente para um país de capitalismo dependente
em tempos de pandemia?
O
projeto
de
Lei
de
Urgente
Consideração
(LUC),
apresentado
ao
34, não deixa dúvidas quanto às
Parlamento pelo recém empossado governo
necessidades que são e serão tidas como urgentes e os interesses que serão
privilegiados nos próximos cinco anos, com ou sem pandemia.
Não
cabe
“apenas”
nos
limites
apresentar
os
de
um
texto
principais
como
aspectos
este
do
debater
projeto
ou
de
até
lei.
mesmo
Ademais,
consideramos que esta tarefa tem sido muito bem realizada por distintos
35.
estudiosos, coletivos e revistas do país
Nossa intenção é tecer algumas
breves reflexões sobre a tendência contemporânea da dinâmica capitalista
no capitalismo dependente que se instala no Uruguai após quinze anos de
governo
da
Frente
Ampla
e
suas
políticas
neoliberais-progressistas
(uma
36 e medidas macroeconômicas e até
combinação entre expansão de direitos
mesmo do campo dos direitos sociais com evidente teor neoliberal). Nesse
sentido, consideramos que o projeto de lei que o governo de Luis Lacalle
Pou ingressa ao Parlamento em 23 de abril deste ano é parte dessa tendência.
Trata-se
da
ultraneoliberal
reação
primeira
ou
burguesa
grande
neoliberal
aos
ação
do
autoritário,
avanços
que
governo
que
pode
tiveram
para
ser
lugar
impor
o
entendido
na
projeto
como
chamada
a
“era
progressista” da América Latina. Com o esgotamento desta “era” — que tem
como principais marcos políticos a vitória de Maurício Macri na Argentina e
de Jair Bolsonaro no Brasil —, nesse intervalo entre o velho que não morre e
o novo que não pode ainda nascer (GRAMSCI, 1975), se abre a porta para
uma violenta ofensiva contra os direitos conquistados. No Uruguai, os quase
quinze anos de governo da Frente Ampla significaram, é inegável, um avanço
progressista com a implementação da chamada “agenda de direitos”. Contra
essa agenda e a engrenagem estatal criada para pô-la em prática, se levanta a
agenda ultraneoliberal que pretende deixar o país como terra arrasada.
Instrumento
jurídico-legal
de
questionável
constitucionalidade,
a
lei
declarada urgente pelo atual governo uruguaio pretende instalar, de uma só
vez e de maneira brutal, o projeto ultraneoliberal, passando por cima das
necessidades sociais que se agravam no contexto de pandemia da COVID-
19. Nesse sentido, depois de quase três meses da confirmação dos primeiros
casos de infectados pelo novo coronavírus, o governo mantém a tramitação
“normal”
da
LUC,
ignorando
os
verdadeiros
problemas,
as
reais
necessidades e urgências da maioria da população uruguaia.
O caráter autoritário da LUC se evidencia na forma como é apresentada.
Embora a Constituição, em seu artigo 168, preveja a possibilidade do Poder
Executivo
“urgente
remeter
no
máximo
consideração”,
o
um
governo
projeto
elabora
de
e
lei
com
submete
a
ao
declaratória
Parlamento
de
um
único projeto que contém mais de 500 artigos que abordam os mais variados
37
temas
e propõem a modificação de uma série de leis que versam sobre
diversas
problemáticas,
constituindo
uma
espécie
de
“lei
guarda-chuva”.
Para além da inconstitucionalidade, está também a questão do insuficiente
prazo, constitucionalmente estabelecido, para que as duas Câmaras (a de
Deputados e o Senado) avaliem e decidam sobre a pertinência do extenso e
38.
multitemático projeto
debate
no
interior
do
Evidentemente, a intenção é limitar o alcance do
Parlamento
e
eliminar
qualquer
possibilidade
de
diálogo com a sociedade civil organizada, especialmente se considerarmos
que
sua
mobilização
se
vê
afetada
pelas
recomendações
de
isolamento
social.
Os primeiros casos de pessoas contagiadas pelo novo coronavírus foram
confirmados no dia 13 de março; à noite, o governo uruguaio declara estado
de
emergência
implantação
fechamento
sanitária,
de
medidas
total
ou
fazendo
de
parcial
recomendações
prevenção
de
do
comércios,
e
contágio,
serviços
anunciando
com
a
restrições
privados
e
e
públicos,
suspensão de espetáculos públicos, fechamento parcial de fronteiras, dentre
outras
medidas.
Embora
não
se
possa
negar
a
seriedade
com
a
qual
o
governo encarou e tratou, desde o início, a ameaça da pandemia da COVID-
39, as medidas tomadas para amenizar os impactos sociais têm sido não só
19
insuficientes
social
em
e
ineficazes
novos
continuidade
da
como
patamares
tramitação
40.
também
Se
reprodutoras
insere
“normal”
da
nesse
LUC
em
da
desigualdade
conjunto
tempos
de
de
ações
a
emergência
sanitária.
Evidentemente,
não
estamos
defendendo
o
absurdo
de
uma
relação
direta entre pandemia da COVID-19 e o projeto de lei; mas consideramos
necessário
refletir
quarentena
para
sobre
garantir
a
a
funcionalidade
não
participação
do
da
isolamento
sociedade,
a
social
ou
ausência
de
debate e o controle das manifestações, no sentido de legitimar e passar “na
marra” a lei, sem resistência, sem povo e sem luta nas ruas, aumentando a
possibilidade (já significativa, tendo em vista a composição do Parlamento)
de aprovação do núcleo principal do projeto de lei.
A
LUC
é
a
representação
jurídico-legal
do
programa
das
classes
dominantes representadas pelo governo de coalizão de direita, que retorna
ao
poder
caráter
com
a
responsabilidade
profundamente
consensual
no
campo
de
regressivo
crítico
que
a
pôr
e
crise
em
andamento
uma
contrarreformista.
econômica
não
é
agenda
Apesar
causada
de
de
pela
pandemia — mas com ela seus efeitos sociais se potencializam, aumentam
seu ritmo de expansão —, o que o projeto de lei pretende é implementar
legalmente as condições para que a crise seja paga pelas classes subalternas
através de mais um ciclo de ajustes. Trata-se de uma reação às conquistas
sociais
dos
últimos
anos
e,
portanto,
expressão
do
avanço
do
41 num país de significativa
conservadorismo aliado a tendências militaristas
tradição democrática.
O
conteúdo
privatizador,
antidemocrático
e
punitivista
da
LUC
escancara a lógica perversa do Estado no capitalismo selvagem: ele está a
serviço da produção orientada à geração de lucro para alguns poucos, não
para garantir a vida digna ou até mesmo a sobrevivência da maioria. O que é
urgente
lucro
é
garantir
está
acima
reconfiguração
do
o
lucro,
da
não
vida.
atender
O
paradigma
de
às
projeto
necessidades
da
população.
ultraneoliberal
sociabilidade
burguesa,
instaura
onde
a
O
uma
violência
em todas suas formas é banalizada e a violação de direitos pelo Estado torna-
se regra. A barbárie generaliza-se, acentuando a “destrutividade vantajosa”
42 (MÉSZÁROS, 2008).
do capital
Mas
ainda
há
o
que
Henri
Lefebvre
chama
de
43.
resíduos
O
residual
resiste, tensiona e pressiona o movimento dominante de regressão social.
Segundo José de Souza Martins:
É desta tensão que nasce a possibilidade da práxis revolucionaria. Práxis que se funda no
resgate e na unificação política dos resíduos — concepções e relações residuais que não
foram
capturadas
virtualidades
pelo
poder,
bloqueadas.
[...]
que
Nos
permaneceram
resíduos
e
no
nos
virtual
subterrâneos
estão
as
da
vida
necessidades
social,
radicais,
necessidades que não podem ser resolvidas sem mudar a sociedade, necessidades insuportáveis,
que
agem
em
favor
das
transformações
sociais,
que
anunciam
as
possibilidades
contidas
utopias, no tempo que ainda não é, mas pode ser (MARTINS, 1996, p. 23, grifos nossos).
nas
REFERÊNCIAS
BEVEDER,
Mónica
relações
Brun.
sociais
O
de
retorno
a
produção
Lefebvre:
e
a
a
noção
crítica
da
de
re-produção
vida
cotidiana
das
como
contribuições à tradição marxista. Tese (Doutorado em Serviço Social)
— Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Faculdade de Serviço
Social, Universidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019.
GRAMSCI,
Antonio. Quaderni del Cárcere. Torino: Einaudi, 1975.
MARTINS,
José
de
Souza.
As
temporalidades
da
História
na
dialética
de
Lefebvre. In: MARTINS, José de Souza (Org.). Henri Lefebvre e o Retorno à
Dialética. São Paulo: Hucitec, 1996.
MARX,
Karl. O capital. Livro I, volume 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009.
MARX,
Karl;
ENGELS,
Friedrich.
A
Ideologia
Alemã.
São
Paulo:
Boitempo,
2007.
MÉSZÁROS,
István. O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico. Revista Política e
Sociedade, Florianópolis, v. 7, n. 13, p. 17-33, out. 2008.
NOTAS
33
|
Assistente social, mestre e doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em
Serviço
Social
(FSS/UERJ).
da
Faculdade
Professora
Grau
de
1
e
Serviço
membro
Social
do
da
Universidade
projeto
de
pesquisa
do
Estado
intitulado
do
Rio
de
“Funciones
Janeiro
y
efectos
colaterales de la introducción de sistemas de información para la protección social”, pertencente ao
Departamento de Trabajo Social, da Facultad de Ciencias Sociales da Universidad de la República del
Uruguai (UdelaR).
34
|
O
Partido
Nacional
ou
Partido
Blanco
é,
junto
com
o
Partido
Colorado,
um
dos
partidos
tradicionais do Uruguai. O Partido Nacional foi o representante dos interesses da oligarquia rural
uruguaia e é até hoje sua marca principal.
|
35
Recomendamos o dossiê de artigos sobre a LUC da plataforma virtual Hemisferio Izquierdo.
Disponível em: https://www.hemisferioizquierdo.uy/. Acesso em: 23 maio 2020.
|
36
São exemplos da “agenda de direitos” a lei do matrimônio igualitário, a despenalização do
aborto, a extensão de direitos trabalhistas a trabalhadores rurais e empregadas domésticas, lei de
regulação do mercado de cannabis, lei integral para pessoas trans.
|
37
Vai desde o aumento do punitivismo do Estado, passa pela proposta de novas regras fiscais,
chegando até a possibilidade de elaboração de linguiça pelos açougues (proposta que conta com seis
artigos).
38
|
Se o Parlamento não cumprir com os prazos constitucionais (três meses no total) para decidir
sobre a Lei, ela é automaticamente aprovada.
|
39
Embora se possa fazer críticas, dentre as quais destacamos a velocidade com a qual tem sido
recomendado o fim do isolamento social para o “retorno” às atividades “normais”.
40
|
Como principais exemplos, podemos citar a manutenção das aulas em todos os níveis através do
ensino à distância; a não proibição de despejos e de demissões, dentre outros.
41
|
O governo do Partido Nacional é aliado ao Partido Cabildo Abierto, criado em 2019, que teve
como
candidato
à
Presidência
(no
primeiro
turno)
o
ex-comandante
das
Forças
Armadas,
Guido
Manini Ríos (atualmente senador). O Partido Cabildo, o rápido aumento de sua popularidade e sua
integração
na
coalização
que
hoje
governa
o
país,
são
as
principais
evidências
do
avanço
de
uma
extrema direita.
42
|
“A
direção
auto-expansiva
do
capital
não
pode
refrear
a
si
mesma
em
virtude
de
alguma
consideração humana, simplesmente porque essa consideração pareceria moralmente mais palatável,
como
a
automitologia
do
‘capitalismo
caridoso’
e
do
‘capitalismo
popular’
gostaria
de
nos
fazer
acreditar. Ao contrário, a lógica do capital é caracterizada pela destrutividade autovantajosa, uma vez que
tudo que se encontra no caminho do cruel impulso expansivo do sistema deve ser naturalmente varrido ou
esmagado, se preciso” (MÉSZÁROS, 2008, p. 19, grifos nossos).
43
|
“A teoria lefebvriana dos resíduos atravessa mais de uma dimensão de seu pensamento. Os
resíduos são vistos como parte do projeto do possível-impossível. O irredutível, que se “esconde”
como potência, que escapa ao poder, à dominação. O pensamento que elabora sistemas não vê os
resíduos, e, portanto, o possível” (BEVEDER, 2019, p. 63).
A epidemia e o fascismo
44
LINCOLN SECCO
O
uso
da
metáfora
epidemiológica
em
política
não
é
privilégio
do
fascismo, mas nenhum outro movimento se utilizou tanto dela. A tentação
de falarmos a respeito do fascismo da mesma forma (como vírus, doença,
bactéria
etc.)
é
grande
porque
não
concebemos
a
maldade
em
pessoas
“normais” e do nosso convívio comunitário.
A epidemia mais mortífera do século XX, a chamada “Gripe Espanhola”
esteve muito próxima de dois fenômenos sociais catastróficos: na Primeira
Guerra
Mundial
violentamente
vida,
as
(1914-1918),
modificadas
relações
conjugais
as
numa
e
o
atitudes
escala
mercado
diante
imprevista;
de
trabalho
da
e
o
se
morte
próprio
foram
modo
de
transformaram;
o
segundo fenômeno foi a reunião fundacional fascista na Piazza San Sepolcro,
em Milão, a 23 de março de 1919 (e no ano seguinte a criação do Partido
Nazista na Alemanha), cuja consequência seria uma nova guerra mundial.
Outras
epidemias
sobrevieram
depois
da
derrota
fascista
na
Segunda
Guerra Mundial, mas só em 2020 houve novamente a coincidência de uma
transformação
profunda
na
vida
cotidiana
e
na
esfera
política
com
uma
pandemia.
O confinamento no século XXI coincide com a nova ascensão do fascismo
em vários países e uma inédita experiência virtual. Da Hungria à Polônia; da
Itália à Grã-Bretanha; dos Estados Unidos às Filipinas; e em grande parte da
América
Latina,
governos
são
conquistados
permitem tranquilamente seu fortalecimento.
por
bandos
fascistas
ou
Além
disso,
a
popularização do WhatsApp,
das
redes
sociais
e
o
acesso
massivo a comunicações pela internet expuseram as pessoas à disseminação
de
ideias
fascistas
antes
mesmo
que
nos
acostumássemos
com
o
novo
espaço técnico científico e informacional ao qual seríamos obrigados a nos
confinar.
Esse
espaço
é
travejado
pelos
interesses
mercantis,
por
informações e desigualdades sociais (SANTOS, 1996). O home office para uns
e o trabalho precário e contagioso para outros; o isolamento real para idosos
e a convivência virtual para a juventude mudaram rapidamente a rotina.
Esses
terreno
fenômenos
fértil
econômica
tanto
são
na
conjugados
internet
prometida
pelo
porque
quanto
os
nas
fascistas
frustrações
neoliberalismo.
encontraram
de
Assim,
ascensão
mobilizaram
rapidamente toda sorte de ressentidos e exploraram, pelas redes sociais, a
crítica popularizada de um mundo acadêmico apartado da sociedade.
Ciência
Cinco
discurso
séculos
de
normativo
modernidade
fundado
na
capitalista
ciência.
E,
produziram
no
entanto,
um
jactancioso
diante
de
um
fenômeno que ameaça a vida cotidiana, a única resposta que as autoridades
sanitárias encontraram, em pleno século XXI foi a mesma dos venezianos na
idade média: a quarentena.
A
longa
duração
mensagem
do
científica.
sofrimento
Os
humano
acadêmicos
sempre
foram
colocou
em
surpreendidos
causa
a
porque
raramente concebem seu discurso como mais um no espaço público, já que
produzem a verdade. Ora, “verdades” têm que ser convincentes e estar de
acordo
com
a
vida
prática
das
pessoas,
mas
como
convencê-las
quando
estiveram submetidas a consultas negligentes ou falta de serviços básicos de
saúde?
Quando eu matava o tempo na Biblioteca de História da Universidade de
São Paulo costumava ler boletins de sociedades geográficas do século XIX.
Além das notícias das expedições imperialistas na África, chamavam-me a
atenção as discussões sobre a quarentena.
Em
novembro
de
1865,
“eravamo
in
quarenntena”,
lamentava
Enrico
Giglioli, a bordo de uma fragata. A experiência daquele confinamento não
era
essencialmente
diferente
da
nossa
no
século
XXI,
oscilando
entre
a
busca de passa tempo e o excesso de carga de trabalho. Para vencer “le lunghe
ore” (longas horas) de reclusão, aquele italiano estudava os seres marinhos
que
caíam
nas
redes
de
mão,
único
objeto
que
as
autoridades
sanitárias
permitiam usar (GIGLIOLI, 1870, p. 111).
As
manifestações
confinamento,
Bolsonaro
fascismo
ou
em
públicas
geral
Trump,
coincidir
tem
com
pela
abertura
comandadas
uma
uma
lógica
por
que
do
líderes
vai
mobilização
comércio
além
e
pelo
neofascistas
da
fim
como
necessidade
permanente.
Ela
do
de
o
também
responde às necessidades da acumulação de capital.
No
século
econômicos.
XIX,
A
a
quarentena
Conferência
foi
combatida
Sanitária
de
em
Viena
nome
de
(1874)
interesses
condenou
a
quarentena, mas foi o comércio quem a aboliu, pois países perdiam dinheiro
com o desvio de linhas de vapor e de navios mercantes, bem como pelo fato
dos passageiros não comprarem no período em que ficavam retidos. Alguns
países,
como
Portugal,
só
aboliram
os
lazaretos
no
início
do
século
XX,
criando um posto marítimo de desinfecção (MORENO, 2002, pp. 176, 180,
181). Mas a gripe espanhola de 1918 novamente obrigou as pessoas à vida
enclausurada:
teria
ela
alguma
relação
com
acontecimentos
posteriores?
Essa é a mesma indagação que um professor primário faz na película Das
weiße Band (Fita Branca, 2010), de Michael Haneke. Isso depois que, em 1913,
estranhos
Alemanha.
atos
violentos
chocam
um
pequeno
vilarejo
do
norte
da
Confinamento
Foi através do confinamento numa tela de computador ou num tablet que
se
difundiu
analógico),
um
filme.
cuja
Na
duração
verdade,
não
um
podia
curta
ser
metragem
mais
(o
adequada
termo
ao
ainda
meio,
seja
é
o
Streaming ou a simples descarga de dados. A forma de distribuição digital
condiz com uma percepção enclausurada. Outrora ele seria visto na sala de
cinema, antecedendo algum longa metragem.
O filme a que me refiro é The Fall, dirigido por Jonathan Glazer em 2019,
com
trilha
homem
sonora
solitário
de
Mica
que
Levi.
também
Nele,
usa
um
grupo
máscara.
A
mascarado
turba
na
castiga
floresta
um
está
enfurecida; os rostos fixos; ela balança a árvore até que o homem perseguido
caia. Em seguida coloca uma corda no seu pescoço; ouvem-se grunhidos e
sons
que
Lançado
atemorizam.
a
um
poço
A
animalização
profundo,
ele
está
começa
a
também
subir
na
trilha
novamente
sonora.
depois
que
aquele grupo vai embora satisfeito.
45
Trata-se de mais uma transposição artística do conto A Loteria,
escrito
por Shirley Jackson (2010), e publicado em 26 de junho de 1948 em The New
Yorker,
causando
uma
reação
irada
em
muitos
leitores.
O
ritual
de
habitantes de uma pequena cidade dos Estados Unidos, reunidos para um
sorteio lotérico, era comum. Também a maldade e a covardia provincianas
aparecem
em
inúmeras
obras
cinematográficas,
46 a Dogville
Morrer, 1952), de Fred Zinnemann,
de
High
Noon
(Matar
ou
(2003), de Lars Von Trier. A
vingança do indivíduo que retorna para se vingar da pequena comunidade
expondo
sua
Corrompeu
hipocrisia
Hadleyburg
é
tema
(1899),
tanto
de
do
Mark
brilhante
Twain
conto
(2003),
O
Homem
que
(naturalmente,
proibido na era do macarthismo), quanto de A Visita da Velha Senhora, de
Dürrenmatt (1976), escrito naqueles mesmos anos 1950 macartistas.
No conto A Loteria, de Shirley Jackson, uma comunidade interiorana de
300 habitantes se reúne anualmente, ao principiar o verão, para um sorteio.
Uma
pessoa
acaba
sendo
sorteada
para
ser
apedrejada
até
a
morte
como
uma espécie de sacrifício para que haja uma boa colheita.
Sob a aparência de unanimidade na massa de pequenos fazendeiros, há
aqueles
também
que
os
esperam
que
ansiosos
ficam
o
nervosos,
sorteio
os
que
com
se
pedras
sentem
nas
mãos,
mas
constrangidos
ou
há
até
torcem para que uma jovem não seja a escolhida.
Um certo Senhor Adams comenta: “Dizem que, lá no vilarejo ao norte,
estão falando em abandonar a loteria”. O Velho Warner, que estava a seu
lado, fez um muxoxo e atribuiu isso a jovens tolos. Ainda assim a Senhora
Adams voltou à carga e disse: “Em alguns lugares, eles já abandonaram as
loterias”. Assim que a primeira pedra atinge a cabeça da pobre sorteada, o
velho
Warner
é
quem
anima:
“Vamos,
vamos,
pessoal”.
Mas
quem
está
à
frente da multidão é o próprio Senhor Adams, que arriscara questionar o
costume antigo. Não sabemos se ele atira pedras, mas aparentemente todos
se precipitam para a pobre sorteada.
Em 1979, Louis Malle viajou para o Midwest e entrevistou os habitantes
de uma comunidade agrícola para seu filme God’s Country. Seis anos depois
ele retornou após a eleição de Reagan e viu uma cidade em crise. Diante dela,
as reações são múltiplas, da crença nas pessoas boas do país à promessa de
uma reação armada contra os impostos, os judeus e os negros. Ele já havia
produzido
cotidiano
um
da
personagem
Resistência;
Staatspolizei).
filme
polêmico
França
de
uma
colaboracionista
pequena
recusado,
A
(Lacombe Lucien,
passou
“comunidade”
aldeia
a
durante
do
ser
1974)
a
comporta
também um grau de ignorância e indiferença.
que
ocupação
sudoeste
espião
em
da
tentou
retratara
alemã.
diferenças
e
Seu
ingressar
Gestapo
o
na
(Geheime
conflitos,
mas
Comunidade
A
disseminação
virtual.
Ao
como
o
conto
A
da
Internet
contrário,
lugar
social
Loteria.
não
projetou-se
sem
Em
vez
realizou
nela
a
contradições
de
300
a
expectativa
pequena
internas
pessoas,
de
comunidade,
relevantes.
pode
uma
haver
3
A
ágora
idealizada
mesma
milhões,
do
mas
o
comportamento provinciano da turba enfurecida é rigorosamente o mesmo.
Nos primeiros espaços de relacionamento virtual, como o Orkut, forjavam-
se “comunidades”.
Em
2015,
promoveu
tinha
Umberto
o
idiota
direito
à
Eco
da
declarou
aldeia
palavra
“em
a
que
portador
um
bar
e
o
“drama
da
da
verdade”;
depois
de
uma
Internet
enquanto
taça
de
é
que
ela
antes
ele
vinho,
sem
prejudicar a coletividade”, agora seus ditos valem tanto quanto os de um
prêmio Nobel (ainda que a comparação seja discutível).
O que o idiota da aldeia expelia na taverna permanecia no seu pequeno
círculo
de
vizinhança,
inconfessáveis.
comunidade
Isso
é
pequena,
na
sua
verdade.
embora
família
Mas
ela
ou
agora
seja
no
os
quarto
dos
preconceitos
numericamente
seus
desejos
continuam
grande.
O
na
espaço
virtual tende a nos confinar em guetos de preconceitos compartilhados da
mesma forma que na aldeia.
Os
fenômenos
de
perseguição
às
pessoas
nas
fronteiras
dos
países
europeus recrudesciam nas épocas de epidemia. Pogrons, linchamentos e
fortificação dos postos de controle fronteiriço se tornavam mais frequentes.
Ora, a primeira coisa que a disseminação das redes sociais proporcionou
foi a experiência do linchamento virtual. Ao ver uma série de comentários
negativos
e
destrutivos
sobre
uma
pessoa,
nós
podemos
anonimamente
jogar mais uma pedra e ninguém saberá exatamente quem foi o responsável
pelo ato causador da morte virtual (às vezes real) da vítima. A morte virtual
também tem um antecedente histórico: a pena de morte civil, que, no Brasil,
foi prevista nas duras regras do Distrito Diamantino no século XVIII. Era
“como se a pessoa deixasse de existir”, definiam as leis da época (PRADO
JUNIOR, 1986, p. 65).
Acima
do
confinamento
real,
podemos
vivenciar
a
falsa
convivência
virtual. A animalização do ser humano, que o fascismo promove, é muito
mais eficaz quando podemos ofender e ameaçar sob a proteção de uma tela
de computador. Mas a covardia do herói de teclado é a mesma do exaltado
escritor de gabinete ou do “corajoso” da turba.
A onda virtual desanima até quem poderia defender a vítima e teme ser
execrado. Decerto, não há novidade nisso salvo a velocidade das injúrias. Na
ditadura argentina, os vizinhos que viam alguém ser levado pelos assassinos
uniformizados se conformavam dizendo: “por algo será”.
Vigilância
A
vivência
numa
exemplos
históricos
livros
que
do
historiografia
se
e
são
muitos.
convencionou
que
historiadores
comunidade
a
procura
está
Pense-se
chamar
“conexões
experiência
baseada
viva
das
por
de
na
ora
tão
micro
entre
vigilância.
somente
história,
as
pessoas”
auto
um
correntes
(DAVIS,
em
Os
dois
tipo
gerais
1987,
p.
de
dos
12):
Menocchio, personagem de O Queijo e os Vermes, não pode escapar tanto às
delações de gente ordinária como à própria língua: lia e falava demais para
um
simples
perambulou
moleiro
por
(GINZBURG,
aldeias
que
2006).
revelavam
um
O
famoso
quadro
vivo
Martin
dos
Guerre
padrões
de
relacionamento interpessoal e dos mexericos dos povoados do sul da França
no século XVI.
Mas
a
auto
vigilância
comunitária
só
existe
com
o
concurso
do
poder
estabelecido. Na própria internet, os algoritmos, as câmeras, os registros de
telefone
móvel,
de
transações
financeiras,
trocas
de
mensagens
etc.
já
exerciam o controle sobre os usuários. A epidemia forneceu o pretexto para
o
Estado
impedir
o
direito
de
ir
e
vir
através
do
mapeamento
de
deslocamentos registrados no celular, entre outras coisas.
Também aqui não há novidade, exceto no meio utilizado. As quarentenas
do século XIX eram complementadas pelo chamado cordão sanitário: tropas
que
impediam
a
passagem
de
pessoas
nas
fronteiras.
O
verbete
cordon
sanitaire, do Dicionário de Garnier-Pagès, discutia se aquela medida era útil
ou não para conter uma epidemia. Mas, em pleno século XIX, alertava: “em
nossos
dias
[o
cordão
sanitário]
passou
a
servir
de
instrumento
político,
destinado a outra coisa e não ao combate ao contágio”. Sob a Restauração
(1815-1830), prosseguia o autor do verbete, o cordão sanitário situado nos
Pirineus,
desde
que
a
febre
amarela
foi
contida,
“estava
muito
mais
destinado a vigiar os movimentos dos liberais da Espanha do que a servir de
barreira ao progresso de uma doença” (GARNIER-PAGÈS, 1857, p. 288) que
47.
não ameaçava mais
Os Pequenos Homens da Comunidade
A substituição dos laços comunitários pelo sentimento nacional é bem
conhecida dos historiadores. Mas ela não apagou, antes reproduziu, o ideal
da gente pequena contra o banqueiro “judeu”, que prejudicava o shopkeeper
negando-lhe crédito ou escorchando-o com juros impagáveis.
A reunião de cada pequeno homem (der Kleine Mann, le petit commerçant),
numa falsa união baseada no antissemitismo, era o “socialismo dos idiotas”,
como a denominou o social democrata alemão August Bebel.
Os jornais radicais e socialistas franceses exibiam com orgulho os títulos
de
Le
Petit
Niçois,
Le
(HOBSBAWM,
1992,
1898,
anos
e
muitos
Petit
p.
Provençal,
131).
depois
Em
La
Recife,
assumiu
o
uma
Charente,
Le
Jornal Pequeno
foi
Petite
linha
integralista;
Petit
Troyen
fundado
mas
em
houve
o
Jornal Pequeno de Manaus (1911); o Pequeno Jornal da Bahia (1889) e outro,
sempre “imparcial e noticioso”, como se declarava em 1885, o Pequeno Jornal
de Guaratinguetá (SP).
O
cosmopolitismo
esmagou
as
pretensões
provincianas
de
Lucien
de
Rubempré, em Ilusões Perdidas (1837), de Balzac. Ele voltou desolado à sua
Angoulême. Já o fascista rejeita o grande mundo das ideias reconhecidas e
exalta o pequeno universo reconhecível do falatório de botequim de beira de
estrada.
Como
os
boas
vidas
de
Fellini
(I
Vitelloni,
1953),
oscila
entre
as
aventuras adolescentes tardias e a pretensão social ou cultural frustrada.
Por outro lado, a arrogância do saber ilustrado rejeita a espontaneidade e,
48. Num
a fortiori, os elementos de consciência que habitam o senso comum
esquecido best seller brasileiro, o protagonista de O Feijão e o Sonho (1938), de
Orígenes Lessa, é o pequeno intelectual zombado pelos homens do lugarejo.
Só pode reagir com desprezo pela rotina das pessoas comuns. É o retrato do
descompasso entre uma pretensão literária e qualquer sentido prático da
vida.
Conclusão
O
sentimento
extravasado
não
contradiz
necessariamente
o
equilíbrio
racional. Numa sociedade despedaçada e utilitarista, o fascismo oferece o
reencontro da intimidade, da emoção e da comunidade fake e promete um
engajamento numa causa transcendente. Que ela seja uma máscara para a
permanência da exploração, da desigualdade e das opressões insuportáveis
do
cotidiano
compreensão
não
importa,
exigiria
o
porque
tempo
e
a
a
adesão
mediação
a
ele
que
não
é
pessoas
racional
e
idiotizadas
essa
não
possuem. E isso é verdadeiro tanto para a era informática quanto para o pós-
Primeira Guerra. Nesse sentido, estrito não foi mera coincidência Bolsonaro
assumir
o
poder
no
centenário
da
reunião
da
Piazza
San
Sepolcro.
Ele
congrega as piores características de todos os líderes neofascistas e libera os
instintos reprimidos de seus seguidores.
Para opor à massa fascista uma outra de igual intensidade, mas armada
pela razão, não basta ater-se à própria razão. É preciso despertar algo mais
que talvez já esteja lá, confinado em cada um, nos lares recônditos em que se
aguarda a vez de ser sorteado.
REFERÊNCIAS
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Natalie Zemon. O Retorno de Martin Guerre. Trad. Denise Bottmann.
Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987.
DÜRRENMATT,
Friedrich.
A
Visita
da
Velha
Senhora.
Trad.
Mário
Silva.
São
Paulo: Abril Cultural, 1976.
GARNIER-PAGÈS.
GIGLIOLI,
Dictionnaire Politique. 5. ed. Paris: Pagnerre Éditeur, 1857.
Enrico. La fosforecenza del mare: note pelagiche, ed osservazione
fatte durante um viaggio di circunnavigazione. 1865-1868. Bolletino della
Società Geográfica Italiana. Firenze, 1870.
GINZBURG,
Carlos. O Queijo e os Vermes. Trad. Maria B. Amoroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
HOBSBAWM,
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Steidel de Toldedo. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1992.
JACKSON,
Shirley. A Loteria. Revista Literária em Tradução, Florianópolis, n. 9,
ano V, set. 2010.
MARX,
Karl;
1966.
ENGELS,
Friedrich.
A
Revolução
Espanhola.
São
Paulo:
Leitura,
MORENO,
Patrícia.
A
febre
amarela
e
as
relações
Portugal-Brasil
no
século
XIX. BSGL, série 120, n. 1-12, 2002.
MORENO,
Renan Meira Zapata. Cultura e senso comum em Antonio Gramsci.
Mouro – Revista Marxista – Núcleo de Estudos d’O Capital, Ano 11, n. 14,
jan. 2020.
PRADO JÚNIOR,
Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Círculo do Livro,
1986.
SANTOS,
Milton.
A
natureza
do
espaço:
técnica
e
tempo,
razão
e
emoção.
São
Paulo: Hucitec, 1996.
TWAIN,
Mark.
Trad.
Patriotas
Paulo
Cezar
e
traidores:
Antiimperialismo,
Castanheira.
São
Paulo:
política
Fundação
e
crítica
Perseu
social.
Abramo,
2003.
NOTAS
44
|
45
|
46
|
Professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP).
Disponível em: https://mubi.com/cast/jonathan-glazer. Acesso em: 16 maio 2020.
O diretor, fugitivo do nazismo, mostrava naquele faroeste uma população covarde cúmplice de
um movimento criminoso: o macartismo, segundo Inácio Araújo (Folha de S. Paulo, 9 out. 2014). O
roteirista Carl Foreman era um perseguido do macarthismo.
|
47
E
lembremos
que
o
liberalismo
espanhol
oitocentista
era
particularmente
radicalizado
e
defensor da Constituição de Cádiz (1812), um documento escrito sob bombardeio francês e analisado
minuciosamente por Karl Marx (MARX; ENGELS, 1966).
48
|
Sobre o tema, consultar: Moreno (2020).
‘
A pandemia e a
’
inteligência
do presidente
VICENTE A. C. RODRIGUES
INEZ STAMPA
49
50
A pandemia encontra o Brasil doente
A pandemia de COVID-19, causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2,
bem
como
mudaram
a
adoção
rapidamente,
de
e
medidas
de
forma
necessárias
ao
extraordinária,
a
seu
enfrentamento,
vida
de
centenas
de
milhões de pessoas ao redor do mundo, causando mortes, alterando rotinas,
impactando as formas de sociabilidade e impondo complexos desafios para
o funcionamento da economia, tanto daquela de características locais, como
a economia globalizada, comandada por empresas transnacionais a partir de
51.
“corredores econômicos” espalhados em vários pontos do mundo
Ao tempo em que este artigo foi finalizado, a doença já tinha infectado
mais
de
cinco
milhões
de
pessoas
ao
redor
do
mundo,
causando
340,875
mortes e incontáveis sequelas de saúde entre os sobreviventes. No Brasil,
conforme dados do Ministério da Saúde divulgados em 23 de maio de 2020,
o número de óbitos alcançou a marca de 22.013, com um total de 347 mil
52,
pessoas infectadas
sem sinal de desaceleração na difusão da doença. Há
53.
evidências de que estes números estão subestimados
No
plano
econômico,
o
Fundo
Monetário
Internacional
(FMI)
projeta
que deverá ocorrer a maior retração econômica desde a crise de 1929, com
previsão de queda de 3% no PIB mundial, e cujos efeitos serão ainda mais
agudos no Brasil, com aumento do desemprego de 12,2% para 14,7% e queda
estimada do PIB em 5,3% (FMI, 2020).
Isso em um contexto particularmente perverso, no qual se aprofundam,
no Brasil, as consequências do desmonte dos direitos sociais previstos na
Constituição Federal de 1988, com a redução/congelamento dos gastos com
políticas
sociais
(Emenda
redirecionamento
186/2019);
a
do
fundo
Constitucional
público
contrarreforma
aos
nº
95/2016)
interesses
trabalhista
(Lei
do
e
o
capital
nº
maior
(PEC
n°
13.429/2017);
a
contrarreforma da previdência social (Emenda Constitucional nº 103/2019);
a
destruição
da
universalidade
e
gratuidade
do
Sistema
Único
de
Saúde
(SUS), entre outras atrocidades.
Tão
rápidas
foram
as
mudanças
ocasionadas
pela
pandemia
que
em
fevereiro do corrente ano ainda era possível ao governo brasileiro retratar a
COVID-19 como um distante problema do sul da Ásia, e não uma realidade
global
com
impacto
direto
em
nossa
saúde
e
na
vida
de
nossas
cidades.
Abundavam, até o início de abril, teorias governamentais como aquela que
mencionava o clima tropical do país como impeditivo do espalhamento do
vírus
e,
ainda,
duvidosos
elogios
a
suposta
resistência
excepcional
dos
brasileiros — “Brasileiro pula em esgoto e não acontece nada”, como disse o
54.
presidente Bolsonaro em 26 de março
Com
o
aumento
debochado
caiu
por
exponencial
terra,
mas
do
número
não
antes
de
de
mortos,
ter
esse
discurso
confundido
parcela
55 e de ter impedido a construção de
significativa da opinião pública nacional
uma política nacional unificada de enfrentamento à doença.
Neste
aspecto,
cabe
questionar
qual
era
o
grau
de
entendimento
da
situação e quão eficiente foi a atuação dos órgãos de inteligência do Brasil,
56, a
uma vez que, conforme determina a Lei 9.883, de 7 de dezembro de 1999
tarefa
desses
órgãos
consiste
na
“obtenção,
análise
e
disseminação
de
conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações
de
imediata
ou
potencial
influência
sobre
o
processo
decisório
e
a
ação
governamental
Estado”.
e
Dito
sobre
de
a
outra
salvaguarda
forma,
o
e
a
segurança
trabalho
dos
da
órgãos
sociedade
de
e
do
inteligência
é
precisamente não ser surpreendido por situações como essa.
Contudo, obter resposta a esse questionamento não é tarefa singular. A
despeito da vigência formal de dispositivos constitucionais que embasam a
necessidade de ação transparente do Estado e, ainda, da vigência formal da
Lei
de
Acesso
a
administração
destacando-se
Informação
pública
a
falta
de
(Lei
vive
12.527,
um
de
18
de
momento
transparência
e
de
novembro
de
2011),
particularmente
controle
social
da
a
opaco,
ABIN
e
de
outros órgãos de inteligência brasileiros.
Inteligência e informação em tempos de pandemia — Brasil e EUA
Nessa direção, sustentamos que analisar a resposta dos Estados Unidos
da
América
do
Norte
(EUA)
à
crise
provocada
pela
pandemia,
de
sua
comunidade de inteligência e de seu presidente, pode oferecer pistas para os
nossos questionamentos.
Por
um
lado,
historicamente
porque
a
profundas
comunidade
influências
de
da
inteligência
comunidade
brasileira
de
sofreu
inteligência
dos
EUA, tanto em sua montagem como na definição de seu campo de atuação
(RODRIGUES,
mandatário
pelo
2017;
brasileiro
presidente
dos
FIGUEIREDO,
manifesta
EUA,
2005).
Por
reiteradamente
Donald
Trump,
ao
outro,
sua
qual
porque
profunda
busca
o
atual
admiração
frequentemente
emular, a tal ponto que é possível identificar a vigência de uma política de
57
“alinhamento automático”
do Brasil aos EUA, o que reverteu décadas de
formulação estratégica do Itamaraty.
Antes, contudo, em benefício da precisão terminológica, cabe esclarecer
que
no
âmbito
dos
chamados
“órgãos
de
inteligência”
contemporâneos,
como a Agência Central de Inteligência (CIA) dos EUA, o Serviço Federal de
Segurança
da
Federação
Russa
(FSB),
o
Ministério
para
Segurança
do
Estado (MMS) da China e a ABIN, a palavra inteligência designa, de forma
geral,
tanto
o
conjunto
de
informações
processadas
sobre
entidades
estrangeiras, adversárias ou não do Estado, nos mais diferentes campos da
política
externa
próprios
(militar,
órgãos
diplomático
responsáveis
pela
e
econômico),
coleta,
análise
como
e
também
difusão
os
dessas
informações.
Conforme
significado
definido
está
por
Lerner
intimamente
e
ligado
Lerner
ao
(2004,
chamado
p.125),
“ciclo
de
o
primeiro
inteligência”,
processo complexo pelo qual a informação bruta é adquirida, convertida em
inteligência
após
análise
e,
posteriormente,
disseminada
em
direção
a
determinados agentes de alto grau do Estado.
No
que
se
estrangeira”,
relação
legais
Lerner
entre
tem,
refere
à
e
identificação
Lerner
inteligência
e
do
adversário
sustentam
manutenção
historicamente,
separado
que,
da
essas
nos
lei,
como
EUA,
um
duas
uma
“entidade
“apesar
número
de
atividades”
da
óbvia
barreiras
(LERNER;
58 e
LERNER, 2004, p.126). Citam como exemplos a lei Posse Comitatus
59
de criação
no
âmbito
terroristas
o ato
da CIA, que proíbe sua atuação em ações de manutenção da lei
interno.
de
11
Contudo,
de
os
setembro
autores
de
2001,
concedem
a
linha
que
entre
após
os
vigilância
ataques
interna
e
externa tornou-se menos definida nos EUA, e que, em regimes autoritários,
frequentemente essa linha sequer existe.
No Brasil, inteligência também é, atualmente, utilizada para designar as
atividades do ciclo de inteligência, bem como os órgãos encarregados dessas
atividades. Contudo, seu uso é mais recente, tendo sido legalmente adotada
apenas
em
1999,
com
a
criação
da
ABIN
e
do
Sistema
Brasileiro
de
Inteligência (SBI), pela Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999.
Anteriormente,
a
ditadura
militar
de
1964-1985
utilizava
a
expressão
informação, como forma de evitar duplo sentido, pois a palavra inteligência
tem
como
entender,
significados
pensar
e
mais
comuns
raciocinar.
Em
aqueles
ambos
os
referentes
casos,
seja
à
faculdade
inteligência,
de
seja
informação,
obtidos
temos
de
a
fontes
especializados,
seguinte
ostensivas
processados
e
situação:
ou
dados
secretas,
oferecidos
a
são
informacionais
coletados
determinados
brutos,
por
órgãos
destinatários
privilegiados.
Na
atual
conjuntura
de
pandemia,
a
administração
Trump
vem
sendo
60 em virtude do que é percebido como uma sequência
fortemente criticada
reiterada
levado
de
em
falhas
conta
no
enfretamento
avisos
da
específicos
emergência,
e
repetidos
tanto
da
por
não
se
comunidade
ter
de
inteligência a respeito da COVID-19, como também por não se ter tomado
medidas
consistentes
que
pudessem
articular
uma
resposta
de
âmbito
nacional.
De fato, entre os meses de fevereiro e março de 2020, diversos membros
da
administração
Trump
fizeram
declarações
minimizando
o
risco
da
pandemia e tomaram decisões que, em última análise, diminuíram o grau de
preparação dos EUA à pandemia e levaram, afinal, ao aumento do número
de mortes naquele país. O próprio presidente norte-americano colecionou
declarações desastrosas no mesmo período, comparando a COVID-19 a uma
“gripe dessas de temporada” e sugerindo que a população “tomasse vacina
para a gripe” e que fosse trabalhar “mesmo que contaminada pelo vírus”.
A posição pública da administração somente mudou, e ainda assim em
parte, no final de abril, quando mais de 60.000 pessoas já tinham morrido
nos EUA vítimas da doença, e quando projeções indicavam que dificilmente
o
número
total
argumentativo,
o
seria
menor
governo
dos
do
que
EUA
100.000
passou
a
mortos.
reconhecer
Em
a
um
giro
gravidade
da
situação e a acusar a China, país que é seu principal parceiro econômico e
maior adversário geopolítico, ora sugerindo que os chineses poderiam estar
61,
por trás da criação artificial do vírus
ora que a China tinha encoberto o
problema e tinha falhado em avisar à comunidade internacional sobre o que
ocorria.
Também
foi
alvo
de
críticas
a
Organização
Mundial
da
Saúde
(OMS),
denunciada
por
ele
como
um
“sinófila”
e
uma
“marionete
da
62.
China”
De forma a reforçar a retórica de que a pandemia fora ocasionada por um
inimigo externo, o presidente norte-americano lembrou que a letalidade da
COVID-19, nos EUA, superava a de outros eventos traumáticos da história
daquele país. Referiu-se, especificamente, ao ataque japonês a Pearl Harbor,
em dezembro de 1941, que deixou 2.403 militares e pessoal de apoio norte-
americanos mortos e, ainda, os ataques terroristas de 11 de setembro, que
vitimaram 2.753 pessoas. Curiosamente, ambos os eventos são reconhecidos
por especialistas como grandes falhas de inteligência da história dos EUA,
nas
quais
os
avisos
da
comunidade de inteligência não foram observados
pelo presidente.
Neste
Trump
ponto,
fora
faz-se
informado
importante
do
risco
questionar
potencial
da
se
há
evidências
pandemia,
e
quais
de
que
razões
o
teriam levado a ignorar os alertas da comunidade de inteligência. Sobre o
primeiro aspecto, o que já foi revelado publicamente permite afirmar que
entre
fevereiro
assessor
e
janeiro
econômico
“centenas
de
economia”
de
2019
presidencial
milhares
pessoas
norte-americana,
circularam
alertando
morressem”
a
menos
memorandos
para
e
que
a
para
da
CIA
possibilidade
o
e
de
que
“descarrilamento
medidas
imediatas
do
da
fossem
63.
tomadas em relação ao surto de COVID-19
Sobre as razões pelas quais o presidente dos EUA ignoraria esses alertas,
há
duas
explicações
possíveis.
A
primeira
relaciona-se
ao
fato
de
que
a
comunidade de inteligência produz um grande volume de alertas e avisos
quanto
a
risco
potenciais,
na
maioria
das
vezes
não
realizados,
para
a
segurança nacional norte-americana. O grande volume de informações gera
64.
o risco de que a filtragem e valoração desse material não seja eficiente
Outra explicação complementar é que, mesmo antes do início formal de
sua
administração,
tomado
posse,
quando
Trump
era
o
presidente
mantem-se
em
eleito,
mas
permanente
ainda
não
conflito
tinha
com
a
comunidade de inteligência dos EUA, principalmente após órgãos como o
FBI
a
CIA
e
a
NSA
terem
apoiado
sub-repticiamente
teorias
segundo
as
quais sua eleição interessava ao governo da Rússia, que teria patrocinado em
seu benefício uma campanha de fake news disseminadas em redes sociais.
Embora
afinal
potência
inocentado
estrangeira,
65,
Muller
conflito
qualquer
principalmente
articulação
a
partir
da
intencional
publicação
do
com
essa
Relatório
que o exonerou da acusação de estar em conluio com a Rússia, o
marcou
comportamento
designa
de
não
indelevelmente
do
chamado
somente
as
a
percepção
governo
agências
e
de
invisível
órgãos
de
Trump
dos
EUA,
inteligência
a
respeito
expressão
do
que
reconhecíveis,
mas, também, um agrupamento amorfo e indefinido de indivíduos e órgãos
extraídos de vários setores do governo visível convencional e que atuam na
área de inteligência (WISE; ROSS, 1968).
19
Do alinhamento automático na resposta à COVID-
Na comparação direta entre a atuação dos governos dos EUA e do Brasil
salta aos olhos a impressionante similitude entre elas. No que se refere às
manifestações públicas de agentes governamentais, de aliados políticos e do
próprio
presidente
brasileiro,
também
foram
inúmeras
as
declarações
inexatas ou simplesmente falsas a respeito da COVID-19. Por exemplo, se
em 9 de março o presidente norte-americano declarou que a COVID-19 não
era diferente de uma “gripe de temporada” (seasonal flu), poucos dias depois
o
presidente
brasileiro
afirmou
que
se
tratava
de
uma
“gripezinha”.
Em
ambos os casos, os presidentes mencionaram o número de mortos por gripe
comum para tentar demonstrar que outras doenças matariam tanto quanto
a COVID-19.
A
similitude
Também
no
consolidada
vai
Brasil
o
além
de
governo
nacionalmente,
eventuais
federal
não
coincidências
falhou
tendo
sido
em
argumentativas.
oferecer
poucos
os
uma
estratégia
choques
com
os
governos estaduais e com agentes de saúde. Em ambos os países os governos
centrais repassaram publicamente a responsabilidade por danos à economia
aos governos estaduais, criticando duramente iniciativas como isolamento
social
e
lockdown,
governamentais
e
no
miraram
campo
a
da
atuação
saúde,
de
seus
como
próprios
foi
visto
representantes
nos
EUA
com
os
reiterados atritos entre Trump e o líder da força-tarefa da Casa Branca para
a pandemia e, de forma ainda mais espetacular no Brasil, com as sucessivas
substituições no Ministério da Saúde.
Também
no
que
se
refere
aos
atritos
com
órgãos
de
inteligência
cabe
mencionar a correspondência entre a atuação brasileira e norte-americana,
hoje demonstrável com a recente liberação, pelo Supremo Tribunal Federal,
66
da degravação
de reunião ministerial ocorrida em 22 de abril, no Palácio
do
Brasília-DF.
Planalto,
em
Em
diferentes
pontos
de
uma
tensa
reunião
recheada de palavrões, impropérios, ameaças a outros Poderes da República
e acusações contra adversários políticos, Bolsonaro afirmou que os órgãos
de
inteligência
das
Forças
Armadas
não
lhe
prestavam
as
informações
necessárias; que a ABIN prestava apenas “algumas informações” em virtude
do
suposto
“aparelhamento”
do
órgão
e
que
seria
necessário
substituir
gente da “segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa” (em
provável referência à Polícia Federal) para evitar prejuízos a sua família e
amigos.
Apesar
externa,
a
de
terem
degravação
sido
também
tarjados
permite
os
trechos
observar
referentes
à
política
contextualmente
que
o
governo brasileiro está em sintonia com a administração norte-americana
em suas acusações contra a China.
Tantas e tão profundas semelhanças no comportamento revelam indícios
adicionais
do
estratégicas
alinhamento
nos
EUA.
automático
Ainda
que
do
devam
Brasil
ser
à
tomada
consideradas
de
as
decisões
diferentes
conjunturas econômicas, políticas e sociais entre os países, essa influência
vai
além
do
campo
da
política
externa,
condicionando
comportamento interno de instituições brasileiras.
até
mesmo
o
Registramos aqui alguns retrocessos que marcam atualmente a realidade
brasileira e que se tornam mais contundentes no contexto da pandemia de
COVID-19,
deixando
a
população
ainda
mais
exposta
às
gravíssimas
consequências já observadas em outros países.
No percurso da história o país viveu e vive uma ditadura da burguesia,
pois
o
medo
da
elite
burguesa
da
perda
do
poder
(político,
econômico
e
social) faz com que se utilize de armas cruéis para manter-se com o status
quo inalterado. Nesse aspecto, a atual ofensiva do governo brasileiro, que
trata os próprios cidadãos e residentes como inimigos internos, é elemento
fundamental
para
compreender
os
dilemas
por
que
passa
a
sociedade
brasileira, em especial a classe trabalhadora, em momento tão grave. Aqui se
observam, tal como no governo Trump, operações estratégicas com (mau)
uso da inteligência e de tecnologia da informação, de políticas de eliminação
direcionadas a minorias e de técnicas agressivas (inclusive verbais) cujo alvo
é
o
cidadão
comum.
Mas
estamos
em
meio
a
uma
grave
pandemia.
Até
quando a sociedade observará passiva o aumento do número de mortos e a
política de “alinhamento automático”?
REFERÊNCIAS
FIGUEIREDO,
FUNDO
Lucas. Ministério do silêncio. Rio de Janeiro: Record, 2005.
MONETÁRIO
INTERNACIONAL
Economic
Outlook.
(FMI).
The
Great
Lockdown.
Disponível
World
em:
https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/04/14/World-
Economic-Outlook-April-2020-The-Great-Lockdown-49306.
em: 05 maio 2020.
Acesso
LERNER,
K.
Lee;
LERNER,
Brenda
Wilmoth.
Encyclopedia
of
Espionage,
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RODRIGUES,
YOUNG,
Vicente A. C. Documentos (in)visíveis. Aracaju: Edise, 2017.
Alex.
Harward
Too
Much
Information:
International
Review,
18
Ineffective
de
agosto
Intelligence
de
2019.
Collection,
Disponível
em:
https://hir.harvard.edu/too-much-information/. Acesso em: 12 maio 2020
WISE,
David;
ROSS,
Thomas B. O governo invisível. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1968.
NOTAS
|
49
Doutorando
em
Direito
pela
Universidade
Federal
do
Rio
de
Janeiro
(UFRJ).
Membro
do
Opening The Archives Project.
|
50
Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro
(PUC-Rio).
Coordenadora
do
Grupo
de
Estudos
e
Pesquisas
sobre
Trabalho,
Políticas
Públicas e Serviço Social (TRAPPUS/PUC-Rio). Membro do Opening The Archives Project.
|
51
A
crise,
contudo,
não
é
para
todos.
Um
seleto
grupo
de
cinco
bilionários
experimentaram
aumento nos lucros de suas empresas de alta tecnologia, totalizando USD $3.316 trilhões. São eles:
Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Facebook), Steve Ballmer (Microsoft), Elon Musk (Tesla) e
Michael Bloomberg (Bloomberg).
52
|
de
pessoas
Nessa contabilidade macabra, o país está atrás somente dos Estados Unidos, que tem 1,6 milhões
infectadas,
com
um
total
de
96
mil
mortes.
Isso
não
é
coincidência,
como
será
visto
adiante.
|
53
Ver
entrevista
do
epidemiologista
Paulo
Lotufo,
disponível
em:
https://saude.abril.com.br/medicina/entrevista-por-que-o-numero-de-mortes-por-coronavirus-estasubestimado/. Acesso em: 07 maio 2020.
|
54
Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/26/brasileiro-pula-em-esgoto-e-
nao-acontece-nada-diz-bolsonaro-em-alusao-a-infeccao-pelo-coronavirus.ghtml.
Acesso
em:
15
maio 2020.
55
|
Em pesquisa divulgada em 26 de março de 2020, o Brasil aparece como um dos países que menos
acredita
no
isolamento
social
como
forma
de
prevenir
o
alastramento
do
vírus.
Disponível
em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/04/23/internabrasil,847456/brasileiros-estao-entre-os-que-menos-acreditam-no-isolamento-social.shtml.
Acesso
em: 23 maio 2020.
56
|
Institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), e dá
outras providências.
57
|
Sobre os riscos inerentes a essa posição e seu caráter disruptivo em face da tradição diplomática
do Itamaraty, ver a matéria “O Arriscado Alinhamento automático do Brasil aos EUA, de Thomas
Milz, publicada em 06 de fevereiro pelo portal de notícias alemão Deutsche Welle. Disponível em:
https://www.dw.com/pt-br/o-arriscado-alinhamento-autom%C3%A1tico-do-brasil-aos-eua/a52275327. Acesso em: 12 abril 2020.
58
|
A lei Posse Comitatus é uma norma federal promulgada em 1878, no contexto pós-guerra civil dos
EUA, que limita os poderes do governo federal, impedindo-o, na prática, de utilizar pessoal militar em
ações
de
repressão
contra
a
própria
população
dos
EUA.
A
expressão,
de
origem
latina,
significa
“poder da comunidade”.
|
59
A CIA foi criada através do National Security Act of 1947. O mesmo ato criou o National Security
Council (NSC) e o Departament of Defense.
60
|
Ver o artigo Criticized for Pandemic Response, Trump Tries Shifting Blame to the W.H.O., New York
Times,
14
de
abril
de
2020.
Disponível
em:
https://www.nytimes.com/2020/04/14/us/politics/coronavirus-trump-who-funding.html. Acesso em:
12 maio 2020.
61
|
Para defender essa teoria, Trump escalou o Secretário de Estado dos EUA, para afirmar que “há
enorme evidência de que a propagação do vírus foi iniciada no Laboratório de Armas Biológicas de
Wuhan, China. Ver: https://www.theguardian.com/world/2020/may/03/mike-pompeo-donald-trumpcoronavirus-chinese-laboratory. Acesso em: 14 maio 2020.
62
|
63
|
Disponível em: https://www.bbc.com/news/health-52679329. Acesso em: 14 maio 2020.
Ver https://www.project-syndicate.org/commentary/us-intelligence-coronavirus-pandemic-by-
kent-harrington-2020-04
e
https://www.theguardian.com/world/2020/apr/07/donald-trump-
coronavirus-memos-warning-peter-navarro. Acesso em: 15 maio 2020.
64
|
Trata-se de um problema comum no âmbito da coleta e processamento de informações de
inteligência, conforme aponta Young (2020).
65
|
Relatório sobre a Investigação quanto à Interferência da Rússia nas Eleições Presidenciais de
2016, publicado em março de 2019 e de autoria do conselheiro especial Robert S. Muller. Disponível
em: https://www.justice.gov/storage/report.pdf. Acesso em: 15 maio 2020.
66
|
Registrada
no
Laudo
nº
1242/2020
–
INC/DITEC/PF,
de
21
de
Nacional de Criminalística, do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
maio
de
2020,
do
Instituto
.
Cortar ou não cortar, eis a questão
Crise orgânica, tensões no bloco social
dominante e ajustes na austeridade fiscal
67
RODRIGO CASTELO
“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer... dormir: não mais.”
[ WILLIAM SHAKESPEARE, Hamlet ]
A
hegemonia
conquistada
pelas
frações
rentistas
do
bloco
social
da
supremacia burguesa, desde os anos 1980 até hoje, é um momento ímpar na
história
do
modo
de
produção
capitalista
e
alcançou,
a
partir
de
um
desenvolvimento desigual e combinado, praticamente todas as formações
econômico-sociais
no
mercado
mundial.
Uma
das
expressões
concretas
dessa hegemonia na materialidade do poder estatal é a austeridade fiscal.
Não à toa, a política de austeridade é o primeiro item dos dez pontos do
Consenso
de
Washington
e
se
tornou
uma
espécie
de
catequese
fundamentalista do mainstream burguês.
O alcance e os impactos da hegemonia rentista e da austeridade fiscal são
impressionantes,
pois
distintos
grupos
das
lutas
de
classes
aderiram
ao
círculo de ferro do neoliberalismo nas últimas quatro décadas. No centro
imperialista,
partidos
social-democratas,
após
serem
massivamente
cooptados pelas forças dominantes, foram executores diligentes do projeto
neoliberal, abrindo espaço para a difusão do social-liberalismo em todo o
mundo.
Nas
neoliberais,
receituário
semiperiferias
mediados
e
foram
pela
periferias
dominação
aplicados
democrático-populares,
e
com
inclusive
imperialista,
afinco
na
dependentes,
por
vulgata
os
cânones
ganharam
governos
ares
de
conservadores
neodesenvolvimentista.
e
Por
fim, um dos últimos bastiões foi conquistado com a cooptação da extrema-
direita fascista que, no seu passado, rejeitou ideias motrizes do liberalismo e
defendeu
modelos
de
forte
intervenção
estatal
na
acumulação
capitalista
mas, no presente, aderiu sem vacilação à ortodoxia econômica. Resta, ainda,
uma pequena e brava resistência nas fileiras comunistas e socialistas.
Com o início da crise orgânica em 2008, o cenário mudou. Diante dos
efeitos
tímidas
da
crise,
Estados
políticas
capitalista
e
de
determinadas
nacionais
anticíclicas
alívio
às
de
imperialistas
estímulo
expressões
situações
extremas,
mais
à
e
reativação
agudas
medidas
dependentes
da
da
acumulação
“questão
estatizantes
adotaram
social”.
foram
Em
tomadas
para salvar grandes empresas capitalistas. Passado o pior, os ajustes fiscais
draconianos voltaram à cena.
Com a pandemia decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)
em
2020,
podemos
constatar
o
agravamento
da
crise
orgânica
e
novos
abalos na hegemonia rentista, algo impensável nos últimos anos. Demandas
por
redução
pequenas
aumento
das
taxas
empresas,
da
de
recuo
intervenção
juros,
na
perdão
política
estatal
surgem
de
dívidas
recessiva
de
todos
de
consumidores
de
corte
de
gastos
os
lados,
inclusive
e
e
de
setores da alta burguesia como veremos a seguir.
A
partir
dessas
mudanças
na
conjuntura,
a
tese
aqui
defendida
é
a
seguinte: as críticas às políticas de austeridade fiscal expressam tensões e
atritos
no
bloco
social
burguês,
o
que
aumentará
as
contestações
à
hegemonia rentista. Essa nova conjuntura da crise orgânica não significa,
contudo, o fim imediato desta hegemonia, ou mesmo num período próximo,
mas
abre
possibilidades
históricas
de
uma
atuação
mais
decisiva
e
contundente da classe trabalhadora na luta contra o poder rentista. E tais
tensões
e
atritos
expressam
igualmente
algo
mais
profundo:
abalos
e
fissuras no bloco histórico neoliberal. São distintas camadas da realidade
que, analisadas em uma unidade contraditória, moldam o quadro da crise
orgânica.
Vejamos
alguns
começando
Japão)
e,
pela
fatos
tríade
depois,
nos
que
ajudam
imperialista
a
dar
concretude
(Estados
concentraremos
no
Unidos,
Brasil.
a
nossa
União
Nos
tese,
Europeia
Estados
e
Unidos,
Donald Trump sancionou em março de 2020 um acordo parlamentar que
injeta
US$
2
trilhões
na
economia
68,
estadunidense
considerada
a
maior
intervenção econômica da história daquele país. Grande parte dos recursos
estatais será destinada a salvar empresas, enquanto uma fração menor irá
para desempregados e gastos com a saúde. Na Europa, medidas de alívio aos
efeitos da crise partiram do governo inglês de Boris Johnson, parceiro de
primeira hora de Trump, fazendo um aporte vultoso de £30 bilhões, quantia
69.
que não era aplicada desde a Segunda Guerra Mundial
Países-membros
da União Europeia, como Alemanha, França, Espanha e Itália, anunciaram
celeremente
pacotes
anticíclicos
nacionais
e
negociam
um
pacote
70. E,
supranacional de proporções inéditas que pode alcançar €500 bilhões
no
Japão,
coloca
em
o
governo
prática
federal,
um
pacote
comandado
de
por
intervenção
forças
de
econômica
extrema-direita,
da
ordem
de
€1
71.
trilhão
No Brasil, o início da crise orgânica com as Jornadas de Junho em 2013
72,
trouxe os primeiros desafios à manutenção da hegemonia rentista no país
mas esta se manteve praticamente intacta, inclusive com a reafirmação de
medidas
golpe
de
austeridade
fiscal
parlamentar-jurídico
pelo
de
governo
2016.
A
Dilma
Rousseff
ascensão
de
de
Michel
2013
até
Temer
o
à
presidência e a eleição do fascista Jair Bolsonaro fortaleceram a hegemonia
rentista, que chegou ao ponto de ganhar status de constitucionalidade com a
Emenda
Constitucional
do
teto
dos
gastos,
a
famigerada
EC95,
dentre
tantas outras medidas jurídicas, administrativas e culturais que blindam o
poder rentista de qualquer controle democrático.
De todo modo, a forte queda no crescimento econômico e nas taxas de
lucro do grande capital monopolista desde 2014 tem aumentado as tensões e
atritos dentro do bloco social dominante, e tudo indica que esta tendência
continuará
no
atual
governo.
Por
um
lado,
Bolsonaro
abandonou
suas
antigas crenças no maior controle estatal na economia e passou a louvar o
livre mercado, com o objetivo de atrair grupos da alta burguesia para as suas
bases
eleitorais
e
sociais.
O
fiador
do
acordo
bem-sucedido
entre
o
novo
convertido e as elites econômicas é Paulo Guedes, economista formatado
no
credo
da
Escola
monetarista
de
Chicago.
Fiel
à
cartilha
neoliberal,
Guedes mostra serviço desde os primeiros dias da sua nomeação com corte
de gastos, anúncio de privatizações, parcerias público-privadas, ofensas ao
funcionalismo público e etc.. Assim, Bolsonaro e seu ministro da Economia
reafirmam cotidianamente os compromissos firmados com o grande capital
monopolista e recebem de volta apoios e aplausos — diga-se a verdade, cada
vez mais tímidos e silenciosos, mas decisivos para a manutenção de ambos
no Planalto Central.
De outro lado, a nova conjuntura da crise orgânica aberta pela pandemia
coloca em xeque a política ultraneoliberal de Guedes. O crescimento de 1,1%
do PIB no primeiro ano do governo Bolsonaro foi menor do que a média no
governo
Temer,
fortíssima
no
austeridade
pressão
por
que
biênio
fiscal
já
tinha
sido
2020-2021,
não
mudanças
sejam
na
pífio.
que
Agora,
pode
afrouxadas,
política
se
tudo
agravar
ou
econômica
indica
caso
mesmo
partem
as
uma
queda
políticas
abandonadas.
de
várias
de
E
a
frentes,
inclusive de grupos internos do status quo. A questão que se impõe, portanto,
é: estarão os rentistas dispostos a cortar na carne para salvar a própria pele?
Ou
em
termos
mais
precisos:
a
alta
burguesia
sacrificará
parte
da
acumulação
de
riqueza,
numa
formação
econômico-social
semiperiférica
como a brasileira, em nome de uma supremacia baseada no consenso?
Num
contexto
de
profunda
estagnação
econômica,
de
instabilidade
política no andar de cima da pirâmide social e de avanço da pandemia, o
aumento
dos
gastos
sociais
tornou-se
uma
necessidade
imperativa
e
o
governo cedeu, a contragosto, na pauta da austeridade fiscal. No dia 18 de
março
de
2020,
a
presidência
da
República
encaminhou
pedido
ao
Congresso Nacional para decretação do estado de calamidade pública, com
o objetivo de afrouxar as regras fiscais e elevar os gastos sociais. O pedido foi
aprovado no Senado, a toque de caixa, dois dias depois do seu envio.
Feito isso, o Ministério da Economia reviu a previsão de
públicas
de
R$124
bilhões
para
R$
429
bilhões,
o
déficit nas contas
maior
valor
da
série
histórica. Paulo Guedes, todavia, não perdeu a oportunidade de declarar, na
fatídica
reunião
ministerial
do
dia
22
de
abril,
que
a
direção
intelectual-
moral continua apontando para a hegemonia rentista e os cofres públicos
abastecerão as grandes empresas. Nas suas palavras, “na conversa com os
ministros da Fazenda lá de fora eu disse que nós estamos com um déficit
extraordinariamente
mundo
na
mesma
alto
esse
direção,
só
ano.
que
É
da
nós
mesma
caímos
no
forma
chão,
que
tá
eles,
uma
tá
todo
confusão.
Tiro, porrada e bomba, mas nós não perdemos a bússola. A gente cai, levanta
73.
e sabe para onde nós temos que ir”
Com a decretação do estado de calamidade pública, o orçamento federal
deixou
momentaneamente
de
ter
um
limite
determinado
pelas
férreas
regras fiscais e o Executivo assegurou que o aumento dos gastos sociais não
significará,
proprietários
necessariamente,
dos
títulos
das
uma
dívidas
queda
públicas,
nas
remunerações
garantindo,
por
sua
dos
vez,
a
parcela polpuda do orçamento federal apropriada pelas frações rentistas da
burguesia. E vale destacar que a elevação dos gastos sociais é uma resposta
focalizada e emergencial ao aumento do desemprego, miséria, fome etc., não
se
constituindo,
portanto,
em
uma
mudança
qualitativa
de
intervenção
estatal nas expressões da “questão social”.
Contraditoriamente, a hegemonia rentista está salvaguardada pelas mais
recentes
ações
de
afrouxamento
da
austeridade
fiscal,
tida
como
um
dos
seus pilares estruturais. Entretanto, setores do governo federal e aclamados
intelectuais orgânicos do Estado-maior do bloco social dominante fizeram
pronunciamentos
públicos
sobre
a
necessidade
de
novos
aumentos
dos
gastos públicos para amenizar os efeitos mais dramáticos da crise orgânica.
As tensões e choques derivados da condução ultraliberal da austeridade
fiscal surgem no próprio Executivo. No dia 22 de abril de 2020, o general
Braga
Netto,
ministro
da
Casa
Civil,
articulado
com
as
pastas
do
Desenvolvimento Regional e da Infraestrutura, anunciou um tímido pacote
de R$ 30 bilhões chamado de Plano Pró-Brasil, voltado para investimentos
públicos em obras de grande porte, em especial na área de infraestrutura. O
objetivo
oficial
empregos
e
a
é
a
retomada
modernização
do
da
crescimento
infraestrutura
econômico,
brasileira.
da
O
geração
plano
de
estatal,
todavia, apresenta resistências da equipe econômica liderada por Guedes,
que não enviou representação para o anúncio oficial. Enquanto o Pró-Brasil
defende
a
necessidade
de
investimentos
públicos,
a
equipe
econômica
insiste na predominância da iniciativa privada. Os embates entre Guedes e a
Casa
Civil
Bolsonaro
militarizada
foi
foram
obrigado
a
tão
colocar
intensos
panos
que,
dias
quentes
na
depois
do
desordem
anúncio,
das
suas
fileiras e declarar que Paulo Guedes era o “homem que decide a economia
[…].
Ele
nos
dá
o
74
devemos seguir.”
norte,
nos
dá
recomendações
e
o
que
nós
realmente
O “Posto Ipiranga” segue no cargo mas se equilibrando
na corda bamba e com o prestígio abalado.
Outros sinais de crise no andar de cima da sociedade brasileira surgem na
grande
mídia,
porta-voz
de
intelectuais
orgânicos
da
burguesia.
Antonio
Delfim Netto, ex-ministro da ditadura empresarial-militar, signatário do AI-
5 e histórico consultor do grande capital, avalia que a atual crise é alarmante
e
sugere
um
plano
nacional
de
recuperação
econômica,
abolindo
momentaneamente os limites orçamentários. Ainda segundo ele, o combate
à pobreza e a redução das desigualdades sociais devem ter um peso maior na
política econômica
Armínio
Fraga,
75.
ex-presidente
do
Banco
Central
e
administrador
de
fundos financeiros bilionários, defende, em programas televisivos e artigos
de
opinião
veiculados
em
jornais
de
grande
circulação,
que
o
Brasil
abandone temporariamente a austeridade fiscal e, no seu lugar, adote uma
economia de guerra, aumentando gastos na saúde pública e na assistência
social, com a adoção de um programa de renda mínima para 100 milhões de
brasileiras e brasileiros. Conjugado a esses rompantes humanitários, Fraga,
em
artigo
escrito
76,
Scheinkman
em
afaga
coautoria
o
capital
com
com
Vinicius
a
defesa
Carrasco
de
e
oferta
José
de
Alexandre
uma
linha
de
créditos estatais da ordem de R$120 bilhões para empresas brasileiras.
Essas declarações e disputas internas no governo Bolsonaro expressam
atritos no bloco social dominante. São três exemplos — e outros poderiam
ser
facilmente
agregados
—
de
como
intelectuais
relacionados
ao
grande
capital monopolista, dentro e fora da máquina estatal, travestidos de uma
súbita consciência filantrópica, passam a defender alterações emergenciais
e momentâneas na política econômica de austeridade fiscal, conjugando-as
com
medidas
espírito
de
social-liberais
preservação
da
de
alívio
da
supremacia
pobreza,
tendo
burguesa
em
como
objetivo
tempos
de
o
crise
orgânica. O tom é de penhorar os anéis para salvar os dedos e retomá-los
depois, mesmo pagando uma pequena taxa para isto.
Para usarmos uma fórmula de Gramsci nas análises das crises orgânicas,
os de cima não conseguem mais governar como antes e buscam garantir a
supremacia pelo aumento da coerção, sem abrir mão de doses mínimas de
consenso.
Daqui
intensificará
organizada
sob
das
para
frente,
diversas
classes
a
violência
maneiras.
dominantes
e
Dentre
estatal
elas,
operador
da
o
(e
paraestatal)
Estado,
violência
como
como
se
força
potência
econômica77
, manejará seus instrumentos fiscais de forma crescentemente
coercitiva,
embora
subalternos
serão
medidas
táticas
percebidas
ao
de
concessões
longo
do
míseras
processo,
e
pontuais
visando
aos
atenuar
os
efeitos socioeconômicos crônicos do capitalismo dependente. Essa forma
de
gestão
da
supremacia
burguesia,
contudo,
acirrará
as
contradições
sociais.
Assim, na atual conjuntura da crise orgânica, com o aumento nas tensões
internas
ao
bloco
social
dominante,
abrem-se
possibilidades
concretas
(embora ainda muito remotas) de superação do bloco histórico neoliberal.
Mas
possibilidades
não
se
transformam
automaticamente
em
tendências
políticas. Como adverte Gramsci, numa crise orgânica, existem múltiplas
saídas históricas: estas podem vir tanto pela revolução socialista como pela
alternativa fascista, o que significará o aprofundamento do capitalismo. O
que mudará a correlação de forças, determinando os vetores resultantes das
lutas de classes, serão a capacidade de organização e consciência das classes
sociais. Cabe à classe trabalhadora brasileira e suas organizações forjarem
uma unidade classista e se colocarem política e ideologicamente de forma
autônoma nas lutas de classes, rompendo ilusões desenvolvimentistas e de
conciliação
de
classes
e
apontando
para
um
horizonte
de
superação
hegemonia rentista, do neoliberalismo e do capitalismo dependente.
Apesar dos pesares,
a longa noite não é natural, nem definitiva:
não é hora de morrer,
nem de dormir,
mas sim de lutar e de se insurgir.
da
REFERÊNCIAS
IANNI,
Octavio. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular,
[1981] 2019.
MARX,
Karl.
O
capital:
crítica
da
economia
política.
Livro
I.
São
Paulo:
Boitempo, [1867] 2013.
NOTAS
|
67
Professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio)
e
pesquisador
movimentos
sociais
e
do
Coletivo
acumulação
do
Laboratório
capitalista
de
Ensino,
(Cepemac)
e
Pesquisa
do
Grupo
e
Extensão
de
sobre
Trabalho
Estado,
sobre
Teoria
Marxista da Dependência da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP).
68
|
G1. Trump promulga pacote de US$ trilhões para avaliar impactos do coronavírus na economia.
G1,
27
mar.
2020.
Disponível
em:
https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/27/trump-
promulga-pacote-de-us-2-trilhoes-para-aliviar-impactos-do-coronavirus-na-economia.ghtml.
Acesso em: 19 maio 2020.
69
|
OSWALD, Vivian. Europa injeta €100 bi para proteger economia da nova pandemia. O Globo, Rio
de Janeiro, 12 mar. 2020. Economia, p.30.
|
70
MIGUEL,
Bernardo
de.
União
Europeia
abre
caminho
para
acordo
histórico
sobre
fundo
anticrise. El País, 22 abr. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/economia/2020-04-22/uniaoeuropeia-abre-caminho-para-acordo-historico-sobre-fundo-anticrise.html. Acesso em: 19 mai. 2020.
71
|
São
CHARLES, Frédéric. Crise do coronavírus: o Japão também entra em recessão histórica. UOL,
Paulo,
18
mai.
2020.
Disponível
em
https://noticias.uol.com.br/ultimas-
noticias/rfi/2020/05/18/crise-do-coronavirus-o-japao-tambem-entra-em-recessao-historica.htm.
Acesso em: 19 mai. 2020.
72
|
Sobre a hipótese de crise orgânica no capitalismo dependente no Brasil no tempo presente,
recomendo a leitura do texto Crise orgânica, recessão econômica e lutas de classes no Brasil em tempos de
pandemia,
de
minha
autoria,
publicado
no
número
5
(abril
de
2020)
do
boletim
da
International
Gramsci Society Brasil (IGS-Brasil) e disponível em: http://igsbrasil.org/boletins/boletim-5-no1-abril2020/
73
|
MAZIEIRO, Guilherme. Guedes: vamos usar recurso público com grandes empresas e ganhar
dinheiro. UOL, São Paulo, 22 maio 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2020/05/22/guedes-vamos-usar-recurso-publico-com-grandes-empresas-e-ganhardinheiro.htm. Acesso em: 24 maio 2020.
74
|
MAZUI, Guilherme; MARTELLO, Alexandro. Homem que decide a economia no Brasil é um só:
Paulo
Guedes,
diz
Bolsonaro.
G1,
27
abr.
2020.
Disponível
em
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/27/homem-que-decide-a-economia-no-brasil-e-umso-paulo-guedes-diz-bolsonaro.ghtml. Acesso em: 20 maio 2020.
75
|
UOL. Delfim Netto: Coronavírus colocou pobre no foco e mudará política econômica. UOL, São
Paulo, 13 abr. 2020. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/13/delfimnetto-recuperacao-economia.htm. Acesso em: 19 maio 2020.
76
|
Paulo,
FRAGA NETO, Armínio; CARRASCO, Vinicios; SCHEINKMAN, José Alexandre. Folha
São
Paulo,
suportarem
23
mar.
2020.
choque
Veja
proposta
do
com
9
itens
que
coronavírus.
garante
crédito
para
de
S.
empresas
Disponível
em:
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/veja-9-propostas-que-garantem-credito-paraempresas-suportarem-choque-do-coronavirus.shtml. Acesso em: 19 maio 2020.
77
|
Sobre a categoria teórica de violência como potência econômica, cf. Karl Marx ([1867] 2013),
livro I, capítulo 24, seção 6 e Octavio Ianni ([1981] 2019), em especial a primeira parte.
:
Globalização e pandemia
o fim da
hegemonia e a necropolítica neoliberal
78
PEDRO CLÁUDIO CUNCA BOCAYUVA
Podemos
considerar
desterritorialização,
o
como
neoliberalismo
pressão
do
ciclo
como
curto
da
desmedida
da
temporalidade
da
acumulação financeirizada sobre a superfície do globo, ou como expressão
do
condicionamento
ampliadas
fruto
da
no
quadro
expansão
momento
político
intensificado
das
pós-guerra
do
fronteiras
fria.
Além
capital
da
divisão
do
disso
sobre
as
internacional
capitalismo
é
forças
necessário
produtivas
do
mundial
cruzar
trabalho,
ligadas
essa
ao
dimensão
espacial na dupla lógica do capital — financeira do tipo imaterial e material
do
novo
imperialismo
contrarreforma
—
permanente,
com
bem
a
visão
como
do
sua
neoliberalismo
história
política
como
enquanto
efeito da luta de classes.
O neoliberalismo é uma espécie de guerra de movimento aberta pelas
forças transnacionais do capital, uma contrarreforma, como indicou Carlos
Nelson
Coutinho,
subalternas,
um
contra
as
ataque
contra
mediações
as
de
conquistas
regulação
históricas
nacional
das
classes
restritiva
para
favorecer o espaço liso e plano, permitindo o livre fluxo vertical do capital.
Desta forma, temos a imposição de um quadro que combina destruição de
mediações
Estados
institucionais
Nacionais.
nacionais
Vivemos,
e
durante
sociais
o
e
final
competição
do
século
aberta
XX
e
as
entre
duas
primeiras décadas do novo século, uma disputa entre lugares, pela atração
via oferta de ativos exploração de trabalho e recursos naturais baratos nos
distintos países, com a transnacionalização de impulsos bélicos, unificação
de
estados
aquisição
e
e
classes
via
expansão
ampliação
do
revolução
nas
raio
cultura
das
das
O
consumo,
Empresas
relações
intensidades
organizacionais.
e
de
uma
Transnacionais.
produção
produtivas,
planeta
com
passou
se
Este
apoiou
através
por
enorme
de
uma
fusão,
processo
numa
meios
de
enorme
técnicos
mudança
e
geográfica,
demográfica e ecológica com efeito na biosfera, com a constituição de um
megaespaço
biológicos
urbano,
derivados
apoiado
do
na
impacto
destruição
da
dinâmica
ambiental
de
e
nos
atrocidades,
efeitos
saques
e
a
submissão forçada de populações e territórios.
Neste
início
de
século
XXI,
colhemos
os
efeitos
de
acontecimentos
catastróficos, acelerados pelos distintos processos de interação e contágio
biológico
mundializado,
com
todas
as
transformações
imunológicas
que
ocasiona nas relações entre as espécies vivas, em especial, para a saúde da
espécie humana. A análise de situação e da relação de forças clássica, inclui
agora, de maneira mais radical, as mutações ecológicas e seus efeitos que
retornam
sobre
a
vida
no
planeta.
Neste
artigo
acompanhamos
o
movimento teórico da incorporação da dimensão da noção de biosfera no
estudo
da
químicos
conforme
cena
e
mundial,
ecológicos
sugeriu
o
que
na
relação
afetam
Professor
o
dos
processos
planeta,
Stephen
Gill,
com
ao
a
biológicos,
crise
orgânica
introduzir
a
físicos,
global,
categoria
de
biosfera nos estudos de relações internacionais.
No
final
do
ciclo
aberto
entre
1973
(Chile)
e
1980
(Grã-Bretanha
e
Estados Unidos) se esgotou a globalização neoliberal entre 2001-2008, com
as
três
grandes
financeirizadora,
tendências
crises
a
das
transversais
cruzadas
novas
da
da
contemporaneidade:
fronteiras
guerra
difusa,
geopolíticas
da
e
a
precarização,
a
da
dinâmica
da
biosfera.
As
da
expulsão
de
populações, do aquecimento global e da ciberesfera são os elementos mais
característicos deste esgotamento.
A
crise
orgânica
global
do
novo
constitucionalismo
neoliberal
produz
situações e relações de força de disputa no plano da política e da cultura, os
distintos
blocos
no
poder
disputam
a
narrativa
e
ação
em
resposta
aos
efeitos destes aspectos transversais, acelerados pelos eventos decisivos com
um
corte
abrupto
sobredeterminação
e
do
decisivo
caos
neste
sistêmico
ano
de
pela
2020,
emergência
a
partir
da
da
catástrofe
relacionada ao efeito geral da COVID-19. Tudo isso sobre um quadro caótico
de
bifurcação
devem
entre
passar
questão
por
bioética,
sobrevivência
retornam
mudanças
da
como
como
poderes
novas
espécie
as
potências,
entre
condicionalidades
sanitária
forças
e
e
das
por
cegas
que
se
centros
em
trajetórias
e
temas
disputas
que
implicam
e
que
com
que
dos
físicos
relacionam
periferias,
função
fenômenos
naturais
e
os
e
biológicos
exigiram
estados
aos
de
—
e
da
a
que
humanos
emergência
sanitária que partem de contextos de exceção até então ligados a catástrofe
climáticas e ao terrorismo.
Sinais anteriores de quadros pandêmicos mundiais foram parcialmente
controlados, mas os tempos e mutações e amplitude parecem de escala e
intensidade ampliadas. Disputar o modo de incorporar a narrativa sobre as
catástrofes na disputa política se relaciona com especificidades nacionais.
Nossas observações, neste artigo, levam em conta a especificidade, neste
quadro global, da trajetória brasileira, em especial, depois do esgotamento
do ciclo petista, do final das lutas de 2013 e com o avanço da guerra híbrida
que
resultou
na
sucessão
de
golpes
brancos
que
facilitaram
a
vitória
de
Bolsonaro num quadro de tutela militar e punitivismo, com o apoio cínico
do centro que levou a um colapso geral do sistema parlamentar e da vida dos
partidos, dilacerados pela crise de confiança e pela gigantesca abstenção e
protesto que acompanhou um quase empate que divide o país desde então,
apesar da prisão de Lula.
A crise atual amplifica eventos, ameaças, temores, paixões e riscos. Seus
efeitos sistêmicos de longa duração se articulam a uma série de fenômenos
morbosos
ampliados,
enquanto
sintomas
de
uma
crise
de
direção,
característica do que Gramsci considerava um elemento decisivo da crise
orgânica
,
que
varia
de
país
para
país.
O
aspecto
decisivo
do
quadro
neoliberal se acelera, na forma da dinâmica de contrarreformas contínuas
que abrem campo para a crise das “democracias realmente existentes”. Está
colocado na ordem do dia, em especial nos Estados Unidos e no Brasil, o
declínio
definitivo
dos
mecanismos
de
poder
pela
via
da
hegemonia,
das
formas de ampliação do Estado social pelo consenso, típicas do “Ocidente”
geopolítico e das suas periferias nos distintos continentes. O inverso mais
do que o avesso da hegemonia, a dominação aberta e a lógica da coerção e do
medo
coletivo
também
coloca
obstáculos
para
a
emergente
revolução
passiva global de base sinocêntrica, que sofre com as tensões do conflito
aberto com os Estados Unidos, ampliados a partir de Trump, e com as crises
financeira, climática e sanitária.
A
crise
e
a
transição
no
Sistema
mundo
parecem
abrir
cenários
de
esgotamento que se aceleram no Ocidente e no Norte global, e bloqueiam
no Oriente e no Sul geográficos as mudanças de polo e/ou de centralidades
no
sistema.
contra
social
ciclo
as
e
No
momento
periferias
racista
neoliberal
e
e
os
novas
em
atual,
produzem
subalternos,
guerras
regimes
de
um
movimento
generalizando
coloniais.
exceção
e
Tudo
a
isso
guerra
que
escala
coroa
o
vinham
reacionário
da
violência
desfecho
do
governando
pelo ajuste e a desfiliação de direitos, mas que agora devem passar pelo crivo
da disputa de soluções de emergência sanitária e da disputa de narrativas
que
tenta
incorporar
e
disputar
a
verdade
do
conhecimento.
Isto
é,
a
questão da relação entre o saber e o poder alimenta a batalha intelectual
sobre a catástrofe inscrita no novo vetor biológico, da ameaça expressa pela
pandemia, como um fator de reordenamento reativo das políticas públicas e
dos modos de governar.
Esse debate informa as trajetórias das disputas de poder que passam por
novas exigências com destaque para indústrias e tecnologias de saúde, para
questões
da
interrogações
vida
e
sobre
da
os
morte,
modos
de
afetando
vida
em
e
acentuando
inúmeras
o
retorno
direções.
O
que
de
vai
deslocando, por um instante, a certeza da soberania da moeda e do mercado,
da religião e do poder bélico. O debate sanitário, epidemiológico e médico
coloca
em
questão,
mais
uma
vez,
a
razão
da
modernização
capitalista
e,
também, coloca em questão as verdades dos fundamentalismos religiosos.
O
que
convida
para
uma
entrada
cautelosa
na
experimentação
de
saídas
científicas.
A
batalha
das
vacinas
e
remédios
se
interligam
com
as
formas
de
exposição e controle sanitário das populações, colocando na ordem do dia o
risco da soma da epidemia da COVID-19 com a pandemia de ódios, com as
cruzadas e guerras religiosas e coloniais travadas nas dimensões virtuais das
redes e nas espaciais dos territórios, que recolocam em questão o aumento
atual
da
força
científico,
do
como
negacionismo
critério
da
dos
verdade
e
crimes
como
das
ditaduras
negação
da
e
função
do
saber
crítica
da
memória nas construção dos saberes.
Nas
periferias
internas
e
externas
do
sistema
capitalista
mundial
e
colonial, a crise é orgânica, enquanto de comando e de direção política das
distintas classes e grupos em luta. O que gera violência desde o bloco no
poder, que exerce sua autoridade através de processos de encarceramento
em
massa,
com
aniquilamento
base
de
em
ações
populações.
de
Nesta
criminalização,
segunda
de
década
expulsão
do
século
e
de
XXI,
difunde-se o quadro de militarização do espaço urbano, das cidades sitiadas,
com
seus
muros
e
seus
jogos
de
guerra.
Estratégias
de
city marketing
são
apoiadas sob o manto dos regimes de segurança e emergência, que manejam
a
agenda
das
políticas
de
ajuste,
controle,
privatização,
segregação
com
apartação e, no limite, ações de violência policial e militar contra favelas e
periferias.
As
forças
locais
nacionais,
das
antigas
burguesias
associadas
com
suas
respectivas bases de apoio nas classes médias, perdem espaço na dominação
global
mundializada.
Essas
classes
dominantes
transnacionalizam-se
pela
evasão de capital ou exploram suas populações, obtendo parte das dívidas
públicas
que
contraem
em
nome
de
seus
povos.
A
gestão
da
dívida
e
da
pobreza através da administração do medo torna-se o modo dominante de
governar os territórios e as pessoas como empresa colonial. Países como o
Brasil são governados por tecnologias de poder, através de todos os meios
de
Tecnologias
da
Informação
e
Comunicação
(TICs)
que
incidem
na
fabricação de políticas de segurança sobre populações e territórios, que no
seu conjunto são de caráter genocida social e etnicamente.
As ideologias militaristas, nacionalistas, racistas e machistas articulam os
vários discursos de tipo religioso e moralista, ao lado do discurso capitalista,
acentuando
visões
eugenistas.
Neste
momento
histórico,
os
discursos
do
bloco no poder em crise são unificados pela negação das diferenças e das
causas,
unidos
psicologia
de
campanhas,
narrativas
pela
construção
massa
a
partir
do
fascismo.
dos
justificando
do
quais
inimigo,
que
Emitindo
as
forças
cruzadas
o
mensagens
de
morais
repete
extrema
padrão
e
da
desenvolvendo
direita
misóginas,
geral
constroem
homofóbicas,
xenófobas, racistas e classistas, e gerando operações de “limpeza étnica” de
formas diversas. A extrema direita cresce apelando para a violência e uso das
armas na luta contra os supostos inimigos dos valores de uma ordem divina
idealizada, com o apelo para a desmedida desejante da identificação com o
poder econômico com sua violência que desliza para a barbárie. A cultura da
banalização da crueldade é agora liberada pelo chefe de Estado, que prega a
passagem ao ato para a destruição definitiva das mediações que restam do
chamado Estado de Direito.
No quadro nacional e internacional, a crise orgânica e da biosfera é lida
através
dos
enquadramentos
e
agenciamentos
discursivos,
enquanto
batalha de ordem simbólica travada no plano imaginário. A nova direita e os
distintos fascismos sociais constroem guerras culturais que tomam por base
as
formas
de
negação
cínica
e
a
destruição
dos
valores
e
conquistas
de
direitos. O que se dá via modos do discurso de luta pela prosperidade, com
base na fé religiosa, que serve aos elementos de uma radicalização contra o
consenso e os direitos humanos. A nova direita de massas avança afirmando
a necessidade de gerar a segurança na sociedade através da guerra contra a
esquerda, conta o politicamente correto, contra os indígenas, os negros, os
direitos das mulheres e as conquistas recentes da afirmação LGBTI+. Para a
nova direita, cabe a punição e eliminação de obstáculos humanos, jurídicos,
culturais e políticos que atrapalham o estranho casamento que nasceu no
Chile,
em
1973,
entre
fascismo
político
e
neoliberalismo,
que,
renasce
no
Brasil na forma macabra e mórbida na escala mais ampla e complexa.
Abandonadas
as
veleidades
de
revoluções,
modernizações
e
reestruturações de caráter passivo, vemos o emergir da onda dos fenômenos
mórbidos
da
regressão
extrema-direita.
social
Podemos
e
política,
dizer
que
que
hoje
alimentam
assistimos
o
a
cesarismo
uma
crise
de
de
representação que acompanha os efeitos da impossibilidade de gerar uma
hegemonia
solução de integração social, que impossibilita a ampliação de
nos marcos da formula mistificadora do final do século XX, que pretendeu
unificar
democracia
e
mercado.
A
fórmula
americanista
expandida
encontrou obstáculos, até por força do seu êxito e, sempre se combinou com
regimes
autoritários
e
guerras
nas
periferias
e
nas
bordas
do
Sistema
Mundo.
Hoje,
os
contraefeitos
desse
processo
combinam-se
com
práticas
de
subordinação e compromissos de afirmação da ordem, com a destruição das
políticas
de
proteção
social
minimalistas
que
se
esgotaram.
A
busca
de
mecanismos integrativos pela via do consenso e do consumo foi substituída
através do destaque crescente dado aos processos de governo pelo medo e
pela exceção. A destruição do Welfare State se dá no quadro dos efeitos de
fragmentação,
crise,
endividamento
e
conflitos
abertos
com
as
novas
desigualdades, como na Grécia e no Chile, como no Brasil desde 2013, com
segregações que atravessaram as fronteiras. O desenvolvimento desigual da
última onda expansiva do final do século XX acabou constituindo uma vasta
periferia
global,
que
reage
ao
quadro
de
precarização
e
ao
desemprego
estrutural, ao mesmo tempo em que é criminalizada, golpeada, segregada,
chegando
ao
segmentos
quadro
da
atual
população
da
proclamação
no
âmbito
do
aberta
giro
da
descartabilidade
conservador
de
de
Trump,
Bolsonaro e outros.
No Brasil, vivemos a ordem de eliminar, abater, deixar morrer, quem não
pode ser consumidor e devedor. Descartar quem não adere ao quadro de
fascistização, via novas religiões, via milícias e toda a sorte de formatos de
subordinação. Ou ainda, pela via do controle religioso, policial e militar dos
corpos, e da psicologia de massas com base nas formas de identificação com
a
personificação
autoritária,
com
a
liderança
através
da
manipulação
de
paixões e impulsos perversos. Como a que mobiliza os recalques e manipula
medos,
numa
grotesco
do
estrutura
líder,
que
narcisista
manipula
a
e
paranoica
miséria
do
que
começa
caráter
pelo
egoísta
de
caráter
grupos
utilizando preconceitos, gerando um novo fascismo social. No momento,
estamos
sangue
e
na
véspera
chacinas,
anarco-fascismo
de
vastas
temos
da
operações
manifestações
periferia
servil,
que
convocam
mobilizadas
como
parte
da
por
para
banhos
de
uma
espécie
de
doença
terminal
do
neoliberalismo, como sua face extrema e sem véus.
Nas manifestações da extrema direita, temos um discurso que apela para
uma visão “sanitária” anticientífica, que convida para uma seleção forçada
pela estratégia da contaminação, pelo ódio social. Nega-se a força do vírus,
prega-se o uso das armas como forma de seleção forçada pelo exterminismo
que acompanha as determinações divinas. A força bruta define a covardia
desta regra de seleção dos mais aptos, para poder operar diante do quadro
objetivo
e
extra-humano,
próprio
do
vírus.
A
extrema
direita
combina
fantasias, fantasmas e negações na sua compulsão por resolver os problemas
e conflitos pelo acentuar da pulsão da morte, pela via do sacrifício suicida
das populações ou do morticínio fratricida.
A objetividade material e biológica da pandemia é lida por estas forças
regressistas como sendo parte do quadro geral de intenções maléficas, de
forças diabólicas que destruíram, com sua demanda por direitos, as leis e
regras da ordem da criação divina. A obsessão pela tradição, pela hierarquia,
pelo
patriarcado
busca
estabelecer
pontes
entre
as
formas
biológicas
racistas e sexistas e as interpretações supostamente prescritas pelas noções
bíblicas. Tudo isso, relacionado a um discurso individualista possessivo, que
prega a prosperidade como a resultante do casamento entre fé e o espírito
de
iniciativa
individual,
que
opera
de
forma
possessiva
pelo
que
visa
participar da festa da riqueza capitalista, supostamente aberta para quem
aceita entrar na disputa com o corpo protegido pela fé em Deus.
O determinismo religioso se relaciona com este liberalismo extremo
da lógica proprietária, que se alimenta de seu próprio fracasso através
da fusão de doutrinas racistas, xenófobas e classistas que definem um
quadro
orientado
aproximação
para
entre
a
esta
realização
chamada
da
para
política
guerra
como
interna
guerra.
e
no
A
plano
internacional, para a defesa da família e para a defesa do Ocidente cristão,
encontrou no urbanismo de guerra e no urbanismo de mercado, praticado
no Brasil, sua forma de intensificação na relação com os conflitos abertos
que tivemos na qualidade das cruzadas morais e com a implementação das
ações de “garantia da lei e da ordem” (GLO).
O
regime
articulou
um
GLO
se
bloco
e
tornou,
uma
no
saída
Brasil,
de
uma
extrema
parte
direita,
do
quadro
cuja
geral
fórmula
de
que
ação
convida para destruição do estado ampliado, para um avesso da hegemonia,
para
um
sexista
quadro
e
de
classista
guerra
apelam
social
todo
o
regressista
tempo
aberta.
para
um
Os
discursos
estado
natural
racista,
definido
pelos preceitos estabelecidos no Velho Testamento, que justificam a guerra
cultural
e
religiosa
como
pretexto
para
suas
alianças
internacionais,
seu
apoio aos Estados Unidos e a Israel, desde uma visão do tipo “choque das
civilizações”.
ações
de
A
cruzada
poder
moral
caracterizado
tem
um
como
vínculo
sendo
conforme definida por Achille Mbembe.
da
estreito
ordem
com
da
o
quadro
de
necropolítica,
Ao longo da nossa história, o “branqueamento racial”, a modernização
autoritária, as cruzadas morais e o golpe militar impulsionavam ciclos de
revolução
passiva,
contrarrevolução,
que
como
em
sobredeterminavam
1964.
Neles,
a
os
processos
estrutura
da
de
dependência
associada fazia parte da construção de longa duração do bloco histórico.
No presente, o quadro é de subordinação e alinhamento transnacional mais
direto, via a face bélica norte-americana, via a face corporativa transnacional
e via a face chinesa de recomposição de funções na divisão internacional da
produção e das cadeias mundiais de produtos. Neste quadro, a pandemia se
soma, interliga o quadro situacional como crise da globalização e como crise
da biosfera.
O elemento biológico se inscreve nas relações de força através das lutas
e
disputas
orgânicas
de
longa
duração
e
conjunturais
de
curta
duração,
relacionando e estabelecendo atravessamentos de disputa hegemônica que,
iniciadas no plano moral da moeda e a da fé, relacionam-se com o plano mais
geral da materialidade dos modos de sobrevivência, relacionando a Guerra
social e a necropolítica com a contaminação e a morte pela COVID-19. A
operação ideológica da extrema direita é combinar a aceleração da guerra de
tipo
colonial
e
sexista
que
travam
contra
as
classes
populares
e
a
democracia, com o acelerador seletivo ativado pela força da COVID-19. Na
combinação de uma retórica que minimiza o impacto pandemia, passando
pela tentativa de lhe atribuir uma origem no poder “amarelo-vermelho” da
República
Popular
da
China,
chegam
ao
discurso
da
necessidade
de
convocar para uma luta pela economia como o centro de tudo, manejando o
desespero
popular
e
alimentando
a
frieza
de
um
raciocínio
“social-
darwinista”. Convidando para sair do isolamento, defendendo a lógica da
contaminação
“de
rebanho”
e
um
remédio
miraculoso,
a
cloroquina,
combinam o fetichismo da moeda e a reificação da consciência com o apelo
às armas.
A morbidez extrema se amplia, como previsto por Gramsci, quando do
prolongamento da crise orgânica, presa entre as temporalidades passadas e
um futuro paralisado num presente catastrófico. Vivemos sob o signo do
abandono
da
hegemonia
que
parece
se
ampliar
com
esta
soma
do
pandemônio neoliberal, da necropolítica, com a virulência da pandemia no
plano objetivo da contaminação. A contaminação do ódio de classe, raça e
sexo
são
mobilizadas
para
a
“guerra
cultural”
travada
explicitamente
em
nome de derrotar estratégias ditas como sendo derivadas do pensamento de
Antonio Gramsci e de Paulo Freire.
Tal quadro se desenvolve em paralelo ao processo de contaminação pelo
vírus,
na
chave
do
mecanismo
do
“negacionismo”.
Negar
as
evidências
históricas de maneira exaustiva é uma prática da extrema direita, que tem
como doutrina a pobreza de ideias dos adeptos do chamado “olavismo”, cuja
orientação
parece
ser
a
de
desenvolver
um
conjunto
de
operações
ideológicas que atravessam e fazem uma colagem de máximas discursivas
reacionárias,
cruzando
um
conjunto
de
enunciados
que
circulam
e
coesionam uma base social presente nos aparelhos de hegemonia.
Encontramo-nos diante de um tipo de técnica que apela todo o tempo
para a passagem do sentimento de ódio ao ato de destruição, movida pela
pulsão de crueldade e pelo fascínio pela destruição e morte do outro, ou seja,
desde os fantasmas que habitam a falsa consciência alienada, cuja base é a
negação
do
caráter
devastador
do
capitalismo
na
forma
tardia
do
neoliberalismo e da globalização. Desta forma, é montado um quadro de um
caos continuado no qual fica difícil desvendar e definir as tarefas políticas
exigidas nos campos diferenciados e relacionados dos processos orgânicos
materiais,
nunca,
sociais,
exigem
a
culturais,
formação
ecológicos
de
uma
e
biomédicos,
outra
base
que,
intelectual
mais
e
do
que
moral,
de
conhecimento, apoiada num novo boco social e técnico, que nos retire do
cenário
de
catástrofe,
ainda
ordenado
pelo
elo
entre
necropolítica
e
negacionismo, lançando-nos no abismo de um genocídio ampliado. Parece
que o Brasil é hoje o laboratório do modo mais nefasto de se lidar com as
especificidades da combinação entre crise orgânica e mutações na biosfera.
Parece-nos
que
acontecimento
a
pandemia
inaugural
dos
da
COVID-19
desafios
se
próprios
configura
do
século
como
XXI,
que
um
nos
afetam como sociedades e como espécie.
REFERÊNCIAS
ADORNO,
Theodor;
HORKHEIMER,
Max.
Dialética
do
Esclarecimento.
Rio
de
Janeiro: Zahar, 2006.
BIRMAN,
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COUTINHO,
Carlos
Nelson.
A
época
neoliberal,
revolução
passiva
ou
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Stephen. Global Political Economy in the 21st Century: Towards a Critical
Research
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Disponível
em:
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HARVEY,
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PORTANTIERO,
Juan
Carlos.
Gramsci
y
el
análisis
de
conyuntura
(algunas
notas). Revista Mexicana de Sociología, v. 41, n. 1, p. 59-73, jan./mar. 1979.
Disponível
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https://elpaginaslibres.files.wordpress.com/2012/10/gramsci-y-el-
anc3a1lisis-de-coyuntura2.pdf. Acesso em: 24 maio 2020.
NOTAS
78
|
Professor do Programa de Pós-Graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos (PPDH)
do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos – Suely Souza de Almeida – da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEPP-DH/UFRJ).
A morte como projeto
79
VICTOR LEANDRO CHAVES GOMES
O
Brasil
está
doente.
Sem
uma
política
pública
unificada
para
o
enfrentamento da pandemia da COVID-19, colecionamos índices crescentes
de
mortalidade.
deflagração
questionar
da
as
O
presidente
pandemia
no
orientações
da
país,
da
República,
optou
por
Organização
Jair
não
Bolsonaro,
seguir
Mundial
da
os
desde
a
protocolos
Saúde
(OMS).
e
Tal
conduta colocou o Brasil no seleto grupo de países que rechaçam não apenas
a gravidade, mas também o enorme potencial destrutivo da pandemia. Ao
que
parece,
todos
estão
autorizados
a
seguir
somente
aquilo
que
o
presidente acredita. Cria-se uma realidade particular, de modo que todos
passem a habitá-la e onde “a opinião é tão enraizada e difundida que, ao se
dizer a verdade, não se consegue crédito”. Lembrando que “na política de
massa,
dizer
a
verdade
é
precisamente
uma
necessidade
política”
(GRAMSCI, 2000, p. 224-225).
Propaga-se no país um obscurantismo obtuso, um anticientificismo, que
possibilita
a
disseminação
de mentiras em larga escala. Mentiras que
vão
pautando o debate público acerca da pandemia. Um exemplo é a obsessão de
Bolsonaro
no
terapêutica
imposição
no
de
Imunologia,
uso
da
combate
tal
cloroquina/hidroxicloroquina
à
COVID-19.
procedimento
baseando-se
em
Não
médico.
evidências
há
A
concluiu
recomendação
medicamento
diferentes
de
estudos
uso
deste
mostram
não
haver
amparo
que
acerca
“ainda
na
benefícios
para
Brasileira
da
é
precoce
os
visto
pacientes
a
de
utilização
COVID-19,
para
estratégia
científico
Sociedade
recentes
cloroquina/hidroxicloroquina,
como
da
a
que
que
utilizaram
com
hidroxicloroquina”.
efeitos
adversos
graves
E
continua,
que
devem
“trata-se
ser
de
levados
um
medicamento
80.
em
consideração”
Contrariar o consenso científico e se recusar a aprender com as experiências
bem-sucedidas
de
outros
países
no
enfrentamento
da
doença
não
são
apenas condutas questionáveis, mas potencialmente mortíferas.
Ao longo dos anos, em razão da hegemonia neoliberal, vários sistemas
públicos de saúde pelo mundo foram sendo progressivamente destruídos e
inviabilizados. No Brasil, claro, o roteiro não foi diferente. Apoiando-se em
um panorama desolador de ódio generalizado à política, bem como de
uma
visão
de
mundo
antirracional,
agressiva
e
rancorosa,
o
neofascismo brasileiro — batizado de bolsonarismo —, é “totalmente
identificado com o neoliberalismo, e tem por objetivo impor uma política
socioeconômica
favorável
à
oligarquia,
sem
nenhuma
das
pretensões
‘sociais’ do fascismo antigo” (LÖWY, 2020). Ou seja, o governo Bolsonaro,
assim
ainda
como
a
mais
sua
as
condições,
a
coronavírus,
condução
nossas
crise
trouxe
política no combate à pandemia, escancarou
profundas
sanitária
desigualdades
decorrente
consequências
da
trágicas,
estruturais.
disseminação
sobretudo
para
Nestas
do
as
novo
camadas
mais vulneráveis da população.
Na
mesma
América
linha
Latina,
de
reflexão,
Pierre
Salama,
o
economista
considera
francês,
que
“o
especializado
Brasil
tornou-se
em
um
laboratório inenarrável. Nas experiências de laboratório se usam animais.
Um
rato,
humanos.
uma
Se
criminoso
picada;
ele
morre
considerarmos
de
81.
guerra”
a
ou
não.
pandemia
Trocando
Mas
uma
em
não
guerra
miúdos:
são
ratos,
[...]
Bolsonaro
é
genocida.
Basta
um
são
seres
um
recordarmos do tratamento irresponsável de uma pandemia mortífera ao
denominá-la
“gripezinha”;
medicamentos
brasileiro
em
da
supostamente
aceitar
as
constante
milagrosos;
medidas
de
da
difusão
forte
de
mentiras
resistência
distanciamento
social,
do
sobre
governo
que
obteve
resultados expressivos pelo mundo na contenção do contágio; bem como do
82
absoluto desprezo de Bolsonaro perante o gigantesco número de mortes
que assolam o país.
A despeito de tudo isso, o governo tem, sim, uma prioridade: se proteger.
Bolsonaro
agentes
editou
públicos
indiretamente,
governos
e
a
Medida
por
com
ação
a
e
Provisória
por
omissão
pandemia.
entidades
privadas,
83
(MP
Ainda
lançou
966/2020)
em
atos
mais,
a
que
anistia
os
direta
ou
relacionados,
OMS,
recentemente
em
conjunto
uma
com
plataforma
de
cooperação internacional para acelerar o desenvolvimento de uma vacina e
84.
de remédios eficazes no combate à pandemia
Contudo, em função dos
permanentes constrangimentos internacionais e dos embates promovidos
por Bolsonaro, que inclusive resultaram na demissão de dois ministros da
Saúde em plena pandemia, o Brasil sequer foi convidado para participar da
iniciativa.
A
nova
diretriz
da
diplomacia brasileira, em comunhão com
as
posturas de extrema direita da Hungria e dos Estados Unidos, passou a ver
organismos constituídos por representantes de diversas nações como uma
ameaça à soberania nacional.
Diante
estaduais
limitadas
do
e
total
os
desamparo
municípios
condições
bolsonarista
nada
de
pode
da
parte
passaram
que
ser
do
a
Executivo
lutar
dispunham.
tranquilo.
É
contra
federal,
a
governos
pandemia
Mesmo
essencial
os
assim,
(e
no
com
as
Brasil
estratégico)
que
prevaleça o caos. Bolsonaro, pois, tensiona incessantemente, estabelecendo
um
conflito
aberto
contra
as
autoridades
sanitárias,
govenadores
e
prefeitos, ao fazer ameaças caso não haja a abertura imediata do comércio
no país. Em videoconferência com empresários, o presidente afirma que “o
Brasil está quebrando, e depois que quebrar não é como alguns dizem que a
economia recupera. Não recupera. Vamos ser fadados a viver como um país
de miseráveis. O
caos
se
fará
evidente
planeta.
lockdown
85.
presente”
impacto
No
é o caminho do fracasso, vai quebrar o Brasil. O
Ninguém
econômico
entanto,
da
em
sã
consciência
pandemia,
especialmente
no
não
pode
apenas
momento
no
desmerecer
Brasil,
singular
e
mas
difícil
o
no
que
vivemos,
é
imperioso
responsabilidade
priorizar
primeira
de
e
um
preservar
as
presidente
vidas
da
humanas.
República
é
A
com
a
integridade e bem-estar do seu povo. Não se pode governar somente para os
seus
eleitores.
Bolsonaro
Muito
Agir
jamais
pelo
assim
terá
a
contrário.
é
sintoma
grandeza
No
que
de
uma
moral
enorme
necessária
depender
dele,
miséria
para
fará
cognitiva
entender
de
tudo
e
isso.
para
a
concretização da sua profecia genocida. Inclusive, retardar deliberadamente
o repasse direto do socorro financeiro aos cofres dos governos estaduais e
86.
municipais para o enfrentamento da pandemia
A
situação
brasileira
diante
dessa
crise
sanitária
mundial
é
terrível.
A
enfermidade nacional é seríissima, mas se engana quem acha que a culpa
recai exclusivamente sobre a COVID-19. O país padece de um mal tão grave
quanto
a
pandemia,
propagador
violência
e
de
que
é
ser
conduzido
obscurantismo,
almeja
a
morte
por
um
desinformação,
como
projeto.
Entre
governo
neofascista,
intolerância,
a
proteção
exclusão,
da
vida
dos
brasileiros e a saúde financeira do empresariado, Bolsonaro prontamente
escolheu
a
segunda
opção.
O
fascismo,
em
suas
diferentes
formas
e
manifestações, precisa ser combatido sempre. Calar-se diante do que se vive
hoje
no
Brasil
é
ser
cúmplice
dessa
barbárie
inominável
e,
portanto,
conivente com tal política genocida.
REFERÊNCIAS
GRAMSCI,
Antonio.
Cadernos
do
cárcere.
Vol.
3:
Maquiavel.
Notas
sobre
o
Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
LÖWY,
Michael.
Isto
Se
Chama
Genocídio.
28
abr.
2020.
Disponível
https://aterraeredonda.com.br/isto-se-chama-genocidio/.
maio 2020.
Acesso
em:
em:
18
NOTAS
|
79
Professor de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenador do
Laboratório de Estudos em Política Internacional (LEPIN/UFF).
|
80
Parecer
Científico
da
Sociedade
Cloroquina/Hidroxicloroquina
para
Brasileira
o
de
Imunologia
tratamento
da
(SBI)
sobre
COVID-19.
a
utilização
18
maio
da
2020.
https://sbi.org.br/2020/05/18/parecer-da-sociedade-brasileira-de-imunologia-sobre-a-utilizacao-dacloroquina-hidroxicloroquina-para-o-tratamento-da-covid-19/?
fbclid=IwAR3yhxGIROvF4BNMruTttuwpqHwklA7AhjT5x5YB2wxitg4QXKQoJNiW9FY.
Acesso
em:
18 maio 2020.
|
81
“Estamos
pandemia.
14
diante
abr.
de
uma
2020.
nova
grande
transformação”,
diz
economista
francês
sobre
impacto
da
https://oglobo.globo.com/mundo/estamos-diante-de-uma-nova-grande-
transformacao-diz-economista-frances-sobre-impacto-da-pandemia-24369511
[grifos
do
autor].
Acesso em: 18 maio 2020.
82
|
“E daí? Eu sou Messias, mas não faço milagres”. 01 maio 2020. https://istoe.com.br/e-dai-eu-sou-
messiasmas-nao-faco-milagres/. Acesso em: 18 maio 2020.
|
83
MP
isenta
agente
público
por
ações
e
omissão
no
combate
à
pandemia.
14
maio
2020.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-05/mp-isenta-agente-publico-por-acoes-eomissao-no-combate-pandemia. Acesso em: 18 maio 2020.
|
84
Busca
global
por
uma
vacina
contra
a
COVID-19.
Sem
o
Brasil.
05
maio
2020.
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/05/05/A-busca-global-por-uma-vacina-contra-acovid-19.-Sem-o-Brasil. Acesso em: 18 maio 2020.
|
85
“Agora
é
guerra”:
Bolsonaro
faz
terrorismo
e
anuncia
caos,
saques,
miséria.
14
maio
2020.
https://noticias.uol.com.br/colunas/balaio-do-kotscho/2020/05/14/bolsonaro-faz-terrorismo-eanuncia-quebradeiras-caos-saques-miseria.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 18 mai. 2020.
86
|
Estados acumulam prejuízos com atraso na sanção de Bolsonaro a socorro financeiro. 14 maio 2020.
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/estados-acumulam-prejuizos-com-atraso-nasancao-de-bolsonaro-a-socorro-financeiro.shtml. Acesso em: 18 maio 2020.
Revolução-restauração em tempos
de pandemia
87
LUCIANA ALIAGA
No dia 22 de maio de 2020, foi divulgada na íntegra a transcrição do vídeo
da
reunião
ocorrera
há
ministerial
exatos
30
do
governo
dias
atrás,
do
no
dia
presidente
22
de
Jair
88.
abril
Bolsonaro,
A
que
transcrição
da
reunião foi feita pelo Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal
para servir como possível prova da tentativa de interferência do presidente
da
República
ministro
da
em
investigações
Justiça,
Sérgio
da
Moro,
Polícia
no
dia
Federal,
em
que
acusação
anunciou
feita
seu
pelo
pedido
ex-
de
demissão, 24 de abril de 2020. Todos esses fatos ocorreram em meio a três
grandes
crises
no
Brasil:
uma
crise
econômica
estrutural,
de
proporções
internacionais; uma crise sanitária, causada pela pandemia da COVID-19; e
uma
crise
menos,
política,
desde
isto
2013,
é,
com
uma
as
crise
grandes
de
hegemonia
manifestações
que
de
se
rua
arrasta,
e
a
pelo
posterior
deposição da presidenta da república Dilma Rousseff, em 2016. As três crises
não
encontram
condições
de
solução,
mas
de
profundo
agravamento
no
governo de Jair Bolsonaro.
No dia da referida reunião ministerial, a COVID-19 já havia causado 2.917
óbitos
no
reunião,
Brasil,
21.048
um
vidas
mês
já
depois,
haviam
isto
sido
é,
no
dia
perdidas
da
para
divulgação
a
89
doença,
pública
da
indicando
uma rápida e aguda curva crescente, acompanhada por um caos aberto no
sistema público de saúde e um número de mortos tão alto que os enterros
começaram
estranheza,
a
ser
feitos
contudo,
que
em
esse
valas
comuns
contexto
em
90
Manaus-AM.
dramático
não
tenha
Causa
ocupado
nenhum pequeno ponto na pauta da referida reunião, que nenhum ministro
ou
o
próprio
qualquer
presidente
preocupação
da
república
com
esse
tenha
cenário
de
demonstrado
crise
minimamente
humana
e
social.
Pelo
contrário, o tema da pandemia da COVID-19 no Brasil aparece, por exemplo,
na fala do ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, como oportunidade
91 Diz o ministro:
para operar uma ampla desregulamentação ambiental.
Nós
temos
a
possibilidade
nesse
momento
que
a
atenção
da
imprensa
tá
voltada
exclusiva... quase que exclusivamente pro COVID, e daqui a pouco para a Amazônia, o
General Mourão tem feito aí os trabalhos preparatórios para que a gente possa entrar
nesse assunto da Amazônia um pouco mais calçado, mas não é isso que eu quero falar. A
oportunidade que nós temos, que a imprensa não está... Tá nos dando um pouco de alívio
nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação,
todas as reformas que o mundo inteiro nessas viagens que se referiu o Onyx certamente
cobrou
dele,
enquanto
cobrou
estamos
do
Paulo
nesse
[...]
Então
momento
de
pra
isso
precisa
tranquilidade
no
ter
um
esforço
aspecto
de
nosso
aqui
cobertura
de
imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento
e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio
Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra
dar de baciada a simplificação regulam... é de regulatório que nós precisamos, em todos
os aspectos. (DITEC-INSTITUTO NACIONAL DE CRIMINALÍSTICA, 2020, p. 19).
Diante deste quadro de profunda crise humanitária e total ausência de
políticas públicas federais para enfrentamento da pandemia, mais que isso,
pela total insensibilidade não apenas do presidente da República, mas do
conjunto de seus ministros em relação às mortes de milhares de cidadãos
brasileiros, nos perguntamos pelo caráter e pelos objetivos deste governo.
Parece urgente uma caracterização não apenas do contexto de crise, mas das
respostas que são dadas ou omitidas a esta crise.
Além da atuação destruidora do conjunto dos ministros, que devastam
suas pastas, como é o caso do ministro do meio ambiente citado acima, cuja
luta
se
dedica
a
desregulamentar
a
proteção
da
Amazônia
contra
o
desmatamento, ou a ministra da mulher que negligencia a saúde e as vidas
das
mulheres
em
nome
da
moral
cristã,
ou
o
ministro
da
educação
que
desmonta o seu ministério e busca intervir arbitrariamente nas Instituições
Federais
de
92
Ensino,
a
atuação
individual
de
Jair
Bolsonaro
na
crise
sanitária — desrespeitando o isolamento social, deixando de usar máscara,
93 —
causando aglomerações e conclamando as pessoas a voltar ao trabalho
está
aprofundamento
ainda
mais
a
crise
humanitária
com
milhares
de
pessoas mortas.
A
estratégia
diminuirá
da
“imunidade
crescentemente
de
seu
94
rebanho”,
poder
de
que
infecção
postula
à
que
medida
a
que
doença
70%
da
população seja infectada, implícita nas posições de Bolsonaro, não leva em
conta o limite de leitos de UTI e respiradores, capazes de salvar vidas, caso
haja um número muito grande de casos graves ao mesmo tempo, levando a
um
enorme
número
de
mortes
—
o
que,
de
fato,
estamos
presenciando
neste momento. Este comportamento genocida — que, grosso modo, quer
dizer:
“deixem
que
morram
os
mais
fracos”
—
não
pode,
contudo,
ser
explicado a partir de qualquer forma de demência ou déficit de inteligência,
mas sim corresponde especificamente a uma política de eugenia, tal como
ocorreu na Alemanha nazista.
Importante notar que a insensibilidade diante da morte de milhares de
pessoas e a violência — verbal e física — é marca não apenas do governo de
Jair Bolsonaro, mas também de seus apoiadores. Está se criando no Brasil, a
partir
do
fomento
da
violência
“movimento-milícia”,
trabalhadoras,
apoiadas
antidemocrática,
supracitada,
que
Jair
que
pelo
reúne
na
está
Bolsonaro
próprio
massas
ideologia
se
da
de
presidente
classe
expõe
média
extrema
95
armando.
claramente
Na
o
da
república,
e
das
direita,
reunião
objetivo
um
classes
de
cariz
ministerial
de
armar
a
população contra as políticas de isolamento dos governadores e prefeitos:
O que esses filha de uma égua quer, ô Weintraub, é a nossa liberdade. Olha, eu tô, como é
fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu
quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que
não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma
ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa
todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. E se eu fosse ditador, né? Eu
queria desarmar a população, como todos fizeram no passado quando queriam, antes de
impor a sua respectiva ditadura. Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e
ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado
pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E
não da pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais.
É.
Quem
não
armamento,
governo
aceitar
a
liberdade
errado.
minha,
de
Esperem
as
minhas
expressão,
pra
vinte
bandeiras,
livre
e
mercado.
dois,
né?
O
Damares:
Quem
seu
família,
não
Álvaro
aceitar
Dias.
Deus,
isso,
Espere
o
Brasil,
está
no
Alckmin.
Espere o Haddad. Ou talvez o Lula, né? E vai ser feliz com eles, pô! No meu governo tá
errado! É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que
povo armado jamais será escravizado. E que cada um faça, exerça o teu papel. Se exponha.
Aqui
eu
já
falei:
perde
o
ministério
quem
for
elogiado
pela
folha
ou
pelo
globo!
Pelo
antagonista! Né? Então tem certos blogs aí que só tem notícia boa de ministro. Eu não sei
como!
O
presidente
[...].
(DITEC-INSTITUTO
NACIONAL
DE
CRIMINALÍSTICA,
2020, p. 57-58).
A substituição da política pela violência é de fato uma das características
mais
marcantes
da
crise
de
hegemonia
em
sua
fase
mais
aguda.
Nestas
situações, de acordo com Antonio Gramsci:
Ocorre
quase
acompanhado
motivos
sempre
que
por
movimento
um
concomitantes:
um
por
movimento
“espontâneo”
reacionário
exemplo,
uma
da
crise
ala
das
direita
classes
da
econômica
subalternas
classe
dominante,
determina,
por
um
seja
por
lado,
descontentamento nas classes subalternas e movimentos espontâneos de massa, e, por
outro,
determina
complôs
de
grupos
reacionários
que
exploram
o
enfraquecimento
objetivo do Governo para tentar golpes de Estado. (Q. 3, §48, p. 328).
Deste modo, diante de uma crise econômica prolongada, da insatisfação
das classes populares sem uma direção consciente que sintetize e canalize as
reivindicações econômico-corporativas em pautas políticas capazes de criar
um
movimento
golpes
de
popular
Estado,
aprofundar
sua
organizado
oportunidades
influência
na
e
para
política.
coeso,
que
A
abre-se
grupos
solução
a
possibilidade
reacionários
para
a
crise,
de
consigam
portanto,
quando não se equaciona em sentido progressista, popular, pode vir a ser
resolvida regressivamente, pelo alto, isto é, pode ocorrer por meio de um
golpe de Estado aberto ou por meio de um líder carismático, sem ruptura
formal
das
instituições
liberais,
mas
com
caráter
autoritário.
No
caso
da
Itália, o fascismo foi, na leitura gramsciana, uma solução pelo alto para a
resolução da crise de hegemonia (cf. FELICE, 1978), que se arrastava desde,
pelo menos, o final da Primeira Guerra.
Há uma notável similaridade política e ideológica entre os fenômenos do
Nazismo na Alemanha e do Fascismo na Itália com diversos eventos sócio-
políticos em nosso contexto brasileiro atual. Em função disto, vários autores
vêm caracterizando o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro como
um
governo
enquanto
fascista
outros
ou
neofascista
autores
(cf.
são
BOITO
JR,
contrários
2019;
a
LÖWY,
esta
2020),
aplicação
na
contemporaneidade (cf. BORON, 2020). Nossa hipótese para responder a
esta
questão
social
e
consiste
ascensão
de
na
afirmação
formas
de
que
autoritárias
existe
de
uma
poder
relação
e
que
entre
essas
crise
formas
autoritárias possuem similaridades em função de serem casos particulares
da dialética histórica revolução-restauração.
Nos Cadernos
“não
linear
e
do
cárcere,
intimamente
Gramsci,
a
partir
contraditória
do
da
constatação
desenvolvimento
da
natureza
capitalista”
(ROCCU, 2017, p. 545-546), formula uma “teoria” do movimento histórico
que
se
define
por
períodos
de
expansão
e
inovação,
que
são
seguidos
de
períodos de reação e regressão, que ele nomeará como dialética revolução-
restauração.
A
concepção
de
revolução-restauração,
neste
sentido,
ganha
generalidade como “forma” do movimento histórico que encontra seu caso
mais exemplar na Revolução francesa, cujo progresso ocorreu por fases de
inovação seguidas por fases de restauração no longo período que vai de 1789
a 1871 (cf. Q. 10I, § 9, p. 1226; Q. 10II, § 41.XIV, p. 1324 e Q10II, § 61, p. 1361).
Contudo,
diferente
conhecido
essa
no
dialética
processo
como
inovação-conservação
de
constituição
Risorgimento.
Neste
do
caso,
o
se
concretizou
Estado
unitário
momento
da
de
na
modo
Itália,
revolução
e
da
expansão progressista da classe que faz avançar toda a sociedade é limitado
e simultâneo ao da restauração, isto é, uma revolução sem revolução. Este
caso
particular
restauração
de
ocorre
concretização
quando,
no
caso
histórica
da
Itália
da
dialética
risorgimental
(e
revolução-
também
no
período
do
dirigidas
fascismo),
pelas
a
classes
gestão
da
crise
dominantes
de
e
a
um
manutenção
bloco
da
histórico
ordem
já
são
existente
anteriormente. Assim, ao invés de uma nova hegemonia se afirmar, são as
velhas forças que se vestem de novas roupagens e que assimilam os grupos
adversários mais ativos (cf. Q. 1, § 44, p. 50).
A revolução-restauração é, portanto, um movimento histórico passível de
generalização, que se concretiza de formas diversas em casos particulares,
os quais assumem a forma política de acordo com as condições do contexto
histórico,
social
realização.
Nazismo
Neste
e
do
respectivamente),
como
formas
e
político,
sentido,
isto
mesmo
políticas
uma
propomos
Fascismo
e
é,
(na
o
forma
compreender
Alemanha
Bonapartismo
específicas
da
histórica
e
na
(na
dialética
os
fenômenos
Itália
França
de
particular
do
século
século
do
XX,
XIX),
revolução-restauração,
que
podem ser definidas como respostas autoritárias às crises de hegemonia não
resolvidas a partir de uma solução popular, democrática.
No Brasil estamos imersos em uma profunda crise de hegemonia — uma
crise orgânica —, que se expressa ao nível das instituições como uma crise
da democracia liberal, mas não podemos dizer que já estamos vivendo sob
um
regime
autoritário,
a
despeito
de
existirem
movimentos
reacionários
cada vez mais influentes na política. Neste sentido, propomos a utilização
provisória do termo “Bolsonarismo” para a definição da forma política atual
da
revolução-restauração
no
Brasil.
O
Bolsonarismo
—
diferente
da
personalidade individual de Jair Bolsonaro — deve ser entendido como um
movimento
reacionário
e
de
massas
(que
congregam
classes
médias
e
classes trabalhadoras), incitado pela propagação das fake news e que emerge
em
função
de
uma
crise
política,
econômica,
social
e
ideológica,
cujas
origens podem ser identificadas em 2013.
Não é possível dizer, contudo, que Jair Bolsonaro tenha um projeto de
Estado
—
diferente
de
Hitler
e
Mussolini
—,
mas,
ao
contrário,
o
que
se
torna cada vez mais evidente é que ele possui exclusivamente um projeto
individual
reeleição
(ou
em
familiar)
2022.
de
Para
poder
e
manter
claramente
sua
base
está
social
em
é
campanha
de
para
fundamental
importância conservar o movimento-milícia mobilizado e, se possível, fazê-
lo crescer. No afã de se manter no poder, equilibrando-se de crise em crise
institucional
causadas
por
ele
próprio
ou
por
seus
ministros,
vai
aprofundado a crise de hegemonia, aprofundando as rachaduras no interior
do bloco no poder e diminuindo a possibilidade de construção de consensos
e de enfrentamento da pandemia. Bolsonaro, no movimento de agarrar-se
ao
poder,
aprofunda,
permitindo
e
mesmo
portanto,
a
crise
contribuindo
para
política,
morte
econômica
de
milhares
e
sanitária,
de
pessoas,
despertando forças reacionárias que não será capaz de controlar.
REFERÊNCIAS
BOITO JR.,
Armando. O neofascismo já é realidade no Brasil. O Brasil de Fato,
19
mar.
2019.
Disponível
em:
https://www.brasildefato.com.br/2019/03/19/artigo-or-o-neofascismo-ja-
e-realidade-no-brasil. Acesso em: 24 maio 2020.
BORÓN,
erro
Atilio. Caracterizar o governo de Jair Bolsonaro como “fascista” é um
grave.
O
Brasil
de
Fato,
02
jan.
2019.
Disponível
em:
https://www.brasildefato.com.br/2019/01/02/artigo-or-caracterizar-o-
governo-de-jair-bolsonaro-como-fascista-e-um-erro-grave/.
Acesso
em:
24 maio 2020.
DITEC-INSTITUTO
Disponível
NACIONAL
DE
CRIMINALÍSTICA.
Laudo,
n.
1242
de
2020.
em:
https://assets.documentcloud.org/documents/6923169/Decis%C3%A3o-
de-Celso-de-Mello-que-liberou-v%C3%ADdeo-de.pdf.
Acesso
em:
22
maio 2020.
FELICE,
Franco. Revolução passiva, fascismo, americanismo em Gramsci. In:
FERRI,
Franco.
Política
e
história
em
Gramsci,
vol.
I.
Rio
de
Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978.
GRAMSCI,
Antonio. Quaderni del carcere. Edizione critica dell’Istituto Gramsci
a cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 2007.
LÖWY,
Michael.
O
neofascista
Bolsonaro
Boitempo.
diante
da
pandemia.
Disponível
Blog
da
em:
https://blogdaboitempo.com.br/2020/04/28/michael-lowy-o-
neofascista-bolsonaro-diante-da-pandemia/. Acesso em: 24 maio 2020.
ROCCU,
Roberto. Passive revolution revisited: From the Prison Notebooks to
our “great and terrible world”. Capital & Class, v.41, n.3, 2017.
NOTAS
87
|
Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de pós-graduação em Ciência
Política
e
Relações
Internacionais
da
Universidade
Federal
da
Paraíba
(DCS/PPGCPRI-UFPB).
Secretária da International Gramsci Society Brasil (IGS-Brasil).
88
|
A divulgação do vídeo da reunião foi autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal
Celso de Mello. A íntegra da transcrição do vídeo foi amplamente divulgada pela mídia e pode ser
baixada neste link: https://assets.documentcloud.org/documents/6923169/Decis%C3%A3o-de-Celsode-Mello-que-liberou-v%C3%ADdeo-de.pdf. Na bibliografia final o documento está registrado como
DITEC-INSTITUTO NACIONAL DE CRIMINALÍSTICA, 2020.
|
89
Dados do Ministério da Saúde. Conferir “Óbitos acumulados pela COVID-19 por dados de
notificação” em: https://covid.saude.gov.br/.
90
|
Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/com-enterros-em-valas-comuns-por-
crise-do-coronavirus-manaus-sofre-com-falta-decaixoes,719536c2b907823efd7d11d7720ed70amxxfc3a7.html. Acesso em: 24 maio 2020.
91
|
As referências que aparecem nas falas dos presentes na reunião tangenciam a pandemia da
COVID-19 para tratar de outros temas, frequentemente se referem à crise econômica aprofundada
por ela, bem como o cenário econômico posterior. Mesmo Nelson Teich, então ministro da saúde,
numa breve fala, se refere ao problema financeiro que os hospitais terão com a pandemia, bem como
ao colapso do sistema hospitalar no cenário pós-pandemia (Cf. DITEC-INSTITUTO NACIONAL DE
CRIMINALÍSTICA,
2020,
p.
34-35).
Damaris
Alves,
ministra
da
Mulher,
da
Família
e
dos
Direitos
Humanos, foge à regra quando demonstra preocupação com os efeitos da pandemia no âmbito dos
“costumes”. Ela diz “será que vão querer liberar que todos que tiveram coronavírus poderão abortar
no Brasil?” (Cf. DITEC-INSTITUTO NACIONAL DE CRIMINALÍSTICA, 2020, p. 46). Mas, de modo
geral, nenhum ministro ou o próprio presidente da República trata de políticas para enfrentamento da
pandemia e nem do crescente número de mortes.
|
92
São
muitas
as
denúncias
contra
a
arbitrariedade
do
MEC,
ver,
por
exemplo,
ANDES:
http://www.andes.org.br:8080/conteudos/noticia/mEC-muda-criterio-de-escolha-de-reitores-eataca-autonomia-universitaria1/page:6/sort:Conteudo.created/direction:DESC.
Acesso
em:
24
maio
2020.
93
|
A atuação do presidente é sistemática e frequente para romper o isolamento social: ver, por
exemplo,
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/23/bolsonaro-passeia-por-brasilia-e-
provoca-aglomeracao.ghtml;
e
também:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/bolsonaro-
provoca-nova-aglomeracao-diz-que-brasil-saira-mais-forte-da-pandemia-e-fala-em-resgate-devalores.shtml. Acesso em: 24 maio 2020
|
94
Sobre
isto
ver:
http://coronavirus.butantan.gov.br/ultimas-noticias/o-que-e-imunidade-de-
rebanho.
95
|
Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/organizadora-de-acampamento-
bolsonarista-diz-a-site-que-grupo-esta-armado/. Acesso em: 24 maio 2020.
Precarização do trabalho em tempos
1996
de pandemia da COVID-
97
PERCIVAL TAVARES DA SILVA
É um grande desafio, diante da crise atual, falar do mundo do trabalho.
Não é nada fácil traduzir a situação sem cair no pessimismo. Prisioneiro do
fascismo
manter
italiano,
o
Antonio
“pessimismo
Gramsci
de
(2005,
inteligência”
p.
382)
ensina
conjugado
ao
que
é
preciso
“otimismo
de
vontade”. O Papa Francisco nos alertou, na homilia em 06 de maio de 2020,
a “abrir os olhos para ver as trevas que está dentro de nós e assim chegar à
luz”.
A
Modernidade,
emancipatórias
as
num
passado
conquistas
da
recente,
ciência,
saudou
as
com
novas
razão
como
tecnologias.
Elas
acabariam com a fome, a miséria, as doenças, causadoras das guerras. Mas
essas “conquistas”, não colocadas a serviço da vida e da natureza, trouxeram
consigo a barbárie sem precedentes. Desde então, o trabalho nunca esteve
tão
desvalorizado,
mas
também
nunca
provou
ser
tão
importante
como
hoje, em plena pandemia da COVID-19. A humanidade vive o 1º de Maio de
2020 em crise civilizatória. A COVID-19, associada aos interesses do capital,
dissolve a vida; as fake news globalizadas obscurecem a verdade destruindo
as
relações
sociais;
o
capitalismo
pandêmico
de
caráter
neoliberal
solapa
direitos do trabalho, fomenta a “escravidão digital”, exacerba a exploração
da mão de obra uberizada e destrói a mãe natureza. Javé, “Aquele que é”,
assim como há mais de 3 mil anos no Egito, diria: “Tenho pena deste povo
que
sofre
em
meio
às
pandemias
contemporâneas,
pois
não
tem
onde
apoiar, abandonado que está pelo Estado e pelos poderes constituídos”.
se
Esse sistema necrófilo desvaloriza o trabalho para se alimentar do suor e
sangue da classe trabalhadora. Incrédulos, envenenados pelas fake news que
desavisam da letalidade do novo coronavírus, arrastam consigo inocentes-
oferendas ao altar do Moloque capitalista. Como destaca Ricardo Antunes,
em entrevista ao Site Democracia e Mundo do Trabalho em Debate em maio de
98,
2020
a
pandemia
sistema
de
da
COVID-19
metabolismo
destrutivo”.
Destrutivo,
“não
antissocial
do
incontrolável,
é
um
elemento
capital
o
de
capital
desconectado
caráter
precisa
do
profundamente
criar
mais
e
mais
dinheiro, mais lucro e mais apropriação privada da riqueza.
Por outro lado, a forçada quarentena globalizada, ao paralisar o sistema,
resgata a importância do Trabalho. Para desespero da classe dominante, fica
escancarado
que,
sem
trabalho,
o
capital
não
se
valoriza,
não
produz
riqueza. Mas, a história de luta da classe trabalhadora ensina que o capital
sabe
enfrentar
pato”,
essas
denuncia
situações.
que
as
O
enfrenta
jargão
retrógrado,
piorando
ainda
“não
mais
vamos
as
pagar
condições
o
de
trabalho. Como sabe que “sem trabalho não há riqueza”, o capitalista quer
“um
trabalho
cada
vez
mais
desprovido
de
direitos,
mais
informal,
funcionando como um apêndice de uma máquina que domina o mundo”, diz
Antunes
na
mesma
entrevista ao
Site
Democracia
e
Mundo
do
Trabalho
em
Debate. As recentes contrarreformas no Brasil provam isso.
Diante
aprender
deste
com
trabalhadores
caos,
a
de
não
resta
outra
própria
história
Chicago,
Estados
saída
do
1º
à
de
Unidos,
classe
trabalhadora
Maio.
foram
à
senão
Determinados,
luta.
os
Organizaram
a
greve do 1º de Maio de 1886 para exigir a redução da jornada de trabalho de
16 para 8 horas. A repressão foi brutal, deixando muitos feridos e mortos;
seus
líderes
foram
julgados
injustamente
por
uma
bomba
que
explodiu
durante a greve: cinco deles foram condenados à forca (um deles suicidou) e
três outros à prisão perpétua. Sete anos depois, em 1893, foram inocentados
e reabilitados pelo governador de Illinois, que confirmou ter sido o chefe de
polícia
que
encomendara
o
atentado
para
justificar
a
repressão
que
se
seguiu. E o 1º de Maio foi proclamado pela Internacional Socialista como o
dia
internacional
de
luta
por
condições
de
trabalho.
Isto
após
violenta
repressão policial à manifestação do 1º de Maio no norte da França em 1891,
que
resultou
governos
na
pelo
morte
mundo
de
dez
afora,
a
manifestantes.
começar
pelos
Assim,
Estados
a
partir
Unidos,
de
se
1890,
viram
obrigados a reconhecer a jornada de oito horas de trabalho.
A principal reivindicação da Primeira Greve Geral no Brasil, em 1907, foi a
redução da jornada de doze a quatorze horas para oito horas de trabalho. E
foi reduzida para dez horas. Em 1932, Getúlio Vargas institui a jornada de
oito horas e a Constituição Federal de 1988 aprova: “a duração do trabalho
normal para os trabalhadores urbanos e rurais não será superior a oito horas
diárias
nem
a
quarenta
e
quatro
horas
semanais”
(BRASIL,
1988,
art.
7º,
XIII).
Hoje, 134 anos depois de 1886, com a reconfiguração do trabalho, a classe
trabalhadora do mundo vive tempos de pandemia do capitalismo. A curto
prazo, com a pandemia da COVID-19 associada às mudanças tecnológicas e
ao
Estado
que
se
desobriga
de
cuidar
dos
cidadãos,
a
tendência
é
do
crescimento da nefasta escravidão digital; o aprofundamento do trabalho
precário
e
informal,
do
trabalho
uberizado
sem
qualquer
proteção;
a
explosão de desempregados e desalentados.
Mas
esta
ciranda
de
morte
precisa
ser
quebrada.
Mais
do
que
nunca
a
classe trabalhadora precisa do seu “espírito popular criativo” (GRAMSCI,
2005,
p.
129)
para
reinventar
o
mundo.
E
aqui
o
papel
do
feminino,
dos
excluídos e marginalizados será fundamental para reverter a situação. Karl
Marx e Friedrich Engels (2010) são incisivos diante da espoliação do capital,
“trabalhadores do mundo, uni-vos”. E Rosa de Luxemburgo (1916) decreta
“socialismo ou barbárie”, pois não há outra saída para a humanidade.
Apesar
de
não
haver
ilusão
quanto
à
vontade
política
do
Estado
—
“o
Estado do nosso tempo é calibrado, controlado, comandado e impulsionado
pelos
interesses
das
grandes
corporações
sob
hegemonia
do
capital
financeiro”, diz Antunes na entrevista já citada — pelo bem da humanidade
e da vida na terra, é preciso pressionar o Estado para exigir dele recursos
para
o
cuidado
organizações
com
do
a
classe
sistema
trabalhadora,
produtivo
e
os
a
proteção
empregos.
das
O
empresas
lucro
não
e
pode
continuar central, pois a economia do capital não visa a saúde, a educação e a
previdência públicas, a alimentação. Ela visa a sua mercantilização.
Como
vemos,
entrevista ao Site
trata-se,
de
Democracia
e
acordo
Mundo
com
do
Clemente
Trabalho
em
Ganz
Debate
Lúcio,
em
maio
em
de
99, de “enfrentar o desafio criativo de inventar um novo mundo”, pois,
2020
voltar à “normalidade” depois dessa pandemia é reingressar no mundo que
criou esse caos. “Há um alto risco de um mundo ainda mais desigual, com
mais pobreza e miséria, com regimes autoritários de diferentes matizes”. O
que seria dramático para o mundo do trabalho. “As condições de vida e o
meio ambiente serão ainda mais agredidos se vencer a volta ao passado”. E a
emergência
da
catástrofe
ambiental
será
acompanhada
de
novas
crises
sanitárias.
A humanidade vive um momento excepcional da história, em que pode
reinventar seu modo de vida. Tratar o trabalho como dimensão central do
desenvolvimento. E na contramão da meritocracia e da competição, buscar
o trabalho solidário e cooperativo. Nas palavras de Antunes, na entrevista já
referida,
reinventar
“o
trabalho
humano
como
atividade
livre,
autodeterminada, fundada no tempo disponível contra o trabalho forçado,
animalizado,
estranhado,
que
tipifica
a
sociedade
do
capitalismo
informacional da era digital”.
Na contramão dos interesses capitalistas, Clemente Ganz Lúcio coloca,
na entrevista ao Site Democracia e Mundo do Trabalho em Debate, que o “novo
projeto
de
desenvolvimento
social,
econômico,
político
e
ambiental
deve
visar criar ocupações para todos, com jornada de trabalho reduzida para que
todos trabalhem, com renda garantida e ampla proteção social por meio de
políticas de educação, saúde, moradia, transporte, segurança, entre outras,
universais”.
coletivos
E
“o
para
incremento
produzir
o
da
produtividade
bem-estar
de
deve
todos
e
gerar
um
ganhos
bom
sociais
modo
de
coletivamente viver”.
REFERÊNCIAS
BRASIL.
Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.
GRAMSCI,
Antonio.
Cartas
do
cárcere.
Vol.
1:
1926-1930.
Rio
de
Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005.
LUXEMBURGO,
In:
Rosa. A crise da social-democracia (Brochura de Junius, 1916).
LOUREIRO,
Isabel (Org.). Rosa Luxemburgo: textos escolhidos. São Paulo:
Expressão Popular, 2009. p.77-100.
MARX,
Karl;
ENGELS,
Friedrich. Manifesto comunista. 1. ed. revista. São Paulo:
Boitempo, 2010.
NOTAS
96
|
Texto publicado originalmente no Blog da Pastoral da Juventude Diocese de Nova Iguaçu, com o
título “1º de maio ou barbárie”. Disponível em: http://pjnioficial.blogspot.com/2020/05/1-de-maio-oubarbarie-e-um-grande.html?m=1.
97
|
Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e
educador popular na Baixada Fluminense (RJ). Pesquisador no Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Filosofia, Política e Educação (NuFiPE/UFF).
98
|
“1º de maio em tempos de pandemia: a mutação do capitalismo e a degradação do trabalho.
Entrevistas com Ricardo Antunes, Clemente Ganz Lúcio e José Dari Krein”. Site Democracia e Mundo
do Trabalho em Debate, 04 maio 2020. Disponível em: http://www.dmtemdebate.com.br/1o-de-maio-
em-tempos-de-pandemia-a-mutacao-do-capitalismo-e-a-degradacao-do-trabalho-entrevistas-comricardo-antunes-clemente-lucio-e-jose-dari-krein/. Acesso em: 06 maio 2020.
99
|
“1º de maio em tempos de pandemia: a mutação do capitalismo e a degradação do trabalho.
Entrevistas com Ricardo Antunes, Clemente Ganz Lúcio e José Dari Krein”. Site Democracia e Mundo
do Trabalho em Debate, 04 maio 2020. Disponível em: http://www.dmtemdebate.com.br/1o-de-maio-
em-tempos-de-pandemia-a-mutacao-do-capitalismo-e-a-degradacao-do-trabalho-entrevistas-comricardo-antunes-clemente-lucio-e-jose-dari-krein/. Acesso em: 06 maio 2020.
Aspectos da Educação brasileira em meio
aos dilemas de um momento dramático
100
RODRIGO LIMA RIBEIRO GOMES
Primeiras palavras
Dura é a tarefa de escrever um texto breve sobre uma temática complexa,
multifacetada
calamidade
e
polêmica
sanitária,
crise
como
é
a
econômica
Educação,
e
em
instabilidade
um
contexto
política.
de
Contudo,
este tipo de intervenção se faz necessária para ampliar a massa crítica social
pertinente
e
necessária
ao
enfrentamento
dos
graves
problemas
do
momento. Por certo, diversos especialistas e políticos tem se manifestado
sobre
a
questão,
consistentes
e
podem
informações
ser
e
posicionamentos
encontrados
em
sites,
mídias
responsáveis
digitais
e
diversas
e
mesmo livros eletrônicos produzidos “a quente”.
A primeira constatação é a de que a Educação já estava sofrendo com o
subfinanciamento,
o
descaso,
quando
não
ataques
diretos
oriundos
do
próprio Ministério da Educação. Tal atitude não se restringe ao campo das
difamações. O orçamento global da Educação previsto para o ano de 2020 é
o
menor,
em
orçamentária
orçamento
Tecnológico
termos
de
do
2019
nominais,
foi
Conselho
(CNPq)
dos
menor
do
Nacional
previsto
para
últimos
que
de
de
cinco
nos
três
anos.
anos
Desenvolvimento
2020
é
menor
do
A
execução
anteriores.
Científico
que
o
de
O
e
2016,
enquanto a dotação orçamentária da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) para 2020 é menor do que a metade do
orçamento executado pelo órgão em 2015. Os recursos do Fundo Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico vem sendo contingenciados,
101
em valores que ultrapassam os 80%, desde 2016.
O
governo
Bolsonaro
segue
e
aprofunda
a
tendência
iniciada
em
2015,
mas introduz como novidade o desprezo aberto pelas instituições públicas
representativas da inteligência nacional, através de manifestações retóricas
de autoridades governamentais, a começar pelo próprio presidente e seus
ministros.
Por
certo,
além
dos
aspectos
ideológicos,
isso
parece
simplesmente refletir a estratégia geral do governo: uma política econômica
austera
numa
profundidade
extremamente
prejudicial
à
recuperação
econômica da debacle ocorrida em 2015 e 2016, com o intuito “ingênuo” de
102
tornar o Brasil atrativo ao investimento de capital externo.
Contudo, as condições gerais do país (queda massiva da renda e elevada
informalização
do
trabalho,
endividamento
das
empresas
elevadíssimos
à
compreensão
para
os
das
produção,
bases
investimentos,
ampliação
de
dessa
desemprego
e
das
famílias,
crença
na
suposta
aqueles
instalada,
de
emprego
e
altos
financiamento
desindustrialização)
sobretudo
capacidade
elevado,
níveis
com
tornam
renda.
prazo
juros
difícil
“atratividade”
longo
de
do
que
Algumas
a
Brasil
geram
pistas
se
apresentam: crescimentos elevados nos índices da Bolsa de Valores de São
Paulo e lucros recordes dos bancos, num contexto de baixo crescimento e de
enormes dificuldades para quase todos os setores da economia. E isto antes
da pandemia da COVID-19.
:
A Educação no governo Bolsonaro
Além
das
medidas
que
se
obediência ao mercado
encontram em consonância com as políticas
anteriores, o governo Bolsonaro tomou algumas iniciativas próprias, dentre
as
quais,
medidas
profissional
e
que
visam
tecnológica
ampliar
(“Novos
a
matrícula
Caminhos”),
a
nas
redes
ampliação
de
do
educação
acesso
à
internet por parte das escolas públicas rurais (“Educação Conectada”) e as
medidas
em
programa
Nacional
alfabetização,
de
de
incentivo
à
letramento
leitura
Alfabetização).
ou
“literacia”
doméstica
Embora
as
para
medidas
(“Conta
crianças,
relativas
pra
e
ao
a
mim”,
Política
letramento
tenham polêmicas próprias e algumas críticas quanto à descontinuidade em
relação
às
103
ações
anteriores,
parece-me
que
as
políticas
que
refletem a concepção do atual governo podem ser encontradas no
melhor
Future-se
e no Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares.
O
Future-se
já
passou
por
duas
revisões,
em
razão
dos
diversos
questionamentos aos quais foi submetido, e a última versão foi apresentada
na
forma
de
Projeto
Ministro-Chefe
Consulta
também
da
Pública
de
Casa
aberta
apresentou
Lei,
mediante
Civil,
entre
Onyx
01
problemas
e
do
Despacho
Lorenzoni,
24
de
janeiro
ponto
de
assinado
tendo
de
vista
pelo
em
2020.
vista
Esta
jurídico
e
então
uma
consulta
foi
alvo
de
questionamento judicial, que ainda não teve desfecho (GIOLO, 2020, p. 86-
104.
87)
Embora
contenha
princípios
da
tecnológico
Ainda
que
sociedade
causou
significativos
proposta
e
inovação”,
tais
civil,
muita
Universidades
original,
modo
sejam
como
controvérsia,
e
quais
sejam:
Institutos
a
o
amplamente
Future-se
começar
Federais
e
Projeto
mantém
os
desenvolvimento
“internacionalização”.
aceitos
pretende
pelo
por
o
“pesquisa,
“empreendedorismo”
princípios
o
acréscimos,
por
parcelas
colocá-los
manejo
do
Organizações
em
prática
orçamento
Sociais
da
das
(GIOLO,
2020, p. 35-36).
Nas
diversas
autonomia
das
versões
do
Instituições
Future-se
Federais
manifestam-se,
de
Ensino
sob
Superior
o
lema
(IFES),
da
uma
intenção oposta: “afastar as IFES da dependência do orçamento público, ou
melhor,
de
desobrigar
o
erário
para
com
o
financiamento
integral
das
instituições” (GIOLO, 2020, p. 40). Em um contexto de vigência da Emenda
Constitucional 95, de 2016, crescem os temores na comunidade acadêmica
de que o orçamento das IFES seja cada vez mais asfixiado, submetendo a
orçamentação
das
Universidades
e
Institutos
Federais
ao
financiamento
empresarial, sujeitando as atividades acadêmicas aos interesses privados. A
Future-se
última versão do
bolsas
da
CAPES
para
fala abertamente em concessão preferencial das
instituições
e
pesquisadores
que
aderirem
ao
universitária
pelo
aspecto
do
programa.
Além
das
restrições
financiamento,
degradantes,
de
as
à
autonomia
posições
autoridades
públicas,
do
governo
algumas
federal
verdadeiramente
sobre
a
comunidade
de
docentes e pesquisadores, levantam preocupações em relação às garantias a
liberdade de pensamento e de pesquisa, uma vez que o projeto demonstraria
“uma tentativa de aparelhamento autoritário com fins, além dos declarados,
de expurgo ideológico” (GIOLO, 2020, p. 28). Esta também é a preocupação
de Leher, que situa o
Future-se
numa estratégia de “guerra cultural” a favor
do que chama de “ultraneoliberalismo”, cuja vertente pedagógica trabalha
com
a
perspectiva
refuncionalização
utilitaristas,
de
das
“escolas
105
charter,
universidades
permanentemente
como
calibradas
uso
de
106
vouchers
‘organizações’
pelos
não
influxos
do
e
gratuitas
a
e
‘mercado’”
(LEHER, 2020, p. 108).
Assim
sendo,
o
Future-se
teria
uma
dupla
característica:
submeter
as
instituições de ensino, pesquisa e extensão aos interesses de mercado, com
a perda de controle sobre seus orçamentos — que passariam a ser geridos
por Organizações Sociais, a partir de contratos individuais chancelados pelo
Ministério da Educação; e conformar as subjetividades a um novo consenso
condizente
com
competitivo.
A
as
necessidades
consequência
do
projeto,
almejada
baseadas
pela
“guerra
no
individualismo
cultural”
seria
o
abandono da “herança do Iluminismo e do uso autônomo e crítico da razão”
(LEHER, 2020, p. 108).
Neste
mesmo
Cívico-Militares,
contexto
que
se
insere
procuram,
o
Programa
conforme
o
Nacional
interesse
de
das
entes
Escolas
federados
em consonância com a ideia, fazer uso de policiais militares e militares da
reserva das três Forças Armadas no “auxílio” às atividades pedagógicas e de
gestão em escolas públicas que vivenciem condições de “vulnerabilidade”.
Como que desconsiderando a competência dos profissionais da Educação, o
programa objetiva à “promoção de atividades com vistas à difusão de valores
humanos
e
cívicos
comportamentos
cidadão
em
Bolsonaro
e
para
atitudes
ambiente
planeja
estimular
do
escolar
aluno
e
externo
implementar
216
o
desenvolvimento
a
à
sua
sala
escolas
formação
de
de
bons
integral
107
aula”.
O
“cívico-militares”
como
governo
até
2023,
sendo 54 em 2020, ao custo de R$ 54 milhões, ou seja, um milhão por escola.
Um dos argumentos mais comuns em relação à defesa das escolas cívico
militares é a tomada como referência das escolas militares do Ministério da
Defesa,
nas
quais
um
aluno
custa,
108
aluno de escola pública regular,
em
média,
três
vezes
mais
do
que
um
ou nas próprias escolas e academias de
formação militar. No caso do Programa do governo, propõe-se atingir um
número
relativamente
pequeno
funções
específicas
formação
de
de
alunos,
com
desviando
custos
militares
adicionais,
de
suas
submetendo
os
profissionais da área à perda de sua autonomia. O caráter universal da escola
pública é perdido em prol de um modelo escolar seletivo na entrada e na
109
permanência dos alunos, portanto, excludente.
19
A Educação no contexto da pandemia da COVID-
De
acordo
Educação,
a
com
Ciência
dados
e
a
da
Organização
Cultura
das
(UNESCO),
Nações
1,198,530,172
Unidas
para
estudantes
a
são
afetados pela suspensão das atividades escolares, representando 68.5% do
total de estudantes matriculados no mundo, com 153 países interrompendo
a
totalidade
das
atividades,
em
22
de
maio
de
2020.
Em
sua
maioria,
os
demais países encontram-se em estágio de retomada parcial, e apenas uns
poucos reabriram completamente, como resultado do sucesso no controle
da disseminação da COVID-19, ou nem fecharam — Nova Zelândia, Vietnam
e Noruega, para o primeiro caso, e Nicarágua, Belarus e Turcomenistão, para
110
o segundo.
Neste
contexto,
as
condições
para
as
crianças
e
adolescentes
que
enfrentam condições de vulnerabilidades se agravam, seja para aqueles que
estão em situação de rua, que sofreram rompimentos familiares e vivem em
abrigos oficiais, aqueles que estão sujeitos à violência de adultos durante a
quarenta,
ou
refeições
principais
adolescentes,
que
a
simplesmente
(SILVA;
situação
tem
na
escola
OLIVEIRA,
educativa
já
é
o
2020).
espaço
Para
extremamente
onde
estas
difícil,
faz
suas
crianças
e
tornando-se
inviável durante a pandemia. “A ausência de interação entre estudantes e
professores
muitas
rompe
semanas,
escolas
o
não
reabrirem.
processo
será
de
possível
Também
se
aprendizagem
recuperar
eleva
o
o
risco
e
se
tempo
de
a
pandemia
perdido
aumentar
durar
quando
as
taxas
as
de
abandono escolar, especialmente entre os alunos de famílias em situação de
111
alta vulnerabilidade”.
Somadas à necessidade de suspenção das atividades escolares, temos as
incertezas em relação às condições de retorno à “normalidade” no Brasil e as
dúvidas ainda maiores em relação ao que será o “novo normal”, uma vez que,
112
em nosso país, a epidemia parece descontrolada.
modalidade
de
ensino
ganha
relevo
e
parece
Em meio ao caos, uma
obter
ainda
mais
espaço:
o
Ensino à Distância (EAD).
Contudo,
a
modalidade
EAD
está
longe
de
ser
considerada
uma
unanimidade entre os profissionais da educação, seja no que diz respeito ao
seu
uso
ou
não,
seja
em
relação
aos
graus
de
utilização
da
ferramenta.
Mesmo numa situação como a chinesa, em que o governo central adotou um
esforço nacional de Ensino à distância, intitulado “Suspender as aulas sem
parar
o
aprendizado”,
a
iniciativa
não
ocorreu
sem
dificuldades
—
que
devem ser mais ou menos universais, apesar das dimensões continentais do
território
especial
e
da
população
considerando-se
chinesa.
Problemas
desigualdades
de
regionais
infraestrutura
—,
—
preparação
em
dos
docentes,
seleção
de
conteúdos
e
métodos
de
ensino
mais
adequados,
e
adoção de rotinas de estudo e aprendizado à distância — tanto para alunos
quanto para os professores (ZHANG et al., 2020).
Apesar das dificuldades, a implementação do EAD mostra-se atrativa aos
setores privado e público, na medida em que a custo-aluno de um
e-learning
individualizado pode ser três vezes mais barato do que do ensino presencial
convencional. Esta atratividade levou à iniciativas de estudos, na Ucrânia,
com o intuito de testar possibilidades de implementação de “aprendizado à
distância”, de modo sistemático, como política de governo, desde meados
da década de 2000. Contudo, as medidas de EAD precisaram ser colocadas
em prática, efetivamente, depois da decretação de quarentena pelo governo
central ucraniano a partir de 11 de março de 2020, como forma de combate à
disseminação da COVID-19. E esta realidade demonstrou um conjunto de
possibilidades de aprendizado, na medida em que os estudantes possuem
mais tempo para se dedicar, de acordo com suas próprias iniciativas, aos
estudos,
mas
relacionadas
somada,
também
à
demonstrou
preparação
por
exemplo,
distanciamento
social
do
sistema
aos
e
uma
de
série
ensino
problemas
do
receio
da
de
dificuldades
de
dar
psicológicos
doença
conta
técnicas
da
tarefa,
decorrentes
(NENKO;
do
KYBALNA;
SNISARENKO, 2020).
Palavras finais
O
panorama
esboçado
acima
constitui
um
pequeno
apanhado
de
questões que nos parecem prementes para a compreensão das relações de
forças
que
angústias
prepararam
abertas
prognóstico
diante
despropositado
aceleração
pelo
do
de
em
tempo
o
momento
advento
uma
face
da
situação
das
histórico
atual,
pandemia
com
profundas
que
somado
um
tipo
a
da
nossa
a
um
COVID-19.
parece
instabilidades
de
crise
conjunto
como
Qualquer
inteiramente
abertas
a
de
que
pela
estamos
vivendo
provoca.
O
acompanhamento
diário
do
noticiário,
que
a
cada
momento parece apontar para um tipo de desfecho radical diferente, só faz
aumentar
a
angústia
diante
dos
diversos
níveis
de
possibilidades
de
encaminhamentos terríveis.
Contudo,
setores
e
a
pandemia
indivíduos
também
importantes
está,
a
pelo
drama
repensarem
que
suas
impõe,
forçando
convicções,
fazendo
ressurgir nos discursos políticos certa consciência acerca da importância da
garantia de direitos universais poder público, como saúde e educação. Cabe
a nós que defendemos a garantia e a expansão desses direitos universais a
insistência
para
que
aquela
consciência
permaneça
na
ordem
do
dia
em
nosso país, mantendo a mobilização permanente contra os retrocessos que
se apresentam em nossa esfera política.
REFERÊNCIAS
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Laura.
Valsa
brasileira:
do
boom
ao
econômico.
caos
São
Paulo:
Todavia, 2018.
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Jaime;
autonomia
LEHER,
das
Roberto;
instituições
SGUISSARDI,
federais
de
Valdemar.
educação
Future-se:
superior
e
sua
ataque
sujeição
à
ao
mercado. São Carlos, SP: Diagrama Editorial, 2020.
GIOLO,
Jaime.
SGUISSARDI,
O
Future-se
sem
futuro.
In:
GIOLO,
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LEHER,
Roberto;
Valdemar. Future-se: ataque à autonomia das instituições federais
de educação superior e sua sujeição ao mercado. São Carlos, SP: Diagrama
Editorial, 2020.
KRAWCZYK,
Nora.
destruição
da
Brasil-Estados
escola
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Unidos.
In:
A
trama
KRAWCZYK,
de
Nora
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(Org.)
ocultas
Escola
na
pública:
tempos
difíceis,
mas
não
impossíveis.
Campinas,
SP:
FE/UNICAMP;
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LEHER,
Roberto. Guerra cultural e Universidade Pública: o Future-se é parte
da
estratégia
SGUISSARDI,
de
silenciamento.
In:
GIOLO,
Jaime;
LEHER,
Roberto;
Valdemar. Future-se: ataque à autonomia das instituições federais
de educação superior e sua sujeição ao mercado. São Carlos, SP: Diagrama
Editorial, 2020.
NENKO,
Yuliia;
KYBALNA,
Nelia;
SNISARENKO,
Yana.
The
COVID-19
Distance
Learning: Insight from Ukrainian students. Revista Brasileira de Educação
do Campo, Tocantinópolis, v. 5, p. 1-19, 2020.
PORTALES,
Jaime;
HEILIG,
Julian
Vasquez.
Understanding
How
Universal
Vouchers Have Impacted Urban School Districts’ Enrollment in Chile.
Education policy analysis archives, Arizona, v. 22, n. 72, jul. 21st, 2014.
ZHANG,
Wunong
China’s
et.
al.
Education
Suspending
Emergency
Classes
Without
Management
Stopping
Policy
in
the
Learning:
COVID-19
Outbreak. Journal of Risk Financial Management, v.13, n.5, 55, p. 1-6, 2020.
NOTAS
|
100
Professor
Adjunto
do
Instituto
de
Educação
de
Angra
dos
Reis
da
Universidade
Federal
Fluminense (UFF). Pesquisador no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação
(NuFiPE/UFF). Membro da Conselho Nacional da International Gramsci Society Brasil (IGS-Brasil)
|
101
Fontes:
http://www.portaltransparencia.gov.br/funcoes/12-educacao?ano=2020;
http://www.portaltransparencia.gov.br/orgaos/20501?ano=2020;
https://www.capes.gov.br/orcamento-evolucao-em-reais;
http://www.finep.gov.br/a-finep-
externo/fndct/lei-orcamentaria-anual. Acesso em: 20 maio 2020.
102
|
Para uma análise concisa e esclarecedora acerca do contexto da crise e da opção equivocada
visando sua solução, ver Carvalho (2018). Embora o texto preceda à eleição de Bolsonaro, fica claro
que a política atual segue de perto a orientação do “Salto para ao Futuro”, de Temer.
|
103
Disponível
em:
https://novaescola.org.br/conteudo/18313/pna-o-que-o-mec-pensa-sobre-
alfabetizacao. Acesso em: 20 maio 2020.
|
104
No dia 27 de maio de 2020 o governo encaminhou a última versão do projeto ao Congresso
Nacional, porém não podemos analisar o teor do documento já que não foi disponibilizado ao público.
Disponível
em:
https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/05/27/projeto-de-lei-do-future-se-e-
encaminhado-ao-congresso-nacional.ghtml. Acesso em: 28 maio 2020.
|
105
Para
uma
avaliação
crítica
desse
modelo
de
privatizar
a
gestão
das
escolas
públicas,
ver
Krawczyk (2018, p. 59-72).
|
106
Dinheiro dado pelo governo aos pais para que estes matriculem seus filhos em uma escola
privada
de
seu
interesse.
Para
uma
demonstração
de
potencial
gerador
de
desigualdades
deste
modelo na realidade chilena, ver Portales e Heilig (2014): a capacidade de escolha parental é pouco
efetiva para as famílias mais pobres.
107
|
Decreto nº 10.004, de 5 de setembro de 2019, art. 2º, inciso V.
|
108
Disponível
em:
https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,estudantes-de-colegio-
militar-custam-tres-vezes-mais-ao-pais,70002473230. Acesso em: 20 maio 2020.
109
de
|
Para um bom apanhado de considerações críticas de diversos especialistas da área da Educação,
diferentes
matizes
teóricos,
consultar:
https://novaescola.org.br/conteudo/18084/mec-erra-ao-
priorizar-escolas-civico-militares-dizem-especialistas-em-educacao. Acesso em: 20 maio 2020.
110
|
111
|
Disponível em: https://pt.unesco.org/covid19/educationresponse. Acesso em: 22 maio 2020.
Disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-a-experiencia-internacional-com-os-impactos-
da-covid-19-na-educacao/. Acesso em: 20 maio 2020.
112
|
Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,imperial-college-ve-transmissao-
do-coronavirus-no-brasil-fora-de-controle-e-estima-mortes,70003311663. Acesso em: 22 maio 2020.
19:
A crise provocada pela COVID-
antigos problemas em um novo cenário
113
ANDREIA CLAPP SALVADOR
114
RAFAEL SOARES GONÇALVES
115
VALÉRIA PEREIRA BASTOS
O
novo
coronavírus
trouxe
impactos
profundos
em
nossa
sociedade.
Apesar dos esforços iniciais de combate à pandemia, a falta de articulação
política
federal
entre
vêm
os
entes
forjando
federativos
uma
crise
e
a
criminosa
epidemiológica
negligência
sem
do
governo
precedentes
e
com
retornos ainda infelizmente incertos. Diante da necessidade de isolamento
social,
avizinha-se
também
uma
enorme
crise
social
e
econômica.
O
presente ensaio pretende abordar os impactos de tais crises a partir de três
casos
de
pesquisa
Social”
análise,
que
“Questões
do
dialogam
diretamente
Socioambientais,
Departamento
de
Serviço
com
Urbanas
Social
e
da
os
temas
Formas
da
de
Pontifícia
linha
de
Resistência
Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da qual pertencem os autores do
presente artigo.
CASO
O
1|
Catadores e catadoras de Jardim Gramacho
atual
agudização
cenário
das
trabalhadores
e
de
pandemia
manifestações
trabalhadoras
da
da
COVID-19
questão
informais
social
no
evidencia
expressa
Brasil,
visto
o
processo
por
que
milhões
são
de
de
sujeitos
desprovidos de direitos trabalhistas. Essa situação já vinha sendo agravada
pelas sucessivas perdas no acesso aos direitos sociais, precarizando cada vez
mais as atividades desenvolvidas nos diversos setores informais. No caso
desse
item,
pretende-se,
socioambiental,
materiais
em
brevemente,
especial
recicláveis,
na
ao
dar
trabalho
atividade
de
de
coleta
relevância
catadores
seletiva
dos
e
ao
cenário
catadoras
resíduos
de
sólidos
urbanos.
Neste
sentido,
na
busca
de
identificar
os
impactos
decorrentes
da
pandemia nas atividades de coleta seletiva realizadas pelas cooperativas de
catadores
ações
e
têm
catadoras
sido
necessidades
resíduos
se
de
materiais
realizadas
básicas
desse
constitui
pelo
recicláveis,
poder
segmento.
como
um
público
O
risco
buscou-se
no
trabalho
sentido
de
importante
verificar
de
coleta
de
e
quais
suprir
as
triagem
de
contágio
do
novo
coronavírus aos catadores e catadoras que participam da coleta seletiva e da
cadeia da reciclagem, sobretudo na atividade de triagem. A contaminação
não
ocorre
somente
pelo
ar,
mas
também
por
manuseio
de
objetos,
principalmente de resíduos sólidos urbanos, exigindo, dessa forma, novas
alternativas de tratamento para a prevenção e cuidados necessários à saúde
desses trabalhadores.
Inicialmente, identificou-se — através de pesquisa realizada no site do
Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), órgão interveniente
116
no Acordo Setorial de Embalagens em Geral, celebrado em 2015
no
período
de
23
de
março
a
24
de
abril
de
2020
foi
— que
realizado
um
levantamento que atingiu 408 municípios em todo o território nacional. O
objetivo de tal levantamento foi identificar como o cenário de trabalho dos
catadores
e
catadoras
vem
sendo
impactado
pela
pandemia.
Foi
possível
verificar que 63,4% das cooperativas estão prejudicadas com a paralisação
total
e/ou
urbanos,
parcial
pois
destinado
aos
o
das
atividades
material
aterros
Resíduos (CTR).
de
coleta
potencialmente
sanitários
e/ou
e
triagem
reciclável
aos
de
resíduos
recolhido
Centros
de
sólidos
está
sendo
Tratamento
de
Neste
sentido,
catadoras
foram
é
importante
contemplados
ressaltar
pelo
que
auxílio
nem
todos
emergencial
os
catadores
e
disponibilizado
pelo governo federal no valor de R$ 600,00, uns pelo comprometimento nos
documentos,
outros
cadastramento,
documentos
de
pela
dentre
dificuldade
outras
identificação.
de
dificuldades,
No
entanto,
acesso
à
inclusive
sobretudo
internet
de
nas
para
ausência
regiões
de
menos
assistidas pelo poder público, a mobilização social tem ocupado um lugar de
destaque, através da doação de cestas básicas e material de higiene pessoal e
vem
atendendo
Movimento
arrecadando
de
forma
emergencial
Nacional
de
recursos
por
as
Catadores
meio
da
cooperativas
de
Materiais
Campanha
de
de
reciclagem.
Recicláveis
O
vem
Solidariedade
aos
Catadores do Brasil e disponibiliza orientação a respeito do cadastramento
117.
e obtenção do benefício em seu site
Cabe
ressaltar
demonstrada
a
solidariedade
a
relevância
partir
ativa
dos
que
do
nível
movimentos
vem
de
resistência
populares
promovendo
e
dessa
sociais
inúmeras
população,
pelo
ações
de
viés
da
socorro.
Embora saibamos que não substitui a política pública, mas supre em parte a
necessidade
daqueles
que,
por
questões
alheias
às
suas
vontades,
não
se
encontram em condições de supri-las a partir do trabalho.
Ressalta-se especial atenção ao processo de mobilização que vem sendo
realizado
para
atender
demandas
da
população
do
sub-bairro
de
Jardim
Gramacho, território estigmatizado por ter abrigado, por mais de 30 anos, o
maior lixão da América Latina (BASTOS, 2018), e que permanece, até os dias
atuais,
como
uma
zona
de
sacrifício
(ACSERALD,
2004).
A
rede
de
solidariedade ativa vem ganhando dimensão expressiva e atendendo, quase
em sua totalidade, as demandas locais através de inúmeras campanhas. Ao
mesmo tempo, cabe registrar que, se há uma efetiva manifestação advinda
da
sociedade
civil,
o
poder
público
segue
alheio
ao
atendimento
da
população, pois a cada dia vem precarizando o acesso aos direitos oriundos
tanto da assistência social como de diversas políticas públicas necessárias
ao atendimento da população.
CASO
2|
Os pré-vestibulares populares
A sociedade brasileira é assolada pela desigualdade social, condição que
restringe o acesso da população pobre, negra, indígena, mulheres e o grupo
LGBTQ+, aos direitos sociais como educação, trabalho, saúde e moradia. O
acesso
ao
ensino
basta
conhecer
superior
alguns
compreendermos
o
é
notadamente
dados
tamanho
marcado
indicativos
e
a
da
profundidade
pelas
desigualdades
questão
da
nossa
racial
e
para
condição.
O
relatório das desigualdades de raça, gênero e classe do Grupo de Estudos
118,
Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEEMA)
com base em dados
da
119 de 2011 a 2015, constatou que 19% da população branca concluiu o
PNAD
ensino superior, enquanto entre pretos e pardos este percentual é de 7%. A
média de anos de estudo da população branca é de 10 anos e a da população
preta e parda é de oito anos; a renda familiar per capita dos brancos foi 80%
superior
a
de
representados
representados
pretos
nas
no
e
pardos
ocupações
trabalho
no
período.
intelectuais
manual,
e
Os
os
brancos
não
demonstrando
a
são
super-
brancos
super-
concentração
da
120.
divisão racial da educação e do trabalho
Ao
longo
dos
últimos
anos
houve
um
significativo
avanço
no
que
diz
respeito à democratização do acesso ao ensino superior brasileiro, embora
ainda
tenhamos
um
longo
caminho
a
percorrer.
A
partir
da
luta
do
movimento negro, a adoção de políticas de ação afirmativa e a atuação dos
pré-vestibulares
classe
popular,
populares,
pretos,
o
acesso
pardos
e
de
estudantes
indígenas
ao
de
ensino
escola
superior
pública,
da
ampliou.
É
especialmente na década de 1990 que o Movimento Negro e o Movimento
Social
de
(PVNC),
Educação
Popular,
intensificaram
a
pelo
luta
em
Pré-Vestibular
prol
do
acesso
para
de
Negros
e
estudantes
Carentes
negras
e
negros às universidades brasileiras e passaram a exigir a implementação de
ações afirmativas. Esta luta inspirou pessoas e motivou a criação de diversos
pré-vestibulares
populares
Afrodescendentes
e
como:
Carentes),
Educafro
Rede
(Educação
Emancipa
e
Cidadania
(Rede
de
Emancipa
Movimento Social de Educação Popular), PreparaNEM, Pré-vestibular Ser
Cidadão,
Pré-vestibular
Popular
Bonsucesso,
PVNC
Vila
Operária,
entre
outros mais (CLAPP, 2020).
Ainda
hoje
há
um
número
significativo
de
pré-vestibulares
populares,
também chamados de comunitários ou sociais. Um recente levantamento
feito
nas
plataformas
Google
e
Facebook,
a
respeito
dos
pré-vestibulares
populares, identificou o funcionamento de 97 núcleos no município do Rio
de
Janeiro
e
46
121.
Fluminense
periféricas
e
núcleos
Estes
favelas
e
espalhados
pré-vestibulares
tem
uma
em
11
municípios
populares
proposta
de
da
funcionam
formação
de
Baixada
nas
áreas
estudantes
em
condição de desigualdade social, para inserção nas universidades públicas,
comunitárias
e
privadas,
e
buscam,
de
forma
gratuita
e
com
trabalho
voluntário, democratizar o acesso ao ensino superior.
As consequências da pandemia da COVID-19, bem como do isolamento
social para frear o contágio, são muitas e diversas, aprofundando situações
de
vulnerabilidade
social
e
evidenciando
as
condições
sociais
desiguais.
Neste contexto, os pré-vestibulares populares têm enfrentado dificuldades
e
se
encontram
vestibulares
atividades
impossibilitados
estão
ou
trabalhando
voltaram
seus
de
de
funcionar
forma
esforços
plenamente.
remota
para
o
e
outros
combate
à
Alguns
pré-
cancelaram
pandemia.
as
Felipe
Guimaraes de Oliveira Gomes, coordenador do Pré-Vestibular Comunitário
Bonsucesso, e Juliana Marinho, coordenadora do PVNC Vila Operária em
Nova Iguaçu, falam sobre as aulas, o acesso precário às redes da internet,
apontam
as
preocupação
dificuldades
com
a
para
evasão
voluntário do professor:
e
manter
também
o
com
interesse
a
do
manutenção
estudante,
do
a
trabalho
Trabalhamos
com
alunos
da
classe
popular
e
que
não
tem
acesso
à
internet.
Com
a
pandemia está muito difícil, porque não podemos cobrar tanto, mesmo disponibilizando
o material online. A maioria dos alunos não tem computador e não tem internet em casa.
São famílias numerosas e não tem um espaço adequado para estudar. [...] Esta situação
vem
dificultando
estudar
e
muito
muitos
preocupação
hoje
o
trabalho
dos
moradores
dos
alunos
é
da
da
gente,
Baixada
como
se
porque
muitos
Fluminense
manter
e
não
alunos
ficaram
como
não
conseguem
desempregados.
estudar
para
o
A
ENEM.
[
JULIANA MARINHO, PVNC VILA OPERÁRIA ]
Em tempos de pandemia o Pré-Vestibular Comunitário Bonsucesso foi muito impactado
e
acabou
precisando
ser
reinventado
e
se
ressignificar
para
podermos
continuar
o
trabalho. [...] Assumimos uma posição de aulas online via Google Class, que nos ajuda a
postar
materiais,
fazer
links
com
outras
redes
sociais
e
que
possa
chegar
ao
aluno.
[
FELIPE GOMES, PRÉ-VESTIBULAR COMUNITÁRIO BONSUCESSO ]
A premência para se “reinventar e ressignificar” em tempos de pandemia
fez com que o Pré-Vestibular Comunitário Bonsucesso priorizasse uma ação
no campo do “acolhimento” e “sensibilização” dos alunos e professores:
Iniciamos
com
uma
sensibilização,
conscientizando
sobre
as
possibilidades
de
aproveitarem a oportunidade e manterem uma rotina de estudo. A sensibilização inicial
foi
algo
que
colaborou
para
termos
êxito
[...].
Buscamos
estreitar
os
laços
e,
nessa
dinâmica de sensibilização, estamos conseguindo que o aluno tenha fôlego em tempos de
pandemia. Isto não descarta as dificuldades, a gente respeita o processo de cada um, mas
não podemos tratar isto tudo com ausência e com silêncio e deixar que o caos se instaure.
[FELIPE GOMES, PRÉ-VESTIBULAR COMUNITÁRIO BONSUCESSO ]
Em
tempos
alternativas
de
doença,
encontradas
dor
para
e
intransigência,
a
conservação
Felipe
do
Gomes
trabalho
descreve
dos
pré-
vestibulares populares: “o que também faz com que o trabalho continue é a
empatia, é entender que todos estamos na mesma realidade, com as aflições
e angústias. [...] Tentamos criar uma rede de afetos”.
CASO
3|
Favelados do Rio de Janeiro
Apesar de a pandemia ter chegado ao país por pessoas vindas da Europa,
sobretudo da Itália, e ter infectado inicialmente bairros nobres da Zona Sul e
a Barra da Tijuca, rapidamente foi se compreendendo que a COVID-19 não
era “elitista” ou “democrática”. Muito pelo contrário, a doença rapidamente
começou a impactar populações mais pobres, sobretudo os moradores de
favelas do Rio de Janeiro.
Diante da ausência de uma vacina ou um medicamento realmente eficaz,
a
indicação
mais
difundida
no
mundo
no
combate
à
pandemia
é
o
isolamento social. Isso é muito mais complicado em áreas faveladas diante
da enorme densidade habitacional. Aliás, como manter isolados doentes em
moradias
forma,
onde
junto
inúmeras
com
o
pessoas
isolamento,
partilham
é
preciso
um
só
ambiente?
reforçar
Da
medidas
de
mesma
higiene,
sobretudo a lavagem periódica das mãos, objetos de uso cotidiano e mesmo
embalagens
simples
de
em
realidades
produtos.
áreas
com
cotidianas
Como
péssimo
de
manter
acesso
parcela
à
essas
agua?
importante
A
medidas
relativamente
pandemia
da
trouxe
população
à
tona
carioca,
que
ficavam invisibilizadas pela nossa hipocrisia habitual.
Além
disso,
profissionais
continuar
a
para
não
se
muitos
lhes
dos
moradores
permitem
locomover
para
atuar
de
trabalhar.
de
favelas,
forma
Aliás,
suas
remota
muitos
e
atividades
precisam
trabalham
em
atividades essenciais para que o isolamento do restante da população possa
se
realizar.
Para
muitos
desses
trabalhadores,
não
lhes
foram
oferecidas
condições adequadas de transporte, tampouco equipamentos de proteção
para trabalhar com segurança. As dificuldades se multiplicam, quando nos
damos
conta
que,
sem
escolas,
muitos
pais
não
tinham
onde
deixar
seus
filhos.
Essas são apenas pequenas situações, que começaram a contrastar com as
primeiras imagens da quarentena europeia, com as pessoas cantando nos
balcões
de
suas
casas.
Era
notório,
desde
o
início,
que
tal
abordagem
era
romantizada (mesmo para a realidade europeia) e completamente fora da
realidade das favelas. De antemão, era necessário retrabalhar a informação e
122.
fazer com que o combate ao novo coronavírus falasse “nossa língua”
trabalho
incansável
de
comunicadores
comunitários,
acadêmicos
O
e
lideranças
sociais
procurou
trazer
as
favelas
para
o
centro
do
debate,
forçando, inclusive, a grande mídia a alterar profundamente sua forma de
abordar a situação.
Se a resposta de estados e municípios foi relativamente rápida, a resposta
do governo federal foi catastrófica. Como um profeta do caos, o presidente
minimizou
a
doença
e,
sem
nenhuma
empatia,
vem
desdenhando
dos
impactados e mortos pela doença. Estabeleceu uma falsa dicotomia entre
vida
e
economia,
que,
no
fundo,
vem
provocando
milhares
e
milhares
de
mortes e reforçando de forma exponencial a crise econômica. Junto com a
falta
de
gestão
nenhuma
federal
coordenação
com
seus
nacional,
sucessivos
assistimos
ministros
da
estarrecidos
os
saúde
e
sem
colapsos
dos
sistemas públicos de saúde em cada estado. Os usuários do Sistema Único
de Saúde (SUS), muitos favelados, se veem com a angústia de não saberem
se terão leitos, remédios ou respiradouros se tiverem sintomas mais graves
da doença.
Diante
do
movimento
diversas
caos
instalado,
associativo
favelas,
de
adquirido
(GONÇALVES,
2015):
básicas,
higiene,
de
grande
favelas.
demonstrando
conhecimento
kits
a
de
lição
que
Iniciativas
não
foram
somente
de
instalação
em
justamente
do
manifestando
em
pontos
de
mas
contextos
comunicação,
de
se
é
solidariedade,
mobilização
iniciativas
fica
distribuição
água,
um
fino
de
crise
de
cestas
mapeamentos
de
doentes e estratégias de isolamento. Tal mobilização se apresenta de forma
muito diversa dependendo das favelas, mas apresenta uma lógica de rede,
onde parcerias de ideias e recursos circulam entre os grupos envolvidos.
Esperava-se, em tempos de epidemia, uma postura do Estado, em suas
diferentes
esferas,
necessários
de
reabilitação
dos
sobretudo
reflexão
da
forma
distinta.
no
A
emergencial,
inúmeros
rede
maior
bem
federal.
leitos
Da
ênfase
poderia
ter
abandonados
mesma
atendimento
em
forma,
básico,
hospitais
sido
nos
seria
com
o
de
campanha,
acompanhada
hospitais
muito
da
pela
cidade,
necessária
uma
acompanhamento
dos
moradores desde os primeiros sintomas, de forma a evitar a propagação do
contágio. A falta de testes e de maior investimento de pessoal e recursos no
atendimento
básico
subnotificação,
já
faz
que
os
com
que
poucos
tenhamos
testes
só
um
são
número
realizados
imenso
com
de
aqueles
enfermos graves, que chegaram a unidades hospitalares.
O mais impactante é que, em um contexto de pandemia, a população de
favelas ainda tenha que se preocupar com operações policiais, inclusive com
mortes de crianças e adolescentes. Ao sairmos dessa crise, seria importante
reconhecer
que
foi
a
mobilização
dessa
população
que
evitou
o
caos
completo. As iniciativas nas favelas assumiram responsabilidades diversas,
tanto
no
resposta
âmbito
mais
da
saúde
como
contextualizada
à
no
da
assistência,
pandemia.
Isso
e
permitiram
demonstra
a
uma
enorme
capacidade e potencial das favelas e seus moradores, destoando, mais uma
vez, das recorrentes representações negativas associadas a esses espaços.
Conclusão
Se os efeitos da crise provocada pelo novo coronavírus são devastadores,
observa-se
também
formas
importantes
de
mobilização
social.
Ainda
é
difícil realizar projeções para o futuro do país, mas espera-se que a presente
crise seja um grande marco na luta por novos projetos societários, distintos
da
sociedade
destruidora
de
pessoas
e
de
recursos
da
natureza
que
estávamos consentindo antes da pandemia.
REFERÊNCIAS
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Henri.
De
“bota-foras” e “zonas de sacrifício” — um panorama
dos conflitos ambientais no Estado do Rio de Janeiro. In:
ACSELRAD,
Henri
(Org.). Conflito social e meio ambiente no Estado do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2004.
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In:
Valéria Pereira, Jardim Gramacho: território extraordinário do lixo.
MAIA,
Rosemere
(Org.).
Rio
Revisto
de
suas
margens.
Rio
de
Janeiro:
Letra Capital, 2018.
CAMPOS,
Luiz;
FRANÇA,
Danilo;
de raça, gênero e classe,
2018.
n.
FERES JÚNIOR,
2,
Disponível
p.
1-18,
Rio
João. Relatório das desigualdades
de
em:
Janeiro:
GEEMA,
Iesp-Uerj,
http://gemaa.iesp.uerj.br/wp-
content/uploads/2017/08/Relato%CC%81rio_Corrigido-2.0.pdf.
Acesso
em: 18 maio 2020.
CLAPP,
Andréia.
O
papel
protagonista
do
Pré-Vestibular
para
Negros
e
Carentes (PVNC) nas políticas afirmativas — a experiência da educação
superior brasileira. Em Pauta, Rio de Janeiro, n. 45, v. 18, p. 211-223, 2020.
GONÇALVES,
Rafael Soares. “São as águas de março fechando o verão”: chuvas
e políticas urbanas nas favelas cariocas. Acervo, Rio de Janeiro, v.8, n.1,
p.98-119, 2015.
NOTAS
113
|
Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio).
114
|
Professor do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio).
115
|
Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio).
116
|
Política
Nacional
responsabilidade
de
Resíduos
Sólidos
–
PNRS/2010
compartilhada.
—
Implantação
da
Disponível
logística
reversa
e
em:
https://sinir.gov.br/images/sinir/Embalagens%20em%20Geral/Acordo_embalagens.pdf.
Acesso
em:
14 maio 2020.
|
117
Movimento
Nacional
de
Catadores
de
Materiais
Recicláveis.
Disponível
em:
http://www.mncr.org.br/. Acesso em: 14 maio 2020.
118
|
Núcleo de pesquisa com inscrição no CNPq e sede no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).
|
119
Pesquisa
Nacional
por
Amostra
de
Domicílio
(PNAD)
é
uma
pesquisa
feita
pelo
Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
120
|
Relatório das Desigualdades de Raça, Gênero e Classe – Grupo de Estudos Multidisciplinar da
Ação
Afirmativa
(GEMAA)
do
Iesp-Uerj
(2017).
Disponível
http://gemaa.iesp.uerj.br/relatorios/relatorio-das-desigualdades-gemaa-no-1/.
Acesso
em:
em:
18
maio
2020.
121
|
Os dados referentes aos pré-vestibulares populares do Rio de Janeiro fazem parte da pesquisa
“Análise
da
atuação
e
alcance
dos
Pré-vestibulares
populares
da
Região
Metropolitana
do
Rio
de
Janeiro. Um olhar sobre a democratização do acesso ao ensino superior”, desenvolvida no ano de
2020 sob coordenação de Andreia Clapp Salvador.
122
|
Esse foi o objetivo inicial do Movimento Seja Vivo, coordenado pelos professores Rafael Soares
Gonçalves (PUC-Rio) e Celso Sanchez (Unirio) e que congregou vários profissionais, lideranças e
moradores
de
favelas
para
levar
informação
de
qualidade
para
esses
https://www.facebook.com/SejaVivo-106051687710815/. Acesso em: 14 maio 2020.
espaços.
Ver:
:
Pandemia e crise capitalista
a situação das favelas
123
REGINALDO SCHEUERMANN COSTA
A pandemia como parte da crise capitalista internacional
Vivemos
em
dramáticos
segundo
meio
ligados
à
à
pandemia.
levantamento
estaduais
de
saúde,
incerteza
do
são
Até
portal
23.522
e
o
medo
o
momento
de
diante
jornalismo
mortes
e
dos
que
G1,
377.669
acontecimentos
termino
junto
às
infectados,
este
texto,
secretarias
enquanto
o
Ministério da Saúde anota 23.473 mortos e 374.898 infectados. O Brasil já
chega
à
triste
marca
de
segundo
país
com
o
maior
número
de
casos
124 Apresento algumas breves reflexões a respeito da condição
confirmados.
das
favelas
no
Brasil,
no
contexto
da
pandemia
da
COVID-19
e
da
crise
capitalista internacional, no intuito de refletir sobre a gravidade de nossa
conjuntura, mas também sobre o esboço de possíveis alternativas.
A crise capitalista internacional iniciada em 2007-2008, antes chamada,
ironicamente,
de
“marolinha”
pelo
então
presidente
Lula,
hoje
se
mostra
como mar revolto e de longa tempestade. De forma resumida, a crise atual
tem um histórico em que já se desenham, desde o início dos anos 1990, nos
seguintes
pontos:
Ampliação
da
promovendo
1.
Queda
vertiginosa
financeirização
a
da
supervalorização
da
taxa
economia
de
de
numa
empresas
e
lucros
pelo
escala
global
ampliação
mundo;
e
da
2.
aguda,
bolha
especulativa; 3. Aumento dramático do endividamento das famílias, devido
às
políticas
de
arrocho
salarial,
depreciação
de
direitos
trabalhistas,
enfraquecimento dos sindicatos, acarretando queda sensível do consumo; 4.
Diminuição da demanda comercial, tornando as balanças de comércio dos
países
essas
tendencialmente
características
negativas,
ganham
desaceleradas
proporção
de
ou
estagnadas.
calamidade
desde
Todas
2007-2008,
mas já podem ser observadas, em maior ou menor grau, nas crises dos anos
1990.
Segundo
economistas
de
diversas
orientações
teóricas,
a
crise
que
ora
enfrentamos possui uma profundidade inédita, ultrapassando a capacidade
destrutiva da crise de 1929, em função dos seus efeitos internacionalizados e
da sua longa duração. A estagnação da economia mundial, portanto, já era
notória
antes
da
pandemia,
assim
como
a
perspectiva
de
um
quadro
recessivo. O último evento eloquente nesse sentido foi a queda recente do
preço do petróleo, de U$53, em fevereiro, para U$ 28, no começo de abril.
Mas e a pandemia era esperada?
Em setembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) relatou o
resultado da pesquisa do Grupo de Vigilância Mundial sobre a Preparação:
“Um
mundo
em
emergências
perigo:
informe
sanitárias”.
Este
anual
sobre
documento
preparação
apresenta
os
mundial
para
pontos-chave
as
que
armariam uma bomba-relógio na saúde pública do planeta: “enfrentamos a
ameaça
fulminante,
sumamente
mortífera,
provocada
por
um
patógeno
respiratório que poderia matar de 50 a 80 milhões de pessoas e liquidar 5%
da
economia
catástrofe
mundial.
e
Uma
pandemia
desencadearia
caos,
mundial
dessa
instabilidade
escala
e
seria
uma
insegurança
125
generalizados.”
Diante
dos
avisos
da
comunidade
científica,
a
orientação
foi
oposta.
A
maioria dos países capitalistas continuou o receituário neoliberal: expansão
do setor privado da saúde sem compromisso com o bem-estar público, corte
de verba na área de pesquisa científica, industrialismo na agricultura com
criadouros
genética
gigantescos
com
do
legislação
método
ambiental
de
produção
insuficiente,
intensiva,
formando
engenharia
o
contexto
biológico ideal para a chamada transmissão zoonótica, aquela que ocorre de
animais para os seres humanos. Num sistema mundial em que o fluxo de
pessoas
é
completamente
internacionalizado
e
massivo,
com
normas
de
controle sanitário falhas, a possibilidade de contaminação também se torna
global, e eis que temos todos os elementos para uma pandemia. Tragédia
anunciada!
Em tempos obscuros em que ganha força no mundo uma ultradireita se
legitimando no negacionismo científico, demonizando a ciência, os centros
de
pesquisa,
atacando
os
surpreender
apesar
de
consensos
que
no
relocalizou
rapidez,
universidades,
pesquisadores,
científicos
muitos
primeiro
governos
momento
rápido
sua
política
enquanto
que
o
e
mais
professores
estáveis
e
a
subestimassem
ter
resistido
conseguiu
negacionismo
crítica,
a
em
estudantes,
não
era
pandemia.
assumir
debelar
convicto
e
nos
o
vírus
a
A
se
China,
epidemia,
com
Estados
de
relativa
Unidos,
no
Reino Unido e no Brasil tiveram um resultado catastrófico na contenção das
mortes
e
do
número
de
infectados.
Trump
foi
avisado
pelas
agências
de
inteligência e pela comunidade científica de seu país, ainda em janeiro, mas
nada
126
fez.
Na
verdade,
fez
o
oposto
do
senso
científico:
idealizou
um
remédio sem estudos conclusivos, a cloroquina, e ponderou sobre injeções
de desinfetante numa coletiva de imprensa. Logo, mesmo sendo o país mais
poderoso
do
mundo,
rapidamente
angariou
a
posição
de
número
um
de
infectados no mundo, pois, as falas desastrosas de Trump, a não adesão ao
isolamento
social
e
o
custo
elevado
dos
serviços
de
saúde
no
país
foram
elementos que inviabilizaram o atendimento universalista aos infectados.
Países
com
uma
infraestrutura
de
Estado
providência
mais
forte
conseguiram resultados mais satisfatórios na contenção de danos causados
pelo vírus e suas repercussões sobre a economia. A Suécia e a Dinamarca,
por exemplo, garantiram 90% do salário dos seus trabalhadores, enquanto a
Alemanha garantiu 67%. A Alemanha, que possui a maior taxa de leitos de
UTI por habitante da Europa (3 vezes o da França, Itália e Espanha; 4 vezes o
do
Reino
Unido)
teve
um
resultado
melhor
quando
comparado
aos
seus
vizinhos
Unido,
europeus,
por
sistema
de
bloqueio
detentores
exemplo,
saúde
foi
vítima
público.
econômico
de
Na
de
políticas
sua
política
Venezuela,
estadunidense
sociais
e
de
mesmo
da
mais
tímidas.
desestruturação
diante
queda
de
abrupta
um
do
Reino
de
seu
rigoroso
preço
do
petróleo, ocasionando o agravamento da crise econômica no país, a adoção
do
isolamento
organizados
social,
nas
espalhamento
tendo
ampla
comunas,
da
foi
COVID-19,
participação
importante
seja
dos
para
realizando
trabalhadores
conter
ações
de
o
auto-
ritmo
desinfecção
de
nos
espaços públicos ou fabricando máscaras.
O agravamento da crise econômica diante da pandemia é atestado pelo
Institute of International Finance, que vem gradativamente revendo as suas
previsões referentes ao crescimento econômico mundial. A última revisão
baixou de 2,6% para -1,5%. Para a zona do Euro, baixou-se de 1,0% para -4,7;
para os Estados Unidos, de 2%, para -2,8%. O Goldman Sachs prevê uma
queda no Produto Interno Bruto (PIB) estadunidense de 3,1%. Segundo a
OCDE,
menos,
o
isolamento
-2%.
O
social
Fundo
poderia
Monetário
impactar
o
PIB
Internacional
dos
países
(FMI),
em,
revendo
pelo
suas
previsões, afirma que é possível ter uma queda de 3% no PIB mundial.
Os
pacotes
de
estímulos
fiscais
ao
setor
financeiro
seguem
sendo
a
grande prioridade das economias internacionalmente; estima-se que 9% do
PIB mundial esteja destinado a atender as demandas do setor financeiro.
Nos
Estados
dólares
Unidos,
anunciados
de
acordo
como
com
pacote
de
Michael
Robert,
estímulo,
cerca
dos
de
2
trilhões
500
de
bilhões
é
destinado para salvar os grandes conglomerados empresariais. Pouco antes,
o Federal Reserve apresentava um pacote de 1 trilhão de dólares, comprando
títulos
do
tesouro,
abrindo
uma
generosa
linha
de
crédito
para
o
127
empresariado.
O
impacto
Organização
da
pandemia
Internacional
sobre
do
as
economias
Trabalho,
chega
a
do
mundo,
atingir
2,7
segundo
bilhões
a
de
trabalhadores, 81% do montante mundial. O desemprego cresceu 6,7% no
mundo,
no
segundo
trimestre,
atingindo
mais
de
195
milhões
de
trabalhadores, que trabalham em regime de 48 horas semanais. Na América
Latina
e
Caribe,
desses
trabalhadores,
14
milhões
se
tornaram
desempregados, e, na Índia, 400 milhões ficaram sem rendimentos durante
a pandemia. Esses dados ainda são provisórios, pois o ritmo da pandemia
ainda
é
ascendente
e
incerto,
sendo
a
sua
real
proporção
difícil
de
ser
mensurada Mas o impacto já é calamitoso, pois 40% da população mundial
se
encontra
situação
de
em
isolamento
caos,
em
que
social
a
falta
e
sofrendo
de
políticas
as
consequências
sociais
amplifica
dessa
a
crise
sanitária.
:
A crise capitalista internacional e a pandemia
repercussões sobre as
favelas
Espera-se que 100 milhões de pessoas no mundo passem para baixo da
linha da pobreza, de acordo com o Banco Mundial e o Instituto de Recursos
Mundiais (WRI). Serão as cidades mais populosas as mais atingidas. Haverá
uma queda entre 15% e 25% na arrecadação tributária dos governos neste
ano.
A
preocupação
morando
em
Favelas”
(2001),
privação
de
habitações,
sobre
a
é
favelas
da
água
de
no
internacional,
do
é
mundo,
ONU
potável,
construções
posse
como
esperado
que,
Habitat,
falta
com
terreno.
lidar
de
com
segundo
são
que,
2050,
baixa
com
a
a
1
bilhão
relatório
territórios
de
acordo
em
o
de
saneamento,
materiais
De
cerca
“O
de
Desafio
reconhecidos
espaço
qualidade
mínimo
e
das
pela
para
insegurança
perspectiva
população
pessoas
mundial
econômica
tenha
30%
morando em favelas, quase 3 bilhões de pessoas, o que torna o quadro ainda
128
mais desolador.
A Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou que
iria combater essa tendência, atingindo a melhoria de vida de 100 milhões de
favelados, tendo o ano de 2030 como meta para garantir acesso aos direitos
sociais básicos nas favelas. Se analisarmos a tendência global de miséria e a
meta
do
Banco
Mundial,
o
futuro
não
parece
menos
sombrio,
segundo
o
próprio Banco.
Como já apresentado, a pandemia expôs a falência do modelo neoliberal.
No Brasil, escancara esse limite de forma ainda mais trágica, pois expõe a
sua
histórica
racismo
dependência
estrutural
profissionais
da
e
econômica,
patriarcalismo.
área
da
saúde
são
profunda
Quando
mulheres
se
e
desigualdade
observa
negras,
que
que
social,
70%
atuam
dos
sem
equipamentos adequados, salários dignos, condições de trabalho mínimas, e
o aumento de mortes de profissionais da saúde, percebe-se que a pandemia
pesa mais sobre esses setores historicamente oprimidos. Outros dados que
reiteram essa lógica de opressões realçadas pela pandemia é que o índice de
violência
doméstica
contra
mulheres
e
crianças
tem
aumentado,
assim
como a conclusão de pesquisas que demonstram que a letalidade da COVID-
19 é maior entre negros.
São as favelas que concentram, justamente, esses setores da sociedade.
Cerca de 13 milhões de brasileiros moram em favelas, segundo o Data Favela
e o Instituto Locomotiva. Essas comunidades, sofrendo com a miséria, alto
número
saúde
de
moradores
pública
por
casa,
insuficientes,
saneamento
tornam-se
alvos
básico
precário,
fáceis
do
vírus
políticas
e
de
das
suas
só
vem
129
consequências sociais.
A
política
que
vem
sendo
implementada
nos
últimos
anos
acentuando este quadro de precariedade nas favelas e periferias. Durante o
governo Dilma (2015), o corte nas áreas sociais foi de R$ 69,9 bilhões, tendo
um
peso
na
educação
de
R$
9,4
bilhões
e
de
1,8
bilhão
na
ciência
e
130 A aprovação da Emenda Constitucional 95 (2016) significou,
tecnologia.
só
na
área
da
Saúde,
a
perda
de
R$
20
bilhões,
menos
15%
da
receita
da
131 A Reforma Trabalhista (2017) e a Lei de Terceirização não tiveram
União.
efeito
sensível
sobre
a
taxa
de
,
como
prometido,
mas
aumentaram
a
informalidade e o trabalho terceirizado, gerando instabilidade no emprego e
132
baixos salários,
além de contribuir para a estagnação do PIB no mesmo
patamar de 2009. O resultado é que a miséria vem aumentando desde 2015,
contrapondo-se
à
tendência
de
queda,
que
ocorreu
entre
os
anos
1990
e
2014.
Aliado
áreas
de
a
isso,
os
pesquisa
sucessivos
científica,
cortes
recentes
principalmente
do
das
governo
Bolsonaro
universidades
nas
federais,
busca a todo custo abrir espaço cada vez maior para a entrada das empresas
de
tecnologia
parca
estrangeiras,
autonomia
desenvolver
indústrias
produtiva,
remédios
e
farmacêuticas,
criação
de
tratamentos
a
patentes
baixos
obstruindo
e
a
nossa
possibilidades
custos.
de
Aprofundamos
a
dependência econômica em relação aos produtos e à tecnologia de pesquisa
estrangeira, alegando que deveríamos cortar gastos. Armamos uma bomba
contra nós mesmos. Se Bolsonaro diz que devemos “salvar a economia” para
salvar as vidas, ele e seus antecessores acabaram (ainda que em níveis bem
distintos) levando nossa economia para a UTI muito antes de a pandemia
bater a nossa porta.
O agravamento da crise em razão da pandemia sinaliza que, segundo o
Banco
Mundial,
a
perspectiva
é
de
que,
no
Brasil,
5,4
milhões
de
pessoas
ingressem na pobreza extrema em função das consequências da pandemia; e
de
que
o
PIB
caia
5%
em
2020,
o
que
seria
a
maior
queda
em
120
anos.
Significa que 14,3 milhões de pessoas vão sobreviver com menos do que R$
145
mensais,
milhões
de
7%
da
população.
brasileiros
na
Se,
miséria,
entre
a
2014
situação
e
a
2019,
partir
a
de
crise
colocou
2020
deverá
3,8
ser
133
ainda mais trágica.
A pandemia evidenciou também a ineficácia recente do programa social
Bolsa Família e do seguro desemprego, pois não atendem às necessidades
dos trabalhadores que ingressaram recentemente nos estratos mais pobres.
O
Cadastro
exemplo,
Pessoas
tornou
emergência
regional
de
uma
o
Físicas
processo
grande
também
se
(CPF)
de
de
cadastramento
dificuldade,
amplia
irregular
nesse
segundo
quadro.
a
A
muitos
para
conseguir
Dataprev.
região
brasileiros,
A
o
por
auxílio
desigualdade
Nordeste
tem
um
número
de
trabalhadores
informais
maior
do
que
aqueles
que
estão
na
formalidade, tendo, segundo a iDados, 51,2% da população do Nordeste apta
a receber o auxílio emergência, demonstrando concentração da pobreza na
região. Se o governo trabalhou com o número de 58 milhões de pessoas na
linha da pobreza, agora já se estima um número de 70 milhões de pessoas.
No
Brasil,
temos
38,3
milhões
de
trabalhadores
na
informalidade,
134
possuem muitas privações, além da falta de dinheiro.
que
São 45 milhões de
trabalhadores que não utilizam movimentações bancárias há mais de seis
meses:
o
impacto
desse
setor na economia é gigantesco, pois movimenta
anualmente R$ 800 bilhões de reais em transações comerciais. É urgente
que se agilize o cadastro desse segmento da população, abrindo mais vagas
no
Programa
Bolsa
Família,
dinamizando
uma
rede
de
atendimento
nacional ligada à Caixa Econômica Federal, evitando entraves burocráticos
e fila nos bancos. O investimento em programas de fomento à renda, aliado a
uma série de ações de cunho social tem um efeito multiplicador na renda per
capita
da
população.
Apesar
disso,
o
governo
segue
na
direção
oposta,
concentrando ainda mais a renda.
As favelas concentram esses dramas. Quando se discute a pandemia, o
primeiro obstáculo para a execução de políticas públicas é a subnotificação
aguda. Ao contrário dos dados oficiais, é notório o crescimento exponencial
de
casos
de
Síndrome
Respiratória
Aguda
Grave
(SRAG),
quando
se
compara aos dados do ano passado. Especialistas afirmam que, para cada
morte, poderia haver 9 pessoas não identificadas com a doença, podendo
chegar
até
um
número
de
casos
15
vezes
maior
do
que
o
relatado
oficialmente; nas favelas ocorreriam o dobro de casos relatados comparados
135
ao restante da cidade.
Boa
parte
dos
infectados
são
mandados
para
casas
sem
que
haja
o
acompanhamento sobre a evolução do quadro clínico, tirando essas pessoas
das estatísticas. Os dados do painel da Prefeitura do Rio, que reúne, até o dia
15
de
maio,
120
óbitos
e
460
pessoas
infectadas
nas
favelas
do
Rio,
são
números
subnotificados,
ainda
se
considerando
que
um
mês
antes
o
número era de 7 mortes e 43 casos de infectados. Outro fator que ajuda a
distorcer os dados é a desorganização dos endereços, pois algumas favelas
que
são
reconhecidas
como
bairros,
têm
seus
casos
contabilizados
como
parte daqueles ocorridos em bairros próximos, diluindo a taxa de mortos e
infectados em um número de habitantes maior. Esse é o caso da Maré, que,
desde 1994, é considerada um bairro pela prefeitura do Rio de Janeiro, no
entanto,
boa
parte
dos
órgãos
públicos
ainda
ignora
isso,
principalmente
escolas, hospitais e postos de saúde, o que acaba confundindo os dados reais
136
e dificultando as ações do poder público na favela.
Uma
rede
de
informações
impulsionada
por
movimentos
sociais
e
organizações não governamentais (ONGs), cada vez mais articulada, busca
superar
a
ineficiência
dos
governos
federal,
estaduais
e
municipais,
utilizando as mídias sociais e entidades de pesquisa para cruzar os dados de
maneira mais próxima à realidade. O Dicionário de Favelas Marielle Franco
tem oferecido uma rica compilação de reflexões acadêmicas, informes de
lideranças comunitárias, centros de médicos e de pesquisa e toda uma gama
137
de informações importantes no combate da COVID-19 nas favelas.
A
precariedade
de
infraestrutura
urbana
nas
favelas,
em
particular
na
distribuição de água e saneamento básico, tornam a situação das populações
ainda
mais
exposta
ao
novo
coronavírus.
Estima-se
que
31
milhões
de
pessoas não tenha acesso a uma rede de distribuição de água, algo comum
nas favelas. Diante desse quadro aterrador, as Nações Unidas preveem que o
adensamento
populacional,
agravado
por
meios
de
transporte
lotados
e
sistema de coleta de lixo deficiente, tornam o impacto do vírus ainda mais
138
preocupante.
Outro elemento importante é o adoecimento psicológico e as agressões
nos
domicílios,
Guterres,
chefe
tendo
da
como
ONU,
principal
atestou
motivação
preocupação
o
machismo.
diante
desses
António
fenômenos,
como consequência do isolamento social, em que ele observa o aumento de
casos
de
violência
ansiedade.
A
contra
escassez
de
mulheres
delegacias
e
crianças,
especializadas
suicídio,
em
depressão,
violência
contra
a
mulher aprofunda o problema, já que são apenas 21 e apenas Rio de Janeiro e
139
São Paulo possuem esses estabelecimentos fora da capital.
As chacinas e arbitrariedades cometidas nas favelas durante as incursões
policiais são outro obstáculo à luta contra a pandemia. Do dia 13 de março
até o dia 19 de maio, foram 41 tiroteios, segundo os dados do Fogo Cruzado.
Segundo a Rede de Observatórios da Segurança, a situação é de crescimento
da violência; as operações policiais mataram mais 58% em relação ao mesmo
período no ano passado. No dia 15 foram 13 pessoas mortas pela polícia. A
ONG
Rio
operação
de
Paz,
policial
atuante
do
Bope
no
Jacarezinho,
em
meio
a
foi
uma
surpreendida
doação
de
com
cestas
uma
básicas,
resultando em 4 feridos. Isso enquanto as cestas básicas prometidas pelo
prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, demoram a chegar às famílias.
O Gabinete de Crise do Alemão também acabou impossibilitado de realizar
doações de alimentos por causa de uma incursão policial. Em Cordovil, a
morte
do
corretor
Leandro
Rodrigues
também
seguiu
esse
triste
roteiro,
quando foi assassinado com um tiro de fuzil após entregar uma cesta básica.
Os
jovens
Luiz,
João,
Thiago
e
Estevão
e
um
não
identificado
morreram
durante as ações policiais, sendo um jovem de 12 a 17 anos morto a cada mês.
A
violência
contra
as
favelas
expressa
o
DNA
escravista
brasileiro
ainda
140
apresente na sua estrutura republicana.
Considerações finais
Muitas são as iniciativas de solidariedade, mas ainda é frágil a capacidade
de
mobilização
bolsonarismo.
experiências
A
e
apresentação
reprodução
fundamentais,
de
que
de
uma
ações
agenda
política
auto-organizadas
corporificam
e
alternativa
solidárias
identidades
de
ao
são
classe
e
fortalecem a luta dos trabalhadores, ainda que diante de uma situação tão
limite. É dessa experiência que se forjam os substratos de sínteses e ações
políticas
superiores,
que
podem
sair
de
uma
consciência
corporativa
imediata para um plano de ação antissistêmico, consequente, que esteja à
altura da demanda histórica de superar a crise capitalista e a pandemia, de
acordo com um projeto humano superior à barbárie capitalista.
Que da tristeza dessa crise sistêmica ecoe paixão pela vida encarnada em
política.
Temos
solidariedade,
muito
o
organizar
que
nossa
caminhar:
pauta
capilarizar
estratégica
mais
de
iniciativas
forma
de
autônoma,
orientada pelos interesses dos trabalhadores, de forma que se integre a um
projeto
de
desenvolvimento
que
não
priorize
o
lucro,
mas
sim
as
vidas
humanas e o meio ambiente.
NOTAS
123
|
Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Pesquisador no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NuFiPE/UFF).
|
124
Disponível
em:
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/25/casos-de-
coronavirus-e-numero-de-mortes-no-brasil-em-25-de-maio.ghtml. Acesso em: 25 maio 2020.
|
125
Disponível
em:
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598671-covid-19-mandou-avisos-
previos. Acesso em: 25 maio 2020.
|
126
Disponível
em:
https://www.nytimes.com/2020/04/11/us/politics/coronavirus-
trumpresponse.html. Acesso em: 25 maio 2020.
127
|
Disponível em: http://www.esquerdadiario.com.br/Foi-o-virus-a-analise-de-Michael-Roberts.
Acesso em: 25 maio 2020.
|
128
Disponível
em:
https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/07/sem-apoio-do-estado-
favelas-globais-criam-estrategias-para-conter-pandemia.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 25 maio
2020.
129
|
Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/14/coronavirus-aumentou-abismo-
entre-favela-e-pista-diz-morador-do-morro-do-alemao. Acesso em: 25 maio 2020.
130
|
Disponível
em:
https://www.ebc.com.br/noticias/politica/2015/07/pesquisadores-pedem-
dilma-revogacao-de-cortes-na-educacao-e-ciencia. Acesso em: 25 maio 2020.
|
131
Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1044-saude-perdeu-r-20-
bilhoes-em-2019-por-causa-da-ec-95-2016. Acesso em: 25 maio 2020.
|
132
Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/11/07/Como-ficou-o-emprego-
2-anos-ap%C3%B3s-a-reforma-trabalhista. Acesso em: 25 maio 2020.
|
133
Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/pandemia-deve-lancar-mais-54-milhoes-
de-brasileiros-na-extrema-pobreza-em-2020-24382499. Acesso em: 25 maio 2020.
|
134
Disponível
em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/nas-favelas-moradores-
passam-fome-e-comecam-a-sair-as-ruas.shtml. Acesso em: 25 maio 2020.
135
|
136
|
Disponível em: https://rioonwatch.org.br/?p=47370. Acesso em: 25 maio 2020.
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/15/mortes-
na-mare-sao-triplo-de-dados-oficiais-diz-ong-favelas-tem-120-casos.htm?cmpid=copiaecola. Acesso
em: 25 maio 2020.
137
|
138
|
Disponível em: https://wikifavelas.com.br/. Acesso em: 25 maio 2020.
Ver: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-05-14/nas-favelas-ate-a-pandemia-de-coronavirus-
e-invisivel.html
e
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/03/pandemia-nas-favelas.shtml.
Acesso em: 25 maio 2020.
139
|
Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/12/opiniao-os-sete-erros-cometidos-
pela-imprensa-ao-cobrir-a-pandemia-nas-favelas. Acesso em: 25 maio 2020.
140
|
As ações de solidariedade e auto-organização política se mantêm fortes, apesar da conjuntura
adversa. O Projeto Mães das Favelas (CUFA) se dedica a atingir 40 mil mulheres em conjunto com
lideranças do Complexo do Lins. A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade estão
distribuindo
um
material
de
orientação
à
população
sobre
a
COVID-19.
O
movimento
#Covid19NasFavelas reúne 8 coletivos periféricos. A campanha “Se liga no Corona”, também segue
importante
reunindo
informações
sobre
o
coletivos
vírus.
da
Sobre
a
Maré
e
Manguinhos
violência
policial,
em
ver:
conjunto
com
a
Fiocruz,
veiculando
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-
22/um-adolesceste-morto-por-mes-e-o-resultado-das-operacoes-policiais-no-rj.html. Acesso em: 25
maio
2020;
e
https://theintercept.com/2020/05/19/coronavirus-ajuda-humanitaria-tiroteios-rio/.
Acesso em: 25 maio 2020.
A violência que não respeita o isolamento
141
VITOR CASTRO
matamos
meninos
negros
para
evitar
que
se
tornem
homens
feitos
negros
[ RICARDO ALEIXO ]
“Em meio à pandemia, uma operação policial na favela. Aqui mesmo onde
falta água e a fome se faz presente [...]. Se não morrer de vírus ou de fome, te
matarão com tiros de fuzil”. O relato acima foi escrito nas redes sociais pelo
ativista
de
142.
Reto
direitos
humanos
Raull
Santiago,
integrante
do
Coletivo
Papo
Raull é um dos expoentes de um movimento de favelas que bota a
cara, que não deve nada, mas tem medo. Não à toa, obviamente. Ser morador
de favela, preto e pobre, indica que se é sempre alvo da política de segurança
pública
do
Rio
de
Janeiro.
“Quem
não
deve
tem
medo
sim”,
pontua
o
ativista. No Complexo do Alemão, durante a pandemia, uma operação do
Batalhão de Operações Policiais Especiais, o Bope, deixou 12 mortos no dia
143.
15 de maio — uma chacina
Dias
depois
um
adolescente
morador
do
Morro
do
Salgueiro,
no
município de São Gonçalo, foi atingido por um tiro de fuzil dentro de casa,
no dia 18 de maio. João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, estava na casa de
familiares
Civil
quando
entrou
resgatado
uma
atirando
por
um
operação
na
casa
helicóptero
conjunta
em
do
que
Corpo
da
ele
de
Polícia
Federal
144.
estava
e
da
Baleado,
Bombeiros.
Ficou
Polícia
João
mais
foi
de
17
horas desaparecido, enquanto a família o procurava por diversos hospitais
da região e do Rio de Janeiro, sem sucesso. Foi encontrado morto no dia
seguinte, no Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo.
No mesmo dia outro jovem, de 21 anos, foi morto a tiros durante operação
policial
em
Acari.
Iago
César
dos
Reis
145.
familiares, sofreu violência policial
Gonzaga
foi
baleado
e,
segundo
Por volta de 5h da manhã, policiais
do Bope junto com o Batalhão de Choque da Polícia Militar (PM) entraram
na favela de Acari. De acordo com um parente, Iago foi torturado com um
saco plástico na cabeça e com uma faca. Depois foi enrolado em um lençol e
levado para uma viatura da polícia. A família percorreu delegacias e IMLs em
busca de informação, só no dia seguinte obteve alguma, quando o jovem foi
encontrado no IML do Rio de Janeiro.
Um dia depois, 20 de maio, o jovem de 18 anos Vitor Gomes da Rocha
também
foi
exatamente
realizavam
quando
a
necessidade
Bope
entrou
momentos
assassinado
146.
pela
polícia
integrantes
entrega
do
A
grupo
Frente
de
200
cestas
básicas
favela
da
Zona
Oeste
carioca,
atirando
na
favela
na
seguintes
ao
tiro
e
que
Vitor
o
operação
para
por
acabou
matou
Cidade
famílias
conta
alvejado.
choca
policial
pela
da
de
se
deu
147
Deus
que
passam
pandemia.
Um
revolta
vídeo
de
O
feito
um
dos
integrantes do grupo e pela conduta de sobrevivência de outro membro, ao
dizer que eles — pretos e moradores de favela — são alvos da polícia:
— A gente nasceu alvo, a gente nasceu alvo! E já era. João Pedro foi ontem. Esse menor foi
hoje. Nós é preto mano, nós é preto mano. Então se acalma.
— Eles são genocida, eles entram matando!
— Eles são. Eles são genocida e nós somos alvo do Estado, mano. Sempre foi assim. Nós é
preto mano! Nós é preto mano, então se acalma! Você acabou de distribuir 200 cestas
básicas. Eu não vou te perder, você é preto. Se acalma meu mano!
— Eles não têm que matar inocente, eles não têm que matar!
— Eles não têm que matar ninguém, mano!
— Eles não têm que chegar dando bala pros outros.
—
Meu
mano,
eles
não
têm
que
matar
ninguém.
Calma.
Nós
não
vai
embora,
mas
se
acalma [...] nós não vai sair daqui sem ver quem é, mas calma.
— Eu não vou embora daqui, eles vieram atirando em inocente que estava naquela porta
lá. A gente tá fazendo uma ação pra ajudar as pessoas, eles entram atirando, porra!
A estratégia da política de segurança pública do Rio de Janeiro, que nos
últimos
anos
tem
ampliado
sua
letalidade,
não
deu
trégua
durante
a
pandemia. Os casos citados são apenas alguns exemplos das dezenas que
acontecem
Fogo
durante
Cruzado,
Metropolitana
justamente
civis,
do
com
e
pandemia.
durante
Rio
a
Janeiro
das
federais,
militares
De
acordo
quarentena
de
agentes
militares,
bombeiros
a
das
Forças
de
levantamento
número
diminuiu,
forças
guardas
o
com
mas
segurança
municipais,
Armadas.
de
tiroteios
aumentou
envolvidos
agentes
Enquanto
o
feito
na
pelo
Região
o
número
—
policiais
penitenciários,
mundo
enfrenta
uma pandemia e busca cumprir o isolamento, nas favelas a quarentena tem
sido
interrompida
por
tiros.
No
mês
de
abril
foram
registrados
501
tiroteios/disparos por armas de fogo, com 197 pessoas baleadas e 96 mortes.
Em
32%
desses
tiroteios
havia
a
presença
de
agentes
de
segurança
(no
mesmo período do ano anterior, este índice era de 25%). Comparando com o
mês de março de 2020, quando teve início a quarentena, os índices são ainda
piores:
houve
um
aumento
de
12%
nos
tiroteios
e
de
34%
no
índice
de
148.
pessoas baleadas
Além da violência em si, dos tiroteios, dos mortos e feridos, as operações
policiais
nas
favelas
agravam
outros
problemas
locais.
Diversas
ações
sociais, como a citada na Cidade de Deus, foram interrompidas pela ação das
polícias. Em 28 de abril, o corretor de imóveis Leandro Rodrigues da Matta,
de 40 anos, morreu com um tiro de fuzil deflagrado por um policial militar
em
149.
Cordovil
amigo
que
conjunto
Ele
estava
passava
de
entregando
dificuldades
favelas
do
por
Alemão
a
uma
cesta
conta
da
básica
na
pandemia.
distribuição
de
casa
de
Próximo
cestas
básicas
um
ao
foi
interrompida por uma ação da PM, que confundiu o caminhão carregado das
doações
com
um
de
carga
roubada
—
no
fim
do
dia
a
equipe
que
fazia
a
distribuição voltou ao local e conseguir fazer as entregas. Já no Jacarezinho
a doação de cestas básicas foi cancelada após uma operação do Bope que
150.
culminou em tiroteio, deixando quatro feridos
Da mesma forma, interrupções de serviços de saúde ocorreram durante a
pandemia. Além da superlotação, 577 unidades de saúde foram afetadas por
tiroteios em seu entorno — o que representa 14% das unidades de saúde da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Em boa parte dos casos (28%) havia
a presença de agentes de segurança, ou seja, foram ações da polícia próximas
dessas
localidades.
período
É
curioso
pré-quarentena,
a
ainda
média
constatar
diária
de
que
em
comparação
tiroteios
no
com
Grande
o
Rio
aumentou durante os meses de isolamento social. A média foi de dezesseis
tiroteios por dia a partir do dia 13 de março, início da quarentena, até o fim
de
abril,
contra
quatorze
tiroteios
diários
de
janeiro
até
esta
data.
Para
piorar a situação dos moradores de favelas e periferias, a morte de pobres e
negros na pandemia em comparação com brancos é cinco vezes maior. Uma
explicação
(SUS).
é
que
Pesquisa
os
do
pobres
dependem
Instituto
de
mais
Pesquisa
do
Sistema
Econômica
Único
de
Aplicada
Saúde
(Ipea)
indicava que, em 2008, a população negra representava 67% dos usuários do
151.
SUS
Em entrevista ao site A pública, a médica Rita Borret, da Sociedade
Brasileira de Medicina da Família e Comunidade, afirma que “o problema
não é a raça, mas o racismo [...]. O acesso à saúde da população negra é muito
152.
pior que da população branca no país”
Essa
política
de
segurança
pública
adotada
no
Rio
de
Janeiro,
infelizmente, não é novidade para os moradores de favelas e periferias. Os
dados
de
mortes
em
confrontos
com
policiais
são
assustadores
—
os
chamados “autos de resistência” ou “homicídio decorrente de oposição à
ação
policial”,
termos
utilizados
para
os
casos
de
morte
durante
suposto
153. Esse índice havia atingido
confronto com a polícia e resistência à prisão
seu ápice em 2007, ano dos Jogos Pan-Americanos, com 1.330 mortes. Mas,
em 2018 e 2019 ultrapassaram esse recorde vergonhoso: em 2018 foram 1.534
mortos
e
1.810
em
2019.
Os
mortos
são
em
sua
imensa
maioria
jovens
negros, pobres, moradores de favelas.
Essa elevada taxa de letalidade é um indicador da necessidade de revisão
desse
modelo
promove,
é
de
segurança
conivente
com
pública
o
uso
baseado
abusivo
da
no
confronto,
força
letal
e
que
de
se
não
execuções
sumárias, ao mesmo tempo em que expõe também os próprios agentes do
estado. O Atlas da Violência 2017 apontou que desde 1980 há no Brasil um
processo gradativo de vitimização letal da juventude, em que os mortos são
jovens cada vez mais jovens. Enquanto em 1980 o pico da taxa de homicídios
se dava com 25 anos, em 2017 essa idade passou para 21 anos, e entre 2005 e
2015 houve um aumento de 17,2% na taxa de homicídio entre 15 e 29 anos.
Nesse mesmo período — 2005 a 2015 — foram mais de 318 mil assassinados
nessa faixa etária.
Ainda
segundo
assassinadas,
71
dados
são
do
negras.
Atlas
A
da
Violência
chance
de
uma
2017,
de
pessoa
cada
negra
100
ser
pessoas
vítima
de
homicídio é 23,5% maior do que de uma pessoa branca. Cerqueira e Coelho,
no
texto
Democracia
racial
e
homicídios
de
jovens
negros
na
cidade
partida,
mostram que, do ponto de vista de quem sofre a violência letal, a cidade do
Rio de Janeiro é dividida para além das dimensões econômica e geográfica,
mas também pela cor da pele. “No Rio de Janeiro [...], enquanto 57,2% das
pessoas que se encontram no decil mais baixo de probabilidade de sofrer
homicídio são ‘não negras’; 78,9% daquelas que se encontram no decil com
maiores chances de sofrer homicídio são afrodescendentes”, e concluem: “a
questão
social
não
esgota
a
explicação
das
gritantes
diferenças
de
vitimização violenta que acometem mais a população afrodescendente, que
refletem, em parte, o racismo ainda prevalente no Brasil” (2017, p. 32).
Historicamente tratados como cidadãos de segunda classe, os moradores
de
favelas
cause
e
periferias
qualquer
são
comoção
passíveis
social
de
—
a
serem
não
exterminados
ser,
claro,
sem
quando
que
o
isso
caso
é
absurdamente grotesco. O tratamento dispensado a esses moradores pela
imprensa é grosseiramente diferente do direcionado a moradores de outras
áreas da cidade. O que vemos é que existem dois tipos de violência: uma
aceitável
e
outra
inaceitável.
As
mortes
aceitáveis
pela
mídia
—
e
consequentemente pelo conjunto da sociedade, a chamada opinião pública
— são as dos pobres, negros, moradores de favelas. Esse público pode ser
exterminado
justamente
possibilidades
de
porque
sentimentos,
são
de
desumanizados,
identidade
e
de
retiram
deles
memória.
suas
Passam
a
figurar apenas como estatísticas, como números de uma guerra em que a
vítima é sempre a mesma. E quem atua de forma a definir que vidas têm mais
valor e merecem ou não ter destaque e repercussão é a mídia hegemônica,
que
atua
banalizando
a
vida
e
a
vivência
dessa
parcela
da
população.
Enquanto as vítimas merecedoras de destaque são humanizadas, tratadas
com
dramaticidade
merecedores
são
a
ponto
de
negligenciados
comover
ou
serão
a
opinião
publicadas
pública,
pequenas
os
não
matérias
sem qualquer tipo de contexto que possa causar comoção ou revolta. Muitas
vezes
essas
pequenas
matérias são capazes de culpabilizar a vítima dessa
violência. As vítimas têm sua vida investigada para se buscar a conclusão de
que não foram mortas por acaso, que em alguma medida “procuraram” por
esse destino. Uma tia de João Pedro, o adolescente de 14 anos morto pela
polícia em São Gonçalo, não por acaso, declarou à imprensa que “ele não vai
sair
de
traficante
criminalizados
plantando
—
armas
nessa
tanto
e
história”,
pela
drogas,
já
polícia,
como
sabendo
que
pela
como
diversas
mídia,
esses
vezes
que
os
sempre
jovens
são
incriminam
busca
antecedente ou algum deslize do jovem que possa justificar sua morte.
um
Essa é uma estratégia comum na nossa história. Como apontam Chomsky
e
Herman,
parecem
no
ser
texto
Banhos
considerados
sangue,
de
como
de
1976,
‘benignos’
“certos
ou
até
banhos
como
de
sangue
positivos
e
construtivos. Apenas uma espécie muito particular dos mesmos tem jus à
publicidade, é julgada atroz e digna de causar indignação” (1976, p. 17). Os
autores apontam, em relação ao tratamento dos meios de comunicação, que
as
vítimas
merecedoras
proeminência,
com
de
mais
notoriedade
são
dramaticidade,
“destacadas
serão
com
humanizadas,
mais
e
sua
transformação em vítimas receberá o grau de detalhe”, e a construção da
matéria
gerará
“o
interesse
e
a
emoção
do
leitor.
[...]
Em
contraste,
as
vítimas não-merecedoras receberão apenas ligeiros detalhes, um mínimo de
humanização e pouco contexto que cause excitação e raiva” (CHOMSKY;
HERMAN, 2003, p. 94). É dentro dessa estrutura que se configura o racismo
estrutural
enquanto
elemento
de
controle
e
dominação
nas
relações
de
poder. Achille Mbembe esclarece, no seu importante livro Necropolítica, ao
pensar a relação entre soberania e violência, que “ser soberano é exercer o
controle
sobre
a
mortalidade
e
definir
a
vida
como
a
implantação
e
manifestação do poder” (2018, p. 5). Aponta essa questão a partir do filósofo
italiano
Giorgio
moderno
estado
pode
de
Agamben,
ser
exatamente
definido,
exceção,
de
uma
então,
quando
como
espécie
de
a
indica
que
instauração,
guerra
“legal”
o
totalitarismo
através
que
de
um
permite
a
eliminação não apenas de adversários políticos, mas de categorias inteiras
de cidadãos. A criação voluntária de um estado de exceção permanente —
mesmo
que
não
declarado
estados
contemporâneos,
—
tornou-se
inclusive
nos
uma
das
chamados
práticas
estados
comuns
dos
democráticos
(AGAMBEN, 2004, p. 13).
Esse
mídias
contexto
para
154
favelas
de
tratar
guerra
do
—
no
combate
Brasil
ao
termo
tráfico
de
comumente
drogas,
em
usada
pelas
especial
nas
— sustenta hierarquias raciais, e as ações estatais empreendidas
em
nome
da
“segurança”
se
revelam
como
violadoras
de
direitos
dos
moradores dessas localidades:
Viver
sob
a
ocupação
contemporânea
é
experimentar
uma
condição
permanente
de
“viver na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo
lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios
e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas
em
suas
casas
apertadas
todas
as
noites
do
anoitecer
ao
amanhecer;
soldados
patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras [...]. (MBEMBE, 2018, p.
68-69).
Mbembe assinala ainda que esse processo é mais intenso nos países da
periferia do capitalismo, nos quais a democracia ainda é restrita e o direito
permanece conectado à violência soberana, formando assim uma verdadeira
política
de
produção
de
morte.
Recuperando
e
relendo
o
conceito
de
biopoder de Michel Foucault, ele assinala que o racismo é acima de tudo
uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, e que a função
do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções
assassinas do Estado (MBEMBE, 2018, p. 18). É o que ele chama de política
de morte, ou necropolítica: a ação do Estado sobre as vidas, decidindo qual
vida é passível de luto e qual não é. É o projeto de país que deu certo, como
descrito por Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, mais recentemente, no texto
Encantamento:
sobre
política
de
vida,
quando
apontam
que
“o
Brasil
como
estado colonial foi projetado pelos homens do poder para ser excludente,
racista, machista, homofóbico, concentrador de renda, inimigo da educação,
violento,
assassino
de
sua
gente,
intolerante,
boçal,
misógino,
castrador,
faminto e grosseiro” (2020).
Enquanto a indicação é de que as pessoas fiquem em casa para se manter
em segurança por conta da expansão do coronavírus, nas favelas e periferias
isso não se reflete. Ficar em casa é tão ou mais arriscado — mesmo que o
vírus
não
entre
isolamento.
em
sua
residência,
as
balas
de
fuzil
não
respeitam
o
REFERÊNCIAS
AGAMBEN,
Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
CERQUEIRA,
Daniel;
COELHO,
Danilo Santa Cruz. Democracia racial e homicídios
de jovens negros na cidade partida. Brasília/Rio de Janeiro: Ipea, 2017.
CERQUEIRA,
Iván;
Daniel;
LIMA,
HANASHIRO,
Renato
Olaya;
Sergio
MACHADO,
de;
BUENO,
Pedro
Samira;
Henrique;
VALENCIA,
LIMA,
Adriana
Luis
dos
Santos. Atlas da violência 2017. Rio de Janeiro: Ipea/Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, junho de 2017.
CHOMSKY,
Noam;
HERMAN,
Edward
S.
Banhos
de
sangue.
São
Paulo/Rio
de
Janeiro: Difel, 1976.
CHOMSKY,
Noam;
HERMAN,
Edward S. A manipulação do público: política e poder
econômico no uso da mídia. São Paulo: Futura, 2003.
MBEMBE,
SIMAS,
Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2019.
Luiz Antonio;
Janeiro:
RUFINO,
Luiz. Encantamento: sobre política de vida. Rio de
Mórula,
2020.
Disponível
em:
https://morula.com.br/produto/encantamento-sobre-politica-de-vida/.
Acesso em: 28 maio 2020.
NOTAS
141
|
É editor na Mórula Editorial (morula.com.br) e doutor em Comunicação e Cultura pela Escola
de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
142
|
O Papo Reto é um coletivo de comunicação independente formado por jovens moradores do
conjunto de favelas do Alemão e da Penha
143
|
PEIXOTO, Guilherme. Polícia apura a morte de 12 pessoas no Alemão após dia de tiroteios. G1,
Rio
de
Janeiro,
15
mai.
2020.
Disponível
em:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-
janeiro/noticia/2020/05/15/operacao-policial-no-complexo-do-alemao-causa-tiroteio-na-manhadesta-sexta-feira.ghtml. Acesso em: 28 maio 2020.
144
|
COELHO, Leonardo. Polícia sumiu com João Pedro após atirar nele. Foi achado morto. Ponte,
Rio de Janeiro, 19 mai. 2020. Disponível em: https://ponte.org/policia-sumiu-com-joao-pedro-aposatirar-nele-foi-achado-morto/. Acesso em: 28 maio 2020.
|
145
REGUEIRA, Chico. Moradores da Favela de Acari afirmam que jovem foi torturado e morto
durante operação policial. G1, Rio de Janeiro, 19 mai. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/riode-janeiro/noticia/2020/05/19/moradores-da-favela-de-acari-afirmam-que-jovem-foi-torturado-emorto-durante-operacao-policial.ghtml. Acesso em: 28 maio 2020.
146
|
STABILE, Arthur. João Vitor, 18 anos: morto por ação policial que interrompeu distribuição de
comida em favela. Ponte, Rio de Janeiro, 21 mai. 2020. Disponível em: https://ponte.org/joao-vitor-18anos-morto-por-acao-policial-que-interrompeu-distribuicao-de-comida-em-favela/.
Acesso
em:
28
maio 2020.
|
147
O grupo Frente CDD reúne um grupo de 50 moradores voluntários da Cidade de Deus que
arrecadam produtos de higiene, limpeza e alimentos para as famílias que estão passando dificuldades
durante a pandemia.
148
|
Os dados sobre tiroteios foram retirados da página do Fogo Cruzado, um laboratório de dados
sobre
violência
colaborativo,
armada
com
que
dados
disponibiliza
coletados
informações
via
usuários,
através
imprensa
de
um
e
aplicativo
polícias.
e
um
mapa
Disponível
em:
http://fogocruzado.org.br/relatorios-rj/. Acesso em: 28 maio 2020.
|
149
Corretor de imóveis é morto depois de entregar cesta básica na Zona Norte do Rio; policial
admite ter atirado. Extra, Rio de Janeiro, 6 mai. 2020. Disponível em https://extra.globo.com/casosde-policia/corretor-de-imoveis-morto-depois-de-entregar-cesta-basica-na-zona-norte-do-riopolicial-admite-ter-atirado-rv1-1-24412796.html. Acesso em: 28 maio 2020.
|
150
SOARES, Rafael. Operação da PM interrompe distribuição de cestas básicas no Jacarezinho.
Extra, Rio de Janeiro, 9 mai. 2020. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/operacao-
da-pm-interrompe-distribuicao-de-cestas-basicas-no-jacarezinho-24419863.html.
Acesso
em:
28
maio 2020.
151
|
Pesquisa disponível em: https://apublica.org/wp-content/uploads/2020/05/revista.pdf. Acesso
em: 28 maio 2020.
152
|
por
coronavírus
MUNIZ, Bianca; FONSECA, Bruno; PINA, Rute. Em duas semanas, números de negros mortos
é
cinco
vezes
maior
no
Brasil.
A Pública,
São
Paulo,
6
mai.
2020.
Disponível
em:
https://apublica.org/2020/05/em-duas-semanas-numero-de-negros-mortos-por-coronavirus-ecinco-vezes-maior-no-brasil/. Acesso em: 28 maio 2020.
153
|
No dia 4 de janeiro de 2016 foram abolidos os termos “auto de resistência” e “resistência
seguida de morte” nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais em todo o território nacional. O
objetivo
seria
estaduais
nos
a
uniformização
casos
de
lesão
dos
procedimentos
corporal
ou
morte
internos
das
decorrentes
polícias
de
judiciárias
resistência
a
federal
ações
e
civis
policiais.
A
resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia, órgão da Polícia Federal, e do Conselho Nacional
dos Chefes da Polícia Civil determinou a partir de sua publicação que todas as ocorrências do tipo
sejam registradas como “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio
decorrente de oposição à ação policial”.
154
|
Um exemplo claro é a editoria do jornal carioca Extra denominada de “Guerra do Rio”, que teve
estreia
em
agosto
de
2017.
Na
justificativa
para
a
criação
da
editoria,
o
jornal
se
justifica:
Temos
consciência de que o discurso de guerra, quando desvirtuado, serve para encobrir a truculência da
polícia que atira primeiro e pergunta depois. Mas defendemos a guerra baseada na inteligência, no
combate à corrupção policial, e que tenha como alvo não a população civil, mas o poder econômico
das máfias e de todas as suas articulações. EXTRA. Isso não é normal.
2017.
Disponível
em
Extra,
Rio de Janeiro, 16 ago.
https://extra.globo.com/casos-de-policia/guerra-do-rio/isso-nao-normal-
21711104.html. Acesso em: 28 maio 2020.
19:
COVID-
memórias e pesadelos
para quase-cidadãos
155
MARCELO PAIXÃO
156
FLAVIO GOMES
Memórias das vidas e mortes esquecidas
Tempos
de
refletirmos
o
quanto
mortalidade,
história
grandes
econômicas.
No
demográficos
indígenas
em
que
cosmovisões
história
políticas
mundial
epidemias
públicas
com
século
várias
ser
economia
nos
e
cidadania.
diferentes
XVII
partes
mudaram
de
e
podem
do
drasticamente
populações
indígenas
informam
e
falam
atravessaram
sociais
a
e
vazios
micro-sociedades
localização.
de
para
doenças,
produziram
empurrando
sua
sobre
percepções
epidêmicos
Brasil,
momentos
Pandemias
impactos
surtos
também
A
ocupações
oralidade
originais
e
nas
áreas do atual Amapá de povos que migraram para a direção de Santarém,
Pará, quase divisa com o Amazonas. Quem alargou as fronteiras do Brasil
não
foram
os
bandeirantes
ou
um
ciclo
econômico
incerto
da
pecuária.
Podem ter sido apresamentos indígenas, trabalho compulsório e epidemias.
Mais migrações indígenas é
igual
a mais interiorização colonial.
No século XVIII a varíola chegou a colocar sob risco o empreendimento
atlântico do tráfico negreiro. Há indícios que na região Amazônica houve
mortalidade
de
cerca
de
20%
da
população
escravizada
—
fundamentalmente africanos e a primeira geração de seus descendentes —
na década de 1770. A cólera (
das
sociedades
escravistas
CholeraMorbus
) abateu os porões populacionais
coloniais
e
pós-coloniais,
provocando
grande
incidência de mortes na população negra. Em várias partes do Caribe 3/4 da
população que tinha morrido em virtude de cólera era negra (90% destes
eram
escravos).
Os
impactos
epidêmicos
estiveram
relacionados
às
péssimas condições sanitárias, tanto nas cidades, onde a comunidade negra
era
maioria
entre
a
população
livre
pobre,
como
nas
áreas
rurais,
com
o
predomínio populacional de escravizados.
No Brasil, em meados do século XIX duas epidemias colocaram em risco
expectativas
econômicas
e
projetos
nação:
de
cólera
e
febre
amarela.
Em
plena década de 1840 quando o tráfico ilegal despejava africanos por todos
os
lugares,
senhoriais.
negreiro
o
medo
Sabe-se
que
atlântico)
ministro
da
das
e
epidemias
entre
1850
Justiça)
1831
(nova
pelo
lei
não
arrefeceu
(primeira
chamada
menos
600
lei
lucros
de
interesses
extinção
Euzébio
mil
e
de
do
tráfico
Queirós,
africanos
então
entraram
clandestinamente, sendo batizados e vendidos para cidades e áreas rurais
em expansão. Mesmo até 1858 surgiriam notícias de desembarques ilegais de
africanos
pelos
em
várias
paranaenses,
partes
do
paulistas,
Brasil,
dos
fluminenses,
litorais
catarinenses,
capixabas
e
passando
pernambucanos.
A
cólera matou muita gente entre os anos de 1855 e 1856. Na Corte do Rio de
Janeiro
os
escravistas
cativos
com
eram
forte
53%
expansão
das
vítimas,
econômica
enquanto
cafeeira
em
áreas
chegaram
a
rurais
67%.
Há
notícias que africanos recentemente comprados que seguiam para as áreas
cafeeiras eram vitimados pela cólera.
As
conexões
entre
raça,
mortalidade,
epidemias
e
projetos
de
nação
apareceram com força entre as décadas de 1860 e 1870, com a epidemia de
febre amarela que se desenvolve mais nas cidades — Rio de Janeiro com
grande
força
população
—
negra.
matando
Surgiria
mais
imigrantes
europeus
do
que
cativos
e
a
um grande debate sobre a erradicação da febre
amarela e o temor de que um projeto nacional de “branqueamento” da nação
estivesse sob risco diante dos índices de mortalidade maiores na população
branca e de origem europeia.
No apogeu da eugenia no Brasil, as epidemias eram somente entendidas
como
problemas
de
saúde
pública
se
afetassem
com
mais
intensidade
os
ricos e os brancos, especialmente os imigrantes provenientes do continente
europeu. Oliveira Vianna, importante intelectual do começo do século XX,
imaginou
que
o
Brasil
se
branquearia
de
forma
através
natural
da
miscigenação, mas, igualmente pela maior incidência sobre os descendentes
dos
escravizados
outras
de
moléstias
complicações
brancas.
Ainda
hanseníase
causam
hoje
(isto
O
das
doenças
sem
estragos
brasileira.
típicas
como
deixar
branqueamento
alcoolismo,
classes
lado
as
inferiorizadas
evitáveis
de
racialmente
o
como
a
a
morte
desproporcionais
travestido
de
doenças
aos
olhos
tuberculose,
violenta
sobre
democracia
a
por
a
venéreas
das
e
elites
sífilis
e
a
homicídios)
população
racial
foi
a
afro-
forma
histórica assumida pelo darwinismo social, o racismo científico e a eugenia
no
Brasil.
Negros,
considerados
indígenas
quase-cidadãos,
e
ou
seus
descendentes
seja,
uma
de
gentalha
peles
de
escuras
segunda
são
ordem,
indesejáveis, dispensáveis. Uma história que, como podemos ver, tem sua
origem
na
noite
do
tempo
histórico
brasileiro.
Mas
que
se
perpetua
permanentemente, se avultando em situações de calamidade social tais às
que verificamos agora com o fantasma da COVID-19.
19:
COVID-
Em
1918
a epidemia e a eugenia
uma
impropriamente
variante
do
chamada
vírus
de
semelhante
espanhola,
ao
matou
novo
entre
coronavírus
40
a
50
atual,
milhões
de
pessoas em várias partes do mundo. Houve uma pandemia da gripe influenza
e sua entrada foi via portos. O surto desta gripe mundial estava relacionado
—
entre
outras
coisas
—
ao
pós-Primeira
Guerra
Mundial.
A
medicina
científica da época demorou a identificar o vetor da doença e o isolamento
do vírus, por exemplo, só aconteceu em 1930. Seja como for, situações de
descalabro político, econômico e social — assim como colapsos ambientais
—
favorecem
mundo
atual
Mundial,
que
a
propagação
não
só
vive
de
os
de
calamidades
escombros
combatentes
de
ceifou
a
daquela
uma
vida
natureza.
guerra,
de
como
quase
nove
Decerto
a
o
Primeira
milhões
de
pessoas. Mas o século XXI já se iniciara suficientemente zangado para deixar
bastante nítido que problemas gravíssimos pairavam sobre a vida de cada
um dos sete bilhões de seres humanos que povoam este planeta. Tivemos
tempo para nos preparar para o pior. Não sem alguma dose de ironia, mesmo
diante do evidente risco que nos acossava, a humanidade se deixou levar
pelas delícias da realidade virtual.
No globalizado do século XXI, as epidemias de SARS, a Gripe Aviária, a
157 e o Ebola — em diferentes proporções — já
Gripe Suína (H1N1), a MERS
ceifaram a vida de mais de 200 mil seres humanos. Sabemos de experiência
anterior que o vírus — ainda desconhecido considerando as suas mutações
etc. — pode ser implacável. Mas o problema sanitário, em si só desastroso,
pode
se
potencializar
diante
de
um
cenário
internacional
de
crescimento
das desigualdades sociais, da xenofobia, da intolerância e do racismo.
158 no começo deste ano de 2020 divulgou o relatório Tempo de
A OXFAM
Cuidar — O trabalho de cuidado mal remunerado e não pago e a crise global da
159, o qual indicava que os 2.153 bilionários do mundo detinham
desigualdade
mais riqueza do que os 4,6 bilhões de pessoas e, ainda, que os 22 homens
mais
ricos
do
mundo
se
apropriavam
de
mais
riquezas
do
que
todas
as
mulheres que vivem na África. O mesmo estudo ainda apontava que metade
da população no mundo sobrevivia com menos de US$ 5,50 por dia e que a
taxa de redução da pobreza caiu pela metade desde 2013. Parece óbvio que
este contexto é produto das profundas transformações que ocorreram no
mundo e que desequilibraram fortemente o jogo em favor dos detentores da
riqueza
material
e
financeira.
Diante
desta
realidade
seriam
necessários
amplos esforços de coordenação entre os países do mundo, e dentro de cada
país,
que
permitissem
provenientes
das
que
revoluções
os
na
elevados
produção,
ganhos
na
de
informação
produtividades
e
na
logística
pudessem ser transferidos para setores mais amplos das populações de todo
o mundo. Mas o contrário foi o que aconteceu. Progressivamente, em todo o
planeta, ocorreu um crescimento da direita xenófoba, machista, intolerante
e
racista.
Neste
Organização
teatro
das
de
Nações
absurdos
Unidas
agora
encenados
(ONU)
e
seus
em
escala
diversos
global,
a
organismos
perderam poder de articulação lançando todo o planeta em um novo tipo de
darwinismo
social
ainda
mais
perigoso,
tendo
em
vista
o
alcance
dos
sistemas de vigilância e de controle, o poder das armas de destruição em
massa
e
as
fragilidades
aquecimento
global,
o
ambientais
progressivo
de
todo
o
mundo,
desaparecimento
de
tais
como
espécies
e
o
de
ecossistemas e o risco concreto e real de uma sexta extinção em massa no
planeta
Terra.
É
neste
cenário
que
incide
a
COVID-19,
tornando
o
que
deveria ser um problema de saúde pública em uma crise sem precedentes
desde o colapso da Segunda Guerra Mundial.
Em si um vírus pode contagiar qualquer um, não escolhendo raça e nem
classe. Mas as condições de vida desfavoráveis de grupos sociais de menor
poder
aquisitivo
e
historicamente
discriminados
os
vulnerabilizam
de
forma especialmente perversa. Segundo a Universidade John Hopkins, nos
EUA, onde pouco mais de um terço dos óbitos por COVID-19 tiveram a raça
da
vítima
coletada,
os
negros
correspondem
a
13%
da
população
daquele
país, mas a 34% do total de óbitos. Segundo a mesma fonte, no momento em
que estas linhas são escritas, o Brasil já havia assumido o segundo lugar no
mundo
em
termos
Epidemiológico
de
números
Especial
de
8
de
oficiais
maio
de
de
casos:
2020,
do
374.989.
O
Ministério
Boletim
da
Saúde,
indica que até o começo de maio cerca de 60% dos casos oficiais de COVID-
19
tiveram
Destas,
a
54,7%
cor
da
eram
pessoa
brancas,
infectada
36,3%,
declarada
pardas,
e
no
6,8%,
prontuário
pretas.
médico.
Porém,
ao
se
analisar o percentual dos óbitos, das 4.618 pessoas vitimadas pela COVID-19
cuja
cor
ou
raça
foi
reportada
na
declaração
de
óbito,
o
percentual
de
pessoas brancas caía para 47,7%, ao passo que das pardas se ampliava para
42,7% e pretas para 7,4%. O que estes dados sugerem são diferenças tanto na
qualidade do atendimento, como o momento de vida que cada uma daquelas
pessoas
se
transporte
violência,
encontrava
cotidiano
a
quando
mais
foi
precário,
discriminação
infectada.
os
agravada
A
maiores
de
raça
pior
alimentação,
estresses
e
de
causados
gênero,
o
pela
enfim,
um
somatório de causas permitindo críveis suposições sobre as razões daquelas
diferenças.
Para a COVID-19 não adianta procurar solução nos portais de busca da
Internet, pois a tal cura através de uma vacina, com algum otimismo, não
será viável em menos de um ano e meio. A medida racional mais imediata a
ser adotada neste momento foi e é o isolamento social, retardando assim a
propagação
da
doença.
Isto
permitiria
que
o
sistema
de
atendimento
público pudesse ser reorganizado, equipamentos de proteção e respiradores
pudessem
ser
produzidos
progressivamente
em
fosse
grande
aplicado
massa,
assim
como
periodicamente
o
kit
a
de
testes
vastíssimos
contingentes que, uma vez testados como positivos, deveriam ser colocados
em imediato isolamento e tratamento.
Porém,
o
tédio
do
isolamento
social
para
os
setores
médios,
e
principalmente para as elites, tem como contrapartida a fome coletiva da
população mais pobre. Para algumas comunidades espalhadas em grandes e
médias cidades “ficar em casa” (e sabemos da importância desta medida) é
também
manter
quadrados,
mais
sem
a
de
uma
circulação
dezena
de
ar
(e
de
pessoas
a
doença
em
se
poucos
instala
metros
nas
vias
respiratórias) e sem água. Clamar por higiene para a população pobre, que
sequer dispõe de recurso básico como a oferta de água e esgoto, é quase uma
ironia.
O
ideal
seria
um
álcool
gel
social,
com
políticas
de
governo,
articulando sistema de saúde e de proteção da renda dos trabalhadores e dos
setores informais da economia.
Junto
com
sofrimento
e
a
quantificação
no
medo
de
da
quem
mortalidade
adoece
—
é
fundamental
incluindo
pensar
familiares
no
—
e
sobrevive
à
sustentar
doença.
e,
para
Enquanto as pessoas não trabalham elas precisam
tal,
será
preciso
o
estabelecimento
de
uma
se
política
universal continuada de transferência de renda para os que estão fora da
força
de
trabalho
involuntariamente.
Obviamente
o
crédito
ou
o
papel
moeda pouco ajuda se não há riqueza material sendo produzida. E, para isso,
mais
uma
proteção
vez,
para
se
os
colocaria
a
necessidade
trabalhadores
das
dos
testes
indústrias,
das
e
equipamentos
fazendas
e
de
de
outras
atividades imprescindíveis. Ainda a respeito de políticas distributivas, há de
se
salientar
representado
Sistema
a
importância
pela
Único
mortalidade
de
grande
sistema
conquista
Saúde
brasileira
do
(SUS).
dos
da
público
de
Constituição
Algo
ainda
profissionais
de
saúde,
de
pouco
no
1988
Brasil
que
foi
dimensionado,
saúde
é
altíssima
o
a
em
comparação a outros países. E não são apenas médicos, mas uma legião de
enfermeiros e de técnicos, majoritariamente negras e negros.
Diante
da
gravidade
da
nova
realidade
criada
pela
pandemia
seria
necessário apoiar a pesquisa científica, criar mecanismos inteligentes para
retardar
a
propagação
do
vírus,
políticas
universais
de
transferência
de
renda e o trato específico para grupos demográficos mais vulneráveis entre
os quais os idosos, pessoas imunodeprimidas e os grupos de menor poderio
econômico e os historicamente discriminados. Enfim, esta e outras soluções
demandariam
redistributivas,
onerosos
recursos
articuladas
à
financeiros
vontade
política,
e
materiais
políticas
de
e
medidas
Estado,
ações
governamentais (municípios, estados e União) e gestão. Isto não iria acabar
com a COVID-19, mas poderia mitigar razoavelmente seus efeitos. No caso
das políticas de combate à AIDS verificou-se que mesmo sem uma vacina as
políticas
públicas
retrovirais
infectados.
de
investigação
conseguiram
Será
difícil
científica,
prolongar
imaginar
que
de
com
o
forma
a
teste
e
a
satisfatória
COVID-19
a
produção
a
saída
vida
será
de
dos
muito
distinta, com a diferença de que esta moléstia tem um poder de contágio
infinitamente maior (e de certa forma, uma letalidade mais imediata) posto
poder
ser
contraída
no
ar
que
se
respira.
Ao
contrário
dos
tempos
da
espanhola
, mesmo sem saber como, há uma universal noção sobre o que deve
ser feito.
Mas pior do que o vírus em si é a falta de lucidez ou vontade política para
enfrentar
de
forma
socialmente
justa
(ou
seja,
rejeitando
fortemente
os
termos do darwinismo social) os problemas existentes. Considerando que
recursos
financeiros
não
nascem
do
nada,
a
consequência
natural
desta
proposta é que os mais ricos teriam de ser os mais onerados na busca de uma
solução para o drama colocado. Porém, diante da atual correlação de forças
política
em
todo
o
mundo,
esta
alternativa
atualmente
é
singelamente
inviável.
No Brasil as tímidas medidas adotadas em prol da distribuição de renda já
foram
em
grande
parte
anuladas
pelo
somatório
da
crise
econômica
e
política, assim como pelas reformas constitucionais recentes nas legislações
trabalhistas
e
previdenciárias.
Uma
noção
tosca
de
teoria
econômica
aplicada pelos governos de todo o mundo nos leva à resignação diante do
óbvio
fato
de
desigualdades
que
sem
sociais,
mecanismos
com
ou
sustentáveis
sem
para
pandemia,
a
redução
estamos
das
indo
planetariamente para um poço sem fundo. Inversamente, no cenário atual,
políticas
redistributivas
são
ridicularizadas
como
populistas
ou
demagógicas.
A COVID-19 foi originalmente introduzida no Brasil pelas classes mais
abastadas
provenientes
de
suas
viagens
ao
exterior.
Diante
da
pandemia,
setores expressivos da sociedade brasileira preferem apostar na estratégia
negacionista,
chegando
ao
ponto
de
rejeitar
pura
e
simplesmente
a
existência do problema. Como os dados existentes apontam para uma maior
incidência e letalidade da doença entre os mais pobres, assim como para os
grupos
historicamente
discriminados
como
indígenas
e
negros,
vem
se
dando uma progressiva racialização do problema. Ou seja, se o assunto de
interesse público é identificado como coisa de preto e de pobre, então ele
não é problema de verdade. Tal como exemplifica de forma ilustre os dados
sobre o homicídio da juventude negra. O vírus pode ser daltônico, mas a
bala, supostamente perdida, parece saber em que corpo deve se alojar. O
menino João Pedro (amém, moleque!) estava em casa e não foi alvejado pela
COVID-19.
De
uma
forma
ou
de
outra,
a
longa
lógica
da
eugenia
sabe
selecionar as vidas que ela deve ceifar.
Divisor de águas e uma causa em comum
Em
1918,
brasileira,
relação
a
quando
a
escravidão
existente
emancipação,
o
entre
gripe
espanhola
havia
o
acabado
tráfico
pensamento
apanhou
no
atlântico,
social,
a
Brasil
a
em
há
cheio
30
anos.
escravidão
economia
de
a
população
Mas
moderna,
mercado
e
a
qual
a
a
pós-
ideia
de
modernidade com raça e com epidemias numa reflexão de ontem para hoje?
Neste
meio
termo
diversas
moléstias
históricas
como
a
tuberculose,
a
hanseníase e a sífilis foram tecnicamente vencidas através de novas vacinas,
testes e tratamentos. Isto não impediu que tais doenças seguissem fazendo
parte da realidade de milhares de negros e de negras brasileiros, mesmo em
pleno século XXI.
De certa forma, a maneira como cada um de nós vive determina como
cada
um
de
nós
padece.
Neste
terreno,
as
epidemias
são
problemas
históricos associados a tantas outras mazelas como a desigualdade social, o
racismo e a xenofobia. Obrigatórias ou não, vacinas ajudaram a humanidade
a superar alguns obstáculos, mas em si foram inermes para dar conta dos
seculares problemas como as desigualdades sociais e as raciais.
Obviamente, esperamos que uma milagrosa vacina possa ser testada com
sucesso o quanto antes, assim poupando os brasileiros e toda a humanidade
de ainda mais sofrimentos. Mas o tempo anterior à COVID-19 já era bastante
sofrido para milhões de pessoas vulneráveis a toda sorte de mazelas. Sair
deste
pesadelo
apenas
nos
levará
de
volta
à
vida
que
tínhamos
antes.
A
conclusão natural deste raciocínio é que, atualmente, nos encontramos num
caminho
circular.
Foi
justamente
o
que
tínhamos
antes
que
nos
colocou
nesta ratoeira.
Expressando
o
que
ocorre
enquanto
vivemos,
há
desigualdade
adoecimento e na morte. Como foi há 100 anos na pandemia da
também
agora
com
a
COVID-19,
nos
encontramos
em
uma
no
influenza
espécie
e
de
divisor de águas, onde projetos distintos de mundo se apresentam, podendo
nos levar para um ou outro lugar. Tal como naqueles idos, as disputas e as
lutas a serem travadas definirão o restante do século XXI e o tipo de planeta
que
seguirá
nos
carregando
universo
afora.
Desenvolvimento
científico
e
mais recursos médicos e tecnológicos com eficácia poderão ser associados
ao combate às desigualdades, ao racismo, ao sexismo e a todas as formas
correlatas de intolerância. Isto, mais o aprofundamento da democracia e a
adoção
de
modelos
de
desenvolvimento
sustentável
poderão
representar
um novo amanhã para populações de todo o mundo. Ou não. Referindo-nos
especificamente ao Brasil, atualmente, amplos setores da população ainda
são contra a distribuição de renda, as ações afirmativas, ao desenvolvimento
sustentável, aos direitos humanos, à liberdade de imprensa e à igualdade de
gênero. Mesmo sem COVID-19 já pairava em todo o mundo, especialmente
no
Brasil,
o
fantasma
da
intolerância
pela
via
do
darwinismo
social,
racismo e da xenofobia. No meio de uma imensa tragédia, se somam as
do
fake
news
, a total ausência de articulação entre os poderes, o desastre econômico
e
o
risco
de
um
progressivo
colapso
institucional
que
poderia
levar
a
sequelas ainda piores em diferentes planos.
Diante do demônio invisível que paira, a humanidade poderá chafurdar
numa agonia sem fim, no qual os termos mais duros do darwinismo social,
da eugenia e do ódio se tornarão o prato principal.
NOTAS
|
155
Professor
da
Universidade
do
Texas,
Austin;
presidente
da
Brazilian
Studies
Association
(BRASA).
156
|
157
|
158
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Middle East Respiratory Syndrome (Síndrome Respiratória do Oriente Médio).
|
A OXFAM é uma confederação que atua em mais de 90 países na busca de soluções para o
problema
da
pobreza,
desigualdade
e
da
injustiça,
por
meio
de
campanhas,
programas
de
desenvolvimento e ações emergenciais. Ver: https://www.oxfam.org.uk/. Acesso em: 26 maio 2020.
159
|
Disponível
em:
https://rdstation-
static.s3.amazonaws.com/cms/files/115321/1579272776200120_Tempo_de_Cuidar_PTBR_sumario_executivo.pdf. Acesso em: 26 maio 2020.
Muito além da perda da libido
160
GUILHERME ALMEIDA
Pandemia. A palavra mais proferida dos últimos três meses. Muito tem se
falado
acerca
do
contexto
posts lives
jornalísticas,
,
da
pandemia
em
textos
acadêmicos,
matérias
e tantos outros recursos do debate contemporâneo.
Se considerarmos que sexualidade é mais do que genitalidade e mais do
que a compilação das atividades sexuais de um indivíduo, podemos começar
a enxergar as complexas relações entre sexualidade e pandemia. Vale então
relembrar com Weeks, que:
[...]
embora
o
corpo
biológico
seja
o
local
da
sexualidade,
estabelecendo
os
limites
daquilo que é sexualmente possível, a sexualidade é mais do que simplesmente o corpo
[...]
o
órgão
mais
importante
nos
humanos
é
aquele
que
está
entre
as
orelhas.
A
sexualidade tem a ver com nossas crenças, ideologias e imaginações quanto com nosso
corpo físico [...] os corpos não têm nenhum sentido intrínseco e a melhor maneira de
compreender a sexualidade é como um “construto histórico” (1999, p. 38).
Além disso, para o mesmo autor, a sexualidade é um tema para a história.
Uma história da sexualidade é a história de um tema em fluxo constante. É
uma
história
de
nossas
preocupações
sempre
mutantes
acerca
de
como
devemos viver, de como devemos desfrutar ou negar o nosso corpo, tanto
quanto é uma história do passado. A maneira pela qual escrevemos nossa
sexualidade
nos
diz
tanto
do
presente
e
suas
preocupações
como
do
passado, portanto (WEEKS, s.d., p.57-58).
A
pandemia
da
COVID-19
é
muito
mais
tornou-se sinédoque da expansão de uma
acontece
nas
inúmeras
construções
que
do
praxis
tratam
que
uma
infecção
neofascista
o
no
viral,
país.
bolsonarismo
Isto
como
o
“verdadeiro”
vírus
ou
a
“suprema
pandemia”.
O
bolsonarismo
tem
sido
tomado por muitas pessoas como uma espécie de vírus que atacou o sistema
político
e
parte
capacidade
de:
da
população
rápida
brasileira.
propagação
Isso
(inclusive
é
verdadeiro
virtual);
de
por
submeter
sua
os/as
hospedeiros/as à replicação de certos comportamentos (como a negação da
importância
das
mortes
pela
COVID-19,
por
exemplo);
por
seu
caráter
oportunista (aproveita a baixa resistência da população e das instituições
neste
momento);
pelo
risco
que
comporta
em
sua
tentativa
de
escalada
autoritária (BALBI, 2020).
Se
considerarmos
então
que
a
pandemia
vem
ganhando
dimensões
completamente distintas nas diferentes regiões do globo e diferentes países
entendemos que, não obstante a sua dimensão global, ela interatua com os
contextos econômicos, políticos e culturais das realidades em que incide:
Em que pesem todas as repercussões sobre a saúde e as vidas das populações, a pandemia
de
COVID-19
tem
provocado
reflexões
sobre
as
formas
de
viver
e
de
produzir,
assim
como sobre os valores e as instituições que sustentam a organização da sociedade. Esta
pandemia também é responsável por recolocar, no cenário nacional e internacional, os
saberes científicos como recursos valiosos no enfrentamento do novo coronavírus [...].
No entanto, este contexto também demonstra que: (i) a saúde, enquanto estado vital,
setor de produção e campo de saber, está articulada à estrutura da sociedade através das
suas
instâncias
econômicas
e
político-ideológicas,
apresentando,
portanto,
uma
historicidade; e (ii) as ações de saúde (promoção, proteção, recuperação, reabilitação)
constituem uma prática social e trazem consigo as influências do relacionamento dos
grupos sociais [...]. Desta maneira, as consequências da pandemia de COVID-19 não serão
interpretadas e compreendidas se, além da dimensão biológica, não houver um rigoroso
exame
dos
diferentes
objeto
demanda
uma
grupos
sociais.
integração
no
Nesse
sentido,
plano
do
o
caráter
conhecimento
interdisciplinar
de
profissionais
desse
com
múltiplas formações, incluindo as ciências sociais e humanas (CSH) (ABRASCO, 2020).
A começar pela própria “chegada” da pandemia, vimos o efeito sinérgico
que teve com a formação sociohistórica e cultural do nosso país. Não foi
fortuito,
portanto,
que
num
país
que
ostenta
uma
das
maiores
desigualdades sociais do planeta, o novo coronavírus tenha chegado através
dos aeroportos e portos por onde circulava a elite econômica nacional vinda
de suas excursões pela Europa, EUA e Ásia. Também, não foi acaso, que a
primeira vítima fatal da COVID-19 no Rio de Janeiro tenha sido uma mulher
preta,
pobre,
idosa
e
empregada
doméstica
da
elite
do
Leblon
(MELO,
2020).
Conforme Coelho e Almeida Filho (1999, p.24), a saúde para Canguilhem
“é o luxo de se poder cair doente e se restabelecer” e o acesso ou não a este
luxo é socialmente desenhado. A pandemia de COVID-19 explicita que pegar
todo
mundo
dispostas
(o
infectado/a
pode,
que
que,
mas
é
nas
Canguilhem
na
maioria
características
chamou
das
de
sociais
“modos
vezes,
vai
interseccionalmente
de
andar
estar
a
gravada
vida”)
a
do/a
ferro
a
possibilidade ou não de sobrevida ou de morte mais ou menos assistida e
tranquila.
Há algo anterior a ser discutido que é anterior à chegada da pandemia da
COVID-19 no país. É a chegada ao poder — pela via eleitoral — da extrema
direita à presidência da república. Não é pretensão de este pequeno artigo
refletir
com
profundidade
sobre
o
conjunto
amplo
de
determinantes
da
chegada ao poder deste bloco econômico-político. Apenas desejo destacar
um
elemento
sem
o
qual
o
festival
de
fake
(disparadas
news
via
web
aos
celulares por robôs às vésperas da eleição) não teria sido bem sucedido. Este
elemento
é
a
gestão
da
sexualidade
e
das
relações
de
gênero
que
aquela
coalisão de forças reacionárias realizou. Em outras palavras: foi a promessa
de
uma
política
sexual
em
moldes
antidemocráticos,
repressivos
e
detratores de direitos, que assentaram as bases para sua conflagração junto
a
segmentos
sexual
conservadores
conservadora
uma
que
tem
na
estratégia
retórica
de
em
poder,
a
torno
saber:
da
moralidade
parte
dos/as
católicos/as e neopentecostais, militares e agentes de segurança, políticos,
juízes
e
mídias
outros
operadores
igualmente.
Tais
do
Direito,
agentes
jornalistas
permitiram
uma
e
operadores
propagação
de
viral
novas
destas
ideias junto a segmentos populares no contexto eleitoral.
O
que
afirmamos
é
que,
sem
o
recurso
à
cruzada
161,
antigênero
sem
contestar os direitos da população LGBTQI+, sem negar o direito ao aborto,
sem
a
valorização
das
masculinidades
e
feminilidades
tóxicas,
sem
o
proselitismo de uma relação masculinista, predatória e abusiva com o meio
ambiente
e,
sem
o
racismo
ambiental,
dela
decorrente,
tal
coalisão
não
chegaria ao segundo turno do mais alto cargo do Poder Executivo.
Este governo de extrema direita, sem sua política sexual, jamais teria tido
espaço
para
uma
praxis
neofascista
e
eugênica,
inclusive
de
gestão
da
pandemia. E, certamente, a pandemia de COVID-19 teria chegado ao país e
seria
enfrentada
em
muito
melhores
condições
econômicas,
políticas
e
culturais. Desta forma, milhares de vida poderiam ter sido poupadas.
Sexualidade,
exclusivo
falar
do
da
psicologia.
direito
condições.
atual
portanto,
Há
governo
pobre.
Além
à
ela
disso,
assunto
para
quatro
162
uma
é
é
Discutir política sexual
manutenção
apenas
e
não
vida
política
branca,
ela
da
e
de
sexual
vivê-la
o
e
direitos
morrer
legitimada
heteronormativa,
pressupõe
e
paredes
tema
163
sexuais
em
de
no
reprodutivista
todas
é
melhores
discursivamente
sexista,
extermínio
ou
as
e
outras
dissidências da sexualidade.
Esta
é
uma
pandemia
que
afeta
e
é
afetada
drasticamente
pela
nossa
sexualidade. A começar pelo fato de que sua propagação se dá nos domínios
da corporalidade (inclusive não genital): convívio e proximidade, apertos de
mão,
abraços,
beijos,
toques
de
pele
contra
pele,
compartilhamento
de
objetos. Subitamente, uma cortina de látex se interpôs ao que amamos e/ou
desejamos. Faz saudade o tempo em que o único motivo para queixa era uma
barreira
de
látex
que
esticada
ficava
com
vinte
centímetros.
Hoje,
ela
impede nossos prazeres mais frugais e, também, os mais temerários. Vimos
nossos
espaços
de
interação
social
e
sexual
reduzidos
drasticamente
à
frigidez das telas mortas. Isto é tanto pior, quando consideramos — como
disse Jean Cocteau — que a sexualidade é a base de toda amizade.
Além
disso,
nossos
corpos
foram
confrontados
com
a
dificuldade
de
manter a ilusão da liberdade absoluta de ir e vir a seu bel prazer. O que fazer
se a monogamia formal era sustentada pela informalidade de outras colisões
afetivo-sexuais e agora não se pode sair de casa sem culpa? O que fazer se
parte da nossa sexualidade é atendida por relações de compra e venda de
serviços
(serviços
sexuais
propriamente
ditos,
massagens,
terapias
corporais de relaxamento, serviços de embelezamento, entre outros) e eles
viraram
ambientes
de
extremo
risco
de
infecção?
Nossa
sexualidade
está
compulsoriamente sendo remodelada a partir do atrito com novos dilemas.
Discutir
sexualidade
em
nossa
cultura
implica
necessariamente
em
discutir mercado e trabalho sexual. É um mercado que movimenta bilhões
de reais, sustenta um número imenso de pessoas e famílias e que também
está em crise. As lutas sociais pela regulamentação deste tipo de trabalho
sempre
tiveram
implementado
país.
Os
como
como
oponente
adequadamente
homens
e
mulheres
trabalhadores/as
um
o
proibicionismo,
conjunto
cisgêneros/as
sexuais
em
e
jamais
de
direitos
neste
sentido
as
pessoas
trans
que
e
ambientes
reais
talvez
estejam
foi
no
atuam
entre
os/as mais atingidos/as pelo contexto social da pandemia, seja porque ela
afeta
irremediavelmente
pelos
serviços
a
sexuais,
sensibilidade
seja
porque
e,
consequentemente,
historicamente
a
procura
nunca
tiveram
mecanismos de proteção social dirigidos a si. Até onde acompanhei entre os
mecanismos de transferência de renda emergencial acionados pelo Poder
Executivo
pequenos
sexuais.
federal
e
estaduais
empreendores/as,
Por
outro
trabalhadores/as
lado,
para
não
estou
certamente
há
trabalhadores/as
qualquer
certo
os/as
menção
de
que
habilita
para
a
a
a
autônomos/as
e
trabalhadores/as
criatividade
produção
de
destes/as
respostas
mais inventivas à sexualidade nos novos tempos, a exemplo do que foram
capazes de oferecer na luta contra o HIV.
Conversa-se muito sobre a perda da libido ou sobre desencontros entre
casais (até então bem casados) onde um/a manteve ou ampliou o interesse
sexual
e
o/a
compreensão
outro/a
(bem
não.
São
abalos
disfarçada)
que
sísmicos
podemos
no
ter
amor
do/a
cortês
e/ou
cônjuge
prestador/a de serviços sexuais. Mas falar disso ainda é muito pouco.
na
como
Face à necessária e amaldiçoada quarentena, as recorrentes violações dos
direitos
sexuais
adolescentes,
dentro
de
e
as
violências
majoritariamente
suas
casas
—
são
sexuais
—
mulheres
majoradas
e
nos
que
até
acometem
idosos/as,
exíguos
metros
crianças,
muitas
vezes
quadrados
da
casa-cela. Se estas violações eram “suavizadas” pelo regime semiaberto que
permitia uma evasão para o mundo exterior, a “escolha” passou a ser entre
submissão
e
infecção,
e
o
alívio
ocasional
cessou
e
é
eventualmente
denunciado pela via virtual.
A quarentena não vem tendo os resultados sanitários esperados no país,
em
grande
medida,
pela
arrogância
de
uma
virilidade
branca,
classista
e
eugênica, que não aceita receber limites ao seu poder de ninguém, nem de
um vírus. Esta virilidade constrói tão compulsivas e agressivas relações com
o
prazer,
que
é
incapaz
de
encontrá-lo
nas
“pequenas
coisas”
do
mundo
doméstico. A quarentena contribuiu para evidenciar também, muitas vezes,
os
limites
de
moralidade
uma
vida
familiar
conservadora,
que,
muitas
a
despeito
vezes
é
do
familismo
extraordinariamente
típico
pobre
da
em
significado no cotidiano.
Face
à
quarentena,
explicitadas,
mas
as
relações
também
abusivas
emergiram
e/ou
os
desprazerosas
sucessos
foram
(por
vezes
desconsiderados) de outras tantas formas de relacionamento familiar e/ou
afetivo-sexual. São os sucessos de famílias e redes de amizade com formatos
pouco
convencionais,
mas
capazes
de
oferecer
suporte
econômico
e
subjetivo em meio à pandemia. São os sucessos de relações afeitas à simetria
de direitos, ao respeito à autonomia e aos gostos dos/as parceiros/as.
Harmonias insuspeitas puderam ser encontradas por praticantes de sexo
tântrico
por
(acostumados
voyeurs
virtual,
por
praticantes
e
práticas
exibicionistas
exemplo),
de
a
por
164,
BDSM
de
sexuais
nudes
prolongadas
(mais
celibatários/as
por
bem
e
mais
adaptados/as
satisfeitos/as,
poliamoristas
ou
relaxantes),
por
praticantes
ao
sexo
fetichistas,
de
relações
abertas... É uma polimorfia de possibilidades erótico-políticas que podem
deixar sua condição social de
à
heternormatividade
exóticas
pela necessidade de respostas criativas
compulsória,
aos
limites
opressivos
de
práticas
sexuais com finalidades meramente reprodutivas ou das condutas eróticas
com
rígidos
limites
descolonizadas,
exógenos.
É
demonizadas
possível
ou
que
sexualidades
clandestinas
possam
dissidentes,
oferecer
um
repertório mais rico de elaboração erótica em meio à crise e para além deste
momento. É possível inclusive que isso tenha efeitos benéficos para a saúde
mental.
Por
fazer
outro
lado,
escolhas
é
possível
dizer que a oportunidade de, minimamente,
afetivo-sexuais
em
nossa
sociedade
é
prerrogativa
das
camadas médias e das elites, sobretudo no contexto de crise econômica que
antecedeu e se aprofundou durante a pandemia de COVID-19, com pífias
respostas
governamentais
satisfatória
é
a
ela.
comprometido
É
em
certo
que
grande
o
direito
parte
pela
a
uma
sexualidade
baixa
capacidade
econômica dos sujeitos.
Porém,
abastados
sexualidade
da
vida.
não
Os
é
um
recursos
luxo
de
que
consumimos
autoconfiança,
em
prazeres,
momentos
disputas
e
acordos inerentes aos jogos eróticos podem ser componentes importantes
da saúde sexual. Eles podem também auxiliar no desenvolvimento de uma
atitude
mais
crítica
e
de
agência
diante
dos
regimes
autoritários
e
supressores de direitos.
A
sexualidade,
não
à
toa,
sempre
foi
uma
arena
perigosa
e
disputada.
Através do controle dos corpos e de suas possibilidades, impõem-se mais
facilmente regimes de destruição crescente das oportunidades da vida para
a maioria e se constitui privilégios e abusos para um grupo seleto.
REFERÊNCIAS
ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA
DE
SAÚDE
COLETIVA
(ABRASCO).
Precisamos
das
Ciências
Sociais e Humanas para compreender e enfrentar a pandemia de COVID-19.
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https://epoca.globo.com/henrique-balbi/coluna-o-virus-
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ALMEIDA
FILHO,
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Almeida.
Physis,
Rio
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CORRÊA,
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Rio
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Disponível
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CORRÊA,
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Direitos
sexuais
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FIFIELD,
William. Entrevista a Jean Cocteau, publicada originalmente na Paris
Review,
nº
34,
verão
de
1964,
e
republicada
históricas entrevistas da Paris Review.
1989.
no
livro
Os
escritores
2:
as
São Paulo: Companhia das Letras,
MELO,
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em: maio 2020.
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corpo
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LOURO,
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WEEKS,
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https://www.dgespe.sep.gob.mx/public/genero/PDF/LECTURAS/S_01_0
4_La%20invenci%C3%B3n%20de%20la%20sexualidad.pdf.
Acesso
em:
jan. 2020.
NOTAS
160
|
161
|
Professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Para uma discussão extensa sobre as cruzadas antigênero, sua gênese e significados não só no
Brasil, cf. Corrêa (2018a; 2018b).
162
|
163
|
164
Para uma discussão conceitual sobre política sexual, cf. Carrara (2010).
Para uma discussão conceitual de direitos sexuais, cf. Corrêa e Petchesky (1996).
|
Conjunto
de
práticas
consensuais
envolvendo
sadomasoquismo e outros padrões de comportamento sexual.
bondage,
disciplina
e
dominação,
“
:”
Entre a deriva e o naufrágio
notas sobre a população LGBTI em
19
tempos de pandemia da COVID-
165
MILENA CARLOS DE LACERDA
“É difícil assinalar a perda de uma vida
que nunca contou como vida”.
[
BUTLER
, 2019 ]
Estamos passando pela maior pandemia desde a Gripe Espanhola de 1918.
No
instante
no
qual
escrevo,
a
Organização
Mundial
da
Saúde
(OMS)
registra que o novo coronavírus vitimou cerca de 335.218 pessoas no mundo
e 20.112 no Brasil e esse número deverá aumentar até o findar do dia. Numa
estimativa pessimista, o país poderá alcançar a margem de 194 mil óbitos, a
depender das medidas adotadas pelos gestores públicos, conforme estudo
do
Instituto
de
Métricas
e
Avaliação
da
Saúde
da
Universidade
de
Washington.
Trago uma reflexão no calor dos acontecimentos, nem tão acalorada dado
o necessário distanciamento social e o inevitável pico de contágio, ainda que
a
passos
largos
das
condições
ideais
de
afastamento
que
oportunizariam
uma análise aprofundada da COVID-19 e dos seus impactos.
Temos
poucas
possivelmente,
informações
nunca
sobre
tenhamos
a
quem
real
eram
dimensão
os
166.
“inumeráveis”
das
mortes
E,
decorrentes
desta pandemia acirrada pela omissão do Estado no enfrentamento ao vírus,
a
despeito
da
crescente
subnotificação
dos
casos
confirmados
e
da
subnumerificação das mortes.
Num
naufrágio
Governo
Federal
contaminações
mistificadores
sarcasmo
mortes
de
e
e
seculares,
concentrou-se
mais
na
ao
sofrimento
pandemia
se
menos
falência
irracionalistas,
frente
pela
proporções
da
entre
nos
objetivam
e
a
numa
e
feridos,
falecimentos
economia,
contrapondo-se
alheio
mortos
através
ao
de
instabilidade
dos
do
nas
discursos
isolamento
minimização
e
o
social.
efeitos
O
das
Ministério
da
Saúde e na propaganda de caráter obsessivo por um medicamento que não
possui eficácia comprovada e reconhecimento médico e científico.
Em meio à crise sanitária, nos interrogamos como a população LGBTI
(Lésbicas,
Gays,
vivenciando
a
Bissexuais,
pandemia
Transexuais,
da
COVID-19,
Travestis
e
Intersexuais),
considerando
os
está
rebatimentos
particulares nesse público. Abordar os desafios desta população em tempos
da propagação do vírus SARS-COV2 no Brasil requer um breve resgate das
questões referentes à sexualidade e identidade de gênero existentes antes de
nos tornarmos o país com maior número de mortes e contágios na América
Latina.
sobre
Nessa
a
sexuais
crise
e
as
perspectiva,
do
capital,
tal
o
necessidades
reflexão
abuso
envolve
uma
governamental
particulares
relativas
análise
em
aos
torno
LGBTI
aproximativa
dos
em
direitos
meio
ao
espalhamento vertiginoso do vírus.
A impossibilidade de acesso à saúde, educação, habitação e políticas de
emprego e renda vinculam-se à invisibilidade e exclusão de determinados
indivíduos,
poder
cujos
público,
indicadores
dificultando
sociais
as
sequer
iniciativas
são
e
mapeados
ações
de
por
parte
do
enfrentamento
à
discriminação. Além da subnotificação dos dados, em geral, sistematizados
pelas
organizações
persecutória
que
LGBTI,
atravessamos
descredibiliza
as
uma
pesquisas
onda
científicas
âmbito das universidades e dos institutos de pesquisa.
negacionista
produzidas
e
no
A
ausência
de
visibilidade
e
monitoramento
epidemiológico
da
população LGBTI ofusca o vilipêndio de pessoas que, no Brasil, ainda não
adquiriram sequer o status de cidadão de direito. O aumento galopante do
contágio
na
realidade
políticas
para
o
brasileira
combate
à
agrava-se
LGBTfobia,
no
contexto
reverberando
da
redução
um
das
contexto
de
conservadorismo e fascismo pujantes. Isso indica que o novo coronavírus e
suas expressões adjacentes representam algumas voltas a mais no parafuso
da
LGBTfobia,
uma
vez
que
a
situação
de
extrema
vulnerabilidade
é
acentuada nos momentos de crise.
A alegoria do barco LGBTI em meio à pandemia da COVID-19 somente
adquire
legitimidade
quando
projetamos
as
dimensões
de
gênero,
raça
e
classe social. Por este motivo, não tomaremos as pessoas LGBTI descoladas
da realidade social, mas em sua materialidade concreta numa intersecção
com
as
demais
corporalidade
forças
capitalistas
167
é
racializada
e
de
opressão,
generificada
ao
passo
inserida
que
em
essa
aspectos
territoriais determinados.
Os
retrocessos
no
campo
dos
direitos
sexuais
se
fortaleceram
com
a
ascensão do governo ultraconservador, que recorrentemente propaga um
discurso
nacionalista
calcado
no
fundamentalismo
religioso,
através
da
instauração de um projeto autoritário sustentado por uma milícia digital.
Desde
o
medidas
golpe
de
da
parlamentar,
austeridade,
contrarreforma
públicos,
jurídico
do
trabalhista
perseguição
e
às
célere
observamos
desmonte
previdenciária,
universidades
do
a
dos
intensificação
direitos
sociais,
congelamento
públicas
e
do
dos
das
da
gastos
sucateamento
e
privatização das políticas da saúde, assistência e educação.
A capilaridade ideológica e política do mote “Deus acima de tudo e o Brasil
acima de todos” associa-se à agenda neoliberal, acompanhando o avanço da
extrema direita em outras partes do globo. Na altura desses acontecimentos
históricos,
a
“cultura
do
ódio”
e
a
“agenda
antigênero”
repercutem
diretamente na vida das pessoas LGBTI, propondo um conjunto de ações e
estratégias voltadas para o sujeito universal figurado no “cidadão de bem”,
notadamente
cruzada
da
homem
“ideologia
branco,
de
heterossexual,
gênero”
que
“cabe
conservador
de
tudo
um
e
pouco
cristão.
numa
A
lista
virtualmente longa”, obtém contornos particulares na América Latina, num
esforço episcopal de recuperar os valores da família nuclear burguesa, da
limpeza
da
corrupção
e
expurgo
da
infiltração
“esquerdista”
da
máquina
pública.
O
“cidadão
então,
se
bem
sentia
antirracistas
políticas
de
de
e
paladino
da
secundarizado
pela
anti-LGBTfóbicas,
cidadania
para
moral
e
bons
ascensão
notadas
negros,
dos
na
das
criação
LGBTI
costumes”,
e
pautas
e
que,
até
feministas,
fortalecimento
mulheres,
de
recuperou
a
“autorização e o devido reconhecimento” dos seus privilégios. Os asseclas
das políticas bolsonaristas fomentam a violência, o racismo, a homofobia e o
sexismo com fortes traços fascistas, com direito à recordação saudosa do
Golpe de 1964, motivados por uma espécie de redenção nacional do que lhes
caberia por direito.
O poder de decisão sobre quais vidas realmente importam, nos termos de
Butler
(2019),
evidencia
(masculino/feminino)
“outro”
numa
e
a
de
hierarquização
um
engrenagem
ideal
do
da
norma
heteronormativo
normal
e
do
que
patológico,
binária
qualifica
o
desviante
e
subalterno. A defesa da família recupera traços eugênicos e pautados num
suposto
darwinismo
estigmatização
aumento
das
que
social,
culminam
violências
e
de
promovendo
na
restrição
assassinatos,
de
práticas
direitos
motivadas
cotidianas
fundamentais
pelo
de
e
no
imperativo
de
sexualidade e expressão/identidade de gênero.
A
noção
eliminado
sexual
da
homossexualidade
propõe
que
se
soluções
relacionam
como
milagrosas
com
patologização e medicalização.
o
livre
problema
e/ou
e
desvio
terapêuticas
mercado
e
com
de
as
moral
a
ser
reconversão
dinâmicas
de
A direção materialista que interpreta o movimento da realidade para além
da imediaticidade nos permite inferir que a crise de proporções mundiais
não se trata exclusivamente da pandemia da COVID-19. A atual crise agudiza
contradições fundamentais da produção e reprodução das relações sociais
capitalistas.
O
retorno
à
‘normalidade’
desconsidera
o
patriarcado
e
a
escravidão como componentes da sociabilidade capitalista, naturalizando a
desigualdade racial, sexual e de gênero que marca a nossa formação sócio-
histórica.
Sob essa perspectiva, precisamos refletir acerca dos impactos específicos
da
COVID-19
sentidos
pela
população
LGBTI:
Como
esses
sujeitos
estão
vivenciando a atual crise? Quais as condições objetivas e subjetivas para o
isolamento social das pessoas LGBTI? Quais as relações de trabalho e acesso
a
equipamentos
de
proteção?
De
que
forma
são
tratados/as
nos
serviços
públicos de saúde? Quais as condições de moradia e saneamento? Como se
manifestam
políticas
as
relações
sexuais
existência
desse
no
familiares
momento
segmento
nesse
da
contexto?
pandemia?
populacional
Como
Quais
se
as
historicamente
inserem
condições
as
de
marginalizado
e
invisibilizado na teia social?
Em
meio
ao
recrudescimento
do
conservadorismo,
tais
interrogações
denotam que ainda há muito o que se construir para enfrentar a letalidade
do vírus nos corpos considerados descartáveis. A discriminação sofrida nos
espaços
públicos
por
exemplo,
poderá
ser
um
fator
que
impossibilite
a
procura pelo atendimento nos serviços de saúde e na rede socioassistencial,
tornando-os/as ainda mais vulneráveis à doença.
No segmento LGBTI, as vidas das pessoas trans são ainda mais precárias
e passíveis de extermínio. O boletim da Associação Nacional de Travestis e
Transexuais (ANTRA) nos informa que, mesmo no período de isolamento
social, os crimes de ódio contra as pessoas trans foram dez vezes mais letais
que
a
COVID-19,
entre
janeiro
e
abril
deste
ano.
A
impossibilidade
do
isolamento social é outro fator intensificador de risco para contaminação
pelo vírus, pois 90% das mulheres trans e travestis não conseguem acessar o
mercado
formal
de
trabalho
e,
por
consequência,
necessitam
recorrer
à
prostituição como a única fonte de renda.
Por outro lado, devemos problematizar o significado e as consequências
do
confinamento
com
famílias
homofóbicas
como
fortalecedor
do
sofrimento psíquico, tendo em vista a trajetória pregressa de rejeição e o
histórico de violência intrafamiliar. É responsabilidade do Estado garantir
abrigamento seguro, acolhimento e proteção em caso de vulnerabilidades e
violência
doméstica,
incluindo
a
garantia
das
condições
de
saúde
e
alimentação.
Dentre as necessidades elencadas no decorrer deste ensaio, a Associação
Brasileira
de
Saúde
Coletiva
(ABRASCO)
sistematizou
em
nota
as
necessidades urgentes e específicas relativas às pessoas LGBT+, a constar a
garantia
de
atendimento
integral
e
suportes
específicos
às
pessoas
intersexuais e transexuais, considerando as peculiaridades clínicas, o acesso
e
a
continuidade
identidade
para
a
de
das
gênero
população
terapias
nos
LGBT+
hormonais
serviços
que
e
públicos,
trabalha
o
a
respeito
criação
como
ao
de
nome
apoio
profissionais
do
e
social
e
cuidado
sexo,
em
situação de rua e em privação de liberdade; e o acolhimento e manejo de
situações
de
sofrimento
psíquico
da
população
LGBT+,
que
já
apresenta
características de guetização e isolamento social. Além dessas questões, o
documento
recupera
conscientização
ainda
sobre
os
a
importância
direitos
sexuais
e
de
promover
reprodutivos
o
no
debate
e
contexto
a
de
pandemia e a abordagem de um serviço de saúde que reconheça as diversas
configurações
familiares,
bem
como
o
fortalecimento
das
políticas
de
equidade no enfrentamento da pandemia (ABRASCO, 2020).
A
persistente
LGBT+,
invisibilidade
desprovida
sexualidade,
imediatas
no
raça
e
do
Pink
geração
enfrentamento
social
que
168,
Money
sejam
à
assola
exige
a
que
devidamente
COVID-19.
O
maioria
as
da
questões
salientadas
diálogo
população
de
gênero,
nas
permanente
ações
com
o
Movimento
LGBTI
desempenha
um
papel
fundamental
na
criação,
monitoramento e avaliação das políticas de saúde empreendidas em âmbito
nacional, haja vista a experiência deste diálogo na construção de respostas
para
a
epidemia
de
HIV/AIDS
na
década
de
1980
e
a
materialização
da
Política Nacional de Saúde Integral de LGBT no âmbito do Sistema Único de
Saúde (SUS).
Devemos
doação
mencionar
de
sangue
no
inconstitucionalidade
Nacional
de
ainda,
âmbito
das
Vigilância
a
recente
do
normas
Sanitária
conquista
judiciário
do
regulamentação
brasileiro,
Ministério
(ANVISA)
da
que
da
denunciando
Saúde
mesmo
e
da
da
a
Agência
registrando
baixo
estoque de sangue durante a crise atual, mantinha a proibição de doação a
homens gays e pessoas trans.
À vista dessas considerações, sublinhamos a indispensável direção crítica
para as nossas mobilizações sociais e lutas políticas no enfrentamento às
táticas
de
mitigar
restruturação
os
efeitos
da
da
crise,
economia
capitalista
principalmente
nos
no
pós-pandemia
contextos
para
marcados
pela
dependência. Posto isso, não poderemos negociar o sentido da emancipação
política
e
humana
tão
cara
à
heterogeneidade
da
classe
trabalhadora
que
requer, per si, uma transformação social substantiva.
Por
mais
desanimadoras
que
possam
parecer
nossas
circunstâncias
contemporâneas, Davis advoga que o mundo é moldado pela transformação.
E mais: se não fosse pela luta de massa do passado, é possível que sequer
tivéssemos
possa
força
produzir
Comprometidos
de
imaginação
para
transformações
com
a
luta
apreender
radicais
feminista,
que
nossa
(DAVIS,
antirracista,
ação
coletiva
2019,
p.55).
anti-LGBTfóbica
e
anticapitalista, articuladas com a práxis das redes comunitárias para conter
os
danos
do
novo
coronavírus,
continuaremos
reivindicando
uma
democracia substantiva e uma liberdade em condições reais, distante dos
marcos neoliberais e sem exploração de classe e opressão de gênero, raça e
sexualidade!
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Considerações da ABRASCO sobre a saúde da população LGBTI+ no
contexto
da
epidemia
de
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BUTLER,
DAVIS,
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Angela.
Justiça
para
comunidade
lésbicas,
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e
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MBEMBE,
Achille.
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O
AOC
direito
Média,
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França,
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respiração.
2020.
Trad.
Disponível
Ana
Luiza
em:
Braga.
https://n-
1edicoes.org/020. Acesso em: 18 maio 2020.
NOTAS
165
|
Assistente Social, Professora do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Tocantins
(UFT).
Doutoranda
em
Serviço
Social
no
Programa
de
Pós-Graduação
em
Serviço
Social
da
Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FSS/UERJ). Pesquisadora
do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em “Sexualidade, Corporalidades e Direitos” (UFT).
166
|
Memorial
dedicado
à
história
das
vítimas
do
novo
coronavírus
no
Brasil.
Disponível
em:
https://inumeraveis.com.br/ Acesso em: 15 maio 2020.
167
|
A
partir
da
mediação
da
necropolítica
e
da
brutalidade
do
neoliberalismo
no
capitalismo,
Achille Mbembe (2019) desmistifica a disseminação democrática do vírus, a partir da distribuição
desigual ao direito à respiração. O autor elenca ainda as respostas dadas às comunidades e periferias
racializadas que, historicamente, são imputáveis ao extermínio e à política da matança.
168
|
Refere-se à capacidade de compra e consumo da população LGBT, através da proliferação
liberal de certa “representatividade” LGBT+, da mercantilização dos direitos, da comercialização dos
acessos e das tessituras da homonormatividade.
Povos indígenas em Alagoas
19:
e a COVID-
práticas e cuidados
169
MARLI DE ARAÚJO SANTOS
Em tempos de pandemia pensar a vida em primeiro lugar tem sido um
desafio dentro de uma sociedade estruturalmente violenta. Assim, pensar
nesse
momento
enfrentamento
foco,
como
da
os
COVID-19
compreendendo
que
povos
é
indígenas
colocar
estas
são
a
vida
e
se
as
intrínsecas
estruturam
estratégias
aos
de
modos
para
luta
de
o
em
vida
e
ancestralidade desses povos.
Antes
presença
da
formação
do
português
catequização
nordeste
dos
foi
branco
iniciada
brasileiro
de
banguês
no
1650
de
para
Alagoas,
Terra
catequizar
Recôncavo
até
a
Baiano
1700,
e
quando
os
se
dos
Caetés
povos
indígenas.
espalhou
houve
a
teve
por
A
todo
expulsão
a
o
dos
portugueses da região. No período compreendido entre 1570 e 1880, vários
foram os conflitos entre indígenas e não indígenas pelas terras nordestinas,
cujo
resultado
Brasil.
Em
foi
a
dizimação
Alagoas,
esses
quase
total
conflitos
das
populações
reduziram
indígenas
significativamente
no
as
populações indígenas:
Os
11
povos
indígenas
remanescentes
do
estado
de
Alagoas
—
que,
segundo
José
dos
Santos, da aldeia Karapotó, têm como referência comum o ritual religioso do Ouricuri —
encontram-se
Parcionha;
assim
Kalancós
distribuídos
em
Água
pelo
Branca;
território
Karapotó
alagoano:
em
São
Povo
Gerinpancó
Sebastião;
Karuazu
em
em
Pariconha; Katoquin em Inhapi; Tingui-Botó em Traipu; Tingui em Feira Grande; KaririXucuru em Palmeira dos Índios; Kariri-Xocó em Porto Real do Colégio; Wassú-Cocal em
Joaquim Gomes; Korupancá Inhapi (SCHUMAHER, 2004, p. 11).
Os povos indígenas remanescentes alagoanos que estão localizados no
semiárido alagoano são o Povo Gerinpancó em Parcionha e os Kalancós em
Água
Branca
Índios;
ambos
Korupancá
história
contada
no
sertão
Inhapi;
através
alagoano;
Tingui-Botó
da
violência,
Kariri-Xucuru
em
da
Traipu.
violência
em
Esses
Palmeira
povos
cultural
dos
têm
imposta
sua
pelo
homem branco, cristão europeu que impôs a povos indígenas a sua religião,
seus costumes, sua vivência de sexualidade suas relações de gênero e suas
doenças.
A respeito dessa preocupação com a preservação de suas culturas, particularidade que
vem se consolidando nas últimas décadas, Mana Xucuru-Kariri, a Maninha de Alagoas,
lembra que, “o índio antes tinha vergonha de dizer que era índio” (O GLOBO, 2004, p.
170
3)
.
As principais demandas postas pelos povos indígenas eram direitos civis,
acesso à educação formal com a preservação da língua nativa e a preservação
da cultura e costumes dos povos indígenas.
Ao mesmo tempo em que se estabelece a luta não se abre mão da tradição,
dos costumes, da cultura, da visão de mundo, do ritual e da relação com a
natureza. Assim, coloca em relação direta com a forma de cuidar de todos e
todas, como cosmovisão indígena e ao mesmo tempo a interlocução com
relações
sociais
brutalmente
sociedade
de
classes,
atingidos
capitalista
uma
vez
que
pelos
processos
sua
significação
e
de
e
os
povos
exploração
indígenas
e
foram
dominação
ressignificação
no
modo
da
de
produção do capital. Nesses termos, a vivência da pandemia para os povos
indígenas traz a um só tempo o modo de produção do capital, que coloca o
isolamento
estratégia
social
de
(ainda
combate
à
que
com
COVID-19,
e
muitas
a
disputas)
necessidade
como
desse
principal
isolamento
ser
construído dentro das aldeias.
Nessa
relação
preservação
do
estão
povo.
inseridas
Como
duas
questões:
preservação
da
a
preservação
vida,
todos
da
estão
vida
e
a
inseridos
numa
preocupação
preocupação
discurso
de
preservação
se
real
em
estabelece
morte
de
de
tempos
para
alguns
outros
de
todos
seja
(leia-se:
pandemia,
os
seres
recorrente
classes
digamos
humanos,
como
sociais).
A
que
ainda
que
o
para
a
questão,
a
estratégia
segunda
essa
preservação do povo. Para os povos indígenas envolve toda a preservação da
vida e história de um povo historicamente dizimado.
A
Plataforma
COVID-19
no
de
Monitoramento
171
Brasil
informa
da
que
situação
os
casos
indígena
nas
na
aldeias
pandemia
em
todo
da
Brasil
totalizam 363.340 e o número de óbitos é de 22.772, sendo que as aldeias em
Alagoas não se configuram entre as dez mais vulneráveis. Ainda segundo a
Plataforma,
Alagoas
e
Sergipe
contavam
com
228
casos
suspeitos,
760
confirmados, 361 casos recuperados clinicamente e 35 óbitos.
A Procuradoria da República em Arapiraca — Ministério Público Federal
—
publicou
a
Recomendação
172
Nº
14/2020/PRM-API/3ºOF
que,
entre
outras considerações, aponta:
CONSIDERANDO
o
crescimento
exponencial
do
número
de
casos
confirmados
e
do
número de mortes por COVID-19 em todo território nacional e que, até a publicação do
Boletim Epidemiológico n. 65 da Secretaria de Estado da Saúde em 10.05.2020, o estado
de Alagoas contava com 2.258 (dois mil, duzentos e cinquenta e oito) casos confirmados
de COVID-19, 126 (cento e vinte e seis) óbitos e 1.470 (mil, quatrocentos e setenta) casos
suspeitos; e que vários municípios que contam com aldeias indígenas em seus territórios,
como Porto Real do Colégio, Joaquim Gomes, Palmeira dos Índios e São Sebastião, já
registraram casos confirmados de COVID-19, com registro de um óbito de uma indígena
Kariri Xocó.
O
MINISTÉRIO
SECRETÁRIO
SAÚDE
DE
PÚBLICO
ESTADUAL
ÁGUA
PARICONHA,
FEDERAL
DE
BRANCA,
PALMEIRA
RESOLVE
SAÚDE
FEIRA
DOS
e
aos
GRANDE,
ÍNDIOS,
RECOMENDAR
SENHORES
INHAPI,
PORTO
REAL
ao
SENHOR
SECRETÁRIOS
JOAQUIM
DO
DE
GOMES,
COLÉGIO,
SÃO
SEBASTIÃO e TRAIPU para que IMEDIATAMENTE:
ADOTEM
as
providências
administrativas
para
assegurar
o
fluxo
atualizado
de
informações, no menor tempo possível e através da criação de canais permanentes
de
diálogo
(ex.
via
comunicadores
instantâneos,
do
tipo
WhatsApp,
ou
outro
meio
expedito), entre os serviços públicos de saúde e o DSEI-AL/SE em relação aos casos de
indígenas
COVID-19.
atendidos
com
quadro
de
síndrome
gripal
ou
suspeita/confirmação
de
ENCAMINHE-SE
à
6ª
CCR,
às
lideranças
indígenas
de
todo
o
Estado
de
Alagoas,
à
Coordenação Regional da FUNAI-NE1 e à Coordenação do DSEI-AL/SE para ciência.
Essas
recomendações
reforçam
que
a
vulnerabilidade
das
Terras
Indígenas em relação à COVID-19 não está articulada apenas à questão da
letalidade da doença, mas principalmente, à fragilidade histórica dos povos
indígenas no Brasil.
A
perspectiva
da
COVID-19
entrar
em
comunidades
indígenas
pode
representar
um
cenário devastador. Uma alta porcentagem da população indígena pode ser impactada
devido à alta transmissibilidade da doença, vulnerabilidade social de populações isoladas
e limitações relacionadas com a assistência médica e logística de transporte de enfermos.
A
possibilidade
de
subnotificação
das
populações
indígenas
e
a
falta
de
vigilância
dos
vetores de dispersão da doença podem impactar seriamente a capacidade de controlar a
transmissão
da
COVID-19.
Além
da
mortalidade
populacional,
a
diminuição
da
integridade socioeconômica pode reduzir ainda mais a capacidade dos povos indígenas
em lidar com a crescente fragilização das políticas públicas de saúde e proteção territorial
(OLIVEIRA, 2020, p.01).
Destarte,
pensar
as
formas
de
isolamento
social
diante
da
pandemia
coloca para os povos indígenas não apenas o isolamento, mas a necessidade
da proteção e manutenção de seus povos e tradição. Nessa esteira é preciso
fortalecer as relações na aldeia, as formas de proteção e a potencialização do
conhecimento construído a partir da relação com a natureza.
Segundo Tenório e Fernandes (2020) essas questões são estruturais no
modo
de
vida
dos
territórios
indígenas
diante
do
projeto
(secular)
de
necropolítica direcionado a esses povos no Brasil. É com base nessa análise
que os autores apontam como:
A pandemia do COVID-19 provocou uma necessidade de ativação nos usos de chás, de
banhos
com
ervas
e
plantas
locais
diante
da
possibilidade
de
adoecimento
dos
mais
velhos, como grupo de risco, a passagem dos conhecimentos tradicionais às crianças e
aos mais jovens foi adotada como estratégia coletiva para garantir a permanência dos
modos de vida da aldeia. Essa estratégia fortalece as relações geracionais, valorizando
não
somente
ancestrais.
os
Com
anciãos,
a
mas
também
impossibilidade
de
as
crianças,
como
deslocamento
protagonistas
para
os
centros
dos
saberes
urbanos,
na
realização de outras formas de trabalho na cidade ou comércios nas feiras locais, devido
ao plano de isolamento social das aldeias, as roças aumentaram.
Uma
experiência
importante
para
refletir
as
mudanças
geopolíticas
em
tempos
de
pandemia foi o deslocamento das pessoas dos grandes centros urbanos para o interior do
país,
como
lugares
movimento
de
aconteceu
maior
entre
segurança
indígenas
e
possibilidade
Kariri-Xocó
de
de
produção
Alagoas.
coletiva.
Alguns
Esse
parentes
que
viviam em São Paulo retornaram às aldeias, o que foi motivo de muita alegria e festa para
o
povo.
ficarem
O
na
retorno
mata
foi
em
feito
com
quarentena,
muita
por
cautela,
duas
na
semanas
necessidade
(TENÓRIO;
dos
que
regressaram
FERNANDES,
2020,
s.p.).
No
relato
acima,
sobre
as
estratégias
do
povo
Kariri-Xocó,
podemos
perceber que ao mesmo tempo em que a aldeia se protege do vírus não pode
se proteger apenas dele, pois mantém sua busca de resistência histórica, ou
seja, mantendo sua ancestralidade, sua relação com a terra, associando esses
cuidados às orientações de saúde sobre o isolamento social e a quarentena.
As práticas de combate à COVID-19 realizadas pelo povo Kariri-Xocó são
formas de manter a vida e o povo, são práticas pensadas na coletividade da
aldeia, visando os velhos e os jovens, homens e mulheres na mesma medida,
mostrando que ninguém é descartável e nos ensinando que vida, história e
resistência caminham de forma indissociável.
REFERÊNCIAS
DIEGUES,
Manuel.
econômico
do
O
bangue
engenho
nas
de
Alagoas.
açúcar
Traços
na
vida
da
Influência
cultural
do
regional.
sistema
Maceió:
Edufal, 1980.
OLIVEIRA,
no
Ubirajara et al. Modelagem da vulnerabilidade dos povos indígenas
Brasil
a
Covid-19.
Nota
Técnica.
2020.
Disponível
em:
https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/nsa/
arquivos/nota_tecnica_modelo_covid19.pdf. Acesso em: 24 maio 2020.
SCHUMAHER,
Schuma. Gogó de Emas: a participação das mulheres na história
do Estado do Alagoas. Rio de Janeiro: REDEH, 2004.
TENÓRIO,
Tanawy de Souza;
FERNANDES,
Saulo Luders. Etnia Xukuru-Kariri e a
produção de saúde mental e práticas populares no enfrentamento a COVID-19.
2020. (no prelo).
NOTAS
|
169
Professora Adjunta da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Campus Arapiraca Unidade
Palmeira dos Índios.
170
|
171
|
172
“Abrindo Portas na Universidade”. O Globo, Rio de Janeiro, 06 mar. 2004. Prosa e Verso, p.3.
Disponível em: https://covid19.socioambiental.org/. Acesso em: 24 maio 2020.
|
2020.
Disponível em: http://www.mpf.mp.br/al/arquivos/2020-1/recom_14.pdf. Acesso em: 24 maio
19
As mulheres e a pandemia da COVIDna encruzilhada do cuidado
173
RITA DE CÁSSIA SANTOS FREITAS
174
CARLA CRISTINA LIMA DE ALMEIDA
175
ANA LOLE
176.
O filme é Blade Runner
Terra
desolado.
Parece
O ano, 2019, Los Angeles. Vemos um planeta
chover
a
todo
tempo,
os
humanos
deixaram
o
planeta e aqui ficaram os outros, os desgarrados, os pobres. Passou o ano de
2019 e a profecia de Ridley Scott não se realizou. Estamos em 2020, sem
simulacros,
mas
numa
pandemia
mundial
que
parece
nos
aproximar
do
universo cinematográfico. Mas a vida é real.
Podemos
nos
lembrar
aqui
de
outro
filme,
Guerra
dos
177.
Mundos
Não
lutamos contra invasores extraterrestres, mas contra um vírus invisível ao
olho humano que, se não tem uma letalidade tão grande, de qualquer forma
se transformou num inimigo comum às várias nações. Um vírus que não nos
permite os abraços, o toque, o beijo, o aperto de mãos na chegada e na saída.
Logo
nós,
um
povo
que
adora
rir,
tocar,
abraçar...
estamos
restritos
a
encontros por trás de uma máscara, a toques protegidos por luvas e a festas
178 será esse?
via programas on-line. Que estranho mundo novo
Esse
estranhamento
se
espraia
por
vários
campos
—
saúde,
política,
economia, ... —, mas queremos pensar aqui na seguinte questão: como esses
dias atingem as mulheres em seus cotidianos? Não se tratando de um texto
conclusivo,
lançamos
algumas
reflexões
por
acreditarmos
que
essa
epidemia tem uma face feminina e que traz para as mulheres um alto preço.
Por
questões
históricas
as
mulheres
sempre
estiveram
à
frente
dos
cuidados e isso não seria diferente em tempos de COVID-19. Leonardo Boff
há tempos disse que o “cuidado implica um modo-de-ser mediante o qual a
pessoa sai de si e se centra no outro com desvelo e solicitude” (2005, p. 29).
Ao lermos essa frase, uma imagem com certeza surge à nossa mente e é uma
imagem feminina. Não será um homem capaz dessa ação?
Mas algo que podemos acrescentar a essa frase é que cuidado dá trabalho.
Cuidar cansa, requer atenção, não se trata apenas de uma atividade objetiva.
Existe
trato
uma
com
dimensão
as
subjetiva presente nas atividades do cuidado —
crianças,
com
os
idosos,
com
os
doentes,
na
maneira
no
como
queremos nossas casas arrumadas e a família alimentada —, isso supondo
que temos um lugar a chamar de casa e condições para alimentar a família.
Cuidar de si e cuidar do outro sempre fez parte do repertório das mulheres
nas suas mais variadas condições de vida. Considerando que mais de 50%
das
famílias
gestão
da
brasileiras
vida
familiar,
são
chefiadas
elas
são
as
por
mulheres,
principais
vemos
responsáveis
que
além
por
da
adquirir
recursos para sobrevivência. E fazem isso não apenas via trabalho, mas por
meio
de
muitas
e
diversificadas
redes,
na
maioria
das
vezes,
redes
femininias.
Isso
se
exacerba
em
tempos
de
pandemia
da
COVID-19,
onde
a
vida
familiar, os cuidados, a casa e a incerteza do trabalho ocupam lugar central.
Não
se
pode
exigir
normalidade
em
tempos
anormais.
O
que
podemos
esperar das pessoas vivendo em tempos extremos? Como as atividades do
cuidado
se
exercem
nesses
tempos
e
como
repercutem
no
cotidiano
de
mulheres e de homens?
A antropóloga Débora Diniz, em entrevista à Folha de S. Paulo em abril de
2020,
não
tem
dúvidas
em
afirmar
que
a
pandemia
atinge
os
gêneros
de
forma diferente: “Quando o Estado não protege e nos abandona, é aí que a
179, uma vez que
pandemia tem gênero, porque o cuidado cabe às mulheres”
estas são responsáveis pela economia do cuidado.
São
várias
aumento
manter
da
as
as
dimensões
violência
atividades
precariedade
do
que
podemos
doméstica
de
até
trabalho
trabalho
as
formal
cotidiano
de
abordar
aqui
dificuldades
e
informal.
ganha-pão
que
e
desde
incertezas
Na
as
vão
o
sobre
informalidade
mulheres
hoje
e
se
afligem ou se arriscam na procura de suas freguesas de costuras; de alguém
para
vender
seus
quitutes;
e
indagam
sobre
o
futuro
de
suas
ocupações,
como tomar conta de crianças e de idosos.
Nas
camadas
médias
as
famílias
descobrem
a
falta
que
fazem
as
trabalhadoras domésticas, tratadas muitas vezes com tanto descaso. Saber a
180, quando e se volta se tornaram questões fundamentais
que horas ela volta
dentro
de
um
manutenção
pelos
riscos
do
ambiente
trabalho
que
em
que
formal
muitas
as
tarefas
ganha
correm
nas
não
requintes
são
de
ocupações
bem
divididas.
dramaticidade,
de
saúde,
A
seja
trabalho
majoritariamente feminino, seja pela sobrecarga de trabalho em domicílio, a
exemplo
do
teletrabalho.
Em
19
de
março,
na
perplexidade
do
início
de
medidas de isolamento de contenção da pandemia da COVID-19 no Brasil,
um
coletivo
de
professoras
da
Universidade
de
Brasília
chamava
atenção
para o que representa para mulheres no exercício da docência, sobretudo
em casa, responder às pressões e demandas que não pararam de crescer. Dar
aulas, participar de longas reuniões on-line, bancas de avaliação de trabalhos
e por aí vai. A carta chamava a atenção ainda, para a necessidade de estrutura
que acomete estudantes e docentes, principalmente as mulheres, e envolve
acesso à internet, domínio de técnicas e metodologias específicas, espaço de
trabalho em suas casas, somada às demandas femininas de cuidados com a
alimentação, a casa, a saúde física e mental de outros e de si própria.
E
como
manter
fundamental
para
essa
a
dimensão
sobrevivência
do
cuidado
das
sem
famílias
a
presença
pobres,
mas
de
um
também
elo
das
médias: a presença de outras mulheres? Somos uma sociedade em que as
crianças
circulam
(FONSECA,
2002).
Mas
não
podem
circular
hoje
e
as
casas das avós e das vizinhas se tornaram territórios proibidos. A ausência
da
escola
para
muitas
famílias
traz,
além
da
falta
de
um
lugar
para
as
crianças, a insegurança alimentar. Diante de tanta urgência, estamos numa
encruzilhada, para nos mantermos vivas é necessário agir.
Na
encruzilhada
Precisamos
o
que
transgredir
aparece
para
como
termos
obstáculo
conquistas
e
é
a
transgressão.
alcançarmos
voos
maiores. E é no isolamento que emana das casas que encontramos o eco
possível
das
reivindicações
por
garantias
da
vida
humana.
São
casas
de
mulheres dos morros, das favelas, dos subúrbios, dos asfaltos, de papelão
nas calçadas das cidades, ..., o eco é pela não banalização das mortes. O apelo
é que não tenhamos uma legião de carpideiras caminhando pela cidade.
Em tempos de pandemia fica mais evidente a presença das interferências
do Estado em nossa vida privada. Como exemplo, podemos citar: o Estado é
quem
define
sistema
de
como
saúde
e
e
onde
nos
vamos
diz
quem
enterrar
pode
e
nossos
quem
entes;
não
pode
quem
regula
receber
o
visitas;
designa quem terá acesso aos leitos e respiradores; é ele que atesta os óbitos;
define o que é serviço essencial, entre outros. Poderíamos dizer, também,
que a pandemia da COVID-19 nos impossibilita os rituais que acompanham
a morte, mas também dos casamentos, das festas, dos shows, dos eventos
acadêmicos...
Como nos inspira Gramsci, precisamos de um novo sujeito coletivo para
transgredir e construir uma nova “direção intelectual e moral”, ou seja, “um
novo
tipo
de
sociedade
e,
consequentemente,
a
exigência
de
elaborar
os
conceitos mais universais, as mais refinadas e decisivas armas ideológicas”
(GRAMSCI,
1999,
p.
225).
As
mulheres
sempre
foram
transgressoras
nas
lutas pela sobrevivência, pela visibilidade, pela saúde e pelos direitos sexuais
e
reprodutivos
e,
por
isso
mesmo,
historicamente
sempre
foram
perseguidas numa verdadeira “caça às bruxas” (FEDERICI, 2017).
Em
março
desse
ano,
a
ONU
Mulheres
pediu
especial
atenção
às
mulheres. Pensar nestes espaços privados é fazer micropolítica. É dizer não
a
uma
política
voltada
para
a
morte,
apostando
numa
política
de
vida.
Débora
Diniz
mundo
coloca,
na
pós-pandemia
negociação
política”
mesma
os
e
entrevista
valores
vamos
ter
à
Folha
feministas
que
falar
de
de
S.
estarão
Paulo,
“na
conceitos
que
ordem
como,
no
da
cuidado,
proteção social, interdependência e saúde. Mas estamos vivendo um duro
aprendizado.
Talvez caiba aqui retroceder a uma questão feita há tempo por Todorov
(1995):
“pode
humana?”.
virtudes
As
situação
virtudes
do
consideradas
contraposição
dimensão
uma
do
às
cotidiano,
mais
virtudes
cuidar
dos
extrema
nos
exploradas
próximas
heróicas
outros
—
que
e
ajudar
do
si
pensar
por
esse
universo
seriam
de
a
—
condição
autor,
são
feminino
masculinas).
mesmo
a
E
aparece
as
(em
nestas,
de
a
forma
contundente. Escolhas devem ser feitas. Escolhas políticas, econômicas. A
sociedade tem que tomar posição, “[...] não podem existir os que são apenas
homens, os estranhos à cidade. Quem vive verdadeiramente não pode deixar
de
ser
cidadão,
e
de
tomar
partido.
Indiferença
é
abulia,
é
parasitismo,
é
covardia, não é vida. Por isso, odeio os indiferentes” (GRAMSCI, 2004, p.
84). Ou como se referia Dante Alighieri em A Divina Comédia: “os lugares
mais
sombrios
do
Inferno
são
reservados
àqueles
que
se
mantiveram
neutros em tempos de crise moral”.
Diz-se nas redes sociais e no jornalismo que os países comandados por
mulheres
estão
naturalizar
esse
tendo
lugar
um
das
desempenho
mulheres,
melhor.
mas
Com
reconhecer
isso
uma
não
queremos
experiência
de
vida que não podemos abrir mão. O que não podemos é nos calar.
Podemos estar numa encruzilhada e em isolamento social, porém o ato
de transgredir nos fará (re)criar uma “vontade coletiva nacional-popular”
(GRAMSCI, 2000) com novos valores feministas e evidenciando as lutas das
mulheres, principalmente, na política do cuidado. Resistiremos à “caça às
bruxas” e ao recrudescimento da vida para as mulheres.
REFERÊNCIAS
BOFF,
Leonardo. O cuidado essencial: princípio de um novo ethos. Inclusão
Social, Brasília, v. 1, n. 1, p. 28-35, out./mar. 2005.
FEDERICI,
Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva.
São Paulo: Editora Elefante, 2017.
FONSECA,
Cláudia.
Mãe
é
uma
só?
Reflexões
em
torno
de
alguns
casos
brasileiros. Revista Psicologia USP, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 49-68, 2002.
Disponível
em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0103-65642002000200005&lng=pt&nrm=iso>.
Acesso em: 14 maio 2020.
GRAMSCI,
Antonio.
filosofia.
A
Cadernos
filosofia
de
do
cárcere.
Benedito
Vol.
Croce.
1:
Introdução
Rio
de
ao
Janeiro:
estudo
da
Civilização
Brasileira, 1999.
GRAMSCI,
Antonio.
Cadernos
do
cárcere.
Vol.
3:
Maquiavel,
notas
sobre
o
Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
GRAMSCI,
Antonio.
Escritos
políticos.
Vol.
1:
1910-1920.
Rio
de
Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004.
TODOROV,
Tzvetan. Em face do extremo. Campinas: Papirus, 1995.
NOTAS
173
|
Professora Titular da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social (NPHPS/UFF).
174
|
Professora Associada da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Coordenadora do Núcleo de Estudos Família e Gênero (UERJ).
|
175
Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). Membro da Coordenação Nacional da International Gramsci Society Brasil (IGSBrasil).
Pesquisadora
no
Núcleo
de
Estudos
e
Pesquisas
em
Filosofia,
Política
e
Educação
(NuFiPE/UFF) e no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Políticas Públicas e Serviço Social
(TRAPPUS/PUC-Rio).
176
|
Blade Runner é um filme de ficção científica de 1982, dirigido por Ridley Scott e com roteiro de
Hampton Fancher e David Peoples.
|
177
Guerra dos Mundos é um filme de 2005, dirigido por Steven Spielberg e com roteiro de David
Koepp e Josh Friedman.
178
|
179
|
Parafraseamos o romance Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, publicado em 1932.
“Mundo pós-pandemia terá valores feministas no vocabulário comum, diz antropóloga Débora
Diniz”.
Folha
de
S.
Paulo,
06
abr.
2020.
Disponível
em:
<https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/mundo-pos-pandemia-tera-valoresfeministas-no-vocabulario-comum-diz-antropologa-deboradiniz.shtml>. Acesso em: 14 maio 2020.
180
|
Parafraseamos o filme Que horas ela volta, filme brasileiro de 2015 com roteiro de Anna Muylaert
e Regina Casé, dirigido por Anna Muylaert.
Notas de uma travessia — reflexões
de uma assistente social em Portugal
19
em tempo de pandemia da COVID-
181
MARIA INÊS AMARO
Em
tempo
de
pandemia
da
COVID-19
percebo,
de
uma
forma
muito
visível, que apesar da investida neoliberal, continuo a poder contar com um
sistema nacional de saúde sólido e confiável; tenho um sistema de segurança
social que reforçou a proteção social a quem está em dificuldades; disponho
de
meios
de
comunicação
credíveis
e…
tenho
um
governo
responsável,
ligado ao seu país, ciente de que a “coisa pública” é a finalidade e propósito
últimos
da
política.
Isto
dá-me
o
conforto
de
sentir
que
vivo
no
lado
privilegiado do mundo!
Os tempos são bizarros, incertos, de grande perplexidade. Quanto a mim,
tenho-os vivido de uma forma bem particular: a partir do olhar de alguém
recém-chegada a um serviço central da Segurança Social!
O avistamento
Meados
de
Janeiro…
estava
há
um
mês
e
meio
na
Segurança
Social
e
acabava de regressar de uma viagem à Malásia. Numa reunião semanal com
os agentes de proteção civil ouço pela primeira vez falar do vírus que andava
na Ásia. Dirigi-me ao representante da área da saúde para perguntar o que
era aquilo, para lhe dizer que acabava de chegar da Malásia…
“É um vírus, uma espécie de gripe, não sabemos bem…”. Combinamos
ficar atentos e acompanhar o evoluir da situação. Rapidamente fui absorvida
por um sem-número de afazeres e não voltei a pensar, por uns dias, neste
assunto.
…
A onda está a chegar
O mês de Fevereiro foi em crescendo: “Inês, todas as instituições sociais
têm
que
elaborar
os
seus
planos
de
contingência,
como
vais
fazer?”
Não
fazia ideia… havia que estudar o que vinha da saúde, retomar o que se fez
quando da Gripe A, confiar numa equipe de nove chefias e cerca de oitenta
colaboradores
com
quem
tinha
começado
a
trabalhar
há
dois
meses
e
esperar que as coisas acontecessem e bem…
Cada colega ia alvitrando, dizendo a sua ideia enquanto a hierarquia e o
poder político se abatiam (também) sobre mim. Foi preciso pensar e agir,
procurando
não
pisar
orientação
tendo
nacional
em
e
em
todas
o
terreno
conta
as
o
da
saúde,
potencial
instituições.
Foi
medindo
impacto
o
cada
em
desbravar
palavra
todo
do
o
e
cada
território
desconhecido,
procurando também entender qual era o meu espaço, o meu campo de ação
neste terreno complexo.
Ao
mesmo
pessoas
para
segurança,
tempo,
o
foi
preciso
teletrabalho,
trabalhando
com
orientar
um
organizando,
colegas
no
departamento
criando
sentido
de
de
noventa
condições,
terem
que
dando
pensar
diferente do habitual, sem nunca descurar a necessidade de manter a grande
máquina de um serviço central de segurança social em funcionamento.
O grande turbilhão
A primeira semana de Março foi o grande ponto de viragem! Ainda viajei,
com a minha equipe, para um encontro no Norte do País. Ao segundo dia,
recebo um telefonema de casa: o primeiro caso positivo em Portugal foi o de
uma professora do meu filho; toda a turma ficou em casa, passamos a ter
monitorização
bi-diária
do
estado
de
saúde
dele…
entrava,
com
a
minha
família, numa nova era!
No
final
dessa
semana,
já
de
volta
a
Lisboa,
começavamos
a
dar
instruções para liberar camas de hospital e colocar as pessoas aguardando
por
leito
de
hospital
por
falta
de
vagas,
dando
respostas
públicas
ou
privadas.
Criava-se o primeiro fluxo de ação, nesta interação entre a área social e a
área da saúde.
Entretanto, comecei a ficar com tosse e, com um filho em quarentena,
decidi
entrar
em
quarentena
voluntária…
aquele
foi
o
último
dia
em
que
estive presencialmente com os colaboradores do meu departamento.
No sábado à noite, a Ministra da Saúde interdita as visitas nas Estruturas
Residenciais
para
Pessoas
Idosas
na
zona
norte
do
País.
A
partir
desse
momento, o meu telefone começou a tocar, com chamadas sucessivas: como
fazemos?
Como
organizamos?
O
que
dizemos
às
instituições?
Estão
com
medo, o que podemos dizer?
A
minha
principal
sensação
foi
a
de
ter
entrado
num
túnel
escuro,
a
descer em alta velocidade, sem ver para onde estava a ir, nem o fim da linha…
Um novo capítulo na nossa história coletiva estava a iniciar!
Circuitos, redes, sistematizar necessidades e criar respostas
Nova semana e efetiva-se a ida dos colaboradores para teletrabalho. Fiz
uma
reunião
de
departamento
através
de
uma
plataforma
de
videoconferência: grande novidade, quase ninguém sabia bem como aquilo
funcionava, todos acharam graça da inovação!
Despedi-me dos colegas, procurei passar uma mensagem de segurança e
esperança:
da
recuperados…
China
apareciam
os
primeiros
números
de
casos
Em Portugal, os casos começaram a aumentar, o alarme social instalou-se
e comecei a receber instruções que não compreendia totalmente e a receber
perguntas e pedidos de ajuda para os quais não tinha elementos… trezentos
e-mails
por
dia,
dezenas
mensagens escritas e por
Entramos
território,
num
as
e
dezenas
de
chamadas
telefônicas,
dezenas
de
whatsapp
… e agora?
momento
instituições
em
que
queriam
senti
fechar
que,
um
portas,
pouco
as
por
equipes
todo
o
técnicas
queriam afastar-se, cada um queria proteger-se… foi o único momento até
agora em que senti verdadeiramente medo: o terreno não estava preparado,
não
tinha
respostas
e
eu
não
vislumbrava
que
recursos
e
que
atores
era
preciso mobilizar para criar rede de resposta.
Do turbilhão de reuniões, conversas, iniciativas começa a emergir como
claro a ideia de que era preciso trabalhar com a proteção civil, com a saúde e
com as autarquias locais. Daqui saiu um primeiro quadro legal que instituiu
um fluxo de trabalho entre estas entidades para responder às situações da
COVID-19 — um primeiro modelo de intervenção em rede estava criado.
Seguiu-se
a
identificação
municipalidade,
de
uma
e
constituição
rede
de
locais
em
de
todo
o
território,
acolhimento
para
por
pessoas
infectadas e para pessoas não infectadas.
Seguiu-se
situações:
a
criação
falta
equipamentos
de
de
de
vários
recursos
proteção
protocolos
humanos
individual,
nas
de
atuação
instituições,
testes
às
equipes
para
diferentes
distribuição
técnicas…
de
e
a
monitorização…
Foi
preciso
levantamento
informações,
construir
sistemático
com
a
todos
de
respectiva
os
dados
sistemas
e
análise.
começar
Em
de
a
paralelo,
informação,
reportar
colocar
fazer
diariamente
questões
aos
decisores, propor alterações legislativas, pensar em como responder a todas
as novas situações — foi a tentativa de começar a sistematizar o pensamento
e a preconizar eventuais respostas.
Do problema com as estruturas residenciais, passou-se ao problema das
pessoas em situação de sem-abrigo, ao problema dos reclusos libertados, ao
problema dos refugiados e requerentes de asilo. A propósito da pandemia,
várias
fragilidades
do
sistema
ficaram
visíveis
e
criou-se
também
a
oportunidade de poder repensar muitos processos de intervenção.
Paulatinamente, a realidade foi avançando e estamos agora em fase de
desconfinamento. Para esta etapa, o trabalho tem sido em torno da criação
de guiões para a reabertura das respostas sociais e organização de sessões de
informação para diferentes públicos para prestar informação e apoio para a
operacionalização
das
novas
regras
de
funcionamento
das
diversas
respostas sociais.
Todos
estratégia
os
e
dias
o
o
trabalho
trabalho
da
em
campo,
produção
de
o
trabalho
decisão
é
de
feito
montagem
em
rede
da
com
a
proteção civil, com a área da saúde, com as forças de segurança e militares e
com
diversos
ministérios
e
secretarias
de
estado
e
municípios.
Tudo
é
discutido, tudo é pensado e as soluções são construídas em conjunto.
Com quase noventa pessoas de um departamento a trabalhar em casa, foi
preciso também reestruturar procedimentos e formas de comunicação.
Preparar o amanhã
Finalmente
Maio
trouxe.
comecei
Não
foi
a
conseguir
um
respirar
respirar
de
e
dormir;
alívio,
mas
foi
foi
o
que
um
o
mês
respirar
de
da
tranquilidade de saber que já está uma estrutura montada e que as equipes
em campo já estão em marcha, operacionalizando as orientações que foram
dadas.
Uma coisa esteve presente desde o início: o pedido que fiz à equipe, a
alguns
elementos
mais
libertos,
para
pensarem
para
além
da
emergência:
“Vamos construir materiais de apoio para as famílias confinadas”, “Vamos
pensar no combate à solidão”, “Vamos pensar em respostas apontadas para
o apoio às famílias como um todo”. E algumas coisas foram surgindo.
No
pensamento
de
que
as
populações
estão
neste
contexto
especialmente expostas à vulnerabilidade, reforçamos o atendimento social,
montando
um
esquema
mais
fluido
e
aproximado
às
necessidades
das
famílias, mesmo em tempo de distanciamento físico.
Até que chega, do nível político, a preocupação com as políticas para o
depois, para o tempo pós-COVID-19. Uma oportunidade? Sim, certamente!
Rapidamente
começar,
desde
pensadores
propus
logo,
externos
problemas
sociais
formas
atuação.
de
uma
por
metodologia
um
para
trazidos
convite
vir
pela
falar
a
um
do
think
grupo
seu
COVID-19,
Chamamos-lhe
participativa
de
e
foi
um
trabalho,
a
investigadores
pensamento
prioridades
tank
de
de
quanto
aos
intervenção
momento
e
e
muito
estimulante e inspirador para técnicos, dirigentes e políticos.
Agora
para
estamos
voltar
a
a
trabalhar
submeter
ao
num
documento
escrutínio
do
integrado,
com
tank.
Um
think
propostas,
Plano
de
desenvolvimento!
Poderá ser o princípio de alguma coisa…
?
O que vai ser de nós
Distanciamento social? O que isso significa? Temos que pensar no que
falamos e porquê, temos que pensar nos nomes que damos às coisas.
Confinamento, sim, temos que o aceitar. Isolamento físico é uma forma
de
nos
defendermos
da
pandemia.
Veja-se
como
Portugal
até
agora
conseguiu combater um pico do surto e, com isso, evitar o entupimento do
Serviço
físico
Nacional
se
de
transforme
Saúde.
em
Mas
não…
não
distanciamento
Não podemos confundir as coisas!
admito
social,
que
não
o
o
distanciamento
podemos
permitir!
O uso da máscara, o evitamento do outro, o disciplinarmo-nos para não
nos darmos ao outro… não, temos que combater o tipo de mentalidade que
isto
pode
gerar!
Ligarmo-nos
ao
outro,
sermos
solidários
é
justamente
afastarmo-nos dele, protegendo-o e protegendo-nos — esta é a parábola, a
complexidade do mundo hodierno!
Quando,
pela
primeira
vez,
recebi
o
documento
que
estabelecia
as
condições e procedimentos para a reabertura das escolas (apenas dois anos
escolares),
não
conduzem
os
consegui
passos
ler
dos
até
o
alunos,
fim…caminhos
máscara
e
traçados
no
desinfecção
chão
de
que
mãos
e
monitorização da temperatura à entrada, mesas individuais, supressão dos
intervalos
—
um
filme
de
terror.
“Estamos
a
transformar-nos
em
autômatos!”, foi o que pensei…
Verti uma lágrima no primeiro dia em que, por obrigação, tive que colocar
uma máscara… Mas vamos ter que viver assim talvez um ano, talvez dois;
que calafrio!
Temos
condição
que
ser
humana,
fortes,
no
ultrapassar
seu
poder
e
o
na
choque,
sua
aceitar
as
vulnerabilidade.
condições
O
sucesso
e
a
do
combate à pandemia depende da atitude cívica e de cidadania de cada um de
nós,
da
adesão
a
uma
restrição
de
comportamentos
que
nos
protege
coletivamente.
Mas temos que nos reinventar, esta barreira colocada entre nós e o outro,
este estranhamento, esta divisão entre “a minha tribo”, com quem estou em
comunhão,
e
os
outros,
de
quem
nos
temos
que
proteger,
não
nos
pode
corroer. Como é que isto nos vais mudar? Não podemos deixar que isto nos
mude na nossa necessidade de comunhão e interação social.
É
certamente
perniciosos
nos
algo
a
devemos
que
devemos
prevenir:
não
estar
ao
atentos
e
de
distanciamento
cujos
efeitos
social,
mesmo
em tempos de defesa inequívoca do distanciamento físico.
É particularmente neste contexto que é preciso alimentar os laços sociais
e fazê-lo preparando-nos para um contexto de profunda crise econômica,
social, política, de modelo de desenvolvimento…. É uma oportunidade, é um
problema
tremendo
e
avassalador.
Precisamos
ter
força,
energia
e
criatividade, acreditar na democracia, acreditar nas pessoas.
Posso fazê-lo porque vivo num país onde a ideia de que política tem a ver
com
o
governo
da
coisa
pública,
tem
ressonância
e
vincula
a
atitude
dos
responsáveis políticos. Caso contrário, a tendência seria para viver sob a lei
do mais forte.
Como
assistente
sistematizei,
social,
implementei
acudi,
processos
coordenei,
de
potenciei,
intervenção,
formei
estimulei
a
rede,
reflexão,
perspectivei o futuro e estou empenhada em desenvolver soluções. Sempre
conduzida
por
uma
lógica
de
respeito
pelos
Direitos
Humanos
e
de
promoção da justiça social.
Tudo
isto
é
novo
e
revestido
de
uma
enorme
incerteza…
é
preciso
construir e reinventar!
NOTAS
181
|
Assistente social; Vice-presidente da Associação Portuguesa de Serviço Social; Vice-presidente
da European Association of Schools of Social Work; Diretora do Departamento de Desenvolvimento
Social, do Instituto de Segurança Social; Professora Auxiliar no ISCTE – Instituto Universitário de
Lisboa.
/
As os assistentes sociais na linha de
:
frente
violência e violações de direitos na
19
pandemia da COVID-
182
ANTONIO CARLOS DE OLIVEIRA
183
ARIANE REGO DE PAIVA
184
IRENE RIZZINI
Introdução
O Serviço Social tem sido uma das profissões legitimadas na formulação e
execução
das
políticas
sociais
do
pós-1988
nas
três
esferas
de
governo,
quando se firmou no marco jurídico e normativo brasileiro uma perspectiva
de
construção
de
um
sistema
de
seguridade
social.
Isto
se
deve
a
um
amálgama que devemos buscar na história, na trajetória da profissão, na sua
inserção institucional nas políticas públicas, no processo de consolidação de
uma formação acadêmica hegemônica que lhe garantiu um aporte teórico-
metodológico crítico e aprofundamento técnico-operativo para intervenção
na realidade social, e de suas lutas no campo democrático que conformaram
a elaboração e defesa de um projeto profissional ético e político, vinculado a
valores que primam pela justiça social.
O
avanço
e
a
capilaridade
dos
sistemas
de
saúde,
assistência
social
e
previdência nos anos de 1990 e início dos 2000 encontraram um cenário
adverso, com disputas de interesses de muitas ordens, mas principalmente
no plano econômico, quando as políticas governamentais assumiram uma
direção claramente neoliberal e que não priorizaram os investimentos na
área social tal qual almejados pela proposta constitucional, havendo já na
sua
implantação,
processos
de
contrarreforma
que
realizaram
ajustes,
cortes e que colocaram a necessidade de uma permanente luta pela defesa e
fortalecimento
da
seguridade
social.
A
terceirização
com
baixíssima
qualidade na prestação dos serviços, a focalização na pobreza, a disputa de
recursos públicos entre ações governamentais e não governamentais foram
algumas das tendências das políticas sociais pós-Constituição.
Neste
período
influência
das
também
lutas
dos
se
acompanhou
movimentos
avanços
sociais,
na
nas
legislações,
elaboração
de
por
novos
programas, projetos e serviços que alçaram o lugar de direitos de proteção
de
determinados
vulnerabilidades
mulheres
e
vítimas
segmentos
da
desigualdades,
de
violência
população
como
em
crianças
doméstica,
maiores
e
situações
adolescentes,
pessoas
com
de
idosos,
deficiência,
refugiados, entre outros.
Desde 2014 o Brasil tem sofrido maiores ataques às políticas sociais, com
ações restritivas nos orçamentos após sentir os efeitos da crise econômica
mundial
e
principalmente
ultraneoliberais,
que
vêm
após
2016,
impondo
com
desmontes
a
nos
adoção
de
direitos
e
políticas
nos
frágeis
sistemas públicos que compõem a proteção social. Este é o cenário em que
nos encontrou a pandemia de infecção pela COVID-19 no início do ano de
2020.
Políticas
altamente
precarizadas,
sem
condições
adequadas
de
trabalho, com perdas aviltantes de recursos públicos para serem realizadas,
com demissões e terceirizações de contratos profissionais.
O
Serviço
Social,
portanto,
como
profissão
assalariada
e
incorporada
nessas políticas, sofre os efeitos da precarização através da sua condição de
trabalho,
usuária
como
dos
também
serviços,
que
na
relação
vivencia
direta
(m)
a
do
atendimento
escassez
de
acesso
à
a
população
direitos.
A
pandemia agudizou essa realidade. Este texto selecionou áreas de atuação
do
Serviço
Social
que
se
relacionam
ao
atendimento
de
situações
de
violência ou violação de direitos — que são serviços essenciais e temáticas
de
produção
de
conhecimento
na
linha
de
pesquisa
“Violência,
Direitos,
185, do Programa de Pós-Graduação
Serviço Social e Políticas Intersetoriais”
em
Serviço
Social
da
PUC-Rio
—
para
problematizar
o
contexto
de
enfrentamento da pandemia da COVID-19.
Grupos vulnerabilizados, pandemia e atuação do Serviço Social
O
atual
panorama
marcado
pela
pandemia
afeta
a
todas
as
famílias
e,
direta ou indiretamente, a população infantil e juvenil, representando mais
de
três
bilhões
de
pessoas
entre
zero
e
24
anos,
ou
41%
da
população
mundial.
De uma forma ou de outra, todos somos afetados, seja na saúde física ou
mental. Porém, há determinados grupos que estão muito mais expostos a se
contaminar
e
a
enfrentar
de
forma
mais
contundente
os
desafios
que
advirão da COVID-19. Neste grupo estão aqueles que vivem em contextos de
pobreza, nas favelas e periferias urbanas; populações ribeirinhas, povos das
florestas, imigrantes e refugiados, assim como crianças e jovens indígenas e
quilombolas, com frequência invisibilizados e esquecidos.
Dentre os grupos identificados como de mais alto risco de contaminação
estão aqueles que se encontram em situação de rua e de institucionalização,
como
as
crianças
e
os
adolescentes
em
serviços
de
acolhimento
institucional e cumprindo Medida Socioeducativa (MSE) em meio fechado,
assim
como
filhos/as
da
população
encarcerada.
Fundamental
destacar
nesse cenário, as/os profissionais que se encontram na linha de frente do
cuidado a esta população, principalmente da assistência social e da saúde,
assim
como
educadores
sociais
atuantes
nas
ruas
e
em
diversos
equipamentos.
O fenômeno é recente e poucos são os dados produzidos até o presente.
Vejamos, muito brevemente, o que se sabe sobre os impactos da pandemia
sobre
a
população
jovem
e
algumas
medidas
de
prevenção
e
tratamento,
veiculadas
por
organizações
públicas
e
privadas
em
âmbitos
nacional
e
internacional.
Os
pontos
mais
destacados
são:
violações
de
direitos
associadas
ao
fechamento das escolas (ausência de meios para acessar o ensino à distância
e
afastamento
(resultado
do
de
potencial
fechamento
rede
das
de
proteção),
escolas,
insegurança
importante
fonte
de
alimentar
alimentação
para os mais vulneráveis e decorrente da recessão econômica) e aumento da
violência
doméstica
e
sexual
contra
esse
grupo
(relacionado
ao
confinamento e ao uso legitimado da internet dele decorrente).
No campo da saúde pública, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) aborda
o
panorama,
pandemia
motivações
pela
e
formas
COVID-19,
socioeconômica
de
enfrentamento
ressaltando
desfavorável
ou
que
residentes
em
famílias
em
tempos
em
lugares
de
situação
onde
há
aglomeração são particularmente mais vulneráveis à situação (MARQUES
al.,
et
2020).
Registra-se o drama vivido pela população em situação de rua, sendo as
principais
violações
relacionadas
à
falta
de
acesso
aos
meios
para
a
manutenção dos hábitos de higiene necessários à prevenção ao contágio do
novo
coronavírus
e
à
ausência
de
uma
alimentação
adequada
capaz
de
fortalecer o sistema imunológico no combate à doença. A distribuição de
alimentos foi reduzida e houve fechamento de espaços públicos usados por
aqueles que vivem em situação de rua.
Diversos órgãos vêm apontando recomendações, que visam à prevenção e
ao
tratamento
frente
a
COVID-19.
Dentre
elas,
destacamos:
a
carta
elaborada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(Conanda), o Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra
186,
Crianças e Adolescentes e a Rede ECPAT
proteger
as
Ministério
crianças
da
e
Mulher,
adolescentes
da
Família
nos
e
enfatizando a necessidade de
tempos
dos
de
Direitos
isolamento
Humanos
social.
O
(MMFDH)
orienta aos municípios que os recursos do Fundo dos Direitos das Crianças
e
Adolescentes
(FIA)
sejam
destinados
a
proteção
da
criança
e
do
adolescente em tempos de surto do novo coronavírus no Brasil. Além disso,
o
MMFDH
aponta
que
institucionalizadas,
devem
em
ser
situação
priorizadas
de
rua
e
as
crianças
atendidas
e
pelo
adolescentes
Programa
de
Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM).
Além disso, o Conanda recomenda que sejam garantidos os direitos de
crianças
e
adolescentes
em
regime
de
acolhimento
institucional
e
de
adolescentes no âmbito do Sistema Socioeducativo. De acordo com o mais
recente
levantamento
(CNMP),
12%
das
do
Conselho
unidades
de
Nacional
internação
do
do
Ministério
país
estão
Público
superlotadas,
condição ideal para a propagação de doenças.
Destacamos,
para
a
ainda,
Infância
10
(Unicef)
ações
ao
indicadas
Governo
pelo
Federal
Fundo
do
das
Brasil
Nações
para
Unidas
proteger
os
direitos das crianças e dos adolescentes em tempo do novo coronavírus. São
elas:
informar
distribuição
a
de
população,
em
suprimentos;
especial
influenciar
os
mais
governos
vulneráveis;
para
manter
apoiar
e
a
adaptar
serviços essenciais; buscar soluções com governo e sociedade para garantir
o direito à educação; apoiar a continuidade dos serviços essenciais de saúde
para
mulheres,
crianças
e
comunidades
vulneráveis;
contribuir
para
a
continuidade do acesso aos serviços sociais de proteção contra a violência;
incentivar
a
apoio
adolescentes
aos
continuidade
do
para
acesso
aos
promover
a
serviços
sua
de
saúde
proteção
mental,
e
social;
dar
facilitar
o
engajamento e a participação deles; produzir evidências para apoiar ações e
187.
políticas; mobilizar doações de fundações, empresas e pessoas físicas
No
que
se
refere
ao
convívio
no
âmbito
familiar,
mulheres
e
idosos
também têm historicamente sido vítimas da transmutação de diferenças de
188,
gênero e geração em desigualdades. De acordo com dados do Ligue 180
houve aumento de quase 17% em denúncias de violência contra a mulher em
março
de
2020,
quando
se
oficializou
a
necessidade
de
distanciamento
social no país. Segundo o plantão do Ministério Público do Estado do Rio de
Janeiro, casos de violência doméstica conheceram um aumento de 50% após
determinações
estaduais
de
distanciamento
social,
com
prevalência
de
violência contra a mulher (MARQUES et al., 2020).
Refugiados
públicos
de
—
que
toda
já
convivem
ordem
—
com
restrições
constituem
de
outro
acesso
grupo
a
serviços
ainda
mais
vulnerabilizado no contexto da pandemia. Há recomendação do Ministério
Público Federal e da Defensoria Pública da União para que o Ministério da
Saúde faça contratação emergencial de 45 médicos para atenderem a esse
segmento
da
concentra
o
população
maior
recomendação,
Boa
Vista/AC,
o
a
nas
instalações
contingente
governo
de
de
Operação
refugiados
brasileiro
construção
da
uma
está
área
no
Acolhida,
Brasil.
Em
atenção
operacionalizando,
com
1.200
leitos
onde
na
se
a
tal
região
de
hospitalares
e
1.000 leitos destinados a pessoas infectadas e com suspeita de COVID-19,
para atendimento a refugiados e brasileiros (CRUZ, 2020).
Diversos
mestrandos
e
doutorandos
da
linha
de
pesquisa
“Violência,
Direitos, Serviço Social e Políticas Intersetoriais” atuam na linha de frente
de
enfrentamento
assistentes
sociais
assistência
social
liberdade
(no
da
pandemia
trabalhadores
e
saúde.
sistema
No
no
em
Estado
políticas
atendimento
penitenciário
ou
do
Rio
públicas,
direto
a
de
Janeiro
como
especialmente
sujeitos
socioeducativo);
à
privados
população
de
de
em
situação de rua; a pacientes internados em decorrência da COVID-19 e suas
famílias,
por
vezes
impedidas
de
sepultar
parentes;
há
profissionais
infectados em decorrência de seu trabalho em cuidados à população (não só,
embora principalmente no setor de saúde); em instituições de acolhimento
institucional; ou na sistematização e gestão de dados referentes à pandemia,
em tensão constante pelo temor de encontrar nomes de pessoas próximas
dentre vítimas fatais. Seus relatos (por assim dizer, informais, na busca de
escuta, suporte ou orientação) aos autores do presente texto deixam clara a
atualização cotidiana dos princípios norteadores do exercício da profissão,
no compromisso com a garantia universal e equânime de acesso a direitos e
à atenção de qualidade.
Conquanto ainda não seja possível precisar a dimensão da contribuição
de todas e todos que se encontram na linha de frente do enfrentamento à
pandemia e suas devastadoras consequências nos diversos âmbitos da vida,
sentimo-nos
autorizados
a
desde
já
registrar
a
alta
relevância
social
dos
serviços prestados à coletividade.
REFERÊNCIAS
BRASIL,
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Conanda e
sociedade civil reafirmam compromisso de proteger crianças e adolescentes em
situação
de
violência.
2020.
Disponível
em:
https://www.gov.br/mdh/pt-
br/assuntos/noticias/2020-2/abril/conanda-e-sociedade-civil-
reafirmam-compromisso-de-proteger-criancas-e-adolescentes-em-
situacao-de-violencia. Acesso em: 15 maio 2020.
CONSELHO
NACIONAL
Recomendações
Adolescentes
DOS
do
DIREITOS
Conanda
durante
a
DA
CRIANÇA
Para
Pandemia
a
do
E
DO
Proteção
Covid-19.
ADOLESCENTE
Integral
2020.
a
(CONANDA).
Crianças
Disponível
e
em:
http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/covid19/recomendac
oes_conanda_covid19_25032020.pdf. Acesso em: 15 maio 2020.
CRUZ,
Isabela.
Como
os
refugiados
coronavírus.
2020.
ficam
vulneráveis
na
pandemia
Disponível
do
em:
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/07/Como-refugiados-
ficam-vulner%C3%A1veis-na-pandemia-do-coronav%C3%ADrus.
Acesso em: 16 maio 2020.
MARQUES,
Emanuele
adolescents
factors,
during
and
Janeiro,
Sousa
the
mitigating
v.
36,
al.
et
Violence
COVID-19
measures.
n.
4,
against
pandemic:
Cadernos
Abr.
de
women,
children,
overview,
Saúde
2020.
and
contributing
Pública,
Rio
de
Disponível
em:
https://www.scielosp.org/article/csp/2020.v36n4/e00074420/en/.
Acesso
em: 10 maio 2020.
FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA (UNICEF).
responder
ao
coronavírus
Brasil.
no
10 ações do UNICEF para
2020.
Disponível
em:
https://www.unicef.org/brazil/10-acoes-do-unicef-para-responder-ao-
coronavirus-no-brasil. Acesso em: 15 maio 2020.
NOTAS
|
182
Professor do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio).
|
183
Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio).
|
184
Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio).
185
186
|
Linha de pesquisa composta pelos três docentes autores do texto.
|
A Rede ECPAT Brasil é uma coalizão de organizações da sociedade civil que trabalha para a
eliminação
da
exploração
sexual
de
crianças
e
adolescentes,
compreendendo
as
suas
quatro
dimensões: prostituição, pornografia, tráfico e turismo para fins de exploração sexual. Existe desde
1997, a partir da participação de algumas instituições no I Congresso Internacional de Combate à
Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes, realizado em Estocolmo, em 1996, quando
foi
criada
uma
agenda
mundial
pela
eliminação
do
problema.
Disponível
em:
http://ecpatbrasil.org.br/. Acesso em: 15 maio 2020.
187
|
Fonte: https://www.unicef.org/brazil/10-acoes-do-unicef-para-responder-ao-coronavirus-no-
brasil. Acesso em: 15 maio 2020.
188
|
Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência é um serviço de utilidade pública
gratuito e confidencial (preserva o anonimato), oferecido pela Secretaria Nacional de Políticas desde
2005.
19
A pandemia da COVID-
e o trabalho
de assistentes sociais na saúde
189
MAURÍLIO CASTRO DE MATOS
19
Considerações sobre o impacto da COVID-
no Brasil
A pandemia da COVID-19 tem sido enfrentada, a partir da orientação dos
órgãos de saúde pública, por meio de isolamento social e quarentena. Assim,
todo o mundo ouviu ou recebeu centenas de mensagens nas redes sociais
para
que
“fique
trabalhadores/as
em
casa”.
formais
A
está
partir
disso,
expressivo
desenvolvendo
seu
segmento
trabalho
em
dos/as
casa,
no
chamado trabalho remoto ou home office. Algumas empresas também estão
colocando seus/suas trabalhadores/as em férias. Em direção contrária vem
ocorrendo a recomendação para aqueles/as que trabalham nos serviços de
saúde. Para estes/as, as férias previstas foram suspensas e estão trabalhando
presencialmente.
O
Brasil
construiu,
no
seu
marco
jurídico-normativo,
um
sistema
de
saúde muito bom. O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma política que se
materializa
em
uma
série
de
serviços,
não
é
necessário
contribuir
diretamente (muito embora todos/as contribuam no seu financiamento) e
tem uma ampla concepção de saúde, compreendida como acesso ao que é
construído coletivamente, mas apropriado privadamente (BRAVO, 1996).
No entanto, desde o seu nascedouro, na Constituição Federal de 1988, o
SUS vem vivendo imensos boicotes, dentre os quais citamos apenas três: o
desfinanciamento
95/2016,
que
público
congelou
por
(a
exemplo
vinte
anos
da
o
Emenda
Constitucional
investimento
da
saúde
e
nº
da
educação);
a
sistemática
alteração
do
seu
modelo
de
gestão
para
perspectivas privatizantes (Plano de Atendimento à Saúde em São Paulo, e
“cooperativa”,
no
Rio
de
Janeiro,
nos
anos
1990,
Organizações
Sociais
atuando desde o governo federal do Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB) e, ainda, Fundações Estatais de Direito Privado e Empresa Brasileira
de Serviços Hospitalares, desde os governos do Partido dos Trabalhadores
(PT); e o avanço do setor privado, criando uma ideologia da impossibilidade
de
a
assistência
pública
à
saúde
ser
de
qualidade.
Isto
expulsa
amplos
segmentos os quais, iludidos com a compra do plano de saúde, julgam não
ser fundamental a defesa do SUS (MATOS, 2014; BRAVO et al., 2015).
Enfim
a
pandemia
desigualdade
resistências,
social
vemos
da
e
no
COVID-19
com
anos
horizonte
chega
de
ao
Brasil.
destruição
imensas
Com
do
sua
SUS,
dificuldades
de
histórica
apesar
se
das
pensar
um
futuro tranquilo para esse quadro desolador que a pandemia tem gerado nos
países por onde, antecipadamente, já passou.
Para
piorar
a
situação,
desde
o
início
da
pandemia
da
COVID-19
tem
havido sistematicamente falas do Presidente da República, Jair Bolsonaro,
de
desqualificação
do
potencial
do
vírus
posicionando-se
contrário
ao
isolamento social, com um Ministério da Saúde à deriva. Tal postura, não
por acaso, também tem sido a de empresários que o apoiam. Sob o discurso
de que a economia não pode parar, as falas do presidente expressam mais
uma
vez
seu
caráter
neofascista,
ao
tratar
como
mais
importante
a
manutenção dos lucros do capital em detrimento da possibilidade de mortes
de contingentes da classe trabalhadora.
Com isso, corroboramos com análises que reconhecem a coletivização do
medo que essa situação apresenta. Mas, sabemos que um meio eficaz para
enfrentar
o
medo
emancipatória,
é
a
aquela
razão.
que
Aqui
cabe
potencializa
ressaltar
nossa
que
riqueza
se
trata
como
da
ser
razão
social
pensante e sujeito de sua história (GUERRA, 2013). E como consequência, a
ação, que se baseia na realização de escolhas. Estamos falando do agir ético,
inerente
que
à
sociabilidade
valorize
a
humana
riqueza
a
qual,
humana,
defendemos,
entendida
seja
como
a
o
sociabilidade
exercício
das
potencialidades que homens e mulheres desenvolveram em seu processo de
humanização (BARROCO, 2001).
Portanto, é do humano a existência desse medo no atual contexto.
19?
Que relevância tem o Serviço Social na saúde em tempos de COVID-
Uma
vez
reconhecida
a
naturalidade
do
medo
no
contexto
atual,
queremos dialogar com o segmento da categoria de Serviço Social que não
está afastado do trabalho, nem em trabalho remoto; mas ao contrário, teve
férias
suspensas
e
está
nos
serviços
de
saúde
trabalhando.
Queremos
dialogar com assistentes sociais profissionais de saúde.
Certamente os serviços de saúde estão com suas rotinas alteradas. E cabe
lembrar que esses serviços, ainda que com desvirtuamentos, seguem uma
hierarquização:
pandemia
cirurgias
impôs
aos
eletivas
“transformação”
COVID-19;
atenção
de
primária,
serviços
nos
leitos
suspensão
de
de
secundária,
saúde
ambulatórios
direcionados
consultas
terciária/quaternária.
reestruturações:
especializados
para
os
agravos
ambulatoriais
de
suspensão
e
de
hospitais;
decorrentes
rotina
A
para
da
evitar
aglomerações e etc. Cada serviço de saúde estabeleceu suas prioridades de
atendimento.
Ao eleger as prioridades, os serviços de saúde precisaram criar uma forma
de comunicação com a população usuária. Em geral, se montou na recepção
dos serviços um espaço para informar sobre esses reordenamentos, além do
recurso aos meios de comunicação, notadamente as redes sociais.
Nesse contexto surgem diferentes iniciativas que, até então, não estavam
previstas.
Trata-se
profissionais
de
de
saúde
algo
são
fora
do
normal,
convocados,
situação
compondo
o
para
que
a
qual
os
chamamos
coloquialmente de “força tarefa”. Esta situação é prevista em alguns códigos
de ética, a exemplo do artigo 3, inciso d, do Código de Ética do/a Assistente
Social:
“participar
calamidade
de
programas
pública,
no
de
socorro
atendimento
e
à
população
defesa
de
em
seus
situação
de
interesses
e
necessidades” (CFESS, 2012). Assim, podemos perguntar: em que podem
contribuir os/as profissionais de Serviço Social em tempos de pandemia da
COVID-19?
Uma situação de pandemia em que o Brasil vive hoje certamente requer a
convocação
suas
de
assistentes
competências
quaisquer
Conselho
e
profissionais
tarefas,
desenvolver.
sociais,
ainda
Conforme
Federal
de
que
mas
de
estes
suas
Iamamoto
Serviço
Social
atuar
atribuições
importantes,
atenta
devem
que
(CFESS)
em
âmbito
privativas.
devem
(2012),
no
esses
sua
sobre
das
Não
são
profissionais
contribuição
ao
competências
e
atribuições privativas, o trabalho em equipe não erode as particularidades
profissionais.
Mas,
qual
é
a
particularidade
da
profissão
no
trabalho
em
saúde?
O
Serviço
como
objeto
2012),
o
espaço
que
sócio
Social
as
é
uma
profissão
diferentes
não
impede
com
expressões
que
ocupacional.
se
formação
da
possa
Conforme
“questão
pensar
já
generalista
social”
e
tem
(IAMAMOTO,
particularidades
abordamos
que
(BRAVO;
em
cada
MATOS,
2006), na saúde o objetivo do Serviço Social é a identificação dos aspectos
econômicos, políticos, culturais, sociais que atravessam o processo saúde-
doença
visando
mobilizar
recursos
para
o
seu
enfrentamento
e
articular
uma prática educativa que, nos termos de Abreu (2002), contribua para a
emancipação das classes subalternas.
Assim,
nossa
entendemos
contribuição
que
essa
nesse
é
a
bússola
momento.
para
Mesmo
compreendermos
em
uma
qual
situação
a
de
calamidade, de uma pandemia, não se pode referendar o discurso de que
todos/as
àquilo
devem
que
fazer
temos
tudo.
Mesmo
competência.
Isso
nessas
situações
resguarda
rema contra a sua desprofissionalização.
nosso
devemos
agir
nos
ater
profissional
e
Se
os
serviços
estão
sendo
reestruturados,
temos
que
—
a
partir
da
função social da nossa profissão — analisar onde podemos e devemos nos
inserir e também as situações em que precisamos apresentar proposições.
As normativas da profissão — Código de Ética, Lei de Regulamentação da
Profissão,
Resoluções
do
CFESS
—
e
os
Parâmetros
para
Atuação
de
Assistentes Sociais na Política de Saúde continuam sendo referências para o
trabalho profissional (CFESS, 2010).
Se os serviços de saúde estão sendo compreendidos como essenciais e,
portanto,
devem
ser
mantidos
abertos,
os
trabalhos
de
seus/suas
profissionais são relevantes. Naturalmente não está normal e, por isso, foi
reestruturado. A intervenção profissional de assistentes sociais precisa ser
projetada de acordo com esse critério de definição do que são as prioridades.
Por exemplo, há centros de saúde que realizam consultas ambulatoriais
—
pensemos
nos
casos
de
Infecções
Sexualmente
Transmissíveis
(IST),
HIV, Diabetes, Hanseníase — e se tirou o procedimento de atender apenas
usuários de primeira vez. Considerando que defendemos, historicamente, a
importância
de
nossa
intervenção
nesse
momento,
para
que
usuários/as
lidem de forma menos estigmatizante com o recém-diagnóstico, é possível
contribuir
para
a
adesão
ao
tratamento sendo relevante a socialização
de
informações referentes aos direitos sociais e trabalhistas. Aqui devemos e
podemos trabalhar.
Outro
exemplo:
há
unidades
hospitalares
que
estão
priorizando
o
atendimento à usuários/as com queixas que podem ser referentes à COVID-
19.
Nesse
caso,
havendo
uma
internação
do/a
usuário/a,
sabemos
que
o
Serviço Social tem uma contribuição fundamental para a vida desse sujeito,
com
orientação
informações
que
tais
para
sobre
familiares
intervenções
internado,
mas
afastamento
sim
não
com
e
amigos
serão
do
sobre
emprego
prevenção.
diretamente
representante
e
com
de
o/a
socialização
Parece-nos
usuário/a
amigos/as
ou
preferencialmente pela via remota (telefonemas, por exemplo).
de
nítido
que
está
familiares,
Ainda cabe ressaltar que, desde a implementação do projeto neoliberal no
Brasil a partir dos anos 1990 com suas estratégias de redução do Estado e
reestruturação produtiva, tem aumentado a precarização das condições de
vida e de trabalho da classe trabalhadora, que a atinge diferenciadamente.
Os estratos com menor qualificação laboral têm se afastado da possibilidade
de
trabalho
com
algum
direito,
havendo
um
incremento
exponencial
do
trabalho informal. Esses estratos são a maioria da população atendida por
assistentes
sociais
nos
serviços
de
saúde.
Em
tempos
do
necessário
isolamento social para o enfrentamento da pandemia esses sujeitos estarão
mais vulneráveis para garantir a sua reprodução.
Assistentes
sociais
têm
uma
contribuição
fundamental
nos
diferentes
serviços de saúde e não é uma pandemia que altera sua importância. O que
se
altera
é
a
forma
como
se
dará
o
trabalho,
mas
mantendo
nossas
atribuições privativas e competências profissionais.
Quais permanências e alterações para o trabalho profissional
19?
em tempos de COVID-
Referendamos
as
orientações
realizadas
pelas
autoridades
da
saúde
pública, tais como: evitar aglomerações nos serviços de saúde e, para isso, a
suspensão
de
atividades
em
que
isso
for
possível;
utilização
correta
dos
Equipamentos de Proteção Individual (EPI’s) em todos os atendimentos;
tomar
medidas
de
higienização
(lavagem
de
mãos
e
etc.),
dentre
outras.
Portanto, isso envolve a exigência desses insumos nos locais de trabalho e
apropriação correta da sua forma de uso.
Também
referendamos
trabalhadores/as
trabalhar
em
orientação
direcionada
domicílio,
no
de
àqueles/as
sentido
diversas
que
de
estão
que
entidades
dos/as
impedidos/as
negociem
com
de
seus
empregadores a redução da jornada, visando diminuir o risco de contágio.
Importante
também
o
afastamento
daqueles/as
profissionais
que
se
encaixam nos grupos de risco.
A pertinência de se tensionar para a redução da jornada de trabalho não é
algo
acessório
para
majoritariamente
o
Serviço
composta
Social,
por
visto
o
mulheres
fato
que
de
—
ser
em
a
profissão
que
pese
as
fundamentais e históricas lutas do movimento feminista — ainda são, na sua
ampla
maioria,
as
responsáveis
pelo
cuidado
com
as
pessoas
com
quem
convivem e pela limpeza da casa. Assim, em tempos de escolas fechadas, de
expressas
orientações
suspensão
do
tendência
maior
para
trabalho
das
ainda
de
que
a
população
trabalhadoras
sobrecarga
idosa
não
domésticas
em
todas
e
as
saia
de
casa,
diaristas,
há
dimensões:
de
uma
física,
emocional etc.
No
que
se
refere
ao
nosso
trabalho
profissional,
em
diálogo
com
os
excelentes materiais disponibilizados pelo conjunto CFESS-CRESS, temos
pensando em algumas estratégias, que estão abertas à crítica, indicadas a
seguir.
1. Precisamos
político,
nos
reapropriar
constantemente
teórico-metodológico
e
do
acúmulo
técnico-operativo
da
ético-
profissão.
Sabemos que muitos de nós já conhecem as normativas e as produções
intelectuais
olhos
livres
fundamentais
de
quem
de
está
nossa
vendo
a
profissão.
pandemia
Mas,
vale
reler
no
agora.
Isso
com
nos
fortalece e revigora nossos argumentos.
2. De posse dessa releitura, precisamos continuar agindo coletivamente
— mesmo que as reuniões de equipe estejam suspensas — pois sempre
se faz necessário lembrar que competência se constrói coletivamente,
não se tratando de um mérito ou êxito individual (MATOS, 2015). Por
meio das redes sociais precisamos, primeiramente, fortalecer nossas
construções coletivas nos serviços que trabalhamos, embasando assim
nossas proposições e decisões.
3. Uma vez encaminhado o que se sugere no item 2, faz-se fundamental
que
nos
articulemos
chamada
“rede”
importante
saber
está
com
colegas
com
como
de
rotina
estão
e
outras
instituições,
procedimentos
funcionando
as
outras
pois
a
alterados.
É
instituições.
A
articulação, via redes sociais, também poderá contribuir para o diálogo
coletivo
sobre
como
encarar,
nas
diferentes
dimensões
da
nossa
sociabilidade, as questões que envolvem a pandemia, como o medo por
exemplo.
4. As
altas
taxas
de
desemprego,
que
reverberam
na
informalidade
do
trabalho, são de conhecimento público e inconteste, tanto que, nesse
momento, tem havido iniciativas governamentais de garantia de renda
para a população que em virtude do confinamento não tem conseguido
vender sua força de trabalho. Também tem havido plantões de vários
serviços importantes para esse público, como as Defensorias Públicas,
além de alterações de protocolos. Apropriar-se dessas informações e
socializá-las constitui-se numa competência profissional fundamental.
5. Surgirão
requisições
técnico-administrativas
equivocadas
para
o
Serviço Social, mas se tomarmos como referência o que propomos nos
itens
1
e
2
teremos
capacidade
e
tranquilidade
para
enfrentar
tais
requisições. Caso a situação persista, sabemos que podemos recorrer
190.
às entidades da categoria
6. O compromisso fim do nosso trabalho profissional é a qualidade com
os serviços prestados aos/às usuários/as. Tal qualidade se constrói na
realidade, logo em condições objetivas. Assim, numa pandemia como
essa precisamos de fato diminuir ao máximo o contato com o público.
Estratégias como contato telefônico, a exemplo de um serviço de saúde
mental e também de um serviço de idosos/as, nos parece que podem ser
potencializadoras,
de
forma
a
não
interferir
tanto
no
necessário
acompanhamento a esses sujeitos. Aqui não nos cabe indicar receitas,
mas
incentivar
a
criação
de
diferentes
mecanismos
nesse
tenso
momento por que passa a saúde pública. Talvez possa ser um caminho
o
recurso
sentido
Ainda
a
de
redes
sociais
manter
cabe
dos
contato,
destacar
que
setores
que
já
ou
dos
temos,
serviços
com
compreendemos
a
que
de
saúde,
população
o
recurso
no
usuária.
a
essas
estratégias visa a dar continuidade ao trabalho do Serviço Social, assim,
os
contatos
devem
ter
uma
funcionalidade
no
contexto
da
nossa
intervenção profissional.
7. Na
direção
do
compromisso
sinalizado
no
item
6,
precisamos
reconhecer que alguns atendimentos precisarão ser realizados e, com
as possibilidades de contágio da COVID-19, não podemos atender de
porta
fechada.
Tal
questão
deve
ser
imediatamente
sinalizada
pelo/a
assistente social, em virtude do direito que o/a usuário/a tem ao sigilo
profissional, mas esse/a usuário/a vive no mesmo mundo que o nosso e
compreenderá.
atender
em
É
melhor
nome
responsabilidade
do
com
o/a
atender
com
sigilo.
É
usuário/a,
esse
cuidado,
melhor
que
como
do
que
não
compartilhar
sujeito,
em
essa
conjunto
com a nossa competência profissional, saberá lidar com o que pode ou
de que forma pode falar.
8. Não nos parece, até pelas condições em que se dá a internação para
quem
está
em
tratamento
atendimento
direto
repercussões
desse
socialização
de
comunicado
social,
ao
de
da
assistentes
tratamento
informações
empregador;
especialmente
COVID-19,
da
—
sociais
que
sobre
esse
implicam
básica
de
seja
necessário
sujeito.
medo
prevenção;
mobilização
renda
a
que
do
Mas,
contágio;
orientação
recursos
recentemente
da
as
para
assistência
aprovada
no
Congresso Nacional e etc. — para familiares e amigos/as são questões
que
cabem
aos/às
profissionais
de
Serviço
realizadas, preferencialmente de forma remota.
Social
e
precisam
ser
9. O
governo
federal,
na
contramão
do
que
orienta
a
Organização
Mundial de Saúde e da experiência de outros países, vem expedindo
normativas
que
trabalhadora,
importante
acirram
aqui
o
incluso
estarmos
aviltamento
o
dos/as
atentos/as
às
aos
direitos
profissionais
violações
dos
da
de
classe
saúde.
nossos
É
direitos
trabalhistas, que, em geral, como nesse caso, terá direta ligação com a
qualidade
do
serviço
política
nos
estatal,
a
Fóruns
Locais
prestado.
sindicatos
exemplo
de
e
dos
nos
espaços
Fóruns
Saúde,
Daí,
bem
ou
a
importância
de
luta
Frentes
como
da
pela
da
organização
política
pública
Estaduais/Municipais
Frente
Nacional
contra
e
e
a
privatização da saúde.
Considerações finais
As
reflexões
aqui
trazidas,
construídas
no
calor
desse
triste
acontecimento, emergiram do contato com questões apontadas por colegas
assistentes
sociais,
pela
leitura
do
pertinente
material
elaborado
pelo
conjunto CFESS-CRESS e a partir de quem também não está podendo fazer
o seu trabalho remotamente. Trata-se de uma leitura que visa a contribuir
para a categoria profissional de Serviço Social. Está em construção, aberta a
críticas e sugestões e como tal passível de mudanças dos seus argumentos.
Vamos nesse contexto real de medo, e de desespero com as respostas do
atual
governo
usuária
das
federal,
instituições
reafirmar
de
nosso
compromisso
com
a
população
saúde onde trabalhamos. Isso se expressa
por
reconhecer a importância do Serviço Social como profissão da saúde que é,
com respeito a sua particularidade no trabalho coletivo em saúde. Mas, sem
correr riscos de vida. Reafirmando aquilo que já aprendemos com Iamamoto
(1995), dizendo não ao fatalismo (não há o que fazer...) e ao messianismo
(de que toda a solução está em nossas mãos), reconhecendo que o trabalho
profissional
se
dá
em
condições
objetivas
e
que
temos
competência
para
construir proposições sob estas condições.
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CFESS Manifesta: os impactos do
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Brasília:
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2020.
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http://www.cfess.org.br/arquivos/2020CfessManifestaEdEspecialCoron
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IAMAMOTO,
Marilda.
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ensaios
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Marilda.
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profissional,
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CFESS.
ocupacionais
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10
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MATOS,
Maurílio
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Considerações
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profissionais na atualidade. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 124, p.
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NOTAS
189
|
Assistente Social da Secretaria Municipal de Saúde de Duque de Caxias, no estado do Rio de
Janeiro (RJ). Professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ).
Pesquisador
do
Grupo
de
citamos
a
Pesquisa
Gestão
Democrática
na
Saúde
e
Serviço
Social/Pela
Saúde.
190
|
Como
exemplo
normatização
sobre
óbito
em
caso
de
COVID-19
que
faz
uma
referência equivocada ao Serviço Social e que o conjunto CFESS-CRESS se pronunciou e realizou a
devida notificação ao Ministério da Saúde.
A relevância do trabalho dos assistentes
sociais no enfrentamento à pandemia
19
da COVID-
191
MÁRCIA BOTÃO
192
NILZA ROGÉRIA NUNES
Introdução
Um cenário de extrema desigualdade e injustiça social tem se revelado
com
o
avanço
da
doença
apresentado
de
econômica
social
e
forma
que
provocada
pelo
contundente
fragmenta
e
novo
os
coronavírus
resultados
fragiliza
as
de
pessoas
e
2019,
e
tem
uma
política
suas
relações
sociais. O campo e as cidades — pequenas, médias ou grandes, as favelas e
periferias,
caminho
são
cenários
político
férteis
pautado
na
dessas
expressões
precarização
das
que
resultam
condições
de
de
vida
e
um
de
trabalho. Na medida em que as discussões e as ações de grande parte do
mundo
encontram-se
voltadas
para
a
saúde,
solidarizando-se
ou
preocupando-se com o mínimo de dignidade humana, os principais líderes
do
governo
desrespeito
modo
no
à
Brasil
ciência,
competitivo
impactos
da
assistem
às
com
pandemia
ao
avanço
instituições
pouca
de
união
e
à
de
COVID-19,
da
pandemia
democracia,
esforços
além
da
com
descrédito
apresentam-se
para
relação
minimizarem
existente
e
de
os
entre
pobreza e contágio, afetando principalmente a classe trabalhadora.
As fraturas da sociedade brasileira ficam mais expostas quando o país,
que possui uma das dez maiores economias do planeta, ocupa a 79ª posição
no ranking de desigualdades entre 189 países do globo (PNUD, 2019). Esta é
uma manifestação de violência estrutural que está diretamente relacionada
aos
insuficientes
investimentos
dos
Estados
nas
políticas
sociais
e
que
avoluma a cada dia o aumento exponencial de pessoas vivendo na condição
de pobreza e na pobreza extrema.
Nesse
sociais,
contexto,
cujas
primeira
é
importante
atribuições
vista,
esta
se
dão
pandemia
considerar
na
e
defesa
a
o
do
maneira
trabalho
direito
de
à
dos
assistentes
vida.
resolvê-la
Embora,
se
à
apresente
focalizada no setor da saúde, argumentamos que todas as áreas em que o
Serviço
Social
atua
estão
comprometidas,
uma
vez
que
a
crise
que
assistimos salienta a necessidade de sistemas públicos de proteção social
fortes, assim como um papel crítico e ativo acerca da realidade que estamos
vivendo.
A persistente fragmentação entre economia e o
“
”
social
na
racionalidade capitalista no contexto de pandemia
O contexto requer uma reflexão acerca do discurso de fragmentação da
realidade e até mesmo a suposta oposição entre o “econômico” e o “social”.
Este equívoco repleto de intencionalidades e omissões da vida real resulta
de
uma
criação
capitalista,
para
histórica
a
que
vem
manutenção,
sendo
reforçada
ampliação
e
ao
omissão
longo
da
da
expansão
extração
de
mais
193.
valor da força de trabalho humana
No
sido
estágio
alvo
público
de
—
atual
do
ataque
capitalismo
para
capturado
o
pelo
uso
mundializado,
de
seus
recursos
Estado
para
atender
as
políticas
financeiros
as
sociais
—
demandas
têm
o
fundo
da
classe
dominante e dirigente. Aqui se inclui um conjunto de atores diversificados,
entre eles o setor bancário, as grandes empresas, entre outros, de acordo
com as análises de Salvador, Behring e Lima (2019), sobre os argumentos da
escassez de recursos públicos.
No conjunto de disputas entre capital-trabalho para atenuar as possíveis
tensões,
as
políticas
sociais
são
terreno
de
conflito
constante.
Riqueza
e
pobreza são expressões cúmplices da mesma sociabilidade que reproduz e
legitima
a
desigual
apropriação
da
riqueza
socialmente
produzida.
Seus
efeitos decorrem de processos econômicos, políticos e sociais, articulados à
discriminação
alimentação,
qualidade
de
aos
gênero,
cor
cuidados
tornam-se
cada
e
raça.
Os
necessários
vez
mais
acessos
para
o
as
moradias,
alcance
escassos
para
de
os
uma
à
saúde,
vida
segmentos
à
com
mais
pauperizados.
São
para
necessárias
garantir
ações
condições
políticas
de
vida
e
e
econômicas
cuidado
não
em
só
favor
no
da
coletividade
período
pandêmico,
como também em outros momentos. Ocorre que no contexto da pandemia
da COVID-19, as frequentes argumentações do presidente da República, Jair
Bolsonaro,
defendem
apoiado
valores
por
de
representantes
uma
burguesia
de
setores
conservadora,
econômicos
são
dissonantes
que
das
orientações internacionais da Organização Mundial da Saúde e instituições
que
defendem
a
saúde
pública
em
nível
nacional
e
internacional.
Assim
sendo, a crise sanitária em curso vem acompanhada de uma crise política,
social
e
institucional.
evidentemente
isolamento
A
associação
uníssona,
social,
como
ainda
a
que
principal
entre
saúde
sejam
medida
e
economia
tratadas
de
como
proteção
e
tornou-se
opostas.
prevenção,
O
é
rotineiramente desafiado em nome da ameaça ao colapso da economia, o
que revela uma das faces mais perversas desse contexto.
A estratégia de propagação ideológica acerca da suposta oposição entre
econômico e social atende aos interesses de sujeitos sociais defensores do
projeto neoliberal, conservador, com posições de cunho neofascistas. Nesse
caso, a título de reflexão, cabem algumas perguntas: existe economia sem
seres humanos? A riqueza produzida para essa suposta economia apartada
de quem produz salvará quem? Os brasileiros não podem parar? Não temos
recursos para a política de saúde pública realmente? Por que não se pode
revisar as medidas de austeridade econômica do país e privilegiar a vida para
voltarmos, se possível, o mais breve a uma rotina mais saudável?
A resposta também nos parece clara, embora não seja banal ou fácil de ser
identificada.
O
modo
e
a
razão
de
ser
e
existir
do
capitalismo
não
é
de
valorização da vida humana, embora não possa dispensá-la totalmente. O
preço disso tem sido a fome, a doença, o desespero, o medo da perda de
familiares
e
amigos.
favoráveis
à
vida,
Enquanto
ampliam-se
perdura
as
a
tensões
falta
que
de
respostas
demandam
o
efetivas
trabalho
e
de
assistentes sociais na mediação das contradições expressas nas demandas
do
capital
e
do
(IAMAMOTO;
viral
seria
com
trabalho,
frente
CARVALHO,
contágio
diferente.
O
rápido
Serviço
e
às
2013).
manifestações
No
caso
consequências
Social
tem
sido
de
uma
da
“questão
epidemia
parcialmente
vital
em
de
social”
origem
conhecidas
diferentes
não
frentes
e
formas de atuação profissional.
19
O trabalho dos assistentes sociais na pandemia da COVID-
Conforme
assistentes
indicado,
sociais
no
mantem
contexto
sua
de
atuação
pandemia
nos
da
diferentes
COVID-19,
espaços
os
socio-
ocupacionais. Contudo, a precarização das condições de trabalho tem sido
evidenciada há alguns anos e, nesse momento, tem se tornado mais evidente
e ameaçadora.
Entendemos
o
assistente
social
como
parte
da
classe
trabalhadora.
A
concepção de classe trabalhadora aqui adotada tem como ponto de partida
as análises de Marx (1975) sobre as relações entre capital e trabalho, sem
desconsiderar o caráter heterogêneo que apresentam hoje. O conjunto de
trabalhadores
da
sociedade
capitalista
é
composto
por
profissionais
empregados com vínculo e direitos sociais, desempregados, trabalhadores
informais,
trabalhadores
sem
o
mínimo
de
proteção
etc.
Mas
estão
unificados em uma mesma condição: a de ser dependente da venda da força
de
trabalho
para
sobreviver.
Essa
realidade
de
dependência
da
venda
da
força de trabalho está exposta hoje como nunca esteve. A disponibilidade
para o trabalho a qualquer custo, incluindo o custo de suas vidas e de seus
194.
familiares, por falta de alternativa tem sido algo trágico
Pelos
motivos
aqui
brevemente
mencionados,
destacamos
a
vital
importância do trabalho dos assistentes sociais no contexto da pandemia e
destacamos
que
seus
trabalhos
têm
se
dado
em
diferentes
frentes
dos
setores públicos e privados.
Para ilustrar nossa afirmação, fizemos uma breve consulta a alunas dos
cursos
Janeiro
de
pós-graduação
(PUC-Rio),
com
da
o
Pontifícia
intuito
de
Universidade
contribuir
com
Católica
a
do
reflexão
Rio
de
acerca
da
importância do Serviço Social em tempo da pandemia de COVID-19. Todas,
em pleno acordo, prestaram informações sobre os seus trabalhos. Sabemos
que
muito
mais
tem
sido
feito,
mas
consideramos
valioso
este
breve
registro. Não separamos os dados por áreas de atuação por muitas ações se
repetirem, razão pela qual citaremos algumas ações realizadas nas áreas da
política de assistência social de um determinado município do Estado do
Rio de Janeiro, em um dos hospitais públicos do Município do Rio de Janeiro
e uma empresa:
1. Planejamento para obtenção de novos recursos e serviços sociais;
2. Desburocratização
das
informações
para
o
acesso
aos
“auxílios”
emergenciais liberados pelo governo federal;
3. Elaboração
de
solicitações
atípicas
para
atendimento
de
novas
demandas em caráter emergencial no contexto de pandemia;
4. Implementação para novos serviços para o atendimento a pessoas em
situação de moradia na rua, quando os abrigos não são suficientes;
5. Intensificação da abordagem às famílias em situação de rua para que
tenham condição de cuidado, seja com outros familiares ou em abrigos;
6. Organização de espaços específicos para isolamento social nos abrigos
para evitar o contágio dos demais acolhidos;
7. Articulação com a área da saúde para acompanhamento dos usuários
com suspeita ou risco de contaminação;
195;
8. Concessão de cestas básicas para quem não consta no CadÚnico
9. Parcerias
com
instituições
religiosas
para
atendimento
às
famílias
ainda não contempladas pelas políticas públicas;
10. Elaboração de relatório para o Ministério Público;
11. Orientações aos familiares e colaterais dos pacientes internados, sobre
direitos previdenciários, Programa Bolsa Família, auxílio emergencial
liberado pelo governo federal;
12. Orientações sobre recursos e procedimentos funerais com segurança e
dignidade;
13. Liberação de recursos financeiros para compra de alimentos;
14. Acompanhamento
de
pessoas
idosas
para
suporte
ao
período
de
isolamento social;
15. Doações de alimentos às favelas;
16. Doações de remédios e itens de higiene;
17. Orientações de prevenção à saúde.
Essas, entre muitas outras ações não mencionadas neste artigo, têm sido
fundamentais na defesa dos direitos da população e dos princípios de nossa
profissão.
sociais,
Contudo,
somos
não
podemos
trabalhadoras
e
perder
de
trabalhadoras
vista
que
nós,
partícipes
da
assistentes
sociedade,
portanto, vivemos as dificuldades, temores, anseios e esperanças como os
demais.
Conclusão
A profunda desigualdade social brasileira se insere na lógica do sistema
capitalista de trabalho assalariado, cuja pobreza extrema coaduna com seu
funcionamento.
Nesse
sentido,
as
estratégias
para
o
enfrentamento
da
pandemia exigem tomadas de decisões humanitárias e em defesa da vida.
A pandemia originada pelo novo coronavírus expõe as diferenças entre os
que habitam espaços de privilégio e os pobres, principalmente os usuários
das políticas de assistência social. Na linha de frente das ações para mitigar
seus
efeitos
atuação
e,
estão
muitas
os
assistentes
vezes,
sociais,
inseridos
desempenhando
suas
em
diversas
ações
no
frentes
limite
de
de
suas
forças, com condições de trabalho não comprometidas com a sua segurança,
das equipes e dos usuários. O cotidiano desafiador requer buscar caminhos
na
lacuna
segurança
da
ausência
alimentar,
de
direitos,
produzindo
assistência
ao
saídas
acesso
ao
para
a
auxílio
garantia
da
emergencial,
orientações de saúde, acolhimento, entre tantas ações que visam contribuir
com a dignidade e a vida das pessoas.
Esperamos condições de trabalho adequadas; salários pagos sem cortes;
manutenção
dos
empregos;
saúde
pública
para
todos/as;
a
revogação
da
196 e
contrarreforma da previdência social, da Emenda Constitucional nº 95
o
fortalecimento
da
seguridade
social
para
os
mais
de
12
milhões
de
desempregados/as e subempregados/as no país. Mas esperar não basta e já
dizia a canção: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
Apesar
de
insuficiente
diante
da
condução
dada
pelos
órgãos
competentes de nosso país, estamos falando de acesso a direitos básicos,
como alimentação, moradia, tratamento e cuidado. É importante registrar
que
nessa
apesar
de
luta
seus
muitas
medos,
e
muitos
receios,
assistentes
ansiedades
sociais
e
têm
limites.
A
sido
eles
incansáveis,
e
a
todas
as
equipes profissionais que se encontram nessa luta dedicamos essas breves
reflexões inconclusas.
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Marilda Vilela;
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Janeiro:
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NAÇÕES
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O
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(PNUD).
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do
Desenvolvimento Humano 2019 – Além da renda, além das médias, além do
hoje:
desigualdades
no
desenvolvimento
humano
no
século
XXI.
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SALVADOR,
Evilásio;
BEHRING,
Elaine;
LIMA,
Rita de Lourdes. Crise do capital e
fundo público: implicações para o trabalho, os direitos sociais e a política
social. São Paulo: Cortez, 2019.
NOTAS
191
|
Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Políticas Públicas
e Serviço Social (TRAPPUS).
192
|
Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Núcleo de Estudos em Saúde e Gênero (NEGAS).
|
193
Os
capítulos
XXIII
e
XXIV
de
O Capital,
escritos
por
Marx
no
início
da
consolidação
do
capitalismo, são essenciais para compreender a lógica desse modo de produção e reprodução social,
que se reatualiza e se recria, mas não abandona os seus traços essenciais de exploração e expropriação
de direitos.
194
|
Para melhor entendimento da concepção de classe social, ver Montaño e Durigueto (2010) e
Mattos (2019).
195
|
Cadastro Único para Programas Sociais ou CadÚnico é um instrumento de coleta de dados e
informações que objetiva identificar todas as famílias de baixa renda existentes no país para fins de
inclusão em programas de assistência social e redistribuição de renda.
196
|
Emenda
Constitucional
nº
95,
de
15
de
dezembro
de
2016.
Altera
o
Ato
das
Disposições
Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Também
chamada EC do “Teto dos Gastos”, prevê que, durante 20 anos, as despesas primárias do orçamento
público
ficarão
limitadas
à
variação
inflacionária.
Isso
quer
dizer
que,
no
período,
não
ocorrerá
crescimento real das despesas primárias, que são agrupadas em duas grandes categorias, as despesas
de custeio (com serviços públicos) e as despesas com investimentos. A medida não só congela, mas
reduz drasticamente os gastos sociais.
O cuidado em saúde mental no cenário de
19:
pandemia da COVID-
( )
re
a experiência de
organização do CAPS UERJ
ANA PAULA PROCOPIO DA SILVA
ANÁLIA DA SILVA BARBOSA
197
198
Introdução
O texto tem como objetivo apresentar e refletir sobre a experiência do
Centro
de
Atenção
Psicossocial
da
Universidade
do
Estado
do
Rio
de
Janeiro (CAPS UERJ) na manutenção do cuidado em saúde mental das/os
usuárias/os acompanhadas/os no serviço, no contexto de crise sanitária. A
pandemia da COVID-19, causada pela propagação do vírus SARS-CoV-2 ou
novo coronavírus, produz não apenas repercussões de ordem biomédica e
epidemiológica em escala global, mas também impactos sociais que afetam
diretamente
todas
medicamentos
as
dimensões
específicos
para
da
a
vida
social.
Ainda
COVID-19,
não
então
há
as
vacinas
medidas
ou
de
distanciamento social e de isolamento configuram recomendações básicas
da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a contenção da circulação do
vírus e redução do contágio.
Por outro lado, as estratégias de distanciamento social e de isolamento
promovem desdobramentos econômicos, sociais e de saúde mental: o medo
da
morte
diante
de
uma
ameaça
invisível,
que
é
o
vírus;
o
desemprego
avolumado pelo fechamento de comércios e de serviços configurados como
não
essenciais;
o
avanço
da
mortalidade
nas
periferias,
pelas
condições
históricas de falta de acesso à água e esgoto; a instabilidade política diante da
desarticulação entre o governo federal e estados e municípios em matérias
como incentivo às pesquisas de combate à doença, testagem em massa da
população
e
no
provimento
de
condições
econômicas
dignas
para
o
distanciamento social e isolamento seguros, seja das pessoas que perderam
suas fontes de renda seja, ainda, daquelas em condições precárias já antes da
pandemia.
Contudo,
esse
quadro
trágico
para
a
população
em
geral
acirra
as
condições de vulnerabilidade e risco social de grupos específicos como, por
exemplo,
Nesse
as/os
sentido,
usuárias/os
dentre
os
dos
serviços
serviços
da
rede
essenciais
no
de
atenção
período
de
psicossocial.
pandemia
da
COVID-19 a OMS destacou aqueles que garantem o calendário de vacinação,
os cuidados durante a gravidez e parto, o tratamento de doenças infecciosas
e não transmissíveis, os serviços de sangue e os dispositivos da rede de saúde
mental.
No
Brasil,
a
rede
de
saúde
mental
constitui-se
por
meio
da
Rede
de
Atenção Psicossocial (RAPS) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS),
calcada no princípio da garantia do bem-estar das pessoas que se encontram
em
condições
sofrimento
de
vulnerabilidade
psíquico
entendimento
da
e/ou
e
pela
importância
do
risco
social
condição
trabalho
(pelo
adoecimento,
socioeconômica)
junto
à
e
comunidade
pelo
pelo
para
assegurar o apoio à resiliência e à saúde mental (WHO, 2020).
Desde os processos que constituíram a Reforma Psiquiátrica Brasileira,
no final dos anos 1970, a saúde mental no país tem afirmado uma produção
de
cuidados
condução
que
de
extrapola
suas
o
práticas
campo
na
biomédico,
direção
de
e
uma
assim
tem
proposta
disputado
de
a
mudança
societária: a atenção psicossocial. Um conjunto de estratégias de trabalho,
organizadas a partir de ações comunitárias, privilegiam o acesso aos direitos
sociais
das/o
usuária/os,
tais
como:
o
direito
à
moradia,
ao
trabalho
protegido, à educação, à cultura e ao lazer, entendendo o território como o
lugar
de
conexões
que
produzem
vida
e
ampliam
a
sua
potência
como
sujeitas/os.
A
pandemia
da
COVID-19,
não
obstante
a
sua
gravidade,
escancara
e
acirra contradições estruturais da organização social capitalista: o abismo
de
desigualdade
planeta.
entre
Conforme
os
mais
afirmado
ricos
por
e
os
Nísia
pobres
e
Trindade
miseráveis
Lima,
em
todo
presidente
da
Fundação Oswaldo Cruz, em entrevista à Ciência Hoje em maio de 2020:
“Não
há
democracia
democrático,
e
ele
na
circulação
pode,
de
fato,
do
atingir
vírus.
a
Falam
todos,
que
como
o
vírus
atinge,
é
mas
a
capacidade de proteção e de resposta a isso é diferente num país desigual
199.
como o nosso”
Diante dos elementos expostos, que articulam dimensões estruturais da
vida
social
realizada
e
a
pela
conjuntura
equipe
do
de
crise
CAPS
política,
UERJ
econômica
avaliação
das
e
pandêmica,
foi
vulnerabilidades
do
conjunto de usuárias/os, a qual constatou a necessidade de continuidade do
acompanhamento durante o período de restrição de atividades presenciais e
distanciamento social inicialmente definido pelo governo do Rio de Janeiro
no Decreto n° 46.970, de 13 de março de 2020. As estratégias de cuidado
traçadas pelo CAPS UERJ tiveram como baliza a garantia das condições de
biossegurança
privilégio
do
para
profissionais
cuidado
territorial
e
usuárias/os
como
eixo
com
central
a
das
manutenção
ações,
apesar
do
do
distanciamento social, trabalho que apresentaremos no próximo tópico.
A organização do processo de trabalho do CAPS UERJ frente
19
à pandemia da COVID-
O
CAPS
UERJ,
fundado
em
2009,
está
localizado
no
complexo
ambulatorial da Policlínica Piquet Carneiro (PPC) vinculado à Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, e é responsável pela Área Programática (AP)
2.2, que abrange os bairros: Alto da Boa Vista, Andaraí, Grajaú, Maracanã,
Praça
da
Bandeira,
Saens
Peña,
Tijuca,
Usina
e
Vila
Isabel.
Um
universo
territorial composto por uma população de 371.120 habitantes, conforme o
último censo realizado em 2010.
O CAPS UERJ é um serviço municipalizado, inserido em uma estrutura
universitária estadual, que integra a rede de saúde mental da cidade do Rio
de Janeiro. Configuração que nos convoca a pensar o desafio da articulação
entre
os
diferentes
intersetorialidade
incide
na
níveis
entre
educação
estratégia
interdisciplinaridade.
de
de
governo
e
saúde.
estagiárias/os,
professoras/es
psicólogas/os,
enfermeiras/os,
ocupacionais,
nutricionistas,
uma
e
viés
durante
equipe
com
sociais,
técnicas/os
de
da
de
a
composta
profissionais,
assistentes
gestão
Outro
organização
Com
na
saúde
sua
e
forma,
pandemia,
por
a
que
é
a
residentes,
diferentes
formações:
psiquiatras,
terapeutas
enfermagem,
técnicas/os
administrativas/os e oficineiras/os. Logo, se configura como um serviço de
assistência, mas também de formação qualificada de trabalhadoras/es para a
Saúde Mental e, por esse motivo, foi tomada a decisão de dar continuidade,
no formato
online,
às reuniões de equipe, supervisões e espaços de tutoria,
mantendo a articulação entre as dimensões prática e formativa.
Um dos desafios colocados ao CAPS UERJ evidenciado neste período de
pandemia é sua localização no interior de uma Policlínica, ambulatorial, e
atualmente inserida na rede como ponto de testagem dos profissionais da
saúde para a COVID-19. Por ser um dispositivo com características de alta
complexidade
em
saúde
mental,
sua
rotina
não
prioriza
uma
lógica
inflexível de agendamentos, mas o acolhimento das imprevisibilidades do
cotidiano e a livre circulação de usuárias/os e familiares no serviço de acordo
com
as
demandas.
circulação
no
biossegurança,
Um
interior
desafio,
da
que
nesse
Policlínica,
complexificou
o
momento
em
trabalho,
função
de
das
demandando
incremento da articulação ativa com os serviços territoriais.
restrição
da
normas
de
da
equipe
o
Por ser um CAPS do tipo II (atende cidades e ou regiões com pelo menos
70 mil habitantes), funciona com a lógica da “Porta Aberta”, de 8h às 17h, de
segunda
a
sexta,
tendo
transtornos
mentais
dispositivos,
como
Psiquiátricos
e,
como
graves
a
Clínicas
também,
perfil
e
atendimento
persistentes,
da
por
de
Família
provenientes
(onze
demanda
portadores
no
de
território),
espontânea.
de
diversos
Hospitais
Atualmente,
tem
trezentos e dezessete usuários cadastrados e cinquenta e sete usuários em
processo de recepção, com prevalência de indivíduos do sexo masculino, de
30
a
50
anos,
em
vulnerabilidade
social
e
econômica.
A
frequência
diária
oscila entre sessenta a oitenta atendimentos (BARBOSA et al., 2020).
Frente a esta realidade de atendimento/acompanhamento pré-pandemia,
a
equipe
pelas
se
deparou
condições
com
de
o
desafio
de
biossegurança
(re)organizar
requeridas
o
serviço,
pela
prezando
crise
sanitária,
englobando o fortalecimento do território e utilizando-se de tecnologia leve
para assegurar o cuidado em saúde mental, na perspectiva da produção de
vínculos, autonomização e acolhimento (MENDES, 1994).
Com a notícia da implementação no município do Rio de Janeiro de ações
de distanciamento social, a coordenação do CAPS encaminhou reunião com
profissionais, usuárias/os e familiares para explicar sobre a necessidade de
redução do funcionamento presencial e a urgência de pensar coletivamente
novas formas de cuidado. Em momento posterior, foi realizada pela equipe a
discussão
e
movimento
avaliação
de
de
todos
os
sistematização
casos
de
coletiva
forma
e
individualizada.
interdisciplinar
Esse
permitiu
identificar as/os usuárias/os com demanda de intensificação do cuidado no
período
da
pandemia,
considerando:
idade,
vulnerabilidade
social,
rede
sociofamiliar frágil, dificuldade no uso e aderência de medicação, nível de
autonomia
Foram
na
organização
elencadas/os
cotidiana
setenta
e
na
comunicação
usuárias/os
e,
com
o
território.
posteriormente,
com
a
continuidade do distanciamento social, esse número subiu para setenta e
seis.
A
equipe
do
comunicação
CAPS,
à
residentes
forma
distância,
acompanhamento
intensificação
de
do
das/os
diversos
usuárias/os
cuidado
(serviço
por
inventiva
no
social,
responsável,
meios,
como
identificadas/os
período
psicologia,
e
da
pandemia
enfermagem)
pelas ligações, com capacitação prévia pelo
staff
estratégia
com
da
elegeu
de
demanda
COVID-19.
ficaram
a
de
As/os
responsáveis
(profissionais
do
quadro
permanente) em relação às abordagens, aspectos de atenção, frequência dos
contatos
e
formas
mensagens
indicados
de
comunicação
instantâneas,
para
a
chamadas
supervisão
e
o
à
distância
por
auxílio
vídeo
no
e
(telefone,
e-mail).
manejo
dos
aplicativo
staffs
Dois
casos
de
foram
diante
dos
possíveis desdobramentos dessa modalidade remota de cuidado na atenção
psicossocial.
A exigência da atenção remota em saúde mental impeliu a equipe para
outras
formas
imperativo
de
de
cuidado
e
ressignificar
de
manejos.
também
o
As/os
uso
das
profissionais
tecnologias.
viram-se
no
Telefones
e
computadores, para além de simples aparelhos de comunicação, passaram a
ter utilidade como ferramentas de produção de relações de cuidado. Uma
vez que no contato remoto os elementos centrais que se mantém são: a força
do
vínculo,
cuidado,
o
poder
afirma-se,
produzidas
das
relações
assim,
exatamente
a
pelo
e
o
protagonismo
potência
encontro
das
entre
da/o
usuária/o
tecnologias
usuárias/os
leves
e
no
que
seu
são
profissionais
(MERHY, 1999, p.318).
No
percurso
armazenamento
(re)inventivo,
online,
com
a
equipe
pastas
constituiu
individuais
para
uma
cada
pasta
de
usuária/o
em
acompanhamento remoto. A pasta acessada em modo compartilhado por
residentes
e
profissionais
permite
o
registro
da
evolução
das
condutas
e
produções de cuidado, para que não se perca o olhar e as contribuições de
supervisão na condução dos casos.
A atenção e o cuidado remotos não substituem o espaço físico e o cuidado
presencial,
e
não
possuem
caráter
resolutivo
e
burocrático.
Os
contatos
presenciais
entre-pessoas
identificação
de
algum
é
que
sustentam
agravamento
das
o
vínculo.
questões
Assim,
psíquicas
diante
e/ou
da
clínicas,
por COVID-19 ou não, a equipe do dia, em plantão no CAPS é acionada para
pensar
e
articular
o
cuidado
presencial
contato,
mesmo
no
dispositivo
ou
com
a
rede
territorial.
A
continuidade
do
remoto,
com
a
equipe
e
o
fato
do
CAPS permanecer em funcionamento para casos com demandas de ações
mais contundentes, foram elementos organizadores para as/os usuárias/os,
que
não
equipe.
se
viram
Tanto
contatos
e
o
mostraram-se
abandonadas/os,
para
usuárias/os,
saber
que
a
fundamentais
e
de
quanto
equipe
para
sustentação
para
familiares,
permanecia
manter
dos
os
em
quadros
vínculos
a
com
constância
plantão
no
psíquicos
a
dos
CAPS
estáveis,
evitando agudizações e crises.
Com
o
avanço
distanciamento
das
social,
contaminações
a
implementação
e
a
prorrogação
dos
protocolos
do
de
tempo
de
atendimentos
citados foi imprescindível para aquecer as redes de suporte e cuidado no
território, tendo por base ações no cuidado extramuros, potencializando a
rede
intersetorial,
produzindo
sociabilidade
e
cuidado,
para
além
do
instituído pelo dispositivo (BERTUSSI et al., 2011).
Conclusão
A vivência no CAPS UERJ, no período de pandemia da COVID-19, deixa
evidente que cuidar na direção da atenção psicossocial, rompendo com a
lógica
manicomial,
exige
experimentações
de
novas
formas
e
arranjos
de
cuidado com o sujeito e suas redes de apoio, que pode estar em qualquer
profissional,
construídas
trabalho
em
espaço
e
e
saber,
apostando
indo
também
acontecimento.
Um
mais atenção no pós-pandemia.
para
nas
além
redes
das
vivas
movimento
para
redes
que
o
são
qual
institucionais
produzidas
se
precisará
no
ter
As relações com os vínculos mais sólidos e as estratégias de cuidado mais
consistentes, seguras e corajosas são imprescindíveis para o momento. O
manejo dos casos à distância, ainda que apresentando limitações, somado ao
apoio presencial de uma equipe multidisciplinar no CAPS, tem garantido o
acompanhamento
de
rotina
e
a
atenção
à
demanda
de
intensificação
no
cuidado, seja pelos impactos da situação atual, seja por outras questões.
Por
fim,
destacamos
a
potência
da
convivência
entre
profissionais,
residentes e usuárias/os e entre as/os próprias/os usuárias/os no cotidiano
do CAPS. O retorno ao contato presencial e coletivo aplaca o sofrimento
psíquico e reforça o lugar desse serviço como uma referência de cuidado e
acolhimento.
Logo,
as
estratégias
de
cuidado
desenvolvidas
para
o
momento de pandemia, não substituem o contato entre-pessoas, pois é no
viver comunitário (com-viver) desse espaço que se produz vida, vínculos,
laços, afetos e afetações.
REFERÊNCIAS
BARBOSA,
estado
Anália da Silva et al. Centro de atenção psicossocial da universidade do
do
Rio
de
Janeiro:
CAPS
Uerj
—
cuidado,
extensão,
ensino
e
pesquisa. 2 ed. Rio de Janeiro, RJ: Projeto Institucional. 2019.
BERTUSSI,
Debora
MATTOS,
et
al.
Viagem
Ruben Araujo de;
cartográfica:
BAPTISTA,
pelos
trilhos
e
desvios.
In:
Tatiana Wargas de Faria. Caminhos
para análise das políticas de saúde. Porto Alegre: Rede Unida, 2011. p. 306-
324.
MENDES-GONÇALVES,
Ricardo Bruno. Tecnologia e organização social das práticas
de saúde. São Paulo: Hucitec, 1994.
MERHY,
Emerson Elias. O ato de governar as tensões constitutivas do agir em
saúde
como
desafio
permanente
de
algumas
estratégias
gerenciais.
Ciência & Saúde Coletiva, v. 4, n. 2, p. 305-314, 1999.
WORLD HEALTH ORGANIZATION.
essential
2020.
health
services
Disponível
COVID-19: operational guidance for maintaining
during
em:
an
outbreak:
interim
guidance,
25
March
https://apps.who.int/iris/handle/10665/331561.
Acesso em: 16 maio 2020.
NOTAS
197
|
Assistente social, professora adjunta da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (FSS/UERJ), coordenadora da Residência Integrada e Multiprofissional em Saúde
Mental da UERJ, doutora em Serviço Social (UFRJ).
198
|
Assistente social, coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (CAPS UERJ), doutoranda do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/UERJ).
199
|
“A Fiocruz diante da COVID-19”. Ciência hoje, 11 maio 2020, edição n. 365. Disponível em:
http://cienciahoje.org.br/artigo/a-fiocruz-diante-da-covid-19/?
fbclid=IwAR3HuFVC6dkOeOWQkoMQwNvLIMZZBjrQm4sUJ62Em4h2A0gYPI5m8p6FAFE.
Acesso em: 18 maio 2020.
:
Monitoramento remoto com idosos
uma experiência de cuidado em tempos de
19
pandemia da COVID-
200
MARIA HELENA DE JESUS BERNARDO
201
TANIA DE OLIVEIRA
Este
artigo
sintetiza
reflexões
sobre
a
atividade
de
monitoramento
telefônico realizado pela equipe multiprofissional do Núcleo de Atenção ao
Idoso
(NAI/UnATI-HUPE/UERJ).
sistematizado
por
assistentes
Trata-se
sociais
de
um
material
coordenadoras
da
preliminar
equipe,
cuja
perspectiva é o compartilhamento da experiência como uma estratégia de
cuidado em saúde.
Monitoramento de idosos — por que fazer
?
como fazer
?
O contexto sanitário atual é deveras preocupante. Para nós profissionais
da saúde vinculados a uma instituição formadora para o Sistema Único de
Saúde
(SUS),
a
realidade
ora
vivenciada
se
revela
profundamente
desafiadora, dada a dupla dimensão inerente ao nosso objeto de trabalho: a
assistência propriamente dita à população idosa e a formação em serviço de
residentes, especializandos e graduandos na área. Múltiplas e urgentes são
as demandas daí advindas, requerendo a produção de respostas, exigindo a
necessidade de desenvolvimento de novas habilidades e competências para
conduzir a gestão do cuidado, a gestão do processo de ensino-aprendizagem
e a gestão dos serviços em meio a essa situação complexa.
O Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI), serviço especializado em saúde do
idoso
e
responsável
pelo
Programa
de
Residência
Multiprofissional
em
Saúde do Idoso e Geriatria, desde a instalação das medidas restritivas de
contato social e circulação para evitar a disseminação do novo coronavírus,
viu-se, haja vista o seu público alvo de atenção constituir-se no segmento de
maior
risco
promover
idosos
à
exposição
mudanças
atendidos
em
em
e
adoecimento
seu
modelo
nosso
serviço
pela
COVID-19,
assistencial,
e
a
de
assegurar
empenhado
sorte
a
a
em
proteger
continuidade
os
do
acompanhamento e a produção de ações de saúde das quais são credores.
Nesse sentido, especialmente a atenção ambulatorial sofreu alterações,
assumindo um novo desenho assistencial mediante o uso de tecnologias de
comunicação para atender as necessidades de saúde da população atendida.
Os
idosos,
aproximadamente
atendimento
no
serviço
(mais
quatrocentos
os
familiares
e
e
trinta
usuários
cuidadores),
em
distribuídos
em seis ambulatórios multiprofissionais, passaram a ser acompanhados via
monitoramento
agregando
uma
à
distância.
Uma
coordenação
complexa
central
engrenagem
foi
multiprofissional;
montada,
seis
equipes
multiprofissionais correspondentes a cada ambulatório com coordenação
específica; um canal de comunicação via
WhatsApp
e um profissional técnico
de enfermagem responsável por acompanhar o recebimento de mensagens
dos
idosos/familiar/cuidador
profissional
designado
para
e
repassar
para
consolidação
dos
a
equipe
dados
e
de
referência;
informações
e,
um
por
último, uma equipe de atendimento de plantão presencial.
Esta modelagem assistencial, criada pela necessidade de tentar conter o
avanço
da
contaminação,
associa
medidas
protetivas,
de
prevenção,
de
vigilância epidemiológica ao monitoramento das condições e necessidades
de
saúde
apresentadas
pelos
idosos
em
acompanhamento
pelo
serviço,
buscando evitar não só a contaminação da doença COVID-19 como também
a desassistência e o surgimento de agravos que possam ampliar a situação de
fragilidade dessa população.
A lógica de constituição do monitoramento, da formação das equipes de
referência,
da
metodologia
empregada,
da
supervisão
das
equipes,
da
construção do plano de atendimento da necessidade de saúde detectada é a
da
construção
práticas
do
processo
colaborativas,
coletivo
de
trabalho
interprofissionalidade
e
em
saúde,
baseado
integralidade
do
em
cuidado
prestado.
:
Sobre o cenário político e econômico do país
o caso da saúde
do idoso e a desassistência em contexto de crise estrutural na saúde
no Rio de Janeiro
A crise econômica e estrutural que assola o país assume formato ainda
mais trágico em contexto de precarização do trabalho, aumento nos índices
de
pobreza
e
orçamentários
seguridade
desigualdade
públicos
social
universidades
e
reduziu
outras
públicas
e
social.
redirecionamento
drasticamente
políticas
das
O
sociais,
pesquisas,
os
além
do
interferindo
dos
recursos
investimentos
sucateamento
na
capacidade
na
das
de
respostas e enfrentamento à calamidade pública instalada. Os constantes
ataques aos sistemas públicos deflagram a corrosão dos direitos da classe
trabalhadora (em suas diferentes frações e gerações), que será o segmento
mais
atingido
serviços
e
por
saúde,
essa
seja
pandemia,
pela
seja
pelas
necessidade
de
dificuldades
sobrevivência
de
acesso
pelo
aos
trabalho
informal expondo-se a riscos de contaminação. É oportuno asseverar, sem
receio de cometer exageros, que a crise econômica e sanitária se recobre de
contornos ainda mais deletérios na velhice, dado que a restrição da proteção
social em cenário pandêmico interfere diretamente nas condições de vida,
com crescente violação dos direitos e ameaça à vida.
No
âmbito
público
e
do
SUS
universal.
observamos
Desde
a
sua
contundentes
ameaças
regulamentação,
ao
seu
constatamos
caráter
projetos
distintos que competem com diferentes concepções de saúde: ora como um
bem
inestimável
para
a
vida
e
um
direito
humano,
ora
como
um
bem
passível de ser mercantilizado.
No
Rio
de
Janeiro
o
cenário
não
é
muito
alentador.
O
modelo
produtivista que gere a saúde e a assistência social na cidade e no estado do
Rio de Janeiro reproduz a lógica de focalização da política pública. A gestão
pelas Organizações Sociais de Saúde (e outras modalidades de gestão com
parceria
público-privada)
sociedade,
porém,
vem
mesmo
sendo
com
as
criticada
por
várias
irregularidades
esferas
da
frequentemente
anunciadas, persiste a continuidade desse modelo. O desenho da atenção
básica
como
coordenadora
da
rede
não
vem
se
efetivando
na
prática,
sobretudo, a partir da reformulação da Política Nacional de Atenção Básica
(PNAB), em 2017. Em que pesem os esforços das equipes multiprofissionais,
os serviços, programas e ações não conseguem estabelecer fluxos contínuos.
A
atenção
básica
na
saúde
encontra
limites
para
articular
os
demais
equipamentos de saúde e assistenciais da rede e vive uma crise constante
diante
de
frequentes
problemas
de
pagamento
de
salários
e
prestação
de
serviços às comunidades (BERNARDO, 2019).
Na área da saúde do idoso reconhecemos alguns avanços em termos de
propostas assistenciais e ao mesmo tempo múltiplos percalços. Os desafios
postos pela Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa – PNSPI (2006) e em
documento mais recente do Ministério da Saúde (BRASIL, 2019) ainda estão
por serem superados. Os recursos são escassos, os serviços previstos sequer
foram implantados e os que foram criados mostram-se inexpressivos diante
da demanda crescente por atendimento especializado e qualificado na área.
Ademais, as iniquidades no acesso impedem o pleno alcance a tais serviços,
reiterando
a
estratificação
dos
grupos
populacionais
e
as
desigualdades
(BERNARDO, 2019).
Parece-nos,
inquietações
portanto,
quanto
ao
que
a
caráter
conjuntura
atual
responsivo
das
reserva
ainda
políticas
muitas
públicas
às
necessidades sociais, de saúde e cuidados da população idosa. E no cenário
pandêmico instaurado, esse quadro se agudiza e se complexifica, exigindo
responsabilidade
sanitária,
política
e
ética
diante
do
eventual
colapso
da
saúde no Brasil. Esse panorama, que já era preocupante antes da pandemia
do novo coronavírus, prenuncia uma tragédia sem limites.
:
O monitoramento telefônico e as equipes multiprofissionais
a dimensão educativa em destaque
Com o cenário de pandemia da COVID-19, o trabalho remoto surge como
uma perspectiva para os serviços cuja organização permita a implantação ou
aperfeiçoamento
dessa
atividade
como
uma
estratégia
provisória
de
assistência em saúde. Frente a esse contexto, vários conselhos elaboraram
normativas
e/ou
202,
deliberações
estabelecendo
requisitos
que
garantam
condições mínimas para sua realização, de modo a resguardar as questões
éticas relativas aos segmentos profissionais. As diferentes argumentações
sobre
a
qualidade
técnica
dos
serviços
ofertados
através
da
mediação
tecnológica devem ser consideradas, por isso seu caráter excepcional (face à
pandemia)
e
complementar
imprescindíveis
quando
às
possíveis.
atividades
O
Serviço
presenciais
Social,
vistas
apesar
de
como
não
ter
deliberação própria, reconhece que, em tempos de pandemia, ações remotas
podem ser realizadas desde que observados os limites de acesso à população
e
devem
estar
profissionais
em
consonância
estabelecidos
na
lei
com
de
as
competências
regulamentação
da
e
atributos
profissão
n.
8662/1993.
Pautado em tais referências, o recurso ao monitoramento telefônico, por
parte da equipe do NAI, emerge como importante ferramenta de trabalho
coletivo
iniciada
na
saúde
em
em
momento
17/03/2020,
de
isolamento
consistiu
em
social.
A
desmarcação
primeira
das
etapa,
consultas,
verificação de receitas e exames pendentes, orientação sobre a organização
do serviço e levantamento de necessidades. Nesse momento, não sabíamos
ao certo por quanto tempo ainda duraria a política de distanciamento social
e centrávamos nossas orientações nas medidas de prevenção de contágio do
novo
coronavírus,
no
estímulo
à
vacinação
de
H1N1,
na
orientação
dos
fluxos institucionais e direitos relacionados ao período da pandemia, bem
como no controle de possíveis agravos à saúde.
Os contatos seguintes estreitaram os vínculos. Buscamos consolidar os
laços de confiança e montar a rede de suporte institucional. Nessa etapa,
houve
o
queixas
surgimento
de
de
isolamento
novas
social,
questões,
como
ansiedade
e
sobrecarga
medo
diante
de
da
cuidados,
pandemia,
alterações clínicas e comportamentais mais graves, gerando intensificação
dos atendimentos por parte das equipes da medicina, psicologia e serviço
social. Especial atenção foi dirigida aos idosos que moravam sozinhos ou
com rede pessoal e institucional restrita, aos idosos institucionalizados e
aos
cuidadores
familiares
e
profissionais,
com
vistas
às
orientações
de
segurança no trabalho de cuidado.
Com o aumento de número de casos contaminados e óbitos no Brasil e no
Rio
de
Janeiro
aumento
do
sintomas
de
decorrentes
número
de
COVID-19.
da
doença,
idosos
Esse
(e
identificamos
familiares)
cenário
exigiu
em
concomitantemente
monitoramento
maior
atenção
da
com
equipe
multiprofissional no acompanhamento e encaminhamento das situações de
adoecimento,
atendimentos
além
por
de
reforço
da
equipe
videoconferência
médica
ou
e
da
enfermagem
atendimentos
com
presenciais
de
urgência.
Buscando estabelecer relações pautadas na ética e no vínculo, os contatos
telefônicos são conduzidos de forma a garantir o respeito à singularidade
das
famílias,
seu
universo
cultural,
os
determinantes
sociais
do
processo
saúde-doença e a capacidade de absorver informações neste momento atual
de
massiva
difusão
de
orientações,
que,
por
vezes,
se
revelam
desencontradas. Viabilizar o acesso dos familiares e idosos às informações
oficiais
sobre
a
COVID-19
e
às
formas
de
contágio,
assim
como
sobre
o
funcionamento
da
desburocratização
rede
das
e
dos
serviços
relações
públicos,
institucionais,
pode
como
contribuir
também
para
a
facilitar
a
compreensão do momento atual.
A estratégia usada é a de trabalhar a informação processualmente a partir
do ato comunicacional em si estabelecido. Em outras palavras, à medida que
os
contatos
vão
se
intensificando
surgem
novas
dúvidas
e
novos
esclarecimentos são necessários. As orientações, por esse ângulo, não são
estáticas,
mas
permitem
prevenção,
e
com
isso,
abordagem
prescritiva
a
a
e
reflexão
sobre
realização
clássica,
a
de
as
medidas
ações
mais
informação
necessárias
conscientes.
dada
parece
ser
para
Em
a
uma
condição
suficiente para a comunicação em saúde e plena de compreensão por parte
do
interlocutor,
que,
nessa
condição,
é
desprovido
de
outros
saberes,
origem de classe e subjetividades. Compreender minimamente essa relação
entre a equipe multiprofissional (e seus saberes legitimados), os familiares e
os idosos viabiliza uma aproximação com as conexões desencadeadas nessa
dinâmica, na qual práticas de cuidados são postas em ação.
Importante ressaltar que ao problematizarmos os cuidados na saúde há
que considerar a pluralidade de sentidos incorporados ao termo, visto que
acarreta desenhos institucionais diversos (ALMEIDA, 2014). Na experiência
desenvolvida no NAI, tendemos a compartilhar da ideia de que o cuidado
institucional e profissional compõe um dos níveis da integralidade. Nessa
acepção, o cuidado não se reduz a um nível de atenção na saúde, tampouco a
um
procedimento
entre
sujeitos
e
técnico,
que
mas
supere
a
uma
lógica
concepção
curativa.
O
que
aposte
cuidado,
no
encontro
nesses
termos,
condiz com uma atitude de respeito, participação e responsabilidade com o
outro (PINHEIRO; MATTOS, 2010).
Ampliando
ainda
mais
a
perspectiva
dos
cuidados,
adicionamos
a
interpretação do conceito como resultado do desenvolvimento humano e
como
resposta
continuidade
e
às
necessidades
reprodução.
O
primárias
cuidado,
do
indivíduo,
apesar
de
permitindo
natural
e
a
sua
instintivo,
integra
mediações
crescente
e
do
sociais
gradual
mais
complexas,
distanciamento
das
próprias
pulsões
da
sociabilidade
espontâneas,
fazendo
surgir formas diferenciadas de cuidado, dentre elas, o cuidado doméstico
fundado na divisão sexual do trabalho (HIRATA; KERGOAT, 2007). Nessa
ótica,
o
cuidado
deve
se
constituir
em
um
pilar
da
cidadania
social,
integrado à seguridade social, uma vez que assume a qualidade de direito
intrínseco
para
a
vida
humana.
O
cuidado
é
universal
e
não
pode
ser
discriminado ou focalizado. Resulta levar em conta, portanto, a dimensão
material,
econômica
e
subjetiva
que
envolve
os
cuidados,
tanto
institucionais quanto domésticos.
...
Tentando finalizar
São muitas as preocupações. A cada dia somos tomados de assalto com
notícias
óbitos
alarmantes
e
e
surpreendidos
contaminados.
confirmados
em
todo
o
Segundo
mundo
com
a
o
crescimento
OMS,
4.789.205
até
casos
exponencial
203,
20/05/2020
de
COVID-19
e
de
foram
318.789
mortes. No Brasil, de acordo com os dados consolidados pelo Ministério da
Saúde
291.579
204,
até
e
20/05/2020
o
número
de
o
número
óbitos
foi
de
de
contaminados
18.859
pessoas.
No
correspondeu
estado
do
Rio
205,
Janeiro, segundo a Secretaria Estadual de Saúde, em 21/05/2020
a
de
havia
32.089 casos confirmados, 3.412 óbitos e 1.095 óbitos em investigação. Na
cidade do RJ havia 18.743 contaminados e 2.373 óbitos.
Lamentavelmente,
esses
dados
ainda
não
revelam
a
realidade.
A
subnotificação pela falta de testagem em massa e outras variáveis é fator
inquietante, pois impede o monitoramento adequado do espraiamento da
epidemia
do
novo
coronavírus
no
Brasil.
206,
pesquisadores da UERJ e outras instituições
Segundo
estimativas
de
esses números podem ser
ampliados em até dezesseis vezes, em especial se persistirem as lacunas na
rede assistencial. Soma-se a esse painel, outro dado extremamente grave.
Segundo
a
Secretaria
Municipal
de
207,
Saúde
em
19/05/2020,
a
taxa
de
ocupação dos leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) era de 83%
enquanto
o
percentual
quinhentas
e
dos
quarenta
e
leitos
duas
de
enfermaria
pessoas
foi
de
aguardando
79%.
vagas
Havia
em
ainda
leitos
de
enfermarias e destas, duzentos e setenta e seis estavam aguardando vagas
em
leitos
de
Centros
de
Tratamento
Intensivo
(CTI).
Se
analisarmos
os
dados de óbito por faixa etária, temos no município do RJ o número de 1.675
pessoas acima de 60 anos falecidas por COVID-19, equivalendo a 70% do
total.
Além dessa crise sanitária sem precedentes na história recente, estamos
diante de uma outra crise de monta: a crise política. O isolamento social,
iniciado
no
Brasil
sistematicamente
Bolsonaro
—
bizarras,
medidas
vírus,
da
em
de
contestado
por
da
pandemia
da
com
brasileira
a
RJ
e
—
nacionais,
com
tão
o
campo
de
15/03/2020,
do
que,
atual
da
para
um
a
constrangimento
são
e
e
Jair
todas
discurso
afirmativas
conter
sendo
presidente
ciência
Trabalhadores/as
vem
contrariando
publiciza
evocando
necessárias
geral.
em
declarações
mensagem
em
no
COVID-19,
divergência
distanciamento,
e
ultradireita
internacionais
clara
colidem
população
12/03/2020
representante
recomendações
amenização
em
da
as
de
risíveis
e
saúde.
As
propagação
do
cooptação
convocados/as
da
a
romperem com o isolamento social, por meio de ameaças aos seus direitos
(ora pelo anúncio do desemprego, ora pela redução de jornada de trabalho e
salários),
evidenciando
a
clássica
dicotomia
entre
a
economia
e
a
preservação da vida.
Para
o
centenas
discurso
de
vidas
genocida,
importam
as
vidas
sim.
não
Cada
valem
idoso
nada.
Mas,
monitorado
para
por
nós
nós,
é
as
uma
vitória! Cada idoso que internamos e que se recupera nos dá enorme alívio!
Cada idoso que falece nos comove! Por isso, continuamos firmes e fortes no
exercício do cuidado e na politização desse quadro sanitário.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA,
Carla
Cristina
Lima
trabalho com família. In:
de
saúde
hoje:
interfaces
de.
Saúde
DUARTE,
&
e
Cuidado:
elementos
para
o
Marco José Oliveira et al. (Org.). Política
desafios
no
trabalho
de
assistentes
sociais.
Campinas, SP: Papel Social, 2014.
BERNARDO,
Maria
dependência
município
Programa
e
do
de
Helena
de
cuidados
Rio
de
Jesus.
Envelhecimento
familiares:
Janeiro.
Pós-Graduação
desafios
Tese
em
da
para
(Doutorado
Serviço
a
classe
proteção
em
Social,
trabalhadora,
Serviço
Faculdade
social
no
Social)
—
de
Serviço
Social, Universidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019.
BRASIL.
Orientações
atenção
integral
Brasília:
técnicas
à
saúde
para
da
Ministério
a
implementação
pessoa
da
idosa
no
Saúde,
de
sistema
linha
de
cuidado
único
de
saúde
2019.
Disponível
para
(SUS).
em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/linha_cuidado_atencao_pess
oa_idosa.pdf. Acesso em: 10 maio 2019.
HIRATA,
Helena;
KERGOAT,
Danièle. Novas configurações da divisão sexual do
trabalho. Cadernos de Pesquisa, Campinas, v. 37, n. 132, p. 595-609, 2007.
PINHEIRO,
Roseni;
MATTOS,
Ruben
(Org.).
Construção
social
da
demanda:
direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. 2.
ed. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO, 2010.
NOTAS
200
|
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Assistente Social do Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI–HUPE/UERJ) e Docente da
Faculdade de Serviço Social da UERJ.
201
|
Graduada em Serviço Social e Comunicação Social. Especialista em Serviço Social e Saúde pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e MBA Inovação na Gestão Pública pela UERJ.
Assistente
Social
do
Núcleo
de
Atenção
ao
Idoso
(NAI–HUPE/UERJ).
Vice
coordenadora
do
Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Idoso (NAI).
202
do
|
Resolução n.04 de 26/03/2020 do Conselho Federal de Psicologia. Portaria n. 467 de 20/03/2020
Conselho
Federal
de
Medicina.
Resolução
n.
634
de
20/03/2020
do
Conselho
Federal
de
Enfermagem. Resolução n.6464 de 24/03/2020 do Conselho Federal de Nutrição. Resolução n.516 de
20/03/2020 do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional.
|
203
Disponível
em:
https://www.paho.org/bra/index.php?
option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875. Acesso em: 21 maio 2020.
204
|
205
|
Disponível em: https://coronavirus.saude.gov.br/. Acesso em: 21 maio 2020
Disponível em: https://coronavirus.rj.gov.br/boletim/boletim-coronavirus-21-05-3-412-obitos-
e-32-089-casos-confirmados-no-rj/. Acesso em: 21 maio 2020
206
207
|
Disponível em: https://www.uerj.br/noticia/11215/. Acesso em: 21 maio 2020.
|
Disponível
em:
https://prefeitura.rio/cidade/prefeitura-atualiza-numero-de-leitos-covid-19-
taxa-de-ocupacao-sus-e-fila-da-regulacao/. Publicado em 19 maio 2020. Acesso em: 21 maio 2020.
:
Para além da quarentena
reflexões sobre crise e pandemia
REVISÃO
Ana Lole
Carla Cristina Lima de Almeida
Inez Stampa
Rodrigo Lima Ribeiro Gomes
DESIGN E DESENVOLVIMENTO
Patrícia Oliveira
ISBN
978-65-86464-15-3
©
2020 MV Serviços e Editora.
Todos os direitos reservados.
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Lapa
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