[go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu
PARA ALÉM DA QUARENTENA: REFLEXÕES SOBRE CRISE E PANDEMIA ANA LOLE ■ INEZ STAMPA RODRIGO LIMA R. GOMES [ORGS.] ANA LOLE ■ INEZ STAMPA RODRIGO LIMA R. GOMES [ORGS.] PARA ALÉM DA QUARENTENA: REFLEXÕES SOBRE CRISE E PANDEMIA APOIO: ÍNDICE 19 Crise e pandemia da COVID- • ANA LOLE — leituras interseccionais CARLA CRISTINA LIMA DE ALMEIDA • INEZ STAMPA • RODRIGO LIMA RIBEIRO GOMES Crises históricas e naturalismo capitalista STEFANO G. AZZARÀ Pandemia e crise na União Europeia PAOLO DESOGUS : Entre pandemia e crise orgânica contradições e narrações hegemônicas do capitalismo em colapso GIANNI FRESU A vigência do estado de sítio político na pandemia • MARCOS DEL ROIO VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ ? Urgente para quem 19 COVID- A Lei de Urgente Consideração e a pandemia da no Uruguai MÓNICA BRUN BEVEDER A epidemia e o fascismo LINCOLN SECCO A pandemia e a ‘ ’ inteligência VICENTE A. C. RODRIGUES • do presidente INEZ STAMPA . Cortar ou não cortar, eis a questão Crise orgânica, tensões no bloco social dominante e ajustes na austeridade fiscal RODRIGO CASTELO : Globalização e pandemia o fim da hegemonia e a necropolítica neoliberal PEDRO CLÁUDIO CUNCA BOCAYUVA A morte como projeto VICTOR LEANDRO CHAVES GOMES Revolução-restauração em tempos de pandemia LUCIANA ALIAGA 19 Precarização do trabalho em tempos de pandemia da COVID- PERCIVAL TAVARES DA SILVA Aspectos da Educação brasileira em meio aos dilemas de um momento dramático RODRIGO LIMA RIBEIRO GOMES 19: A crise provocada pela COVID- antigos problemas em um novo cenário ANDREIA CLAPP SALVADOR • RAFAEL SOARES GONÇALVES : Pandemia e crise capitalista • VALÉRIA PEREIRA BASTOS a situação das favelas REGINALDO SCHEUERMANN COSTA A violência que não respeita o isolamento VITOR CASTRO 19: COVID- memórias e pesadelos para quase-cidadãos MARCELO PAIXÃO • FLAVIO GOMES Muito além da perda da libido GUILHERME ALMEIDA “ Entre a deriva e o naufrágio ”: notas sobre a população LGBTI em 19 tempos de pandemia da COVID- MILENA CARLOS DE LACERDA 19: Povos indígenas em Alagoas e a COVID- práticas e cuidados MARLI DE ARAÚJO SANTOS 19 As mulheres e a pandemia da COVID- • RITA DE CÁSSIA SANTOS FREITAS na encruzilhada do cuidado CARLA CRISTINA LIMA DE ALMEIDA • ANA LOLE Notas de uma travessia — reflexões de uma assistente social em 19 Portugal em tempo de pandemia da COVID- MARIA INÊS AMARO / : As os assistentes sociais na linha de frente 19 violência e violações de direitos na pandemia da COVID- ANTONIO CARLOS DE OLIVEIRA 19 A pandemia da COVID- • ARIANE REGO DE PAIVA • IRENE RIZZINI e o trabalho de assistentes sociais na saúde MAURÍLIO CASTRO DE MATOS A relevância do trabalho dos assistentes sociais no enfrentamento à 19 pandemia da COVID- MÁRCIA BOTÃO • NILZA ROGÉRIA NUNES 19: O cuidado em saúde mental no cenário de pandemia da COVID- experiência de ( ) re organização do CAPS UERJ ANA PAULA PROCOPIO DA SILVA • ANÁLIA DA SILVA BARBOSA : Monitoramento remoto com idosos 19 uma experiência de cuidado em tempos de pandemia da COVID- MARIA HELENA DE JESUS BERNARDOO [ [ CRÉDITOS ] LEIA TAMBÉM ] a • TANIA DE OLIVEIRA 19 Crise e pandemia da COVID- — leituras interseccionais 1 ANA LOLE 2 CARLA CRISTINA LIMA DE ALMEIDA 3 INEZ STAMPA 4 RODRIGO LIMA RIBEIRO GOMES Esta coletânea surge do desejo de elaborarmos um material para reflexão sobre a grave crise societária em curso, agravada pela pandemia da COVID- 19, que cruzado trouxesse debates interseccionais, pois estamos vivendo em fogo de múltiplas agendas reacionárias. Para nossa surpresa e felicidade, todas e todos que convidamos aceitaram prontamente participar do projeto e escreveram no “calor da hora”. Trata- se, portanto, de um projeto coletivo viabilizado em parceria com a Mórula Editorial, neste e-book com distribuição gratuita. Sabemos que a crise e a pandemia se retroalimentam, pois as condições de vida cada vez mais precarizadas para a imensa maioria da população aumentam as chances de contágio e de agravamento da doença. A pandemia, por sua vez, indispensável uma exige para economia já a distanciamento prevenção combalida. do e isolamento contágio, Neste cenário, social impactando o gesto da como medida negativamente editora merece registro destacado, assim como a generosidade das autoras e dos autores. Esta coletânea reúne 27 capítulos e 39 autoras e autores do Brasil e do exterior (Itália, França, Portugal, Estados Unidos e Uruguai). Quanto à estrutura, optamos por não dividir os textos por partes ou eixos temáticos, porém iniciamos das discussões mais gerais e as agrupamos por afinidade de conteúdo. O material aqui reunido traz reflexões de diversos lugares, tanto em termos geográficos profissionais, o que como mostra em a relação riqueza de a experiências um trabalho vividas coletivo e com participação plural. O cenário político pandêmico é diferente nas diversas regiões do país e do mundo, pois a forma de sociedades e governos lidarem com as medidas de enfrentamento à COVID-19 não foi linear. Um exemplo foi o deboche do presidente da República, considerando-a uma no Brasil, sobre “gripezinha”, a gravidade denotando da uma pandemia espécie de malthusianismo social e demonstrando que a política de governo é uma práxis neofascista. Importante destacar que as ações advindas do governo Bolsonaro podem ser caracterizadas de diferentes formas. Embora a melhor conceituação ainda esteja em debate, e terá de incorporar o modo de ação do governo na pandemia, defini-lo como neofascista ou protofascista é uma aproximação razoável. Nesta caracterização, é importante considerar que a linha que separa a civilização da barbárie foi rompida quando empresários, acionistas da bolsa de quarentena, valores a e despeito governo das se posicionaram consequências para a pelo imediato vida humana. fim A da ideia subjacente é que a “seleção natural” irá agir na epidemia (darwinismo social): os mais fortes (como os “super-homens” Bolsonaro, o dono do Madeiro, entre outros tantos) sobreviverão, os fracos sucumbirão (LEHER, 2020). A Organização março de 2020, mecanismos capitalista Mundial da acelerou perversos totalitário a sobre sobre a Saúde (OMS), “compreensão corpos vida”, ao do concretos” pois o decretar a pandemia neoliberalismo e “confirma “neoliberalismo o em em seus controle mostrou que convive perfeitamente com máquinas de morte [...]. Mas agora o vírus, que não discrimina por classe e não seleciona segundo o passaporte, montou um ensaio geral da vida neoliberal como um espetáculo que vemos acontecer online, com um contador CAVALLERO, 2020). necropolítico em tempo real” (GAGO; No momento em que esta publicação é fechada (29 de maio de 2020), o mundo já computa quase seis milhões de infectados com o novo coronavírus, com mais de 365.000 mortos, mais de 2.600.000 recuperados e quase 3.000.000 Desses, mais de de casos 450.000 ativos, casos dos estão quais no 53.691 Brasil, em onde já condição crítica. morreram 27.267 pessoas, foram curadas mais de 193.000 e ainda estão com a doença ativa 5 mais de 221.000, dos quais 8.318 são casos críticos. Enquanto escrevíamos esta apresentação, precisamos acompanhar o site worldometers.info constantemente, porque os números de vítimas da COVID-19 estão sempre em atualização. Embora o pico de mortes diárias no mundo tenha sido verificado em meados de abril, algumas partes sensíveis do planeta, social e que combinam pobreza, como densidade Brasil, Índia populacional, e México, enorme desigualdade apresentam crescimento preocupante na velocidade de difusão da doença. A característica da doença, por si só, já torna difícil qualquer prognóstico em relação à pandemia, rapidamente pelas manifestação com tornando atitude a tarefa social cidades retardo, das preventiva espalhamento somado da a uma vez e que explode auxílios de governos COVID-19, no o regiões autoridades dos que e a é partir de muito essencial da para Sars-CoV-2 apresenta saúde sentido econômicos vírus um para contrapor de momento, Por o do espalha período dado difícil. garantia se um se isso, uma combate ao distanciamento aos impactos da realização de quarentena nos empregos e nas empresas. No Brasil, temos uma segunda dificuldade em relação à qualquer previsão acerca dos impactos sociais e econômicos da pandemia: a agenda reacionária e a irresponsabilidade política do presidente Bolsonaro, que gera crises consecutivas, ameaças golpistas e um desdém e uma inépcia inacreditáveis em relação ao combate ao novo coronavírus, sua descontrolada pelo território nacional e um descaso pelos mortos. difusão Em reunião organizada em março deste ano, na qual foram apresentadas as previsões do Ministério da Saúde sobre a pandemia no Brasil, Solange Paiva Vieira, assessora do ministro da Economia do Brasil e uma economista que comanda a Superintendência de Seguros Privados, minimizou os efeitos sociais da crise sanitária no país, enxergando aspectos positivos em torno do cenário idosos para […]. a economia: Isso “É melhorará bom que nosso as mortes desempenho se concentrem econômico, entre pois os reduzirá 6. nosso déficit previdenciário” A atitude negacionista em relação à ciência, a pressão de empresários e as ações na contramão conduzindo o do Brasil a razoável por condições parte do trágicas, governo tanto federal sanitárias estão quanto econômicas. Por muitos ângulos distintos, as autoras e os autores deste livro procuram interpretar os movimentos combinados dessas duas crises, com o intuito de contribuir para ações políticas que nos permitam sair da pandemia em condições decentes de civilidade. Neste sentido, esta coletânea mostra que a pandemia da COVID-19 tem diferentes evidentes impactos marcas da sociais e regionais. violência colonial As e de análises gênero, aqui do tecidas genocídio deixam étnico- racial, das sexualidades dissidentes, dos corpos invisibilizados e das vidas sem importância que compõem as sociedades contemporâneas. Os impactos epidêmicos, ao longo do tempo, sempre estiveram dependentes das profundas segmentações exploração-dominação de e relações, grupos historicamente populacionais. estruturadas, Sociedades desiguais de de muitas formas, não apenas no cenário amplo da geopolítica, mas também nas suas paisagens internas, no seu modus operandi. A COVID-19 conecta-se com um projeto capitulação de de nação, longamente determinados sujeitos, (re) a formulado, imposição que de envolve regimes a de moralidade e sexualidade, de combate aos corpos. Acontece que a cegueira ou, ainda, a clara decisão de não se ver essas violências, constituintes do modelo capitalista de ontem e de hoje, não se sustentam mais. A pandemia faz cair o véu, o capital-rei está nu em todo canto do planeta Terra. Não é privilégio de algumas nações. O mundo horror de pré-pandemia mortes embalava anunciadas, o silêncio banalizadas e cotidiano até em esperadas. torno Mas o desse nosso veneno da madrugada, o novo coronavírus, tal como os pasquins de Gabriel García Márquez (2014), revela aquilo que tudo mundo já sabe, cumprindo apenas o ato, a função, de dar-lhes seu endereço. Os estudos epicentro da aqui apresentados agenda de explicitam enfrentamento da que o cuidado pandemia, em ascende suas ao várias e diversas semânticas. Na memória do eugenismo e higienismo o cuidado se reatualiza como como fique em controle, casa, Recomendações anulação, higienize alheias às como se e ambientes, nas periferias mãos vidas tal expressa alimente-se e favelas, em narrativas saudavelmente. à interdição do trabalho digno em nome de ajustes fiscais, às vidas que pulsam nas ruas, prisões, aldeias, multidões quilombos. aglomeradas a Ou filas ainda, de humilhação fome e de e desespero, angústia por ao um lançar auxílio emergencial, atiradas à sua própria sorte, ao desgoverno. Encontramos rotas de fuga nas semânticas do cuidado e muitas agências de sujeitos, sobretudo solidariedade assistência e de seus saúde, mulheres, territórios travam que e no na espaço linha cotidianamente doméstico, de o frente bom nas do redes trabalho combate. de de Adoecem, padecem, se arriscam, sofrem todo tipo de sobrecarga e desprezo, morrem dentro e fora de suas casas. Histórias que expressam energia ancestral, uma força-matriz; acende utopias? Especial destaque é dado ao trabalho de assistentes sociais, profissão que na divisão social e social do trabalho profundamente destruição de profissionais vidas na e gestão está historicamente familiarizada de seus de com corpos. serviços, na a vinculada perversa Alguns textos assistência, à reprodução engrenagem mostram na da esses produção de conhecimento, fabulando em muitas contracorrentes a ética do cuidado essencial. E isso nos faz voltar ao início, sobre o estímulo em reunir em uma mesma obra estudos, opiniões, relatos tão necessários diante de crise econômica, política e sanitária de tais proporções, agora potencializada pela pandemia. A humanidade está sendo interpelada sobre as alternativas possíveis. Neste campo, a defesa resoluta de direitos sociais é tarefa urgente em qualquer canto do planeta, mais ainda onde eles estão sendo solapados visceral e ferozmente e em velocidade antes nunca vista, como é o caso do Brasil, a urgência é ainda maior. Pelo que possível 7 conhecemos discriminar quilombola pesava já em mais” Cada vez Não [sic]), mais o Paulista. fazem nada. população índio é manifestações considerados Eldorado arrobas. serve os nas um Eu indígena ser fracos: mais Olha, o humano negros afrodescendente acho (“o presidenciais, que índio igual a nem para mudou. nós” aqui seria (“Fui num mais leve procriador Está [sic]), lá ele evoluindo. nordestinos (“Daqueles governos de paraíba, o pior é do Maranhão. Tem que ter nada com esse cara” [sic]) e marxistas ‘culturais’, todos estes, claro, selecionados ainda mais negativamente se mulheres. Implicitamente, os moradores das favelas, em geral” (LEHER, 2020). Se não existe consenso sobre as medidas protetivas e preventivas para enfrentar e alternativas conter após o a pandemia fim da da COVID-19, pandemia. A menos ainda continuidade das sobre as políticas neoliberais, cada vez mais extremadas em virtude da crise, não afastará a possibilidade de que muitos irão perecer por falta de condições materiais de vida. A questão da necessidade de estabelecimento de estratégia, mundo afora, para pensar a vida em sociedade pós-pandemia é clara e deve ser o principal eixo importam. articulador dos que defendem e lutam porque vidas que Esperamos reflexões que sobre a os debates grave crise reunidos que nesta assola o coletânea mundo, em contribuam particular para sobre a pandemia, mas, também, possam dar pistas para pensarmos sobre os rumos políticos do Brasil. Uma “nova direção intelectual 7 e moral” é preciso. Desejamos uma boa leitura! REFERÊNCIAS GAGO, Verónica; feminista Teorias CAVALLERO, para e o Luci. Dívida, pós-pandemia. Práticas moradia Medium, Feministas 18 e trabalho: abril (PACC 2020. -UFRJ). uma agenda Laboratório Disponível de em: https://medium.com/laborat%C3%B3rio-de-teorias-e-pr%C3%A1ticas- feministas-pacc/d%C3%ADvida-habita%C3%A7%C3%A3o-e-trabalho- uma-agenda-feminista-para-o-p%C3%B3s-pandemia-9776cad9c302. Acesso em: 29 maio 2020. GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. O veneno da madrugada (a má hora). Trad. Joel Silveira. Ilustrações Carybé. 14 ed. Rio de Janeiro: Record, 2014. GRAMSCI, Antonio. filosofia. A Cadernos filosofia de do cárcere. Benedito Vol. 1: Croce. Introdução Rio de ao Janeiro: estudo da Civilização Brasileira, 1999. LEHER, Roberto. Darwinismo social, epidemia e fim da quarentena: notas sobre os dilemas imediatos. Carta Maior, 29 mar. 2020. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Darwinismo-social- epidemia-e-fim-da-quarentena-notas-sobre-os-dilemas- imediatos/4/46972. Acesso em: 29 maio 2020. NOTAS | 1 Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Membro da Coordenação Nacional da International Gramsci Society Brasil (IGSBrasil). Pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NuFiPE/UFF) e no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Políticas Públicas e Serviço Social (TRAPPUS/PUC-Rio). 2 | Professora Associada da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenadora do Núcleo de Estudos Família e Gênero (UERJ). | 3 Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Políticas Públicas e Serviço Social (TRAPPUS/PUC-Rio). Membro do Opening The Archives Project. | 4 Professor Adjunto do Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NuFiPE/UFF). Membro da Conselho Nacional da International Gramsci Society Brasil (IGS-Brasil) | 5 Disponível em: https://www.worldometers.info/coronavirus/. Acesso em: 29 maio 2020. O Worldometer é um site de referência que fornece contadores e estatísticas em tempo real para diversos tópicos. Ele pertence e é operado pela empresa de dados Dadax (empresa de soluções de software focada em tecnologias e aplicativos da web, situada em Xangai), que gera receita por meio de publicidade online. | 6 Ver, entre outros: https://revistaforum.com.br/politica/coronavirus-assessora-de-guedes- enxergava-morte-de-idosos-como-positiva-para-reduzir-deficit-previdenciario/; https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/05/veja-as-perolas-que-ja-foram-ditas-sobrea-pandemia-no-brasil.shtml. Acesso em: 29 maio 2020. 7 | Gramsci (1999). Crises históricas e naturalismo 8 capitalista 9 STEFANO G. AZZARÀ As crises agudas evidenciam as contradições, fragilidades e linhas de falha de cada sociedade econômico. Ao histórica, longo dos bem como tempos, de todo guerras em sistema larga político escala, e quedas repentinas na produção, erupções revolucionárias, terremotos, fome, mas também nações epidemias e sujeitaram perturbaram suas o funcionamento estruturas a tensões normal imprevistas, da às vida das vezes até mesmo levando-as ao colapso, quando essas tensões ultrapassavam o nível do limiar e, em particular, quando podiam alavancar fraturas anteriores profundas que, até então, haviam permanecido mais ou menos ocultas ou haviam sido completar a suturadas pesquisa redistributivo dos de de alguma Walter “Quatro forma. Scheidel Cavaleiros” — Assim, sobre o “guerras seria interessante impacto de nivelador massa, e revoluções transformadoras, fracassos estatais e pandemias letais” —, investigando “se e como” a assimetrias presença de poderiam formas graves “contribuir de para desigualdade gerar esses social choques ou outras violentos” (SCHEIDEL, 2018, pp. 6-7). Nesse sentido, as sociedades capitalistas — e, sobretudo, aquelas mais avançadas, como a maioria dos países pertencentes à civilização ocidental — deveriam, em princípio, ser mais adiantadas do que as sociedades tradicionais ou com uma organização de produção e reprodução diferente. Embora certamente mais complexas do que as formações sociais anteriores ou concorrentes, como Gramsci já havia compreendido ao mapear sua “robusta cadeia complexidade de que, fortalezas por causa e casamatas” de seu (Q7, § pluralismo, 16, p. 866) costuma ser — uma afirmada também como uma característica positiva diante de possíveis configurações alternativas e mais centralizadas do vínculo social —, especialmente desde a Segunda Guerra Mundial, essas sociedades têm superado grande parte o problema da subsistência e das necessidades básicas em escala de massa. Além disso, a racionalidade técnica e científica que preside sua organização, concebida cada vez mais para se adaptar às flutuações repentinas do mercado, deve, em princípio, ser capaz de reagir de forma adaptativa e até proativa a qualquer contingência: desta forma, pelo menos, como salientou Richard Sennet (2001), o processo de “especialização flexível” do trabalho social “redes como um abertas”, décadas. E todo, tem para a fim sido dar de derrotar promovido resposta, os com “males da insistência habituando-se a rotina” ao através longo de “mudanças de muitas súbitas e decisivas”, às necessidades de uma época que, dizia-se, com sua contínua aceleração dos ritmos da vida e do consumo, e com seus problemas cada vez mais globais, que a cada dia impunham uma sempre nova redefinição just in time de todas as funções sociais, à medida que as necessidades da própria sociedade mudavam, em resposta à sua esmagadora evolução interna, bem como aos estímulos externos — na realidade, para “reduzir o custo direto e indireto do trabalho” e para “reduzir o risco do negócio”, Luciano Gallino (2007, p. 27) advertiu mais prosaicamente. Todavia, tal característica prevalecendo potencial mais e vantagem profunda prejudicando competitiva dessas seu nossas desempenho é contrastada sociedades, no por que momento uma acaba que são chamadas aos testes mais extremos, a saber, sua natureza intrinsecamente religiosa. Obviamente, não estou me referindo à fé religiosa entendida como devoção confessional, que, em sociedades amplamente secularizadas e desencantadas como as da Europa — que seriam diferentes para os Estados Unidos —, desempenha um papel marginal e que só recentemente retornou a uma função peculiar, após passar por um processo parcial de redefinição através da radicalização fundamentalista, também como resultado do 10 mas sim a algo mais profundo. impacto dos processos migratórios, Em conversa com Mauro Bonazzi, o antropólogo Giovanni Kezich observa que “nenhuma cultura é capaz de se conceber num espaço de tempo infinito”, de modo que cada uma delas é levada da “perspectiva do colapso” a imaginar até mesmo a aproximação de um “renascimento”, talvez através 11. da passagem por um doloroso “sacrifício reparador” menos uma exceção essencial a esta tese. Para Entretanto, há pelo além de todas as suas metamorfoses superficiais, a sociedade capitalista, de fato, pensa a si mesma como fundamentalmente atemporal e, portanto, como permanentemente suspensa num presente infinito, de modo que o movimento perpétuo que também ocorre nela é, por sua vez, percebido como a manifestação aparente de uma eternidade substancial. Um falso movimento em que os mesmos mecanismos e relações de produção e as mesmas hierarquias são sempre e em todo caso reafirmados, ainda que, por vezes, personificados por atores diferentes, como no contexto de uma liturgia que permanece sempre idêntica a si mesma ao longo dos séculos e milênios. Da famosa intuição de Walter Benjamin de que “no capitalismo deve ser vislumbrada uma religião”, deve-se sublinhar sobretudo o aspecto “culpabilizante/indebitante”, isto é, a característica muito particular de que essa religião “não expia o pecado, mas cria culpa/dívida”, com o resultado de tornar essa má consciência “universal”, a ponto de até “envolver o próprio Deus”; e foram questionadas, consequentemente, sobretudo suas referências possíveis à “forma do dinheiro e do crédito”. Benjamin aponta também, religião no entanto, puramente que essa cultural”, religião que é capitalista válida como é, antes pura fé de tudo, “uma auto-referencial, sem “nenhum dogma em particular, nenhuma teologia”. E diz que, para ele, “não há importa dias é de semana” apenas “a e “não duração há dia que não permanente seja do feriado”, culto”. O pois que o que exige “perseverança até o fim”, ou seja, perseverança como se nunca houvesse um fim: perseverança eterna, precisamente, porque para ela não existe tal fim (BEJAMIN, 2013, pp. 41-43, passim ). “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”: é um estado mental antes mesmo de ser o foi destacado por Fredric Leitmotiv Jameson e de uma visão de mundo, o que depois lembrado por Mark Fisher. Ambos se referem, nesta circunstância, à temporalidade particular do pós- modernismo. Para Jameson, o capitalismo tardio marcou o fim da Utopia como prefiguração crítica de uma forma alternativa de vida e de socialidade. Em seu lugar está agora apenas “a invencível universalidade do capitalismo que desmantela incansavelmente todo o progresso social”, de modo que, em seu horizonte, domina irreversibilidade dessa “a convicção tendência, universal mas da não apenas impossibilidade da e não praticabilidade das alternativas históricas ao capitalismo, a certeza de que nenhum outro sistema socioeconômico é concebível ou ainda menos viável na prática” (JAMESON, 2007, pp. 10, 39, 122, 166, 216, 236, 252, 271, 286, passim ). Enquanto a “era moderna” ainda deixou uma série de “rotas de fuga” de um “espaço social” ainda não totalmente “colonizado”, o pós-modernismo fecha definitivamente essas “fendas” na “perspectiva de um concreto Mercado mundial”. Aqui a Utopia degenerou em uma cópia do existente, uma “réplica do sistema”, muitas vezes na figuração da “teoria da conspiração”. O romance de fantasia, ficção científica, o romance histórico pós-moderno, implementa programaticamente um “processo de redução ao presente e abolição do passado e do futuro”, numa espécie de “desnaturação” em que “a história se torna uma torrente desconcertante de puro e tempo, simples não devir”, podemos “temporalidade um nos vazia, “fluxo no mergulhar que na qual, nem realidade como uma Cratilo vez”. deixa Ou disse seja, inalterada a há muito surge uma estrutura fundamental” e que envolve uma “eliminação da historicidade”: “é o futuro da globalização em que nada é respeitado na sua particularidade e tudo se torna presa do lucro e do sistema de trabalho assalariado”. Da mesma forma, para Fisher, político e o “realismo econômico capitalista” viável hoje”. constrói-se Um sistema como ao qual “o é único sistema “impossível até mesmo imaginar uma alternativa coerente” e que define as características de “uma cultura que privilegia apenas o presente e o imediato”, de tal forma que “a remoção do pensamento de longo prazo se estenda não apenas para frente no tempo, mas também para trás”, como se o nosso tempo fosse afetado por gravíssimos “distúrbios de memória” (FISHER, 2018). Embora seja, hoje, particularmente pervasivo, o fenômeno dessa ilusão óptica, no entanto, não esperou o advento da “compressão espaço-tempo” (HARVEY, 1993, pp. 186, 296 seq., et 319 et seq.) pós-moderna para se manifestar, pois é uma forma de reflexão que, no capitalismo, se apresenta como estrutural e congênita. Como Marx observou em sua crítica à economia política, através dos funcionários ideológicos que produzem sua autoconsciência, sociedade desde burguesa essencialmente seu início considera “naturais”, ou e já suas seja, as em seus estágios próprias leis considera preparatórios, de como a funcionamento as leis normais e constantes que regem o desdobramento da atividade econômica como tal e em torno das terminando quais por todo recolher o complexo delas sua social própria sempre imagem teria peculiar se da movido, natureza humana mesma. Que “o trabalho representa a si mesmo no valor, e a medida do valor através da sua duração temporal representa a si mesma na grandeza de valor do mercadoria, formação produto do entende-se, social na qual trabalho”, assim, o a processo diz, falando origem de sobre destas produção o fetichismo “fórmulas” controla os em da “uma homens e o homem não controla ainda o processo produtivo” (MARX, 1989, pp. 112-113). A “forma de valor” é concebida aqui como “a eterna forma natural de produção social”. Ou seja, são fórmulas historicamente determinadas, que a “consciência burguesa” percebe como “necessidade natural”, uma necessidade que é “tão óbvia quanto o próprio trabalho produtivo”. Segue-se organismo religiões religião que, para social de pré-cristãs do único a economia produção são Deus são tratadas que política, “as tratadas... pelos realmente Padres existe formas mais da é pré-burguesas ou menos Igreja”, agora a do como porque religião a as única do Deus capital. No Robinson Crusoé que encontra, em condições excepcionais, o estado da indivíduo natureza, moderno e que nela se comporta potencialmente espontaneamente proprietário, sem ter como consciência um do caráter historicamente condicionado de sua própria reflexão, constituição e ação — e nas “robinsonatas”, nas “invenções sem imaginação” de Smith e Ricardo, que fazem iniciar a produção partir do “único e isolado pescador e caçador”, em vez de indivíduos cuja existência é “socialmente determinada” — reflete, antes de tudo, a autoconsciência de um modo de produção em formação, o capitalista, que se concebe como o único mundo verdadeiramente possível e a única formação social que sempre existiu: são os traços de um culto sistêmico autorreferencial que funciona como uma religião capitalista implícita. É porque o tempo foi, desde o início, hipotecado pelo capital — portanto, quando esta ideologia se desdobrou e estabilizou completamente —, que é impossível opor à sociedade capitalista qualquer possível antecipação de um “novo mundo” que seja diferente dela. É certamente um paradoxo que esta ideologia naturalista, ou seja, a ilusão da naturalidade permanecido metafísica intacta na da cultura própria ocidental ao constituição longo do social, século XX. tenha György Lukács poderia observar, nas primeiras décadas do século, passado que, para a sociedade burguesa, “é uma questão de vida, por um lado, apreender sua própria ordem produtiva como se sua forma fosse determinada por categorias válidas de modo atemporal, portanto, destinadas pelas eternas leis da natureza e da razão a uma eterna permanência; e, por outro lado, avaliar como meros fenômenos superficiais, e não como inerentes à essência dessa ordem reaparecem” continua de produção, (LUKÁCS, sendo urgente as 1973, p. mesmo contradições 15). no No final que entanto, desse inevitavelmente esta século e “questão no novo vital” milênio. Única forma de ideologia que mantem sua força em meio à dissolução das visões globais de mundo e do niilismo desenfreado dos valores, essa projeção parece até ter se fortalecido em nossos dias, de modo que a religião autorreferencial concorrentes capitalista que agora não parece podem ter competir diante pelo de si culto outras das divindades massas. Mas a civilização ocidental não seria caracterizada por uma peculiar capacidade de autoconsciência? Não tem trazido consigo, pelo menos desde o século XIX, uma incessante autorreflexão sobre sua própria história, de modo a se inebriar, durante muito tempo, por uma cultura historicista sufocante que “esmaga” o sujeito impedindo-o de sob “a grande “sentar-se no e sempre limiar do crescente carga momento”, do passado”, inibindo qualquer capacidade de ação — como lamentava Nietzsche, ao mostrar que “existe certo grau vivente é de insônia, atacado e, de ao ruminação, fim perece, de sentido tratando-se, histórico, no qual posteriormente, o de ser um homem, de um povo ou de uma civilização”(NIETZSCHE, 1976, pp. 265-355, 263-264, chave )? E não é precisamente nessa consciência historicista, em inversa, finitude toda passim que humana pretensão a à se identifica qual, na “verdade também medida em absoluta” a que e raiz dessa contesta toda compreensão da intransigentemente mistificação que fala em essências sobrenaturais, é, em grande parte, entendida como sinônimo de liberdade e Benedetto “pluralismo Croce de (2003) concepções protestou éticas” contra (ANTISERI, os muitos 2005), como “formalistas da energia” e os “partidários da vida pela vida”, que, já naquela época, queriam “a imposição de cima do ritmo da vida” e uma “regra” que, “ao invés de ser criada pelo homem como seu instrumento, deveria ela criar o homem”? Na realidade, é justamente essa consciência historicista da ligação entre continuidade e mudança histórica, adquirida de forma sistemática, antes de tudo, através da reflexão hegeliana sobre a história, que que foi reduzida em peças por décadas de desconstrução pós-moderna das “grandes narrativas especulativas e emancipatórias”, e da categoria do progresso. A crítica da filosofia da histórico, história, redefiniu o a desafio de percepção toda teologia dominante do imanente tempo em do processo termos de uma simultaneidade eterna em que tudo é contemporâneo a todo o resto, numa espécie de eterno presente. Não existe sequer a posteriori — segundo aquela “racionalidade post festum”, para a qual “um evento que, no imediato, parecia incompreensível, posterior do talvez completamente entrelaçamento das sem causas sentido, que o no conhecimento produziram se encaixa perfeitamente no necessário curso causal-legal da história” (LUKÁCS, 1976, pp. 347-348), como Lukács ainda alegava, com base na Coruja de Minerva, no Prefácio da Filosofia do Direito — a possibilidade de traçar um sentido geral da história. Nem, tampouco, este significado pode ser inscrito na história pela ação consciente e organizada dos homens, pois a consistência do sujeito é duvidosa e a própria história nada mais é que um nome, a metáfora de um campo de eventos não confiáveis, a expressão de forças que interagem de forma completamente aleatória. Mas, poderia consciência o trabalho histórica se pós-moderno não estivesse ter usado desde o tão início profundamente sob o controle a da ideologia burguesa, ou seja, a autoconsciência da sociedade capitalista? Para verificar essa contradição entre o peso da memória e a leveza irresponsável do imediato, não há necessidade de esperar até a segunda metade do século XX para se referir à reestruturação específica da temporalidade no pós- modernismo. Já em meados do século XIX, Marx sempre pôde notar, com ironia, como a história já havia existido para os intelectuais burgueses, “mas agora não existe mais”. Como, na percepção geral, com a generalização do valor de troca capitalista, que e a expansão suplantou à da força propriedade toda burguesa formação social e do mercado anterior e mais atrasada, o espírito do mundo havia chegado ao seu estágio final, definitivo e eterno de perfeição. A força com que se impõe um processo irrefreável é, portanto, a naturalização da força com se impõem os interesses determinados de certos setores sociais e a visão de mundo que os legitima: este é o fato original que subjaz à peculiar percepção da temporalidade capitalista. Foi o que Francis Fukuyama (1989) explicou, em sua forma mais vulgar, há vários anos, com seu conhecido intelectuais absoluto slogan burgueses do ideológico; como liberalismo a em um slogan representação sua versão há do muito desejo abstrata sonhado de um pelos consenso universalista. E que finalmente só foi possível com a vitória sistêmica do Ocidente no final da Guerra Fria, história, antes forçando redescobrir a de o afundar último rapidamente de irredutibilidade seus das após as sonhadores identidades negações a mudar coletivas pontuais de da posição e (FUKUYAMA, 2019). E é justamente essa aceitação da força irresistível do capitalismo, que é quase inata nos nativos e que, em sua ingenuidade, é comparável às formas mais primordiais de consciência, que mais uma vez justifica hoje a aplicação ao capitalismo de categorias de culto religioso, se não aquelas de pensamento mágico. Nessa perspectiva, no momento em que um evento excepcional desafiou dramaticamente abalou também significados não a atual só fé a ordem acrítica — “nada na estabelecida, eternidade será como mas, mais inescrutável antes”; “será profundamente, do que horizonte o de capitalismo sobreviverá?”: são os medos, ou as esperanças, ou os exorcismos que, desde as primeiras horas desta pandemia, ressoaram fortemente em várias frentes —, teria sido muito abruptamente de útil seu para o Ocidente, sonho de forçado de imortalidade, repente a despertar excecionalidade e autossuficiência, o rompimento do “muro”, com a abertura das “fronteiras entre ‘nós’ e os ‘bárbaros’”, como escreve Rocco Ronchi, para “tomar conta... do destino da comunidade mundial” e para “pensar em soluções 12. ‘comuns’” com a sua dogmático, Teria sido útil para o Ocidente finalmente acertar as contas própria e poder teologia se implícita, confrontar — com seu finalmente próprio — com monoteísmo o outro. Com modelos de organização social e com visões do mundo que, já antes da crise agora em curso, determinados sobrevalorizar considerar vinham setores a a corroendo se que é ilusão considerarem perspectiva aquele a um a partir pequeno o da gratificante todo, qual ângulo e que os observam como se que conduz estimulam o fosse mundo, não “o a a meu ponto de vista sobre o mundo”, e, portanto, “um dos objetos deste mundo” — como dizia fenomenológico Merleau da Ponty, percepção falando —, mas sobre “a o corpo geometria no [...] de processo todas as perspectivas possíveis” (MERLEAU-PONTY, 1965, pp. 113 e 117). “O termo sem perspectiva a partir do qual é possível derivar tudo”, e esse é o ponto de vista de Deus. De que outro se trata, então? Em seu livro A Conquista da América, Tzvetan Todorov colocou precisamente “o problema do outro” e, à luz da experiência de Colombo e Cortés, perguntou: “como se comportar em relação ao outro”? (TODOROV, 1984, p. 6). Esse primeiro encontro fortuito em San Salvador, disse ele, terá “valor paradigmático”, porque a partir desse momento, “a Europa Ocidental tentou assimilar o outro, fazer desaparecer a alteridade externa, e em grande parte conseguiu”, já que “seu modo de vida e seus valores se espalharam por todo o mundo”. Precisamente a partir dessa experiência, “impondo seu domínio sobre todo o globo em virtude de sua superioridade”, o Ocidente “esmagou dentro de si a capacidade de integração com o mundo” (TODOROV, 1984, p. 119), abrindo um abismo com o qual ainda estamos lidando. O poder paradigmático desse evento estava ligado, para Todorov, ao fato de que, ao contrário de outros encontros anteriores com outras civilizações, o de 1492 estava baseado em um “sentimento de estranhamento radical” (TODOROV, 1984, p. 7). Justamente porque “ele não consegue perceber o outro”, 1984, o p. homem 61) e, no encontro/choque branco limite, de “lhe o que impõe seus extermina. Todorov próprios Mas fala é é valores” mesmo (TODOROV, assim? realmente a O modelo experiência de mais original da alteridade? É duvidoso. As “pessoas nuas” que se movem “entre as aves e as árvores”, esses seres “privados de qualquer propriedade cultural”, “de linguagem”, “de leis e de religião”, o que inevitavelmente leva a “mal-entendidos” e estimula uma “assimilação à natureza” não esgota em nada a fenomenologia do outro (TODOROV, 1984, p. 41-42). O outro de Colombo não é na verdade o outro absoluto, mas apenas um outro parcial e esse encontro não foi realmente tão radical quanto parece. O próprio Todorov explica como em sua topologia da alteridade ou o homem branco “pensa nos índios... como seres humanos completos”, e por isso mesmo não os vê “este seus como tipo “iguais”, de próprios mesmo considera-os comportamento valores homem sobre branco os leva “idênticos” à vontade outros... “nega a a si mesmo, assimiladora, considerados existência de uma de à modo que projeção inferiores”; substância ou de esse humana verdadeiramente diferente”, mesmo que “em grau inferior e imperfeito”, e considera os nativos como meros “objetos vivos”. Bem, em ambos os casos não temos um encontro real com o outro entendido como o outro absoluto, porque o que se encontra é o assimilável (o inferior), ou um mero objeto (TODOROV, 1984, p. 51). Este não é o paradigma do confronto verdadeiramente radical com o outro. Não pode ser o confronto com o outro entendido genericamente, isto é, com o outro que sabemos muito bem que somos nós mesmos; nem pode ser o encontro com o outro tornado utilizável e fungível, isto é, com o outro desumanizado e reificado, que pode ser reconhecido facialmente e incluído pelo menos em parte por sua utilidade objetiva ou instrumental. François Jullien nos lembra que “pensar o contrário é a tradicional palavra de ordem da filosofia, acessar ou outra melhor, coisa, é como o seu se sonho antigo” aproximar dela? (JULLIEN, Você pode 2020). “Como realmente fazer isso?”, ele pergunta. Na realidade, “àquilo que atribuímos a condição de ‘outro’”, assim o deixa de ser quando, como acontece na maioria das vezes, passamos a defini-lo como “o oposto”. Assim concebido, o outro “fica na op-posicionado’, frente, ‘em frente’, ‘ “já definido, “uma coisa inerte e diametralmente localizado” e, portanto, consolidado” completamente como diferente”, “contrário” um “Outro a nós. eficaz Deixa que de ser também se revela inédito”, para se tornar “igual... mas invertido”, algo em que “nada excede”. Algo que cessa, que nos coloca “de frente com o desconhecido”. A verdadeira comparação com o outro, então, é, se alguma coisa, a comparação com o “totalmente outro”. Com aquele outro que deve ser absolutamente excluído e cujo descaso também impede aquele entendimento relativo (no sentido da capacidade elementares) que de Cortés entender mostrou pelo para menos com a os traços civilização culturais asteca, porque representa para nós uma alternativa estratégica total, isto é, representa o inimigo absoluto, aquele cuja existência por si só questiona a nossa própria. Mas do qual, antagonismo, ainda segundo compreendendo Jullien, que é a só “se partir pode desse, tentar através superar da troca o de determinações opostas, que se pode suceder um futuro”. Se assim for, não é de se admirar, nesse sentido, que, incapaz de qualquer autocrítica, secularismo, Ocidente, ao e a também religião invés incapaz de capitalista, disso, seja ou zelosa qualquer melhor, em a impulso de autêntico autorreferencialidade procurar circunscrever do aquele peculiar contágio que parecia vir de um país em particular, de um “outro” em particular: a República Popular da China. A qual, embora ainda não tenha saído completamente do subdesenvolvimento e esteja apenas na primeira etapa de um longo caminho, em virtude de suas características estruturais básicas da democracia socialista — em primeiro lugar, do papel de direção que a política consequente continua de a operar desempenhar uma vasta em relação síntese à social economia, faz com a prevalecer, sistematicamente, os interesses da maioria sobre os interesses privados —, parece, até este momento, ter enfrentado a emergência de modo muito mais eficaz do que conseguiram as nações capitalistas. REFERÊNCIAS ANTISERI, Dario. Relativismo, nichilismo, individualismo. Fisiologia o patologia dell’Europa. Soveria Mannelli: Rubbettino, 2005, ed. digitale. BENJAMIN, Walter. Capitalismo come religione. Genova: Il Melangolo, 2013. BERTOLETTI, Ilario. Cattolicesimi italiani. Conservatore, liberale, democrático. Brescia: Scholé, 2020. FISHER, Mark. Realismo capitalista. Roma: Nero edizioni, 2018. FUKUYAMA, GALLINO, Francis. La fine della storia e l’ultimo uomo. Milano: Rizzoli, 1989. Luciano. Il lavoro non è una merce. Contro la flessibilità. Roma-Bari, Laterza, 2007. GRAMSCI, HARVEY, Antonio. Quaderni del cárcere. Torino: Einaudi, 1975. David. La crisi della modernità. Milano: il Saggiatore, 1993. JAMESON, Fredric. Il desiderio chiamato utopia. Milano: Feltrinelli, 2007. JULLIEN, François. L’apparizione dell’altro. Lo scarto e l’incontro. Milano: Feltrinelli, 2020. LUKÁCS, György. Ontologia dell’essere sociale. vol. I. Roma: Editori 1976. LUKÁCS, György. Storia e coscienza di classe. Milano: Mondadori, 1973. Riuniti, MARX, Karl. Il capitale. Libro primo. Roma: Editori Riuniti, 1989. MATTEI, Roberto de. Apologia della Tradizione. Torino: Lindau, 2011. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia della percezione. Milano: il Saggiatore, 1965. MICCOLI, Giovanni. La Chiesa dell’anticoncilio. I tradizionalisti alla riconquista di Roma. Bari: Laterza, 2011. NIETZSCHE, Friedrich. Sull’utilità e il danno della storia per la vita [1874], Considerazioni inattuali II, in Opere, III.1. Milano: Adelphi, 1976. SCHEIDEL, stone Walter. The great leveller. Violence and the history of inequality from age to the twenty-first century. Princeton U.P., Princeton/Oxford, 2018. SENNET, Richard. L’uomo flessibile. Le conseguenze del nuovo capitalismo sulla vita personale. Milano: Feltrinelli, 2001. TODOROV, Tzvetan. La conquista dell’America. Il problema dell’“altro”. Torino: Einaudi, 1984. NOTAS 8 | Apresentamos aqui o primeiro capítulo de um livro, Il virus dell’Occidente. Universalismo astratto e sovranismo particolarista di fronte allo stato d’eccezione, a ser publicado em breve. A tradução deste capítulo do italiano para o português é de Gianni Fresu. 9 10 | Università di Urbino, Italia. | Cf. Miccoli (2011); Bertoletti (2020). Para uma análise acerca do catolicismo fundamentalista, cf. Mattei (2011). 11 | “Ci siamo scoperti fragili come Edipo”, conversas de Mauro Bonazzi com Giovanni Kezich, Corriere della Sera – La Lettura, 26 de abril de 2020, pp. 8-9. Disponível em: https://www.pressreader.com/italy/corriere-della-sera-la-lettura/20200426/281625307453038. Acesso em: 24 maio 2020. 12 | RONCHI, Rocco. Le virtù del virus. Doppiozero.com, 08 mar. 2020. https://www.doppiozero.com/materiali/le-virtu-del-virus. Acesso em: 24 maio 2020. Disponível em: 13 Pandemia e crise na União Europeia 14 PAOLO DESOGUS Da crise sanitária à crise econômica, até a crise política: este parece ser o caminho passo-a-passo do recente caso pandêmico da União Europeia, que agora se debate com a difícil tentativa de encontrar liquidez financeira para enfrentar suas próprias dificuldades econômicas dentro de um campo político supranacional pesado, sem os instrumentos democráticos e legais necessários para dar respostas concretas e rápidas. O cenário político está evoluindo rapidamente, mas pelo que se pode inferir, nem as numerosas reuniões do Eurogrupo (que reúne os ministros da economia dos países da União), nem as reuniões oficiais entre os primeiros-ministros do Conselho Europeu Europeu (o e verdadeiro da Comissão dominus , Europeia) politicamente parecem ser acima capazes do de Parlamento elaborar um plano eficaz que garanta o reinício e que não sobrecarregue excessivamente a dívida pública de cada Estado. Por sua vez, a Comissão Europeia, liderada por Ursula von der Leyen, só conseguiu suspender temporariamente o pacto de estabilidade, que impõe aos países, individualmente, um rígido controle do seu orçamento público. Apesar de algumas proclamações e de alguns instrumentos genéricos (por exemplo, o Fundo de Recuperação), capazes de pôr em prática empréstimos reestruturação recursos mais ou econômica muito menos no limitados, a maioria condicionados sentido neoliberal, por o sob a forma programas continente de de europeu parece carecer de uma bússola, à mercê dos países europeus individuais, do seu egoísmo e das suas necessidades únicas. Uma exceção é o Banco Central Europeu (BCE) que, após alguma hesitação da nova presidente Christine Lagarde, ampliou seu programa de compra da dívida pública dos países europeus lançado por Mario Draghi em 2015 (flexibilização quantitativa) para salvar a moeda europeia. Este plano, que tem dado oxigênio à economia da zona euro, entrou, no entanto, em conflito com o sistema legal da República Federal da Alemanha. Em uma decisão emitida em 5 de maio de 2020, o Tribunal Constitucional de Karlsruhe ordenou ao Bundesbank que não participasse desses programas de política monetária não convencionais e que saísse do consórcio do BCE se o conselho liderado por Christine Lagarde não adaptasse o programa de compra à chave de capital. Segundo o Tribunal Constitucional alemão, portanto, o BCE não deve intervir de acordo com as necessidades reais e o risco corrido Espanha, pelos mas com países base mais na afetados, participação na ordem acionária de da Itália, cada país França no e banco europeu, a chave do capital. Mesmo a única boia de salvação real lançada em favor da economia dos Estados é, portanto, objeto de disputa por estar em conflito com a Constituição da Alemanha, o país economicamente mais forte e influente da União Europeia. No passado, a Alemanha já freou as instituições europeias ao invocar os tratados e o princípio, reafirmado por seu Tribunal Constitucional, de que a União Europeia não é uma união política, mas uma união econômica. Suas instituições, como a chanceler Angela Merkel também apontou em diversas ocasiões, orientam têm a uma função economia, técnica, que é uma refletem tarefa os para ditames a dos política, tratados, ou seja, não para os estados nacionais. Parece então que a crise que a pandemia desvendou tem a ver com um vazio jurídico melhor, União na e impossibilidade Europeia. entretanto, democrático, que, Isso de que política certamente apesar das resultou é posições na dentro em ausência do parte alemãs, quadro o as caso. de política, tecnocrático Deve-se instituições ou da notar, europeias sempre foram políticas. A aplicação dos Tratados de Maastricht, aos quais os defensores da ordem burocrática da União Europeia apelaram, mesmo antes da introdução oficialmente da moeda técnicas de única, envolveu reestruturação desde o econômica, início mas, na medidas realidade, coerentes com a ideologia neoliberal. A crise no continente afeta, portanto, a ordem estrutural da União Europeia. Não se deve simplesmente à falta do sistema jurídico coronavírus, e mas político à europeu substância diante ideológica da emergência neoliberal que do novo molda as instituições do continente. Diante da pandemia e da crise econômica do século, os países europeus se encontram dentro de um mecanismo supranacional que, por um lado, os priva do através poder de seus de administrar bancos centrais a política monetária individuais de e, acordo portanto, com suas de agir próprias necessidades, mas que, por outro lado, não consegue criar um verdadeiro estado federal economias capaz de individuais superar dentro as de peculiaridades um sistema nacionais que possa e integrar promover a solidariedade, garantindo a todos os cidadãos europeus condições iguais de bem-estar. A tecnocrática político isto que investido Europeu, cujas se soma impede por um funções as a incapacidade instituições mandato são de europeias democrático atualmente superar fracas e de a hipocrisia adquirir através do limitadas. o poder Parlamento Apesar dessa retórica, a União Europeia é a expressão de uma visão neoliberal que obriga os Estados a permanecerem dentro das margens de parâmetros econômicos arbitrários, marcados pela austeridade, que sufoca a economia, alimentando um círculo vicioso sem fim que inflou as dívidas soberanas de cada Estado. Poderíamos representa Reagan a dizer forma “starving que o mecanismo renovada, the beast”, e talvez esfomear na mais a base de perversa, besta, ou seu do seja, funcionamento velho slogan de comprimindo a economia dos estados individuais, empurrando-os para o endividamento e depois os induzindo a programas de reestruturação econômica em favor do mercado. As principais questões subjacentes à incompletude política da União Europeia já haviam se tornado evidentes em várias ocasiões durante a crise 2008-2012 e especialmente durante os meses do colapso econômico da Grécia entre 2009 e 2015. O novo coronavírus destacou as contradições de um processo estrutura político neoliberal que com já a estava qual a em curso União e que Europeia tem foi suas raízes concebida na desde a assinatura dos Tratados de Maastricht, em 1992. Agora, com a nova crise econômica, muito parâmetros sem poucos sacrificar países partes poderão vitais de se sua manter dentro economia, fazer desses previsões otimistas sobre as reais chances da União Europeia de se manter é bastante arriscado. Esfomear ainda mais a besta pode ser arriscado pelos efeitos que pode induzir nas populações, cada vez mais orientadas a votar na direita ultraconservadora e às vezes inspiradas pelo neofascismo. O novo coronavírus também trouxe aos olhos dos cidadãos as contradições da austeridade europeia. Quais países concordarão em cortar os cuidados Quantos incapaz de saúde continuarão de expressar para a cumprir considerar qualquer com os válido forma de constrangimentos o projeto europeu solidariedade, europeus? se ele for especialmente em um momento crítico como a pandemia? Mais do fronteiras e que os uma “união”, vínculos de um os Tratados campo de Maastricht competitivo entre traçaram as Estados-nação regido principalmente pelos dogmas de restrições orçamentárias, inflação zero e Estado forma liberdade na de de mercado, economia. política Daí a inspirada o que limita absoluta pelo severamente hostilidade socialismo, não mas só até a intervenção contra mesmo do qualquer contra as políticas keynesianas, que no passado também favoreceram a expansão da economia 2014). europeia num sentido mais democrático e justo (ROMANO, O aparente paradoxo em que a União Europeia se baseia é que ela não apaga as entidades estatais, mas as mantém vivas, esvaziando-as de qualquer mandato razões democrático da economia perspectiva liberal e transformando-as de de mercado. que o Este Estado em instituições procedimento deve permanecer dedicadas derruba fora da a às velha economia, separando a esfera do Estado da esfera dos agentes econômicos. A ideologia neoliberal que hoje domina o continente atribui ao Estado uma função de intervenção nos processos materiais, na medida em que, no entanto, utiliza todos os seus poderes — legal, militar, diplomático — para apoiar os processos econômicos. Como tem sido observado por dois pensadores neomarxistas franceses, Dardot e Laval, o liberalismo clássico pregou a necessidade de o Estado não interferir nos processos econômicos, enquanto o neoliberalismo hoje o utiliza para conduzir uma nova forma de luta de classes a partir de cima. A economia não é mais investida do que aquela aura providencialista teorizada por Adam Smith. Sua mão agora se torna visível e age para remover o que atrapalha o capital. Não só o fim do Estado-nação, repetidamente anunciado pelos apologistas da pós-modernidade após a queda do Muro de Berlim, foi negado, como a Europa mostra o quanto seu retorno em voga, segundo ditames neoliberais, nada mais é do que a forma renovada do “comitê de negócios da comparado burguesia” ao internacional, que é foi que já teorizada delineado essa por pelos função é Marx dois hoje e pais Engels. do garantida O que movimento na Europa é novo, operário por uma entidade supranacional que define as regras desse comitê, ou seja, a União. Dentro desta ordem de relações não há espaço para a solidariedade entre os Estados se ela prejudicar os interesses da economia. O próprio ministro alemão da Economia, Peter Altmaier, em entrevista concedida, nos dias em que começava a discutir os efeitos da pandemia na economia europeia, disse que o principal objetivo da Europa deve ser o de fortalecer a competitividade entre as economias da União Europeia, ressaltando que a inovação é mais importante do que a solidariedade e a ajuda. Nas políticas de cada Estado isso se traduz em uma corrida para baixar os custos trabalhistas através de políticas que privem os trabalhadores de seus direitos, segurança, um salário digno e um sistema de serviços adequado. A competição entre Estados torna-se, portanto, principalmente a competição entre trabalhadores das diferentes nações. Não é por acaso que na fase histórica atual não há vestígios do movimento operário internacional. Na Europa, os trabalhadores nunca estiveram tão divididos como estiveram nos últimos anos. Seu terreno de luta tem sido reduzido à nação, às vezes a áreas regionais ainda mais restritas. Mesmo no nível simples direita e, às de filiação vezes, para política partidos tem havido uma nacionalistas. O forte mudança trabalhador que para a vota à esquerda, projeta suas reivindicações em nível internacional e se orgulha de reivindicar sua classe, lutando por ela e pelos representantes políticos que ele expressa, é cada vez mais uma miragem do passado. Neste contexto, é difícil imaginar que o novo coronavírus represente, como tem sido dito, uma oportunidade para superar as divisões que ainda impedem a Europa de formar um Estado federal capaz de enfrentar os grandes desafios da globalização, da inovação tecnológica, do bem-estar de seus cidadãos sentença do e da proteção Tribunal de de seu Karlsruhe patrimônio mostra que cultural o que e civil. parecem A mesma ser meros contrastes jurídicos a serem harmonizados no âmbito da União são, de fato, os elementos de sua própria constituição, ou seja, os traços ideológicos neoliberais que concebem a Europa como campo assimétrico de competição em que competem diferentes Estados, com dívidas soberanas financiadas a taxas não homogêneas, organizadas segundo regimes fiscais incomparáveis (Irlanda, fiscais), Holanda dotadas e de Luxemburgo são instrumentos muito políticos, semelhantes econômicos, aos paraísos militares e diplomáticos completamente diferentes e encontram-se sujeitas às mesmas restrições econômicas e às contínuas no decorrer compressões dos salários dos trabalhadores. Algo poderia mudar se, dos próximos meses, a Alemanha adaptasse sua Constituição às exigências de uma união econômica também voltada para se tornar uma união política. No entanto, nenhuma proposta nesse sentido veio de Berlim. O resto é uma hipótese remota, pois, se implementada, uma das principais alavancas da chantagem política usada contra os Espanha Estados (os mais chamados fracos, como 15), PIIGS Grécia, Itália, desapareceria. Irlanda, Nesse caso, Portugal o BCE e de Christine Lagarde tornar-se-ia o emprestador de último recurso e, como os normais bancos centrais nacionais, poderia intervir ainda mais eficazmente contra a especulação sobre as dívidas nacionais, reduzindo ou mesmo anulando as diferenças entre as taxas dos títulos de dívida pública de cada Estado europeu e pondo assim fim ao instrumento abstruso chamado spread , que até agora tem permitido à Alemanha financiar a sua dívida a um custo muito baixo, contra as taxas mais elevadas do PIIGS. Mas, como dizíamos, isso não é de modo algum uma conclusão inevitável, pois faria a Alemanha perder um peso econômico considerável e, sobretudo, o controle das políticas contra a inflação, um verdadeiro tabu que remonta à era de Weimar. O que é certo é que tal viragem teria enormes efeitos políticos para o futuro da União Europeia. Na verdade, não apenas o atual impasse seria quebrado, mas também a parte da estrutura tecnocrática e antidemocrática que efetivamente proíbe qualquer política genuinamente keynesiana e ainda mais socialista seria quebrada. Em comparação com as difíceis previsões que podem ser feitas, a única certeza é que a manutenção do status quo, ou seja, um retorno às políticas de austeridade dos Tratados de Maastricht, é cada vez mais insustentável para muitos dos Estados europeus e não mais apenas para o PIIGS. Com o retorno da austeridade, a França, que ao longo da curta história da União Europeia sempre desempenhou um papel de liderança ao lado da Alemanha, seria obrigada a apertar os cortes nos gastos públicos com fortes repercussões sociais. Mesmo antes da pandemia, trabalhadores, estudantes e cidadãos comuns protestaram amplamente contra o Presidente Macron e as políticas de insegurança no emprego, cortes nas pensões e redução dos serviços promovidos por ele à luz dos dogmas neoliberais. Nem mesmo o crescente consenso em direção à extrema-direita, liderado pela Frente Nacional do neofascista Marine Le Pen, freou Macron, que agora corre o risco de perder as próximas eleições presidenciais. O novo coronavírus piorou a situação econômica do país, a dívida pública está crescendo, agora bem acima de 100% do seu PIB. Até mesmo Paris está cada vez mais exposta aos ventos dos mercados e à especulação, tanto que, mesmo para o atual presidente, é vital que o BCE continue com seu programa de compras e que os Tratados econômico, de que Maastricht não é sejam impossível reformados. se o No impasse na caso de Europa um colapso continuar, as portas do Eliseu para a Frente Nacional se abririam e haveria um caso para um país com armas nucleares liderado por um grupo político neofascista. Embora seja, portanto, difícil imaginar a Alemanha ceder às necessidades da França, é ainda mais difícil imaginar que, uma vez superada a crise, tudo possa voltar a ser como era antes, de acordo com os velhos equilíbrios políticos. De fato, o futuro próximo prefigura duros conflitos, tanto dentro dos países individuais que terão que enfrentar a crise econômica, quanto fora, no contexto europeu. Se, no passado, a França e a Alemanha foram os principais Estados da União Europeia — mesmo contra a Grã-Bretanha, que não saiu por acaso da União — um difícil cabo de guerra com resultados imprevisíveis está ocorrendo entre esses dois países: por um lado, a França, gravemente enfraquecida capacidades militares internacional (é um e economicamente, geopolíticas, dos cinco assim países do mas como ainda um Conselho com forte amplas prestígio Permanente da Organização das Nações Unidas – ONU), por outro lado, a Alemanha, um país com capacidades econômicas e industriais muito fortes, ansioso para superar sua condição de poder mutilado e recuperar a autonomia militar que os tratados de paz da Segunda Guerra Mundial ainda hoje excluem. Em segundo plano, os outros países do continente, com um bloco solidário para a Alemanha (incluindo Áustria, Finlândia e Holanda) e um segundo bloco menos coeso que conta com a Bélgica, Grécia, Portugal e Espanha e em uma posição difícil de definir a Itália. Apesar mais de ocupar a desenvolvidos terceira e posição entre industrializados e os de países estar economicamente entre os Estados fundadores da União Europeia, a Itália é politicamente um dos países mais frágeis, incapaz de assumir uma linha política no complexo jogo europeu e mais sucumbido à restrição externa de Maastricht, transformada por suas elites políticas em uma verdadeira bandeira ideológica. Sua própria estrutura industrial, baseada em pequenas e médias empresas, desenvolveu uma sociedade civil provincial e, não raro, rapace, que utilizou o vínculo europeu para aplicar as receitas neoliberais da governança europeia com o único objetivo intermediários, de desmantelar precarizar o o Estado trabalho e social, despolitizar comprimir os os salários. órgãos Apesar daqueles que imaginavam a entrada na zona euro como uma possibilidade de modernização e emancipação italiana da influência política e militar dos Estados Unidos, a aplicação dos dogmas europeus, por vezes interpretados num sentido mais restritivo do que a própria União Europeia pedia, era funcional ao mero projeto de descarregar todo o peso da concorrência sobre os ombros dos trabalhadores no contexto do mercado único europeu e da globalização. De fato, com sua permanência na União Europeia, a Itália não só está passando pelo mais longo período de estagnação econômica de toda a sua história, mas aparece ainda mais condicionada por influências estrangeiras, especialmente as americanas. Paradoxalmente, a maior limitação da Itália parece residir no seu europeísmo mesmo diante das forças que se lhe opõem, em particular as da extrema direita da Liga de Matteo Salvini. A direita ultraconservadora e xenófoba extrai sua linfa precisamente das políticas de rigor abraçadas pelos partidos governantes, em particular o Partido Democrata. Junto com a França, a Itália é deste ponto de vista o país que melhor ajuda a entender os limites e as fragilidades do projeto europeu. E isso não só porque o colapso da União Europeia poderia vir justamente da explosão da dívida e da especulação nesses dois países, mas porque o fim da emergência pandêmica exigirá intervenção para ambos econômica — maciça, e especialmente possivelmente para sem a a Itália — uma contrapartida de reformas estruturais que enfraqueceriam ainda mais sua estrutura e que não fariam nada além de dar mais apoio à extrema direita, que em ambos os países é cada vez mais ameaçadora. Não se pode descartar que tanto na França quanto na Itália, o maior preço da crise política e econômica, aberta pela pandemia, pesará muito sobre os partidos moderados neoliberal. E essa pró-europeus atitude, já foi incapazes de denunciada sair por da Colin jaula ideológica Crouch (2004), segundo a qual os agentes econômicos podem influenciar a política, mas a política não pode colocar sua boca na economia. Dadas as atuais relações de força, a necessidade de um reinício político e cultural de uma esquerda anticapitalista capaz de assumir as demandas populares e, sobretudo, capaz de conciliar um novo impulso ao socialismo e à justiça social, volta à pauta. Em outras palavras, há uma necessidade cada vez mais premente de uma nova esquerda poder capaz mover-se de adquirir dentro das um ponto fraturas de vista políticas político concretas realista abertas e de pelo neoliberalismo na Europa. Especialmente na Itália falta uma formação semelhante, mesmo se uma parte do eleitorado olhou com confiança para o nascimento do “Movimento 5 Stelle”, um partido populista que, no entanto, devido à sua substancial adesão aos princípios da economia de mercado e à pobreza cultural de seus líderes, não foi capaz de se apropriar da bandeira da justiça social como o movimento liderado por Pablo Iglesias, “Podemos”, sucedeu na Espanha. Na França, por outro lado, uma área política explicitamente de esquerda em torno da figura de Jean-Luc Mélenchon tomou forma, embora com muitas limitações, o que, juntamente com a “France Insoumise”, tem sido capaz de coalescer diferentes denunciando qualquer a forças da área insustentabilidade ambiguidade com o radical da e que Europa neoliberalismo há vários neoliberal. europeísta é anos Além cada vem disso, vez mais insustentável para os partidos de esquerda. O resultado da decisão do Tribunal de Karlsruhe contra o programa de resgate inaugurado pelo BCE e a resistência muito forte do governo alemão e seus aliados contra o apoio maciço para salvar as economias dos países mais expostos é uma divisão política com resultados imprevisíveis. Com a crise dos velhos ultraconservadora, partidos é pró-europeus essencial que o diálogo e o entre avanço as da forças direita sociais que ainda são capazes de se inspirar no socialismo se estabeleça rapidamente, até para enfrentar um possível colapso das instituições europeias e não ficar desarmado no conflito entre capital e trabalho. Além disso, mesmo com o fim da União Europeia e o retorno ao Estado-nação, o neoliberalismo não perderia sua influenciar seu nacionalistas esperem termos capacidade de passiva de de se irritar desenvolvimento direita. e É, Antonio que Gramsci, instituições democrático portanto, fatalmente nas a essencial história diremos através que tome que do o as seu Estado dos forças curso. e de partidos sociais não Assim, nos capitalismo só cria continuamente as condições para sua superação se houver uma consciência política e uma organização capaz benefício e no das forças sociais. de agarrá-lo e usá-lo em seu próprio REFERÊNCIAS CROUCH, ROMANO, Colin. Postdemocracy. Cambridge UK: Policy Press, 2004. Onofrio. The Sociology of Knowledge in a Time of Crisis: Challenging the Phantom of Liberty. New York-London: Routledge, 2014. NOTAS 13 | 14 | 15 | A tradução deste capítulo do italiano para o português é de Gianni Fresu. Faculté des Lettres, Sorbonne Université, França. No debate político europeu esse acrônimo é utilizado, com significado pejorativo, para indicar os países europeus (Portugal, Itália, Grécia, Espanha) com a situação financeira mais complicada. : Entre pandemia e crise orgânica contradições e narrações hegemônicas do capitalismo em colapso 16 GIANNI FRESU A contradição entre capital e trabalho Essa acumulação primitiva desempenha na economia política aproximadamente o mesmo papel do pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado se abateu sobre o gênero humano. Sua origem nos é explicada com uma anedota do passado. Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais. De fato, a legenda do pecado original teológico nos conta como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; mas é a história do pecado original econômico que nos revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade disso. Seja como for. Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho, continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar. (MARX, 2011, p. 960961). Em meio à pandemia da COVID-19, uma das argumentações mais recorrentes espalhadas pela nova Internacional da direita coordenada por Steve Bannon, que tem entre os seus afiliados Trump, Bolsonaro, Orbán e Salvini, pode é a necessidade parar”, como de nesses retomar dias eles as atividades vão produtivas. repetindo, apesar “A do vida não drama que atinge a realidade atual onde o dado mais visível é que a vida, sem os devidos cuidados e um planejamento político emergencial racional e fundamentado nas indicações da ciência, não apenas pode parar, mas acabar. Dentro dessa narrativa, segundo a qual o verdadeiro perigo mortal seria o colapso econômico, não temos apenas a tentativa de evitar uma crise que abalaria os respectivos governos hegemônica. levanta o Mundial problema dos da Trump Afirmando apresentando materiais de seus que da Bolsonaro, preciso sustentação (OMS) voltar como ameaçados e pelas mas também ao das providências dos da retórica populares dos indicações operação essa classes defensores pelas uma trabalho, econômica propagandistas trabalhadores Saúde é e interesses Organização governadores que limitaram a “liberdade de iniciativa econômica”. Claro que tanto o Presidente quanto os empresários, empenhados nessa campanha a favor da reabertura das atividades, são hábeis em ocultar como essa crise tornou ainda mais evidente a contradição entre capital e trabalho. Para além das funções hegemônicas e demagógicas, o desespero do mundo dos negócios trabalhadores questionada exploração tenham e de vontade volta desde do que independentes o à o produção, não durante capital do avassaladora século trabalho tentado alegando a anos tem salário, na reabrir confirmam XIX, há de não lucro, novas cessa sem decretar a de lucro morte formas realidade, uma o de fábricas verdade se e que, não há capital. do remuneração não pode os embora manifestar: cerebral lucro trazer sem a Embora velho Marx, totalmente existir sem a exploração do trabalho. Por outro lado, se não fosse assim, não se explicaria por que estão explorada nos sempre países à procura em constante desenvolvimento de e mão de prontos obra para barata a relocalizar ser sua produção, nem por que, após cada crise, sua receita de política econômica permanece inabalavelmente a mesma: aumentar a produtividade e reduzir os custos de mão de obra. Depois do prolongado colapso da economia mundial começado em 2008 nos Estados Unidos, que mostrou a natureza aleatória e fraudulenta do sistema especulativo financeiro, a pandemia jogou novamente o capitalismo numa crise orgânica internacional, abalando todas as certezas e as convicções do mundo ocidental, pondo em questão o paradigma neoliberal, que fora assumido acriticamente nas últimas décadas como única opção possível e legítima para os rumos do desenvolvimento histórico. Diante dos efeitos combinados da pandemia e da crise econômica, a contradição entre o direito ao lucro privado e o interesse geral tornou-se cada vez mais evidente. Apenas onde pretensões Onde, o do pelo poder público mercado, contrário, essa conservou crise prevaleceu o está um sendo domínio papel forte enfrentada ideológico da diante com das sucesso. metafísica do mercado, ou seja, a convicção segundo a qual intervir com medidas públicas no livre desenvolvimento da lei da oferta e da procura não passa de pura blasfêmia, tudo contradição econômica, sobre as saúde, se entre nos miséria quais atividades pesquisa, inclusão tornou social), mais complicado. absoluta prevalecem a e imensas estamos de públicas aposentadoria, observando um países marcados concentrações especulação eminentemente sistema Nos e a da riqueza lucratividade privada (educação, políticas autêntico pela de universidade, assistência fracasso, que e alcança proporções inimagináveis se comparamos com a situação de cinco meses atrás. A transfiguração ideológica da realidade A mística “mão do invisível”, mercado, é a que forma subordina mais o homem sistemática e à ilusão alienante de ideológica da totalitarismo criada pelo homem. Um artifício retórico que consegue apresentar o direito à exploração escravidão. O do homem paradigma como do uma egoísmo filosofia absoluto, de liberdade, tornado e não universal por de um hábil trabalho ideológico de reconstrução interessada da realidade, é uma lei de ferro que produz riqueza para poucos e miséria para os demais. A suposta superioridade econômica do liberalismo é um escárnio colossal; a vitória dos netos de Adam Smith se dá em terreno hegemônico, por meio da auto- apologia, certamente não do lado do bem-estar e da riqueza social. Marx e Engels trataram acontecimentos não apenas históricos, das eles condições materiais investigaram a no função fundo dos política das ideologias em relação à tarefa da defesa e da conservação dos equilíbrios passivos tradicionais economia, a religião entre e as todas classes. as A história, representações a filosofia, espirituais o da direito, a realidade tornam-se instrumentos de governo de uma classe sobre as outras, por meio das quais cria-se um conformismo social entre os dominantes e, ao mesmo tempo, se arregimentam os dominados garantindo sua passividade. As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, então, essa classe porque é não ao mesmo controla tempo apenas os a força meios material de e espiritual produção dominante, material, mas dispõe também dos meios de produção espiritual. Essas ideias, portanto, sempre se tornam como a expressão ideias entrelaçada que a sublinharam das marcam essa a ideal função relações uma materiais inteira especializada centralidade da era de separação dominantes, histórica. produção, entre concebidas Estritamente Marx trabalho e Engels espiritual e material: A divisão do trabalho expressa-se também no seio da classe dominante como divisão do trabalho espiritual e material, de tal modo que no interior desta classe uma parte aparece como os pensadores formação de ilusões subsistência), desta desta enquanto classe (seus classe que os a ideólogos respeito outros de ativos, si conceptivos, mesma relacionam-se com seu estas que fazem da modo principal de ideias e de ilusões maneira mais passiva e receptiva, pois são, na realidade, os membros ativos desta classe e têm pouco tempo para produzir ideias e ilusões acerca de si próprios. (MARX; ENGELS, 2007, p. 47). O capitalismo vive porque são os homens que lhe dão vida e o fazem viver O capitalismo não existe por causa da objetividade implacável de suas leis, assim como jamais será superado única e exclusivamente por causa de suas contradições internas. Esse modo social de produção sobrevive à sucessão de econômica mesmo suas de crises seus através devastadoras, equilíbrios, de terapias mas não porque intensivas e, pela os se inegável homens o eficiência mantêm necessário, por vivo meio de involuções autoritárias (a era do fascismo). Isso porque o capitalismo (além da dominação) não é apenas economia, é também política, filosofia, relações hegemônicas, realidade ou seja, (dando particulares) a a um formidável aparência ponto de de arsenal capaz universalidade tornar-se a a miséria de transfigurar certos e a interesses a exploração 17. “consensualmente” aceitas pelo miserável e pelo explorado Tanto o liberalismo clássico (segundo o qual o capitalismo não seria um sistema artificial, humana, quanto determinada o sistema mas uma objetiva “naturalmente” determinismo econômico realidade marxista burguês pelas (durante entraria independente leis da anos em oferta da vontade e da procura) convencido de que esse de suas colapso por causa contradições internas) compartilham a mesma visão metafísica das coisas. Cada modo social de produção sempre é o fruto de uma complexa combinação de elementos objetivos e subjetivos em que o fator econômico é sem dúvida predominante, mas não o único. Historicamente, a sociedade burguesa se afirmou no plano econômico e ideológico, no sentido de que era o resultado de uma autodeterminação material e espiritual com a qual essa classe conseguiu escapar tanto das regras corporativas da antiga sociedade feudal (conquistando sua autonomia econômica) quanto da visão de mundo da aristocracia universal em feudal oposição (afirmando ao o princípio particularismo 18. legal em razão do nascimento) feudal, da que dignidade determinou humana o status O segundo elemento é certamente (em geral) colocado em condição de dependência em relação ao primeiro, mas isso não significa capitalismo seja que seja superado 19. secundário por suas Por tudo contradições isso, esperar internas, que quase o sem esforço de luta, portanto, sem a irrupção da vontade ativa das massas, sem política e ideologia, significa atribuir a esse modo social de produção uma existência divindade autônoma, que, por independente sua natureza da vida humana, transcendente, para existe torná-lo não por uma causa da vontade humana, mas como consequência da fatalidade das coisas. O velho determinismo socialista veiculou Marx por meio de Darwin e aplicou à história a dinâmica evolutiva das ciências naturais, chegando à conclusão de que a humanidade passaria do feudalismo ao capitalismo e, portanto, ao socialismo, por razões internas às leis da economia, evidentemente, assim como na evolução consequências da políticas espécie dessa passa-se concepção do símio foram ao três: homem. 1) As atribuir aos protagonistas de sua emancipação (o proletariado) uma função totalmente secundária em relação aos líderes encarregados de entender essas leis e enxergar, dentro delas, a hora fatídica da “crise final”; 2) a ideia de que não se deve fazer acumulando destinada a a revolução, forças; viver 3) os a mas preparar convicção mesmos de sua que processos implacável toda a evolutivos, inelutabilidade, humanidade pois era estava necessário percorrer o caminho da via crucis do capitalismo (a civilização industrial do tipo ocidental) para passar à integral emancipação do homem. Este terceiro termo levou camponesa função e o da movimento questão civilizadora e socialista colonial, a a ponto modernizadora do desinteressar-se de olhar da questão positivamente imperialismo ocidental. para a Todos esses três termos foram literalmente varridos pela Revolução de Outubro, e, mais genericamente, duramente todo contestado não o conceito apenas por de positivismo Lênin, mas pelo determinista próprio foi Friedrich Engels: Segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância é determinante na história é a produção e reprodução da vida real. Mais do que isso nunca foi afirmado nem por Marx nem por mim. Se agora alguém deturpa as coisas, afirmando que o fator econômico é o único determinante, transforma aquela proposição em uma frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos momentos da superestrutura […] exercem sua própria influência no curso da luta histórica e, em muitos casos, determinam sua forma predominante. Há uma ação recíproca de todos esses fatores, e é através deles que o movimento econômico termina por afirmar-se como elemento central em meio à infinidade de acontecimentos acidentais […], se assim não fosse, a aplicação da teoria em um determinado período da história seria mais simples que a mais elementar equação de primeiro grau. (ENGELS, 1949, p. 75). A queda da religião da liberdade e o relativismo liberal O capitalismo é um modo de produção social historicamente determinado, portanto, historicamente superável como qualquer produto humano. A questão é que, por sua própria e íntima natureza, esse sistema não só é técnicas profundamente de produção, revolucionário as formas de (sempre pronto distribuição, as para relações mudar as sociais e institucionais), mas tem um arsenal material e imaterial (hegemônico) que nenhuma forma social jamais teve antes na história. Tendo claro concentrar tudo nossa isso, a atual investigação crise crítica nos não mostra apenas a nas necessidade de contradições da estrutura econômica, mas nos aparelhos hegemônicos por meio dos quais molda-se a opinião pública. Estamos vivendo uma fase de gravíssima crise sanitária e política que atinge de forma combinada o Brasil e o mundo, em que tanto a vida das pessoas quanto as liberdades democráticas estão em perigo diante recorrentes das constantes tentações tensões autoritárias entres que os poderes permeiam do parte Estado e das significativa das classes dirigentes e da sociedade brasileira. Antigamente o liberalismo se definia de início por sua devoção filosófica à “religião da liberdade”. Assim, Benedetto Croce, um dos maiores filósofos do liberalismo no século XX, enfatizando que essa doutrina não pode ser contrária, em princípio, produção”, ressaltou liberalismo econômico à que foi “socialização a e convergência apenas de [à] estatização entre natureza dos liberalismo empírica e meios político de e provisória, rejeitando a tendência de apresentar as duas dimensões como idênticas: Como já deveria ser pacífico, o liberalismo não coincide com o chamado liberalismo econômico, com o qual teve apenas concomitâncias, e talvez ainda tenha, mas sempre com uma aparência provisória e contingente, sem atribuir à máxima de deixar outro valor que não o empírico, como válido em certas circunstâncias e não válido em circunstâncias diferentes. Portanto, nem pode rejeitar em princípio a socialização ou estatização dos meios de produção, nem sempre a rejeitou no fato de ter feito, de fato, bastantes obras desse tipo. (CROCE, 1965, p. 34-35). Quando isso aconteceu, a recusa foi determinada por razões práticas, não teóricas, ou momento gerando seja, (não um pela em convicção termos de absolutos) empobrecimento geral que tal poderia sem escolha ter em determinado deprimido reduzir as a economia desigualdades. O julgamento de qualquer reforma, segundo Croce, depende antes de tudo de um fator: se ela promove ou restringe a liberdade e a vida dos homens. A devoção à religião da liberdade levou John Stuart Mill a definir o liberalismo inicialmente como recusa de qualquer monismo de valores ou conformismo intelectual, que pelo contrário prevalece prevalente na cultura liberal de hoje: Se todos os homens, exceto um, tivessem a mesma opinião, e apenas um fosse de opinião contrária, a humanidade não teria maior justificativa para silenciar esse homem do que ele teria, se tivesse o poder, para silenciar a humanidade […] o mal singular de silenciar a expressão de uma opinião é que isso rouba ao gênero humano, tanto a posterioridade quanto a aqueles geração que existente, estão de e aqueles acordo. Se a que discordam opinião é da correta, opinião a ainda humanidade mais se do que priva da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errada, perde aquilo que quase constitui um grande benefício; ou seja, a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade, produzida pela sua colisão com o erro. (MILL, 2019, p. 30). Falando de outro autor liberal clássico, Isaiah Berlin, o alvo central de sua obra é o pluralismo dos valores, a convicção de que as visões do mundo que inspiram a vida diversificadas, Tanto ao mesma dos mas, nível das cultura ou em seres humanos vários casos, culturas pessoa. gerais sejam não inconciliáveis quanto em apenas e relação até aos muitas e incompatíveis. valores de uma Seria característico das grandes religiões e das ideologias monistas achar que existe apenas um jeito correto de viver, uma só estrutura indiscutível, de a valores de unicidade verdade, de uma ou tese seja, que afirmar, de forma inevitavelmente fanática desemboca e na perseguição dos valores críticos ou não homologados. O pluralismo seria o único antídoto ao fundamentalismo, uma fonte perene de liberalismo e de tolerância que nunca pretende apagar as outras visões do mundo por ter vieses alternativos a nossas convicções mais profundas (BERLIN, 2005, p. 62). Por liberal concluir bem com ordenada este e tema, John regulada por Rawls uma escreve que concepção uma política sociedade de justiça (como equidade) assim o pode ser apenas dentro de um quadro de razoável pluralismo. Outro objetivo do liberalismo político é descrever como deve ser concebida e quais bases de unidade social deve ter uma sociedade liberal bem ordenada, cuja articulação torne possível o relacionamento dialético entre visões políticas razoavelmente diferentes. A cultura política de uma sociedade liberal democrática é sempre marcada pela presença de diversas doutrinas religiosas, filosóficas e morais em conflito: dialética que o liberalismo considera resultado inevitável do livre exercício das faculdades da razão humana (RAWLS, 2000, p. 46-47). Um sinal inequívoco do refluxo democrático desses anos nos é dado pelas contradições do mundo liberal, justamente no que diz respeito à questão das liberdades. A dimensão econômica (liberalismo) ocupou definitivamente toda a cena, de modo que a devoção à metafísica do mercado leva os liberais de hoje a considerar sagrada apenas a liberdade de iniciativa econômica. A esfera político-filosófica liberal, por outro lado, acabou encolhendo tanto que o tema das “liberdades fundamentais” parece ser simples retórica em defesa do mero individualismo autodenominam reivindicações de liberais olham liberdades econômico. com civis, Assim, irritação sexuais e hoje, mal aqueles disfarçada religiosas, bem que para como se as para a ideia de pluralismo político, cultural, filosófico e científico. Em suma, eles não suportam o poder público quando se trata de seus negócios, mas gostariam de um Estado autoritário e inquisitorial para comprimir todas as liberdades humanas, exceto a econômica, é claro. A ideia de liberdade e duradouros “governo Hannah uma a relação extensão mitos regulamentar a das de A John que Locke condenação vida social, proporcional atividades ideológicos, limitado” Arendt. inversamente do Estado tornam e as preventiva intervir na as sobre ou e esfera o dos do totalitarismo à ambição fornecer uma da mais concepções póstuma economia a tornou-se comum teorias entre de de direção social à vida de uma comunidade nacional está diretamente entrelaçada com a mais eficaz representação ideológica do pensamento liberal: a capacidade natural de autorregulamentação compatível com a artificial das irrupção leis do mercado, ordenadora da teoricamente política. Mas, não como escreveu Gramsci, atrás dessa visão o erro teórico justifica-se pelo interesse prático: A abordagem do movimento de livre comércio baseia-se em um erro teórico do qual não é difícil identificar a origem prática: na distinção entre sociedade política e sociedade civil, que é feita e apresentada como uma distinção orgânica. Assim, afirma-se que a atividade econômica é própria da sociedade civil e que o Estado não deve intervir na sua regulação. Mas, como na realidade a sociedade civil e o Estado coincidem, é preciso estabelecer que o liberalismo econômico é uma regulamentação de caráter estatal, introduzida e mantida por meios legislativos e coercitivos: é um fato de vontade consciente, e não a expressão espontânea e automática do fato econômico. (GRAMSCI, 1975, Q. 13, p. 1590). De acordo com essa visão do mundo, atividades reconduzíveis à iniciativa econômica autônoma de indivíduos privados não podem ser objeto de interferência política porque, “naturalmente”, as leis da oferta e da procura sempre encontram qualquer grandes hipótese de empresários econômico quando soluções quando arriscam empresas veem regulação quanto pode seus suas mais social. seus gerar ativos, adequadas, lucro, de realidade teóricos porque, margens A mas assim lucro pública para salvar a economia privada. eficazes são se a e mostra favor tornam que os reduzidas, eficientes que do do que tanto os liberalismo intervencionistas bancos exigem e as grandes intervenção Essas situações dramáticas para a humanidade, se de nada mais servirem, são úteis para entender tanto as contradições do liberalismo quanto o relativismo de valores imanentes a essa doutrina: “se a economia cresce, os lucros são meus, entretanto, quando há uma crise, a queda é de todos”. Os lucros são privados, normalmente mínimo, os mas as apologistas considerando perdas do devem “privado blasfêmia a é ser socializadas. melhor” ingerência da Assim, invocam política na o se Estado capacidade “natural” do mercado de se regular, durante as recessões invariavelmente pedem a ajuda do público. Como escreveu Marx a respeito da crise do capitalismo de 1857, “é bom ver que os capitalistas, que tanto gritam contra o direito ao trabalho, agora exigem o apoio público dos governos em todos 20. os lugares, e reivindicam o direito ao lucro às custas da comunidade” *** Concluindo, hegemônicas ideológico, apesar que das marcam como era transfigurações tanto a luta inevitável, ideológicas política também quanto os e o efeitos das narrações enfrentamento da COVID-19 reproduzem um quadro social marcado por uma brutal e unilateral luta de classes (de cima para baixo). No início da pandemia, ouvimos jornalistas falando de um vírus democrático, que não olha a classe social dos atingidos. Nada mais mais a errado. estrutura estrutura, essa coronavírus daquelas Pelo contrário, oligárquica doença chegou mesmas ao e “classes pandemia classista golpeia Brasil a do país, sobretudo de nobres” avião, que está onde, os justamente mais veiculado hoje desmascarando pobres. pelos pretendem ainda por O tal novo representantes reabrir tudo para retomar as atividades econômicas, todavia, quem está pagando realmente a conta dos erros políticos e da insensatez social espalhada nesse período pelo Brasil são as periferias, as favelas, as áreas rurais largadas ao seu próprio destino e, nelas, os “homens condenados a comer seu pão com o suor de seu rosto”. REFERÊNCIAS BERLIN, CROCE, Isaiah. Libertà, (org. Henry Hardy). Milano: Feltrinelli, 2005. Benedetto. Storia d’Europa nel secolo decimonono. Bari: Laterza, 1965. ENGELS, Friedrich. Sul materialismo storico. Roma: Editori Riuniti, 1949. GRAMSCI, MARX, Antonio. Quaderni del carcere. Roma: Editori Riuniti, 1975. Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011. MARX, Karl; ENGELS, Martorano, Nélio Friedrich. Schneider A e ideologia Rubens alemã. Enderle. Trad. São Luciano Paulo: Cavini Boitempo, 2007. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Carteggio. Volume III. Roma: Editori Riuniti, 1972. MILL, John Stuart. Da liberdade individual e econômica. Barueri: Faro editorial, 2019. RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000. ROBESPIERRE, Maximilien. Discurso sobre o governo revolução jacobina. Roma: Editori Riuniti, 1967. representativo. In: A NOTAS | 16 Professor de Filosofia Política da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Presidente da International Gramsci Society Brasil (IGS-Brasil). 17 | “Até agora, a arte do governo nada mais tem sido do que a arte de despojar e escravizar a maioria em benefício de uma minoria; e a legislação nada mais tem sido do que o instrumento para erguer esses ataques sistêmicos. Reis e aristocratas fizeram seu trabalho perfeitamente: agora cabe a você fazer o seu.” Discurso sobre o governo representativo, 10 de maio de 1793 (ROBESPIERRE, 1967, p. 127 – a tradução deste trecho do italiano para o português é de minha autoria). 18 | “Desde este instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à criação da teoria, da teologia, da filosofia, da moral, puras. Mas ainda que esta teoria, esta teologia, esta filosofia e esta moral entrem contradição com as relações existentes, isso pode acontecer porque as relações sociais existentes se encontram em contradição com as forças de produção existentes.” (MARX; ENGELS, 2007, p. 16). | 19 “A classe revolucionária, por já se defrontar desde o início com uma classe, mas sim sociedade diante realmente ainda como da representante única coincide classe com o de toda dominante. interesse a sociedade; Ela pode coletivo de ela fazer todas aparece isso as porque demais classe , surge não como como no a massa início classes não inteira seu da interesse dominantes e porque, sob a pressão das condições até então existentes, seu interesse ainda não pôde se desenvolver como interesse particular de uma classe particular. […] Toda essa aparência, como se a dominação de uma classe determinada fosse apenas a dominação de certas ideias, desaparece por si só, naturalmente, tão logo a dominação de classe deixa de ser a forma do ordenamento social, tão logo não seja mais necessário apresentar um interesse particular como geral ou ‘o geral’ como dominante.” (MARX; ENGELS, 2007, p. 49-50). 20 | Carta de Karl Marx ao Friedrich Engels de 13 de novembro de 1857 (MARX; ENGELS, 1972, p. 58). A vigência do estado de sítio político na pandemia 21 MARCOS DEL ROIO 22 VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ Utilizamos demonstrar, teórico notas de demarcar, recorta um rodapé, a a partir realidade Estado de de fontes proposta Sítio Político jornalísticas, neste texto. (MARX, a fim Nosso 1978), de marco atrelado ao capital, que faz uso de medidas de exceção (AGAMBEN, 2004), por meios jurídicos — por exemplo, desabonando-se e descriminalizando-se ações de agentes públicos e políticos que não combatem racionalmente a pandemia —, e que se revela sob a cepa da necropolítica (MBEMBE, 2018). Medidas Provisórias, exceptio de desrazão, não apenas provocam inépcia ao Poder Público, uma enormidade de insegurança jurídica, como é lapidar a fim de se atestar a Mundial própria da Lápide Saúde – do OMS) 23: Direito será um não seguir “normal” no a ciência país — (Organização Holocausto de pobres legalizado em tempos de horror. É a insígnia aposta na lei de eugenia. Observarmos, deste modo, no intuito de afirmar que, no país, hoje, mais do que nunca, vigoram antigos ditados: “A lei se aplica a dez mil pessoas, todas lutam para entrar nesse número”. O Estado de Sítio Político O Estado de Exceção se confirma/reafirma como centralidade, um absoluto no sistema do capital no século XX (e XXI), sobretudo, em face das forças centrífugas — por óbvio — em ação expansiva exponencial em busca de mercados, (“escravos da subjetividades, modernidade”), reservas e que naturais espelham a e mão de interface obra mais barata produtiva (poderosa) em que se apresenta como a “lei do mais forte” (MÉSZÁROS, 2015, p. 17-18). O futuro está nas massas, desde que os sitiados sejam ouvidos. Todavia, cabe indagar, o poder que dá/dará voz aos sitiados? A verdade desagradável hoje é que se não houver futuro para um movimento radical de massa, como querem eles, também não haverá futuro para a própria humanidade [...] A terceira fase, potencialmente a mais mortal, do imperialismo hegemônico global, que corresponde à profunda crise estrutural do sistema do capital no plano militar e político, não nos deixa espaço para tranquilidade ou certeza (MÉSZÁROS, 2003, p. 108-109). Por seu turno, no século XXI, a principal função do Estado de Exceção é garantir a fluidez concentração de do sistema renda), do capital notadamente, (geração quando os de riquezas efeitos com disruptivos abalam seus monólitos, como em 2008/2009. A montanha a ser transposta, portanto, é a defesa entrincheirada que o Estado de Exceção Capitalista oferta como subsídio, “lei do mais forte”, na tônica da “lei sou eu” (FEST, 1976) à ordem sociometabólica do capital disruptivo neste breve século XXI. Um antípoda poderia ser vislumbrado na Primavera Árabe (MÉSZÁROS, 2015, p. 34) e que, em oposição frontal de desmanche, recebeu as revoluções coloridas como resposta retrógrada: entre a autonomia e a autocracia, não por acaso, as revoluções coloridas andam entre golpes e Estado de Exceção. Evidentemente, autonomia no requerida contragolpe (Primavera do capital Árabe), não e dos caberia aparatos estatais nenhuma forma à de auditoria do poder constituído — ou as revoluções coloridas não seriam o protótipo do Estado de Exceção no século XXI. É natural, pois, a ingerência do Estado de Exceção como regulador do metabolismo do capital; diga-se, 24. O fascismo seria natural, permanente, disruptivo, hegemônico, expansivo uma demonstração dessa modelagem violenta do Estado de Exceção Capitalista (MÉSZÁROS, 2015, p. 34). Esta passagem estaria em acordo com 25. o bonapartismo (MARX, 1978) e alinhada à Crítica ao Programa de Gotha E neste conjunto de aparatos repressivos e regressivos, o bolsonarismo impõe novo estágio ao cesarismo (GRAMSCI, 2000) e uma cepa de terceiro mundo ao fascismo. : A deformidade fascista brasileira bolsonarismo racista e messiânico Quando equipes de vigilância e controle da Pandemia são atacados, posto que foram identificados com os propósitos sanitários do isolamento, diante da pandemia da desinteligência razoabilidade recorta-se certo, — — sido da firmado recolonizando no aqueles cultura que perguntam país. À como doutrinação a se ciência, comportamento fascista: porém, muitos negacionista terá esse dogmatização infância, COVID-19, de com atacam da vista, sem antirracional, nação mitologias nível racionalidade primeira uma as que e da dúvida, inerente inteira, desde salvacionistas. equipes de médicas Isto à sua está socorristas, especialmente de pobres e negros, não são meros seguidores imbecilizados em torno de algum chamamento somente messiânico — e ainda que isto seja muito grave. Esse séquito que investe contra a ciência é formado por 26 agentes do capital, tanto entre os populares agentes políticos. Quando a presidência da quanto entre República é a os chamados maior apólice securitária pelo uso da Cloroquina, o povo domesticado segue bajulador e ativista, como polo amplo e agressor contra a saúde pública, os direitos fundamentais do próprio povo (direito à vida) e à democracia em termos básicos. A ciência é o alvo da vez porque impõe restrições racionais, como o isolamento, ao livre curso do capital. Não se importam com a necropolítica porque o capital não pode parar, e daí que a ciência aplicada à análise da 27. Aliás, outro reflexo da ação dos agentes do capital pandemia é satanizada (fascistas) cesarismo está na contração repressivo política (GRAMSCI, do 2000) país, e na observada regressão no avanço do dos marcos da “democracia liberal”; “democracia eleitoral” cômputo o país 28. do Golpe de agora Uma 2016 e é apenas consideração do uso considerado que, como obviamente, indiscriminado de mera não Fake News faz desde 29 e as mortes pululam entre os mais pobres 2018. Por isso, a fome, a miséria e vulneráveis à medida que avança a dança das cadeiras no miolo dos Grupos 30. Hegemônicos de Poder que o poder é detentor Nesse meio termo, as hostes do poder declaram de uma visão de mundo alternativa, passando ao largo da ciência; afinal, quando se emitem comunicados de aceite ao capital da necropolítica, e em mensagens para milhões de analfabetos plenos ou 31. funcionais, pode sim haver uma “alternativa inteligente” à racionalidade É o momento em que a docilidade se converte em ódio, desmontando-se por 32. completo o Mito da Cordialidade : Estado de Exceção nem tudo é o que parece Por outro lado, mesmo críticas bem intencionadas ao cerco à Pandemia tem errado a mão na construção conceitual, desajustando-se sua teoria analítica. A crítica de Giorgio Agamben, ao isolamento, sob o decreto de que todos os países teriam imposto o Estado de Exceção, é um claro exemplo. A razão disso é o tratamento dispensado ao Estado de Exceção; em resumo, exceptio implica em usar a democracia contra ela mesma, o Direito que se transforma em não-Direito, antagônico, contrário e a Constituição contraditório ao que, que é “lida” efetivamente, em sentido está escrito. Tecnicamente, para que isto ocorra, inocula-se uma exceção no interior da própria regra: tem-se uma regra dizendo “não” (prisão em 2ª instância) e a exceção (“exceptio”) atua para que se leia “sim”. As alegações podem ser de inúmera natureza, de “falta de clareza” ou norma regulamentadora até uma suposta “hermenêutica” — um tipo de interpretação a bel prazer, seguida de uma coleção de Constitucional: retóricas a citações. Constituição Na prática, Federal de ocorre 1988 se uma Transmutação transforma no seu contrário, num Frankenstein, quando é interpretada para negar seu próprio conteúdo. Politicamente, a Constituição Social converte-se em instrumento neoliberal a serviço dos Grupos Hegemônicos de Poder e de seus exegetas ou escribas, o cesarismo é aceso contra o processo civilizatório, atentando- se vertiginosamente contra o Princípio do não-Retrocesso Social. Foi assim em 2013-2016, com o golpe do impeachment: para nós, instauração de uma Ditadura Inconstitucional Henrique Cardoso (MARTINEZ, (FHC), não existe 2019). mais a Todavia, desde Constituição Fernando Programática submetida à vigência de uma “reserva do possível”: um espécime vivo até hoje da regra de exceção, da Lei de Responsabilidade Fiscal à regra de ouro do teto orçamentário com os gastos sociais. Dito isto, como elogio à abrangência que a tese de Agamben pode nos proporcionar, enceta-se aqui uma ressalva e, após, uma crítica: ressalte-se a aplicabilidade da tese do Estado de Exceção, vide a Guatemala (2012), em aplicação clássica, a França com seu Estado de Emergência voltado contra os imigrantes e os latinos, o Equador e a Hungria, o Brasil antes e durante a pandemia; ressalva-se, com pesar, não termos lido Agamben emprestar o conceito a nenhum caso efetivo de imposição certeira, indubitável, do Estado de Exceção. Neste sentido, a ressalva é de que o filósofo não tem precisão política, não observa o realismo político, seu conceitual não o remete a uma visão de mundo politizada. A crítica se emenda à ressalva, pois, como se viesse a nos confirmar, quando Agamben olha para baixo, para a concretude política das instituições, exatamente organizações por inexistentes. não Ou ter seja, o sociais, afiado um filósofo para os entes arcabouço decretou jurídicos político, Estado de e políticos, observa realidades Exceção, acertando todos os países e governos que instituíram regras de isolamento diante da COVID-19; seu decreto filosófico diagnosticou anseio global em restringir e mitigar direitos fundamentais. Aliás, quanto ao desejo, disso não se duvida, e Equador e Hungria nos provam as reais intenções. Contudo, em que pese alguns governos apropriarem-se da pandemia para defenestrar instituições democráticas e legítimas, como é o caso do Brasil, não podemos chegar a uma conclusão geral, global, no sentido de que “as medidas de restrições e de isolamento são decretos do Estado de Exceção”. Pode menos como ser que alguns isolados” no Brasil, não governos podem utilizam-se assim servir dos a ajam, uma decretos mas análise da esses fatos “mais generalizadora. pandemia para ou Outros, aprimorar a corrupção institucional — o fato de termos uma junta militar no Palácio é outro assunto, ainda que permita refletir sobre a variedade alcançada pelo Estado de Exceção, sob a era das Guerras Híbridas (KORYBKO, 2018). Pois bem, diante da estocada no vento, Agamben reconheceu seu erro, retirou o decreto sobre o isolamento da pandemia ser artifício incólume, generalista, global, do Estado de Exceção. Agora, por fim, a retificação não desabonou nossa ressalva, uma vez que, mesmo retificando-a, não provou análises onde efetivamente ocorre o fenômeno da exceptio. Em nosso elogio final, consignamos interesse em saber como Agamben analisa e interpreta os decretos imperiais e restritivos dos EUA, com Trump, ou o Brasil desde 2013-2016 Chomsky (MARTINEZ, (2002) desde 2019). o 11 de Como fizeram Setembro, muitos, Umberto Eco Boaventura, (2018) e seu protofascismo, até Bobbio (2016), procurando destruir o “berlusconismo” — e citado amplamente por Mészáros: “amigo acadêmico respeitado” —, Agamben está no debate do século XXI. Como dissemos, seria fundamental verificar o conceito aplicado ao realismo político prático. Seria salutar essa Filosofia Política, mas na esteira de Maquiavel e seus príncipes e césares. Breves considerações finais Com mil mortes por dia, infectados pela Sociopatia que se alimenta da pandemia, completaremos, sem razão de ser, um século da Arte Moderna — Semana da Arte Moderna de 1922 —, em ano eleitoral, se houver. Porque, de moderno, não temos nada, só o vírus e a desinteligência pós-moderna baseada Bom, na se Semana é mentira: que da isso Arte Porém, (1928), Oswald autofagia, essa é pós-verdade, moderno... Moderna, autofágica. de News, Fake não qual Mas, seja, a há Andrade, capacidade com como infinita de algo muito decretação confundamos de revisionismo o de interessante que nossa Manifesto crítica fagocitose nazi-fascista. nesta cultura é Antropofágico realista, exatamente, exclusiva do capitão à do mato. A Geração de 30 corresponde ao período trazido pela Revolução de 1930 e a década glorificada dos clássicos “Explicadores do Brasil”. A isto, só acrescentaríamos que nossa cultura tem-se revelado bizarra, mórbida, sob o bolsonarismo, e que mereceria um Manifesto Autofágico, típico fundador de uma Sociologia do Desprazer. No passado-presente dos anos 1930, dos “bestializados”, e quando o português era castiço, dizia-se que havia muita “estultice” e “decrepitude”, mas hoje sabemos que é mau-caratismo e falta de ética civilizatória sob o domínio perverso do capital disruptivo, regressivo, e da Idiocracia: regime de governo cleptocrático ou o reino do “imbecil completo”, e que crescem à base do cultivo neoliberal (medieval). Nossa corrupção é tão grande, própria de um “gigante adormecido”, que o nosso “normal” é nos “alimentarmos dos nossos”. Então, como se vê, a cultura meteórica não é metafórica. De todo modo, nossa esperança é que um dia o bolsonarismo indubitavelmente acreditará numa estará leitura entenda todo o que vacinado “alternativa” escrevemos, contra o fascismo (invalidável) da pois, e não ciência. o país mais Esta é se a montanha que temos que conquistar. Até que este dia chegue, no final deste processo, será que veremos uma noite de longas facas em nossa Bastilha? Ou saberemos construir um arco político de resistência, Civilizatório? recuperando-se os limites mínimos do Processo REFERÊNCIAS AGAMBEN, BOBBIO, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. Norberto. Contra os novos despotismos: escritos sobre o berlusconismo. São Paulo: Editora UNESP, 2016. CHOMSKY, ECO, Noam. 11 de setembro. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. Umberto. Fascismo eterno. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2018. FEST, Joachim. Hitler. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. 2: os intelectuais, o princípio educativo e jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. KORYBKO, Andrew. Guerras Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes. São Paulo: Expressão Popular, 2018. MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado — Ditadura Inconstitucional: golpe de Estado de 2016, forma-Estado, Tipologias do Estado de Exceção, nomologia da ditadura inconstitucional. Curitiba: Editora CRV, 2019. MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. MARX, Karl. Crítica del Programa de Gotha. Moscú: Editorial Progreso, 1979. MBEMBE, Achile. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018. MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo; Campinas: Boitempo; Editora da UNICAMP, 2002. MÉSZÁROS, István. A montanha que devemos Estado. São Paulo: Boitempo, 2015. conquistar: reflexões acerca do NOTAS 21 | Professor titular de Ciência Política da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus Marília. 22 | Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). | 23 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/nova-mp-de-bolsonaro-traz- inseguranca-juridica-e-inconstitucionalidade-avaliam-especialistas.shtml?fbclid=IwAR3Dr6hAJNjEyAe836Amt60RfK6l0-Bw6gvOT21o1pUsBlF8j-q3eWZFQY. Acesso: 17 maio 2020. 24 | “Sem a emergência do Estado moderno, o modo espontâneo de controle metabólico do capital não pode se transformar num sistema dotado de microcosmos socioeconômicos claramente identificáveis — produtores e extratores dinâmicos do trabalho excedente, devidamente integrados e sustentáveis. capital são Tomadas não diametralmente em apenas opostas a separado, de incapazes elas, se as lhes unidades reprodutivas coordenação for permitido e socioeconômicas totalização continuar seu particulares espontâneas, rumo mas disruptivo, do também conforme a determinação estrutural centrífuga de sua natureza. Paradoxalmente, é esta completa “ausência” ou “falta” de coesão básica dos microcosmos socioeconômicos constitutivos do capital — devida, acima de tudo, à separação entre o valor de uso e a necessidade humana espontaneamente manifesta — que faz existir a dimensão política do controle sociometabólico do capital na forma do Estado moderno [...]. A articulação do Estado, aliada aos imperativos metabólicos mais internos do capital, significa simultaneamente a transformação das forças centrífugas disruptivas num sistema irrestringível de unidades produtivas, microcosmos sistema reprodutivos possuidor e também de fora uma de estrutura suas de fronteiras comando [...]. viável Portanto, dentro enquanto dos se tais puder manter tal dinâmica expansionista, não há necessidade do Leviatã hobbesiano [...]. É assim que se redefine de maneira viável o significado do bellum omnium contra omnes hobbesiano no sistema do capital, presumindo-se que não haja limites para a expansão global [...]. O Estado moderno — na qualidade de sistema de comando político abrangente do capital — é, ao mesmo tempo, o pré-requisito necessário da transformação das unidades inicialmente fragmentadas do capital em um sistema viável, e o quadro geral para a completa articulação e manutenção deste último como sistema global. Neste sentido fundamental, o Estado — em razão de seu papel constitutivo e permanentemente sustentador — deve ser entendido como parte integrante da própria base material do capital. Ele contribui de modo significativo não apenas para a formação e a consolidação de todas as grandes estruturas reprodutivas da sociedade, mas também para seu funcionamento ininterrupto” (MÉSZÁROS, 2002, p. 123-125 — grifo nosso). 25 | “Que é o Estado livre? A missão do proletariado, que se libertou da estreita mentalidade do humilde súdito, não é, de modo algum, tornar livre o Estado. No Império Alemão o “Estado” é quase tão “livre” como na Rússia. A liberdade consiste em converter o Estado, de um órgão que paira acima da sociedade, em um órgão completamente subordinado à sociedade — as formas de Estado seguem sendo hoje mais ou menos livres na medida em que limitam a “liberdade do Estado” [...]. A “sociedade atual” é a sociedade capitalista, que existe em todos os países civilizados, mais ou menos livre de aditamentos medievais, e mais ou menos modificada pelas particularidades do desenvolvimento histórico de cada país, mais ou menos desenvolvida. Por outro lado, o “Estado atual” relaciona-se [cambia] com as fronteiras de cada país. O Império prussiano-alemão é outro que não aquele da Suíça, da Inglaterra, dos EUA. O “Estado atual” é, portanto, uma ficção [...]. Sem embargo, os distintos Estados dos distintos países civilizados, em que pese a enorme diversidade de suas formas, têm em comum o fato de que todos eles se assentam sobre as bases da moderna sociedade burguesa, ainda que esta se apresente em territórios mais desenvolvidos do que outros, no sentido capitalista. Temos também, portanto, certos caracteres essenciais comuns. Neste sentido, pode-se falar que o “Estado atual”, por oposição, no futuro, por sua atual raiz na sociedade burguesa, acabará se extinguindo [...]. Que por “Estado” se entende, na realidade, a máquina do governo ou o Estado enquanto tal, devido à divisão do trabalho, forma um organismo próprio separado da sociedade, já o indicam estas palavras: “o Partido Trabalhador Alemão exige como base econômica do Estado: um imposto único e progressivo sobre a renda”. Os impostos são a base econômica da máquina governamental [...]. No Estado do futuro, existente pressupõe as já na Suíça, diferentes esta fontes de reivindicação ingresso das está quase diferentes realizada. classes O imposto sociais, ou sobre seja, a a renda sociedade capitalista” (MARX, 1979, p. 27-30 — grifos nossos). 26 | Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/equipes-que-coletam-testes- para-pesquisa-nacional-sobre-coronavirus-sao-detidas-e-agredidas.shtml? fbclid=IwAR1jk4S2T5OGm1d8V5BIKhGwnFw65LLa_hqirRcokXYwq7aqjnf_uZKGRQc. Acesso em: 19 maio 2020. | 27 Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/05/16/coronavirus- chance-de-disseminacao-e-35-vezes-maior-sem-distanciamento.htm? fbclid=IwAR13cVp8lTErNXmXTv5BmaehdBBS_vI0Yg9Pgxm5X1E62HGRrcIeTmWcteQ. Acesso em: 19 maio 2020. | 28 Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-05-05/brasil-perde-status-de- democracia-liberal-perante-o-mundo.html? ssm=whatsapp&fbclid=IwAR1T99ixyRlO9jSkoQVXk4citz0SBaIiuUHwvMLigssaMRd1iZDTdbGaStI. Acesso em: 18 maio 2020. 29 | Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/13/imagem-de-menina- trocando-mascara-por-comida-viraliza-no-rio-gera-onda-de-solidariedade.ghtml? fbclid=IwAR1uFwQQAohfROm0uuBfS_RhMCGA0mO_m-irxrexHKLE8W-xrjtmLp4O3jc. Acesso em: 20 maio 2020. 30 | Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/05/16/entre- trocas-de-ministros-numero-de-mortes-avanca-666-no-pais.htm? fbclid=IwAR16CCq305BQ1XxUrfOfjIDuAFOwQoiO2GzdxRT76OyjlFoUIYTzwZ9__XE. Acesso em: 19 maio 2020. 31 | Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-nao-ignora-ciencia-so-ve- diferente-diz-ministro,1da17eb13b710f1ee0e302ba1073d006i1brtm3q.html? utm_source=Whatsapp&utm_medium=SOCIAL&fbclid=IwAR0R0qesExaNIBuYgw2PZvBoTbnfLL wD-Qu2pzoJyE2Rkpq7WQSMI3L4DYs. Acesso em: 18 maio 2020. 32 | Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/16/como-o-mito-do-homem- cordial-embaca-a-percepcao-sobre-o-brasileiro.htm? fbclid=IwAR2ZeZx9yUe4PVZhsD2PI6fojoQj5VdpNNTq12hMRvVxvezMhgavjH7asXQ. 20 maio 2020. Acesso em: ? Urgente para quem A Lei de Urgente Consideração e a 19 pandemia da COVID- MÓNICA BRUN BEVEDER O que atenção, situação é 33 urgente? resposta, ou no Uruguai É aquilo ação contexto que imediata, social exige, rápida tem demanda, requer ou oportuna. relação, portanto, A atendimento, urgência com de uma necessidades determinadas por condições sociais e históricas específicas. Não obstante o caráter histórico materialismo concepção e concreto histórico da história, se das necessidades mantém como inaugurada por sociais, o fundamento sobredeterminação. Marx e Engels, o do Nesta primeiro pressuposto da história da humanidade é que o ser humano deve “estar em condições de viver para poder ‘fazer história’” (MARX; ENGELS, 2007, p. 33) e, para viver, necessita produzir os meios materiais de sua existência. Portanto, no processo de produção material de sua vida, o ser social já está “fazendo história”. Este é o primeiro ato histórico e a premissa da história da humanidade: sobrevivência. a produção Ao produzir dos os meios meios para para satisfazer satisfazer as necessidades necessidades de mais urgentes — comer, vestir, habitar, proteger-se contra as ameaças — o ser social produz, no mesmo processo, novas necessidades. Assim, o surgimento de novas necessidades — sejam elas do estômago ou da fantasia (MARX, 2009) produtivas. — está condicionado pelo desenvolvimento das forças Nesses termos, repensamos e afinamos nossa indagação principal. O que é urgente numa sociedade onde a produção dos meios de sobrevivência está subordinada à produção de mercadorias com o objetivo de gerar lucro para uns poucos? relações Quais através as demandas das necessariamente, quais relações de priorizadas os produtos exploração e numa são sociedade produzidos dominação onde [...] fortalecidas “as são, pelos distintos processos de alienação que tem expressão em todas as esferas da vida social, forjando uma sociabilidade que dá as costas para a satisfação das necessidades humanas” (BEVEDER, 2019, p. 246-247)? Afinando ainda mais, nos perguntamos: o que é urgente para um país de capitalismo dependente em tempos de pandemia? O projeto de Lei de Urgente Consideração (LUC), apresentado ao 34, não deixa dúvidas quanto às Parlamento pelo recém empossado governo necessidades que são e serão tidas como urgentes e os interesses que serão privilegiados nos próximos cinco anos, com ou sem pandemia. Não cabe “apenas” nos limites apresentar os de um texto principais como aspectos este do debater projeto ou de até lei. mesmo Ademais, consideramos que esta tarefa tem sido muito bem realizada por distintos 35. estudiosos, coletivos e revistas do país Nossa intenção é tecer algumas breves reflexões sobre a tendência contemporânea da dinâmica capitalista no capitalismo dependente que se instala no Uruguai após quinze anos de governo da Frente Ampla e suas políticas neoliberais-progressistas (uma 36 e medidas macroeconômicas e até combinação entre expansão de direitos mesmo do campo dos direitos sociais com evidente teor neoliberal). Nesse sentido, consideramos que o projeto de lei que o governo de Luis Lacalle Pou ingressa ao Parlamento em 23 de abril deste ano é parte dessa tendência. Trata-se da ultraneoliberal reação primeira ou burguesa grande neoliberal aos ação do autoritário, avanços que governo que pode tiveram para ser lugar impor o entendido na projeto como chamada a “era progressista” da América Latina. Com o esgotamento desta “era” — que tem como principais marcos políticos a vitória de Maurício Macri na Argentina e de Jair Bolsonaro no Brasil —, nesse intervalo entre o velho que não morre e o novo que não pode ainda nascer (GRAMSCI, 1975), se abre a porta para uma violenta ofensiva contra os direitos conquistados. No Uruguai, os quase quinze anos de governo da Frente Ampla significaram, é inegável, um avanço progressista com a implementação da chamada “agenda de direitos”. Contra essa agenda e a engrenagem estatal criada para pô-la em prática, se levanta a agenda ultraneoliberal que pretende deixar o país como terra arrasada. Instrumento jurídico-legal de questionável constitucionalidade, a lei declarada urgente pelo atual governo uruguaio pretende instalar, de uma só vez e de maneira brutal, o projeto ultraneoliberal, passando por cima das necessidades sociais que se agravam no contexto de pandemia da COVID- 19. Nesse sentido, depois de quase três meses da confirmação dos primeiros casos de infectados pelo novo coronavírus, o governo mantém a tramitação “normal” da LUC, ignorando os verdadeiros problemas, as reais necessidades e urgências da maioria da população uruguaia. O caráter autoritário da LUC se evidencia na forma como é apresentada. Embora a Constituição, em seu artigo 168, preveja a possibilidade do Poder Executivo “urgente remeter no máximo consideração”, o um governo projeto elabora de e lei com submete a ao declaratória Parlamento de um único projeto que contém mais de 500 artigos que abordam os mais variados 37 temas e propõem a modificação de uma série de leis que versam sobre diversas problemáticas, constituindo uma espécie de “lei guarda-chuva”. Para além da inconstitucionalidade, está também a questão do insuficiente prazo, constitucionalmente estabelecido, para que as duas Câmaras (a de Deputados e o Senado) avaliem e decidam sobre a pertinência do extenso e 38. multitemático projeto debate no interior do Evidentemente, a intenção é limitar o alcance do Parlamento e eliminar qualquer possibilidade de diálogo com a sociedade civil organizada, especialmente se considerarmos que sua mobilização se vê afetada pelas recomendações de isolamento social. Os primeiros casos de pessoas contagiadas pelo novo coronavírus foram confirmados no dia 13 de março; à noite, o governo uruguaio declara estado de emergência implantação fechamento sanitária, de medidas total ou fazendo de parcial recomendações prevenção de do comércios, e contágio, serviços anunciando com a restrições privados e e públicos, suspensão de espetáculos públicos, fechamento parcial de fronteiras, dentre outras medidas. Embora não se possa negar a seriedade com a qual o governo encarou e tratou, desde o início, a ameaça da pandemia da COVID- 39, as medidas tomadas para amenizar os impactos sociais têm sido não só 19 insuficientes social em e ineficazes novos continuidade da como patamares tramitação 40. também Se reprodutoras insere “normal” da nesse LUC em da desigualdade conjunto tempos de de ações a emergência sanitária. Evidentemente, não estamos defendendo o absurdo de uma relação direta entre pandemia da COVID-19 e o projeto de lei; mas consideramos necessário refletir quarentena para sobre garantir a a funcionalidade não participação do da isolamento sociedade, a social ou ausência de debate e o controle das manifestações, no sentido de legitimar e passar “na marra” a lei, sem resistência, sem povo e sem luta nas ruas, aumentando a possibilidade (já significativa, tendo em vista a composição do Parlamento) de aprovação do núcleo principal do projeto de lei. A LUC é a representação jurídico-legal do programa das classes dominantes representadas pelo governo de coalizão de direita, que retorna ao poder caráter com a responsabilidade profundamente consensual no campo de regressivo crítico que a pôr e crise em andamento uma contrarreformista. econômica não é agenda Apesar causada de de pela pandemia — mas com ela seus efeitos sociais se potencializam, aumentam seu ritmo de expansão —, o que o projeto de lei pretende é implementar legalmente as condições para que a crise seja paga pelas classes subalternas através de mais um ciclo de ajustes. Trata-se de uma reação às conquistas sociais dos últimos anos e, portanto, expressão do avanço do 41 num país de significativa conservadorismo aliado a tendências militaristas tradição democrática. O conteúdo privatizador, antidemocrático e punitivista da LUC escancara a lógica perversa do Estado no capitalismo selvagem: ele está a serviço da produção orientada à geração de lucro para alguns poucos, não para garantir a vida digna ou até mesmo a sobrevivência da maioria. O que é urgente lucro é garantir está acima reconfiguração do o lucro, da não vida. atender O paradigma de às projeto necessidades da população. ultraneoliberal sociabilidade burguesa, instaura onde a O uma violência em todas suas formas é banalizada e a violação de direitos pelo Estado torna- se regra. A barbárie generaliza-se, acentuando a “destrutividade vantajosa” 42 (MÉSZÁROS, 2008). do capital Mas ainda há o que Henri Lefebvre chama de 43. resíduos O residual resiste, tensiona e pressiona o movimento dominante de regressão social. Segundo José de Souza Martins: É desta tensão que nasce a possibilidade da práxis revolucionaria. Práxis que se funda no resgate e na unificação política dos resíduos — concepções e relações residuais que não foram capturadas virtualidades pelo poder, bloqueadas. [...] que Nos permaneceram resíduos e no nos virtual subterrâneos estão as da vida necessidades social, radicais, necessidades que não podem ser resolvidas sem mudar a sociedade, necessidades insuportáveis, que agem em favor das transformações sociais, que anunciam as possibilidades contidas utopias, no tempo que ainda não é, mas pode ser (MARTINS, 1996, p. 23, grifos nossos). nas REFERÊNCIAS BEVEDER, Mónica relações Brun. sociais O de retorno a produção Lefebvre: e a a noção crítica da de re-produção vida cotidiana das como contribuições à tradição marxista. Tese (Doutorado em Serviço Social) — Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Faculdade de Serviço Social, Universidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019. GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Cárcere. Torino: Einaudi, 1975. MARTINS, José de Souza. As temporalidades da História na dialética de Lefebvre. In: MARTINS, José de Souza (Org.). Henri Lefebvre e o Retorno à Dialética. São Paulo: Hucitec, 1996. MARX, Karl. O capital. Livro I, volume 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. MÉSZÁROS, István. O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico. Revista Política e Sociedade, Florianópolis, v. 7, n. 13, p. 17-33, out. 2008. NOTAS 33 | Assistente social, mestre e doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (FSS/UERJ). da Faculdade Professora Grau de 1 e Serviço membro Social do da Universidade projeto de pesquisa do Estado intitulado do Rio de “Funciones Janeiro y efectos colaterales de la introducción de sistemas de información para la protección social”, pertencente ao Departamento de Trabajo Social, da Facultad de Ciencias Sociales da Universidad de la República del Uruguai (UdelaR). 34 | O Partido Nacional ou Partido Blanco é, junto com o Partido Colorado, um dos partidos tradicionais do Uruguai. O Partido Nacional foi o representante dos interesses da oligarquia rural uruguaia e é até hoje sua marca principal. | 35 Recomendamos o dossiê de artigos sobre a LUC da plataforma virtual Hemisferio Izquierdo. Disponível em: https://www.hemisferioizquierdo.uy/. Acesso em: 23 maio 2020. | 36 São exemplos da “agenda de direitos” a lei do matrimônio igualitário, a despenalização do aborto, a extensão de direitos trabalhistas a trabalhadores rurais e empregadas domésticas, lei de regulação do mercado de cannabis, lei integral para pessoas trans. | 37 Vai desde o aumento do punitivismo do Estado, passa pela proposta de novas regras fiscais, chegando até a possibilidade de elaboração de linguiça pelos açougues (proposta que conta com seis artigos). 38 | Se o Parlamento não cumprir com os prazos constitucionais (três meses no total) para decidir sobre a Lei, ela é automaticamente aprovada. | 39 Embora se possa fazer críticas, dentre as quais destacamos a velocidade com a qual tem sido recomendado o fim do isolamento social para o “retorno” às atividades “normais”. 40 | Como principais exemplos, podemos citar a manutenção das aulas em todos os níveis através do ensino à distância; a não proibição de despejos e de demissões, dentre outros. 41 | O governo do Partido Nacional é aliado ao Partido Cabildo Abierto, criado em 2019, que teve como candidato à Presidência (no primeiro turno) o ex-comandante das Forças Armadas, Guido Manini Ríos (atualmente senador). O Partido Cabildo, o rápido aumento de sua popularidade e sua integração na coalização que hoje governa o país, são as principais evidências do avanço de uma extrema direita. 42 | “A direção auto-expansiva do capital não pode refrear a si mesma em virtude de alguma consideração humana, simplesmente porque essa consideração pareceria moralmente mais palatável, como a automitologia do ‘capitalismo caridoso’ e do ‘capitalismo popular’ gostaria de nos fazer acreditar. Ao contrário, a lógica do capital é caracterizada pela destrutividade autovantajosa, uma vez que tudo que se encontra no caminho do cruel impulso expansivo do sistema deve ser naturalmente varrido ou esmagado, se preciso” (MÉSZÁROS, 2008, p. 19, grifos nossos). 43 | “A teoria lefebvriana dos resíduos atravessa mais de uma dimensão de seu pensamento. Os resíduos são vistos como parte do projeto do possível-impossível. O irredutível, que se “esconde” como potência, que escapa ao poder, à dominação. O pensamento que elabora sistemas não vê os resíduos, e, portanto, o possível” (BEVEDER, 2019, p. 63). A epidemia e o fascismo 44 LINCOLN SECCO O uso da metáfora epidemiológica em política não é privilégio do fascismo, mas nenhum outro movimento se utilizou tanto dela. A tentação de falarmos a respeito do fascismo da mesma forma (como vírus, doença, bactéria etc.) é grande porque não concebemos a maldade em pessoas “normais” e do nosso convívio comunitário. A epidemia mais mortífera do século XX, a chamada “Gripe Espanhola” esteve muito próxima de dois fenômenos sociais catastróficos: na Primeira Guerra Mundial violentamente vida, as (1914-1918), modificadas relações conjugais as numa e o atitudes escala mercado diante imprevista; de trabalho da e o se morte próprio foram modo de transformaram; o segundo fenômeno foi a reunião fundacional fascista na Piazza San Sepolcro, em Milão, a 23 de março de 1919 (e no ano seguinte a criação do Partido Nazista na Alemanha), cuja consequência seria uma nova guerra mundial. Outras epidemias sobrevieram depois da derrota fascista na Segunda Guerra Mundial, mas só em 2020 houve novamente a coincidência de uma transformação profunda na vida cotidiana e na esfera política com uma pandemia. O confinamento no século XXI coincide com a nova ascensão do fascismo em vários países e uma inédita experiência virtual. Da Hungria à Polônia; da Itália à Grã-Bretanha; dos Estados Unidos às Filipinas; e em grande parte da América Latina, governos são conquistados permitem tranquilamente seu fortalecimento. por bandos fascistas ou Além disso, a popularização do WhatsApp, das redes sociais e o acesso massivo a comunicações pela internet expuseram as pessoas à disseminação de ideias fascistas antes mesmo que nos acostumássemos com o novo espaço técnico científico e informacional ao qual seríamos obrigados a nos confinar. Esse espaço é travejado pelos interesses mercantis, por informações e desigualdades sociais (SANTOS, 1996). O home office para uns e o trabalho precário e contagioso para outros; o isolamento real para idosos e a convivência virtual para a juventude mudaram rapidamente a rotina. Esses terreno fenômenos fértil econômica tanto são na conjugados internet prometida pelo porque quanto os nas fascistas frustrações neoliberalismo. encontraram de Assim, ascensão mobilizaram rapidamente toda sorte de ressentidos e exploraram, pelas redes sociais, a crítica popularizada de um mundo acadêmico apartado da sociedade. Ciência Cinco discurso séculos de normativo modernidade fundado na capitalista ciência. E, produziram no entanto, um jactancioso diante de um fenômeno que ameaça a vida cotidiana, a única resposta que as autoridades sanitárias encontraram, em pleno século XXI foi a mesma dos venezianos na idade média: a quarentena. A longa duração mensagem do científica. sofrimento Os humano acadêmicos sempre foram colocou em surpreendidos causa a porque raramente concebem seu discurso como mais um no espaço público, já que produzem a verdade. Ora, “verdades” têm que ser convincentes e estar de acordo com a vida prática das pessoas, mas como convencê-las quando estiveram submetidas a consultas negligentes ou falta de serviços básicos de saúde? Quando eu matava o tempo na Biblioteca de História da Universidade de São Paulo costumava ler boletins de sociedades geográficas do século XIX. Além das notícias das expedições imperialistas na África, chamavam-me a atenção as discussões sobre a quarentena. Em novembro de 1865, “eravamo in quarenntena”, lamentava Enrico Giglioli, a bordo de uma fragata. A experiência daquele confinamento não era essencialmente diferente da nossa no século XXI, oscilando entre a busca de passa tempo e o excesso de carga de trabalho. Para vencer “le lunghe ore” (longas horas) de reclusão, aquele italiano estudava os seres marinhos que caíam nas redes de mão, único objeto que as autoridades sanitárias permitiam usar (GIGLIOLI, 1870, p. 111). As manifestações confinamento, Bolsonaro fascismo ou em públicas geral Trump, coincidir tem com pela abertura comandadas uma uma lógica por que do líderes vai mobilização comércio além e pelo neofascistas da fim como necessidade permanente. Ela do de o também responde às necessidades da acumulação de capital. No século econômicos. XIX, A a quarentena Conferência foi combatida Sanitária de em Viena nome de (1874) interesses condenou a quarentena, mas foi o comércio quem a aboliu, pois países perdiam dinheiro com o desvio de linhas de vapor e de navios mercantes, bem como pelo fato dos passageiros não comprarem no período em que ficavam retidos. Alguns países, como Portugal, só aboliram os lazaretos no início do século XX, criando um posto marítimo de desinfecção (MORENO, 2002, pp. 176, 180, 181). Mas a gripe espanhola de 1918 novamente obrigou as pessoas à vida enclausurada: teria ela alguma relação com acontecimentos posteriores? Essa é a mesma indagação que um professor primário faz na película Das weiße Band (Fita Branca, 2010), de Michael Haneke. Isso depois que, em 1913, estranhos Alemanha. atos violentos chocam um pequeno vilarejo do norte da Confinamento Foi através do confinamento numa tela de computador ou num tablet que se difundiu analógico), um filme. cuja Na duração verdade, não um podia curta ser metragem mais (o adequada termo ao ainda meio, seja é o Streaming ou a simples descarga de dados. A forma de distribuição digital condiz com uma percepção enclausurada. Outrora ele seria visto na sala de cinema, antecedendo algum longa metragem. O filme a que me refiro é The Fall, dirigido por Jonathan Glazer em 2019, com trilha homem sonora solitário de Mica que Levi. também Nele, usa um grupo máscara. A mascarado turba na castiga floresta um está enfurecida; os rostos fixos; ela balança a árvore até que o homem perseguido caia. Em seguida coloca uma corda no seu pescoço; ouvem-se grunhidos e sons que Lançado atemorizam. a um poço A animalização profundo, ele está começa a também subir na trilha novamente sonora. depois que aquele grupo vai embora satisfeito. 45 Trata-se de mais uma transposição artística do conto A Loteria, escrito por Shirley Jackson (2010), e publicado em 26 de junho de 1948 em The New Yorker, causando uma reação irada em muitos leitores. O ritual de habitantes de uma pequena cidade dos Estados Unidos, reunidos para um sorteio lotérico, era comum. Também a maldade e a covardia provincianas aparecem em inúmeras obras cinematográficas, 46 a Dogville Morrer, 1952), de Fred Zinnemann, de High Noon (Matar ou (2003), de Lars Von Trier. A vingança do indivíduo que retorna para se vingar da pequena comunidade expondo sua Corrompeu hipocrisia Hadleyburg é tema (1899), tanto de do Mark brilhante Twain conto (2003), O Homem que (naturalmente, proibido na era do macarthismo), quanto de A Visita da Velha Senhora, de Dürrenmatt (1976), escrito naqueles mesmos anos 1950 macartistas. No conto A Loteria, de Shirley Jackson, uma comunidade interiorana de 300 habitantes se reúne anualmente, ao principiar o verão, para um sorteio. Uma pessoa acaba sendo sorteada para ser apedrejada até a morte como uma espécie de sacrifício para que haja uma boa colheita. Sob a aparência de unanimidade na massa de pequenos fazendeiros, há aqueles também que os esperam que ansiosos ficam o nervosos, sorteio os que com se pedras sentem nas mãos, mas constrangidos ou há até torcem para que uma jovem não seja a escolhida. Um certo Senhor Adams comenta: “Dizem que, lá no vilarejo ao norte, estão falando em abandonar a loteria”. O Velho Warner, que estava a seu lado, fez um muxoxo e atribuiu isso a jovens tolos. Ainda assim a Senhora Adams voltou à carga e disse: “Em alguns lugares, eles já abandonaram as loterias”. Assim que a primeira pedra atinge a cabeça da pobre sorteada, o velho Warner é quem anima: “Vamos, vamos, pessoal”. Mas quem está à frente da multidão é o próprio Senhor Adams, que arriscara questionar o costume antigo. Não sabemos se ele atira pedras, mas aparentemente todos se precipitam para a pobre sorteada. Em 1979, Louis Malle viajou para o Midwest e entrevistou os habitantes de uma comunidade agrícola para seu filme God’s Country. Seis anos depois ele retornou após a eleição de Reagan e viu uma cidade em crise. Diante dela, as reações são múltiplas, da crença nas pessoas boas do país à promessa de uma reação armada contra os impostos, os judeus e os negros. Ele já havia produzido cotidiano um da personagem Resistência; Staatspolizei). filme polêmico França de uma colaboracionista pequena recusado, A (Lacombe Lucien, passou “comunidade” aldeia a durante do ser 1974) a comporta também um grau de ignorância e indiferença. que ocupação sudoeste espião em da tentou retratara alemã. diferenças e Seu ingressar Gestapo o na (Geheime conflitos, mas Comunidade A disseminação virtual. Ao como o conto A da Internet contrário, lugar social Loteria. não projetou-se sem Em vez realizou nela a contradições de 300 a expectativa pequena internas pessoas, de comunidade, relevantes. pode uma haver 3 A ágora idealizada mesma milhões, do mas o comportamento provinciano da turba enfurecida é rigorosamente o mesmo. Nos primeiros espaços de relacionamento virtual, como o Orkut, forjavam- se “comunidades”. Em 2015, promoveu tinha Umberto o idiota direito à Eco da declarou aldeia palavra “em a que portador um bar e o “drama da da verdade”; depois de uma Internet enquanto taça de é que ela antes ele vinho, sem prejudicar a coletividade”, agora seus ditos valem tanto quanto os de um prêmio Nobel (ainda que a comparação seja discutível). O que o idiota da aldeia expelia na taverna permanecia no seu pequeno círculo de vizinhança, inconfessáveis. comunidade Isso é pequena, na sua verdade. embora família Mas ela ou agora seja no os quarto dos preconceitos numericamente seus desejos continuam grande. O na espaço virtual tende a nos confinar em guetos de preconceitos compartilhados da mesma forma que na aldeia. Os fenômenos de perseguição às pessoas nas fronteiras dos países europeus recrudesciam nas épocas de epidemia. Pogrons, linchamentos e fortificação dos postos de controle fronteiriço se tornavam mais frequentes. Ora, a primeira coisa que a disseminação das redes sociais proporcionou foi a experiência do linchamento virtual. Ao ver uma série de comentários negativos e destrutivos sobre uma pessoa, nós podemos anonimamente jogar mais uma pedra e ninguém saberá exatamente quem foi o responsável pelo ato causador da morte virtual (às vezes real) da vítima. A morte virtual também tem um antecedente histórico: a pena de morte civil, que, no Brasil, foi prevista nas duras regras do Distrito Diamantino no século XVIII. Era “como se a pessoa deixasse de existir”, definiam as leis da época (PRADO JUNIOR, 1986, p. 65). Acima do confinamento real, podemos vivenciar a falsa convivência virtual. A animalização do ser humano, que o fascismo promove, é muito mais eficaz quando podemos ofender e ameaçar sob a proteção de uma tela de computador. Mas a covardia do herói de teclado é a mesma do exaltado escritor de gabinete ou do “corajoso” da turba. A onda virtual desanima até quem poderia defender a vítima e teme ser execrado. Decerto, não há novidade nisso salvo a velocidade das injúrias. Na ditadura argentina, os vizinhos que viam alguém ser levado pelos assassinos uniformizados se conformavam dizendo: “por algo será”. Vigilância A vivência numa exemplos históricos livros que do historiografia se e são muitos. convencionou que historiadores comunidade a procura está Pense-se chamar “conexões experiência baseada viva das por de na ora tão micro entre vigilância. somente história, as pessoas” auto um correntes (DAVIS, em Os dois tipo gerais 1987, p. de dos 12): Menocchio, personagem de O Queijo e os Vermes, não pode escapar tanto às delações de gente ordinária como à própria língua: lia e falava demais para um simples perambulou moleiro por (GINZBURG, aldeias que 2006). revelavam um O famoso quadro vivo Martin dos Guerre padrões de relacionamento interpessoal e dos mexericos dos povoados do sul da França no século XVI. Mas a auto vigilância comunitária só existe com o concurso do poder estabelecido. Na própria internet, os algoritmos, as câmeras, os registros de telefone móvel, de transações financeiras, trocas de mensagens etc. já exerciam o controle sobre os usuários. A epidemia forneceu o pretexto para o Estado impedir o direito de ir e vir através do mapeamento de deslocamentos registrados no celular, entre outras coisas. Também aqui não há novidade, exceto no meio utilizado. As quarentenas do século XIX eram complementadas pelo chamado cordão sanitário: tropas que impediam a passagem de pessoas nas fronteiras. O verbete cordon sanitaire, do Dicionário de Garnier-Pagès, discutia se aquela medida era útil ou não para conter uma epidemia. Mas, em pleno século XIX, alertava: “em nossos dias [o cordão sanitário] passou a servir de instrumento político, destinado a outra coisa e não ao combate ao contágio”. Sob a Restauração (1815-1830), prosseguia o autor do verbete, o cordão sanitário situado nos Pirineus, desde que a febre amarela foi contida, “estava muito mais destinado a vigiar os movimentos dos liberais da Espanha do que a servir de barreira ao progresso de uma doença” (GARNIER-PAGÈS, 1857, p. 288) que 47. não ameaçava mais Os Pequenos Homens da Comunidade A substituição dos laços comunitários pelo sentimento nacional é bem conhecida dos historiadores. Mas ela não apagou, antes reproduziu, o ideal da gente pequena contra o banqueiro “judeu”, que prejudicava o shopkeeper negando-lhe crédito ou escorchando-o com juros impagáveis. A reunião de cada pequeno homem (der Kleine Mann, le petit commerçant), numa falsa união baseada no antissemitismo, era o “socialismo dos idiotas”, como a denominou o social democrata alemão August Bebel. Os jornais radicais e socialistas franceses exibiam com orgulho os títulos de Le Petit Niçois, Le (HOBSBAWM, 1992, 1898, anos e muitos Petit p. Provençal, 131). depois Em La Recife, assumiu o uma Charente, Le Jornal Pequeno foi Petite linha integralista; Petit Troyen fundado mas em houve o Jornal Pequeno de Manaus (1911); o Pequeno Jornal da Bahia (1889) e outro, sempre “imparcial e noticioso”, como se declarava em 1885, o Pequeno Jornal de Guaratinguetá (SP). O cosmopolitismo esmagou as pretensões provincianas de Lucien de Rubempré, em Ilusões Perdidas (1837), de Balzac. Ele voltou desolado à sua Angoulême. Já o fascista rejeita o grande mundo das ideias reconhecidas e exalta o pequeno universo reconhecível do falatório de botequim de beira de estrada. Como os boas vidas de Fellini (I Vitelloni, 1953), oscila entre as aventuras adolescentes tardias e a pretensão social ou cultural frustrada. Por outro lado, a arrogância do saber ilustrado rejeita a espontaneidade e, 48. Num a fortiori, os elementos de consciência que habitam o senso comum esquecido best seller brasileiro, o protagonista de O Feijão e o Sonho (1938), de Orígenes Lessa, é o pequeno intelectual zombado pelos homens do lugarejo. Só pode reagir com desprezo pela rotina das pessoas comuns. É o retrato do descompasso entre uma pretensão literária e qualquer sentido prático da vida. Conclusão O sentimento extravasado não contradiz necessariamente o equilíbrio racional. Numa sociedade despedaçada e utilitarista, o fascismo oferece o reencontro da intimidade, da emoção e da comunidade fake e promete um engajamento numa causa transcendente. Que ela seja uma máscara para a permanência da exploração, da desigualdade e das opressões insuportáveis do cotidiano compreensão não importa, exigiria o porque tempo e a a adesão mediação a ele que não é pessoas racional e idiotizadas essa não possuem. E isso é verdadeiro tanto para a era informática quanto para o pós- Primeira Guerra. Nesse sentido, estrito não foi mera coincidência Bolsonaro assumir o poder no centenário da reunião da Piazza San Sepolcro. Ele congrega as piores características de todos os líderes neofascistas e libera os instintos reprimidos de seus seguidores. Para opor à massa fascista uma outra de igual intensidade, mas armada pela razão, não basta ater-se à própria razão. É preciso despertar algo mais que talvez já esteja lá, confinado em cada um, nos lares recônditos em que se aguarda a vez de ser sorteado. REFERÊNCIAS DAVIS, Natalie Zemon. O Retorno de Martin Guerre. Trad. Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987. DÜRRENMATT, Friedrich. A Visita da Velha Senhora. Trad. Mário Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1976. GARNIER-PAGÈS. GIGLIOLI, Dictionnaire Politique. 5. ed. Paris: Pagnerre Éditeur, 1857. Enrico. La fosforecenza del mare: note pelagiche, ed osservazione fatte durante um viaggio di circunnavigazione. 1865-1868. Bolletino della Società Geográfica Italiana. Firenze, 1870. GINZBURG, Carlos. O Queijo e os Vermes. Trad. Maria B. Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. HOBSBAWM, Eric. Era dos Impérios. 3. ed. Trad. Sieni M. Campos e Yolanda Steidel de Toldedo. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1992. JACKSON, Shirley. A Loteria. Revista Literária em Tradução, Florianópolis, n. 9, ano V, set. 2010. MARX, Karl; 1966. ENGELS, Friedrich. A Revolução Espanhola. São Paulo: Leitura, MORENO, Patrícia. A febre amarela e as relações Portugal-Brasil no século XIX. BSGL, série 120, n. 1-12, 2002. MORENO, Renan Meira Zapata. Cultura e senso comum em Antonio Gramsci. Mouro – Revista Marxista – Núcleo de Estudos d’O Capital, Ano 11, n. 14, jan. 2020. PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. TWAIN, Mark. Trad. Patriotas Paulo Cezar e traidores: Antiimperialismo, Castanheira. São Paulo: política Fundação e crítica Perseu social. Abramo, 2003. NOTAS 44 | 45 | 46 | Professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). Disponível em: https://mubi.com/cast/jonathan-glazer. Acesso em: 16 maio 2020. O diretor, fugitivo do nazismo, mostrava naquele faroeste uma população covarde cúmplice de um movimento criminoso: o macartismo, segundo Inácio Araújo (Folha de S. Paulo, 9 out. 2014). O roteirista Carl Foreman era um perseguido do macarthismo. | 47 E lembremos que o liberalismo espanhol oitocentista era particularmente radicalizado e defensor da Constituição de Cádiz (1812), um documento escrito sob bombardeio francês e analisado minuciosamente por Karl Marx (MARX; ENGELS, 1966). 48 | Sobre o tema, consultar: Moreno (2020). ‘ A pandemia e a ’ inteligência do presidente VICENTE A. C. RODRIGUES INEZ STAMPA 49 50 A pandemia encontra o Brasil doente A pandemia de COVID-19, causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, bem como mudaram a adoção rapidamente, de e medidas de forma necessárias ao extraordinária, a seu enfrentamento, vida de centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo, causando mortes, alterando rotinas, impactando as formas de sociabilidade e impondo complexos desafios para o funcionamento da economia, tanto daquela de características locais, como a economia globalizada, comandada por empresas transnacionais a partir de 51. “corredores econômicos” espalhados em vários pontos do mundo Ao tempo em que este artigo foi finalizado, a doença já tinha infectado mais de cinco milhões de pessoas ao redor do mundo, causando 340,875 mortes e incontáveis sequelas de saúde entre os sobreviventes. No Brasil, conforme dados do Ministério da Saúde divulgados em 23 de maio de 2020, o número de óbitos alcançou a marca de 22.013, com um total de 347 mil 52, pessoas infectadas sem sinal de desaceleração na difusão da doença. Há 53. evidências de que estes números estão subestimados No plano econômico, o Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta que deverá ocorrer a maior retração econômica desde a crise de 1929, com previsão de queda de 3% no PIB mundial, e cujos efeitos serão ainda mais agudos no Brasil, com aumento do desemprego de 12,2% para 14,7% e queda estimada do PIB em 5,3% (FMI, 2020). Isso em um contexto particularmente perverso, no qual se aprofundam, no Brasil, as consequências do desmonte dos direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988, com a redução/congelamento dos gastos com políticas sociais (Emenda redirecionamento 186/2019); a do fundo Constitucional público contrarreforma aos nº 95/2016) interesses trabalhista (Lei do e o capital nº maior (PEC n° 13.429/2017); a contrarreforma da previdência social (Emenda Constitucional nº 103/2019); a destruição da universalidade e gratuidade do Sistema Único de Saúde (SUS), entre outras atrocidades. Tão rápidas foram as mudanças ocasionadas pela pandemia que em fevereiro do corrente ano ainda era possível ao governo brasileiro retratar a COVID-19 como um distante problema do sul da Ásia, e não uma realidade global com impacto direto em nossa saúde e na vida de nossas cidades. Abundavam, até o início de abril, teorias governamentais como aquela que mencionava o clima tropical do país como impeditivo do espalhamento do vírus e, ainda, duvidosos elogios a suposta resistência excepcional dos brasileiros — “Brasileiro pula em esgoto e não acontece nada”, como disse o 54. presidente Bolsonaro em 26 de março Com o aumento debochado caiu por exponencial terra, mas do número não antes de de mortos, ter esse discurso confundido parcela 55 e de ter impedido a construção de significativa da opinião pública nacional uma política nacional unificada de enfrentamento à doença. Neste aspecto, cabe questionar qual era o grau de entendimento da situação e quão eficiente foi a atuação dos órgãos de inteligência do Brasil, 56, a uma vez que, conforme determina a Lei 9.883, de 7 de dezembro de 1999 tarefa desses órgãos consiste na “obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental Estado”. e Dito sobre de a outra salvaguarda forma, o e a segurança trabalho dos da órgãos sociedade de e do inteligência é precisamente não ser surpreendido por situações como essa. Contudo, obter resposta a esse questionamento não é tarefa singular. A despeito da vigência formal de dispositivos constitucionais que embasam a necessidade de ação transparente do Estado e, ainda, da vigência formal da Lei de Acesso a administração destacando-se Informação pública a falta de (Lei vive 12.527, um de 18 de momento transparência e de novembro de 2011), particularmente controle social da a opaco, ABIN e de outros órgãos de inteligência brasileiros. Inteligência e informação em tempos de pandemia — Brasil e EUA Nessa direção, sustentamos que analisar a resposta dos Estados Unidos da América do Norte (EUA) à crise provocada pela pandemia, de sua comunidade de inteligência e de seu presidente, pode oferecer pistas para os nossos questionamentos. Por um lado, historicamente porque a profundas comunidade influências de da inteligência comunidade brasileira de sofreu inteligência dos EUA, tanto em sua montagem como na definição de seu campo de atuação (RODRIGUES, mandatário pelo 2017; brasileiro presidente dos FIGUEIREDO, manifesta EUA, 2005). Por reiteradamente Donald Trump, ao outro, sua qual porque profunda busca o atual admiração frequentemente emular, a tal ponto que é possível identificar a vigência de uma política de 57 “alinhamento automático” do Brasil aos EUA, o que reverteu décadas de formulação estratégica do Itamaraty. Antes, contudo, em benefício da precisão terminológica, cabe esclarecer que no âmbito dos chamados “órgãos de inteligência” contemporâneos, como a Agência Central de Inteligência (CIA) dos EUA, o Serviço Federal de Segurança da Federação Russa (FSB), o Ministério para Segurança do Estado (MMS) da China e a ABIN, a palavra inteligência designa, de forma geral, tanto o conjunto de informações processadas sobre entidades estrangeiras, adversárias ou não do Estado, nos mais diferentes campos da política externa próprios (militar, órgãos diplomático responsáveis pela e econômico), coleta, análise como e também difusão os dessas informações. Conforme significado definido está por Lerner intimamente e ligado Lerner ao (2004, chamado p.125), “ciclo de o primeiro inteligência”, processo complexo pelo qual a informação bruta é adquirida, convertida em inteligência após análise e, posteriormente, disseminada em direção a determinados agentes de alto grau do Estado. No que se estrangeira”, relação legais Lerner entre tem, refere à e identificação Lerner inteligência e do adversário sustentam manutenção historicamente, separado que, da essas nos lei, como EUA, um duas uma “entidade “apesar número de atividades” da óbvia barreiras (LERNER; 58 e LERNER, 2004, p.126). Citam como exemplos a lei Posse Comitatus 59 de criação no âmbito terroristas o ato da CIA, que proíbe sua atuação em ações de manutenção da lei interno. de 11 Contudo, de os setembro autores de 2001, concedem a linha que entre após os vigilância ataques interna e externa tornou-se menos definida nos EUA, e que, em regimes autoritários, frequentemente essa linha sequer existe. No Brasil, inteligência também é, atualmente, utilizada para designar as atividades do ciclo de inteligência, bem como os órgãos encarregados dessas atividades. Contudo, seu uso é mais recente, tendo sido legalmente adotada apenas em 1999, com a criação da ABIN e do Sistema Brasileiro de Inteligência (SBI), pela Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999. Anteriormente, a ditadura militar de 1964-1985 utilizava a expressão informação, como forma de evitar duplo sentido, pois a palavra inteligência tem como entender, significados pensar e mais comuns raciocinar. Em aqueles ambos os referentes casos, seja à faculdade inteligência, de seja informação, obtidos temos de a fontes especializados, seguinte ostensivas processados e situação: ou dados secretas, oferecidos a são informacionais coletados determinados brutos, por órgãos destinatários privilegiados. Na atual conjuntura de pandemia, a administração Trump vem sendo 60 em virtude do que é percebido como uma sequência fortemente criticada reiterada levado de em falhas conta no enfretamento avisos da específicos emergência, e repetidos tanto da por não se comunidade ter de inteligência a respeito da COVID-19, como também por não se ter tomado medidas consistentes que pudessem articular uma resposta de âmbito nacional. De fato, entre os meses de fevereiro e março de 2020, diversos membros da administração Trump fizeram declarações minimizando o risco da pandemia e tomaram decisões que, em última análise, diminuíram o grau de preparação dos EUA à pandemia e levaram, afinal, ao aumento do número de mortes naquele país. O próprio presidente norte-americano colecionou declarações desastrosas no mesmo período, comparando a COVID-19 a uma “gripe dessas de temporada” e sugerindo que a população “tomasse vacina para a gripe” e que fosse trabalhar “mesmo que contaminada pelo vírus”. A posição pública da administração somente mudou, e ainda assim em parte, no final de abril, quando mais de 60.000 pessoas já tinham morrido nos EUA vítimas da doença, e quando projeções indicavam que dificilmente o número total argumentativo, o seria menor governo dos do que EUA 100.000 passou a mortos. reconhecer Em a um giro gravidade da situação e a acusar a China, país que é seu principal parceiro econômico e maior adversário geopolítico, ora sugerindo que os chineses poderiam estar 61, por trás da criação artificial do vírus ora que a China tinha encoberto o problema e tinha falhado em avisar à comunidade internacional sobre o que ocorria. Também foi alvo de críticas a Organização Mundial da Saúde (OMS), denunciada por ele como um “sinófila” e uma “marionete da 62. China” De forma a reforçar a retórica de que a pandemia fora ocasionada por um inimigo externo, o presidente norte-americano lembrou que a letalidade da COVID-19, nos EUA, superava a de outros eventos traumáticos da história daquele país. Referiu-se, especificamente, ao ataque japonês a Pearl Harbor, em dezembro de 1941, que deixou 2.403 militares e pessoal de apoio norte- americanos mortos e, ainda, os ataques terroristas de 11 de setembro, que vitimaram 2.753 pessoas. Curiosamente, ambos os eventos são reconhecidos por especialistas como grandes falhas de inteligência da história dos EUA, nas quais os avisos da comunidade de inteligência não foram observados pelo presidente. Neste Trump ponto, fora faz-se informado importante do risco questionar potencial da se há evidências pandemia, e quais de que razões o teriam levado a ignorar os alertas da comunidade de inteligência. Sobre o primeiro aspecto, o que já foi revelado publicamente permite afirmar que entre fevereiro assessor e janeiro econômico “centenas de economia” de 2019 presidencial milhares pessoas norte-americana, circularam alertando morressem” a menos memorandos para e que a para da CIA possibilidade o e de que “descarrilamento medidas imediatas do da fossem 63. tomadas em relação ao surto de COVID-19 Sobre as razões pelas quais o presidente dos EUA ignoraria esses alertas, há duas explicações possíveis. A primeira relaciona-se ao fato de que a comunidade de inteligência produz um grande volume de alertas e avisos quanto a risco potenciais, na maioria das vezes não realizados, para a segurança nacional norte-americana. O grande volume de informações gera 64. o risco de que a filtragem e valoração desse material não seja eficiente Outra explicação complementar é que, mesmo antes do início formal de sua administração, tomado posse, quando Trump era o presidente mantem-se em eleito, mas permanente ainda não conflito tinha com a comunidade de inteligência dos EUA, principalmente após órgãos como o FBI a CIA e a NSA terem apoiado sub-repticiamente teorias segundo as quais sua eleição interessava ao governo da Rússia, que teria patrocinado em seu benefício uma campanha de fake news disseminadas em redes sociais. Embora afinal potência inocentado estrangeira, 65, Muller conflito qualquer principalmente articulação a partir da intencional publicação do com essa Relatório que o exonerou da acusação de estar em conluio com a Rússia, o marcou comportamento designa de não indelevelmente do chamado somente as a percepção governo agências e de invisível órgãos de Trump dos EUA, inteligência a respeito expressão do que reconhecíveis, mas, também, um agrupamento amorfo e indefinido de indivíduos e órgãos extraídos de vários setores do governo visível convencional e que atuam na área de inteligência (WISE; ROSS, 1968). 19 Do alinhamento automático na resposta à COVID- Na comparação direta entre a atuação dos governos dos EUA e do Brasil salta aos olhos a impressionante similitude entre elas. No que se refere às manifestações públicas de agentes governamentais, de aliados políticos e do próprio presidente brasileiro, também foram inúmeras as declarações inexatas ou simplesmente falsas a respeito da COVID-19. Por exemplo, se em 9 de março o presidente norte-americano declarou que a COVID-19 não era diferente de uma “gripe de temporada” (seasonal flu), poucos dias depois o presidente brasileiro afirmou que se tratava de uma “gripezinha”. Em ambos os casos, os presidentes mencionaram o número de mortos por gripe comum para tentar demonstrar que outras doenças matariam tanto quanto a COVID-19. A similitude Também no consolidada vai Brasil o além de governo nacionalmente, eventuais federal não coincidências falhou tendo sido em argumentativas. oferecer poucos os uma estratégia choques com os governos estaduais e com agentes de saúde. Em ambos os países os governos centrais repassaram publicamente a responsabilidade por danos à economia aos governos estaduais, criticando duramente iniciativas como isolamento social e lockdown, governamentais e no miraram campo a da atuação saúde, de seus como próprios foi visto representantes nos EUA com os reiterados atritos entre Trump e o líder da força-tarefa da Casa Branca para a pandemia e, de forma ainda mais espetacular no Brasil, com as sucessivas substituições no Ministério da Saúde. Também no que se refere aos atritos com órgãos de inteligência cabe mencionar a correspondência entre a atuação brasileira e norte-americana, hoje demonstrável com a recente liberação, pelo Supremo Tribunal Federal, 66 da degravação de reunião ministerial ocorrida em 22 de abril, no Palácio do Brasília-DF. Planalto, em Em diferentes pontos de uma tensa reunião recheada de palavrões, impropérios, ameaças a outros Poderes da República e acusações contra adversários políticos, Bolsonaro afirmou que os órgãos de inteligência das Forças Armadas não lhe prestavam as informações necessárias; que a ABIN prestava apenas “algumas informações” em virtude do suposto “aparelhamento” do órgão e que seria necessário substituir gente da “segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa” (em provável referência à Polícia Federal) para evitar prejuízos a sua família e amigos. Apesar externa, a de terem degravação sido também tarjados permite os trechos observar referentes à política contextualmente que o governo brasileiro está em sintonia com a administração norte-americana em suas acusações contra a China. Tantas e tão profundas semelhanças no comportamento revelam indícios adicionais do estratégicas alinhamento nos EUA. automático Ainda que do devam Brasil ser à tomada consideradas de as decisões diferentes conjunturas econômicas, políticas e sociais entre os países, essa influência vai além do campo da política externa, condicionando comportamento interno de instituições brasileiras. até mesmo o Registramos aqui alguns retrocessos que marcam atualmente a realidade brasileira e que se tornam mais contundentes no contexto da pandemia de COVID-19, deixando a população ainda mais exposta às gravíssimas consequências já observadas em outros países. No percurso da história o país viveu e vive uma ditadura da burguesia, pois o medo da elite burguesa da perda do poder (político, econômico e social) faz com que se utilize de armas cruéis para manter-se com o status quo inalterado. Nesse aspecto, a atual ofensiva do governo brasileiro, que trata os próprios cidadãos e residentes como inimigos internos, é elemento fundamental para compreender os dilemas por que passa a sociedade brasileira, em especial a classe trabalhadora, em momento tão grave. Aqui se observam, tal como no governo Trump, operações estratégicas com (mau) uso da inteligência e de tecnologia da informação, de políticas de eliminação direcionadas a minorias e de técnicas agressivas (inclusive verbais) cujo alvo é o cidadão comum. Mas estamos em meio a uma grave pandemia. Até quando a sociedade observará passiva o aumento do número de mortos e a política de “alinhamento automático”? REFERÊNCIAS FIGUEIREDO, FUNDO Lucas. Ministério do silêncio. Rio de Janeiro: Record, 2005. MONETÁRIO INTERNACIONAL Economic Outlook. (FMI). The Great Lockdown. Disponível World em: https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/04/14/World- Economic-Outlook-April-2020-The-Great-Lockdown-49306. em: 05 maio 2020. Acesso LERNER, K. Lee; LERNER, Brenda Wilmoth. Encyclopedia of Espionage, Intelligence and Security. Detroit, EUA: Gale Research, 2004. RODRIGUES, YOUNG, Vicente A. C. Documentos (in)visíveis. Aracaju: Edise, 2017. Alex. Harward Too Much Information: International Review, 18 Ineffective de agosto Intelligence de 2019. Collection, Disponível em: https://hir.harvard.edu/too-much-information/. Acesso em: 12 maio 2020 WISE, David; ROSS, Thomas B. O governo invisível. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. NOTAS | 49 Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Opening The Archives Project. | 50 Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Políticas Públicas e Serviço Social (TRAPPUS/PUC-Rio). Membro do Opening The Archives Project. | 51 A crise, contudo, não é para todos. Um seleto grupo de cinco bilionários experimentaram aumento nos lucros de suas empresas de alta tecnologia, totalizando USD $3.316 trilhões. São eles: Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Facebook), Steve Ballmer (Microsoft), Elon Musk (Tesla) e Michael Bloomberg (Bloomberg). 52 | de pessoas Nessa contabilidade macabra, o país está atrás somente dos Estados Unidos, que tem 1,6 milhões infectadas, com um total de 96 mil mortes. Isso não é coincidência, como será visto adiante. | 53 Ver entrevista do epidemiologista Paulo Lotufo, disponível em: https://saude.abril.com.br/medicina/entrevista-por-que-o-numero-de-mortes-por-coronavirus-estasubestimado/. Acesso em: 07 maio 2020. | 54 Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/26/brasileiro-pula-em-esgoto-e- nao-acontece-nada-diz-bolsonaro-em-alusao-a-infeccao-pelo-coronavirus.ghtml. Acesso em: 15 maio 2020. 55 | Em pesquisa divulgada em 26 de março de 2020, o Brasil aparece como um dos países que menos acredita no isolamento social como forma de prevenir o alastramento do vírus. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/04/23/internabrasil,847456/brasileiros-estao-entre-os-que-menos-acreditam-no-isolamento-social.shtml. Acesso em: 23 maio 2020. 56 | Institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), e dá outras providências. 57 | Sobre os riscos inerentes a essa posição e seu caráter disruptivo em face da tradição diplomática do Itamaraty, ver a matéria “O Arriscado Alinhamento automático do Brasil aos EUA, de Thomas Milz, publicada em 06 de fevereiro pelo portal de notícias alemão Deutsche Welle. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/o-arriscado-alinhamento-autom%C3%A1tico-do-brasil-aos-eua/a52275327. Acesso em: 12 abril 2020. 58 | A lei Posse Comitatus é uma norma federal promulgada em 1878, no contexto pós-guerra civil dos EUA, que limita os poderes do governo federal, impedindo-o, na prática, de utilizar pessoal militar em ações de repressão contra a própria população dos EUA. A expressão, de origem latina, significa “poder da comunidade”. | 59 A CIA foi criada através do National Security Act of 1947. O mesmo ato criou o National Security Council (NSC) e o Departament of Defense. 60 | Ver o artigo Criticized for Pandemic Response, Trump Tries Shifting Blame to the W.H.O., New York Times, 14 de abril de 2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/14/us/politics/coronavirus-trump-who-funding.html. Acesso em: 12 maio 2020. 61 | Para defender essa teoria, Trump escalou o Secretário de Estado dos EUA, para afirmar que “há enorme evidência de que a propagação do vírus foi iniciada no Laboratório de Armas Biológicas de Wuhan, China. Ver: https://www.theguardian.com/world/2020/may/03/mike-pompeo-donald-trumpcoronavirus-chinese-laboratory. Acesso em: 14 maio 2020. 62 | 63 | Disponível em: https://www.bbc.com/news/health-52679329. Acesso em: 14 maio 2020. Ver https://www.project-syndicate.org/commentary/us-intelligence-coronavirus-pandemic-by- kent-harrington-2020-04 e https://www.theguardian.com/world/2020/apr/07/donald-trump- coronavirus-memos-warning-peter-navarro. Acesso em: 15 maio 2020. 64 | Trata-se de um problema comum no âmbito da coleta e processamento de informações de inteligência, conforme aponta Young (2020). 65 | Relatório sobre a Investigação quanto à Interferência da Rússia nas Eleições Presidenciais de 2016, publicado em março de 2019 e de autoria do conselheiro especial Robert S. Muller. Disponível em: https://www.justice.gov/storage/report.pdf. Acesso em: 15 maio 2020. 66 | Registrada no Laudo nº 1242/2020 – INC/DITEC/PF, de 21 de Nacional de Criminalística, do Ministério da Justiça e Segurança Pública. maio de 2020, do Instituto . Cortar ou não cortar, eis a questão Crise orgânica, tensões no bloco social dominante e ajustes na austeridade fiscal 67 RODRIGO CASTELO “Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre Em nosso espírito sofrer pedras e setas Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, Ou insurgir-nos contra um mar de provações E em luta pôr-lhes fim? Morrer... dormir: não mais.” [ WILLIAM SHAKESPEARE, Hamlet ] A hegemonia conquistada pelas frações rentistas do bloco social da supremacia burguesa, desde os anos 1980 até hoje, é um momento ímpar na história do modo de produção capitalista e alcançou, a partir de um desenvolvimento desigual e combinado, praticamente todas as formações econômico-sociais no mercado mundial. Uma das expressões concretas dessa hegemonia na materialidade do poder estatal é a austeridade fiscal. Não à toa, a política de austeridade é o primeiro item dos dez pontos do Consenso de Washington e se tornou uma espécie de catequese fundamentalista do mainstream burguês. O alcance e os impactos da hegemonia rentista e da austeridade fiscal são impressionantes, pois distintos grupos das lutas de classes aderiram ao círculo de ferro do neoliberalismo nas últimas quatro décadas. No centro imperialista, partidos social-democratas, após serem massivamente cooptados pelas forças dominantes, foram executores diligentes do projeto neoliberal, abrindo espaço para a difusão do social-liberalismo em todo o mundo. Nas neoliberais, receituário semiperiferias mediados e foram pela periferias dominação aplicados democrático-populares, e com inclusive imperialista, afinco na dependentes, por vulgata os cânones ganharam governos ares de conservadores neodesenvolvimentista. e Por fim, um dos últimos bastiões foi conquistado com a cooptação da extrema- direita fascista que, no seu passado, rejeitou ideias motrizes do liberalismo e defendeu modelos de forte intervenção estatal na acumulação capitalista mas, no presente, aderiu sem vacilação à ortodoxia econômica. Resta, ainda, uma pequena e brava resistência nas fileiras comunistas e socialistas. Com o início da crise orgânica em 2008, o cenário mudou. Diante dos efeitos tímidas da crise, Estados políticas capitalista e de determinadas nacionais anticíclicas alívio às de imperialistas estímulo expressões situações extremas, mais à e reativação agudas medidas dependentes da da acumulação “questão estatizantes adotaram social”. foram Em tomadas para salvar grandes empresas capitalistas. Passado o pior, os ajustes fiscais draconianos voltaram à cena. Com a pandemia decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2020, podemos constatar o agravamento da crise orgânica e novos abalos na hegemonia rentista, algo impensável nos últimos anos. Demandas por redução pequenas aumento das taxas empresas, da de recuo intervenção juros, na perdão política estatal surgem de dívidas recessiva de todos de consumidores de corte de gastos os lados, inclusive e e de setores da alta burguesia como veremos a seguir. A partir dessas mudanças na conjuntura, a tese aqui defendida é a seguinte: as críticas às políticas de austeridade fiscal expressam tensões e atritos no bloco social burguês, o que aumentará as contestações à hegemonia rentista. Essa nova conjuntura da crise orgânica não significa, contudo, o fim imediato desta hegemonia, ou mesmo num período próximo, mas abre possibilidades históricas de uma atuação mais decisiva e contundente da classe trabalhadora na luta contra o poder rentista. E tais tensões e atritos expressam igualmente algo mais profundo: abalos e fissuras no bloco histórico neoliberal. São distintas camadas da realidade que, analisadas em uma unidade contraditória, moldam o quadro da crise orgânica. Vejamos alguns começando Japão) e, pela fatos tríade depois, nos que ajudam imperialista a dar concretude (Estados concentraremos no Unidos, Brasil. a nossa União Nos tese, Europeia Estados e Unidos, Donald Trump sancionou em março de 2020 um acordo parlamentar que injeta US$ 2 trilhões na economia 68, estadunidense considerada a maior intervenção econômica da história daquele país. Grande parte dos recursos estatais será destinada a salvar empresas, enquanto uma fração menor irá para desempregados e gastos com a saúde. Na Europa, medidas de alívio aos efeitos da crise partiram do governo inglês de Boris Johnson, parceiro de primeira hora de Trump, fazendo um aporte vultoso de £30 bilhões, quantia 69. que não era aplicada desde a Segunda Guerra Mundial Países-membros da União Europeia, como Alemanha, França, Espanha e Itália, anunciaram celeremente pacotes anticíclicos nacionais e negociam um pacote 70. E, supranacional de proporções inéditas que pode alcançar €500 bilhões no Japão, coloca em o governo prática federal, um pacote comandado de por intervenção forças de econômica extrema-direita, da ordem de €1 71. trilhão No Brasil, o início da crise orgânica com as Jornadas de Junho em 2013 72, trouxe os primeiros desafios à manutenção da hegemonia rentista no país mas esta se manteve praticamente intacta, inclusive com a reafirmação de medidas golpe de austeridade fiscal parlamentar-jurídico pelo de governo 2016. A Dilma Rousseff ascensão de de Michel 2013 até Temer o à presidência e a eleição do fascista Jair Bolsonaro fortaleceram a hegemonia rentista, que chegou ao ponto de ganhar status de constitucionalidade com a Emenda Constitucional do teto dos gastos, a famigerada EC95, dentre tantas outras medidas jurídicas, administrativas e culturais que blindam o poder rentista de qualquer controle democrático. De todo modo, a forte queda no crescimento econômico e nas taxas de lucro do grande capital monopolista desde 2014 tem aumentado as tensões e atritos dentro do bloco social dominante, e tudo indica que esta tendência continuará no atual governo. Por um lado, Bolsonaro abandonou suas antigas crenças no maior controle estatal na economia e passou a louvar o livre mercado, com o objetivo de atrair grupos da alta burguesia para as suas bases eleitorais e sociais. O fiador do acordo bem-sucedido entre o novo convertido e as elites econômicas é Paulo Guedes, economista formatado no credo da Escola monetarista de Chicago. Fiel à cartilha neoliberal, Guedes mostra serviço desde os primeiros dias da sua nomeação com corte de gastos, anúncio de privatizações, parcerias público-privadas, ofensas ao funcionalismo público e etc.. Assim, Bolsonaro e seu ministro da Economia reafirmam cotidianamente os compromissos firmados com o grande capital monopolista e recebem de volta apoios e aplausos — diga-se a verdade, cada vez mais tímidos e silenciosos, mas decisivos para a manutenção de ambos no Planalto Central. De outro lado, a nova conjuntura da crise orgânica aberta pela pandemia coloca em xeque a política ultraneoliberal de Guedes. O crescimento de 1,1% do PIB no primeiro ano do governo Bolsonaro foi menor do que a média no governo Temer, fortíssima no austeridade pressão por que biênio fiscal já tinha sido 2020-2021, não mudanças sejam na pífio. que Agora, pode afrouxadas, política se tudo agravar ou econômica indica caso mesmo partem as uma queda políticas abandonadas. de várias de E a frentes, inclusive de grupos internos do status quo. A questão que se impõe, portanto, é: estarão os rentistas dispostos a cortar na carne para salvar a própria pele? Ou em termos mais precisos: a alta burguesia sacrificará parte da acumulação de riqueza, numa formação econômico-social semiperiférica como a brasileira, em nome de uma supremacia baseada no consenso? Num contexto de profunda estagnação econômica, de instabilidade política no andar de cima da pirâmide social e de avanço da pandemia, o aumento dos gastos sociais tornou-se uma necessidade imperativa e o governo cedeu, a contragosto, na pauta da austeridade fiscal. No dia 18 de março de 2020, a presidência da República encaminhou pedido ao Congresso Nacional para decretação do estado de calamidade pública, com o objetivo de afrouxar as regras fiscais e elevar os gastos sociais. O pedido foi aprovado no Senado, a toque de caixa, dois dias depois do seu envio. Feito isso, o Ministério da Economia reviu a previsão de públicas de R$124 bilhões para R$ 429 bilhões, o déficit nas contas maior valor da série histórica. Paulo Guedes, todavia, não perdeu a oportunidade de declarar, na fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril, que a direção intelectual- moral continua apontando para a hegemonia rentista e os cofres públicos abastecerão as grandes empresas. Nas suas palavras, “na conversa com os ministros da Fazenda lá de fora eu disse que nós estamos com um déficit extraordinariamente mundo na mesma alto esse direção, só ano. que É da nós mesma caímos no forma chão, que tá eles, uma tá todo confusão. Tiro, porrada e bomba, mas nós não perdemos a bússola. A gente cai, levanta 73. e sabe para onde nós temos que ir” Com a decretação do estado de calamidade pública, o orçamento federal deixou momentaneamente de ter um limite determinado pelas férreas regras fiscais e o Executivo assegurou que o aumento dos gastos sociais não significará, proprietários necessariamente, dos títulos das uma dívidas queda públicas, nas remunerações garantindo, por sua dos vez, a parcela polpuda do orçamento federal apropriada pelas frações rentistas da burguesia. E vale destacar que a elevação dos gastos sociais é uma resposta focalizada e emergencial ao aumento do desemprego, miséria, fome etc., não se constituindo, portanto, em uma mudança qualitativa de intervenção estatal nas expressões da “questão social”. Contraditoriamente, a hegemonia rentista está salvaguardada pelas mais recentes ações de afrouxamento da austeridade fiscal, tida como um dos seus pilares estruturais. Entretanto, setores do governo federal e aclamados intelectuais orgânicos do Estado-maior do bloco social dominante fizeram pronunciamentos públicos sobre a necessidade de novos aumentos dos gastos públicos para amenizar os efeitos mais dramáticos da crise orgânica. As tensões e choques derivados da condução ultraliberal da austeridade fiscal surgem no próprio Executivo. No dia 22 de abril de 2020, o general Braga Netto, ministro da Casa Civil, articulado com as pastas do Desenvolvimento Regional e da Infraestrutura, anunciou um tímido pacote de R$ 30 bilhões chamado de Plano Pró-Brasil, voltado para investimentos públicos em obras de grande porte, em especial na área de infraestrutura. O objetivo oficial empregos e a é a retomada modernização do da crescimento infraestrutura econômico, brasileira. da O geração plano de estatal, todavia, apresenta resistências da equipe econômica liderada por Guedes, que não enviou representação para o anúncio oficial. Enquanto o Pró-Brasil defende a necessidade de investimentos públicos, a equipe econômica insiste na predominância da iniciativa privada. Os embates entre Guedes e a Casa Civil Bolsonaro militarizada foi foram obrigado a tão colocar intensos panos que, dias quentes na depois do desordem anúncio, das suas fileiras e declarar que Paulo Guedes era o “homem que decide a economia […]. Ele nos dá o 74 devemos seguir.” norte, nos dá recomendações e o que nós realmente O “Posto Ipiranga” segue no cargo mas se equilibrando na corda bamba e com o prestígio abalado. Outros sinais de crise no andar de cima da sociedade brasileira surgem na grande mídia, porta-voz de intelectuais orgânicos da burguesia. Antonio Delfim Netto, ex-ministro da ditadura empresarial-militar, signatário do AI- 5 e histórico consultor do grande capital, avalia que a atual crise é alarmante e sugere um plano nacional de recuperação econômica, abolindo momentaneamente os limites orçamentários. Ainda segundo ele, o combate à pobreza e a redução das desigualdades sociais devem ter um peso maior na política econômica Armínio Fraga, 75. ex-presidente do Banco Central e administrador de fundos financeiros bilionários, defende, em programas televisivos e artigos de opinião veiculados em jornais de grande circulação, que o Brasil abandone temporariamente a austeridade fiscal e, no seu lugar, adote uma economia de guerra, aumentando gastos na saúde pública e na assistência social, com a adoção de um programa de renda mínima para 100 milhões de brasileiras e brasileiros. Conjugado a esses rompantes humanitários, Fraga, em artigo escrito 76, Scheinkman em afaga coautoria o capital com com Vinicius a defesa Carrasco de e oferta José de Alexandre uma linha de créditos estatais da ordem de R$120 bilhões para empresas brasileiras. Essas declarações e disputas internas no governo Bolsonaro expressam atritos no bloco social dominante. São três exemplos — e outros poderiam ser facilmente agregados — de como intelectuais relacionados ao grande capital monopolista, dentro e fora da máquina estatal, travestidos de uma súbita consciência filantrópica, passam a defender alterações emergenciais e momentâneas na política econômica de austeridade fiscal, conjugando-as com medidas espírito de social-liberais preservação da de alívio da supremacia pobreza, tendo burguesa em como objetivo tempos de o crise orgânica. O tom é de penhorar os anéis para salvar os dedos e retomá-los depois, mesmo pagando uma pequena taxa para isto. Para usarmos uma fórmula de Gramsci nas análises das crises orgânicas, os de cima não conseguem mais governar como antes e buscam garantir a supremacia pelo aumento da coerção, sem abrir mão de doses mínimas de consenso. Daqui intensificará organizada sob das para frente, diversas classes a violência maneiras. dominantes e Dentre estatal elas, operador da o (e paraestatal) Estado, violência como como se força potência econômica77 , manejará seus instrumentos fiscais de forma crescentemente coercitiva, embora subalternos serão medidas táticas percebidas ao de concessões longo do míseras processo, e pontuais visando aos atenuar os efeitos socioeconômicos crônicos do capitalismo dependente. Essa forma de gestão da supremacia burguesia, contudo, acirrará as contradições sociais. Assim, na atual conjuntura da crise orgânica, com o aumento nas tensões internas ao bloco social dominante, abrem-se possibilidades concretas (embora ainda muito remotas) de superação do bloco histórico neoliberal. Mas possibilidades não se transformam automaticamente em tendências políticas. Como adverte Gramsci, numa crise orgânica, existem múltiplas saídas históricas: estas podem vir tanto pela revolução socialista como pela alternativa fascista, o que significará o aprofundamento do capitalismo. O que mudará a correlação de forças, determinando os vetores resultantes das lutas de classes, serão a capacidade de organização e consciência das classes sociais. Cabe à classe trabalhadora brasileira e suas organizações forjarem uma unidade classista e se colocarem política e ideologicamente de forma autônoma nas lutas de classes, rompendo ilusões desenvolvimentistas e de conciliação de classes e apontando para um horizonte de superação hegemonia rentista, do neoliberalismo e do capitalismo dependente. Apesar dos pesares, a longa noite não é natural, nem definitiva: não é hora de morrer, nem de dormir, mas sim de lutar e de se insurgir. da REFERÊNCIAS IANNI, Octavio. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, [1981] 2019. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo, [1867] 2013. NOTAS | 67 Professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e pesquisador movimentos sociais e do Coletivo acumulação do Laboratório capitalista de Ensino, (Cepemac) e Pesquisa do Grupo e Extensão de sobre Trabalho Estado, sobre Teoria Marxista da Dependência da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP). 68 | G1. Trump promulga pacote de US$ trilhões para avaliar impactos do coronavírus na economia. G1, 27 mar. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/27/trump- promulga-pacote-de-us-2-trilhoes-para-aliviar-impactos-do-coronavirus-na-economia.ghtml. Acesso em: 19 maio 2020. 69 | OSWALD, Vivian. Europa injeta €100 bi para proteger economia da nova pandemia. O Globo, Rio de Janeiro, 12 mar. 2020. Economia, p.30. | 70 MIGUEL, Bernardo de. União Europeia abre caminho para acordo histórico sobre fundo anticrise. El País, 22 abr. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/economia/2020-04-22/uniaoeuropeia-abre-caminho-para-acordo-historico-sobre-fundo-anticrise.html. Acesso em: 19 mai. 2020. 71 | São CHARLES, Frédéric. Crise do coronavírus: o Japão também entra em recessão histórica. UOL, Paulo, 18 mai. 2020. Disponível em https://noticias.uol.com.br/ultimas- noticias/rfi/2020/05/18/crise-do-coronavirus-o-japao-tambem-entra-em-recessao-historica.htm. Acesso em: 19 mai. 2020. 72 | Sobre a hipótese de crise orgânica no capitalismo dependente no Brasil no tempo presente, recomendo a leitura do texto Crise orgânica, recessão econômica e lutas de classes no Brasil em tempos de pandemia, de minha autoria, publicado no número 5 (abril de 2020) do boletim da International Gramsci Society Brasil (IGS-Brasil) e disponível em: http://igsbrasil.org/boletins/boletim-5-no1-abril2020/ 73 | MAZIEIRO, Guilherme. Guedes: vamos usar recurso público com grandes empresas e ganhar dinheiro. UOL, São Paulo, 22 maio 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas- noticias/2020/05/22/guedes-vamos-usar-recurso-publico-com-grandes-empresas-e-ganhardinheiro.htm. Acesso em: 24 maio 2020. 74 | MAZUI, Guilherme; MARTELLO, Alexandro. Homem que decide a economia no Brasil é um só: Paulo Guedes, diz Bolsonaro. G1, 27 abr. 2020. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/27/homem-que-decide-a-economia-no-brasil-e-umso-paulo-guedes-diz-bolsonaro.ghtml. Acesso em: 20 maio 2020. 75 | UOL. Delfim Netto: Coronavírus colocou pobre no foco e mudará política econômica. UOL, São Paulo, 13 abr. 2020. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/13/delfimnetto-recuperacao-economia.htm. Acesso em: 19 maio 2020. 76 | Paulo, FRAGA NETO, Armínio; CARRASCO, Vinicios; SCHEINKMAN, José Alexandre. Folha São Paulo, suportarem 23 mar. 2020. choque Veja proposta do com 9 itens que coronavírus. garante crédito para de S. empresas Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/veja-9-propostas-que-garantem-credito-paraempresas-suportarem-choque-do-coronavirus.shtml. Acesso em: 19 maio 2020. 77 | Sobre a categoria teórica de violência como potência econômica, cf. Karl Marx ([1867] 2013), livro I, capítulo 24, seção 6 e Octavio Ianni ([1981] 2019), em especial a primeira parte. : Globalização e pandemia o fim da hegemonia e a necropolítica neoliberal 78 PEDRO CLÁUDIO CUNCA BOCAYUVA Podemos considerar desterritorialização, o como neoliberalismo pressão do ciclo como curto da desmedida da temporalidade da acumulação financeirizada sobre a superfície do globo, ou como expressão do condicionamento ampliadas fruto da no quadro expansão momento político intensificado das pós-guerra do fronteiras fria. Além capital da divisão do disso sobre as internacional capitalismo é forças necessário produtivas do mundial cruzar trabalho, ligadas essa ao dimensão espacial na dupla lógica do capital — financeira do tipo imaterial e material do novo imperialismo contrarreforma — permanente, com bem a visão como do sua neoliberalismo história política como enquanto efeito da luta de classes. O neoliberalismo é uma espécie de guerra de movimento aberta pelas forças transnacionais do capital, uma contrarreforma, como indicou Carlos Nelson Coutinho, subalternas, um contra as ataque contra mediações as de conquistas regulação históricas nacional das classes restritiva para favorecer o espaço liso e plano, permitindo o livre fluxo vertical do capital. Desta forma, temos a imposição de um quadro que combina destruição de mediações Estados institucionais Nacionais. nacionais Vivemos, e durante sociais o e final competição do século aberta XX e as entre duas primeiras décadas do novo século, uma disputa entre lugares, pela atração via oferta de ativos exploração de trabalho e recursos naturais baratos nos distintos países, com a transnacionalização de impulsos bélicos, unificação de estados aquisição e e classes via expansão ampliação do revolução nas raio cultura das das O consumo, Empresas relações intensidades organizacionais. e de uma Transnacionais. produção produtivas, planeta com passou se Este apoiou através por enorme de uma fusão, processo numa meios de enorme técnicos mudança e geográfica, demográfica e ecológica com efeito na biosfera, com a constituição de um megaespaço biológicos urbano, derivados apoiado do na impacto destruição da dinâmica ambiental de e nos atrocidades, efeitos saques e a submissão forçada de populações e territórios. Neste início de século XXI, colhemos os efeitos de acontecimentos catastróficos, acelerados pelos distintos processos de interação e contágio biológico mundializado, com todas as transformações imunológicas que ocasiona nas relações entre as espécies vivas, em especial, para a saúde da espécie humana. A análise de situação e da relação de forças clássica, inclui agora, de maneira mais radical, as mutações ecológicas e seus efeitos que retornam sobre a vida no planeta. Neste artigo acompanhamos o movimento teórico da incorporação da dimensão da noção de biosfera no estudo da químicos conforme cena e mundial, ecológicos sugeriu o que na relação afetam Professor o dos processos planeta, Stephen Gill, com ao a biológicos, crise orgânica introduzir a físicos, global, categoria de biosfera nos estudos de relações internacionais. No final do ciclo aberto entre 1973 (Chile) e 1980 (Grã-Bretanha e Estados Unidos) se esgotou a globalização neoliberal entre 2001-2008, com as três grandes financeirizadora, tendências crises a das transversais cruzadas novas da da contemporaneidade: fronteiras guerra difusa, geopolíticas da e a precarização, a da dinâmica da biosfera. As da expulsão de populações, do aquecimento global e da ciberesfera são os elementos mais característicos deste esgotamento. A crise orgânica global do novo constitucionalismo neoliberal produz situações e relações de força de disputa no plano da política e da cultura, os distintos blocos no poder disputam a narrativa e ação em resposta aos efeitos destes aspectos transversais, acelerados pelos eventos decisivos com um corte abrupto sobredeterminação e do decisivo caos neste sistêmico ano de pela 2020, emergência a partir da da catástrofe relacionada ao efeito geral da COVID-19. Tudo isso sobre um quadro caótico de bifurcação devem entre passar questão por bioética, sobrevivência retornam mudanças da como como poderes novas espécie as potências, entre condicionalidades sanitária forças e e das por cegas que se centros em trajetórias e temas disputas que implicam e que com que dos físicos relacionam periferias, função fenômenos naturais e os e biológicos exigiram estados aos de — e da a que humanos emergência sanitária que partem de contextos de exceção até então ligados a catástrofe climáticas e ao terrorismo. Sinais anteriores de quadros pandêmicos mundiais foram parcialmente controlados, mas os tempos e mutações e amplitude parecem de escala e intensidade ampliadas. Disputar o modo de incorporar a narrativa sobre as catástrofes na disputa política se relaciona com especificidades nacionais. Nossas observações, neste artigo, levam em conta a especificidade, neste quadro global, da trajetória brasileira, em especial, depois do esgotamento do ciclo petista, do final das lutas de 2013 e com o avanço da guerra híbrida que resultou na sucessão de golpes brancos que facilitaram a vitória de Bolsonaro num quadro de tutela militar e punitivismo, com o apoio cínico do centro que levou a um colapso geral do sistema parlamentar e da vida dos partidos, dilacerados pela crise de confiança e pela gigantesca abstenção e protesto que acompanhou um quase empate que divide o país desde então, apesar da prisão de Lula. A crise atual amplifica eventos, ameaças, temores, paixões e riscos. Seus efeitos sistêmicos de longa duração se articulam a uma série de fenômenos morbosos ampliados, enquanto sintomas de uma crise de direção, característica do que Gramsci considerava um elemento decisivo da crise orgânica , que varia de país para país. O aspecto decisivo do quadro neoliberal se acelera, na forma da dinâmica de contrarreformas contínuas que abrem campo para a crise das “democracias realmente existentes”. Está colocado na ordem do dia, em especial nos Estados Unidos e no Brasil, o declínio definitivo dos mecanismos de poder pela via da hegemonia, das formas de ampliação do Estado social pelo consenso, típicas do “Ocidente” geopolítico e das suas periferias nos distintos continentes. O inverso mais do que o avesso da hegemonia, a dominação aberta e a lógica da coerção e do medo coletivo também coloca obstáculos para a emergente revolução passiva global de base sinocêntrica, que sofre com as tensões do conflito aberto com os Estados Unidos, ampliados a partir de Trump, e com as crises financeira, climática e sanitária. A crise e a transição no Sistema mundo parecem abrir cenários de esgotamento que se aceleram no Ocidente e no Norte global, e bloqueiam no Oriente e no Sul geográficos as mudanças de polo e/ou de centralidades no sistema. contra social ciclo as e No momento periferias racista neoliberal e e os novas em atual, produzem subalternos, guerras regimes de um movimento generalizando coloniais. exceção e Tudo a isso guerra que escala coroa o vinham reacionário da violência desfecho do governando pelo ajuste e a desfiliação de direitos, mas que agora devem passar pelo crivo da disputa de soluções de emergência sanitária e da disputa de narrativas que tenta incorporar e disputar a verdade do conhecimento. Isto é, a questão da relação entre o saber e o poder alimenta a batalha intelectual sobre a catástrofe inscrita no novo vetor biológico, da ameaça expressa pela pandemia, como um fator de reordenamento reativo das políticas públicas e dos modos de governar. Esse debate informa as trajetórias das disputas de poder que passam por novas exigências com destaque para indústrias e tecnologias de saúde, para questões da interrogações vida e sobre da os morte, modos de afetando vida em e acentuando inúmeras o retorno direções. O que de vai deslocando, por um instante, a certeza da soberania da moeda e do mercado, da religião e do poder bélico. O debate sanitário, epidemiológico e médico coloca em questão, mais uma vez, a razão da modernização capitalista e, também, coloca em questão as verdades dos fundamentalismos religiosos. O que convida para uma entrada cautelosa na experimentação de saídas científicas. A batalha das vacinas e remédios se interligam com as formas de exposição e controle sanitário das populações, colocando na ordem do dia o risco da soma da epidemia da COVID-19 com a pandemia de ódios, com as cruzadas e guerras religiosas e coloniais travadas nas dimensões virtuais das redes e nas espaciais dos territórios, que recolocam em questão o aumento atual da força científico, do como negacionismo critério da dos verdade e crimes como das ditaduras negação da e função do saber crítica da memória nas construção dos saberes. Nas periferias internas e externas do sistema capitalista mundial e colonial, a crise é orgânica, enquanto de comando e de direção política das distintas classes e grupos em luta. O que gera violência desde o bloco no poder, que exerce sua autoridade através de processos de encarceramento em massa, com aniquilamento base de em ações populações. de Nesta criminalização, segunda de década expulsão do século e de XXI, difunde-se o quadro de militarização do espaço urbano, das cidades sitiadas, com seus muros e seus jogos de guerra. Estratégias de city marketing são apoiadas sob o manto dos regimes de segurança e emergência, que manejam a agenda das políticas de ajuste, controle, privatização, segregação com apartação e, no limite, ações de violência policial e militar contra favelas e periferias. As forças locais nacionais, das antigas burguesias associadas com suas respectivas bases de apoio nas classes médias, perdem espaço na dominação global mundializada. Essas classes dominantes transnacionalizam-se pela evasão de capital ou exploram suas populações, obtendo parte das dívidas públicas que contraem em nome de seus povos. A gestão da dívida e da pobreza através da administração do medo torna-se o modo dominante de governar os territórios e as pessoas como empresa colonial. Países como o Brasil são governados por tecnologias de poder, através de todos os meios de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) que incidem na fabricação de políticas de segurança sobre populações e territórios, que no seu conjunto são de caráter genocida social e etnicamente. As ideologias militaristas, nacionalistas, racistas e machistas articulam os vários discursos de tipo religioso e moralista, ao lado do discurso capitalista, acentuando visões eugenistas. Neste momento histórico, os discursos do bloco no poder em crise são unificados pela negação das diferenças e das causas, unidos psicologia de campanhas, narrativas pela construção massa a partir do fascismo. dos justificando do quais inimigo, que Emitindo as forças cruzadas o mensagens de morais repete extrema padrão e da desenvolvendo direita misóginas, geral constroem homofóbicas, xenófobas, racistas e classistas, e gerando operações de “limpeza étnica” de formas diversas. A extrema direita cresce apelando para a violência e uso das armas na luta contra os supostos inimigos dos valores de uma ordem divina idealizada, com o apelo para a desmedida desejante da identificação com o poder econômico com sua violência que desliza para a barbárie. A cultura da banalização da crueldade é agora liberada pelo chefe de Estado, que prega a passagem ao ato para a destruição definitiva das mediações que restam do chamado Estado de Direito. No quadro nacional e internacional, a crise orgânica e da biosfera é lida através dos enquadramentos e agenciamentos discursivos, enquanto batalha de ordem simbólica travada no plano imaginário. A nova direita e os distintos fascismos sociais constroem guerras culturais que tomam por base as formas de negação cínica e a destruição dos valores e conquistas de direitos. O que se dá via modos do discurso de luta pela prosperidade, com base na fé religiosa, que serve aos elementos de uma radicalização contra o consenso e os direitos humanos. A nova direita de massas avança afirmando a necessidade de gerar a segurança na sociedade através da guerra contra a esquerda, conta o politicamente correto, contra os indígenas, os negros, os direitos das mulheres e as conquistas recentes da afirmação LGBTI+. Para a nova direita, cabe a punição e eliminação de obstáculos humanos, jurídicos, culturais e políticos que atrapalham o estranho casamento que nasceu no Chile, em 1973, entre fascismo político e neoliberalismo, que, renasce no Brasil na forma macabra e mórbida na escala mais ampla e complexa. Abandonadas as veleidades de revoluções, modernizações e reestruturações de caráter passivo, vemos o emergir da onda dos fenômenos mórbidos da regressão extrema-direita. social Podemos e política, dizer que que hoje alimentam assistimos o a cesarismo uma crise de de representação que acompanha os efeitos da impossibilidade de gerar uma hegemonia solução de integração social, que impossibilita a ampliação de nos marcos da formula mistificadora do final do século XX, que pretendeu unificar democracia e mercado. A fórmula americanista expandida encontrou obstáculos, até por força do seu êxito e, sempre se combinou com regimes autoritários e guerras nas periferias e nas bordas do Sistema Mundo. Hoje, os contraefeitos desse processo combinam-se com práticas de subordinação e compromissos de afirmação da ordem, com a destruição das políticas de proteção social minimalistas que se esgotaram. A busca de mecanismos integrativos pela via do consenso e do consumo foi substituída através do destaque crescente dado aos processos de governo pelo medo e pela exceção. A destruição do Welfare State se dá no quadro dos efeitos de fragmentação, crise, endividamento e conflitos abertos com as novas desigualdades, como na Grécia e no Chile, como no Brasil desde 2013, com segregações que atravessaram as fronteiras. O desenvolvimento desigual da última onda expansiva do final do século XX acabou constituindo uma vasta periferia global, que reage ao quadro de precarização e ao desemprego estrutural, ao mesmo tempo em que é criminalizada, golpeada, segregada, chegando ao segmentos quadro da atual população da proclamação no âmbito do aberta giro da descartabilidade conservador de de Trump, Bolsonaro e outros. No Brasil, vivemos a ordem de eliminar, abater, deixar morrer, quem não pode ser consumidor e devedor. Descartar quem não adere ao quadro de fascistização, via novas religiões, via milícias e toda a sorte de formatos de subordinação. Ou ainda, pela via do controle religioso, policial e militar dos corpos, e da psicologia de massas com base nas formas de identificação com a personificação autoritária, com a liderança através da manipulação de paixões e impulsos perversos. Como a que mobiliza os recalques e manipula medos, numa grotesco do estrutura líder, que narcisista manipula a e paranoica miséria do que começa caráter pelo egoísta de caráter grupos utilizando preconceitos, gerando um novo fascismo social. No momento, estamos sangue e na véspera chacinas, anarco-fascismo de vastas temos da operações manifestações periferia servil, que convocam mobilizadas como parte da por para banhos de uma espécie de doença terminal do neoliberalismo, como sua face extrema e sem véus. Nas manifestações da extrema direita, temos um discurso que apela para uma visão “sanitária” anticientífica, que convida para uma seleção forçada pela estratégia da contaminação, pelo ódio social. Nega-se a força do vírus, prega-se o uso das armas como forma de seleção forçada pelo exterminismo que acompanha as determinações divinas. A força bruta define a covardia desta regra de seleção dos mais aptos, para poder operar diante do quadro objetivo e extra-humano, próprio do vírus. A extrema direita combina fantasias, fantasmas e negações na sua compulsão por resolver os problemas e conflitos pelo acentuar da pulsão da morte, pela via do sacrifício suicida das populações ou do morticínio fratricida. A objetividade material e biológica da pandemia é lida por estas forças regressistas como sendo parte do quadro geral de intenções maléficas, de forças diabólicas que destruíram, com sua demanda por direitos, as leis e regras da ordem da criação divina. A obsessão pela tradição, pela hierarquia, pelo patriarcado busca estabelecer pontes entre as formas biológicas racistas e sexistas e as interpretações supostamente prescritas pelas noções bíblicas. Tudo isso, relacionado a um discurso individualista possessivo, que prega a prosperidade como a resultante do casamento entre fé e o espírito de iniciativa individual, que opera de forma possessiva pelo que visa participar da festa da riqueza capitalista, supostamente aberta para quem aceita entrar na disputa com o corpo protegido pela fé em Deus. O determinismo religioso se relaciona com este liberalismo extremo da lógica proprietária, que se alimenta de seu próprio fracasso através da fusão de doutrinas racistas, xenófobas e classistas que definem um quadro orientado aproximação para entre a esta realização chamada da para política guerra como interna guerra. e no A plano internacional, para a defesa da família e para a defesa do Ocidente cristão, encontrou no urbanismo de guerra e no urbanismo de mercado, praticado no Brasil, sua forma de intensificação na relação com os conflitos abertos que tivemos na qualidade das cruzadas morais e com a implementação das ações de “garantia da lei e da ordem” (GLO). O regime articulou um GLO se bloco e tornou, uma no saída Brasil, de uma extrema parte direita, do quadro cuja geral fórmula de que ação convida para destruição do estado ampliado, para um avesso da hegemonia, para um sexista quadro e de classista guerra apelam social todo o regressista tempo aberta. para um Os discursos estado natural racista, definido pelos preceitos estabelecidos no Velho Testamento, que justificam a guerra cultural e religiosa como pretexto para suas alianças internacionais, seu apoio aos Estados Unidos e a Israel, desde uma visão do tipo “choque das civilizações”. ações de A cruzada poder moral caracterizado tem um como vínculo sendo conforme definida por Achille Mbembe. da estreito ordem com da o quadro de necropolítica, Ao longo da nossa história, o “branqueamento racial”, a modernização autoritária, as cruzadas morais e o golpe militar impulsionavam ciclos de revolução passiva, contrarrevolução, que como em sobredeterminavam 1964. Neles, a os processos estrutura da de dependência associada fazia parte da construção de longa duração do bloco histórico. No presente, o quadro é de subordinação e alinhamento transnacional mais direto, via a face bélica norte-americana, via a face corporativa transnacional e via a face chinesa de recomposição de funções na divisão internacional da produção e das cadeias mundiais de produtos. Neste quadro, a pandemia se soma, interliga o quadro situacional como crise da globalização e como crise da biosfera. O elemento biológico se inscreve nas relações de força através das lutas e disputas orgânicas de longa duração e conjunturais de curta duração, relacionando e estabelecendo atravessamentos de disputa hegemônica que, iniciadas no plano moral da moeda e a da fé, relacionam-se com o plano mais geral da materialidade dos modos de sobrevivência, relacionando a Guerra social e a necropolítica com a contaminação e a morte pela COVID-19. A operação ideológica da extrema direita é combinar a aceleração da guerra de tipo colonial e sexista que travam contra as classes populares e a democracia, com o acelerador seletivo ativado pela força da COVID-19. Na combinação de uma retórica que minimiza o impacto pandemia, passando pela tentativa de lhe atribuir uma origem no poder “amarelo-vermelho” da República Popular da China, chegam ao discurso da necessidade de convocar para uma luta pela economia como o centro de tudo, manejando o desespero popular e alimentando a frieza de um raciocínio “social- darwinista”. Convidando para sair do isolamento, defendendo a lógica da contaminação “de rebanho” e um remédio miraculoso, a cloroquina, combinam o fetichismo da moeda e a reificação da consciência com o apelo às armas. A morbidez extrema se amplia, como previsto por Gramsci, quando do prolongamento da crise orgânica, presa entre as temporalidades passadas e um futuro paralisado num presente catastrófico. Vivemos sob o signo do abandono da hegemonia que parece se ampliar com esta soma do pandemônio neoliberal, da necropolítica, com a virulência da pandemia no plano objetivo da contaminação. A contaminação do ódio de classe, raça e sexo são mobilizadas para a “guerra cultural” travada explicitamente em nome de derrotar estratégias ditas como sendo derivadas do pensamento de Antonio Gramsci e de Paulo Freire. Tal quadro se desenvolve em paralelo ao processo de contaminação pelo vírus, na chave do mecanismo do “negacionismo”. Negar as evidências históricas de maneira exaustiva é uma prática da extrema direita, que tem como doutrina a pobreza de ideias dos adeptos do chamado “olavismo”, cuja orientação parece ser a de desenvolver um conjunto de operações ideológicas que atravessam e fazem uma colagem de máximas discursivas reacionárias, cruzando um conjunto de enunciados que circulam e coesionam uma base social presente nos aparelhos de hegemonia. Encontramo-nos diante de um tipo de técnica que apela todo o tempo para a passagem do sentimento de ódio ao ato de destruição, movida pela pulsão de crueldade e pelo fascínio pela destruição e morte do outro, ou seja, desde os fantasmas que habitam a falsa consciência alienada, cuja base é a negação do caráter devastador do capitalismo na forma tardia do neoliberalismo e da globalização. Desta forma, é montado um quadro de um caos continuado no qual fica difícil desvendar e definir as tarefas políticas exigidas nos campos diferenciados e relacionados dos processos orgânicos materiais, nunca, sociais, exigem a culturais, formação ecológicos de uma e biomédicos, outra base que, intelectual mais e do que moral, de conhecimento, apoiada num novo boco social e técnico, que nos retire do cenário de catástrofe, ainda ordenado pelo elo entre necropolítica e negacionismo, lançando-nos no abismo de um genocídio ampliado. Parece que o Brasil é hoje o laboratório do modo mais nefasto de se lidar com as especificidades da combinação entre crise orgânica e mutações na biosfera. Parece-nos que acontecimento a pandemia inaugural dos da COVID-19 desafios se próprios configura do século como XXI, que um nos afetam como sociedades e como espécie. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. BIRMAN, Joel. Genealogia do narcisimo. São Paulo: Instituto Langage, 2019. COUTINHO, Carlos Nelson. A época neoliberal, revolução passiva ou contrarreforma. Novos Rumos, Marília, v. 49, n. 1, p. 117-126, jan./jun. 2012. GILL, Stephen. Global Political Economy in the 21st Century: Towards a Critical Research Agenda. Disponível em: https://www.youtube.com/watch? v=v6hOKMViVMA. Acesso em: 24 maio 2020. HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008. LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale. Dicionário Gramsciano. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017. MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018. PORTANTIERO, Juan Carlos. Gramsci y el análisis de conyuntura (algunas notas). Revista Mexicana de Sociología, v. 41, n. 1, p. 59-73, jan./mar. 1979. Disponível em: https://elpaginaslibres.files.wordpress.com/2012/10/gramsci-y-el- anc3a1lisis-de-coyuntura2.pdf. Acesso em: 24 maio 2020. NOTAS 78 | Professor do Programa de Pós-Graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos (PPDH) do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos – Suely Souza de Almeida – da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEPP-DH/UFRJ). A morte como projeto 79 VICTOR LEANDRO CHAVES GOMES O Brasil está doente. Sem uma política pública unificada para o enfrentamento da pandemia da COVID-19, colecionamos índices crescentes de mortalidade. deflagração questionar da as O presidente pandemia no orientações da país, da República, optou por Organização Jair não Bolsonaro, seguir Mundial da os desde a protocolos Saúde (OMS). e Tal conduta colocou o Brasil no seleto grupo de países que rechaçam não apenas a gravidade, mas também o enorme potencial destrutivo da pandemia. Ao que parece, todos estão autorizados a seguir somente aquilo que o presidente acredita. Cria-se uma realidade particular, de modo que todos passem a habitá-la e onde “a opinião é tão enraizada e difundida que, ao se dizer a verdade, não se consegue crédito”. Lembrando que “na política de massa, dizer a verdade é precisamente uma necessidade política” (GRAMSCI, 2000, p. 224-225). Propaga-se no país um obscurantismo obtuso, um anticientificismo, que possibilita a disseminação de mentiras em larga escala. Mentiras que vão pautando o debate público acerca da pandemia. Um exemplo é a obsessão de Bolsonaro no terapêutica imposição no de Imunologia, uso da combate tal cloroquina/hidroxicloroquina à COVID-19. procedimento baseando-se em Não médico. evidências há A concluiu recomendação medicamento diferentes de estudos uso deste mostram não haver amparo que acerca “ainda na benefícios para Brasileira da é precoce os visto pacientes a de utilização COVID-19, para estratégia científico Sociedade recentes cloroquina/hidroxicloroquina, como da a que que utilizaram com hidroxicloroquina”. efeitos adversos graves E continua, que devem “trata-se ser de levados um medicamento 80. em consideração” Contrariar o consenso científico e se recusar a aprender com as experiências bem-sucedidas de outros países no enfrentamento da doença não são apenas condutas questionáveis, mas potencialmente mortíferas. Ao longo dos anos, em razão da hegemonia neoliberal, vários sistemas públicos de saúde pelo mundo foram sendo progressivamente destruídos e inviabilizados. No Brasil, claro, o roteiro não foi diferente. Apoiando-se em um panorama desolador de ódio generalizado à política, bem como de uma visão de mundo antirracional, agressiva e rancorosa, o neofascismo brasileiro — batizado de bolsonarismo —, é “totalmente identificado com o neoliberalismo, e tem por objetivo impor uma política socioeconômica favorável à oligarquia, sem nenhuma das pretensões ‘sociais’ do fascismo antigo” (LÖWY, 2020). Ou seja, o governo Bolsonaro, assim ainda como a mais sua as condições, a coronavírus, condução nossas crise trouxe política no combate à pandemia, escancarou profundas sanitária desigualdades decorrente consequências da trágicas, estruturais. disseminação sobretudo para Nestas do as novo camadas mais vulneráveis da população. Na mesma América linha Latina, de reflexão, Pierre Salama, o economista considera francês, que “o especializado Brasil tornou-se em um laboratório inenarrável. Nas experiências de laboratório se usam animais. Um rato, humanos. uma Se criminoso picada; ele morre considerarmos de 81. guerra” a ou não. pandemia Trocando Mas uma em não guerra miúdos: são ratos, [...] Bolsonaro é genocida. Basta um são seres um recordarmos do tratamento irresponsável de uma pandemia mortífera ao denominá-la “gripezinha”; medicamentos brasileiro em da supostamente aceitar as constante milagrosos; medidas de da difusão forte de mentiras resistência distanciamento social, do sobre governo que obteve resultados expressivos pelo mundo na contenção do contágio; bem como do 82 absoluto desprezo de Bolsonaro perante o gigantesco número de mortes que assolam o país. A despeito de tudo isso, o governo tem, sim, uma prioridade: se proteger. Bolsonaro agentes editou públicos indiretamente, governos e a Medida por com ação a e Provisória por omissão pandemia. entidades privadas, 83 (MP Ainda lançou 966/2020) em atos mais, a que anistia os direta ou relacionados, OMS, recentemente em conjunto uma com plataforma de cooperação internacional para acelerar o desenvolvimento de uma vacina e 84. de remédios eficazes no combate à pandemia Contudo, em função dos permanentes constrangimentos internacionais e dos embates promovidos por Bolsonaro, que inclusive resultaram na demissão de dois ministros da Saúde em plena pandemia, o Brasil sequer foi convidado para participar da iniciativa. A nova diretriz da diplomacia brasileira, em comunhão com as posturas de extrema direita da Hungria e dos Estados Unidos, passou a ver organismos constituídos por representantes de diversas nações como uma ameaça à soberania nacional. Diante estaduais limitadas do e total os desamparo municípios condições bolsonarista nada de pode da parte passaram que ser do a Executivo lutar dispunham. tranquilo. É contra federal, a governos pandemia Mesmo essencial os assim, (e no com as Brasil estratégico) que prevaleça o caos. Bolsonaro, pois, tensiona incessantemente, estabelecendo um conflito aberto contra as autoridades sanitárias, govenadores e prefeitos, ao fazer ameaças caso não haja a abertura imediata do comércio no país. Em videoconferência com empresários, o presidente afirma que “o Brasil está quebrando, e depois que quebrar não é como alguns dizem que a economia recupera. Não recupera. Vamos ser fadados a viver como um país de miseráveis. O caos se fará evidente planeta. lockdown 85. presente” impacto No é o caminho do fracasso, vai quebrar o Brasil. O Ninguém econômico entanto, da em sã consciência pandemia, especialmente no não pode apenas momento no desmerecer Brasil, singular e mas difícil o no que vivemos, é imperioso responsabilidade priorizar primeira de e um preservar as presidente vidas da humanas. República é A com a integridade e bem-estar do seu povo. Não se pode governar somente para os seus eleitores. Bolsonaro Muito Agir jamais pelo assim terá a contrário. é sintoma grandeza No que de uma moral enorme necessária depender dele, miséria para fará cognitiva entender de tudo e isso. para a concretização da sua profecia genocida. Inclusive, retardar deliberadamente o repasse direto do socorro financeiro aos cofres dos governos estaduais e 86. municipais para o enfrentamento da pandemia A situação brasileira diante dessa crise sanitária mundial é terrível. A enfermidade nacional é seríissima, mas se engana quem acha que a culpa recai exclusivamente sobre a COVID-19. O país padece de um mal tão grave quanto a pandemia, propagador violência e de que é ser conduzido obscurantismo, almeja a morte por um desinformação, como projeto. Entre governo neofascista, intolerância, a proteção exclusão, da vida dos brasileiros e a saúde financeira do empresariado, Bolsonaro prontamente escolheu a segunda opção. O fascismo, em suas diferentes formas e manifestações, precisa ser combatido sempre. Calar-se diante do que se vive hoje no Brasil é ser cúmplice dessa barbárie inominável e, portanto, conivente com tal política genocida. REFERÊNCIAS GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. LÖWY, Michael. Isto Se Chama Genocídio. 28 abr. 2020. Disponível https://aterraeredonda.com.br/isto-se-chama-genocidio/. maio 2020. Acesso em: em: 18 NOTAS | 79 Professor de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenador do Laboratório de Estudos em Política Internacional (LEPIN/UFF). | 80 Parecer Científico da Sociedade Cloroquina/Hidroxicloroquina para Brasileira o de Imunologia tratamento da (SBI) sobre COVID-19. a utilização 18 maio da 2020. https://sbi.org.br/2020/05/18/parecer-da-sociedade-brasileira-de-imunologia-sobre-a-utilizacao-dacloroquina-hidroxicloroquina-para-o-tratamento-da-covid-19/? fbclid=IwAR3yhxGIROvF4BNMruTttuwpqHwklA7AhjT5x5YB2wxitg4QXKQoJNiW9FY. Acesso em: 18 maio 2020. | 81 “Estamos pandemia. 14 diante abr. de uma 2020. nova grande transformação”, diz economista francês sobre impacto da https://oglobo.globo.com/mundo/estamos-diante-de-uma-nova-grande- transformacao-diz-economista-frances-sobre-impacto-da-pandemia-24369511 [grifos do autor]. Acesso em: 18 maio 2020. 82 | “E daí? Eu sou Messias, mas não faço milagres”. 01 maio 2020. https://istoe.com.br/e-dai-eu-sou- messiasmas-nao-faco-milagres/. Acesso em: 18 maio 2020. | 83 MP isenta agente público por ações e omissão no combate à pandemia. 14 maio 2020. https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-05/mp-isenta-agente-publico-por-acoes-eomissao-no-combate-pandemia. Acesso em: 18 maio 2020. | 84 Busca global por uma vacina contra a COVID-19. Sem o Brasil. 05 maio 2020. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/05/05/A-busca-global-por-uma-vacina-contra-acovid-19.-Sem-o-Brasil. Acesso em: 18 maio 2020. | 85 “Agora é guerra”: Bolsonaro faz terrorismo e anuncia caos, saques, miséria. 14 maio 2020. https://noticias.uol.com.br/colunas/balaio-do-kotscho/2020/05/14/bolsonaro-faz-terrorismo-eanuncia-quebradeiras-caos-saques-miseria.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 18 mai. 2020. 86 | Estados acumulam prejuízos com atraso na sanção de Bolsonaro a socorro financeiro. 14 maio 2020. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/estados-acumulam-prejuizos-com-atraso-nasancao-de-bolsonaro-a-socorro-financeiro.shtml. Acesso em: 18 maio 2020. Revolução-restauração em tempos de pandemia 87 LUCIANA ALIAGA No dia 22 de maio de 2020, foi divulgada na íntegra a transcrição do vídeo da reunião ocorrera há ministerial exatos 30 do governo dias atrás, do no dia presidente 22 de Jair 88. abril Bolsonaro, A que transcrição da reunião foi feita pelo Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal para servir como possível prova da tentativa de interferência do presidente da República ministro da em investigações Justiça, Sérgio da Moro, Polícia no dia Federal, em que acusação anunciou feita seu pelo pedido ex- de demissão, 24 de abril de 2020. Todos esses fatos ocorreram em meio a três grandes crises no Brasil: uma crise econômica estrutural, de proporções internacionais; uma crise sanitária, causada pela pandemia da COVID-19; e uma crise menos, política, desde isto 2013, é, com uma as crise grandes de hegemonia manifestações que de se rua arrasta, e a pelo posterior deposição da presidenta da república Dilma Rousseff, em 2016. As três crises não encontram condições de solução, mas de profundo agravamento no governo de Jair Bolsonaro. No dia da referida reunião ministerial, a COVID-19 já havia causado 2.917 óbitos no reunião, Brasil, 21.048 um vidas mês já depois, haviam isto sido é, no dia perdidas da para divulgação a 89 doença, pública da indicando uma rápida e aguda curva crescente, acompanhada por um caos aberto no sistema público de saúde e um número de mortos tão alto que os enterros começaram estranheza, a ser feitos contudo, que em esse valas comuns contexto em 90 Manaus-AM. dramático não tenha Causa ocupado nenhum pequeno ponto na pauta da referida reunião, que nenhum ministro ou o próprio qualquer presidente preocupação da república com esse tenha cenário de demonstrado crise minimamente humana e social. Pelo contrário, o tema da pandemia da COVID-19 no Brasil aparece, por exemplo, na fala do ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, como oportunidade 91 Diz o ministro: para operar uma ampla desregulamentação ambiental. Nós temos a possibilidade nesse momento que a atenção da imprensa tá voltada exclusiva... quase que exclusivamente pro COVID, e daqui a pouco para a Amazônia, o General Mourão tem feito aí os trabalhos preparatórios para que a gente possa entrar nesse assunto da Amazônia um pouco mais calçado, mas não é isso que eu quero falar. A oportunidade que nós temos, que a imprensa não está... Tá nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação, todas as reformas que o mundo inteiro nessas viagens que se referiu o Onyx certamente cobrou dele, enquanto cobrou estamos do Paulo nesse [...] Então momento de pra isso precisa tranquilidade no ter um esforço aspecto de nosso aqui cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação regulam... é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos. (DITEC-INSTITUTO NACIONAL DE CRIMINALÍSTICA, 2020, p. 19). Diante deste quadro de profunda crise humanitária e total ausência de políticas públicas federais para enfrentamento da pandemia, mais que isso, pela total insensibilidade não apenas do presidente da República, mas do conjunto de seus ministros em relação às mortes de milhares de cidadãos brasileiros, nos perguntamos pelo caráter e pelos objetivos deste governo. Parece urgente uma caracterização não apenas do contexto de crise, mas das respostas que são dadas ou omitidas a esta crise. Além da atuação destruidora do conjunto dos ministros, que devastam suas pastas, como é o caso do ministro do meio ambiente citado acima, cuja luta se dedica a desregulamentar a proteção da Amazônia contra o desmatamento, ou a ministra da mulher que negligencia a saúde e as vidas das mulheres em nome da moral cristã, ou o ministro da educação que desmonta o seu ministério e busca intervir arbitrariamente nas Instituições Federais de 92 Ensino, a atuação individual de Jair Bolsonaro na crise sanitária — desrespeitando o isolamento social, deixando de usar máscara, 93 — causando aglomerações e conclamando as pessoas a voltar ao trabalho está aprofundamento ainda mais a crise humanitária com milhares de pessoas mortas. A estratégia diminuirá da “imunidade crescentemente de seu 94 rebanho”, poder de que infecção postula à que medida a que doença 70% da população seja infectada, implícita nas posições de Bolsonaro, não leva em conta o limite de leitos de UTI e respiradores, capazes de salvar vidas, caso haja um número muito grande de casos graves ao mesmo tempo, levando a um enorme número de mortes — o que, de fato, estamos presenciando neste momento. Este comportamento genocida — que, grosso modo, quer dizer: “deixem que morram os mais fracos” — não pode, contudo, ser explicado a partir de qualquer forma de demência ou déficit de inteligência, mas sim corresponde especificamente a uma política de eugenia, tal como ocorreu na Alemanha nazista. Importante notar que a insensibilidade diante da morte de milhares de pessoas e a violência — verbal e física — é marca não apenas do governo de Jair Bolsonaro, mas também de seus apoiadores. Está se criando no Brasil, a partir do fomento da violência “movimento-milícia”, trabalhadoras, apoiadas antidemocrática, supracitada, que Jair que pelo reúne na está Bolsonaro próprio massas ideologia se da de presidente classe expõe média extrema 95 armando. claramente Na o da república, e das direita, reunião objetivo um classes de cariz ministerial de armar a população contra as políticas de isolamento dos governadores e prefeitos: O que esses filha de uma égua quer, ô Weintraub, é a nossa liberdade. Olha, eu tô, como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. E se eu fosse ditador, né? Eu queria desarmar a população, como todos fizeram no passado quando queriam, antes de impor a sua respectiva ditadura. Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não da pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais. É. Quem não armamento, governo aceitar a liberdade errado. minha, de Esperem as minhas expressão, pra vinte bandeiras, livre e mercado. dois, né? O Damares: Quem seu família, não Álvaro aceitar Dias. Deus, isso, Espere o Brasil, está no Alckmin. Espere o Haddad. Ou talvez o Lula, né? E vai ser feliz com eles, pô! No meu governo tá errado! É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado. E que cada um faça, exerça o teu papel. Se exponha. Aqui eu já falei: perde o ministério quem for elogiado pela folha ou pelo globo! Pelo antagonista! Né? Então tem certos blogs aí que só tem notícia boa de ministro. Eu não sei como! O presidente [...]. (DITEC-INSTITUTO NACIONAL DE CRIMINALÍSTICA, 2020, p. 57-58). A substituição da política pela violência é de fato uma das características mais marcantes da crise de hegemonia em sua fase mais aguda. Nestas situações, de acordo com Antonio Gramsci: Ocorre quase acompanhado motivos sempre que por movimento um concomitantes: um por movimento “espontâneo” reacionário exemplo, uma da crise ala das direita classes da econômica subalternas classe dominante, determina, por um seja por lado, descontentamento nas classes subalternas e movimentos espontâneos de massa, e, por outro, determina complôs de grupos reacionários que exploram o enfraquecimento objetivo do Governo para tentar golpes de Estado. (Q. 3, §48, p. 328). Deste modo, diante de uma crise econômica prolongada, da insatisfação das classes populares sem uma direção consciente que sintetize e canalize as reivindicações econômico-corporativas em pautas políticas capazes de criar um movimento golpes de popular Estado, aprofundar sua organizado oportunidades influência na e para política. coeso, que A abre-se grupos solução a possibilidade reacionários para a crise, de consigam portanto, quando não se equaciona em sentido progressista, popular, pode vir a ser resolvida regressivamente, pelo alto, isto é, pode ocorrer por meio de um golpe de Estado aberto ou por meio de um líder carismático, sem ruptura formal das instituições liberais, mas com caráter autoritário. No caso da Itália, o fascismo foi, na leitura gramsciana, uma solução pelo alto para a resolução da crise de hegemonia (cf. FELICE, 1978), que se arrastava desde, pelo menos, o final da Primeira Guerra. Há uma notável similaridade política e ideológica entre os fenômenos do Nazismo na Alemanha e do Fascismo na Itália com diversos eventos sócio- políticos em nosso contexto brasileiro atual. Em função disto, vários autores vêm caracterizando o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro como um governo enquanto fascista outros ou neofascista autores (cf. são BOITO JR, contrários 2019; a LÖWY, esta 2020), aplicação na contemporaneidade (cf. BORON, 2020). Nossa hipótese para responder a esta questão social e consiste ascensão de na afirmação formas de que autoritárias existe de uma poder relação e que entre essas crise formas autoritárias possuem similaridades em função de serem casos particulares da dialética histórica revolução-restauração. Nos Cadernos “não linear e do cárcere, intimamente Gramsci, a partir contraditória do da constatação desenvolvimento da natureza capitalista” (ROCCU, 2017, p. 545-546), formula uma “teoria” do movimento histórico que se define por períodos de expansão e inovação, que são seguidos de períodos de reação e regressão, que ele nomeará como dialética revolução- restauração. A concepção de revolução-restauração, neste sentido, ganha generalidade como “forma” do movimento histórico que encontra seu caso mais exemplar na Revolução francesa, cujo progresso ocorreu por fases de inovação seguidas por fases de restauração no longo período que vai de 1789 a 1871 (cf. Q. 10I, § 9, p. 1226; Q. 10II, § 41.XIV, p. 1324 e Q10II, § 61, p. 1361). Contudo, diferente conhecido essa no dialética processo como inovação-conservação de constituição Risorgimento. Neste do caso, o se concretizou Estado unitário momento da de na modo Itália, revolução e da expansão progressista da classe que faz avançar toda a sociedade é limitado e simultâneo ao da restauração, isto é, uma revolução sem revolução. Este caso particular restauração de ocorre concretização quando, no caso histórica da Itália da dialética risorgimental (e revolução- também no período do dirigidas fascismo), pelas a classes gestão da crise dominantes de e a um manutenção bloco da histórico ordem já são existente anteriormente. Assim, ao invés de uma nova hegemonia se afirmar, são as velhas forças que se vestem de novas roupagens e que assimilam os grupos adversários mais ativos (cf. Q. 1, § 44, p. 50). A revolução-restauração é, portanto, um movimento histórico passível de generalização, que se concretiza de formas diversas em casos particulares, os quais assumem a forma política de acordo com as condições do contexto histórico, social realização. Nazismo Neste e do respectivamente), como formas e político, sentido, isto mesmo políticas uma propomos Fascismo e é, (na o forma compreender Alemanha Bonapartismo específicas da histórica e na (na dialética os fenômenos Itália França de particular do século século do XX, XIX), revolução-restauração, que podem ser definidas como respostas autoritárias às crises de hegemonia não resolvidas a partir de uma solução popular, democrática. No Brasil estamos imersos em uma profunda crise de hegemonia — uma crise orgânica —, que se expressa ao nível das instituições como uma crise da democracia liberal, mas não podemos dizer que já estamos vivendo sob um regime autoritário, a despeito de existirem movimentos reacionários cada vez mais influentes na política. Neste sentido, propomos a utilização provisória do termo “Bolsonarismo” para a definição da forma política atual da revolução-restauração no Brasil. O Bolsonarismo — diferente da personalidade individual de Jair Bolsonaro — deve ser entendido como um movimento reacionário e de massas (que congregam classes médias e classes trabalhadoras), incitado pela propagação das fake news e que emerge em função de uma crise política, econômica, social e ideológica, cujas origens podem ser identificadas em 2013. Não é possível dizer, contudo, que Jair Bolsonaro tenha um projeto de Estado — diferente de Hitler e Mussolini —, mas, ao contrário, o que se torna cada vez mais evidente é que ele possui exclusivamente um projeto individual reeleição (ou em familiar) 2022. de Para poder e manter claramente sua base está social em é campanha de para fundamental importância conservar o movimento-milícia mobilizado e, se possível, fazê- lo crescer. No afã de se manter no poder, equilibrando-se de crise em crise institucional causadas por ele próprio ou por seus ministros, vai aprofundado a crise de hegemonia, aprofundando as rachaduras no interior do bloco no poder e diminuindo a possibilidade de construção de consensos e de enfrentamento da pandemia. Bolsonaro, no movimento de agarrar-se ao poder, aprofunda, permitindo e mesmo portanto, a crise contribuindo para política, morte econômica de milhares e sanitária, de pessoas, despertando forças reacionárias que não será capaz de controlar. REFERÊNCIAS BOITO JR., Armando. O neofascismo já é realidade no Brasil. O Brasil de Fato, 19 mar. 2019. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/03/19/artigo-or-o-neofascismo-ja- e-realidade-no-brasil. Acesso em: 24 maio 2020. BORÓN, erro Atilio. Caracterizar o governo de Jair Bolsonaro como “fascista” é um grave. O Brasil de Fato, 02 jan. 2019. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/01/02/artigo-or-caracterizar-o- governo-de-jair-bolsonaro-como-fascista-e-um-erro-grave/. Acesso em: 24 maio 2020. DITEC-INSTITUTO Disponível NACIONAL DE CRIMINALÍSTICA. Laudo, n. 1242 de 2020. em: https://assets.documentcloud.org/documents/6923169/Decis%C3%A3o- de-Celso-de-Mello-que-liberou-v%C3%ADdeo-de.pdf. Acesso em: 22 maio 2020. FELICE, Franco. Revolução passiva, fascismo, americanismo em Gramsci. In: FERRI, Franco. Política e história em Gramsci, vol. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere. Edizione critica dell’Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 2007. LÖWY, Michael. O neofascista Bolsonaro Boitempo. diante da pandemia. Disponível Blog da em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/04/28/michael-lowy-o- neofascista-bolsonaro-diante-da-pandemia/. Acesso em: 24 maio 2020. ROCCU, Roberto. Passive revolution revisited: From the Prison Notebooks to our “great and terrible world”. Capital & Class, v.41, n.3, 2017. NOTAS 87 | Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (DCS/PPGCPRI-UFPB). Secretária da International Gramsci Society Brasil (IGS-Brasil). 88 | A divulgação do vídeo da reunião foi autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello. A íntegra da transcrição do vídeo foi amplamente divulgada pela mídia e pode ser baixada neste link: https://assets.documentcloud.org/documents/6923169/Decis%C3%A3o-de-Celsode-Mello-que-liberou-v%C3%ADdeo-de.pdf. Na bibliografia final o documento está registrado como DITEC-INSTITUTO NACIONAL DE CRIMINALÍSTICA, 2020. | 89 Dados do Ministério da Saúde. Conferir “Óbitos acumulados pela COVID-19 por dados de notificação” em: https://covid.saude.gov.br/. 90 | Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/com-enterros-em-valas-comuns-por- crise-do-coronavirus-manaus-sofre-com-falta-decaixoes,719536c2b907823efd7d11d7720ed70amxxfc3a7.html. Acesso em: 24 maio 2020. 91 | As referências que aparecem nas falas dos presentes na reunião tangenciam a pandemia da COVID-19 para tratar de outros temas, frequentemente se referem à crise econômica aprofundada por ela, bem como o cenário econômico posterior. Mesmo Nelson Teich, então ministro da saúde, numa breve fala, se refere ao problema financeiro que os hospitais terão com a pandemia, bem como ao colapso do sistema hospitalar no cenário pós-pandemia (Cf. DITEC-INSTITUTO NACIONAL DE CRIMINALÍSTICA, 2020, p. 34-35). Damaris Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foge à regra quando demonstra preocupação com os efeitos da pandemia no âmbito dos “costumes”. Ela diz “será que vão querer liberar que todos que tiveram coronavírus poderão abortar no Brasil?” (Cf. DITEC-INSTITUTO NACIONAL DE CRIMINALÍSTICA, 2020, p. 46). Mas, de modo geral, nenhum ministro ou o próprio presidente da República trata de políticas para enfrentamento da pandemia e nem do crescente número de mortes. | 92 São muitas as denúncias contra a arbitrariedade do MEC, ver, por exemplo, ANDES: http://www.andes.org.br:8080/conteudos/noticia/mEC-muda-criterio-de-escolha-de-reitores-eataca-autonomia-universitaria1/page:6/sort:Conteudo.created/direction:DESC. Acesso em: 24 maio 2020. 93 | A atuação do presidente é sistemática e frequente para romper o isolamento social: ver, por exemplo, https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/23/bolsonaro-passeia-por-brasilia-e- provoca-aglomeracao.ghtml; e também: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/bolsonaro- provoca-nova-aglomeracao-diz-que-brasil-saira-mais-forte-da-pandemia-e-fala-em-resgate-devalores.shtml. Acesso em: 24 maio 2020 | 94 Sobre isto ver: http://coronavirus.butantan.gov.br/ultimas-noticias/o-que-e-imunidade-de- rebanho. 95 | Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/organizadora-de-acampamento- bolsonarista-diz-a-site-que-grupo-esta-armado/. Acesso em: 24 maio 2020. Precarização do trabalho em tempos 1996 de pandemia da COVID- 97 PERCIVAL TAVARES DA SILVA É um grande desafio, diante da crise atual, falar do mundo do trabalho. Não é nada fácil traduzir a situação sem cair no pessimismo. Prisioneiro do fascismo manter italiano, o Antonio “pessimismo Gramsci de (2005, inteligência” p. 382) ensina conjugado ao que é preciso “otimismo de vontade”. O Papa Francisco nos alertou, na homilia em 06 de maio de 2020, a “abrir os olhos para ver as trevas que está dentro de nós e assim chegar à luz”. A Modernidade, emancipatórias as num passado conquistas da recente, ciência, saudou as com novas razão como tecnologias. Elas acabariam com a fome, a miséria, as doenças, causadoras das guerras. Mas essas “conquistas”, não colocadas a serviço da vida e da natureza, trouxeram consigo a barbárie sem precedentes. Desde então, o trabalho nunca esteve tão desvalorizado, mas também nunca provou ser tão importante como hoje, em plena pandemia da COVID-19. A humanidade vive o 1º de Maio de 2020 em crise civilizatória. A COVID-19, associada aos interesses do capital, dissolve a vida; as fake news globalizadas obscurecem a verdade destruindo as relações sociais; o capitalismo pandêmico de caráter neoliberal solapa direitos do trabalho, fomenta a “escravidão digital”, exacerba a exploração da mão de obra uberizada e destrói a mãe natureza. Javé, “Aquele que é”, assim como há mais de 3 mil anos no Egito, diria: “Tenho pena deste povo que sofre em meio às pandemias contemporâneas, pois não tem onde apoiar, abandonado que está pelo Estado e pelos poderes constituídos”. se Esse sistema necrófilo desvaloriza o trabalho para se alimentar do suor e sangue da classe trabalhadora. Incrédulos, envenenados pelas fake news que desavisam da letalidade do novo coronavírus, arrastam consigo inocentes- oferendas ao altar do Moloque capitalista. Como destaca Ricardo Antunes, em entrevista ao Site Democracia e Mundo do Trabalho em Debate em maio de 98, 2020 a pandemia sistema de da COVID-19 metabolismo destrutivo”. Destrutivo, “não antissocial do incontrolável, é um elemento capital o de capital desconectado caráter precisa do profundamente criar mais e mais dinheiro, mais lucro e mais apropriação privada da riqueza. Por outro lado, a forçada quarentena globalizada, ao paralisar o sistema, resgata a importância do Trabalho. Para desespero da classe dominante, fica escancarado que, sem trabalho, o capital não se valoriza, não produz riqueza. Mas, a história de luta da classe trabalhadora ensina que o capital sabe enfrentar pato”, essas denuncia situações. que as O enfrenta jargão retrógrado, piorando ainda “não mais vamos as pagar condições o de trabalho. Como sabe que “sem trabalho não há riqueza”, o capitalista quer “um trabalho cada vez mais desprovido de direitos, mais informal, funcionando como um apêndice de uma máquina que domina o mundo”, diz Antunes na mesma entrevista ao Site Democracia e Mundo do Trabalho em Debate. As recentes contrarreformas no Brasil provam isso. Diante aprender deste com trabalhadores caos, a de não resta outra própria história Chicago, Estados saída do 1º à de Unidos, classe trabalhadora Maio. foram à senão Determinados, luta. os Organizaram a greve do 1º de Maio de 1886 para exigir a redução da jornada de trabalho de 16 para 8 horas. A repressão foi brutal, deixando muitos feridos e mortos; seus líderes foram julgados injustamente por uma bomba que explodiu durante a greve: cinco deles foram condenados à forca (um deles suicidou) e três outros à prisão perpétua. Sete anos depois, em 1893, foram inocentados e reabilitados pelo governador de Illinois, que confirmou ter sido o chefe de polícia que encomendara o atentado para justificar a repressão que se seguiu. E o 1º de Maio foi proclamado pela Internacional Socialista como o dia internacional de luta por condições de trabalho. Isto após violenta repressão policial à manifestação do 1º de Maio no norte da França em 1891, que resultou governos na pelo morte mundo de dez afora, a manifestantes. começar pelos Assim, Estados a partir Unidos, de se 1890, viram obrigados a reconhecer a jornada de oito horas de trabalho. A principal reivindicação da Primeira Greve Geral no Brasil, em 1907, foi a redução da jornada de doze a quatorze horas para oito horas de trabalho. E foi reduzida para dez horas. Em 1932, Getúlio Vargas institui a jornada de oito horas e a Constituição Federal de 1988 aprova: “a duração do trabalho normal para os trabalhadores urbanos e rurais não será superior a oito horas diárias nem a quarenta e quatro horas semanais” (BRASIL, 1988, art. 7º, XIII). Hoje, 134 anos depois de 1886, com a reconfiguração do trabalho, a classe trabalhadora do mundo vive tempos de pandemia do capitalismo. A curto prazo, com a pandemia da COVID-19 associada às mudanças tecnológicas e ao Estado que se desobriga de cuidar dos cidadãos, a tendência é do crescimento da nefasta escravidão digital; o aprofundamento do trabalho precário e informal, do trabalho uberizado sem qualquer proteção; a explosão de desempregados e desalentados. Mas esta ciranda de morte precisa ser quebrada. Mais do que nunca a classe trabalhadora precisa do seu “espírito popular criativo” (GRAMSCI, 2005, p. 129) para reinventar o mundo. E aqui o papel do feminino, dos excluídos e marginalizados será fundamental para reverter a situação. Karl Marx e Friedrich Engels (2010) são incisivos diante da espoliação do capital, “trabalhadores do mundo, uni-vos”. E Rosa de Luxemburgo (1916) decreta “socialismo ou barbárie”, pois não há outra saída para a humanidade. Apesar de não haver ilusão quanto à vontade política do Estado — “o Estado do nosso tempo é calibrado, controlado, comandado e impulsionado pelos interesses das grandes corporações sob hegemonia do capital financeiro”, diz Antunes na entrevista já citada — pelo bem da humanidade e da vida na terra, é preciso pressionar o Estado para exigir dele recursos para o cuidado organizações com do a classe sistema trabalhadora, produtivo e os a proteção empregos. das O empresas lucro não e pode continuar central, pois a economia do capital não visa a saúde, a educação e a previdência públicas, a alimentação. Ela visa a sua mercantilização. Como vemos, entrevista ao Site trata-se, de Democracia e acordo Mundo com do Clemente Trabalho em Ganz Debate Lúcio, em maio em de 99, de “enfrentar o desafio criativo de inventar um novo mundo”, pois, 2020 voltar à “normalidade” depois dessa pandemia é reingressar no mundo que criou esse caos. “Há um alto risco de um mundo ainda mais desigual, com mais pobreza e miséria, com regimes autoritários de diferentes matizes”. O que seria dramático para o mundo do trabalho. “As condições de vida e o meio ambiente serão ainda mais agredidos se vencer a volta ao passado”. E a emergência da catástrofe ambiental será acompanhada de novas crises sanitárias. A humanidade vive um momento excepcional da história, em que pode reinventar seu modo de vida. Tratar o trabalho como dimensão central do desenvolvimento. E na contramão da meritocracia e da competição, buscar o trabalho solidário e cooperativo. Nas palavras de Antunes, na entrevista já referida, reinventar “o trabalho humano como atividade livre, autodeterminada, fundada no tempo disponível contra o trabalho forçado, animalizado, estranhado, que tipifica a sociedade do capitalismo informacional da era digital”. Na contramão dos interesses capitalistas, Clemente Ganz Lúcio coloca, na entrevista ao Site Democracia e Mundo do Trabalho em Debate, que o “novo projeto de desenvolvimento social, econômico, político e ambiental deve visar criar ocupações para todos, com jornada de trabalho reduzida para que todos trabalhem, com renda garantida e ampla proteção social por meio de políticas de educação, saúde, moradia, transporte, segurança, entre outras, universais”. coletivos E “o para incremento produzir o da produtividade bem-estar de deve todos e gerar um ganhos bom sociais modo de coletivamente viver”. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere. Vol. 1: 1926-1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. LUXEMBURGO, In: Rosa. A crise da social-democracia (Brochura de Junius, 1916). LOUREIRO, Isabel (Org.). Rosa Luxemburgo: textos escolhidos. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p.77-100. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. 1. ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2010. NOTAS 96 | Texto publicado originalmente no Blog da Pastoral da Juventude Diocese de Nova Iguaçu, com o título “1º de maio ou barbárie”. Disponível em: http://pjnioficial.blogspot.com/2020/05/1-de-maio-oubarbarie-e-um-grande.html?m=1. 97 | Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e educador popular na Baixada Fluminense (RJ). Pesquisador no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NuFiPE/UFF). 98 | “1º de maio em tempos de pandemia: a mutação do capitalismo e a degradação do trabalho. Entrevistas com Ricardo Antunes, Clemente Ganz Lúcio e José Dari Krein”. Site Democracia e Mundo do Trabalho em Debate, 04 maio 2020. Disponível em: http://www.dmtemdebate.com.br/1o-de-maio- em-tempos-de-pandemia-a-mutacao-do-capitalismo-e-a-degradacao-do-trabalho-entrevistas-comricardo-antunes-clemente-lucio-e-jose-dari-krein/. Acesso em: 06 maio 2020. 99 | “1º de maio em tempos de pandemia: a mutação do capitalismo e a degradação do trabalho. Entrevistas com Ricardo Antunes, Clemente Ganz Lúcio e José Dari Krein”. Site Democracia e Mundo do Trabalho em Debate, 04 maio 2020. Disponível em: http://www.dmtemdebate.com.br/1o-de-maio- em-tempos-de-pandemia-a-mutacao-do-capitalismo-e-a-degradacao-do-trabalho-entrevistas-comricardo-antunes-clemente-lucio-e-jose-dari-krein/. Acesso em: 06 maio 2020. Aspectos da Educação brasileira em meio aos dilemas de um momento dramático 100 RODRIGO LIMA RIBEIRO GOMES Primeiras palavras Dura é a tarefa de escrever um texto breve sobre uma temática complexa, multifacetada calamidade e polêmica sanitária, crise como é a econômica Educação, e em instabilidade um contexto política. de Contudo, este tipo de intervenção se faz necessária para ampliar a massa crítica social pertinente e necessária ao enfrentamento dos graves problemas do momento. Por certo, diversos especialistas e políticos tem se manifestado sobre a questão, consistentes e podem informações ser e posicionamentos encontrados em sites, mídias responsáveis digitais e diversas e mesmo livros eletrônicos produzidos “a quente”. A primeira constatação é a de que a Educação já estava sofrendo com o subfinanciamento, o descaso, quando não ataques diretos oriundos do próprio Ministério da Educação. Tal atitude não se restringe ao campo das difamações. O orçamento global da Educação previsto para o ano de 2020 é o menor, em orçamentária orçamento Tecnológico termos de do 2019 nominais, foi Conselho (CNPq) dos menor do Nacional previsto para últimos que de de cinco nos três anos. anos Desenvolvimento 2020 é menor do A execução anteriores. Científico que o de O e 2016, enquanto a dotação orçamentária da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para 2020 é menor do que a metade do orçamento executado pelo órgão em 2015. Os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico vem sendo contingenciados, 101 em valores que ultrapassam os 80%, desde 2016. O governo Bolsonaro segue e aprofunda a tendência iniciada em 2015, mas introduz como novidade o desprezo aberto pelas instituições públicas representativas da inteligência nacional, através de manifestações retóricas de autoridades governamentais, a começar pelo próprio presidente e seus ministros. Por certo, além dos aspectos ideológicos, isso parece simplesmente refletir a estratégia geral do governo: uma política econômica austera numa profundidade extremamente prejudicial à recuperação econômica da debacle ocorrida em 2015 e 2016, com o intuito “ingênuo” de 102 tornar o Brasil atrativo ao investimento de capital externo. Contudo, as condições gerais do país (queda massiva da renda e elevada informalização do trabalho, endividamento das empresas elevadíssimos à compreensão para os das produção, bases investimentos, ampliação de dessa desemprego e das famílias, crença na suposta aqueles instalada, de emprego e altos financiamento desindustrialização) sobretudo capacidade elevado, níveis com tornam renda. prazo juros difícil “atratividade” longo de do que Algumas a Brasil geram pistas se apresentam: crescimentos elevados nos índices da Bolsa de Valores de São Paulo e lucros recordes dos bancos, num contexto de baixo crescimento e de enormes dificuldades para quase todos os setores da economia. E isto antes da pandemia da COVID-19. : A Educação no governo Bolsonaro Além das medidas que se obediência ao mercado encontram em consonância com as políticas anteriores, o governo Bolsonaro tomou algumas iniciativas próprias, dentre as quais, medidas profissional e que visam tecnológica ampliar (“Novos a matrícula Caminhos”), a nas redes ampliação de do educação acesso à internet por parte das escolas públicas rurais (“Educação Conectada”) e as medidas em programa Nacional alfabetização, de de incentivo à letramento leitura Alfabetização). ou “literacia” doméstica Embora as para medidas (“Conta crianças, relativas pra e ao a mim”, Política letramento tenham polêmicas próprias e algumas críticas quanto à descontinuidade em relação às 103 ações anteriores, parece-me que as políticas que refletem a concepção do atual governo podem ser encontradas no melhor Future-se e no Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares. O Future-se já passou por duas revisões, em razão dos diversos questionamentos aos quais foi submetido, e a última versão foi apresentada na forma de Projeto Ministro-Chefe Consulta também da Pública de Casa aberta apresentou Lei, mediante Civil, entre Onyx 01 problemas e do Despacho Lorenzoni, 24 de janeiro ponto de assinado tendo de vista pelo em 2020. vista Esta jurídico e então uma consulta foi alvo de questionamento judicial, que ainda não teve desfecho (GIOLO, 2020, p. 86- 104. 87) Embora contenha princípios da tecnológico Ainda que sociedade causou significativos proposta e inovação”, tais civil, muita Universidades original, modo sejam como controvérsia, e quais sejam: Institutos a o amplamente Future-se começar Federais e Projeto mantém os desenvolvimento “internacionalização”. aceitos pretende pelo por o “pesquisa, “empreendedorismo” princípios o acréscimos, por parcelas colocá-los manejo do Organizações em prática orçamento Sociais da das (GIOLO, 2020, p. 35-36). Nas diversas autonomia das versões do Instituições Future-se Federais manifestam-se, de Ensino sob Superior o lema (IFES), da uma intenção oposta: “afastar as IFES da dependência do orçamento público, ou melhor, de desobrigar o erário para com o financiamento integral das instituições” (GIOLO, 2020, p. 40). Em um contexto de vigência da Emenda Constitucional 95, de 2016, crescem os temores na comunidade acadêmica de que o orçamento das IFES seja cada vez mais asfixiado, submetendo a orçamentação das Universidades e Institutos Federais ao financiamento empresarial, sujeitando as atividades acadêmicas aos interesses privados. A Future-se última versão do bolsas da CAPES para fala abertamente em concessão preferencial das instituições e pesquisadores que aderirem ao universitária pelo aspecto do programa. Além das restrições financiamento, degradantes, de as à autonomia posições autoridades públicas, do governo algumas federal verdadeiramente sobre a comunidade de docentes e pesquisadores, levantam preocupações em relação às garantias a liberdade de pensamento e de pesquisa, uma vez que o projeto demonstraria “uma tentativa de aparelhamento autoritário com fins, além dos declarados, de expurgo ideológico” (GIOLO, 2020, p. 28). Esta também é a preocupação de Leher, que situa o Future-se numa estratégia de “guerra cultural” a favor do que chama de “ultraneoliberalismo”, cuja vertente pedagógica trabalha com a perspectiva refuncionalização utilitaristas, de das “escolas 105 charter, universidades permanentemente como calibradas uso de 106 vouchers ‘organizações’ pelos não influxos do e gratuitas a e ‘mercado’” (LEHER, 2020, p. 108). Assim sendo, o Future-se teria uma dupla característica: submeter as instituições de ensino, pesquisa e extensão aos interesses de mercado, com a perda de controle sobre seus orçamentos — que passariam a ser geridos por Organizações Sociais, a partir de contratos individuais chancelados pelo Ministério da Educação; e conformar as subjetividades a um novo consenso condizente com competitivo. A as necessidades consequência do projeto, almejada baseadas pela “guerra no individualismo cultural” seria o abandono da “herança do Iluminismo e do uso autônomo e crítico da razão” (LEHER, 2020, p. 108). Neste mesmo Cívico-Militares, contexto que se insere procuram, o Programa conforme o Nacional interesse de das entes Escolas federados em consonância com a ideia, fazer uso de policiais militares e militares da reserva das três Forças Armadas no “auxílio” às atividades pedagógicas e de gestão em escolas públicas que vivenciem condições de “vulnerabilidade”. Como que desconsiderando a competência dos profissionais da Educação, o programa objetiva à “promoção de atividades com vistas à difusão de valores humanos e cívicos comportamentos cidadão em Bolsonaro e para atitudes ambiente planeja estimular do escolar aluno e externo implementar 216 o desenvolvimento a à sua sala escolas formação de de bons integral 107 aula”. O “cívico-militares” como governo até 2023, sendo 54 em 2020, ao custo de R$ 54 milhões, ou seja, um milhão por escola. Um dos argumentos mais comuns em relação à defesa das escolas cívico militares é a tomada como referência das escolas militares do Ministério da Defesa, nas quais um aluno custa, 108 aluno de escola pública regular, em média, três vezes mais do que um ou nas próprias escolas e academias de formação militar. No caso do Programa do governo, propõe-se atingir um número relativamente pequeno funções específicas formação de de alunos, com desviando custos militares adicionais, de suas submetendo os profissionais da área à perda de sua autonomia. O caráter universal da escola pública é perdido em prol de um modelo escolar seletivo na entrada e na 109 permanência dos alunos, portanto, excludente. 19 A Educação no contexto da pandemia da COVID- De acordo Educação, a com Ciência dados e a da Organização Cultura das (UNESCO), Nações 1,198,530,172 Unidas para estudantes a são afetados pela suspensão das atividades escolares, representando 68.5% do total de estudantes matriculados no mundo, com 153 países interrompendo a totalidade das atividades, em 22 de maio de 2020. Em sua maioria, os demais países encontram-se em estágio de retomada parcial, e apenas uns poucos reabriram completamente, como resultado do sucesso no controle da disseminação da COVID-19, ou nem fecharam — Nova Zelândia, Vietnam e Noruega, para o primeiro caso, e Nicarágua, Belarus e Turcomenistão, para 110 o segundo. Neste contexto, as condições para as crianças e adolescentes que enfrentam condições de vulnerabilidades se agravam, seja para aqueles que estão em situação de rua, que sofreram rompimentos familiares e vivem em abrigos oficiais, aqueles que estão sujeitos à violência de adultos durante a quarenta, ou refeições principais adolescentes, que a simplesmente (SILVA; situação tem na escola OLIVEIRA, educativa já é o 2020). espaço Para extremamente onde estas difícil, faz suas crianças e tornando-se inviável durante a pandemia. “A ausência de interação entre estudantes e professores muitas rompe semanas, escolas o não reabrirem. processo será de possível Também se aprendizagem recuperar eleva o o risco e se tempo de a pandemia perdido aumentar durar quando as taxas as de abandono escolar, especialmente entre os alunos de famílias em situação de 111 alta vulnerabilidade”. Somadas à necessidade de suspenção das atividades escolares, temos as incertezas em relação às condições de retorno à “normalidade” no Brasil e as dúvidas ainda maiores em relação ao que será o “novo normal”, uma vez que, 112 em nosso país, a epidemia parece descontrolada. modalidade de ensino ganha relevo e parece Em meio ao caos, uma obter ainda mais espaço: o Ensino à Distância (EAD). Contudo, a modalidade EAD está longe de ser considerada uma unanimidade entre os profissionais da educação, seja no que diz respeito ao seu uso ou não, seja em relação aos graus de utilização da ferramenta. Mesmo numa situação como a chinesa, em que o governo central adotou um esforço nacional de Ensino à distância, intitulado “Suspender as aulas sem parar o aprendizado”, a iniciativa não ocorreu sem dificuldades — que devem ser mais ou menos universais, apesar das dimensões continentais do território especial e da população considerando-se chinesa. Problemas desigualdades de regionais infraestrutura —, — preparação em dos docentes, seleção de conteúdos e métodos de ensino mais adequados, e adoção de rotinas de estudo e aprendizado à distância — tanto para alunos quanto para os professores (ZHANG et al., 2020). Apesar das dificuldades, a implementação do EAD mostra-se atrativa aos setores privado e público, na medida em que a custo-aluno de um e-learning individualizado pode ser três vezes mais barato do que do ensino presencial convencional. Esta atratividade levou à iniciativas de estudos, na Ucrânia, com o intuito de testar possibilidades de implementação de “aprendizado à distância”, de modo sistemático, como política de governo, desde meados da década de 2000. Contudo, as medidas de EAD precisaram ser colocadas em prática, efetivamente, depois da decretação de quarentena pelo governo central ucraniano a partir de 11 de março de 2020, como forma de combate à disseminação da COVID-19. E esta realidade demonstrou um conjunto de possibilidades de aprendizado, na medida em que os estudantes possuem mais tempo para se dedicar, de acordo com suas próprias iniciativas, aos estudos, mas relacionadas somada, também à demonstrou preparação por exemplo, distanciamento social do sistema aos e uma de série ensino problemas do receio da de dificuldades de dar psicológicos doença conta técnicas da tarefa, decorrentes (NENKO; do KYBALNA; SNISARENKO, 2020). Palavras finais O panorama esboçado acima constitui um pequeno apanhado de questões que nos parecem prementes para a compreensão das relações de forças que angústias prepararam abertas prognóstico diante despropositado aceleração pelo do de em tempo o momento advento uma face da situação das histórico atual, pandemia com profundas que somado um tipo a da nossa a um COVID-19. parece instabilidades de crise conjunto como Qualquer inteiramente abertas a de que pela estamos vivendo provoca. O acompanhamento diário do noticiário, que a cada momento parece apontar para um tipo de desfecho radical diferente, só faz aumentar a angústia diante dos diversos níveis de possibilidades de encaminhamentos terríveis. Contudo, setores e a pandemia indivíduos também importantes está, a pelo drama repensarem que suas impõe, forçando convicções, fazendo ressurgir nos discursos políticos certa consciência acerca da importância da garantia de direitos universais poder público, como saúde e educação. Cabe a nós que defendemos a garantia e a expansão desses direitos universais a insistência para que aquela consciência permaneça na ordem do dia em nosso país, mantendo a mobilização permanente contra os retrocessos que se apresentam em nossa esfera política. REFERÊNCIAS CARVALHO, Laura. Valsa brasileira: do boom ao econômico. caos São Paulo: Todavia, 2018. GIOLO, Jaime; autonomia LEHER, das Roberto; instituições SGUISSARDI, federais de Valdemar. educação Future-se: superior e sua ataque sujeição à ao mercado. São Carlos, SP: Diagrama Editorial, 2020. GIOLO, Jaime. SGUISSARDI, O Future-se sem futuro. In: GIOLO, Jaime; LEHER, Roberto; Valdemar. Future-se: ataque à autonomia das instituições federais de educação superior e sua sujeição ao mercado. São Carlos, SP: Diagrama Editorial, 2020. KRAWCZYK, Nora. destruição da Brasil-Estados escola pública. Unidos. In: A trama KRAWCZYK, de Nora relações (Org.) ocultas Escola na pública: tempos difíceis, mas não impossíveis. Campinas, SP: FE/UNICAMP; Uberlândia, MG: Navegando, 2018. LEHER, Roberto. Guerra cultural e Universidade Pública: o Future-se é parte da estratégia SGUISSARDI, de silenciamento. In: GIOLO, Jaime; LEHER, Roberto; Valdemar. Future-se: ataque à autonomia das instituições federais de educação superior e sua sujeição ao mercado. São Carlos, SP: Diagrama Editorial, 2020. NENKO, Yuliia; KYBALNA, Nelia; SNISARENKO, Yana. The COVID-19 Distance Learning: Insight from Ukrainian students. Revista Brasileira de Educação do Campo, Tocantinópolis, v. 5, p. 1-19, 2020. PORTALES, Jaime; HEILIG, Julian Vasquez. Understanding How Universal Vouchers Have Impacted Urban School Districts’ Enrollment in Chile. Education policy analysis archives, Arizona, v. 22, n. 72, jul. 21st, 2014. ZHANG, Wunong China’s et. al. Education Suspending Emergency Classes Without Management Stopping Policy in the Learning: COVID-19 Outbreak. Journal of Risk Financial Management, v.13, n.5, 55, p. 1-6, 2020. NOTAS | 100 Professor Adjunto do Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NuFiPE/UFF). Membro da Conselho Nacional da International Gramsci Society Brasil (IGS-Brasil) | 101 Fontes: http://www.portaltransparencia.gov.br/funcoes/12-educacao?ano=2020; http://www.portaltransparencia.gov.br/orgaos/20501?ano=2020; https://www.capes.gov.br/orcamento-evolucao-em-reais; http://www.finep.gov.br/a-finep- externo/fndct/lei-orcamentaria-anual. Acesso em: 20 maio 2020. 102 | Para uma análise concisa e esclarecedora acerca do contexto da crise e da opção equivocada visando sua solução, ver Carvalho (2018). Embora o texto preceda à eleição de Bolsonaro, fica claro que a política atual segue de perto a orientação do “Salto para ao Futuro”, de Temer. | 103 Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/18313/pna-o-que-o-mec-pensa-sobre- alfabetizacao. Acesso em: 20 maio 2020. | 104 No dia 27 de maio de 2020 o governo encaminhou a última versão do projeto ao Congresso Nacional, porém não podemos analisar o teor do documento já que não foi disponibilizado ao público. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/05/27/projeto-de-lei-do-future-se-e- encaminhado-ao-congresso-nacional.ghtml. Acesso em: 28 maio 2020. | 105 Para uma avaliação crítica desse modelo de privatizar a gestão das escolas públicas, ver Krawczyk (2018, p. 59-72). | 106 Dinheiro dado pelo governo aos pais para que estes matriculem seus filhos em uma escola privada de seu interesse. Para uma demonstração de potencial gerador de desigualdades deste modelo na realidade chilena, ver Portales e Heilig (2014): a capacidade de escolha parental é pouco efetiva para as famílias mais pobres. 107 | Decreto nº 10.004, de 5 de setembro de 2019, art. 2º, inciso V. | 108 Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,estudantes-de-colegio- militar-custam-tres-vezes-mais-ao-pais,70002473230. Acesso em: 20 maio 2020. 109 de | Para um bom apanhado de considerações críticas de diversos especialistas da área da Educação, diferentes matizes teóricos, consultar: https://novaescola.org.br/conteudo/18084/mec-erra-ao- priorizar-escolas-civico-militares-dizem-especialistas-em-educacao. Acesso em: 20 maio 2020. 110 | 111 | Disponível em: https://pt.unesco.org/covid19/educationresponse. Acesso em: 22 maio 2020. Disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-a-experiencia-internacional-com-os-impactos- da-covid-19-na-educacao/. Acesso em: 20 maio 2020. 112 | Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,imperial-college-ve-transmissao- do-coronavirus-no-brasil-fora-de-controle-e-estima-mortes,70003311663. Acesso em: 22 maio 2020. 19: A crise provocada pela COVID- antigos problemas em um novo cenário 113 ANDREIA CLAPP SALVADOR 114 RAFAEL SOARES GONÇALVES 115 VALÉRIA PEREIRA BASTOS O novo coronavírus trouxe impactos profundos em nossa sociedade. Apesar dos esforços iniciais de combate à pandemia, a falta de articulação política federal entre vêm os entes forjando federativos uma crise e a criminosa epidemiológica negligência sem do governo precedentes e com retornos ainda infelizmente incertos. Diante da necessidade de isolamento social, avizinha-se também uma enorme crise social e econômica. O presente ensaio pretende abordar os impactos de tais crises a partir de três casos de pesquisa Social” análise, que “Questões do dialogam diretamente Socioambientais, Departamento de Serviço com Urbanas Social e da os temas Formas da de Pontifícia linha de Resistência Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da qual pertencem os autores do presente artigo. CASO O 1| Catadores e catadoras de Jardim Gramacho atual agudização cenário das trabalhadores e de pandemia manifestações trabalhadoras da da COVID-19 questão informais social no evidencia expressa Brasil, visto o processo por que milhões são de de sujeitos desprovidos de direitos trabalhistas. Essa situação já vinha sendo agravada pelas sucessivas perdas no acesso aos direitos sociais, precarizando cada vez mais as atividades desenvolvidas nos diversos setores informais. No caso desse item, pretende-se, socioambiental, materiais em brevemente, especial recicláveis, na ao dar trabalho atividade de de coleta relevância catadores seletiva dos e ao cenário catadoras resíduos de sólidos urbanos. Neste sentido, na busca de identificar os impactos decorrentes da pandemia nas atividades de coleta seletiva realizadas pelas cooperativas de catadores ações e têm catadoras sido necessidades resíduos se de materiais realizadas básicas desse constitui pelo recicláveis, poder segmento. como um público O risco buscou-se no trabalho sentido de importante verificar de coleta de e quais suprir as triagem de contágio do novo coronavírus aos catadores e catadoras que participam da coleta seletiva e da cadeia da reciclagem, sobretudo na atividade de triagem. A contaminação não ocorre somente pelo ar, mas também por manuseio de objetos, principalmente de resíduos sólidos urbanos, exigindo, dessa forma, novas alternativas de tratamento para a prevenção e cuidados necessários à saúde desses trabalhadores. Inicialmente, identificou-se — através de pesquisa realizada no site do Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), órgão interveniente 116 no Acordo Setorial de Embalagens em Geral, celebrado em 2015 no período de 23 de março a 24 de abril de 2020 foi — que realizado um levantamento que atingiu 408 municípios em todo o território nacional. O objetivo de tal levantamento foi identificar como o cenário de trabalho dos catadores e catadoras vem sendo impactado pela pandemia. Foi possível verificar que 63,4% das cooperativas estão prejudicadas com a paralisação total e/ou urbanos, parcial pois destinado aos o das atividades material aterros Resíduos (CTR). de coleta potencialmente sanitários e/ou e triagem reciclável aos de resíduos recolhido Centros de sólidos está sendo Tratamento de Neste sentido, catadoras foram é importante contemplados ressaltar pelo que auxílio nem todos emergencial os catadores e disponibilizado pelo governo federal no valor de R$ 600,00, uns pelo comprometimento nos documentos, outros cadastramento, documentos de pela dentre dificuldade outras identificação. de dificuldades, No entanto, acesso à inclusive sobretudo internet de nas para ausência regiões de menos assistidas pelo poder público, a mobilização social tem ocupado um lugar de destaque, através da doação de cestas básicas e material de higiene pessoal e vem atendendo Movimento arrecadando de forma emergencial Nacional de recursos por as Catadores meio da cooperativas de Materiais Campanha de de reciclagem. Recicláveis O vem Solidariedade aos Catadores do Brasil e disponibiliza orientação a respeito do cadastramento 117. e obtenção do benefício em seu site Cabe ressaltar demonstrada a solidariedade a relevância partir ativa dos que do nível movimentos vem de resistência populares promovendo e dessa sociais inúmeras população, pelo ações de viés da socorro. Embora saibamos que não substitui a política pública, mas supre em parte a necessidade daqueles que, por questões alheias às suas vontades, não se encontram em condições de supri-las a partir do trabalho. Ressalta-se especial atenção ao processo de mobilização que vem sendo realizado para atender demandas da população do sub-bairro de Jardim Gramacho, território estigmatizado por ter abrigado, por mais de 30 anos, o maior lixão da América Latina (BASTOS, 2018), e que permanece, até os dias atuais, como uma zona de sacrifício (ACSERALD, 2004). A rede de solidariedade ativa vem ganhando dimensão expressiva e atendendo, quase em sua totalidade, as demandas locais através de inúmeras campanhas. Ao mesmo tempo, cabe registrar que, se há uma efetiva manifestação advinda da sociedade civil, o poder público segue alheio ao atendimento da população, pois a cada dia vem precarizando o acesso aos direitos oriundos tanto da assistência social como de diversas políticas públicas necessárias ao atendimento da população. CASO 2| Os pré-vestibulares populares A sociedade brasileira é assolada pela desigualdade social, condição que restringe o acesso da população pobre, negra, indígena, mulheres e o grupo LGBTQ+, aos direitos sociais como educação, trabalho, saúde e moradia. O acesso ao ensino basta conhecer superior alguns compreendermos o é notadamente dados tamanho marcado indicativos e a da profundidade pelas desigualdades questão da nossa racial e para condição. O relatório das desigualdades de raça, gênero e classe do Grupo de Estudos 118, Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEEMA) com base em dados da 119 de 2011 a 2015, constatou que 19% da população branca concluiu o PNAD ensino superior, enquanto entre pretos e pardos este percentual é de 7%. A média de anos de estudo da população branca é de 10 anos e a da população preta e parda é de oito anos; a renda familiar per capita dos brancos foi 80% superior a de representados representados pretos nas no e pardos ocupações trabalho no período. intelectuais manual, e Os os brancos não demonstrando a são super- brancos super- concentração da 120. divisão racial da educação e do trabalho Ao longo dos últimos anos houve um significativo avanço no que diz respeito à democratização do acesso ao ensino superior brasileiro, embora ainda tenhamos um longo caminho a percorrer. A partir da luta do movimento negro, a adoção de políticas de ação afirmativa e a atuação dos pré-vestibulares classe popular, populares, pretos, o acesso pardos e de estudantes indígenas ao de ensino escola superior pública, da ampliou. É especialmente na década de 1990 que o Movimento Negro e o Movimento Social de (PVNC), Educação Popular, intensificaram a pelo luta em Pré-Vestibular prol do acesso para de Negros e estudantes Carentes negras e negros às universidades brasileiras e passaram a exigir a implementação de ações afirmativas. Esta luta inspirou pessoas e motivou a criação de diversos pré-vestibulares populares Afrodescendentes e como: Carentes), Educafro Rede (Educação Emancipa e Cidadania (Rede de Emancipa Movimento Social de Educação Popular), PreparaNEM, Pré-vestibular Ser Cidadão, Pré-vestibular Popular Bonsucesso, PVNC Vila Operária, entre outros mais (CLAPP, 2020). Ainda hoje há um número significativo de pré-vestibulares populares, também chamados de comunitários ou sociais. Um recente levantamento feito nas plataformas Google e Facebook, a respeito dos pré-vestibulares populares, identificou o funcionamento de 97 núcleos no município do Rio de Janeiro e 46 121. Fluminense periféricas e núcleos Estes favelas e espalhados pré-vestibulares tem uma em 11 municípios populares proposta de da funcionam formação de Baixada nas áreas estudantes em condição de desigualdade social, para inserção nas universidades públicas, comunitárias e privadas, e buscam, de forma gratuita e com trabalho voluntário, democratizar o acesso ao ensino superior. As consequências da pandemia da COVID-19, bem como do isolamento social para frear o contágio, são muitas e diversas, aprofundando situações de vulnerabilidade social e evidenciando as condições sociais desiguais. Neste contexto, os pré-vestibulares populares têm enfrentado dificuldades e se encontram vestibulares atividades impossibilitados estão ou trabalhando voltaram seus de de funcionar forma esforços plenamente. remota para o e outros combate à Alguns pré- cancelaram pandemia. as Felipe Guimaraes de Oliveira Gomes, coordenador do Pré-Vestibular Comunitário Bonsucesso, e Juliana Marinho, coordenadora do PVNC Vila Operária em Nova Iguaçu, falam sobre as aulas, o acesso precário às redes da internet, apontam as preocupação dificuldades com a para evasão voluntário do professor: e manter também o com interesse a do manutenção estudante, do a trabalho Trabalhamos com alunos da classe popular e que não tem acesso à internet. Com a pandemia está muito difícil, porque não podemos cobrar tanto, mesmo disponibilizando o material online. A maioria dos alunos não tem computador e não tem internet em casa. São famílias numerosas e não tem um espaço adequado para estudar. [...] Esta situação vem dificultando estudar e muito muitos preocupação hoje o trabalho dos moradores dos alunos é da da gente, Baixada como se porque muitos Fluminense manter e não alunos ficaram como não conseguem desempregados. estudar para o A ENEM. [ JULIANA MARINHO, PVNC VILA OPERÁRIA ] Em tempos de pandemia o Pré-Vestibular Comunitário Bonsucesso foi muito impactado e acabou precisando ser reinventado e se ressignificar para podermos continuar o trabalho. [...] Assumimos uma posição de aulas online via Google Class, que nos ajuda a postar materiais, fazer links com outras redes sociais e que possa chegar ao aluno. [ FELIPE GOMES, PRÉ-VESTIBULAR COMUNITÁRIO BONSUCESSO ] A premência para se “reinventar e ressignificar” em tempos de pandemia fez com que o Pré-Vestibular Comunitário Bonsucesso priorizasse uma ação no campo do “acolhimento” e “sensibilização” dos alunos e professores: Iniciamos com uma sensibilização, conscientizando sobre as possibilidades de aproveitarem a oportunidade e manterem uma rotina de estudo. A sensibilização inicial foi algo que colaborou para termos êxito [...]. Buscamos estreitar os laços e, nessa dinâmica de sensibilização, estamos conseguindo que o aluno tenha fôlego em tempos de pandemia. Isto não descarta as dificuldades, a gente respeita o processo de cada um, mas não podemos tratar isto tudo com ausência e com silêncio e deixar que o caos se instaure. [FELIPE GOMES, PRÉ-VESTIBULAR COMUNITÁRIO BONSUCESSO ] Em tempos alternativas de doença, encontradas dor para e intransigência, a conservação Felipe do Gomes trabalho descreve dos pré- vestibulares populares: “o que também faz com que o trabalho continue é a empatia, é entender que todos estamos na mesma realidade, com as aflições e angústias. [...] Tentamos criar uma rede de afetos”. CASO 3| Favelados do Rio de Janeiro Apesar de a pandemia ter chegado ao país por pessoas vindas da Europa, sobretudo da Itália, e ter infectado inicialmente bairros nobres da Zona Sul e a Barra da Tijuca, rapidamente foi se compreendendo que a COVID-19 não era “elitista” ou “democrática”. Muito pelo contrário, a doença rapidamente começou a impactar populações mais pobres, sobretudo os moradores de favelas do Rio de Janeiro. Diante da ausência de uma vacina ou um medicamento realmente eficaz, a indicação mais difundida no mundo no combate à pandemia é o isolamento social. Isso é muito mais complicado em áreas faveladas diante da enorme densidade habitacional. Aliás, como manter isolados doentes em moradias forma, onde junto inúmeras com o pessoas isolamento, partilham é preciso um só ambiente? reforçar Da medidas de mesma higiene, sobretudo a lavagem periódica das mãos, objetos de uso cotidiano e mesmo embalagens simples de em realidades produtos. áreas com cotidianas Como péssimo de manter acesso parcela à essas agua? importante A medidas relativamente pandemia da trouxe população à tona carioca, que ficavam invisibilizadas pela nossa hipocrisia habitual. Além disso, profissionais continuar a para não se muitos lhes dos moradores permitem locomover para atuar de trabalhar. de favelas, forma Aliás, suas remota muitos e atividades precisam trabalham em atividades essenciais para que o isolamento do restante da população possa se realizar. Para muitos desses trabalhadores, não lhes foram oferecidas condições adequadas de transporte, tampouco equipamentos de proteção para trabalhar com segurança. As dificuldades se multiplicam, quando nos damos conta que, sem escolas, muitos pais não tinham onde deixar seus filhos. Essas são apenas pequenas situações, que começaram a contrastar com as primeiras imagens da quarentena europeia, com as pessoas cantando nos balcões de suas casas. Era notório, desde o início, que tal abordagem era romantizada (mesmo para a realidade europeia) e completamente fora da realidade das favelas. De antemão, era necessário retrabalhar a informação e 122. fazer com que o combate ao novo coronavírus falasse “nossa língua” trabalho incansável de comunicadores comunitários, acadêmicos O e lideranças sociais procurou trazer as favelas para o centro do debate, forçando, inclusive, a grande mídia a alterar profundamente sua forma de abordar a situação. Se a resposta de estados e municípios foi relativamente rápida, a resposta do governo federal foi catastrófica. Como um profeta do caos, o presidente minimizou a doença e, sem nenhuma empatia, vem desdenhando dos impactados e mortos pela doença. Estabeleceu uma falsa dicotomia entre vida e economia, que, no fundo, vem provocando milhares e milhares de mortes e reforçando de forma exponencial a crise econômica. Junto com a falta de gestão nenhuma federal coordenação com seus nacional, sucessivos assistimos ministros da estarrecidos os saúde e sem colapsos dos sistemas públicos de saúde em cada estado. Os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), muitos favelados, se veem com a angústia de não saberem se terão leitos, remédios ou respiradouros se tiverem sintomas mais graves da doença. Diante do movimento diversas caos instalado, associativo favelas, de adquirido (GONÇALVES, 2015): básicas, higiene, de grande favelas. demonstrando conhecimento kits a de lição que Iniciativas não foram somente de instalação em justamente do manifestando em pontos de mas contextos comunicação, de se é solidariedade, mobilização iniciativas fica distribuição água, um fino de crise de cestas mapeamentos de doentes e estratégias de isolamento. Tal mobilização se apresenta de forma muito diversa dependendo das favelas, mas apresenta uma lógica de rede, onde parcerias de ideias e recursos circulam entre os grupos envolvidos. Esperava-se, em tempos de epidemia, uma postura do Estado, em suas diferentes esferas, necessários de reabilitação dos sobretudo reflexão da forma distinta. no A emergencial, inúmeros rede maior bem federal. leitos Da ênfase poderia ter abandonados mesma atendimento em forma, básico, hospitais sido nos seria com o de campanha, acompanhada hospitais muito da pela cidade, necessária uma acompanhamento dos moradores desde os primeiros sintomas, de forma a evitar a propagação do contágio. A falta de testes e de maior investimento de pessoal e recursos no atendimento básico subnotificação, já faz que os com que poucos tenhamos testes só um são número realizados imenso com de aqueles enfermos graves, que chegaram a unidades hospitalares. O mais impactante é que, em um contexto de pandemia, a população de favelas ainda tenha que se preocupar com operações policiais, inclusive com mortes de crianças e adolescentes. Ao sairmos dessa crise, seria importante reconhecer que foi a mobilização dessa população que evitou o caos completo. As iniciativas nas favelas assumiram responsabilidades diversas, tanto no resposta âmbito mais da saúde como contextualizada à no da assistência, pandemia. Isso e permitiram demonstra a uma enorme capacidade e potencial das favelas e seus moradores, destoando, mais uma vez, das recorrentes representações negativas associadas a esses espaços. Conclusão Se os efeitos da crise provocada pelo novo coronavírus são devastadores, observa-se também formas importantes de mobilização social. Ainda é difícil realizar projeções para o futuro do país, mas espera-se que a presente crise seja um grande marco na luta por novos projetos societários, distintos da sociedade destruidora de pessoas e de recursos da natureza que estávamos consentindo antes da pandemia. REFERÊNCIAS ACSERALD, Henri. De “bota-foras” e “zonas de sacrifício” — um panorama dos conflitos ambientais no Estado do Rio de Janeiro. In: ACSELRAD, Henri (Org.). Conflito social e meio ambiente no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. BASTOS, In: Valéria Pereira, Jardim Gramacho: território extraordinário do lixo. MAIA, Rosemere (Org.). Rio Revisto de suas margens. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018. CAMPOS, Luiz; FRANÇA, Danilo; de raça, gênero e classe, 2018. n. FERES JÚNIOR, 2, Disponível p. 1-18, Rio João. Relatório das desigualdades de em: Janeiro: GEEMA, Iesp-Uerj, http://gemaa.iesp.uerj.br/wp- content/uploads/2017/08/Relato%CC%81rio_Corrigido-2.0.pdf. Acesso em: 18 maio 2020. CLAPP, Andréia. O papel protagonista do Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) nas políticas afirmativas — a experiência da educação superior brasileira. Em Pauta, Rio de Janeiro, n. 45, v. 18, p. 211-223, 2020. GONÇALVES, Rafael Soares. “São as águas de março fechando o verão”: chuvas e políticas urbanas nas favelas cariocas. Acervo, Rio de Janeiro, v.8, n.1, p.98-119, 2015. NOTAS 113 | Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). 114 | Professor do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). 115 | Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). 116 | Política Nacional responsabilidade de Resíduos Sólidos – PNRS/2010 compartilhada. — Implantação da Disponível logística reversa e em: https://sinir.gov.br/images/sinir/Embalagens%20em%20Geral/Acordo_embalagens.pdf. Acesso em: 14 maio 2020. | 117 Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis. Disponível em: http://www.mncr.org.br/. Acesso em: 14 maio 2020. 118 | Núcleo de pesquisa com inscrição no CNPq e sede no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj). | 119 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) é uma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 120 | Relatório das Desigualdades de Raça, Gênero e Classe – Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA) do Iesp-Uerj (2017). Disponível http://gemaa.iesp.uerj.br/relatorios/relatorio-das-desigualdades-gemaa-no-1/. Acesso em: em: 18 maio 2020. 121 | Os dados referentes aos pré-vestibulares populares do Rio de Janeiro fazem parte da pesquisa “Análise da atuação e alcance dos Pré-vestibulares populares da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Um olhar sobre a democratização do acesso ao ensino superior”, desenvolvida no ano de 2020 sob coordenação de Andreia Clapp Salvador. 122 | Esse foi o objetivo inicial do Movimento Seja Vivo, coordenado pelos professores Rafael Soares Gonçalves (PUC-Rio) e Celso Sanchez (Unirio) e que congregou vários profissionais, lideranças e moradores de favelas para levar informação de qualidade para esses https://www.facebook.com/SejaVivo-106051687710815/. Acesso em: 14 maio 2020. espaços. Ver: : Pandemia e crise capitalista a situação das favelas 123 REGINALDO SCHEUERMANN COSTA A pandemia como parte da crise capitalista internacional Vivemos em dramáticos segundo meio ligados à à pandemia. levantamento estaduais de saúde, incerteza do são Até portal 23.522 e o medo o momento de diante jornalismo mortes e dos que G1, 377.669 acontecimentos termino junto às infectados, este texto, secretarias enquanto o Ministério da Saúde anota 23.473 mortos e 374.898 infectados. O Brasil já chega à triste marca de segundo país com o maior número de casos 124 Apresento algumas breves reflexões a respeito da condição confirmados. das favelas no Brasil, no contexto da pandemia da COVID-19 e da crise capitalista internacional, no intuito de refletir sobre a gravidade de nossa conjuntura, mas também sobre o esboço de possíveis alternativas. A crise capitalista internacional iniciada em 2007-2008, antes chamada, ironicamente, de “marolinha” pelo então presidente Lula, hoje se mostra como mar revolto e de longa tempestade. De forma resumida, a crise atual tem um histórico em que já se desenham, desde o início dos anos 1990, nos seguintes pontos: Ampliação da promovendo 1. Queda vertiginosa financeirização a da supervalorização da taxa economia de de numa empresas e lucros pelo escala global ampliação mundo; e da 2. aguda, bolha especulativa; 3. Aumento dramático do endividamento das famílias, devido às políticas de arrocho salarial, depreciação de direitos trabalhistas, enfraquecimento dos sindicatos, acarretando queda sensível do consumo; 4. Diminuição da demanda comercial, tornando as balanças de comércio dos países essas tendencialmente características negativas, ganham desaceleradas proporção de ou estagnadas. calamidade desde Todas 2007-2008, mas já podem ser observadas, em maior ou menor grau, nas crises dos anos 1990. Segundo economistas de diversas orientações teóricas, a crise que ora enfrentamos possui uma profundidade inédita, ultrapassando a capacidade destrutiva da crise de 1929, em função dos seus efeitos internacionalizados e da sua longa duração. A estagnação da economia mundial, portanto, já era notória antes da pandemia, assim como a perspectiva de um quadro recessivo. O último evento eloquente nesse sentido foi a queda recente do preço do petróleo, de U$53, em fevereiro, para U$ 28, no começo de abril. Mas e a pandemia era esperada? Em setembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) relatou o resultado da pesquisa do Grupo de Vigilância Mundial sobre a Preparação: “Um mundo em emergências perigo: informe sanitárias”. Este anual sobre documento preparação apresenta os mundial para pontos-chave as que armariam uma bomba-relógio na saúde pública do planeta: “enfrentamos a ameaça fulminante, sumamente mortífera, provocada por um patógeno respiratório que poderia matar de 50 a 80 milhões de pessoas e liquidar 5% da economia catástrofe mundial. e Uma pandemia desencadearia caos, mundial dessa instabilidade escala e seria uma insegurança 125 generalizados.” Diante dos avisos da comunidade científica, a orientação foi oposta. A maioria dos países capitalistas continuou o receituário neoliberal: expansão do setor privado da saúde sem compromisso com o bem-estar público, corte de verba na área de pesquisa científica, industrialismo na agricultura com criadouros genética gigantescos com do legislação método ambiental de produção insuficiente, intensiva, formando engenharia o contexto biológico ideal para a chamada transmissão zoonótica, aquela que ocorre de animais para os seres humanos. Num sistema mundial em que o fluxo de pessoas é completamente internacionalizado e massivo, com normas de controle sanitário falhas, a possibilidade de contaminação também se torna global, e eis que temos todos os elementos para uma pandemia. Tragédia anunciada! Em tempos obscuros em que ganha força no mundo uma ultradireita se legitimando no negacionismo científico, demonizando a ciência, os centros de pesquisa, atacando os surpreender apesar de consensos que no relocalizou rapidez, universidades, pesquisadores, científicos muitos primeiro governos momento rápido sua política enquanto que o e mais professores estáveis e a subestimassem ter resistido conseguiu negacionismo crítica, a em estudantes, não era pandemia. assumir debelar convicto e nos o vírus a A se China, epidemia, com Estados de relativa Unidos, no Reino Unido e no Brasil tiveram um resultado catastrófico na contenção das mortes e do número de infectados. Trump foi avisado pelas agências de inteligência e pela comunidade científica de seu país, ainda em janeiro, mas nada 126 fez. Na verdade, fez o oposto do senso científico: idealizou um remédio sem estudos conclusivos, a cloroquina, e ponderou sobre injeções de desinfetante numa coletiva de imprensa. Logo, mesmo sendo o país mais poderoso do mundo, rapidamente angariou a posição de número um de infectados no mundo, pois, as falas desastrosas de Trump, a não adesão ao isolamento social e o custo elevado dos serviços de saúde no país foram elementos que inviabilizaram o atendimento universalista aos infectados. Países com uma infraestrutura de Estado providência mais forte conseguiram resultados mais satisfatórios na contenção de danos causados pelo vírus e suas repercussões sobre a economia. A Suécia e a Dinamarca, por exemplo, garantiram 90% do salário dos seus trabalhadores, enquanto a Alemanha garantiu 67%. A Alemanha, que possui a maior taxa de leitos de UTI por habitante da Europa (3 vezes o da França, Itália e Espanha; 4 vezes o do Reino Unido) teve um resultado melhor quando comparado aos seus vizinhos Unido, europeus, por sistema de bloqueio detentores exemplo, saúde foi vítima público. econômico de Na de políticas sua política Venezuela, estadunidense sociais e de mesmo da mais tímidas. desestruturação diante queda de abrupta um do Reino de seu rigoroso preço do petróleo, ocasionando o agravamento da crise econômica no país, a adoção do isolamento organizados social, nas espalhamento tendo ampla comunas, da foi COVID-19, participação importante seja dos para realizando trabalhadores conter ações de o auto- ritmo desinfecção de nos espaços públicos ou fabricando máscaras. O agravamento da crise econômica diante da pandemia é atestado pelo Institute of International Finance, que vem gradativamente revendo as suas previsões referentes ao crescimento econômico mundial. A última revisão baixou de 2,6% para -1,5%. Para a zona do Euro, baixou-se de 1,0% para -4,7; para os Estados Unidos, de 2%, para -2,8%. O Goldman Sachs prevê uma queda no Produto Interno Bruto (PIB) estadunidense de 3,1%. Segundo a OCDE, menos, o isolamento -2%. O social Fundo poderia Monetário impactar o PIB Internacional dos países (FMI), em, revendo pelo suas previsões, afirma que é possível ter uma queda de 3% no PIB mundial. Os pacotes de estímulos fiscais ao setor financeiro seguem sendo a grande prioridade das economias internacionalmente; estima-se que 9% do PIB mundial esteja destinado a atender as demandas do setor financeiro. Nos Estados dólares Unidos, anunciados de acordo como com pacote de Michael Robert, estímulo, cerca dos de 2 trilhões 500 de bilhões é destinado para salvar os grandes conglomerados empresariais. Pouco antes, o Federal Reserve apresentava um pacote de 1 trilhão de dólares, comprando títulos do tesouro, abrindo uma generosa linha de crédito para o 127 empresariado. O impacto Organização da pandemia Internacional sobre do as economias Trabalho, chega a do mundo, atingir 2,7 segundo bilhões a de trabalhadores, 81% do montante mundial. O desemprego cresceu 6,7% no mundo, no segundo trimestre, atingindo mais de 195 milhões de trabalhadores, que trabalham em regime de 48 horas semanais. Na América Latina e Caribe, desses trabalhadores, 14 milhões se tornaram desempregados, e, na Índia, 400 milhões ficaram sem rendimentos durante a pandemia. Esses dados ainda são provisórios, pois o ritmo da pandemia ainda é ascendente e incerto, sendo a sua real proporção difícil de ser mensurada Mas o impacto já é calamitoso, pois 40% da população mundial se encontra situação de em isolamento caos, em que social a falta e sofrendo de políticas as consequências sociais amplifica dessa a crise sanitária. : A crise capitalista internacional e a pandemia repercussões sobre as favelas Espera-se que 100 milhões de pessoas no mundo passem para baixo da linha da pobreza, de acordo com o Banco Mundial e o Instituto de Recursos Mundiais (WRI). Serão as cidades mais populosas as mais atingidas. Haverá uma queda entre 15% e 25% na arrecadação tributária dos governos neste ano. A preocupação morando em Favelas” (2001), privação de habitações, sobre a é favelas da água de no internacional, do é mundo, ONU potável, construções posse como esperado que, Habitat, falta com terreno. lidar de com segundo são que, 2050, baixa com a a 1 bilhão relatório territórios de acordo em o de saneamento, materiais De cerca “O de Desafio reconhecidos espaço qualidade mínimo e das pela para insegurança perspectiva população pessoas mundial econômica tenha 30% morando em favelas, quase 3 bilhões de pessoas, o que torna o quadro ainda 128 mais desolador. A Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou que iria combater essa tendência, atingindo a melhoria de vida de 100 milhões de favelados, tendo o ano de 2030 como meta para garantir acesso aos direitos sociais básicos nas favelas. Se analisarmos a tendência global de miséria e a meta do Banco Mundial, o futuro não parece menos sombrio, segundo o próprio Banco. Como já apresentado, a pandemia expôs a falência do modelo neoliberal. No Brasil, escancara esse limite de forma ainda mais trágica, pois expõe a sua histórica racismo dependência estrutural profissionais da e econômica, patriarcalismo. área da saúde são profunda Quando mulheres se e desigualdade observa negras, que que social, 70% atuam dos sem equipamentos adequados, salários dignos, condições de trabalho mínimas, e o aumento de mortes de profissionais da saúde, percebe-se que a pandemia pesa mais sobre esses setores historicamente oprimidos. Outros dados que reiteram essa lógica de opressões realçadas pela pandemia é que o índice de violência doméstica contra mulheres e crianças tem aumentado, assim como a conclusão de pesquisas que demonstram que a letalidade da COVID- 19 é maior entre negros. São as favelas que concentram, justamente, esses setores da sociedade. Cerca de 13 milhões de brasileiros moram em favelas, segundo o Data Favela e o Instituto Locomotiva. Essas comunidades, sofrendo com a miséria, alto número saúde de moradores pública por casa, insuficientes, saneamento tornam-se alvos básico precário, fáceis do vírus políticas e de das suas só vem 129 consequências sociais. A política que vem sendo implementada nos últimos anos acentuando este quadro de precariedade nas favelas e periferias. Durante o governo Dilma (2015), o corte nas áreas sociais foi de R$ 69,9 bilhões, tendo um peso na educação de R$ 9,4 bilhões e de 1,8 bilhão na ciência e 130 A aprovação da Emenda Constitucional 95 (2016) significou, tecnologia. só na área da Saúde, a perda de R$ 20 bilhões, menos 15% da receita da 131 A Reforma Trabalhista (2017) e a Lei de Terceirização não tiveram União. efeito sensível sobre a taxa de , como prometido, mas aumentaram a informalidade e o trabalho terceirizado, gerando instabilidade no emprego e 132 baixos salários, além de contribuir para a estagnação do PIB no mesmo patamar de 2009. O resultado é que a miséria vem aumentando desde 2015, contrapondo-se à tendência de queda, que ocorreu entre os anos 1990 e 2014. Aliado áreas de a isso, os pesquisa sucessivos científica, cortes recentes principalmente do das governo Bolsonaro universidades nas federais, busca a todo custo abrir espaço cada vez maior para a entrada das empresas de tecnologia parca estrangeiras, autonomia desenvolver indústrias produtiva, remédios e farmacêuticas, criação de tratamentos a patentes baixos obstruindo e a nossa possibilidades custos. de Aprofundamos a dependência econômica em relação aos produtos e à tecnologia de pesquisa estrangeira, alegando que deveríamos cortar gastos. Armamos uma bomba contra nós mesmos. Se Bolsonaro diz que devemos “salvar a economia” para salvar as vidas, ele e seus antecessores acabaram (ainda que em níveis bem distintos) levando nossa economia para a UTI muito antes de a pandemia bater a nossa porta. O agravamento da crise em razão da pandemia sinaliza que, segundo o Banco Mundial, a perspectiva é de que, no Brasil, 5,4 milhões de pessoas ingressem na pobreza extrema em função das consequências da pandemia; e de que o PIB caia 5% em 2020, o que seria a maior queda em 120 anos. Significa que 14,3 milhões de pessoas vão sobreviver com menos do que R$ 145 mensais, milhões de 7% da população. brasileiros na Se, miséria, entre a 2014 situação e a 2019, partir a de crise colocou 2020 deverá 3,8 ser 133 ainda mais trágica. A pandemia evidenciou também a ineficácia recente do programa social Bolsa Família e do seguro desemprego, pois não atendem às necessidades dos trabalhadores que ingressaram recentemente nos estratos mais pobres. O Cadastro exemplo, Pessoas tornou emergência regional de uma o Físicas processo grande também se (CPF) de de cadastramento dificuldade, amplia irregular nesse segundo quadro. a A muitos para conseguir Dataprev. região brasileiros, A o por auxílio desigualdade Nordeste tem um número de trabalhadores informais maior do que aqueles que estão na formalidade, tendo, segundo a iDados, 51,2% da população do Nordeste apta a receber o auxílio emergência, demonstrando concentração da pobreza na região. Se o governo trabalhou com o número de 58 milhões de pessoas na linha da pobreza, agora já se estima um número de 70 milhões de pessoas. No Brasil, temos 38,3 milhões de trabalhadores na informalidade, 134 possuem muitas privações, além da falta de dinheiro. que São 45 milhões de trabalhadores que não utilizam movimentações bancárias há mais de seis meses: o impacto desse setor na economia é gigantesco, pois movimenta anualmente R$ 800 bilhões de reais em transações comerciais. É urgente que se agilize o cadastro desse segmento da população, abrindo mais vagas no Programa Bolsa Família, dinamizando uma rede de atendimento nacional ligada à Caixa Econômica Federal, evitando entraves burocráticos e fila nos bancos. O investimento em programas de fomento à renda, aliado a uma série de ações de cunho social tem um efeito multiplicador na renda per capita da população. Apesar disso, o governo segue na direção oposta, concentrando ainda mais a renda. As favelas concentram esses dramas. Quando se discute a pandemia, o primeiro obstáculo para a execução de políticas públicas é a subnotificação aguda. Ao contrário dos dados oficiais, é notório o crescimento exponencial de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), quando se compara aos dados do ano passado. Especialistas afirmam que, para cada morte, poderia haver 9 pessoas não identificadas com a doença, podendo chegar até um número de casos 15 vezes maior do que o relatado oficialmente; nas favelas ocorreriam o dobro de casos relatados comparados 135 ao restante da cidade. Boa parte dos infectados são mandados para casas sem que haja o acompanhamento sobre a evolução do quadro clínico, tirando essas pessoas das estatísticas. Os dados do painel da Prefeitura do Rio, que reúne, até o dia 15 de maio, 120 óbitos e 460 pessoas infectadas nas favelas do Rio, são números subnotificados, ainda se considerando que um mês antes o número era de 7 mortes e 43 casos de infectados. Outro fator que ajuda a distorcer os dados é a desorganização dos endereços, pois algumas favelas que são reconhecidas como bairros, têm seus casos contabilizados como parte daqueles ocorridos em bairros próximos, diluindo a taxa de mortos e infectados em um número de habitantes maior. Esse é o caso da Maré, que, desde 1994, é considerada um bairro pela prefeitura do Rio de Janeiro, no entanto, boa parte dos órgãos públicos ainda ignora isso, principalmente escolas, hospitais e postos de saúde, o que acaba confundindo os dados reais 136 e dificultando as ações do poder público na favela. Uma rede de informações impulsionada por movimentos sociais e organizações não governamentais (ONGs), cada vez mais articulada, busca superar a ineficiência dos governos federal, estaduais e municipais, utilizando as mídias sociais e entidades de pesquisa para cruzar os dados de maneira mais próxima à realidade. O Dicionário de Favelas Marielle Franco tem oferecido uma rica compilação de reflexões acadêmicas, informes de lideranças comunitárias, centros de médicos e de pesquisa e toda uma gama 137 de informações importantes no combate da COVID-19 nas favelas. A precariedade de infraestrutura urbana nas favelas, em particular na distribuição de água e saneamento básico, tornam a situação das populações ainda mais exposta ao novo coronavírus. Estima-se que 31 milhões de pessoas não tenha acesso a uma rede de distribuição de água, algo comum nas favelas. Diante desse quadro aterrador, as Nações Unidas preveem que o adensamento populacional, agravado por meios de transporte lotados e sistema de coleta de lixo deficiente, tornam o impacto do vírus ainda mais 138 preocupante. Outro elemento importante é o adoecimento psicológico e as agressões nos domicílios, Guterres, chefe tendo da como ONU, principal atestou motivação preocupação o machismo. diante desses António fenômenos, como consequência do isolamento social, em que ele observa o aumento de casos de violência ansiedade. A contra escassez de mulheres delegacias e crianças, especializadas suicídio, em depressão, violência contra a mulher aprofunda o problema, já que são apenas 21 e apenas Rio de Janeiro e 139 São Paulo possuem esses estabelecimentos fora da capital. As chacinas e arbitrariedades cometidas nas favelas durante as incursões policiais são outro obstáculo à luta contra a pandemia. Do dia 13 de março até o dia 19 de maio, foram 41 tiroteios, segundo os dados do Fogo Cruzado. Segundo a Rede de Observatórios da Segurança, a situação é de crescimento da violência; as operações policiais mataram mais 58% em relação ao mesmo período no ano passado. No dia 15 foram 13 pessoas mortas pela polícia. A ONG Rio operação de Paz, policial atuante do Bope no Jacarezinho, em meio a foi uma surpreendida doação de com cestas uma básicas, resultando em 4 feridos. Isso enquanto as cestas básicas prometidas pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, demoram a chegar às famílias. O Gabinete de Crise do Alemão também acabou impossibilitado de realizar doações de alimentos por causa de uma incursão policial. Em Cordovil, a morte do corretor Leandro Rodrigues também seguiu esse triste roteiro, quando foi assassinado com um tiro de fuzil após entregar uma cesta básica. Os jovens Luiz, João, Thiago e Estevão e um não identificado morreram durante as ações policiais, sendo um jovem de 12 a 17 anos morto a cada mês. A violência contra as favelas expressa o DNA escravista brasileiro ainda 140 apresente na sua estrutura republicana. Considerações finais Muitas são as iniciativas de solidariedade, mas ainda é frágil a capacidade de mobilização bolsonarismo. experiências A e apresentação reprodução fundamentais, de que de uma ações agenda política auto-organizadas corporificam e alternativa solidárias identidades de ao são classe e fortalecem a luta dos trabalhadores, ainda que diante de uma situação tão limite. É dessa experiência que se forjam os substratos de sínteses e ações políticas superiores, que podem sair de uma consciência corporativa imediata para um plano de ação antissistêmico, consequente, que esteja à altura da demanda histórica de superar a crise capitalista e a pandemia, de acordo com um projeto humano superior à barbárie capitalista. Que da tristeza dessa crise sistêmica ecoe paixão pela vida encarnada em política. Temos solidariedade, muito o organizar que nossa caminhar: pauta capilarizar estratégica mais de iniciativas forma de autônoma, orientada pelos interesses dos trabalhadores, de forma que se integre a um projeto de desenvolvimento que não priorize o lucro, mas sim as vidas humanas e o meio ambiente. NOTAS 123 | Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NuFiPE/UFF). | 124 Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/25/casos-de- coronavirus-e-numero-de-mortes-no-brasil-em-25-de-maio.ghtml. Acesso em: 25 maio 2020. | 125 Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598671-covid-19-mandou-avisos- previos. Acesso em: 25 maio 2020. | 126 Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/11/us/politics/coronavirus- trumpresponse.html. Acesso em: 25 maio 2020. 127 | Disponível em: http://www.esquerdadiario.com.br/Foi-o-virus-a-analise-de-Michael-Roberts. Acesso em: 25 maio 2020. | 128 Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/07/sem-apoio-do-estado- favelas-globais-criam-estrategias-para-conter-pandemia.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 25 maio 2020. 129 | Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/14/coronavirus-aumentou-abismo- entre-favela-e-pista-diz-morador-do-morro-do-alemao. Acesso em: 25 maio 2020. 130 | Disponível em: https://www.ebc.com.br/noticias/politica/2015/07/pesquisadores-pedem- dilma-revogacao-de-cortes-na-educacao-e-ciencia. Acesso em: 25 maio 2020. | 131 Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1044-saude-perdeu-r-20- bilhoes-em-2019-por-causa-da-ec-95-2016. Acesso em: 25 maio 2020. | 132 Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/11/07/Como-ficou-o-emprego- 2-anos-ap%C3%B3s-a-reforma-trabalhista. Acesso em: 25 maio 2020. | 133 Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/pandemia-deve-lancar-mais-54-milhoes- de-brasileiros-na-extrema-pobreza-em-2020-24382499. Acesso em: 25 maio 2020. | 134 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/nas-favelas-moradores- passam-fome-e-comecam-a-sair-as-ruas.shtml. Acesso em: 25 maio 2020. 135 | 136 | Disponível em: https://rioonwatch.org.br/?p=47370. Acesso em: 25 maio 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/15/mortes- na-mare-sao-triplo-de-dados-oficiais-diz-ong-favelas-tem-120-casos.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 25 maio 2020. 137 | 138 | Disponível em: https://wikifavelas.com.br/. Acesso em: 25 maio 2020. Ver: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-05-14/nas-favelas-ate-a-pandemia-de-coronavirus- e-invisivel.html e https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/03/pandemia-nas-favelas.shtml. Acesso em: 25 maio 2020. 139 | Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/12/opiniao-os-sete-erros-cometidos- pela-imprensa-ao-cobrir-a-pandemia-nas-favelas. Acesso em: 25 maio 2020. 140 | As ações de solidariedade e auto-organização política se mantêm fortes, apesar da conjuntura adversa. O Projeto Mães das Favelas (CUFA) se dedica a atingir 40 mil mulheres em conjunto com lideranças do Complexo do Lins. A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade estão distribuindo um material de orientação à população sobre a COVID-19. O movimento #Covid19NasFavelas reúne 8 coletivos periféricos. A campanha “Se liga no Corona”, também segue importante reunindo informações sobre o coletivos vírus. da Sobre a Maré e Manguinhos violência policial, em ver: conjunto com a Fiocruz, veiculando https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05- 22/um-adolesceste-morto-por-mes-e-o-resultado-das-operacoes-policiais-no-rj.html. Acesso em: 25 maio 2020; e https://theintercept.com/2020/05/19/coronavirus-ajuda-humanitaria-tiroteios-rio/. Acesso em: 25 maio 2020. A violência que não respeita o isolamento 141 VITOR CASTRO matamos meninos negros para evitar que se tornem homens feitos negros [ RICARDO ALEIXO ] “Em meio à pandemia, uma operação policial na favela. Aqui mesmo onde falta água e a fome se faz presente [...]. Se não morrer de vírus ou de fome, te matarão com tiros de fuzil”. O relato acima foi escrito nas redes sociais pelo ativista de 142. Reto direitos humanos Raull Santiago, integrante do Coletivo Papo Raull é um dos expoentes de um movimento de favelas que bota a cara, que não deve nada, mas tem medo. Não à toa, obviamente. Ser morador de favela, preto e pobre, indica que se é sempre alvo da política de segurança pública do Rio de Janeiro. “Quem não deve tem medo sim”, pontua o ativista. No Complexo do Alemão, durante a pandemia, uma operação do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o Bope, deixou 12 mortos no dia 143. 15 de maio — uma chacina Dias depois um adolescente morador do Morro do Salgueiro, no município de São Gonçalo, foi atingido por um tiro de fuzil dentro de casa, no dia 18 de maio. João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, estava na casa de familiares Civil quando entrou resgatado uma atirando por um operação na casa helicóptero conjunta em do que Corpo da ele de Polícia Federal 144. estava e da Baleado, Bombeiros. Ficou Polícia João mais foi de 17 horas desaparecido, enquanto a família o procurava por diversos hospitais da região e do Rio de Janeiro, sem sucesso. Foi encontrado morto no dia seguinte, no Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo. No mesmo dia outro jovem, de 21 anos, foi morto a tiros durante operação policial em Acari. Iago César dos Reis 145. familiares, sofreu violência policial Gonzaga foi baleado e, segundo Por volta de 5h da manhã, policiais do Bope junto com o Batalhão de Choque da Polícia Militar (PM) entraram na favela de Acari. De acordo com um parente, Iago foi torturado com um saco plástico na cabeça e com uma faca. Depois foi enrolado em um lençol e levado para uma viatura da polícia. A família percorreu delegacias e IMLs em busca de informação, só no dia seguinte obteve alguma, quando o jovem foi encontrado no IML do Rio de Janeiro. Um dia depois, 20 de maio, o jovem de 18 anos Vitor Gomes da Rocha também foi exatamente realizavam quando a necessidade Bope entrou momentos assassinado 146. pela polícia integrantes entrega do A grupo Frente de 200 cestas básicas favela da Zona Oeste carioca, atirando na favela na seguintes ao tiro e que Vitor o operação para por acabou matou Cidade famílias conta alvejado. choca policial pela da de se deu 147 Deus que passam pandemia. Um revolta vídeo de O feito um dos integrantes do grupo e pela conduta de sobrevivência de outro membro, ao dizer que eles — pretos e moradores de favela — são alvos da polícia: — A gente nasceu alvo, a gente nasceu alvo! E já era. João Pedro foi ontem. Esse menor foi hoje. Nós é preto mano, nós é preto mano. Então se acalma. — Eles são genocida, eles entram matando! — Eles são. Eles são genocida e nós somos alvo do Estado, mano. Sempre foi assim. Nós é preto mano! Nós é preto mano, então se acalma! Você acabou de distribuir 200 cestas básicas. Eu não vou te perder, você é preto. Se acalma meu mano! — Eles não têm que matar inocente, eles não têm que matar! — Eles não têm que matar ninguém, mano! — Eles não têm que chegar dando bala pros outros. — Meu mano, eles não têm que matar ninguém. Calma. Nós não vai embora, mas se acalma [...] nós não vai sair daqui sem ver quem é, mas calma. — Eu não vou embora daqui, eles vieram atirando em inocente que estava naquela porta lá. A gente tá fazendo uma ação pra ajudar as pessoas, eles entram atirando, porra! A estratégia da política de segurança pública do Rio de Janeiro, que nos últimos anos tem ampliado sua letalidade, não deu trégua durante a pandemia. Os casos citados são apenas alguns exemplos das dezenas que acontecem Fogo durante Cruzado, Metropolitana justamente civis, do com e pandemia. durante Rio a Janeiro das federais, militares De acordo quarentena de agentes militares, bombeiros a das Forças de levantamento número diminuiu, forças guardas o com mas segurança municipais, Armadas. de tiroteios aumentou envolvidos agentes Enquanto o feito na pelo Região o número — policiais penitenciários, mundo enfrenta uma pandemia e busca cumprir o isolamento, nas favelas a quarentena tem sido interrompida por tiros. No mês de abril foram registrados 501 tiroteios/disparos por armas de fogo, com 197 pessoas baleadas e 96 mortes. Em 32% desses tiroteios havia a presença de agentes de segurança (no mesmo período do ano anterior, este índice era de 25%). Comparando com o mês de março de 2020, quando teve início a quarentena, os índices são ainda piores: houve um aumento de 12% nos tiroteios e de 34% no índice de 148. pessoas baleadas Além da violência em si, dos tiroteios, dos mortos e feridos, as operações policiais nas favelas agravam outros problemas locais. Diversas ações sociais, como a citada na Cidade de Deus, foram interrompidas pela ação das polícias. Em 28 de abril, o corretor de imóveis Leandro Rodrigues da Matta, de 40 anos, morreu com um tiro de fuzil deflagrado por um policial militar em 149. Cordovil amigo que conjunto Ele estava passava de entregando dificuldades favelas do por Alemão a uma cesta conta da básica na pandemia. distribuição de casa de Próximo cestas básicas um ao foi interrompida por uma ação da PM, que confundiu o caminhão carregado das doações com um de carga roubada — no fim do dia a equipe que fazia a distribuição voltou ao local e conseguir fazer as entregas. Já no Jacarezinho a doação de cestas básicas foi cancelada após uma operação do Bope que 150. culminou em tiroteio, deixando quatro feridos Da mesma forma, interrupções de serviços de saúde ocorreram durante a pandemia. Além da superlotação, 577 unidades de saúde foram afetadas por tiroteios em seu entorno — o que representa 14% das unidades de saúde da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Em boa parte dos casos (28%) havia a presença de agentes de segurança, ou seja, foram ações da polícia próximas dessas localidades. período É curioso pré-quarentena, a ainda média constatar diária de que em comparação tiroteios no com Grande o Rio aumentou durante os meses de isolamento social. A média foi de dezesseis tiroteios por dia a partir do dia 13 de março, início da quarentena, até o fim de abril, contra quatorze tiroteios diários de janeiro até esta data. Para piorar a situação dos moradores de favelas e periferias, a morte de pobres e negros na pandemia em comparação com brancos é cinco vezes maior. Uma explicação (SUS). é que Pesquisa os do pobres dependem Instituto de mais Pesquisa do Sistema Econômica Único de Aplicada Saúde (Ipea) indicava que, em 2008, a população negra representava 67% dos usuários do 151. SUS Em entrevista ao site A pública, a médica Rita Borret, da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade, afirma que “o problema não é a raça, mas o racismo [...]. O acesso à saúde da população negra é muito 152. pior que da população branca no país” Essa política de segurança pública adotada no Rio de Janeiro, infelizmente, não é novidade para os moradores de favelas e periferias. Os dados de mortes em confrontos com policiais são assustadores — os chamados “autos de resistência” ou “homicídio decorrente de oposição à ação policial”, termos utilizados para os casos de morte durante suposto 153. Esse índice havia atingido confronto com a polícia e resistência à prisão seu ápice em 2007, ano dos Jogos Pan-Americanos, com 1.330 mortes. Mas, em 2018 e 2019 ultrapassaram esse recorde vergonhoso: em 2018 foram 1.534 mortos e 1.810 em 2019. Os mortos são em sua imensa maioria jovens negros, pobres, moradores de favelas. Essa elevada taxa de letalidade é um indicador da necessidade de revisão desse modelo promove, é de segurança conivente com pública o uso baseado abusivo da no confronto, força letal e que de se não execuções sumárias, ao mesmo tempo em que expõe também os próprios agentes do estado. O Atlas da Violência 2017 apontou que desde 1980 há no Brasil um processo gradativo de vitimização letal da juventude, em que os mortos são jovens cada vez mais jovens. Enquanto em 1980 o pico da taxa de homicídios se dava com 25 anos, em 2017 essa idade passou para 21 anos, e entre 2005 e 2015 houve um aumento de 17,2% na taxa de homicídio entre 15 e 29 anos. Nesse mesmo período — 2005 a 2015 — foram mais de 318 mil assassinados nessa faixa etária. Ainda segundo assassinadas, 71 dados são do negras. Atlas A da Violência chance de uma 2017, de pessoa cada negra 100 ser pessoas vítima de homicídio é 23,5% maior do que de uma pessoa branca. Cerqueira e Coelho, no texto Democracia racial e homicídios de jovens negros na cidade partida, mostram que, do ponto de vista de quem sofre a violência letal, a cidade do Rio de Janeiro é dividida para além das dimensões econômica e geográfica, mas também pela cor da pele. “No Rio de Janeiro [...], enquanto 57,2% das pessoas que se encontram no decil mais baixo de probabilidade de sofrer homicídio são ‘não negras’; 78,9% daquelas que se encontram no decil com maiores chances de sofrer homicídio são afrodescendentes”, e concluem: “a questão social não esgota a explicação das gritantes diferenças de vitimização violenta que acometem mais a população afrodescendente, que refletem, em parte, o racismo ainda prevalente no Brasil” (2017, p. 32). Historicamente tratados como cidadãos de segunda classe, os moradores de favelas cause e periferias qualquer são comoção passíveis social de — a serem não exterminados ser, claro, sem quando que o isso caso é absurdamente grotesco. O tratamento dispensado a esses moradores pela imprensa é grosseiramente diferente do direcionado a moradores de outras áreas da cidade. O que vemos é que existem dois tipos de violência: uma aceitável e outra inaceitável. As mortes aceitáveis pela mídia — e consequentemente pelo conjunto da sociedade, a chamada opinião pública — são as dos pobres, negros, moradores de favelas. Esse público pode ser exterminado justamente possibilidades de porque sentimentos, são de desumanizados, identidade e de retiram deles memória. suas Passam a figurar apenas como estatísticas, como números de uma guerra em que a vítima é sempre a mesma. E quem atua de forma a definir que vidas têm mais valor e merecem ou não ter destaque e repercussão é a mídia hegemônica, que atua banalizando a vida e a vivência dessa parcela da população. Enquanto as vítimas merecedoras de destaque são humanizadas, tratadas com dramaticidade merecedores são a ponto de negligenciados comover ou serão a opinião publicadas pública, pequenas os não matérias sem qualquer tipo de contexto que possa causar comoção ou revolta. Muitas vezes essas pequenas matérias são capazes de culpabilizar a vítima dessa violência. As vítimas têm sua vida investigada para se buscar a conclusão de que não foram mortas por acaso, que em alguma medida “procuraram” por esse destino. Uma tia de João Pedro, o adolescente de 14 anos morto pela polícia em São Gonçalo, não por acaso, declarou à imprensa que “ele não vai sair de traficante criminalizados plantando — armas nessa tanto e história”, pela drogas, já polícia, como sabendo que pela como diversas mídia, esses vezes que os sempre jovens são incriminam busca antecedente ou algum deslize do jovem que possa justificar sua morte. um Essa é uma estratégia comum na nossa história. Como apontam Chomsky e Herman, parecem no ser texto Banhos considerados sangue, de como de 1976, ‘benignos’ “certos ou até banhos como de sangue positivos e construtivos. Apenas uma espécie muito particular dos mesmos tem jus à publicidade, é julgada atroz e digna de causar indignação” (1976, p. 17). Os autores apontam, em relação ao tratamento dos meios de comunicação, que as vítimas merecedoras proeminência, com de mais notoriedade são dramaticidade, “destacadas serão com humanizadas, mais e sua transformação em vítimas receberá o grau de detalhe”, e a construção da matéria gerará “o interesse e a emoção do leitor. [...] Em contraste, as vítimas não-merecedoras receberão apenas ligeiros detalhes, um mínimo de humanização e pouco contexto que cause excitação e raiva” (CHOMSKY; HERMAN, 2003, p. 94). É dentro dessa estrutura que se configura o racismo estrutural enquanto elemento de controle e dominação nas relações de poder. Achille Mbembe esclarece, no seu importante livro Necropolítica, ao pensar a relação entre soberania e violência, que “ser soberano é exercer o controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação do poder” (2018, p. 5). Aponta essa questão a partir do filósofo italiano Giorgio moderno estado pode de Agamben, ser exatamente definido, exceção, de uma então, quando como espécie de a indica que instauração, guerra “legal” o totalitarismo através que de um permite a eliminação não apenas de adversários políticos, mas de categorias inteiras de cidadãos. A criação voluntária de um estado de exceção permanente — mesmo que não declarado estados contemporâneos, — tornou-se inclusive nos uma das chamados práticas estados comuns dos democráticos (AGAMBEN, 2004, p. 13). Esse mídias contexto para 154 favelas de tratar guerra do — no combate Brasil ao termo tráfico de comumente drogas, em usada pelas especial nas — sustenta hierarquias raciais, e as ações estatais empreendidas em nome da “segurança” se revelam como violadoras de direitos dos moradores dessas localidades: Viver sob a ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente de “viver na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites do anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras [...]. (MBEMBE, 2018, p. 68-69). Mbembe assinala ainda que esse processo é mais intenso nos países da periferia do capitalismo, nos quais a democracia ainda é restrita e o direito permanece conectado à violência soberana, formando assim uma verdadeira política de produção de morte. Recuperando e relendo o conceito de biopoder de Michel Foucault, ele assinala que o racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, e que a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado (MBEMBE, 2018, p. 18). É o que ele chama de política de morte, ou necropolítica: a ação do Estado sobre as vidas, decidindo qual vida é passível de luto e qual não é. É o projeto de país que deu certo, como descrito por Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, mais recentemente, no texto Encantamento: sobre política de vida, quando apontam que “o Brasil como estado colonial foi projetado pelos homens do poder para ser excludente, racista, machista, homofóbico, concentrador de renda, inimigo da educação, violento, assassino de sua gente, intolerante, boçal, misógino, castrador, faminto e grosseiro” (2020). Enquanto a indicação é de que as pessoas fiquem em casa para se manter em segurança por conta da expansão do coronavírus, nas favelas e periferias isso não se reflete. Ficar em casa é tão ou mais arriscado — mesmo que o vírus não entre isolamento. em sua residência, as balas de fuzil não respeitam o REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo Santa Cruz. Democracia racial e homicídios de jovens negros na cidade partida. Brasília/Rio de Janeiro: Ipea, 2017. CERQUEIRA, Iván; Daniel; LIMA, HANASHIRO, Renato Olaya; Sergio MACHADO, de; BUENO, Pedro Samira; Henrique; VALENCIA, LIMA, Adriana Luis dos Santos. Atlas da violência 2017. Rio de Janeiro: Ipea/Fórum Brasileiro de Segurança Pública, junho de 2017. CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward S. Banhos de sangue. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1976. CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward S. A manipulação do público: política e poder econômico no uso da mídia. São Paulo: Futura, 2003. MBEMBE, SIMAS, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2019. Luiz Antonio; Janeiro: RUFINO, Luiz. Encantamento: sobre política de vida. Rio de Mórula, 2020. Disponível em: https://morula.com.br/produto/encantamento-sobre-politica-de-vida/. Acesso em: 28 maio 2020. NOTAS 141 | É editor na Mórula Editorial (morula.com.br) e doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 142 | O Papo Reto é um coletivo de comunicação independente formado por jovens moradores do conjunto de favelas do Alemão e da Penha 143 | PEIXOTO, Guilherme. Polícia apura a morte de 12 pessoas no Alemão após dia de tiroteios. G1, Rio de Janeiro, 15 mai. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de- janeiro/noticia/2020/05/15/operacao-policial-no-complexo-do-alemao-causa-tiroteio-na-manhadesta-sexta-feira.ghtml. Acesso em: 28 maio 2020. 144 | COELHO, Leonardo. Polícia sumiu com João Pedro após atirar nele. Foi achado morto. Ponte, Rio de Janeiro, 19 mai. 2020. Disponível em: https://ponte.org/policia-sumiu-com-joao-pedro-aposatirar-nele-foi-achado-morto/. Acesso em: 28 maio 2020. | 145 REGUEIRA, Chico. Moradores da Favela de Acari afirmam que jovem foi torturado e morto durante operação policial. G1, Rio de Janeiro, 19 mai. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/riode-janeiro/noticia/2020/05/19/moradores-da-favela-de-acari-afirmam-que-jovem-foi-torturado-emorto-durante-operacao-policial.ghtml. Acesso em: 28 maio 2020. 146 | STABILE, Arthur. João Vitor, 18 anos: morto por ação policial que interrompeu distribuição de comida em favela. Ponte, Rio de Janeiro, 21 mai. 2020. Disponível em: https://ponte.org/joao-vitor-18anos-morto-por-acao-policial-que-interrompeu-distribuicao-de-comida-em-favela/. Acesso em: 28 maio 2020. | 147 O grupo Frente CDD reúne um grupo de 50 moradores voluntários da Cidade de Deus que arrecadam produtos de higiene, limpeza e alimentos para as famílias que estão passando dificuldades durante a pandemia. 148 | Os dados sobre tiroteios foram retirados da página do Fogo Cruzado, um laboratório de dados sobre violência colaborativo, armada com que dados disponibiliza coletados informações via usuários, através imprensa de um e aplicativo polícias. e um mapa Disponível em: http://fogocruzado.org.br/relatorios-rj/. Acesso em: 28 maio 2020. | 149 Corretor de imóveis é morto depois de entregar cesta básica na Zona Norte do Rio; policial admite ter atirado. Extra, Rio de Janeiro, 6 mai. 2020. Disponível em https://extra.globo.com/casosde-policia/corretor-de-imoveis-morto-depois-de-entregar-cesta-basica-na-zona-norte-do-riopolicial-admite-ter-atirado-rv1-1-24412796.html. Acesso em: 28 maio 2020. | 150 SOARES, Rafael. Operação da PM interrompe distribuição de cestas básicas no Jacarezinho. Extra, Rio de Janeiro, 9 mai. 2020. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/operacao- da-pm-interrompe-distribuicao-de-cestas-basicas-no-jacarezinho-24419863.html. Acesso em: 28 maio 2020. 151 | Pesquisa disponível em: https://apublica.org/wp-content/uploads/2020/05/revista.pdf. Acesso em: 28 maio 2020. 152 | por coronavírus MUNIZ, Bianca; FONSECA, Bruno; PINA, Rute. Em duas semanas, números de negros mortos é cinco vezes maior no Brasil. A Pública, São Paulo, 6 mai. 2020. Disponível em: https://apublica.org/2020/05/em-duas-semanas-numero-de-negros-mortos-por-coronavirus-ecinco-vezes-maior-no-brasil/. Acesso em: 28 maio 2020. 153 | No dia 4 de janeiro de 2016 foram abolidos os termos “auto de resistência” e “resistência seguida de morte” nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais em todo o território nacional. O objetivo seria estaduais nos a uniformização casos de lesão dos procedimentos corporal ou morte internos das decorrentes polícias de judiciárias resistência a federal ações e civis policiais. A resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia, órgão da Polícia Federal, e do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil determinou a partir de sua publicação que todas as ocorrências do tipo sejam registradas como “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à ação policial”. 154 | Um exemplo claro é a editoria do jornal carioca Extra denominada de “Guerra do Rio”, que teve estreia em agosto de 2017. Na justificativa para a criação da editoria, o jornal se justifica: Temos consciência de que o discurso de guerra, quando desvirtuado, serve para encobrir a truculência da polícia que atira primeiro e pergunta depois. Mas defendemos a guerra baseada na inteligência, no combate à corrupção policial, e que tenha como alvo não a população civil, mas o poder econômico das máfias e de todas as suas articulações. EXTRA. Isso não é normal. 2017. Disponível em Extra, Rio de Janeiro, 16 ago. https://extra.globo.com/casos-de-policia/guerra-do-rio/isso-nao-normal- 21711104.html. Acesso em: 28 maio 2020. 19: COVID- memórias e pesadelos para quase-cidadãos 155 MARCELO PAIXÃO 156 FLAVIO GOMES Memórias das vidas e mortes esquecidas Tempos de refletirmos o quanto mortalidade, história grandes econômicas. No demográficos indígenas em que cosmovisões história políticas mundial epidemias públicas com século várias ser economia nos e cidadania. diferentes XVII partes mudaram de e podem do drasticamente populações indígenas informam e falam atravessaram sociais a e vazios micro-sociedades localização. de para doenças, produziram empurrando sua sobre percepções epidêmicos Brasil, momentos Pandemias impactos surtos também A ocupações oralidade originais e nas áreas do atual Amapá de povos que migraram para a direção de Santarém, Pará, quase divisa com o Amazonas. Quem alargou as fronteiras do Brasil não foram os bandeirantes ou um ciclo econômico incerto da pecuária. Podem ter sido apresamentos indígenas, trabalho compulsório e epidemias. Mais migrações indígenas é igual a mais interiorização colonial. No século XVIII a varíola chegou a colocar sob risco o empreendimento atlântico do tráfico negreiro. Há indícios que na região Amazônica houve mortalidade de cerca de 20% da população escravizada — fundamentalmente africanos e a primeira geração de seus descendentes — na década de 1770. A cólera ( das sociedades escravistas CholeraMorbus ) abateu os porões populacionais coloniais e pós-coloniais, provocando grande incidência de mortes na população negra. Em várias partes do Caribe 3/4 da população que tinha morrido em virtude de cólera era negra (90% destes eram escravos). Os impactos epidêmicos estiveram relacionados às péssimas condições sanitárias, tanto nas cidades, onde a comunidade negra era maioria entre a população livre pobre, como nas áreas rurais, com o predomínio populacional de escravizados. No Brasil, em meados do século XIX duas epidemias colocaram em risco expectativas econômicas e projetos nação: de cólera e febre amarela. Em plena década de 1840 quando o tráfico ilegal despejava africanos por todos os lugares, senhoriais. negreiro o medo Sabe-se que atlântico) ministro da das e epidemias entre 1850 Justiça) 1831 (nova pelo lei não arrefeceu (primeira chamada menos 600 lei lucros de interesses extinção Euzébio mil e de do tráfico Queirós, africanos então entraram clandestinamente, sendo batizados e vendidos para cidades e áreas rurais em expansão. Mesmo até 1858 surgiriam notícias de desembarques ilegais de africanos pelos em várias paranaenses, partes do paulistas, Brasil, dos fluminenses, litorais catarinenses, capixabas e passando pernambucanos. A cólera matou muita gente entre os anos de 1855 e 1856. Na Corte do Rio de Janeiro os escravistas cativos com eram forte 53% expansão das vítimas, econômica enquanto cafeeira em áreas chegaram a rurais 67%. Há notícias que africanos recentemente comprados que seguiam para as áreas cafeeiras eram vitimados pela cólera. As conexões entre raça, mortalidade, epidemias e projetos de nação apareceram com força entre as décadas de 1860 e 1870, com a epidemia de febre amarela que se desenvolve mais nas cidades — Rio de Janeiro com grande força população — negra. matando Surgiria mais imigrantes europeus do que cativos e a um grande debate sobre a erradicação da febre amarela e o temor de que um projeto nacional de “branqueamento” da nação estivesse sob risco diante dos índices de mortalidade maiores na população branca e de origem europeia. No apogeu da eugenia no Brasil, as epidemias eram somente entendidas como problemas de saúde pública se afetassem com mais intensidade os ricos e os brancos, especialmente os imigrantes provenientes do continente europeu. Oliveira Vianna, importante intelectual do começo do século XX, imaginou que o Brasil se branquearia de forma através natural da miscigenação, mas, igualmente pela maior incidência sobre os descendentes dos escravizados outras de moléstias complicações brancas. Ainda hanseníase causam hoje (isto O das doenças sem estragos brasileira. típicas como deixar branqueamento alcoolismo, classes lado as inferiorizadas evitáveis de racialmente o como a a morte desproporcionais travestido de doenças aos olhos tuberculose, violenta sobre democracia a por a venéreas das e elites sífilis e a homicídios) população racial foi a afro- forma histórica assumida pelo darwinismo social, o racismo científico e a eugenia no Brasil. Negros, considerados indígenas quase-cidadãos, e ou seus descendentes seja, uma de gentalha peles de escuras segunda são ordem, indesejáveis, dispensáveis. Uma história que, como podemos ver, tem sua origem na noite do tempo histórico brasileiro. Mas que se perpetua permanentemente, se avultando em situações de calamidade social tais às que verificamos agora com o fantasma da COVID-19. 19: COVID- Em 1918 a epidemia e a eugenia uma impropriamente variante do chamada vírus de semelhante espanhola, ao matou novo entre coronavírus 40 a 50 atual, milhões de pessoas em várias partes do mundo. Houve uma pandemia da gripe influenza e sua entrada foi via portos. O surto desta gripe mundial estava relacionado — entre outras coisas — ao pós-Primeira Guerra Mundial. A medicina científica da época demorou a identificar o vetor da doença e o isolamento do vírus, por exemplo, só aconteceu em 1930. Seja como for, situações de descalabro político, econômico e social — assim como colapsos ambientais — favorecem mundo atual Mundial, que a propagação não só vive de os de calamidades escombros combatentes de ceifou a daquela uma vida natureza. guerra, de como quase nove Decerto a o Primeira milhões de pessoas. Mas o século XXI já se iniciara suficientemente zangado para deixar bastante nítido que problemas gravíssimos pairavam sobre a vida de cada um dos sete bilhões de seres humanos que povoam este planeta. Tivemos tempo para nos preparar para o pior. Não sem alguma dose de ironia, mesmo diante do evidente risco que nos acossava, a humanidade se deixou levar pelas delícias da realidade virtual. No globalizado do século XXI, as epidemias de SARS, a Gripe Aviária, a 157 e o Ebola — em diferentes proporções — já Gripe Suína (H1N1), a MERS ceifaram a vida de mais de 200 mil seres humanos. Sabemos de experiência anterior que o vírus — ainda desconhecido considerando as suas mutações etc. — pode ser implacável. Mas o problema sanitário, em si só desastroso, pode se potencializar diante de um cenário internacional de crescimento das desigualdades sociais, da xenofobia, da intolerância e do racismo. 158 no começo deste ano de 2020 divulgou o relatório Tempo de A OXFAM Cuidar — O trabalho de cuidado mal remunerado e não pago e a crise global da 159, o qual indicava que os 2.153 bilionários do mundo detinham desigualdade mais riqueza do que os 4,6 bilhões de pessoas e, ainda, que os 22 homens mais ricos do mundo se apropriavam de mais riquezas do que todas as mulheres que vivem na África. O mesmo estudo ainda apontava que metade da população no mundo sobrevivia com menos de US$ 5,50 por dia e que a taxa de redução da pobreza caiu pela metade desde 2013. Parece óbvio que este contexto é produto das profundas transformações que ocorreram no mundo e que desequilibraram fortemente o jogo em favor dos detentores da riqueza material e financeira. Diante desta realidade seriam necessários amplos esforços de coordenação entre os países do mundo, e dentro de cada país, que permitissem provenientes das que revoluções os na elevados produção, ganhos na de informação produtividades e na logística pudessem ser transferidos para setores mais amplos das populações de todo o mundo. Mas o contrário foi o que aconteceu. Progressivamente, em todo o planeta, ocorreu um crescimento da direita xenófoba, machista, intolerante e racista. Neste Organização teatro das de Nações absurdos Unidas agora encenados (ONU) e seus em escala diversos global, a organismos perderam poder de articulação lançando todo o planeta em um novo tipo de darwinismo social ainda mais perigoso, tendo em vista o alcance dos sistemas de vigilância e de controle, o poder das armas de destruição em massa e as fragilidades aquecimento global, o ambientais progressivo de todo o mundo, desaparecimento de tais como espécies e o de ecossistemas e o risco concreto e real de uma sexta extinção em massa no planeta Terra. É neste cenário que incide a COVID-19, tornando o que deveria ser um problema de saúde pública em uma crise sem precedentes desde o colapso da Segunda Guerra Mundial. Em si um vírus pode contagiar qualquer um, não escolhendo raça e nem classe. Mas as condições de vida desfavoráveis de grupos sociais de menor poder aquisitivo e historicamente discriminados os vulnerabilizam de forma especialmente perversa. Segundo a Universidade John Hopkins, nos EUA, onde pouco mais de um terço dos óbitos por COVID-19 tiveram a raça da vítima coletada, os negros correspondem a 13% da população daquele país, mas a 34% do total de óbitos. Segundo a mesma fonte, no momento em que estas linhas são escritas, o Brasil já havia assumido o segundo lugar no mundo em termos Epidemiológico de números Especial de 8 de oficiais maio de de casos: 2020, do 374.989. O Ministério Boletim da Saúde, indica que até o começo de maio cerca de 60% dos casos oficiais de COVID- 19 tiveram Destas, a 54,7% cor da eram pessoa brancas, infectada 36,3%, declarada pardas, e no 6,8%, prontuário pretas. médico. Porém, ao se analisar o percentual dos óbitos, das 4.618 pessoas vitimadas pela COVID-19 cuja cor ou raça foi reportada na declaração de óbito, o percentual de pessoas brancas caía para 47,7%, ao passo que das pardas se ampliava para 42,7% e pretas para 7,4%. O que estes dados sugerem são diferenças tanto na qualidade do atendimento, como o momento de vida que cada uma daquelas pessoas se transporte violência, encontrava cotidiano a quando mais foi precário, discriminação infectada. os agravada A maiores de raça pior alimentação, estresses e de causados gênero, o pela enfim, um somatório de causas permitindo críveis suposições sobre as razões daquelas diferenças. Para a COVID-19 não adianta procurar solução nos portais de busca da Internet, pois a tal cura através de uma vacina, com algum otimismo, não será viável em menos de um ano e meio. A medida racional mais imediata a ser adotada neste momento foi e é o isolamento social, retardando assim a propagação da doença. Isto permitiria que o sistema de atendimento público pudesse ser reorganizado, equipamentos de proteção e respiradores pudessem ser produzidos progressivamente em fosse grande aplicado massa, assim como periodicamente o kit a de testes vastíssimos contingentes que, uma vez testados como positivos, deveriam ser colocados em imediato isolamento e tratamento. Porém, o tédio do isolamento social para os setores médios, e principalmente para as elites, tem como contrapartida a fome coletiva da população mais pobre. Para algumas comunidades espalhadas em grandes e médias cidades “ficar em casa” (e sabemos da importância desta medida) é também manter quadrados, mais sem a de uma circulação dezena de ar (e de pessoas a doença em se poucos instala metros nas vias respiratórias) e sem água. Clamar por higiene para a população pobre, que sequer dispõe de recurso básico como a oferta de água e esgoto, é quase uma ironia. O ideal seria um álcool gel social, com políticas de governo, articulando sistema de saúde e de proteção da renda dos trabalhadores e dos setores informais da economia. Junto com sofrimento e a quantificação no medo de da quem mortalidade adoece — é fundamental incluindo pensar familiares no — e sobrevive à sustentar doença. e, para Enquanto as pessoas não trabalham elas precisam tal, será preciso o estabelecimento de uma se política universal continuada de transferência de renda para os que estão fora da força de trabalho involuntariamente. Obviamente o crédito ou o papel moeda pouco ajuda se não há riqueza material sendo produzida. E, para isso, mais uma proteção vez, para se os colocaria a necessidade trabalhadores das dos testes indústrias, das e equipamentos fazendas e de de outras atividades imprescindíveis. Ainda a respeito de políticas distributivas, há de se salientar representado Sistema a importância pela Único mortalidade de grande sistema conquista Saúde brasileira do (SUS). dos da público de Constituição Algo ainda profissionais de saúde, de pouco no 1988 Brasil que foi dimensionado, saúde é altíssima o a em comparação a outros países. E não são apenas médicos, mas uma legião de enfermeiros e de técnicos, majoritariamente negras e negros. Diante da gravidade da nova realidade criada pela pandemia seria necessário apoiar a pesquisa científica, criar mecanismos inteligentes para retardar a propagação do vírus, políticas universais de transferência de renda e o trato específico para grupos demográficos mais vulneráveis entre os quais os idosos, pessoas imunodeprimidas e os grupos de menor poderio econômico e os historicamente discriminados. Enfim, esta e outras soluções demandariam redistributivas, onerosos recursos articuladas à financeiros vontade política, e materiais políticas de e medidas Estado, ações governamentais (municípios, estados e União) e gestão. Isto não iria acabar com a COVID-19, mas poderia mitigar razoavelmente seus efeitos. No caso das políticas de combate à AIDS verificou-se que mesmo sem uma vacina as políticas públicas retrovirais infectados. de investigação conseguiram Será difícil científica, prolongar imaginar que de com o forma a teste e a satisfatória COVID-19 a produção a saída vida será de dos muito distinta, com a diferença de que esta moléstia tem um poder de contágio infinitamente maior (e de certa forma, uma letalidade mais imediata) posto poder ser contraída no ar que se respira. Ao contrário dos tempos da espanhola , mesmo sem saber como, há uma universal noção sobre o que deve ser feito. Mas pior do que o vírus em si é a falta de lucidez ou vontade política para enfrentar de forma socialmente justa (ou seja, rejeitando fortemente os termos do darwinismo social) os problemas existentes. Considerando que recursos financeiros não nascem do nada, a consequência natural desta proposta é que os mais ricos teriam de ser os mais onerados na busca de uma solução para o drama colocado. Porém, diante da atual correlação de forças política em todo o mundo, esta alternativa atualmente é singelamente inviável. No Brasil as tímidas medidas adotadas em prol da distribuição de renda já foram em grande parte anuladas pelo somatório da crise econômica e política, assim como pelas reformas constitucionais recentes nas legislações trabalhistas e previdenciárias. Uma noção tosca de teoria econômica aplicada pelos governos de todo o mundo nos leva à resignação diante do óbvio fato de desigualdades que sem sociais, mecanismos com ou sustentáveis sem para pandemia, a redução estamos das indo planetariamente para um poço sem fundo. Inversamente, no cenário atual, políticas redistributivas são ridicularizadas como populistas ou demagógicas. A COVID-19 foi originalmente introduzida no Brasil pelas classes mais abastadas provenientes de suas viagens ao exterior. Diante da pandemia, setores expressivos da sociedade brasileira preferem apostar na estratégia negacionista, chegando ao ponto de rejeitar pura e simplesmente a existência do problema. Como os dados existentes apontam para uma maior incidência e letalidade da doença entre os mais pobres, assim como para os grupos historicamente discriminados como indígenas e negros, vem se dando uma progressiva racialização do problema. Ou seja, se o assunto de interesse público é identificado como coisa de preto e de pobre, então ele não é problema de verdade. Tal como exemplifica de forma ilustre os dados sobre o homicídio da juventude negra. O vírus pode ser daltônico, mas a bala, supostamente perdida, parece saber em que corpo deve se alojar. O menino João Pedro (amém, moleque!) estava em casa e não foi alvejado pela COVID-19. De uma forma ou de outra, a longa lógica da eugenia sabe selecionar as vidas que ela deve ceifar. Divisor de águas e uma causa em comum Em 1918, brasileira, relação a quando a escravidão existente emancipação, o entre gripe espanhola havia o acabado tráfico pensamento apanhou no atlântico, social, a Brasil a em há cheio 30 anos. escravidão economia de a população Mas moderna, mercado e a qual a a pós- ideia de modernidade com raça e com epidemias numa reflexão de ontem para hoje? Neste meio termo diversas moléstias históricas como a tuberculose, a hanseníase e a sífilis foram tecnicamente vencidas através de novas vacinas, testes e tratamentos. Isto não impediu que tais doenças seguissem fazendo parte da realidade de milhares de negros e de negras brasileiros, mesmo em pleno século XXI. De certa forma, a maneira como cada um de nós vive determina como cada um de nós padece. Neste terreno, as epidemias são problemas históricos associados a tantas outras mazelas como a desigualdade social, o racismo e a xenofobia. Obrigatórias ou não, vacinas ajudaram a humanidade a superar alguns obstáculos, mas em si foram inermes para dar conta dos seculares problemas como as desigualdades sociais e as raciais. Obviamente, esperamos que uma milagrosa vacina possa ser testada com sucesso o quanto antes, assim poupando os brasileiros e toda a humanidade de ainda mais sofrimentos. Mas o tempo anterior à COVID-19 já era bastante sofrido para milhões de pessoas vulneráveis a toda sorte de mazelas. Sair deste pesadelo apenas nos levará de volta à vida que tínhamos antes. A conclusão natural deste raciocínio é que, atualmente, nos encontramos num caminho circular. Foi justamente o que tínhamos antes que nos colocou nesta ratoeira. Expressando o que ocorre enquanto vivemos, há desigualdade adoecimento e na morte. Como foi há 100 anos na pandemia da também agora com a COVID-19, nos encontramos em uma no influenza espécie e de divisor de águas, onde projetos distintos de mundo se apresentam, podendo nos levar para um ou outro lugar. Tal como naqueles idos, as disputas e as lutas a serem travadas definirão o restante do século XXI e o tipo de planeta que seguirá nos carregando universo afora. Desenvolvimento científico e mais recursos médicos e tecnológicos com eficácia poderão ser associados ao combate às desigualdades, ao racismo, ao sexismo e a todas as formas correlatas de intolerância. Isto, mais o aprofundamento da democracia e a adoção de modelos de desenvolvimento sustentável poderão representar um novo amanhã para populações de todo o mundo. Ou não. Referindo-nos especificamente ao Brasil, atualmente, amplos setores da população ainda são contra a distribuição de renda, as ações afirmativas, ao desenvolvimento sustentável, aos direitos humanos, à liberdade de imprensa e à igualdade de gênero. Mesmo sem COVID-19 já pairava em todo o mundo, especialmente no Brasil, o fantasma da intolerância pela via do darwinismo social, racismo e da xenofobia. No meio de uma imensa tragédia, se somam as do fake news , a total ausência de articulação entre os poderes, o desastre econômico e o risco de um progressivo colapso institucional que poderia levar a sequelas ainda piores em diferentes planos. Diante do demônio invisível que paira, a humanidade poderá chafurdar numa agonia sem fim, no qual os termos mais duros do darwinismo social, da eugenia e do ódio se tornarão o prato principal. NOTAS | 155 Professor da Universidade do Texas, Austin; presidente da Brazilian Studies Association (BRASA). 156 | 157 | 158 Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Middle East Respiratory Syndrome (Síndrome Respiratória do Oriente Médio). | A OXFAM é uma confederação que atua em mais de 90 países na busca de soluções para o problema da pobreza, desigualdade e da injustiça, por meio de campanhas, programas de desenvolvimento e ações emergenciais. Ver: https://www.oxfam.org.uk/. Acesso em: 26 maio 2020. 159 | Disponível em: https://rdstation- static.s3.amazonaws.com/cms/files/115321/1579272776200120_Tempo_de_Cuidar_PTBR_sumario_executivo.pdf. Acesso em: 26 maio 2020. Muito além da perda da libido 160 GUILHERME ALMEIDA Pandemia. A palavra mais proferida dos últimos três meses. Muito tem se falado acerca do contexto posts lives jornalísticas, , da pandemia em textos acadêmicos, matérias e tantos outros recursos do debate contemporâneo. Se considerarmos que sexualidade é mais do que genitalidade e mais do que a compilação das atividades sexuais de um indivíduo, podemos começar a enxergar as complexas relações entre sexualidade e pandemia. Vale então relembrar com Weeks, que: [...] embora o corpo biológico seja o local da sexualidade, estabelecendo os limites daquilo que é sexualmente possível, a sexualidade é mais do que simplesmente o corpo [...] o órgão mais importante nos humanos é aquele que está entre as orelhas. A sexualidade tem a ver com nossas crenças, ideologias e imaginações quanto com nosso corpo físico [...] os corpos não têm nenhum sentido intrínseco e a melhor maneira de compreender a sexualidade é como um “construto histórico” (1999, p. 38). Além disso, para o mesmo autor, a sexualidade é um tema para a história. Uma história da sexualidade é a história de um tema em fluxo constante. É uma história de nossas preocupações sempre mutantes acerca de como devemos viver, de como devemos desfrutar ou negar o nosso corpo, tanto quanto é uma história do passado. A maneira pela qual escrevemos nossa sexualidade nos diz tanto do presente e suas preocupações como do passado, portanto (WEEKS, s.d., p.57-58). A pandemia da COVID-19 é muito mais tornou-se sinédoque da expansão de uma acontece nas inúmeras construções que do praxis tratam que uma infecção neofascista o no viral, país. bolsonarismo Isto como o “verdadeiro” vírus ou a “suprema pandemia”. O bolsonarismo tem sido tomado por muitas pessoas como uma espécie de vírus que atacou o sistema político e parte capacidade de: da população rápida brasileira. propagação Isso (inclusive é verdadeiro virtual); de por submeter sua os/as hospedeiros/as à replicação de certos comportamentos (como a negação da importância das mortes pela COVID-19, por exemplo); por seu caráter oportunista (aproveita a baixa resistência da população e das instituições neste momento); pelo risco que comporta em sua tentativa de escalada autoritária (BALBI, 2020). Se considerarmos então que a pandemia vem ganhando dimensões completamente distintas nas diferentes regiões do globo e diferentes países entendemos que, não obstante a sua dimensão global, ela interatua com os contextos econômicos, políticos e culturais das realidades em que incide: Em que pesem todas as repercussões sobre a saúde e as vidas das populações, a pandemia de COVID-19 tem provocado reflexões sobre as formas de viver e de produzir, assim como sobre os valores e as instituições que sustentam a organização da sociedade. Esta pandemia também é responsável por recolocar, no cenário nacional e internacional, os saberes científicos como recursos valiosos no enfrentamento do novo coronavírus [...]. No entanto, este contexto também demonstra que: (i) a saúde, enquanto estado vital, setor de produção e campo de saber, está articulada à estrutura da sociedade através das suas instâncias econômicas e político-ideológicas, apresentando, portanto, uma historicidade; e (ii) as ações de saúde (promoção, proteção, recuperação, reabilitação) constituem uma prática social e trazem consigo as influências do relacionamento dos grupos sociais [...]. Desta maneira, as consequências da pandemia de COVID-19 não serão interpretadas e compreendidas se, além da dimensão biológica, não houver um rigoroso exame dos diferentes objeto demanda uma grupos sociais. integração no Nesse sentido, plano do o caráter conhecimento interdisciplinar de profissionais desse com múltiplas formações, incluindo as ciências sociais e humanas (CSH) (ABRASCO, 2020). A começar pela própria “chegada” da pandemia, vimos o efeito sinérgico que teve com a formação sociohistórica e cultural do nosso país. Não foi fortuito, portanto, que num país que ostenta uma das maiores desigualdades sociais do planeta, o novo coronavírus tenha chegado através dos aeroportos e portos por onde circulava a elite econômica nacional vinda de suas excursões pela Europa, EUA e Ásia. Também, não foi acaso, que a primeira vítima fatal da COVID-19 no Rio de Janeiro tenha sido uma mulher preta, pobre, idosa e empregada doméstica da elite do Leblon (MELO, 2020). Conforme Coelho e Almeida Filho (1999, p.24), a saúde para Canguilhem “é o luxo de se poder cair doente e se restabelecer” e o acesso ou não a este luxo é socialmente desenhado. A pandemia de COVID-19 explicita que pegar todo mundo dispostas (o infectado/a pode, que que, mas é nas Canguilhem na maioria características chamou das de sociais “modos vezes, vai interseccionalmente de andar estar a gravada vida”) a do/a ferro a possibilidade ou não de sobrevida ou de morte mais ou menos assistida e tranquila. Há algo anterior a ser discutido que é anterior à chegada da pandemia da COVID-19 no país. É a chegada ao poder — pela via eleitoral — da extrema direita à presidência da república. Não é pretensão de este pequeno artigo refletir com profundidade sobre o conjunto amplo de determinantes da chegada ao poder deste bloco econômico-político. Apenas desejo destacar um elemento sem o qual o festival de fake (disparadas news via web aos celulares por robôs às vésperas da eleição) não teria sido bem sucedido. Este elemento é a gestão da sexualidade e das relações de gênero que aquela coalisão de forças reacionárias realizou. Em outras palavras: foi a promessa de uma política sexual em moldes antidemocráticos, repressivos e detratores de direitos, que assentaram as bases para sua conflagração junto a segmentos sexual conservadores conservadora uma que tem na estratégia retórica de em poder, a torno saber: da moralidade parte dos/as católicos/as e neopentecostais, militares e agentes de segurança, políticos, juízes e mídias outros operadores igualmente. Tais do Direito, agentes jornalistas permitiram uma e operadores propagação de viral novas destas ideias junto a segmentos populares no contexto eleitoral. O que afirmamos é que, sem o recurso à cruzada 161, antigênero sem contestar os direitos da população LGBTQI+, sem negar o direito ao aborto, sem a valorização das masculinidades e feminilidades tóxicas, sem o proselitismo de uma relação masculinista, predatória e abusiva com o meio ambiente e, sem o racismo ambiental, dela decorrente, tal coalisão não chegaria ao segundo turno do mais alto cargo do Poder Executivo. Este governo de extrema direita, sem sua política sexual, jamais teria tido espaço para uma praxis neofascista e eugênica, inclusive de gestão da pandemia. E, certamente, a pandemia de COVID-19 teria chegado ao país e seria enfrentada em muito melhores condições econômicas, políticas e culturais. Desta forma, milhares de vida poderiam ter sido poupadas. Sexualidade, exclusivo falar do da psicologia. direito condições. atual portanto, Há governo pobre. Além à ela disso, assunto para quatro 162 uma é é Discutir política sexual manutenção apenas e não vida política branca, ela da e de sexual vivê-la o e direitos morrer legitimada heteronormativa, pressupõe e paredes tema 163 sexuais em de no reprodutivista todas é melhores discursivamente sexista, extermínio ou as e outras dissidências da sexualidade. Esta é uma pandemia que afeta e é afetada drasticamente pela nossa sexualidade. A começar pelo fato de que sua propagação se dá nos domínios da corporalidade (inclusive não genital): convívio e proximidade, apertos de mão, abraços, beijos, toques de pele contra pele, compartilhamento de objetos. Subitamente, uma cortina de látex se interpôs ao que amamos e/ou desejamos. Faz saudade o tempo em que o único motivo para queixa era uma barreira de látex que esticada ficava com vinte centímetros. Hoje, ela impede nossos prazeres mais frugais e, também, os mais temerários. Vimos nossos espaços de interação social e sexual reduzidos drasticamente à frigidez das telas mortas. Isto é tanto pior, quando consideramos — como disse Jean Cocteau — que a sexualidade é a base de toda amizade. Além disso, nossos corpos foram confrontados com a dificuldade de manter a ilusão da liberdade absoluta de ir e vir a seu bel prazer. O que fazer se a monogamia formal era sustentada pela informalidade de outras colisões afetivo-sexuais e agora não se pode sair de casa sem culpa? O que fazer se parte da nossa sexualidade é atendida por relações de compra e venda de serviços (serviços sexuais propriamente ditos, massagens, terapias corporais de relaxamento, serviços de embelezamento, entre outros) e eles viraram ambientes de extremo risco de infecção? Nossa sexualidade está compulsoriamente sendo remodelada a partir do atrito com novos dilemas. Discutir sexualidade em nossa cultura implica necessariamente em discutir mercado e trabalho sexual. É um mercado que movimenta bilhões de reais, sustenta um número imenso de pessoas e famílias e que também está em crise. As lutas sociais pela regulamentação deste tipo de trabalho sempre tiveram implementado país. Os como como oponente adequadamente homens e mulheres trabalhadores/as um o proibicionismo, conjunto cisgêneros/as sexuais em e jamais de direitos neste sentido as pessoas trans que e ambientes reais talvez estejam foi no atuam entre os/as mais atingidos/as pelo contexto social da pandemia, seja porque ela afeta irremediavelmente pelos serviços a sexuais, sensibilidade seja porque e, consequentemente, historicamente a procura nunca tiveram mecanismos de proteção social dirigidos a si. Até onde acompanhei entre os mecanismos de transferência de renda emergencial acionados pelo Poder Executivo pequenos sexuais. federal e estaduais empreendores/as, Por outro trabalhadores/as lado, para não estou certamente há trabalhadores/as qualquer certo os/as menção de que habilita para a a a autônomos/as e trabalhadores/as criatividade produção de destes/as respostas mais inventivas à sexualidade nos novos tempos, a exemplo do que foram capazes de oferecer na luta contra o HIV. Conversa-se muito sobre a perda da libido ou sobre desencontros entre casais (até então bem casados) onde um/a manteve ou ampliou o interesse sexual e o/a compreensão outro/a (bem não. São abalos disfarçada) que sísmicos podemos no ter amor do/a cortês e/ou cônjuge prestador/a de serviços sexuais. Mas falar disso ainda é muito pouco. na como Face à necessária e amaldiçoada quarentena, as recorrentes violações dos direitos sexuais adolescentes, dentro de e as violências majoritariamente suas casas — são sexuais — mulheres majoradas e nos que até acometem idosos/as, exíguos metros crianças, muitas vezes quadrados da casa-cela. Se estas violações eram “suavizadas” pelo regime semiaberto que permitia uma evasão para o mundo exterior, a “escolha” passou a ser entre submissão e infecção, e o alívio ocasional cessou e é eventualmente denunciado pela via virtual. A quarentena não vem tendo os resultados sanitários esperados no país, em grande medida, pela arrogância de uma virilidade branca, classista e eugênica, que não aceita receber limites ao seu poder de ninguém, nem de um vírus. Esta virilidade constrói tão compulsivas e agressivas relações com o prazer, que é incapaz de encontrá-lo nas “pequenas coisas” do mundo doméstico. A quarentena contribuiu para evidenciar também, muitas vezes, os limites de moralidade uma vida familiar conservadora, que, muitas a despeito vezes é do familismo extraordinariamente típico pobre da em significado no cotidiano. Face à quarentena, explicitadas, mas as relações também abusivas emergiram e/ou os desprazerosas sucessos foram (por vezes desconsiderados) de outras tantas formas de relacionamento familiar e/ou afetivo-sexual. São os sucessos de famílias e redes de amizade com formatos pouco convencionais, mas capazes de oferecer suporte econômico e subjetivo em meio à pandemia. São os sucessos de relações afeitas à simetria de direitos, ao respeito à autonomia e aos gostos dos/as parceiros/as. Harmonias insuspeitas puderam ser encontradas por praticantes de sexo tântrico por (acostumados voyeurs virtual, por praticantes e práticas exibicionistas exemplo), de a por 164, BDSM de sexuais nudes prolongadas (mais celibatários/as por bem e mais adaptados/as satisfeitos/as, poliamoristas ou relaxantes), por praticantes ao sexo fetichistas, de relações abertas... É uma polimorfia de possibilidades erótico-políticas que podem deixar sua condição social de à heternormatividade exóticas pela necessidade de respostas criativas compulsória, aos limites opressivos de práticas sexuais com finalidades meramente reprodutivas ou das condutas eróticas com rígidos limites descolonizadas, exógenos. É demonizadas possível ou que sexualidades clandestinas possam dissidentes, oferecer um repertório mais rico de elaboração erótica em meio à crise e para além deste momento. É possível inclusive que isso tenha efeitos benéficos para a saúde mental. Por fazer outro lado, escolhas é possível dizer que a oportunidade de, minimamente, afetivo-sexuais em nossa sociedade é prerrogativa das camadas médias e das elites, sobretudo no contexto de crise econômica que antecedeu e se aprofundou durante a pandemia de COVID-19, com pífias respostas governamentais satisfatória é a ela. comprometido É em certo que grande o direito parte pela a uma sexualidade baixa capacidade econômica dos sujeitos. Porém, abastados sexualidade da vida. não Os é um recursos luxo de que consumimos autoconfiança, em prazeres, momentos disputas e acordos inerentes aos jogos eróticos podem ser componentes importantes da saúde sexual. Eles podem também auxiliar no desenvolvimento de uma atitude mais crítica e de agência diante dos regimes autoritários e supressores de direitos. A sexualidade, não à toa, sempre foi uma arena perigosa e disputada. Através do controle dos corpos e de suas possibilidades, impõem-se mais facilmente regimes de destruição crescente das oportunidades da vida para a maioria e se constitui privilégios e abusos para um grupo seleto. REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA (ABRASCO). Precisamos das Ciências Sociais e Humanas para compreender e enfrentar a pandemia de COVID-19. Disponível em: https://tinyurl.com/yd6ndu74. Acesso em: 23 abr. 2020. BALBI, Henrique. Disponível O em: vírus como metáfora. Época, Revista 11/03/2020. https://epoca.globo.com/henrique-balbi/coluna-o-virus- como-metafora-24298637. Acesso em: maio 2020. CARRARA, Sergio. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. Bagoas, v. 4, n.5, p. 131-147, 2010. COELHO, Maria Thereza Normal-patológico, Ávila Dantas; saúde-doença: ALMEIDA FILHO, revisitando Naomar de Canguilhem. Almeida. Physis, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p. 13-36, 1999. CORRÊA, Sonia. A política do gênero: um comentário genealógico. Cadernos Pagu, Campinas, n.53, 2018a. CORRÊA, Sonia. Eleições brasileiras de 2018: a catástrofe perfeita? Sexuality Policy Watch, Rio de Janeiro, 12 nov. 2018b. Disponível em: https://sxpolitics.org/ptbr/eleicoes-presidenciais-brasileiras-em-2018-a- catastrofe-perfeita/9008. Acesso em: maio 2020. CORRÊA, Sonia; PETCHESKY, Rosalind. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Physis, Rio de Janeiro, v.6, p.147-177, 1996. FIFIELD, William. Entrevista a Jean Cocteau, publicada originalmente na Paris Review, nº 34, verão de 1964, e republicada históricas entrevistas da Paris Review. 1989. no livro Os escritores 2: as São Paulo: Companhia das Letras, MELO, Maria Luisa de. Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon. Disponível em: https://tinyurl.com/y7bfrrds. Acesso em: maio 2020. WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: corpo educado: pedagogias da LOURO, sexualidade. Guacira Lopes (Org.). O Belo Horizonte: Autêntica, 1999. WEEKS, Jeffrey. La invencion de la sexualidad. México, S.d., p.55-87. Disponível em: https://www.dgespe.sep.gob.mx/public/genero/PDF/LECTURAS/S_01_0 4_La%20invenci%C3%B3n%20de%20la%20sexualidad.pdf. Acesso em: jan. 2020. NOTAS 160 | 161 | Professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para uma discussão extensa sobre as cruzadas antigênero, sua gênese e significados não só no Brasil, cf. Corrêa (2018a; 2018b). 162 | 163 | 164 Para uma discussão conceitual sobre política sexual, cf. Carrara (2010). Para uma discussão conceitual de direitos sexuais, cf. Corrêa e Petchesky (1996). | Conjunto de práticas consensuais envolvendo sadomasoquismo e outros padrões de comportamento sexual. bondage, disciplina e dominação, “ :” Entre a deriva e o naufrágio notas sobre a população LGBTI em 19 tempos de pandemia da COVID- 165 MILENA CARLOS DE LACERDA “É difícil assinalar a perda de uma vida que nunca contou como vida”. [ BUTLER , 2019 ] Estamos passando pela maior pandemia desde a Gripe Espanhola de 1918. No instante no qual escrevo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) registra que o novo coronavírus vitimou cerca de 335.218 pessoas no mundo e 20.112 no Brasil e esse número deverá aumentar até o findar do dia. Numa estimativa pessimista, o país poderá alcançar a margem de 194 mil óbitos, a depender das medidas adotadas pelos gestores públicos, conforme estudo do Instituto de Métricas e Avaliação da Saúde da Universidade de Washington. Trago uma reflexão no calor dos acontecimentos, nem tão acalorada dado o necessário distanciamento social e o inevitável pico de contágio, ainda que a passos largos das condições ideais de afastamento que oportunizariam uma análise aprofundada da COVID-19 e dos seus impactos. Temos poucas possivelmente, informações nunca sobre tenhamos a quem real eram dimensão os 166. “inumeráveis” das mortes E, decorrentes desta pandemia acirrada pela omissão do Estado no enfrentamento ao vírus, a despeito da crescente subnotificação dos casos confirmados e da subnumerificação das mortes. Num naufrágio Governo Federal contaminações mistificadores sarcasmo mortes de e e seculares, concentrou-se mais na ao sofrimento pandemia se menos falência irracionalistas, frente pela proporções da entre nos objetivam e a numa e feridos, falecimentos economia, contrapondo-se alheio mortos através ao de instabilidade dos do nas discursos isolamento minimização e o social. efeitos O das Ministério da Saúde e na propaganda de caráter obsessivo por um medicamento que não possui eficácia comprovada e reconhecimento médico e científico. Em meio à crise sanitária, nos interrogamos como a população LGBTI (Lésbicas, Gays, vivenciando a Bissexuais, pandemia Transexuais, da COVID-19, Travestis e Intersexuais), considerando os está rebatimentos particulares nesse público. Abordar os desafios desta população em tempos da propagação do vírus SARS-COV2 no Brasil requer um breve resgate das questões referentes à sexualidade e identidade de gênero existentes antes de nos tornarmos o país com maior número de mortes e contágios na América Latina. sobre Nessa a sexuais crise e as perspectiva, do capital, tal o necessidades reflexão abuso envolve uma governamental particulares relativas análise em aos torno LGBTI aproximativa dos em direitos meio ao espalhamento vertiginoso do vírus. A impossibilidade de acesso à saúde, educação, habitação e políticas de emprego e renda vinculam-se à invisibilidade e exclusão de determinados indivíduos, poder cujos público, indicadores dificultando sociais as sequer iniciativas são e mapeados ações de por parte do enfrentamento à discriminação. Além da subnotificação dos dados, em geral, sistematizados pelas organizações persecutória que LGBTI, atravessamos descredibiliza as uma pesquisas onda científicas âmbito das universidades e dos institutos de pesquisa. negacionista produzidas e no A ausência de visibilidade e monitoramento epidemiológico da população LGBTI ofusca o vilipêndio de pessoas que, no Brasil, ainda não adquiriram sequer o status de cidadão de direito. O aumento galopante do contágio na realidade políticas para o brasileira combate à agrava-se LGBTfobia, no contexto reverberando da redução um das contexto de conservadorismo e fascismo pujantes. Isso indica que o novo coronavírus e suas expressões adjacentes representam algumas voltas a mais no parafuso da LGBTfobia, uma vez que a situação de extrema vulnerabilidade é acentuada nos momentos de crise. A alegoria do barco LGBTI em meio à pandemia da COVID-19 somente adquire legitimidade quando projetamos as dimensões de gênero, raça e classe social. Por este motivo, não tomaremos as pessoas LGBTI descoladas da realidade social, mas em sua materialidade concreta numa intersecção com as demais corporalidade forças capitalistas 167 é racializada e de opressão, generificada ao passo inserida que em essa aspectos territoriais determinados. Os retrocessos no campo dos direitos sexuais se fortaleceram com a ascensão do governo ultraconservador, que recorrentemente propaga um discurso nacionalista calcado no fundamentalismo religioso, através da instauração de um projeto autoritário sustentado por uma milícia digital. Desde o medidas golpe de da parlamentar, austeridade, contrarreforma públicos, jurídico do trabalhista perseguição e às célere observamos desmonte previdenciária, universidades do a dos intensificação direitos sociais, congelamento públicas e do dos das da gastos sucateamento e privatização das políticas da saúde, assistência e educação. A capilaridade ideológica e política do mote “Deus acima de tudo e o Brasil acima de todos” associa-se à agenda neoliberal, acompanhando o avanço da extrema direita em outras partes do globo. Na altura desses acontecimentos históricos, a “cultura do ódio” e a “agenda antigênero” repercutem diretamente na vida das pessoas LGBTI, propondo um conjunto de ações e estratégias voltadas para o sujeito universal figurado no “cidadão de bem”, notadamente cruzada da homem “ideologia branco, de heterossexual, gênero” que “cabe conservador de tudo um e pouco cristão. numa A lista virtualmente longa”, obtém contornos particulares na América Latina, num esforço episcopal de recuperar os valores da família nuclear burguesa, da limpeza da corrupção e expurgo da infiltração “esquerdista” da máquina pública. O “cidadão então, se bem sentia antirracistas políticas de de e paladino da secundarizado pela anti-LGBTfóbicas, cidadania para moral e bons ascensão notadas negros, dos na das criação LGBTI costumes”, e pautas e que, até feministas, fortalecimento mulheres, de recuperou a “autorização e o devido reconhecimento” dos seus privilégios. Os asseclas das políticas bolsonaristas fomentam a violência, o racismo, a homofobia e o sexismo com fortes traços fascistas, com direito à recordação saudosa do Golpe de 1964, motivados por uma espécie de redenção nacional do que lhes caberia por direito. O poder de decisão sobre quais vidas realmente importam, nos termos de Butler (2019), evidencia (masculino/feminino) “outro” numa e a de hierarquização um engrenagem ideal do da norma heteronormativo normal e do que patológico, binária qualifica o desviante e subalterno. A defesa da família recupera traços eugênicos e pautados num suposto darwinismo estigmatização aumento das que social, culminam violências e de promovendo na restrição assassinatos, de práticas direitos motivadas cotidianas fundamentais pelo de e no imperativo de sexualidade e expressão/identidade de gênero. A noção eliminado sexual da homossexualidade propõe que se soluções relacionam como milagrosas com patologização e medicalização. o livre problema e/ou e desvio terapêuticas mercado e com de as moral a ser reconversão dinâmicas de A direção materialista que interpreta o movimento da realidade para além da imediaticidade nos permite inferir que a crise de proporções mundiais não se trata exclusivamente da pandemia da COVID-19. A atual crise agudiza contradições fundamentais da produção e reprodução das relações sociais capitalistas. O retorno à ‘normalidade’ desconsidera o patriarcado e a escravidão como componentes da sociabilidade capitalista, naturalizando a desigualdade racial, sexual e de gênero que marca a nossa formação sócio- histórica. Sob essa perspectiva, precisamos refletir acerca dos impactos específicos da COVID-19 sentidos pela população LGBTI: Como esses sujeitos estão vivenciando a atual crise? Quais as condições objetivas e subjetivas para o isolamento social das pessoas LGBTI? Quais as relações de trabalho e acesso a equipamentos de proteção? De que forma são tratados/as nos serviços públicos de saúde? Quais as condições de moradia e saneamento? Como se manifestam políticas as relações sexuais existência desse no familiares momento segmento nesse da contexto? pandemia? populacional Como Quais se as historicamente inserem condições as de marginalizado e invisibilizado na teia social? Em meio ao recrudescimento do conservadorismo, tais interrogações denotam que ainda há muito o que se construir para enfrentar a letalidade do vírus nos corpos considerados descartáveis. A discriminação sofrida nos espaços públicos por exemplo, poderá ser um fator que impossibilite a procura pelo atendimento nos serviços de saúde e na rede socioassistencial, tornando-os/as ainda mais vulneráveis à doença. No segmento LGBTI, as vidas das pessoas trans são ainda mais precárias e passíveis de extermínio. O boletim da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) nos informa que, mesmo no período de isolamento social, os crimes de ódio contra as pessoas trans foram dez vezes mais letais que a COVID-19, entre janeiro e abril deste ano. A impossibilidade do isolamento social é outro fator intensificador de risco para contaminação pelo vírus, pois 90% das mulheres trans e travestis não conseguem acessar o mercado formal de trabalho e, por consequência, necessitam recorrer à prostituição como a única fonte de renda. Por outro lado, devemos problematizar o significado e as consequências do confinamento com famílias homofóbicas como fortalecedor do sofrimento psíquico, tendo em vista a trajetória pregressa de rejeição e o histórico de violência intrafamiliar. É responsabilidade do Estado garantir abrigamento seguro, acolhimento e proteção em caso de vulnerabilidades e violência doméstica, incluindo a garantia das condições de saúde e alimentação. Dentre as necessidades elencadas no decorrer deste ensaio, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) sistematizou em nota as necessidades urgentes e específicas relativas às pessoas LGBT+, a constar a garantia de atendimento integral e suportes específicos às pessoas intersexuais e transexuais, considerando as peculiaridades clínicas, o acesso e a continuidade identidade para a de das gênero população terapias nos LGBT+ hormonais serviços que e públicos, trabalha o a respeito criação como ao de nome apoio profissionais do e social e cuidado sexo, em situação de rua e em privação de liberdade; e o acolhimento e manejo de situações de sofrimento psíquico da população LGBT+, que já apresenta características de guetização e isolamento social. Além dessas questões, o documento recupera conscientização ainda sobre os a importância direitos sexuais e de promover reprodutivos o no debate e contexto a de pandemia e a abordagem de um serviço de saúde que reconheça as diversas configurações familiares, bem como o fortalecimento das políticas de equidade no enfrentamento da pandemia (ABRASCO, 2020). A persistente LGBT+, invisibilidade desprovida sexualidade, imediatas no raça e do Pink geração enfrentamento social que 168, Money sejam à assola exige a que devidamente COVID-19. O maioria as da questões salientadas diálogo população de gênero, nas permanente ações com o Movimento LGBTI desempenha um papel fundamental na criação, monitoramento e avaliação das políticas de saúde empreendidas em âmbito nacional, haja vista a experiência deste diálogo na construção de respostas para a epidemia de HIV/AIDS na década de 1980 e a materialização da Política Nacional de Saúde Integral de LGBT no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Devemos doação mencionar de sangue no inconstitucionalidade Nacional de ainda, âmbito das Vigilância a recente do normas Sanitária conquista judiciário do regulamentação brasileiro, Ministério (ANVISA) da que da denunciando Saúde mesmo e da da a Agência registrando baixo estoque de sangue durante a crise atual, mantinha a proibição de doação a homens gays e pessoas trans. À vista dessas considerações, sublinhamos a indispensável direção crítica para as nossas mobilizações sociais e lutas políticas no enfrentamento às táticas de mitigar restruturação os efeitos da da crise, economia capitalista principalmente nos no pós-pandemia contextos para marcados pela dependência. Posto isso, não poderemos negociar o sentido da emancipação política e humana tão cara à heterogeneidade da classe trabalhadora que requer, per si, uma transformação social substantiva. Por mais desanimadoras que possam parecer nossas circunstâncias contemporâneas, Davis advoga que o mundo é moldado pela transformação. E mais: se não fosse pela luta de massa do passado, é possível que sequer tivéssemos possa força produzir Comprometidos de imaginação para transformações com a luta apreender radicais feminista, que nossa (DAVIS, antirracista, ação coletiva 2019, p.55). anti-LGBTfóbica e anticapitalista, articuladas com a práxis das redes comunitárias para conter os danos do novo coronavírus, continuaremos reivindicando uma democracia substantiva e uma liberdade em condições reais, distante dos marcos neoliberais e sem exploração de classe e opressão de gênero, raça e sexualidade! REFERÊNCIAS ABRASCO. Considerações da ABRASCO sobre a saúde da população LGBTI+ no contexto da epidemia de COVID-19. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em:https://www.abrasco.org.br/site/wpcontent/uploads/2020/04/Consid era%C3%A7%C3%B5es-sobre-a-sa%C3%BAde-da- popula%C3%A7%C3%A3o-LGBTI-no-contexto-da-epidemia-de-Covid- 19.pdf. Acesso em: 17 maio 2020. BUTLER, DAVIS, Judith. Entrevista. Revista Margem Esquerda, São Paulo, n. 33, 2019. Angela. Justiça para comunidade lésbicas, gays, bissexuais e transgêneras. Revista Margem Esquerda, São Paulo, n. 33, 2019. MBEMBE, Achille. Revista O AOC direito Média, universal França, à respiração. 2020. Trad. Disponível Ana Luiza em: Braga. https://n- 1edicoes.org/020. Acesso em: 18 maio 2020. NOTAS 165 | Assistente Social, Professora do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Doutoranda em Serviço Social no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FSS/UERJ). Pesquisadora do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em “Sexualidade, Corporalidades e Direitos” (UFT). 166 | Memorial dedicado à história das vítimas do novo coronavírus no Brasil. Disponível em: https://inumeraveis.com.br/ Acesso em: 15 maio 2020. 167 | A partir da mediação da necropolítica e da brutalidade do neoliberalismo no capitalismo, Achille Mbembe (2019) desmistifica a disseminação democrática do vírus, a partir da distribuição desigual ao direito à respiração. O autor elenca ainda as respostas dadas às comunidades e periferias racializadas que, historicamente, são imputáveis ao extermínio e à política da matança. 168 | Refere-se à capacidade de compra e consumo da população LGBT, através da proliferação liberal de certa “representatividade” LGBT+, da mercantilização dos direitos, da comercialização dos acessos e das tessituras da homonormatividade. Povos indígenas em Alagoas 19: e a COVID- práticas e cuidados 169 MARLI DE ARAÚJO SANTOS Em tempos de pandemia pensar a vida em primeiro lugar tem sido um desafio dentro de uma sociedade estruturalmente violenta. Assim, pensar nesse momento enfrentamento foco, como da os COVID-19 compreendendo que povos é indígenas colocar estas são a vida e se as intrínsecas estruturam estratégias aos de modos para luta de o em vida e ancestralidade desses povos. Antes presença da formação do português catequização nordeste dos foi branco iniciada brasileiro de banguês no 1650 de para Alagoas, Terra catequizar Recôncavo até a Baiano 1700, e quando os se dos Caetés povos indígenas. espalhou houve a teve por A todo expulsão a o dos portugueses da região. No período compreendido entre 1570 e 1880, vários foram os conflitos entre indígenas e não indígenas pelas terras nordestinas, cujo resultado Brasil. Em foi a dizimação Alagoas, esses quase total conflitos das populações reduziram indígenas significativamente no as populações indígenas: Os 11 povos indígenas remanescentes do estado de Alagoas — que, segundo José dos Santos, da aldeia Karapotó, têm como referência comum o ritual religioso do Ouricuri — encontram-se Parcionha; assim Kalancós distribuídos em Água pelo Branca; território Karapotó alagoano: em São Povo Gerinpancó Sebastião; Karuazu em em Pariconha; Katoquin em Inhapi; Tingui-Botó em Traipu; Tingui em Feira Grande; KaririXucuru em Palmeira dos Índios; Kariri-Xocó em Porto Real do Colégio; Wassú-Cocal em Joaquim Gomes; Korupancá Inhapi (SCHUMAHER, 2004, p. 11). Os povos indígenas remanescentes alagoanos que estão localizados no semiárido alagoano são o Povo Gerinpancó em Parcionha e os Kalancós em Água Branca Índios; ambos Korupancá história contada no sertão Inhapi; através alagoano; Tingui-Botó da violência, Kariri-Xucuru em da Traipu. violência em Esses Palmeira povos cultural dos têm imposta sua pelo homem branco, cristão europeu que impôs a povos indígenas a sua religião, seus costumes, sua vivência de sexualidade suas relações de gênero e suas doenças. A respeito dessa preocupação com a preservação de suas culturas, particularidade que vem se consolidando nas últimas décadas, Mana Xucuru-Kariri, a Maninha de Alagoas, lembra que, “o índio antes tinha vergonha de dizer que era índio” (O GLOBO, 2004, p. 170 3) . As principais demandas postas pelos povos indígenas eram direitos civis, acesso à educação formal com a preservação da língua nativa e a preservação da cultura e costumes dos povos indígenas. Ao mesmo tempo em que se estabelece a luta não se abre mão da tradição, dos costumes, da cultura, da visão de mundo, do ritual e da relação com a natureza. Assim, coloca em relação direta com a forma de cuidar de todos e todas, como cosmovisão indígena e ao mesmo tempo a interlocução com relações sociais brutalmente sociedade de classes, atingidos capitalista uma vez que pelos processos sua significação e de e os povos exploração indígenas e foram dominação ressignificação no modo da de produção do capital. Nesses termos, a vivência da pandemia para os povos indígenas traz a um só tempo o modo de produção do capital, que coloca o isolamento estratégia social de (ainda combate à que com COVID-19, e muitas a disputas) necessidade como desse principal isolamento ser construído dentro das aldeias. Nessa relação preservação do estão povo. inseridas Como duas questões: preservação da a preservação vida, todos da estão vida e a inseridos numa preocupação preocupação discurso de preservação se real em estabelece morte de de tempos para alguns outros de todos seja (leia-se: pandemia, os seres recorrente classes digamos humanos, como sociais). A que ainda que o para a questão, a estratégia segunda essa preservação do povo. Para os povos indígenas envolve toda a preservação da vida e história de um povo historicamente dizimado. A Plataforma COVID-19 no de Monitoramento 171 Brasil informa da que situação os casos indígena nas na aldeias pandemia em todo da Brasil totalizam 363.340 e o número de óbitos é de 22.772, sendo que as aldeias em Alagoas não se configuram entre as dez mais vulneráveis. Ainda segundo a Plataforma, Alagoas e Sergipe contavam com 228 casos suspeitos, 760 confirmados, 361 casos recuperados clinicamente e 35 óbitos. A Procuradoria da República em Arapiraca — Ministério Público Federal — publicou a Recomendação 172 Nº 14/2020/PRM-API/3ºOF que, entre outras considerações, aponta: CONSIDERANDO o crescimento exponencial do número de casos confirmados e do número de mortes por COVID-19 em todo território nacional e que, até a publicação do Boletim Epidemiológico n. 65 da Secretaria de Estado da Saúde em 10.05.2020, o estado de Alagoas contava com 2.258 (dois mil, duzentos e cinquenta e oito) casos confirmados de COVID-19, 126 (cento e vinte e seis) óbitos e 1.470 (mil, quatrocentos e setenta) casos suspeitos; e que vários municípios que contam com aldeias indígenas em seus territórios, como Porto Real do Colégio, Joaquim Gomes, Palmeira dos Índios e São Sebastião, já registraram casos confirmados de COVID-19, com registro de um óbito de uma indígena Kariri Xocó. O MINISTÉRIO SECRETÁRIO SAÚDE DE PÚBLICO ESTADUAL ÁGUA PARICONHA, FEDERAL DE BRANCA, PALMEIRA RESOLVE SAÚDE FEIRA DOS e aos GRANDE, ÍNDIOS, RECOMENDAR SENHORES INHAPI, PORTO REAL ao SENHOR SECRETÁRIOS JOAQUIM DO DE GOMES, COLÉGIO, SÃO SEBASTIÃO e TRAIPU para que IMEDIATAMENTE: ADOTEM as providências administrativas para assegurar o fluxo atualizado de informações, no menor tempo possível e através da criação de canais permanentes de diálogo (ex. via comunicadores instantâneos, do tipo WhatsApp, ou outro meio expedito), entre os serviços públicos de saúde e o DSEI-AL/SE em relação aos casos de indígenas COVID-19. atendidos com quadro de síndrome gripal ou suspeita/confirmação de ENCAMINHE-SE à 6ª CCR, às lideranças indígenas de todo o Estado de Alagoas, à Coordenação Regional da FUNAI-NE1 e à Coordenação do DSEI-AL/SE para ciência. Essas recomendações reforçam que a vulnerabilidade das Terras Indígenas em relação à COVID-19 não está articulada apenas à questão da letalidade da doença, mas principalmente, à fragilidade histórica dos povos indígenas no Brasil. A perspectiva da COVID-19 entrar em comunidades indígenas pode representar um cenário devastador. Uma alta porcentagem da população indígena pode ser impactada devido à alta transmissibilidade da doença, vulnerabilidade social de populações isoladas e limitações relacionadas com a assistência médica e logística de transporte de enfermos. A possibilidade de subnotificação das populações indígenas e a falta de vigilância dos vetores de dispersão da doença podem impactar seriamente a capacidade de controlar a transmissão da COVID-19. Além da mortalidade populacional, a diminuição da integridade socioeconômica pode reduzir ainda mais a capacidade dos povos indígenas em lidar com a crescente fragilização das políticas públicas de saúde e proteção territorial (OLIVEIRA, 2020, p.01). Destarte, pensar as formas de isolamento social diante da pandemia coloca para os povos indígenas não apenas o isolamento, mas a necessidade da proteção e manutenção de seus povos e tradição. Nessa esteira é preciso fortalecer as relações na aldeia, as formas de proteção e a potencialização do conhecimento construído a partir da relação com a natureza. Segundo Tenório e Fernandes (2020) essas questões são estruturais no modo de vida dos territórios indígenas diante do projeto (secular) de necropolítica direcionado a esses povos no Brasil. É com base nessa análise que os autores apontam como: A pandemia do COVID-19 provocou uma necessidade de ativação nos usos de chás, de banhos com ervas e plantas locais diante da possibilidade de adoecimento dos mais velhos, como grupo de risco, a passagem dos conhecimentos tradicionais às crianças e aos mais jovens foi adotada como estratégia coletiva para garantir a permanência dos modos de vida da aldeia. Essa estratégia fortalece as relações geracionais, valorizando não somente ancestrais. os Com anciãos, a mas também impossibilidade de as crianças, como deslocamento protagonistas para os centros dos saberes urbanos, na realização de outras formas de trabalho na cidade ou comércios nas feiras locais, devido ao plano de isolamento social das aldeias, as roças aumentaram. Uma experiência importante para refletir as mudanças geopolíticas em tempos de pandemia foi o deslocamento das pessoas dos grandes centros urbanos para o interior do país, como lugares movimento de aconteceu maior entre segurança indígenas e possibilidade Kariri-Xocó de de produção Alagoas. coletiva. Alguns Esse parentes que viviam em São Paulo retornaram às aldeias, o que foi motivo de muita alegria e festa para o povo. ficarem O na retorno mata foi em feito com quarentena, muita por cautela, duas na semanas necessidade (TENÓRIO; dos que regressaram FERNANDES, 2020, s.p.). No relato acima, sobre as estratégias do povo Kariri-Xocó, podemos perceber que ao mesmo tempo em que a aldeia se protege do vírus não pode se proteger apenas dele, pois mantém sua busca de resistência histórica, ou seja, mantendo sua ancestralidade, sua relação com a terra, associando esses cuidados às orientações de saúde sobre o isolamento social e a quarentena. As práticas de combate à COVID-19 realizadas pelo povo Kariri-Xocó são formas de manter a vida e o povo, são práticas pensadas na coletividade da aldeia, visando os velhos e os jovens, homens e mulheres na mesma medida, mostrando que ninguém é descartável e nos ensinando que vida, história e resistência caminham de forma indissociável. REFERÊNCIAS DIEGUES, Manuel. econômico do O bangue engenho nas de Alagoas. açúcar Traços na vida da Influência cultural do regional. sistema Maceió: Edufal, 1980. OLIVEIRA, no Ubirajara et al. Modelagem da vulnerabilidade dos povos indígenas Brasil a Covid-19. Nota Técnica. 2020. Disponível em: https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/nsa/ arquivos/nota_tecnica_modelo_covid19.pdf. Acesso em: 24 maio 2020. SCHUMAHER, Schuma. Gogó de Emas: a participação das mulheres na história do Estado do Alagoas. Rio de Janeiro: REDEH, 2004. TENÓRIO, Tanawy de Souza; FERNANDES, Saulo Luders. Etnia Xukuru-Kariri e a produção de saúde mental e práticas populares no enfrentamento a COVID-19. 2020. (no prelo). NOTAS | 169 Professora Adjunta da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Campus Arapiraca Unidade Palmeira dos Índios. 170 | 171 | 172 “Abrindo Portas na Universidade”. O Globo, Rio de Janeiro, 06 mar. 2004. Prosa e Verso, p.3. Disponível em: https://covid19.socioambiental.org/. Acesso em: 24 maio 2020. | 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/al/arquivos/2020-1/recom_14.pdf. Acesso em: 24 maio 19 As mulheres e a pandemia da COVIDna encruzilhada do cuidado 173 RITA DE CÁSSIA SANTOS FREITAS 174 CARLA CRISTINA LIMA DE ALMEIDA 175 ANA LOLE 176. O filme é Blade Runner Terra desolado. Parece O ano, 2019, Los Angeles. Vemos um planeta chover a todo tempo, os humanos deixaram o planeta e aqui ficaram os outros, os desgarrados, os pobres. Passou o ano de 2019 e a profecia de Ridley Scott não se realizou. Estamos em 2020, sem simulacros, mas numa pandemia mundial que parece nos aproximar do universo cinematográfico. Mas a vida é real. Podemos nos lembrar aqui de outro filme, Guerra dos 177. Mundos Não lutamos contra invasores extraterrestres, mas contra um vírus invisível ao olho humano que, se não tem uma letalidade tão grande, de qualquer forma se transformou num inimigo comum às várias nações. Um vírus que não nos permite os abraços, o toque, o beijo, o aperto de mãos na chegada e na saída. Logo nós, um povo que adora rir, tocar, abraçar... estamos restritos a encontros por trás de uma máscara, a toques protegidos por luvas e a festas 178 será esse? via programas on-line. Que estranho mundo novo Esse estranhamento se espraia por vários campos — saúde, política, economia, ... —, mas queremos pensar aqui na seguinte questão: como esses dias atingem as mulheres em seus cotidianos? Não se tratando de um texto conclusivo, lançamos algumas reflexões por acreditarmos que essa epidemia tem uma face feminina e que traz para as mulheres um alto preço. Por questões históricas as mulheres sempre estiveram à frente dos cuidados e isso não seria diferente em tempos de COVID-19. Leonardo Boff há tempos disse que o “cuidado implica um modo-de-ser mediante o qual a pessoa sai de si e se centra no outro com desvelo e solicitude” (2005, p. 29). Ao lermos essa frase, uma imagem com certeza surge à nossa mente e é uma imagem feminina. Não será um homem capaz dessa ação? Mas algo que podemos acrescentar a essa frase é que cuidado dá trabalho. Cuidar cansa, requer atenção, não se trata apenas de uma atividade objetiva. Existe trato uma com dimensão as subjetiva presente nas atividades do cuidado — crianças, com os idosos, com os doentes, na maneira no como queremos nossas casas arrumadas e a família alimentada —, isso supondo que temos um lugar a chamar de casa e condições para alimentar a família. Cuidar de si e cuidar do outro sempre fez parte do repertório das mulheres nas suas mais variadas condições de vida. Considerando que mais de 50% das famílias gestão da brasileiras vida familiar, são chefiadas elas são as por mulheres, principais vemos responsáveis que além por da adquirir recursos para sobrevivência. E fazem isso não apenas via trabalho, mas por meio de muitas e diversificadas redes, na maioria das vezes, redes femininias. Isso se exacerba em tempos de pandemia da COVID-19, onde a vida familiar, os cuidados, a casa e a incerteza do trabalho ocupam lugar central. Não se pode exigir normalidade em tempos anormais. O que podemos esperar das pessoas vivendo em tempos extremos? Como as atividades do cuidado se exercem nesses tempos e como repercutem no cotidiano de mulheres e de homens? A antropóloga Débora Diniz, em entrevista à Folha de S. Paulo em abril de 2020, não tem dúvidas em afirmar que a pandemia atinge os gêneros de forma diferente: “Quando o Estado não protege e nos abandona, é aí que a 179, uma vez que pandemia tem gênero, porque o cuidado cabe às mulheres” estas são responsáveis pela economia do cuidado. São várias aumento manter da as as dimensões violência atividades precariedade do que podemos doméstica de até trabalho trabalho as formal cotidiano de abordar aqui dificuldades e informal. ganha-pão que e desde incertezas Na as vão o sobre informalidade mulheres hoje e se afligem ou se arriscam na procura de suas freguesas de costuras; de alguém para vender seus quitutes; e indagam sobre o futuro de suas ocupações, como tomar conta de crianças e de idosos. Nas camadas médias as famílias descobrem a falta que fazem as trabalhadoras domésticas, tratadas muitas vezes com tanto descaso. Saber a 180, quando e se volta se tornaram questões fundamentais que horas ela volta dentro de um manutenção pelos riscos do ambiente trabalho que em que formal muitas as tarefas ganha correm nas não requintes são de ocupações bem divididas. dramaticidade, de saúde, A seja trabalho majoritariamente feminino, seja pela sobrecarga de trabalho em domicílio, a exemplo do teletrabalho. Em 19 de março, na perplexidade do início de medidas de isolamento de contenção da pandemia da COVID-19 no Brasil, um coletivo de professoras da Universidade de Brasília chamava atenção para o que representa para mulheres no exercício da docência, sobretudo em casa, responder às pressões e demandas que não pararam de crescer. Dar aulas, participar de longas reuniões on-line, bancas de avaliação de trabalhos e por aí vai. A carta chamava a atenção ainda, para a necessidade de estrutura que acomete estudantes e docentes, principalmente as mulheres, e envolve acesso à internet, domínio de técnicas e metodologias específicas, espaço de trabalho em suas casas, somada às demandas femininas de cuidados com a alimentação, a casa, a saúde física e mental de outros e de si própria. E como manter fundamental para essa a dimensão sobrevivência do cuidado das sem famílias a presença pobres, mas de um também elo das médias: a presença de outras mulheres? Somos uma sociedade em que as crianças circulam (FONSECA, 2002). Mas não podem circular hoje e as casas das avós e das vizinhas se tornaram territórios proibidos. A ausência da escola para muitas famílias traz, além da falta de um lugar para as crianças, a insegurança alimentar. Diante de tanta urgência, estamos numa encruzilhada, para nos mantermos vivas é necessário agir. Na encruzilhada Precisamos o que transgredir aparece para como termos obstáculo conquistas e é a transgressão. alcançarmos voos maiores. E é no isolamento que emana das casas que encontramos o eco possível das reivindicações por garantias da vida humana. São casas de mulheres dos morros, das favelas, dos subúrbios, dos asfaltos, de papelão nas calçadas das cidades, ..., o eco é pela não banalização das mortes. O apelo é que não tenhamos uma legião de carpideiras caminhando pela cidade. Em tempos de pandemia fica mais evidente a presença das interferências do Estado em nossa vida privada. Como exemplo, podemos citar: o Estado é quem define sistema de como saúde e e onde nos vamos diz quem enterrar pode e nossos quem entes; não pode quem regula receber o visitas; designa quem terá acesso aos leitos e respiradores; é ele que atesta os óbitos; define o que é serviço essencial, entre outros. Poderíamos dizer, também, que a pandemia da COVID-19 nos impossibilita os rituais que acompanham a morte, mas também dos casamentos, das festas, dos shows, dos eventos acadêmicos... Como nos inspira Gramsci, precisamos de um novo sujeito coletivo para transgredir e construir uma nova “direção intelectual e moral”, ou seja, “um novo tipo de sociedade e, consequentemente, a exigência de elaborar os conceitos mais universais, as mais refinadas e decisivas armas ideológicas” (GRAMSCI, 1999, p. 225). As mulheres sempre foram transgressoras nas lutas pela sobrevivência, pela visibilidade, pela saúde e pelos direitos sexuais e reprodutivos e, por isso mesmo, historicamente sempre foram perseguidas numa verdadeira “caça às bruxas” (FEDERICI, 2017). Em março desse ano, a ONU Mulheres pediu especial atenção às mulheres. Pensar nestes espaços privados é fazer micropolítica. É dizer não a uma política voltada para a morte, apostando numa política de vida. Débora Diniz mundo coloca, na pós-pandemia negociação política” mesma os e entrevista valores vamos ter à Folha feministas que falar de de S. estarão Paulo, “na conceitos que ordem como, no da cuidado, proteção social, interdependência e saúde. Mas estamos vivendo um duro aprendizado. Talvez caiba aqui retroceder a uma questão feita há tempo por Todorov (1995): “pode humana?”. virtudes As situação virtudes do consideradas contraposição dimensão uma do às cotidiano, mais virtudes cuidar dos extrema nos exploradas próximas heróicas outros — que e ajudar do si pensar por esse universo seriam de a — condição autor, são feminino masculinas). mesmo a E aparece as (em nestas, de a forma contundente. Escolhas devem ser feitas. Escolhas políticas, econômicas. A sociedade tem que tomar posição, “[...] não podem existir os que são apenas homens, os estranhos à cidade. Quem vive verdadeiramente não pode deixar de ser cidadão, e de tomar partido. Indiferença é abulia, é parasitismo, é covardia, não é vida. Por isso, odeio os indiferentes” (GRAMSCI, 2004, p. 84). Ou como se referia Dante Alighieri em A Divina Comédia: “os lugares mais sombrios do Inferno são reservados àqueles que se mantiveram neutros em tempos de crise moral”. Diz-se nas redes sociais e no jornalismo que os países comandados por mulheres estão naturalizar esse tendo lugar um das desempenho mulheres, melhor. mas Com reconhecer isso uma não queremos experiência de vida que não podemos abrir mão. O que não podemos é nos calar. Podemos estar numa encruzilhada e em isolamento social, porém o ato de transgredir nos fará (re)criar uma “vontade coletiva nacional-popular” (GRAMSCI, 2000) com novos valores feministas e evidenciando as lutas das mulheres, principalmente, na política do cuidado. Resistiremos à “caça às bruxas” e ao recrudescimento da vida para as mulheres. REFERÊNCIAS BOFF, Leonardo. O cuidado essencial: princípio de um novo ethos. Inclusão Social, Brasília, v. 1, n. 1, p. 28-35, out./mar. 2005. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017. FONSECA, Cláudia. Mãe é uma só? Reflexões em torno de alguns casos brasileiros. Revista Psicologia USP, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 49-68, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0103-65642002000200005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 14 maio 2020. GRAMSCI, Antonio. filosofia. A Cadernos filosofia de do cárcere. Benedito Vol. Croce. 1: Introdução Rio de ao Janeiro: estudo da Civilização Brasileira, 1999. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. 3: Maquiavel, notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. Vol. 1: 1910-1920. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. TODOROV, Tzvetan. Em face do extremo. Campinas: Papirus, 1995. NOTAS 173 | Professora Titular da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social (NPHPS/UFF). 174 | Professora Associada da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenadora do Núcleo de Estudos Família e Gênero (UERJ). | 175 Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Membro da Coordenação Nacional da International Gramsci Society Brasil (IGSBrasil). Pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NuFiPE/UFF) e no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Políticas Públicas e Serviço Social (TRAPPUS/PUC-Rio). 176 | Blade Runner é um filme de ficção científica de 1982, dirigido por Ridley Scott e com roteiro de Hampton Fancher e David Peoples. | 177 Guerra dos Mundos é um filme de 2005, dirigido por Steven Spielberg e com roteiro de David Koepp e Josh Friedman. 178 | 179 | Parafraseamos o romance Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, publicado em 1932. “Mundo pós-pandemia terá valores feministas no vocabulário comum, diz antropóloga Débora Diniz”. Folha de S. Paulo, 06 abr. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/mundo-pos-pandemia-tera-valoresfeministas-no-vocabulario-comum-diz-antropologa-deboradiniz.shtml>. Acesso em: 14 maio 2020. 180 | Parafraseamos o filme Que horas ela volta, filme brasileiro de 2015 com roteiro de Anna Muylaert e Regina Casé, dirigido por Anna Muylaert. Notas de uma travessia — reflexões de uma assistente social em Portugal 19 em tempo de pandemia da COVID- 181 MARIA INÊS AMARO Em tempo de pandemia da COVID-19 percebo, de uma forma muito visível, que apesar da investida neoliberal, continuo a poder contar com um sistema nacional de saúde sólido e confiável; tenho um sistema de segurança social que reforçou a proteção social a quem está em dificuldades; disponho de meios de comunicação credíveis e… tenho um governo responsável, ligado ao seu país, ciente de que a “coisa pública” é a finalidade e propósito últimos da política. Isto dá-me o conforto de sentir que vivo no lado privilegiado do mundo! Os tempos são bizarros, incertos, de grande perplexidade. Quanto a mim, tenho-os vivido de uma forma bem particular: a partir do olhar de alguém recém-chegada a um serviço central da Segurança Social! O avistamento Meados de Janeiro… estava há um mês e meio na Segurança Social e acabava de regressar de uma viagem à Malásia. Numa reunião semanal com os agentes de proteção civil ouço pela primeira vez falar do vírus que andava na Ásia. Dirigi-me ao representante da área da saúde para perguntar o que era aquilo, para lhe dizer que acabava de chegar da Malásia… “É um vírus, uma espécie de gripe, não sabemos bem…”. Combinamos ficar atentos e acompanhar o evoluir da situação. Rapidamente fui absorvida por um sem-número de afazeres e não voltei a pensar, por uns dias, neste assunto. … A onda está a chegar O mês de Fevereiro foi em crescendo: “Inês, todas as instituições sociais têm que elaborar os seus planos de contingência, como vais fazer?” Não fazia ideia… havia que estudar o que vinha da saúde, retomar o que se fez quando da Gripe A, confiar numa equipe de nove chefias e cerca de oitenta colaboradores com quem tinha começado a trabalhar há dois meses e esperar que as coisas acontecessem e bem… Cada colega ia alvitrando, dizendo a sua ideia enquanto a hierarquia e o poder político se abatiam (também) sobre mim. Foi preciso pensar e agir, procurando não pisar orientação tendo nacional em e em todas o terreno conta as o da saúde, potencial instituições. Foi medindo impacto o cada em desbravar palavra todo do o e cada território desconhecido, procurando também entender qual era o meu espaço, o meu campo de ação neste terreno complexo. Ao mesmo pessoas para segurança, tempo, o foi preciso teletrabalho, trabalhando com orientar um organizando, colegas no departamento criando sentido de de noventa condições, terem que dando pensar diferente do habitual, sem nunca descurar a necessidade de manter a grande máquina de um serviço central de segurança social em funcionamento. O grande turbilhão A primeira semana de Março foi o grande ponto de viragem! Ainda viajei, com a minha equipe, para um encontro no Norte do País. Ao segundo dia, recebo um telefonema de casa: o primeiro caso positivo em Portugal foi o de uma professora do meu filho; toda a turma ficou em casa, passamos a ter monitorização bi-diária do estado de saúde dele… entrava, com a minha família, numa nova era! No final dessa semana, já de volta a Lisboa, começavamos a dar instruções para liberar camas de hospital e colocar as pessoas aguardando por leito de hospital por falta de vagas, dando respostas públicas ou privadas. Criava-se o primeiro fluxo de ação, nesta interação entre a área social e a área da saúde. Entretanto, comecei a ficar com tosse e, com um filho em quarentena, decidi entrar em quarentena voluntária… aquele foi o último dia em que estive presencialmente com os colaboradores do meu departamento. No sábado à noite, a Ministra da Saúde interdita as visitas nas Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas na zona norte do País. A partir desse momento, o meu telefone começou a tocar, com chamadas sucessivas: como fazemos? Como organizamos? O que dizemos às instituições? Estão com medo, o que podemos dizer? A minha principal sensação foi a de ter entrado num túnel escuro, a descer em alta velocidade, sem ver para onde estava a ir, nem o fim da linha… Um novo capítulo na nossa história coletiva estava a iniciar! Circuitos, redes, sistematizar necessidades e criar respostas Nova semana e efetiva-se a ida dos colaboradores para teletrabalho. Fiz uma reunião de departamento através de uma plataforma de videoconferência: grande novidade, quase ninguém sabia bem como aquilo funcionava, todos acharam graça da inovação! Despedi-me dos colegas, procurei passar uma mensagem de segurança e esperança: da recuperados… China apareciam os primeiros números de casos Em Portugal, os casos começaram a aumentar, o alarme social instalou-se e comecei a receber instruções que não compreendia totalmente e a receber perguntas e pedidos de ajuda para os quais não tinha elementos… trezentos e-mails por dia, dezenas mensagens escritas e por Entramos território, num as e dezenas de chamadas telefônicas, dezenas de whatsapp … e agora? momento instituições em que queriam senti fechar que, um portas, pouco as por equipes todo o técnicas queriam afastar-se, cada um queria proteger-se… foi o único momento até agora em que senti verdadeiramente medo: o terreno não estava preparado, não tinha respostas e eu não vislumbrava que recursos e que atores era preciso mobilizar para criar rede de resposta. Do turbilhão de reuniões, conversas, iniciativas começa a emergir como claro a ideia de que era preciso trabalhar com a proteção civil, com a saúde e com as autarquias locais. Daqui saiu um primeiro quadro legal que instituiu um fluxo de trabalho entre estas entidades para responder às situações da COVID-19 — um primeiro modelo de intervenção em rede estava criado. Seguiu-se a identificação municipalidade, de uma e constituição rede de locais em de todo o território, acolhimento para por pessoas infectadas e para pessoas não infectadas. Seguiu-se situações: a criação falta equipamentos de de de vários recursos proteção protocolos humanos individual, nas de atuação instituições, testes às equipes para diferentes distribuição técnicas… de e a monitorização… Foi preciso levantamento informações, construir sistemático com a todos de respectiva os dados sistemas e análise. começar Em de a paralelo, informação, reportar colocar fazer diariamente questões aos decisores, propor alterações legislativas, pensar em como responder a todas as novas situações — foi a tentativa de começar a sistematizar o pensamento e a preconizar eventuais respostas. Do problema com as estruturas residenciais, passou-se ao problema das pessoas em situação de sem-abrigo, ao problema dos reclusos libertados, ao problema dos refugiados e requerentes de asilo. A propósito da pandemia, várias fragilidades do sistema ficaram visíveis e criou-se também a oportunidade de poder repensar muitos processos de intervenção. Paulatinamente, a realidade foi avançando e estamos agora em fase de desconfinamento. Para esta etapa, o trabalho tem sido em torno da criação de guiões para a reabertura das respostas sociais e organização de sessões de informação para diferentes públicos para prestar informação e apoio para a operacionalização das novas regras de funcionamento das diversas respostas sociais. Todos estratégia os e dias o o trabalho trabalho da em campo, produção de o trabalho decisão é de feito montagem em rede da com a proteção civil, com a área da saúde, com as forças de segurança e militares e com diversos ministérios e secretarias de estado e municípios. Tudo é discutido, tudo é pensado e as soluções são construídas em conjunto. Com quase noventa pessoas de um departamento a trabalhar em casa, foi preciso também reestruturar procedimentos e formas de comunicação. Preparar o amanhã Finalmente Maio trouxe. comecei Não foi a conseguir um respirar respirar de e dormir; alívio, mas foi foi o que um o mês respirar de da tranquilidade de saber que já está uma estrutura montada e que as equipes em campo já estão em marcha, operacionalizando as orientações que foram dadas. Uma coisa esteve presente desde o início: o pedido que fiz à equipe, a alguns elementos mais libertos, para pensarem para além da emergência: “Vamos construir materiais de apoio para as famílias confinadas”, “Vamos pensar no combate à solidão”, “Vamos pensar em respostas apontadas para o apoio às famílias como um todo”. E algumas coisas foram surgindo. No pensamento de que as populações estão neste contexto especialmente expostas à vulnerabilidade, reforçamos o atendimento social, montando um esquema mais fluido e aproximado às necessidades das famílias, mesmo em tempo de distanciamento físico. Até que chega, do nível político, a preocupação com as políticas para o depois, para o tempo pós-COVID-19. Uma oportunidade? Sim, certamente! Rapidamente começar, desde pensadores propus logo, externos problemas sociais formas atuação. de uma por metodologia um para trazidos convite vir pela falar a um do think grupo seu COVID-19, Chamamos-lhe participativa de e foi um trabalho, a investigadores pensamento prioridades tank de de quanto aos intervenção momento e e muito estimulante e inspirador para técnicos, dirigentes e políticos. Agora para estamos voltar a a trabalhar submeter ao num documento escrutínio do integrado, com tank. Um think propostas, Plano de desenvolvimento! Poderá ser o princípio de alguma coisa… ? O que vai ser de nós Distanciamento social? O que isso significa? Temos que pensar no que falamos e porquê, temos que pensar nos nomes que damos às coisas. Confinamento, sim, temos que o aceitar. Isolamento físico é uma forma de nos defendermos da pandemia. Veja-se como Portugal até agora conseguiu combater um pico do surto e, com isso, evitar o entupimento do Serviço físico Nacional se de transforme Saúde. em Mas não… não distanciamento Não podemos confundir as coisas! admito social, que não o o distanciamento podemos permitir! O uso da máscara, o evitamento do outro, o disciplinarmo-nos para não nos darmos ao outro… não, temos que combater o tipo de mentalidade que isto pode gerar! Ligarmo-nos ao outro, sermos solidários é justamente afastarmo-nos dele, protegendo-o e protegendo-nos — esta é a parábola, a complexidade do mundo hodierno! Quando, pela primeira vez, recebi o documento que estabelecia as condições e procedimentos para a reabertura das escolas (apenas dois anos escolares), não conduzem os consegui passos ler dos até o alunos, fim…caminhos máscara e traçados no desinfecção chão de que mãos e monitorização da temperatura à entrada, mesas individuais, supressão dos intervalos — um filme de terror. “Estamos a transformar-nos em autômatos!”, foi o que pensei… Verti uma lágrima no primeiro dia em que, por obrigação, tive que colocar uma máscara… Mas vamos ter que viver assim talvez um ano, talvez dois; que calafrio! Temos condição que ser humana, fortes, no ultrapassar seu poder e o na choque, sua aceitar as vulnerabilidade. condições O sucesso e a do combate à pandemia depende da atitude cívica e de cidadania de cada um de nós, da adesão a uma restrição de comportamentos que nos protege coletivamente. Mas temos que nos reinventar, esta barreira colocada entre nós e o outro, este estranhamento, esta divisão entre “a minha tribo”, com quem estou em comunhão, e os outros, de quem nos temos que proteger, não nos pode corroer. Como é que isto nos vais mudar? Não podemos deixar que isto nos mude na nossa necessidade de comunhão e interação social. É certamente perniciosos nos algo a devemos que devemos prevenir: não estar ao atentos e de distanciamento cujos efeitos social, mesmo em tempos de defesa inequívoca do distanciamento físico. É particularmente neste contexto que é preciso alimentar os laços sociais e fazê-lo preparando-nos para um contexto de profunda crise econômica, social, política, de modelo de desenvolvimento…. É uma oportunidade, é um problema tremendo e avassalador. Precisamos ter força, energia e criatividade, acreditar na democracia, acreditar nas pessoas. Posso fazê-lo porque vivo num país onde a ideia de que política tem a ver com o governo da coisa pública, tem ressonância e vincula a atitude dos responsáveis políticos. Caso contrário, a tendência seria para viver sob a lei do mais forte. Como assistente sistematizei, social, implementei acudi, processos coordenei, de potenciei, intervenção, formei estimulei a rede, reflexão, perspectivei o futuro e estou empenhada em desenvolver soluções. Sempre conduzida por uma lógica de respeito pelos Direitos Humanos e de promoção da justiça social. Tudo isto é novo e revestido de uma enorme incerteza… é preciso construir e reinventar! NOTAS 181 | Assistente social; Vice-presidente da Associação Portuguesa de Serviço Social; Vice-presidente da European Association of Schools of Social Work; Diretora do Departamento de Desenvolvimento Social, do Instituto de Segurança Social; Professora Auxiliar no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. / As os assistentes sociais na linha de : frente violência e violações de direitos na 19 pandemia da COVID- 182 ANTONIO CARLOS DE OLIVEIRA 183 ARIANE REGO DE PAIVA 184 IRENE RIZZINI Introdução O Serviço Social tem sido uma das profissões legitimadas na formulação e execução das políticas sociais do pós-1988 nas três esferas de governo, quando se firmou no marco jurídico e normativo brasileiro uma perspectiva de construção de um sistema de seguridade social. Isto se deve a um amálgama que devemos buscar na história, na trajetória da profissão, na sua inserção institucional nas políticas públicas, no processo de consolidação de uma formação acadêmica hegemônica que lhe garantiu um aporte teórico- metodológico crítico e aprofundamento técnico-operativo para intervenção na realidade social, e de suas lutas no campo democrático que conformaram a elaboração e defesa de um projeto profissional ético e político, vinculado a valores que primam pela justiça social. O avanço e a capilaridade dos sistemas de saúde, assistência social e previdência nos anos de 1990 e início dos 2000 encontraram um cenário adverso, com disputas de interesses de muitas ordens, mas principalmente no plano econômico, quando as políticas governamentais assumiram uma direção claramente neoliberal e que não priorizaram os investimentos na área social tal qual almejados pela proposta constitucional, havendo já na sua implantação, processos de contrarreforma que realizaram ajustes, cortes e que colocaram a necessidade de uma permanente luta pela defesa e fortalecimento da seguridade social. A terceirização com baixíssima qualidade na prestação dos serviços, a focalização na pobreza, a disputa de recursos públicos entre ações governamentais e não governamentais foram algumas das tendências das políticas sociais pós-Constituição. Neste período influência das também lutas dos se acompanhou movimentos avanços sociais, na nas legislações, elaboração de por novos programas, projetos e serviços que alçaram o lugar de direitos de proteção de determinados vulnerabilidades mulheres e vítimas segmentos da desigualdades, de violência população como em crianças doméstica, maiores e situações adolescentes, pessoas com de idosos, deficiência, refugiados, entre outros. Desde 2014 o Brasil tem sofrido maiores ataques às políticas sociais, com ações restritivas nos orçamentos após sentir os efeitos da crise econômica mundial e principalmente ultraneoliberais, que vêm após 2016, impondo com desmontes a nos adoção de direitos e políticas nos frágeis sistemas públicos que compõem a proteção social. Este é o cenário em que nos encontrou a pandemia de infecção pela COVID-19 no início do ano de 2020. Políticas altamente precarizadas, sem condições adequadas de trabalho, com perdas aviltantes de recursos públicos para serem realizadas, com demissões e terceirizações de contratos profissionais. O Serviço Social, portanto, como profissão assalariada e incorporada nessas políticas, sofre os efeitos da precarização através da sua condição de trabalho, usuária como dos também serviços, que na relação vivencia direta (m) a do atendimento escassez de acesso à a população direitos. A pandemia agudizou essa realidade. Este texto selecionou áreas de atuação do Serviço Social que se relacionam ao atendimento de situações de violência ou violação de direitos — que são serviços essenciais e temáticas de produção de conhecimento na linha de pesquisa “Violência, Direitos, 185, do Programa de Pós-Graduação Serviço Social e Políticas Intersetoriais” em Serviço Social da PUC-Rio — para problematizar o contexto de enfrentamento da pandemia da COVID-19. Grupos vulnerabilizados, pandemia e atuação do Serviço Social O atual panorama marcado pela pandemia afeta a todas as famílias e, direta ou indiretamente, a população infantil e juvenil, representando mais de três bilhões de pessoas entre zero e 24 anos, ou 41% da população mundial. De uma forma ou de outra, todos somos afetados, seja na saúde física ou mental. Porém, há determinados grupos que estão muito mais expostos a se contaminar e a enfrentar de forma mais contundente os desafios que advirão da COVID-19. Neste grupo estão aqueles que vivem em contextos de pobreza, nas favelas e periferias urbanas; populações ribeirinhas, povos das florestas, imigrantes e refugiados, assim como crianças e jovens indígenas e quilombolas, com frequência invisibilizados e esquecidos. Dentre os grupos identificados como de mais alto risco de contaminação estão aqueles que se encontram em situação de rua e de institucionalização, como as crianças e os adolescentes em serviços de acolhimento institucional e cumprindo Medida Socioeducativa (MSE) em meio fechado, assim como filhos/as da população encarcerada. Fundamental destacar nesse cenário, as/os profissionais que se encontram na linha de frente do cuidado a esta população, principalmente da assistência social e da saúde, assim como educadores sociais atuantes nas ruas e em diversos equipamentos. O fenômeno é recente e poucos são os dados produzidos até o presente. Vejamos, muito brevemente, o que se sabe sobre os impactos da pandemia sobre a população jovem e algumas medidas de prevenção e tratamento, veiculadas por organizações públicas e privadas em âmbitos nacional e internacional. Os pontos mais destacados são: violações de direitos associadas ao fechamento das escolas (ausência de meios para acessar o ensino à distância e afastamento (resultado do de potencial fechamento rede das de proteção), escolas, insegurança importante fonte de alimentar alimentação para os mais vulneráveis e decorrente da recessão econômica) e aumento da violência doméstica e sexual contra esse grupo (relacionado ao confinamento e ao uso legitimado da internet dele decorrente). No campo da saúde pública, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) aborda o panorama, pandemia motivações pela e formas COVID-19, socioeconômica de enfrentamento ressaltando desfavorável ou que residentes em famílias em tempos em lugares de situação onde há aglomeração são particularmente mais vulneráveis à situação (MARQUES al., et 2020). Registra-se o drama vivido pela população em situação de rua, sendo as principais violações relacionadas à falta de acesso aos meios para a manutenção dos hábitos de higiene necessários à prevenção ao contágio do novo coronavírus e à ausência de uma alimentação adequada capaz de fortalecer o sistema imunológico no combate à doença. A distribuição de alimentos foi reduzida e houve fechamento de espaços públicos usados por aqueles que vivem em situação de rua. Diversos órgãos vêm apontando recomendações, que visam à prevenção e ao tratamento frente a COVID-19. Dentre elas, destacamos: a carta elaborada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), o Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra 186, Crianças e Adolescentes e a Rede ECPAT proteger as Ministério crianças da e Mulher, adolescentes da Família nos e enfatizando a necessidade de tempos dos de Direitos isolamento Humanos social. O (MMFDH) orienta aos municípios que os recursos do Fundo dos Direitos das Crianças e Adolescentes (FIA) sejam destinados a proteção da criança e do adolescente em tempos de surto do novo coronavírus no Brasil. Além disso, o MMFDH aponta que institucionalizadas, devem em ser situação priorizadas de rua e as crianças atendidas e pelo adolescentes Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). Além disso, o Conanda recomenda que sejam garantidos os direitos de crianças e adolescentes em regime de acolhimento institucional e de adolescentes no âmbito do Sistema Socioeducativo. De acordo com o mais recente levantamento (CNMP), 12% das do Conselho unidades de Nacional internação do do Ministério país estão Público superlotadas, condição ideal para a propagação de doenças. Destacamos, para a ainda, Infância 10 (Unicef) ações ao indicadas Governo pelo Federal Fundo do das Brasil Nações para Unidas proteger os direitos das crianças e dos adolescentes em tempo do novo coronavírus. São elas: informar distribuição a de população, em suprimentos; especial influenciar os mais governos vulneráveis; para manter apoiar e a adaptar serviços essenciais; buscar soluções com governo e sociedade para garantir o direito à educação; apoiar a continuidade dos serviços essenciais de saúde para mulheres, crianças e comunidades vulneráveis; contribuir para a continuidade do acesso aos serviços sociais de proteção contra a violência; incentivar a apoio adolescentes aos continuidade do para acesso aos promover a serviços sua de saúde proteção mental, e social; dar facilitar o engajamento e a participação deles; produzir evidências para apoiar ações e 187. políticas; mobilizar doações de fundações, empresas e pessoas físicas No que se refere ao convívio no âmbito familiar, mulheres e idosos também têm historicamente sido vítimas da transmutação de diferenças de 188, gênero e geração em desigualdades. De acordo com dados do Ligue 180 houve aumento de quase 17% em denúncias de violência contra a mulher em março de 2020, quando se oficializou a necessidade de distanciamento social no país. Segundo o plantão do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, casos de violência doméstica conheceram um aumento de 50% após determinações estaduais de distanciamento social, com prevalência de violência contra a mulher (MARQUES et al., 2020). Refugiados públicos de — que toda já convivem ordem — com restrições constituem de outro acesso grupo a serviços ainda mais vulnerabilizado no contexto da pandemia. Há recomendação do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União para que o Ministério da Saúde faça contratação emergencial de 45 médicos para atenderem a esse segmento da concentra o população maior recomendação, Boa Vista/AC, o a nas instalações contingente governo de de Operação refugiados brasileiro construção da uma está área no Acolhida, Brasil. Em atenção operacionalizando, com 1.200 leitos onde na se a tal região de hospitalares e 1.000 leitos destinados a pessoas infectadas e com suspeita de COVID-19, para atendimento a refugiados e brasileiros (CRUZ, 2020). Diversos mestrandos e doutorandos da linha de pesquisa “Violência, Direitos, Serviço Social e Políticas Intersetoriais” atuam na linha de frente de enfrentamento assistentes sociais assistência social liberdade (no da pandemia trabalhadores e saúde. sistema No no em Estado políticas atendimento penitenciário ou do Rio públicas, direto a de Janeiro como especialmente sujeitos socioeducativo); à privados população de de em situação de rua; a pacientes internados em decorrência da COVID-19 e suas famílias, por vezes impedidas de sepultar parentes; há profissionais infectados em decorrência de seu trabalho em cuidados à população (não só, embora principalmente no setor de saúde); em instituições de acolhimento institucional; ou na sistematização e gestão de dados referentes à pandemia, em tensão constante pelo temor de encontrar nomes de pessoas próximas dentre vítimas fatais. Seus relatos (por assim dizer, informais, na busca de escuta, suporte ou orientação) aos autores do presente texto deixam clara a atualização cotidiana dos princípios norteadores do exercício da profissão, no compromisso com a garantia universal e equânime de acesso a direitos e à atenção de qualidade. Conquanto ainda não seja possível precisar a dimensão da contribuição de todas e todos que se encontram na linha de frente do enfrentamento à pandemia e suas devastadoras consequências nos diversos âmbitos da vida, sentimo-nos autorizados a desde já registrar a alta relevância social dos serviços prestados à coletividade. REFERÊNCIAS BRASIL, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Conanda e sociedade civil reafirmam compromisso de proteger crianças e adolescentes em situação de violência. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt- br/assuntos/noticias/2020-2/abril/conanda-e-sociedade-civil- reafirmam-compromisso-de-proteger-criancas-e-adolescentes-em- situacao-de-violencia. Acesso em: 15 maio 2020. CONSELHO NACIONAL Recomendações Adolescentes DOS do DIREITOS Conanda durante a DA CRIANÇA Para Pandemia a do E DO Proteção Covid-19. ADOLESCENTE Integral 2020. a (CONANDA). Crianças Disponível e em: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/covid19/recomendac oes_conanda_covid19_25032020.pdf. Acesso em: 15 maio 2020. CRUZ, Isabela. Como os refugiados coronavírus. 2020. ficam vulneráveis na pandemia Disponível do em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/07/Como-refugiados- ficam-vulner%C3%A1veis-na-pandemia-do-coronav%C3%ADrus. Acesso em: 16 maio 2020. MARQUES, Emanuele adolescents factors, during and Janeiro, Sousa the mitigating v. 36, al. et Violence COVID-19 measures. n. 4, against pandemic: Cadernos Abr. de women, children, overview, Saúde 2020. and contributing Pública, Rio de Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csp/2020.v36n4/e00074420/en/. Acesso em: 10 maio 2020. FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA (UNICEF). responder ao coronavírus Brasil. no 10 ações do UNICEF para 2020. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/10-acoes-do-unicef-para-responder-ao- coronavirus-no-brasil. Acesso em: 15 maio 2020. NOTAS | 182 Professor do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). | 183 Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). | 184 Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). 185 186 | Linha de pesquisa composta pelos três docentes autores do texto. | A Rede ECPAT Brasil é uma coalizão de organizações da sociedade civil que trabalha para a eliminação da exploração sexual de crianças e adolescentes, compreendendo as suas quatro dimensões: prostituição, pornografia, tráfico e turismo para fins de exploração sexual. Existe desde 1997, a partir da participação de algumas instituições no I Congresso Internacional de Combate à Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes, realizado em Estocolmo, em 1996, quando foi criada uma agenda mundial pela eliminação do problema. Disponível em: http://ecpatbrasil.org.br/. Acesso em: 15 maio 2020. 187 | Fonte: https://www.unicef.org/brazil/10-acoes-do-unicef-para-responder-ao-coronavirus-no- brasil. Acesso em: 15 maio 2020. 188 | Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência é um serviço de utilidade pública gratuito e confidencial (preserva o anonimato), oferecido pela Secretaria Nacional de Políticas desde 2005. 19 A pandemia da COVID- e o trabalho de assistentes sociais na saúde 189 MAURÍLIO CASTRO DE MATOS 19 Considerações sobre o impacto da COVID- no Brasil A pandemia da COVID-19 tem sido enfrentada, a partir da orientação dos órgãos de saúde pública, por meio de isolamento social e quarentena. Assim, todo o mundo ouviu ou recebeu centenas de mensagens nas redes sociais para que “fique trabalhadores/as em casa”. formais A está partir disso, expressivo desenvolvendo seu segmento trabalho em dos/as casa, no chamado trabalho remoto ou home office. Algumas empresas também estão colocando seus/suas trabalhadores/as em férias. Em direção contrária vem ocorrendo a recomendação para aqueles/as que trabalham nos serviços de saúde. Para estes/as, as férias previstas foram suspensas e estão trabalhando presencialmente. O Brasil construiu, no seu marco jurídico-normativo, um sistema de saúde muito bom. O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma política que se materializa em uma série de serviços, não é necessário contribuir diretamente (muito embora todos/as contribuam no seu financiamento) e tem uma ampla concepção de saúde, compreendida como acesso ao que é construído coletivamente, mas apropriado privadamente (BRAVO, 1996). No entanto, desde o seu nascedouro, na Constituição Federal de 1988, o SUS vem vivendo imensos boicotes, dentre os quais citamos apenas três: o desfinanciamento 95/2016, que público congelou por (a exemplo vinte anos da o Emenda Constitucional investimento da saúde e nº da educação); a sistemática alteração do seu modelo de gestão para perspectivas privatizantes (Plano de Atendimento à Saúde em São Paulo, e “cooperativa”, no Rio de Janeiro, nos anos 1990, Organizações Sociais atuando desde o governo federal do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e, ainda, Fundações Estatais de Direito Privado e Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, desde os governos do Partido dos Trabalhadores (PT); e o avanço do setor privado, criando uma ideologia da impossibilidade de a assistência pública à saúde ser de qualidade. Isto expulsa amplos segmentos os quais, iludidos com a compra do plano de saúde, julgam não ser fundamental a defesa do SUS (MATOS, 2014; BRAVO et al., 2015). Enfim a pandemia desigualdade resistências, social vemos da e no COVID-19 com anos horizonte chega de ao Brasil. destruição imensas Com do sua SUS, dificuldades de histórica apesar se das pensar um futuro tranquilo para esse quadro desolador que a pandemia tem gerado nos países por onde, antecipadamente, já passou. Para piorar a situação, desde o início da pandemia da COVID-19 tem havido sistematicamente falas do Presidente da República, Jair Bolsonaro, de desqualificação do potencial do vírus posicionando-se contrário ao isolamento social, com um Ministério da Saúde à deriva. Tal postura, não por acaso, também tem sido a de empresários que o apoiam. Sob o discurso de que a economia não pode parar, as falas do presidente expressam mais uma vez seu caráter neofascista, ao tratar como mais importante a manutenção dos lucros do capital em detrimento da possibilidade de mortes de contingentes da classe trabalhadora. Com isso, corroboramos com análises que reconhecem a coletivização do medo que essa situação apresenta. Mas, sabemos que um meio eficaz para enfrentar o medo emancipatória, é a aquela razão. que Aqui cabe potencializa ressaltar nossa que riqueza se trata como da ser razão social pensante e sujeito de sua história (GUERRA, 2013). E como consequência, a ação, que se baseia na realização de escolhas. Estamos falando do agir ético, inerente que à sociabilidade valorize a humana riqueza a qual, humana, defendemos, entendida seja como a o sociabilidade exercício das potencialidades que homens e mulheres desenvolveram em seu processo de humanização (BARROCO, 2001). Portanto, é do humano a existência desse medo no atual contexto. 19? Que relevância tem o Serviço Social na saúde em tempos de COVID- Uma vez reconhecida a naturalidade do medo no contexto atual, queremos dialogar com o segmento da categoria de Serviço Social que não está afastado do trabalho, nem em trabalho remoto; mas ao contrário, teve férias suspensas e está nos serviços de saúde trabalhando. Queremos dialogar com assistentes sociais profissionais de saúde. Certamente os serviços de saúde estão com suas rotinas alteradas. E cabe lembrar que esses serviços, ainda que com desvirtuamentos, seguem uma hierarquização: pandemia cirurgias impôs aos eletivas “transformação” COVID-19; atenção de primária, serviços nos leitos suspensão de de secundária, saúde ambulatórios direcionados consultas terciária/quaternária. reestruturações: especializados para os agravos ambulatoriais de suspensão e de hospitais; decorrentes rotina A para da evitar aglomerações e etc. Cada serviço de saúde estabeleceu suas prioridades de atendimento. Ao eleger as prioridades, os serviços de saúde precisaram criar uma forma de comunicação com a população usuária. Em geral, se montou na recepção dos serviços um espaço para informar sobre esses reordenamentos, além do recurso aos meios de comunicação, notadamente as redes sociais. Nesse contexto surgem diferentes iniciativas que, até então, não estavam previstas. Trata-se profissionais de de saúde algo são fora do normal, convocados, situação compondo o para que a qual os chamamos coloquialmente de “força tarefa”. Esta situação é prevista em alguns códigos de ética, a exemplo do artigo 3, inciso d, do Código de Ética do/a Assistente Social: “participar calamidade de programas pública, no de socorro atendimento e à população defesa de em seus situação de interesses e necessidades” (CFESS, 2012). Assim, podemos perguntar: em que podem contribuir os/as profissionais de Serviço Social em tempos de pandemia da COVID-19? Uma situação de pandemia em que o Brasil vive hoje certamente requer a convocação suas de assistentes competências quaisquer Conselho e profissionais tarefas, desenvolver. sociais, ainda Conforme Federal de que mas de estes suas Iamamoto Serviço Social atuar atribuições importantes, atenta devem que (CFESS) em âmbito privativas. devem (2012), no esses sua sobre das Não são profissionais contribuição ao competências e atribuições privativas, o trabalho em equipe não erode as particularidades profissionais. Mas, qual é a particularidade da profissão no trabalho em saúde? O Serviço como objeto 2012), o espaço que sócio Social as é uma profissão diferentes não impede com expressões que ocupacional. se formação da possa Conforme “questão pensar já generalista social” e tem (IAMAMOTO, particularidades abordamos que (BRAVO; em cada MATOS, 2006), na saúde o objetivo do Serviço Social é a identificação dos aspectos econômicos, políticos, culturais, sociais que atravessam o processo saúde- doença visando mobilizar recursos para o seu enfrentamento e articular uma prática educativa que, nos termos de Abreu (2002), contribua para a emancipação das classes subalternas. Assim, nossa entendemos contribuição que essa nesse é a bússola momento. para Mesmo compreendermos em uma qual situação a de calamidade, de uma pandemia, não se pode referendar o discurso de que todos/as àquilo devem que fazer temos tudo. Mesmo competência. Isso nessas situações resguarda rema contra a sua desprofissionalização. nosso devemos agir nos ater profissional e Se os serviços estão sendo reestruturados, temos que — a partir da função social da nossa profissão — analisar onde podemos e devemos nos inserir e também as situações em que precisamos apresentar proposições. As normativas da profissão — Código de Ética, Lei de Regulamentação da Profissão, Resoluções do CFESS — e os Parâmetros para Atuação de Assistentes Sociais na Política de Saúde continuam sendo referências para o trabalho profissional (CFESS, 2010). Se os serviços de saúde estão sendo compreendidos como essenciais e, portanto, devem ser mantidos abertos, os trabalhos de seus/suas profissionais são relevantes. Naturalmente não está normal e, por isso, foi reestruturado. A intervenção profissional de assistentes sociais precisa ser projetada de acordo com esse critério de definição do que são as prioridades. Por exemplo, há centros de saúde que realizam consultas ambulatoriais — pensemos nos casos de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), HIV, Diabetes, Hanseníase — e se tirou o procedimento de atender apenas usuários de primeira vez. Considerando que defendemos, historicamente, a importância de nossa intervenção nesse momento, para que usuários/as lidem de forma menos estigmatizante com o recém-diagnóstico, é possível contribuir para a adesão ao tratamento sendo relevante a socialização de informações referentes aos direitos sociais e trabalhistas. Aqui devemos e podemos trabalhar. Outro exemplo: há unidades hospitalares que estão priorizando o atendimento à usuários/as com queixas que podem ser referentes à COVID- 19. Nesse caso, havendo uma internação do/a usuário/a, sabemos que o Serviço Social tem uma contribuição fundamental para a vida desse sujeito, com orientação informações que tais para sobre familiares intervenções internado, mas afastamento sim não com e amigos serão do sobre emprego prevenção. diretamente representante e com de o/a socialização Parece-nos usuário/a amigos/as ou preferencialmente pela via remota (telefonemas, por exemplo). de nítido que está familiares, Ainda cabe ressaltar que, desde a implementação do projeto neoliberal no Brasil a partir dos anos 1990 com suas estratégias de redução do Estado e reestruturação produtiva, tem aumentado a precarização das condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora, que a atinge diferenciadamente. Os estratos com menor qualificação laboral têm se afastado da possibilidade de trabalho com algum direito, havendo um incremento exponencial do trabalho informal. Esses estratos são a maioria da população atendida por assistentes sociais nos serviços de saúde. Em tempos do necessário isolamento social para o enfrentamento da pandemia esses sujeitos estarão mais vulneráveis para garantir a sua reprodução. Assistentes sociais têm uma contribuição fundamental nos diferentes serviços de saúde e não é uma pandemia que altera sua importância. O que se altera é a forma como se dará o trabalho, mas mantendo nossas atribuições privativas e competências profissionais. Quais permanências e alterações para o trabalho profissional 19? em tempos de COVID- Referendamos as orientações realizadas pelas autoridades da saúde pública, tais como: evitar aglomerações nos serviços de saúde e, para isso, a suspensão de atividades em que isso for possível; utilização correta dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI’s) em todos os atendimentos; tomar medidas de higienização (lavagem de mãos e etc.), dentre outras. Portanto, isso envolve a exigência desses insumos nos locais de trabalho e apropriação correta da sua forma de uso. Também referendamos trabalhadores/as trabalhar em orientação direcionada domicílio, no de àqueles/as sentido diversas que de estão que entidades dos/as impedidos/as negociem com de seus empregadores a redução da jornada, visando diminuir o risco de contágio. Importante também o afastamento daqueles/as profissionais que se encaixam nos grupos de risco. A pertinência de se tensionar para a redução da jornada de trabalho não é algo acessório para majoritariamente o Serviço composta Social, por visto o mulheres fato que de — ser em a profissão que pese as fundamentais e históricas lutas do movimento feminista — ainda são, na sua ampla maioria, as responsáveis pelo cuidado com as pessoas com quem convivem e pela limpeza da casa. Assim, em tempos de escolas fechadas, de expressas orientações suspensão do tendência maior para trabalho das ainda de que a população trabalhadoras sobrecarga idosa não domésticas em todas e as saia de casa, diaristas, há dimensões: de uma física, emocional etc. No que se refere ao nosso trabalho profissional, em diálogo com os excelentes materiais disponibilizados pelo conjunto CFESS-CRESS, temos pensando em algumas estratégias, que estão abertas à crítica, indicadas a seguir. 1. Precisamos político, nos reapropriar constantemente teórico-metodológico e do acúmulo técnico-operativo da ético- profissão. Sabemos que muitos de nós já conhecem as normativas e as produções intelectuais olhos livres fundamentais de quem de está nossa vendo a profissão. pandemia Mas, vale reler no agora. Isso com nos fortalece e revigora nossos argumentos. 2. De posse dessa releitura, precisamos continuar agindo coletivamente — mesmo que as reuniões de equipe estejam suspensas — pois sempre se faz necessário lembrar que competência se constrói coletivamente, não se tratando de um mérito ou êxito individual (MATOS, 2015). Por meio das redes sociais precisamos, primeiramente, fortalecer nossas construções coletivas nos serviços que trabalhamos, embasando assim nossas proposições e decisões. 3. Uma vez encaminhado o que se sugere no item 2, faz-se fundamental que nos articulemos chamada “rede” importante saber está com colegas com como de rotina estão e outras instituições, procedimentos funcionando as outras pois a alterados. É instituições. A articulação, via redes sociais, também poderá contribuir para o diálogo coletivo sobre como encarar, nas diferentes dimensões da nossa sociabilidade, as questões que envolvem a pandemia, como o medo por exemplo. 4. As altas taxas de desemprego, que reverberam na informalidade do trabalho, são de conhecimento público e inconteste, tanto que, nesse momento, tem havido iniciativas governamentais de garantia de renda para a população que em virtude do confinamento não tem conseguido vender sua força de trabalho. Também tem havido plantões de vários serviços importantes para esse público, como as Defensorias Públicas, além de alterações de protocolos. Apropriar-se dessas informações e socializá-las constitui-se numa competência profissional fundamental. 5. Surgirão requisições técnico-administrativas equivocadas para o Serviço Social, mas se tomarmos como referência o que propomos nos itens 1 e 2 teremos capacidade e tranquilidade para enfrentar tais requisições. Caso a situação persista, sabemos que podemos recorrer 190. às entidades da categoria 6. O compromisso fim do nosso trabalho profissional é a qualidade com os serviços prestados aos/às usuários/as. Tal qualidade se constrói na realidade, logo em condições objetivas. Assim, numa pandemia como essa precisamos de fato diminuir ao máximo o contato com o público. Estratégias como contato telefônico, a exemplo de um serviço de saúde mental e também de um serviço de idosos/as, nos parece que podem ser potencializadoras, de forma a não interferir tanto no necessário acompanhamento a esses sujeitos. Aqui não nos cabe indicar receitas, mas incentivar a criação de diferentes mecanismos nesse tenso momento por que passa a saúde pública. Talvez possa ser um caminho o recurso sentido Ainda a de redes sociais manter cabe dos contato, destacar que setores que já ou dos temos, serviços com compreendemos a que de saúde, população o recurso no usuária. a essas estratégias visa a dar continuidade ao trabalho do Serviço Social, assim, os contatos devem ter uma funcionalidade no contexto da nossa intervenção profissional. 7. Na direção do compromisso sinalizado no item 6, precisamos reconhecer que alguns atendimentos precisarão ser realizados e, com as possibilidades de contágio da COVID-19, não podemos atender de porta fechada. Tal questão deve ser imediatamente sinalizada pelo/a assistente social, em virtude do direito que o/a usuário/a tem ao sigilo profissional, mas esse/a usuário/a vive no mesmo mundo que o nosso e compreenderá. atender em É melhor nome responsabilidade do com o/a atender com sigilo. É usuário/a, esse cuidado, melhor que como do que não compartilhar sujeito, em essa conjunto com a nossa competência profissional, saberá lidar com o que pode ou de que forma pode falar. 8. Não nos parece, até pelas condições em que se dá a internação para quem está em tratamento atendimento direto repercussões desse socialização de comunicado social, ao de da assistentes tratamento informações empregador; especialmente COVID-19, da — sociais que sobre esse implicam básica de seja necessário sujeito. medo prevenção; mobilização renda a que do Mas, contágio; orientação recursos recentemente da as para assistência aprovada no Congresso Nacional e etc. — para familiares e amigos/as são questões que cabem aos/às profissionais de Serviço realizadas, preferencialmente de forma remota. Social e precisam ser 9. O governo federal, na contramão do que orienta a Organização Mundial de Saúde e da experiência de outros países, vem expedindo normativas que trabalhadora, importante acirram aqui o incluso estarmos aviltamento o dos/as atentos/as às aos direitos profissionais violações dos da de classe saúde. nossos É direitos trabalhistas, que, em geral, como nesse caso, terá direta ligação com a qualidade do serviço política nos estatal, a Fóruns Locais prestado. sindicatos exemplo de e dos nos espaços Fóruns Saúde, Daí, bem ou a importância de luta Frentes como da pela da organização política pública Estaduais/Municipais Frente Nacional contra e e a privatização da saúde. Considerações finais As reflexões aqui trazidas, construídas no calor desse triste acontecimento, emergiram do contato com questões apontadas por colegas assistentes sociais, pela leitura do pertinente material elaborado pelo conjunto CFESS-CRESS e a partir de quem também não está podendo fazer o seu trabalho remotamente. Trata-se de uma leitura que visa a contribuir para a categoria profissional de Serviço Social. Está em construção, aberta a críticas e sugestões e como tal passível de mudanças dos seus argumentos. Vamos nesse contexto real de medo, e de desespero com as respostas do atual governo usuária das federal, instituições reafirmar de nosso compromisso com a população saúde onde trabalhamos. Isso se expressa por reconhecer a importância do Serviço Social como profissão da saúde que é, com respeito a sua particularidade no trabalho coletivo em saúde. Mas, sem correr riscos de vida. Reafirmando aquilo que já aprendemos com Iamamoto (1995), dizendo não ao fatalismo (não há o que fazer...) e ao messianismo (de que toda a solução está em nossas mãos), reconhecendo que o trabalho profissional se dá em condições objetivas e que temos competência para construir proposições sob estas condições. REFERÊNCIAS ABREU, Marina Maciel. Serviço Social e a organização da cultura: perfis pedagógicos da prática profissional. São Paulo: Cortez, 2002. BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez, 2001. BRAVO, Maria Inês Souza. Serviço Social e reforma sanitária: lutas sociais e práticas profissionais. São Paulo: Cortez, 1996. BRAVO, Maria Inês Souza; MATOS, Maurílio Castro. Projeto ético-político do Serviço Social e sua relação com a reforma sanitária: elementos para o debate. In: MOTA, Ana Elisabete et al. (Org.). Serviço Social e Saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez, 2006. Disponível em: http://www.fnepas.org.br/pdf/servico_social_saude/texto2-3.pdf. Acesso em: 28 mar. 2020. BRAVO, Maria Inês Souza et al. (Org.). A mercantilização da saúde em debate: as Organizações Sociais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirius, 2015. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0B3SRQLv1tEAVdV94OXlCTGdQS2c/vi ew. Acesso em: 28 mar. 2020. CONSELHO FEDERAL assistentes em: DE sociais SERVIÇO na política SOCIAL de (CFESS). saúde. Parâmetros Brasília: CFESS, para 2010. atuação de Disponível http://www.cfess.org.br/arquivos/Parametros_para_a_Atuacao_de_Assis tentes_Sociais_na_Saude.pdf. Acesso em: 28 mar. 2020. CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). Código de Ética do Assistente Social e Lei 8.662/1993. 10. ed. rev. e atualizada. Brasília: CFESS, 2012. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/CEP_CFESS-SITE.pdf. Acesso em: 28 mar. 2020. CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). coronavírus no trabalho do/a CFESS Manifesta: os impactos do assistente social. Brasília: CFESS, 2020. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/2020CfessManifestaEdEspecialCoron avirus.pdf. Acesso em: 31 mar. 2020. IAMAMOTO, Marilda. Renovação e conservadorismo no Social: Serviço ensaios críticos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1995. IAMAMOTO, Marilda. Projeto profissional, espaços do/a assistente social na atualidade. In: CFESS. ocupacionais e trabalho Atribuições privativas do/a assistente social em questão. 1. ed. amp. Brasília: CFESS, 2012. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/atribuicoes2012-completo.pdf. Acesso em: 28 mar. 2020. GUERRA, Yolanda. A instrumentalidade do Serviço Social. 10 ed. São Paulo: Cortez, 2013. MATOS, no Maurílio Castro. No rastro dos acontecimentos: a política de saúde Brasil. In: DUARTE, Marco José et al. (Org.). Política de Saúde hoje: interfaces e desafios no trabalho de assistentes sociais. Campinas: Papel Social, 2014. MATOS, Maurílio Castro. Considerações sobre atribuições e competências profissionais na atualidade. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 124, p. 678-698, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n124/0101- 6628-sssoc-124-0678.pdf. Acesso em: 28 mar. 2020. NOTAS 189 | Assistente Social da Secretaria Municipal de Saúde de Duque de Caxias, no estado do Rio de Janeiro (RJ). Professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador do Grupo de citamos a Pesquisa Gestão Democrática na Saúde e Serviço Social/Pela Saúde. 190 | Como exemplo normatização sobre óbito em caso de COVID-19 que faz uma referência equivocada ao Serviço Social e que o conjunto CFESS-CRESS se pronunciou e realizou a devida notificação ao Ministério da Saúde. A relevância do trabalho dos assistentes sociais no enfrentamento à pandemia 19 da COVID- 191 MÁRCIA BOTÃO 192 NILZA ROGÉRIA NUNES Introdução Um cenário de extrema desigualdade e injustiça social tem se revelado com o avanço da doença apresentado de econômica social e forma que provocada pelo contundente fragmenta e novo os coronavírus resultados fragiliza as de pessoas e 2019, e tem uma política suas relações sociais. O campo e as cidades — pequenas, médias ou grandes, as favelas e periferias, caminho são cenários político férteis pautado na dessas expressões precarização das que resultam condições de de vida e um de trabalho. Na medida em que as discussões e as ações de grande parte do mundo encontram-se voltadas para a saúde, solidarizando-se ou preocupando-se com o mínimo de dignidade humana, os principais líderes do governo desrespeito modo no à Brasil ciência, competitivo impactos da assistem às com pandemia ao avanço instituições pouca de união e à de COVID-19, da pandemia democracia, esforços além da com descrédito apresentam-se para relação minimizarem existente e de os entre pobreza e contágio, afetando principalmente a classe trabalhadora. As fraturas da sociedade brasileira ficam mais expostas quando o país, que possui uma das dez maiores economias do planeta, ocupa a 79ª posição no ranking de desigualdades entre 189 países do globo (PNUD, 2019). Esta é uma manifestação de violência estrutural que está diretamente relacionada aos insuficientes investimentos dos Estados nas políticas sociais e que avoluma a cada dia o aumento exponencial de pessoas vivendo na condição de pobreza e na pobreza extrema. Nesse sociais, contexto, cujas primeira é importante atribuições vista, esta se dão pandemia considerar na e defesa a o do maneira trabalho direito de à dos assistentes vida. resolvê-la Embora, se à apresente focalizada no setor da saúde, argumentamos que todas as áreas em que o Serviço Social atua estão comprometidas, uma vez que a crise que assistimos salienta a necessidade de sistemas públicos de proteção social fortes, assim como um papel crítico e ativo acerca da realidade que estamos vivendo. A persistente fragmentação entre economia e o “ ” social na racionalidade capitalista no contexto de pandemia O contexto requer uma reflexão acerca do discurso de fragmentação da realidade e até mesmo a suposta oposição entre o “econômico” e o “social”. Este equívoco repleto de intencionalidades e omissões da vida real resulta de uma criação capitalista, para histórica a que vem manutenção, sendo reforçada ampliação e ao omissão longo da da expansão extração de mais 193. valor da força de trabalho humana No sido estágio alvo público de — atual do ataque capitalismo para capturado o pelo uso mundializado, de seus recursos Estado para atender as políticas financeiros as sociais — demandas têm o fundo da classe dominante e dirigente. Aqui se inclui um conjunto de atores diversificados, entre eles o setor bancário, as grandes empresas, entre outros, de acordo com as análises de Salvador, Behring e Lima (2019), sobre os argumentos da escassez de recursos públicos. No conjunto de disputas entre capital-trabalho para atenuar as possíveis tensões, as políticas sociais são terreno de conflito constante. Riqueza e pobreza são expressões cúmplices da mesma sociabilidade que reproduz e legitima a desigual apropriação da riqueza socialmente produzida. Seus efeitos decorrem de processos econômicos, políticos e sociais, articulados à discriminação alimentação, qualidade de aos gênero, cor cuidados tornam-se cada e raça. Os necessários vez mais acessos para o as moradias, alcance escassos para de os uma à saúde, vida segmentos à com mais pauperizados. São para necessárias garantir ações condições políticas de vida e e econômicas cuidado não em só favor no da coletividade período pandêmico, como também em outros momentos. Ocorre que no contexto da pandemia da COVID-19, as frequentes argumentações do presidente da República, Jair Bolsonaro, defendem apoiado valores por de representantes uma burguesia de setores conservadora, econômicos são dissonantes que das orientações internacionais da Organização Mundial da Saúde e instituições que defendem a saúde pública em nível nacional e internacional. Assim sendo, a crise sanitária em curso vem acompanhada de uma crise política, social e institucional. evidentemente isolamento A associação uníssona, social, como ainda a que principal entre saúde sejam medida e economia tratadas de como proteção e tornou-se opostas. prevenção, O é rotineiramente desafiado em nome da ameaça ao colapso da economia, o que revela uma das faces mais perversas desse contexto. A estratégia de propagação ideológica acerca da suposta oposição entre econômico e social atende aos interesses de sujeitos sociais defensores do projeto neoliberal, conservador, com posições de cunho neofascistas. Nesse caso, a título de reflexão, cabem algumas perguntas: existe economia sem seres humanos? A riqueza produzida para essa suposta economia apartada de quem produz salvará quem? Os brasileiros não podem parar? Não temos recursos para a política de saúde pública realmente? Por que não se pode revisar as medidas de austeridade econômica do país e privilegiar a vida para voltarmos, se possível, o mais breve a uma rotina mais saudável? A resposta também nos parece clara, embora não seja banal ou fácil de ser identificada. O modo e a razão de ser e existir do capitalismo não é de valorização da vida humana, embora não possa dispensá-la totalmente. O preço disso tem sido a fome, a doença, o desespero, o medo da perda de familiares e amigos. favoráveis à vida, Enquanto ampliam-se perdura as a tensões falta que de respostas demandam o efetivas trabalho e de assistentes sociais na mediação das contradições expressas nas demandas do capital e do (IAMAMOTO; viral seria com trabalho, frente CARVALHO, contágio diferente. O rápido Serviço e às 2013). manifestações No caso consequências Social tem sido de uma da “questão epidemia parcialmente vital em de social” origem conhecidas diferentes não frentes e formas de atuação profissional. 19 O trabalho dos assistentes sociais na pandemia da COVID- Conforme assistentes indicado, sociais no mantem contexto sua de atuação pandemia nos da diferentes COVID-19, espaços os socio- ocupacionais. Contudo, a precarização das condições de trabalho tem sido evidenciada há alguns anos e, nesse momento, tem se tornado mais evidente e ameaçadora. Entendemos o assistente social como parte da classe trabalhadora. A concepção de classe trabalhadora aqui adotada tem como ponto de partida as análises de Marx (1975) sobre as relações entre capital e trabalho, sem desconsiderar o caráter heterogêneo que apresentam hoje. O conjunto de trabalhadores da sociedade capitalista é composto por profissionais empregados com vínculo e direitos sociais, desempregados, trabalhadores informais, trabalhadores sem o mínimo de proteção etc. Mas estão unificados em uma mesma condição: a de ser dependente da venda da força de trabalho para sobreviver. Essa realidade de dependência da venda da força de trabalho está exposta hoje como nunca esteve. A disponibilidade para o trabalho a qualquer custo, incluindo o custo de suas vidas e de seus 194. familiares, por falta de alternativa tem sido algo trágico Pelos motivos aqui brevemente mencionados, destacamos a vital importância do trabalho dos assistentes sociais no contexto da pandemia e destacamos que seus trabalhos têm se dado em diferentes frentes dos setores públicos e privados. Para ilustrar nossa afirmação, fizemos uma breve consulta a alunas dos cursos Janeiro de pós-graduação (PUC-Rio), com da o Pontifícia intuito de Universidade contribuir com Católica a do reflexão Rio de acerca da importância do Serviço Social em tempo da pandemia de COVID-19. Todas, em pleno acordo, prestaram informações sobre os seus trabalhos. Sabemos que muito mais tem sido feito, mas consideramos valioso este breve registro. Não separamos os dados por áreas de atuação por muitas ações se repetirem, razão pela qual citaremos algumas ações realizadas nas áreas da política de assistência social de um determinado município do Estado do Rio de Janeiro, em um dos hospitais públicos do Município do Rio de Janeiro e uma empresa: 1. Planejamento para obtenção de novos recursos e serviços sociais; 2. Desburocratização das informações para o acesso aos “auxílios” emergenciais liberados pelo governo federal; 3. Elaboração de solicitações atípicas para atendimento de novas demandas em caráter emergencial no contexto de pandemia; 4. Implementação para novos serviços para o atendimento a pessoas em situação de moradia na rua, quando os abrigos não são suficientes; 5. Intensificação da abordagem às famílias em situação de rua para que tenham condição de cuidado, seja com outros familiares ou em abrigos; 6. Organização de espaços específicos para isolamento social nos abrigos para evitar o contágio dos demais acolhidos; 7. Articulação com a área da saúde para acompanhamento dos usuários com suspeita ou risco de contaminação; 195; 8. Concessão de cestas básicas para quem não consta no CadÚnico 9. Parcerias com instituições religiosas para atendimento às famílias ainda não contempladas pelas políticas públicas; 10. Elaboração de relatório para o Ministério Público; 11. Orientações aos familiares e colaterais dos pacientes internados, sobre direitos previdenciários, Programa Bolsa Família, auxílio emergencial liberado pelo governo federal; 12. Orientações sobre recursos e procedimentos funerais com segurança e dignidade; 13. Liberação de recursos financeiros para compra de alimentos; 14. Acompanhamento de pessoas idosas para suporte ao período de isolamento social; 15. Doações de alimentos às favelas; 16. Doações de remédios e itens de higiene; 17. Orientações de prevenção à saúde. Essas, entre muitas outras ações não mencionadas neste artigo, têm sido fundamentais na defesa dos direitos da população e dos princípios de nossa profissão. sociais, Contudo, somos não podemos trabalhadoras e perder de trabalhadoras vista que nós, partícipes da assistentes sociedade, portanto, vivemos as dificuldades, temores, anseios e esperanças como os demais. Conclusão A profunda desigualdade social brasileira se insere na lógica do sistema capitalista de trabalho assalariado, cuja pobreza extrema coaduna com seu funcionamento. Nesse sentido, as estratégias para o enfrentamento da pandemia exigem tomadas de decisões humanitárias e em defesa da vida. A pandemia originada pelo novo coronavírus expõe as diferenças entre os que habitam espaços de privilégio e os pobres, principalmente os usuários das políticas de assistência social. Na linha de frente das ações para mitigar seus efeitos atuação e, estão muitas os assistentes vezes, sociais, inseridos desempenhando suas em diversas ações no frentes limite de de suas forças, com condições de trabalho não comprometidas com a sua segurança, das equipes e dos usuários. O cotidiano desafiador requer buscar caminhos na lacuna segurança da ausência alimentar, de direitos, produzindo assistência ao saídas acesso ao para a auxílio garantia da emergencial, orientações de saúde, acolhimento, entre tantas ações que visam contribuir com a dignidade e a vida das pessoas. Esperamos condições de trabalho adequadas; salários pagos sem cortes; manutenção dos empregos; saúde pública para todos/as; a revogação da 196 e contrarreforma da previdência social, da Emenda Constitucional nº 95 o fortalecimento da seguridade social para os mais de 12 milhões de desempregados/as e subempregados/as no país. Mas esperar não basta e já dizia a canção: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Apesar de insuficiente diante da condução dada pelos órgãos competentes de nosso país, estamos falando de acesso a direitos básicos, como alimentação, moradia, tratamento e cuidado. É importante registrar que nessa apesar de luta seus muitas medos, e muitos receios, assistentes ansiedades sociais e têm limites. A sido eles incansáveis, e a todas as equipes profissionais que se encontram nessa luta dedicamos essas breves reflexões inconclusas. REFERÊNCIAS IAMAMOTO, Marilda Vilela; CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. Esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 2013. MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. MONTÃNO, Carlos; DURIGUETO, Maria Lúcia. Estado, classe e movimento social. São Paulo: Cortez, 2010. MATTOS. Marcelo Badaró. Classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo. São Paulo. Boitempo, 2019. PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD). Relatório do Desenvolvimento Humano 2019 – Além da renda, além das médias, além do hoje: desigualdades no desenvolvimento humano no século XXI. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2019. Disponível em: http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr_2019_pt.pdf. Acesso em: 16 maio 2020. SALVADOR, Evilásio; BEHRING, Elaine; LIMA, Rita de Lourdes. Crise do capital e fundo público: implicações para o trabalho, os direitos sociais e a política social. São Paulo: Cortez, 2019. NOTAS 191 | Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Políticas Públicas e Serviço Social (TRAPPUS). 192 | Professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Núcleo de Estudos em Saúde e Gênero (NEGAS). | 193 Os capítulos XXIII e XXIV de O Capital, escritos por Marx no início da consolidação do capitalismo, são essenciais para compreender a lógica desse modo de produção e reprodução social, que se reatualiza e se recria, mas não abandona os seus traços essenciais de exploração e expropriação de direitos. 194 | Para melhor entendimento da concepção de classe social, ver Montaño e Durigueto (2010) e Mattos (2019). 195 | Cadastro Único para Programas Sociais ou CadÚnico é um instrumento de coleta de dados e informações que objetiva identificar todas as famílias de baixa renda existentes no país para fins de inclusão em programas de assistência social e redistribuição de renda. 196 | Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Também chamada EC do “Teto dos Gastos”, prevê que, durante 20 anos, as despesas primárias do orçamento público ficarão limitadas à variação inflacionária. Isso quer dizer que, no período, não ocorrerá crescimento real das despesas primárias, que são agrupadas em duas grandes categorias, as despesas de custeio (com serviços públicos) e as despesas com investimentos. A medida não só congela, mas reduz drasticamente os gastos sociais. O cuidado em saúde mental no cenário de 19: pandemia da COVID- ( ) re a experiência de organização do CAPS UERJ ANA PAULA PROCOPIO DA SILVA ANÁLIA DA SILVA BARBOSA 197 198 Introdução O texto tem como objetivo apresentar e refletir sobre a experiência do Centro de Atenção Psicossocial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CAPS UERJ) na manutenção do cuidado em saúde mental das/os usuárias/os acompanhadas/os no serviço, no contexto de crise sanitária. A pandemia da COVID-19, causada pela propagação do vírus SARS-CoV-2 ou novo coronavírus, produz não apenas repercussões de ordem biomédica e epidemiológica em escala global, mas também impactos sociais que afetam diretamente todas medicamentos as dimensões específicos para da a vida social. Ainda COVID-19, não então há as vacinas medidas ou de distanciamento social e de isolamento configuram recomendações básicas da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a contenção da circulação do vírus e redução do contágio. Por outro lado, as estratégias de distanciamento social e de isolamento promovem desdobramentos econômicos, sociais e de saúde mental: o medo da morte diante de uma ameaça invisível, que é o vírus; o desemprego avolumado pelo fechamento de comércios e de serviços configurados como não essenciais; o avanço da mortalidade nas periferias, pelas condições históricas de falta de acesso à água e esgoto; a instabilidade política diante da desarticulação entre o governo federal e estados e municípios em matérias como incentivo às pesquisas de combate à doença, testagem em massa da população e no provimento de condições econômicas dignas para o distanciamento social e isolamento seguros, seja das pessoas que perderam suas fontes de renda seja, ainda, daquelas em condições precárias já antes da pandemia. Contudo, esse quadro trágico para a população em geral acirra as condições de vulnerabilidade e risco social de grupos específicos como, por exemplo, Nesse as/os sentido, usuárias/os dentre os dos serviços serviços da rede essenciais no de atenção período de psicossocial. pandemia da COVID-19 a OMS destacou aqueles que garantem o calendário de vacinação, os cuidados durante a gravidez e parto, o tratamento de doenças infecciosas e não transmissíveis, os serviços de sangue e os dispositivos da rede de saúde mental. No Brasil, a rede de saúde mental constitui-se por meio da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), calcada no princípio da garantia do bem-estar das pessoas que se encontram em condições sofrimento de vulnerabilidade psíquico entendimento da e/ou e pela importância do risco social condição trabalho (pelo adoecimento, socioeconômica) junto à e comunidade pelo pelo para assegurar o apoio à resiliência e à saúde mental (WHO, 2020). Desde os processos que constituíram a Reforma Psiquiátrica Brasileira, no final dos anos 1970, a saúde mental no país tem afirmado uma produção de cuidados condução que de extrapola suas o práticas campo na biomédico, direção de e uma assim tem proposta disputado de a mudança societária: a atenção psicossocial. Um conjunto de estratégias de trabalho, organizadas a partir de ações comunitárias, privilegiam o acesso aos direitos sociais das/o usuária/os, tais como: o direito à moradia, ao trabalho protegido, à educação, à cultura e ao lazer, entendendo o território como o lugar de conexões que produzem vida e ampliam a sua potência como sujeitas/os. A pandemia da COVID-19, não obstante a sua gravidade, escancara e acirra contradições estruturais da organização social capitalista: o abismo de desigualdade planeta. entre Conforme os mais afirmado ricos por e os Nísia pobres e Trindade miseráveis Lima, em todo presidente da Fundação Oswaldo Cruz, em entrevista à Ciência Hoje em maio de 2020: “Não há democracia democrático, e ele na circulação pode, de fato, do atingir vírus. a Falam todos, que como o vírus atinge, é mas a capacidade de proteção e de resposta a isso é diferente num país desigual 199. como o nosso” Diante dos elementos expostos, que articulam dimensões estruturais da vida social realizada e a pela conjuntura equipe do de crise CAPS política, UERJ econômica avaliação das e pandêmica, foi vulnerabilidades do conjunto de usuárias/os, a qual constatou a necessidade de continuidade do acompanhamento durante o período de restrição de atividades presenciais e distanciamento social inicialmente definido pelo governo do Rio de Janeiro no Decreto n° 46.970, de 13 de março de 2020. As estratégias de cuidado traçadas pelo CAPS UERJ tiveram como baliza a garantia das condições de biossegurança privilégio do para profissionais cuidado territorial e usuárias/os como eixo com central a das manutenção ações, apesar do do distanciamento social, trabalho que apresentaremos no próximo tópico. A organização do processo de trabalho do CAPS UERJ frente 19 à pandemia da COVID- O CAPS UERJ, fundado em 2009, está localizado no complexo ambulatorial da Policlínica Piquet Carneiro (PPC) vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e é responsável pela Área Programática (AP) 2.2, que abrange os bairros: Alto da Boa Vista, Andaraí, Grajaú, Maracanã, Praça da Bandeira, Saens Peña, Tijuca, Usina e Vila Isabel. Um universo territorial composto por uma população de 371.120 habitantes, conforme o último censo realizado em 2010. O CAPS UERJ é um serviço municipalizado, inserido em uma estrutura universitária estadual, que integra a rede de saúde mental da cidade do Rio de Janeiro. Configuração que nos convoca a pensar o desafio da articulação entre os diferentes intersetorialidade incide na níveis entre educação estratégia interdisciplinaridade. de de governo e saúde. estagiárias/os, professoras/es psicólogas/os, enfermeiras/os, ocupacionais, nutricionistas, uma e viés durante equipe com sociais, técnicas/os de da de a composta profissionais, assistentes gestão Outro organização Com na saúde sua e forma, pandemia, por a que é a residentes, diferentes formações: psiquiatras, terapeutas enfermagem, técnicas/os administrativas/os e oficineiras/os. Logo, se configura como um serviço de assistência, mas também de formação qualificada de trabalhadoras/es para a Saúde Mental e, por esse motivo, foi tomada a decisão de dar continuidade, no formato online, às reuniões de equipe, supervisões e espaços de tutoria, mantendo a articulação entre as dimensões prática e formativa. Um dos desafios colocados ao CAPS UERJ evidenciado neste período de pandemia é sua localização no interior de uma Policlínica, ambulatorial, e atualmente inserida na rede como ponto de testagem dos profissionais da saúde para a COVID-19. Por ser um dispositivo com características de alta complexidade em saúde mental, sua rotina não prioriza uma lógica inflexível de agendamentos, mas o acolhimento das imprevisibilidades do cotidiano e a livre circulação de usuárias/os e familiares no serviço de acordo com as demandas. circulação no biossegurança, Um interior desafio, da que nesse Policlínica, complexificou o momento em trabalho, função de das demandando incremento da articulação ativa com os serviços territoriais. restrição da normas de da equipe o Por ser um CAPS do tipo II (atende cidades e ou regiões com pelo menos 70 mil habitantes), funciona com a lógica da “Porta Aberta”, de 8h às 17h, de segunda a sexta, tendo transtornos mentais dispositivos, como Psiquiátricos e, como graves a Clínicas também, perfil e atendimento persistentes, da por de Família provenientes (onze demanda portadores no de território), espontânea. de diversos Hospitais Atualmente, tem trezentos e dezessete usuários cadastrados e cinquenta e sete usuários em processo de recepção, com prevalência de indivíduos do sexo masculino, de 30 a 50 anos, em vulnerabilidade social e econômica. A frequência diária oscila entre sessenta a oitenta atendimentos (BARBOSA et al., 2020). Frente a esta realidade de atendimento/acompanhamento pré-pandemia, a equipe pelas se deparou condições com de o desafio de biossegurança (re)organizar requeridas o serviço, pela prezando crise sanitária, englobando o fortalecimento do território e utilizando-se de tecnologia leve para assegurar o cuidado em saúde mental, na perspectiva da produção de vínculos, autonomização e acolhimento (MENDES, 1994). Com a notícia da implementação no município do Rio de Janeiro de ações de distanciamento social, a coordenação do CAPS encaminhou reunião com profissionais, usuárias/os e familiares para explicar sobre a necessidade de redução do funcionamento presencial e a urgência de pensar coletivamente novas formas de cuidado. Em momento posterior, foi realizada pela equipe a discussão e movimento avaliação de de todos os sistematização casos de coletiva forma e individualizada. interdisciplinar Esse permitiu identificar as/os usuárias/os com demanda de intensificação do cuidado no período da pandemia, considerando: idade, vulnerabilidade social, rede sociofamiliar frágil, dificuldade no uso e aderência de medicação, nível de autonomia Foram na organização elencadas/os cotidiana setenta e na comunicação usuárias/os e, com o território. posteriormente, com a continuidade do distanciamento social, esse número subiu para setenta e seis. A equipe do comunicação CAPS, à residentes forma distância, acompanhamento intensificação de do das/os diversos usuárias/os cuidado (serviço por inventiva no social, responsável, meios, como identificadas/os período psicologia, e da pandemia enfermagem) pelas ligações, com capacitação prévia pelo staff estratégia com da elegeu de demanda COVID-19. ficaram a de As/os responsáveis (profissionais do quadro permanente) em relação às abordagens, aspectos de atenção, frequência dos contatos e formas mensagens indicados de comunicação instantâneas, para a chamadas supervisão e o à distância por auxílio vídeo no e (telefone, e-mail). manejo dos aplicativo staffs Dois casos de foram diante dos possíveis desdobramentos dessa modalidade remota de cuidado na atenção psicossocial. A exigência da atenção remota em saúde mental impeliu a equipe para outras formas imperativo de de cuidado e ressignificar de manejos. também o As/os uso das profissionais tecnologias. viram-se no Telefones e computadores, para além de simples aparelhos de comunicação, passaram a ter utilidade como ferramentas de produção de relações de cuidado. Uma vez que no contato remoto os elementos centrais que se mantém são: a força do vínculo, cuidado, o poder afirma-se, produzidas das relações assim, exatamente a pelo e o protagonismo potência encontro das entre da/o usuária/o tecnologias usuárias/os leves e no que seu são profissionais (MERHY, 1999, p.318). No percurso armazenamento (re)inventivo, online, com a equipe pastas constituiu individuais para uma cada pasta de usuária/o em acompanhamento remoto. A pasta acessada em modo compartilhado por residentes e profissionais permite o registro da evolução das condutas e produções de cuidado, para que não se perca o olhar e as contribuições de supervisão na condução dos casos. A atenção e o cuidado remotos não substituem o espaço físico e o cuidado presencial, e não possuem caráter resolutivo e burocrático. Os contatos presenciais entre-pessoas identificação de algum é que sustentam agravamento das o vínculo. questões Assim, psíquicas diante e/ou da clínicas, por COVID-19 ou não, a equipe do dia, em plantão no CAPS é acionada para pensar e articular o cuidado presencial contato, mesmo no dispositivo ou com a rede territorial. A continuidade do remoto, com a equipe e o fato do CAPS permanecer em funcionamento para casos com demandas de ações mais contundentes, foram elementos organizadores para as/os usuárias/os, que não equipe. se viram Tanto contatos e o mostraram-se abandonadas/os, para usuárias/os, saber que a fundamentais e de quanto equipe para sustentação para familiares, permanecia manter dos os em quadros vínculos a com constância plantão no psíquicos a dos CAPS estáveis, evitando agudizações e crises. Com o avanço distanciamento das social, contaminações a implementação e a prorrogação dos protocolos do de tempo de atendimentos citados foi imprescindível para aquecer as redes de suporte e cuidado no território, tendo por base ações no cuidado extramuros, potencializando a rede intersetorial, produzindo sociabilidade e cuidado, para além do instituído pelo dispositivo (BERTUSSI et al., 2011). Conclusão A vivência no CAPS UERJ, no período de pandemia da COVID-19, deixa evidente que cuidar na direção da atenção psicossocial, rompendo com a lógica manicomial, exige experimentações de novas formas e arranjos de cuidado com o sujeito e suas redes de apoio, que pode estar em qualquer profissional, construídas trabalho em espaço e e saber, apostando indo também acontecimento. Um mais atenção no pós-pandemia. para nas além redes das vivas movimento para redes que o são qual institucionais produzidas se precisará no ter As relações com os vínculos mais sólidos e as estratégias de cuidado mais consistentes, seguras e corajosas são imprescindíveis para o momento. O manejo dos casos à distância, ainda que apresentando limitações, somado ao apoio presencial de uma equipe multidisciplinar no CAPS, tem garantido o acompanhamento de rotina e a atenção à demanda de intensificação no cuidado, seja pelos impactos da situação atual, seja por outras questões. Por fim, destacamos a potência da convivência entre profissionais, residentes e usuárias/os e entre as/os próprias/os usuárias/os no cotidiano do CAPS. O retorno ao contato presencial e coletivo aplaca o sofrimento psíquico e reforça o lugar desse serviço como uma referência de cuidado e acolhimento. Logo, as estratégias de cuidado desenvolvidas para o momento de pandemia, não substituem o contato entre-pessoas, pois é no viver comunitário (com-viver) desse espaço que se produz vida, vínculos, laços, afetos e afetações. REFERÊNCIAS BARBOSA, estado Anália da Silva et al. Centro de atenção psicossocial da universidade do do Rio de Janeiro: CAPS Uerj — cuidado, extensão, ensino e pesquisa. 2 ed. Rio de Janeiro, RJ: Projeto Institucional. 2019. BERTUSSI, Debora MATTOS, et al. Viagem Ruben Araujo de; cartográfica: BAPTISTA, pelos trilhos e desvios. In: Tatiana Wargas de Faria. Caminhos para análise das políticas de saúde. Porto Alegre: Rede Unida, 2011. p. 306- 324. MENDES-GONÇALVES, Ricardo Bruno. Tecnologia e organização social das práticas de saúde. São Paulo: Hucitec, 1994. MERHY, Emerson Elias. O ato de governar as tensões constitutivas do agir em saúde como desafio permanente de algumas estratégias gerenciais. Ciência & Saúde Coletiva, v. 4, n. 2, p. 305-314, 1999. WORLD HEALTH ORGANIZATION. essential 2020. health services Disponível COVID-19: operational guidance for maintaining during em: an outbreak: interim guidance, 25 March https://apps.who.int/iris/handle/10665/331561. Acesso em: 16 maio 2020. NOTAS 197 | Assistente social, professora adjunta da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FSS/UERJ), coordenadora da Residência Integrada e Multiprofissional em Saúde Mental da UERJ, doutora em Serviço Social (UFRJ). 198 | Assistente social, coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CAPS UERJ), doutoranda do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/UERJ). 199 | “A Fiocruz diante da COVID-19”. Ciência hoje, 11 maio 2020, edição n. 365. Disponível em: http://cienciahoje.org.br/artigo/a-fiocruz-diante-da-covid-19/? fbclid=IwAR3HuFVC6dkOeOWQkoMQwNvLIMZZBjrQm4sUJ62Em4h2A0gYPI5m8p6FAFE. Acesso em: 18 maio 2020. : Monitoramento remoto com idosos uma experiência de cuidado em tempos de 19 pandemia da COVID- 200 MARIA HELENA DE JESUS BERNARDO 201 TANIA DE OLIVEIRA Este artigo sintetiza reflexões sobre a atividade de monitoramento telefônico realizado pela equipe multiprofissional do Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI/UnATI-HUPE/UERJ). sistematizado por assistentes Trata-se sociais de um material coordenadoras da preliminar equipe, cuja perspectiva é o compartilhamento da experiência como uma estratégia de cuidado em saúde. Monitoramento de idosos — por que fazer ? como fazer ? O contexto sanitário atual é deveras preocupante. Para nós profissionais da saúde vinculados a uma instituição formadora para o Sistema Único de Saúde (SUS), a realidade ora vivenciada se revela profundamente desafiadora, dada a dupla dimensão inerente ao nosso objeto de trabalho: a assistência propriamente dita à população idosa e a formação em serviço de residentes, especializandos e graduandos na área. Múltiplas e urgentes são as demandas daí advindas, requerendo a produção de respostas, exigindo a necessidade de desenvolvimento de novas habilidades e competências para conduzir a gestão do cuidado, a gestão do processo de ensino-aprendizagem e a gestão dos serviços em meio a essa situação complexa. O Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI), serviço especializado em saúde do idoso e responsável pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Idoso e Geriatria, desde a instalação das medidas restritivas de contato social e circulação para evitar a disseminação do novo coronavírus, viu-se, haja vista o seu público alvo de atenção constituir-se no segmento de maior risco promover idosos à exposição mudanças atendidos em em e adoecimento seu modelo nosso serviço pela COVID-19, assistencial, e a de assegurar empenhado sorte a a em proteger continuidade os do acompanhamento e a produção de ações de saúde das quais são credores. Nesse sentido, especialmente a atenção ambulatorial sofreu alterações, assumindo um novo desenho assistencial mediante o uso de tecnologias de comunicação para atender as necessidades de saúde da população atendida. Os idosos, aproximadamente atendimento no serviço (mais quatrocentos os familiares e e trinta usuários cuidadores), em distribuídos em seis ambulatórios multiprofissionais, passaram a ser acompanhados via monitoramento agregando uma à distância. Uma coordenação complexa central engrenagem foi multiprofissional; montada, seis equipes multiprofissionais correspondentes a cada ambulatório com coordenação específica; um canal de comunicação via WhatsApp e um profissional técnico de enfermagem responsável por acompanhar o recebimento de mensagens dos idosos/familiar/cuidador profissional designado para e repassar para consolidação dos a equipe dados e de referência; informações e, um por último, uma equipe de atendimento de plantão presencial. Esta modelagem assistencial, criada pela necessidade de tentar conter o avanço da contaminação, associa medidas protetivas, de prevenção, de vigilância epidemiológica ao monitoramento das condições e necessidades de saúde apresentadas pelos idosos em acompanhamento pelo serviço, buscando evitar não só a contaminação da doença COVID-19 como também a desassistência e o surgimento de agravos que possam ampliar a situação de fragilidade dessa população. A lógica de constituição do monitoramento, da formação das equipes de referência, da metodologia empregada, da supervisão das equipes, da construção do plano de atendimento da necessidade de saúde detectada é a da construção práticas do processo colaborativas, coletivo de trabalho interprofissionalidade e em saúde, baseado integralidade do em cuidado prestado. : Sobre o cenário político e econômico do país o caso da saúde do idoso e a desassistência em contexto de crise estrutural na saúde no Rio de Janeiro A crise econômica e estrutural que assola o país assume formato ainda mais trágico em contexto de precarização do trabalho, aumento nos índices de pobreza e orçamentários seguridade desigualdade públicos social universidades e reduziu outras públicas e social. redirecionamento drasticamente políticas das O sociais, pesquisas, os além do interferindo dos recursos investimentos sucateamento na capacidade na das de respostas e enfrentamento à calamidade pública instalada. Os constantes ataques aos sistemas públicos deflagram a corrosão dos direitos da classe trabalhadora (em suas diferentes frações e gerações), que será o segmento mais atingido serviços e por saúde, essa seja pandemia, pela seja pelas necessidade de dificuldades sobrevivência de acesso pelo aos trabalho informal expondo-se a riscos de contaminação. É oportuno asseverar, sem receio de cometer exageros, que a crise econômica e sanitária se recobre de contornos ainda mais deletérios na velhice, dado que a restrição da proteção social em cenário pandêmico interfere diretamente nas condições de vida, com crescente violação dos direitos e ameaça à vida. No âmbito público e do SUS universal. observamos Desde a sua contundentes ameaças regulamentação, ao seu constatamos caráter projetos distintos que competem com diferentes concepções de saúde: ora como um bem inestimável para a vida e um direito humano, ora como um bem passível de ser mercantilizado. No Rio de Janeiro o cenário não é muito alentador. O modelo produtivista que gere a saúde e a assistência social na cidade e no estado do Rio de Janeiro reproduz a lógica de focalização da política pública. A gestão pelas Organizações Sociais de Saúde (e outras modalidades de gestão com parceria público-privada) sociedade, porém, vem mesmo sendo com as criticada por várias irregularidades esferas da frequentemente anunciadas, persiste a continuidade desse modelo. O desenho da atenção básica como coordenadora da rede não vem se efetivando na prática, sobretudo, a partir da reformulação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), em 2017. Em que pesem os esforços das equipes multiprofissionais, os serviços, programas e ações não conseguem estabelecer fluxos contínuos. A atenção básica na saúde encontra limites para articular os demais equipamentos de saúde e assistenciais da rede e vive uma crise constante diante de frequentes problemas de pagamento de salários e prestação de serviços às comunidades (BERNARDO, 2019). Na área da saúde do idoso reconhecemos alguns avanços em termos de propostas assistenciais e ao mesmo tempo múltiplos percalços. Os desafios postos pela Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa – PNSPI (2006) e em documento mais recente do Ministério da Saúde (BRASIL, 2019) ainda estão por serem superados. Os recursos são escassos, os serviços previstos sequer foram implantados e os que foram criados mostram-se inexpressivos diante da demanda crescente por atendimento especializado e qualificado na área. Ademais, as iniquidades no acesso impedem o pleno alcance a tais serviços, reiterando a estratificação dos grupos populacionais e as desigualdades (BERNARDO, 2019). Parece-nos, inquietações portanto, quanto ao que a caráter conjuntura atual responsivo das reserva ainda políticas muitas públicas às necessidades sociais, de saúde e cuidados da população idosa. E no cenário pandêmico instaurado, esse quadro se agudiza e se complexifica, exigindo responsabilidade sanitária, política e ética diante do eventual colapso da saúde no Brasil. Esse panorama, que já era preocupante antes da pandemia do novo coronavírus, prenuncia uma tragédia sem limites. : O monitoramento telefônico e as equipes multiprofissionais a dimensão educativa em destaque Com o cenário de pandemia da COVID-19, o trabalho remoto surge como uma perspectiva para os serviços cuja organização permita a implantação ou aperfeiçoamento dessa atividade como uma estratégia provisória de assistência em saúde. Frente a esse contexto, vários conselhos elaboraram normativas e/ou 202, deliberações estabelecendo requisitos que garantam condições mínimas para sua realização, de modo a resguardar as questões éticas relativas aos segmentos profissionais. As diferentes argumentações sobre a qualidade técnica dos serviços ofertados através da mediação tecnológica devem ser consideradas, por isso seu caráter excepcional (face à pandemia) e complementar imprescindíveis quando às possíveis. atividades O Serviço presenciais Social, vistas apesar de como não ter deliberação própria, reconhece que, em tempos de pandemia, ações remotas podem ser realizadas desde que observados os limites de acesso à população e devem estar profissionais em consonância estabelecidos na lei com de as competências regulamentação da e atributos profissão n. 8662/1993. Pautado em tais referências, o recurso ao monitoramento telefônico, por parte da equipe do NAI, emerge como importante ferramenta de trabalho coletivo iniciada na saúde em em momento 17/03/2020, de isolamento consistiu em social. A desmarcação primeira das etapa, consultas, verificação de receitas e exames pendentes, orientação sobre a organização do serviço e levantamento de necessidades. Nesse momento, não sabíamos ao certo por quanto tempo ainda duraria a política de distanciamento social e centrávamos nossas orientações nas medidas de prevenção de contágio do novo coronavírus, no estímulo à vacinação de H1N1, na orientação dos fluxos institucionais e direitos relacionados ao período da pandemia, bem como no controle de possíveis agravos à saúde. Os contatos seguintes estreitaram os vínculos. Buscamos consolidar os laços de confiança e montar a rede de suporte institucional. Nessa etapa, houve o queixas surgimento de de isolamento novas social, questões, como ansiedade e sobrecarga medo diante de da cuidados, pandemia, alterações clínicas e comportamentais mais graves, gerando intensificação dos atendimentos por parte das equipes da medicina, psicologia e serviço social. Especial atenção foi dirigida aos idosos que moravam sozinhos ou com rede pessoal e institucional restrita, aos idosos institucionalizados e aos cuidadores familiares e profissionais, com vistas às orientações de segurança no trabalho de cuidado. Com o aumento de número de casos contaminados e óbitos no Brasil e no Rio de Janeiro aumento do sintomas de decorrentes número de COVID-19. da doença, idosos Esse (e identificamos familiares) cenário exigiu em concomitantemente monitoramento maior atenção da com equipe multiprofissional no acompanhamento e encaminhamento das situações de adoecimento, atendimentos além por de reforço da equipe videoconferência médica ou e da enfermagem atendimentos com presenciais de urgência. Buscando estabelecer relações pautadas na ética e no vínculo, os contatos telefônicos são conduzidos de forma a garantir o respeito à singularidade das famílias, seu universo cultural, os determinantes sociais do processo saúde-doença e a capacidade de absorver informações neste momento atual de massiva difusão de orientações, que, por vezes, se revelam desencontradas. Viabilizar o acesso dos familiares e idosos às informações oficiais sobre a COVID-19 e às formas de contágio, assim como sobre o funcionamento da desburocratização rede das e dos serviços relações públicos, institucionais, pode como contribuir também para a facilitar a compreensão do momento atual. A estratégia usada é a de trabalhar a informação processualmente a partir do ato comunicacional em si estabelecido. Em outras palavras, à medida que os contatos vão se intensificando surgem novas dúvidas e novos esclarecimentos são necessários. As orientações, por esse ângulo, não são estáticas, mas permitem prevenção, e com isso, abordagem prescritiva a a e reflexão sobre realização clássica, a de as medidas ações mais informação necessárias conscientes. dada parece ser para Em a uma condição suficiente para a comunicação em saúde e plena de compreensão por parte do interlocutor, que, nessa condição, é desprovido de outros saberes, origem de classe e subjetividades. Compreender minimamente essa relação entre a equipe multiprofissional (e seus saberes legitimados), os familiares e os idosos viabiliza uma aproximação com as conexões desencadeadas nessa dinâmica, na qual práticas de cuidados são postas em ação. Importante ressaltar que ao problematizarmos os cuidados na saúde há que considerar a pluralidade de sentidos incorporados ao termo, visto que acarreta desenhos institucionais diversos (ALMEIDA, 2014). Na experiência desenvolvida no NAI, tendemos a compartilhar da ideia de que o cuidado institucional e profissional compõe um dos níveis da integralidade. Nessa acepção, o cuidado não se reduz a um nível de atenção na saúde, tampouco a um procedimento entre sujeitos e técnico, que mas supere a uma lógica concepção curativa. O que aposte cuidado, no encontro nesses termos, condiz com uma atitude de respeito, participação e responsabilidade com o outro (PINHEIRO; MATTOS, 2010). Ampliando ainda mais a perspectiva dos cuidados, adicionamos a interpretação do conceito como resultado do desenvolvimento humano e como resposta continuidade e às necessidades reprodução. O primárias cuidado, do indivíduo, apesar de permitindo natural e a sua instintivo, integra mediações crescente e do sociais gradual mais complexas, distanciamento das próprias pulsões da sociabilidade espontâneas, fazendo surgir formas diferenciadas de cuidado, dentre elas, o cuidado doméstico fundado na divisão sexual do trabalho (HIRATA; KERGOAT, 2007). Nessa ótica, o cuidado deve se constituir em um pilar da cidadania social, integrado à seguridade social, uma vez que assume a qualidade de direito intrínseco para a vida humana. O cuidado é universal e não pode ser discriminado ou focalizado. Resulta levar em conta, portanto, a dimensão material, econômica e subjetiva que envolve os cuidados, tanto institucionais quanto domésticos. ... Tentando finalizar São muitas as preocupações. A cada dia somos tomados de assalto com notícias óbitos alarmantes e e surpreendidos contaminados. confirmados em todo o Segundo mundo com a o crescimento OMS, 4.789.205 até casos exponencial 203, 20/05/2020 de COVID-19 e de foram 318.789 mortes. No Brasil, de acordo com os dados consolidados pelo Ministério da Saúde 291.579 204, até e 20/05/2020 o número de o número óbitos foi de de contaminados 18.859 pessoas. No correspondeu estado do Rio 205, Janeiro, segundo a Secretaria Estadual de Saúde, em 21/05/2020 a de havia 32.089 casos confirmados, 3.412 óbitos e 1.095 óbitos em investigação. Na cidade do RJ havia 18.743 contaminados e 2.373 óbitos. Lamentavelmente, esses dados ainda não revelam a realidade. A subnotificação pela falta de testagem em massa e outras variáveis é fator inquietante, pois impede o monitoramento adequado do espraiamento da epidemia do novo coronavírus no Brasil. 206, pesquisadores da UERJ e outras instituições Segundo estimativas de esses números podem ser ampliados em até dezesseis vezes, em especial se persistirem as lacunas na rede assistencial. Soma-se a esse painel, outro dado extremamente grave. Segundo a Secretaria Municipal de 207, Saúde em 19/05/2020, a taxa de ocupação dos leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) era de 83% enquanto o percentual quinhentas e dos quarenta e leitos duas de enfermaria pessoas foi de aguardando 79%. vagas Havia em ainda leitos de enfermarias e destas, duzentos e setenta e seis estavam aguardando vagas em leitos de Centros de Tratamento Intensivo (CTI). Se analisarmos os dados de óbito por faixa etária, temos no município do RJ o número de 1.675 pessoas acima de 60 anos falecidas por COVID-19, equivalendo a 70% do total. Além dessa crise sanitária sem precedentes na história recente, estamos diante de uma outra crise de monta: a crise política. O isolamento social, iniciado no Brasil sistematicamente Bolsonaro — bizarras, medidas vírus, da em de contestado por da pandemia da com brasileira a RJ e — nacionais, com tão o campo de 15/03/2020, do que, atual da para um a constrangimento são e e Jair todas discurso afirmativas conter sendo presidente ciência Trabalhadores/as vem contrariando publiciza evocando necessárias geral. em declarações mensagem em no COVID-19, divergência distanciamento, e ultradireita internacionais clara colidem população 12/03/2020 representante recomendações amenização em da as de risíveis e saúde. As propagação do cooptação convocados/as da a romperem com o isolamento social, por meio de ameaças aos seus direitos (ora pelo anúncio do desemprego, ora pela redução de jornada de trabalho e salários), evidenciando a clássica dicotomia entre a economia e a preservação da vida. Para o centenas discurso de vidas genocida, importam as vidas sim. não Cada valem idoso nada. Mas, monitorado para por nós nós, é as uma vitória! Cada idoso que internamos e que se recupera nos dá enorme alívio! Cada idoso que falece nos comove! Por isso, continuamos firmes e fortes no exercício do cuidado e na politização desse quadro sanitário. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Carla Cristina Lima trabalho com família. In: de saúde hoje: interfaces de. Saúde DUARTE, & e Cuidado: elementos para o Marco José Oliveira et al. (Org.). Política desafios no trabalho de assistentes sociais. Campinas, SP: Papel Social, 2014. BERNARDO, Maria dependência município Programa e do de Helena de cuidados Rio de Jesus. Envelhecimento familiares: Janeiro. Pós-Graduação desafios Tese em da para (Doutorado Serviço a classe proteção em Social, trabalhadora, Serviço Faculdade social no Social) — de Serviço Social, Universidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019. BRASIL. Orientações atenção integral Brasília: técnicas à saúde para da Ministério a implementação pessoa da idosa no Saúde, de sistema linha de cuidado único de saúde 2019. Disponível para (SUS). em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/linha_cuidado_atencao_pess oa_idosa.pdf. Acesso em: 10 maio 2019. HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, Campinas, v. 37, n. 132, p. 595-609, 2007. PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben (Org.). Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. 2. ed. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO, 2010. NOTAS 200 | Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Assistente Social do Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI–HUPE/UERJ) e Docente da Faculdade de Serviço Social da UERJ. 201 | Graduada em Serviço Social e Comunicação Social. Especialista em Serviço Social e Saúde pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e MBA Inovação na Gestão Pública pela UERJ. Assistente Social do Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI–HUPE/UERJ). Vice coordenadora do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Idoso (NAI). 202 do | Resolução n.04 de 26/03/2020 do Conselho Federal de Psicologia. Portaria n. 467 de 20/03/2020 Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 634 de 20/03/2020 do Conselho Federal de Enfermagem. Resolução n.6464 de 24/03/2020 do Conselho Federal de Nutrição. Resolução n.516 de 20/03/2020 do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. | 203 Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php? option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875. Acesso em: 21 maio 2020. 204 | 205 | Disponível em: https://coronavirus.saude.gov.br/. Acesso em: 21 maio 2020 Disponível em: https://coronavirus.rj.gov.br/boletim/boletim-coronavirus-21-05-3-412-obitos- e-32-089-casos-confirmados-no-rj/. Acesso em: 21 maio 2020 206 207 | Disponível em: https://www.uerj.br/noticia/11215/. Acesso em: 21 maio 2020. | Disponível em: https://prefeitura.rio/cidade/prefeitura-atualiza-numero-de-leitos-covid-19- taxa-de-ocupacao-sus-e-fila-da-regulacao/. Publicado em 19 maio 2020. Acesso em: 21 maio 2020. : Para além da quarentena reflexões sobre crise e pandemia REVISÃO Ana Lole Carla Cristina Lima de Almeida Inez Stampa Rodrigo Lima Ribeiro Gomes DESIGN E DESENVOLVIMENTO Patrícia Oliveira ISBN 978-65-86464-15-3 © 2020 MV Serviços e Editora. Todos os direitos reservados. R. Teotonio Regadas, 26 – 904 Lapa • Rio de Janeiro • RJ www.morula.com.br contato @ morula.com.br LEIA TAMBÉM Encantamento: sobre política de vida Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino ISBN: 978-65-86464-13-9 42 páginas [ Leia agora ] Enquanto o processo colonizador gera “sobras viventes”, seres descartáveis, alguns conseguem virar sobreviventes – que podem virar “supraviventes: aqueles capazes de driblar a condição de exclusão, afirmando a vida como uma política de construção de conexões entre o ser humano e a natureza. Em tempos de pandemia, este ensaio levanta um conjunto de estratégias e táticas para que saibamos atuar nas batalhas árduas e constantes da guerra pelo encantamento do mundo, encantamento este que vem sendo ao longo do tempo trabalhado como uma gira política e poética que fala sobre outros modos de existir e de praticar o saber. Um manifesto a favor de uma “política de vida”, em contraponto à “política de morte” que temos visto em nossa sociedade.