_ MEMOIRS
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SRIOMEM
Coordenação Editorial
António Pinto Ribeiro
Editores
António Pinto Ribeiro
Margarida Calafate Ribeiro
Felipe Cammaert
Por uma Europa Cosmopolita
Designer
Arne Kaiser
Traduções do francês para o português
Texto de Assumani Budagwa por António Sousa Ribeiro
Texto de Dorothée Kellou por Fernanda Vilar
Imagem capa: Dalila Dalléas Bouzar, Princesse (série), 2016 (cortesia da artista)
“Este retrato foi composto a partir das fotografias de Marc Garanger, feitas durante a Guerra da Argélia (1954-62)
nos campos de reagrupamento civil. O objetivo destas fotografias era o de criar bilhetes de identidade que permitissem ao exército francês controlar os movimentos da população. As mulheres, obrigadas a tirar o véu, viveram
estas sessões fotográficas como uma violação da sua intimidade. Estas fotografias são assim um testemunho da
Guerra da Independência. Se escolhi trabalhar sobre estas fotografias foi porque antes de mais elas me comoveram.
As fotografias falavam das mulheres do meu país com as quais me identifico. Através das minhas pinturas quis
homenageá-las.” Dalila Dalléas Bouzar
Agradecimentos: Aimé Mpembe Enkobo, Amalia Escriva, Assumani Budagwa, Bruno Machado, Cristina Ataíde,
Dalila Dalléas Bouzar, Dorothée Kellou, Dulce Maria Cardoso, Liliana Coutinho, Liamna Gouasmia, Louise Narbo,
Mark Depputer, Pauliana Valente Pimentel, Rachida Brahim, Teresa Dias Coelho
27 Setembro 2019
Depósito legal: 445507/18
Pode aceder à newsletter do MEMOIRS, aos sábados, através do site https: //memoirs.ces.uc.pt
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Este jornal resulta do trabalho desenvolvido pelo projeto MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias,
financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação (ERC) no quadro do Horizonte 2020, programa para
a investigação e inovação da União Europeia (contrato nº 648624).
Nos últimos anos temos assistido a uma série de afirmações e atitudes de populações e de políticos europeus
relativamente às heranças coloniais que definem o
continente europeu. São declarações que denotam um
tom de diferença e que colocam esta questão no espaço
público de uma forma política até há pouco nunca vista.
O pedido de desculpas formais do Primeiro Ministro da
Bélgica, Charles Michel aos mestiços belgas do antigo
Congo Belga, as recentes declarações e atitudes do
presidente francês, Emmanuel Macron e da chanceler
alemã Angela Merkel, assumindo o colonialismo como
um crime contra a humanidade, defendendo a integração dos imigrantes nos seus países e reconhecendo a
importância dos descendentes dos antigos impérios
coloniais na construção da Europa, são aspetos de uma
agenda europeia que finalmente dá visibilidade às minorias invisíveis e que, mais de cinquenta anos passados
dos processos de descolonização, tem um significado
que ultrapassa completamente uma política nacional de
contenção de discursos extremistas ou de populismos.
O início de discussões tão complexas como as restituições de obras de arte às antigas colónias europeias com
relatórios concretos, as novas propostas museológicas
de museus europeus herdeiros da gesta colonial, como
é o caso do Africa Museum na Bélgica, recentemente
inaugurado, a atenção que, após anos de luta e denúncia,
começa a ser dada aos manuais escolares, a atenção à
cena artística europeia evocadora destas questões nos
teatros, galerias, festivais e outras manifestações artísticas e culturais anunciam um novo tempo que contrasta
com a argumentação envelhecida e nacionalista do
atual primeiro ministro do Reino Unido, em Fevereiro
de 2016, quando evocava a memória do Império e da
grande capacidade de gestão imperial da Grã-Bretanha,
perante o que seria a vitória do referendum que levaria à execução do Brexit e, com ele, à recuperação da
grandeza britânica.
Hoje os europeus herdeiros dos movimentos políticos
e populacionais saídos das descolonizações, que trouxeram até à Europa populações com vivências coloniais,
são sujeitos e corpos políticos europeus que têm vindo
a questionar estas vivências fora e dentro de solo europeu, assumindo memórias e identidades transnacionais e transterritoriais que colocam sob suspeita os
modos e as geografias do humanismo europeu, as suas
democracias e as suas práticas perante a barbárie do
que foi o colonialismo e do que são ainda hoje as suas
–2–
heranças. Hoje os filhos e netos das pessoas e dos líderes
dos países envolvidos nas descolonizações, bem como
muitos cidadãos não ocidentais a viver no Ocidente lançam e colocam a pergunta a partir de outros lugares
de enunciação, um dos quais, mas não certamente o
exclusivo, é esse lugar híbrido que os habita e que é
o lugar do não branco-europeu, do oriental-europeu,
do latino americano-europeu, do árabe-europeu ou do
europeu branco com memória africana. A partir das
suas experiências familiares e públicas interrogam
as histórias contadas na casa europeia e as histórias
ocultadas, herdam objetos de territórios e vidas anteriores, interrogam narrativas museológicas, cujas
coleções evocam fantasmas da empresa colonial, revisitam arquivos oficiais e contam essas histórias nos
livros, nos filmes, nas obras de arte inscrevendo-os
na casa europeia. Desta forma, alteram a cultura europeia e são responsáveis pelo seu cosmopolitismo e
grandeza cultural, ao mesmo tempo que respondem,
de forma dialógica, aos aspetos mais reacionários e
mais avessos à mudança da cena europeia atual que
reage à procura de uma essência nacional mitológica,
a partir da qual se ergueram outros horrores do século
XX europeu. A presença crescente no espaço público
de discursos racistas e xenófobos, corresponde, no
contexto geopolítico atual, a um notório abaixamento
do limiar de tolerância aceite e dá-nos todas as razões
para nos mantermos atentos. Mas não modificará o
curso da história que é e será plural, feita de tantos
sujeitos quantos aqueles que estão a escrever a história
transnacional e transcontinental europeia de que
todos somos herdeiros e que todos os dias nos demanda
de ser cumprida. Vivemos essa tensão, mas os sinais
acima apontados revelam-nos uma atitude política
de integração dessas heranças na nossa reflexão de
cidadãos europeus, capaz de a partir daí traçar outros
horizontes, traçar futuro. O desenhar da história desse
futuro tem sido o trabalho de investigação e ação do
projeto europeu Memoirs – Filhos de Império e Pós-Memórias Europeias, que, trabalhando com cidadãos
e artistas europeus começa a ver e a assinalar esse
futuro que é branco, é negro, é árabe, é mestiço, e em
que as vozes das mulheres se têm destacado ao veicular
as propostas mais inovadoras e arrojadas, como mostramos na edição deste jornal. A maioria delas lida com
as memórias estrangeiras, mas familiares, memórias
dos seus pais e avós. Tratam-nas como material nobre
dos seus trabalhos e assim criam obras inovadoras
–3–
que contam outras histórias em que nos reconhecemos porque também fazemos parte delas. São artistas
e cidadãs migrantes que sabem que é nessa condição
que são europeias cosmopolitas, e que nos solicitam
uma democracia e uma Europa com memória.
MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de
Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro
Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte
2020 da União Europeia (num. 648624) e está sediado
no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade
de Coimbra.
Investigadora Principal:
Margarida Calafate Ribeiro
Investigadores:
António Pinto Ribeiro, Fátima Rodrigues, Felipe
Cammaert, Fernanda Vilar, Hélia Santos, Mónica
V. Silva, Nuno Simão Gonçalves
Investigadores associados:
António Sousa Ribeiro, Paulo de Medeiros,
Roberto Vecchi
Parcerias:
Buala, Cátedra Eduardo Lourenço – Universidade de
Bolonha – Camões Instituto da Cooperação e da Língua,
Culturgest – Fundação Caixa Geral de Depósitos,
Edições Afrontamento, Fundação Calouste Gulbenkian,
Porto Post/Doc, Universidade de Paris-Nanterre,
ACT – Approches Culturelles et Territoires, Marselha
e Bienal du Réseau pour L’Histoire et la Mémoire des
Immigrations, Marselha, Fundação Lilian Thuram.
Ao lado desta consideração, deve-se ter em conta que há
uma literatura teórica ampla, também fora de Portugal,
que mostra como a nostalgia – aqui assumida num
sentido genérico e, de certo modo, tangencial ao funcionamento da saudade – alimenta em profundidade a
imaginação do presente. É uma aura “vintage”, desbotada pela cor “sépia” do contemporâneo, uma distorção
ótica retrospetiva que torna os rastos do que já não
existe numa matriz inexaurível de sedução, de idealização, de encantamento. Mesmo quando se refere a
algo que não nos pertencia, e que portanto não nos
pertence, mas que fantasiamos, como se tivesse sido
inteiramente nosso.
O irresistível perfume do passado conta já com uma
sólida tradição de bases críticas que explicam muito
bem como no capitalismo tardio é desnecessária a
experiência ou um passado vivenciado para gerar nostalgia. Basta uma troca de imagens ou pouco mais.
Será assim na perda, ou na ausência, ou ainda na
ânsia de salvação de algo que provavelmente não se
tem, mas que reestrutura o desejo de algo que se sente
como próprio, apesar de nunca possuído: trata-se
da nostalgia burguesa do ingénuo, como diz Adorno.
Um artigo recente e brilhante de Paulo de Medeiros
(“Exit Ghost. Reading Lusotropicalism as Fetish (with
Adorno)”) assume esta reflexão precoce de Adorno
para interpretar o círculo (por sua vez intimamente
nostálgico) do luso-tropicalismo.
O colonialismo de Portugal em África, vivenciado ou
herdado através de uma memória familiar ou alheia,
produz, neste quadro, um sentimento irrefreável de
nostalgia colonial. Uma nostalgia produtora de mitologias, de fantasias e de imagens, que recheiam o presente
e acabam por gerar uma mediação ativa com memórias
mais reconstruídas do que vivenciadas. A nostalgia de
uma África que foi, e em parte ainda é, representa hoje
um património simbólico relevante que se vai tornando
uma mercadoria, onde símbolos e citações acrescentam
valor a qualquer produto referencial.
Embora o seu centro seja a alma colonizadora do Ocidente, isto é parte de um processo complexo e global
que, a partir de uma rica constelação de conceitos, pode
ser definido como uma “indústria cultural pós-colonial”.
Não se trata portanto de uma inocente citação do passado, mas de um re-uso consciente e meditado de
fragmentos, traços, objetos, atmosferas do que se passou e que, no plano atual, se recicla numa perspetiva
declaradamente mercantil.
Faz parte de uma análise subtil do presente, detetar
as matrizes ativas do sentimento restaurador. E para
conseguir realizar esta leitura que secciona o presente
e o abre a uma problematização ampla e direta, que
põe em cena a galeria controversa de imagens de um
passado não compartilhado e ainda bastante disputado,
é necessário recorrer a um exercício crítico cortante,
que funcione como uma lâmina capaz de incidir sobre
a nossa própria imaginação e sobre as componentes
heterogéneas e recalcadas da nossa identidade.
Trata-se de um desafio que só um ato cultural pode
assumir como objetivo tático: é o que nos oferece uma
fotografia de Pauliana Valente Pimentel, que proporciona um recorte aparentemente inocente da realidade.
No imediato, e se quisermos encontrar logo uma classificação, a foto parece configurar-se como uma imagem
de street photography. No entanto, o olhar constrói
uma possibilidade de combinação crítica quase única,
rigorosa e exata do ponto de vista do significado.
Ainda no plano das impressões, o cartaz aparentaria
exibir um elemento exótico submetido a uma ideia
sedutora de marketing. Mas a inscrição da placa com
o nome de uma rua conhecida e central situa a relação
entre edifício e cartaz no espaço imagético urbano
de Portugal. Do ponto de vista informativo, o cartaz
promove um produto cultural sofisticado: trata-se do
monólogo Luminoso afogado, de Zia Soares do Teatro
Griot, inspirado num texto do poeta Al Berto. Mas não
é pelo indício da citação culta que se revela o sentido
da imagem. Também não é a mistura de voz e silêncio,
de memória e esquecimento, de morte e vida, que
compõe o monólogo que escoa e ecoa nas bordas da
foto. É antes a relação entre a arquitetura geométrica,
historicamente localizada – um portão tradicional de
uma memória urbana lisboeta – e a publicidade do
cartaz, que naquele contexto se esvazia de qualquer
sugestão exótica e expõe, por ironia, a coerência, e não
o conflito, entre a imagem e o contexto arquitetónico.
–4–
O que a fotografia encena é uma modalidade crítica
sobre os re-usos da nostalgia colonial que ameaçam
ressurgir quando algum passado africano é evocado em
Portugal. A imagem distingue-se assim pela limpeza
semântica e imagética e pelo esforço de “desambiguar”
(dir-se-ia descolonizar) o seu conteúdo. Para além das
motivações mercantis que o atravessam, o passado à
venda pode ser uma incontrolável matriz de retrocessos
alienantes e impróprios. Um presente acrítico que se
pretende modificar pelo cunho do passado e não pelos
seus desafios contemporâneos: o futuro do passado
não será o passado no futuro. É o murmúrio da foto
da Pauliana.
Amalia Escriva
Pertence a uma família que vivia na
Argélia desde o início da colonização
desse território, e que chegou a França
pouco depois da independência. Os filmes
que tem realizado são indissociáveis desse
passado que cruza a história da Argélia
francesa com a sua história familiar.
Nasci em agosto de 1961, numa fase complicada da
Guerra da Argélia. A minha mãe foi para a Argélia em
1954, e o meu pai pertence a uma família espanhola
que chegou a esse território no início da colonização.
O primeiro dos meus antepassados a chegar à Argélia
era filho de um capitão da armada espanhola que morreu vítima de uma epidemia de cólera que teve lugar
em Espanha no século XIX. Julgo que teria 17 anos
quando ficou órfão e decidiu juntar-se a uma das suas
tias que tinha uma fábrica de tabaco em Argel. O meu
avô paterno fazia parte da quarta geração dessa família
que tinha feito fortuna nesse país e casou com uma
francesa de França.
O meu pai e a minha mãe conheceram-se e casaram
na Argélia. Partiram para França um ano depois da
Independência. Os meus pais amavam a Argélia e não
queriam partir. Toda a família do meu pai já tinha deixado o país. O facto de um dos irmãos do meu pai ter
sido sequestrado durante a guerra e nunca mais ter
sido reencontrado terá precipitado essa decisão. O meu
pai foi o único que tentou ficar mais tempo, em parte
para averiguar o desaparecimento do seu irmão, mas
ele sempre afirmou que, se tivesse podido manter o
seu emprego, teria ficado na Argélia.
Já tinha feito o documentário Dans les fils d’argent de
tes robes (1997) com base em testemunhos sobre o que
era ser filha/o de pieds-noirs. Era um tema que já andava
às voltas na minha cabeça há algum tempo. Depois, fiz
outros filmes e documentários centrados nessa herança,
e outros que com ela não se relacionam.
Amalia Escriva (cortesia da realizadora)
Roberto Vecchi
Foto: Pauliana Valente Pimentel, cartaz sobre fachada de prédio, s.d. (cortesia da artista)
O passado à venda
O passado nunca foi uma terra estrangeira. Pelo menos
para Portugal. Rios de tinta escorreram em vários
planos disciplinares para indicar como o tempo escoado,
remoto ou próximo, representa para Portugal um traço
ontológico fundador do país, ainda hoje. E não só fundador do presente, mas também do passado, como
mostra o funcionamento do complexo e fundamental
dispositivo que é a saudade ao deixar sempre aberto
– como só esta melancolia feliz permite – um espaço
potencial de retorno ao passado, no futuro.
Depois da promessa que fiz ao meu avô, julgava que
nunca mais voltaria à Argélia. Mas acabei por regressar,
devido ao trabalho que tenho desenvolvido, inspirado
na minha história familiar que comecei a trabalhar
enquanto estudava Artes nos Estados Unidos da América.
Explorei a história da minha bisavó paterna, uma personagem que me assombrava. O meu nome, Amalia, é
o nome dessa minha bisavó. Ela morreu muito jovem,
quando o meu avô tinha sete anos. Ele queria dar esse
nome a uma filha, mas teve seis rapazes. Então, na
geração seguinte, fui eu que herdei esse nome e, por
isso, acho que fui muito mais marcada pela nossa história familiar do que os meus irmãos. Na minha primeira longa metragem, Avec Tout Mon Amour (2001),
esmiucei os arquivos familiares que acabei por cruzar
com a história do processo Margueritte, o qual corresponde ao primeiro processo de insurreição argelina
mediatizado. Ao longo do trabalho de pesquisa descobri
que o advogado de defesa do processo era amigo do
meu bisavô. Foi apaixonante cruzar essa história com
a do meu bisavô.
Se não houvesse esta diluição dos dois objetos (o edifício
e o cartaz publicitário), o conflito entre eles provocaria
um sentimento de nostalgia colonial. Pelo contrário,
aqui a fotografia de Pauliana parece conter uma possível deriva nostálgica que, caso houvesse, levaria a um
retorno (fantasmagórico) da nostalgia, ou seja, de África.
Perante esta imagem, o espetador poderá ter saudades
do passado pelo seu anacronismo em relação ao presente. Mas o espetador que capta o sentido da trama
entre espaço e mensagem entenderá que, ao recusar
a síntese banalizadora e de superfície, o que surgirá é
uma contra-leitura irónica da nostalgia que, ao mesmo
tempo que a produz, a desmonta, realçando assim a
especificidade cultural e não cultual da mensagem.
Hoje, a Argélia é um país onde faço amigos e é maravilhoso. Não cumpri a promessa que fiz ao meu avô de
nunca mais lá pôr os pés. Tenho regressado. É intrínseco. Nasci e cresci com as recordações da Argélia.
Ela irriga o meu imaginário. Nasci quase na altura da
Independência, por isso encontro-me precisamente no
meio dessa dor e entre aqueles, como os meus pais,
que têm dificuldade em falar desses tempos e os outros
que não se interessam absolutamente nada por essa
história. Por exemplo, para os meus filhos a herança
da colonização é algo de muito abstrato e não mostram
qualquer interesse por esse passado.
Vivi dois anos na Argélia e a primeira lembrança que
tenho de França é a da minha imagem no espelho.
Lembro-me de me ver completamente paralisada
por estar a usar umas roupas de lã insuportáveis
que nunca tinha vestido antes, porque na Argélia
não as usávamos. Lembro-me de pensar “é assim
que me vou vestir? É horrível. É horrível a França!”.
Guardo a lembrança dessa tristeza que, muito provavelmente, também resultava da tristeza que sentia
nos meus pais.
Cresci em França num ambiente familiar onde havia
essa ideia de que estávamos verdadeiramente num
país que não valia nada, que o paraíso tinha ficado
para trás e que nós nunca conheceríamos esse paraíso.
Para o meu avô paterno, a França era o país que tinha
traído os pieds-noirs, e tinha-nos feito jurar – éramos
doze netos – que nunca voltaríamos a pisar a Argélia.
Na altura, não sabíamos muito bem porquê, só sabíamos que tínhamos um tio que tinha desaparecido lá,
que os meus pais tinham perdido todos os seus bens,
que explodiam imensas bombas, que a minha mãe
passara por cima de cadáveres na rua. Enfim, havia
algo de muito, muito violento.
–5–
O projeto que estou a desenvolver fez-me regressar à
Argélia mais uma vez, onde tenho entrevistado pessoas
que vivem no prédio onde residiam os meus avós. No
apartamento onde eles viviam, fui recebida por uma
senhora idosa que, depois de eu ter batido à sua porta
e de lhe ter explicado o meu projeto, com a ajuda da
tradução da sua filha, pegou na minha mão e disse
“bem-vinda, minha filha”. Recolhi histórias que são
muito diferentes daquelas de que me falaram, e que
embalaram a minha infância. Quero fazer um filme
sobre as histórias dessas pessoas que, desde 1962,
vivem nesse prédio, onde viviam os meus avós antes
de partirem. Quero as histórias que nos contam a sua
Argélia colonial, a sua guerra de Independência, a sua
descolonização e a Argélia de hoje. É isso que ambiciono.
Hoje, esse passado constitui o principal terreno do meu
trabalho. É uma parte integrante do que sou hoje e
tento transmiti-lo aos meus filhos.
Edição de Fátima da Cruz Rodrigues
Foto: Cuca, Nuno S. Gonçalves, 2019 (cortesia do fotógrafo)
Luanda, Lisboa,
Ribeirinha
e volta
A família do meu pai viveu parte da vida em Angola.
O meu pai ainda hoje, de certa forma, “vive” em Angola.
Quando encontra alguém que tem alguma ligação a
Angola, encanta-se completamente. Vem aquele passado
perdido: Luanda, a esplanada, a guerra, os meus tios.
Tenho casos na família com cicatrizes psicológicas e
físicas, pessoas que viveram momentos muito duros,
quer devido à Guerra Colonial, quer ao retorno. O meu
pai decidiu ir para África com 13 ou 14 anos, para ao
pé de uma das irmãs mais velhas, a minha tia, que
vivia em Luanda. Em 1969, estávamos em guerra, e o
meu pai ofereceu-se como voluntário, foi para a Força
Aérea. Não sei se foi pela causa, se por contágio, ele
já tinha dois irmãos na guerra e, como o meu avô já
tinha falecido, penso que até poderia ter utilizado a
cláusula do amparo à mãe. Mas o meu pai fez carreira
militar e depois da independência, já em Portugal, ingressou na GNR. Eram oito irmãos, da Ribeirinha, em
Trás-os-Montes, onde passávamos as férias grandes.
Do lado da minha mãe, era tudo mais liberal, e não há
ligações a África. Encontraram-se em 1976, casaram
em 1979 e eu nasci em Lisboa em 1982.
Cresci com estas histórias à minha volta. “Um dia tens
que ir lá, porque é completamente diferente daquilo
que conheces”, “nunca vi o céu tão bonito como em
África”. Mais tarde, estas imagens começaram a ganhar
alguns contornos políticos. Quando se começa com 14
ou 15 anos a falar de certas teorias à refeição – que o
comunismo é isto, o comunismo é aquilo – quando se
começa a interrogar tudo, o meu pai foi-me dizendo
como via os acontecimentos e eu acho que o meu pai
me ensinou que as coisas não são a preto e branco, e
eu tendia a ver as coisas assim. Angola para mim é
sempre uma Angola transmitida pelo meu pai, não há
hipótese de contornar isso, não tenho interesse em lá
ir. Prefiro viver nas memórias do meu pai. O meu pai
pintou tão bem o quadro que eu acho que não quero
esborratá-lo. Mas é uma dicotomia violenta entre o
mágico e o brutal, e quase traumatizante, pelas vivências que, não são apenas as boas e da juventude, são
também as vivências da guerra e da saída dos portugueses. O meu pai ainda hoje conta com muita mágoa
o que eram famílias inteiras, perdidas à espera do
avião, que ele sabia que não chegaria tão cedo. Houve
histórias trágicas que o meu pai me contou. São coisas
que foi contando ao longo dos anos, coisas que provavelmente o atormentavam e que foi partilhando aos
poucos comigo, com o avançar da idade, dele e minha.
Lembro-me que, quando estava na escola, falavam
daquela coisa maravilhosa que tinha sido a descolonização, e obviamente para mim também era, os povos
a libertarem-se, os países independentes. O fim do
regime salazarista, da opressão, a liberdade finalmente.
Lembro-me de ter amigos e colegas cujos pais eram
revolucionários e tinham sido contra o regime, tinham
desertado e essas pessoas eram tratadas de uma
forma especial. No meu caso, o meu pai, a minha família que vinha de Angola, era diferente. Faziam parte
daquela imensidão de pessoas que, às páginas tantas,
estava a lutar mais pela vida do que propriamente pelo
regime. Na minha casa havia um lado da história que
não estava nos livros, nem nas conversas, nem nas
aulas, e que foi a vida de pessoas normais de repente
lançadas para situações de violência, de vidas abruptamente interrompidas. Estas histórias da escola e de
casa não eram coincidentes.
Os objetos que havia nas casas também me davam
sinais de África, mas ao longo dos anos foram desaparecendo. No entanto, o meu pai sempre foi uma pessoa
de manter tudo o que são coisas relacionadas com
Angola num baú, uma caixinha com um álbum de tudo
o que são fotografias de África e outras coisas. Não
era secreto, mas era apelativo. Tinha uns postais com
animais exóticos, fotografias em que podia ver um
pai que eu não conhecia: um pai com uma guitarra
na mão, um pai com umas patilhas grandes, um pai
–6–
fardado, um pai com uma camisa havaiana em Luanda.
Sempre tive muita curiosidade e gradualmente ele foi
associando histórias. Mas para mim a Cuca é um dos
objetos eleitos. A Cuca são os bons momentos do meu
pai em África com amigos, mesmo no contexto da Guerra Colonial, aqueles momentos depois de, se calhar,
lidar com situações mais complicadas. Quando eu era
mais pequeno, a Cuca era uma bebida, mas agora
mantém-se nas latas como um objeto. O meu pai partilha comigo, dizendo “põe lá na tua prateleira, na sala
ou na cozinha”. Acho que é a questão de continuidade
que ele gosta de dar. Sempre pensei que com o tempo
as memórias de Angola fossem ficando mais amenas,
mas assisto ao contrário. As memórias do meu pai vão
ficando cada vez mais pesadas, e a Cuca é um símbolo
do bom momento. Acho que é por isso que ele não a
abre, que ele deixou de a abrir.
Estas vivências foram muito importantes na minha
formação. Fiz uma tese de mestrado sobre os “filhos
dos retornados”, como é habitual dizer. Creio que só
com este trabalho percebi como todas estas histórias
me tinham moldado de uma forma mais profunda: não
tinha sido só o meu pai a contar-me umas historiazinhas sobre África, tinha sido uma coisa mais transversal ao longo da minha vida. Já não era só a história
do meu pai. E tinha curiosidade de ver se as pessoas da
minha geração teriam passado pelo mesmo processo.
E verifiquei que a Guerra Colonial, a descolonização, a
saída de África tiveram um impacto enorme, muito maior
do que o que eu imaginava nas gerações seguintes.
Há aquela música dos Delfins, “Aquele Inverno”, que
fala disto, do abandono, do ressentimento. Lembro-me
de uma vez ir com o meu pai no carro e de ouvirmos
a música. Não é uma memória dos pais ou dos filhos,
é de todos.
Edição de Margarida Calafate Ribeiro
e Mónica V. Silva
Pintura da série Mãos, de Teresa Dias Coelho, 2016 (cortesia da artista)
Bruno Machado Nasceu em 1982, é filho de um
antigo combatente na Guerra Colonial e tem
família ligada a Angola. O seu testemunho
revela a força das memórias familiares
traumáticas nas gerações seguintes. Bruno
Machado realizou o primeiro estudo sobre
filhos de “retornados”.
–7–
Ethiopian Walks, desenho de Cristina Ataíde, 2017 (cortesia da artista)
Sentimento de outros
ocidentais
Margarida Calafate Ribeiro
Luanda, Lisboa, Paraíso (2019), de Djaimilia Pereira de
Almeida, recordou-me de imediato o verso do poema de
Cesário Verde, “Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo,
o mundo!”¹, numa sugestão de alargamento a outras
geografias onde a história desse mesmo Ocidente
também decorreu, e onde outros sujeitos etno-culturais
constituíram – com as suas terras, os seus corpos e
os seus produtos – o negativo do resplandecente teatro
das antigas metrópoles coloniais europeias, hoje capitais europeias em que a herança colonial é visível.
Luanda, Lisboa, Paraíso e Debaixo da nossa Pele – uma
Viagem (2017), de Joaquim Arena, inauguram em
Portugal uma linha literária de abrangência europeia
– afropean, numa versão anglo-saxónica, afropolitan
numa versão francesa – de identidades herdeiras dos
processos coloniais, que procuram as suas continuidades
na Europa de hoje, ao mesmo tempo que se inscrevem
numa genealogia literária portuguesa de imaginação
e de demanda de Portugal e da Europa. À semelhança
de Almeida Garrett em Viagens na Minha Terra, o movimento da viagem empreendida é “Tejo arriba”, ou seja,
para dentro de Portugal e do continente. E qual é a
viagem de Djaimilia e de Joaquim Arena no início do
século XXI? É a de procurarem em Portugal os vestígios
dos outros portugueses invisibilizados na história de
Portugal e da Europa. Ora, como é o caso do protagonista
de Debaixo da Nossa Pele, na procura aventurosa na
região do rio Sado de rastos de escravos, trazidos no
século XVIII para o cultivo do arroz, e esta viagem prossegue pela Europa; ora indo ao encontro de portugueses
das antigas colónias apanhados pela história mais
recente e hoje identificados como imigrantes angolanos
no Portugal contemporâneo, a viver nos bairros periféricos, de que o imaginário e antifrástico Paraíso do
título do livro de Djaimilia é realidade e metáfora.
Lisboa não existe
Luanda, Lisboa, Paraíso descreve o percurso do angolano Cartola de Sousa que, no tempo colonial, tinha
uma vida típica da pequena burguesia negra assimilada.
Era um jovem enfermeiro, assistente do médico português Barbosa da Cunha e a sua vida tinha uma certa
ordem, estatuto profissional e social, permitindo-lhe o
sonho de ascensão social que o estatuto de assimilado
perversamente configurava. Em breve este mundo iria
desfazer-se: Cartola de Sousa iria assistir à partida dos
portugueses expectante, celebraria a independência
com uma alegria contida e, ao mesmo tempo, a sua
família começaria a desfazer-se: nascia Aquiles, assim
batizado devido ao calcanhar defeituoso, e a sua mulher
ficava imobilizada na cama. Por razões de saúde do
filho, como muitos dos seus compatriotas, viaja para
Lisboa, o que ativa uma série de sonhos, que vão da
questão prática de resolver o problema de saúde do
filho à ilusão de ir encontrar uma Lisboa que o acolheria como um português, um assimilado para quem
Lisboa era a metrópole mental. Ao contrário de Aquiles,
que é um filho da independência e um emigrante
–8–
angolano em Lisboa, saudoso da mãe, de Luanda e em
luta por uma vida melhor, Cartola de Sousa transporta
consigo uma identidade fantasmática, que o relaciona
com o sonho de Portugal, como um lugar ao qual ele
pertencia². O que existe é a realidade que o expulsou de
Angola e que se traduz no subdesenvolvimento do Sul
e na continuidade da sua condição subalterna. Em luto,
por si e pelo amigo, Cartola de Sousa fixa o rio Tejo que
no imaginário português epitomiza todas as histórias
do império português que dali se projetaram no “mar
sem fim”. Mas não há resposta para as ruínas do império, não há restituição possível para o engano e a
ilusão. Resta-lhe uma cidadania espetral de um mundo
de fantasia que a história transformou em fantasma.
Lisboa não existe.
No labirinto do tempo
e das palavras
Dulce Maria Cardoso
Veredas tropicais europeias
Debaixo da nossa Pele – Uma viagem, de Joaquim
Arena, assume a viagem como meio e processo que
desencadeia a narrativa. Tal como Cartola de Sousa,
o protagonista inicia a sua viagem deambulando por
Lisboa. Mas ele não é um homem que vem do antigo
império; é já um herdeiro, um lisboeta, filho de migrantes africanos que viveram na Europa e que integram
na sua identidade europeia, uma memória africana
mais ou menos real, mais ou menos ficcionada. Esta
é a linha protagonizada por muitos artistas europeus
como mostram os recentes trabalhos do britânico
Johny Pitts, Afropean³, ou do belga flamengo Roland
Gunst que estreou a peça Flandria 4, entre muitos outros.
Misturando motivações biográficas, passado, presente
e futuro, realidade e ficção propõem uma rutura de
paradigma na narração e na leitura da história europeia a partir de grupos minoritários, portadores de
narrativas silenciadas, ocultas ou alternativas, em
que África está presente e assim se torna parte do
país europeu em questão e da Europa em geral.
Como Cartola de Sousa, é olhando o rio que o narrador
se questiona. E é a partir desta reflexão ao longo do
rio próximo das aldeias fantasmáticas que ele procura,
que vai articulando uma teia de imagens, estórias e
mitos de onde emergem escravos locais, serviçais,
famílias mestiças e conhecidas personagens negras
presentes na Europa desde Portugal à Rússia, mostrando-nos que, na Europa, a escravatura, o colonialismo e a descolonização são presenças sem fronteiras,
desde o século XV até hoje. São histórias a partir das
quais o narrador desafia muita coisa e, como Djaimilia,
coloca as questões a partir de vários ângulos: desde a
ambiguidade do discurso da negritude e da branquitude
ao racismo e ao anti-racismo, desde a plasticidade da
discriminação à armadilha do estereótipo, desde a
sedução do luso-tropicalismo à consciência do preconceito. São histórias que nos apontam para um passado
comum construído a partir de relações coloniais e de
memórias muito diferentes sobre o qual hoje somos
convocados a gerar futuro.
O que estes livros nos vêm trazer é o desafio para uma
nova cartografia da memória europeia, assente na assunção de que a herança colonial é parte da identidade
europeia, mostrando-nos que ser europeu é tudo menos
ser só europeu.
(1) Cesário Verde, “O sentimento de um Ocidental”, O Livro de Cesário
Verde, Passagem Editora, 1982, p. 87.
(2) Entrevista a Djaimilia Pereira de Almeida. Maria João Caetano,
“De Luanda ao Paraíso com passagem por Lisboa: miséria ao virar da
esquina”, Diário de Notícias, 3 Novembro, 2018.
(3) Johny Pitts, Afropean – Notes from Black Europe, Londres: Penguin
Books, 2019.
(4) Mais informação sobre John K Cobra: https://www.johnkcobra.com/
about-us. Sobre a peça: https://www.lod.be/en/productions/flandria;
https://www.johnkcobra.com/copy-of-lion?lightbox=dataItem-j8ly4mqy1.
O artista foi entrevistado em Bruxelas a 07 de junho de 2018, no âmbito
do projeto Memoirs – Filhos de Império e Pós-Memórias Europeias.
estava condenada a trabalhar na casa da minha mãe
e nalgumas outras.
Moro sozinha em Lisboa. A minha família nuclear é
constituída, portanto, só por mim. Acumulo assim os
cargos de chefe de família e de dona de casa, já que,
para além de ser escritora, tomo conta de mim e da
casa. Faço-o sozinha, mas às quintas-feiras, por umas
horas, a Tatiana vem cá a casa ajudar-me nas tarefas
mais pesadas. A Tatiana é uma ucraniana muito branca,
três anos mais velha do que eu, com dois filhos já
crescidos que vivem em Kiev. A Tatiana e o marido
partilham um pequeno apartamento com outras três
famílias ucranianas, num subúrbio de Lisboa. Veio
para Portugal há mais de quinze anos, é licenciada
em Literatura e para sobreviver está condenada a trabalhar na minha casa e nalgumas outras.
De regresso então ao contorno das palavras:
Evidentemente que se pode definir colonialismo de
uma maneira que seja inequívoca que vivemos num
eterno tempo pós-colonialista, mas não me parece
que isso seja útil. Evidentemente também que é paralisante e demagógico valorizarmos demasiado a maleabilidade da definição das palavras e a inevitabilidade
de ser impossível terem uma definição precisa, correspondendo uma tal atitude a estratégias tendentes ao
desentendimento. Apesar de tudo entendemo-nos,
podemos entender-nos, quero que nos entendamos.
Mesmo que não concordemos.
A memória tem um funcionamento dúplice. Por um lado,
liga-nos ao passado: diz-nos “fomos aqueles, descendemos daqueles” ou “é dali que viemos”, um “ali” que,
afinal, pode ser simplesmente o “aqui” trabalhado pelo
tempo. Por outro lado, a memória desliga-nos do passado: diz “somos já outros” ou “já ali não estamos”.
Mesmo que não seja assim. A memória é, na verdade,
uma espécie de lente entre nós e o passado. O que
ela faz não é ampliar ou comprimir, focar ou desfocar,
nem é sequer bem deformar ou recriar; diria que é
mais desrealizar. Algum tempo depois de as coisas
terem acontecido, mesmo que em certos aspetos continue tudo igual ou quase igual, o passado parece sempre
diferente. É que “ser igual” ou “ser diferente” está mais
associado à imagem das coisas do que à essência das
coisas, já que, na nossa cabeça, a visão – o mais desenvolvido dos nossos cinco sentidos e por isso também o
mais tirânico – molda-nos em imagens todas as histórias, toda a História. E, atualmente parece que mudamos cada vez mais depressa. Mas talvez não seja bem
assim. Não pode ser bem assim. Continuamos, apesar
de tudo, a ser animais e os animais não evoluem assim
tão depressa.
E, depois, não é matemática a linguagem que usamos
para tratar estas coisas. Podemos, em grande parte,
entender-nos – se a isso nos dispusermos –, mas o
mal-entendido nunca está excluído da nossa comunicação: não há palavra cujo significado não seja, em
determinada medida, impreciso ou polémico. No entanto,
há palavras cujos contornos são mais definidos do que
outras. Por exemplo, a palavra composta “pós-guerra”
nomeia o tempo de paz que sucede a uma guerra.
Considero-me a viver um tempo de pós-guerra? Independentemente da guerra a que o “pós-guerra” se
refira, seja a Segunda Guerra Mundial, em que eu ainda
não era nascida mas que desenhou o mundo em que
vivo, ou a guerra civil em Angola, de que a minha família
fugiu, e que durou até 2002, não há dúvida de que vivo
um tempo de paz – não há pessoas a serem mortas e
feridas à minha volta, não há medo, não tenho de fugir,
como em 1975 – mas julgo que a minha resposta é
“não, não me considero a viver um tempo de pós-guerra”.
Julgo que esta minha resposta tem a ver com a distância em relação a essas duas guerras. Uma distância
geográfica, uma distância temporal. É como se houvesse
um período de validade para o tempo do pós-guerra. Para
isso contribuirá, talvez, mais do que a normalização
do funcionamento da sociedade em tempo de paz, o
facto de outras guerras terem acontecido, entretanto.
O desenho do mundo do pós- Segunda Guerra Mundial
foi já redesenhado pelo pós- Guerra Fria, que nem
guerra bem foi, depois da guerra civil angolana, muitas
outras guerras civis aconteceram ou acontecem ainda,
Iraque, Líbano, Síria…
E agora outra palavra composta: Considero-me a viver
um tempo pós-colonialista? Quase todo o discurso que
existe é no sentido de me fazer crer que sim. No entanto,
a descolonização que me apanhou dista mais do presente do que o final da guerra civil que surgiu no seu
seguimento. Não me sinto no pós-guerra dessa guerra,
mas tudo tende a fazer-me sentir no pós-colonialismo
desse colonialismo. À parte o facto de que talvez se
recupere mais rapidamente de uma guerra do que de
um colonialismo, isto reforça a convicção de que o
período de validade de um tempo pós-qualquer-coisa
é tanto maior quanto menor for a possibilidade de se
tornar num tempo pré-essa-mesma-coisa. Os estragos
dos colonialismos que foram acontecendo ao longo de
milénios e a recente e final globalização que vivemos
parecem ter libertado definitivamente a humanidade
do colonialismo. A incapacidade de avistarmos no futuro os imaginários de exuberância e exotismo que
associamos ao colonialismo, contribui para que o pós-colonialismo surja como eterno. No entanto, confesso
que não me sinto a viver um tempo pós-colonialista.
Não por considerar que este tempo pode conter já, em
si, germes de um tempo pré-colonialista, não pelas
razões de que já não me sinto a viver no pós-guerra,
mas porque, em relação ao colonialismo, não me sinto
a viver sequer no pós:
Cresci em Luanda até aos 11 anos. A minha mãe não
trabalhava fora de casa, era o que se chamava – não
sei se ainda se pode chamar assim – uma dona de
casa: tomava conta da casa, de mim e da minha irmã,
e também, de certa maneira, do meu pai. O meu pai
tomava conta de nós de outra maneira: trabalhava fora
para nos dar sustento. Era o que se chamava – não sei
se ainda se pode chamar assim – o chefe de família.
A minha mãe tomava conta de nós sozinha, mas às
quintas-feiras, por umas horas, a Conceição ia ajudá-la
nas tarefas mais pesadas. A Conceição era uma negra
cerca de dez anos mais nova do que a minha mãe, que
vivia com o marido e dois filhos no musseque junto ao
bairro onde a minha família morava. Não tinha estudado, não sabia ler nem escrever e para sobreviver
–9–
As definições das palavras devem tender para potenciar,
e não para boicotar, o bem-estar a que a nossa comunicação sofisticada nos permite aceder. Mesmo que
seja difícil associar a pós-colonialismo um contorno
tão definido quanto o que se associa a pós-guerra,
devemos evitar que o engano surja: no que respeita
a grande parte do sofrimento e exploração associada
ao colonialismo, não é verdade que sejamos já outros,
que já ali não estejamos.
Pintura da série On crève ici, Aimé Mpame Enkobo, 2007 (cortesia do artista, © Coleção Estelle e Hervé Francès)
aquele crime: ter invadido, pilhado, cartografado, militarizado, desculturado, belgificado, cristianizado, mutilado
um país mil vezes maior do que ela. A Bélgica é a filha
do Congo, a sua colónia às avessas, a sua filha ilegítima,
o seu bebé morganático…” (48).
As figuras
agitadoras na
pós-memória
Felipe Cammaert
“O mito é o nada que é tudo”
Fernando Pessoa, “Ulisses”, Mensagem
Nas obras da literatura pós-colonial, é recorrente a
presença de figuras históricas que, de algum modo,
contribuem para explicitar a relação entre o universo
do colonizado e o contexto histórico em que estas se
inserem. Estas personagens apresentam-se, nalgumas
ocasiões, como verdadeiras figuras tutelares – ou,
melhor ainda, como “figuras agitadoras”¹ – capazes de
traçar ou de recriar uma filiação com o passado com
que os autores pretendem dialogar.
Noutros casos, estas figuras tutelares assumem contornos fantasmagóricos pela maneira como surgem nas
representações artísticas que encenam questões relacionadas com a pós-memória. Como afirma Margarida
Calafate Ribeiro, o acto colonial que subjaz à construção da Europa contemporânea não termina com o fim
dos impérios, mas “interroga a essência das sociedades
multiculturais europeias […] sob a forma das figuras
do ex-colonizador e do ex-colonizado que complexamente reencenam uma fantasmagoria que se identifica
com o habitante mais íntimo do inconsciente europeu
– o seu fantasma colonial”².
Duas obras literárias recentes, escritas em francês
desde margens opostas, colocam as figuras agitadoras no
âmago de uma reinterpretação do legado colonial desde
a perspectiva da pós-memória. Em Ulysse Lumumba,
do belga Laurent Demoulin, Patrice Lumumba, o herói
da independência e primeiro-ministro do Congo, é o
elemento central de uma reescrita da história associada
à mitologia. Pela sua parte, Meursault, contre-enquête,
do argelino Kamel Daoud, apresenta uma reinterpretação de O Estrangeiro, de Albert Camus desde a visão do
Árabe, a vítima silenciada do homicida existencialista³.
Deitar os restos mortais no ácido
da mitologia grega
Ulysse Lumumba revisita a figura de Patrice Lumumba
à luz do mito grego de Ulisses. Nesta obra, o intertexto
homérico cumpre a função de reler a história da descolonização congolesa através da imagem do herói
guerreiro. Falando para si próprio, o narrador pergunta-se “Homem branco / por que deitaste os seus despojos / no ácido desfigurador da tua mitologia grega?” (39),
numa clara referência à morte violenta de Lumumba.
Numa narrativa que vai ao avesso da versão pública, o
narrador relembra a revelação do seu pai sobre o passado colonial belga no Congo, e conclui que “os Belgas
não estavam do lado certo” porque o “herói desafortunado” desta história era Patrice Lumumba (46).
A transmissão desta memória provoca portanto uma
profunda ruptura no herdeiro do colonialismo europeu:
“Emergindo da infância, da pré-história e do mito, o meu
ser descolonizava-se, desbelgificava-se, desnacionalizava-se”, confessa (46). Neste ponto, a associação ex post
facto entre o mito homérico e a narrativa familiar irrompe
como uma lúcida resposta do filho à consciência histórica
da colonização. O término desta viagem, que vai da desmitificação até à remitificação, é muito significativo:
“A nossa pequena pátria só existe historicamente por
– 10 –
Liamna Gouasmia
É filha de um antigo combatente de origem
argelina que integrou as Forças Armadas
Francesas durante a Guerra da Argélia (um
harki como ficaram conhecidos esses homens).
Depois desse conflito, a Liamna e a sua família
foram acolhidos em França, no campo de Rivesaltes, onde foram instaladas muitas outras
famílias de harkis. O seu testemunho revela
a experiência de uma criança que cresceu num
quartel militar na Argélia francesa, contada
mais de 50 anos depois, em França, onde vive
desde que a sua família se sentiu obrigada
a fugir daquela que era a sua terra.
Nasci na Argélia em 1953. O meu pai combateu no
exército francês na Segunda Guerra Mundial, em Itália
e na Alemanha, onde foi feito prisioneiro. Terminado
esse conflito, o meu pai regressou à Argélia e quando
começou a Guerra de Resistência Anti-francesa na
Indochina (1946-1954), perguntaram-lhe se queria
alistar-se. Recusou. Em 1954, quando se assiste aos
primeiros ataques da Frente de Libertação Nacional
na Argélia, o meu pai realistou-se no exército francês,
dessa vez para combater naquela que era a sua terra.
Lá torturavam pessoas na rua e eu vi. Um dia, levaram
um homem para a rua principal que atravessava a
aldeia onde eu vivia. Estavam lá mulheres a assistir
a tudo. Partiram vidros ao longo da rua para onde levaram um homem. Despiram-no e obrigaram-no a rastejar sobre aqueles vidros e as mulheres riam e riam à
gargalhada. Eu ainda hoje ouço esse som na minha
cabeça. Continuo a ouvi-las rir na minha cabeça.
A restituição através da língua
do colonizador
Meursault, contre-enquête apoia-se num habilidoso
diálogo intertextual com a obra de Camus. Aqui, o escritor francês nascido na Argélia personifica a figura
agitadora das duas culturas, cujo legado Daoud quer
questionar desde uma perspectiva pós-colonial. Haroun,
o irmão do Árabe assassinado em O Estrangeiro, é o
narrador desta nova narrativa que privilegia a visão
do ex-colonizado, dado que “esta história deveria, pois,
ser reescrita na mesma língua, mas da direita para a
esquerda” (16).
O primeiro acto de justiça consiste em dar um nome
ao Árabe falecido, Moussa. Enquanto, no livro de Camus,
Meursault comete um homicídio aparentemente fortuito
contra o Árabe, na obra de Daoud Haroun mata propositadamente um francês nos tempos da guerra de independência. O significado deste acto anticolonial é
inequívoco: “Não era um assassínio, mas sim uma
restituição” (85). Ora, a verdadeira natureza da restituição materializa-se na escrita, isto é, na apropriação
da língua do colonizador. Daoud escreve em francês o
prisma da história silenciado por Camus, numa manifesta reivindicação pós-colonial: “Eis a razão pela qual
vou fazer o que se fez neste país após a independência:
pegar uma a uma nas pedras das antigas casas dos colonos e com elas fazer uma casa minha, uma língua
minha. As palavras do assassino e as suas expressões
são o bem de que me aproprio” (12).
Mais do que de uma tentativa de apagar o mito camusiano, Meursault, contre-enquête propõe uma reactualização da figura tutelar através da língua do colonizador.
Segundo Jean Sénac, o próprio Camus teria afirmado:
“Meursault é o mito do europeu da Argélia, estrangeiro
na sua terra natal e a viver inocentemente um terrível
mal-entendido” 4. No seu livro, Daoud coloca o Árabe
no centro do mito, tal como o faz Demoulin com o político congolês em Ulysse Lumumba.
O fantasma colonial nas obras de Demoulin e de Daoud
materializa-se na reapropriação das figuras tutelares
desde a perspectiva do colonizador e do colonizado, no
intuito de expor uma narrativa mediada pela herança
de uma memória íntima. Através do mito, a literatura
da pós-memória atinge a ressignificação do passado
apoiando-se nas suas figuras agitadoras nacionais e,
deste modo, encontra finalmente uma fecunda via de
mediação com a memória colonial europeia. Como afirma Roberto Vecchi “a função do mito não é encobrir as
coisas, mas deformá-las e condicioná-las naturalizando
a sua caducidade e artificialidade. É por isso que as mitologias são poderosas lupas que ampliam aspetos encobertos e menos visíveis das sociedades modernas”5.
(1) A expressão é de Christiane Chaulet Achour. “Retour ou détour par
Camus dans le roman algérien: Kateb Yacine, Kamel Daoud”.
(2) Margarida Calafate Ribeiro, “A Casa da Nave Europa – miragens ou
projeções pós-coloniais?”, in: António Sousa Ribeiro; Margarida Calafate
Ribeiro (org.), Geometrias da memória: configurações pós-coloniais, Porto:
Afrontamento, 2016, p. 37.
(3) Laurent Demoulin, Ulysse Lumumba, Bruxelles: Le Cormier, 2014.
Kamel Daoud, Meursault, contre-enquête, Paris: Actes Sud, 2014. Não
existindo tradução portuguesa destes textos, as traduções são nossas.
(4) Apud Christiane Chaulet Achour, op. cit.
(5) Vecchi, Roberto, “Mitologia e Memória”, Newsletter Memoirs, nº 26,
10 de novembro de 2018.
Quando chegámos a França, instalaram-nos no campo
de Rivesaltes. Eu tinha apenas oito anos quando fomos
obrigados a fugir da Argélia, mas lembro-me de tudo.
A partir da independência da Argélia, rapidamente nos
apercebemos como a vida se tinha tornado violenta.
Como o meu pai tinha uma carreira militar, a nossa
família vivia num quartel francês e expulsaram-nos.
Mudámo-nos para uma casa que pertencia ao meu pai,
onde ficámos pouco tempo porque não estávamos em
segurança. Partimos para a casa de familiares onde
nos sentíamos mais protegidos. Mas nada se assemelhava ao que era antes.
Para mim, a Argélia independente era uma descida
ao inferno. Isso até ao dia em que o meu pai decidiu
partir para um quartel militar, ainda na Argélia, onde
fomos acolhidos por militares franceses. Aí senti que
reencontráramos o nosso país. Naquele quartel estavam imensos harkis. A minha mãe não parava de
chorar. O meu pai, coitado, sabia que era necessário
partir. Os meus pais não queriam partir para França.
Eles acreditavam na independência. Mas não podíamos
ficar, depois de todos os horrores aos quais assistimos. O meu pai ficou tão dececionado e nós sentimo-lo.
O meu pai nunca mais voltou a falar na Argélia.
Chegámos a Rivesaltes em março de 1963. Embora seja
considerado, por muitos, um dos campos de harkis mais
problemáticos, eu não o senti assim. Vivíamos em habitações muito pequenas, sem nenhuma privacidade,
sem janelas, apenas com uma espécie de buraco em
cima; lembro-me do vento, era terrível; e o frio era um
inferno. Vivemos um ano nessas condições. Outros
ficaram por lá muito mais tempo. Mas para mim não
era grave, porque em Rivesaltes recriámos uma espécie de comunidade. Isto talvez nos tenha ajudado a
aguentar. E era totalmente diferente daquilo que eu
tinha vivido no início da independência da Argélia.
– 11 –
Houve outras situações que me perturbaram. Uma
delas foi assistir à destruição de um obelisco. No topo
desse obelisco havia o galo francês que envolveram
com uma corda, derrubando-o. Foi terrível ver esse
galo cair. Outra situação foi a de assistir à substituição da bandeira francesa pela da Argélia. Isto porque,
antes da independência, quando eu saía de casa para
a escola, passava todos os dias por outro quartel na
hora do içar a bandeira. E no nosso quartel, a bandeira
estava no centro. Quando se deu a Independência, vi
aquela bandeira verde, vermelha e branca subir lá para
o alto, ao mesmo tempo que a outra, azul, branca,
vermelha, descia. Foi dilacerante. Foi assim que vi
pequenos pedaços de França a partir.
Em França, os nossos pais não falavam da Argélia.
A minha mãe ainda tem alguns membros da família
que a vêm visitar e foi lá algumas vezes. O meu pai fez
uma cruz sobre a Argélia no dia em que atravessou o
mar. Eu pensava que se um dia o meu pai regressasse
à Argélia, eu o acompanharia. O meu pai, entretanto,
faleceu e eu não tenho vontade de lá ir. Para mim, a
Argélia não significa absolutamente nada. Nem quero
ouvir falar dela. É um país que me é estrangeiro,
porque o país onde nasci, deixou de existir.
Eu fiquei muito feliz quando cheguei a França, mas
depois, quando vemos por onde passámos e o que
sofremos. Acho que não foi digno da França. Nós, os
harkis, gostaríamos que a França se arrependesse;
queremos que reconheça como fomos mal acolhidos.
Queremos que seja reconhecido que deixámos a nossa
vida, deixámos a nossa alma, deixámos mais do que
quaisquer outros na Argélia. Abandonaram-nos lá.
Queremos que a França reconheça que agiu com a
maior desonra e queremos que se reconheça que somos
franceses de plenos direitos: que somos inteiramente
franceses.
Edição de Fátima Cruz Rodrigues
– 12 –
– 13 –
Olympia, de Aimé Mpame Enkobo, 2013 (cortesia do artista)
Louise Narbo:
Quem me inventará
como sou?
Jeux de Greffes, foto de Louise Narbo, 2017 (cortesia da artista e da galeria Ampara Corações)
pode ser ignorado na sua específica identidade se,
como tantas vezes acontece, se omitir o facto elementar de que a história da modernidade europeia é inseparável da história do colonialismo, com a consequência
evidente de que uma parte muito importante da história da Europa, incluindo os conflitos entre nações europeias, se desenrolou fora da realidade geográfica do
continente.
António Pinto Ribeiro
A infância é o lugar de todas as possibilidades. Não
propriamente no momento em que decorre, mas quando
lembrada no estado adulto. Um lugar onde as mais
belas ficções podem coabitar com os piores pesadelos
decorrentes do momento dessa evocação. A construção
da infância é o ponto de partida da fotógrafa Louise
Narbo. Nascida na Argélia em 1948, Louise Narbo não
tem a exclusividade de construir a sua infância nas
terras do ultramar; na verdade, faz parte de um conjunto
de autores destes países anteriores à descolonização
que utiliza este tópico e se utiliza¹ para trabalhar.
“Quem me inventará como sou?”², pergunta-se, e assim
começa um trabalho laborioso que recorre a uma negociação permanente com memórias, feita a partir de
fotografias. Fotos de memória, poderia ser o título que
abarca a totalidade da sua obra. Conta para isso com
três materiais fundamentais – o arquivo, a escrita e
a fotografia quase sempre a preto e branco – aos quais
acrescentará mais tarde uma técnica de composição,
a colagem.
Nos meses que antecedem a declaração da Independência da Argélia, Louise Narbo assiste à presença maciça
de soldados, aos atentados à bomba, ao ambiente caótico que muito a abala, tentando, já em Paris, num
bairro da periferia para onde vai viver, esquecer estes
meses de conflito na sua terra natal. Pensava ela que
“queria viver, crescer, tornar-se uma mulher francesa”³.
Mas a Argélia irrompia nos mais pequenos detalhes
e nas ocasiões menos prováveis. Não podia escapar,
e assim começou o seu trabalho solitário de pesquisa
e de encontros com fotógrafos que foram determinantes
na sua viagem4. O encontro com Mark Power, que
trabalhava sobre “O Diário íntimo de Rita Hayworth”5,
foi determinante para que enveredasse por um tipo de
fotografia que iria constituir um dos seus traços autorais. Trata-se do diário íntimo como género artístico
que, no caso de Louise Narbo, muito deve às frases
que acompanham as fotografias, inscritas, na maioria
das vezes, na própria fotografia ou como comentário
lateral às imagens dos seus livros de artista. Mas a
particularidade destes textos é o de serem literatura
ficcional, sem referências imediatas. São textos que
acompanham as imagens como se fosse uma voz off,
caso se tratasse de cinema. E o tom dos textos é sempre
sobre a perda e sobre a ausência. Não inscreve nas fotografias frases sobre esta perda e sobre a ausência, mas
di-lo à parte: “No que diz respeito à ausência, os meus
pais não tiveram uma fotografia do seu casamento. Ainda
criança questionava-me sobre isto porque toda a gente
à minha volta tinha uma. Faltava-me a mim a prova de
que eles de facto se tinham casado”6. Esta é a prova que
a fotógrafa vai perseguir, tentando construir uma série
de imagens de modo a construir a sua identidade.
Um dos melhores exemplos desta linguagem de artista
são as fotografias de Les voyages de la nuit (1997-2008).
“Nesta série foi na impressão, no laboratório, que eu
modifiquei a imagem.” Desde os seus primeiros trabalhos, a melancolia está presente, e um dos exemplos
iniciais é a série Mémoire de papier (2009-2010), um
conjunto de fotografias de objectos, de cartões postais,
de desenhos, de papéis escritos em antigas caligrafias.
Trata-se de uma colecção de fotos, uma herança dos
pais da fotógrafa, que lhe permitiu aproximar-se de
um tempo antigo, anterior ao seu nascimento como
são as fotos datadas de 1932. “Os objectos lembram-me
momentos passados com eles (pais). Um pouco como
as músicas que marcam uma época” 7. A presença
permanente dos objectos que, em alguns casos, são
pertences e, noutros, recordações, representa um
papel fundamental, pois permite reconstruir uma
história. São matéria de arqueologia que contextualiza
a narrativa da fotógrafa, a sua autobiografia num período específico da História da Argélia. Nestes objectos
fotografados podem incluir-se naturezas vivas como
são as permanentes palmeiras e o mar. A muitos destes
objectos Narbo chamou “objectos órfãos”, o que constitui um processo de contaminação do espaço exterior
– os românticos fizeram-no em relação à natureza –
do que era o seu ‘estado de alma’, uma orfandade que,
embora imprecisa, tornou-se uma das marcas identitárias da sua linguagem artística.
A série Ce qui ne s’écrit pas (1980-2002) recupera o
tópico da melancolia pela insistência em superar as
várias invisibilidades8 – “Aos vinte anos não tinha
uma imagem (de mim)” – e foram as suas fotografias,
os seus auto-retratos que lhe restauraram o que sempre
lhe faltara: “A fotografia mostrou-me a minha imagem”9. A frase com que Louise Narbo termina o texto
que acompanha Photos de mémoire (1980-2005) poderia
ser o título dado à sua obra na totalidade, até hoje. Na
série, a imagem de si conjuga-se com a imagem da
Argélia: “São, de alguma maneira, fotos da memória,
porque era a Argélia que eu estava sempre a fotografar”10.
E aqui a relevância dos textos escritos que acompanham
as imagens torna-se uma evidência: para a autora, é a
Argélia o fio com que monta toda a narrativa biográfica,
no sentido de uma criação ficcional do termo. Para o
espectador e leitor, esta é a chave de entrada, a elaborada dicção que permite o entendimento sem remorso
– 14 –
Visibilidades, invisibilidades
e o lugar da memória
António Sousa Ribeiro
da obra sobre a ex-colónia francesa. Duas das últimas
séries de fotografias de Narbo, reunidas na exposição
Ver com os olhos de um outro (2019) têm por título
La vision fântome. Nesta série, Louise Narbo extrema
duas qualidades. Por um lado, insiste em retratos que
são mais fantasmas do que provas do real – regressando
assim à origem da própria fotografia que nasce mais
da técnica do que da arte – e, por outro lado, desenvolve
esse tão grande paradoxo que é o de uma arte que
privilegia a visão, apresentando retratos de uma personagem invisual na série Jeux de greffes (2017) em
homenagem ao pai. A fotografia tanto pode estar entre
uma arte da ocultação como facultar o desafio à vontade
de ver para lá do óbvio. Não por acaso há nesta série ecos
das fotografias de surrealistas e das suas montagens
e manipulações, sejam eles Man Ray, Dora Maar,
Manuel Álvarez Bravo, Grete Stern, etc.
Nas fotografias de Louise Narbo, à medida que vamos
conseguindo descortinar entre as brumas, encontramos narrativas de perda, expressões de ausência, de
dor e, às vezes também, melancolia, leveza e ironia.
E tudo isto acontece porque estas imagens nos atraem
na sua inquietante estranheza, que aceitamos numa
superação da dor que, por vezes, a arte possibilita.
(1) A Independência da Argélia deu-se a 1 de Julho de 1962.
(2) In, Coupe sombre, un journal traversé, p. 35, http://www.louisenarbo.fr/
(3) http://www.louisenarbo.fr/en/
(4) Louise Narbo refere-se a fotógrafos como Arno Minkkinen, Machiel
Botman, Max Pam
(5) http://www.louisenarbo.fr/en/
(6) “Louise Narbo, le roman d’une autoportraitiste” – Interview de Liv
Gudmundson- http://www.louisenarbo.fr/en, tradução do autor
(7) http://www.louisenarbo.fr/en, tradução do autor
(8) http://www.louisenarbo.fr/en, tradução do autor
(9) http://www.louisenarbo.fr/en, tradução do autor
(10) http://www.louisenarbo.fr/en, tradução do autor
Na oitava das suas teses “Sobre a Filosofia da História”,
em referência explícita ao emergir do nazismo e à
dificuldade de construir uma teoria capaz de lidar
com esse fenómeno novo, Walter Benjamin escreve
que “o espanto por estas coisas que estamos a viver
serem ‘ainda’ possíveis no século XX não é um espanto
filosófico”. A presença crescente no espaço público de
discursos racistas e xenófobos, correspondente, no
contexto geopolítico actual, a um notório abaixamento
do limiar de tolerância aceite e, porventura, a um concomitante e progressivo sentimento de impunidade,
dá-nos todas as razões para mantermos bem presente
a reflexão benjaminiana. Um exemplo relativamente
recente, perfeitamente ilustrativo, é a muito debatida
crónica de Maria de Fátima Bonifácio, na edição de
6/7/2019 do jornal Público, em que, a pretexto da eventual introdução de políticas de discriminação positiva
relativamente a minorias étnico-raciais, a autora refere,
a dado momento, que “nem [africanos nem ciganos]
descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789. Uns
e outros possuem os seus códigos de honra, as suas
crenças, cultos e liturgias próprios.” A conclusão lógica
da argumentação é, naturalmente, que essas minorias
étnicas são, por definição, não-assimiláveis e, consequentemente, estão – por culpa própria, note-se –
condenadas a permanecer à margem.
A conversa de vão de escada travestida de crónica
jornalística oferecida ao mundo por Maria de Fátima
Bonifácio seria, em si, irrelevante se não exprimisse
a lógica de um senso comum que vem recordar-nos
vivamente que há coisas que são “ainda” possíveis,
não como simples resquícios de um passado troglodita,
mas como configuração ideológica activa no presente
e – basta um relance às caixas de comentários dos
jornais online para o confirmar – capaz de suscitar
consensos mais alargados do que gostaríamos de admitir. Reconhece-se a matriz da argumentação naquela
insânia da identidade a que a teoria do “choque de
civilizações” de Samuel Huntington deu respeitabilidade
académica e cujo pressuposto fundamental está na
recusa liminar de qualquer noção de que o dinamismo
das culturas reside, em larguíssima medida, na sua
capacidade de se situarem em tradução, isto é, de se
entrecruzarem e fertilizarem mutuamente.
Por coincidência, ou não, a crónica de Bonifácio veio a
lume no fim de semana em que se realizou em Lisboa
um grande congresso organizado pela rede “Afroeuropeans”, no qual uma boa parte das pessoas participantes
pertencia, justamente, a essas “minorias” que “não
descendem da Revolução Francesa”. A designação de
“Afroeuropean” visa, entre outros aspectos, dar visibilidade a uma realidade que uma matriz discursiva como
a utilizada pela autora da crónica torna invisível (não
por acaso, o título do congresso era “Black In/visibilities
Contested”): o conceito de “europeu” inclui amplas
camadas populacionais de origem extra-europeia que
se identificam expressamente como europeias, sem,
contudo, cederem a uma lógica de simples assimilação
e, portanto, afirmando uma diferença que se traduz,
não obstante, do mesmo passo, nos modos complexos
de inter-relacionamento expressos na forma compósita da designação. O “Afroeuropean” é, em parte fundamental, um produto da história do colonialismo e só
– 15 –
A exigência de assimilação, que é concomitante com
a incapacidade para fazer justiça ao lugar específico
ocupado pelo “Afroeuropean” e, assim, com a recusa
de reconhecimento, envolve muito centralmente a
questão da memória. É, aliás, uma excelente demonstração de como a memória e o esquecimento são sempre
declinados no presente: o presente da rasura e invisibilização do passado colonial, por um lado, e, por outro,
o presente da construção de uma identidade compósita
distintamente pós-colonial. Uma dimensão fundamental
sempre acentuada pelas reflexões recentes sobre o
conceito de pós-memória está na insistência em que
esse conceito, muito mais do que confirmar uma continuidade, assinala um processo de ruptura que incorpora sempre um momento reflexivo, uma distância
que aponta para a complexidade de uma construção
específica através da qual se encena a relevância
contemporânea do passado. Deste ponto de vista, a
pós-memória representa, literalmente, um gesto de
tradução, se se entender a tradução como um modelo
epistemológico para formas de relacionamento e de
incorporação de discursos e experiências que são, por
definição, estranhas e inassimiláveis. É, justamente,
este gesto que o “Afroeuropean” representa na materialidade do seu próprio corpo, respondendo à racialização deste pelo discurso colonial com a afirmação
crescentemente vigorosa de novas subjectividades
híbridas e emancipatórias.
Esconjura da memória
Paulo de Medeiros
Imaginemos que o segundo axioma de Derrida em
O Outro Cabo funciona como uma lex parsimoniae:
“le propre d’une culture, c’est de n’être pas identique
à elle-même”. [o próprio de uma cultura é o não ser
idêntica a si mesma, (Paris: Minuit, 1991, 16)]. Embora
possa parecer paradoxal, tal enunciado é tudo menos
aporético; muito pelo contrário, se tomado com o rigor
devido, poderia bem ajudar a dissipar muitos dos problemas que atravessam a Europa hoje em dia, uma
certa crise identitária, assim como o retorno a formas
de nacionalismo extremo e xenófobo que ameaçam
destruir o próprio conceito de Europa. No clima explosivo recente que tem vindo a assolar a Europa na esteia
da falência dos modelos neoliberais e das premissas
de um capitalismo cada vez mais selvagem, o racismo
sempre latente nas várias sociedades europeias não
só veio à tona como tem vindo a ser cada vez mais
normalizado pelo discurso de entidades em si díspares
mas reunidas na ansiedade progressiva que domina
a maior parte da cena política atual. Sem ser um elemento único, o racismo constitui um dos maiores problemas que ameaçam não só a integridade do projeto
europeu como o seu futuro.
Uma das luzes neste cenário tenebroso, que a Europa
atravessa neste momento, é a afirmação de formas de
ser-se Europeu que contradizem, e ainda bem, a imagem xenófoba que nos ameaça a todos. A insistência
no reconhecimento não só da presença mas também
da importância da contribuição africana para o que
podemos apelidar de Europa, embora não seja só de
agora, tem recebido um ímpeto novo, impulsionada
por uma geração nova e pelos seus conflitos próprios
em relação ao seu lugar nesta mesma Europa, que é
a sua, ao mesmo tempo que também é daqueles que
pretendem excluí-los. Um exemplo forte desta nova
afirmação pode ser vista na designação de Afroeuropeu – em tudo contrária a ideologias nefastas e bolorentas como o Lusotropicalismo ou a celebração impensada do hibridismo quer cultural quer étnico –, que na
maior parte dos casos simplesmente ajudava a tornar
ainda mais invisíveis as feridas abertas de um passado de extrema violência colonial e imperial.
Neste sentido, a intervenção de Johny Pitts, em Afropean:
Notes from Black Europe (2019) marca uma nova etapa.
Esta travessia do continente europeu, partindo de
Sheffield, passando por Paris, Marselha, Amsterdão,
Berlim, Moscovo, e Lisboa, e acabando em Gibraltar,
é em parte um retomar da viagem seminal e do seu
relato levados a cabo por Caryl Phillips (The European
Tribe, 1987), e o seu avesso. Embora a figura de Caryl
Phillips seja incontornável – e Johny Pitts referencia
esse legado, ao mesmo tempo que nota outros, também
marcantes, na sua busca de uma tradição cultural e
intelectual negra na Europa e não apenas nos Estados
Unidos – as diferenças são também notáveis. Uma
delas é a busca da presença africana na Europa e o
questionamento quer do seu legado quer da sua pertença, na, e da, Europa. Outra, a inclusão de fotografias
tiradas pelo autor no seu percurso, mas a tensão entre
texto e imagem, ou mesmo das imagens entre si, necessitaria de mais atenção. Outra ainda, a tentativa de
entender os processos de inclusão e exclusão não apenas
do ponto de vista racial ou étnico, mas também do ponto
de vista de classe. Tentativa porque, embora o livro
marque uma nova etapa no discurso sobre a identidade europeia, ainda necessita de desenvolver e apurar
questões de base tanto teóricas como metodológicas.
O desejo de assumir uma perspetiva radicalmente
diferente, marcada tanto pela sua origem étnica
híbrida – filho de uma mãe branca e um pai negro,
norte-americano – como pela sua identificação com
a classe operária em geral, e bem especificamente
de Sheffield, embora significativa, não tem (ainda)
tradução concreta: o texto de Johny Pitts é documental,
mas também sempre muito pessoal. A travessia da Europa
e a busca de uma identidade afroeuropeia é, antes de
mais, uma jornada à procura de si, e de uma tradição
que possa ser condignamente assumida como própria.
Vale a pena retomar o axioma de Derrida e aplicá-lo
não só à Europa em geral, como à Afro-Europa ou, ainda
mais, à demanda de uma identidade afroeuropeia.
Uma tomada de posição – e de consciência – mais
dialética teria porventura possibilitado uma fundamentação mais concreta, mais sistemática, e de maior relevo. Não são as contradições inerentes à narrativa de
Johny Pitts que ocasionam essa falha. Nalguns casos,
ele mesmo estará bem consciente delas. Um exemplo
flagrante é a sua honesta afirmação do sentimento de
pertença que o ‘regresso’ ao Reino Unido lhe proporciona ao dar entrada em Gibraltar. Noutros casos, talvez as razões continuem obscuras, o que explicaria,
em parte, algumas lacunas, desde o silêncio sobre o
que não deixa de ser a situação colonial em Gibraltar,
à omissão de Itália no seu périplo.
– 16 –
minha casa, nem os meus amigos de Mansourah. Hoje,
o meu sonho mais precioso é de regressar lá.”
No fim do livro, praticamente antes do ‘regresso ao lar
afetivo’, Johny Pitts narra a sua experiência na Cova
da Moura. Embora as suas observações não deixem de
ter interesse, também denotam uma das falhas do seu
projeto. A suspeita da intelectualização académica,
que ele assinala logo de início, leva-o por vezes a uma
falta de rigor manifesta quer em deslizes simples –
por exemplo, a inclusão de Moçambique na lista de
colónias africanas da Alemanha, quando a única referência, sem grande significado no contexto, deveria
ser ao triângulo de Quionga – quer no silenciamento
de outras vozes. Nas ocasiões em que a narrativa permite deslumbrar outras vozes nota-se uma relação de
pertença muito mais dialética, se bem que não menos
problemática. O contraste entre a exposição das condições na Holanda, com o apoio de vários intelectuais
como Gloria Wekker, e as dificuldades em interpretar
aquilo que lhe é dado observar tanto em Lisboa como
em Berlim, por exemplo, ilustra essa falha teórica de
maneira evidente. Mesmo assim, o relato de Johny Pitts
assume uma posição de destaque no discurso atual
sobre a condição europeia e aponta, não para soluções
mas sim para vias de questionamento e possibilidades
de resistir aos ataques reacionários contínuos que ameaçam destruir a possibilidade de um futuro para uma
Europa livre. Sem ser um livro de memória, Afropean
é como que um processo de esconjura da memória e
de uma rememória, para usar o termo de Toni Morrisson,
tanto outra como própria, que incorpora a possibilidade, desejada por Derrida entre outros, de reinventar
uma identidade que seja europeia precisamente por
nunca se constituir como unicamente europeia.
Liguei ao meu pai:
— “Pai, o que são os reagrupamentos?”
— “ É o ponto de partida de uma vida despedaçada
pela guerra que nos trouxe a errância e a imigração.”
Aquilo não me evocava nada. Qual era essa memória
que o meu pai havia preferido silenciar? O que é que ele
tinha vivido? Como é que essa história o marcou? Como
foi transformada a sua relação com o mundo? E os outros,
lá, os seus “amigos de Mansourah”, que ele não via
há cinquenta anos, que memória é que eles carregam?
E o que fizeram dela? Transmitiram-na aos seus filhos?
Ou então, como o meu pai, ocultaram-na para continuar
a viver? E o que aconteceu com a aldeia de Mansourah
hoje? Como é que foi transformada por esse episódio?
Desenho da série Sorcière (2017)
Group Show
Julien Salaud, Katia Bourdarel, Dalila
Dalléas Bouzar, Mehdi-Georges Lahlou,
Marion Laval-Jeantet, Myriam Mechita,
Annette Messager, Lionel Sabatté. Curator
Marie de Paris-Yafil. H2M, Bourg-en-Bresse
Crescer à sombra
do arame farpado
Dorothee Myriam Kellou
Tal como aconteceu nalgumas zonas das
antigas colónias africanas portuguesas,
na Argélia colonial as operações de deslocamento de pessoas para os chamados
aldeamentos são um fenómeno pouco
conhecido apesar da sua magnitude
durante o período colonial. O presente
texto é uma viagem pela memória destes
reagrupamentos na região de Mansourah
e da descoberta, por parte de uma filha de
argelino, da história familiar silenciada
durante vários anos.
É comum ouvir dizer que os argelinos são um povo
de errantes que se ignoram. Eu herdei essa sensação
de errância, em silêncio, na ausência de palavras pousadas sobre uma história, sobre a sua própria história.
Quando criança, a Argélia tinha para mim a forma do
silêncio e o odor dos cafés argelinos em França onde
o meu pai se ia refugiar. Era aí onde ele encontrava
os seus amigos argelinos. Precisava de se afogar, de
reencontrar o seu mar.
Quando estava bem disposto, eu esquecia tudo. Levava-me ao cinema, ao melhor restaurante da zona. Lá,
falava-me da sua profissão de cineasta, dos filmes
que tinha visto, dos que tinha gostado, dos filmes que
tinha imaginado e começado a esboçar numa folha de
papel. Ele tinha sempre muitas ideias, a cabeça cheia
de projetos, cheia de projetos inacabados... Como a
“Carta às minhas filhas”, um projeto de filme documental que ele nunca realizou.
O meu pai deu-nos de presente este projeto de filme
documental, à minha irmã e a mim, numa noite de
Natal. Nessa altura, não fiz nada com aquilo. Não estava
pronta para enfrentar as feridas do meu pai. Quando
fui trabalhar nos territórios palestinianos ocupados,
comecei a interrogar-me sobre o funcionamento de
um sistema colonial e sobre as feridas que ele pode
infligir à nossa alma. Foi apenas quando fui estudar
História nos Estados Unidos que comecei a questionar-me diretamente sobre a memória do meu pai.
E reli a “Carta às minhas filhas”:
“Em 1955, eu tinha dez anos. O exército francês tinha
decidido evacuar as aldeias mais isoladas, entre as
quais aquela onde nós vivíamos: Mansourah. Fomos
reagrupados no centro, num local que estava sob controle do exército francês. O terreno estava cercado de
arame farpado eletrificado, e precisávamos de autorização para cultivar os campos abandonados. Desde então,
nunca mais voltei à minha aldeia. Nunca mais revi a
– 17 –
Eu lia livros relacionados com o assunto e passava
vários dias a mexer nos arquivos militares da guerra
da Argélia no Serviço Histórico do Exército Territorial
(Service Historique de l’Armée de Terre) em Vincennes.
Vários relatórios ditos “secretos”, assinados pelo Coronel
Buis, comandante-chefe do sector de Hodna Oeste,
tratavam do reagrupamento das populações em
Mansourah. O primeiro objetivo dos reagrupamentos
era militar: privar o Exército de Libertação Nacional
(Armée de Libération Nationale) de qualquer apoio
logístico, e até político, por parte da população rural.
O objetivo torna-se em seguida político: colocar a população rural argelina sob vigilância e administração
direta da França. Em 1962, são mais de 2.350.000 os
argelinos reagrupados nos campos criados pelo exército francês, e 1.175.000 em aldeias e vilas colocadas
sob vigilância militar francesa. No total, mais da metade da população rural argelina foi deslocada do seu
local de origem durante a Guerra da Argélia.
Apesar da dimensão e das consequências deste fenómeno histórico (abandono da micro-agricultura e do
artesanato, desenvolvimento do assalariado, inércia
e imobilismo social, êxodo maciço para as cidades), os
reagrupamentos permanecem amplamente ausentes
da memória coletiva em França e na Argélia. Sendo
assim, cinquenta anos depois, para mim, a urgência era
poder aceder àquela memória do meu pai e daqueles
que, na sua aldeia natal, cresceram ou envelheceram
“à sombra dos arames farpados”. Eu também desejava
ir além do ponto de vista do exército francês, que
apresentava esses reagrupamentos como instrumentos de modernização da Argélia rural.
No início, o meu pai estava de acordo em que eu gravasse o som da sua voz, mas não queria ser filmado.
Ele repetia: “não é a minha história, filma os outros”.
Depois, aceitou ser filmado para se reinscrever numa
história, que também o tinha marcado. Isto significou
para mim seis anos de trabalho e de preparações para
poder alcançar a intimidade emocional do meu pai e
poder filmar o indizível. Hoje, ele pode contar-me a mim
e aos outros a sua história, graças ao filme-memória
que criámos, intitulado A Mansourah tu nous as séparés, e que se tornou a materialização da sua narrativa.
Na saída de uma projeção num festival, perguntei-lhe
por que é que ele não pôde e não soube contar-me
aquela história quando eu era criança. Ele respondeu:
“Eu queria proteger-te.” Mas o silêncio protege?
Na quinta-feira, 4 de abril de 2019, o primeiro-ministro
belga, Charles Michel, fez uma declaração solene e
memorial a respeito da segregação específica de que
foram vítimas os mestiços nascidos da união entre
uma mulher negra e um pai branco durante o período
colonial. Em nome do governo, apresentou desculpas
aos mestiços e às suas famílias pelas injustiças e tormentos sofridos.
Esta declaração e o pedido de desculpas nela contido
respondem ao pedido da Associação dos Mestiços da
Bélgica e da Câmara dos Representantes, formulado
numa resolução votada por unanimidade a 29 de março
de 2018, na sequência de resoluções já anteriormente
votadas pelo Senado, pelo Parlamento da Federação
da Valónia-Bruxelas e pelo Parlamento Francófono
de Bruxelas. Vem juntar-se à declaração e ao pedido
de desculpas dos bispos da Bélgica, emitido em 25
de abril de 2017, pelo papel desempenhado pela Igreja
Católica nesta segregação e nos sequestros forçados
daí resultantes.
racial, na suposta supremacia da raça branca. Num
tal contexto, os casamentos mistos eram entendidos
como uma ameaça à perenidade dos interesses coloniais e ao prestígio da raça branca. Além disso, pressupunha-se que a gota de sangue branco nas suas
veias os transformava em revolucionários potenciais.
Muitos mestiços foram abandonados pelos seus progenitores brancos. O Estado colonial decidiu arrancá-los
às mães para os afastar do meio materno e colocou-os
em orfanatos ou noutras instituições filantrópicas
mantidas por congregações religiosas católicas situadas muitas vezes muito longe do seu local de nascimento. Os mestiços, também chamados “mulatos”,
não tinham um estatuto jurídico bem definido, a não
ser que tivessem sido reconhecidos pelo pai branco.
Até 1948, não eram admitidos nas escolas destinadas
às crianças brancas. Alguns deles foram levados para
a Bélgica para serem adotados ou colocados em famílias de acolhimento ou em lares, sem consideração
pelos direitos da mãe e pelo equilíbrio afetivo da
criança. O sofrimento dos mestiços é pouco conhecido.
A resolução votada em março de 2018 contém medidas
como o acesso aos arquivos pessoais, a ajuda na busca
dos pais biológicos, a facilitação dos reencontros familiares e mesmo a atribuição da nacionalidade belga.
As modalidades de receção dos processos dos requerentes, assim como uma informação oficial sobre os procedimentos a adotar, não estão ainda definidos com
clareza e provocam já impaciência e deceção. Os resultados já obtidos eram inesperados, mas são, de todo
o modo, apreciáveis.
Assumani Budagwa
É corrente afirmar-se que o sistema colonial belga
se apoiou em três pilares: a administração, a Igreja
e as empresas. Omite-se o quarto pilar, que é a raça.
O sistema colonial belga baseava-se numa dominação
É preciso abrir-se para sanar a sua história, apaziguar
os espíritos e fazer prova de compreensão e de humanismo para permitir aos mestiços reconstruir-se, sair da
sombra, afirmar serenamente as suas muitas pertenças. E a Igreja Católica, que dispõe de uma vasta rede
no Congo, no Ruanda e no Burundi, pode contribuir
de maneira eficaz para a difusão da declaração do
primeiro-ministro, para a procura das mães africanas,
para o fornecimento de informações-chave, várias das
quais se encontram nos registos de batismo tão minuciosamente mantidos e conservados.
A declaração de reconhecimento e, nomeadamente,
as desculpas apresentadas em nome do povo belga
foram acolhidas com alívio, mas uma franja de mestiços e, sobretudo, dos seus descendentes, pensa que
as desculpas não são suficientes. É necessário, em
todo o caso, manter presente que o reconhecimento
desta segregação específica era uma etapa indispensável que abre a porta para eventuais reparações por
meios morais e administrativos que, por seu turno,
tornem audíveis e credíveis as desculpas formuladas.
Reconhecimento e
reparação: a Bélgica
e a herança colonial
O reconhecimento dos sofrimentos ligados à segregação específica dos mestiços do Congo Belga e do
Ruanda-Urundi é, simultaneamente, histórico, simbólico e humano. Histórico, porque é uma das primeiras
vezes que uma resolução relativa a uma página da
história colonial belga é votada por unanimidade e
conduz a uma declaração solene e memorial. Simbólico,
porque o reconhecimento dos factos e as desculpas
não apagam os sofrimentos dos mestiços, as mágoas
e a dor das suas mães negras nem os traumatismos
transgeracionais. Humano, porque as mulheres e os
homens políticos belgas assumiram esses sofrimentos e decidiram agir, isto é, reconhecer, reparar e
desculpar-se, em nome do povo belga. Humano também, porque a iniciativa das mães para procurar os
seus filhos se fez com dignidade, sem manifestações
hostis nem rancor.
vivos –, na procura dos irmãos deslocados, abrir e dar
acesso aos arquivos e, sobretudo, atribuir, à guisa de
compensação, o nome e a nacionalidade do pai aos
que os reclamam para si e para os seus descendentes,
constituem uma forma elegante de reparação. Alguns
países fizeram-no, a Bélgica prepara-se para fazê-lo,
mas caso a caso. As modalidades de reparação estão
a ser discutidas entre os representantes do governo
e a Associação dos Mestiços da Bélgica e suscitam já
algumas inquietações. Avanços como o acesso aos
processos pessoais devem ser saudados, mas as vítimas
estão à espera de muito mais.
Houve pessoas que pensaram que eles eram favorecidos sob o regime colonial em detrimento dos negros,
suscitando suspeitas e invejas.
O reconhecimento desta página pouco gloriosa, sombria
e dolorosa, da sua política colonial permite à Bélgica
progredir e assumir com coragem e humildade os crimes
graves cometidos durante este período. Por ocasião
desta declaração, o primeiro-ministro exprimiu também compaixão às mães africanas, mas teria sido
apreciado que lhes tivesse igualmente apresentado
desculpas pelos preconceitos de que foram objeto e
que dissesse uma palavra aos poucos brancos, religiosos ou laicos, que assumiram a sua paternidade com
coragem e responsabilidade, assim como, a todas as
pessoas que aliviaram o sofrimento dos mestiços e
que não conheciam a verdadeira razão da aparência
de solicitude arvorada pela administração colonial
para com os mestiços.
Ajudar os mestiços na sua busca de identidade, na procura dos seus pais e mães – mesmo se já não estão
– 18 –
A MESTRIA na arte de perder:
uma história da imigração argelina
em França
sobram apenas vestígios de um passado além-mar:
calendários muçulmanos, bandejas de cobre decoradas com palavras árabes, a foto da Meca, o serviço de
chá e algumas bijuterias. Objetos de memória que, de
algum modo, simbolizam as origens de uma família
cujo destino parece se encontrar na Europa pós-colonial.
L’Art de Perdre é um romance de grande qualidade
narrativa que se inscreve na linhagem de uma série
de estudos, testemunhos e ficções que pleiteiam pela
pluralidade de vozes daqueles que não souberam ou
não tiveram o poder de contar sua história:
“A história plural da Argélia não tem o peso da história
oficial, a que unifica. […] Entretanto, vozes se elevam
dos dois lados do Mediterrâneo para que a Argélia não
seja apenas um capítulo de um livro que ela [Argélia]
não teve o direito de escrever. Mas, por enquanto, parece que ninguém ouve essas vozes (17,18).”
Fernanda Vilar
Destarte, Alice Zeniter retoma pela ficção uma memória
marginalizada, inscrevendo o passado colonial francês
na continuidade da história da França. Ao confrontar
a noção de pertença a uma Argélia imaginada a partir
da imigração e a (des)continuidade nas gerações seguintes, Zeniter permite-nos refletir sobre a construção
de uma identidade francesa contemporânea que seja
inclusiva em sua diversidade.
O que habita o silêncio das histórias de família? Que
laço une um filho nascido em França à história dos
pais imigrantes? “O que não se transmite, se perde”,
diz o aclamado romance L’Art de Perdre, de Alice Zeniter,
prêmio Goncourt em 2017¹. A virtude da ficção de Zeniter
está em interrogar o papel das memórias pessoais e
dos testemunhos na reavaliação da história oficial, ao
mesmo tempo que investiga o silêncio que permeia
várias famílias de harkis² – argelinos que lutaram
pela França na Guerra da Argélia de 1954 a 1962. Ao
contar uma história a partir de três gerações e realidades diferentes, desde as premissas da Guerra da
Independência da Argélia até à França contemporânea,
a autora tenta responder como é que a “geração pós”,
retomando a expressão de Marianne Hirsch associada
ao seu conceito de pós-memória, pode recuperar uma
memória familiar auto-censurada.
A primeira parte do romance, “L’Algérie de papa”
(A Argélia do meu pai) conta a história da Argélia
desde 1830 até à independência em 1962, marcando a
imigração em França da família da narradora, Naïma.
Se a primeira parte é focada na personagem do avô,
Ali, a segunda parte, “La France froide” (A França fria),
centra-se na vida de Hamid, pai de Naïma, e descreve
a difícil adaptação da família ao campo onde foram
colocados até poderem instalar-se na Normandia.
Hamid encarna todos os conflitos entre a geração
que cresceu em França e a dos pais, cuja migração foi
forçada. A terceira parte, “Paris est une fête” (Paris
é uma festa) mostra como Naïma enfrentou o passado
familiar silenciado para refletir sobre a herança e a
transmissão das memórias das migrações de origem
colonial na França contemporânea.
A personagem de Naïma pode ser lida como uma alegoria dos muitos filhos de migrantes em França, que
conhecem sua história familiar por meio de esporádicas
anedotas que pouco explicam o passado³. Por isso,
algumas questões assombram as gerações seguintes,
como no caso de Naïma e de seu pai: por que é que
o avô escolheu ficar do lado dos franceses durante a
guerra de independência? Esse fato marcará a família
como traidora (harki) e implicará um exílio forçado
em França. Essa imigração é compreendida como um
evento traumático sobre o qual é difícil elaborar um
discurso, e por essa razão torna-se tabu.
Graças a seu engajamento político, Hamid compreende
a posição que a família ocupa na história franco-argelina. Entretanto, ele recusa aceitar o pertencimento
ao país onde nasceu e, como seu pai, não responde às
questões que o perturbam. “É fácil para vocês, os que
foram poupados” (309), pondera Hamid quando discute com sua mulher, a francesa Clarisse. Seria possível
aos que foram “poupados” a essa história compreender
a dor daqueles que a viveram? Seria esse silêncio protetor ou fonte de sofrimento e distância? Todas essas
questões são matizadas na vida das diferentes gerações
ilustradas ao longo da narrativa. As respostas se consolidam finalmente a partir das pesquisas de Naïma,
que representa a voz da geração da pós-memória. Ela
consegue ao mesmo tempo ultrapassar o imponente
silêncio do espaço familiar, criticar a narrativa oficial
do estado francês e criar um novo discurso a partir de
suas pesquisas.
O que Naïma deseja é conhecer o passado de sua família para poder escolher as heranças que a compõem,
e que definirão a maneira como ela se apresenta no
mundo. Seu nome, sua pele morena, os cabelos negros
e os domingos na casa da avó são traços que constituem
uma Argélia adormecida que se despertará no encontro
com um pintor cabila exilado em França, Lalla. Ele
transmite a memória da Argélia entre a guerra e o
momento da perda das ilusões, derrubando o muro
intransponível criado no Mediterrâneo pelo avô de
Naïma.
Entretanto, retornar aonde não se pertence apenas
confirma o que o pai dizia: “nunca ter visto uma árvore
crescer a mais de mil quilômetros de sua raiz” (361).
A metáfora explica como um país de origem não define o nosso lar. Essa frustração revela-se na viagem de
Naïma, que compreendeu que sua conexão com a Argélia passa mais por uma transmissão da cultura e
dos valores do que por uma relação biológica, pois
“um país não se transmite pelo sangue” (508).
Podemos perder tudo, até um país, afirma o poema de
Elizabeth Bishop que inspirou o título do livro. É o
que Naïma compreende ao avaliar as escolhas feitas
na família e sua reinvenção na França. O fato de ter
migrado para França implicou a perda de um estatuto
social, de terras, de uma língua e o consequente enfraquecimento de práticas culturais. No lar europeu
– 19 –
(1) Alice Zeniter, L’Art de Perdre, [e-book], Ed. Flammarion, Paris, 2017.
(2) O tratamento do tema dos harkis não é inédito, tendo sido abordado
inicialmente por Saïd Ferdi, Un enfant dans la guerre (1981), seguido por uma
série de outros livros entre 2003 e 2005, tais como Dalila Kerchouche, Mon
père, ce harki, Zahia Rahmani, Moze e Fatima Besnaci-Lancou, Fille de harki.
(3) Como a história de seu avô, Ali, antigo combatente da Segunda Guerra
Mundial, que joga no lixo suas medalhas militares, sem nenhuma explicação
(260).
Liliana Coutinho
“Se queres saber quem sou,
Se queres que te ensine o que sei,
Deixa um pouco de ser o que tu és
E esquece o que sabes”¹
Estas palavras terminam “A tradição viva”, um capítulo
da História de África, publicada em 2010, pela UNESCO,
que trata do uso exímio da memória e da oralidade
nos modos tradicionais de transmissão dos conhecimentos na África subsariana. Com elas, o escritor maliano Amadou Hampâté Bâ cita Tierno Bokar, “o sábio
de Bandiagara”, dirigindo-se ao investigador que quer
os saberes de uma população cujas vivências lhe são
estranhas. O primeiro convite é que deixe de ser, e de
seguida, que deixe de saber. Raramente nos soubemos
esquecer de nós mesmos e nações foram construídas
assim. Criámos uma História que não soube entrar
em relação e que obrigava a que na savana se soubesse tudo dos cursos de água que correm num Douro
longínquo e nada do que era o caminho da serpente
Thianaba². As culturas indígenas – próprias aos locais
onde foram geradas – foram sufocadas pelos lados
mais negros (mais brancos) da modernidade³. O rico
e multidimensional tecido de pluriversos foi rompido,
em prol da construção de um universal uniforme e
de uma comunidade económica que impôs o comum
a quem nada em comum tinha connosco, a não ser a
humanidade e a dignidade, violentadas a cada gesto
de imposição.
Ao programar em torno das memórias coloniais, a ideia
de gerar um espaço de escuta esteve sempre presente.
Darei dois exemplos de ciclos realizados no âmbito da
programação do Teatro Municipal Maria Matos, em
2017. Tal intenção foi claramente anunciada na brochura que acompanhava Descolonização4, um ciclo de encontros em torno da peça da Companhia Hotel Europa,
Libertação, sobre as memórias das Guerras de Libertação, as mesmas que do lado de cá se chamaram de
Colonial; ou no ciclo sobre as questões indígenas5, que
tendo apontado para o contexto específico do sul da
Abya Yala – espaço conhecido entre nós como América
Latina –, falou das questões de todos aqueles que reconhecem a sua relação de pertença ao grande tecido
de reciprocidades que chamamos de ecossistema Terra.
Uma pertença a uma comunidade política maior, onde
o ser humano deixa de ser o centro e só entra quando
se reconhece cuidador. Porquê lembrar tudo isto – e
num teatro, ou num museu, ou num qualquer outro
espaço votado ao artístico? Para que haja presente
e futuro, esses tempos que também a arte articula,
expressa e imagina.
O esquecimento que o sábio de Bandiagara exige faz
parte da transição para a reparação da memória, onde
a História se mostra na sua complexidade, povoando-a
de mais concepções de mundos possíveis e de narrativas
– 20 –
(1) Amadou Hampâté Bâ, “A Tradição Viva”, in Joseph Ki-Zerbo, História
Geral da África – I (em itálico), UNESCO, 2010, p. 212. Disponível em
http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001902/190249POR.pdf
(2) Thianaba, a serpente mítica peul: “(…) Por volta de 1921, o engenheiro
Belime, encarregado de construir a barragem de Sansanding, teve a curiosidade de seguir passo a passo as indicações geográficas da lenda, que ele
havia aprendido com Hammadi Djenngoudo, grande “Conhecedor” peul.
Para sua surpresa, descobriu o traçado do antigo leito do rio Níger.” Idem, p. 210.
(3) Walter Mignolo, The darker side of renaissance – Literacy, territoriality,
colonization, Ann Harbour: University of Michingan Press, 2003.
(4) https://www.arquivoteatromariamatos.pt/ciclo/descolonizacao/
(5) https://www.arquivoteatromariamatos.pt/ciclo/questoes-indigenas-ecologia-terra-e-saberes-amerindios/
(6) Lembremos também aqui os espaços de autodeterminação da fala
e da escuta que estão a ser gerados contra a invisibilidade e o silêncio.
A título de exemplo, o congresso Afroeuropeans 2019 Black Invisibilities
Contested, que se realizou no ISCTE, em Lisboa, de 4 a 6 de Julho 2019.
https://afroeuropeans2019.wixsite.com/afroeuropeans2019
Vermelho-China, desenho de Cristina Ataíde, 2008 (cortesia da artista)
Salt mountains, desenho de Cristina Ataíde, 2017 (cortesia da artista)
Cuidar
de espaços de
escuta
Bâ alerta com aquelas palavras para o perigo de, ao
entrarmos noutros lugares de experiência, projectarmos somente o que já sabemos, sem criarmos em nós
o espaço necessário a que outros saberes nos possam
invadir, contaminar, penetrar, transformar o que
antes parecia certo e estável. Esquecer é aqui estar
disponível para acolher outras memórias e vivências,
suspender o que sabemos do nosso mundo para melhor
escutar as múltiplas vozes que o tecem. É também um
convite à transformação, à escuta e à empatia, sem a
qual, ao invés de uma sociedade, temos somente um
amontoado de indivíduos e culturas a entrechocarem-se entre si. Há uma tónica que é colocada no direito
à fala e geralmente pouco se enfatiza a importância
do direito e do dever da escuta. O direito de expandirmos a extensão do que concebemos enquanto possibilidades de agir, de reconhecermos o outro como a nós
mesmos, de nos responsabilizarmos pelas formas que
toma o mundo que habitamos. O dever de não abdicarmos disso.
antes negadas. No entanto, porque a memória é tanto
do passado como do presente e do futuro, aumentar o
arquivo disponível das memórias não é empreendimento enciclopédico. Não se trata de somar, adquirir
mais perspectivas a classificar ou situar. Trata-se de
deixar que no tempo presente se abram novos espaços
políticos, onde as memórias negadas são recebidas
como legítimas, sendo assim reconhecida a exigência
das pessoas que as carregam em serem escutadas, e
em participarem na construção de um mundo compartilhado6. Trata-se ainda da exigência de manter aberta
a possibilidade de futuro pela qual o próprio planeta
clama, onde a biodiversidade e a diversidade cultural,
a não uniformização, a não homogeneização, são imprescindíveis.
– 21 –
Programação
cultural
Outono 2019
Memoirs em parceria com a Culturgest, Bienal de Marselha/
Réseau pour l’Histoire et la Mémoire des Immigrations et
des Territoires e Fundação Calouste Gulbenkian
Culturgest
! dia 03.10.19 " 18:30-20:00h
Pequeno auditório
Performance e debate:
Artes no tempo da pós-memória
Pitcho Womba Konga – performance
Qual o impacto da transferência de memórias do fim do
colonialismo na Europa atual? Como se manifestam
estas memórias em termos sociais, culturais e artísticos?
Pitcho apresenta a performance L’expérience Pi seguida
de debate com o músico e slammer belga-congolês
Pitcho, a cineasta franco-argelina Fatima Sissani e
a escritora portuguesa Dulce Maria Cardoso no qual
refletem sobre as mudanças culturais protagonizadas
pelas segundas e terceiras gerações pós-coloniais
em Portugal, na Bélgica e em França, a partir das
suas experiências artísticas.
Moderação do debate: Margarida Calafate Ribeiro
Louise Narbo nasceu em Argel em 1948 onde viveu até 1962,
Bienal de Marselha
! Dia 16.10.19 " 20:00h
! Dias 18 e 19.10.19 " 20:00h
Posto avançado do progresso de Hugo Vieira da Silva
Teatro GRIOT apresenta As Confissões Verdadeiras
de um Terrorista Albino, uma adaptação da obra homónima de Breyten Breytenbach, encenação de Rogério
de Carvalho.
Cinéma Le Gyptis
(versão em português legendada em francês)
Seguido de debate com o realizador
Posto avançado do progresso (Angola/Portugal, 2016,
120’) é um filme de Hugo Vieira da Silva, baseado no
conto de Joseph Conrad “An Outpost of Progress”, de
1896. No final do século XIX, dois colonizadores portugueses, imbuídos de uma vaga intenção civilizadora
desembarcam numa parte remota do Rio Congo para
organizar um posto comercial. À medida que o tempo
passa, começam a desmoralizar pela sua incapacidade
de enriquecer à custa do comércio de marfim. Sentimentos de desconfiança mútua e mal-entendidos com a população local isolam-nos no coração da floresta tropical.
Confrontados um com o outro iniciam uma caminhada em direção ao abismo. A apresentação deste filme
no contexto da Bienal de Marselha permite atualizar
uma informação refletida e crítica sobre uma faceta do
colonialismo europeu, neste caso português mas em
conluio com o belga, numa cidade – Marselha – fortemente marcada pelos traços do colonialismo francês.
Permitirá também, quer no seu visionamento, quer no
debate, entender as marcas comuns do colonialismo
dos vários ex-impérios europeus.
! dia 03.10.19 " 21:30H
Ficha Artística: Argumento e Realização – Hugo Vieira da Silva,
baseado no conto de Joseph Conrad, “An Outpost of Progress”,
1896; Produtor – Paulo Branco; Direção de Produção – Ana Pinhão
Moura; Assistente de Realização – Pedro Madeira; Som – Pierre
Tucat; Diretor de Fotografia – Fernando Lockett; Direção de Arte
– Isabel Branco; Montagem – Paulo Mil Homens; uma produção
– Alfama Films; uma co-produção – Leopardo Filmes; Produtor
Executivo – República Filmes.
La langue de Zahara de Fatima Sissani
! Dia 18.10.19 " 19:00H
(Sessão com tradução simultânea)
Grande auditório
(versão francesa, legendada em português)
A partir do que seria fazer o retrato fílmico da sua mãe,
Fatima Sissani procura decifrar os silêncios implícitos
na imigração argelina para França e consegue-o de
um modo completamente inovador em termos narrativos. A cultura kabyle de que faz parte a sua mãe está
de tal forma enraizada em si, que apesar dos muitos
anos de vivência em França, Zahra recusou-se a
aprender o francês. Este é o motivo para a realizadora
trabalhar a arte da palavra, tão cara ao universo cultural da imigração argelina. Relegados ao silêncio e
ao isolamento de postos de trabalho braçais, os corpos
destes imigrantes demoraram a chegar aos palcos da
criatividade e da cena cultural francesa. Fatima Sissani
filma o apartamento, o retorno à língua de origem e
a libertação de histórias que isso acarreta.
Ficha técnica: Realização de Fatima Sissani; Imagem – Olga
Widmer; Som – Olivier Krabbé; Montagem – Anne Lecour;
Produção e Distribuição – 24 Photos, LM TV Sarthe (Televisão
Le Mans); Produção – Scam/ Esboço de um sonho; Direitos de
exibição – 24 Imagens, ADAV, The Doc House, Museu Nacional
da História da Imigração, The Harmattan TV.
O documentário La langue de Zahara foi apresentado em mais
de duas dezenas de festivais e ganhou vários prémios. Pela
primeira vez em Portugal no programa Culturgest-Memoirs.
Entrada livre, sujeita a prévio levantamento de bilhete.
Apoio das Autoridades Flamengas.
! Dia 26.11.19 " 18:00h
Auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
! Dia 27.11.19 " 18:30h
Auditório 2
Conferência por Lilian Thuram: “Educação contra
o racismo”
Lilian Thuram ex-futebolista campeão mundial
em 1998 e Presidente da Fundação Lilian Thuram
– Educação Contra o Racismo.
“Ninguém nasce racista, torna-se racista” é a verdade que
guia a Fundação Lilian Thuram que acredita que o racismo é uma construção inteletual, política e económica.
Essas interrogações são partilhadas pelo grupo que investiga as heranças coloniais na Europa contemporânea.
Apoios
Autores
Théâtre à l’Oeuvre, Marselha
O Teatro GRIOT é uma companhia de atores que se
dedica à exploração de temáticas relevantes para a
construção e problematização da emergente identidade
europeia contemporânea e intercultural e do seu reflexo
no discurso e na estética teatral.
O trabalho que a companhia desenvolve surge da tensão
entre corpo e território, entre memória coletiva e memória individual, entre imaginário coletivo e imaginário
individual. O Teatro GRIOT opera neste espaço intersticial de territórios geográficos e simbólicos como ponto
nevrálgico de um movimento artístico de contra-memória que questiona a univocidade da História.
No final do espetáculo haverá um debate com o público
com a participação dos elementos do Teatro Griot.
Equipa Teatro GRIOT em Marselha: Encenador – Rogério de
Carvalho; Atores – Ana Rosa Mendes, Daniel Martinho, Gio
Lourenço, Margarida Bento, Matamba Joaquim, Miguel Eloy,
Zia Soares; Designer de luz – Jorge Ribeiro; Designer de som
Soundslikenuno; Assistente – Neusa Trovoada; Produtora –
Alesa Herero
Apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e Bienal de Marselha
A Bienal de Marselha RHMIT existe há uma década e
tem lugar nas regiões francesas da Provence, Alpes e
Côte-d’Azur, região mediterrânica que envolve dezenas
de instituições culturais da região. O tema das migrações, deslocação e viagem é central na Bienal de 2019.
Théâtre de l’Oeuvre, Marselha
Encontro Artes na Europa no tempo da pós-memória
com a presença de investigadores do Memoirs
UNIVERSIDADE DE COIMBRA
ano em que foi viver para França. Iniciou-se como fotógrafa
em 1968 e desde então tem produzido séries de fotografias que
são material das suas exposições e dos seus livros de artista.
A dimensão autobiográfica e as memórias da Argélia são temas
predominantes da sua obra.
MEMOIRS e a Fundação Lilian Thuram promoverão
vários encontros para interrogar as desigualdades geradas por mecanismos de dominação na sociedade europeia e as formas de combater o racismo pela educação.
As ações realizadas pela Fundação valeram a Lilian
Thuram o prémio de Ética da Fondation Keba Mbaye
no Sénégal em 2014, e o título de Doutor Honoris Causa,
Universidade de Estocolmo, em 2017.
O seu primeiro livro As Minhas Estrelas Negras – De Lucy
a Barack Obama (2013) foi publicado em Portugal
pela Editora Tinta da China, com o apoio da Fundação
Calouste Gulbenkian – Programa Próximo Futuro.
Além das duas grandes conferências, nos dias 25 e 26
de Novembro, em Coimbra, Lilian Thuram encontra-se
com estudantes do ensino secundário, no contexto da
iniciativa CES vai à Escola. Nos dias 27 e 28, em Lisboa, no quadro de uma colaboração com a Embaixada
de França, Lilian Thuram encontra-se com estudantes
do ensino secundário.
(Conferências com tradução simultânea)
Margarida Calafate Ribeiro é investigadora do Centro de
António Pinto Ribeiro é investigador do Centro de Estudos
Dulce Maria Cardoso publicou os romances Eliete (2018),
Sociais da Universidade de Coimbra, no âmbito do projeto
Memoirs – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias e programador cultural. As suas últimas obras são: África, os quatro
rios – a representação de África através da literatura de viagens
europeia e norte-americana (Afrontamento, 2017) Peut-on
Décoloniser les Musées?, (FCG – delegração de França, 2019).
O Retorno (2011), O Chão dos Pardais (2009), Os Meus Sentimentos (2005) e Campo de Sangue (2001). Grande parte dos
contos que publicou em revistas e jornais está reunida na antologia Tudo são histórias de amor (2013). Os seus romances têm
sido objeto de prestigiados prémios nacionais e internacionais,
estão traduzidos em várias línguas e publicados em mais de duas
dezenas de países. A obra de Dulce Maria Cardoso é estudada
em universidades de vários países e tem sido objeto de adaptações ao cinema e ao teatro. Em 2012, recebeu, do Estado Francês, a condecoração de Cavaleira da Ordem das Artes e Letras.
António Sousa Ribeiro
é professor catedrático do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas, Faculdade de Letras,
Universidade de Coimbra, e diretor do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra. Tem publicado extensamente
sobre temas de literatura de expressão alemã, literatura comparada, teoria literária, estudos culturais, estudos de tradução
e estudos pós-coloniais. É investigador associado do projeto
Memoirs – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias.
Aimé Mpane Enkobo nasceu em 1968 na República Democrática
do Congo. Filho de escultor fez a sua primeira formação superior em artes no Instituto das Belas Artes de Kinshasa e foi
aqui que expôs pela primeira vez esculturas em madeira.
Vive e trabalha em Bruxelas onde começou por aperfeiçoar as
suas técnicas de escultor e pintor e desde 1996 está presente
em numerosas exposições internacionais. Um dos temas recorrentes do seu trabalho são os efeitos da herança colonial
belga e os tempos do regime de Mobutu.
Amalia Escriva foi entrevistada no âmbito do projeto Memoirs.
É realizadora e documentarista de filmes como La Colonie
(2016), La Vierge et la Cité (2015), Avec Tout Mon Amour
(2001), Dans les Fils d’Argent de tes Robes (1997). Os filmes e
os documentários que tem realizado são indissociáveis desse
passado que cruza a história da Argélia francesa com a sua
história familiar. Os seus filmes foram transmitidos na RTBF,
Arte, France 5, France 3, France 2.
Assumani Budagwa é engenheiro investigador químico
belgo-congolês, com interesse na história da colonização e dos
povos colonizados. É autor do livro Noirs-Blancs, Métis: la
Belgique et la ségrégation des Métis du Congo belge et du Ruanda-Urundi (1908-1960), publicado em 2014. Atualmente encontra-se
a preparar um segundo volume sobre a questão dos mestiços
numa perspetiva pós-colonial.
Bruno Machado
foi entrevistado no âmbito do projeto Memoirs.
O seu pai foi paraquedista da Força Aérea Portuguesa, tendo
combatido durante a Guerra Colonial em Angola, onde viveu
também parte da sua adolescência. A família paterna regressou
com a descolonização. Bruno Machado desenvolveu uma tese
de mestrado intitulada Os filhos dos “retornados”: a experiência
africana e a criação de memórias, pós-memórias e representações
na pós-colonialidade. É investigador no Centro de Estudos
Geográficos da Universidade de Lisboa.
Cristina Ataíde vive e trabalha em Lisboa. Licenciada em Escultura na ESBAL frequentou o Curso de Design de Equipamento.
Diretora de produção de Escultura e Design da MadeIn, Alenquer,
1987/96 onde trabalhou com artistas nacionais e estrangeiros
tais como Anish Kapoor. Expõe regularmente e é representada
em coleções públicas e privadas em Portugal e no estrangeiro.
Dorothée Myriam Kellou é jornalista e realizadora franco-argelina. Em França, revelou no jornal Le Monde o escândalo
dos financiamentos indiretos ao Estado islâmico por parte
da farmacêutica Lafargue, na Síria. Este trabalho valeu-lhe
o prémio Trace International de investigação jornalística em
Washington D.C. Em abril de 2019, apresentou o seu primeiro
filme documental A Mansourah, tu nous as séparés, no Festival
Visions du Réel em Nyon (Suíça). Em junho de 2019 recebeu o
prémio dos direitos humanos no Festival International du Film
Documentaire d’Agadir (FIDADOC).
Dalila DallÉas Bouzar
nasceu na Argélia em 1974. Filha de
uma família de imigrantes vive em Paris desde 1976. Fez uma
formação inicial em Biologia antes de seguir as artes visuais.
Atualmente conjuga o seu trabalho de artista com o de curadora
trabalhando com coletivos. A questão da subalternidade das
mulheres é um tema predominante nos seus trabalhos dos
quais destaca a série “Princesse” (pintura da capa).
Fátima da Cruz Rodrigues
é doutora em Sociologia pela
Universidade de Coimbra. Tem sido docente na Universidade
Lusíada Norte e na Escola de Criminologia da Faculdade de
Direito da Universidade do Porto. Atualmente, é investigadora
no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, no
âmbito do projeto Memoirs – Filhos de Império e Pós-memórias
Europeias. Publicou, entre outras obras, Antigos Combatentes
Africanos das Forças Armadas Portuguesas. A Guerra Colonial
como Território de (Re)conciliação (Instituto Camões, 2017).
Felipe Cammaert é doutor em Estudos Românicos e Literatura
Comparada pela Universidade Paris Nanterre. Foi docente
nas Universidades de Picardie (França), Lisboa e Los Andes
(Colômbia) e investigador da Biblioteca Nacional da Colômbia.
Atualmente é investigador no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, no âmbito do projeto Memoirs – Filhos
de Império e Pós-memórias Europeias. É tradutor do francês e
do português de autores contemporâneos para a América Latina.
Tem publicado, entre outras obras, L’écriture de la mémoire
dans l’oeuvre d’Antonio Lobo Antunes et de Claude Simon.
(L’Harmattan, 2009).
Fernanda Vilar
é doutora em Literatura Africana Comparada
pela Universidade de Paris Nanterre. Estudou as representações
da violência na obra de Sony Labou Tansi, Mia Couto e J.M.
Coetzee. Estagiou na Comissão Europeia na equipa de Comunicação Externa (2016). Atualmente é investigadora no Centro
de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra no âmbito do
projeto Memoirs – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias.
Liamna Gouasmia foi entrevistada no âmbito do projeto Memoirs.
É filha de um antigo combatente de origem argelina que integrou as Forças Armadas Francesas durante a Guerra da Argélia
(um harki, como ficaram conhecidos esses homens). Tinha oito
anos quando deixou a Argélia e desde os catorze anos que reside
em Antibes, uma cidade situada entre Nice e Cannes. É funcionária territorial e trabalha na Comuna de Antibes. É ativista
da causa harki há vários anos e membro de outras associações
de solidariedade locais.
Liliana Coutinho
é doutorada em Estética e Ciências da Arte
pela Universidade de Paris 1. É programadora de Debates e
Conferências na Culturgest, e investigadora do Instituto História
Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova Lisboa e do Institut A.C.T.E – Université
Paris 1. Professora convidada na Pós-Graduação em Curadoria
de Arte (FCSH/UNL).
– 23 –
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e investigadora
principal do projeto Memoirs – Filhos de Império e Pós-memórias
Europeias, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,
e é responsável pela Cátedra Eduardo Lourenço, Camões/ Universidade de Bolonha (com Roberto Vecchi). É autora de Uma
História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo (2004) e co-organizadora de Geometrias da Memória:
configurações pós-coloniais (com António Sousa Ribeiro) (2016),
entre outras obras.
Mónica V. Silva
é estudante de doutoramento no programa
“Patrimónios de Influência Portuguesa” do CES/III, Universidade
de Coimbra e bolseira de investigação no projeto Memoirs –
Filhos de Império e Pós-memórias Europeias. É co-organizadora
de Papéis da Prisão: apontamentos, diário, correspondência
(1962-1971), de José Luandino Vieira (com Margarida Calafate
Ribeiro e Roberto Vecchi).
Nuno Simão Gonçalves é arquiteto, estudante de doutoramento
no programa “Patrimónios de Influência Portuguesa” do CES/III,
Universidade de Coimbra e bolseiro da FCT desde 2017. Colaborou,
de 2013 a 2017, em vários projetos de investigação do Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Os seus interesses
de investigação focalizam-se na arquitetura e urbanismo em
países africanos de língua portuguesa. Das suas publicações
destaca-se em 2018, a co-organização de Oficinas de Muhipiti:
planeamento estratégico, património, desenvolvimento. Utiliza
a fotografia não só como expressão artística mas também como
ferramenta de análise dos seus objetos de estudo.
Pauliana Valente Pimentel nasceu em Lisboa em 1975, cidade
onde vive. Fotografa desde 1999. Frequentou o curso de fotografia do Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística
(2005) e foi membro do coletivo Kameraphoto (2006-2014).
Além das muitas publicações em antologias publicou o seu livro
de fotografia VOL I (2009) na Pierre Von Kleist e (em parceria)
Caucaso, souvenirs de voyage (2011) na FCG. Filmografia: Diz-se
que Portugal é um bom país para se viver, (Portugal, 2011),
Jovens de Atenas / Youth of Athens, Atenas, (2012), Entre Nous,
(Portugal, França, 2014). Em 2016 foi nomeada para o prémio
Novo Banco. Está representada em várias coleções de arte e
fez dezenas de exposições.
Paulo de Medeiros
é professor catedrático no Departamento
de Estudos Ingleses e Literatura Comparada na Universidade de
Warwick, Reino Unido. De 1998 a 2013 foi professor catedrático
de Estudos Portugueses na Universidade de Utrecht, Holanda.
Os seus livros mais recentes são: Pessoa’s Geometry of the
Abyss: Modernity and the Book of Disquiet, (Legenda, 2013) e
O Silêncio das Sereias – Ensaio sobre o Livro do Desassossego,
(Tinta da China, 2015). É investigador associado no projeto
Memoirs – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias.
Roberto Vecchi é professor catedrático de Literatura Portuguesa
e Brasileira na Universidade de Bolonha, coordenador da Cátedra
Eduardo Lourenço (Univ.Bolonha/ Camões) e Presidente da
Associação Internacional de Lusitanistas. Entre as suas obras
destaca-se Excepção Atlântica. Pensar a Literatura da Guerra
Colonial (Afrontamento, 2010) e La Letteratura Portoghese.
I testi e le idee (Mandadori, 2017) (com Vincenzo Russo).
É investigador associado no projeto Memoirs – Filhos de Império
e Pós-memórias Europeias.
Teresa Dias Coelho é pintora. Vive e trabalha em Lisboa. Expõe
individual e coletivamente desde 1981. Tem como foco de trabalho
questões referentes à memória e a gestos e imagens do quotidiano.
Exposições principais: Dores (1994), Casa Fernando Pessoa,
Lisboa, A Mesa do Mar (1995), projecto com Maria Velho da Costa
sobre textos de Manuel Gusmão, Os Jardins dos caminhos que se
dividem (2007), TMG, Guarda, Mãos (2017), Interiores e Turn Again
(2018), Galeria Monumental, Lisboa.