Vanessa Cristina de Abreu Torres Hrenechen
CAPÍTULO
(Organizadora)
RESERVADO PARA TITULO
Ciências da Comunicação
Atena Editora
2019
Ciências da Comunicação
Capítulo
2
2019 by Atena Editora
Copyright
da Atena Editora
Editora Chefe: Profª Drª Antonella Carvalho de Oliveira
Diagramação e Edição de Arte: Natália Sandrini e Lorena Prestes
Revisão: Os autores
Conselho Editorial
Prof. Dr. Alan Mario Zuffo – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Prof. Dr. Álvaro Augusto de Borba Barreto – Universidade Federal de Pelotas
Prof. Dr. Antonio Carlos Frasson – Universidade Tecnológica Federal do Paraná
Prof. Dr. Antonio Isidro-Filho – Universidade de Brasília
Profª Drª Cristina Gaio – Universidade de Lisboa
Prof. Dr. Constantino Ribeiro de Oliveira Junior – Universidade Estadual de Ponta Grossa
Profª Drª Daiane Garabeli Trojan – Universidade Norte do Paraná
Prof. Dr. Darllan Collins da Cunha e Silva – Universidade Estadual Paulista
Profª Drª Deusilene Souza Vieira Dall’Acqua – Universidade Federal de Rondônia
Prof. Dr. Eloi Rufato Junior – Universidade Tecnológica Federal do Paraná
Prof. Dr. Fábio Steiner – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
Prof. Dr. Gianfábio Pimentel Franco – Universidade Federal de Santa Maria
Prof. Dr. Gilmei Fleck – Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Profª Drª Girlene Santos de Souza – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Profª Drª Ivone Goulart Lopes – Istituto Internazionele delle Figlie de Maria Ausiliatrice
Profª Drª Juliane Sant’Ana Bento – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Prof. Dr. Julio Candido de Meirelles Junior – Universidade Federal Fluminense
Prof. Dr. Jorge González Aguilera – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Profª Drª Lina Maria Gonçalves – Universidade Federal do Tocantins
Profª Drª Natiéli Piovesan – Instituto Federal do Rio Grande do Norte
Profª Drª Paola Andressa Scortegagna – Universidade Estadual de Ponta Grossa
Profª Drª Raissa Rachel Salustriano da Silva Matos – Universidade Federal do Maranhão
Prof. Dr. Ronilson Freitas de Souza – Universidade do Estado do Pará
Prof. Dr. Takeshy Tachizawa – Faculdade de Campo Limpo Paulista
Prof. Dr. Urandi João Rodrigues Junior – Universidade Federal do Oeste do Pará
Prof. Dr. Valdemar Antonio Paffaro Junior – Universidade Federal de Alfenas
Profª Drª Vanessa Bordin Viera – Universidade Federal de Campina Grande
Profª Drª Vanessa Lima Gonçalves – Universidade Estadual de Ponta Grossa
Prof. Dr. Willian Douglas Guilherme – Universidade Federal do Tocantins
C569
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
Ciências da comunicação [recurso eletrônico] / Organizadora
Vanessa Cristina de Abreu Torres Hrenechen. – Ponta Grossa
(PR): Atena Editora, 2019. – (Ciências da Comunicação; v. 1)
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7247-204-3
DOI 10.22533/at.ed.043192503
1. Comunicação – Aspectos políticos. 2. Comunicação de massa.
3. Internet. 4. Jornalismo. I. Hrenechen, Vanessa Cristina de Abreu
Torres. II. Série.
CDD 302.2
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correção e confiabilidade são de
responsabilidade exclusiva dos autores.
2019
Permitido o download da obra e o compartilhamento desde que sejam atribuídos créditos aos
autores, mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais.
www.atenaeditora.com.br
APRESENTAÇÃO
O primeiro volume da obra “Ciências da Comunicação” é composto por 28
artigos que aproximam as reflexões teóricas da prática cotidiana profissional e trazem
importantes contribuições para a área da comunicação.
Dividido em três núcleos temáticos, o livro reúne aportes teóricos sobre
os movimentos sociais e ações coletivas e apresenta pesquisas referentes à
democratização da comunicação, ao papel do jornalismo alternativo na sociedade e
às formas de financiamento da imprensa baseadas em novos modelos de negócio. A
obra também traz algumas análises de coberturas jornalísticas, uma pesquisa sobre
o interagendamento e contra-agendamento midiático de acordo com os conceitos de
Maxell McCombs e Luiz Martins da Silva e reforça a importância da crítica para o
jornalismo.
A partir do segundo núcleo temático, o leitor encontrará pesquisas sobre o
posicionamento da mulher na sociedade e a sua imagem na mídia. As pesquisas
discutem a diversidade na perspectiva do gênero, a formação de estereótipos na
comunicação audiovisual, os desafios enfrentados pelos imigrantes e a representação
de diferentes culturas pelos meios de comunicação. Por fim, o último núcleo temático
reúne pesquisas referentes à comunicação organizacional, às estratégias voltadas
aos diferentes públicos e às construções discursivas realizadas pelas organizações.
Vanessa Cristina de Abreu Torres Hrenechen
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1 ................................................................................................................ 1
MOVIMENTOS SOCIAIS E DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO: CONTRIBUIÇÕES PARA O
DEBATE NO CASO BRASILEIRO
Carlos Henrique Demarchi
DOI 10.22533/at.ed.0431925031
CAPÍTULO 2 .............................................................................................................. 12
“O JORNAL BURGUÊS CONSEGUE FAZER-SE PAGAR PELA PRÓPRIA CLASSE TRABALHADORA
QUE ELE COMBATE SEMPRE”: FINANCIAMENTO E INDEPENDÊNCIA DE CLASSE NO JORNALISMO
SEGUNDO LÊNIN E GRAMSCI
Willian Casagrande Fusaro
Manoel Dourado Bastos
DOI 10.22533/at.ed.0431925032
CAPÍTULO 3 .............................................................................................................. 21
DA IMPRENSA SINDICAL PARA A IMPRENSA DE MASSA: INTERAGENDAMENTO E CONTRAAGENDAMENTO
Alexsandro Teixeira Ribeiro
DOI 10.22533/at.ed.0431925033
CAPÍTULO 4 .............................................................................................................. 33
MÍDIA NINJA: PROCESSO DE PRODUÇÃO DE INFORMAÇÕES AUDIOVISUAIS, POR MEIO DE
DISPOSITIVOS MÓVEIS, SOBRE O CASO MARIELLE FRANCO
Valéria Noronha de Oliveira
DOI 10.22533/at.ed.0431925034
CAPÍTULO 5 .............................................................................................................. 44
MANIFESTAÇÕES EM MEGAEVENTOS: APONTAMENTOS SOBRE A COBERTURA DO SITE G1 E
MÍDIA NINJA DA COPA DO MUNDO 2014
Milton Julio Faccin
Marcelo Vinícius Masseno Viana
DOI 10.22533/at.ed.0431925035
CAPÍTULO 6 .............................................................................................................. 55
ENCHENTES DE 2017 NO RIO GRANDE DO SUL PELOS PORTAIS DE NOTÍCIAS DE TENENTE
PORTELA
Lidia Paula Trentin
Mônica Cristine Fort
DOI 10.22533/at.ed.0431925036
CAPÍTULO 7 .............................................................................................................. 67
O MONTE EVEREST EM “NO AR RAREFEITO” – UMA ANÁLISE NA PERSPECTIVA DIALÓGICA
Taíssa Maria Tavares Guerreiro
Deivid Santos Vieira
Isabelle Caroline Rodrigues de Sá
Kethleen Guerreiro Rebêlo
Liam Cavalcante Macedo
Marcos Felipe Rodrigues de Souza
DOI 10.22533/at.ed.0431925037
CAPÍTULO 8 .............................................................................................................. 77
“DANÇANDO SOBRE ARQUITETURA” - DESAFIOS ATUAIS DA CRÍTICA DE MÚSICA
Rafael Machado Saldanha
DOI 10.22533/at.ed.0431925038
CAPÍTULO 9 .............................................................................................................. 89
ALBERTO DINES E O PAPEL DA CRÍTICA JORNALÍSTICA NA IMPRENSA BRASILEIRA
Diana de Azeredo
DOI 10.22533/at.ed.0431925039
CAPÍTULO 10 .......................................................................................................... 103
DILMA ROUSSEFF: O PAPEL DA MULHER NA POLÍTICA BRASILEIRA
Tylcéia Tyza Ribeiro Xavier
Silvia Ramos Bezerra
DOI 10.22533/at.ed.04319250310
CAPÍTULO 11 .......................................................................................................... 117
JORNALISMO, CULTURA E GÊNERO: UMA ANÁLISE DAS MULHERES NAS CAPAS DA ROLLING
STONE BRASIL
Luiz Henrique Zart
DOI 10.22533/at.ed.04319250311
CAPÍTULO 12 .......................................................................................................... 131
A PRESENÇA FEMININA NO JORNALISMO ESPORTIVO DA TELEVISÃO ABERTA: UMA ANÁLISE
DO PROGRAMA “JOGO ABERTO”, DA BANDEIRANTES
Érika Alfaro de Araújo
Mauro de Souza Ventura
DOI 10.22533/at.ed.04319250312
CAPÍTULO 13 .......................................................................................................... 146
DIVERSINE, UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA FÍLMICA PARA PENSAR A DIVERSIDADE NA
PERSPECTIVA DO GÊNERO
Hugo Bueno Badaró
Thaumaturgo Ferreira de Souza
Maria Lúcia Tinoco Pacheco
DOI 10.22533/at.ed.04319250313
CAPÍTULO 14 .......................................................................................................... 155
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL E FORMAÇÃO DE ESTEREÓTIPOS: HOMOSSEXUALIDADE NA
TELEVISÃO BRASILEIRA
Pablo de Oliveira Lopes
DOI 10.22533/at.ed.04319250314
CAPÍTULO 15 .......................................................................................................... 165
O HOMEM TRANS NA PUBLICIDADE: UMA ANÁLISE DO ANÚNCIO UNLIMITED COURAGE, DA
MARCA NIKE
Nicolau Jordan Girardi
Adriana Stela Bassini Edral
DOI 10.22533/at.ed.04319250315
CAPÍTULO 16 .......................................................................................................... 180
VIOLAÇÃO DE DIREITOS LGBTI+ NA CAMPANHA DA RÁDIO JOVEM PAN PARA O DIA
INTERNACIONAL DE COMBATE À LGBTIFOBIA
Adriano Quaresma da Costa
Armando Leandro Ribeiro da Silva
Esthefany Carolyne Silva da Cruz
Karen Isabela Leite Alcântara
Matheus Henrique Cardoso Luz
Lorena Cruz Esteves
Suzana de Cassia Serrão Magalhães
DOI 10.22533/at.ed.04319250316
CAPÍTULO 17 .......................................................................................................... 192
EVIDÊNCIAS E SILÊNCIAMENTOS NOS DISCURSOS DE LÁGRIMAS CONTRA A POLÍTICA DE
TOLERÂNCIA ZERO ANTI-IMIGRAÇÃO DOS USA
Magali Simone de Oliveira
DOI 10.22533/at.ed.04319250317
CAPÍTULO 18 .......................................................................................................... 208
O IMIGRANTE NO MEIO ACADÊMICO: ESTUDO DE CASO
Benalva da Silva Vitorio
DOI 10.22533/at.ed.04319250318
CAPÍTULO 19 .......................................................................................................... 222
UMA DISCUSSÃO SOBRE A DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL NA UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA
FEDERAL DO PARANÁ
Alcilaine de Macedo Alencar
Carolina Fernandes da Silva Mandaji
DOI 10.22533/at.ed.04319250319
CAPÍTULO 20 .......................................................................................................... 235
A CULTURA DO SOL NASCENTE NAS TERRAS CAPIXABAS
Rafaela Daima Lima
Danielly Veloso Schulthais
Andressa Zoi Nathanailides
DOI 10.22533/at.ed.04319250320
CAPÍTULO 21 .......................................................................................................... 245
A REPRESENTAÇÃO DOS ASIÁTICOS NA TV BRASILEIRA: APONTAMENTOS INICIAIS
Krystal Urbano
Maria Elizabeth Pinto de Melo
DOI 10.22533/at.ed.04319250321
CAPÍTULO 22 .......................................................................................................... 260
CULTURA ORGANIZACIONAL PROPÍCIA ÀS POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO E
RESPONSABILIDADE SOCIAL: POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA IDENTIFICAR OS
TIPOS DE CULTURA ORGANIZACIONAL
Maria José da Costa Oliveira
DOI 10.22533/at.ed.04319250322
CAPÍTULO 23 .......................................................................................................... 272
COMO O OMBUDSMAN DE DADOS PODE REFORÇAR A MULTIDISCIPLINARIDADE NA
COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL?
Wallace Chermont Baldo
DOI 10.22533/at.ed.04319250323
CAPÍTULO 24 .......................................................................................................... 284
COMUNICAÇÃO MERCADOLÓGICA EM CLUBES DE FUTEBOL DO BRASIL E DA AMÉRICA LATINA:
RELACIONAMENTO COM OS PÚBLICOS-ALVO
Karla Caldas Ehrenberg
Ary José Rocco Junior
Carlos Henrique de Souza Padeiro
DOI 10.22533/at.ed.04319250324
CAPÍTULO 25 .......................................................................................................... 297
OS PÚBLICOS PROJETADOS: CONSTRUÇÕES
EXPERIÊNCIAS PELAS ORGANIZAÇÕES
DISCURSIVAS
NA
PROPOSIÇÃO
DE
Márcio Simeone Henriques
DOI 10.22533/at.ed.04319250325
CAPÍTULO 26 .......................................................................................................... 308
ACESSIBILIDADE E COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL: PLANEJAMENTO E PÚBLICOS EM UMA
CAMPANHA INCLUSIVA PARA PESSOAS CEGAS E COM BAIXA VISÃO
Victor Said dos Santos Sousa
Leonardo Santa Inês Cunha
Lidiane Santos de Lima Pinheiro
DOI 10.22533/at.ed.04319250326
CAPÍTULO 27 .......................................................................................................... 322
COMUNICAÇÃO COTIDIANA DOS VALORES DE RESPONSABILIDADE SOCIAL: REPRODUZINDO
CULTURA NAS REDES SOCIAIS (OU NÃO)
Maria Augusta de Castro Seixas
Emmanuel Paiva de Andrade
DOI 10.22533/at.ed.04319250327
CAPÍTULO 28 .......................................................................................................... 338
A COMUNICAÇÃO PÚBLICA NA ASSISTÊNCIA TÉCNICA RURAL PARA O DESENVOLVIMENTO
REGIONAL DO ESTADO DE RONDÔNIA
Edna Mendes dos Reis Okabayashi
Moacir José dos Santos
Monica Franchi Carniello
DOI 10.22533/at.ed.04319250328
SOBRE A ORGANIZADORA................................................................................... 352
CAPÍTULO 1
MOVIMENTOS SOCIAIS E DEMOCRATIZAÇÃO DA
COMUNICAÇÃO: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE
NO CASO BRASILEIRO
Carlos Henrique Demarchi
UNESP – Universidade Estadual Paulista,
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
Bauru – São Paulo
processes.
KEYWORDS:
democratization
of
communication; social movements; citizenship;
social participation; media.
RESUMO: O presente artigo discute, com base
nos aportes teóricos acerca dos movimentos
sociais, a contribuição de ações coletivas
no debate sobre a democratização da
comunicação. A partir de revisão bibliográfica,
aponta-se a atuação dessas organizações na
proposição de alternativas para o setor midiático
no caso brasileiro. Conclui-se que as ações
pela democratização fomentam a circulação de
ideias em defesa da cidadania nos processos
comunicacionais.
PALAVRAS-CHAVE:
democratização
da
comunicação; movimentos sociais; cidadania;
participação social; mídia.
1 | INTRODUÇÃO
ABSTRACT: This article discusses, based on
theoretical approach about social movements,
the contribution of collective actions in the debate
on the democratization of communication. From
the bibliographical review, it is pointed out
how these organizations acted in suggesting
alternatives to the Brazilian media sector.
It is concluded that these actions towards
democratization promoted the circulation of ideas
verificada no segmento de radiodifusão.
that stands up for citizenship in communication
Ciências da Comunicação
de
Com um histórico sistema comercial
comunicação
predominante,
o
Brasil
experimentou, mais especificamente após o
processo de redemocratização em meados da
década de 1980, o surgimento de iniciativas
sociais voltadas para debater a democratização
da mídia.
Se anteriormente o tema ficava circunscrito
a instituições acadêmicas, a discussão passou
a ter maior abrangência na medida em que
emergiram grupos sociais com a preocupação de
buscar alternativas para limitar a concentração
dos meios de comunicação, mais centralmente
Ao longo desse período, tais movimentos
sociais e organizações têm buscado, por meio
de ações em busca do apoio governamental,
defender os direitos coletivos e de cidadania,
entre os quais o direito à comunicação. Nesta
luta por mudanças na área, as pautas pela
democratização da mídia incluem a defesa de
mudanças na legislação, a criação de canais de
interlocução com a sociedade civil nas decisões
Capítulo 1
1
que envolvem o setor, o respeito aos direitos humanos na mídia, entre outras medidas.
Na disputa por mais espaços democráticos e de participação, as organizações
se deparam com os desafios de mudar uma concepção midiática na qual as ambições
mercantis predominam sobre os interesses de cidadania. Nesse debate, outra
dificuldade que se evidencia ocorre nas próprias relações com o poder público que,
não raro, deixa de enfrentar os conflitos expressos pelos movimentos.
Por meio de canais informais, institucionalizados ou não, os movimentos sociais
estão adquirindo cada vez mais a capacidade de veicular opiniões diversas dos
conteúdos apresentados nos meios tradicionais de comunicação.
Diante deste cenário, o presente artigo discute, com base nos aportes
teóricos sobre os movimentos sociais, a contribuição dessas ações coletivas para a
democratização da comunicação. A base da pesquisa é bibliográfica.
Na primeira parte, busca-se, por meio de breves apontamentos, apresentar os
referenciais teóricos sobre os movimentos sociais. Em seguida, mostra-se como o tema
da democratização da comunicação é definido e trabalhado nestas ações coletivas.
Por fim, o texto relata o caso brasileiro do movimento pela democratização dos meios
e sua contribuição para esse debate.
2 | ABORDAGENS TEÓRICAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS
O contexto latino-americano é caracterizado pela heterogeneidade de movimentos
sociais. Por conta das múltiplas ações, causas e lutas, surge um conjunto cada vez
maior de definições para explicar o que seriam esses movimentos e quais práticas
adotam na sociedade, distinguindo-os de outros atores sociais.
Para Vizer (2007), os movimentos sociais representam uma forma específica
e historicamente diferenciada de organização social, cuja origem remonta os fins do
século XIX, como manifestação de setores sociais fundamentalmente urbanos que
cobraram consciência de ser encontrados sujeitos em condições de vida não apenas
injustas, mas também compartilhadas por um setor ou grupo social identificável e
identificado. Em princípio, os movimentos sociais seriam uma forma de ação social
que pretende justamente transformar as condições objetivas de seu ambiente.
Assim, no entendimento do autor, os movimentos sociais atuais devem ser
analisados “tanto como formas de ações coletivas construídas em função das condições
econômicas, políticas e sociais críticas deste novo milênio quanto à necessidade de
se compreender a emergência de novas e diferentes formas de organização, surgidas
das atuais condições de existência social e da vida cotidiana” (VIZER, 2007 p. 46).
Seguindo esta definição, o autor pontua quais seriam as principais ações e
características comumente associadas aos movimentos sociais:
1. Desenvolver (práticas e dispositivos instrumentais de ação); 2. Com o fim de
transformar (as relações e as práticas de poder instituídas: por exemplo, no governo,
o sistema legal, as formas de propriedade etc); 3. Por meio da mobilização (ações
Ciências da Comunicação
Capítulo 1
2
de resistência instituintes); 4. Apropriando-se conflitivamente (de tempos e espaços
públicos); 5. Motivados para cultivar (vínculos, instituições de agrupamento e
contenção); 6. Motivados e inspirados criativamente (o enorme universo da cultura,
a comunicação e as formas simbólicas). (VIZER, 2007, p. 46)
Conforme Vizer (2007), a articulação e a combinação das categorias descritas
estruturam nos atores sociais a percepção, a crença e as ações sobre a realidade
em diferentes ordens: “desde o mundo real, passando pelos processos simbólicos e
comunicativos, até mobilizar os imaginários da vida social” (VIZER, 2007, p. 46).
Segundo Gohn (2012), os elementos internos e externos dos movimentos sociais
se conectam. Os primeiros representariam as demandas, reivindicações e repertórios
de ações coletivas que geram e suas articulações. Por sua vez, os elementos externos
abrangem o contexto sociopolítico e cultural em que os movimentos se inserem, bem
como as relações externas estabelecidas pela militância com outros atores sociais e os
opositores. “O conjunto das articulações nos dá o princípio articulatório que estrutura o
movimento como um todo” (GOHN, 2012, p. 255).
Outra abordagem sobre os movimentos sociais se faz presente na obra de Alain
Touraine, autor que influenciou uma infinidade de estudiosos em torno do assunto, em
especial na América Latina. “Toda ação coletiva supõe a existência de um ator, outros
atores portadores de interesses diferentes dos seus e de um campo social onde se
colocam suas relações” (TOURAINE, 1994, p. 284).
Conforme esta definição, Touraine (1994, 1999) enfatiza a concepção de
movimentos sociais como contestação da dominação social existente. Os atores do
movimento seriam forças sociais tentando exercer certa influência sobre as decisões
que serão impostas a uma coletividade. Exerceriam, portanto, o papel de grupos de
interesse ou pressão:
Um movimento social não é uma corrente de opinião, uma vez que questiona
uma relação de poder que se inscreve muito concretamente nas instituições e
organizações, mas ele é o alvo de orientações culturais através das relações de
poder e das relações de desigualdade. (TOURAINE, 1999, p. 257-258)
A ideia de movimentos sociais em Touraine (1994, 1999) também não se reduz à
noção de conflito e de reivindicações. “É uma conduta coletiva orientada, não no sentido
dos valores da organização social ou da participação em um sistema de decisão, mas
no sentido do que está em jogo nos conflitos de classes” (TOURAINE, 1994, p. 294).
Melucci (1989) aponta a necessidade de uma releitura dos movimentos sociais
nas sociedades contemporâneas diante das mudanças sociais e do aparecimento de
organizações coletivas com novas demandas e necessidades em áreas anteriormente
intocadas pelos conflitos sociais. Neste sentido, em aproximação com o pensamento de
Touraine, Melucci (1989) afirma que os movimentos sociais contestam as orientações
culturais de dada época. A definição apresentada para o termo é a seguinte:
Eu defino analiticamente um movimento social como uma forma de ação coletiva
(a) baseada na solidariedade, (b) desenvolvendo um conflito, (c) rompendo
os limites do sistema em que ocorre a ação. Estas dimensões permitem que os
Ciências da Comunicação
Capítulo 1
3
movimentos sociais sejam separados dos outros fenômenos coletivos (delinquência,
reivindicações organizadas, comportamento agregado de massa) que são, com
muita frequência, empiricamente associados com “movimentos” e “protesto”. O
que nós costumeiramente chamamos de movimento social muitas vezes contém
uma pluralidade destes elementos e devemos ser capazes de distingui-los se
quisermos entender o resultado de uma dada ação coletiva. (MELUCCI, 1989, p.
57)
Com base nesta concepção, o autor destaca ainda que os atores sociais dos
movimentos sociais envolvidos nos conflitos têm como função revelar os projetos
e anunciar para a sociedade a existência de um problema fundamental em uma
determinada área (MELUCCI, 1989).
Desta forma, os atores sociais detêm expressiva função simbólica, uma vez que
não lutam meramente por bens materiais ou para ampliar a participação no sistema.
Trata-se de uma luta por projetos simbólicos e culturais, por um significado e uma
orientação diferentes da ação social. Dito de outra forma, os atores buscam mudar
a vida das pessoas, levando a crer que a vida cotidiana pode mudar à medida que
ocorrem as lutas por mudanças mais gerais na sociedade.
Della Porta e Diani (2006) acrescentam que as estratégias específicas adotadas
pelos movimentos sociais no curso de suas ações impactam na amplitude e na forma
de mobilização. Assim, aspectos particulares, como a distância dos níveis de poder, a
definição heterogênea dos objetivos e a instabilidade organizacional dos movimentos
sociais dificultam o alcance dos objetivos pretendidos. Della Porta e Diani (2006)
também enumeram a ideologia, os repertórios e a estrutura social dos movimentos
como sendo os recursos materiais e culturais para a ação, variando de país para país.
Para os autores, ainda que a criação dos movimentos sociais seja atrelada a
uma demanda particular caracterizadora da identidade coletiva, “as ações raramente
se resumem a uma pauta e objetivo reivindicados pelo grupo” (DELLA PORTA; DIANI,
2006, p. 21). Com isso, os movimentos seriam efetivos em trazer novas questões
para o debate público, na medida em que evidenciam a insatisfação com as decisões
tomadas em determinado campo.
No Brasil, Gohn (2014) conceitua os movimentos sociais a partir de uma série de
características comuns, a saber:
Um movimento social é sempre expressão de uma ação coletiva e decorre de
uma luta sociopolítica, econômica ou cultural. Usualmente ele tem os seguintes
elementos constituintes: demandas que configuram sua identidade; adversários
e aliados; bases, lideranças e assessorias – que se organizam em articuladores e
articulações e formam redes de mobilizações -; práticas comunicativas diversas
que vão da oralidade direta aos modernos recursos tecnológicos; projetos ou visões
de mundo que dão suporte a suas demandas; e culturas próprias nas formas como
sustentam e encaminham suas reivindicações. (GOHN, 2014, p. 14)
Segundo a autora, os movimentos sociais, criados e desenvolvidos a partir de
grupos da sociedade civil, têm nos direitos a fonte de inspiração para a construção de
sua identidade (GOHN, 2014). Essa definição dialoga com Peruzzo (2009), para a qual
“os movimentos sociais populares são articulações da sociedade civil constituídas por
Ciências da Comunicação
Capítulo 1
4
segmentos da população que se reconhecem como portadores de direitos, mas que
ainda não são efetivados na prática” (p. 35).
Outro aspecto destacado na obra de Gohn remete à definição dos movimentos
sociais como “processos político-sociais”. Logo, “consideramos os movimentos sociais
como expressões de poder da sociedade civil, e sua existência, independente do tipo
de suas demandas, sempre se desenvolve num contexto de correlação de força social”
(GOHN, 2012, p. 251).
Deste modo, essas ações coletivas seriam efetivas em inserir as demandas
verificadas nos campos sociais e culturais em uma esfera pública de luta política,
buscando com isso obter maior igualdade de direitos e de cidadania. É o que ocorre no
campo das comunicações no Brasil que, marcado pela concentração dos meios e pela
necessidade de uma nova regulação para o setor, fomenta a luta pela democratização
por parte dos movimentos sociais.
3 | A DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO EM PAUTA
Pode-se afirmar que a temática da democratização da comunicação ganha espaço
e visibilidade, em termos mundiais, no final da década de 1970, ao ter como ponto de
partida os debates promovidos pela Unesco (Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura) em torno dos desequilíbrios informativos entre os
países centrais e em desenvolvimento.
Tais debates internacionais, que propuseram uma Nova Ordem Mundial da
Informação e Comunicação (Nomic), tiveram como desdobramentos a publicação do
Relatório MacBride (Um mundo e muitas vozes) em 1980, resultante dos trabalhos de
uma comissão internacional para o estudo dos problemas da comunicação, formada
por investigadores de 16 países (REYES MATTA, 1984).
O documento pôs em evidência a preocupação com a concentração dos meios
de comunicação, indicando alternativas para superar as desigualdades de ordem
social, cultural e econômica. A democratização da comunicação é tratada em um dos
tópicos do informe – a recomendação 55 -, trazendo a seguinte indicação:
(…) que todos os países adotem medidas para aumentar as fontes de informação
que os cidadãos necessitam em suas vidas diárias. Deverá ser retomada uma
análise aprofundada das leis e dos regulamentos existentes a fim de reduzir as
limitações, as disposições de sigilo e outras restrições às práticas de informação.
(UNESCO, 1993, p. 234-235, tradução nossa)
Marques de Melo (2008), ao analisar as teses e os desdobramentos do relatório
décadas mais tarde, salienta que a democratização da comunicação seria justificada
pela existência de “falha das relações democráticas” na sociedade contemporânea, o
que expressaria a distância entre os sistemas de comunicação e os anseios populares,
e a necessidade de estabelecer relações democráticas diante das transformações no
campo da comunicação.
Ciências da Comunicação
Capítulo 1
5
O relatório MacBride foi combatido pelos grandes veículos de comunicação.
Mesmo após as recomendações da Unesco, a concentração da propriedade da mídia
se agravou, dificultando a implementação de medidas regulatórias para a área em
muitos países.
Por outro lado, o saldo positivo do informe foi ter ampliado o debate sobre o tema
no ambiente acadêmico e também em fóruns, coletivos e organizações da sociedade
civil. Os movimentos sociais buscaram referências no relatório para nortear suas
lutas em prol da defesa do direito à comunicação e de mecanismos para garantir uma
comunicação mais democrática, participativa e cidadã.
Para Mattelart (2009), a democratização da comunicação está intrinsecamente
ligada à garantia do direito à comunicação. Afirma o autor:
Desde o início, o direito à comunicação é apresentado como uma “idéia” e um
“ideal”. O relatório da comissão MacBride, criada em 1977 pelo diretor-geral da
Unesco, endossa e insiste no fato de que não há possibilidade de um direito à
comunicação sem políticas públicas de comunicação e de cultura. Um está
intimamente ligado à outra. Uma dá significado ao outro. Foi nessa perspectiva
que levantou-se abertamente a questão da transnacionalização e da concentração
da mídia e das indústrias culturais. A concentração é identificada como um dos
obstáculos para a democratização da comunicação. (MATTELART, 2009, p. 38-39)
Como forma de superar essa realidade, a comunicação alternativa – que inclui
espaços diversos dos meios hegemônicos, como blogs, sites e redes sociais - também
seria um caminho para democratizar a mídia, desde que o conjunto da sociedade
fosse mobilizado para alcançar metas de interesse coletivo. Logo:
Os novos atores sócio-políticos amplificaram suas perspectivas estratégicas.
Eles não lutam somente pela legalização e sustentabilidade das mídias cidadãs
(comunitárias, associativas, livres e independentes); eles também se tornaram
uma força de pressão que visa modificar estruturalmente a organização de todo
o sistema midiático e que busca legitimar a idéia de regulação reabilitando da
idéia do público. Trata-se de, ao mesmo tempo, fortalecer um terceiro setor na
Comunicação; reformar, consolidar ou criar, quando não existir, um serviço público
que não seja um prolongamento da voz estatal; e, finalmente, de exigir que o setor
privado/comercial seja consciente com a concessão do bem público – o espectro
radiofônico – que lhe foi permitido utilizar. A prova do processo de “cidadanização”
em andamento é a proliferação de debates e de mobilizações para mudar leis de
rádio e televisão em países tão diferentes como México, Argentina e Brasil; três
países envolvidos com oligopólios midiáticos. (MATTELART, 2009, p. 44-45)
A exemplo de Mattelart (2009), Segura (2014) concorda que as organizações
da sociedade civil têm sido protagonistas no contexto latino-americano acerca dos
debates e da incorporação da questão comunicacional na agenda governamental, pois
apesar de serem atores de menor influência no processo, tais grupos têm conseguido
ter certa capacidade de incidência nos processos de formulação de políticas públicas
de comunicação.
As propostas da sociedade civil organizada assumem os postulados que
tradicionalmente ligavam a comunicação à mudança social. Nesse sentido, quase
todas as propostas enfocam o direito à comunicação como motor das liberdades e
direitos a ele vinculados, seja o direito à expressão, o acesso à informação, etc. O
Ciências da Comunicação
Capítulo 1
6
direito à comunicação é então visto como um direito humano do mesmo nível que
os direitos à saúde e à educação, e como uma condição necessária da democracia
e do desenvolvimento dos povos. Essas organizações recuperam os postulados
das lutas para democratizar as comunicações desenvolvidas nos anos sessenta e
setenta. (SEGURA, 2014, p 49, tradução nossa)
Ainda conforme a autora, por conta de menos recursos econômicos e visibilidade
institucional, esses setores sociais que almejam a ampliação da democracia e dos
direitos de cidadania necessitam da cooperação do Estado para alcançar mudanças
nos sistemas de comunicação.
Neste sentido, as propostas de democratização que impulsionam os movimentos
sociais teriam como função redefinir o poder dos agentes que intervêm no espaço
público, visando ampliar as possibilidades dos cidadãos na participação dos serviços
públicos de comunicação.
León (2013) entende que a democracia midiática somente será alcançada
mediante a criação de instrumentos de participação social:
A democratização da comunicação é, antes de tudo, uma questão de cidadania e
justiça social, enquadrada no direito humano à informação e comunicação. Então, é
consubstancial à vida democrática da sociedade, cuja vitalidade depende de uma
cidadania devidamente informada e deliberada para participar e ser corresponsável
na tomada de decisões dos assuntos públicos. (LEÓN, 2013, p. 9, tradução nossa)
Não obstante, o autor ainda reconhece a complexidade das propostas de
mudanças legais em países latino-americanos diante dos poderosos interesses
econômicos da mídia hegemônica. Em sua análise, atribui às forças dominantes
neoliberais o poder para restringir as iniciativas dos movimentos sociais, ao colocar o
mercado como eixo de ordem social em detrimento da cidadania.
4 | A LUTA PARA DEMOCRATIZAR A COMUNICAÇÃO NO BRASIL: UMA
PROPOSTA
No Brasil, a ideia de se discutir a democratização da comunicação começou
ainda durante o final do período militar, na década de 1980, alcançando maior vigor
com a redemocratização do país.
A formulação de propostas tendo como escopo a democratização da comunicação
ocorre pela primeira vez no curso de comunicação social da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), tendo com atores sociais os alunos e professores da instituição.
O movimento consegue o apoio de organizações da sociedade civil, levando à criação
de uma frente nacional para debater as questões de comunicação – a Frente Nacional
por Políticas Democráticas de Comunicação.
Esse movimento social pela democratização da comunicação trouxe as bases
para a criação, em 1991, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação
(FNDC), que nasce na condição de associação civil focada em mobilizar, planejar e
formular medidas legais e políticas para promover a democracia na comunicação.
Ciências da Comunicação
Capítulo 1
7
(FNDC, 2018). Quatro anos depois, no dia 20 de agosto 1995, o FNDC passou a existir
como entidade.
Conforme informações do estatuto social do FNDC, o fórum é uma associação
civil, de âmbito nacional e sem fins lucrativos, constituída por instituições da sociedade
civil, igualmente sem fins lucrativos, que representam setores da sociedade que
assumam a importância da área das comunicações para a construção da democracia
e da cidadania (ESTATUTO, 2013).
Com sede em Brasília, o FNDC é dirigido por um conselho deliberativo,
administrado por uma coordenação executiva, fiscalizado por um conselho fiscal e
tem a plenária nacional como órgão máximo de representação dos seus associados
(ESTATUTO, 2013).
A entidade que luta pela democratização da comunicação completou 26
anos de criação em 2017 e tem em sua composição sindicatos, organizações nãogovernamentais, associações, federações, coletivos e movimentos populares,
envolvendo um amplo espectro de organizações da sociedade com causas diversas,
como a questão dos trabalhadores, a igualdade, a luta pela moradia e a defesa dos
direitos humanos. São exemplos desses grupos afiliados ao FNDC a Central Única
dos Trabalhadores (CUT), a Marcha Mundial das Mulheres, a União de Negros pela
Igualdade, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o coletivo Jornalistas Livres, o
Mídia Ninja, entre outros. Trata-se de um grupo cujas causas são diversas e que se
reúne com o objetivo comum de ter mais força para reivindicar a democratização.
Conforme Souza (1996), as ações do grupo para democratizar a comunicação são
conhecidas como o que se convencionou chamar de “movimento pela democratização da
comunicação”, expressão que abarcaria inúmeros grupos, movimentos e experiências
socioculturais que surgem na sociedade para dar espaço e voz a culturas e ideologias
praticamente ignoradas pela grande mídia no país. Assim:
Para o crescimento e enriquecimento do Fórum, bem como para o benefício da luta
pela cidadania e democracia brasileiras é fundamental o desafio de romper com o
corporativismo, no sentido de fazer com que uma grande parcela da sociedade civil
brasileira (não-especialista em comunicação) assuma a causa da democratização
da comunicação como luta prioritária para a democratização do país. (SOUZA,
1996, p. 186)
Formada por uma rede de movimentos sociais, essa iniciativa tem fomentado a
circulação de ideias não-hegemônicas, além de estimular um debate crítico sobre a
atuação da mídia brasileira, questionando a concentração do setor, a preponderância
do sistema comercial e a defesa da atualização regulatória no campo da radiodifusão
e do controle social da mídia.
Essas ideias encontram ressonância nos estudos de McQuail (2012), para o qual
essas medidas podem ser alcançadas mediante a implementação de políticas públicas
incidentes sobre o setor. Para o autor, “essas ações tentam igualar as oportunidades
de acesso à mídia, incentivar uma representação mais justa e limitar, ou compensar,
algumas das imperfeições, ou ‘parcialidades’, do mercado” (MCQUAIL, 2012, p. 163).
Ciências da Comunicação
Capítulo 1
8
Ainda segundo o mesmo autor, essa intervenção é aplicada abertamente em
nome dos grupos que são simplesmente incapazes, por razões econômicas, de
obter acesso adequado ao sistema da mídia (MCQUAIL, 2012). Os objetivos das
ações reivindicadas pelos atores sociais seriam, neste sentido, garantir um modelo
de mídia variado e representativo e auxiliar os “emissores” a superar os efeitos das
desigualdades fundamentais da sociedade.
Uma das conquistas mais representativas do movimento pela democratização da
comunicação ao longo de sua atuação foi a ocorrência da 1ª Confecom (Conferência
Nacional de Comunicação), realizada em Brasília em 2009. A mobilização social em
todo o país para debater o setor adquiriu expressividade e é compreendida com uma
vitória dos movimentos sociais.
Para Guareschi (2013), a Confecom demonstrou ser possível construir uma
comunicação democrática e participativa, ao mesmo tempo em que expôs o
desinteresse de setores da grande mídia em contribuir para o debate público sobre as
comunicações no país. Além disso:
O que nos falta é um marco regulatório capaz de democratizar a mídia no país,
feito através de uma discussão nacional, em que os diferentes grupos possam
expressar suas opiniões e interesses, através de uma ação comunicativa que
estabeleça instâncias éticas de como a comunicação deve servir. (GUARESCHI,
2013, p. 180)
Não obstante, no pós-Confecom, as diretrizes propostas foram diluídas diante da
pressão dos grandes meios de comunicação e da dificuldade dos governos recentes
em implementar as medidas sugeridas na conferência.
Com base nos referenciais dos movimentos sociais, observa-se que a atuação
do movimento brasileiro pela democratização expressa a existência de um conflito no
plano cultural, ou seja, busca apresentar para a sociedade que existe a necessidade
de haver uma mídia mais plural, diversificada e participativa. Uma das frentes de
atuação e mobilização se dá por meio do site do FNDC (www.fndc.org.br) e também
pelas redes sociais, que trazem informações constantes sobre as ações da entidade.
O questionamento ao status quo do setor empresarial que domina a mídia revela
ser esse ator social o principal adversário definido do movimento pela democratização.
Por outro lado, o governo, embora tenha sido um ator social frequente de diálogo com
as organizações, sendo prova dessa interlocução a realização da própria Confecom,
veio por adotar posturas em desacordo com o que apregoa o movimento, por exemplo,
ao não avançar na democratização da área.
5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
A luta por condições de igualdade no processo de comunicação tem sido a
bandeira de atuação dos movimentos sociais que lutam pela democratização dos
meios no Brasil há mais de três décadas.
Ciências da Comunicação
Capítulo 1
9
Em decorrência dos desequilíbrios informativos, cujas consequências para a
democracia já eram indicadas em 1980 pelo Relatório MacBride, a participação efetiva
dos cidadãos na gestão e no acompanhamento da atuação da mídia prossegue sendo
distante da realidade brasileira.
Todavia, graças às ações de grupos articulados a fazer esse debate, como é o
caso do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, iniciativas procuram
levar ao público orientações sobre como funciona a mídia brasileira, quais são as
normas legais para a área e os problemas envolvendo a falta de debate público e
cidadania no setor.
Os apontamentos mostram que essa atuação dos movimentos sociais tornase fundamental por estimular os debates sobre cidadania, direito à comunicação e
pluralidade e diversidade midiáticas, fomentando mudanças em um setor de mídia
cada vez mais atravessado pelas lógicas do mercado.
Os desafios também passam em fazer esse debate chegar a um conjunto maior da
sociedade, aproveitando inclusive as potencialidades oferecidas pelas redes sociais.
Embora os movimentos sociais pela democratização da mídia tenham conseguido um
grau de mobilização amplo recente, congregando grupos com causas diversificadas,
as ações desenvolvidas continuam sendo silenciadas pelos grandes veículos de
comunicação, quando não criminalizadas ou tratadas como ideias limitadoras da
liberdade de expressão.
Da mesma forma, a existência de um programa de formação crítica de mídia nas
escolas poderia ser um caminho a ser trilhado para que a população viesse a entender
melhor como se dá o funcionamento da mídia e de que forma poderia participar do
processo de comunicação voltado para a cidadania.
REFERÊNCIAS
DELLA PORTA, Donatella; DIANI, Mario. Social movements: an introduction. Oxford: Blackwell
Publishing, 2006.
ESTATUTO social do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Brasília, 2013.
Disponível em: <http://www.fndc.org.br/system/uploads/ck/files/Estatuto%20Social%20enumerado%20
e%20em%20papel%20timbrado.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2018.
FNDC. Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Quem somos. Brasília, 2018.
Disponível em: <http://fndc.org.br/forum/quem-somos/>. Acesso em: 3 jul. 2018.
GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos.
10. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
___________________. Novas teorias dos movimentos sociais. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola,
2014.
GUARESCHI, Pedrinho. O direito humano à comunicação: pela democratização da mídia.
Petrópolis: Vozes, 2013.
Ciências da Comunicação
Capítulo 1
10
LEÓN, Osvaldo. Democratizar la palabra: movimientos convergentes en comunicación. Quito:
Agencia Latino Americana de Información, 2013. Disponível em: <https://www.alainet.org/sites/default/
files/democratizar-la-palabra-ALAI.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2018.
MARQUES DE MELO, José. MacBride, a NOMIC e a participação latino-americana na concepção de
teses sobre a democratização da comunicação. Logos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 42-59, jan-jun.
2008.
MATTELART, Armand. A construção social do direito à comunicação como parte integrante dos
direitos humanos. Revista Brasileira de Ciências de Comunicação – Intercom, São Paulo, v. 32,
n.1, p. 33-50, jan/jun. 2009. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/
revistaintercom/article/viewFile/236/229>. Acesso em: 5 abr. 2018.
MCQUAIL, Denis. Atuação da mídia: comunicação de massa e interesse público. Porto Alegre:
Penso, 2012.
MELUCCI, Alberto. Um objetivo para os movimentos sociais? Revista Lua Nova, São Paulo, n.17,
jun. 1989. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n17/a04n17.pdf>. Acesso em: 5 dez. 2017.
PERUZZO, Cicilia. Movimentos sociais, cidadania e o direito à comunicação comunitária nas políticas
públicas. Revista Fronteiras, São Leopoldo, v. 11, n.1, p. 33-43, jan/abr. 2009. Disponível em: <http://
revistas.unisinos.br/index.php/fronteiras/article/view/5039>. Acesso em: 14 jun. 2018.
REYES MATTA, Fernando. Búsqueda de uma comunicación democrática. Nuevo orden informativo:
1973-1983. Nueva Sociedad, Argentina, n. 71, p. 62-68, mar/abr. 1984.
SEGURA, María Soledad. La sociedad civil y la democratización de las comunicaciones en
Latinoamérica. Íconos, Equador, n. 49, p. 65-80, maio. 2014.
SOUZA, Marcio Vieira. As vozes do silêncio: o movimento pela democratização da comunicação no
Brasil. Florianópolis: Diálogo, 1996.
TOURAINE, Alain. Movimentos sociais. In: FORACCHI, Marialice; MARTINS, José de Souza (Orgs.).
Sociologia e sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e
Científicos Editora, 1994.
_______________. Crítica da modernidade. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
UNESCO. Un solo mundo, voces múltiples: comunicación e información em nuestro tiempo.
México: Fondo de Cultura Económica, 1993.
VIZER, Eduardo. Movimentos sociais: novas tecnologias para novas militâncias. In: FERREIRA, Jairo;
VIZER, Eduardo (Orgs.). Mídia e movimentos sociais. São Paulo: Paulus, 2007. p. 23-52.
Ciências da Comunicação
Capítulo 1
11
CAPÍTULO 2
“O JORNAL BURGUÊS CONSEGUE FAZER-SE
PAGAR PELA PRÓPRIA CLASSE TRABALHADORA
QUE ELE COMBATE SEMPRE”: FINANCIAMENTO
E INDEPENDÊNCIA DE CLASSE NO JORNALISMO
SEGUNDO LÊNIN E GRAMSCI
Willian Casagrande Fusaro
Mestrando em Comunicação na Universidade
Estadual de Londrina (UEL)
Londrina – PR
Manoel Dourado Bastos
Professor adjunto do Departamento de
Comunicação da Universidade Estadual de
Londrina (UEL)
Londrina – PR
RESUMO: A escatologia sobre o “fim do
jornalismo” colocou em debate formas de
financiamento da imprensa baseadas em
“novos modelos de negócios” do “jornalismo
alternativo”. Esse debate ignora experiências
prévias. O presente texto busca avaliar
um momento em que este debate esteve
presente. No início do século 20, num
momento de transformações sociais, Gramsci
e Lênin colocaram em debate a relação
entre autofinanciamento e independência da
imprensa proletária. Assim, ao acompanhar os
argumentos de ambos sobre o financiamento
da imprensa proletária e as formas de agitprop,
em contraste com as propostas das imprensas
social-democrata e burguesa, observaremos
alguns termos pertinentes para o debate
contemporâneo sobre os “novos modelos de
negócios”.
PALAVRAS-CHAVE:
autofinanciamento;
Ciências da Comunicação
agitprop; fim do jornalismo;
alternativo; imprensa proletária.
jornalismo
ABSTRACT: The eschatology about the “end
of journalism” has challenged forms of media
financing based on “new business models” of
“alternative journalism.” This debate ignores
previous experiences. The present text seeks
to evaluate a moment in which this debate was
present. At the beginning of the 20th century, in
a moment of social transformation, Gramsci and
Lenin questioned the relationship between selffinancing and independence of the proletarian
press. Thus, in following the arguments of
both on the financing of the proletarian press
and the forms of agitprop, in contrast to the
proposals of the social-democrat and bourgeois
press, we will observe some pertinent terms
for the contemporary debate on “new business
models”.
KEYWORDS: self-funding; agitprop; end of
journalism; alternative journalism; proletarian
press.
1 | INTRODUÇÃO
A dinâmica de crise do capitalismo que
se desdobra desde os anos 1970 atingiu as
indústrias midiáticas, como era inevitável,
tendo em vista que a assim chamada Terceira
Capítulo 2
12
Revolução Industrial da Microeletrônica, que está na base do colapso do sistema
mundial produtor de mercadorias, tinha por um de seus elementos decisivos a
informação. Nesta segunda década do século 21, a tematização da questão em salas
de aula nas escolas de comunicação, vista até recentemente como catastrofista, foi
dando lugar ao cansaço e à irritação diante da mera reafirmação discursiva do “fim do
jornalismo”, sendo sobreposta por uma consequente adoção de projetos práticos que
enfrentam a questão. Dentre esses projetos, uma parte significativa é inteiramente
capitaneada pelas mentes inquietas dos jovens estudantes de jornalismo interessados
em alterações gerais no modo de produzir jornalismo legado pelo século 20.
Nomear essa nova leva de projetos de “jornalismo alternativo” parece em princípio
razoável, visto que eles se propõem a não seguir os parâmetros das propostas
tradicionais que ainda fundamentam os currículos dos cursos de Jornalismo e também
a produção jornalística das empresas e profissionais que se aferram nostalgicamente
ao modo até então vigente. Contudo, o termo “alternativo” que adjetiva o jornalismo
que daí se desdobra diz pouco respeito às propostas de “comunicação alternativa”
que se apresentaram em épocas de violência autoritária, ditaduras militares e seu
enfrentamento no campo ideológico com a produção contracultural. É verdade que é um
fato recente nos estudos de comunicação a preocupação crescente com os modelos de
financiamento do jornalismo, mas vale lembrar que mesmo essa questão já apareceu,
por exemplo, no vivo debate em torno das “cooperativas de jornalistas”, justamente na
época em que o “jornalismo alternativo” significava um esforço de enfrentamento ante
os desmandos de generais da ditadura civil-militar. Hoje, o “alternativo” no jornalismo
derivado da reestruturação produtiva do capitalismo diz respeito a “novos modelos de
negócios” que visam suplantar os métodos organizativos herdados do regime fordista
de acumulação, apresentando, porém, uma solução edificante do assim chamado
“jornalismo pós-industrial”.
Não nos resta dúvidas de que o problema que se coloca diante de nós alcança
camadas mais profundas do motor capitalista como autovalorização do valor, de
maneira que toda a avaliação baseada em soluções por meio de novos modelos de
negócio, mesmo sendo tentativas de boa-fé com seus apontamentos econômicos
ignorados pelos estudos de comunicação, perdem justamente o ponto crítico que está
no cerne da dinâmica da reestruturação produtiva, que parece não mais conhecer
soluções cíclicas.
Assim, fundamentados naquele cansaço e irritação diante da escatologia sobre
o assim chamado jornalismo industrial, estamos interessados em apontar para uma
práxis que vise superar a subsunção (formal e real) da comunicação ao capital,
nesse sentido sem se condicionar pelos “novos modelos de negócio” do “jornalismo
alternativo” que não tencionam as contradições da própria comunicação como forma
de manifestação do capital. Para isso, imbuídos do aparato crítico da Economia
Política da Informação, Comunicação e Cultura, partimos para uma avaliação das
questões relativas justamente aos aspectos de sustentação econômica nos debates
Ciências da Comunicação
Capítulo 2
13
sobre jornalismo em meio à construção do projeto comunista no início do século 20,
especialmente nos argumentos sobre a questão das emblemáticas figuras de Lênin e
Gramsci, proeminentes lideranças comunistas que viram no jornalismo um elemento
chave da luta revolucionária. Recorrer à recapitulação analítica dos achados de Lênin
e Gramsci se justifica tendo em vista que também eles viviam em meio a um momento
em que se consolidavam as mudanças no âmbito midiático, passando dos jornais
impressos para a radiodifusão como aspecto decisivo da produção comunicativa.
Cientes das diferenças históricas e espaciais que nos separam das duas lideranças
comunistas, achamos coerente reconhecer nessas ideias motivos para reflexão sobre
as questões colocadas pelo período em que vivemos.
Para isso, num primeiro momento, observaremos os argumentos de Lênin sobre
a importância da independência do jornal proletário, que passava pela viabilidade
do financiamento de sua produção pela coleta de dinheiro entre os próprios
trabalhadores. Num segundo momento, veremos que os argumentos de Gramsci sobre
o autofinanciamento do jornal proletário seguem de muito perto as linhas propostas
por Lênin. Nas considerações finais, vamos sugerir que as propostas comunicativas
às questões que preocupavam os dois autores, tal qual se apresentou na agitprop
desenvolvida em meio ao período de Guerra Civil que se sucedeu à Revolução de
Outubro de 1917, foram deturpadas e subvertidas pelo desenvolvimento da Indústria
Cultural, cujo cerne está na reordenação do projeto econômico para a produção
comunicativa.
2 | LÊNIN: “UM KOPEK PARA O JORNAL PROLETÁRIO”
Lênin cunhou o termo agitação e propaganda (agitprop) russa em meio a uma
série de debates, tanto na Rússia quanto em todo o movimento socialista europeu,
para criar uma imprensa que efetivamente atuasse como um órgão de classe no interior
dos partidos comunistas. O termo tem suas origens nos textos Por Onde Começar?
(1901) e Que Fazer (1902), escritos políticos de Lênin sobre os rumos da revolução na
Rússia. Na época, o dirigente se confrontava publicamente com outras personagens
do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR). Nesses textos, Lênin delineou
as primeiras bases do que seria uma comunicação feita por militantes profissionais do
partido, pela organização revolucionária, no sentido de esclarecer às massas o conflito
ideológico entre a burguesia decadente e o proletariado, o que foi classificado pelo
dirigente como agitação e propaganda.
De acordo com Daniel Cassol, em Por Onde Começar?, texto publicado no jornal
Iskra (Fagulha, em russo), Lênin estabelece as primeiras diretrizes do que seria a
base do pensamento da esquerda marxista a respeito do papel da imprensa como
“um instrumento de agitação e propaganda dos valores socialistas e revolucionários e
também como um fio condutor na organização política dos trabalhadores” (Cassol, 2010,
Ciências da Comunicação
Capítulo 2
14
p.53). O jornal, nesse contexto, estabelece-se como um instrumento de organização
política coletiva, criado e mantido pelo Partido Operário Social-Democrata Russo
(POSDR) principalmente durante os períodos de organização coletiva da esquerda,
ou seja, anteriormente às irrupções revolucionárias.
Questionar se se deve trabalhar por criar uma organização combativa e realizar uma
agitação política em qualquer situação, em períodos “cinzentos”, “pacíficos”, em
períodos de “declínio do espírito revolucionário”, quando ao contrário, exatamente
nessas situações e nesses períodos é particularmente necessário esse trabalho,
porque nos momentos de explosões sociais não há tempo hábil para criar uma
organização, que nesses momentos já deve estar pronta para poder desenvolver
imediatamente sua atividade (LÊNIN, 1901).
Posteriormente, no texto que lançaria o nome do dirigente russo no círculo da
esquerda socialista europeia, Que Fazer?, Lênin prossegue na explicação da importância
de um jornal político regular, profissionalizado e mantido pelo próprio Partido. Sobre
isso, chega a sugerir que cada célula local “imediatamente reserve um quarto de suas
forças para a participação ativa na obra comum” (1902). Ao exercitar regularmente
o ofício, os revolucionários profissionais manteriam a circulação periódica do jornal
político comum, de forma a preparar o proletariado para a insurreição “mesmo nos
períodos de calma absoluta” (LENIN, 1902). Lênin ressalta, também, a necessidade de
profissionalização do corpo militante, para que o trabalho seja contínuo e profissional
– o amadorismo e a falta de regularidade das publicações eram as características dos
jornais proletários que mais irritavam o dirigente.
No interior do debate da agitação e propaganda e da comunicação como
instrumento central de organização do partido, a discussão sobre a independência de
classe do jornal proletário, para Lênin, foi preponderante em um determinado período
histórico. Segundo Rafael Venancio, essa centralidade veio nos anos de 1912 e 1914,
quando a Rússia já contava com o primeiro grande jornal proletário em décadas
circulando livremente, o Pravda – o qual, após a Revolução de Outubro de 1917,
passaria a ser o órgão oficial do novo regime. O início dessa experiência de tolerância
democrática durante o czarismo – conseguida após intensas pressões oriundas dos
movimentos dos trabalhadores – proporcionou uma série de debates a respeito da
viabilidade de um jornal financiado somente pelos trabalhadores, para manter sua
independência de classe frente à burguesa.
Segundo Venancio, Lênin se empenhou em estudar os balanços das primeiras
edições regulares do Pravda para já analisar a viabilidade econômica do jornal, levando
em conta sua ideia de autofinanciamento da empresa jornalística do partido por si só. O
primeiro desses estudos surge na metade de 1912, no qual Lênin analisa as coletas de
dinheiro que ajudariam o Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR) a fundar
o Pravda, além da manutenção de outros dois periódicos do partido, o Zviezda (que foi
substituído pelo Pravda) e o Niévskaia Zviezda, jornal de “2ª linha” dos bolcheviques
(VENANCIO, 2010).
As primeiras constatações de Lênin foram muito otimistas. Os três jornais
Ciências da Comunicação
Capítulo 2
15
bolcheviques receberam 504 coletas – ou seja, manifestações livres de apoio direto
dos trabalhadores –, o que levou o líder bolchevique a classificar a campanha de
arrecadação como exitosa (VENANCIO, 2010). Nesse ínterim, surge a campanha “Um
kopek para o jornal proletário”, lançada por Lênin para o operariado russo assinar e
comprar os jornais feitos pelos jornalistas do partido.
Basta já de dominação, senhores do kopek burguês! Basta de tantos jornalecos
sem princípios, sem outro foco que não o mercantilismo! (...) Que se amplie e
fortaleça o costume de um kopek proletário para o jornal proletário! (LENIN, 1978a
apud VENANCIO, 2010, p. 72)
Essa campanha de Lênin estava embasada em uma forte concepção da
independência de classe necessária à imprensa do partido na Rússia, ainda mais
em uma época revolucionária, em que os embates entre classes eram evidentes e
explícitos. Um jornal do kopek proletário significaria um jornal que representaria este
interesse e, consequentemente, esse interesse se tornaria o guia do jornal (VENANCIO,
2010, p. 72). Dessa forma, o jornal seria apenas um meio para que o proletariado
fosse atingido pela mensagem proletária do partido, enquanto o jornal financiado pelo
kopek burguês levaria uma mensagem burguesa ao proletariado, por consequência, o
que era duplamente danoso para Lênin.
Lênin, contudo, não direcionou sua crítica exatamente aos jornais burgueses, por
acreditar que esses veículos de comunicação não tinham, já desde início, compromisso
com a classe trabalhadora. Preocupou-se com os jornais da social-democracia que
deveriam estar em condições econômicas de produção alinhadas com a classe que
diziam representar, mas não estavam. Esses veículos eram editados pelas alas
liquidacionistas do partido, que foram denominadas assim no Congresso de Praga
do POSDR. Na ocasião, os bolcheviques, hegemônicos no congresso, classificaram
assim os sociais-democratas que renegavam as diretrizes da ala bolchevique. Segundo
Lênin,
O jornal liquidacionista é, principalmente, uma empresa burguesa, ainda que uma
minoria de trabalhadores a siga. Os dados sobre a origem das arrecadações
mostram também a situação de classe dos leitores, compradores do jornal. As
contribuições voluntárias precedem somente de leitores permanentes, aqueles que
simpatizam mais conscientemente com a orientação do jornal (LÊNIN, 1978aapud
VENANCIO, 2010, p. 80).
Tal concepção a respeito da independência de classe do jornal proletário é
indissociável do debate, levado a cabo em um momento posterior, sobre a liberdade
de imprensa para os bolcheviques. Lênin considera a liberdade de imprensa uma das
principais chaves para a “democracia pura”, porém sem deixar de levar em conta que
essa “liberdade” é um engano “enquanto as melhores rotativas, os melhores estoques
de papel estão monopolizados pelos capitalistas” (1978, p. 175). O líder bolchevique
chega até a sugerir que, para que esse estágio de desenvolvimento da democracia
plena seja alcançado – o que se confunde com a própria concepção de ditadura do
proletariado para Lênin – “o capital seja privado da possibilidade de alugar escritores,
Ciências da Comunicação
Capítulo 2
16
comprar editoriais e subornar jornais” (LÊNIN, 1978bapud VENANCIO, 2010, p. 175).
Dessa forma, o exercício pleno da democracia na imprensa, ou a verdadeira liberdade
de imprensa, é a supressão do monopólio de comunicação burguês.
Ou seja, Lênin somente considera que a liberdade de imprensa burguesa (a
possibilidade de ser livre para comprar o meio de produção jornal e publicar o que
bem entender, portanto) não basta, é insuficiente porque o que interessa de fato é a
propriedade do meio de comunicação. Dessa forma, é mais viável, em Lênin, falar de
igualdade de imprensa ao invés de liberdade de imprensa, segundo Venancio (2010,
p. 90).
3 | GRAMSCI E O BOICOTE AO JORNALISMO BURGUÊS
No interior do movimento comunista, no mesmo período histórico de Lênin, outro
importante dirigente comunista sustentava ideias muito similares sobre a necessária
independência de classe dos jornais dos trabalhadores. O dirigente italiano Antonio
Gramsci, no texto Os jornais e os operários (1916), resumiu sua posição teórica e
política a respeito do financiamento da imprensa operária. O dirigente comunista, além
de sustentar que o trabalhador italiano não assinasse os jornais burgueses, defendeu
o autofinanciamento da imprensa proletária como forma de garantir a independência
de classe desta frente ao capital.
[O trabalhador] deveria recorda-se sempre, sempre, sempre que o jornal burguês
(qualquer que seja sua cor) é um instrumento de luta movido por ideias e interesses
que estão em contraste com os seus. Tudo o que se publica é constantemente
influenciado por uma ideia: servir a classe dominante, o que se traduz sem dúvida
num fato: combater a classe trabalhadora. E, de fato, da primeira à última linha,
o jornal burguês sente e revela esta preocupação. Mas o pior reside nisto: em
vez de pedir dinheiro à classe burguesa para subvencionar a obra de defesa
exposta em seu favor, o jornal burguês consegue fazer-se pagar pela própria
classe trabalhadora que ele combate sempre. E a classe trabalhadora paga,
pontualmente, generosamente (GRAMSCI, 1916).
Gramsci não hesita em reconhecer o caráter de classe da imprensa burguesa.
O que motiva o operário a assinar os jornais burgueses é a possibilidade de receber
informação periódica e atualizada. No entanto, acredita que o fato de a informação
conter em si a ideologia burguesa não é percebido pelo trabalhador quanto este
consome a “mercadoria jornal”, “aquele folheto de quatro ou seis páginas que todas as
manhãs ou tardes vai injetar no espírito do leitor os modos de sentir e julgar os fatos
da atualidade política” (GRAMSCI, 1916).
Centenas de milhares de operários contribuem regularmente todos os dias com
seu dinheiro para o jornal burguês, aumentando a sua potência. Por quê? Se
perguntarem ao primeiro operário que encontrarem no bonde ou na rua, com a
folha burguesa desdobrada à sua frente, ouvirão esta resposta: é porque tenho
necessidade de saber o que há de novo. E não lhe passa sequer pela cabeça que
as notícias e os ingredientes com os quais são cozinhadas podem ser expostos
com uma arte que dirija o seu pensamento e influa no seu espírito em determinado
Ciências da Comunicação
Capítulo 2
17
sentido (GRAMSCI, 1916).
Os jornais, para Gramsci, ocupam um papel quase central na luta de classes, pois
se inserem como aparelhos privados de hegemonia no interior da sociedade civil. Para
o autor, são organismos relativamente autônomos em relação ao Estado, em sentido
estrito, como a Igreja, associações, sindicatos ou partidos políticos, que se inserem na
disputa de hegemonia na obrigação de reverter o quadro geral da dominação no plano
político e cultural (GRAMSCI, 1999-2002, v.1 e 3). Na opinião de Denis de Moraes, a
hegemonia não se reduz à força ou coerção militar e policial, mas, sim, pressupõe a
capacidade de um bloco hegemônico (aliança ampla e durável de classes ou frações
de classes) dirigir moral e culturalmente, de forma sustentada, o conjunto da sociedade
(2008, p. 40).
O jornal para Gramsci, portanto, ocupa um espaço de grande importância na
produção de estratégias e táticas que objetivam construir, progressivamente, uma
nova hegemonia (MORAES, 2008). Isto posto, é plausível e coerente a defesa do
autofinanciamento da imprensa pelos próprios trabalhadores, pois o consenso social
que busca a classe trabalhadora na luta de classes só pode ocorrer pela via do embate
político na sociedade civil, tendo os jornais participação decisiva na formação de um
ambiente cultural e político favorável à classe trabalhadora.
Dessa forma, Lênin concordaria integralmente com a análise de Gramsci, para
quem a disputa em busca de leitores dos jornais proletários contra os jornais burgueses
era mais intensa. No entanto, Lênin, por estar imerso no debate com as alas reformistas
do partido social-democrata russo, centra sua crítica de forma mais incisiva nos jornais
liquidacionistas dos socialistas, que também conseguiam um maciço apoio proletário,
a despeito de serem majoritariamente financiados pela burguesia e pela pequena
burguesia.
4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em texto anterior (BASTOS, 2014), afirmamos que aquilo que se chamou
no ambiente revolucionário russo do início do século 20 de agitprop se produziu
fundamentalmente em contraste com o forte crescimento e consolidação da indústria
cultural. Se é verdade que as ações originárias de agitprop nas duas primeiras
décadas do século 20 estavam diante de uma produção comunicativa com limitações
territoriais, de velocidade de difusão e de impacto, podemos também afirmar que
as experiências soviéticas que encontraram seu auge em meio à Guerra Civil que
sucedeu a Revolução de Outubro de 1917 entraram em descrédito forçado pela ação
da política cultural estalinista, quando já se conhecia os efeitos políticos do impactante
aparato radiofônico.
É possível contrastar, nesses termos, a concentração de capital organizando
marcos de sistemas nacionais de difusão, aspecto decisivo da indústria cultural, com
Ciências da Comunicação
Capítulo 2
18
as ações de agitprop que perseguiam a ampliação territorial, de velocidade de difusão
e de alcance, ou seja, de sua capacidade comunicativa, por meio da adoção de formas
como o jornal vivo ou os trens de agitação. Assim, a preocupação da agitprop com a
práxis comunicativa visando formas que complementassem ou mesmo suplantassem
as formas tradicionais de comunicação passou por uma “mudança de função” (para
usar um termo caro a Brecht e Benjamin) a fim de assumir os desígnios da Indústria
Cultural.
Mas, além das novas formas (num sentido por assim dizer tecnoestético), essa
“mudança de função” também foi promovida por novas formulações dos modelos
de financiamento da produção comunicativa. As novas formas de comunicação
baseadas na radiodifusão capturavam o espírito de superação dos entraves da
imprensa escrita tal qual formulados pela agitprop soviética, de modo a estabelecer
uma relação comunicativa cada vez mais direta com os trabalhadores, ao mesmo
tempo em que alterava suas funções, ao adotar progressivamente um sistema de
financiamento baseado em verbas publicitárias. Isso viabilizava a manutenção das
relações comunicativas alargadas, mas restringia sua independência, ao escamotear
os termos da propriedade privada e concentração de capital.
Por outro lado, o financiamento da produção comunicativa burguesa por meio
da dinâmica das verbas publicitárias colocou novos problemas para o debate sobre o
autofinanciamento da produção comunicativa proletária. Se ainda estava em questão
para Lênin e para Gramsci o fato dos trabalhadores usarem seu dinheiro para financiar
a imprensa burguesa, com o modelo de financiamento baseado nas verbas publicitárias
a gratuidade para o acesso desloca a questão, na medida em que estabiliza um modo
de acesso à produção comunicativa que dificulta o engajamento do apoio financeiro
como modelo de financiamento. As novas formas de comunicação se fizeram nos
limites das dificuldades de alcance dos projetos de agitprop e da imprensa proletária,
posto que sua capacidade comunicativa e sua gratuidade superavam esses limites e
satisfizeram demandas da classe trabalhadora.
Agora que a reestruturação produtiva coloca em questão aspectos decisivos da
Indústria Cultural, não será verdade que a discussão de “novos modelos de negócio”
do assim chamado “jornalismo alternativo” perde a oportunidade de tematizar questões
que, ao tempo de Lênin e Gramsci, pareciam distantes de serem compreendidas,
como a relação forte entre o processo cego de autovalorização do valor e as formas
de comunicação daí derivadas? As formulações de Lênin e Gramsci, ainda que
estipulassem as possibilidades de concreção da superação da propriedade burguesa
dos meios de produção comunicativa pela via do autofinanciamento, visto que tal
proposta parecia a única viável, não estariam apontando para a compreensão de uma
práxis que pretenda superar a própria articulação entre autovalorização do valor e
formas de comunicação, como se viu no extraordinário período em que as experiências
de agitprop, impulsionadas pela Revolução e as possibilidades de ação que tinha o
aparato estatal como anteparo?
Ciências da Comunicação
Capítulo 2
19
A difícil adoção de “novos modelos de negócio” se dá, parece-nos, pelo
esgotamento real e cada vez mais marcante das possibilidades de produção de
valor e de realização de rendas informacionais. À revelia deles mesmos, os projetos
alternativos do dito jornalismo pós-industrial, por meio de sua progressiva inviabilidade
num momento de crise e colapso da socialização pelo trabalho, muito provavelmente
nos levarão para formas que estarão além da manifestação do capital e seu sujeito
de comunicação. Em termos históricos diferentes, trata-se de formular tal qual Lênin
e Gramsci quais as dimensões objetivas de financiamento da comunicação que se
pretende além do capital numa época que vive sua crise e colapso.
REFERÊNCIAS
BASTOS, Manoel Dourado. Agitprop contra indústria cultural: contrastes das experiências
comunicativas diante dos antagonismos sociais. Anais do 5º Encontro Regional Sul de
História da Mídia – Alcar Sul, 2014. Disponível em: <http://alcarsul2014.sites.ufsc.br/wp-content/
uploads/2014/10/gtmidiaalternativa_manoel_bastos.pdf> Acessado em: 20 de jun. 2018.
CASSOL, Daniel Barbosa. Brasil de Fato: A imprensa popular alternativa em tempos de crise.
Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São
Leopoldo, 2010.
GRAMSCI, Antonio. Os Jornais e os Operários. 1916. Disponível em: <https://www.marxists.org/
portugues/gramsci/1916/mes/jornais.htm>. Acessado em: 20 de jun. 2018.
__________. Cadernos do Cárcere. Volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
__________. Cadernos do Cárcere. Volume 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
LENIN, Vladimir Ilitch. La ‘libertad de prensa’ del capitalismo: 8va. Tesis para elCongreso de la
Internacional Comunista. In: LENIN, Vladimir Ilitch. La Informacion de Clase (trad. Marisa Cortazzo).
3ª ed., Cidade do México: Siglo XXI, 1978a. p. 175-176.
__________. Balance de medioaño de trabajo. In: Lenin, Vladimir I. La Informacion de Clase (trad.
Marisa Cortazzo). 3º ed, Cidade do México: Siglo XXI, 1978b, p. 113-126
__________. Por Onde Começar.1901. Disponível em: <http://estudosvermelhos.blogspot.com.
br/2012/10/por-onde-comecar-1901-lenin.html> Acessado em: 20 de jun. 2018.
__________. Que Fazer? Questões Palpitantes do Nosso Movimento. 1902. Disponível em: <https://
www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/> Acessado em: 20 de jun. 2018.
MORAES, Denis de. Comunicação Alternativa em Rede e Difusão Contra-Hegemônica. In:
COUTINHO, Eduardo Granja (org). Comunicação e Contra-Hegemonia: Processos Culturais e
Comunicacionais de Contestação, Pressão e Resistência. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2008.
VENANCIO, Rafael Duarte Oliveira. Lenin e o Jornalismo Soviético: imprensa como vanguarda
política. São Paulo: Baraúna, 2010. 184 p.
Ciências da Comunicação
Capítulo 2
20
CAPÍTULO 3
DA IMPRENSA SINDICAL PARA A IMPRENSA
DE MASSA: INTERAGENDAMENTO E CONTRAAGENDAMENTO
Alexsandro Teixeira Ribeiro
sobretudo pela impossibilidade de apreensão da
totalidade dos acontecimentos, pois, “o mundo
que temos que considerar está politicamente
RESUMO: O presente artigo vislumbra
apontar a influência do papel da imprensa
sindical nas pautas da imprensa de massa
comercial por meio do interagendamento e
contra-agendamento midiático. Com base
nos conceitos de agendamento de Maxell
McCombs e as ponderações de contraagendamento apontados por Luiz Martins da
Silva, foi analisada a reportagem publicada pelo
Sindicato dos Servidores Públicos Municipais
de Curitiba (Sismuc) e sua repercussão
nos portais paranaenses de comunicação
da Gazeta do Povo, Paraná Online e portal
Bonde. Algumas marcas textuais presentes
nas reportagens apontam para a ocorrência de
um interagendamento midiático, originado da
imprensa sindical, partindo para a imprensa de
massa.
PALAVRAS-CHAVES:
imprensa
sindical,
contra-agendamento, interagendamento
sociedade
e imaginado” (LIPPMANN,
2008, p.40). Na
medida em que capta os temas de interesse
público candentes na sociedade civil com o
objetivo de publicizar e reverberar os debates
públicos, a imprensa desempenha um papel
fundamental para a sociedade, agindo de
forma a enriquecer as discussões na esfera
pública. Na mesma medida, conforme aponta
a teoria do agendamento, ou agenda-setting, a
imprensa têm o poder de sugestão de temas
a serem debatidos pelos públicos, bem como
orientar, por meio dos atributos ressaltados em
suas publicações e pelo enquadramento dos
acontecimentos reportados, as perspectivas e
viés dos temas que serão discutidos e abordados
na agenda da sociedade (McCOMBS, 2009).
Desta forma, a imprensa torna-se também
uma arena de disputas, na medida em que as
buscam inserir suas pautas e reivindicações
cada
vez
mais
complexa, maior é a necessidade dos meios
de comunicação para mediar a relação dos
indivíduos com as realidades. Isso se dá
Ciências da Comunicação
compreensão. Tem que ser explorado, relatado
organizações e entidades da sociedade civil
INTRODUÇÃO
Numa
fora de nosso alcance, fora de nossa visão e
na pauta midiática, com vistas a
lançar na
agenda da sociedade as suas demandas. Os
sindicatos, enquanto entidades que integram o
rol de instituições que compõem a sociedade
Capítulo 3
21
civil, atua de forma a atuar na agenda da imprensa e na agenda pública, sobretudo
no tocante às manifestações de greve de categorias profissionais, com o objetivo de
sensibilizar a sociedade e o patronato em relação às reivindicações dos trabalhadores.
Conforme aponta Silva (2007) ao propor um debate sobre contra-agendamento
– em que se destaca o contra-fluxo no direcionamento das agendas, comumente tido
como da mídia para o público - , na medida em que as entidades sindicais realizam
ações que o objetivo último de se inserirem na agenda midiática, elas atuam de forma
a promoverem ações de advocacy. Essas ações podem ser identificadas em atos
públicos, passeatas e outras manifestações produzidas especificamente para gerar
publicização por meio da imprensa e dos meios de comunicação de massa. Por
outro lado, as entidades sindicais também dispendem de meios de comunicação para
informar aos trabalhadores as atuações da entidade, e em alguma medida também
à sociedade em geral e a imprensa. Ocorre que, muitas vezes, as pautas dos meios
sindicais influenciam as agendas midiáticas por meio do interagendamento midiático,
inserindo seus temas, enquadramento e atributos na imprensa de massa.
Sendo o que apresenta, sob a perspectiva do agendamento (McCOMBS, 2002,
2008, 2009) e do contra-agendamento (SILVA, 2007), o objetivo do presente trabalho
foi o de analisar a repercussão da reportagem “Denúncia: Central de Abastecimento
infestada de ratos e pombos”, publicado no portal do Sindicato dos Servidores Públicos
Municipais de Curitiba – Sismuc (2014) nos portais da imprensa da massa da Gazeta
do Povo, Paraná Online e Bonde News, com vistas a identificar se a inserção da pauta
sindical na da imprensa de massa se deu por meio de interagendamente ou por contraagendamento. Para isso, buscou-se identificar marcas, atributos e enquadramentos
da reportagem publicada no portal sindical, para, em comparação com as reportagens
da imprensa de massa, identificar a origem das informações veiculadas pela imprensa
de massa, se são provenientes do produto jornalístico do sindicato ou da ação política
da entidade.
O presente trabalho buscou como corpus as reportagens publicados pelo
Sismuc e pelos portais paranaenses de notícia Paraná Online, Gazeta do Povo e
Bonde News. O objetivo foi analisar as mensagens, e por meio do texto identificar as
ações de agendamento. Por se tratar de poucos textos – quatro reportagens - não
extensos, optou-se por uma leitura crítica e comparativa entre as matérias jornalísticas,
buscando identificar elementos que se repetissem em todos os textos e que dessem
subsídios para analisar a forma de agendamento. Os elementos buscados foram a
identificação das fontes – institucionalizadas e personagens que apareceram nas
reportagens -, comparar o conteúdo e forma de apresentação de suas falas, comparar
a forma de apresentação e as informações chaves que sustentassem a narrativa dos
fatos apresentados nos textos, como a origem da denúncia, os locais em que foram
identificados os fatos que geraram as denúncias etc.
Ciências da Comunicação
Capítulo 3
22
AGENDAMENTO TEMÁTICO
A imprensa e os meios de comunicação de massa desempenham um papel
de construção da realidade, na medida em que reportam o acontecimento não pela
sua plenitude, mas por um recorte e orientações. Para Lippmann, a realidade dos
acontecimentos são grandes e complexos para serem percebidos diretamente, sendo
que a percepção do evento de quem não o vivenciou é o sentimento da imagem
mental do evento, assim, “teremos que presumir que o que cada homem faz está
baseado não em conhecimento direto e determinado, em imagens feita por ele mesmo
ou transmitidas a ele” (2008 p.31).
Ao publicar a obra Opinião Pública, em 1922, Lippmann ressaltou a função de
construção de significado desempenhada pela imprensa, propondo uma discussão
sobre como as interpretações dos acontecimentos pela imprensa podem alterar as
interpretações da realidade pelo público e seus consequentes modelos de ação. Desta
forma, Lippmann inaugura um filão de pesquisas que vão levar em consideração a
influência dos meios de comunicação na percepção e construção da realidade. O
título da primeira parte “o mundo exterior e as imagens em nossas mentes”, sintetiza
uma das ideias centrais da obra, uma vez que as pessoas não agem com base dos
acontecimentos reais, mas naquilo que imaginam que seja a situação real, percebida
pelas informações da imprensa. Pois, conforme afirma:
“ em todas as instâncias devemos observar particularmente um fator comum. É
a inserção entre os seres humanos e seu ambiente de um pseudo-ambiente. A
este pseudo-ambiente é que seu comportamento é uma resposta. Mas porque é
um comportamento, as consequências, se elas são fatos, operam não no pseudoambiente onde o comportamento é estimulado, mas no ambiente real, onde as
ações acontecem” (LIPPMANN, 2008 p.30).
Segundo o autor, a analise da opinião pública precisa começar reconhecendo a
relação triangular entre a cena da ação, a imagem humana daquela cena e a resposta
humana àquela imagem atuando sobre a cena da ação, pois o mundo que temos que
considerar está politicamente fora do nosso alcance, fora de nossa visão e compreensão.
O poder do jornalismo e dos meios de comunicação está na publicização e fornecimento
de um caráter de existência aos acontecimentos, tanto na sua capacidade de seleção
de acontecimento quanto na possibilidade de os transformar em notícia, moldando “a
imagem das realidades” e apresentando aos públicos “noticias que são o resultados
de um complexo processo de negociação e de uma luta que se trava a dois níveis: na
seleção e no enquadramento dos acontecimento” (CABRERA, 2001, p.195). Uma das
perspectivas influenciadas por Lippmann foi a da teoria do agendamento, pela qual há
uma relação entre os temas abordados pela imprensa e a agenda de debate público,
conforme aponta McCombs, que, junto com Donald Shaw, desenvolveu as principais
fundamentações teóricas do agenda-setting:
Ciências da Comunicação
Capítulo 3
23
As origens da teoria remontam a Walter Lippmann[...]. Sua tese é a de que a mídia
é a ponte até nossas mentes em termos de informação. Porém, os anos mais
recentes têm se transformado em algo diferente daquilo que ele descreveu. Em
1968, Shaw e eu resolvemos testar aquilo que Lippmann tinha escrito. Os estudos
mais remotos avaliavam a influência da mídia nas atitudes e na opinião pública
(McCOMBS, 2008, p.205)
A ideia central da teoria do agendamento é de que os temas proeminentes
na agenda da mídia tornam-se também os temas a serem abordados nos debates
públicos, sendo que “aqueles elementos enfatizados na agenda da mídia, acabam
tornando-se igualmente importantes para o público” (McCOMBS, 2009, p.111). Apesar
de perceber a influência da imprensa nos assuntos abordados pelo público, a teoria
do agendamento não considera os públicos como influenciáveis na sua totalidade,
prontos a serem bombardeados pelas opiniões e enquadramentos da imprensa, e a
responderem de pronto a expectativa dos produtores de conteúdos, conforme a teoria
hipodérmica.
A teoria da agenda “atribui um papel central aos veículos noticiosos por serem
capazes de definir itens para a agenda pública[...] E, além disso, é o conjunto total
da informação fornecida pelos veículos noticiosos que influencia estas imagens”
(McCOMBS, 2009, p.24). Essa relação se funda principalmente na necessidade
dos indivíduos em buscarem orientações para os assuntos públicos, sendo que a
necessidade de orientação é diretamente proporcional à atenção dedicada à agenda
da mídia (2009, p.94). Essa necessidade de orientação, segundo McCombs, é definida
pela relevância e incerteza, sendo que a primeira está relacionada aos interesses dos
públicos, e o segundo ao grau de necessidade de orientação, sendo que “no caso
dos indivíduos que por qualquer razão percebem que a relevância de um tópico é alta
[…] o nível de incerteza sobre o tópico precisa ser também considerado” (McCOMBS,
2009, p.92).
Se não define diretamente no que o público pensa, a imprensa e os meios de
comunicação, no entanto, têm o poder de sugestionar sobre o quê os indivíduos
debatem nos espaços púbicos e sob quais perspectivas interpretativas, ao ressaltar os
atributos dos assuntos, que, ao serem “proeminentes nas apresentações da mídia são
proeminentes na mente do público” (McCOMBS, 2009 p.129). Desta forma, a agenda
de atributos indica a temática, direcionando, em alguns casos, a opinião pública à
perspectiva apontada pelos meios.
Conforme aponta McCOMBS, apesar de influenciar a agenda pública, a imprensa
e os meios de comunicação não são o suficiente para definir, na totalidade, a agenda
da sociedade, uma vez que:
Although the influence of the media agenda can be substantial, it alone does not
determine the public agenda. Information and cues about object and attribute
salience provided by the news media are far from the only determinants of the
public agenda. This substantial influence of the news media has no way overturned
or nullified the basic assumption of democracy that the people at large have
sufficient wisdom to determine the course of their nation, their state, and their local
Ciências da Comunicação
Capítulo 3
24
communities. (McCOMBS, 2002 p.8).1
A primeira dimensão do agendamento, segundo McCombs, é o de elencar os
temas das agendas públicas por meio dos temas veiculados pela imprensa e meios de
comunicação (2009, p.133). A segunda dimensão do agendamento se dá pela relação
dos aspectos dos temas da agenda midiática e sua transposição para a agenda
pública, “onde aspectos específicos do conteúdo da mídia sobre temas públicos estão
implicitamente ligados ao formato da opinião pública” (2009, p.134). No agendamento
de atributos, relativos à segunda dimensão do agendamento, um conceito-chave a ser
abordado é o enquadramento, que é a seleção “de ênfase- nos atributos particulares
de uma agenda da mídia quando se tratar de um objeto” (2009, p.137). Assim, o público
adota graus de ênfase nos temas de acordo com as saliências destes na imprensa e
nos meios de comunicação.
INTERAGENDAMENTO, MÍDIA DAS FONTES E CONTRA-AGENDAMENTO
Segundo McCombs, a agenda da mídia é definida por uma série de elementos
com espaços de forças dispostos em camadas, em que a parte externa estaria a cargo
das fontes noticiosas externa-chaves, seguida de outras fontes midiáticas e notícias,
num processo de interação entre as mídias, e mais próximo à agenda da mídia, as
notícias comuns, que disputam a agenda midiática sob perspectivas inerentes aos
valores jornalísticos (McCOMBS, 2009, p.155). Dentre essas influências na agenda da
mídia, para o presente trabalho, será discorrido apenas o agendamento intermídia, pela
qual os meios noticiosos influenciam as agendas de outros veículos (McCOMBS, 2009,
p.174). Ao debater o interagendamento midiático, McCombs ressalta essa influência
de veículos de elite nos pequenos veículos, porém não descarta a existência de outras
relações de influência, como os agendamentos da imprensa influenciados pelas
agências de comunicação, apontando que, “todos os dias à medida que organizações
noticiosas constroem suas agendas diárias a partir de um enorme volume de noticias
que lhe é enviado pelas agências” (McCOMBS, 2009, p.177), ou ainda influência da
agenda da mídia de entretenimento sobre a agenda noticiosa (2009, p.181).
Ainda sobre a direção de um fluxo de interagendamento, Hohlfeldt aponta uma
certa hierarquia dessa influência, partindo da mídia impressa para a eletrônica, “tanto
no que toca ao agendamento do receptor em geral [...] quanto sobre as demais
mídias. Estabelece-se, desta maneira, uma espécie de suíte sui generis, em que um
tipo de mídia vai agendando o outro” (HOHLFELDT, 1997, p.47-48). Retomando a
relação da imprensa com a agenda pública, McCombs aponta, no entanto, que os
meios de comunicação não são as únicas fontes dos assuntos públicos, sendo estes
1. Embora a influência da agenda da mídia possa ser substancial ela sozinha não determina a agenda pública. As
informações e sugestões do enquadramento e a saliência dos atributos estão longe serem os únicos determinantes
da agenda pública. A influência dos meios de comunicação não anula ou derruba os pressupostos básicos da democracia e de que as pessoas em geral têm conhecimento suficiente para determinar o curso de sua nação, estado
e comunidades locais. ( McCombs , 2002 p.8, tradução nossa)
Ciências da Comunicação
Capítulo 3
25
também mediados por relações pessoas, familiares, dentre outros, sendo que a “fonte
dominante da influência, naturalmente, variará de tema para tema” (2009 p. 99). Um
dos espaços afora a imprensa de massa comercial que podem influenciar a agenda
pública e por conseguinte a esfera pública são os meios de comunicação das entidades
da sociedade civil e corporativas, apontadas por Sant’Anna como mídia das fontes,
sendo estas “mantidas e administradas por atores sociais que, até então, se limitavam
a desempenhar o papel de fontes de informações” (2008, p.3).
Assim, a opinião pública conta também com os meios institucionais com pautas
e informações captadas dos movimentos sociais tratadas editorialmente pelas
instituições. O objetivo da mídia das fontes seria, até certo grau, disputar a hegemonia
no espaço público com os meios de comunicação de massa comerciais, atuando de
forma a lutar pela inclusão dos temas de interesse de suas bases e representação na
agenda pública, constituindo-se num embate de predominância de ideias na esfera
pública, sendo que, “em função dessa predominância, poder-se-á influenciar, dentre
outros efeitos, a definição de políticas públicas, privilegiando ou prejudicando este ou
aquele segmento social” (SANT’ANNA, 2006, p.10).
Na dificuldade e/ou impossibilidade de atuar ativamente na agenda da mídia
tradicional, e por conseguinte na agenda pública, cresce a atuação dessa mídia das
fontes, que se constitui “um novo elemento estratégico inserido neste front de disputa
midiática” (SANT’ANNA, 2006, p.13), sendo essa ação informativa
uma tentativa de garantir um referencial informativo e ideológico no seio da
sociedade, nova proposta de agendamento face ao padrão mercantilizado, ou
mesmo estéril em relação a determinados temas adotado pelo newsmaking da
imprensa tradicional (SANT’ANNA, 2006, p.26)
Desta forma, sob a perspectiva da concepção de mídia das fontes e sua atuação
na busca pelo agendamento público de seus temas, é possível sugerir que, em alguma
medida, esta mídia possa atuar de forma a influenciar a agenda da imprensa e dos meios
de comunicação de massa. Conforme apontado anteriormente, uma dessas formas de
agendamento da mídia, apontado por McCombs (2009), seria o interagendamento, em
que a imprensa agenda a pauta da própria imprensa. No entanto, esta não é a única
forma de se influenciar a agenda da mídia. Uma outra medida de pautar a agenda
midiática é a do contra-agendamento, pelo qual a sociedade civil busca, por meio
de ações como manifestações públicas, chamar a atenção da imprensa para suas
demandas. Silva (2007), mesmo reconhecendo a validade das teorias clássicas do
agendamento, ressalta a existência de outras formas de influencia agendas, como
a do contra-agendamento, que propõe um fluxo contrário ao da agenda-setting e do
interagendamento, partindo do público para a imprensa:
há a existência de uma outra agenda-setting, na contramão da primeira, um
fenômeno que denominaremos de contra-agendamento, sob uma hipótese de
trabalho, a de que a sociedade também tem a sua pauta ou, no plural, as suas
pautas, e as deseja ver atendidas pela mídia e tenta, diariamente, e sob as mais
variadas maneiras, incluir temas nesse espaço público que é a mídia; e na esfera
Ciências da Comunicação
Capítulo 3
26
pública que se constitui da tematização polêmica das questões de uma atualidade
(SILVA, 2007, p.85)
No contra-fluxo do comumente contemplado, a agenda, desta forma, é definida
da sociedade para a mídia, por meio de ações de organizações e setores da sociedade
civil vislumbrando a atenção midiática para suas pautas, sendo esse movimento
“consequência do empoderamento dos sujeitos da sociedade civil e da complexificação
das relações entre mídia e sociedade” (SIRENA, 2013, p.4).
Contra-agendamento seria então uma série de atuações das organizações da
sociedade civil, estrategicamente aplicadas para atingir a imprensa e os meios de
comunicação, com o objetivo de publicização e visibilidade pública. Cabe ressaltar
que a atuação das organizações da sociedade civil tem sido fundamental para a
publicização de temas de interesse públicos, sendo esse papel “responsável pela
inserção na esfera pública de temas sociais e projetos de intervenção locais bemsucedidos que, com a devida promoção e visibilidade midiática, podem ser replicados
e, assim, oferecer uma perspectiva de mudança social” (ROSSY, 2007, p.5).
Segundo Silva, o conceito-chave do contra-agendamento é o advocacy, tido
como um elemento “qualificador da ação do agendamento institucional”, voltado
especificamente para a defesa da pauta frente à imprensa, já que sua atividade “é focada
social, econômica e culturalmente, embora dependa, enfatizamos, visceralmente da
visibilidade que encontre na mídia” (SILVA, 2007, p.87), sendo compreendido advocacy
como “a ação do lobby [...] em favor de um tema institucionalizado ou em vias de
institucionalização” (2007, p.87).
A definição de advocacy apontada por Silva, portanto, é a de atuação das
entidades na defesa dos interesses públicos, ou seja, “falar ou advogar em nome
de outro a fim de obter justiça”, significando também “propor ou recomendar alguma
coisa a alguém” (2007 p.87). Portanto, as ações de advocacy estão focadas sob a
perspectiva de pressionar o poder público para a implementação de políticas públicas
nas diversas áreas, além de serem utilizadas também na defesa dos direitos de
segmentos ou públicos específicos (ROSSY, 2007, p. 7)
Mesmo admitindo que o contra-agendamento está relacionado à questão
da mediação – tanto entendida quanto a busca dos meios de comunicação para
composição de associativismo e dar corpo ás organizações, quanto pela questão
da visibilidade e publicização de seus temas e consequentemente seu lançamento à
esfera pública – e do agendamento que possibilitado nesse contra-fluxo da agenda-
setting tida convencionalmente, Silva reitera que estas duas questões não seriam
possíveis sem a advocacia de interesses (2007, p.100).
Retomando os conceitos apontados, percebe-se uma pluralidade de agendas
na sociedade, como a da imprensa e da sociedade. Ocorre que tais agendas atuam
de forma a influenciar umas as outras, em medidas diferentes. No interagendamento
midiático, os fluxos de influências são restritos às pautas da própria imprensa, no
qual as notícias e seus enquadramentos publicados por determinados veículos
Ciências da Comunicação
Capítulo 3
27
são replicados e/ou influenciam as reportagens de outros veículos. Já no contraagendamento, ocorre uma inversão do fluxo de influência apontado pela teoria clássica
do agendamento. Se anteriormente o que se percebia era a influência da imprensa na
agenda de discussões da sociedade, no contra-agendamento, ocorre a influência das
ações da sociedade civil nas pautas da imprensa. No entanto, conforme apontado
por Silva (2007), o contra-agendamento se dá quando há clara intenção por parte da
sociedade civil em promover uma ação que objetiva a inserção na imprensa, ou seja,
uma ação idealizada e realizada exclusivamente para ser midiatizada.
IMPRENSA SINDICAL E IMPRENSA DE MASSA: INTERAGENDAMENTO OU
CONTRA-AGENDAMENTO?
No dia 23 de julho de 2014, o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de
Curitiba (Sismuc) publicou em site uma reportagem repercutindo uma denúncia realizada
pelo sindicato à Prefeitura de Curitiba acerca da falta de manutenção e sanitização
da Central de Abastecimento, responsável pelo armazenamento de alimentos de 32
Armazéns da Família de Curitiba. Segundo a denúncia, os alimentos ficam expostos à
urina e fezes de ratos e pombos, que também põe em risco a saúde de trabalhadores
que manuseiam os alimentos e sobretudo dos consumidores (SISMUC, 2014).
No dia 23 de julho de 2014, às 17h11, o portal Bonde News, do grupo Folha
de Londrina, publicou um texto, sob o título “Sindicato denuncia presença de ratos
e pombos na Central de Abastecimento de Curitiba” (BONDE, 2014), repercutindo
a denúncia do Sismuc. No mesmo dia, às 17h04, foi a vez do portal Paraná Online
publicar a reportagem sobre a denúncia, intitulada “Sindicato diz que há pragas em
Central de Abastecimento” (PARANÁ 2014), seguido da Gazeta do Povo, que levou ao
ar em seu site às 19h43 a reportagem sob o título “Sindicato denuncia falta de higiene
na Central de Abastecimento em Curitiba” (GAZETA, 2014).
A repercussão da denúncia indica o agendamento da pauta sindical à agenda
midiática. No entanto, conforme apontado anteriormente, objetivamos analisar sob
qual perspectiva do agendamento midiático se dá a relação da publicação do sindicato
às dos portais noticiosos. Desta forma, partimos para a identificação de elementos
da reportagem sindical e suas aparições nos textos veiculados pela imprensa de
massa. Para tanto, como indicado anteriormente, buscamos nos textos marcas que
identifiquem a replicação de informação, ou seja, a reincidência de elementos que
nos deem subsídios para identificar a forma de agendamento, como quem são as
fontes de informação recorridas, o conteúdo de suas falas, as formas de apresentar as
informações bases da denúncias, dentre outros.
As informações sobre o local da infestação – Central de Abastecimento -, o bairro
– Capão da Imbuia-, a origem das denúncia – servidores municipais-, a instituição
que oficializou a denúncia – Sismuc – e o motivo da denúncia – infestação de ratos e
Ciências da Comunicação
Capítulo 3
28
pombos e o contato dos alimentos com seus dejetos – estão presentes em todos os
textos, como subsídios que fundamentam o conteúdo do texto jornalístico. Ressalta-
se a complementaridade indicada à localidade da infestação, de que a Central de
Abastecimento é responsável pelo fornecimento de alimentos a 32 Armazéns da
Família, e sua aparição em todos os textos no início das reportagens e/ou em locais
de destaque, como elemento que indica a amplitude do acontecimento e dimensiona
o impacto da infestação.
A publicação do Sismuc é estruturada em três eixos informativos, sendo o primeiro
referente à denúncia e a infestação da Centra de Abastecimento por ratos e pombos, a
segunda é referente ao desperdício de alimentos afetados pelo contato com os dejetos
dos animais, e o terceiro é sobre a resposta da prefeitura ante o questionamento
do sindicato e a indicação de uma reunião entre a entidade e o executivo municipal
(SISMUC, 2014). Na reportagem veiculada pelo Bonde News e pelo Paraná Online
foram contemplados os três primeiros eixos informativos do texto do Sismuc, citando
apenas a reunião anunciada no terceiro eixo (BONDE, 2014; PARANÁ, 2014).
Já na reportagem da Gazeta do Povo, há a presença dos três eixos da reportagem
do Sismuc (GAZETA, 2014). Quanto as informações contempladas nas reportagens
dos veículos informativos das empresas de comunicação, há presença de conteúdos
proveniente de contato das redações com a prefeitura na da Gazeta do Povo e do
Paraná Online. No Bonde News, as informações veiculadas são retiradas do informativo
sindical. Quanto a aparição de vozes de fontes e personagens, a reportagem do Sismuc
conta com fala institucionalizada do coordenador do sindicato, sobre a preocupação da
entidade em relação aos riscos de saúde dos consumidores dos alimentos expostos
às fezes e urinas dos pombos e ratos; a fala da coordenadora geral do sindicato,
reiterando a existência dos indícios de infestação na Central de Abastecimento, e de
um servidor anônimo, falando sobre os desperdícios de alimentos devido ao contato
destes com os dejetos dos animais (SISMUC, 2014).
Na reportagem do Bonde News, há a aparição total da fala direta – entre aspas -
do coordenador do sindicato, nos mesmos termos da reportagem do sindicato, e parte
da fala direta – entre aspas - do servidor, bem como o uso de informações da fala do
servidor diluída no texto, sem indicação de fonte. Na reportagem do Paraná Online, há
a aparição total direta da fala do coordenador do sindicato, e uso do conteúdo da fala
do servidor, descaracterizado, no entanto, de sua autorial, arrolando como informação
indicada como da assessoria de comunicação da entidade. Na Gazeta do Povo, há
apenas parte da fala do coordenador do Sismuc, inserida na reportagem na forma
direta, ou seja entre aspas. Quanto a origem da informação, na reportagem do Bonde
News, a origem das informações são creditadas ao Sismuc, sem qualquer menção da
localidade de obtenção da informação e/ou da assessoria de comunicação da entidade.
Na reportagem do Paraná Online, há indicação da assessoria de comunicação como
fonte da produção das noticias.
Já na reportagem da Gazeta do Povo, além da indicação da assessoria de
Ciências da Comunicação
Capítulo 3
29
comunicação na origem da informação, há a indicação da localidade da informação
como “matéria publicada no site do sindicato”. Desta forma, indicada as origens
da informação, quais sejam: a assessoria de comunicação do sindicato e o site da
instituição; é possível indicar - mesmo no caso da reportagem do Bonde News - em que
não há clara indicação da origem da informação, mas em que é possível deduzi-la pelo
conteúdo e pelas falas institucionalizadas veiculadas - que houve um agendamento
da pauta midiática do Sismuc nas pautas dos referidos veículos de comunicação de
massa. Em segundo ponto, também é possível sugerir que o agendamento também
se deu pelos atributos, por meio da replicação dos pontos indicados na reportagem
do Sismuc nas publicadas nos portais da imprensa, bem como o enquadramento da
matéria do meio de comunicação sindical, apontado nos três eixos informativos e
presentes no textos dos portais de comunicação da imprensa de massa.
Quanto a possibilidade do contra-agendamento, cabe apontar que não há na
publicação uma pretensão de se buscar o agendamento da imprensa de massa,
como intuito primeiro da publicação, característica das ações de contra-agendamento
apontada por Silva (2007), bem como a existência de ações de advocacy – também
enquanto ação que visa o agendamento da mídia -, elemento fundamental para a
conceituação do contra-fluxo proposto por Silva. Não há marcas nas reportagens,
tanto na do Sismuc quanto nas dos meios de comunicação, que indiquem qualquer
ação de advogacia da entidade com fins de sensibilização da mídia, como a realização
de um ato público, etc.
Por outro lado, ainda levando em consideração a possibilidade da sociedade
civil de influenciar a agenda da mídia, e sob a perspectiva do conceito de mídia das
fontes, apontado por Sant’anna, é possível sugerir um agendamento intermidiático
da pauta do portal do Sismuc, enquanto meio de comunicação da entidade sindical
e dos trabalhadores que a organização representa, influenciando as agendas dos
meios massivo de comunicação. Uma das indicações que reforçam tal interpretação,
conforme citado acima, é o de indicação da origem da informação, com destaque
para a publicação da Gazeta do Povo, que credita a pauta à matéria publicada no
site do sindicato. Por fim, ressalta-se que esse agendamento não se deu apenas na
transposição do tema, por parte da agenda do Sismuc, a ser veiculado pelos meios
de comunicação de massa, mas sobretudo pelos atributos e enquadramentos das
reportagens sugestionados pela matéria da entidade sindical.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se não definem o quê pensamos, a imprensa e os meios de comunicação de
massa, por meio da publicização de temas, e pelos atributos, recortes e enquadramentos
utilizados nas veiculações desses temas, podem influenciar no quê iremos debater,
e sob quais perspectivas trataremos determinados assuntos. No entanto, essas
Ciências da Comunicação
Capítulo 3
30
características de influência dos meios para o público, objeto de análise da teoria do
agendamento, pode não dar conta da complexidade dos inúmeros cruzamentos de
agendas existentes na sociedade como um todo (SILVA, 2007). Afinal, a imprensa
também tem uma agenda e ela é sensível a diversas agendas da sociedade, como a
da sociedade civil, que por meio do contra-agendamento busca inserir nos meios de
comunicação suas pautas e reivindicações.
Como aponta Silva, no entanto, esse agendamento é orientado pela ação do
advocacy, que tem por norte defender a bandeira da instituição com o objetivo último
de propor a influência das suas pautas nos meios. Outro fenômeno apontado na teoria
do agendamento é o interagendamento midiático, pelo qual a imprensa influencia a
agenda de outros veículos de comunicação. Afora as discussões sobre as pretensões
de se influenciar ou não as agendas de outras mídias, no interagendamento midiático
ocorre na medida em que determinados temas e enquadramentos publicados por
alguns veículos de imprensa são replicados por outros veículos.
Por outro lado, como entidade da sociedade civil responsável pela defesa e
reverberação dos direitos dos trabalhadores, os sindicatos dispendem de meios
próprios de comunicação, que objetivam, em primeiro plano, a informação, aglutinação
e orientação político-ideológica de seus públicos, e em segundo plano, a busca pela
publicização nos meios massivos de comunicação. Ocorre que, muitas vezes, as pautas
sindicais influenciam as agendas midiáticas, quer seja pelo contra-agendamento, na
medida em que emprega ações que vislumbrem a atenção da imprensa, com atos
públicos e manifestações, quer por meio do interagendamento midiático, influenciando
as pautas da imprensa de massa por meios das veiculações informativas em seus
próprios meios.
Durante as análises das reportagens do Sismuc e dos portais paranaenses de
notícias - Paraná Online, Bonde News e Gazeta do Povo – não se percebeu ações
que pudessem sugerir intenção última da entidade sindical de influenciar a agenda
midiática, como ações de advocacy (SILVA, 2007), apontados como fundamentais
para o contra-agendamento. Conforme apontado no presente trabalho, as análises
das reportagens do Sismuc e dos portais de notícia paranaenses Paraná Online,
Bonde News e Gazeta do Povo, sugerem uma ação de interagendamento midiático no
tocante a influência da reportagem do site do sindicato nas publicações dos portais da
imprensa de massa.
REFERÊNCIAS
BONDE News. Sindicato denuncia presença de ratos e pombos na Central de Abastecimento
de Curitiba. Portal Bonde News. 23 de julho de 2014. Disponível em: <http://www.bonde.com.br/?id_
bonde=1-3--787-20140723&tit=sindicato+denuncia+presenca+de+ratos+e+pombos+na+central+de+a
bastecimento+de+curitiba>. Acesso em: 05 de dezembro de 2014
CABRERA, Ana. Missão Paz em Timor: percurso de um pseudo-acontecimento. In: TRAQUINA,
Ciências da Comunicação
Capítulo 3
31
Nelson et al. O jornalismo português em análise de casos. Lisboa, Caminho, 2001. Pp: 195-260.
GAZETA do Povo. Sindicato denuncia falta de higiene na Central de Abastecimento em Curitiba.
Vida e Cidadania. Portal da Gazeta do Povo. 23 de julho de 2014. Disponível em: <http://www.
gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1486127>. Acesso em: 05 de dezembro de
2014.
HOHLFELDT, Antonio. Os estudos sobre a hipótese de agendamento. Revista Famecos, Porto
Alegre, n. 7, p. 42-51, nov. 1997.
LIPPMANN, Walter. Opinião pública. Editora Vozes: Petrópolis, 2008.
McCOMBS, Maxwell. A Teoria da Agenda: a mídia e a opinião pública. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
McCOMBS, Maxwell. Entrevista concedida a José Afonso da Silva Junior, Pedro Paulo Procópio,
Mônica dos Santos Melo. Um Panorama da Teoria do Agendamento, 35 anos depois de sua
formulação. In: Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v.31, n.2, jul./
dez. 2008.
MCCOMBS, Maxwell. The Agenda-Setting Role of the Mass Media in the Shaping of Public
Opinion. 2002. Disponível em: <http://www.infoamerica.org/documentos_pdf/mccombs01.pdf>.
Acesso em 5/12/2014.
PARANÁ Online. Sindicato diz que há pragas em Central de Abastecimento. Cidades. Portal
do Paraná Online. 23 de julho de 2014. Disponível em: <http://www.parana-online.com.br/editoria/
cidades/news/816170/?noticia=sindicato+diz+que+ha+pragas+em+central+de+abastecimento>.
Acesso em: 05 de dezembro de 2014.
ROSSY, Elizena. Contra-agendamento: o Terceiro Setor pautando a mídia. II Congresso da
Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política, 2007. Brasília: UNB, 2007.
Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/compolitica/anais2007/gt_jmp-elizena.pdf>. Acesso em:
5/12/2014.
SANT’ANNA, Francisco. Mídia das fontes: o difusor do jornalismo corporativo. Biblioteca on-line
de Ciência da Comunicação, Lisboa, 2006.
SILVA, Luiz Martins da. Sociedade, esfera pública e agendamento. In: BENETTI, Márcia; LAGO,
Cláudia. (Org.). Metodologia de pesquisa em jornalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
Ciências da Comunicação
Capítulo 3
32
CAPÍTULO 4
MÍDIA NINJA: PROCESSO DE PRODUÇÃO DE
INFORMAÇÕES AUDIOVISUAIS, POR MEIO DE
DISPOSITIVOS MÓVEIS, SOBRE O CASO MARIELLE
FRANCO
Valéria Noronha de Oliveira
Universidade Federal do Piauí
Teresina, Piauí
RESUMO: A mídia alternativa ganha novamente
destaque com o assassinato da vereadora e
ativista Marielle Franco, em especial a Mídia
Ninja, objeto desta pesquisa. Milhares de
pessoas vão às ruas com seus smartphones
e publicam o evento via streaming nas redes
sociais. Dentre elas estão colaboradores do
coletivo Narrativas Independentes Jornalismo
em Ação. A produção midiativista reacende
o debate contra os meios de comunicação
hegemônicos ao dar voz às classes sociais
heterogêneas. É neste contexto que o presente
estudo analisa a produção noticiosa, no
formato audiovisual, por meio dos dispositivos
móveis, para confecção de materiais acerca
dos movimentos desencadeados no dia 15
de março de 2018 em todo o Brasil. Trata-se
de um estudo de caso, com análise das 35
transmissões realizadas com as hashtags
#AoVivo e #MariellePresente na página da
Mídia Ninja no Facebook.
PALAVRAS - CHAVE: Mídia Ninja; Mobilidade;
Contra-hegemonia; Produção audiovisual;
Dispositivos móveis.
ABSTRACT: The alternative media is again
Ciências da Comunicação
highlighted by the murder of councilwoman and
activist Marielle Franco, especially the Mídia
Ninja, object of this research. Thousands of
people take to the streets with their smartphones
and publish the event via streaming on social
networks. Among them are collaborators of the
collective Narrativas Independentes em Ação.
The media production rekindles the debate
against the hegemonic media by giving voice
to the heterogeneous social classes. It is in
this context that the present study analyzes
the news production, in the audiovisual format,
through the mobile devices, to make materials
about the movements unleashed on March 15,
2018 throughout Brazil. This is a case study, with
analysis of the 35 transmissions carried out with
the hashtags #AoVivo and #MariellePresente
on the page of the Media Ninja on Facebook.
KEYWORDS: Mídia Ninja; Mobility; Counterhegemony; Audiovisual production; Mobile
devices.
1 | INTRODUÇÃO
Com o advento das tecnologias digitais,
o fazer jornalístico ganhou ferramentas hoje
indispensáveis para a construção, apuração,
circulação
e
consumo
de
informações.
Dispositivos móveis, como smartphones e
tablets, foram apropriados por jornalistas nas
Capítulo 4
33
redações, portais e TVs, fenômeno que tem impactado não só nos aspectos técnicos
de produção, mas na proximidade e interatividade para com o público consumidor dos
serviços via aplicativos ou por meio de páginas nas redes sociais (SILVA, 2014).
O jornalismo móvel digital possibilitou maior dinâmica aos profissionais e a
transmissão de furos em tempo real, não sendo necessária a presença de uma equipe
de reportagem. Os smartphones dispõem de boas câmeras, aplicativos de edição e
acesso à internet, que promovem a união da característica móvel dos dispositivos,
referente à mobilidade, e digital, à digitalização, levando à descentralização da redação
jornalística (GOMES, 2017).
A mídia tradicional ou hegemônica tem se adaptado às transformações, embora
a essência das informações coletadas e fontes sejam as mesmas. Aos poucos, os
grandes meios de comunicação dão abertura ao chamado jornalismo colaborativo,
em outras palavras o crowdsourcing, potencializado pelos dispositivos móveis. De
acordo com Träsel (2010), a “ferramenta libera os repórteres de tarefas repetitivas e
de pouca exigência técnica, garantindo mais tempo para minerar pautas inovadoras e
informação realmente inédita”.
Em contraponto, a mídia alternativa é constituída por colaboradores, formados
ou não em jornalismo, que assumem o papel de comunicadores junto aos movimentos
sociais. Os midiativistas, munidos com câmeras de celulares, acesso às redes sociais
por meio da internet móvel e outros mecanismos de transmissão disponibilizados nas
plataformas digitais, remam contra a maré dos meios de comunicação hegemônicos
para levar não só imagens, mas informações narradas por vozes desconhecidas
(BITTENCOURT; PUHL, 2013).
A hegemonia de Gramsci remete à dominação, com ou sem consentimento, de
forma globalizada, arraigadas por ideias neoliberais e de democracia representativa,
que por fim só levam ao monopólio econômico e político do mundo, acrescido de
desigualdades sociais. É neste contexto que faíscas de resistência, simbolizadas
por lutas e disputas, entram em choque com o arsenal gigantesco da grande mídia
(GÓES, 2007). Peruzzo (2004) esclarece que, quando as classes dos setores sociais
manifestam insatisfação, questionam e reivindicam mudanças no poder público e capital
privado, e barganham pequenas conquistas, o poder contra-argumentativo é lançado.
“Para haver transformação social devem ser construídos novos valores culturais e
serem criados numa nova visão de mundo e de coesão social” (GÓES, 2007, p.3).
A partir disto nasce o que Gramsci chama de força contra-hegemônica, reconhecida
como aquela capaz de modificar e alterar dada estrutura social. O levante desta força
está nos movimentos sociais, conectados e divulgados pelos meios alternativos.
Nos últimos anos, a mídia alternativa digital ou midiativista começou a conquistar
voz no contexto atual. Foi em junho de 2013, que eclodiu nas redes sociais um grupo
chamado Narrativas Independentes Jornalismo em Ação, a Mídia Ninja, impulsionada
pela cobertura via streaming, no Facebook, do Movimento Passe Livre (MPL). A mídia
Ninja, ao contrário da hegemônica se utiliza, quase que exclusivamente do jornalismo
Ciências da Comunicação
Capítulo 4
34
colaborativo. Uma outra característica é ela estar atrelada a movimentos sociais com
ideologia declarada. Becker e Machado (2014) avaliam o modo de produção da mídia
como amadora, mas com grande força de testemunho, seja por conta da grande
quantidade de vídeos e fotos produzidas, como também do público alcançado pelas
redes sociais. A pluralidade toma o lugar do homogêneo.
No dia 14 de março de 2018, um novo evento fez borbulhar gritos por justiça
no Brasil e no mundo. A vereadora do PSOL e ativista dos direitos humanos Marielle
Franco foi assassinada quando voltava para casa às 21:30H, no Estácio, centro do
Rio de Janeiro. Em polvorosa, os meios de comunicação tradicionais divulgaram o
ocorrido, porém a Mídia Ninja só iria se manifestar no dia seguinte.
Dessa forma, o presente trabalho pretende analisar a produção noticiosa, no
formato audiovisual, com utilização dos dispositivos móveis, para confecção de
materiais acerca de movimentos desencadeados com o assassinato da vereadora
Marielle Franco. A plataforma tomada como base foi a página Mídia Ninja, da rede
social Facebook. A metodologia abordada foi estudo de caso com análise dos vídeos
produzidos no dia 15 de março de 2018 com as hashtags #AoVivo e #MariellePresente.
Ao todo, foram analisados 35 vídeos, publicados via streaming, editados pela própria
Mídia ou colaboradores.
2 | DISPOSITIVOS MÓVEIS PARA A CONSOLIDAÇÃO DO MODO DE PRODUÇÃO
ALTERNATIVO
Os portais e redações tradicionais são impactados com o processo de
convergência jornalística, na qual novos modelos convertem-se em multiplataformas.
A multimidialidade e convergência, personalização, interatividade, memória e
atualização contínua resultam em características do jornalismo digital (BARBOSA,
2013). Soma-se a esse contexto o potencial da mobilidade, que tem permitido formas
de produção e circulação de informações alternativas e instantâneas por indivíduos
não necessariamente profissionalizados e/ou organizados, desde que munidos de
acesso à rede e a um dispositivo para registro das imagens (REGO, 2016).
A mídia alternativa se apropria da funcionalidade dos dispositivos móveis para
dar uma nova roupagem aos movimentos sociais, como por exemplo, a construção
de um novo padrão com linguagens, rotinas e narrativas próprias da Rua-mídia. Isso
permite, pelo menos, a redução da assimetria, antes mais evidente e impositiva, que
caracterizava a tarefa do jornalista, considerado o portador da notícia e o seletor da
agenda, impactando não apenas o jornalismo, como também a rotina dos usuários
em seus mais diversos âmbitos (LUCHESSI, 2015; MISSAU, 2015; BECKER, 2016).
Conforme pondera Bentes (2014, p.331):
Ciências da Comunicação
Capítulo 4
35
Estamos diante de uma mobilização global político-afetiva nas ruas e nas redes.
Os ciclos de lutas globais tornaram-se referência e laboratório global das novas
lutas e nessas experiências as imagens em tempo real produzem outra qualidade
de relação com o presente e na constituição dos novos sujeitos políticos. Trata-se
de um impacto cognitivo-afetivo produzido pela transmissão ao vivo (streaming)
durante centenas de horas ininterruptas. As emissões ao vivo têm sido associadas
a posts, hashtags, tweets e memes online, para criar ondas de intensa participação
em que a experiência de tempo e de espaço, a partilha do sensível, a intensidade
da comoção e engajamento constroem um complexo sistema de espelhamento,
potencialização entre redes e ruas (BENTES, 2014, p.331).
Góes (2007) aborda o ciberespaço como palco da luta contra-hegemônica. A
internet é o abrigo onde os movimentos sociais, políticos e culturais se encontram
para se legitimar e alcançar suas bases sociais. Outro ponto é o baixo custo. As redes
sociais fornecem ferramentas que aumentam o poder de distribuição e de denúncia
das mazelas da sociedade. Castells (2001) aponta que a internet, neste caso, tornase um instrumento de transformação social. “Lá referenciam suas demandas, contam
suas histórias, denunciam seus opressores e potencializam suas bases sociais de
apoio. É no ciberespaço que suas histórias de luta estão registradas e onde suas
experiências podem ser somadas às de outros movimentos” (GÓES, 2007, p.7).
A mídia de rua destaca-se pela seleção (de pauta) e framing (enquadramento)
das notícias. Enquanto os meios tradicionais se preocupam com a forma de abordar
determinado acontecimento, filtrando informações e polindo os assuntos que serão
tratados, o midiativismo vai selecionar temas negligenciados, como a violação dos
direitos humanos ou casas de orixás que serão derrubadas para construir uma nova
praça, por exemplo. E o mais importante, dá vida às narrativas, o framing, na voz dos
movimentos sociais e/ou de quem sofre o problema. Há, o que Atton (2002) diz ser a
erupção dos gritos abafados para a sociedade com surdez seletiva.
Existe, portanto, um potencial para uma prática comunicacional mais cidadã.
Afinal, conforme argumenta Caballero (2012), em todo processo de apropriação há um
ato popular de transformação do sentido e da experiência; e, no processo de inclusão
digital, essa apropriação poderia ser de empoderamento e cidadania. No conceito de
cidadania, em consonância com Dourado, Lopes e Marques (2014), englobamos as
esferas civil, política e social, acreditando que o exercício dos direitos e deveres do
cidadão para com o Estado e com a comunidade perpassa diferentes âmbitos: público,
privado e governamental. Exercício esse que tem, hoje, a potencialidade de ocorrer
em tempo real e em diferentes plataformas tecnológicas, incluindo a televisão e os
dispositivos móveis.
Este fato é evidenciado durante a análise das transmissões ao vivo e vídeos
editados pela Mídia Ninja um dia após o assassinato de Marielle Franco. Mulheres
negras tomam a frente das marchas, usam o microfone para discursar poemas,
histórias de vida pela qual Marielle lutava em seus ativismos. A personalização do
framing em proximidade com o medo do silenciamento, da violência, crenças e sonhos
das mulheres negras são a extensão da força e sentimentos que o movimento erguido
Ciências da Comunicação
Capítulo 4
36
por Marielle buscava alcançar. Este é um dos papéis da mídia contra-hegemônica de
Gramsci reformulada através do tempo.
A Mídia Ninja fez emergir e deu visibilidade ao “pós-telespectador” de uma “pósTv”
nas redes, com manifestantes virtuais que participam ativamente dos protestos/
emissões discutindo, criticando, estimulando, observando e intervindo ativamente
nas transmissões em tempo real e se tornando uma referência por potencializar a
emergência de “ninjas” e midialivristas em todo o Brasil (BENTES, 2014, p. 331).
Embora o público da Mídia Ninja, no Facebook, seja restrito a um pouco mais
de dois milhões de inscritos, os vídeos sobre Marielle Franco entraram na espiral
de recirculação, abrangendo um número maior de pessoas, que apoiam ou não os
movimentos sociais desencadeados. Em dado momento, a hashtag #MariellePresente
ultrapassa a fronteira brasileira para outras nações.
3 | A MÍDIA NINJA NO CASO MARIELLE
Por volta das 21:30H, do dia 14 de março de 2018, Marielle voltava para casa após
reunião com membros de um movimento negro que participava. O carro conduzido por
Anderson Gomes com a ativista e sua assessora foi interceptado por outro veículo
não identificado no Estácio, próximo à Prefeitura do Rio de Janeiro. Vários tiros foram
disparados, nove acertaram o corpo de Marielle. Sem possibilidade de socorro, ela e
Anderson não resistiram aos ferimentos. Dias atrás, a vereadora havia criticado, nas
redes sociais, uma ação militar na favela de Acari. Mulher, negra, lésbica, Marielle
lutava em prol dos direitos humanos e desde fevereiro de 2018 operava o observatório
de segurança, da intervenção federal no Rio.
A notícia do assassinato foi repercutida minutos após o crime pelas mídias
nacionais. Na página do Facebook da Mídia Ninja foi postado o vídeo da campanha
de candidatura da vereadora, porém no dia 15 de março, a rede social começou a ser
movimentada com as chamadas live streaming, transmissões ao vivo em português,
acontecidas em seis capitais brasileiras: Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São
Paulo, Porto Alegre e Brasília. Esta última não participou da análise, pois foi recirculada
do site da TV Câmara. Naquele dia foram publicados 35 vídeos relacionados ao caso
Marielle produzidos, em sua maioria, por dispositivos móveis com as hashtags #AoVivo
e #MariellePresente, desde transmissões em tempo real e editadas pela Mídia Ninja
ou colaboradores.
Dos 35 vídeos, 24 são live streaming, 11 editados, 7 pela Mídia estudada e 4 por
contribuintes. A análise foi subdividida nestas três categorias e abordadas de forma
independente, sendo escolhidos de um a dois vídeos para ilustração do conteúdo no
presente artigo.
Bentes (2014) reflete sobre a importância das mídias livres na proposição de outras
estéticas, da quantidade de informações e transmissões ao vivo, “que se apropriam
das figuras de linguagem do próprio cinema, da televisão e das redes sociais” (p.332).
Ciências da Comunicação
Capítulo 4
37
Para a autora, os movimentos de câmera, que por vezes dão a impressão de correria
(câmera cega), as respirações, narrativa dos colaboradores e pessoas captadas na
rua transcendem o caráter documental das transmissões.
As emissões são singulares como o próprio imprevisível dos acontecimentos
nas ruas e ao mesmo tempo fazem emergir figuras de linguagem, gestos e atos
cinematográficos recorrentes: uma instável câmera subjetiva, câmera cega, o
oscilante dispositivo de câmera/celular anômala, narração em direto imprevisível,
autoperformance, plano-sequências extensos, edição na própria câmera.
Arriscaríamos dizer que nessas imagens a estética pode ser pensada como
um “resto”, o que sobra, o que sobrevive de uma intensa intercomunicabilidade
expressiva. São imagens que carregam a marca de quem afeta e é afetado de
forma violenta, colocando o corpo/câmera em cena e em ato. (BENTES, 2014,
p.333)
As transmissões ao vivo foram estabelecidas por dispositivos móveis em atos,
marchas, inclusive referentes ao velório de Marielle e Anderson, na Câmara dos
Vereadores do Rio. Os conteúdos possuem estilo amador, com ou sem narração do
portador do smartphone, inundados de ruídos, sem cortes, viabilizados, em certos
momentos, pela internet de telefonia móvel, 3G e 4G. Assim, os vídeos editados em
caráter urgente dão fôlego para as novas movimentações que vem a seguir.
Figura 01: Transmissão em tempo real feita por colaboradores da Mídia Ninja.
Fonte: captura de tela.
Além do compartilhamento de conteúdos audiovisuais on-line, o fenômeno de
convergência ocorre durante bate-papo desencadeado via streaming na rede social.
Esta é mais uma forma de interatividade e multiaplicabilidade da tecnologia digital
como fomentadora da democracia (SILVA, 2014). As tags redirecionam os internautas
para a página de transmissão, recurso utilizado nos sistemas de buscas das redes.
Os primeiros ao vivo do dia partiram de colaboradores na chamada “#AoVivo – Ato
em memória da guerreira Marielle Franco na tenda Povo Sem Medo, durante o Fórum
Social Mundial em Salvador”. O framing utilizado no primeiro streaming acompanha
passivamente os discursos de ordem política do evento sobre Marielle, enquanto surge
Ciências da Comunicação
Capítulo 4
38
um choro abafado por trás da câmera. A seleção (pauta) não se resume a homenagear
a ativista, mas também a reivindicar visibilidade para as minorias e manutenção da
luta por seus direitos. É neste formato que se insere a resistência contra-hegemônica
(GÓES, 2007).
O ato se transforma em jornada com o nome “Marcha #Mariellepresente direto do
Fórum Social Mundial”. A autora das imagens se propôs a contextualizar os fatos para
quem acabava de chegar, semelhante à programação do Radiojornalismo, mecanismo
que revela o imediatismo das imagens. Os enquadramentos são preservados, enquanto
discursos são proferidos por quem faz parte do movimento e se aglutina a ele.
Os 11 vídeos editados duram, em média, dois minutos e transmitem, de maneira
poética, mensagens sobre e para Marielle. Em alguns, nota-se a presença de vinheta,
indicando que aquela edição pertence à Mídia Ninja. A captação de imagens, formação
e montagem de conteúdo, etc., são realizadas por voluntários e o financiamento da
mídia ocorre por doações. Na descrição ou legenda do produto midiativista, percebe-
se o destaque para a voz daqueles que constituem o movimento, personalizando-o. O
uso de frames e sons capturados ao longo do dia, ressignificam e entoam a mensagem
que a mídia ativista se preocupa em repercutir.
As colaborações de produtos audiovisuais são selecionadas por meio de filtros
para compartilhamento manejados pela administração da página. Vídeos sem cortes,
embora gravados em ambientes pouco iluminados com o auxílio dos dispositivos
móveis entram no círculo de publicações, por conterem material de manifesto social, da
Mídia-Multidão e movimento de rua. Como afirma Bentes (2014), há alguns parâmetros
expressos na tipologia de produção e veiculação do audiovisual. Dentre eles, a autora
destaca o estado de atenção e urgência e a importância das vozes e ruídos.
A imersão do telespectador nas ruas pode ser comparada a um animal à
espreita, de sentidos aguçados, a contemplar o acontecimento. Os dispositivos
móveis empunhados pelos emissores das informações adquirem a forma de “animais
paranoides, uma câmera-dispositivo-corpo em fuga, em devir e deriva” (BENTES, 2014,
p.335). Assim, as imagens captadas pelos midiativistas interagem com a audiência
ao despertar múltiplas sensações na percepção das vozes, ruídos e movimentos de
câmera.
Ciências da Comunicação
Capítulo 4
39
Figura 02: Vídeo editado pela Mídia Ninja com legenda de grito oriundo dos manifestos próMarielle.
Fonte: captura de tela.
4 | DISCUSSÕES SOBRE O TEOR JORNALÍSTICO DA MÍDIA ALTERNATIVA
No site oficial da Mídia Ninja, o Narrativas Independentes Jornalismo em Ação
se declara partidário das causas sociais e não esconde sua inclinação política, como
a editoria de um jornal ou programa famoso dos meios de comunicação hegemônicos
o fazem, embora em muitos casos não literalmente.
Becker (2013) aponta que a produção colaborativa audiovisual, sobretudo a
apresentada pela midiativista, configura relatos plurais dos acontecimentos em relação
ao modelo empregado na grande mídia. A quantidade de ferramentas e tecnologias
digitais disponíveis não são suficientes para garantir a qualidade do material veiculado.
Dessa forma, a apropriação dos modelos empregados pela web e aplicativos chegam
de forma incipiente aos jornais televisivos. As programações da TV aberta começam
a passar por um período de adaptação para as telas dos smartphones e é cada vez
mais forte a presença do jornalismo colaborativo nesses tipos de mídia. Porém há de
se ter certa cautela.
Para Deuze (2013), a televisão ainda ocupa lugar estratégico na construção da
realidade cotidiana e assuntos como a ruptura cultural e a democratização, por meio
das transmissões por dispositivos móveis na rede, ainda são questões complexas. É
reconhecida a facilidade com a qual as informações são disseminadas, porém esta
não é a garantia de que o mesmo tratamento imparcial do mundo off-line seja dado
no mundo on-line. “O mundo on-line é cheio de protocolos que também controlam a
produção de informação e mediações na rede, que por sua vez produzem diversidade
cultural e singularidades tanto quanto aliança e tradicionalismo” (BECKER; MACHADO,
2014, p. 39).
Já Góes (2007) indica que a produção heterogênea na internet, com a presença
de personagens singulares dos movimentos sociais são características que a mídia
Ciências da Comunicação
Capítulo 4
40
alternativa carrega. Porém acreditar que as tecnologias digitais trouxeram uma nova
era para superar a hegemonia é um mito.
5 | CONCLUSÕES
Com efeito, a Mídia Ninja na plataforma Facebook movimenta mais de dois
milhões de pessoas. A produção audiovisual na rede é a força motriz da circulação
e recirculação de conteúdo, que conta com a participação voluntária de milhares de
pessoas no Brasil e em alguns países da América Latina e Europa. Outros serviços
como a fotografia e confecção de memes são pontuados na página.
O midiativismo encontrado na internet, segundo Góes (2007), anda de mãos
dadas com movimentos contra-hegemônicos capazes de mudar certas estruturas
sociais do meio. Foi neste contexto que ocorreu a elaboração do presente artigo
com o estudo de caso do Narrativas Independentes Jornalismo em Ação e análise
da produção audiovisual com dispositivos móveis desdobrada após o assassinato da
vereadora e ativista Marielle Franco.
Pode-se perceber que a seleção (de pauta) e framing (enquadramento),
empregados na rotina de produção de conteúdo audiovisual estavam voltados para os
personagens que compunham os movimentos de rua do dia 15 de março de 2018. A
maioria dos vídeos produzidos no canal de transmissões live streaming, contabilizadas
em 24 dos 35 vídeos analisados. Destes, 11 foram editados pela Mídia Ninja ou cedidos
por colaboradores. Para efeito de localização, as legendas vinham acompanhadas
das tags: #MariellePresente e #AoVivo.
Bentes (2014) destaca o arquétipo audiovisual empregado pelos midialivristas
como próximo ao cinema, que se utiliza de elementos sonoros e movimentos de
câmera que denotam ação, estados de alerta, percepção do território e sensibilizam
o espectador como se este participasse fisicamente do manifesto ou outro ato de
cobertura no ao vivo. As transmissões podem ser localizadas pelas tags, característica
que só o meio digital tem acesso. Com elas é possível encontrar, por meio dos
mecanismos de busca das redes sociais, conteúdos afins.
A mídia alternativa aqui estudada se autodeclara partidária a movimentos sociais
e ideologias, fato que traz questionamentos quanto ao teor jornalístico empregado na
produção. Entretanto, Becker e Machado (2014) apontam a importância histórica de
registro e heterogeneidade das vozes representadas na web. Os meios hegemônicos
de comunicação, aos poucos começam a se utilizar das ferramentas digitais e do
jornalismo colaborativo para confecção do material noticioso, além de alcançar outras
plataformas além da TV, como é o caso da adaptação das programações jornalísticas
aos aplicativos para smartphones.
A produção audiovisual do caso Marielle na Mídia Ninja repercutiu o seio dos
movimentos sociais desencadeados em seis estados brasileiros, dando visibilidade
Ciências da Comunicação
Capítulo 4
41
e autonomia às múltiplas vozes que compõem as manifestações em prol dos direitos
humanos e ainda ecoam nos conteúdos contra-hegemônicos.
REFERÊNCIAS
ATTON, Chris. Approaching Alternative Media: Theory and Methodology. Scotland: Napier
University, 2001.
BARBOSA, Suzana. Jornalismo convergente e continuum multimídia na quinta geração do
jornalismo nas redes digitais. In: CANAVILHAS, J. (Org). Notícias e Mobilidade. O Jornalismo na
Era dos Dispositivos Móveis. Covilhã, PT: Livros LabCOM, 2013. p. 33-54.
BECKER, B. A linguagem do Telejornal: um Estudo da Cobertura dos 500 Anos do Descobrimento
do Brasil. Rio de Janeiro: E-papers, 2005.
BECKER, Beatriz; MACHADO, Monica. “Brasil entre as telas e as ruas: Produção e consumo das
narrativas jornalísticas audiovisuais sobre os protestos nacionais de junho de 2013”. In.: Discursos
fotográficos. Londrina: UEL, v.10, n.17, p.39-60, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://www.uel.br/
revistas/uel/index.php/discursosfotograficos/ article/download/19604/15720>. Acesso em 10 jun. 2018.
BECKER, Maria Lúcia. Convergente por formação: o novo paradigma e os desafios para as futuras
gerações profissionais e os cursos de jornalismo. Âncora: Revista Latino-americana de Jornalismo.
Ano 3, vol.3, n.1. João Pessoa: jan-jun/2016, p.100-124.
BENTES, Ivana. Estéticas Insurgentes e Mídia-Multidão. In: Revista, Rio de Janeiro, v.10, n.1,
p.330-343, maio 2014. Disponível em:< http://revista.ibict.br/liinc/article/view/3552/3049>. Acesso em
13 jun. 2018.
BITTENCOURT, Maria Clara de Aquino; PUHL, Paula Regina. As apropriações midiáticas e atores
sociais na cobertura convergente das manifestações pela TV Folha. In: PORCELLO, F. et. Al.
#telejornalismo: nas ruas e nas telas. Editora Insular, Florianópolis, 2013, p. 65-86.
CABALLERO, Francisco Sierra. Cidadania, comunicação e ciberdemocracia: uma leitura crítica da
comunicação e o desenvolvimento social. In: SOARES, Murilo César et al (Orgs.). Mídia e cidadania:
conexões emergentes. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012, pp.37-54.
CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
DEUZE, M.Viver como um Zumbi na Mídia (É o único meio de sobreviver). Matrizes, São Paulo: USP,
v. 7, n. 2, 2013. Disponível em: <http://www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/article/view/478>.
Acesso em: 12 jun. 2018.
DOURADO, Jacqueline Lima; LOPES, Denise Maria Moura da Siva; MARQUES, Renan da Silva.
Do pacato cidadão, da voz rouca das ruas aos gritos dos incluídos. In: SAID, Gustavo Fortes;
DOURADO, Jacqueline Lima. O delírio é um desejo. Teresina: EDUFPI, 2014, pp.49-53.
GÓES, L.T. Contra-hegemonia e Internet: Gramsci e a Mídia Alternativa dos Movimentos Sociais na
Web. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. IX Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Nordeste –Salvador – BA, 2007.
GOMES, D.B. AS FONTES ALTERNATIVAS NO WEBJORNALISMO: um estudo comparativo entre
as publicações on-line dos Jornalistas Livres e da Folha de S. Paulo. Monografia apresentada à
Universidade Federal do Piauí, Teresina-PI, 2017.
Ciências da Comunicação
Capítulo 4
42
PALACIOS, Marcos. Jornalismo online: apontamentos para debate. Disponível em: <http://www.
facom.ufba.br/jol/pdf/2002_palacios_informacaomemoria.pd f>. Acesso em: 02 jun. 2018.
LUCHESSI, Lila. Nuevas rutinas, diferente calidad. In: IRIGARAY, Fernando; LOVATO, Anahí (eds.).
Producciones transmedia de no ficción: Análisis, experiencias y tecnologías. Rosario: UNR
Editora, 2015, p.12-25.
MISSAU, Lucas Durr. Periodismo en dispositivos móviles: una contribución para la movilidad
urbana por medio del paradigma de la religancia. In: IRIGARAY, Fernando; LOVATO, Anahí (eds.).
Producciones transmedia de no ficción: Análisis, experiencias y tecnologías. Rosario: UNR
Editora, 2015, p.91-102.
PERUZZO, Cicília Maria Krohling. Comunicação nos movimentos populares. Petrópolis:
Vozes, 2004.
REGO, Alita Villas Boas de Sá. Transformações nas práticas narrativas audiovisuais na era pósmídia. Comunicação & Inovação, PPGCOM/USCS. V. 17, n. 33. São Caetano do Sul, jan-abr 2016,
p.66-78.
SILVA, Fernando Firmino da. Jornalismo móvel digital: uso das tecnologias móveis digitais e a
reconfiguração das rotinas de produção da reportagem de campo. 2013.
TRÄSEL, Marcelo. “Não existe mais informação exclusiva”, diz Marcelo Träsel. 2010. Disponível
em: <https://webmanario.com/2010/01/11/nao-existe-mais-informacao-exclusiva-diz-marcelo-trasel >
Acesso em: 13 jun. 2018 (sem numeração).
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
Ciências da Comunicação
Capítulo 4
43
CAPÍTULO 5
MANIFESTAÇÕES EM MEGAEVENTOS:
APONTAMENTOS SOBRE A COBERTURA DO SITE G1
E MÍDIA NINJA DA COPA DO MUNDO 2014
Milton Julio Faccin
Universidade Estácio de Sá
Rio de Janeiro – RJ
Marcelo Vinícius Masseno Viana
Universidade Estácio de Sá
Rio de Janeiro – RJ
RESUMO: Os grandes eventos têm se tornado
um dos principais focos de interesse das
municipalidades, pois possibilitam que as
cidades se projetem mundialmente. Capitalizar
uma imagem favorável é uma da principais
metas dos organizadores, que dependem da
mídia para a cidade sede ter melhor visibilidade
no espaço público. Fatores como mobilizações
sociais podem provocar fissuras na imagem
desses locais e tem mudado suas estratégias
com o advento das redes sociais. O presente
artigo é resultado de uma pesquisa realizada
em 2015 e que levantou dados da cobertura
jornalística no período que antecedeu a Copa
das Confederações no Brasil, em 2014. Foi
analisado o funcionamento discursivo de dois
veículos digitais: o portal G1 (http://g1.globo.
com), de propriedade do Grupo Globo, e o
site colaborativo Mídia Ninja (https://ninja.
oximity.com/), criado em 2013, como parte
de um movimento chamado Midiativismo
(uma rede de comunicadores que produzem
e distribuem informação em movimento,
Ciências da Comunicação
agindo e comunicando). Respectivamente,
eles representam de um lado aqueles
veículos empresariais dos grandes grupos de
comunicação e de outro aqueles que pertencem
a grupos independentes.
PALAVRAS CHAVE: Visibilidade social;
megaevento; movimento social; redes sociais;
Copa do Mundo.
ABSTRACT: Great events have become a
major focus of interest of municipalities, as they
allow that cities will project worldwide. Capitalize
a favorable image is one of the main goals of
the organizers, who depend on the media to
the host city to have better visibility in the public
space. Factors such as social mobilizations can
cause cracks in the image of these places and
have changed their strategies with the advent
of social networks. This article is the result of
a survey conducted in 2015 and collected
data from media coverage in the run-up to the
Confederations Cup in Brazil in 2014. It was
analyzed the discursive operation of two digital
vehicles: the G1 website (http: // g1.globo.
com), owned by Globo Organizations, and the
collaborative Midia Ninja (https://ninja.oximity.
com/), created in 2013 as part of a movement
called Midiativismo [“media-activism”] (a
network of communicators who produce and
distribute information in motion, acting and
communicating). Respectively, they represent
Capítulo 5
44
those corporate vehicles of large media groups at one side and at the other the ones
who belong to the independent groups.
KEYWORDS: :Social visibility; great events; social movements; social networks; World
Cup.
INTRODUÇÃO
O advento dos núcleos urbanos e o desenvolvimento do sistema de transportes
nas sociedades modernas, aliados às potencialidades tecnológicas de transmissão de
informação e de comunicação favoreceram o aumento dos eventos em escala mundial.
Se na Antiguidade eles se reduziam a encontros locais, hoje eles são multifacetados
podendo ser acompanhado, inclusive, de forma simultânea em diferentes países, como
é o caso da cerimônia do Oscar, em Los Angeles, nos Estados Unidos. Matias avalia
que “(…) sem dúvida a Revolução Industrial foi o grande impulso na área dos eventos,
onde proporcionou grandes transformações na sociedade” (Matias, 2002, p.71).
Ao traçar a trajetória histórica dos eventos nas sociedades, alguns autores
revelam que eles fazem parte da vida cotidiana desde quando o homem se reunia em
torno da caça, na Pré-História. De acordo com Matias (2002), o primeiro evento que se
tem notícias da História foram os Jogos Olímpicos da Era Antiga, datados de 776 a.C,
realizado na cidade grega de Olímpia. Devido ao seu sucesso, ele foi repetido a cada
quatro anos durante mais de mil anos, expandindo-se, inclusive, para outras cidades
gregas até a Idade Média, quando ficou suspenso por séculos até retornar em 1896.
Os Jogos Olímpicos tornaram-se tão importantes que até as guerras eram suspensas
naquela época, durante o período da sua realização.
Outro exemplo eram os chamados Congressos, realizados em Corinto, na
Grécia, em 377 a.C, em que os delegados das cidades gregas se reuniam para
discutir questões de interesse público. Na avaliação de Matias, tais eventos deram
àquele país a fama de difusor do espírito de hospitalidade, organização, adequação da
infraestrutura logística e segurança nas estradas. Já durante a Idade Média, mesmo
com incidência menor de grandes eventos,
teatral e comercial (feiras).
destacaram-se os de caráter religioso,
Atualmente, há uma vasta literatura sobre o assunto, pesquisas de marketing e
técnicas que orientam a preparação para um evento de sucesso. Em seu sentido léxico,
evento representa um acontecimento (festa, espetáculo, comemoração, solenidade
etc.) organizado por especialistas, com objetivos institucionais, comunitários ou
promocionais. Para Meireles, a reunião caracteriza-se como o embrião de todos os
tipos de eventos. Segundo o autor, “(...) trata-se do encontro de duas ou mais pessoas,
a fim de discutir, debater e solucionar questões sobre determinado tema relacionado
com suas áreas de atividade”. (Meireles, 1999, p.30)
No entender de Poit, “(...) evento é um acontecimento previamente planejado,
Ciências da Comunicação
Capítulo 5
45
com objetivos claramente definidos” (2006, p. 19). Ella explica que eles têm um perfil
marcante: esportivo, social, cultural, filantrópico, religioso, entre outros. Sua realização
obedece a um cronograma e uma de suas metas é a interação entre seus participantes,
público, personalidades e entidades.
As redes sociais alastraram o leque de possibilidades no sentido de organização,
natureza, mobilização humana, divulgação e visibilidade social dos eventos. Dentre as
sua diferentes contribuições está a sua potencialidade de criar vínculos, não apenas
entre seus participantes, mas com os locais onde ocorrem. É o caso, por exemplo, dos
eventos esportivos realizados em escala mundial. Tanto é verdade que em relação ao
Brasil o governo federal publicou, em 2008, através do Ministério do Esporte, um livro
intitulado O legado dos megaeventos esportivos”, contendo 608 páginas. Nele, 71
autores brasileiros e quatro estrangeiros, pertencentes a 35 universidades, apresentam
o resultado de suas pesquisas, desde análises de impacto financeiro, cultural e social,
até levantamento de percepção de imaginário, estratégias de marketing, educação e
mídia.
O sucesso de um evento depende da construção de um clima favorável, pois
ele necessita a adesão de um grande número de pessoas para atingir os seus
propósitos. A sua ocorrência é apenas o ápice do processo de preparação que inicia
com muito tempo de antecedência. Para isso, a mídia torna-se aliada fundamental dos
organizadores. No caso do jornalismo, se eles não conseguirem conquistar parceria,
o evento fica vulnerável à forma que os diferentes veículos mobilizam seus discursos.
No caso do Brasil, a preparação da Copa das Confederações de Futebol, em
2014, foi antecedida por protestos pelas ruas, com repercussão mundial. A principal
bandeira de ordem dos manifestantes foi: “não vai ter copa”. Esse cenário criou
um clima de instabilidade para o evento, rompendo, de certa forma, com a euforia
que faz esquecer os problemas durante a realização de qualquer grande evento.
Os movimentos sociais que lutavam pelas modificações na estrutura sócio-política
brasileira viram naquele momento a oportunidade de dar visibilidade a seus ideais.
Para isso, fizeram uso da vitrine proporcionada pelo evento Copa para colocarem
em evidência suas reivindicações. A grande mídia passou a cobrir jornalisticamente
todos os episódios das manifestações públicas, que acabou sendo relacionado com o
evento Copa. Assim, o jornalismo passou a direcionar olhares sobre o evento, orientar
interpretações e especular seus desdobramentos e responsabilidades.
MEGAEVENTOS E A PROJEÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Dentre as beneficies decorrentes de um evento com proporções internacionais,
denominado aqui de megaevento - destaca-se o turismo, que vem sendo um recurso
fundamental para popularizar cidades e países em um mercado cada vez mais
amplo. Esse setor tem se mostrado fundamental para a economia contemporânea,
Ciências da Comunicação
Capítulo 5
46
mas também para um mercado simbólico que projeta imagens e oxigena culturas em
espaços citadinos que sofrem intervenções urbanísticas, arquitetônicas e veem surgir
projetos de revitalização tanto estrutural e ações sociais que repercutem diretamente
no orgulho local, gerando um debate sobre o pertencimento territorial, cujo sucesso
dependerá da performance multimidiática das forças envolvidas no processo.
O desempenho em termos de organização e o nível de engajamento da população
de cada cidade sede de um megaevento acaba refletindo na imagem de cada cidade
sede do megaevento, consequentemente do país. Por isso mesmo elas são visadas
pela imprensa internacional, desde o momento em que são escolhidas para sediar
o megaevento até a cerimônia final. Além de acompanhar a preparação do grande
espetáculo, a imprensa exerce relevante poder de intervenção na esfera pública,
criando expectativas, debates e formas de representações da cidade, a medida em
que mobiliza um discurso capaz de orientar, esclarecer, explicar, especular e cobrar
ações dos organizadores., inclusive em termos de problemas sociais, políticos e
econômicos.
Pesavento atenta para o momento de espera para o qual vive uma cidade
escolhida para sediar um megaevento:
“A transformação da cidade desencadeia uma luta de representações entre o
progresso e a tradição: uma cidade moderna é aquela que destrói para construir,
arrasando para embelezar, realizando cirurgias urbanas para redesenhar o espaço
em função da técnica, da higiene, da estética”. (Pesavento, 2014, 79)
O artifício de arrumar a casa é também forte argumento para as cidades
conseguirem capitalizar uma imagem favorável internacionalmente. No caso do Brasil,
já em 1908 o Rio de Janeiro entrara na mira dos megaeventos, quando a cidade
se preparou para sediar a Exposição Universal, recebendo mais de um milhão de
pessoas. Para Ricardo Freitas, naquela época, a cidade já começava a ser vista como
uma cidade-espetáculo. Por suas palavras, “(...) o Rio de Janeiro começa a construir
um conceito de cidade que sabe recepcionar os estrangeiros, com grande interferência
da arquitetura, dos negócios e da comunicação” (Freitas, 2011). Nessa mesma linha,
Rafael Soares Gonçalves revela que a Exposição Internacional Comemorativa do
Centenário da Independência do Brasil, ocorrida na cidade em 1922 também se
destacara por receber inúmeras delegações estrangeiras, permitindo, com isso, “a
inserção do país na modernidade” (Gonçalves, 2013).
Outros megaeventos também projetaram o Rio de Janeiro no cenário mundial,
como a Copa do Mundo de 1950, em que a cidade foi palco da partida final ocorrida
no estádio Mário Filho (Maracanã), com a derrota do Brasil por um a zero contra a
seleção do Uruguai. Pode-se citar, também, a Conferência das Nações Unidas para
o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco 92) e os Jogos Pan-americanos de 2007,
além da Copa das Confederações, em 2013. Nesta, o Ministério do Turismo (2013)
contabilizou mais de 25 mil turistas estrangeiros, sendo a cidade do Rio de Janeiro a
mais visitada do país (67,5%). Esse percentual aumentou na Copa das Confederações
Ciências da Comunicação
Capítulo 5
47
de 2014, quando 70,7% dos turistas no Brasil visitaram o Rio de Janeiro. Eventos mais
recentes como a Jornada Mundial da Juventude, em 2014, que atraiu 3,7 milhões de
visitantes revela o potencial da cidade para abrigar grandes eventos.
Dentre os megaeventos do calendário da cidade, o Rio de Janeiro tem
protagonizado grandes shows, como as edições do Rock in Rio, em 1985, 2013 e
2015, além do tradicional Carnaval, conhecido mundialmente. Andrea Semprini explica
que, no caso do esporte, os megaeventos atraem marcas de empresas mundiais, que
tem a intenção de gastar muito dinheiro, já que esses eventos contam com um público
global.
“A midiatização dos grandes eventos atrai um público planetário, que atrai, por
sua vez, anunciantes de prestígio e prontos a pagar preços muito altos (...) Em
um espaço pós-moderno, as lógicas do espetáculo e a das marcas, encontram
no esporte um catalizador particularmente poderoso e articulam-se conforme um
mecanismo de ajuste recíproco.” (Semprini, 2008, 266)
Em um país cercado de belezas naturais como o Brasil, a cidade do Rio de Janeiro
é, para os turistas, a que mais se destaca, até porque está em uma posição geográfica
privilegiada, pois favorece o deslocamento humano. Uma pesquisa do Ministério
da Cultura (2014) revela que em 2014 mais de 1,6 milhões de turistas estrangeiros
visitaram a cidade. Apenas a festa de Réveillon por si só costuma reunir anualmente
cerca de dois milhões de turistas na praia de Copacabana. O Rio de Janeiro foi a
única cidade brasileira entre as cem mais visitadas por turistas em 2013 (O Globo,
2015). Gonçalves (2013) avalia que os Jogos Pan Americanos de 2007 podem ser
considerados o divisor de águas na cidade, já que esse evento foi marcado pela “(...)
a confluência de interesses das três esferas do poder (União, Estado e município)”.
Pesavento (1997, p. 13) pondera que os megaeventos realizados na cidade
possibilitam a criação de um “imaginário de sonho e desejos (…) marcados pela
monumentalidade em todas as suas dimensões e invadindo todos os setores da vida
social”. As ações desenvolvidas pela sua organização possibilitariam a produção de
sentimentos coletivos - positiva ou negativamente – a medida em que a população
experimenta a concretização desses sonhos e desejos. Nesta vitrine de megaeventos,
a cidade do Rio de Janeiro torna-se uma importante marca comercializada, atraindo
turistas e negócios, além de se projetar mundialmente, através das diferentes formas
de visibilidade midiática.
OS MEGAEVENTOS, A CIDADE E OS MOVIMENTOS SOCIAIS
O pesquisador Henrique Freitas (2014) caracteriza os megaeventos a partir de
quatro fatores. O primeiro deles, é a capacidade de ecoar antes, durante e depois da
sua realização. O segundo, refere-se à capacidade de atração de um grande público
através dos meios de comunicação social e das mídias sociais. O terceiro fator, é a
capacidade de gerar um debate social a medida em que vira pauta de interesse de
Ciências da Comunicação
Capítulo 5
48
diferentes setores. Por último, é a avaliação do impacto econômico que ele provoca.
Levando-se em consideração tais aspectos, para garantir o sucesso dos
megaeventos, os organizadores promovem ações com o objetivo de mobilizar os
diferentes setores público e privado da sociedade. Assim, contam com os veículos de
comunicação que divulgam campanhas sociais e de marketing, além de promoverem
um debate público para garantir o engajamento humano. Semprini (2008, p. 271)
avalia que “(...) as mídias ocupam um lugar absolutamente especial no espaço pósmoderno, no qual uma das características é precisamente a sua onipresença”. Pelo
seu poder discursivo, que seleciona, edita, hierarquiza e nomeia fatos do cotidiano a
partir de regras e normas particulares de produção, o jornalismo tem a capacidade de
apresentar para a sociedade tanto o que seria a realidade quanto os argumentos que
alimentam, em grande parte, o debate na esfera pública.
Mas, se por um lado, há um trabalho dos organizadores dos megaeventos para
gerar uma imagem positiva em relação à cidade sede, por outro, os problemas sociais,
econômicos, políticos e estruturais, também tornam-se visíveis. Entre eles, assuntos
como a exploração sexual e a violência urbana são recorrentes na agenda pública,
bem como a ocorrência dos movimentos sociais, que aproveitam os megaeventos
para, além de pressionar as lideranças locais, sensibilizar a sociedade mundial em
prol das suas reivindicações.
Na recente história do Brasil, pode-se encontrar exemplos de ações de
movimentos sociais que conseguiram repercussão internacional como aquele que
resultou no fim do redime ditatorial militar, em 1988. A votação contrária do projeto de
Emenda Constitucional Dante de Oliveira, 25 de abril de 1984, que previa o fim dos
colégios eleitorais e a volta das eleições diretas, especialmente para presidente da
República foi o estopim que faltava para levar muita gente às ruas em todo o País,
dando início a um movimento chamado de “Diretas já”. Esse resultou na elaboração
de uma nova Constituição, em 1988, e à volta das eleições diretas no ano seguinte.
Outro exemplo é o que ocorreu em 1992, quando a população foi às ruas em
um movimento chamado “Caras-pintadas”, nome dado aos jovens que saíram às ruas
com o objetivo de pedir o impeachment do então presidente da República, Fernando
Collor de Mello. Tanto que a União Nacional dos Estudantes protagonizou uma das
maiores passeatas contra Collor. Para Luiz Antônio Dias, o movimento “Caras-pintadas”
nasceu e se desenvolveu entre os jovens de 16 a 18 anos, que entravam no cenário
político naquele momento e votaram em Collor, sendo assim, “sentiram-se traídos ao
perceberem que apesar do discurso modernizante e inovador, Collor representava, na
realidade, a velha política tradicional de favorecimento e corrupção” (Dias, 2015). Além
dos estudantes, esse movimento teve grande participação da população, artistas,
intelectuais, religiosos e lideranças sindicais em todo território nacional.
Protestos contra o aumento das tarifas do transporte público em algumas capitais
brasileiras, também é outro exemplo de mobilização de grande repercussão, ocorridos
em 2013, e que se alastraram até a Copa das Confederações no Brasil, em 2014.
Ciências da Comunicação
Capítulo 5
49
Com grande repercussão midiática e um intenso uso da internet através das redes
sociais, o movimento levou milhares de pessoas às ruas em todo território nacional,
para demonstrar insatisfação aos possíveis usos de recursos públicos a obras de
preparação para a Copa. Gilberto Maringoni (2015) relata que essa manifestação
contestava os gastos públicos com as construções de estádios, o desenvolvimento de
infraestrutura para os jogos e as intervenções urbanas, exigências impostas pela Fifa
para que o país pudesse receber o mundial. Com o tempo, o movimento incluiu em
sua pauta de reivindicações a melhoria nos setores educacional e da saúde, controle
nos gastos da Copa e o fim da violência praticada pela polícia.
Passeatas como as do “Passe Livre” e “Não Vai Ter Copa” acabaram repercutindo
internacionalmente, criando a imagem de um país vulnerável ao desenrolar dos
acontecimentos e aos discursos jornalísticos disponíveis. De acordo com dados de
Ricardo Antunes, as manifestações diárias atingiram seu ponto culminante em 17 de
junho, com mais de 70 mil participantes em São Paulo, dezenas de milhares no Rio
de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e outras cidades, contabilizando quase 400
cidades, incluindo 22 capitais (Antunes, 2013).
O papel das redes sociais foi fundamental neste caso. Isso porque após o
surgimento da internet 2.0, os movimentos sociais ganharam força e se proliferaram
no ciberespaço. Ao avaliar esse tipo de organização, Castells (2012, p. 160) esclarece
que, embora tenham articulação nas redes sociais, os movimentos tendem a ocupar
o espaço urbano das cidades. Eles encontraram na web um canal de propaganda
ideológica sem limites, que permite agilmente convocar passeatas em todo país sem
custo financeiro, através de interfaces digitais como páginas no Facebook, fan pages,
sites, twitter e blogs para então saírem às ruas.
ENTREMEIOS JORNALÍSTICOS E VISIBILIDADE SOCIAL
Há pelo menos dois séculos, o jornalismo mundial tem construído o seu papel
junto à sociedade com base em um paradigma focado na neutralidade da informação
noticiosa e, por isso mesmo, o representante legítimo dos interesses da sociedade,
defensor do bem comum e com capacidade profissional para dar visibilidade pública a
temas sociais que servirão de referência para a formação da opinião pública.
De mera modalidade de transmissão cultural, um artefato simbólico da indústria
cultural, o jornalismo atual aparece como “forma de relação social” (Rodrigues, 1997,
p.96.) e instância mediadora das necessidades e interesses coletivos. Torna-se, pois,
um espaço privilegiado da dimensão da sociabilidade contemporânea porque concorre
a uma “nova forma de visibilidade social (...) e produz uma dilatação do espaço público”
(Imbert, 1984. p.115). Concorre porque nas últimas décadas tem perdido espaço para
as novas instâncias de mediação social. Até então mediadas pela prática jornalística
as manifestações dos sujeitos na esfera pública partem agora de um nova forma de
Ciências da Comunicação
Capítulo 5
50
sociabilidade e de representação do social, que instauram também novas formas de
visibilidade, sem depender da seleção de fatos e opiniões pela imprensa.
A essas novas formas de visibilidade social, Imbert (1984, p, 130-34) relaciona
quatro fatores que marcam a sua feição: a) ostentação dos aparatos de representação
(mediatização dos processos eleitorais e da vida política em geral, por exemplo); b)
representação dos atores coletivos em suas diferentes encarnações (povo, nação,
eleitores projetados nas simulações estatísticas, por exemplo); c) visibilização dos
atores sociais através de seus representantes (porta-vozes, instituições, associações,
organizações, por exemplo); d) publicação da privacidade mediante um processo
generalizado de espetacularização, como por exemplo o reforço da cultura de
massa como semiocracia, que permitiria a participação coletiva de membros de um
determinado grupo (social, político, acadêmico, artístico entre outros).
Rodrigues (1996, p.41) ensina que o jornalismo tem uma competência discursiva
de dessacralização das esferas privadas, tornando seus discursos, suas ideias, suas
plataformas abertos a todos. Assim, enquanto os diferentes setores da sociedade
possuiriam um domínio específico da experiência, transformando seus discursos
incompreensíveis e opacos, o jornalismo, pelo contrário, tende a transformar esses
transparentes e universalmente compreensíveis na esfera pública. Tal dessacralização
está relacionada ao estatuto da transparência do seu trabalho jornalístico que, ao dar
inteligibilidade social, exerce seu poder de formador de consensos (p.157).
Nessa linha tênue do tecido social de atuação do jornalismo é que se posicionou
a cobertura do caso analisado - a cobertura das manifestações que antecederam a
Copa do Mundo de 2014, no Brasil. Para a análise, seguiu-se parte da metodologia
proposta por Christa Berger (2015), em sua tese de doutorado intitulada “Campos
em confronto: Jornalismo e Movimentos Sociais”. Foram produzidas 29 tabelas a
partir de dados coletados nas matérias publicadas no site G1 e Mídia Ninja sobre as
manifestações sociais entre os dias 11 de 18 de junho de 2014. Foram identificados
o narrador das matérias, o personagem principal - tanto na ação de quanto no papel
de -, o local de ocorrência e a interação com outros atores apresentados nos relatos
jornalísticos. As tabelas foram divididas em duas categorias: a primeira com dados
das notícias que obtiveram envolvimento de manifestações populares contra a Copa
2014 ou que tiveram o tema Copa do Mundo no Brasil; a segunda, com dados de
notícias relacionadas ao dia-a-dia da população do Rio de Janeiro no período do
evento. Buscou-se, também, reconhecer as formas de nomeação dos fatos dos sites
analisados.
NUANCES DA COBERTURA: NOTAS CONCLUSIVAS
De modo geral, nota-se que as manifestações de 2014 contra o fato do Brasil
ser sede da Copa do Mundo da Fifa foi o ponto central do agendamento da mídia de
Ciências da Comunicação
Capítulo 5
51
qualquer inclinação ideológica. No site Midia Ninja, essa postura reverberou de modo
mais explícito antes, durante e depois da Copa. As operações de nomeação do que
estava ocorrendo na cidade demonstra a inclinação para um discurso bélico. Termos
como protesto, manifestantes, violência, confronto, intimidação, reivindicações,
prisão, reprimidos, militarização, direito, violação, bomba, letal foram utilizados
constantemente no texto noticioso, em um total de 76 aparições. Dessa forma, o
valor-notícia que norteia esse veículo é carregado de um olhar contra o megaevento,
mas não é só isso, também é contra a abordagem violenta praticada pelas forças
policiais. Tais designações léxicas marcam a linha editorial do veículo, a qual dá
ênfase a um discurso impregnado de subjetividade sobre os acontecimentos, através
das notícias carregadas de valores, tais como “defesa do direito à manifestação”,
“agressividade exacerbada no confronto entre manifestantes e policiais com o uso de
bombas, explosivos e arma de fabricação caseira”. Essas ações acarretaram prisões
e detenções que, segundo o site Mídia Ninja, foram violações e cerceamento dos
direitos que cabem a um cidadão livre.
Isso fica evidente quando se identifica o uso e a repetição constante de palavras
como violência, violentamente, violência policial, confronto, dispersou, intimidação,
Black Blocs, atacou, discussão, espancam. Esses vocábulos aparecem quinze vezes
nos textos analisados, o que denota que jornalistas, colaboradores, participantes que
compõem a construção da notícia no site da Mídia Ninja procuraram evidenciar a
manifestação como um protesto. E, quando pontuavam fatos que levaram à violência
física, deixaram claro que tais acontecimentos partiram do lado oposto, ou seja, da
polícia. Dessa forma, deixaram claros seus filtros e linha editorial, reconhecidos pelo
seu público.
Já o site de notícia G1, que faz parte do Grupo Globo, agenda os transtornos
causados pelas manifestações de modo mais contundente, pautando diversos relatos
sobre os problemas contra o patrimônio público e privado decorrentes da ação dos
manifestantes nas ruas. Pela forma de nomeação dos atuantes, nota-se um forte
apelo para classifica-los como um grupo de pessoas que atentam contra a ordem
pública. Termos como bomba, explosivo, coquetéis molotov, protesto, detenções,
prisão, violência, Black Blocs, mascarados, vândalos, depredaram, confronto, tumulto
estiveram muito presente na cobertura, totalizando 72 ocorrências. Como é um veículo
que faz parte da grande mídia, através do seu discurso o G1 tenta desvincular as
manifestações sociais do megaevento Copa do Mundo, já que o mundo estaria voltado
para o campeonato.
Sendo assim, presume-se que os protestos contra a realização da Copa do Mundo
não poderiam ser matéria noticiosa para esse veículo, especialmente se tiver um viés
social. Dessa forma, através das palavras-chave pode ser identificado o processo de
agendamento da notícia do G1, no qual tais acontecimentos só viraram notícias quando
os enfoques foram atrelados a atitudes individualizadas de “baderneiros agressivos”
e não para as reivindicações sociais dessas mobilizações. Tanto é que termos como
Ciências da Comunicação
Capítulo 5
52
bomba caseira, bomba de gás lacrimogênio, explosivo, explode, coquetéis molotov,
bomba de efeito moral, bala de borracha, cassetete, spray de pimenta, letal ocupam a
primeira colocação na contagem dos dados.
REFERÊNCIAS
Antunes, R. Osal - Observatório social de América Latina. Buenos Aires: n.34, Clacso, 2013.
Berger, C. Campos em confronto - jornalismo e movimentos sociais: as relações entre o
Movimento Sem Terra e a Zero Hora. Disponível em http://bocc.ubi.pt/pag/berger-christa-campos-0.
html. Acesso em: 17/11/2015, 12h40.
Castells, M. Rede de indignação e esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
Dias, L.A. Política e participação juvenil. Disponível em http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/
arquivos/File/2010/artigos_teses/2010/Historia/artigos/8dias_luiz_artigo.pdf. Acesso em 20/09/2015,
16h30.
Freitas, R. Rio de Janeiro, lugar de eventos: das exposições do início do século XX aos
megaeventos contemporâneos. XX Encontro da Compós/UFRS. Porto Alegre: Anais, 2011.
Gonçalves, R.S. Cidade espetáculo e grandes eventos no Rio de Janeiro em uma perspectivas
histórica. Disponível em http://www.simpurb2013.com.br/wp-content/uploads/ 2013/11/GT12_Rafael.
pdf. Acesso em: 22/09/2015, 18h30.
Imbert. G. Sujeto y espacio público en el discurso periodístico de la transición: hacia una sociosemiótica de los discursos sociales. In: Gallardo, M. A. Garrido (Org.). Semiótica - lenguajes y textos
hispánicos. Madrid: CSIC, 1984.
Margoni, G. A palavra e a ordem do #não vai ter copa. disponível em http://www.cartacapital.com.br/
politica/a-palavra-e-a-ordemdo-naovai-ter-copa6025.html. Acesso em 20/09/2015, 22h30.
Matias, M. Organização de eventos. 3 ed. São Paulo: Editora Manole, 2002.
Meirelles, G.F. Tudo sobre eventos. São Paulo: STS, 1999.
Ministério do Turismo. Copa das Confederações Fifa Brasil 2013 - características do público geral e da
demanda turística internacional. PDF. Acesso em 23/09/2015, 17h.
O Globo. Disponível em http://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2015/01/rio-e-unica-cidadebrasileira-em-lista-das-100-mais-visitadas-do-mundo.html. Acesso em: 25/05/2015, 18h25.
Pesavento, S.J. Exposições universais - espetáculos da modernidade do século XIX; São Paulo:
Hucitec, 1997.
Poit, D.R. Organização de eventos esportivos. 4 ed. São Paulo: Phorte.Semprini, A. (2008).
A marca pós-moderna – poder e fragilidade da marca no sociedade contemporânea. São Paulo:
Estação Letras, 2006.
Primo, A. (2015). Disponível em:http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/
view/153/154. Acesso em 11/09/2015, 19h20.
Ramonet, I. A explosão do jornalismo: das mídias de massa à massa de mídias. São Paulo:
Publisher Brasil, 2012.
Ciências da Comunicação
Capítulo 5
53
Rodrigues, A. O discurso mediático. Lisboa: Mimeo, 1996.
Rodrigues, A. Estratégias da comunicação. 2 ed. Lisboa: Presença, 1997.
Ciências da Comunicação
Capítulo 5
54
CAPÍTULO 6
ENCHENTES DE 2017 NO RIO GRANDE DO SUL
PELOS PORTAIS DE NOTÍCIAS DE TENENTE
PORTELA
Lidia Paula Trentin
Universidade Tuiuti do Paraná, Programa de PósGraduação em Comunicação e Linguagens
Curitiba - Paraná
Mônica Cristine Fort
Universidade Tuiuti do Paraná, Programa de PósGraduação em Comunicação e Linguagens
Curitiba - Paraná
RESUMO: Esse estudo, de cunho quantitativo,
é o processo inicial de uma pesquisa qualitativa.
A presente investigação pretende verificar
de que maneira os portais de notícias Portela
Online e Província, de Tenente Portela, Rio
Grande do Sul, veicularam as notícias relativas
às enchentes que ocorreram nos meses de maio
e junho de 2017 no Estado, bem como observar
as formas das notícias que eles transmitiram.
Para tanto, foi realizada uma análise quantitativa
do conteúdo das notícias sobre o assunto
publicadas durante esses dois meses. Com a
pesquisa, pode-se perceber que, mesmo tendo
a possibilidade de produzir conteúdos próprios,
ambos os portais deram preferência a notícias
fornecidas por assessorias de comunicação
e outros veículos de comunicação, e muitas
vezes sem creditar as notícias produzidas por
outros profissionais.
PALAVRAS-CHAVE: jornalismo na internet;
enchentes; portais de notícias; Tenente Portela.
Ciências da Comunicação
ABSTRACT: This quantitative study is the
initial process of a qualitative research. The
present investigation intends to verify how the
news portals Portela Online and Província, of
Tenente Portela, Rio Grande do Sul, broadcast
the news related to the floods that occurred
in the months of May and June of 2017 in
the State, as well as observing the forms of
the news that they transmitted. To do so, a
quantitative analysis of the content of the news
about the subject were published during those
two months. With the research, it can be seen
that, even with the possibility of producing
own content, both portals gave preference to
news provided by communications agencies
and other communication vehicles, and often
without crediting the news produced by other
professionals.
KEYWORDS: journalism on the internet; floods;
news portals; Tenente Portela.
1 | INTRODUÇÃO
Conforme a Pesquisa Brasileira de Mídia
de 2016, o meio de comunicação mais utilizado
pelos brasileiros para obter informações ainda
é a televisão, mencionada como primeira opção
por 63% dos entrevistados e como segunda
por 89%. A internet aparece em segundo lugar,
Capítulo 6
55
sendo mencionada por 26% como primeiro meio de comunicação escolhido na busca
por informações e por 49% como segunda opção. Os locais mais utilizados para
acessar a internet são em casa e no trabalho, e os dispositivos são, em primeiro lugar
o telefone celular (smartphone), seguido do computador e depois o tablet. O acesso
se dá com maior frequência durante a semana (de segunda a sexta-feira), seguido de
todos os dias, e a média de utilização da internet é de 4 horas e 30 minutos por dia,
incluindo os sete dias da semana.
Levando esses dados em consideração, uma vez que a internet está cada vez
mais presente no dia-a-dia dos brasileiros, optou-se por observar de que maneira os
portais de notícias Portela Online e Província, de Tenente Portela, Rio Grande do Sul,
divulgaram as notícias sobre as enchentes que ocorreram na região Noroeste (onde
está localizado o município) e em todo o Estado durante os meses de maio e junho de
2017, visto que:
A noção de comunicação recobre uma multiplicidade de sentidos. Se isso vem
sendo assim há muito, a proliferação das tecnologias e a profissionalização das
práticas acrescentaram novas vozes a essa polifonia, num fim de século que
faz da comunicação uma figura emblemática da sociedade do Terceiro Milênio
(MATTELART; MATTELART, 2009, p. 09).
O município de Tenente Portela foi escolhido por ser pequeno – com população
estimada pelo IBGE de 14.023 habitantes em 2016 – e rodeado por rios, sendo que
os principais e maiores são o Rio Turvo – que fica na divisa entre Tenente Portela e
Três Passos – e o Rio Guarita – que limita os municípios Tenente Portela e Palmitinho.
Desse modo, quando ocorrem enchentes, o município de Tenente Portela e seus
habitantes são diretamente afetados, principalmente os ribeirinhos, que muitas vezes
perdem todos os bens materiais. Os portais de notícias Portela Online e Província
foram escolhidos por levarem as informações de Tenente Portela e região para
qualquer parte do mundo, fazendo com que familiares e amigos de quem vive nos
locais atingidos pelas enchentes consigam acessar informações que muitas vezes não
obteriam de outra maneira.
Assim sendo, o presente estudo tem como objetivo geral averiguar de que maneira
os portais de notícias Portela Online e Província veicularam reportagens relativas às
enchentes que ocorreram no Estado em maio e junho do ano passado, observando o
tipo de conteúdo noticiado.
Como objetivos específicos têm-se:
a. Verificar qual a autoria das notícias publicadas nos sites, ou seja, notícias
próprias, de outros veículos de comunicação ou produzidas por assessorias
de comunicação;
b. Apurar quais as fontes de informação – fontes oficiais, especializadas e não
oficiais (leigas) – entrevistadas para a produção das notícias;
c. Constatar a origem das imagens e dos vídeos (nas notícias em que eles
Ciências da Comunicação
Capítulo 6
56
estão presentes) utilizados para ilustrar e complementar o conteúdo; e
d. Verificar quais as palavras mais utilizadas nos títulos das notícias, uma vez
que a escolha certa de palavras chama a atenção do público.
Essa é uma pesquisa quantitativa e preliminar, que será continuada posteriormente
de forma qualitativa. Nos próximos estudos, buscar-se-á analisar com maior
profundidade a produção e a veiculação das notícias sobre as enchentes por meio de
entrevistas em profundidade com os profissionais que trabalham nos dois sites e com
os leitores dos portais, além de uma observação participante da rotina de trabalho
desses profissionais, enquanto produzem conteúdo. Nas pesquisas futuras, que terão
como base o presente estudo, serão observados os critérios de noticiabilidade (WOLF,
2001) utilizados nas produções jornalísticas em ambos os sites.
2 | JORNALISMO NA INTERNET
O jornalismo na internet, webjornalismo e jornalismo online são, nesse estudo,
termos utilizados como sinônimos, utilizando a explicação de Ward (2006, p. 09)
para o termo como base, uma vez que o autor apresenta jornalismo online como
uma expressão genérica, utilizada para descrever o acesso, a disseminação e/ou
a recuperação de informações digitais, dessa forma, “se um jornal tiver um website
para complementar suas edições publicadas no papel, isso é considerado como uma
versão online do jornal impresso”.
A expressão jornalismo digital não foi utilizada nesse estudo pois o digital não
necessariamente está online, como se pode verificar na descrição apresentada pelo
autor (2006):
O processo digital separa todas as informações – dados, textos, gráficos, sons,
imagens fixas ou vídeo – em uma sequência de números (dígitos), e as transporta
a um destino por um fio, cabo ou frequência de transmissão; então, volta a agrupálas em sua forma original (WARD, 2006, p. 08).
No jornalismo online mantém-se o processo jornalístico tradicional, utilizado em
todos os meios de comunicação: perceber um fato inédito e/ou interessante, que o
jornalista acredite ser relevante para o público; buscar informações precisas acerca
da pauta escolhida; produzir o texto de forma clara, objetiva e concisa; e divulgar
para o público. Entretanto, a internet viabiliza diversas novas possibilidades, que não
eram imaginadas nos meios de comunicação tradicionais, como o impresso, o rádio e
a televisão. Por exemplo, a utilização de conteúdos multimídia e multiplataforma, ou
seja, o uso de texto, áudio, fotografias, vídeo, infográficos, quadros e tabelas em uma
mesma notícia. Sempre com o intuito de melhor informar e envolver o público.
Os elementos que compõem o conteúdo on-line vão muito além dos tradicionalmente
utilizados na cobertura impressa – textos, fotos e gráficos. Pode-se adicionar
sequências de vídeo, áudio e ilustrações animadas. Até mesmo o texto deixou
de ser definitivo - um e-mail com comentários sobre determinada matéria pode
Ciências da Comunicação
Capítulo 6
57
trazer novas informações ou um novo ponto de vista, tornando-se, assim, parte
da cobertura jornalística. E acessar um conteúdo não é necessariamente a leitura
de uma notícia, já que engloba textos que trafegam pelas salas de bate-papo,
mensagens enviadas nos fóruns, resenhas de livros e discos e colunas. Enfim, o
conteúdo não está apenas na área de notícias dos portais, mas sim espalhado por
quase todos os produtos oferecidos pelo endereço eletrônico (FERRARI, 2003, p.
39).
Os textos jornalísticos para a internet devem ser, segundo Miranda (2004),
objetivos, concisos e curtos. O autor também explica que “no jornalismo on-line,
trabalha-se com a perspectiva da atualização permanente durante as vinte e quatro
horas do dia” (MIRANDA, 2004, p. 71).
Assim, um dos desafios do jornalismo na internet é preparar os profissionais de
comunicação que trabalham com jornalismo, isso porque eles precisam desenvolver
habilidades que antes, nos meios tradicionais, não eram exigidas. “O jornalista
passou a desempenhar inúmeras funções, havendo maior sobrecarga de trabalho nas
redações (assim como há também no nosso cotidiano) por salários iguais ou menores
se comparado com o momento em que havia maior especialização” (BARBOSA, 2013,
p. 343).
Isso significa que, quando trabalham com a internet, explica Ferrari (2003, p.
48), os jornalistas “precisam sempre pensar em elementos diferentes e em como
eles podem ser complementados”, refletindo bem sobre as legendas, informações
complementares e recursos que serão utilizados – vídeo, áudio, entre outros.
Na internet, é possível que o jornalista encontre rapidamente informações
e fontes que o ajudarão a produzir conteúdo, mas é necessário ter cuidado, pois,
conforme Barbosa (2013) a abundância de informações na rede pode acabar causando
desinformação, visto que na internet há muitos dados incorretos e informações falsas.
Além disso, ela permite que os leitores colaborarem “com a narrativa da reportagem
por apresentarem as suas próprias experiências, [...] as antigas certezas começam
a ser desafiadas”, uma vez que no ambiente digital a disseminação da informação é
imediata e todo o conteúdo pode ser arquivado (WARD, 2006, p. 18).
A participação de não jornalistas na produção das notícias na internet, segundo
Zago (2011), nos faz repensar a função do jornalismo, pois:
Além de ampliar as fontes de pesquisa, acelerar o processo de busca ou
monitoramento de informações e permitir novas formas de publicar notícias e
reportagens, o jornalista precisa conhecer os hábitos e preferências do público
na internet. Isso permite a repórteres e editores decidir melhor quando mesclar
recursos de texto, áudio, gráficos, links, animações, etc., além de levá-los à
experimentação de novas formas narrativas e diferentes olhares sobre o tipo
de matéria-prima necessária ao processo produtivo, gerando novas práticas de
trabalho (LUZ, 2010, p. 383).
No que se refere aos consumidores de notícias pela internet, Belochio (2013,
p. 239) explica que esse público pode ter alterado a forma como vê “o consumo e
a interação que pode ter com os conteúdos jornalísticos”, além disso, os próprios
jornalistas podem ter modificado a maneira de “produzir e de pensar os formatos da
Ciências da Comunicação
Capítulo 6
58
informação oferecida aos destinatários”, isso pode transformar o modo como o perfil
dos consumidores de conteúdos jornalísticos é imaginado.
Assim, com o surgimento das novas tecnologias e com a convergência
tecnológica, a forma de consumir informação mudou. Jenkins (2008, p. 29) explica que
a convergência não ocorre através de dispositivos, ela acontece “dentro dos cérebros
de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros”. O autor (2008,
p. 228-229) também coloca que ainda não se sabe como viver neste momento de
“convergência das mídias, inteligência coletiva e cultura participativa”, mesmo assim,
não há “uma reação unificada da direita ou da esquerda à cultura da convergência”.
Dessa forma, o público passa a ser também produtor de conteúdo, logo, sua
figura ganha um novo conceito com a convergência, o que tem grande impacto,
pois, conforme o autor (2008, p. 227), estas novas mídias estão sendo utilizadas
para envolver os consumidores “com o conteúdo dos velhos meios de comunicação,
encarando a Internet como um veículo para ações coletivas”, ou seja, a internet está
sendo usada para criar conteúdo de maneira coletiva, solucionar problemas e também
debater.
Os novos dispositivos que permitem o acesso fácil e rápido à internet, como
smartphones, tablets e notebooks, aumentaram as formas de disponibilização dos
conteúdos noticiosos e de contato destes com o público, destaca Belochio (2013).
Com estes dispositivos móveis o usuário pode se conectar à internet a qualquer hora
e de qualquer lugar do mundo, desde que exista sinal.
Levando todo o processo de produção e transmissão de conteúdos jornalísticos
na internet em consideração, a seguir serão apresentados os históricos dos portais de
notícias utilizados como objetos empíricos da presente pesquisa.
2.1 O Portal de Notícias Portela Online
O site Portela Online foi criado em outubro de 2007 e lançado na internet no
dia 04 de novembro do mesmo ano por Sandro Medeiros. A criação se deu porque
Medeiros possuía uma empresa de assistência técnica de computadores e uma Lan
House e queria ampliar os trabalhos realizados.
Inicialmente, o site se referia ao trabalho realizado na empresa, posteriormente,
Medeiros modificou o site para um guia comercial do município de Tenente Portela e
foi acrescentando recursos, como informações turísticas, histórico e informações do
município. Após perceber que o trabalho estava evoluindo, Medeiros começou a fazer
fotos em eventos e notícias relacionadas a Tenente Portela e postar no Portela Online.
A primeira notícia foi veiculada no site no dia 04 de janeiro de 2008. À medida que as
emissoras de rádio da região começaram a entrar em contato com Medeiros buscando
detalhes de acontecimentos deu-se início a uma troca de pautas e informações entre
os veículos de comunicação da região e o site.
A escolha por Tenente Portela ocorreu pelo fato de ser o município de residência
Ciências da Comunicação
Capítulo 6
59
de Medeiros. Já a opção por um site e não por outro meio de comunicação se deu
por Medeiros ter conhecimento na área de linguagem de programação direcionada
para internet, o que utilizou no desenvolvimento do portal e também nas atualizações.
O nome foi escolhido porque os habitantes do município costumam chamá-lo não
de Tenente Portela, mas sim somente de Portela, e como o nome do município é
composto, Medeiros pensou ser mais viável utilizar a nomenclatura Portela Online.
O criador do Portela Online não é jornalista e atualmente não há nenhum profissional
habilitado na área prestando assistência ao site, que conta com o trabalho de Medeiros,
um funcionário fixo e alguns colaboradores que auxiliam em fotos de eventos.
No site, além de notícias em formato de texto e imagens, há matérias e entrevistas
em vídeo e áudio, produzidas e editadas por Medeiros. No escritório do portal de
notícias há um espaço reservado para realizar entrevistas em vídeo e também mesa
de som para produzir áudios.
2.2 O Sistema Província de Comunicação
O Sistema Província de Comunicação teve início com o Jornal Província, que foi
criado por Jalmo Fornari em 1986. A ideia do jornal surgiu antes, quando Fornari fazia
faculdade de Jornalismo na PUC de Porto Alegre, a Famecos, ele teve que fazer um
trabalho sobre o bairro que morava, como ele é de Tenente Portela decidiu criar um
projeto chamado Província Kaingang, em 1981.
Em 1985, quando voltou para Tenente Portela, percebeu que haviam só jornais
regionais circulando na cidade, por isso, no dia 31 de março de 1986 criou o Jornal
Província. O jornal estreou com 2.000 exemplares, que além de serem distribuídos
para os assinantes, eram enviados para várias localidades de Tenente Portela, ele
também circulava em vários municípios como Crissiumal, Humaitá, Sede Nova e Três
Passos. Mediante a distribuição de 200 exemplares, algumas pessoas atuavam como
correspondentes, enviando ao jornal notícias de suas localidades.
Em 1991 foi interrompida a circulação do jornal por dificuldades financeiras, mas
em 1994 ele voltou a circular. Em 1998 o dono do jornal comprou uma página na
internet, sendo um o primeiro jornal da região a ser veiculado na web. Além do jornal
impresso Província e do site, a rádio Província FM faz parte da rede de comunicação
Sistema Província.
Atualmente, o Sistema Província conta com sete comunicadores, sendo que
quatro deles também são responsáveis por atualizar o site. Não há um profissional
que se dedique exclusivamente ao portal.
3 | METODOLOGIA
Para a realização da presente pesquisa foi feita uma análise quantitativa das
notícias sobre as enchentes que ocorreram no Rio Grande do Sul nos meses de maio
Ciências da Comunicação
Capítulo 6
60
e junho de 2017, tendo como objetos empíricos os portais de notícias Portela Online
e Província, de Tenente Portela. Esse estudo servirá como base para uma pesquisa
futura, de cunho qualitativo.
Sendo assim, as notícias foram analisadas a partir das seguintes categorias:
•
A quantidade de notícias próprias, de notícias de outros veículos de comunicação e também de notícias produzidas por assessorias de comunicação;
•
As fontes de informação utilizadas (os entrevistados): fontes oficiais, não
oficiais, especializadas ou não utilização de fontes;
•
A origem das fotografias utilizadas para ilustrar as notícias: próprias dos
portais, de outros veículos, enviadas pelo público ou fotos meramente ilustrativas;
•
A origem dos vídeos (quando utilizados): próprios, de outros veículos, ou
enviados pelo público;
•
Links utilizados para complementar o conteúdo: que levam para o próprio
site, para sites de outros veículos de comunicação ou para sites de empresas que não são de comunicação;
•
As palavras mais utilizadas nos títulos das notícias: enchente, chuva, emergência, temporal, cheias, alerta, defesa civil, alagamento, prejuízo, estragos, rio, balsa e instabilidade, visto que essas palavras chamam a atenção,
principalmente no momento vivido nos dois meses estudados.
Isto posto, a seguir serão apresentados os resultados obtidos por meio da
pesquisa.
4 | RESULTADOS
Com o estudo, observou-se que a veiculação de notícias sobre as chuvas e
enchentes teve início nos dias 23 e 24 de maio e terminou nos dias 21 e 26 de junho
nos sites Portela Online e Província, respectivamente, sendo que no primeiro foram
veiculadas 42 notícias acerca do tema e no segundo 50. Em ambos os sites as notícias
se referem tanto a Tenente Portela quanto à região e Estado como um todo.
A publicação de notícias com essa temática não ocorria todos os dias em ambos
os sites. Enquanto no Portela Online foram 30 dias entre a primeira e a última notícia
sobre as enchentes, com 21 dias com matérias publicadas e 09 sem nenhuma, no
Província se passaram 34 dias entre a primeira e a última notícia, contando também
com 21 dias com publicações, mas 13 sem qualquer atualização.
Apesar de estarem inseridos em um município (Tenente Portela) e em uma
região bastante afetada pelas chuvas que ocorreram nos meses de maio e junho,
ambos os portais produziram poucas notícias próprias. O site Portela Online publicou
07, correspondendo a 17%1 do total de notícias veiculadas; assim como as matérias
sem qualquer indicação de autoria, que também corresponderam a 17%; metade das
1. Os valores percentuais obtidos nos cálculos para as notícias do site Portela Online foram arredondados para
facilitar a leitura do texto bem como seu entendimento.
Ciências da Comunicação
Capítulo 6
61
matérias publicadas foram releases enviados por assessorias de comunicação; as
notícias produzidas por outros veículos corresponderam a pouco mais de 14%; e as
notícias oficiais, produzidas por sites de meteorologia, por exemplo, 2%.
No caso do site Província, das 50 notícias sobre as enchentes publicadas no
portal, 12 eram próprias, correspondendo a 24% das publicações; tal como as notícias
de assessorias (24%); as notícias produzidas por outros veículos de comunicação
totalizaram 46%; e as notícias com a autoria não identificada corresponderam a 6%
do total.
As imagens utilizadas para ilustrar e complementar as notícias no site Portela
Online foram produzidas principalmente por assessorias de comunicação (31%);
seguidas por imagens meramente ilustrativas (19%); fotos próprias (14%); produzidas
por outros veículos (14%); notícias sem imagens (14%); imagens oficiais, produzidas
por sites especializados, como de meteorologia, por exemplo (5%); e fotos enviadas
por leitores do site (3%). Foram utilizados vídeos em 06 matérias, todos produzidos
pelo profissional do site Portela Online.
Já no portal Província, as imagens mais utilizadas foram produzidas por outros
veículos, correspondendo a 46%; seguidas por fotografias fornecidas por assessorias
de comunicação (26%); fotos próprias e imagens ilustrativas corresponderam a 14%
cada. Assim como no site Portela Online, foram utilizados vídeos em algumas notícias
(03) e todos foram produzidos pelos profissionais do portal.
A metade das notícias veiculadas no site Portela Online não possuía nenhuma
fonte de informação, ou seja, ninguém foi entrevistado para a produção da matéria
(pelo menos no texto não havia nenhuma menção a alguma pessoa); em 45% foram
utilizadas fontes oficiais, como prefeitos, secretários e bombeiros. Fontes não oficiais,
como cidadãos da comunidade, e outras fontes (um funcionário de um serviço de
balsa) foram utilizadas apenas uma vez em duas notícias, contabilizando 2.5% cada.
No caso do site Província, o número de notícias sem entrevistados foi maior,
62%; as fontes oficiais foram entrevistadas em 30% das matérias; outros entrevistados
(repórteres de outros meios) corresponderam a 4%; seguido de fontes não oficiais
(2%); e especializadas (2%).
A falta de notícias e fotografias próprias, bem como a ausência de entrevistados
nas matérias causa estranheza, visto que Tenente Portela é um município pequeno, o
que facilita a localização de fontes de informação e a produção de notícias e imagens
sobre as enchentes. Encontrar famílias que foram afetadas diretamente pelas
enchentes, que precisaram sair de suas casas, perderam bens materiais, animais e
produção agrícola é simples, assim como fazer fotografias da situação dessas pessoas.
Ainda assim, ambos os portais optaram por utilizar principalmente notícias e imagens
de outros veículos ou de assessorias de comunicação.
No que diz respeito à lincagem, das notícias veiculadas no Portela Online, 04
possuíam links, sendo que dois direcionavam para o próprio site, um para um site
de outro veículo de comunicação e outro para um site de meteorologia. Já no portal
Ciências da Comunicação
Capítulo 6
62
Província, nenhuma notícia possuía links.
Durante as análises, foram verificadas as palavras relacionadas às chuvas e
enchentes mais utilizadas nos títulos das notícias:
Palavra
Emergência
Chuva
Portela Online
28.57%
21.42%
%
Palavra
Chuva
Emergência
Defesa Civil
11.90%
Rio
Temporal
7.14%
Prejuízo
Prejuízo
Estragos
Balsa
Cheias
Enchente
Alerta
Alagamento
Rio
Instabilidade
7.14%
4.76%
4.76%
2.38%
2.38%
2.38%
2.38%
2.38%
2.38%
Província
28.88%
22.22%
15.55%
Defesa Civil
6.66%
Cheias
4.44%
Risco
Enchente
Temporal
Alerta
Balsa
Alagamento
%
6.66%
4.44%
2.22%
2.22%
2.22%
2.22%
2.22%
Quadro 01 - Palavras mais utilizadas nos títulos. Fonte: as autoras.
A utilização de palavras que causam impacto se dá para chamar a atenção do
público para as notícias publicadas, uma vez que além de ficar em destaque nos
sites, os títulos são compartilhados nas redes sociais dos portais juntamente com
o link da notícia. Apesar disso, nem todas as notícias mencionavam essas palavras
nos títulos, algumas possuíam títulos que não remetiam às chuvas, apenas abrindo e
lendo o conteúdo da notícia percebia-se que se tratava de uma matéria relacionada
às enchentes.
A autoria das notícias foi verificada com cuidado, pois, no site Província somente
dois profissionais do sistema de comunicação assinaram as notícias publicadas,
sendo que um deles, que se dedica principalmente ao jornal impresso, foi o único
produtor de notícias próprias do site. O outro profissional assinou notícias enviadas por
assessorias de comunicação e obtidas por meio de outros veículos, colocando nelas
também os créditos dos autores originais. Entretanto, assinar as notícias não foi uma
regra percebida, visto que nem todas as notícias eram assinadas pelos profissionais
do portal.
No site Província as notícias produzidas por outros veículos ou por assessorias de
comunicação são identificadas com maior frequência. No caso do site Portela Online,
não há identificação da autoria das notícias, em alguns casos, há apenas a legenda
das imagens com o crédito. Isso demonstra que os profissionais que trabalham nos
dois sites, principalmente no Portela Online, podem acreditar que, ao mudar algumas
partes do texto, acabam por se tornar os autores das notícias, não creditando a matéria
Ciências da Comunicação
Capítulo 6
63
a quem realmente escreveu.
Os dois sites veicularam 13 notícias iguais, com a mesma autoria original, elas
foram produzidas por assessorias de comunicação, tanto dos municípios atingidos
quanto da própria Defesa Civil, e também por outros veículos de comunicação. Foram
feitas algumas mudanças nas matérias para que não fossem publicadas exatamente
iguais, cada profissional alterou o que achou conveniente e necessário. Entretanto,
fazer alterações em um texto não faz com que quem o alterou se torne o autor, as
notícias e complementos, como imagens, áudios, vídeo, infográficos, entre outros,
devem sempre ser creditados, uma vez que a utilização de obras de outras pessoas
sem os devidos créditos é plágio.
Houve também nos dois portais: um mesmo release publicado com enfoque e
destaque para diferentes informações no título e no lide (lead); e um release com
poucas palavras alteradas, o título é o mesmo nos dois sites, e em nenhum deles
há a identificação do autor (sabe-se que é release pelas informações contidas no
texto). Esses dois releases chamam a atenção para o fato de que nem sempre há uma
preocupação com a busca de novas informações, o conteúdo recebido das assessorias
é publicado com um mínimo de alterações e utilizando sempre fontes oficiais.
Dessa forma, observou-se que, por diversas vezes nas notícias, o autor não
era mencionado, dando a impressão aos leitores que os profissionais dos sites é que
haviam produzido as matérias. Isso ocorreu com maior frequência no site Portela
Online, que, frequentemente, creditava apenas as imagens. Algumas notícias se
revelaram releases depois de uma leitura atenta. Entretanto, os leitores que não
possuem conhecimentos técnicos em jornalismo podem não perceber e creditar a
notícia aos profissionais dos portais.
5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao finalizar a presente pesquisa, pode-se concluir que, mesmo com a possibilidade
de produzir uma ampla quantidade de conteúdo próprio, uma vez que, como o
município é pequeno, há uma grande facilidade em encontrar fontes de informação
e produzir imagens sobre a situação das pessoas atingidas pelas enchentes, os dois
portais escolhidos como objetos empíricos optaram por utilizar notícias já prontas,
onde não havia a necessidade de buscar entrevistados e informações nem produzir as
próprias fotografias. Isso pode ser justificado pelo fato de a equipe de ambos os sites
ser pequena.
De tal modo, as notícias publicadas em ambos os sites eram produzidas,
principalmente, por assessorias ou outros veículos de comunicação, sendo poucas as
notícias produzidas pelos profissionais dos portais Portela Online e Província. O mesmo
ocorreu em relação às imagens utilizadas para complementar e ilustrar as reportagens.
A autoria original das notícias nem sempre era especificada, principalmente quando se
tratava de matérias produzidas por assessorias de comunicação.
Ciências da Comunicação
Capítulo 6
64
Nem todas as notícias possuíam entrevistados como fonte de informação, e
naquelas que havia, eram fontes oficiais, ou seja, prefeitos, secretários, bombeiros,
policiais. As pessoas afetadas diretamente pelas chuvas, como os ribeirinhos ou quem
precisava utilizar balsas, por exemplo, não foram utilizadas em nenhum momento
como fontes de informação.
Tendo isso em vista, propõe-se algumas ideias de fontes entrevistadas e também
notícias que poderiam ter sido produzidas durante as enchentes no Rio Grande do Sul
: entrevistas com pessoas que vivem na beira dos rios; com parentes e amigos que
estão longe; com pessoas que precisam atravessar os rios com frequência; notícias
sobre a regularidade das cheias nos rios; prejuízos com a agricultura (entrevistando
agrônomos e agricultores); cuidado com os animais nesse período de chuvas (entrevista
com veterinários e criadores de animais). São muitas as possibilidades de reportagens
que poderiam ser feitas acerca do assunto e diversas as possibilidades de fontes de
dados para as notícias, o que daria maior credibilidade às informações, uma vez que o
público se veria representado e incluso nas matérias, que tratariam principalmente do
cotidiano daqueles que sofreram as consequências das enchentes.
Como já mencionado, essa é uma pesquisa preliminar e de caráter quantitativo,
que dará embasamento para um futuro estudo qualitativo, no qual buscar-se-á analisar
com maior profundidade a produção e a veiculação das notícias sobre essas enchentes
nos portais Portela Online e Província, por meio de entrevistas em profundidade
com os profissionais que trabalham nos dois sites e também através de observação
participante de suas rotinas de trabalho, enquanto produzem conteúdo para os portais.
Dessa forma, serão observados os critérios de noticiabilidade utilizados nas produções
jornalísticas em ambos os sites, de acordo os apresentados por Mauro Wolf em sua
obra “Teorias da Comunicação”, de 2001.
Além disso, na pesquisa futura, internautas que acessam as notícias de ambos
os sites serão entrevistados, para que se possa verificar a confiabilidade dos dois
portais perante o público, uma vez que, segundo a PBM 2016 a internet é o meio
menos confiável no que se refere a notícias de sites, blogs e redes sociais.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Marialva. História da comunicação no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
BELOCHIO, Vivian. Convergência com meios digitais em Zero Hora multiplataforma. In: PRIMO, Alex.
(org.) A Internet em rede. Porto Alegre: Sulina, 2013, p. 233-255.
BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Pesquisa brasileira de mídia
2016. Brasília: Secom, 2016.
FERRARI, Pollyana. Jornalismo digital. São Paulo: Contexto, 2003.
FORNARI, Jalmo. Entrevista concedida a Lidia Paula Trentin. Tenente Portela, RS, jun. 2017.
Ciências da Comunicação
Capítulo 6
65
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE Cidades: Tenente Portela, Rio
Grande do Sul, 2016. Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=432140>.
Acesso em: junho de 2017.
JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Tradução: Susana Alexandria. 2 ed. São Paulo: Aleph,
2008.
LUZ, Andréa Aparecida da. Cenário de convergência, impactos no webjornalismo e o caso Clarín.com.
In: AMARAL, Adriana; AQUINO, Maria Clara; MONTARDO, Sandra. (orgs.). INTERCOM Sul 2010:
Perspectivas da Pesquisa em Comunicação Digital. São Paulo: Intercom, 2010, p. 374-402.
MATTELART, Armand; MATTELART, Michèle. História das teorias da comunicação. São Paulo:
Loyola, 12 ed, 2009. 227 p.
MEDEIROS, Sandro. Entrevista concedida a Lidia Paula Trentin. Tenente Portela, RS, jun. 2017.
MIRANDA, Luciano. Jornalismo on-line. Passo Fundo: UPF, 2004.
PORTELA ONLINE. Sobre o Portela Online. Disponível em: <https://portelaonline.com.br/sobre-oportela-online/>. Acesso em: junho de 2017.
PROVÍNCIA. Sistema Província de Comunicação. Disponível em: <http://www.clicportela.com.br/>.
Acesso em: junho de 2017.
ZAGO, Gabriela da Silva. Informações Jornalísticas no Twitter: redes sociais e filtros de
informações. Revista de Comunicação e Epistemologia da Universidade Católica de Brasília, nº 8,
2011.
WARD, Mike. Jornalismo online. São Paulo: Roca, 2006.
WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. 6. ed. Lisboa: Presença, 2001.
Ciências da Comunicação
Capítulo 6
66
CAPÍTULO 7
O MONTE EVEREST EM “NO AR RAREFEITO” – UMA
ANÁLISE NA PERSPECTIVA DIALÓGICA
Taíssa Maria Tavares Guerreiro
Universidade Federal do Amazonas
Parintins – Amazonas
Deivid Santos Vieira
Universidade Federal do Amazonas
Parintins – Amazonas
Isabelle Caroline Rodrigues de Sá
Universidade Federal do Amazonas
Parintins – Amazonas
ABSTRACT: This article presents the results
of a discursive analysis of the book report “Into
Thin Air”, by Jon Krakauer, from the dialogical
perspective of Mikhail Bakhtin used as a
discourse analysis methodology. The objective
of this article is to indicate how the highest top
of the world is described and perceived by those
who scale it.
KEYWORDS: Dialogism; Everest; Book report.
Kethleen Guerreiro Rebêlo
Universidade Federal do Amazonas
Parintins – Amazonas
Liam Cavalcante Macedo
Universidade Federal do Amazonas
Parintins – Amazonas
Marcos Felipe Rodrigues de Souza
Universidade Federal do Amazonas
Parintins – Amazonas
1 | INTRODUÇÃO
O monte Everest é a montanha de maior
altitude da terra, a qual atrai alpinistas e
curiosos de todo o mundo para escalada até o
topo, entretanto, é também caracterizado como
um local perigoso de condições não favoráveis
à sobrevivência humana, pois abriga em sua
grandiosidade um dos maiores empecilhos
RESUMO: O presente artigo apresenta os
resultados de uma análise discursiva do livroreportagem “No Ar Rarefeito “, do escritor Jon
Krakauer, a partir da perspectiva dialógica de
Mikhail Bakhtin utilizada como metodologia de
análise do discurso. O objetivo deste artigo
é indicar como o topo mais alto do mundo é
descrito e percebido por quem o escala.
PALAVRAS-CHAVE: Dialogismo; Everest;
Livro-reportagem.
Ciências da Comunicação
para a resistência humana, o ar rarefeito – um
gás pouco denso que é encontrado em grandes
altitudes.
Em “No ar rarefeito”, o autor Jon Krakauer
narra com detalhes a história da maior tragédia
em expedição ao Everest: o maior número
de mortes em um ano, e entre as vítimas
estavam dois alpinistas experientes e líderes
da expedição. Além de revelar minudências
da tragédia testemunhada, o autor evidencia
Capítulo 7
67
as características do monte e as condições físicas e psicológicas enfrentadas pelos
alpinistas. À vista disso, a escolha da obra se deu em função do produto ser baseado
em fatos reais, onde o narrador é também o principal protagonista pois ele compartilha
sua experiência, diferente de outros livros-reportagem nos quais os narradores contam
histórias das quais não se inserem como participantes.
Desse modo, este trabalho tem como objetivo geral atribuir resposta à questão:
Como o monte Everest é caracterizado no livro-reportagem “No ar rarefeito”, de Jon
Krakauer? Isto posto, analisando as posições discursivas assumidas pelo autor no livro
e também as outras vozes discursivas que estruturam essa interpretação, buscou-se
respostas aos objetivos específicos – como é caracterizado o monte Everest em seu
aspecto físico; as consequências psicológicas causadas pelo ar rarefeito e, ainda,
entender a ambição e o encanto que uma expedição ao Everest gera – a fim de se
obter compreensão abrangente sobre o assunto.
Assim, este trabalho caracteriza-se como relevante por contribuir no campo da
análise do discurso, sobretudo, no que tange ao método de utilização da perspectiva
dialógica bakhtiniana, uma vez que busca indicar as formas de caracterização do
monte Everest, ou seja, como o topo mais alto do mundo é descrito e percebido por
quem o escala.
2 | O LIVRO-REPORTAGEM COMO GÊNERO DO DISCURSO
Segundo Bakhtin (2011) todas as esferas da atividade humana estão interligadas ao
uso da língua, e, consequentemente, seu emprego é realizado na forma de enunciados,
sejam estes orais ou escritos, que por sua vez são reflexos da intencionalidade de
quem os produz, sendo evidenciados pelo conteúdo temático (o tipo de informação
que se deseja repassar), estilo da linguagem (o próprio estilo da linguagem utilizada
que vai além da classificação formal/informal; alguns gêneros exigem adjetivações,
vocabulário específico, entre outros) e construção composicional (a forma/estrutura
padrão de um texto).
Para o autor “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais
denominamos gêneros do discurso” (Idem, 2011, p. 262). Isto posto, compreendemos
que qualquer esfera de utilização da língua elabora determinados enunciados, por
conseguinte, esses enunciados possuem uma certa estabilidade que permite a
comunicação, entretanto, essa estabilidade é relativa, pois uma vez que a esfera da
atividade humana se desenvolve, as formas de texto (enunciado) se transformam
para atender às necessidades de comunicação desse grupo. Assim, entende-se que a
sociedade se comunica por meio de gêneros do discurso, os quais são modificados ao
longo do tempo em virtude da intencionalidade comunicacional particular do indivíduo.
Catalão (2010) interpreta a língua como uma estrutura de relações dialógicas, e
Ciências da Comunicação
Capítulo 7
68
afirma que em diálogo organizam-se os seus termos, assim como as relações entre
eles e os sentidos que o homem produza por meio dela. De tal modo, em diálogo ocorre
o contato da língua com a realidade, o qual se dá no enunciado e gera a centelha da
expressão (BAKHTIN, 2003 apud CATALÃO 2010). Assim, compreendemos que é
por meio do diálogo que se constituem os enunciados, os quais Eliziário e Catalão Jr
(2011, p. 2) definem como “a materialização de uma enunciação, por meio do qual o
sujeito insere-se e assume posições particulares na inacabável cadeia da comunicação
discursiva”.
Em conformidade com Bakhtin, Catalão (2010, p. 16) diz “se não é um Adão
bíblico, o pesquisador nunca inventa totalmente, a partir ‘do nada’, os elementos
de sua pesquisa”. O autor afirma que tanto o objeto de estudo quanto os conceitos
teóricos utilizados e também a metodologia, “constitui-se sempre como resposta
a enunciados anteriores, dos quais a origem absoluta nunca está em si – mesmo
quando essa perspectiva é ‘criação sua’” (Idem, 2010, p. 16). Assim, compreendemos
que os enunciados são, então, réplicas, pois segundo Pinto (2002, p. 31) “todo texto
se constrói por um debate com outros – o que foi denominado de dialogismo por
Mikhail Bakhtin”. Por conseguinte, em conformidade com o pensamento bakhtiniano,
o dialogismo caracteriza-se como princípio fundamental da linguagem.
Catalão (2010, p. 50) considera o livro-reportagem como um gênero do discurso,
uma vez que esse produto é resultado de um processo discursivo, de uma escolha
proposital devido as informações que se deseja repassar, ou seja, conforme a
intencionalidade do autor, caracterizando-se sempre como um rebate pessoal a outros
enunciados.
Se reportar, segundo Jorge (2008), significa narrar fatos, então a reportagem
relata um acontecimento, que por sua vez, deve ser de interesse coletivo e a partir disso
o repórter deve aprofundar-se em informações; ir além, evidenciando entendimento
completo ao leitor/telespectador; trazendo informações adicionais. Do mesmo
modo, para Lage (2001, p. 49) reportagem “é a exposição que combina interesse do
assunto com o maior número possível de dados, formando um todo compreensível
e abrangente”. Outrossim, segundo Rocha e Xavier (2013, p. 144) considera-se um
livro-reportagem “quando uma obra trata de acontecimentos ou de fenômenos reais
e utiliza, para sua produção, procedimentos metodológicos inerentes ao campo do
jornalismo, sem, contudo, descartar certas nuances literárias”, logo, o livro-reportagem
carrega os mesmos princípios seguidos pela reportagem, entretanto, com uma carga
literária.
Além disso, uma das grandes vantagens do livro reportagem é a possibilidade
de o autor ampliar suas pesquisas, inserir maior número de informações, relatos e
diálogos, detalhes, ou seja, permite apuração extrema ao mesmo tempo em que
o toque literário torna a leitura prazerosa, uma vez que, segundo Rocha e Xavier
(2013, p. 155) o suporte livro-reportagem “exige um número suficiente de informações,
dados, fontes, depoimentos para que contemple o conteúdo e o volume de um livro
Ciências da Comunicação
Capítulo 7
69
sem desfigurar sua relação com a realidade, sem migrar para a ‘invenção’, ou mesmo
ficção”.
À vista disso, entendemos que um enunciado é constituído sempre em debate
com outros textos, dando origem ao dialogismo. Assim, as posições discursivas dos
enunciadores estão presentes no texto sendo possível identificá-las por meio de
análise, tal como realizado neste artigo com o livro-reportagem “No ar rarefeito”.
3 | METODOLOGIA
Para realização deste estudo utilizamos a perspectiva dialógica de Mikhail
Bakhtin como método de análise do discurso. Assim, o livro “No ar rarefeito” de
Jon Krakauer, objeto da pesquisa, foi tido como enunciado uma vez que se buscou
identificar, interpretar e discorrer sobre as posições que o autor assume no que se
refere ao monte Everest, além dos discursos de outras fontes que foram essenciais no
processo de apuração.
A perspectiva dialógica de Bakhtin tenciona a existência do debate entre textos,
do diálogo, da comunicação entre enunciados, uma vez que, segundo o teórico, os
enunciados são sempre respostas a outros enunciados, ou seja, eles dialogam com
outros textos que são concernentes ao âmbito de um mesmo estudo, assim, afirma:
“todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele
não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo [...]”
(Idem, 2011, p. 272). Logo, entendemos que uma obra não pertence inteiramente a um
determinado autor, por mais que este a tenha escrito, pois a discussão primária não
lhe pertence, entretanto, ele contribui no campo da discussão acrescentando novos
estudos, teorias, ou seja, respostas a enunciados.
Dessa forma, o livro-reportagem, tido como um gênero do discurso, descreve
um objeto a partir das relações dialógicas construídas no processo da prática
jornalística. Isto posto, entendemos que todas as concepções presentes no produto
são imprescindíveis para sua concretização, tanto por sua forma de produção – uma
vez que é por meio de depoimentos/discursos que o livro-reportagem é composto em
grande parte –, quanto por seu consumo, pois os leitores compreendem e recebem as
informações de forma mais abrangente.
Nesse sentido, a princípio buscou-se identificar as passagens referentes à
caracterização do monte, as fontes presentes, ou seja, as relações dialógicas situadas
por Krakauer. Posteriormente, atentamos em analisar de que forma esses discursos
foram inseridos no texto, se de forma direta ou indireta.
A partir disso, a análise se voltou ao posicionamento dos discursos no que se
refere à caracterização física do monte Everest; à caracterização dos problemas
psicológicos causados pelo ar rarefeito na expedição, além dos motivos que levam
uma pessoa a possuir ambição e fascínio pela escalada ao monte. Desse modo,
Ciências da Comunicação
Capítulo 7
70
obtivemos uma dimensão geral da caracterização do monte Everest feita pelo autor e
demais fontes, que culminou nos resultados dessa análise.
4 | RESULTADOS E DISCUSSÕES
4.1 A caracterização física do Monte Everest
Na caracterização quanto à natureza física do monte Everest, no livro “No ar
rarefeito” de Jon Krakauer, o autor enfatiza o Everest como um ambiente arriscado,
repleto de empecilhos naturais, os quais podem gerar graves consequências para
quem o ousar escalar. No entanto, esses obstáculos serviram como motivação aos
montanhistas para alcançar o topo. Sobretudo na primeira parte do livro, a questão
dos “aspectos naturais” é focalizada para situar o leitor sobre como e quais condições
se realizaram a expedição no local.
Além das características da montanha propriamente dita, outro detalhe natural
crucial é a falta do oxigênio em ambientes de grande altitude, fator capaz de afetar
profundamente o discernimento da consciência humana e alterar noções da própria
lembrança, ponto que dificultou a “busca pela verdade” tão almejada por Krakauer ao
questionar os alpinistas.
O segundo capítulo do livro relata de forma breve parte da história do
descobrimento do Everest, além de algumas expedições e nomes importantes. Ao
narrar a primeira expedição bem-sucedida, Krakauer menciona as concepções dos
alpinistas que descreveram uma parte do monte. O fragmento a seguir revela:
Por volta das 9h00 estavam no cume sul, diante da estonteante crista estreita que
leva ao pico propriamente dito. Uma hora depois estavam ao pé do que Hillary
descreveu como “o problema mais espinhoso da crista - um escalão de rocha
de uns 12 metros de altura. [...] A rocha em si, lisa e quase sem pontos de apoio,
poderia ter sido um interessante desafio domingueiro para um grupo de alpinistas
experientes na região inglesa de Lake District, porém ali era uma barreira cuja
superação ia muito além de nossas frágeis forças”. (p. 18)
Constata-se que durante o período de expedição no Everest, Krakauer detalha
os traços físicos do lugar como de um local inóspito, repleto de armadilhas moldadas
pela ação natural de milhares de anos, as quais ameaçam qualquer homem que decida
escalá-lo. O autor, no início do livro, descreve o monte segundo a visão de montanistas
experientes e pessoas com estudos voltados à área da geologia: “Entre alpinistas e
outras pessoas conhecedoras de formas geológicas, o Everest não é tido como um
pico muito bonito. Suas formas são parrudas, muito esparramadas, entalhadas de
modo rude” (p.26). Mesmo com essas características não tão empolgantes, do ponto
de vista da estética natural, o Everest, segundo eles, encanta por sua grandiosidade:
“Contudo, o que falta em graça arquitetônica o Everest compensa com sua massa
esmagadora” (p.26).
Ao especificar os capítulos, o autor utiliza logo abaixo fragmentos relacionados ao
Ciências da Comunicação
Capítulo 7
71
Everest ou a expedições que foram escritos por participantes de escaladas, alpinistas,
montanistas e outros. Neste fragmento nos são repassadas por George Leigh Mallory
– em carta à sua mulher em 1921 – descrições das cristas: “Basta dizer que [o Everest]
tem as cristas mais alcantiladas e os precipícios mais tenebrosos que já vi na vida e
que toda aquela conversa sobre uma encosta de neve fácil é puro mito. [...]” (p. 80).
Em síntese, levando em consideração os aspectos físico-naturais do monte
Everest detalhados na obra, compreendemos tratar-se de um ambiente nada bucólico,
o qual certamente cobra um alto grau de determinação, uma boa dosagem de discrição,
uma noção satisfatória de alpinismo e uma branda sanidade física e psicológica
daqueles que almejam chegar ao ponto mais alto do planeta Terra.
Ademais, com os discursos elencados, percebemos que além das concepções
do autor sobre a montanha no que se refere a sua forma e condições físicas, outros
discursos foram inseridos na obra de forma direta e indireta para complementar a
descrição e contribuir no entendimento do leitor acerca do monte mais alto do planeta,
como constatações de alpinistas, participantes de expedições e geólogos, ou seja,
vozes discursivas que complementaram as percepções do autor Krakauer.
4.2 A expedição: consequências psicológicas do ar rarefeito
Na perspectiva de Krakauer, a escalada permitiu conhecer além do pico mais alto
do planeta, ou seja, constituiu vivenciar um dos maiores dramas de sua história, o que
o ajudou a ter uma visão diferente sobre a atividade de escalada e o monte Everest.
Os relatos revelam desconforto, agonia e drama, principalmente no que se refere ao
gás pouco denso presente no Everest, o ar rarefeito.
Na expedição até o monte, em relatos do livro-reportagem, Krakauer evidencia
desde o início o desconforto causado pela baixa concentração de gases. Problemas
psicológicos como a não precisão de informações, atordoamentos e alucinações são
descritos como consequências da exposição ao ar rarefeito.
Já na introdução, ao situar o leitor acerca do cenário real e participantes da
expedição, além de algumas circunstâncias vividas, o autor revela um dos problemas
enfrentados, a não precisão de informações, uma vez que a falta de oxigênio implica
o prejuízo do discernimento da consciência humana e altera noções básicas do
funcionamento mental como a memória. Descrito como quase um obstáculo em
sua apuração jornalística, Krakauer discorre sobre o empecilho e as tentativas de
solucioná-lo. O fragmento a seguir revela a dificuldade na imprescindível apuração de
depoimentos:
[...] a seqüência de eventos fora de uma complexidade frustrante e as lembranças
dos sobreviventes estavam muito distorcidas pela exaustão, falta de oxigênio
e choque. Em certo ponto de minha pesquisa, pedi a três outras pessoas para
contarem um incidente que nós quatro testemunhamos, na alta montanha, mas
ninguém foi capaz de concordar quanto a fatos cruciais, como a hora, o que fora
dito e nem mesmo quanto a quem estava presente (p. 9).
Nas descrições do momento mais dramático da excursão, seu retorno do topo
Ciências da Comunicação
Capítulo 7
72
do cume, o autor revela em detalhes as sensações que o ar rarefeito causa em um
ser humano, exemplificando com seu colega de escalada, Andy. O recorte seguinte
configura o relato da confusão de pensamentos e a sensação de decadência do corpo:
[...] pedi a Andy que me fizesse um favor em troca, desligando meu regulador
para economizar oxigênio até que o escalão ficasse desimpedido. Entretanto ele
se enganou, abriu a válvula em vez de fechá-la, e dez minutos depois meu oxigênio
acabara. Minhas funções cognitivas, que já estavam bastante prejudicadas,
começaram a declinar muito depressa. Sentia-me como se tivesse tomado uma
overdose de algum sedativo poderoso (p. 190).
O trecho revela dois problemas psicológicos. O primeiro refere-se ao fato de Andy
ter se confundido ao abrir a válvula de oxigênio, pois, com atenção limitada decorrente
da falta de oxigênio, é comum que haja esse tipo de confusão nos pensamentos e,
consequentemente, nas ações. O segundo problema psicológico ocorre com Krakauer,
uma vez que tem disperso seu pouco de oxigênio artificial, o autor tem a sensação
imediata de estar sendo sedado, sem capacidade de exercer controle hábil sobre suas
coordenações.
Outro aspecto emblemático descrito na obra são as alucinações. O autor cita
algumas fantasias mentais que outros alpinistas relataram em expedições anteriores
e menciona em seguida sua experiencia com a perturbação psicológica, repassando
um misto de sensações que envolvem agonia, encantamento e mistério, pois é
profundamente insano pensar que, em estado de ação, um indivíduo possa ver coisas
que não são reais. O fragmento a seguir evidencia detalhes do relato:
A literatura sobre o Everest é cheia de relatos de experiências alucinatórias,
atribuíveis à hipoxia e à fadiga. Em 1933, o famoso alpinista inglês Frank Smythe
observou “dois objetos curiosos flutuando no céu” diretamente acima dele, aos
8230 metros: “[Um] possuía o que pareciam ser asas atrofiadas, não desenvolvidas,
e o outro uma protuberância que sugeria um bico. Eles ficaram parados, imóveis,
mas pareciam vibrar lentamente”. Em 1980, durante sua escalada solo, Reinhold
Messner imaginou que havia um companheiro invisível escalando a seu lado. Aos
poucos me dei conta de que minha mente também estava atordoada e observei,
com um misto de fascínio e horror, a mim mesmo escorregando para fora da
realidade (p.88).
Outrossim, o autor relata também outro momento de confusão mental e alucinação
vivido em conjunto com um colega de escalada, evidenciando a problemática causada
na mente humana como fator torturante e aflitivo. O trecho a seguir revela o momento:
Por várias vezes Hall anunciou que estava se preparando para descer e num
determinado momento estávamos certos de que ele finalmente saíra do cume sul.
No acampamento 4, Lhakpa Chhiri e eu tremíamos do lado de fora das barracas,
espiando um minúsculo ponto se deslocando vagarosamente, descendo a parte
superior da crista sudeste. Convencidos de que se tratava de Rob, voltando afinal,
Lhakpa e eu batemos nas costas um do outro e o aplaudimos. Porém, uma hora
mais tarde, meu otimismo de repente se extinguiu quando reparei que o pontinho
continuava no mesmo lugar: na verdade não passava de uma rocha — mais uma
alucinação induzida pela altitude. Na verdade, Rob não chegara sequer a sair do
cume sul (p. 103-104).
Em suma, constata-se que Krakauer descreve como aflitiva, tormentosa
Ciências da Comunicação
Capítulo 7
73
e dramática a exposição ao ar rarefeito, uma vez que relata, com tom realista, as
sensações estranhas no funcionamento da percepção e ordenação de pensamentos
dos alpinistas envolvidos. Além disso, não há indícios no texto de momentos
tranquilos ou favoráveis quanto à exposição ao ar no topo do cume ou em seu trajeto.
O que se destaca nos relatos é sempre a concepção de condições respiratórias e,
consequentemente cerebrais, degradantes.
Para mais, constata-se que devido as influências do ar rarefeito na memória,
foram necessárias consultas imprescindíveis aos participantes da excursão para
confirmação e também apuração de outros acontecimentos, sendo narradas junto de
outras implicações, como as alucinações, que posteriormente foram introduzidas na
obra de forma direta, indireta e embutidas na narrativa do autor visando contribuir na
formação de conhecimento do leitor.
4.3 A ambição e o encanto que uma expedição ao Monte Everest gera
Krakauer relata em sua obra os motivos que levam um indivíduo a possuir o
sentimento de ambição, encantamento e também desejo de escalada ao topo do
Everest, revelando em uma das passagens considerações próprias. Fatores como a
busca por adrenalina, por satisfação de curiosidades e a ousadia em condições ditas
impossíveis de vida são levantados como causas relevantes.
Discorrendo sobre a historicidade do descobrimento do monte Everest e a
repercussão no que concerne ao desejo de o escalar, o autor evidencia argumentos
de um montanista que justificam o fascínio de conquistar o topo do mundo, o qual o
descreveu com ar curioso e desafiador. O trecho seguinte revela detalhes:
Uma vez estabelecido que o Everest era o pico mais alto da Terra, foi apenas
uma questão de tempo até que as pessoas decidissem que precisavam escalá-lo.
Depois que o explorador norte-americano Robert Peary proclamou ter chegado
ao Pólo Norte, em 1909, e Roald Amundsen liderou uma equipe norueguesa ao
Pólo Sul, em 1911, o Everest - o chamado Terceiro Pólo - tornou-se o objeto mais
cobiçado no reino das explorações terrestres. Chegar ao topo, declarou Gunther O.
Dyren-furth, um influente alpinista e cronista das primeiras expedições ao Himalaia,
era “uma questão de empenho humano universal, uma causa da qual não há como
fugir, sejam quais forem as perdas que exija”. Essas perdas, como se veria a seguir,
não foram insignificantes. (p. 25).
Ao narrar os primeiros momentos de viagem até o destino, o autor descreve o
evidente interesse de escalada ao Everest de um de seus colegas de alpinismo que
conhecera no saguão do aeroporto, Andy, que acabou por despertar seus antigos
sentimentos de escalada:
O interesse visível de Andy pelo alpinismo, seu entusiasmo genuíno pelas
montanhas me deixaram com saudades da época em que escalar era, para mim, a
coisa mais importante da vida, da época em que eu mapeava o curso da existência
em termos das montanhas que escalara e das que esperava um dia poder escalar.
Pouco antes de Kasischke - um homem atlético, alto, de cabelos prateados,
reservado e aristocrático - emergir da fila da alfândega, perguntei a Andy quantas
Ciências da Comunicação
Capítulo 7
74
vezes estivera no Everest. “Na verdade”, ele confessou alegremente, “esta vai ser
minha primeira vez, como você. Vai ser interessante ver como eu me viro lá em
cima” (p. 23).
O autor explicita os fatores que compõem a ambição de escalar o topo mais alto
do mundo, e descreve os grandes desafios que os alpinistas impõem a si próprios como
estratégias de visibilidade e superioridade, uma demonstração de força e resistência –
principalmente masculina – chegando a se maltratarem com tantas ousadias no trajeto
de escalada, como podemos observar no recorte:
A cultura do montanhismo era caracterizada por uma competição intensa e por um
machismo indisfarçável; a grande preocupação da maioria de seus integrantes era
impressionar uns aos outros. Chegar ao topo de uma determinada montanha tinha
muito menos importância do que a maneira como se chegava lá: o prestígio vinha de
se atacar a mais impiedosa das rotas com o mínimo de equipamento, no estilo mais
ousado que se pudesse imaginar. Ninguém era mais admirado do que o chamado
solista livre: visionários que subiam sozinhos, sem corda nem ferramentas (p.32)
Em sua chegada ao cume, o autor descreve sua própria sensação de alcançar
um lugar que poucos têm o privilégio de conhecer: “Chegar ao topo do Everest
supostamente desencadeia uma onda de intensa alegria; apesar de todos os pesares,
eu atingira uma meta cobiçada desde a infância” (p.188).
Em síntese, à vista dos aspectos descritos em relação ao fascínio que o monte
Everest causa nos alpinistas e curiosos, compreendemos a necessidade de enxergar
além dos desejos impulsivos e fantasiosos que uma expedição desse porte pode
ocasionar, visando a sensatez e controle emocional como pontos fortes no percurso.
Contudo, além da inferência de concepções do autor, os discursos de montanistas,
colegas de alpinismo e outras fontes consultadas na apuração são evidenciados como
posições discursivas que auxiliam no entendimento do aspecto apontado.
5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo buscou contribuir no âmbito da análise do discurso, sobretudo no
que concerne a discussões sobre a perspectiva dialógica de Bakhtin, pois traz as
características descritas do monte Everest na perspectiva de quem o escala. Assim, a
pesquisa possibilitou a identificação das concepções do autor e de outras fontes por
meio da metodologia utilizada, a perspectiva dialógica bakhtianiana. Como resultado
dessa análise, chegamos à decifração da questão principal: Como o monte Everest é
caracterizado no livro-reportagem “No ar rarefeito”, de Jon Krakauer?
Assim sendo, constatamos que através do processo de apuração jornalística, o
autor complementou suas ideias com relatos de alpinistas, especialistas e pessoas
que conhecera durante suas escaladas ou que já haviam escalado o Everest, além
de consultar outros meios de informação como escritos e materiais que apontassem
dados precisos sobre um acontecimento. Isto posto, entendemos que ele seguiu os
princípios de apuração que são necessários para o aprofundamento dos fatos e que,
Ciências da Comunicação
Capítulo 7
75
por consequência, implicam as relações dialógicas apontadas por Bakhtin. Ou seja, na
formação do livro-reportagem é necessária a presença do dialogismo, esse “debate”
entre textos/enunciados.
Concretizado dessa forma, podemos compreender as informações que estão
contidas na obra de forma abrangente e concluir, então, que “No ar rarefeito” reporta o
Everest como um lugar que oferece condições precárias para a sobrevivência humana
devido sua formação natural, além da presença do ar rarefeito que impossibilita o bom
funcionamento do cérebro.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra;
prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CATALÃO JUNIOR, Antonio Heriberto. Jornalismo best-seller: o livro-reportagem no Brasil
contemporâneo, 2010. 252 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Ciências e Letras de Araraquara, 2010. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/103497>. Acesso
em: 08 de junho de 2018.
ELIZIÁRIO, Eva Maria da Silva; CATALÃO JR, Antonio Heriberto. Amazônia em “Chico Mendes:
crime e castigo” – uma caracterização dialógica, 2011. Disponível em: <intercom.org.br/PAPERS/
REGIONAIS/NORTE2011/resumos/R26-0265-1.pdf>. Acesso em: 04 de junho de 2018.
JORGE, Thais de Mendonça. Manual do foca: guia de sobrevivência para jornalistas. São Paulo:
Contexto, 2008.
KRAKAUER, Jon. No ar rarefeito: um relato da tragédia no Everest em 1996. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
KRAKAUER, Jon. No ar rarefeito: um relato da tragédia no Everest em 1996. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. PDF
LAGE, Nilson. Teoria e Técnica de Reportagem, Entrevista e Pesquisa Jornalística, 2001.
Disponível em: <nilsonlage.com.br/wp-content/uploads/2017/10/A reportagem.pdf>. Acesso em: 08 de
julho de 2018.
PINTO, Milton José. Comunicação e discurso: Introdução à análise de discurso. 2.ed. São Paulo:
Hacker Editores, 2002.
ROCHA, Paula Melani; XAVIER, Cintia. O livro-reportagem e suas especificidades no campo
jornalístico. Revista Rumores, Ponta Grossa, v.7, 2013.
Ciências da Comunicação
Capítulo 7
76
CAPÍTULO 8
“DANÇANDO SOBRE ARQUITETURA” - DESAFIOS
ATUAIS DA CRÍTICA DE MÚSICA
Rafael Machado Saldanha
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro - RJ
RESUMO: O artigo discute o papel do crítico
musical no cenário contemporâneo da indústria
da música. Se anteriormente o crítico se
destacava por ser um orientador para o público
do que deveria ou não ser consumido, hoje
essa função de prescritor musical se encontra
cada vez mais questionada. Esse trabalho
busca então entender quais são os fatores
determinantes para se desempenhar esse papel
de guia de escolhas e o porquê dos críticos
musicais estarem perdendo essa função no
panorama atual.
PALAVRAS-CHAVE: Crítica de música;
Prescrição musical; Jornalismo cultural; Música
popular; Curadoria.
ABSTRACT: The article discusses the role of
the music critic in the contemporary setting of
the music industry. If previously the critic stood
out for being a guide to the public of what should
or should not be consumed, today this function
of musical prescriber is increasingly questioned.
This work seeks to understand which the
determinant factors are in order to play this role
of choices guide and why the music critics are
losing this function in the current panorama.
Ciências da Comunicação
KEYWORDS:
Music
criticism;
Musical
prescription; Cultural journalism; Popular music;
Curatorship.
1 | INTRODUÇÃO
“Escrever sobre música é como dançar
sobre
arquitetura”.
A
frase,
comumente
atribuída ao músico inglês Elvis Costello,
ilustra bem a dificuldade que existe em se
tentar avaliar racionalmente algo que foi feito
para ser sentido. Nas últimas décadas, o
jornalismo cultural exerceu uma importante
função dentro do campo musical: além de
disseminar a informação, foi responsável pela
prescrição de músicas antes mesmo de haver
mídia audiovisual massiva. Num momento
histórico em que o acesso a discos era caro
e difícil, as pessoas precisavam escolher bem
quais obras eram dignas de serem compradas.
Nesse cenário, a figura do crítico de música,
que serviria como uma espécie de guia, era
fundamental para orientar os consumidores. No
entanto, as mudanças bruscas nas formas de se
consumir e distribuir músicas do final do século
XX fizeram com que o acesso aos produtos
fonográficos se tornasse fácil e barato – muitas
vezes até mesmo gratuito. Assim, passou-se
a questionar o papel do crítico musical como
Capítulo 8
77
orientador do que é bom ou ruim.
O presente trabalho se propõe a iniciar uma discussão sobre os elementos
necessários para se desempenhar essa função de prescritor musical e debater as
razões pelas quais se acredita que o crítico musical vem perdendo força nessa posição.
2 | JORNALISMO CULTURAL
A definição acadêmica do que seria o jornalismo cultural foi, por muito tempo,
motivo de controvérsia. Partindo de uma discussão antropológica, com seu conceito
amplo de cultura, era comum ler que todo jornalismo é cultural, uma vez que cultura
seria tudo aquilo produzido pelo pensamento ou pela ação humana (SALDANHA,
2005). No entanto, uma rápida observação pelos cadernos especializados em cultura
nos periódicos jornalísticos nos indica que “cultura” é entendida por estes de uma
forma mais restrita. Voltado para artes e espetáculos, alguns autores tendem a chamar
essa segmentação de Jornalismo da Indústria Cultura.
Artista e jornalista participam do circuito, em pontos diferentes da linha de
montagem: um músico, um pintor, um escritor, dependem não só do seu próprio
fazer, mas também da imagem que conseguem articular frente ao público. O
jornalismo cultural, mesmo o mais independente, é o virtual complemento do
mercado artístico, é algo que está fora e dentro da cultura. (SUZUKI JR apud
SALDANHA, 2005a: s/n)
Essa classificação muitas vezes carrega um viés classista, que coloca os produtos
da chamada “cultura de massa” como inferiores a um ideal puro de “alta cultura”, ou
simplesmente enxerga nos produtos da “Indústria Cultural” uma distração sem valor,
criada para afastar o proletariado de uma emancipação por meio da arte (MORIN,
1997, PIZA, 2003).
Podemos afirmar, no entanto, que o jornalismo cultural como relato e análise
de performances artísticas já existia antes mesmo da chamada “Indústria Cultural”
se firmar. No século XIX, jornais brasileiros já dedicavam páginas para a avaliação
de espetáculos exibidos nas principais cidades do país (GIRON, 2004). Oscar
Guanabarino, considerado “fundador da crítica especializada no Brasil” (GIRON,
2004:16), já atuava em periódicos na década de 1870.
Nesse trabalho, ecoamos a visão de Piza, que ao relativizar o caráter efêmero
do mercado de obras criadas dentro da lógica da indústria cultural diz que
O jornalismo, que faz parte dessa história de ampliação do acesso a produtos
culturais, desprovidos de utilidade prática imediata, precisa saber observar esse
mercado sem preconceitos ideológicos, sem parcialidade política. Por outro lado,
como a função jornalística é selecionar aquilo que reporta (editar, hierarquizar,
comentar, analisar), influir sobre os critérios de escolha dos leitores, fornecer
elementos e argumentos para sua opinião, a imprensa cultural tem o dever do
senso crítico, da avaliação de cada obra cultural e das tendências que o mercado
valoriza por seus interesses, e o dever de olhar para as induções simbólicas e
morais que o cidadão recebe. (PIZA, 2003:45)
Ciências da Comunicação
Capítulo 8
78
Não nos interessa, assim, discutir a qualidade dos produtos analisados por esse
jornalismo cultural, e sim avaliar o papel que esse jornalismo tem desempenhado
atualmente no mercado da música.
3 | O JORNALISMO CULTURAL E A PRESCRIÇÃO MUSICAL
A ideia de se entender os processos necessários para que a música produzida
encontre seu público consumidor é algo imperativo para o mercado fonográfico.
Bourdieu (2015), ao falar sobre o processo de autonomização da arte, enxergava o
surgimento de instâncias de difusão e consagração, que se posicionariam entre o
campo da produção e o campo do consumo no mercado de bens simbólicos. Esses
“intermediários” seriam entidades “(...) investidas por uma legitimidade propriamente
cultural, ainda que (…) continuem subordinadas a obrigações econômicas e sociais
capazes de influir, por seu intermédio, sobre a própria vida intelectual.” (BOURDIEU,
2015:100). Amparados por Ventura (2009), podemos afirmar que, historicamente, o
jornalismo cultural – em especial a crítica cultural – foi um dos fatores a ocupar esse
espaço intermediário, pois “o jornalismo cultural, mas não apenas este, cumpre uma
função de legitimação ao transformar estes ou aqueles fatos culturais em notícia,
delimitando aquilo que merece ser transmitido, difundido, criticado e, por isso mesmo,
conservado, daqueles fatos que não o merecem.” (VENTURA, 2009:3). Herschmann
reforça essa ideia no campo da música ao dizer que:
(...) analisando os últimos sessenta anos da história da música poder-se-ia afirmar
que, após a Segunda Guerra Mundial, os jovens entravam em contato com a
música através de discos compactos (com singles), Long Plays e estações de
rádio. Nos anos 1980 e 1990, ocorre uma mudança e passam a tomar gosto pelos
diferentes gêneros também através de revistas especializadas, CDs, da MTV e de
outros canais de televisão dedicados à música. (HERSCHMANN, 2010a: 105-106)
Gallego chama esse processo de “prescrição musical”. Embora o dicionário
ofereça uma acepção mais ampla, o verbo “prescrever”, em sua forma transitiva,
remete no Brasil ao ato médico de receitar um tratamento. Gallego (2011) reconhece
esse entendimento ao dizer que, embora vinculado à relação médico-paciente, o
vocábulo foi adaptado ao mundo empresarial. Ele se baseia em um artigo de jornal
para tentar definir o que seria a prescrição musical. Segundo esse artigo, o prescritor
seria “Um sujeito – pessoa, empresa, associação setorial, chat, portal ou comunidade
virtual – que, tanto na rede ou fora dela, emite uma opinião ou uma recomendação
(feedback) com influência na decisão de compra ou contratação de outros usuários.”
(FERREIRA, 2003: 57). Na sequência, ele nomeia quem seriam esses prescritores:
A partir dessas definições, deduzimos que a indústria musical teve como principais
formadores de opinião o locutor de rádio, o crítico musical e o programador de
televisão. A estes se somam sem dúvida, a propaganda boca a boca (ou seja, as
recomendações das pessoas de confiança do consumidor). Amigos, conhecidos
ou comerciários das lojas de discos foram, historicamente, pessoas chave na hora
de selecionar e recomendar produtos culturais – filmes, músicas, livros.
Ciências da Comunicação
Capítulo 8
79
Não se pode negar a importância desses atores no desenvolvimento do gosto,
mas na hora de gerar uma massa globalizada em torno do consumo da cultura,
a presença da grande mídia foi fundamental ao longo da história. (GALLEGO,
2011:48. Grifo nosso).
Para entender esse ponto, podemos voltar ao artigo de jornal “Los prescriptores
ganan terreno en Internet”, de onde Gallego tomou emprestado o conceito de
prescrição. Investigando sobre as características desejáveis aos prescritores digitais,
a autora entrevista dois especialistas:
José Maria Insúa, diretor de tecnologia e segurança da PwC
A condição sine qua non para atuar como prescritor, tanto online como em
ambientes convencionais, é desfrutar de prestígio entre os consumidores a quem
se quer influenciar.
(...)
Lluís Renart, professor do IESE
Toda prescrição é baseada na confiança. Esta, por sua vez, depende de uma
constatação, além de qualquer dúvida razoável, que o prescritor tem capacidade
técnica e conhecimento suficientes e retitude em sua intenção. Ou seja, emitir sua
prescrição desejando ser verdadeiramente útil e o bem do destinatário. (FERREIRA,
2003:7...Tradução nossa.)
Baseando-se conceitos de Anthony Giddens, Miguel (1999) estabelece o
jornalismo como um sistema perito, conceito que aproximaria este de uma instância
prescritora. O autor estipula duas características como essenciais para os sistemas
peritos: um alto grau de autonomia do sistema em relação aos consumidores, que não
influenciam neste senão por mecanismos de mercado, e a crença dos consumidores
na competência do sistema. Coincidentemente, o exemplo de sistema perito usado
por Miguel em seu artigo é a medicina, que mais uma vez nos remete à ideia de
prescrição.
Um dos atrativos do jornalismo cultural é justamente o fato de ele estar sempre
“nos indicando, em geral, coisas boas para fazer” (Piza, 2003:64). Para o autor,
(…) uma função básica da crítica é, sim, julgar, no sentido de fazer uma opção
pessoal, de qualificar uma obra em escala (de péssima a excelente), e o leitor
que concorde ou discorde. Cabe ao crítico, primeiro, tentar compreender a obra,
colocar-se no lugar do outro, suspender seus preceitos, para então sedimentar as
ideias e, mesmo que exprimindo dúvidas, chegar a uma avaliação. O leitor, além
do próprio artista, quer essa reação”. (PIZA, 2003: 78-79)
Ao discutir a obra de grandes escritores que atuaram como críticos musicais,
Bollos (2005) deixa clara a função de orientador de consumo do crítico ao falar do
desempenho do poeta mineiro Murilo Mendes, que “colaborava regularmente em
jornais escrevendo sobre música erudita com a proposta de auxiliar seus leitores a
compor uma discoteca de música.” (BOLLOS, 2005:270-271. Grifo nosso). A autora,
no entanto, censura a prática atual por enxergar uma “insuficiência da crítica cultural
Ciências da Comunicação
Capítulo 8
80
atual na análise de música, sendo esta relegada, ou melhor, esquecida do seu papel
primordial, que é a compreensão da obra.” (BOLLOS,2006:121)
4 | A CRISE DA CRÍTICA COMO PRESCRITOR MUSICAL
Recentemente, uma série de artigos em veículos de comunicação norte-
americanos começou a discutir a falência do jornalismo musical, mais precisamente a
crítica de discos. Em fevereiro de 2016, o site de entretenimento Noisey perguntava:
“Is the album review dead?”. Em 14 de agosto de 2017, o respeitado The Wall Street
Journal tinha como manchete em seu caderno Life & Arts: “What happened to the
negative review?” (“O que aconteceu com as resenhas negativas”, tradução nossa.),
pergunta que foi repetida uma semana depois pelo site especializado em música
Bearded Gentleman Music. O que motivaria esses questionamentos? Seriam eles
indicativos do ocaso do jornalismo musical como espaço de prescrição musical?
O artigo da Noisey, escrito por Dan Ozzi, dá vários indícios da perda desse
espaço. Ao final do quinto parágrafo, ele explicita a função de orientador de consumo
ao dizer: “Em 1970 — uma época em que ainda não existia internet, MTV, e rádio
satélite — as resenhas eram uma fonte valiosa de informações para os fãs de música.
As resenhas tinham o poder de formar opiniões. As resenhas tinham o poder de
vender discos.”(OZZI, 2016). No entanto, ao empregar o verbo no passado (“tinham”)
e colocar as resenhas em oposição a outros meios de prescrição musical surgidos
mais recentemente, ele dá a entender que o jornalismo musical foi superado nessa
atribuição.
Como vimos, a capacidade do jornalismo cultural como prescritor musical está
diretamente ligado à confiança da isenção dos interesses de seus atores e na crença
na sua capacidade. Tentaremos identificar a seguir os problemas da atuação dos
críticos musicais relacionados a esses aspectos.
4.1 Críticos pouco confiáveis?
O primeiro fator que leva à desconfiança da isenção dos críticos em suas resenhas
é a interferência econômica por parte do campo de produção. Essa ingerência não é
exclusiva dos meios jornalísticos, afetando quase todas as entidades identificadas
como prescritoras musicais. Proibida nos Estados Unidos – onde é chamada de payola
– no Brasil o chamado “jabá”, embora malvisto, é liberado.
(...) uma prática muito comum para se ter acesso às rádios e emissoras de televisão
a cobrança de um valor financeiro chamado vulgarmente de “jabá”. Sem este
pagamento, o artista que não desperte maior interesse dos patrocinadores destas
mídias de comunicação fica excluído da grade de programação e a ausência
de visibilidade junto ao público pode prejudicar a sua carreira. Nesse sistema, o
público é visto como mero consumidor, ao invés de participar deste processo de
criação de produção cultural. (MATOS et al: 2014:2)
Ciências da Comunicação
Capítulo 8
81
Embora seja mais comum em veículos que se propõem a executar a música
propriamente dita, deixando a avaliação para o próprio ouvinte, críticos e resenhistas
não estão imunes à sedução financeira direta ou indireta por parte dos produtores:
A forma mais desavergonhada é o jabá, remuneração recebida de forma direta ou
indireta, em retribuição à qual o jornalista privilegia, em sua cobertura, o produto/
evento cultural que o pagou, transformando o que seria um espaço de apuração
jornalística em espaço comercial, sem informar explicitamente ao leitor. Um
desdobramento do jabá, pois também enfoca uma relação promíscua do jornalista
com os departamentos de marketing da IC, é o chamado junket, ou “viagem paga”.
(CUNHA et al, 2002:13)
No entanto, a pressão financeira não é a única a atuar sobre os jornalistas que
cobrem e opinam na área da música. Um intrincado sistema de compadrio atua no
meio, fazendo com que alguns artistas tenham resenhas mais favoráveis independente
da qualidade da obra analisada, por possuírem prestígio junto aos agentes do meio
jornalístico.
Outra questão, destacada por Antônio Siúves, editor do Magazine, caderno
cultural do jornal O Tempo, é o que ele chama de “síndrome de quermesse”: o
provincianismo nas relações da imprensa com artistas e personalidades. “aqueles
que se sentem lesados ligam diretamente para os diretores de redação, querendo
saber porque foram discriminados em determinadas pautas”. (SJC, 1998)
No extremo, isto acaba gerando, segundo Luís Antônio Giron (SJC, 1998), uma
espécie de “lista branca”, composta por artistas ou personalidades inatacáveis, por
serem amigas da direção, ou por serem consideradas unanimidades artísticas ou
intelectuais. (CUNHA et al, 2002: 14)
O artigo de Ozzi levanta ainda uma outra possibilidade de constrangimento no
exercício da crítica que levaria os analistas a usarem “tintas suaves” ao resenhar
uma determinada obra: alguns artistas teriam bases de fãs que os defenderiam
incondicionalmente. Assim, uma resenha negativa poderia gerar um problema tanto
para quem publica esses textos como para quem os escreve. Para o veículo, pode
resultar em um boicote dos fãs do artista criticado. Para o autor, as consequências
podem ser ainda mais graves:
Não é preciso blogar um texto de 1.600 palavras para realizar uma refutação
eficiente, contudo. Com o simples uso de uma “@” em um tuíte, um artista pode
foder toda uma semana da vida do crítico, transformando seus milhares de fãs em
armas que atacarão o agressor. Às vezes é algo inócuo e inofensivo, e pode até
mesmo estimular um diálogo público. Quando isso é direcionado a resenhistas
mulheres, a coisa pode ficar especialmente feia. Depois que a escritora Lynn
Hirschberg escreveu sobre M.I.A. na The New York Times Magazine em 2010, a
artista inglesa reagiu tuitando o número de telefone de Hirschberg, estimulando
os fãs a ligar para ela e deixar mensagens, um ato que Hirschberg mais tarde
classificou como “exasperante, mas não surpreendente”. (OZZI, 2016).
Em abril de 2016, a Vice – revista eletrônica do mesmo grupo da Nosey – publicou
um outro artigo, chamado “I was threatened with death after writing a bad music review”
(“Eu fui ameaçado de morte após uma resenha musical ruim”. Tradução nossa. ), onde
o crítico John Doran descreve as inúmeras ameaças de morte que havia sofrido em
Ciências da Comunicação
Capítulo 8
82
mais de uma década de jornalismo musical. De uma forma ou de outra, a pressão dos
leitores sobre os autores rompe com a autonomia necessária entre as partes descrita
por Miguel (1999) para caracterizar o sistema-perito.
Resultado dessas pressões ou não, o fato é que cada vez menos resenhas
negativas de discos vêm sendo publicadas. Usando dados do site Metacritic, um
agregador de críticas que reúne as análises publicadas pelos principais meios
de comunicação dos Estados Unidos, o jornalista Neil Shah (2017) constatou que
entre 2012 e 2016, somente oito discos entre os 7287 avaliados tiveram resenhas
desfavoráveis. O número não se repete quando o objeto de crítica é cinema, videogames
ou programas de televisão. Em seu artigo, Aaron Cooper (2017) argumenta que essa
“falta de negatividade” acaba não despertando discussões sobre as obras, e que
artistas que recebem somente resenhas positivas têm pouco estímulo para melhorar.
4.2 Críticos pouco competentes?
Se a isenção dos críticos é questionada, o mesmo pode ser dito da capacidade
técnica destes nos tempos de hoje. A musicóloga Liliana Bollos vê no afastamento dos
eruditos e acadêmicos das redações de jornais um sinal dessa degeneração:
Diferentemente da crítica de música erudita, que produziu um jornalismo cultural
de características literárias desde a primeira metade do século XX com expoentes
importantes da nossa cultura como os escritores Mário de Andrade, Murilo Mendes
e Otto Maria Carpeaux, a crítica de música popular no Brasil teve início efetivamente
com o advento da bossa nova, na segunda metade do século XX, alvo da primeira
grande manifestação de crítica nos jornais brasileiros. Influenciado pela indústria
cultural e pelo poder dos meios de comunicação (e mais tarde pela obrigatoriedade
do diploma de jornalismo), esse formato de jornalismo impôs novos padrões à
crítica musical, sendo o escritor substituído pelo “cronista”, pelo jornalista nãoespecialista, e irá explorar do texto um caráter mais ideológico e histórico e menos
estético, deixando os aspectos musicais para segundo plano.
Consideramos esse fato um aspecto negativo da crítica musical, criando mesmo
um obstáculo para o entendimento do repertório musical brasileiro, pois, o objetivo
da crítica jornalística é o de ser capaz de identificar o projeto do artista analisando
a obra, possibilitando que esta seja divulgada e assimilada por outras pessoas.
(BOLLOS, 2005:272)
Cespede (2013) vê nessa postura de sobrevalorizar somente o saber douto um
processo que relega o homem comum a um papel de mero consumidor dessa cultura
musical, sem direito a fala. A mudança no perfil crítico cultural, que Bollos vê como
problema, é vista de maneira mais otimista por Cunha et al (2002). O que faltava
em saber técnico era compensado com uma vivência que garantia um olhar menos
desconfiado em relação ao objeto de análise:
(...) motivo apontado para a mudança de postura dos cadernos de cultura é o fato
de que os próprios jornalistas que entraram nas redações na década de 1980 já
tinham vivenciado (e não como jornalistas) a contracultura dos anos 1960 e 1970,
e não aceitavam rotular a cultura de massas, como um todo, como adversária,
perigosa, colonialista. É o que explica DAPIEVE (2001:167/169), citando o exemplo
da explosão roqueira no Brasil (e na mídia brasileira), nos anos 1980:
Ciências da Comunicação
Capítulo 8
83
Antes da minha geração, a idéia de que rock pudesse ser cultura brasileira era
absolutamente herética. As pessoas achavam que era impossível se fazer rock no
Brasil porque rock só podia ser cantado em inglês, era uma forma necessariamente
imperialista, americana ou inglesa, de tratar das coisas (...) (Já os roqueiros da
minha geração encontraram eco) em jornalistas que tinham a idade deles ou até
um pouco mais, e que tinham crescido com as cabeças feitas pelos ideais da
década de 1960 que passaram pelo rock, fossem Beatles, Bob Dylan ou Grateful
Dead, mas que tinham uma coisa em comum: o rock era um dado contracultural,
não necessariamente uma manobra das gravadoras americanas para impingir um
tipo de música à juventude do resto do mundo e lobotomizá-la. (CUNHA et al, 2002:
7-8)
Porém mesmo essa “vivência” passa a ser questionada recentemente. Ballerini
(2015) aponta para um cenário onde o jornalista não faz adequadamente nem a crítica
estética nem a avaliação histórica:
Contribui para um cenário difícil a própria formação do jornalista cultural musical.
Lobão chegou a viver situações constrangedoras por causa disso. “Já aconteceram
coisas absurdas, como comentarem o meu show afirmando que eu estava fazendo
um cover do Cazuza com ‘Vida louca vida”. Isso numa das revistas especializadas
de maior prestígio. (...)”, diz o músico. (BALLERINI, 2015, p.158)
Piza(2003) ainda ressalta que é um equívoco acreditar que o pop – a música
produzida dentro da indústria cultural – não demanda conhecimentos prévios. Ele vê
nessa prática uma certa dose de “esnobismo”.
Pode-se pensar ainda que o problema não é a falta de competência dos agentes,
mas sim a precariedade do processo. Dapieve (Apud CUNHA, 2002) sugere que
com redações reduzidas e fluxo grande de fatos, privilegia-se a informação sobre a
opinião. “O problema se intensifica na medida em que o tempo de produção de um
caderno é acelerado, caso típico do jornalismo diário. Aqui há uma dificuldade maior
em superar os obstáculos e limites impostos pelo ritmo industrial do veículo (CUNHA
et al, 2002:10)”.
Um fator pouco trabalhado pela academia que determinava o papel do crítico como
prescritor musical era seu acesso facilitado aos bens culturais – no caso LPs e Singles
que custavam caro para a maioria das pessoas, mas eram fornecidos gratuitamente
para os veículos de comunicação. Assim, a opinião do crítico era relevante até mesmo
pela escassez de outras opiniões. Isso chama a atenção de Ozzi (2016), que constata:
Há tantos serviços competindo para nos oferecer streaming de música — Spotify,
Pandora, YouTube, Apple Music, Tidal, Google Play, Amazon Prime, Rhapsody,
8tracks, Soundcloud e Bandcamp, para mencionar apenas alguns (e isso deixando
de fora o mercado de downloads ilegais) — que para ouvir tudo seriam precisos
centenas de milhares de anos. Então, com cada novo disco disponível ao clique de
um mouse de maneira totalmente gratuita no mesmo instante em que ele é lançado,
para que você mesmo forme uma opinião sobre o disco, é preciso fazer a pergunta:
nós ainda precisamos das críticas? (OZZI, 2016).
O acesso à informação deixou de ser um fator relevante, já que a internet
possibilita que qualquer pessoa conectada a ela chegue a qualquer arquivo que nela
estiver disponível. A escassez, que antes determinava as escolhas dos indivíduos, foi
substituída por um excesso, que poderia dificultar o usuário a travar conhecimento
Ciências da Comunicação
Capítulo 8
84
do que está disponível. Cespede (2013) vê nesse fenômeno uma lógica que passa
a ser “bottom-up” – de baixo pra cima – onde cada usuário anônimo tem o potencial
de influenciar, e até mesmo “reverter as dinâmicas de mediação de conteúdo e
conhecimento presentes desde o surgimento dos meios de comunicação de massa
no início do século XX” (CESPEDE, 2013, p.90). Um veículo popular de prescrição
musical é a plataforma de vídeos YouTube, principalmente através dos chamados
“vídeos de reação”. Kim (2016) demonstra esse fato ao observar que os vídeos de
reação à músicas de grupos de K-Pop se tornam tão populares que por vezes passam
a substituir o consumo dos vídeos originais por parte da audiência, tendo assim caráter
formativo na economia da atenção.
Economia da atenção é, segundo Goldhaber (1997), uma nova forma de economia
surgida na era digital, onde atenção é enxergada como propriedade. Diferentemente
da informação, que é abundante, atenção é um recurso escasso e é negociado
numa relação competitiva e exclusiva. (…) Vídeos de reação, o tema da pesquisa
atual, são notáveis por terem um efeito formativo na economia da atenção, por
levarem a troca da atenção das estrelas do K-Pop nos videoclipes para as pessoas
comuns em vídeos de reação.” (KIM, 2016, p.334. Tradução nossa.)
Essa ideia das pessoas comuns agindo como prescritoras é, de alguma forma,
corroborada por Ozzi:
Gradualmente, com o crescimento da popularidade dos blogs, as pessoas
normais aproveitaram a oportunidade de tomar para si o poder da crítica, outrora
exercido exclusivamente por publicações tradicionais. Webzines como Pitchfork
e Buddyhead, ambas criadas por indivíduos em suas próprias casas no final
dos anos 90, ganharam prestígio por conta de suas análises críticas subjetivas,
inexperientes e sem filtros das músicas, arrebanhando públicos que rivalizavam
com os de veículos financiados por corporações, como Rolling Stone e SPIN. Eles
eram os novos substitutos do velho mundo do jornalismo de música, que requeria
editores, copidesques e escritórios de tijolo e argamassa. Ao contrário dos zines
impressos de circulação limitada, esses sites tinham o potencial de alcançar o
mundo inteiro. Agora tudo estava em condições de igualdade, e a crítica musical,
de repente, podia ser feita por qualquer blogueiro enfurnado em qualquer quarto
que tivesse uma conexão com a internet.
Alguns desses blogs se oficializaram no decorrer da década seguinte — o caso
mais notável sendo o da Pitchfork, que foi adquirida no ano passado pela gigante
Condé Nast. Mas até mesmo a Pitchfork, que por uma década deteve o padrão de
ouro das críticas de discos, agora está perdendo terreno para opiniões em tempo
real emitidas pelas massas por meio de serviços de mídia social como o Twitter.
(OZZI, 2016)
O jornalista demonstra ainda preocupação com os rumos que o jornalismo musical
(e a própria música) podem tomar diante disso. O influxo de potencialmente qualquer
pessoa no campo da prescrição poderia diluir sua relevância ao ponto da quase
insignificância. Nesse cenário, onde o acesso aos conteúdos musicais é facilitado, não
bastasse o jornalismo cultural ganhar a concorrência do homem comum no processo
de prescrever músicas, surgem também sistemas de recomendação musical baseados
em algoritmos e operados por computadores.
Ciências da Comunicação
Capítulo 8
85
5 | CONCLUSÃO
Mesmo com todas essas críticas, não é possível decretar o fim do jornalismo
cultural como elemento de prescrição musical. Segundo Ozzi (2016), ainda hoje lojistas
percebem uma venda melhor de discos que receberam boas resenhas, seja de críticos
especialistas em veículos tradicionais, seja nos veículos surgidos com a emergência
da opinião do homem comum. O que não se pode negar é que o campo passou por
uma grande transformação, e que o papel da crítica musical e seus agentes precisa
ser ressignificado.
Lester Bangs aponta para um cenário onde o próprio ouvinte forma sua opinião
sobre a música que toma contato, ao dizer que “se você pode ouvir uma música nas
rádios, isso vai influenciar você a comprar o disco muito mais do que qualquer coisa
que tenha lido.” (OZZI, 2016). Ao escrever sobre novas formas de prescrição musical,
Gallego (2011) descreve o panorama da indústria da música onde o rádio, a TV, os
videogames e os programas de streaming competem com o crítico musical na hora
de dizer o que será consumido pelos ouvintes. Na atual conjuntura, onde todos têm
acesso rápido e fácil a quase qualquer música produzida, a prescrição está mais em
direcionar essas músicas para que efetivamente cheguem aos ouvintes do que em
tentar influenciar na reação destes à música.
Porém, se a crítica musical foi – ao menos em parte – destituída de sua função
de prescrever, ainda resta o papel de registrar a maneira como determinadas obras
foram recebidas em seu tempo (GIRON, 2004) e de servir como uma resposta mais
elaborada para os próprios artistas pensarem em suas obras.
REFERÊNCIAS
BALLERINI, Franthiesco. Jornalismo cultural no século 21: literatura, artes visuais, teatro, cinema
e música: a história, as novas plataformas, o ensino e as tendências na prática. São Paulo: Summus,
2015.
BOLLOS, Liliana H.. Crítica musical no jornal: uma reflexão sobre a cultura brasileira. Em: Opus
(Porto Alegre), Campinas, v. 11, n.11, 2005.
______________. Mário de Andrade e a formação da crítica musical brasileira na imprensa. Em:
MÚSICA HODIE, v. 6, 2006.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2015.
CESPEDES, Fernando Garbini. Todos somos DJs: como as redes sociais digitais amplificam a
voz do homem comum e alteram os processos de construção do gosto musical. Dissertação
(Mestrado em Ciências da comunicação) Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2013).
COOPER, Aaron. Where are the negative music reviews? - How the lack of negativity is
killing journalism. Em: Bearded Gentlemen Music, 22 de agosto de 2017. (disponível em https://
beardedgentlemenmusic.com/2017/08/22/negative-music-reviews/).
Ciências da Comunicação
Capítulo 8
86
CUNHA, Leonardo Antunes ; FERREIRA, Nísio Antônio Teixeira ; MAGALHÃES, Luiz Henrique Vieira
de . Dilemas do Jornalismo Cultural Brasileiro. Em: Revista Temas, Belo Horizonte, 2002.
DORAN, John. I was threatened with death after writing a bad music review Em: Vice, em 15 de
abril de 2016. (Disponível em https://www.vice.com/en_us/article/kwzynx/jolly-lad-blackmetal-johndoran).
FERREIRA, Rita. Los prescriptores ganan terreno en Internet. Em: Diario Expansión, Madri, 24 de
outubro de 2003. p.57.
GALLEGO, Juan Ignácio. Novas formas de prescrição musical. Em: HERSCHMANN, Micael. Nas
bordas e/ou fora do mainstream. Novas tendências da Indústria da Música Independente no início do
século XXI. São Paulo: Ed. Estação das Letras e das Cores, 2011.
GIRON, Luís Antônio. Minoridade crítica – a ópera e o teatro nos folhetins da corte. 1826 – 1861.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo – Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
HERSCHMANN, Micael. A indústria da música em transição. São Paulo: Ed. Estação das letras e
cores, 2010a.
______________. Uma nova indústria da música “mostra sua cara”: relevância socioeconômica
dos videogames musicais. Em: TRANS – Revista transcultural de música. 2010b.
KIM, Y. Globalization of the privatized self-image: The reaction video and its attention economy on
YouTube. Em: Routledge handbook of new media in Asia. Nova Iorque: Routledge, 2016.
MATOS, Gabriel Ferreira de; BICALHO, Mariana Ferreira; SOUZA, Luciana Cristina de. Música livre:
uma análise do futuro da circulação de obras musicais. Apresentado em VIII Simpósio Nacional
da ABCiber. São Paulo: 2014.
MIGUEL, Luiz Felipe. O jornalismo como sistema perito.Em: Tempo Social, vol.11 no.1 São Paulo,
1999.
MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX – Volume 1: Neurose. Rio de Janeiro: Forense
universitária, 1997
OLIVEIRA, Cassiano Francisco Scherner de. O criticismo do rock brasileiro no jornalismo
de revista especializado em som, música e juventude: da Rolling Stone (1972-1973) à Bizz
(1985-2001). Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Comunicação – Faculdade de
Comunicação Social, PUCRS. – Porto Alegre, 2011.
OZZI, Dan. A resenha de discos morreu? Em: Noisey, em 14 de março de 2016 (Disponível em:
https://noisey.vice.com/pt_br/article/rmvzpq/a-critica-de-discos-morreu)
PIZA, Daniel. Jornalismo cultural. São Paulo: Contexto, 2003.
SÁ, Simone Pereira. Se vc gosta de Madonna também vai gostar de Britney! Ou não? Gêneros,
gostos e disputa simbólica nos Sistemas de Recomendação Musical. Em: Revista da Associação
Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação | E-compós, Brasília, v.12, n.2, maio/
ago. 2009.
SALDANHA, Rafael Machado. Rock em revista: o jornalismo de rock no Brasil. Monografia
(Graduação em Comunicação Social) Faculdade de Comunicação Social, Universidade Federal de
Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2005).
__________. O jabá por escrito, indústria fonográfica e a nova Bizz: reflexões sobre o
jornalismo de rock em 2005.. Em: III Encontro Regional de Comunicação, 2005, Juiz de Fora, 2005.
Ciências da Comunicação
Capítulo 8
87
SHAH, Neil. What Happened to the Negative Music Review? Em: The Wall Street Journal, Nova
Iorque, 14 de agosto de 2017. pp.A11 e A13.
VENTURA, M. S.. Posicionamento e lugar dos agentes na crítica cultural: um estudo sobre
a relação entre valores-notícia e hierarquia de legitimidades. Em: RUMORES (USP), v. 6, p.
SetDez, 2009.
Ciências da Comunicação
Capítulo 8
88
CAPÍTULO 9
ALBERTO DINES E O PAPEL DA CRÍTICA
JORNALÍSTICA NA IMPRENSA BRASILEIRA
Diana de Azeredo
Programa de Pós-Graduação em Jornalismo
(UFSC)
Florianópolis - SC
RESUMO: Este artigo apresenta uma síntese
da contribuição de Alberto Dines para pensar
sobre o jornalismo brasileiro. A ênfase é dada
para suas reflexões acerca da crítica de mídia,
área na qual foi o precursor no país. Ao ter
como ponto de partida a biografia e as principais
obras do jornalista, segue-se registrando as
suas ideias sobre liberdade de imprensa e
autorregulamentação da imprensa. Como
estratégia metodológica, utiliza-se o estudo
de caso, considerando o autor, a produção e
o contexto produtivo. Devido às limitações de
espaço, objetivo é propor um registro das ideias
que marcam a trajetória de Dines como um
praticante e um observador do jornalismo.
PALAVRAS-CHAVE: Alberto Dines. Jornalismo.
Crítica.
ABSTRACT: This paper shows a synthesis of
Alberto Dines’s contribuition for to think about
brasilian journalism. A emphasis is on his
reflections about media criticism, where he
was precursor in our country. As of journalist’s
biography and his principal works, this research
registers his ideas about press freedon and
Ciências da Comunicação
press self-regulation. The method is case study,
considering author, work and worked context.
Because of space’s limitations, the objective
is to propose the ideas’s register remarkables
of Dines’s life trajectory like a exerciser and a
observer of journalism.
KEYWORDS: Alberto Dines. Journalism.
Criticism.
1 | O JORNALISTA, O OBSERVADOR E O
CIENTISTA
Alberto Dines faleceu, aos 86 anos, devido
a uma pneumonia, em 22 de maio deste ano.
Nunca se disse cientista. Chamou a si mesmo
de “experimentador”. “Vale dizer que, no
máximo, pratico ciência, não a formulo”, alertou
já na introdução de sua obra clássica (DINES,
1977, p. 3). Uma década depois, outra grande
referência na pesquisa em jornalismo, Melo
(1986, p. 12) reconheceu a “nítida vocação
científica” de Alberto Dines. E cita a carreira
profissional do jornalista para confirmar seu
apontamento.
Filho de imigrantes judeus poloneses,
Dines nasceu no Rio de Janeiro, em 19 de
fevereiro de 1932. Ao completar 85 anos, foi
homenageado com um livro que reúne ensaios
a respeito de seus temas preferidos. Na obra,
Capítulo 9
89
Milgram e Koifman (2017) resumem a biografia de Dines. Segundo eles, como filho
de quem aprendera a arte de escriba e, após ser matriculado na Escola Popular
Israelita Brasileira Scholem Aleichem, desenvolveu sua paixão pelas letras (impressas
e desenhadas) por meio da literatura.
Foi durante uma visita do escritor Stefan Zweig ao colégio, quando Dines era
um estudante de oito anos de idade, que uma semente foi plantada: quatro décadas
depois, em 1981, o jornalista brasileiro lançou a biografia “Morte no Paraíso”, relatando
parte da vida e da obra do intelectual judeu, oriundo da Áustria. O tema acabou se
tornando uma obsessão para Dines, que assinou quatro edições revistas e ampliadas
do livro1.
Ele ainda foi o responsável por reunir contribuições de amigos e comprar a casa
onde Zweig morou no Brasil, juntamente com sua esposa. A Casa Stefan Zweig2,
localizada no Rio de Janeiro, abriga também um memorial em homenagem a outros
refugiados do nazismo que residiriam no Brasil. Dines coordenou o levantamento de
200 biografias de exilados ilustres, que contribuíram para o desenvolvimento nacional,
com conhecimentos em áreas como arquitetura, artes plásticas e literatura. O arquivo
chama-se “Canto dos Exilados”.
Outras obras de autoria de Dines são “O Baú de Abravanel: uma crônica de sete
séculos até Sílvio Santos”, “Vínculos do fogo: Antônio José da Silva, o Judeu, e outras
histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil”, “Posso?” (coletânea de contos), “Erico
Verissimo: História e Literatura” e “E por que não eu?”. Milgram e Koifman (2017)
listam ainda 11 produções coordenadas e/ou organizadas por ele, 10 livros assinados
em parceria com outros autores, 20 artigos publicados em anais, revistas ou livros e
42 textos que incluem prefácios, apresentações, posfácios, entrevistas e memórias.
Dines iniciou a carreira no jornalismo aos 20 anos de idade. Adquiriu experiência
trabalhando nos jornais “Última Hora”, “Diário da Noite” e “Correio da Manhã” e nas
revistas “A Cena Muda”, “Manchete”, “Fatos e Fotos” e “Visão”. Abreu (2017) relata
que ele fez um curso na Universidade de Columbia e realizou estágio em jornais dos
Estados Unidos. Nesse contato, teria aprendido a defender a “ética do jornalismo
liberal americano – uma ética ainda fora de lugar no Brasil” (KUCINSKI, 2017, p. 45).
Com essa perspectiva, foi editor-chefe do “Jornal do Brasil” durante 12 anos,
onde ajudou a implementar uma mudança gráfica e editorial que marcou a imprensa
brasileira (e foi seguida por outros veículos da época)3. No JB, inaugurou a crítica
de mídia nacional e sistemática no suplemento chamado inicialmente “Cadernos de
1. Existe uma controvérsia em relação à morte do casal Zweig e, em decorrência disso, o escritor e psicólogo
Jacob Pinheiro Goldberg questiona o trabalho de apuração de Dines e as afirmações contidas na biografia “Morte
no Paraíso”. Mais detalhes podem ser conferidos no link: http://jacobpinheirogoldberg.blogspot.com.br/2009/07/
resposta-alberto-dines.html
2. Mais informações sobre o projeto estão disponíveis em: http://www.casastefanzweig.org/index.php?language=pt_br
3. Abreu (2017) explica que a reforma no JB durou 10 anos e envolveu diferentes jornalistas (um grupo criava e outro consolidava as alterações). Entre as inovações, Dines foi o responsável por aumentar o destaque às fotos, delimitar a quantia de anúncios na capa e instituir a reunião de pauta (até então, inexistente nas redações brasileiras).
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
90
Jornalismo” e, depois, “Cadernos de Jornalismo e Comunicação”. Foi demitido da
empresa antes de publicar um texto que, depois de aprimorado, se tornou o clássico
livro “O papel do jornal”. A demissão ocorreu porque o então editor desobedeceu a
ordem de não divulgar manchete4 sobre a derrubada do governo de Salvador Allende,
no Chile, pelo golpe militar.
O jornalista seguiu fazendo crítica de mídia nas colunas “Jornal dos Jornais”
(Folha de São Paulo), “Jornal da Cesta” (O Pasquim), “Pasca Tasca” (O Pasquim
de São Paulo) e “Circo da Notícia” e “Observatório” (Revista Imprensa). Também
trabalhou na Editora Abril, fez crônicas para a Rádio Capital e artigos para jornais
nacionais e estrangeiros. Lecionou as disciplinas de “Jornalismo Comparado” e “Teoria
da Comunicação” na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
entre 1963-1973, foi professor-visitante na Escola de Pós-Graduação em Jornalismo
na Universidade de Columbia em 1974-1975 e ajudou a fundar o Laboratório de
Estudos Avançados em Jornalismo (LabJor) na Universidade de Campinas (Unicamp)
em 1994.
Dois anos depois, tendo voltado de Portugal, onde ajudara a fundar o Observatório
da Imprensa português, Dines, juntamente com os professores Carlos Vogt e José
Marques de Melo, parceiros do LabJor, deu início ao site “Observatório da Imprensa”5.
Fórum permanente de debate sobre a mídia, a página reúne textos de jornalistas,
cientistas e leitores comuns. Além das manifestações escritas, as mensagens são
transmitidas por meio de vídeos e áudios (programas de TV e rádio, que chegaram a
circular em canais de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Rio Grande do Sul). Entre
agosto de 1997 e março de 2000, era veiculada a versão impressa, patrocinada pela
Xerox do Brasil e distribuída mediante assinatura gratuita.
Conforme Egypto e Malin (2008, p. 178), “o OI converteu-se numa história de
sucesso feita com meios franciscanos e conceitos poderosos”. Com o trabalho de
profissionais contratados e colaboradores eventuais, o objetivo era, ao mesmo tempo,
promover um fórum de debates e fazer um veículo jornalístico que aborde o jornalismo.
Em 1996, sua periodicidade era mensal. No mesmo ano, passou a ser quinzenal.
Atualmente, é diária. As manifestações vindas do público, desde que tratem sobre a
cobertura midiática e não contenham ofensas pessoais, intolerâncias ou apologia a
preconceitos, são conferidas e publicadas.
Os autores sublinham que o projeto idealizado e colocado em prática por Dines
é incompleto. A pretensão é fornecer “chaves de compreensão” para que as pessoas
não leiam mais o “jornal do mesmo jeito” (EGYPTO; MALIN, 2008, p. 183). Por meio
dessa iniciativa, “o media criticism deixou de ser mais um exercício acadêmico para
assumir o status de ação social exercida em nome da cidadania” (EGYPTO; MALIN,
2008, p. 182). Além disso, ambos enfatizam as ações do Observatório em defesa da
4. A capa, juntamente com um texto avaliativo do jornalista Mário Magalhães, pode ser conferida no link: https://
blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2013/09/11/exclusivo-bloqueado-pela-censura-o-jornal-do-brasil-saiu-sem-manchete-no-dia-seguinte-ao-golpe-40-anos-depois-alberto-dines-conta-qual-seria-o-titulo-proibido/
5. Página acessível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
91
criação do Conselho de Comunicação Social e do Código de Ética do Jornalismo.
2 | JORNALISMO EM SITUAÇÃO DE CRISE POLÍTICA E ECONÔMICA
A fim de compreender a contribuição de Alberto Dines para o entendimento do
jornalismo como ciência, é imprescindível iniciar pela abordagem de sua obra clássica.
Em “O papel do jornal”, cuja primeira edição foi lançada em 1974, o pesquisador
dedica-se a explicar as causas da crise instaurada no jornalismo brasileiro. Começa
por identificar a natureza mutante da prática jornalística enquanto atividade humana.
Para ele, o desenvolvimento da humanidade (e, consequentemente, da comunicação)
ocorre em um movimento pendular de crescimento, maturação e contenção. Ou seja,
é inútil esperar uma evolução linear, constante.
Segundo ele, no Brasil, a produção e a circulação de periódicos passaram por
diferentes fases. Iniciaram com o “beletrismo”, quando o jornalismo era considerado
um “subproduto da literatura – a literatura sob pressão, como definiu Alceu de Amoroso
Lima” (DINES, 1977, p. 8). Entre 1940 e 1960, as mudanças na sociedade (retomada
industrial, reabertura política) resultaram em jornalistas mais preocupados com a
funcionalidade e a eficiência. De acordo com Dines (1977, p. 8), a objetividade e o
uso do lead marcaram a “fase de ouro do jornalismo brasileiro”.
Durante os anos 60, a televisão alcançou seu primeiro auge e a proposta
de especialização ganhou força em todos os meios. Na década seguinte, a
multidisciplinaridade voltou a ser valorizada e traços da subjetividade humana,
subestimados em função de doutrinas, técnicas e programas empresariais, passaram
a ser novamente enaltecidos nas redações. É neste contexto que Dines (1977, p. 10),
em sua experiência de professor universitário, promovendo ações em parceria com
psicólogos e educadores, a fim de sensibilizar os universitários para as humanidades,
ensinou:
A disposição jornalística é antes de tudo um estado de espírito e este não se
aprende em bancos acadêmicos ou por osmose. Esta atitude básica do jornalista,
traço eminentemente vocacional, pode, no entanto, ser desenvolvida e elaborada
num treinamento que combine as teorias científicas com fatores psicológicos
fundamentais, como o inconformismo, a disponibilidade e o dinamismo intelectuais.
Para o estudioso, a abertura do jornalismo para a multidisciplinaridade e para
“tantos polos de irradiação de força” (DINES, 1977, p. 11) caracterizaram os anos de
1970. Convergiram no mesmo sentido da distensão política anunciada pelo governo
do general Ernesto Geisel. A ditadura militar, vale frisar, integrou o cenário brasileiro e
influenciou na forma de fazer e perceber o jornalismo.
Egypto (2017, p. 53) reproduz trechos do texto de estreia da coluna “Jornal dos
Jornais”, intitulado “A distensão é para todos” e publicado em 6 de julho de 1975: “O
direito à informação não funciona apenas num sentido, mas tem múltiplas direções:
serve aos veículos para informar ao público e serve ao público para se informar sobre
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
92
os veículos. Democracia vale para todos, caso contrário não é democracia”. É neste
contexto que Dines propôs reflexões sobre crítica de mídia, censura e liberdade de
expressão, tópicos aprofundados mais adiante.
Por ora, é necessário descrever a situação econômica que tensionou a atividade
jornalística neste período. Em sua análise, o pesquisador apresentou a relação entre
o aumento mundial do consumo de papel, a dependência de papel importado (e dos
preços impostos por indústrias estrangeiras), as intempéries (impossibilidade de
abater as árvores e transportá-las pelas vias pluviais, ocasionando falta de matéria-
prima), a crise do petróleo (devido ao consumo superestimulado, que gerou escassez,
aumento de preço e alto custo dos meios para transportar papel e jornais), controle
ambiental (fechamento de fábricas e redução do licenciamento a novas indústrias a
fim de minimizar danos à natureza) e greves de industriários do setor de papel.
“Estamos vivendo não apenas uma, mas várias crises concêntricas”, alertou
Dines (1977, p. 18). Segundo ele, porém, identificar o problema não deve ser motivo
para a generalização do pânico paralisante. Em vez disso, a reflexão proposta visou a
encontrar soluções possíveis para o caso brasileiro. “Jornais com menos papel podem
ser melhores jornais”, observou Dines (1977, p. 19). Como? Mantendo uma postura
de honestidade em relação ao leitor, a começar pelos custos da empresa jornalística
e do produto final.
Se o negócio do jornalismo é caro, se a informação isenta e imparcial deve
ser valorizada por um preço, este preço tem de ser enfrentado, não pode ser
escamoteado ao público. O leitor só reage ao aumento do preço de venda avulsa
quando sente que o jornal não vale, quando percebe que os anúncios compram
opinião e que esta se põe a serviço do poder. (DINES, 1977, p. 26).
O autor explica que a economia de uma empresa jornalística deve considerar
os gastos com papel, profissionais (talento) e maquinaria. Há também os custos
com distribuição e venda. Ao abordar esse aspecto, o jornalista fez uma crítica aos
responsáveis pela agência de correios e aos donos de banca que cobravam muito por
um serviço nem sempre bem prestado.
Ao dividir os problemas do jornalismo impresso em 3 E’s (econômicos, estratégicos
e estilísticos), Dines (1977) defendeu que o jornal seja, financeiramente, dependente do
leitor. A publicidade deve ser adequada ao perfil dos leitores, mas não pode determinar
o conteúdo das matérias para agradar aos interesses dos anunciantes.
“A pendência empresa versus imprensa existe apenas para quem não sabe
valorizar o jornalismo. A empresa deve servir de base à instituição pública que é um
jornal e este, quanto mais bem feito, mais independente e influente, melhor servirá
à empresa”, ensinou Dines (1977, p. 115). Exatamente 20 anos depois, o estudioso
continuou apontando os problemas de misturar marketing e jornalismo.
Seguiu, inclusive, criticando os interesses empresariais imediatos que, quando
priorizados, colocam em risco o exercício jornalístico. “Essa impaciência e onipotência
de proprietários de jornais têm levado muitos veículos ao desatino”, sentenciou Dines
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
93
(1977, p. 40) para insistir no alerta: “a busca de resultados imediatos empobrece o
jornalismo brasileiro” (DINES, 1997, p. 38). De acordo com ele, a imitação de modismos
importados de instituições estrangeiras, sem considerar a realidade nacional, conduz
à homogeneização da imprensa – o que é extremamente prejudicial.
Por isso, ao abordar o “E” de “estratégia”, o autor defendeu a especialização
como um caminho para lidar com a crise. Seria necessário, conforme ele, encontrar
o espaço aberto na cobertura de outros jornais para divulgar a informação inédita.
Em 2012, ampliou essa reflexão durante o programa “Roda Viva”. Avaliou que faltava
controvérsia entre coberturas de diferentes jornais. Além da inexistência de pluralidade,
outro grande problema identificado foi a falta de debate. “Essa é a função da imprensa:
debater, dar a notícia, debatê-la, renová-la, contraditá-la” (DINES, 2012, s/n).
Pensando em estratégia, previu, no final da década de 70, que os veículos locais
e regionais tinham grande chance de se desenvolver, absorvendo jornalistas recémformados. “A imprensa provincial, especialmente, pode vir a ser o maior incentivador
do processo cultural brasileiro” (DINES, 1977, p. 133). “É no jornalismo regional,
estadual, que se pode fazer muita coisa. (...) a renovação da imprensa deve começar
no pequeno e no médio jornal”, repetiu Dines (1981, p. 26).
Outras táticas sugeridas pelo professor são: investimento em setor de pesquisa
(com possibilidade de compreender situações históricas e antecipar novidades),
estabelecimento de vínculo com escolas (o “Jornal do Brasil” foi o pioneiro nessa
estratégia, ao criar um Departamento Educacional na redação e produzir publicações
voltadas a professores e estudantes). Aconselhou a valorização do profissional
culto e experiente e a contratação de correspondentes para cobrir outros países
(especialmente, na fronteira).
Conforme Dines (1977), uma das principais funções da imprensa é chamar
o cidadão à responsabilidade. Eximir-se desse papel é uma atitude perigosa tanto
em tempos de crise quanto em períodos de calmaria. “Uma corajosa menção aos
problemas e às suas causas explicará os programas empreendidos para saná-los e
levará a sociedade a uma parceria construtiva” (DINES, 1977, p. 127).
Por fim, como estratégia, o pesquisador alertou para os riscos do vínculo entre
imprensa e poder governamental6. Segundo ele, essas relações corrompidas existem
desde a Proclamação da República. Porém, é preciso lutar contra elas. O jornalista
deve manter uma postura de distanciamento, mesmo arriscando-se a soar deselegante
ao recusar convites para festas, por exemplo. Essa é uma estratégia que visa a romper
os laços que impedem o pleno exercício jornalístico.
6. Conforme o jornalista, historiador e professor universitário Juremir Machado da Silva, Alberto Dines, logo no
início do golpe militar, em 1º de abril de 1964, demonstrou ser favorável à ditadura. Ele cita o livro “Os idos de
março e a queda de abril”, em que Dines defende a tomada do governo. Como o objetivo, neste artigo, não é
avaliar a obra ou a postura do Jornal do Brasil durante 1964-1985, fica o registro e os links para os textos do
Juremir, caso o leitor queira aprofundar o conhecimento sobre o tema: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/
juremirmachado/2013/07/4557/ate-alberto-dines-apoiou-o-golpe-de-1964/ e http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2014/03/5741/o-peleguismo-primario-de-alberto-dines-interventor-da-ditadura-e-personagem-confiavel-para-o-sni/
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
94
Sobre o “E” de “estilo”, a principal lição é criatividade para reagir. Ainda que pareça
um conselho “estratégico”, a leitura completa da obra e de ensinamentos posteriores
remete a conceitos mais específicos, relacionados à apresentação gráfica e ao tom
da narrativa escolhido pelo veículo. O autor explica, por exemplo, a importância de
manter a coerência, a ligação temporal entre as matérias e a organização visual a fim
de aproveitar a característica periódica do jornal.
Dines afirmou ser favorável ao jornalismo investigativo, interpretativo e analítico,
combinado ao depoimento pessoal do repórter. Chamou a atenção para a valorização
do trabalho de campo em vez do de gabinete, questionou a validade do excessivo
gasto de papel e impressão com a editoria de serviços (listas de aprovados em
vestibular...) e propôs que os cortes em textos fossem feitos por meio do “buril” (com
cuidado, discernimento) e não da “foice” (comprometendo, muitas vezes, informações
importantes).
Analisando a mídia brasileira 20 anos depois, Dines (1997, p. 40) criticou a
“juvenilização da imprensa”, com a oferta de conteúdos pobres e simplistas, como se
o jovem fosse também idiota. Reprovou o culto às celebridades de sucesso meteórico
e a priorização do entretenimento superficial em vez da cultura.
Disse que os jornais estavam tentando imitar os canais de televisão comercial e
ponderou que essa atitude era um erro, inclusive, na tentativa mal feita de segmentar
a informação. “O velho jornalão está hoje pulverizado em jornaizinhos”, comentou
Dines (1997, p. 39). Em 2012, reclamou que o jornal impresso estava “espremido por
colunas” (DINES, 2012, s/n) e necessitava arejar sua diagramação.
Sobre a relação do impresso com outros meios, Dines (1977) citou o teórico
Wilbur Schramm para explicar as especificidades de cada um. Não tardou a tranquilizar
os ânimos de quem temia o desaparecimento do rádio, da revista e do jornal quando
a televisão emergiu. “Veículos não se extinguem como tal, transformam-se” (DINES,
1977, p. 31). Além do temor da extinção, o pesquisador combateu a tentação de
mimetizar o formato da televisão. Insistiu que era possível se valer das diferenças para,
no caso do impresso, aprofundar temas superficialmente abordados nos noticiários da
TV.
Apostar no fortalecimento da identidade do jornalista foi o incentivo do professor.
De acordo com ele, a profissão é uma atividade intelectual que requer tomada rápida
de decisões e um perfil, calado ou expansivo, mas de espírito inquieto, inconformado.
Apesar de enaltecer as qualidades do jornalista, percebendo nele, “em última análise,
um educador” (DINES, 1977, p. 117), pontua que ninguém é semideus. As virtudes,
além de não serem identificáveis em todos os profissionais, muitas vezes são resultado
de experiências dolorosas, desenvolvidas ao longo da carreira no convívio com os
outros e acompanhadas de ônus.
Cada componente positiva do comportamento jornalístico tem a sua contrafação
negativa. O intransigente compromisso com a verdade torna o jornalista teimoso,
inflexível. O comprometimento com a causa pública torna o jornalista incômodo
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
95
e aparentemente antissocial. A detecção permanente e devidamente antecipada
dos gostos, tendências e motivações coletivas, desgasta-o mais depressa que ao
cidadão que vai no seu caudal. (DINES, 1977, p. 123).
Essa identidade profissional, combinada às peculiaridades de cada indivíduo,
deve convergir para o cumprimento do objetivo: fechar a edição do dia. “Dizer que
jornal é trabalho de equipe é dizer muito pouco. Jornal bem sucedido é trabalho
de uma orquestra de personalidades diferentes ou mesmo antagônicas, porém
complementares, harmonizadas e equilibradas por normas ou metas comuns”,
sintetizou Dines (1977, p. 48).
Ao final da obra, o autor dedicou seis páginas para divulgar uma coletânea
de conselhos, destinados a profissionais da imprensa, feita pelo jornalista e editor
responsável pela editora Artenova, Álvaro Pacheco. Essa “doutrinação cotidiana”
(DINES, 1977, p. 143), oriunda da experiência dos repórteres, desenvolvida dentro
da empresa jornalística e voltada ao aprimoramento da própria instituição, vai originar
os manuais de redação e estilo. Em um segundo movimento, vão contribuir para a
elaboração da dimensão secundária de teorias e da consolidação do jornalismo como
ciência.
3 | CENSURA E LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Quando os militares tomaram o Governo do Brasil em 1º de abril de 1964, Alberto
Dines estava com 32 anos e já trabalhava como jornalista há 12. As duas décadas
seguintes coincidiram com o auge de sua carreira na imprensa e com a ditadura no
país. Por isso, ao dar lições sobre jornalismo, é comum propor reflexões sobre a
censura e a liberdade de expressão.
O que não pode haver numa sociedade que busca a perfeição econômica, social
e política é o espírito de “dedo no gatilho” contra a imprensa. Se um jornal cutucou
um fato inconfortável, não é motivo para que seja fechado ou silenciado. Mais lícito
seria mandar investigar e punir os responsáveis pelo fato que gerou a denúncia.
Se um jornalista foi insistente demais em denunciar algum escândalo, mesmo
numa empresa privada, não é motivo para pedir a censura sobre ele. A explicação,
o desmentido, a resposta à altura são mais dignos que o silêncio imposto pela
censura. Quando governos e elites compreenderem isto, os jornalistas serão
entendidos. E poderão ser melhores jornalistas. (DINES, 1974, p. 124).
Em entrevista a Moacir Pereira, Dines (1981) relata que, em 1968, quando o Ato
Institucional nº 5 foi promulgado pelo general Costa e Silva e as manifestações contrárias
à ditadura militar passaram a ser duramente combatidas, a imprensa começou a ser
censurada previamente. No “Jornal do Brasil”, dois oficiais do Exército permaneciam
dentro da redação para conferir a elaboração da edição. Caso identificassem uma
matéria desfavorável aos interesses do Governo, ordenavam a substituição por outro
texto. Não era permitido deixar o espaço em branco a fim de alertar o leitor para a
publicação censurada.
Na primeira edição do “JB” produzida sob censura, Alberto Dines, então editor-
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
96
chefe, com o aval do diretor do jornal, coordenou uma veiculação histórica7. Na
capa, um pequeno quadro trazia uma previsão meteorológica curiosa: “Tempo negro.
Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes
ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, nas Laranjeiras8” (JORNAL DO BRASIL, 1968,
p. 1).
Somada ao texto de cobertura da promulgação do AI 5, no qual era enfatizada a
data da decisão (“sexta-feira 13”), a estranha previsão teve o objetivo de servir de alerta
implícito aos leitores. A censura estava ocorrendo. E era necessário avisar o público,
transmitindo uma mensagem sutil, que não seria identificada pelos censores. Nesta
edição de 46 páginas, há outros sinais e ironias que passaram despercebidas aos
fiscais (mas, não aos leitores e aos registros históricos sobre o jornalismo brasileiro).
Pela análise de apenas uma edição, é impossível dimensionar as tentativas de
resistência à censura empenhadas pelos jornalistas. Porém, em seus relatos, Dines
(1981, p. 20) lembra da experiência como um ato de heroísmo: “não sabíamos o que
ia acontecer, mas estávamos certos de ter realizado algo importante”.
E tendo experimentado intensamente a repressão dos “anos de chumbo”, ele,
que lançou livros sobre a inquisição católica, explica que a ditadura militar não pode ser
vista como uma exceção na história da imprensa brasileira. Houve censura, segundo
o estudioso, de 1500 a 1808, quando o país era colônia portuguesa. Mesmo após a
retomada democrática, a mídia passou a ser controlada de outra forma: pela iniciativa
privada e pela autocensura.
Em 1981, criticou as mensagens uníssonas dos jornais, a redação autocensurada
e a falta de isenção causada pelas tentações do poder econômico. “Antes, os controles
vinham de cima, autoridades civis e militares ou donos de empresas a elas associados,
enquanto hoje a distorção e a manipulação muitas vezes são de origem corporativa
(...) ou, simplesmente, conveniências pessoais”, avaliou Dines (1986, p. 21). Em 2008,
apontou a ditadura do marketing como o grande problema na mídia nacional.
Na retomada democrática, Dines (1986, p. 21) arriscou a previsão de que “a
pretendida democracia irá medir-se, obrigatoriamente, pelo padrão de comportamento
de nossos veículos de comunicação”. Após uma década, já apontava um dos principais
impedimentos ao desenvolvimento político nacional: “Até que ponto o denuncismo
obsessivo da imprensa, nem sempre fundado em apuração rigorosa dos fatos, vem
atemorizando os cidadãos e minando a sua confiança na democracia e na liberdade
de expressão?” (DINES, 1997, p. 13, grifo do autor).
Portanto, para ele, o prejuízo ao jornalismo livre não se limitava à censura militar
ou à escassez de papel para imprimir informações. Interesses monetários, ideologias
corporativas e falta de apuração são laços que amarram jornalistas e impedem a
7. Disponível no link: https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19681214&printsec=frontpage&hl=pt-BR
8. Apesar de a sede do Governo estar situada em Brasília desde 1960, a decisão sobre a promulgação do AI 5
ocorreu no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro.
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
97
transmissão informativa comprometida com a cidadania.
O compromisso de jornais e jornalistas é com a informação. Seu empenho nesta
tarefa faz, de um jornal qualquer, um jornal livre, logo um grande jornal. Uma nação
de grandes jornais é uma grande nação. Sem este valor intrínseco, sem este quilate
que advém de um entendimento superior das suas funções, um jornal, por melhor
que seja organizado e construído, será apenas um catálogo de notícias. (DINES,
1977, p. 142).
Por fim, ao defender o diploma do jornalista, quando ocorreu formalmente a
primeira tentativa de derrubá-lo na década de 1980, o autor, na reedição de sua obra
clássica, reforçou a defesa da liberdade de imprensa. Argumentou que a exigência do
curso universitário não era um ataque à manifestação livre. O impedimento à liberdade
de expressão, para ele, eram a exploração na venda de impressos e as concessões
de canais de televisão e emissoras de rádio no Brasil, que priorizavam políticos e
empresários com grande poder aquisitivo.
4 | ENSINO UNIVERSITÁRIO E AUTOCRÍTICA MIDIÁTICA
Apesar de nunca ter feito graduação, o ex-professor universitário defendeu a
academia. Reconheceu que o contato com estudantes, mesmo na condição de
mestre, contribuiu muito na sua formação profissional e humana. Foi na universidade
que encontrou a chance de sistematizar sua experiência como jornalista.
É na sala de aula, no exercício da teoria e na avaliação da prática, que o profissional
pode enxergar mais longe. A reflexão não precisa necessariamente ser convertida
em pomposas doutrinas mas pode converter-se em conceitos e, sobretudo, ideais.
Não existe melhor lugar para usinar a prática com a teoria do que a universidade.
(...) Existem técnicas jornalísticas e filosofias do jornalismo que precisam ser
trabalhadas conjuntamente, longe da correria dos “fechamentos”, das injunções
e precariedades do dia a dia. A sala de aula, conveniente e necessariamente
equipada – em termos materiais como humanos – é insubstituível para fundir ética
com técnica, ideal com real, de modo a impedir que algumas vestais, quando lhes
dá na veneta, atribuam-se o papel autoritário do pontificar sobre o que é certo
ou errado. A campanha contra o ensino do jornalismo, a pretexto de proteger a
imprensa do abominável licenciamento, na verdade, inspira-se em aberração
autoritária ainda maior – a crença de que o jornalismo é apenas “vocação” sem
compromissos maiores com a sociedade, missão para alguns iluminados escolhidos
por outros coleguinhas iluminados que galgaram o poder ou o receberam de mão
beijada. (DINES, 1986, p. 22).
É essa compreensão que o autoriza, dez anos mais tarde, a chamar a atenção
para o risco de as universidades transformarem manuais de redação em bíblias
e reforçarem “vícios no lugar de exportar suas virtudes” (DINES, 1997, p. 46). Ele
enfatizou que a demanda empresarial não pode ditar o ritmo e o conteúdo do ensino
acadêmico. “A escola de jornalismo deve converter-se em inspiração para o mercado”,
afirmou Dines (1997, p. 47).
Na defesa da liberdade de imprensa, Dines (1974, p. 120-121) argumentou a
favor da autorregulamentação: “comitês profissionais ou acadêmicos para julgar os
erros éticos dariam também às classes envolvidas um salutar espírito disciplinar, um
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
98
verdadeiro “esprit-de-corps”, antipaternalista e protetor”. Seguiu com esse pensamento
quase 40 anos depois, ao salientar que os jornalistas não deveriam esperar que o
Governo regulamentasse sua atividade profissional ou instituísse um conselho. “Temos
que criar o clima para que a lei seja produzida” (DINES, 2012, s/n).
E esse “clima” seria a disposição para a autocrítica. “O jornalismo é um exercício
crítico permanente ao qual todos devem ser submetidos, sobretudo o próprio jornalismo.
Quando a imprensa se exclui do debate torna-se automaticamente suspeita”,
escreveu Dines (2006, s/n). Para ele, ampliar os canais de participação popular e a
conscientização da audiência quanto aos bastidores da mídia é imprescindível para
a democracia. Porém, é difícil que a iniciativa em prol da lisura seja tomada pelos
veículos de comunicação.
“A imprensa brasileira jamais prestou contas à sociedade que lhe outorgou
condições para executar seu poder”, provocou Dines (1986, p. 148). Conforme o
precursor da crítica midiática nacional, a ausência de profissionais como o ombudsman9
prova a dificuldade de jornalistas cobrarem de si mesmos a qualidade rigorosa e a
transparência competente que cobram de outros profissionais.
É necessário, de acordo com ele, resistir à arrogância e promover a autoanálise,
a admissão dos erros e a prestação de contas. O compromisso é coletivo. “A crítica
da imprensa tem que ser uma atitude conjunta da imprensa. Toda imprensa tem que
se autoexaminar” (DINES, 1981, p. 18). Ele, que criou o LabJor e o Observatório da
Imprensa com o objetivo de realizar essa crítica, ensinou que ela requer as mesmas
“condições ambientais” do exercício jornalístico: “atualidade, esmero, empenho,
referências, equilíbrio, pluralismo, constância” (DINES, 2008, p. 8).
Egypto (2017) ao fazer referência a essas lições, lembrou que o jornalismo
é fundamental para equilibrar poderes e promover a democracia. Trata-se de uma
atividade socialmente necessária. Essa imprescindibilidade justifica o compromisso
do Observatório da Imprensa em qualificar o debate público sobre a mídia. “Por isso
a luta de uma vida inteira de Alberto Dines em favor de uma mídia jornalística forte,
plural e diversificada. Como deve ser. Como a sociedade requer e precisa” (EGYPTO,
2017, p. 66).
5 | O JORNALISMO, CONFORME O PRÍNCIPE
Especificamente, “jornalismo é a busca de circunstâncias”, definiu Dines (1977,
p. 7). Ampliando o conceito, após uma década, ponderou que não estava se referindo à
superficialidade. “O jornalismo é a técnica de investigar, arrumar, referenciar, distinguir
circunstâncias” (DINES, 1986, p. 18). Já no novo milênio, Dines (2012, s/n) decretou:
“jornalismo é pulsação, inspiração e ciência. Você tem que estudá-lo como ciência,
9. Jornalista contratado para responder manifestações (elogios, reclamações e dúvidas) do público e para publicar
uma avaliação (geralmente, semanal) das publicações do veículo para o qual trabalha. Atualmente, no Brasil, os
únicos jornais que possuem ombudsman são a Folha de S. Paulo e O Povo.
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
99
mas praticá-lo como artista”.
Conforme o pesquisador, o exemplar impresso reflete anseios, dúvidas, versões
históricas (nem piores, nem melhores) dos emissores e receptores. “Jornal é, ao
mesmo tempo, espelho e miragem da sua audiência, caricatura e ideal de seus
leitores”, escreveu Dines (1986, p. 21).
O jornalista e o leitor, assim, fazem parte de um mesmo bolo social; são, em última
análise, a mesma coisa. É por esta razão que não se pode dizer que a imprensa
de determinado país ou região é ruim ou boa. Ela é um reflexo e um segmento da
própria sociedade a que serve. Jornalista e leitor são os que melhor se entendem
e sintonizam, pois se os primeiros são treinados para sentir as necessidades do
último, este foi domesticado para receber aquilo que certamente lhe agradará.
Jornalista é o leitor em função de emissão. (DINES, 1977, p. 44-45).
Aprimorou essa afirmação ao explicar, vinte anos depois, que o jornal deve ser
um espelho polido a fim de “representar não só a imagem do que está refletido, mas
aquilo que o objeto gostaria de parecer. A imprensa não deve ser reprodução exata
do país que a produz. Tem que ser melhor – para servir de estímulo e fornecer os
desafios” (DINES, 1997, p. 16).
Ao analisar a postura midiática durante e após a ditadura militar, percebeu o “medo
de servir plenamente à sociedade. (...) Nos dois momentos, as mesmas circunstâncias
e falta de convicção no papel do jornal e da imprensa em geral” (DINES, 1986, p. 19).
Ele insistiu em frisar a importância da consciência do compromisso jornalístico entre
os profissionais.
Os jornais não alcançam grandes vendagens e, portanto, não possuem grandes
tiragens, porque estes jornais não são feitos para atender a todas as necessidades
de seus leitores. Essas necessidades são: independência, isenção, etc. Para falar
em termos comerciais, os jornais fazem um produto que não atende ao mercado.
(DINES, 1981, p. 15).
Cerca de 15 anos depois, o crítico não creditou mais o esquecimento do leitor à
ingenuidade ou ao amadorismo profissional. “Continuamos achando que o leitor não
sabe, não deseja, nem merece saber. Transposição do elitismo mandonista dos tempos
coloniais. (...) Do desrespeito para com a inteligência do leitor resulta na arrogância do
nosso jornalismo” (DINES, 1997, p. 36).
Em 2012, examinando a situação atual da imprensa brasileira, declarou que
estava muito tecnicista e pouco vibrante. Negou saudosismo, mas disse que, no
passado, os jornais transmitiam mais entusiasmo. Para ele, o que faltaria no país era
um jornal semanal para “amarrar o fluxo excessivo informativo da internet” (DINES,
2012, s/n).
Apesar de soar normativa, a compreensão de jornalismo do autor não pode ser
ignorada. Ao marcar a sua carreira pela crítica de mídia, Alberto Dines inevitavelmente
tende a salientar aspectos negativos e apontar caminhos para a melhoria do exercício
jornalístico. Nessa condição de analista, inclusive, negou ter cometido algum erro
(DINES, 2012, s/n). Ele afirma que seu livro clássico foi “uma das primeiras tentativas
de somar experiência com reflexão resistindo à tentação de fazer ciência” (DINES,
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
100
1986, p. 17). No parecer de Melo (1986, p. 10), porém, trata-se muito mais do que isso.
Ao escrevê-lo, o jornalista captou os dados fundamentais do momento histórico – a
crise da imprensa no bojo da crise econômica internacional (escassez de papel,
escassez de petróleo) e da crise política nacional (esgotamento do regime militar
instaurado em 1964). Mas não se limitou a isso. Interpretou sistematicamente as
variáveis da conjuntura e as articulou com as tendências observadas no movimento
da imprensa brasileira para identificar traços capazes de explicarem sua trajetória
recente e as projeções perceptíveis. Realizou, assim, um trabalho de cientista do
jornalismo.
Melo (1986, p. 10) justificou a “natureza científico-jornalística” da obra como
motivo para ser inserida nas bibliografias dos cursos de graduação. Frisou que,
mesmo quando editava o suplemento do “Jornal do Brasil”, “Cadernos de Jornalismo
e Comunicação”, o “Príncipe dos Jornalistas Brasileiros”10 já demonstrava interesse e
competência para “teorizar sobre a sua prática cotidiana e retirar lições capazes de
guiarem os novos talentos” (MELO, 1986, p. 12). Por fim, o fato de ter sido convidado
para lecionar em Columbia foi a “legitimação do trabalho de Alberto Dines como
cientista do jornalismo” (MELO, 1986, p. 12).
REFERÊNCIAS
ABREU, A. A. Alberto Dines: um jornalista inovador. In: MILGRAM, A.; KOIFMAN, F. (Orgs.). Ensaios
em homenagem a Alberto Dines. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2017.
DINES, Alberto. O papel do jornal: tendências da comunicação e do jornalismo no mundo em crise.
Rio de Janeiro: Artenova, 1977.
______. Imprensa e Poder Militar. In: A imprensa em debate: entrevistas a Moacir Pereira.
Florianópolis: Lunardelli/Assembleia Legislativa, 1981.
______. O papel do jornal: uma releitura. São Paulo: Summus, 1986.
______. Um compromisso, uma história, um saldo. Observatório da Imprensa, São Paulo, 2 mai.
2006. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/um-compromissouma-historia-um-saldo/ Acesso em: 31 jan. 2018.
______. Observação e participação: da física quântica à dinâmica da sociedade civil. In:
CHRISTOFOLETTI, R.; MOTTA, L. G. (Orgs.). Observatórios de mídia: olhares da cidadania. São
Paulo: Paulus, 2008.
DINES, A.; VOGT, C.; MELO, J. M. (Orgs.). A imprensa em questão. Campinas: Editora da Unicamp,
1997.
EGYPTO, Luiz. O jornalista e o engraxate. In: MILGRAM, A.; KOIFMAN, F. (Orgs.). Ensaios em
homenagem a Alberto Dines. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2017.
EGYPTO, L.; MALIN, M. Um observatório, mais observatórios. In: CHRISTOFOLETTI, R.; MOTTA, L.
G. (Orgs.). Observatórios de mídia: olhares da cidadania. São Paulo: Paulus, 2008.
10. De acordo com Melo (1986, p. 13), esse foi o apelido dado a Dines pelo historiador Alceu Amoroso Lima.
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
101
JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro. Diário. Disponível em: https://news.google.com/newspapers?nid
=0qX8s2k1IRwC&dat=19681214&printsec=frontpage&hl=pt-BR Acesso em: 20 jan. 2018.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo fora de lugar: uma breve história sobre o jornalismo brasileiro. In:
MILGRAM, A.; KOIFMAN, F. (Orgs.). Ensaios em homenagem a Alberto Dines. Rio de Janeiro:
Edições de Janeiro, 2017.
MELO, José Marques de. Apresentação. In: O papel do jornal: uma releitura. São Paulo: Summus,
1986.
MILGRAM, A.; KOIFMAN, F. (Orgs.). Ensaios em homenagem a Alberto Dines. Rio de Janeiro:
Edições de Janeiro, 2017.
PROGRAMA Roda Viva. Produção da TV Cultura. São Paulo: TV Cultura, 2012. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=UbCo-ugid7I Acesso em: 18 jan. 2018.
Ciências da Comunicação
Capítulo 9
102
CAPÍTULO 10
DILMA ROUSSEFF: O PAPEL DA MULHER NA
POLÍTICA BRASILEIRA
Tylcéia Tyza Ribeiro Xavier
Silvia Ramos Bezerra
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá,
MT
contraste com 468 deputados. Desta forma,
mesmo com mais da metade da população de
eleitores sendo feminina e o país possuindo
cerca de 6,3 milhões de mulheres a mais do
que homens, segundo a PNAD (Pesquisa
RESUMO: O objetivo deste trabalho é
discutir o papel conferido à mulher na política
brasileira, revelando como, no episódio da
eleição da primeira mulher a presidência em
2011, a economista Dilma Rousseff, e seu
impeachment em 2016, tornou-se possível
observar e reconhecer, através do recolhimento
de material jornalístico do período, sua face
marcadamente machista e excludente.
PALAVRAS-CHAVE: Dilma Rousseff; Brasil;
Comunicação; Mulher; Política.
Nacional por Amostra de Domicílios), a ínfima
participação feminina na política é ainda uma
realidade.
INTRODUÇÃO
Assim como a maioria das democracias
ocidentais e quase todos os governos nos
Distribuição de cargos na administração pública
Fonte: Boletim estatístico de pessoal SIAPE, Brasil
demais países pelo mundo, a política no Brasil
sempre foi composta em sua maioria por
políticos do sexo masculino.
Esta discrepância é evidente nos dados
coletados
pelo
IBGE
(Instituto
Brasileiro
de Geografia e Estatística): em 2015 apenas
10% da Câmara dos Deputados do Brasil era
composta por mulheres, são 51 deputadas em
Ciências da Comunicação
Esses dados nos impõem que façamos
os seguintes questionamentos: quais razões
político-sociais
justificam
essa
baixíssima
participação feminina na política no Brasil? E
principalmente, como os meios de comunicação
contribuem para a cultura política que afasta as
mulheres das esferas de poder machista na
Capítulo 10
103
política?
Desta forma, buscando iniciar uma compreensão sobre as causas desta
disparidade, escolhemos analisar material comunicativo variado (notícias, memes,
páginas do Facebook, entre outros) que circulou nos meses anteriores e posteriores
ao impeachment da primeira mulher eleita presidente do Brasil, a economista Dilma
Vana Rousseff.
O corpus do presente trabalho, portanto, fora recortado tendo em conta não
apenas conteúdo jornalístico, mas também satírico de grande circulação na Internet
no período de tempo informado, cujo mote principal era de construir a imagem pública
da presidente em torno de signos marcadamente reconhecidos na literatura feminista
contemporânea como signos próprios da cultura machista. Neste sentido, as imagens
coletadas tinham como marcas simbólicas: a loucura, a incompetência, a inadequação
física/corporal que eram associadas à presidente Dilma Rousseff em sua condição de
mulher.
Foto oficial da presidente Dilma Rousseff (2011-2016)
POR QUE ESCOLHEMOS FALAR DA MULHER NA POLÍTICA?
A política tornou-se, recentemente, uma temática presente no debate popular
brasileiro. Hoje parece ter havido a superação da máxima folclórica de que “o povo
brasileiro não se interessa por política”. Muitos estudiosos parecem estar atribuindo
esta mudança cultural aos processos socioculturais oriundos da popularização da
Internet e do fenômeno da inclusão digital (JENNINGS, ZEITNER, 2003; OWEN,
VIDERAS, WILLEMSEN, 2008).
Se ampliação do uso político da Internet registrado no Brasil nos últimos tempos
abriu caminho para uma maior participação política, ela parece não ter sido suficiente
para quebrar a barreira que separa as mulheres brasileiras de chegar aos mandatos
políticos. Assim, se o espaço da política é tão importante para definição dos rumos
da sociedade, por que se levou tanto tempo para que a mulher - que possui um papel
fundamental para a continuidade da raça humana – pudesse ingressar na política e
dela participar?
Historicamente, uma bibliografia vasta sobre o tema tem se formado. Recorremos,
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
104
contudo, a conceito de dominação masculina (1995), do sociólogo francês Pierre
Bourdieu. Para o autor, o homem desfrutou historicamente de um “livre poder”, cabendo
diversas restrições que foram dadas à mulher. Como esclarece Bourdieu:
A dominação masculina encontra, assim, reunidas todas as condições de seu
pleno exercício. A primazia universalmente concedida aos homens se afirma
na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas,
baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução
biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas
imanentes a todos os habitas: moldados por tais condições, portanto objetivamente
concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das
ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos que,
sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes
(BOURDIEU, 1995, p. 45).
A filósofa francesa Simone de Beauvoir consagrou-se no debate feminista com
o livro “O Segundo Sexo” (1949), em que faz o questionamento que ainda permeia as
sociedades contemporâneas: “o que é ser mulher?”. Beauvoir mostra como a mulher,
desde o momento que nasce, é criada para ocupar uma posição subalterna em relação
ao homem, devendo manter-se na condição de mãe e esposa. A condição feminina,
portanto, não é natural, mas é histórica e culturalmente construída.
Não acredito que existam qualidades, valores, modos de vida especificamente
femininos: seria admitir a existência de uma natureza feminina, quer dizer, aderir
a um mito inventado pelos homens para prender as mulheres na sua condição de
oprimidas. Não se trata para a mulher de se afirmar como mulher, mas de tornaremse seres humanos na sua integridade (BEAUVOIR, 1949).
A recente ampliação do debate feminista no Brasil, com a presença cada vez
mais acentuada de teorias e lutas pautadas na igualdade de gênero, permite que
possamos refletir sobre o protagonismo da mulher na sociedade, tomando em conta
também a sua dimensão política. É o que relatam Grossi e Miguel:
Nos últimos anos, crescem as reflexões, articulações e manifestações do
movimento de mulheres e feministas, em torno da questão do acesso ao poder e
do chamado empoderamento das mulheres. Essa também vem sendo a postura da
bancada feminina no Congresso Nacional que, recorrentemente, articulada com
diferentes organizações de mulheres, vem realizando ações com o objetivo de
incentivar a participação de mais mulheres no âmbito do legislativo e nos demais
espaços de poder. As parlamentares eleitas e as feministas militantes de partidos
políticos têm influenciado seus partidos na criação de núcleos, coordenações
ou articulações de mulheres, ao mesmo tempo em que têm contribuído para a
introdução da política de cotas em algumas das direções partidárias (2001, p.01).
O FEMININO NA POLÍTICA BRASILEIRA
Pelo mundo, as sufragistas, mulheres que lutaram pela garantia do direito ao
voto, viram esta conquista acontecer, em certos países, apenas no começo do século
XX. Como afirma Abreu:
As sufragistas argumentavam que as vidas das mulheres não melhorariam até
que os políticos tivessem de prestar contas a um eleitorado feminino. Acreditavam
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
105
que as muitas desigualdades legais, econômicas e educacionais com que se
confrontavam jamais seriam corrigidas, enquanto não tivessem o direito de voto. A
luta pelo direito de voto era, portanto, um meio para atingir um fim (2002, p. 460).
No Brasil, as mulheres conseguiram direito ao voto parcial somente em 1932,
sendo habilitadas para exercer o voto apenas as mulheres que tivessem autorização
do pai, no caso de mulheres solteiras, ou do marido, se casadas. Entretanto, antes
disso, em 1928, temos a excepcional trajetória de Luísa Alzira Teixeira Soriano, foi a
primeira mulher da América Latina a governar uma cidade, antes mesmo que o direito
ao voto feminino fosse conquistado.
Foto de Luísa Alzira Teixeira Soriano
Soriano liderou a cidade de Lajes no Estado Rio Grande do Norte, ganhando
as eleições com 60% dos votos como votos masculinos, pois as mulheres ainda nem
haviam conquistado o direito ao voto. A eleição de Luísa Soriano aconteceu graças
à indicação para concorrer à prefeitura feita pela advogada Bertha Lutz, uma das
responsáveis por trazer o feminismo ao Brasil.
Os tempos parecem ter mudado definitivamente nesses idos dos anos 1930,
além da eleição de Luísa Soriano, as sufragistas por todo o país obtêm vitórias
importantes. Após grande mobilização, Getúlio Vargas assina, em fevereiro de 1932, o
decreto que confere direito de voto às mulheres. Em 1933, brasileiras passam a poder
eleger os candidatos para a Assembleia Constituinte em todo o país, sendo, contudo,
o voto feminino de caráter ainda facultativo. Nessa data é eleita a primeira deputada
brasileira, a pedagoga, médica e escritora Carlota Pereira de Queirós.
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
106
Foto de Carlota Pereira de Queiroz
Em 1934, com a promulgação da Carta Magna de 1934, o direito feminino de
voto passa a ser obrigatório e a mulher passa a poder votar sem quaisquer restrições.
Consagra-se, desta forma, definitivamente, o direito feminino ao voto no Brasil, pois
“com a queda de Vargas, em 1945, o país retorna à democracia e elabora-se uma nova
Constituição. A Carta de 1946 não retrocede quanto ao direito de voto das mulheres e
torna-o obrigatório” (MARQUES, 2018, p. 123).
Art. 133. O alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de ambos os
sexos, salvo as exceções previstas em lei (BRASIL, 1946)
Mesmo com sua participação política feminina ter sido iniciada em meados
do século XX, somente décadas depois, em 2011, o Brasil vai eleger sua primeira
presidente. A primeira mulher chegou à presidência do Brasil após 35 presidentes do
sexo masculino terem governado o país nos 196 anos de República. Desde a década
de 1970, as mulheres vêm ampliando a presença no somatório de eleitores. Em 1970,
elas representavam 35% do eleitorado e no ano de 2006 atingem a marca de 50% do
total de eleitores, quebrando finalmente a maioria masculina no voto.
A supremacia feminina no eleitorado não é encontrada com relação à disputa
eleitoral, uma vez que, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o número de
candidaturas femininas alcançou apenas 31,7% do total de registros nas eleições de
2012. O que significa certo avanço, embora não haja correspondência destes números
com relação aos mandatos conquistados por mulheres, que, como vimos, representam
apenas 10% do total.
DILMA ROUSSEFF
Dilma Vana Rousseff nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, no dia 14
dezembro de 1947. Rousseff formou-se em economia pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, após ter sido presa e torturada durante três anos sob o regime
militar.
A carreira da ex-presidente Dilma iniciou-se muitos anos antes de seu auge
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
107
na Presidência da República. Ao cursar o Ensino Médio em 1964, Dilma Rousseff
ingressou no Movimento Estudantil do colégio, que na época chamava-se Colégio
Estadual Central, para lutar contra o regime ditatorial que fora imposto no Brasil.
Durante esses mesmos anos, a ex-presidente também se aliou ao Partido
Socialista Brasileiro, até ao optar pela luta armada contra a ditadura, atuando no grupo
Comando de Libertação Nacional (COLINA), uma organização de extrema-esquerda
que lutava contra o regime militar imposto.
Em 1969, Rousseff começou a defender os ideais políticos da organização
Vanguarda Armada Revolucionário Palmares (VAR-Palmares), um grupo de extremaesquerda que, assim como o COLINA, defendia a luta armada contra a repressão
ditatorial. Nesse mesmo ano, Dilma foi enviada para São Paulo com o encargo de
manter em segurança as armas de seu grupo, sendo capturada no ano seguinte, em
1970 pela Operação Bandeirante (OBAN) e pelo Departamento de Ordem Política
Social (DOPS), ficando presa e sofrendo torturas até o ano de 1972, quando deixou a
prisão.
Nos anos que se seguiram, Rousseff se graduou e trabalhou arduamente na
política, tendo passado pela Secretaria Municipal da Fazenda, Secretaria Estadual de
Energia, Minas e Comunicações, Ministério de Minas e Energia, Ministério da Casa
Civil. Percorreu um longo caminho repleto de altos e baixos e polêmicas, tornando-
se em 2011, a 36ª presidente da República do Brasil, entre os anos de 2011 e 2016,
quando sofreu um impeachment por aquilo que ficou midiaticamente conhecido por
“pedaladas fiscais”.
As tais pedaladas foram, na verdade, o uso de decretos de crédito suplementar.
Dilma acabou por ser deposta da presidência antes do fim de seu segundo mandato
através de um impeachment realizado pelo Congresso Nacional.
Muito foi discutido sobre os processos políticos e econômicos que estão presentes
na saída de Dilma Rousseff da presidência (PRADO, 2017; JINKINGS, DORIA, 2016).
Para alguns autores, as medidas de austeridade iniciadas no segundo mandato, a
galopante crise econômica e mesmo a tentativa da elite política em barrar os efeitos
jurídicos da operação Lava-Jato (operações policiais que envolviam investigar desvios
de dinheiro na empresa estatal Petrobrás) são apontadas como razões para a
articulação política que resultou na retirada da presidente do poder em 2016.
Dilma Rousseff e o machismo
Visando observar como a cultura machista brasileira teve influência nos processos
que desembocaram na retirada de Dilma da presidência da República em 2016, no
transcurso desse trabalho, recolhemos, a título de demonstração, capas das principais
revistas semanais brasileiras entre os anos de 2010, ano de candidatura, a 2016, ano
de seu impeachment.
Desde que iniciou sua campanha ao cargo de presidente da República em 2010,
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
108
Dilma Rousseff enfrentou a cultura machista brasileira. A sua ascensão eleitoral também
foi marcada por discursos incrédulos do potencial técnico de seu futuro governo.
Após sua posse, Dilma continuou a sofrer ataques misóginos constantes, muitos
vindos da na internet. Em 2011 enquanto a então presidente, Dilma Rousseff estava
com sua comitiva do Partido Trabalhista (PT), nos Estados Unidos, foi insultada pelo
jovem Igor Gilly, que infiltrado a chamou de “vagabunda”, sendo aclamado pelo público
contrário à Dilma, na Internet.
Entretanto, os comentários não terminaram em Igor; mais tarde no mesmo ano, o
deputado Jair Bolsonaro, atualmente presidente eleito, em seu discurso na tribuna da
Câmara pediu pra Rousseff parar “de mentir” e assumir “se gosta de homossexual”, “se
o teu negócio é amor com homossexual, assuma”, se referindo à mais um estereótipo
de que sendo uma mulher de ideais e imponente, logicamente, não teria um homem
ao seu lado, mas seria homossexual.
Já em 2015 durante o processo de impeachment sofrido pela ex-presidente, o já
citado deputado Jair Bolsonaro, ao dar o seu voto favorável ao processo na Câmara
de Deputados, em seu discurso votou pela memória do já falecido Coronal Brilhante
Ustra, que foi condenado na Justiça por tortura e sequestro na Ditadura Militar. Ustra
foi chefe do Doi-Codi, considerado o pior órgão de repressão da ditadura militar, além
de ter estuprado e torturado não só Dilma Rousseff, mas outras mulheres prisioneiras
à época.
Esses eventos, bem como a eleição posterior de Bolsonaro à presidência
em 2018, apenas reforçam a leitura que apresentamos a seguir sobre o caráter
amplamente misógino da política brasileira, evidenciando que os signos e imagens
encontrados na campanha contrária a presidente Dilma Rousseff representada no
material comunicativo selecionado são expoentes de uma cultura ainda fortemente
presente.
A capa de revista escolhida é a da revista semanal Istoé, do dia 01 de abril de
2016, período que antecedeu ao impeachment. Nela, a presidente Dilma aparece com
a boca aberta, olhos arregalados. A tônica da imagem é consagrar uma expressão de
desvario, de loucura, de descontrole. O título corrobora para esse entendimento: “Uma
presidente fora de si”, bem como a frase “As explosões nervosas da presidente”.
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
109
Capa da revista Istoé.
Fonte: Istoé
Ao analisarmos a imagem é possível perceber que os sentidos se multiplicam:
loucura versus presidência; descontrole versus poder político, o que nos impõe pensar
que a associação evidente, dado o contexto vivido no momento da publicação, é da
incapacidade da presidente em permanecer no cargo para o qual fora eleita.
Evidente que o tom satírico, e mesmo agressivo, de capas semelhantes já foram
usados no Brasil contra presidentes do sexo masculino, contudo, impõe refletirmos
que a particularidade de se associar a figura feminina com a loucura, descontrole e
desvario tem sido uma prática discursiva da cultura machista há séculos.
Os processos político-sociais que estavam relacionados com os estratagemas
do impeachment diziam respeito às disputas vividas no interior da política brasileira, e
tinham pouca ou nenhuma ligação com o temperamento ou carisma da presidente eleita.
Mas, infelizmente, a construção simbólica produzida através da escolha de imagens
da presidente nas revistas semanais, em especial a Istoé, durante o impeachment
passou muito mais pelo reforço das “incapacidades” psicológicas de Dilma do que pelo
debate político-ideológico.
Conforme publicação de página feminista, a capa da revista Istoé tornou-se
emblemática deste período e do reforço da cultura que atribuí um papel minoritário a
mulher ocupa na política brasileira:
Essa semana a capa da Isto É colocou a presidenta Dilma Rousseff como alguém
que está perdendo o seu equilíbrio emocional. Aliás, não apenas a capa, mas a
matéria da revista sobre Dilma parece querer a todo momento afirmar que ela não
está aguentando a forte pressão da crise política, chegando inclusive a comparála com “Maria, a Louca”, que foi a primeira Rainha do Brasil. Na matéria, também
há especulações sobre remédios que Dilma estaria tomando, além de opiniões de
especialistas sobre o possível desequilíbrio de Dilma. Bem, você pode se perguntar
qual a relação disso com o feminismo. A questão é que você pode discordar da
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
110
Dilma, do governo dela, do partido, etc. E eu entendo que você tem razão pra
isso. Sou mulher e por isso tenho várias razões para criticar esse governo. Só que
justamente por ser mulher, sei que o machismo estrutural nos atinge das mais
variadas formas. E claro, não seria diferente com Dilma. A revista Isto É resolveu
se utilizar de uma imagem de mulher louca, mulher surtada, mulher histérica para
explicar tudo o que está acontecendo politicamente (ATHAYDE, 2016).
Esta forma de conceber a mulher como propensa a loucura é historicamente
reconhecida na literatura científica como parte da opressão de gênero experimentada
pelas mulheres ao longo do século:
Analisando a questão a partir de olhares atuais, pode-se perceber que, naqueles
contextos históricos, enlouquecer já seria em si desastroso, pelo precário
esclarecimento em relação ao tema e pela falta de recursos terapêuticos para seu
manejo. Mas quando o sujeito acometido pertencia ao sexo feminino, as concepções
discriminatórias e opressoras em relação à mulher, místicas e supersticiosas do
mundo antigo e medieval potencializavam o sofrimento a partir das relações de
gênero. Como se pôde constatar, passar por esta experiência era absurdamente
diferente para o homem e para a mulher, uma vez que a ela muito pouco era
tolerado (ESQUINSANI, DAMETTO, 2012, p. 206).
É preciso esclarecer que diversos veículos de comunicação opositores ao
governo Dilma, mantiveram a mesma estratégia discursiva em suas capas. O caso
da revista Istoé é emblemático, por ser uma empresa jornalística de linha editorial de
oposição desde o período eleitoral de Dilma em 2011.
Ainda conforme a matéria, trechos da revista, se referindo a fontes internas
ligadas a Dilma que:
Não bastassem as crises moral, política e econômica, Dilma Rousseff perdeu também
as condições emocionais para conduzir o governo. Assessores palacianos, mesmo
os já acostumados com a descompostura presidencial, andam aturdidos com o
seu comportamento às vésperas da votação do impeachment pelo Congresso.
Segundo relatos, a mandatária está irascível, fora de si e mais agressiva do que
nunca. (ISTOÉ, 2016).
Na matéria, tais fontes traziam informações que pareciam construir uma nova
face da presidente, uma Dilma que nunca antes havia sido mostrada: um lado frágil e
incapaz de Rousseff. A informação, portanto, se coaduna com os signos apresentados
na capa: o descontrole de quem tinha “ataques”, e de que desta forma, não poderia
presidir o Brasil. Na revista, a presidente inclusive é comparada a rainha Maria I, a
Louca, que reinou sobre Portugal no século XVIII.
Em ação impetrada na Justiça, Dilma Rousseff ganhou o direito de resposta,
pois a referida capa foi considerada ofensiva e seu teor inverídico, pois, segundo a
decisão: “ser objeto de publicação a pessoa ocupante da Presidência da República
não autoriza qualquer meio de comunicação a divulgar deliberadamente quaisquer
informações escondendo-se sob o manto do direito de informação, uma vez que tal
direito tem de ser guiado pela veracidade do conteúdo publicado”.
O caso da presidente Dilma Rousseff demonstra que:
está em curso um projeto patriarcal e fundamentalista que visa manter as mulheres
confinadas à esfera privada e dedicadas às tarefas de cuidados com a família e
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
111
educação dos/as filhos/as, um projeto que propaga um perfil de mulher ideal como
“bela, recatada e do lar”, bem distante dos holofotes da vida pública e dos cargos
políticos que ainda permanecem sob domínio masculino de quem tem aquilo roxo
(ZDEBSKYI, MARANHÃO, PEDRO, 2015, p. 229).
IMPEACHMENT E A INCAPACIDADE FEMININA
Após intensos ataques a seu governo e mandato, em dezembro de 2015, tem-se
início o processo de impeachment em Dilma Rousseff, por crime de responsabilidade
(lei orçamentária e lei de improbidade administrativa).
Durante esse processo de deposição da então presidente, os comentários de
opositores em rede sociais não eram apenas com relação ao governo ou ao conteúdo
investigado, mas sobremaneira, a associação com o fato de uma mulher, de idade
mais avançada estar à frente do país. A misoginia tornou-se parte da batalha discursiva
para a queda de Dilma. Como veremos adiante, Dilma estava sendo julgada por seu
porte físico, roupas ou mesmo sua sexualidade.
Como afirma a cientista política Maria Abreu, o machismo e a misoginia são
formas cada vez mais percebidas de violência contras as mulheres, e só perpetuação
é responsável pelo atual estado de constante opressão vivido pelas mulheres no Brasil
e no mundo.
O machismo objetifica os corpos das mulheres, mas, para um machista, esses
corpos contêm um valor que a ele, machista, deve pertencer. Para o misógino, a
mulher não tem valor e a mulher negra, menos ainda o têm[v]. É um objeto que pode
ser descartado, sem qualquer dignidade intrínseca. Talvez, para um misógino, um
animal doméstico valha mais que a mulher livre. Se a mulher livre quis a liberdade
sexual, então ela terá. E será punida por isso. Se a mulher quer frequentar espaços
públicos à noite, deve saber que corre mais riscos de sofrer qualquer tipo de violência
sexual. Se ousa ser presidenta ou primeira ministra de um país, sofrerá críticas por
suas roupas, por seu excesso de feminilidade, ou pela falta de feminilidade. Será
criticada por sua voz excessivamente doce, ou por sua voz dura. A violência contra
a mulher parece ser maior quanto mais inadequada é considerada a posição em
que ela se coloca. Sua liberdade de se expressar intelectual, política e sexualmente
sempre estará sob um crivo mais severo do que aquele aplicado aos homens.
Homens podem esquecer, com frequência, bobagens que fizeram em uma noite
aleatória ou disseram em uma mesa de debate. Mulheres, ainda que esqueçam,
serão julgadas por isso, muitas vezes sem o saber (ABREU, 2016).
Durante todo o seu mandato Dilma Rousseff foi alvo de críticas não só ao seu
governo, mas ao seu vestuário, gerando imagens satíricas na Internet e levando ao
contínuo julgamento na associação do modo de vestir com as capacidades técnicas
e políticas da presidente. As críticas ao vestuário não são comuns aos presidentes do
sexo masculino, mas ganhou proveniência num governo liderado por uma presidente
mulher.
A seguir, em material comunicativo retirado de redes sociais, vemos como a
imagem pública da presidente é comparada a elementos depreciativos e vexatórios.
Como na imagem em que a presidente é fotografada no Congresso Nacional e seu
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
112
vestido é comparado com capa de botijão, numa clara relação entre o público e o
privado; a política e o lar; prestígio e banal.
Comparação da roupa de Dilma Rousseff a capa de botijão de gás.
Fonte: Ego
Na imagem a seguir, a questão da adequação visual feminina é o tema. Dilma
aparece trajando um conjunto já usado em outros eventos e por isso, na frase, ela é
“incapaz de mudar o Brasil”.
Dilma usando conjunto repetido
Fonte: Gerador Memes
No Brasil, o culto ao corpo feminino padronizado e o excessivo valor social
atribuído à chamada “beleza feminina” (considerada inclusive item de exportação e
frequentemente relacionada com o tráfico de mulheres, a prostituição, a pedofilia, entre
outros) faz com que o visual de uma mulher seja considerado uma de suas maiores
grandezas. Esse é o mito da incapacidade feminina, atualizado a cultura da excessiva
sexualização, que baseia as capacidades de uma mulher apenas na aparência e na
beleza.
O tom jocoso, satírico e agressivo das imagens da ex-presidente Dilma Rousseff
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
113
podem ser encontrados em profusão. As imagens aqui selecionadas são pequena
mostra do sexismo que marcou todo o processo de crítica ao governo e a personalidade
política Dilma Rousseff. Para além das críticas naturais ao seu governo, importante
salientar que a oposição à Dilma recuperou signos misóginos e trouxe à tona um
conteúdo latente de preconceito contra as formas, projetos e capacidades femininas
que ainda sobrevive no país.
A pouca participação política das mulheres no Brasil pode, sobremaneira, ser
compreendida à luz de tais exemplos. Apesar de existirem diversas iniciativas visando
o fim da desigualdade de gênero na política, como a obrigatoriedade dos partidos
políticos passarem ao menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento
de Campanha (FEFC) para candidaturas de mulheres, os ainda presentes valores
machistas da cultura brasileira são, ao nosso ver, os principais vetores do afastamento
das mulheres das posições de comando e gestão.
Como levar as mulheres a enfrentarem todos os desafios que as impedem de
partilhar com os homens o poder político? Esta dúvida parece ainda não ter podido
ser respondida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Noventa anos separam a eleição da primeira mulher a um cargo público no Brasil.
Nesses noventas anos que separam Luísa Soriano e Dilma Rousseff vemos que muito
foi conquistado na busca pela igualdade de gênero na política. Se antes o direito ao
voto não era uma certeza, no Brasil de hoje a luta é para que as mulheres possam
se candidatar e governar em pé de igualdade, para que as mulheres enfrentem os
desafios da gestão pública sem carregar nos ombros o fardo do machismo.
A Internet e os meios de comunicação têm papel primordial no processo de
combate ao machismo estrutural ainda vigente e não podem atuar como parte deste
problema que permite que o Brasil esteja assemelhado aos países não-democráticos
com relação ao acesso da mulher à política.
Para além das disputas políticas momentâneas, a ética comunicativa deve
prevalecer como ideal na construção de uma sociedade com mais igualdade de gênero
e menos violência contras as mulheres.
REFERÊNCIAS
AB’SÁBER, Tales. Dilma Rousseff e o ódio político. São Paulo: Hedra, 2015.
ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Luta das Mulheres pelo Direito de Voto. Movimentos sufragistas na
Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Arquipélago – Revista da Universidade dos
Açores,Ponto Delgada, 2ª série, VI, 2002.
ABREU, Trocando o machismo pela misoginia? Revista Escuta. Abril, 2018. Disponível em: https://
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
114
revistaescuta.wordpress.com/2016/11/28/trocando-o-machismo-pela-misoginia/ Acesso em junho de
2018.
BARANOV, Támara. A conquista do voto feminino. Rio Claro, São Paulo, 2014.
BARBARA, Leila. GOMES, Maira Carmen Aires. Mulheres, Política e Mídia: Algumas incursões em
torno da representação sociocultural de Dilma Rousseff. PUC-SP, UFV, 2012.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. - 11° ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. 1998.
BRASIL. Cresce a participação de mulheres em cargos de comando na Câmara. Brasília,
DF, 2015. Disponível em <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ POLITICA/482910CRESCE-A-PARTICIPACAO-DE-MULHERES-EM-CARGOS-DE-COMANDO-NA-CAMARA.html>
Acesso em 06 de junho de 2018.
BRASIL. Boletim Estatístico de Pessoal e Informações Organizacionais. Ministério do
Planejamento, vol. 19, n. 214, fevereiro de 2014.
BRASIL. Mulheres conquistam direitos nos últimos 100 anos. 2014. Disponível em <http://www.
brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/03/mulheres-conquistam-direitos-nos-ultimos-100-anos> Acesso
em 07 de junho de 2018.
ESQUINSANI, Rosimar. DAMETTO, Jarbas. Questões de gênero e a experiência da loucura na
Antiguidade e na Idade média. Estudos de sociologia, Araraquara, v.17, n.32, p.205-222, 2012.
GILMAN, Charlotte. O Papel de Parede Amarelo. 1891.
GROSSI, MÍRIAM PILLAR; MIGUEL, SÔNIA MALHEIROS. Transformando a diferença: as mulheres
na política. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 167-206, 2001. Disponível em:
<http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000100010&lng=en&nrm=isso>
Acesso em: 01 julho de 2018.
JINKINGS, Ivana. DORIA, Kim. Por que gritamos golpe? Boitempo: São Paulo, 2016.
KARAWEJCZ, Mônica. Os primórdios do movimento sufragista no Brasil: o feminismo “pátrio” de
Leolinda Figueiredo Daltro. In: Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 40, n. 1, p. 64-84, jan.jun. 2014.
NOGUEIRA, Marco Aurélio. Dilma, o feminismo e o machismo. São Paulo, 2016.
O GLOBO. TSE:Partidos devem repassar 30% do fundo eleitoral para campanhas de mulheres.
2018. Disponível em <https://g1.globo.com/politica/noticia/tse-fundo-eleitoral-deve-destinar-30-dosrecursos-para-campanhas-de-mulheres.ghtml> Acesso em 14 de junho de 2018.
PRADO, Cassio. Golpe na Presidenta Dilma Rousseff: Golpeachment. Edição do Autor: EUA,
2017.
ÚLTIMO SEGUNDO. Dilma Vana Rousseff. Disponível em <http://ultimosegundo.ig.com.br/dilmarousseff /53e8e018a5fea40938000077.html> Acesso em 06 de junho de 2018.
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
115
ZDEBSKYI, Janaina. MARANHÃO, Eduardo. PEDRO, Joana. A histérica e as belas, recatadas e
do lar: Misoginia à Dilma Rousseff na concepção das mulheres como costelas e dos homens como
cabeça da política brasileira. Revista Espaço e Cultura, UERJ, RJ, N. 38, Jul./Dez.de 2015 http://
www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
Ciências da Comunicação
Capítulo 10
116
CAPÍTULO 11
JORNALISMO, CULTURA E GÊNERO: UMA ANÁLISE
DAS MULHERES NAS CAPAS DA ROLLING STONE
BRASIL
Luiz Henrique Zart
Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac)
Lages, SC
RESUMO: A mídia ressignifica o cotidiano por
meio de suas representações. Por isso, este
estudo procura apontar situações em que o
jornalismo reproduz preconceitos e posturas
de segregação ao retratar as mulheres,
analisando a Revista Rolling Stone Brasil, que
publicou apenas quatro capas com mulheres
entre as 12 veiculadas entre julho de 2016 e
julho de 2017. Para fundamentar a proposta,
busca-se a revisão bibliográfica de assuntos
como jornalismo cultural, de revista e suas
capas, além de questões de gênero – sob a
perspectiva de Guacira Lopes Louro (2008), e
relações de poder nas quais a imprensa atua.
Entende-se que discutir práticas jornalísticas e
compreender o papel da mídia é perceber que
ela, mesmo em veículos segmentados, reafirma
a estigmatização da mulher.
PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo Cultural;
Jornalismo de Revista; Rolling Stone Brasil;
Gênero; Representatividade.
ABSTRACT: The media resigns the daily life
through its representations. Therefore, this study
seeks to point out situations in which journalism
reproduces
prejudices
and
segregation
Ciências da Comunicação
postures when portraying women, analyzing
brazilian edition of Rolling Stone magazine,
which published only four covers with women
among the 12 published between July 2016 and
July 2017. In order to substantiate the proposal,
we search for a bibliographical review of
subjects such as cultural journalism, magazine
and its covers, as well as gender issues – from
Guacira Lopes Louro’s (2008) perspctive, and
power relations in which the press operates. It’s
understood that discussing journalistic practices
and understanding the role of the media is to
realize that, even in segmented vehicles, the
stigmatization of women’s reaffirmed.
KEYWORDS: Cultural Journalism; Magazine
Journalism; Rolling Stone Brazil; Gender;
Representativeness.
1 | INTRODUÇÃO: JORNALISMO CULTURAL
E AS CAPAS NO JORNALISMO DE REVISTA
O discurso jornalístico, que se estrutura a
partir de textos, imagens, títulos, diagramação
e outros recursos, “articula, conecta uma
multiplicidade de vozes, sentidos e códigos
diferenciados, os quais fizeram, fazem ou
passarão a fazer parte do imaginário em que ele
se constitui” (GADINI, 2009, p. 48). Produzem
o relato do acontecimento e, com ele, um
novo acontecimento, em uma atividade cíclica
Capítulo 11
117
interminável (ZART, 2015), onde as informações são “resultado de um processo de
produção, definido como percepção, seleção e transformação de uma matéria-prima, os
acontecimentos, num produto, as notícias” (GADINI, 2009, p. 51). Fundamentalmente,
portanto, imerso na indústria cultural, o jornalismo de mesmo gênero se interessa pela
materialização da cultura por meio da mídia jornalística.
O jornalismo cultural nasce em paralelo com a própria prática jornalística, uma
vez que ambos têm relações bastante próximas. Considera-se a ideia de que todo
jornalismo é cultural no sentido de que é um meio transmissor de representações e, por
isso, desde o princípio da história tem papel relevante na circulação de informações.
Afinal, quando o assunto é jornalismo cultural, duas questões precisam ficar claras,
de acordo com Piza (2007, p. 7): “o que se entende por ‘cultura’ e o que se entende
por ‘jornalismo’. A rigor, todos os fatos noticiados são culturais, afinal a cultura está em
tudo, é de sua essência misturar assuntos e atravessar linguagens” desde depois do
Renascimento até a formação do que se entende por esfera pública, com manifestações
de seus cidadãos participando de grupos sociais (AZZOLINO, 2010). O jornalismo
cultural está em uma zona heterogênea dos meios, com propostas criativas e críticas
ou de divulgação de acontecimentos de campos das artes, letras e humanidades
simbolicamente. O alcance é amplo conforme a temática abordada (Idem).
Meios de comunicação são reflexos diretos da sociedade, e têm nas revistas
um suporte que se sintoniza com o seu tempo. Ela conta em detalhes o que grande
parte dos outros meios, sufocados pela velocidade e pela imediaticidade cotidiana,
são incapazes de fazer. Representantes de um período histórico, as revistas
acompanham mudanças vividas pela sociedade. São “onipresença da mídia como
eficiente modificadora e formadora de opinião a respeito da realidade” (HOHLFELDT,
1998, p. 37).
Assim, o público – a sociedade – é cotidiana e sistematicamente colocado diante
de uma realidade artificialmente criada pela mídia, e que se contradiz, se contrapõe
e frequentemente se superpõe e domina a realidade real que ele vive e conhece.
[...] A imensa parte da realidade, ele a capta por meio da imagem artificial e irreal
da realidade criada pela imprensa (ABRAMO, 2003, p. 24).
Desde sua origem, a revista é um “produto jornalístico peculiar e adquiriu marcas
próprias, indicativas de suas especificidades e, ao mesmo tempo, de sua inserção em
um contexto de referência na produção da informação” (TAVARES; SCHWAAB, 2013,
p. ix). Diante disso, entende-se que a revista tem práticas informativas específicas,
que diferem dos demais meios de comunicação. É uma mídia segmentada, que se
volta a parcelas determinadas de público, com uma periodicidade mais espaçada e a
consequente reconfiguração do fazer jornalístico.
Revistas destacam ainda mais a função de bem informar seu público, uma
vez que vão além da notícia, reportando os acontecimentos. Como destaca Azubel
(2013, p. 259), a revista recria, traz análise e reflexão nas experiências de leitura.
Porém, no sentido oposto, “são capazes de promover a miséria do pensamento, erigir
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
118
mitos, sustentar estereótipos e fomentar ideologias” (Ibidem, loc. cit). Em relação à
mulher, esta lógica é latente, como um “fio invisível que une um grupo de pessoas
e, nesse sentido, ajuda a construir uma identidade, ou seja, cria identificações, dá
sensação de pertencer a um determinado grupo” (SCALZO, 2004, p. 12). Revista é
“publicação periódica que trata de assuntos de interesse geral ou relacionados a uma
determinada atividade ou ramo do conhecimento (literatura, ciência, comércio, política
etc.)” (RABAÇA; BARBOSA, 1978, p. 411).
Souza (2016, p. 28) define as características da revista como: produto
segmentado por público e interesse; durável e colecionável; com conteúdo e material
gráfico distintos dos demais impressos; com identidade visual particular; abriga estilos
textuais diferentes; aborda mais temas; é mais próxima de seu leitor; dá espaço a
reportagens de longa duração e produção. A revista representa um “grande sistema
de comunicação”, para Azubel (2013, p. 62). Com títulos, textos, fotografias e outros
elementos dispostos de certa maneira, as publicações representam uma visão de
mundo particular – que surge da integração destes elementos. Neste sentido, uma
das partes às quais se orienta o trabalho de qualquer publicação impressa é a capa.
Revistas envolvem planejamento, mais precisamente planejamento gráfico. É ele
que dita de que forma os conteúdos estarão dispostos em uma publicação, seja ela
impressa ou digital. E um dos assuntos pertinentes a este processo é a diagramação.
Orienta elementos como ilustrações, colunas e títulos, entre outros, para que se
gere um significado a quem está em contato com a mensagem veiculada. Segundo
Takahashi (2010, p. 4), a diagramação envolve a conciliação de estética com técnica.
“Estética no sentido de deixar a página leve, suave e com uma bonita apresentação. Já
a técnica diz respeito aos recursos práticos que têm a finalidade de tornar o processo
de leitura algo coerente, lógico e agradável”.
Os elementos de uma capa, o “cartão de visitas” (TAKAHASHI, 2010, p. 446),
podem transmitir o perfil editorial e a opinião de uma publicação. É preciso considerar
também que os sentidos empreendidos por uma capa de revista podem ser muitos:
com a intenção de alegrar, encantar, persuadir, assustar, refletir, etc. As possibilidades
são muitas. Longhi (2006) esclarece o design de capas de viés opinativo é visível
em revistas, “nas quais o conjunto de ilustração/foto, título, uso da cor, dentre outros
elementos, fornece o posicionamento do veículo” (LONGHI, 2006, p. 117).
Outro ponto importante nas composições de capa, de acordo com Scalzo (2004,
p. 69), é a fotografia, porque “quando alguém olha para uma página de revista, a
primeira coisa que vê são as fotografias. Antes de ler qualquer palavra, é a fotografia
que vai prendê-lo àquela página ou não”. Quando associadas às palavras, ganham
expressividade e conferem o mesmo ao texto. Desde o início da imprensa a fotografia
fez parte de rupturas nos paradigmas da profissão de jornalista (aliás, em tantas
outras).
De acordo com Dondis (2003), o retrato persuade, tem capacidades expressivas
diferenciadas e chama atenção, simplesmente porque pessoas se interessam por
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
119
outras pessoas e por saber mais. Além dos ângulos, cores e denotações, importam
os métodos de edição e as opções de fotografia coerentes com a mensagem que se
pretende divulgar (SANTOS, 2014). As imagens são uma parte de suma importância
no conteúdo jornalístico, entrelaçadas aos textos no sentido de que apresentam e
complementam os mesmos de diversas maneiras, todas importantes.
2 | REVISTA ROLLING STONE: PEDRAS ROLANDO EM TODOS OS CANTOS
A Revista Rolling Stone surgiu em San Francisco, nos EUA, em meio a uma
década de 1960 de muita efervescência cultural. Em 9 de novembro de 1967, no auge
da contracultura, a publicação foi criada pelo publisher Jann Simon Wenner e pelo crítico
musical Ralph Glason. O nome é uma referência homônima a uma série de marcos da
música, com bandas que representaram (e ainda representam) o espírito da mudança
comportamental baseada na revolução cultural da época: “Rolling Stone teve seu nome
inspirado por artistas como o músico Muddy Waters – consagrado pela música Rollin’
Stone –, Bob Dylan,que gravou o hit Like a Rolling Stone, e a banda inglesa Rolling
Stones” (SOUZA, 2016, p. 30). Dedicada em especial o rock’n’roll, política e questões
comportamentais dos jovens, mobilizou gerações aos ideais contraculturais por meio
da “contestação política, da recusa dos padrões de comportamento estabelecidos e
da sociedade de consumo”, conforme aponta Paixão (2013, p. 44). A primeira edição,
sobre o Monterey International Pop Music Festival, em 1967.
2.1 Rolling Stone no Brasil
A Rolling Stone está presente no Brasil desde quando Luís Carlos Maciel
conseguiu os direitos para publicação em território nacional. Dramaturgo, roteirista,
escritor da coluna Underground no icônico periódico O Pasquim em plena Ditadura
Militar, Acabou se tornando o primeiro editor-chefe da filial brasileira, sediada no Rio
de Janeiro. Maciel foi responsável pela circulação clandestina da Rolling Stone por
aqui a partir do final de 1972 por conta da falta de pagamento dos royalties. Essa
primeira experiência durou só 36 edições, quando deixou de circular por questões
financeiras. A primeira das edições “piratas” teve Gal Costa na capa, em novembro do
ano de lançamento. Durou até 5 de janeiro de 1973 para, então, passar por um hiato
de 33 anos.
Até que, em outubro de 2006, já com novos proprietários, a Rolling Stone voltou
às terras brasileiras sob o selo da Editora Spring Comunicações. A primeira capa teve
como protagonista a modelo Gisele Bündchen, com uma tiragem mensal de 100 mil
exemplares (PAIXÃO, 2013). As reportagens seguem o modelo da matriz americana,
tanto em aspectos gráficos quanto editoriais, com matérias voltadas ao entretenimento
e à cultura pop (BIANCHINI; ANDRÉ, 2017).
Voltando à atenção às capas, é interessante frisar um padrão: a fotografia em
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
120
evidência, a personalidade externando traços particulares, sob um fundo de cor única,
centralização de elementos, com o nome da personalidade em destaque em plano
americano (SANTOS, 2014, p. 18-19). É uma indicação de que a mídia, como reflexo
da sociedade – aqui retratada com foco na Revista Rolling Stone – perpetua estigmas
e artificializa os relatos ao seu modo.
3 | IMPRENSA, MÚSICA E MULHER: GÊNERO E RELAÇÕES DE PODER
Mais do que nunca, as sociedades se constituem hoje como organismos vivos,
mutáveis a cada momento que passa. Com a comunicação diretamente envolvida
neste processo, cabe aqui analisar a atuação dos meios de comunicação em relação
à posição que a mulher ocupa nas estruturas de poder e o que faz com que ela seja
subjugada pela imprensa. Assim, será possível compreender a relevância da análise
das capas da edição brasileira da Revista Rolling Stone. Destaca-se que, a partir
do século XX, a mulher protagonizou uma mudança em padrões comportamentais e
diante da sociedade.
Neste sentido, a história tem papel determinante no entendimento da posição
feminina tanto nos meios de comunicação quanto na sociedade. Focada sob padrões
modernos na lógica da velocidade e do avanço tecnológico, tem nas suas raízes um
caráter imediatista, que não permite uma visão panorâmica adequada dos assuntos
mais humanos, se assim pode-se dizer. É preciso, então, admitir que é urgente
notar o que significa a construção de direitos e de cidadania, para que os conceitos
estigmatizados que tomam conta do debate sejam “dessimbolizados” (COSTA, 2009,
p. 112-113).
A ideia de construção das noções de masculino e feminino em sociedade leva a
entender as relações estabelecidas como discursos e maneiras de atuação no mundo,
em “uma forma de representação, ou seja, uma significação da realidade, instituindo e
construindo a realidade através de significados” (CRUZ, 2008, p. 4-5). É válido pensar
que se as relações sociais são fundadas nas relações de poder que, também, saem
das concepções de gênero, existem quatro elementos a serem considerados. Os
símbolos, que representam e comunicam; a forma pela qual eles são interpretados em
espaços de poder; as instituições que suportam esta estigmatização; e a interpretação
da subjetividade sob a aculturação. De acordo com Louro (2008),
Gênero e sexualidade são construídos através de inúmeras aprendizagens e
práticas, empreendidas por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e
culturais, de modo explícito ou dissimulado, num processo sempre inacabado.
Na contemporaneidade, essas instâncias multiplicaram-se e seus ditames são,
muitas vezes, distintos. Nesse embate cultural, torna-se necessário observar os
modos como se constrói e se reconstrói a posição da normalidade e a posição da
diferença, e os significados que lhes são atribuídos (LOURO, 2008, p. 17).
Entende-se que, de acordo com a autora, as palavras têm e fazem história (Ibidem).
Então, é válido pontuar a frase de Simone de Beauvoir que, há mais de 60 anos, disse
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
121
que ninguém nasce mulher: torna-se mulher. De certa forma, representou o despertar
de mulheres de diferentes posições, que desde então fizeram questão de imprimir
no mundo suas formas de ser e estar. Assim, fazer-se mulher não ocorria em um ato
único e isolado, mas “dependia das marcas, dos gestos, dos comportamentos, das
preferências e dos desgostos que lhes eram ensinados e reiterados, cotidianamente,
conforme normas e valores de uma dada cultura” (LOURO, 2008, p. 17).
Muito mudou desde então. A frase foi amplificada e pluralizou-se, sendo um
estímulo aos estudos tanto do feminismo, quanto nas questões relacionadas ao gênero
e à sexualidade, sendo estendida mesmo aos homens, já que “fazer de alguém um
homem requer, de igual modo, investimentos continuados. Nada há de puramente
natural e dado em tudo isso: ser homem e ser mulher constituem-se em processos que
acontecem no âmbito da cultura” (Ibidem, p. 17-18). Desta maneira, ainda que existam
divergências na atribuição de sentido a estes processos, há entendimento de que não
é o momento do nascimento do corpo macho/fêmea que torna o sujeito homem ou
mulher, mas todo um percurso, contínuo e infindável, de significações e costumes.
Por isso mesmo, o conceito de gênero está ligado tanto política quanto
linguisticamente ao movimento feminista, caracterizado por ações contrárias à opressão
das mulheres, especialmente a partir do séc. XX – com maior expressividade desde
a luta pelo direito do voto às mulheres, o sufragismo. No desdobramento do que se
conheceu como a “segunda onda” do movimento, a partir do fim da década de 1960,
as construções teóricas se desenvolvem além de preocupações sociais e políticas,
diante da efervescência cultural dos atos de maio de 1968 (Ibidem; Idem, 1997).
E através das feministas anglo-saxãs que gender passa a ser usado como distinto
de sex. Visando “rejeitar um determinismo biológico implícito no uso de termos
como sexo ou diferença sexual”, elas desejam acentuar, através da linguagem, “o
caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo” (Scott, 1995,
p. 72). O conceito serve, assim, como uma ferramenta analítica que é, ao mesmo
tempo, uma ferramenta política (LOURO, 1997, p. 21).
Por meio de discursos, segue Louro (2008), é preciso ressaltar que “a segregação
social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas tivera como
conseqüência a sua ampla invisibilidade como sujeito [...]”. Neste momento e por
este motivo é imprescindível considerar que há diversas instâncias responsáveis
por inscrever em nossos corpos as marcas a serem seguidas. Nas mais variadas
situações, a construção de gênero e sexualidade se dá por meio de aprendizados e
práticas, explícitas ou não. Se constitui, portanto, como “um processo minucioso, sutil,
sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas mantêm-se,
por certo, como instâncias importantes nesse processo constitutivo” (Ibidem, p. 18).
Como provas deste sistema aparecem a publicidade, as revistas, a internet, a TV,
novelas, pesquisas de consumo, entre tantas outras formas. Estamos mergulhados
na instituição estrutural do controle dos corpos, especialmente os femininos, alvos de
imposição, censura, constituídos como “pedagogias culturais” (Ibidem, loc. cit.).
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
122
De uma forma geral, o conceito de gênero se estabelece de uma forma discursiva,
ou seja, não são propriamente as características sexuais que vão constituir o
que é o masculino e o feminino, mas sim os discursos propagados e construídos
socialmente e culturalmente sobre essas características. São as formas como as
características são “representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa
sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma
dada sociedade e em um dado momento histórico” (LOURO, 2003, p.21)
No âmbito da cultura, cabe observar a construção de um conceito de normalidade
ou diferença ao longo do processo de entendimento do gênero e da sexualidade.
Assim, quando se borram as fronteiras das figuras comumente atribuídas ao masculino
e ao feminino, antigas certezas são desestabilizadas, pondo à prova também formas
de amor, de morrer, nascer e crescer (Ibidem). Neste contexto, considera-se neste
estudo que existe, por parte da imprensa, a adoção da “heteronormatividade” em
seus discursos, focando em “papéis e funções” atribuídas a homens e mulheres em
sociedade (SILVA, 2010, p. 53).
Transformações são inerentes à história e à cultura, mas, nos últimos tempos, elas
parecem ter se tornado mais visíveis ou ter se acelerado. Proliferaram vozes e
verdades. Novos saberes, novas técnicas, novos comportamentos, novas formas
de relacionamento e novos estilos de vida foram postos em ação e tornaram
evidente uma diversidade cultural que não parecia existir (LOURO, 2008, p. 19)
Neste contexto, as chamadas minorias, representadas pelas políticas de
identidade, passaram a se posicionar, criando novos pontos de vista e interpretações
contra-hegemônicas, denunciando inconformidade. Assim, contra a normatividade,
inscrevem suas colocações na cultura, um dos elementos mais dinâmicos e mais
imprevisíveis da mudança histórica, em uma luta, portanto, cada vez mais simbólica e
discursiva. Daí que os recursos para lutar contra os tipos de opressão são “peculiares
e engenhosos” para conseguir espaço em espaços culturais, de acordo com Louro
(2008).
colocava-se, como uma meta urgente para os grupos submetidos, apropriar-se
dessas instâncias culturais e aí inscrever sua própria representação e sua história,
pôr em evidência as questões de seu interesse. A luta no terreno cultural mostravase (e se mostra), fundamentalmente, como uma luta em torno da atribuição de
significados produzidos em meio a relações de poder (LOURO, 2008, p. 21).
Então, sair da lógica dos esquemas binários é o grande desafio. Maior, inclusive,
para setores resistentes às mudanças, como a mídia, já mencionada como parte
integrante do complexo de instâncias culturais que reproduzem a vigilância das
questões do sexo, bem como a perpetuação das estruturas de poder por uma lógica
quase invisível (EWALD, 1993 apud LOURO, 2008). A mídia se apresenta como um dos
agentes que, continuamente, impõem e inscrevem marcas da diferença – ensinada –
legitimando saberes por meio de discursos. O que Foucault (1988) entende, na história
da sexualidade, como “invenção social”, ou seja, compreendendo que a sexualidade
se constitui a partir de discursos que regulam, normalizam, fixam saberes e verdades.
Assim, ocorre a naturalização das estruturas de poder que oprimem os sujeitos
compostos como mulheres diante da condição masculina. A dominação androcêntrica
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
123
se espalha nas mais diversas esferas, ocasionando tipos diferentes de violência,
além da física, psicológica (ou emocional), as já mencionadas violência simbólica,
institucional. Tem origem aí o machismo, condição de dominação objetiva e subjetiva
dos corpos, seus gestos e ações (BIROLI, 2015). Daí a necessidade de recorrer a
instrumentos jurídicos para que exista espaço para a mulher: prova de uma sociedade
historicamente machista, “com uma falsa aparência de igualdade que encobre uma
estrutura falocêntrica, e que se reproduz em diversos âmbitos de nossa sociedade,
inclusive na mídia” (CHAVES, 2015, p. 2).
3.1 Os meios de comunicação e a reprodução de estereótipos de gênero
Nesta estrutura instituída, os meios de comunicação atuam na eterna repetição
do presente (PENA, 2015, p. 38), da seguinte forma: “na ânsia de trazer novidades,
será que a imprensa simplesmente não repete os mesmos enredos? E os personagens
que povoam as páginas dos periódicos não têm sempre as mesmas características?”.
Entende-se que, deste contexto, os meios de comunicação têm um papel central.
A difusão de representações que constroem o mundo social como determinantes à
formação de referências no imaginário do público (BIROLI, 2001, p. 13). Atuam na
formação do corpo que, segundo Meyer (2003, p. 15), é um construto “sociocultural
e linguístico, produto e efeito de relações de poder”. Assim “o gênero engloba
todas as formas de construção cultural, linguística e social que estão inseridas nos
processos que estabelecem diferenças entre mulheres e homens, incluindo aqui os
procedimentos que produzem seus corpos” (PILGER, 2017, p. 2). Então, muito além
da diferença biológica, que é o parâmetro que orienta análises mais problemáticas, a
ideia de sujeitos compostos como resultado das ações e das relações de poder.
Os meios de comunicação, então, reconfiguram os espaços sociais e conferem
a eles sentidos diversos e segmentados. Com impacto indiscutível no cotidiano, indica
uma naturalização das condições de gênero impostas (MIGUEL; BIROLI, 2009).
Existe, então, uma relação entre a presença de grupos e indivíduos na mídia e a
maneira pela qual ela retrata estes grupos, tendo efeitos diretos na sua representação,
com o discurso como exercício do poder (JOHN et al., 2013, p. 8).
Assim, verificar de que forma a mulher é (ou não) representada na mídia implica
que “sua construção discursiva pode contribuir para a desmistificação de tabus, mitos
e estereótipos ou, ao contrário, contribuir para reforçá-los e legitimá-los” (JOHN et
al., 2013, p. 5). Chaves (2015, p. 3) classifica a violência praticada pela mídia como
sutil, mas naturalizada. A mídia insiste em não reconhecer a mulher como um sujeito
dotado de direitos, com vontade própria. Quando selecionam e dão outra forma
aos acontecimento, os meios de comunicação “apresentam-se como um lugar de
tensão em que operam forças que levam tanto ao enfraquecimento da memória e ao
esquecimento, quanto à sua estabilização (RIBEIRO, 1996 apud CHAVES, 2015, p. 4).
No caso da Rolling Stone Brasil, esta reflexão envolve dois aspectos. Como
aponta Denora (2004, p. 17), primeiro, destaca-se a ideia de que a música se entrelaça
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
124
na estrutura social como elemento transformador, que influencia a forma com a qual
as pessoas constroem seus corpos, “se comportam, vivenciam a passagem do tempo
e sentem sobre si – em termos de energia e emoção –, sobre os outros e sobre as
situações”. É destas concepções que se parte, propriamente, para a análise das capas
da Revista Rolling Stone Brasil, próximo – e último – passo desta reflexão.
4 | VALORIZAÇÃO, DESVALORIZAÇÃO E SENSACIONALISMO: AS MULHERES
NAS CAPAS DA ROLLING STONE BRASIL
Pode-se perceber que a prática jornalística muitas vezes destoa do que seria
ideal, justo e equitativo. A fim de buscar uma maneira eficiente e prática de verificar o
conteúdo de cada uma das capas, individualmente, deixamos de lado o “o quê”, que
já será apresentado em forma de quatro capas e edições, e o foco estará no “porquê”,
listando uma série de apontamentos. As observações desenvolvidas procuram
compor uma análise breve e prática. Analisando o período de julho de 2016 a julho de
2017, percebe-se que somente quatro capas são constituídas de uma figura feminina
individual, em contraste com as demais que apresentam cantores, grupos e desenhos
ou animações. Justamente por este detalhe, nos atemos a elas.
Figura 1: Edições da RS Brasil: #126 (fev/17), #127 (mar/17), #130 (jun/17) e #131 (jul/17)
A capa de fevereiro de 2017, edição nº 126, traz Paris Jackson, filha de Michael
Jackson, como protagonista. A chamada para sua entrevista é acompanhada de um
texto bastante sensacionalista (Os segredos da filha de Michael Jackson). A tipografia
e a escolha do preto para destacar as poucas chamadas desta capa dão a ela um
tom bastante sério e agressivo, remetendo até mesmo à morte do cantor – porque
liga diretamente os tons de preto ao luto na cultura ocidental. A tarja com a palavra
“Exclusivo” logo acima da chamada da reportagem de capa reforça esta ideia.
A expressão é séria e remete a um padrão editorial de moda, mas o semblante
contribui novamente para a situação de seriedade e polêmica da capa, que é facilmente
vista quando analisada com atenção. Como é praxe em praticamente todas suas
edições, a fotografia de Paris encontra-se centralizada na capa. A percepção de que
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
125
Paris é somente a “filha de Michael Jackson” e não uma mulher independente da
história do pai é um clichê fortemente visto na mídia. Ao tratá-la como uma personagem
secundária, subjetivamente pressupõem que ela não possui relatos interessantes sobre
a própria vida, suas próprias conquistas ou até mesmo nada a contribuir para o público
alvo da revista. Como visto nos capítulos anteriores, a RS tem um público superior
masculino, e isso certamente é levado em consideração na hora de elaborarem os
elementos gráficos que irão compor a capa de cada edição. Nesse caso, usando os
argumentos levantados, podemos questionar que há uma possível inferiorização de
Paris por conta de ser mulher, filha de um personagem midiático icônico e ainda não
se tratar de uma cantora – principal foco do periódico. Em suma, dá a entender que
Paris tem algo polêmico a contar. Mas que não tem a ver com ela, pois ela não é
importante, e sim seu pai. Ela é uma mulher bonita e com estilo, mas sua reportagem,
com exceção dos segredos fascinantes da morte do pai, não trará nada de muito
relevante ao leitor.
A edição nº 127, de março de 2017 traz como personagem a rapper brasileira
Karol Conká. Com seu nome escrito em letras garrafais em forma de chamada
no canto inferior direito da capa, acompanhada de uma chamada com assuntos e
segmentos que ganharam bastante destaque e atenção nos últimos anos, em especial
nos últimos meses “rapper, negra e feminista”, a revista a chama de o “maior destaque
no hip-hop nacional”. A foto está centralizada na capa, com um fundo em tons roxos,
assim como seu cabelo e sua maquiagem. As cores remetem a uma temática retrô e
de estilo. Seu visual é bastante moderno e contemporâneo, conectando a situação da
roupa extravagante com o – de certa forma – elogio apresentado pela revista em sua
chamada: “[...] faz sucesso sem abrir mão das próprias verdades”. Muito diferente do
que é apresentado na edição anterior, a escolha de cores é mais quente e imponente,
justamente a imagem da rapper que a revista tenta passar. O destaque em toda a capa,
além de encaixar a cantora como negra e feminista, está no elemento da combatividade,
inclusive nas demais chamadas para as matérias, buscando engajamento do público.
A ideia da Conká para esta edição é muito próxima do que se encontrava nas
edições iniciais do periódico aqui analisado, em sua versão americana: trazer assuntos
que os jovens procurem – principalmente na internet, neste caso – e que vão contra
os modelos ideais de comportamento na sociedade atual, considerando a onda de
conservadorismo que vem assolando o país nos últimos anos. Ela cumpre sua função
bem enquanto capa, neste caso, justamente por representar esta nova onda de jovens
que utilizam a música, o entretenimento e a arte como forma de expressarem-se
politicamente frente aos problemas sociais – coisa que ela, inclusive, faz muito bem.
A edição nº 130, de junho de 2017 traz em destaque a cantora Elza Soares.
Numa capa bastante intimista em relação às outras edições, especialmente aquelas
com mulheres, a capa de Elza é mais clean, com apenas duas chamadas além de
seu nome e mais uma faixa sobre o logotipo da revista. O texto de chamada para
a reportagem de capa, “ultrapassou fome, abuso e morte para continuar cantando”
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
126
vem ao encontro do foco que o retorno definitivo de Elza à mídia tem recebido. Ainda,
mesmo tendo lançado seu álbum, Mulher do Fim do Mundo, em 2015.
As duas chamadas, ao mesmo tempo históricas e melancólicas – uma anunciando
os 50 anos de Sgt. Peppers e a outra relatando os últimos dias do cantor Chris Cornell,
combinam com o tom da capa. A imagem de Elza, um pouco mais posicionada à
direita, diferente do que é costumeiro em nosso objeto de análise traz um fundo escuro
que remete ao clássico e ao respeito com a artista, valorizando-a e apontando sua
importância, mas também apresenta um tipo de solidão e tristeza. Não deixa, isso,
de fazer parte do histórico da cantora, que é fortemente conhecida pela trajetória
dificultosa, bem apresentada em sua descrição na chamada – apesar de que esta soa,
ao mesmo tempo, excessivamente sensacionalista até certo ponto.
O semblante da cantora é verdadeiro e honesto, carregando o fardo dos anos
difíceis e apresentando a sua versão mais presente na mídia dos últimos anos: uma
mulher completa, mas calejada pelas adversidades e pelo racismo que enfrentou. A
imagem passa um ar de respeito com a artista – principalmente na escolha da paleta
de cores, de tons sérios e íntegros, como o preto e o cinza, dando a devida importância
que ela merece. As apresentações de Elza lembram muito a melancolia vista em seu
olhar na fotografia aqui analisada: uma mulher sofrida – com músicas que relatam
a violência doméstica e o racismo sofridos por ela –, com um canto incrível, mas
cansado, com letras que passam exatamente a mesma sensação. A “Mulher do Fim
do Mundo” constitui a melhor capa dentre as analisadas neste trabalho.
A edição nº 131, de julho de 2017 traz a atriz Emilia Clarke, conhecida pela série
Game of Thrones, que há anos vem sendo um dos maiores destaques do entretenimento
mundial. A chamada, que a define como “mãe dos dragões”, como é conhecida na
série, carrega todo o hype gerado pela obra. Também vale destacar que há chamadas
sobre o assassinato de jovens negros no Brasil, despertando curiosidade: “Recorde
Sangrento”. Além disso, há uma entrevista com Maurício de Souza e 20 anos de OK
Computer, icônico álbum do Radiohead, misturando entretenimento e temas sérios
para o mesmo nicho. A serenidade da capa, voltada à cor branca, tenta destacar a
suavidade dos traços da entrevistada, que segue padrões tradicionais do estereótipo
do papel de feminilidade atribuído na cultura ocidental, abordado nos estudos de
gênero.
Esta é a capa que mais remete às outras do periódico desde o seu lançamento.
Traz uma imagem mais “entretenimento de televisão”, sem muitas informações
subjetivas ou que nos façam questionar, com o objetivo de “vender” a atriz e a série
como conteúdo.
5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise das quatro edições da Rolling Stone Brasil escolhidas como objeto de
estudo dá a dimensão da forma pela qual a imprensa trata a representação feminina –
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
127
como na sociedade de modo geral, de forma destoada, injusta, segregativa e machista.
Nesta mídia específica, a partir das concepções de Louro (2008; 1997), a leitura foi
clara: se a formação de conceitos de gênero e sexualidade ocorre por meio da cultura,
a mídia contribui neste processo como uma das principais instituições de geração de
significações e discursos, reforçando a depreciação da figura feminina.
A concepção de gênero aqui tratada, por parte da revista, é heteronormativa.
Ainda recorre à contemplação das diferenças, sem refletir e examinar de que forma
essas diferenças se produzem (LOURO, 2008). É sobretudo uma formação cultural
que se contrapõe à “naturalidade” do gênero e da sexualidade (PILGER, 2017, p. 2).
O período analisado de um ano mostrou uma subrepresentatividade nas capas. De 12,
quatro possuem mulheres individualmente, sendo que algumas dessas ainda contam
com capas duplas, e em nenhum dos casos são duas capas com duas mulheres.
O problema é que, em todos os casos, a editoria “trata” as figuras femininas por
vezes correta e parcial, por vezes completamente imparcial e bastante sensacionalista.
A linha editorial e as informações gráficas das capas vêm de encontro com esta ideia
e parecem destoar de uma edição para a outra. Enquanto uma capa pode trazer um
viés de puro entretenimento, sem deixar espaço para assuntos polêmicos e que gerem
discussão, outra é muito mais política. Isso quando não ilustra as mulheres de uma
forma pejorativa e sensacionalista, dando a entender que não importam tanto.
A premissa inicial do desenvolvimento deste trabalho foi apontar possíveis
situações de segregação e exclusão das mulheres. Parte desta problemática foi
descoberta na análise, mas o que se viu, além disso, foi algo ainda mais complexo e
importante: o periódico tende a apelar para as massas – especialmente seu público-
alvo – moldando as situações de interesse no entretenimento e até mesmo na política
conforme seu padrão de sensacionalismo permite. Isso resulta em capas por vezes
justas e com informações enriquecedoras no sentido de contribuir com o pensamento
crítico, mas até mesmo nestes casos o sensacionalismo fica evidente.
Como uma possibilidade futura ao estudo, é preciso ressaltar também que a
questão racial é importante, mas não pode ser completamente empreendida aqui.
Destaca-se que, das quatro revistas duas contemplam cantoras negras – duas
brasileiras, o que pode significar, inclusive, uma ruptura e, também, uma manutenção
da ordem. Quebra o paradigma quando representa mulheres brancas e negras em
equidade, e por destacar a mulher negra, algo bem distante das representações
midiáticas, com histórias de vida com marcas deixadas pelo racismo.
REFERÊNCIAS
ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. Ed. 1 – São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003.
AZUBEL, L.L.R. Jornalismo de revista: um olhar complexo. Rumores, n. 13, v. 7, janeiro-jun/2013.
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
128
AZZOLINO, A.; et al. 7 Propostas para o jornalismo cultural - Reflexões e experiências. São
Paulo, Editora Ramalivros, 2010.
BIROLI, F. Uma posição desigual: mulheres, divisão sexual do trabalho e democracia. In: Blog da
Boitempo, 06 mar. 2015.
__________. É assim, que assim seja: mídia, estereótipos e exercício de poder. Compolítica:
Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política. IV Encontro da Compolítica:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 13-15.abr.2011.
CHAVES, F. N. A mídia, a naturalização do machismo e a necessidade da educação em direitos
humanos para comunicadores. Intercom. XIV Congresso de Ciências da Comunicação na Região
Norte – Manaus - AM – 28 a 30/05/2015.
COSTA, S. G. A formação em estudos de gênero, mulheres e feminismos: impasses, dificuldades e
avanços. In: encontro nacional de núcleos e grupos de pesquisa – pensando gênero e ciências,
2., 2010, Brasília. Anais... Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República, 2009.
CRUZ, S.U. A representação da mulher na mídia: um olhar feminista sobre as propagandas de
cerveja. IV ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 28 a 30 de maio de
2008, Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil.
DENORA, Tia. Music in everyday life. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
DONDIS, D. A. Sintaxe da linguagem visual. (trad. Jefferson L. Camargo) São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
GADINI, S.L. Interesses Cruzados: a produção da cultura no jornalismo brasileiro. São Paulo:
Paulus, 2009.
JOHN, V.; et al. Jornalismo esportivo e invisibilidade feminina: análise da cobertura da olímpiada de
2012 realizada pelos jornais Lance! e Folha de S.Paulo. IX Conferência Brasileira de Mídia Cidadã,
UFPR, 06 a 08 de agosto de 2013. Acesso em: 04 out. 2017.
LONGHI, R. Opinião e diagramação. Est. em Jor. e Mídia, v. III, n. 1, p. 110-119, 2006.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, v. 19, n.
2 (56) - maio/ago, 2008. p. 17-23.
_______. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ:
Editora Vozes, 2003.
MEYER, Dagmar Estermann. Gênero e educação: teoria e política. In. LOURO, Guacira Lopes;
NECKEL, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre. (Org.). Corpo, gênero e sexualidade: Um debate
contemporâneo na educação. Petrópolis, R.J: Vozes, 2003. p.9-27.
MIGUEL, L.F.; BIROLI, F. Mídia e representação política feminina: hipóteses de pesquisa. Opin.
Publica, vol. 15 n.1, Campinas, Jun. 2009.
PAIXÃO, T.H. Jornalismo e cultura de consumo: uma análise da Revista Rolling Stone – Brasil.
Dissertação (Mestrado em Comunicação). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação, Bauru, 2013. 167f.
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
129
PIZA, D. Jornalismo Cultural. São Paulo: Contexto, 2007.
RABAÇA, C.A.; BARBOSA, G. Dicionário de comunicação. Rio de Janeiro: Codecri, 1978.
SANTOS, T.S.S. O rock brasileiro nas capas da revista Rolling Stone Brasil. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social/Jornalismo). Universidade Católica de
Brasília, Brasília, 2014. 45f.
SCALZO, M. Jornalismo de revista. 2ªed. – São Paulo: Contexto, 2004.
SILVA, M.V.S. Masculino, o gênero do jornalismo: um estudo sobre o modo de produção das
notícias. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Informação). UFRGS, 2010. 250f.
SOUZA, K.R.S. Jornalismo literário e a revista Rolling Stone brasileira. TCC (Graduação em
Comunicação Social). UFRGS. Porto Alegre, 2016. 117f.
TAKAHASHI, K.A. Capa, Cor, Amor: Como o planejamento gráfico das capas da revista mais vendida
no Brasil conquistou e conquista semanalmente seu público-alvo. Goiânia: Intercom 2010.
TAVARES F. M.B; SCHAWAAB, R. A revista e seu Jornalismo. Porto Alegre: Penso, 2013.
ZART, L.H. Função social, mediação da comunicação de massa e a construção da realidade:
uma análise de edições online de El País Brasil e Jornal do Brasil. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em Jornalismo), Uniplac, Lages, 2015. 222 f.
Ciências da Comunicação
Capítulo 11
130
CAPÍTULO 12
A PRESENÇA FEMININA NO JORNALISMO
ESPORTIVO DA TELEVISÃO ABERTA: UMA
ANÁLISE DO PROGRAMA “JOGO ABERTO”, DA
BANDEIRANTES
Érika Alfaro de Araújo
Universidade Estadual Paulista – Unesp –
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Bauru, SP
Mauro de Souza Ventura
Universidade Estadual Paulista – Unesp –
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Bauru, SP
RESUMO: Esta análise toma como base o
programa “Jogo Aberto”, da Rede Bandeirantes,
para verificar o espaço ocupado pela mulher
no jornalismo esportivo da televisão aberta
brasileira na atualidade, desde a produção, até
a reportagem, a apresentação e os comentários.
Para isso, a presença feminina é estudada nas
diferentes etapas do processo de produção
do referido programa jornalístico esportivo por
meio da análise de conteúdo e sob a luz das
questões de gênero. Averiguamos de que forma
o produto chega aos telespectadores, com
foco na presença da mulher jornalista, visando
entender cada função ocupada pela figura
feminina dentro das redações e o seu papel
profissional na televisão aberta, tendo em vista
o contexto majoritariamente masculino, como é
o caso do jornalismo esportivo.
PALAVRAS-CHAVE: jornalismo; jornalismo
esportivo; gênero; mulher jornalista; Jogo
Aberto.
Ciências da Comunicação
ABSTRACT: This analysis is based on the
television program “Jogo Aberto”, from Rede
Bandeirantes, and its main purpose is to
verify the women’s place in open television
sports journalism nowadays, from production
to reporting, presentation and comments. The
female presence is studied in different stages
of the production process of the referred sports
journal through analysis of content and in the
light of gender issues. The research examined
how the product reaches the viewers, focusing
on the presence of female journalists, with the
purpose to understand each function occupied
by the female journalists within the newsrooms
and their professional role in open television,
given the context, mainly masculine, such as is
the case of sports journalism.
KEYWORDS: journalism; sports journalism;
gender; female journalist; Jogo Aberto.
1 | INTRODUÇÃO
Entre
as
lutas
sociais
da
contemporaneidade, uma das mais significativas
está no espaço conquistado pelas mulheres nas
diferentes instâncias da sociedade. No esporte,
elas buscaram participação como torcedoras,
atletas e, no jornalismo, como profissionais.
Tendo em vista essa conjuntura, consideramos
de extrema relevância averiguar a situação
Capítulo 12
131
em que as jornalistas esportivas se encontram, quais cargos e funções exercem nos
postos de trabalho da televisão aberta do Brasil.
No processo de produção, reportagem, apresentação e opinião dos programas
esportivos, cada uma dessas funções expressa um tipo de visão sobre o trabalho
jornalístico da mulher. A produção, que acontece nos bastidores, diz respeito ao
planejamento e à realização dos conteúdos. A reportagem apura e divulga as notícias,
configurando-se como uma atividade informativa. A apresentação expressa a imagem
do programa e ainda exige dos indivíduos posturas objetivas e roteirizadas em boa parte
do tempo. Já a análise, que é o âmago dos programas de esporte, exige conhecimento
aprofundado, posicionamento fundamentado sobre a temática esportiva e autoridade
para transmitir confiabilidade ao público por se tratar de um estilo opinativo. Conforme
Barbeiro e Rangel, mais do que qualquer outro membro da equipe, o comentarista
precisa ter conhecimento profundo das regras do esporte sobre o qual fala. E é
justamente nessa área que a mulher possui menos atuação.
Ao estudar a participação feminina nesse contexto, teremos um reflexo da
sociedade brasileira atual e de uma trajetória histórica de busca por igualdade. O
mundo esportivo – assim como muitos outros – sempre foi considerado uma área
masculina, por isso o predomínio dos homens sempre foi a regra. Porém, com o
surgimento dos movimentos feministas e a atuação pioneira de mulheres, a conquista
de direitos básicos se tornou evidente, o que abriu espaço para questionamentos
sobre o lugar feminino em diversos setores da sociedade.
Para realizarmos tais avaliações, selecionamos o programa “Jogo Aberto”,
da rede Bandeirantes, com o objetivo de estudar a configuração de sua equipe de
produção jornalística, bem como o produto que chega ao público.
2 | ASPECTOS HISTÓRICOS
Uma breve referência histórica pode nos dar pistas para entender de que forma
se deu a relação entre gênero e jornalismo esportivo no decorrer do tempo. Embora os
primeiros jornais esportivos tenham surgido no final do século 19, como os franceses
Le Vélo e Journals des Haras (ANDÚJAR, 2013, p. 9), foi preciso que se passasse
mais de um século até o surgimento do nome de Maria Helena Rangel no esporte.
Em meio a profissionais homens, ela foi a primeira mulher a atuar na cobertura
esportiva brasileira. É considerada a primeira jornalista do país e era atleta (campeã)
em arremesso de disco (RAMOS, 2010, p.31). Em 1947, foi contratada pelo jornal
Gazeta Esportiva e seguiu na profissão por cerca de cinco anos. Vale ressaltar que
Mary Zilda Grassia Sereno, em 1934, tirava fotos de esporte. Em um episódio com o
jornal O Globo, após a Copa de 1934, capturou uma imagem de uma freira italiana
comemorando o título da seleção nacional de futebol, conforme Ramos (2010, p. 261).
Segundo Dantas (2016, p. 37), o veículo publicou a foto, mas não a contratou pelo fato
de ser uma mulher.
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
132
Na década de 1980, na televisão, Isabela Scalabrini foi uma das primeiras
representantes femininas a produzir reportagens esportivas. Configurando-se como
um fenômeno recente, na década de 1990, Mylena Ciribelli foi a primeira mulher a
apresentar o Esporte Espetacular. Em outro âmbito dos programas esportivos está o
debate. Nessa área, o pioneirismo é de Renata Fan. Por meio de sua figura, o Jogo
Aberto é a primeira atração esportiva no formato mesa-redonda a contar com uma
mulher no comando.
3 | JOGO ABERTO
O programa Jogo Aberto estreou na televisão no dia 5 de fevereiro de 2007.
Em sua formação original, Renata Fan ocupava o posto de apresentadora. Uma das
jornalistas esportivas mais conhecidas do país, é figura importante para os propósitos
desta pesquisa. Com o tempo, o comando do programa foi mantido e os comentários
renovados entre jornalistas, personalidades esportivas, ex-jogadores de futebol e exárbitros também de futebol.
Com 34% de audiência feminina, segundo dados divulgados pela emissora com
base na exibição para a Grande São Paulo, o Jogo Aberto, da Band, está há dez
anos no ar e engloba duas horas da programação, das 11 horas da manhã até às
13 horas da tarde. O programa é dividido em duas partes: a primeira é destinada
às notícias e informações sobre diversos esportes, mas o foco é, invariavelmente, o
futebol. Nessa etapa, a apresentadora Renata Fan e o comentarista Denílson estão
à frente das ações. Já a segunda parte é destinada ao debate. Esse é o momento
no qual os comentaristas analisam e discutem as principais pautas relacionadas ao
futebol, sempre deixando clara a expressão de suas opiniões. Os comentaristas são:
Denílson (ex-jogador de futebol), Heverton Guimarães (jornalista que se concentra
no futebol mineiro), Chico Garcia (jornalista que, inicialmente, comentava o futebol
gaúcho), Paulo Roberto Martins (jornalista cujo trabalho sempre foi na editoria
esportiva), Ulisses Costa (além de comentarista, também locutor de rádio) e Ronaldo
Giovanelli (ex-jogador de futebol). Nessa hora, Renata Fan comanda as ações, fazendo
perguntas, direcionando os comentários, administrando as discussões e expondo sua
própria opinião. O debate do Jogo Aberto é uma das principais atrações do programa,
conhecido por seu humor, opiniões fortes e discussões acaloradas.
4 | ANÁLISE DAS EDIÇÕES
Os recortes a seguir foram selecionados por conta da cobertura da final da Copa
do Brasil 2017, entre Cruzeiro e Flamengo, da qual o time mineiro se saiu campeão.
Além disso, a semana conta com duas etapas de pautas jornalísticas interessantes às
atrações e à pesquisa: o pós-jogo do clássico entre São Paulo e Corinthians e o préjogo do clássico entre Palmeiras e Santos. O Jogo Aberto, que é da capital paulista,
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
133
deslocaria suas equipes principais para tais reportagens, o que renderia material
adequado para a investigação.
Por meio da verificação de cinco edições – as quais foram obtidas conforme a
disponibilização do material na íntegra, no canal oficial no YouTube – de segunda a
sexta-feira, do dia 25 a 29 de setembro, buscamos apurar as informações coletadas
com foco na presença feminina. Sendo assim, analisamos individualmente cada
programa e edição por meio das categorias M (mulher) e H (homem), separando cada
atração dos programas (reportagens, comentários, entradas ao vivo e etc.) e medindo
o tempo de cada etapa, fator que, na televisão, demonstra o valor e a importância de
cada conteúdo, pauta ou pessoa, da mesma forma que o espaço no jornal impresso.
Por meio da semana construída, percebemos no JA um formato bem definido e a
descontração como característica marcante. Tanto nos programas analisados quanto
na visita ao estúdio, constatamos que se trata de um aspecto dos participantes na
frente das câmeras e nos bastidores. Também apuramos, com a presença no local,
que Renata Fan participa desse contexto e, por vezes, é alvo desses momentos de
descontração.
As circunstâncias em que Renata Fan aparece e fala sozinha são a abertura e
as chamadas das matérias e reportagens. Depois da abertura, em que menciona os
destaques do programa, uma matéria/reportagem é exibida e, na volta para o estúdio,
Renata já aparece posicionada ao lado de Denílson, para quem faz perguntas sobre os
temas. Nesse contexto, a apresentadora também emite suas opiniões. Depois dessa
sequência de matéria e comentários, o debate tem início. Renata apresenta todos os
comentaristas e conduz as discussões, alternando as falas para que todos possam
participar.
Sendo assim, foram destacadas as categorias: abertura, que se refere ao
momento inicial do programa, em que Renata Fan aparece sozinha trazendo os
destaques da atração; chamada, momento no qual a apresentadora chama ou
faz a cabeça da reportagem; matéria, que são feitas e narradas pelos repórteres;
comentários, momentos nos quais Renata Fan e Denílson avaliam temas; entradas ao
vivo, feitas por repórteres em algumas edições; e debate, parte do programa em que
Renata e Denílson se unem aos outros comentaristas com o intuito de discutirem as
pautas. Dessa forma, as categorias foram enumeradas conforme aparecem em cada
um dos programas.
4.1 Jogo aberto: segunda-feira, dia 25 de setembro
Nessa data, o programa deu grande destaque à repercussão do clássico do final
de semana entre o São Paulo e Corinthians. Outras reportagens abordaram: gols da
rodada do Brasileirão; jogo entre Atlético-MG e Vitória; Santos e Atlético-PR; Grêmio
e Bahia; Palmeiras e Fluminense. Algumas matérias contam com a narração, ou
seja, o off gravado e colocado por cima do vídeo, já outras contam com passagens
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
134
dos repórteres. No caso apenas da narração, a mesma foi destacada. No caso dos
comentários antes do debate em que os demais participantes estão presentes, Renata
conduz a discussão, emite suas opiniões, mas, quando o tempo é reduzido, opta por
comentários pontuais. Diante de tais pautas, a hegemonia do futebol no programa se
torna nítida, uma vez que foi dominante.
Conteúdo
Tempo aproximado
M ou H
Abertura
1 min 30 s
M
Chamada 1
35 s
M
2 min 40 s
H
1 min 20s
MeH
Chamada 2
10 s
M
Matéria 2
8 min 30s
H
Matéria 1
Comentários 1
Chamada de sonora 10 s
M
Sonora
20s
H
12 min 50s
MeH
Comentários 2
Chamada 3
Matéria 3
Comentários 3
Chamada 4
Matéria 4
Comentários 4
Chamada 5
Matéria 5
Comentários 5
Chamada 6
Matéria 6
Chamada 7
Matéria 7
Debate
30s
M
2 min
H
2 min
MeH
15 s
M
2 min 40 s
H
50 s
MeH
20s
M
3 min 30 s
H
1 min
MeH
10 s
M
4 min
M
15 s
M
Nome(s)
Renata Fan
Renata Fan
Narração: Rafael Aguiar
Renata Fan e Denílson
Renata Fan
André Galvão
Renata Fan
Jogador: Petros
Renata Fan e Denílson
Renata Fan
André Salles
Renata Fan e Denílson
Renata Fan
Marcelo Rozenberg
Renata Fan e Denílson
Renata Fan
Narração: Rafael Aguiar
Renata Fan e Denílson
Renata Fan
Roberta Barroso
Renata Fan
6 min 30 s
M
Kalinka Schutel
18 min 30s
Renata Fan, Héverton Guimarães,
M, H, H, H e H Ulisses Costa, Paulo Roberto
Martins, Denílson e Ronaldo
Tabela 1 – Programa 1
Fonte: Elaborado pelos autores, 2017.
No primeiro programa analisado, a participação feminina se configura por meio
da ampla atuação de Renata Fan, que conduz a atração e comenta os temas, e das
repórteres Roberta Barroso e Kalinka Schutel. Das sete matérias da edição, cinco
foram de homens e apenas duas de mulheres. Vale ressaltar que Renata aparece
sozinha na abertura do programa e nas chamadas, que se mostraram trechos curtos.
Nos comentários, após cada tema ser apresentado pelas reportagens, Renata está ao
lado do comentarista Denílson. Já na parte do debate, está acompanhada de quatro
homens.
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
135
4.2 Jogo aberto: 26 de setembro, terça-feira
O jogo entre São Paulo e Corinthians continuou repercutindo. Podemos destacar
uma matéria sobre as probabilidades dos clubes da série A do Brasileirão, com
entrevistas de pessoas nas ruas (todos homens), comentando as projeções para cada
equipe.
Conteúdo
Tempo aproximado
M ou H
Abertura
1 min 30 s
M
Nome(s)
Renata Fan
Comentários 1
30 s
MeH
Chamada 1
10 s
M
Renata Fan
Entrada ao vivo 1
(entrevista coletiva)
7 min 40 s
H
Willian Lopes
3 min
MeH
Renata Fan e Denílson
Chamada 2
1 min 20 s
M
Matéria 1
4 min 45 s
M
Comentários 2
Comentários 3
Chamada 3
Matéria 2
Comentários 4
Chamada 4
Entrada ao
(entrevista) vivo 2
Comentário 5
Chamada 5
Matéria 3
3 min 20 s
MeH
15 s
M
2 min 40 s
M
Renata Fan e Denílson
Renata Fan
Narração: Heloise Ornelas
Renata Fan e Denílson
Renata Fan
Narração: Adriana Almeida
4 min 5 s
MeH
Renata Fan e Denílson
10 s
M
Renata Fan
4 min 30 s
H
Fernando Fernandes
10 s
M
5s
Renata Fan
M
Renata Fan
5 min 50 s
H
William Lopes
Debate
23 min 30 s
M, H, H, H e H
Renata Fan, Denílson,
Ulisses Costa, Paulo
Roberto Martins e Héverton
Guimarães
Matéria 2 reexibida
2 min 40 s
M
Narração: Adriana Almeida
Entrada ao vivo
1 min
H
William Lopes
Tabela 2 – Programa 2
Fonte: Elaborado pelos autores, 2017.
Renata Fan se faz presente na condução e nos comentários do programa, ao
lado dos outros comentaristas, todos homens. Duas reportagens são narradas por
mulheres, uma feita por um homem e as três entradas ao vivo realizadas por repórteres
do sexo masculino. Sendo assim, apesar da presença feminina ainda ser menor nos
conteúdos produzidos fora do estúdio, na edição da terça-feira existe um equilíbrio
maior.
4.3 Jogo aberto: 27 de setembro, quarta-feira
As pautas exploradas foram: pós-clássico; Corinthians na sequência do
Campeonato Brasileiro; a apresentação do técnico Oswaldo de Oliveira no AtléticoCiências da Comunicação
Capítulo 12
136
MG; notícias do treino do Palmeiras. Mas o destaque da edição foi a partida finalíssima
da Copa do Brasil. A série B foi assunto por meio do jogo entre o Internacional e o
América-MG. O clube do Sul é o time do coração de Renata Fan, e a gaúcha não
escondeu sua ansiedade e expectativa para o confronto entre o líder e vice-líder da
competição.
Conteúdo
Abertura
Tempo aproximado
M ou H
1 min 30 s
M
Comentários 1
1 min 35 s
MeH
Chamada 1
10 s
M
Matéria 1
5 min 20 s
H
Chamada 2
Entrada ao vivo 1
Comentários 2
25 s
M
3 min 30 s
H
1 min 20 s
MeH
Chamada 3
10 s
M
Matéria 2
1 min 10 s
H
Comentários 3
50 s
MeH
Chamada 4
Matéria 3
Chamada 5
Entrada ao vivo 2
Chamada 6 (feita na
entrada ao vivo)
Matéria 4
Comentários 4
Chamada 7
5s
M
5 min 40 s
25 s
H
M
Renata Fan
Nome(s)
Renata Fan e Denílson
Renata Fan
Thiago Kansler
Renata Fan
William Lopes
Renata Fan e Denílson
Renata Fan
Narração: Rafael Aguiar
Renata Fan e Denílson
Renata Fan
André Galvão
Renata Fan
1 min 45
H
Gustavo Berton
10 s
H
Gustavo Berton
2 min 30 s
H
Diogo Ramalho
2 min 25 s
MeH
Renata Fan e Denílson
50 s
MeH
Renata Fan e Denílson
45 s
-
-
35 s
MeH
Renata Fan e Denílson
25 s
MeH
Renata Fan e Denílson
Comentários 7
40 s
MeH
Renata Fan e Denílson
Chamada 8
10 s
M
Matéria 6
2 min 20 s
H
Comentários 8
15 s
MeH
Chamada 9
10 s
M
Matéria 7
4 min
H
William Lopes
9 min 45 s
M, H,
H, H, H
eH
Renata Fan, Héverton
Guimarães, Ronaldo Giovanelli,
Denílson, Ulisses Costa e Paulo
Roberto Martins.
Matéria 5 (trechos do
programa Exathlon)
Comentários 5
Passagem de bloco e
comentários 6
Debate
Renata Fan
Filipe Duarte
Renata Fan e Denílson
Renata Fan
Tabela 3 – Programa 3
Fonte: Elaborado pelos autores, 2017.
No terceiro programa analisado, a participação de Renata Fan segue a tendência
dos outros dois: a gaúcha apresentou sozinha a abertura e as chamadas – com
exceção da chamada 6, feita pelo repórter Gustavo Berton – e comentou os temas
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
137
ao lado de Denílson na primeira etapa e dos outros quatro comentaristas na segunda
parte. As seis matérias de conteúdos jornalísticos e as duas entradas ao vivo tiveram
como encarregados repórteres homens. Portanto, Renata foi a única representante
feminina do Jogo Aberto nessa data.
4.4 Jogo aberto: 28 de setembro, quinta-feira
Na edição da quinta-feira, o título do Cruzeiro ganhou notoriedade. A vitória do
Internacional na série B do Campeonato Brasileiro também foi contada e o clássico
que estava por vir no final de semana, entre Palmeiras e Santos, foi bastante discutido.
Conteúdo
Tempo aproximado
M ou H
Nome(s)
Abertura
1 min
M
Renata Fan
Comentários 1
2 min 5 s
MeH
Renata Fan e Denílson
Chamada 1
10 s
M
Renata Fan
Matéria 1
5 min 40 s
H
Gustavo Berton
Comentários 2
10 min 25 s
MeH
Renata Fan e Denílson
Chamada 2
15 s
M
Renata Fan
Matéria 2
2 min 5 s
H
Marcelo Rozenberg
Chamada 3
25 s
M
Renata Fan
Matéria 3
2 min 15 s
H
Max Correa
Comentários 3
2 min 40 s
MeH
Renata Fan e Denílson
Chamada 4
15 s
M
Renata Fan
Matéria 4
3 min 10 s
H
André Galvão
Chamada 5
15 s
M
Renata Fan
Matéria 5
2 min 10 s
H
Igor Calian
Debate
11 min
M, H, H, H e
H
Renata Fan, Héverton
Guimarães, Paulo Roberto
Martins, Ulisses Costa e
Denílson
Tabela 4 – programa 4
Fonte: Elaborado pelos autores, 2017.
No quarto programa analisado, cinco matérias apresentaram conteúdo de
futebol: todas assinadas por homens. Assim, pelo segundo dia consecutivo, Renata
Fan foi o único nome feminino do programa da Band. Por isso, confirmamos a menor
participação de mulheres em tais edições e no geral até aqui.
4.5 Jogo aberto: 29 de setembro, sexta-feira
Na sexta-feira, o confronto entre Palmeiras e Santos e as expectativas de
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
138
cada lado foram pauta de matéria e comentários. A comemoração dos jogadores do
Cruzeiro e foi abordada, assim como o lado do Flamengo. Vale ressaltar que foram
feitas entrevistas com torcedores na rua, perguntando a opinião dos mesmos sobre
a partida final, e todos eles eram homens, apesar da repórter que conduziu a matéria
ser uma mulher.
Conteúdo
Tempo
M ou H
Nome(s)
Abertura
1 min 15 s
M
Renata Fan
Chamada 1
15 s
M
Renata Fan
Matéria 1
1 min 40 s
M
Roberta Barroso
Comentários 1
2 min 40 s
MeH
Renata Fan e Denílson
Chamada 2
15 s
M
Renata Fan
Matéria 2
6 min 40 s
H
Narração: Rafael Aguiar
Comentários 2
4 min
MeH
Renata Fan e Denílson
Chamada 3
15 s
M
Renata Fan
Matéria 3
3 min
H
Marcelo Rozenberg
Comentários 3
3 min 50 s
MeH
Renata Fan e Denílson
Chamada 4
20 s
M
Renata Fan
Matéria 4
1 min 45 s
M
Roberta Barroso
15 s
MeH
Renata Fan e Denílson
Comentários parte 1
4
40 s
H
1 min 45 s
MeH
Renata Fan e Denílson
Chamada 5
20 s
M
Renata Fan
Matéria 5
2 min 15 s
M
Narração: Heloise Ornelas
Comentários 5
1 min 20 s
MeH
Renata Fan e Denílson
Chamada 6
25 s
M
Renata Fan
Matéria 6
2 min 55 s
M
Isabela Labate
Comentários 6
3 min 45 s
MeH
Renata Fan e Denílson
Comentários 7
30 s
MeH
Renata Fan e Denílson
Chamada 7
20 s
M
Renata Fan
Matéria 7
2 min 55 s
H
William Lopes
Chamada 8
10 s
M
Renata Fan
Matéria 8
4 min
H
Thiago Kansler
VT
Comentários parte 2
Debate
4
Gatito Fernandéz (goleiro do
Botafogo)
29 min 30 s M, H, H, H e H
Renata Fan, Ronaldo
Giovanelli, Paulo Roberto Martins,
Denílson e
Matéria 3 reexibida
3 min
H
Héverton Guimarães
Marcelo Rozenberg
Tabela 5 – Programa 5
Fonte: Elaborado pelos autores, 2017
A quinta edição analisada do Jogo Aberto foi a primeira e única a contar com a
igualdade entre representantes homens e mulheres: das oito matérias apresentadas,
quatro foram de figuras femininas e quatro masculinas. Durante a semana, houve
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
139
apenas uma edição em que a distribuição foi equilibrada e, no restante, a maioria foi
masculina, nunca feminina – inclusive, duas edições foram dominadas pelos homens.
5 | A PARTICIPAÇÃO DE RENATA FAN
Renata Fan é uma figura emblemática não apenas para o Jogo Aberto e para a
Band, mas para o jornalismo esportivo brasileiro, uma vez que é pioneira e mantém
uma posição de destaque desde 2007. Conforme constatado, a gaúcha aparece e
fala sozinha nas chamadas e na abertura do programa (com raras exceções), já a
sua atuação nos comentários se dá ao lado de Denílson na primeira etapa e dos
outros comentaristas na segunda. Tendo em vista esse cenário, preparamos dados
com a síntese de sua participação na semana estudada, destacando o tempo em que
a apresentadora aparece sozinha, acompanhada na primeira parte e acompanhada
na segunda parte.
Vale ressaltar que o tempo total de cada programa corresponde ao material
disponibilizado no YouTube no canal do Jogo Aberto, por esse motivo, os intervalos
comerciais não são englobados. Além disso, por conta de direitos de uso de imagens,
alguns trechos são cortados. Sendo assim, os valores utilizados como referência são
aqueles oferecidos pela emissora.
Programa
Fan sozinha
(em minutos)
Fan acompanhada Fan acompanhada Tempo total do
– 1ª parte (em
– 2ª parte
programa
minutos)
1 (25/9/17)
3 min 55 s
18 min
18 min 30 s
1 h 13 min 29 s
2 (26/9/17)
3 min 40 s
10 min 55 s
23 min 30 s
1 h 4 min 20 s
3 (27/9/17)
3 min 55 s
8 min 5 s
9 min 45 s
51 min 56 s
4 (28/9/17)
2 min 20
15 min 10 s
11 min
44 min 21 s
5 (29/9/17)
3 min 35 s
18 min 5 s
29 min 30 s
1 h 17 min 41 s
Total em 5
programas
17 min 25 s
1 h 10 min 15 s
1 h 32 min 15 s
5 h 26 min 21 s
Tabela 6 – Tempo ocupado por Renata Fan
Fonte: Elaborado pelos autores, 2017.
Em posse de tais dados, podemos afirmar que Renata Fan possui maior atuação
(em tempo) quando está acompanhada de Denílson e dos comentaristas na parte do
debate, uma vez que seu papel de apresentadora (programado e, por vezes, roteirizado)
é pequeno. Assim, a ocupação de tempo exclusivamente feminino é minoria.
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
140
6 | JOGO ABERTO: PRESENÇA MAJORITARIAMENTE MASCULINA
Conforme avaliamos nas tabelas anteriores, a presença feminina no Jogo Aberto
se mantém restrita a Renata Fan. Já nas reportagens, a participação das mulheres
nem sempre ocorre, uma vez que, durante duas edições do programa, nenhuma
repórter mulher assinou matéria.
Contando que as posições de apresentadora e comentaristas se mostraram fixas
no Jogo Aberto, as reportagens são um campo de mudanças. Sendo assim, computamos
um número geral para percebermos como esses materiais se relacionam à presença
feminina – contando apenas o nome dos repórteres, que são os encarregados pelas
matérias. Vale ressaltar que não foram consideradas as matérias reexibidas, mas
foram computadas as entradas ao vivo, prática comum no programa.
Gráfico 1 – Mulheres e homens nas reportagens do Jogo Aberto na semana estudada
Fonte: Elaborado pelos autores, 2017.
No Jogo Aberto da semana analisada, foram exibidas 34 matérias, das quais 26
foram conduzidas por repórteres homens e 8 por repórteres mulheres. Em números
percentuais, conforme o gráfico 1, são 24% de material de jornalistas mulheres
comparados a 76% de conteúdos assinados por homens.
Esses dados apontam para o predomínio da presença masculina no Jogo Aberto.
No decorrer desse trabalho, buscamos deixar evidente a presença minoritária da
mulher nas edições do programa da Band, fato que vale para os programas esportivos
da televisão aberta. De posse de tais dados, podemos perceber que, embora as
lutas feministas tenham inserido as mulheres em contextos antes negados a elas, o
predomínio masculino em espaços, como o esporte e o jornalismo esportivo, continua
sendo perpetuado, fenômeno que ocorre como fruto de uma visão naturalizada do
papel do homem. A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
141
justificação (BOURDIEU, 2003, p. 18).
“A visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se
enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma
imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a
qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das
atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus
instrumentos”. (BOURDIEU, 2003, p. 18)
A dominação masculina é tamanha e tomou conta de tantos setores da vida social
que as pessoas, geralmente, não a reconhecem. E, em certos momentos, nem mesmo
as próprias mulheres. Assim, temos o que Bourdieu chama de violência simbólica.
O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura, de língua
etc.) se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes, mas através
dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos
habitus e que fundamentam, aquém das decisões da consciência e dos controles
da vontade, uma relação de conhecimento profundamente obscura a ela mesma.
(BOURDIEU, 2003, p. 49)
Embora perceba situações em que a divisão do mundo a partir do gênero se
encarrega de separá-lo entre “coisa de homem” e “de mulher”, algumas limitações,
por serem veladas, não revelam de forma explicita essa raiz da diferenciação entre os
gêneros. Segundo Fan (2017, informação oral), o mercado de trabalho, hoje, é muito
mais fácil do que há 14 anos, quando começou. “A mulher, dentro dos programas
esportivos, era uma figuração, era mais vista pela estética, e não pelas opiniões
emitidas” (FAN, 2017, informação oral). Ainda segundo a profissional, naquela época
não era possível que o trabalho feminino fosse valorizado. “E não porque as mulheres
não tivessem condições, mas porque elas não tinham espaço; e isso foi acontecendo
gradativamente” (FAN, 2017, informação oral).
“Quando as mulheres começaram a trabalhar, quando mostraram sua competência,
o quanto elas são profissionais, o quanto, realmente, elas fazem a diferença,
isso acabou ganhando espaço, abrindo um novo caminho para todas nós. E, na
verdade, quando uma mulher tem sucesso, outra ganha oportunidade, outra vai ter
a chance de mostrar algo novo, diferente”. (FAN, 2017, informação oral)
Dessa forma, Fan também admite a importância da representatividade, de
mulheres que ocupem espaços e demonstrem suas capacidades para que o caminho
seja aberto para outras, o que ressalta a importância da presença feminina em contextos
nos quais percebe-se a divisão sexuada do trabalho, como o universo esportivo.
No mesmo sentido, Mills (2017, informação escrita), diretor do Jogo Aberto desde
2014, avalia que, a cada dia que passa, o espaço para as mulheres em programas
esportivos é maior. O diretor também oferece os dados da atração. Conforme Mills
(2017, informação escrita), dos 10 profissionais que editam o programa no dia a dia,
em São Paulo, três são mulheres. O que resultaria em 30%. Nas ruas, produzindo
as matérias, ainda de acordo com o profissional, são 11 repórteres, dos quais
três são mulheres. O que, transpondo para um número percentual, resultaria em
aproximadamente 27,2%. Renata Fan, a apresentadora, ocupa sozinha essa posição
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
142
e, nos debates, é a única mulher entre uma quantidade variável de comentaristas – de
três a cinco por programa – mas, sempre, todos eles homens. Além disso, observamos
durante a visita ao programa, que, no estúdio, além de Renata, havia apenas outras
duas mulheres, que eram sua maquiadora e cabelereira. Os câmeras e produtores
presentes no local em que o programa é transmitido são todos homens.
7 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
O jornalismo esportivo surgiu no Brasil na década de 1850, e, um século
depois, o campo ainda era dominado por homens no país, com raras representantes
femininas até, pelo menos, 1970. Tendo em vista esse cenário, neste trabalho, após
uma breve contextualização histórica que objetivou traçar um caminho até os dias
atuais, analisamos o Jogo Aberto, um programa esportivo exibido na televisão aberta
na atualidade.
Para isso, utilizamos tabelas para computar os dados de conteúdo e verificar de
que forma a presença feminina se realiza nas atrações, levantamentos encontrados
desde a tabela 1 até a tabela 5. Por meio desses dados foi possível concluir que o Jogo
Aberto tem em Renata Fan uma figura importante e participativa, pioneira e diferenciada
por ser uma figura feminina que emite opiniões sobre esporte na televisão aberta – e,
nesse aspecto, atua sempre ao lado de homens. Nas reportagens e na posição de
comentaristas, a dominação ainda é masculina. Por meio dos dados levantados ao
assistir os programas da semana selecionada e a montagem das tabelas, calculamos:
foram exibidas 34 matérias ao todo, das quais 26 foram feitas por homens e 8 por
mulheres.
Consideramos, desta forma, que as raízes da atuação minoritária feminina
estão intimamente ligadas à desigualdade de gêneros, que nada mais é do que a
manifestação de uma cultura de diferenciação entre os sexos que se estabeleceu
no passado, construindo os gêneros, e se perpetuou por meio de estruturas, como
a exclusão ou a dominação de mulheres em determinados contextos, a exemplo do
esporte. O sociólogo francês Pierre Bourdieu (2003, p. 72) afirma que há posições
oferecidas às mulheres pela estrutura, ainda fortemente sexuada, da divisão de
trabalho. Nesse caso, percebemos a divisão e separação bem demarcada do esporte
e do universo feminino. Bordieu (2003, p. 18-20) explica que existe um programa social
de percepção incorporada, ou seja, uma noção aprendida, que se aplica a todas as
coisas do mundo e ao próprio corpo em sua realidade biológica.
É ele [corpo] que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a
aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de
dominação dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do
trabalho, na realidade da ordem social. A diferença biológica entre os sexos, isto
é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença
anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural
da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão
social do trabalho (BOURDIEU, 2003, p. 20)
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
143
Apesar do discurso de igualdade e de avanços, as análises de cada dia dos
programas nos mostraram que as mulheres ainda são minoria e que o processo
histórico de luta feminista que acontece até os dias de hoje não foi o suficiente para
inserir a mulher nesse contexto, ainda reprodutor da imagem do homem ligada ao
esporte.
Sendo assim, percebemos que os efeitos da dominação masculina ainda estão
presentes na sociedade atual e influenciando o trabalho de mulheres no jornalismo
esportivo, mostrando que será necessária muita luta além daquelas já travadas.
REFERÊNCIAS
ANDÚJAR, Clara Sainz de Baranda. Orígenes de la prensa diária deportiva: El Mundo Deportivo.
Artigo acadêmico. Universidad Carlos III de Madrid. Materiales para La Historia del Desporte, N° 11.
Madrid, Espanha: 2013.
BAGGIO, Luana Maia. Representação da mulher no telejornalismo esportivo: a atuação da
jornalista Renata Fan no programa Jogo Aberto da TV Bandeirantes. Rio Grande do Sul, 2012.
BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica - História da Imprensa Brasileira. São Paulo: Ática, 1990.
BARBEIRO, Heródoto e RANGEL, Patrícia. Manual do jornalismo esportivo. São Paulo: Contexto,
2006.
BARROS, Ciro. Jornalismo Esportivo: nem mulheres nem fontes. In: Apublica.org. Disponível em:
< http://apublica.org/2012/10/jornalismo-esportivonem-mulheres-nem-fontes/ >. Acesso em: 26 de
novembro de 2017.
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
DANTAS, Monique de Andrade. Mulheres no Jornalismo Esportivo. Rio de Janeiro, 2016.
FIRMINO, Carolina Bortoleto. ‘Sou atleta, sou mulher’: a representação feminina sob análise
das modalidades mais noticiadas nas olimpíadas de Londres 2012. Dissertação (mestrado)
- Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comuicação, 2014.
GOELLNER, Silvana Vilodre. Gênero e esporte: masculinidades e feminilidades. Rio de Janeiro:
Apicuri, 2010.
_________________________. Mulher, esporte, sexualidade e hipocrisia. In: III Fórum de debates
sobre mulher & esporte – mitos e verdades. Universidade de São Paulo-USP, 2004.
MIRAGAYA, A. A mulher olímpica: tradição versus inovação na busca pela inclusão. Fórum
Olímpico. Rio de Janeiro, 2002. Disponível em http://www.sportsinbrazil.com.br/artigos_papers/a_
mulher_olimpica_1.pdf>. Acesso em 26/12/2017.
RIBEIRO, André. Os Donos do Espetáculo: histórias da imprensa esportiva do Brasil. 1. ed. São
Paulo: Editora Terceiro Nome, 2007
“Conheça a trajetória da primeira jornalista de esportes do Brasil”. In: Portal Mídia e Esporte.
Disponível em: <http://www.portalmidiaesporte.com/2014/03/conheca-a-jornalistaregianiritter.html>.
Acessado em 17 de novembro de 2017.
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
144
“Isabela Scalabrine foi a primeira mulher a apresentar o Globo Esporte”. In: Globo Play – Globo
Esporte MG. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/2757664/>. Acessado em 17 de novembro
de 2017.
“Íntegra Jogo Aberto - 25/09/2017”. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=FLGxOq6xeak>. Acesso em: 29 de novembro de 2017.
“Íntegra Jogo Aberto - 26/09/2017”. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=bmXFtzI2PlM&spfreload=1>. Acesso em: 2 de dezembro de 2017.
“Íntegra Jogo Aberto - 27/09/2017”. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=0h8ucD3wY8I&spfreload=1>. Acesso em: 4 de dezembro de 2017.
“Íntegra Jogo Aberto - 28/09/2017”. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=a5oWjQ7RJ0g&spfreload=1>. Acesso em: 5 de dezembro de 2017.
“Íntegra Jogo Aberto - 29/09/2017”. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=muzNLQcVyCs>. Acesso em: 6 de dezembro de 2017.
“Perfil de audiência”. In: Band.com.br. Disponível em <http://www.band.uol.com.br/comercial/
audiencia.asp>. Acessado em 17 de novembro de 2017.
Ciências da Comunicação
Capítulo 12
145
CAPÍTULO 13
DIVERSINE, UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA FÍLMICA
PARA PENSAR A DIVERSIDADE NA PERSPECTIVA
DO GÊNERO
Hugo Bueno Badaró
Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Amazonas, Manaus, AM
Thaumaturgo Ferreira de Souza
Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Amazonas, Manaus, AM
Maria Lúcia Tinoco Pacheco
Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Amazonas, Manaus, AM
RESUMO: O presente artigo visa apresentar a
experiência do “Projeto Diversine”, ocorrida no
segundo semestre de 2017, no campus Manaus
Centro/CMC, do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Amazonas/IFAM.
O principal objetivo do projeto foi promover,
a partir da arte cinematográfica e seu viés
estético, um debate sobre o tema diversidade
junto à comunidade escolar do CMC. Como um
dos maiores desafios no contexto educacional,
considerando-se o paradigma inclusivo, é
a mudança atitudinal, a necessidade de se
empregar diferentes estratégias nos levou
ao cinema como um espaço de formação
importante. O recorte para esse trabalho se dará
em torno de dois filmes nos quais a questão
de gênero foi evidenciada. O projeto atingiu 5
turmas, num total de 87 estudantes.
PALAVRAS-CHAVE:
Projeto
Diversine;
Diversidade; Gênero; Cinema; Educação.
Ciências da Comunicação
ABSTRACT: This article aims to present the
experience of the “Diversine Project”, held in the
second half of 2017, at the Manaus Centro / CMC
campus, at the Federal Institute of Education,
Science and Technology of Amazonas / IFAM.
The main objective of the project was to promote
a debate about the diversity theme with the CMC
school community, through an approach of the
cinematografic art and it’s aesthetic nature. As
one of the major challenges in the educational
context, considering the inclusive paradigm
is the attitudinal change, the need to employ
different strategies has led us to the cinema as
an important space for formation. This work will
consider only two films in which the gender issue
was evidenced. The project reached 5 classes,
with a total of 87 students.
KEYWORDS: Diversine Project; Diversity;
Genre; Movie; Education.
1 | INTRODUÇÃO:
DA
INCLUSÃO
À
DIVERSIDADE, UM PROJETO
Nos últimos dez anos, a sociedade
brasileira tem acompanhado uma mudança
pontual no que se refere à inclusão e muito
embora o tema não seja novo, em contexto
social posto que desde a Declaração Universal
dos Direitos do Homem (1948), ele já apareça,
é somente agora que o tema inclusão, na
Capítulo 13
146
perspectiva da diversidade, encontrou espaço na agenda política do Brasil, em que se
insere a educação.
Diremos, inclusive, tomando como referência o documento anteriormente
citado, que a inclusão caminhou de uma ideia de igualdade entre os povos para o
reconhecimento da diversidade, na perspectiva dos diversos sujeitos que compõem
essa última.
Em um breve recorte documental a ideia de inclusão no campo educacional
passa, portanto, pelo entendimento de que “Todos os seres humanos nascem livres
e iguais em dignidade e direitos.”, dentre esses, o direito à educação (DUDH, 1948),
mas agora não mais aquela homogênea, mas àquela que atenda as diferenças como
apregoa a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, de 1990.
3. A prioridade mais urgente é melhorar a qualidade e garantir o acesso à educação
para meninas e mulheres [...]
4. Um compromisso efetivo para superar as disparidades educacionais deve ser
assumido. Os grupos excluídos – os pobres; os meninos e meninas de rua ou
trabalhadores; as populações das periferias urbanas e zonas rurais; os nômades
e os trabalhadores migrantes; os povos indígenas; as minorias étnicas, raciais e
linguísticas; os refugiados; os deslocados pela guerra; e os povos submetidos a um
regime de ocupação – não devem sofrer qualquer tipo de discriminação no acesso
às oportunidades educacionais.
5. As necessidades básicas de aprendizagem das pessoas portadoras de
deficiências requerem atenção especial.
(Art.3)
Atrelados então ao reconhecimento do sujeito diverso, de que trata o documento
de 1990, o discurso da inclusão, nos tempos de agora, passou a incluir e ressignificar
outros vocábulos como respeito, cultura, acessibilidade, desenho universal, gênero,
diversidade, mudança atitudinal, dentre outros. E sobre esse último se assenta o
campo educacional e um dos desafios à política educacional vigente: Como educar
para a diversidade?
Foi a partir do desafio de pensar em estratégias capazes de promover essa
mudança de comportamento em favor da diversidade e da inclusão, em que pudéssemos
construir um olhar plural sobre o tema, que propusemos o “Projeto Diversine”, que tem
como princípio norteador a relação cinema-educação-comportamento. Proposto por
meio de edital de assistência estudantil (PAES), o projeto manteve como preocupação
constante o ato de educar por meio da arte fílmica.
Dentre os filmes trabalhados no período de vigência do projeto, estavam, de
2014, a produção inglesa “O jogo da Imitação”, biografia de Alan Turing, e de 2016,
o filme “Estrelas além do Tempo”, produção norte-americana, autobiográfica, que
apresenta a história de três mulheres negras, no exercício de suas profissões na
NASA, na década de 60. Ambos os filmes são recortes da diversidade na questão do
gênero e dos estereótipos e nos aproximam da relação inclusão e diversidade.
Ciências da Comunicação
Capítulo 13
147
2 | DO CINEMA E DA EDUCAÇÃO, O PROJETO DIVERSINE
Dentre os muitos teóricos que tratam da arte cinematográfica, Walter Benjamin
(1987) é aquele que mais trouxe contribuições das mais importantes para o contexto
deste trabalho.
Para ele, o cinema é “uma obra da coletividade” dadas as condições de produção
e recepção, “que serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações” (1987,
p. 174) e, enquanto obra de arte, é aquela que permite ao homem contemporâneo,
uma experiência estética, por meio da qual ele se confronta profundamente com sua
existência e com tudo que dela faz parte.
Segundo Neves (2012, p. 3), em Benjamin, o “cinema tinha a capacidade de ir até
estratos ocultos da realidade, provocando paralelamente à diversão um alargamento
da percepção”, ou seja, para além da diversão e do prazer lúdico, é nessa ampliação
da percepção sobre a existência humana, nessa “visualização cinematográfica” dos
problemas, desejos e enfrentamentos, que emerge no público uma reflexão sobre seu
mundo e sua própria prática social. Filmes interessantes, tanto quanto livros bons, são
aqueles capazes de provocar no seu interlocutor um incômodo, uma insatisfação.
Em uma breve analogia, o cinema é uma grande caixa preta (mágica) pela qual
temos que passar. Antes de adentrá-la somos um, após a passagem por ela, na saída,
já não somos mais o mesmo que entrou. É nesse sentido que Benjamin vê o cinema:
um espaço de afetação. Afetado pelo que viu e ouviu nesta experiência, o públicoreceptor é chamado a uma mudança.
No que tange à diversidade, a promoção de um comportamento inclusivo, a
mudança, é fundamental; logo, apropriar-se de uma ferramenta como o cinema, capaz
de provocar uma reflexão sobre o tema no contexto educacional pareceu-nos fecundo
e promissor.
Sabe-se que a utilização de filmes não está atrelada a um ou outro campo, e
embora seu uso não seja novo na escola e seu emprego geralmente ligado a certo
pedagogismo e menos a uma experiência individual (e também coletiva) com uma arte,
não se pode negar que eles “[...] podem contribuir com a promoção da sensibilização,
da expansão da consciência e do reconhecimento das desigualdades sociais e
preconceitos.” (NEVES, 2012, p. 2).
Para Napolitano (2009), ao ser tomado como um texto gerador, ou seja, do qual
é possível debater um tema ou vários outros atrelados a uma mesma ideia, o filme
não promove tal discussão somente por meio de seu conteúdo literal, mas, sobretudo,
por seu caráter estético e ideológico, metafórico. O filme, como um texto, possui
entrelinhas, que permitem ao público uma experiência diferenciada. Afetado pelo que
viu e ouviu nesta experiência, o receptor é chamado a uma mudança.
Nesse sentido, resgatar a relação do cinema com a educação brasileira, que se
inicia por volta dos anos 20, quando os filmes nos surgem em contextos de projetos
Ciências da Comunicação
Capítulo 13
148
educacionais, por apresentarem potencial educativo (LEITE, 2005), e ressignificar seu
valor artístico, estético e cultural no que se refere à construção de um olhar plural
sobre a diversidade foi o objetivo que norteou o Projeto Diversine.
Centrado na arte cinematográfica, em diálogo com a educação, considerando-
se, sobretudo, seu objetivo principal que fora promover, a partir da sétima arte e seu
viés estético, um debate sobre o tema diversidade, o projeto Diversine teve nos seus
interlocutores – a comunidade escolar do IFAM – e na recepção que fizeram do material
selecionado o ponto principal de sua atividade.
De natureza interventivo – investigativa, e abordagem qualitativa, o projeto
considerou as seguintes atividades:
1ª Preparação da equipe do projeto e material publicitário;
2ª Seleção e Edição de filmes com enfoque em deficiência, gênero, orientação
sexual e cultura;
3ª Debate sobre o filme pela equipe de trabalho;
4ª Produção de questionário semiaberto;
5ªExibição fílmica, seguida de diálogo com a turma e aplicação do questionário;
6ª Produção de relatório parcial e final;
7ª Socialização do projeto em amostra institucional.
De modo geral, essas atividades foram distribuídas em duas fases: na primeira,
denominada “Planejamento”, tivemos a preparação da equipe executora por parte do
coordenador, e incluiu a apresentação do plano de trabalho, com as reuniões de grupo.
Nessa, ocorria a seleção do material fílmico a ser exibido no mês subsequente, o
levantamento de pontos a serem discutidos, a confecção de material para divulgação
do projeto (figura 1), a produção de questionário específico sobre a exibição feita
(figura 2), e a definição da abordagem a ser empregada junto ao público no momento
da sessão.
Figura 1 – Cartaz do projeto
Fonte: Bolsistas/Voluntário do Projeto Diversine (2017)
Ciências da Comunicação
Capítulo 13
149
Figura 2 – Modelo de questionário específico
Fonte: Projeto Diversine (2017)
Nas reuniões preparatórias da equipe, ganhou relevância o modo como a arte
cinematográfica fora trabalhada sob o viés da linguagem, das escolhas estéticas dos
realizadores do material, da performance dos atores, da construção das personagens,
dentre outros, e de como estes aspectos apresentaram a diversidade, de modo direto
ou indireto, se por meio de comparações ou por meio alegorias.
Na segunda fase, denominada “Exibição”, ocorreu a apresentação fílmica,
seguida do diálogo com o público e da aplicação do questionário junto a ele. A partir
das respostas dadas ao questionário, da observação direta sobre a plateia e da
receptividade da atividade proposta, a equipe, em reunião posterior, avaliou a condução
do processo e do impacto da exibição na comunidade.
3 | OS FILMES: DA EXIBIÇÃO ÀS DISCUSSÕES
Nesta etapa do projeto foi feita a exibição dos filmes selecionados, seguida
de uma conversa com a plateia sobre os variados aspectos que aquela experiência
propunha, a começar pelo roteiro proposto. Os filmes apresentados, no contexto da
diversidade, com recorte na questão do gênero (e sexualidade), foram “O Jogo da
Imitação” e “Estrelas além do tempo”.
Lembramos que a seleção desses e de outros filmes se deu no âmbito das
reuniões dos gestores do projeto. Sobre a escolha pesou, sobretudo, a experiência
fílmica individual vivenciada pelos membros da equipe inicialmente, as discussões
posteriores em torno das percepções que tivemos quando feitas as reuniões. A ideia
era trazer para o nosso público o mesmo clima, da experiência individual à coletiva, a
produção de um olhar sobre a diversidade.
O filme “O jogo da imitação” de Allan Turing, foi pensado e escolhido por diversas
questões pertinentes no mesmo, questões essas, que estão diretamente ligadas
ao objetivo e assunto que queremos tratar. Visto como um tabu à época em que se
Ciências da Comunicação
Capítulo 13
150
passa, e, mas que tem permeado até os dias atuais, a questão do homossexualismo,
adensado por uma sociedade onde o machismo é preponderante, é tema no filme.
Em “Estrelas além do tempo”, a abordagem que fora um pouco diferente, manteve
o mesmo objetivo, promover no público-alvo uma mudança de pensamentos e atitude.
Nesse filme, tratamos da questão das minorias, agora visto pelo olhar da pessoa negra,
da mulher negra, ou melhor dizendo – das mulheres negras. O filme nos permitiu
acompanhar a dificuldade por que passaram as protagonistas, vivenciando jornadas
duplas e também sofrendo duplamente, tanto por serem mulheres, quanto por serem
negras. Por outro lado, mostra o enfrentamento de determinada situação é necessário
para a mudança que se quer.
Os filmes acima mencionados foram escolhidos dentre todos os outros, pensados
e discutidos, pois além de tratarem como diz Benjamim, de “perigos existenciais”
totalmente pertinentes em nossa sociedade como o tratamento diferenciado entre os
gêneros, a sexualidade enquanto tabu, racismo e machismo, também dizem respeito
às dificuldades enfrentadas em partes pelo nosso público - os alunos do IFAM. Para
Gomes (1996), o racismo, a discriminação racial e de gênero, que fazem parte da
cultura e da estrutura da sociedade brasileira, estão presentes na vida e nas relações
entre educadores e educandos.
Após a escolha dos filmes e a respectiva apresentação e discussão posterior,
houve a aplicação do questionário, no qual os alunos puderam nos dar mais informações
sobre essa experiência. Foi por meio dele também que conhecemos o ponto de vista e
experiências sobre o assunto e sobre o que foi tratado em sala.
3.1 O Jogo da Imitação
O filme foi exibido em duas turmas de informática do ensino médio técnico,
na modalidade integral – INF11A e INF11B –, em dias diferenciados, e assistido
por cinquenta e dois (52) estudantes, no total. Muitos, mesmo sendo do curso de
informática, nunca tinham ouvido falar de Alan Turing, e muito menos do Teste de
Turing - avaliação para saber quão humano uma máquina pode parecer.
A diversidade no filme, segundo os alunos que assistiram à exibição, estava
diretamente relacionada ao preconceito, ao machismo e ao homossexualismo. Sobre
a orientação sexual, um estudante discorreu: “Na minha opinião, ele realmente pode
ter se suicidado, pelo viveu. Por ser homossexual, ele não aguentou viver com esse
preconceito e com o acordo judicial, ou seja, ele pode ter ficado com depressão por
esse motivo”. Para outros alunos, “ [...] a diversidade está presente no filme quando
uma mulher trabalha no meio de homens, mesmo sofrendo muito machismo e
discriminação, que era muito intenso e extremo na época”.
Um outro ponto, bastante mencionado pelos alunos nos questionários, foi a
superação contida nele, tanto pela personagem Joan Clarke, única integrante feminina
da equipe – quando ela suplanta obstáculos e preconceito e consegue se destacar
Ciências da Comunicação
Capítulo 13
151
na cena em que ela finaliza a prova que a colocaria em melhor posição na equipe
em relação aos outros, quanto pelo protagonista – na criação da máquina, mesmo
quando todos desacreditaram e duvidaram dele. Superação essa, bem descrita pela
frase mencionada no filme, “Aqueles de quem menos se imaginam, fazem coisas que
ninguém sequer poderia imaginar”.
Realizar uma abordagem pessoal do personagem Alan Turing, visando os
obstáculos que sofreu por ser homossexual e fora dos padrões da sociedade
serviu para que muitos alunos enxergassem o humano por trás do gênio, inclusive,
considerando que a genialidade é também um fator de diferença e preconceito. A partir
dos dados coletados verificamos que os alunos dessas turmas possuem uma grande
disposição para essa temática, apesar de seu pouco conhecimento. Nesse sentido,
buscar meios e estratégias para uma maior abordagem do tema diversidade ajudará
na compreensão do que a ela é e das suas implicações para a inclusão.
3.2 Estrelas Além do Tempo
Na turma de mecânica (EMEC), em virtude de problemas de ordem técnica, o
que comprometeu o tempo destinado à atividade, optou-se por uma palestra sobre
Diversidade a partir da seleção de cenas específicas do filme “Estrelas além do tempo”.
Surgiram no contexto do debate, por meio do alunado, as questões do gênero e da
raça no mundo do trabalho e do conhecimento científico.
O curso de engenharia mecânica no IFAM é marcadamente composto por um
público masculino. Na turma do 10º período, em que o debate ocorreu, há dez (10)
alunos matriculados; mas apenas um é do sexo feminino. Essa disparidade nos revela,
consequentemente, ainda, o domínio dos homens em determinadas áreas de trabalho,
dentre as quais, a engenharia mecânica.
O filme “Estrelas além do Tempo”, situado na década de 60, resgata, nesse
sentido, essa divisão, marcadamente histórica, do trabalho e do conhecimento,
entre homens e mulheres. As cenas selecionadas para essa atividade objetivaram
apresentar, portanto, os enfrentamentos da mulher negra, à época, no mundo do
trabalho, em áreas denominadas convencionalmente como “lugares de homens”.
A partir da escuta estabelecida no processo dessa exposição, os estudantes dessa
turma consideraram que a engenharia mecânica é, como a matemática da década de
60, sobre a qual o filme trata, ainda uma área com predominância masculina, o que
implica para as mulheres que procuram cursos dessa natureza desafios importantes
tanto na faculdade, na condição de aluna, quanto no trabalho, quando profissional. Os
cursos de engenharia mecânica, tanto na fala de alunos quanto de alunas, também é
um espaço masculinizado, que se revela inclusive no tratamento das alunas em sala
de aula por parte de quadro docente, que em sua maioria também é composta de
homens.
Tais quais as protagonistas dos filmes, que ouviram que a NASA não era um
lugar para mulheres, as alunas da turma revelaram que muitos discursos proferidos,
Ciências da Comunicação
Capítulo 13
152
ainda que em “tom de brincadeira”, como por exemplo, a pergunta “O que vocês estão
fazendo aqui?” tem a mesma conotação. É uma experiência de segregação.
Nas falas, pontuou-se, sobremaneira, o tratamento diferenciado e desigual a
que muitas mulheres são submetidas: sujeitar-se a cobranças maiores no mundo do
trabalho para comprovar o que sabem diante de seus pares profissionais, em grande
maioria, homens; além das diferenças salariais, que as pesquisas de modo geral já
assinalam. Sobre a questão da raça, apontada inicialmente, embora tenha sido pouco
aprofundada no contexto de hoje, reconhece-se haver preconceito racial, no entanto,
para a maioria, no âmbito da mecânica a problemática do gênero é mais acentuada.
No entanto, todos os estudantes, no momento do debate, que muitas situações
exigem enfrentamentos e observar com isso se deu na trajetória das protagonistas do
filme e onde elas puderam chegar mesmo com tamanhas dificuldades é um caminho
a ser trilhado. Por fim, os estudantes pontuaram que é necessário que a mudança
não deva recair somente sobre o sujeito excluído, como se ele sozinho tivesse a
responsabilidade de mudar seu destino.
A mudança deve ser parte de um conjunto maior, o que inclui a sociedade e seus
mecanismos sociais: instituições, dispositivos legais, ações.
4 | CONCLUSÃO
Após a finalização do projeto “Diversine”, através dos métodos de coleta utilizados,
avaliamos que a utilização da arte cinematográfica com enfoque na diversidade no
contexto do IFAM-CMC foi de grande valia e se caracteriza como ferramenta de
reflexão no contexto de educação para a diversidade.
O cinema como estratégia para conscientização dos docentes e discentes no
meio acadêmico tem se mostrado bastante produtivo e significativo, pois além de
se trabalhar com a imagem e os audiovisuais, linguagem do mundo atual, tem se
mostrado promissor na quebra dos preconceitos e paradigmas em nossa sociedade,
de maneira simples, clara e através de uma experiência individual e ao mesmo tempo
coletiva.
A partir dos filmes selecionados e em meio às temáticas específicas abordadas
com o público do IFAM, dentre elas, o racismo, o machismo e a homofobia, pudemos
observar e medir a importância e o valor da educação para a diversidade. Por meio
dessa experiência, dos comentários e da discussão da qual participamos todos, equipe,
professores e alunos, verificamos a presença do preconceito e da discriminação ainda
enraizados nas turmas do instituto.
Por outro lado, percebemos que há espaços possíveis para a discussão e que a
comunidade apresenta predisposição para participar dela e mudar seu comportamento.
O bom uso de estratégias e ferramentas como filmes que promovam a reflexão, podem
serem diferenciais nesse processo no momento atual.
Ver a mulher de modo igual, discutir os direitos do outro, entender a alteridade
Ciências da Comunicação
Capítulo 13
153
nos ambientes educacionais passa pelas escolhas pedagógicas. Nisso, se reafirma o
papel social da escola que é o de promover espaços que acolham as diferenças.
REFERÊNCIAS
Assembleia Geral da ONU. (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos (217 [III] A). Paris.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: _______. Magia e
Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras Escolhidas v.1)
ESTRELAS ALÉM DO TEMPO. Direção de Theodore Melfi. Estados Unidos da América, 2016.
GOMES, Nilma L. Educação, Raça e Gênero: Relações Imersas na Alteridade. Artigo apresentado no
GT “Gênero e Raça”, XX Reunião Brasileira de Antropologia e I Conferência: Relações Étnicas e
Raciais na América Latina e Caribe, em abril de 1996, p.69.
LEITE, S. Cinema brasileiro: das origens à retomada. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005.
O JOGO DA IMITAÇÃO. Direção de Morten Tyldum. Inglaterra, Irlanda do Norte e Estados Unidos da
América, 2014.
NAPOLITANO, M. Cinema: experiência cultural e escolar. In: TOZZI, D. (org.) caderno de cinema
do professor: dois. São Paulo: FDE, 2009.
NEVES, Fátima Maria. Como trabalhar com filmes em sala de aula. Minicurso. Anais da Semana de
Pedagogia da UEM. Volume 1, Número 1. Maringá: UEM, 2012.
UNESCO. Declaração mundial sobre educação para todos. Plano de ação para satisfazer as
necessidades básicas de aprendizagem. Tailândia, 1990.
Ciências da Comunicação
Capítulo 13
154
CAPÍTULO 14
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL E FORMAÇÃO
DE ESTEREÓTIPOS: HOMOSSEXUALIDADE NA
TELEVISÃO BRASILEIRA
Pablo de Oliveira Lopes
Universidade Santo Amaro, São Paulo - SP
RESUMO: O campo da Análise do Discurso
(AD) estabelece como objeto de estudos a
produção de efeitos de sentido atribuída por
sujeitos sociais que lançam mão da linguagem
e produzem verdades. A comunicação
áudio-visual pode desenvolver uma relação
profícua com a AD ao problematizar o papel
dos discursos na produção das identidades
sociais, pois a retórica do preconceito é
uma das diversas maneiras de formação de
consciências e identidades. Partindo das
premissas que envolvem questões éticas na
comunicação audiovisual, o presente artigo
visa refletir sobre a representatividade dos gays
na televisão brasileira. Com base na semântica,
os resultados parciais permitem considerar
que a televisão contribui para a propagação
de uma imagem distorcida da realidade, cuja
desconstrução revela
representações que
valorizam o universo social heteronormativo e
homofóbico.
PALAVRAS-CHAVE:
Gay;
preconceito;
televisão; mídia.
ABSTRACT: The Field of Discourse Analysis
(AD) establishes as object of studies the
production of effects of meaning attributed by
Ciências da Comunicação
social subjects that use language and produce
truths. Audio-visual communication can develop
a fruitful relationship with AD by problematizing
the role of discourses in the production of social
identities, since the rhetoric of prejudice is one
of the many ways of forming consciousness and
identities. Based on the premisses that involve
ethical issues in audiovisual communication, this
article aims to reflect on the representativeness
of gays in Brazilian television. On the basis of
semantics, partial results allow us to consider
that television contributes to the propagation
of a distorted image of reality, whose
deconstruction reveals representations that
value the heteronormative and homophobic
social universe.
KEYWORDS: Gay; preconception; television;
media.
1 | INTRODUÇÃO
A retórica do preconceito é uma das
diversas maneiras de expressão do discurso
social. O discurso é uma ferramenta de
construção
da
identidade,
que
influencia
diretamente na percepção que cada ser humano
tem de si mesmo. Assim sendo, atravessa o
discurso midiático e exerce papel fundamental
na formação de consciências e identidades.
Para Gregolin, “A análise do discurso pode
Capítulo 14
155
delinear algumas relações que a mídia estabelece, interdiscursivamente, com outros
dispositivos textuais que circulam na sociedade” (2007, p.3).
Partindo dessa premissa, como se aborda a questão da representatividade
homossexual na televisão brasileira? Segundo Tucci Carneiro (1996), o discurso da
intolerância caracteriza-se por diferentes formas de expressão: pela linguagem escrita,
visual e oral. Na linguagem visual, encontram-se os filmes, as telenovelas, os programas
humorísticos, as gravuras, as caricaturas e as fotografias como formas de expressão
nas quais podem ser identificadas palavras, frases, gestos e comportamentos que
contribuem para a perpetuação do preconceito por meio da reprodução de estereótipos.
O estereótipo pode ser definido como um dispositivo cognitivo que facilita o
acesso a novas situações. Equivale a categorias que definem padrões de aproximação
e de julgamento que orientam a leitura do novo a partir de referências prévias e,
assim, reduz a complexidade das interações concretas e contribui para ampliar o grau
de previsibilidade nas novas interações. Crença rígida e simplificada, o estereótipo
minimiza as variações presentes nos comportamentos individuais, definidos e
explicitados em interações e contextos sociais específicos.
Estereótipos e realidade dependem um do outro e ratificam comportamentos
e valores socialmente produzidos. O estereótipo remete ao etnocentrismo, visão
de mundo que considera um grupo étnico, nacionalidade ou nação superiores aos
demais. Estereótipo e etnocentrismo relacionam-se com o julgamento de práticas e
padrões culturais e atribuição de valores a algumas características de determinados
grupos de indivíduos. Muitas vezes pejorativos, tais julgamentos tendem a colocar as
pessoas em posição de inferioridade, considerações que remetem a interpretações
raciais de cunho eugênico.
Eugenia foi um termo criado por Francis Galton (1822-1911), em 1883,
definido como o estudo dos agentes sob o controle social, que podem melhorar ou
empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações. Galton pregava a aplicação
do melhoramento genético na população humana. Exemplo extremo de eugenia foi o
da Alemanha Nazista, onde o regime de Adolf Hitler (1889-1945) pregava a supremacia
da raça ariana. O Holocausto adveio de tal princípio e resultou na morte de judeus,
negros, gays, portadores de deficiência e demais indivíduos pertencentes a ‘ raças’
ditas inferiores.
Expressões populares presentes no dia-a-dia reafirmam o preconceito gerado
pela disseminação de estereótipos: é o caso de ‘Não tenho nada contra, mas…’, ‘Ele
é gay mas ninguém diz. Se veste igual a todo mundo’, ‘Não tenho preconceito, tenho
até amigos que são gays’, ‘Tudo bem ser gay, mas não precisa ficar desmunhecando’,
‘Pode ser lésbica, mas não precisa se vestir como homem’, ‘Não precisa ficar contando
para todo mundo que você é gay’ e ‘Ele é tão bonito, nem parece que é gay’. Elas
denotam a rejeição aos homossexuais, sentimento que podem ser explícito ou velado. A
homofobia camuflada aparece como uma recusa em aceitar que os homossexuais são
seres humanos iguais aos heterossexuais. Homofóbicos preferem não manter contato
Ciências da Comunicação
Capítulo 14
156
com homossexuais. A atitude homofóbica, em geral, vem acompanhada da frase ‘não
tenho nada contra, mas…’. Nesse sentido, é possível considerar que costuma haver
um discurso de cunho religioso, com forte apelo moral, atrelado a estereótipos como
‘homossexuais são quase sempre promíscuos’.
As frases citadas têm impacto na produção midiática, sobretudo na comunicação
audiovisual. Nesse sentido, cabe questionar como os meios de comunicação de massa,
sobretudo a televisão, exercem influência na fabricação de estereótipos sobre gays.
A ampliação dessas construções e permanências remonta a aspectos oriundos
da saúde e da medicina, pois a homossexualidade já foi considerada doença. Em 1952,
a Associação Americana de Psiquiatria publicou em seu primeiro Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais que a homossexualidade era uma desordem, o
que levou diversos cientistas a tentar comprovar que havia um distúrbio mental nos
gays. Com a falta de comprovação, em 1973, a mesma associação retirou a opção
sexual da lista de transtornos mentais.
Uma outra causa de hostilidade face à homossexualidade foi a sua classificação
como patologia pela comunidade médica do Séc. XIX. Nos primórdios do Séc. XX
a homossexualidade foi incluída no ramo das doenças mentais e foram criadas
clínicas para tratar os doentes homossexuais. A junção da visão médica às ideias
emergentes da pureza racial e eugenia nos anos 1930 tiveram consequências
desastrosas: cerca de 20.000 homossexuais masculinos, identificados por um
triângulo cor-de-rosa, foram mortos em campos de concentração pelos nazistas.
(Poeschl; Venâncio; Costa, 2012, p. 2).
Em 1975, a Associação Americana de Psicologia seguiu o mesmo caminho e
orientou os profissionais a não adotarem tal postura, evitando a difusão de preconceito.
Entretanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu o homossexualismo na
classificação internacional de doenças (CID) de 1977 como uma enfermidade mental,
mas o retirou em 1990. Por essa razão, o dia 17 de maio tornou-se o Dia Internacional
contra a Homofobia.
O longo período em que a homossexualidade ocupou a posição de transtorno
mental conferiu aos gays estigmas de doença e contribuiu, posteriormente, para o
surgimento da associação entre homossexuais e uma grave enfermidade dos anos
1980: a AIDS. A geração dos anos 80 enfrentou a doença como uma sentença de
morte, a chamada ‘peste gay’, termo carregado de preconceito e simbologia, que
marcou anônimos e personagens famosos.
Em junho de 1981, o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos
registrou os primeiros casos de uma enfermidade considerada, à época, uma incógnita.
Em 1982, ela recebeu o nome provisório de ‘Doença dos 5 H’, em razão de casos
identificados em homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos (usuários de
heroína injetável) e prostitutas (hookers em inglês).
No mesmo ano, autoridades sanitárias detectaram a possibilidade de transmissão
pelo ato sexual, pelo uso de drogas injetáveis e pela exposição a sangue e derivados.
No Brasil, o primeiro caso é diagnosticado em São Paulo. A doença recebe o nome
Ciências da Comunicação
Capítulo 14
157
definitivo de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Sida, em espanhol, ou Aids, na
sigla em inglês).
Em 1984, a equipe do virologista francês Luc Montagnier isola e caracteriza um
retrovírus, vírus mutante que se transforma de acordo com o meio em que vive, como
o causador da doença. Especialistas concluem que a Aids representa a fase final de
uma doença provocada pelo HIV.
Três anos depois, o medicamento AZT é a primeira droga a reduzir a multiplicação
do vírus no organismo humano. Ainda em 1987, a Assembleia Mundial de Saúde
anuncia a data de 1º de dezembro como o Dia Mundial de Luta contra a Aids. Segundo
dados de 2011 do Portal Brasil, os casos registrados, no país, totalizam 2.775 no
período, seguidos por 4.535 em 1988 e por 6.295 no ano seguinte. Só em 1991 começa
a distribuição gratuita de antirretrovirais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já
registrava 10 milhões de pessoas infectadas em todo o mundo.
2 | A HOMOSSEXUALIDADE AO LONGO DA HISTÓRIA: HOMOAFETIVIDADE E
HOMOFOBIA
Existem diversos registros que apontam relacionamentos homoafetivos, de
pinturas rupestres a corpos sepultados com indícios de práticas sexuais homossexuais
e de transexualidade. Personalidades históricas, que atuaram na construção da
civilização, seja nas artes, na ciência, na política, na religião e na filosofia, foram
homossexuais ou fizeram alusão ao assunto em suas obras. Entretanto, a compreensão
da homossexualidade foi prejudicada e influenciada por valores desprovidos de senso
crítico, baseados em senso comum e dogmas religiosos, o que acabou por incentivar
o surgimento de uma cultura de ódio em relação aos homossexuais, com reflexos na
postura social e legal em relação aos diferentes gêneros.
Ao contrário do que se possa acreditar, o comportamento homossexual nem
sempre foi visto como errado. Em várias civilizações antigas da Ásia, África, Médio
Oriente e América do Sul era considerado normal.
O motivo da mudança poderá ter como base a tradição judaico-cristã e as
interpretações das suas Escrituras por necessidade de assegurar a linhagem, os
povos israelitas, constantemente acossados e ameaçados por vários outros, tinham,
com efeito, condenado o prazer e definido a homossexualidade como pecado.
Assim, a partir da Idade Média, os comportamentos homossexuais foram incluídos
na luta contra todas as formas de comportamentos não normativos. Observou-se
uma tendência para aglomerar práticas como a feitiçaria e a ligação ao demônio,
e grupos como os heréticos, judeus e homossexuais, numa só categoria distinta e
ameaçadora. (Poeschl; Venâncio; Costa, 2012, p. 2).
A terminologia ‘homoafetividade’ foi criada para incluir as uniões entre pessoas do
mesmo sexo no âmbito de proteção dos regimes jurídicos da união estável e do
casamento civil. Isto porque as uniões conjugais entre pessoas do mesmo sexo
são pautadas no mesmo afeto romântico que as uniões de sexos opostos. O termo
homoafetividade foi cunhado por Maria Berenice Dias com o intuito de destacar
Ciências da Comunicação
Capítulo 14
158
o amor romântico (e não o afeto fraterno) entre duas pessoas do mesmo gênero
sexual. (Mesquita, 2017, p. 13).
A homossexualidade tem sido objeto de acentuado preconceito ao longo da
história humana e, com isso, passou a ser encarada pela sociedade em geral como
algo ‘ não natural’, um pecado ou, ainda, uma doença, desvio ou perversão psicológica.
Na antiguidade a relação homossexual era aceita. Inclusive, na Grécia antiga,
a relação heterossexual era meramente para procriação. E o afeto, em sua
maioria, era encontrado na relação homossexual. Portanto a homossexualidade
é uma realidade que sempre existiu, é tão antiga quanto a heterossexualidade.
Nas sociedades primitivas, os relacionamentos sexuais entre homens era prática
constante e amplamente aceita, institucionalizada na cultura. Essa relação
geralmente era realizada entre um homem mais velho e um adolescente (até
atingir a fase adulta), pois via-se nesse tipo de relacionamento a forma pela qual
o adolescente alcançaria a masculinidade, por meio da exclusão do contato dele
com a mãe e das mulheres em geral. Algumas dessas práticas eram também
baseadas na crença que o jovem só alcançaria fertilidade necessária a uma futura
procriação através da sua realização. (Mesquita, 2017, p. 11).
Apenas relacionamentos sexuais entre homens são mencionados, não havendo
muitas referências históricas sobre as mulheres, já que o entendimento dominante
entre os homens da época era o de que não se poderia falar em relação sexual sem
a presença de um homem. Desta forma, a sexualidade das mulheres era ignorada em
virtude do preconceito.
O termo lesbianismo, por sua vez, também denota tempos remotos, possui ligação
com as habitantes da ilha de Lesbos, por volta de 600 a. C., quando a poetiza
Safo escrevia poemas descrevendo a beleza das garotas, demonstrando que tinha
atração por mulheres, o termo então passou a ter o significado atual. (Mesquita,
2017, p. 11).
Segundo Poeschl, Venâncio e Costa (2012), o termo ‘homofobia’ foi cunhado
pelo psicólogo George Weinberg, em 1972, para referir-se ao desprezo de alguns por
homossexuais e também pelo rechaço de certos homossexuais por si próprios devido
à sua orientação sexual.
A homofobia pode ocorrer de diversas maneiras, entre elas o heterossexismo:
as instituições sociais, por meio de seus discursos sobre gênero e moralidade,
tentam manter o status dos grupos dominante e desviante, condenando qualquer
comportamento ou relação que não seja heterossexual. O preconceito sexual é um
pré-julgamento.
A homofobia continua também a manifestar-se nas profissões da saúde: estudos
revelam que 89% das pessoas ligadas aos serviços de saúde manifestam reações
negativas (como embaraço, rejeição, ou excessiva curiosidade) quando um/uma
paciente se identifica como sendo gay ou lésbica. Existem diversas situações
onde a homofobia se manifesta, como no fato do/a companheiro/a não ter direito
às visitas em caso de internamento do/a outro/a nos cuidados intensivos, não o/a
poder acompanhar na ambulância, e não ter direito a conhecer o seu estado de
saúde. (Poeschl; Venâncio; Costa, 2012, p. 3).
Ainda de acordo com Poeschl, Venâncio e Costa (2012), existem diferenças nos
níveis de preconceito sexual manifestados pelos indivíduos: muitos estudos apontam
Ciências da Comunicação
Capítulo 14
159
que as mulheres são, em média, mais tolerantes para com a homossexualidade
do que os homens e que a homossexualidade feminina é melhor aceita do que a
homossexualidade masculina.
Tendo em vista a influência das religiões judaico-cristãs, o mundo ocidental
tornou-se homofóbico, principalmente nos Estados Teocráticos (em que Estado e
religião se misturam). Defendendo a ideia de que a homossexualidade configura um
pecado e vai contra os desígnios de Deus, a religião contribuiu para a disseminação
do preconceito.
3 | GAYS NA TELENOVELA BRASILEIRA
A telenovela brasileira, como tudo de resto, não retrata a realidade como ela é.
Trata-se de uma ficção, de uma construção literária, porém, influencia poderosamente
a cultura brasileira.
No que se relaciona ao tratamento dispensado aos gays na mídia audiovisual
brasileira, os contrastes produzem um sentido danoso à comunidade LGBT. A
homoafetividade acompanha a humanidade desde os seus primórdios, tornando-se
difícil determinar, com exatidão, a primeira referência histórica ou literária sobre o
fenômeno. Todavia, sabe-se que em praticamente todas as civilizações as relações
homossexuais sempre estiveram presentes.
O discurso midiático também pode ser responsabilizado pela imagem que se
tem dos homossexuais. Nas novelas e séries exibidas na televisão brasileira, gays
são retratados com inúmeros trejeitos e, geralmente, são afeminados. Características
a eles atribuídas para dar-lhes um tom de humor, aproximando-os do público, que
acolhe com mais facilidade personagens engraçados. Para esconder ou amenizar o
que se supõe ser um defeito, elabora-se uma caricatura que, por sua vez, acaba por
adentrar o caminho da generalização.
Não é incorreto afirmar que gays podem ser afeminados e que, em alguns casos,
comportam-se de maneira semelhante às mulheres. Lésbicas também podem assumir
comportamentos masculinos. Entretanto, ainda que essa dimensão exista, deve-se
considerar que homossexuais são diferentes em suas identidades, com personalidades
construídas em histórias de vida singulares, o que os leva a ter outras manifestações
corporais, comportamentais, de luta e de resistência frente aos padrões normativos que
imperam e fabricam gays. Vale dizer, não existe uma identidade fixa, mas diversidade
na diferença.
Estereótipos acompanharam os homossexuais que viveram a década de 1980,
período em que a AIDS ganhou força e se espalhou mundo afora. A associação ente
HIV e gays passou, sem dúvida, pela percepção de que todos os homossexuais eram
promíscuos. A criação de estereótipos e sua reprodução tem como um dos alicerces
justamente a generalização, a criação de rótulos. A discriminação continua a existir.
Ciências da Comunicação
Capítulo 14
160
Segundo Gianna (2017), uma pesquisa realizada pelo CRT DST/AIDS-SP, em conjunto
com a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, em 2011, na
capital paulista, homens que fazem sexo com homens (HSH) e transgêneros como
travestis e transsexuais são vítimas de preconceito. Entre 1.217 entrevistados, 33,5%
disseram ter sofrido abuso, 15,1% sofreram agressões físicas e 62,3% ofensa verbal.
Há 30 anos, a AIDS era sinônimo de morte. Nos dias de hoje, é considerada uma
doença crônica e ,mpor conta dos avanços nos campos do diagnóstico e do tratamento
da enfermidade, pessoas infectadas pelo HIV vivem com mais qualidade. O desafio
atual consiste na promoção dos direitos humanos e na prevenção de novas infecções
em jovens HSH. Para se alcançar tal desafio, a luta de coletivos de defesa dos direitos
de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexuais (LGBT) tem contribuído para
que essa parcela da população seja reconhecida e conquiste o respeito da sociedade.
Passos importantes no combate ao preconceito já foram dados apesar das dificuldades
existentes. Todavia, considera-se que, dado o impacto das mídias audiovisuais na vida
social mais ampla, faz-se necessário maior representatividade de gays para que estes
não figurem somente como doentes e subjugados.
Assim, sem pretender uma interpretação unilateral, é correto afirmar a existência
de mudanças em curso, pois as novelas brasileiras têm mostrado relacionamentos
entre pessoas do mesmo sexo com cenas de beijo e carícias, algo difícil de se imaginar,
na década de 1980, por exemplo. Caso recente foi retratado pela novela ‘Liberdade,
Liberdade’, exibida pela TV Globo em 2016. “Protagonizada por Ricardo Pereira e
Caio Blat, a cena é considerada a primeira envolvendo sexo entre dois homens na
teledramaturgia brasileira” (MARANHA, 2016, p.2). Da mesma forma que o primeiro
beijo entre dois homens na novela ‘Amor à Vida’, de 2014, a cena gerou polêmica.
A telenovela acontece no Brasil do século XVIII e retrata hábitos, costumes e
percepções daquele período histórico. Nesse contexto, observa-se a ousadia da obra
televisiva em abordar um relacionamento homossexual, algo considerado crime em
uma sociedade conservadora e influenciada, em larga medida, por valores religiosos.
Os personagens vividos por Caio Blat e Ricardo Pereira encontram-se às escondidas
e temem serem flagrados juntos. A narrativa considera que relações homoafetivas
existiam, mas as convenções sociais e a rigidez moral impunham aos gays enormes
barreiras, que dificultavam a vida amorosa e profissional dos cidadãos homossexuais
na época em que se desenrola a trama. A despeito dessas limitações ou dificuldades,
a homossexualidade foi mostrada.
A atual novela da faixa das 21 horas, exibida pela TV Globo, também aborda a
questão LGBT. ‘A Força do Querer’, da autora Glória Perez, aborda os dilemas vividos
por Ivana, personagem da atriz Carol Duarte, que passará por transição de gênero
ao longo da trama. Já o personagem de Silvero Pereira, Nonato, é uma travesti, que
atende pelo nome de Elis Miranda. Rejeitado pela família, Nonato vai do Ceará para o
Rio de Janeiro, onde tenta ser artista. Sem grande aceitação, acaba trabalhando como
motorista. Temendo estereótipos e preconceito, ele esconde ser travesti.
Ciências da Comunicação
Capítulo 14
161
A personagem Ivana não reconhece o próprio corpo como seu. Não gosta dos seus
seios e prefere usar roupas masculinas, como as do irmão. Busca apoio psicológico
para responder seus questionamentos e vive em permanente conflito com a mãe, que
tenta fazer com que ela seja feminina, use vestidos e tenha apreço por maquiagem.
Por meio da transexualidade, a autora trata de temas como identidade de gênero e
orientação sexual, termos que podem provocar confusão entre os telespectadores,
tornando significativa sua discussão.
A sociedade dissemina a crença de que os órgãos genitais definem se alguém
é homem ou mulher. Entretanto, o fator que determina se uma pessoa é homem ou
mulher não é biológico, mas social. Segundo Jesus (2012), em termos biológicos,
o que determina o sexo de uma pessoa é o tamanho das suas células reprodutivas
(pequenas: espermatozóides, logo, macho; grandes: óvulos, por conseguinte, fêmea),
e só. Isso não define o comportamento masculino ou feminino dos indivíduos: isso é
determinado pela cultura, a qual classifica alguém como masculino ou feminino. Sexo
é biológico e gênero, social.
Ao contrário da crença comum hoje em dia, adotada por algumas vertentes
científicas, entende-se que a vivência de um gênero (social, cultural) discordante
com o que se esperaria de alguém de um determinado sexo (biológico) é uma
questão de identidade, e não um transtorno. Esse é o caso das pessoas conhecidas
como travestis, e das transexuais, que são tratadas, coletivamente, como partedo
grupo que alguns chamam de ‘transgenero’, ou mais popularmente, trans. (JESUS,
2012, p. 9).
Cisgênero é o termo usado para designar a pessoa que se identifica com o gênero
que lhe foi atribuído ao nascer. Indivíduos não-cisgêneros, que não se identificam com
o gênero a eles atribuído, são ditos trasngêneros ou trans. Segundo Jesus (2012),
analisando-se a diversidade de formas de viver o gênero, dois aspectos enquadram-
se na dimensão geral que denominamos de ‘transgênero’, como expressões diferentes
da condição trans. A vivência do gênero pode ocorrer por: identidade (o que caracteriza
transexuais e travestis) ou funcionalidade (representado por crossdressers, drag
queens, drag kings e transformistas).
Gênero se refere a formas de se identificar e ser identificado como homem ou
mulher. Orientação sexual é a atração afetivossexual por alguém de algum gênero.
Um não depende do outro. Pessoas transgênero e cisgênero podem ter qualquer
orientação sexual: heterossexual, homossexual e bissexual.
A transexualidade é uma questão de identidade e não corresponde a doença
nem perversão sexual. “Pessoas transexuais geralmente sentem que seu corpo não
está adequado à forma como pensam e se sentem, e querem corrigir isso adequando
seu corpo à imagem de gênero que têm de si.” (JESUS, 2012, p. 15).
Travestis são pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino, mas que não se
identificam com homens ou mulheres, fazendo parte de um terceiro gênero. A maioria
das travestis preferem ser ser tratadas no feminino. Portanto, diga-se “as travestis’. De
acordo com Jesus (2012), deve-se ressaltar que nem toda travesti é profissional do
Ciências da Comunicação
Capítulo 14
162
sexo. Muitas são forçadas a transitar pela marginalidade, fazendo sexo por dinheiro,
algo que ocorre devido à estigmatização, à discriminação e à exclusão social.
Historicamente, a população transgênero ou trans é segregada, vítima de
preconceito, já que a crença na anormalidade predomina entre uma parte da sociedade.
O fato de alguém não se identificar com o gênero atribuído ao nascimento, relega tal
indivíduo a uma categoria de pessoas que muitos consideram ‘anormais’.
Violências físicas, psicológicas e simbólicas são constantes. De acordo com a
organização internacional Transgender Europe, no período de três anos entre 2008
e 2011, trezentas e vinte e cinco pessoas trans foram assassinadas no Brasil. A
maioria das vítimas são as mulheres transexuais e as travestis. Até meados de
2012, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia, noventa e três travestis e
transexuais foram assassinadas. (JESUS, 2012, p. 11).
Crimes são motivados pelo ódio ou aversão a características da pessoa agredida,
que a identifique como parte de um grupo discriminado, segregado, apartado da
sociedade. Daí o uso do termo transfobia para definir preconceito e discriminação
sofridos por pessoas transgênero.
Tendo em vista a reprodução de estereótipos, a propagação de preconceitos e
as atitudes discriminatórias contra gays, lésbicas e pessoas trans, a televisão assume
papel relevante no debate de ideias que giram entorno do assunto. Sobretudo quando
se sabe que para 76,4% dos brasileiros a TV é o meio de comunicação preferido.
Segundo Alcântara (2014), tal dado faz parte da ‘Pesquisa Brasileira de Mídia’,
documento elaborado a pedido da Presidência da República para auxiliar na criação
de política de comunicação e divulgação social do Executivo Federal.
Atendo-se especificamente à audiência da novela das 21 horas, ‘A Força do
Querer’, observa-se quão grande ainda é a penetração do folhetim nos lares brasileiros
e como pode ser significativa sua participação na questão em destaque: segundo
Peccoli (2017), a média de audiência da trama de Gloria Perez entre 03 de abril e
03 de junho deste ano (9 semanas), no PNT (Painel Nacional de Televisão), foi de 32
pontos, com 49% de participação. Em São Paulo, a média é de 32 pontos com 47%
de participação e, no Rio de Janeiro, 34 pontos com 51% de participação. Dados
presentes no site do IBOPE media, comprovam que a telenovela mencionada está
entre os programas de maior audiência da televisão brasileira.
4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível considerar que o discurso televisivo contribui para a (des)construção
da representatividade gay na sociedade brasileira. A participação de tal segmento
social na construção da identidade brasileira é alvo de programas de televisão e
pode ser retratada de maneira pejorativa ou não. Tal abordagem depende do discurso
empregado. Palavras e imagens podem enaltecer e valorizar traços culturais e
comportamentais, mas também podem ser depreciativas, na dependência do contexto
em que aparecem. A semântica pode ser uma das chaves para isso. De acordo com a
Ciências da Comunicação
Capítulo 14
163
ideologia da retórica televisiva, gays podem ser reconhecidos como parte integrante
da composição cidadã da nação ou podem ser marginalizados.
REFERÊNCIAS
ALCÂNTARA, Diogo. Internet é o meio de comunicação que mais cresce entre brasileiros.
Portal Terra, 07 mar. 2014. Disponível em:<https://www.terra.com.br/economia/internet-e-o-meio-decomunicacao-que-mais-cresce-entre-brasileiros,93855add93994410VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.
html>. Acesso em: 10 jun. 2017.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O discurso da intolerância: fontes para o estudo do racismo.
In: Fontes históricas: abordagens e métodos. São Paulo: Faculdade de Ciências e Letras-Unesp.
Campus de Assis. Programa de Pós-Graduação em História, 1996. p. 21-32.
DESCOBERTA da Aids completa 30 anos. Portal Brasil, 06 jun. 2011. Disponível em:<https://www.
brasil.gov.br/saude/2011/06/descoberta-da-aids-completa-30-anos>. Acesso em: 10 jun. 2017.
GIANNA, Maria Clara. Aids: novos e velhos desafios. Revista Ser Médico, São Paulo, n.78, p.1215, jan./mar. 2017.
GREGOLIN, Maria do Rosario. Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades.
Comunicação, mídia e consumo, São Paulo, v. 4, n.11, p.11-25, nov. 2007. Disponível em:<http://
www.revistas.univerciencia.org/index.php/comunicacaomidiaeconsumo/article/view/6865/6201>.
Acesso em: 10 jun. 2017.
JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos.
Guia técnico sobre pessoas transexuais, travestis e demais trasnsgêneros, para formadores de
opinião, Brasília, p. 1-42, 2012. Diponível em:<http://www.diversidadesexual.com.br/wp-content/
uploads/2013/04/G%C3%8ANERO-CONCEITOS-E-TERMOS.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2017.
MARANHA, Fernanda. Beijo gay em novelas: veja 8 cenas que marcaram a teledramaturgia.
Home iG>iGay. Disponível em:<http://igay.ig.com.br/2016-07-12/beijo-gay-novelas.html>. Acesso em:
10 abr. 2017.
MESQUITA, Thayná Cruz de. O reconhecimento das relações homoafetivas e a possibilidade
do casamento. Jusbrasil, 10 jun. 2017. Disponível em:<https://thaynamesquita.jusbrasil.com.br/
artigos/149934011/o-reconhecimento-das-relacoes-homoafetivas-e-a-possibilidade-do-casamento>.
Acesso em: 10 jun. 2017.
PECCOLI, Vitor. ‘A Força do Querer’ tem recorde em quatro anos no país e Globo dispara na
principal praça da Record. TV Foco, 07 jun. 2017. Disponível em:<http://www.otvfoco.com.br/aforca-do-querer-tem-recorde-em-quatro-anos-no-pais-e-globo-dispara-na-principal-praca-da-record/>.
Acesso em: 10 jun. 2017.
POESCHL, Gabrielle; VENÂNCIO, Joana; COSTA, Daniel. Consequências da (não) revelação
da homossexualidade e preconceito sexual: o ponto de vista das pessoas homossexuais.
Psicologia, Lisboa, v. 26, n.1, 2012. Disponível em:<http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0874-20492012000100003>. Acesso em: 10 jun. 2017.
Ciências da Comunicação
Capítulo 14
164
CAPÍTULO 15
O HOMEM TRANS NA PUBLICIDADE: UMA ANÁLISE
DO ANÚNCIO UNLIMITED COURAGE, DA MARCA
NIKE
Nicolau Jordan Girardi
Graduação em Publicidade e Propaganda pela
Universidade do Vale do Itajaí.
Itajaí - SC
Adriana Stela Bassini Edral
Professora do Curso de Publicidade e
Propaganda da UNIVALI – Universidade do Vale
do Itajaí. Mestra pela UNISUL – Universidade de
Santa Catarina no Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Linguagem.
Itajaí - SC
RESUMO: A discussão sobre identidade de
gênero e a aparição de pessoas transgêneros
na mídia ganharam força nos últimos anos,
o que pode ser ilustrado pelas campanhas
veiculadas no Brasil a partir de 2015 utilizando
protagonistas trans. Entretanto, o assunto se
tornou tema de estudos e análises filosóficas
há muito mais tempo. Pensadores como Judith
Butler, Paul B. Preciado, Virginie Despentes e
Djamila Ribeiro trouxeram outra visão do que
seria gênero. Este trabalho tem o objetivo
de analisar com cunho qualitativo como o
homem transgênero está sendo representado
na publicidade, fazendo uma interface com
os sentidos percebidos no anúncio Unlimited
Courage, da marca Nike, usado e embasado
no método de Estudos Culturais. Ao mesmo
tempo em que a publicidade deu lugar a um
Ciências da Comunicação
personagem transgênero muito seguro de
si, está apresenta uma voz off que “rouba” o
lugar de fala do sujeito trans e o questiona em
toda a narrativa.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade de Gênero.
Visibilidade Trans na publicidade. Consumo e
comportamento. Estudos Culturais.
ABSTRACT: The debate over gender identity
and the presence of transgender subjects
on the media have won strength over the last
years, what could illustrated by broadcasted
campaigns in 2015, in Brazil, using transgender
protagonists. However, this matter became
theme of philosophical analysis and studies
long ago. Philosophers as Judith Butler, Paul
B. Preciado, Virginie Despentes and Djamila
Ribeiro have brought other points of view on
what could be gender studies. This work aims to
analyze, through a qualitative research, how the
trans man is being represented on advertising
pieces, relating the image of the trans man to
the meanings perceived in the ad Unlimited
Courage, by Nike, based on the Cultural Studies
methodology. At the same time the ad has given
place to a transgender character that is very
confident, there is always a present voice that
“steals” the trans subject’s place of speech,
questioning him throughout the narrative.
PALAVRAS-CHAVE: Gender Identity. Trans
Visibility in Advertising. Consumer Behavior.
Capítulo 15
165
Cultural Studies.
INTRODUÇÃO
O cenário transgênero vem ganhando espaço e visibilidade e nos últimos anos
se tornou público-alvo de campanhas publicitárias (DUARTE; SILVA, 2017), pauta
de movimentos sociais, mudanças legislativas, teorias filosóficas e objeto de estudo
da Psicologia e Medicina. Entretanto, mesmo com a desconstrução social que está
se solidificando a “passos curtos”, a identidade de gênero de acordo com teóricos
de gênero, como Judith Butler (1990), ainda é um problema cultural e social muito
presente.
O conteúdo da publicidade muda conforme os acontecimentos sociais e culturais
do seu público, esta também, é influenciada pela legislação, a qual precisa seguir. A
publicidade tem o poder de emocionar, impactar e também segundo Duarte e Silva
(2017) influenciar a opinião pública. Contudo, não se pode ignorar que a publicidade
produz o que vende, promove, se diferencia e cria vínculo com seus consumidores, e
não necessariamente se preocupa com a causa proposta em sua campanha publicitária.
Com o embasamento de teorias que contextualizam gênero, transgênero,
sociedade, cultura e publicidade, o presente trabalho analisa o discurso da campanha
Unlimited You, da marca Nike, objeto de pesquisa desse artigo. O atleta transgênero
Chris Mosier, primeiro homem transgênero a participar de uma Olimpíada, é também
protagonista desse anúncio, o primeiro homem trans a participar de uma campanha
publicitária. Esse trabalho atua com a seguinte pergunta: Quais são os sentidos sobre
a identidade transgênero presentes no anúncio Unlimited Courage, da campanha
Unlimited You e quais são seus efeitos sobre a questão transgênero? Assim, seu
objetivo geral é analisar os sentidos sobre a identidade transgênero presentes nos
elementos discursivos do anúncio Unlimited Courage, percebendo quais seus efeitos
sobre a questão transgênero. Como objetivos específicos, tem-se: a) investigar o
contexto social e cultural referentes às condições de produção do anúncio Unlimited
Courage, da campanha Unlimited You; b) identificar nos discursos e nas imagens
do anúncio Unlimited Courage, elementos de consenso e dissenso com a Teoria de
Gênero; e c) analisar os sentidos construídos sobre a identidade transgênero a partir
do anúncio.
A metodologia de pesquisa utilizada para construção do trabalho passa pela
abordagem dos Estudos Culturais, que permite um olhar de abrangência e de teorias
multidisciplinares que se fundem, onde foi possível realizar a análise da campanha
publicitária Unlimited Courage, da marca Nike. O presente trabalho tem a importância
de difundir o questionamento sobre a questão de gênero na publicidade, cuja visibilidade
tem sido cada vez mais relevante e crucial nas minúcias que constituem a sociedade.
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
166
GÊNERO
Em entrevista na edição especial da revista Cult, Quuer cultura e subversões das
identidades, Judith Butler (2016), define gênero como o ato da “contínua estilização do
corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de um quadro regulatório altamente
rígido e que se cristaliza ao longo do tempo”. A filósofa e ativista defende que, se tornar
um sujeito feminino ou masculino, não acontece em um único ato ou prática e nem
mesmo é algo natural. É sim uma construção que parte do que fazemos não podendo
ser deduzida por um corpo, senão do efeito de discursos, concluindo desta forma que
o gênero, sobretudo é performativo.
O movimento feminista foi “porta de entrada” para o diálogo e discurso sobre
gênero. Judith Butler (1990), o movimento não é apenas sobre o direito das mulheres,
mas também sobre a desconstrução do que se chama “mulheres”. Para a autora se
trata de provocar o poder normativo que a sociedade confunde como “verdade” diante
das questões de gênero.
Butler (2016) defende todo tipo de identidade de gênero que oprime as
singularidades humanas que não se encaixam, que não são “adequadas” ou “corretas”
no cenário da dicotomia na qual entendemos as relações entre pessoas “concretas”.
Assim, ela se opõe às filosofias tradicionais que ainda permeiam a sociedade
contemporânea, que tratariam o sujeito transgênero como aberração ou anomalia.
A autora também defende que o ser excluído, seja ele transgênero, negro e
outros, é produzido em um discurso em que seu lugar é o silêncio, o que, nos termos
sociais, significa que o excluído não teria o poder de existir. A mesma, luta pela
liberdade desses sujeitos excluídos, que precisam existir e entrar no cenário social
atual. Rompendo com as classificações e dando lugar às expressões singulares dos
sujeitos, em respeito às individualidades contra um movimento que tenta proibir,
silenciar e condenar os excluídos.
SOCIEDADE, CULTURA E PUBLICIDADE TRANS
A sociedade atual, de acordo com Baudrillard (2009), pensa e fala como sociedade
de consumo. Está consome e consome-se, assim a publicidade vende esta ideia
e cria a moral da modernidade com imagem e narcisismo. Entretanto, na visão de
Bauman (2008), os produtos e serviços sempre precisam estar à frente e alimentando
esta sociedade consumista com tendências. Uma estratégia nesta sociedade é a do
pertencimento, que substituem os “totens” originários por outra coisa. Para um sujeito
coexistir nessa sociedade ele precisa aparecer, precisa pertencer a algo. Um exemplo
que pode ser dado é as novas redes sócias, se uma pessoa não está nas redes
sociais, ela não existe.
Neste sentido, o sujeito transgênero necessita pertencer a algo. Gaigher e
Silva (2017) discutem a cultura como uma construção da história de um povo, que
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
167
transforma comportamentos coletivos e modos de ser pessoais. Afirmando isto, não se
pode ignorar a individualidade do ser e as vertentes variáveis de um conjunto social,
como o caso dos sujeitos transgêneros.
No entanto, para um melhor entendimento destas questões, é necessário
entender o que é a identidade e a construção do sujeito na sociedade. Hall (2006)
relata que as velhas identidades, por um longo período, estabilizaram o mundo social,
contudo vem sofrendo declínio e com isto surge novas identidades resultando o sujeito
moderno, perante isto pode-se dizer que o indivíduo transgênero faz parte desse novo
elemento.
Preciado (2002) defende que o gênero/a identidade é um ato político e Hall
(2006) expõe que a identidade muda de acordo com como o sujeito é representado e
que por vezes isto resulta não como uma mudança de política de identidade, mas sim,
mudança política de diferença. Contudo, mesmo que seja reconhecida a existência
de tal diferença, não significa que esta é respeitada e tratada como normativa. Assim,
entende-se a importância da publicidade dialogar com o sujeito trans e com a sociedade.
A comunidade transgênero faz parte da sociedade. Porém, mesmo assim, é
historicamente marginalizado por esta. Segundo Costa (2013), a publicidade reflete
costumes e ideologias sociais, como no início dos programas de humor brasileiro em
que as pessoas transgêneras foram inseridas com recursos de humor, tom grosseiro
relacionado ao sexo e utilização de estereótipos.
Porém, um dado relevante e que explica a mudança do “olhar” da publicidade
perante o sujeito transgênero é que segundo Kotler (2007) apud Sheila Costa (2013)
com base em pesquisas de marketing realizadas nos Estados Unidos o público LGBT
é um mercado extremamente lucrativo. Com isto pensa-se que este tipo de consumidor
vale a atenção e investimento, como por exemplo, a Netflix que em sua plataforma o
conteúdo LGBT divide-se como segmento de mercado.
Contudo, nas campanhas publicitárias brasileiras, o público transgênero apenas
teve maior visibilidade a partir de 2015. Duarte e Silva (2017) trazem cinco anúncios
em suas pesquisas e é importante notar que, destes, apenas uma teve todo o processo
de produção e veiculação no Brasil (#EuUsoAssim: Outubro Rosa estrelando por
Mel Candy, marca Avon). As demais apenas foram trazidas de seu país de origem e
veiculas no Brasil, incluindo suas personagens transgêneros, como as marcas Elseve
e L`OREAL.
Não obstante, a publicidade utiliza modelos de sucesso isolados, que fogem
da grande realidade vivida pelos sujeitos transgêneros, o que passa ao espectador
leigo uma falsa imagem de aceitação nos diversos âmbitos sociais. De acordo com
os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais em 2017, somente no
Brasil, ocorreram 179 homicídios contra pessoas transgêneras e travestis. Em média,
uma pessoa trans é assassinada em 48 horas. A partir disto podemos refletir que não
existe uma “boa” relação entre a sociedade e o sujeito transgênero.
O debate das identidades sexuais ocorre desde 1960, sendo estas definidas
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
168
e construídas no decorrer da história e da cultura. Foi a partir desta linha política
de inclusão que surgiram movimentos sociais e a primeira organização em prol dos
direitos aos homossexuais, GLS (gays, lésbicas e simpatizantes). Porém, apenas
depois se tornou mais abrangente e então tornou-se LGBT (lésbicas, gays, bissexuais
e transgêneros). Todavia a representatividade destes é desigual na publicidade,
pois enquanto um foi mencionado em 1979 (homossexuais) na publicidade, o outro
(transgênero) apenas em 2015. (RODRIGUES e CARVALHO, 2015).
Segundo os dados de Rodrigues e Carvalho (2015), 8,5% dos comerciais contendo
relação à comunidade LGBT abordam o sujeito trans e travesti. Estes começando a
ser veiculado na televisão aberta em 1999, na categoria de utensílios de limpeza com
a apresentadora e travesti Rogéria, depois em 2014, uma publicidade relacionada à
cidadania contou com duas travestis. Mas como mencionado anteriormente, Duarte e
Silva (2017) debatem cinco anúncios publicitários (Dove, Elseve, Avon, L’Oréal Paris
e Westwing) que contem transexuais ou travestis, este público ganha uma maior
representatividade a partir de 2015, porém até 2016 um homem transgênero não
parece ter sido representado nos anúncios publicitários veiculados no Brasil.
NIKE E A REPRESENTATIVIDADE TRANS
A marca Nike tem um forte posicionamento em relação à superação de seus
limites, ao movimento de fazer você mesmo, tanto que seu slogan de sucesso “Just do
it” remete a isso, quando o sujeito usa o produto da Nike ele pode chegar mais longe,
o fato é percebido também em suas publicidades disponíveis em seu canal oficial no
youtube, como a campanha Unlimited You (Você sem Limites).
Em 2016, a Nike lançou sua campanha Unlimited You, contendo seis anúncios
publicitários cinco destes focando em atletas que participaram das olimpíadas de 2016,
na capital Rio de Janeiro no Brasil, e um conversando diretamente com o seu público.
As produções audiovisuais discutiam resistência, ilimitação, dedicação, coragem, luta
e comprometimento.
E foi nesta campanha que, pela primeira vez no Brasil foi veiculada um anúncio
publicitário contendo um homem trans. No comercial Unlimited Courage, com o
primeiro atleta transgênero a ingressar na equipe americana, Chris Moiser, O atleta
diz que em sua transição foi como uma mentalização, e em entrevista retirada no Meio
& Mensagem (2016) relata:
Eu não sabia que eu seria competitivo contra os homens;
eu simplesmente o fiz. Todo o sucesso que eu tive desde então me mostrou que
tudo é realmente possível. Por não me bloquear, não me limitar e realmente ir em
frente, eu aprendi muito sobre mim mesmo e também tive a oportunidade de ampliar
a conversa sobre a inclusão transgênero nos esportes (CHRIS MOISER, 2016).
O comercial já tem 3.194.237 visualizações na plataforma Youtube, quase seis
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
169
mil avaliações como “gostei” e quase 2.500 avaliadas como “não gostei”. A campanha
é sutil e talvez a questão transgênero passe despercebida o que não gerou as reações
recorrentes que ocorreram em outros comerciais quando retratavam a comunidade
LGBT, como o caso da O Boticário, por exemplo.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Analisa-se a campanha publicitária Unlimited Courage, da marca Nike, por meio
dos discursos presentes no anúncio publicitário, tendo como abordagem os Estudos
Culturais, que permite uma proximidade com as narrativas e o campo dos estudos
culturais, além de uma abrangência por permitir um olhar teórico multidisciplinar que
ao se fundirem podem promover um novo pensar perante a cultura, assim não se
prendendo a métodos estruturalistas.
Moresco e Ribeiro (2015) explicam que os Estudos Culturais compõem uma
linha de pesquisa baseadas, nas relações entre a cultura e a sociedade, abrangendo
suas diversas formas e práticas sociais. Os Estudos Culturais buscam compreender
as inter-relações das mais diversas áreas temáticas culturais, como o gênero. Mas
exigem o entendimento do pesquisador, que este esteja ciente de que sua pesquisa é
uma intervenção política no desenvolvimento de um olhar crítico. Segundo Stuart Hall
(2003), existem duas questões nos Estudos Culturais: a amplitude que os estudos
culturais podem alcançar; e a política do intelectual, a qual não necessariamente terá
uma clausura teórica final.
A partir disto foi feita uma análise c do anúncio publicitário Unlimited Courage,
veiculado em 2016 no youtube e na TV aberta. O anúncio escolhido faz parte de
uma campanha que conta com seis produções audiovisuais, nomeada Unlimited
You, entretanto, somente um se utiliza de um protagonista transgênero. Contudo na
publicidade isto é refletido pelas raras e quase inexistente aparições de homens trans.
Assim, uma das etapas para sustentar a pesquisa é entender as concepções
de gênero, transgênero, cultura e sociedade, a partir de estudos bibliográficos, para
que, em segundo momento, analisar a construção do objeto que constitui no discurso
(narrativa) e o produto audiovisual (imagem) e seus significados. Por fim, a narrativa
e as imagens foram relacionadas com pensamentos/estudos que concordam ou se
contrapõem baseadas pelas teorias de Paul Preciado, Virginie Despentes, Judith
Butler e Djamila Ribeiro, tendo de fato uma análise crítica sobre Unlimited Courage e
a cultura que a permeia.
OBJETO DE ESTUDO
Como já mencionado neste trabalho, o filme publicitário analisado é Unlimited
Courage, da marca Nike que apresenta pela primeira vez na publicidade um personagem
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
170
transgênero homem, o atleta Chris Mosier, veiculado em 2016 na época que acontecia
a olimpíada no Brasil.
O anúncio faz parte da campanha Unlimited You que conta com seis filmes
publicitários, sendo que cinco apresentam atletas e suas histórias vinculadas a
alguma palavra: resistência, ilimitação, dedicação, coragem, luta e comprometimento.
Entretanto, a produção audiovisual publicitária contendo Chris Moiser é o único das
seis produções que, além da voz do personagem há uma locução em off.
É interessante ressaltar alguns elementos sobre essa produção audiovisual de
40 segundos: o primeiro é que todo o anúncio publicitário passa movimento, percebido
isso no movimento de câmera, movimento do personagem durante grande parte do
anúncio e elementos que fazem movimento fazendo parte da narrativa e da composição
do filme, levando em conta que Chris um atleta, mas a produção audiovisual não
se trata apenas da sua profissão, porém também da sua determinação, coragem e
quebra de desafios tanto físicos quanto de construção social.
Chris é uma figura que resistiu à normalização da masculinidade e da feminilidade
perante sua performance como atleta transgênero, que antes competia com mulheres
e passa a conquistar a convivência, ideia defendida por Paul Preciado (2016) em
entrevista para a revista Cult.
Além disso, as cores sofrem mudanças decorrentes principalmente à narração
linguística, que será analisada no próximo tópico. Contudo, é importante ressaltar
que dois figurinos do personagem têm as cores azuis e brancas, em destaque seu
uniforme, pois estas duas cores fazem parte da bandeira transgênero e é um totem da
luta trans.
A LOCUÇÃO: QUEM FALA DE CHRIS?
As duas vozes do anúncio são do personagem Chris Mosier e a de uma voz
masculina em locução off. É importante relembrar que dos seis anúncios que compõem
a campanha Unlimited You, este é o único com voz off, ao contrário dos outros que são
monólogos, assim o filme publicitário já começa com uma legenda que apresenta o
personagem “CHRIS MOSIER, duatleta”, em conjunto com a locução off: “Este é Chris
Mosier”.
A voz em off começa um diálogo com o personagem, dando a ele um bom
dia. O atleta responde, dando início à dinâmica do anúncio: a voz em off pergunta,
o personagem responde. A voz off apresenta Chris e parece estar em constante
questionamento em relação ao atleta, utilizando de uma espécie de entrevista com o
mesmo. E isso pode ser interpretado e soa como o discurso da sociedade em relação a
Chris, em relação a sua trajetória até se tornar parte da seleção olímpica, mas também
podendo ser muito sobre si mesmo, sobre sua transição e quem ele é.
Assim, podendo partir de uma das primeiras falas da locução off: “como você
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
171
sabia que seria rápido o bastante para competir com homens?”, a primeira impressão
que se passa é que existe um separativo de sujeito entre Chris e homem, ou seja,
separatismo entre o sujeito transgênero e cisgênero como se o atleta não fosse
classificado e tão pouco um homem, mas o que é o homem?
Esta discussão está presente em teorias de vários autores trazidos neste
trabalho, em sua maioria mulheres, Simone de Beauvoir mencionada na obra Manifesto
Contrassexual de Paul Preciado (2017), defendia que tanto mulheres quanto homens
não nasciam sendo mulheres ou homens, se tornavam. Já Judith Butler (1990)
argumenta que é apenas uma sequência de performance (não apenas um único ato
que define o sujeito, mas uma sequência de atos, discursos e gestos), entretanto,
Preciado (2014) traz uma visão que várias teorias que sustentavam a masculinidade e
feminilidade se quebram ao passar do tempo, com isto, o questionamento do locutor
off perde o sentido se for interpretado seu discurso com o separatismo homem vs
Chris e homem cisgênero vs Chris homem transgênero, pois em suma de significados
e teorias todos podemos ser homens.
Outro ponto que deve ser destacado é que a fala da voz off pode soar como se
ele (Chris) não tivesse a capacidade que homens 1cisgêneros tem como um sujeito
transgênero2, podendo fortalecer este argumento com o questionamento seguinte da
locução : “Ou forte o bastante”, remetendo que Chris provavelmente não seria rápido
e forte o bastante, não por ser um meio de competitividade e sim por uma questão
exclusivamente de construção de gênero e desconstrução do corpo meramente cultura,
assim, colocando-o em um lugar de inferioridade, Preciado (2017) relata que esta
prática é realizada para que não haja mudança no “domínio” dos homens cisgêneros
heterossexuais no poder da sociedade, assim, tudo que foge deste carácter sofre e
precisa ser controlado.
Contudo, o questionamento do locutor analisado, usa do adjetivo “forte”, em
grande parte das vezes ligado ao homem. Virginie Despentes (2016) dialoga com a
problemática dos estereótipos e pressões sociais, utilizando de exemplo postos sob as
mulheres, porém também sob os homens, em que os homens não podem demonstrar
sensibilidade, não podem ser desprovidos da força, pois este sendo assim, não é um
homem de verdade.
Logo em seguida a locução parte para outra questão: o da aceitação a partir
da frase “Mas como você sabia que a equipe te aceitaria?”, pois neste momento do
anúncio, já não passa apenas ser necessário ser rápido, forte, corajoso, capaz, mas
também quando se supera isso é necessário ter a aceitação, o sujeito precisa não
apenas existir, não apenas ter sua essência, esta precisa ser reconhecida, reajustada
nas normas, ou seja, aprovada por algo ou alguém que não seja o próprio sujeito e
sim além deste. E mais uma vez isto pode ser reafirmado pela sequência da narrativa
em off: “Ou que você teria autorização para competir”. Entretanto é importante fazer
1. Sujeito cisgênero é aquele que se identifica com o mesmo gênero que foi designado ao nascimento;
2. Sujeito transgênero é aquele que não se identifica com o gênero que foi designado ao nascimento.
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
172
uma observação, o homem transgênero para ser visto com respeito e mais próximo à
igualdade em relação ao homem cisgênero é necessário que ele faça muito mais do
que o homem cis faz, ele precisa se superar e superar vários homens cis, e este fato
ocorre, por exemplo, na desigualdade salarial entre homens e mulheres ambos cis no
Brasil.
O sujeito transgênero, como Butler (2016) relata em suas pesquisas, é oprimido,
o discurso de voz off tem vestígios disto, pois inicia apresentando o atleta e durante
todo o filme publicitário o questiona, pois este foge da normatização de um cenário
social nenhum pouco “democrático”, uma vez que a expressão livre perante o corpo
sofre tabus e grande resistência, mas até o fim do anuncio existe essa ruptura.
Então para finalizar, quando existe uma quebra de todos esses questionamentos
pelo atleta Chris, pela sua posição no cenário do esporte mundial, a voz off precisa
relembrar: “Deve ter sido difícil para você! Você nunca pensou em desistir?”. E nesta
última locução podemos ter dois caminhos; o primeiro de que é difícil para ele se tornar
um dos melhores corredores do mundo, pois existem milhares de atletas e a vida de
um atleta é baseada em muita dedicação, treinamento e superação de limites.
E, o segundo viés é o que retrata sobre o processo de sua vida de transição e
de reconhecimento em ser um homem, até porque o homem transgênero sempre é
acompanhado após o substantivo homem com o substantivo transgênero. Embora
a sociedade não faz o mesmo aos homens cisgênero e lembrado constantemente
pela sociedade de maneira negativa e opressora que este nasceu em um corpo ao
qual foi registrado e designado em uma posição que não o pertence, entretanto, o
pertencimento é uma luta diária. Substantivo neste caso se refere ao significado de
senso comum: a designação dos seres de uma mesma espécie de forma genérica.
Na visão de Butler (2016), o trans é a quebra de vários paradigmas de gênero e
teorias de sustentação de práticas e costumes sociais, e o sujeito que abre o discurso
sobre: o que é homem, o que é mulher e qual seus lugares na sociedade. Já para
Preciado (2017), é um ato político revolucionário, e é importante ressaltar neste
capítulo a resposta final de Chris: “Sim, Mas eu não desisti!”, a qual é acompanhado
de um silêncio e finalização. Chris apresenta seu lugar na sociedade, e que este lugar
existe e não é o silêncio ou a exclusão, além de todas suas respostas apresentarem
“!”, demonstrando certeza e firmeza e um posicionamento de: Chris sabe quem é, sabe
seu lugar e assim a sociedade já não o afeta, pois ele já conquistou seu lugar em todos
os sentidos, sendo assim não é ele que precisa lidar com isto, a sociedade que lide.
O NOME DO ANÚNCIO: CORAGEM
O filme publicitário analisado em seu título e conteúdo trata da coragem sem
limites, mas porque este nome? A coragem em seu significado de senso comum é
a bravura, a moral forte perante o perigo e o espírito forte para enfrentar situações
emocionais ou moralmente difíceis, é um sentimento que não se trata da ausência do
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
173
medo, mas sim da superação deste.
Para o psicanalista Rocha (2013), o medo é apenas uma palavra e não um
conceito, ao qual, traz sensações que mobilizam a mente e o corpo, e que muitas
vezes demonstram o desprezar perante um objeto, e para ele enfrentar o medo pode
resultar em uma superação, porém tanto quanto uma conquista moral de narcisismo.
Segundo Lemos (2013), também psicanalista, o medo precisa ser estudado, pois
é algo que tira o equilíbrio do sujeito e se trata sobretudo de um sintoma acompanhado
de rupturas, marcas, vestígios na inconsciência de acontecimentos, ou um sentimento
de alerta, que nos ajudou na nossa sobrevivência.
Mas podemos dar um novo significado a coragem, Despentes (2016), em sua
teoria e obra King Kong, relata sobre o estereótipo de homem e como este é agredido
quando discute pontos que a sociedade lhe opõe na concepção de ser, como por
exemplo, o homem precisa ser valente, ou quando é “obrigado” a valorizar a força
mesmo quando não quer uma ou ambas estas coisas, e coragem é uma característica
muito ligada ao gênero masculino e não foge desta obrigatoriedade em sua concepção
de gênero, assim é interessante perceber como características, sensações, normas
são concebidas e criadas em cima do que é chamado de gênero.
Porém, Preciado (2017) crítica a coragem vinculada à masculinidade e à virilidade,
pois cita que nenhum homem construiu uma obra literária discutindo e criticando
a construção desta performance masculina como as literaturas feministas fizeram.
Contudo no anúncio publicitário temos Chris Mosier como exemplo de coragem, um
homem transgênero que desafia a normatividade de gênero e sua construção quando
conquista o direito de primeiro atleta transgênero a fazer parte da equipe masculina.
O personagem sai da zona de silêncio que Butler (1990) apresenta em sua teoria
Queer. Este é o lugar destinado a homens e mulheres trans, mas o atleta passa a
não existir mais nesse local de exclusão da sociedade e dá um passo ainda maior ao
competir diretamente com homens cisgêneros em sua profissão perante sua coragem
e determinação. Todavia toda essa construção não deveria ser uma questão, se torna
uma questão e discussão quando não é aceita de fato.
O sujeito trans não tem uma composição superficial, é um ser complexo e com
uma vivência de desafios e obstáculos, inicialmente a do descobrimento de si mesmo
e reafirmação, além de luta por direitos civis como mudança de nome e gênero para
integração na sociedade e por fim procedimentos médicos como hormonização e
cirurgias.
A pessoa transgênero passa por momentos de tensão psicológica, mental e
social, porém o atleta como mencionado foi, além disso, quando conquistou o direito
de representar uma nação em um esporte de alcance olímpico, a coragem presente
no filme publicitário também é remetendo e refletindo isso. Tanto que suas respostas
repetidas “Eu não sabia!”, a todas as perguntas retratam esta coragem, onde ele já
está em uma zona de segurança e de estabilidade consigo mesmo, pois ele teve
coragem de alcançar tudo, seu direito civil, sua carreira, sua aceitação perante o que
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
174
almejava e, sobretudo a coragem de ser leal consigo mesmo.
O LUGAR DE FALA DE CHRIS MOSIER
Neste tópico é feito uma relação entre o produto audiovisual Unlimited Courage
e a obra de Djamila Ribeiro (2017), O que é lugar de fala? A autora traz uma narrativa
crítica sobre o racismo patriarcal heteronormativo e relata a cultura atual em que a
palavra tem muito poder, principalmente para expor atrocidades e gerar discurso
de mudanças, assim podendo extrair ideias e utilizar na análise discurso do sujeito
transgênero vs narrador off do comercial.
Contudo, primeiramente é interessante relembrar que Butler (1990) discute o
lugar de silêncio das minorias e como somente o sujeito patriarcal heteronormativa
tem direito a voz e toma uma postura de dominação perante os outros sujeitos para
complementar esta ideia segundo Ribeiro (2017) o discurso tem poder e controle
quando sua estrutura é de imaginário social. Sendo assim, podemos inicialmente
levantar alguns questionamentos nesta análise como: porque somente o anúncio
contendo um sujeito trans é utilizado voz off? Porque é dado a palavra a um sujeito
homem em narração off? Porque não é dado a voz/fala ao personagem Chris?
Ribeiro (2017) relata o quanto o sujeito não considerado normalizado é silenciado
e somente tendo o direito à fala em terceira pessoa, ou seja, não é o indivíduo que
fala é o outro que fala em seu lugar. No filme publicitário, essa relação é claramente
notável já na primeira cena, iniciando pelo personagem ser apresentado pela narração
off e em seguida definido por esta, além de que em nenhum momento ser Chris que
fala “Eu sou Chris”, “Eu sou um homem transgênero”.
Porém, o discurso na comunicação é a ponte que “leva” as posições simbólicas
sociais, mas que necessita o entendimento sobre essas posições para que haja a
compreensão do grupo\coletividade (RIBEIRO, 2017). Este ponto no filme publicitário
Unlimited Courage como na publicidade em geral que apresenta o sujeito trans apresenta
um grande problema sobre a representatividade do sujeito, pois na sociedade e cultura
atual a ideia e entendimento de homem/mulher trans é extremamente miserável, ou
seja, a mensagem pode ser totalmente desviada e o poder desse discurso anulado. O
personagem Chris Mosier sofre uma violação a sua fala de início ao fim da produção
audiovisual da locução off. O atleta está na zona de rebater e reagir, assim, uma
posição de defensiva ou até mesmo indiferença.
Sobretudo o filme publicitário pode ser analisado como uma forma ilustrativa da
realidade do lugar de fala e o que está significa, pois Chris Mosier sofre uma tentativa
de silenciar sua fala e seu sujeito, o personagem sofre questionamento em todas as
cenas e construções narrativas. O fato só muda no momento em que o personagem
sai da sua zona defensiva e de indiferença ao mudar sua resposta e falar: “Sim, mas eu
não desisti!” Assim se opõem finalmente e esta cena é o momento de desconstrução,
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
175
poder de voz e como resultado silêncio de quem tinha esse poder neste caso a voz off.
Ribeiro (2017) coloca o discurso frente às desigualdades e como é refletido no
sujeito e em suas várias performances, nesta visão o anúncio publicitário também
conversa com essa ideia, pois relata o caso de Chris Mosier ser trans e competir pela
seleção olímpica composta somente por homens cisgênero até então, concluindo que
nesta análise a atuação do sujeito já é a própria representação do discurso.
Além de Ribeiro (2007) citar que colocar e tratar o problema de lugar do sujeito
como individual, gera apenas mais distanciamento da dignidade social, até porque
esta menciona que seria muito mais vantajoso e correto todos os sujeitos mesmo
com suas diferenças terem direito aos mesmos espaços e poder hierárquico. E o
que a autora aponta acontece no filme publicitário, pois Chris compete e está nesse
ambiente ilustrado com as cenas onde se encontra no vestuário masculino e em uma
corrida cercado de outros homens, porém em contrapartida este como já mencionados
cisgêneros.
Ribeiro (2017), explica o lugar do sujeito como tendo muita relação às suas
condições sociais, ao qual definem se este é discriminado ou não da sociedade, tem
ou não um lugar de cidadania e que para solucionar isto é necessário entender a
estrutura social de cada grupo social. Entretanto esta abordagem pode nos fazer
questionar a escolha de Chris Mosier no filme publicitário, pois ele tem um lugar de
aceitação pela sua condição social, mas perante esta perspectiva gera um reflexo
que não condiz com a maioria dos sujeitos trans e sua relação tanto com a sociedade
quanto com o direito a fala.
A autora, Ribeiro (2017) completa ao decorrer de sua obra como o regime
autoritário reflete nessas vozes e quando se existe a voz mesmo que sutil, pois existe
uma tentativa de combate por justificativa de crer, por exemplo, que o sujeito transgênero
não tem fala e lugar. Neste sentido ao pensar que fazem dois anos do primeiro anúncio
publicitário com um personagem transgênero (Unlimited Courage) não houve mais
nenhum no Brasil, além de que no país o cenário transgênero passa por uma mudança
de direitos e com isso gera mais visibilidade a causa e ao movimento, contudo ainda
é um sujeito invisível.
Por fim, a grande crítica da obra de Ribeiro (2017) que soma neste trabalho é que
a mestre em filosofia política nos fala que existe apenas uma fala e um poder de fala
atualmente e isto é uma pretensão social, pois não existe de forma alguma apenas uma
voz como universal quando os sujeitos são diferentes e têm suas vivências divergentes,
sendo assim seria ideal aceitar todas as vozes que de fato constrói a construção social,
até porque questões de raça, gênero, classe e sexualidade se cruzam.
E finalmente na publicidade o homem transgênero foi representado, porém não
podemos ser ingênuos, pois até então apenas uma grande marca teve esta posição,
sendo que no anúncio o personagem não apresenta grande poder e liberdade a fala
muito menos poder a
este. Talvez este fato é percebido quando se fala de sujeito transgênero pelo
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
176
cuidado e medo de expressão, pois quando é feito desestabiliza a norma hegemônica
é visto como agressivo e inapropriado como traz Ribeiro (2017) porque sobretudo
confronta o poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do presente trabalho foi analisar os sentidos de identidade transgênero
presentes nos elementos discursivos no anúncio Unlimited Courage da marca Nike,
como objeto de estudo. Isto posto, o trabalho foi dividido em três etapas de investigação:
a) apurar o contexto cultural e social referentes a construção do filme publicitário; b)
identificar nos discursos e imagens elementos que conversem com a teoria de gênero
e c) analisar sentidos construídos sobre identidade de gênero no anúncio.
A pesquisa de cunho qualitativo foi elaborada com base na abordagem dos
Estudos Culturais e teorias interdisciplinares. Teorias estas que discutem sociedade,
cultura, multicultura, identidade, gênero e construção social. Sendo Judith Butler, Paul
Preciado, Virginie Despentes e Djamila Ribeiro os principais autores alicerces da teoria
de gênero.
Esta pesquisa analisou dados de acordo com a metodologia citada anteriormente
e por meio desta é perceptível que o cenário do sujeito transgênero na sociedade
brasileira é de integração, faltando muito entendimento sobre este, principalmente se
tratando dos homens trans que começam a apresentar vestígios de reivindicação ao
lugar de fala. Nas teorias utilizadas para fundamentar este trabalho a visão do sujeito
transgênero ter o local de silêncio definido pela sociedade é unânime, contudo “agora
o lixo vai falar”.
No vídeo como objeto de análise é notável a percepção do sujeito transgênero
como elemento principal no produto audiovisual que introduz alguns elementos
importantes que ajudam a entender que Chris está muito seguro consigo mesmo
apresentando posturas ao decorrer do filme publicitário ao ser questionado como a
não interrupção do seu treino e principalmente quando em cena aparece sem camisa,
ou seja, remete a estar de peito aberto.
Embora a narrativa do anúncio seja questionável, não existe a utilização de
monólogo como nos outros filmes publicitários da campanha Unlimited You e sim um
personagem off, que pode ser interpretado como o papel da sociedade a qual está em
constante questionamento com este sujeito “não normativo” e que em sua maioria não
sabe lidar com essa pessoa que também compõem a sociedade e nem mesmo aceita
seu lugar na mesma.
Assim, o elemento Coragem (condutor chave deste anúncio) tem grande
importância na construção do objeto de estudo, pois em uma realidade apontada pelos
teóricos de gênero, o sujeito trans é descriminalizado e diariamente tem seu lugar
negado ir contra todas estas variáveis e assumir seu lugar de homem, trans e atleta,
reflete em uma postura de empoderamento, luta e direito conquistado, onde se volta a
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
177
sociedade/espectador que é este que precisa lidar e administrar que sim este sujeito
trans faz parte da sociedade e existe.
Porém o último elemento analisado e com uma essência mais “dura” discute o
lugar de fala que acaba por fortalecer todos os outros elementos e abre questionamento
para outros posicionamentos, porque o sujeito transgênero tem convicção de quem
é este e como ser humano deseja ter fala, lugar, respeito, contudo a sociedade
normatizada não consegue ter discernimentos éticos e morais sobre este e sim, utiliza
de seu poder para silenciar a pessoa trans e medir a liberdade deste.
Com isto é importante relatar e ter uma postura crítica que a discussão sobre
identidade de gênero, por exemplo, no Brasil, começou a ganhar força apenas nos
últimos anos, porém a mídia traz uma imagem distorcida, apresentando modelos
isolados de sucesso e é esquecido o espaço que diferencia ficção e realidade,
transparecendo mais uma estratégia do poder para controlar um sistema hierárquico
onde fala no lugar destes sujeitos “invisíveis”, aos quais assumem sua existência.
Contudo, não lhes permite o direito civil de ir e vir e move-se entre estes vários
espaços sociais, o poder dita o lugar do sujeito. E a campanha Unlimited Courage
nos apresenta esses vários fragmentos, elementos e finaliza com o poder de voz e de
lugar do homem transgênero interpretado pelo atleta Chris Mosier, e é este fato e visão
que faz o objeto de estudo ser tão importante e significativo.
Por fim, ao decorrer deste trabalho, foi notável a falta de estudos focados no
sujeito transgênero como este tendo lugar de autoria. Como Ribeiro (2017) fala em
seu trabalho, é necessário que cada vez mais homens brancos cisgêneros estudem
branquitude, cisgeneridade e masculinidade, como é extremamente importante o
sujeito transgênero estudar e entender seu lugar e local de fala. Ter esta atitude é
uma questão ética e tem o intuito de mobilizar o pensamento crítico sobre pobreza,
racismo, sexismo e desigualdade.
São sugeridos novos estudos críticos em relação ao poder de fala, identidade,
gênero, enfatizando a falta de autores transgêneros sobre estudos de gênero
como também falta de pesquisadores homens cisgênero heteronormativos sobre
masculinidade e pôr fim a falta de visibilidade trans e queer na publicidade.
REFERÊNCIAS
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. 3. ed. Lisboa: Edições 70, 2009. 270 p;
BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 190 p;
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1990. 236 p. Disponível em: <https://cadernoselivros.files.wordpress.
com/2017/04/butler-problemasdegenero-ocr.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2018;
CAMILA DE ÁVILA DUARTE (Paraíba). Tarcisio Torres Silva. A efígie trans na publicidade brasileira.
Temática, Paraíba, v. 14, n. 1, p.1-16, 8 ago. 2017. Mensal. 2018;
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
178
DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. São Paulo: N-1 Edições, 2016. 127 p. Tradução Márcia
Bechara;
GAIGHER, Livia; CAMPELLO, Bósio. CULTURA E MULTICULTURALISMO: IDENTIDADE LGBT,
TRANSEXUAIS E QUESTÕES DE GÊNERO. . 2017. Disponível em: . Acesso em: 3 fev. 2018;
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Dp&a,
2006. 102 p;
HALL, S. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003;
JORGE, Sheila Costa. A publicidade das imagens Cristalizadas: Uma analise das representações
de gênero. Revista Anagrama:: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação e-ISSN, São Paulo, v.
2, n. 7, p.1-16, 1 dez. 2013. Semestral;
MENSAGEM, Meio &. Nike apresenta primeiro atleta transgênero: Chris Moiser ingressou na
equipe masculina dos Estados Unidos em 2015. 2016. Patrocinado pelo SporTV. Disponível
em:
<http://olimpiadas.meioemensagem.com.br/2016/08/09/nike-apresenta-primeiro-atleta-trans e
nero/>. Acesso em: 22 abr. 2018;
NÚMERO DE ASSASSINATOS DE PESSOAS TRANS NO BRASIL É O MAIOR EM
DEZ ANOS. São Paulo, 27 jan. 2018;
O CONCEITO DE IDENTIDADE NOS ESTUDOS CULTURAIS BRITÂNICOS E LATINOAMERICANOS:: UM RESGATE TEÓRICO. Curitiba: Animus, v. 14, n. 27, 2015. Semestral. Disponível
em: <file:///C:/Users/5656745/Downloads/13570-89729-1-PB (1).pdf>. Acesso em: 14 mar. 2018;
PRECIADO, Paul B.. Manifesto contrassexual: Práticas subversivas de identidade sexual. 2. ed. São
Paulo: N-1 Edições, 2017. 221 p. Tradução Maria Paula Gurgel Ribeiro;
QUEER: Cultura e subversões das identidades. São Paulo: Cult, v. 6, n. 19, 1 jun. 2015. Mensal.
Edição Especial;
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. 111 p;
RODRIGUES, André Iribure; CARVALHO, Amanda de. Desde a Década de Setenta, em Setenta
Comerciárias:: as representações LGBT na publicidade e propaganda veiculadas na televisão
brasileira. Porto Alegre: 10o Encontro Nacional da História da Mídia, 2015. 15 p. Disponível em:
<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:D1XvzBjIsIMJ:www.ufrgs.br/alcar /
encontros-nacionais-1/encontros-nacionais/10o-encontro-2015/historia-da-publicidade-e-dacomunicacao-institucional/desde-a-decada-de-setenta-em-setenta-comerciais-as-representac eslgbt-na-publicidade-e-propaganda-veiculadas-na-televisao-brasileira/at_download/file+&cd=2&hl=ptBR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 20 abr. 2018.
UNLIMITED Courage. Direção de Nike. Estados Unidos, 2016. (040 min.), son., color. Legendado.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_gq8PO9XK2Y>. Acesso em: 5 fev. 2018.
Ciências da Comunicação
Capítulo 15
179
CAPÍTULO 16
VIOLAÇÃO DE DIREITOS LGBTI+ NA CAMPANHA DA
RÁDIO JOVEM PAN PARA O DIA INTERNACIONAL DE
COMBATE À LGBTIFOBIA
Adriano Quaresma da Costa
Universidade Federal do Pará, Faculdade de
Comunicação.
Belém - Pará
Armando Leandro Ribeiro da Silva
Universidade Federal do Pará, Faculdade de
Comunicação.
Belém - Pará
Esthefany Carolyne Silva da Cruz
Universidade Federal do Pará, Faculdade de
Comunicação.
Belém - Pará
Karen Isabela Leite Alcântara
Universidade Federal do Pará, Faculdade de
Comunicação.
Belém - Pará
Matheus Henrique Cardoso Luz
Universidade Federal do Pará, Faculdade de
Comunicação.
Belém - Pará
Lorena Cruz Esteves
Universidade Federal do Pará, Faculdade de
Comunicação.
Belém - Pará
Suzana de Cassia Serrão Magalhães
Universidade Federal do Pará, Faculdade de
Comunicação.
Belém - Pará
RESUMO: Este trabalho busca analisar como
Ciências da Comunicação
a campanha da rádio Jovem Pan para o Dia
Internacional de Combate a LGBTIfobia violou
os direitos LGBTI+, assim como esmiuçar
a simbologia da peça que foi veiculada no
Facebook, Twitter e Instagram, nos perfis oficiais
da emissora de rádio. Foram também utilizados
alguns comentários retirados das publicações
originais, com o fim de ilustrar a recepção do
público à campanha. Tendo como base teórica
autores que discutem publicidade, mídias
sociais, estereótipo e violação de direitos de
minorias políticas para fomentar as reflexões,
como Código de Ética dos Profissionais da
Propaganda (1957), Manual de Comunicação
LGBT (2009), DIAS (2007), RECUERO (2009),
concluiu-se que a campanha falhou ao tentar
visibilizar a comunidade, reforçando um
discurso preconceituoso que violou os direitos
como cidadãos dessa população.
PALAVRA-CHAVE: Jovem Pan. LGBTIfobia.
Violação de direitos humanos. Mídias sociais.
ABSTRACT: This work aims to analyze how
the Jovem Pan radio advertising campaign for
the International Day to Combat LGBTIphobia
violated LGBTI+ rights, as well as to dissect
the symbology of the ad that was posted on
Facebook, Twitter and Instagram’s official
profiles of the radio station. Some comments
were also taken from the original publications,
in order to illustrate public’s reception of
Capítulo 16
180
the campaign. Based on theoretical authors who discuss advertising, social media,
stereotype and violation of rights of political minorities to foster reflections, such as
Propaganda Professionals Code of Ethics (1957), LGBT Communication Manual
(2009), Dias (2007), Recuero (2009), concluded that the campaign failed to make the
community visible, reinforcing a prejudiced discourse that violated the rights as citizens
of this population.
KEYWORDS: Jovem Pan. LGBTIfobia. Violations of human rights. Social media.
1 | INTRODUÇÃO
Há 28 anos, no dia 17 de maio, a Organização Mundial de Saúde (OMS) deixou de
considerar a homossexualidade como doença, um marco na luta pelos direitos LGBTI+.
Foi instituído nesta data, em 1992, o Dia Internacional de Combate à LGBTfobia para
lembrar essa importante conquista e protestar contra toda violência e discriminação
que a comunidade homoafetiva e que se encontra fora da heteronormatividade sofre.
De acordo com a relatório realizado pelo Grupo Gay da Bahia, o Brasil está
em primeiro lugar no continente americano em número de homicídios de pessoas
LGBT, além de ser o país que mais mata transsexuais no mundo (MOTT; MICHELS;
PAULINHO, 2017, p.14). Estes dados evidenciam o poder do discurso de ódio e
fomentam a necessidade do combate de tais práticas.
Por este motivo, neste estudo será feita uma análise crítica à violação dos
direitos LGBTI+ gerada pela campanha do Dia Internacional de Combate à LGBTfobia
da empresa Jovem Pan, na qual, como será demonstrado nesta pesquisa, deixa
margem para uma interpretação que faz apologia à violência e que é conivente com
os estereótipos de sexualidade.
A campanha produziu grande impacto nas redes sociais, contando com diversos
comentários e reações que deram visibilidade às pessoas que se sentiram diretamente
afetadas pelo discurso irresponsável da emissora de rádio e direcionaram as críticas
atribuídas neste artigo à peça e ao texto que a acompanhava.
Nessa pesquisa serão discutidos a publicidade, a estereotipação e os limites
que não podem ser cruzados para que a integridade do ser humano, amparado pela
Declaração Universal de Direitos Humanos, não seja ferida.
2 | VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS NA PUBLICIDADE
Comunicação é um fenômeno social. Ela reflete a interação entre as pessoas
e, para além, tratando do cenário mercadológico, das relações de consumo entre
clientes e anunciantes. Para responder a essa interação, é evidente que a publicidade,
enquanto maneira de comunicação, procura adequar-se a um posicionamento e atinja
especificamente o público para o qual as empresas se voltam. Compreendendo, então,
Ciências da Comunicação
Capítulo 16
181
a sociedade como uma instância repleta de diversidade, na qual encontram-se pessoas
com as mais diferentes personalidades, percebe-se, de acordo com Sant’anna (2015),
o quanto a propaganda está em constante movimento com fenômenos paralelos, dos
quais ela colhe subsídios. A partir desse aportes é que a publicidade se estabelece
enquanto comunicação com resultados efetivos.
Nesse contexto, a criação publicitária exercita as maneiras como a propaganda
deve atingir o público-alvo em específico. Na visão de Kotler (2000), toda oferta de
marketing traz em sua essência uma ideia básica, a qual pode influir sobre a decisão
de compra dos consumidores de acordo com o seu posicionamento e direcionamento
de linguagem. Nesse sentido, a diversidade de opiniões, gostos e preferências que as
pessoas constroem de acordo com as vivências particulares norteiam suas posturas
também enquanto consumidores de uma determinada marca. Sendo assim, as
empresas têm mais sucesso ao prepararem propostas de marketing customizadas,
orientando-se a partir dessas opiniões do seu público para que isso reflita nos
lucros (KOTLER, 2000). Desse modo, nota-se uma comunicação que entrelaça o
posicionamento das marcas à postura do próprio cliente.
Assim, as práticas para a conquista desse consumidor vão sendo construídas
sempre com a finalidade de lucro. Com isso, as empresas procuram tomar por base
a definição específica dos seus mercados-alvo para que as campanhas publicitárias
possam ser mais bem direcionadas e planejadas. Então, segmentando o público, há
uma maior possibilidade de tentar entendê-lo e, assim, construir uma publicidade que
dialogue com a sua realidade, produzindo seus objetivos pré-definidos, ou seja, as
vendas.
Para alcançar sua lucratividade, uma das estratégias usadas pela publicidade é
utilizar de sensos comuns, isto é, ideias conhecidas e naturalizadas socialmente. Nesse
ínterim, por mais que uma segmentação a nível macro possa auxiliar na comunicação
entre empresas e público, entende-se que as pessoas, mesmo que muito semelhantes
em alguns sentidos (como sexo, idade, classe social), possuem especificidades
em níveis inclusive psicológicos, auxiliando em sua diferenciação. Logo, é comum
utilizar um elemento que possa unificá-las, ou então, que todos daquele segmento
compartilhem. Nesse sentido, ideias gerais, muitas vezes incorretas e imprecisas,
servem como um saber prévio partilhado socialmente (DIAS, 2007) que poderá ser
entendido por todos daquele mercado segmentado e, dessa forma, dar prosseguimento
ao ciclo da comunicação.
Trabalha-se, portanto, a ideia dos estereótipos dentro da publicidade. Segundo
Dias (2007), o termo comporta em si uma referência ao que foi pré-determinado e
encontra-se fixado, solidificado. Neste contexto, trata-se basicamente a respeito de
diversos fenômenos sociais que podem, ou não, refletir acerca da realidade vivencial.
Como exemplo, temos a tradicional afirmação “todo brasileiro ama futebol”, que
espelha uma característica social comum em uma parcela da sociedade brasileira,
entretanto não reflete acerca da totalidade da população. A respeito disso, a autora
Ciências da Comunicação
Capítulo 16
182
comenta ainda:
O fato de ele ser tomado como uma idéia que foi se solidificando ao longo do tempo
e, por isso, possa ter se distanciado da “realidade”, fez com que fosse entendido
como elemento falseador e pernicioso para as relações sociais. (DIAS, 2007, p. 26).
Nesse sentido, entende-se que os estereótipos de alguma forma remetem a
elementos sociais que, entretanto, não podem ser tomados enquanto regras que
pré-determinam as características das pessoas, mas que, por serem de comum
conhecimento, acabam possibilitando o entendimento da mensagem e do produto a
ser oferecido.
Por outro lado, ao utilizar deste recurso, a publicidade encontra alguns impasses.
Quando ela usa os estereótipos para fins mercadológicos, ela cria situações ficcionais
nas quais o consumo do produto/serviço entra como elemento fundamental na narrativa
construída, a qual toma por base a própria realidade do cliente. A generalização que
os estereótipos acrescentam ao conteúdo causa familiaridade no público por se
tratar de elementos ditos comuns na realidade. Nesse sentido, por representá-la, a
publicidade também auxilia a moldá-la, no sentido de que ela acaba por atualizar e
difundir o esteriótipos, dando muitas vezes a impressão de que ela é a responsável
por tais representações convencionais (DIAS, 2007). A exemplo, têm-se inúmeras
propagandas que se utilizam da imagem da mulher como sinônimo de sexualidade e
que reforçam padrões estéticos femininos como os mais admissíveis.
Da mesma forma, muitos outros exemplos são visíveis envolvendo diversos
atores sociais. Nesse sentido, a representação de negros, mulheres e LGBTs nas
propagandas publicitárias é uma questão que levanta debates profundos a respeito
dos valores e representações da sociedade atual. Em diversos casos, ainda são
atribuídos estigmas sobre a população negra como força braçal da sociedade,
destinados apenas a trabalhos manuais; enquanto homossexuais aparecem como
figuras humorísticas, sempre alegres, caricatas, com excesso de trejeitos femininos.
Sobre isso, a psicóloga social Adriane Roso alerta que quando as formas simbólicas de
determinada propaganda são criadas, contribuem para reforçar e estabelecer relações
de dominação ou de exclusão, isso personaliza-se como um problema de ordem
ideológica (ROSO et al., 2002)1. Nesse sentido, a mídia interfere como catalisadora
desse fenômeno.
Para evitar isso, já há normatizações que regulamentam o tratamento distinto
desses sujeitos dentro das publicidades. No caso específico dos LGBTI+, a Associação
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais e Travestis (ABLGT) criou um
manual próprio (MARTINS et al, 2009), contendo orientações de como esse público
deve ser representado, sendo que há um incentivo à uma postura ética, pouco
sensacionalista, sem banalização ou ridicularização das pessoas pelos meios de
comunicação. Desse modo, o não cumprimento é entendido como violação contra os
1. Ver artigo: ROSO, Adriane et al. Cultura e ideologia: a mídia revelando estereótipos raciais e de gênero, publicado na revista Psicologia e Sociedade em 2002.
Ciências da Comunicação
Capítulo 16
183
direitos dos LGBTs, pautado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),
a qual alega que todos são iguais em dignidade e direitos (artigo 1º) e tem direito ao
reconhecimento da sua personalidade jurídica (artigo 6º), passível, então, de defesa
pela lei.
Outrossim, há ainda um regimento que orienta a atividade publicitária como um
todo. De acordo com Código de Ética dos Profissionais de Propaganda, no princípio
II, que afirma que:
O profissional da propaganda, cônscio do poder que a aplicação de sua técnica
lhe põe nas mãos, compromete-se a não utilizá-la senão em campanhas que visem
ao maior consumo dos bons produtos, à maior utilização dos bons serviços, ao
progresso das boas instituições e à difusão de idéias sadias (APP, 2014).
Nesse sentido, a propaganda deve ser um instrumento para o respeito ao
valor humano, previsto na Declaração dos Direitos, de forma a propagar ideias
verdadeiramente saudáveis para todos os públicos e, também, a respeito deles.
3 | OBJETO DE ANÁLISE E A HISTÓRIA DA MARCA “JOVEM PAN”
No estudo de caso dessa pesquisa, há a análise de como os direitos dos
LGBTs são violados de diferentes maneiras pela publicidade brasileira na campanha
promovida pela emissora de rádio Jovem Pan.
De início, um breve histórico da empresa se faz necessário2, porém, devido a
escassez de materiais científicos sobre a rádio Jovem Pan, foi preciso recorrer às
informações providas no site da emissora de rádio.
A rádio Jovem Pan, inicialmente chamada de Rádio Panamericana S.A, realizou
sua primeira transmissão no dia 3 de maio de 1944. Porém, em 1945, após ser
comprada por Paulo Machado de Carvalho em dezembro de 1944, passou a integrar o
Grupo das Emissoras Unidas e veio a se tornar uma “emissora de esportes”.
O nome Jovem Pan surgiu em 1965, criado por Paulo Machado. Sob a direção
de Antônio Augusto Amaral de Carvalho (conhecido como “Tuta”), e a grande
transformação da rádio Panamericana, teve início em 1966. Já utilizando o nome atual,
a rádio iniciou diversos programas com ídolos da MPB (Música Popular Brasileira) que,
na época, faziam bastante sucesso na TV Record. Seus programas jornalísticos foram
criados de 1970 a 1972, período no qual surgiram a “Equipe Sete Trinta”, o “Jornal de
Integração Nacional” e o “Jornal da Manhã”.
Hoje, por meio do sistema SAT, conta com correspondentes em Brasília, Rio de
Janeiro e outras capitais do Brasil, além de profissionais correspondentes na Europa,
Japão e Estados Unidos. Com seu público-alvo sendo os jovens, a emissora possui
uma programação diversificada e se utiliza do humor, além de sua programação
musical.
Como objeto de análise deste artigo, tem-se um exemplo dessa postura, que é a
2. Ver Radio Joven Pan em: https://goo.gl/tHJrQq; e em: https://jovempan.uol.com.br/sobre.
Ciências da Comunicação
Capítulo 16
184
campanha “Minha Última Música” lançada pela rádio nas suas plataformas digitais no
dia 17 de Maio de 2018, conhecido mundialmente como o Dia Internacional Contra a
LGBTfobia. A ação buscou conscientizar a população sobre os riscos de morte diários
enfrentados pela população LGBTI+ no Brasil e fazer com que todos se tornassem
mais empáticos com a causa.
Figura 1 - Imagem principal da Campanha “Minha Última Música”
Fonte: Reprodução Google
Uma análise dos aspectos simbólicos da campanha acrescenta uma nova
profundidade à pesquisa. Assim, a primeira cor notada, ao olhar para a imagem, é
o rosa choque utilizado no fundo. Aos poucos vamos percebendo a tipografia na cor
amarelo ouro e, finalmente, a estampa de difícil entendimento utilizada na lateral direita
da imagem - que após uma longa contemplação veio-se a descobrir que se trata de
uma representação de uma nota musical em pedaços, como se estivesse quebrada.
“A cor rosa simboliza a força dos fracos, como o charme e amabilidade”.
(HELLER, 2013, p. 398). A fim de demonstrar a força dos LGBTI+, utilizou-se do rosa,
provavelmente, com o intuito de ocasionar amabilidade no público. Entretanto, em
uma pesquisa feita por Heller (2013), com dois mil homens e mulheres, entre 14 e 97
anos, na Alemanha, os pesquisados, espontaneamente citaram, a cor rosa pink como
a menos favorita, associando a tonalidade à vulgaridade. Ou seja, acredita-se que
cor escolhida para o fundo da imagem acabou não sendo a mais apropriada para a
temática da campanha.
Além disso, a cor amarela, utilizada na tipografia da peça, é considerada a cor
mais ambígua entre todas, de acordo com Heller (2013, p. 152).
O amarelo é a cor do otimismo – mas também da irritação, da hipocrisia e da inveja.
Ele é a cor da iluminação, do entendimento; mas é também a cor dos desprezados
e dos traidores. É assim, extremamente ambígua, a cor amarela.
A tonalidade amarelo ouro, selecionada para fazer parte da composição da peça,
é associada à beleza e ao caráter valioso de algo, de acordo com a pesquisa feita
Ciências da Comunicação
Capítulo 16
185
por Heller (2013). Quando as duas cores são analisadas, percebe-se que não houve
uma preocupação com as sensações que são despertadas no público, quando este se
depara com estas cores. Além do fato de que a combinação de cores não é harmônica
e causa um desconforto visual.
Muito discretamente, utilizado na estampa na lateral direita da peça, temos a
cor violeta. Para Farina et al. (2006), é uma cor comumente associada afetivamente à
características negativas (engano, violência, furto, agressão, entre outros).
Juntamente com a simbologia das cores usadas, a linguagem verbal também
transmite uma mensagem. O texto da peça, caracterizado por uma tipografia sem
serifa e mais grossa, busca chamar atenção para a hashtag #MinhaÚltimaMúsica e
lembrar da seriedade do tema abordado na campanha. Logo abaixo, tem-se a seguinte
descrição: “A LGBTfobia mata uma pessoa por dia no Brasil. Se você fosse a próxima
vítima, qual seria a última música que você pediria?”.
Um dos sentidos que se pode interpretar na campanha “Minha Última Música”
é fazer com que a sociedade se torne mais empática com aqueles que enfrentam
riscos de morte diariamente, somente pelo fato de não se encaixarem nos padrões
de relacionamento impostos socialmente. Em comentário para a redação da revista
Meio e Mensagem, a agência Lew’Lara/TBWA, idealizadora da campanha publicitária,
posicionou-se da seguinte forma:
O Brasil tem muitas estatísticas tristes. Infelizmente, uma delas é o assassinato de
um LGBTI a cada 25 horas, nos colocando como o país que mais mata LGBTIs
no mundo. A campanha tem como objetivo chamar a atenção das pessoas para
essa estatística aterradora, trazendo o assunto para a pauta, fazendo as pessoas
refletirem sobre o fato terrível de que um brasileiro morre diariamente apenas por
causa de sua orientação sexual. Ao convidar no programa de rádio os ouvintes
a - no lugar de pedirem a sua música favorita - pedirem a possível última música
que ouviriam em vida, sugerimos uma reflexão delicada: todos nos imaginarmos
como uma vítima dessa violência sem sentido. (Agência Lew’Lara/TBWA, Meio e
Mensagem, 2018).3
Dessa forma, tentar colocar as pessoas no lugar das vítimas de LGBTIfobia
foi a ideia principal que permeou a campanha, porém a execução acabou gerando
uma repercussão extremamente negativa para a marca, principalmente no ambiente
digital, pois colocar-se no lugar de vítima de um sistema opressor pode trazer ainda
mais sentimentos negativos sobre ser LGBTI+ num contexto violento e de muitos
preconceitos.
4 | REPERCUSSÃO NAS REDES SOCIAIS
Para entender a recepção e difusão da publicidade nas redes sociais, foi analisada
a repercussão nas plataformas Facebook, Twitter e Instagram. Abaixo, uma tabela
com as interações encontradas:
3. Ver matéria disponível em Meio & Mensagem: https://goo.gl/eXshp4
Ciências da Comunicação
Capítulo 16
186
Total: 8,5 mil
Reações
Grr: 7,7 mil (90%)
Triste: 334 (4%)
Haha:234 (2,7%)
Curtir: 112 (1,3%)
3,3 mil
Comentários
1.726
Compartilhamentos
Tabela 1 - Dados coletados do Facebook até o dia 06/06/2018
Fonte: Elaboração própria.
665
Curtidas
3,4 mil
Comentários
231
Retweets
Tabela 2 - Dados coletados do Twitter até o dia 06/06/2018
Fonte: Elaboração própria
949
Curtidas
5.940
Comentários
Tabela 3 - Dados coletados do Instagram até o dia 14/06/2018
Fonte: Elaboração própria
Partindo disso, tem-se a visão de Recuero (2009) que coloca os atores dessas
interações como o primeiro elemento das redes sociais, aqueles que vão moldálas, baseados nas relações construídas nesses meios. Além disso, esses espaços
constituem-se como representações desses atores, servindo para expressar seus
discursos e outros elementos individuais.
Ademais, Recuero (2009) afirma que toda campanha publicitária online preza
por uma interação com seu público usuário/espectador, e esse processo, em seu tipo
ideal, necessita de uma resposta de satisfação dos atores envolvidos. Com isso, a
produção do material publicitário acaba sendo direcionada para públicos específicos,
de maneira a dialogar com sua realidade e vivências.
Entretanto, é perceptível que o objeto em questão não teve o cuidado de realizar
uma pesquisa adequada acerca do público ao qual se referia e desejava atingir, visto
que o retorno obtido foi majoritariamente de reações negativas no Facebook (94%,
somados as reações “Grr” - que quer dizer raiva - e “Triste”). A falha é reforçada ao
notar-se que a campanha utiliza referenciais subvertidos, como um tipo de humor
inapropriado e trabalha em cima de sensos comuns que não se encaixam para um
data de resistência, como alguns comentários retirados do Facebook denotam, o
primeiro com 2,3 mil reações e 29 comentários e o segundo com 1,8 mil reações e 12
respostas:
[Comentário 1]: Como que uma campanha dessa vai pro ar?
Ciências da Comunicação
Capítulo 16
187
Brieffing, redator, designer, aprovação, passa por um monte de gente e não tem UM
pra falar “meu ta meio estranho isso” ??????????? de extremo mal gosto, ofensivo,
parabéns vocês estão disparados na disputa pelo prêmio de pior publicidade do
ano hein parabéns a equipe. (Comentário retirado do Facebook).
[Comentário 2]: Eu não quero pensar em qual seria minha última música Jovem Pan
porque eu NÃO quero pensar que eu posso virar estatística todo dia nesse país.
Eu quero pensar que músicas vou escutar durante TODA minha expectativa de
vida como cidadão comum! Eu quero a trilha sonora da minha vida e não a última
música! Não quero celebrar o momento que perderei minha vida pra um ser humano
cujo ódio não pôde guardar dentro de si. (Comentário retirado do Facebook).
E outros comentários, com o mesmo teor, retirados do Twitter. O primeiro com
155 retweets, 8 comentários e 299 curtidas e o segundo com 19 retweets, 96 curtidas
e 1 comentário:
[Comentário 1]: No Dia Internacional Contra a Homofobia, a Rádio Jovem Pan
lança a campanha #MinhaÚltimaMúsica para que LGBTs digam qual última música
gostariam de ouvir antes de morrer. Isso não é mau gosto, não é falta de noção, não
é sem querer, o nome disso é escárnio (Comentário retirado do Twitter).
[Comentário 2]: Se vcs estão preocupados MESMO com a nossa vida, @
radiojovempan, não perguntem qual será a #MinhaÚltimaMusica, mas ajudem a
construir uma sociedade onde eu não precise pensar nisso, e que eu possa ter
milhares de trilhas, em uma vida longa, coberta de dignidade e respeito (Comentário
retirado do Twitter).
Por fim, um comentário retirado do Instagram, com 1664 curtidas e 2 comentários:
[Comentário 1]: CAMPANHA PÉSSIMA. Gente, que falta de noção. Que falta de
tato e empatia. Bota uma galera lgbt pra aprovar uma pauta que voces tem zero
conhecimento, mas nao brinca com A MORTE DE LGBT. O Brasil é o país que mais
mata LGBT no MUNDO. Eu tenho medo de sair na rua com a minha namorada e
morrer, eu nao fico pensando qual seria minha ultima musica, eu fico pensando pra
qual canto eu posso correr pra me defender se eu for atacada na rua, fico pensando
em como proteger minha amiga e namorada de todas as agressoes verbais de
familia e sociedade. Serio, erraram FEIO. (Comentário retirado do Instagram).
Com esse olhar, é essencial ressaltar o Manual da ABLGT (MARTINS et al, 2009),
que orienta os meios de comunicação em zelar para que suas referências aos LGBTI+
respeitem as particularidades desse grupo, não alimentando preconceitos, os induzindo
a um sentimento de menos valia e desprezo . Logo, ao não fomentar um debate sobre
o tema, não problematizar a violência contra essa população e apenas questionar qual
última música o ouvinte gostaria de escutar antes de morrer, a campanha estimula
justamente o contrário do que o Manual preconiza, já que banaliza o assunto e carrega
um sentimento de conformidade sobre a violência LGBTIfóbica, ignorando o sentido
de luta da data, interferindo e reduzindo o diálogo que o movimento tenta construir
com a mídia.
Em analogia com esse pensamento, DIAS (2002) afirma que as minorias
políticas possuem traços culturais ou físicos característicos que são desvalorizados e
invisibilizados da cultura da maioria, sendo assim excluídos e discriminados. Seria ideal,
diante do simbolismo e resistência que a data da campanha em questão representa,
Ciências da Comunicação
Capítulo 16
188
utilizar-se de recursos e estratégias publicitárias que visassem a visibilização adequada
e respeitosa da população LGBTI+, a fim de retirá-los desse processo segregador e
visibilizar suas reivindicações.
Outrossim, o objeto de estudo ainda levantou o questão do LGBTI+ como cidadãos
de direitos. Vivarta (2006) aponta que existe uma compreensão de que o branco,
heteressexual, adulto, homem e com dinheiro possui mais direitos do que os outros, os
que não pertencem a esse perfil. As minorias, acabam sendo não reconhecidos com
os mesmo direitos, enquadrando-se também na definição de DIAS (2002) de maioria
e minoria. Aliado a isso, temos a noção de que “as imagens intencionais transmitidas
pelos meios de comunicação são consumidas inocentemente pelo público, que não as
vê como sistemas de valores, mas como fatos dados, um processo natural”. (ROSO et
al., 2002, p. 75). Assim, ao banalizar a LGBTIfobia, a campanha acaba por colocá-la
como um produto da realidade que não podemos combater, cujo cerne é tão inquebrável
que o máximo de luta alcançado é escolher sua última música. A campanha perpassa
também esse ideal para as pessoas que não formam o seu público-alvo, aqueles que
não vão prestar atenção e interpretar a mensagem, apenas tomá-la como verdade,
incentivando a perpetuação da violência.
Por fim, é necessário perceber que diante de toda a repercussão negativa que
a campanha obteve, a empresa não se pronunciou. Essa ausência denota falta de
empatia com as necessidades sociais da população LGBTI+, em que muitos veículos
midiáticos se apropriam de discursos e datas de empoderamentos de minorias apenas
com intenções de abraçar esses públicos, sem necessariamente saber ou pesquisar
sobre suas demandas e, como foi o caso do nosso objeto, muitas vezes reforçam
discriminações inviabilizam lutas, o que indica uma falta de entendimento da linguagem
e das lutas sociais, bem como de uma adequação publicitária adequada.
5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do caminho que este trabalho percorreu, faz-se necessário voltar a atenção
para a forma como a campanha foi criada. A publicidade não conseguiu utilizar-se
de sua capacidade transgressora, pois retoma os estereótipos vigentes e assim os
atualiza e propaga (DIAS, 2017). Entretanto, a campanha poderia ter contribuído
para a superação do senso comum sobre a população LGBTI+, e ainda além,
poderia ter estimulado a criticidade para a maneira como essa população tem sido
majoritariamente referenciada, retirando-a de seu patamar comumente invisibilizado
e/ou caricato, para, assim, promover a conscientização e ações que permitissem sua
igualdade na sociedade.
É crucial também explicitar nesta discussão o papel da resposta social na
internet, pois estas interações nas mídias sociais influenciaram positivamente na
tentativa de inserção adequada da minoria social em questão, tendo sido fundamental
Ciências da Comunicação
Capítulo 16
189
na exposição do descontentamento com a campanha e na reivindicação dos direitos
deste grupo social.
Como foi mostrado, quando se emite uma mensagem, a interpretação vai além
do que é dito: ela alcança o modo de se dizer, que não foi dito, o porque disso ter sido
omitido e a forma como o consumidor vai receber isso4. A construção da campanha
da Jovem Pan mostrou exatamente isso, a maneira como, mesmo que inconsciente,
a publicidade ainda está impregnada de estereótipos que, mesmo pretendendo falar
por várias vozes, acaba passando uma mensagem ultrapassada. A campanha poderia
ter conversado com um assunto realmente importante, no contexto certo, no entanto,
optou pelo modo inadequado de dizer.
Portanto, desta análise surge o incentivo e uma fonte de pesquisa para que
falhas como a apresentada anteriormente não se repitam. Sendo necessário, portanto,
que os ideais éticos preconizados aos publicitários e à publicidade sejam seguidos,
e, assim, possam realizar seus trabalhos prezando sempre pelo reconhecimento e
a promoção de igualdade entre todos na sociedade, como é previsto na Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
REFERÊNCIAS
APP - Associação dos Profissionais de Propaganda. Código de Ética dos Profissionais da
Propaganda. Outubro de 1957, revisado em 2014. Disponível em: http://appbrasil.org.br/app-brasil/
servicos-e-manuais/codigo-de-etica-dos-profissionais-de-propaganda/>. Acesso em: 09 jun. 2018
BORGES, Thais Machado. Passando dos limites? Mídia e transgressão – Casos brasileiros.
Issue No 2, Stockholm Review Of Latin American Studies, November 2007.
FARINA; Modesto; PEREZ, Clotilde; BASTOS; Dorinho. Psicodinâmica das cores em
comunicação. São Paulo. Edgard Blucher. ed.5. 2006. Disponível em: <ttp://www.youblisher.com/
p/892657-Psicodinamica-das-cores-em-Comunicacao/ >. Acesso em: 09 jun. 2018.
HELLER, Eva. A psicologia das cores: como as cores afetam a emoção e a razão. São Paulo:
Gustavo Gili, 2013.
KOTLER, Philip; KELLER, Kevin. Administração de Marketing. São Paulo: Prentice Hall, 2000.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: <https://goo.gl/arJCv1>
Acesso em: 09 jun. 2018.
MARTINS, Fernando; ROMÃO, Lilian; LIDNER, Liandro; REIS, Toni. Manual de Comunicação LGBT.
Associação brasileira de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexuais. Ltda. 2009. Disponível
em: <https://goo.gl/EAYP1P>. Acesso em: 09 jun. 2018.
MOTT, Luiz; MICHELS, Eduardo; PAULINHO. Pessoas LGBT mortas no Brasil: relatório 2017.
Grupo Gay da Bahia. 2017. Disponível em: <https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/12/
relatorio-2081.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2018.
4. Ver artigo: ROSO, Adriane, et al. Cultura e ideologia: a mídia revelando estereótipos raciais e de gênero, publicado na revista Psicologia e Sociedade em 2002.
Ciências da Comunicação
Capítulo 16
190
RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009
ROSO, Adriane; STREY, M. N.; GUARESCHI, Pedrinho; BUENO, S. M. N. Cultura e Ideologia: a
mídia revelando estereótipos raciais e de gênero. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica, 2002.
SANT’ANNA, Armando et al. Propaganda: teoria, técnica e prática. São Paulo: Cengage Learning,
2015.
VIVARTA, Veet; CANELA, Guilherme. Mídia e Direitos Humanos. Brasília: ANDI, Secretaria Especial
dos Direitos Humanos, 2006.
Ciências da Comunicação
Capítulo 16
191
CAPÍTULO 17
EVIDÊNCIAS E SILÊNCIAMENTOS NOS DISCURSOS
DE LÁGRIMAS CONTRA A POLÍTICA DE TOLERÂNCIA
ZERO ANTI-IMIGRAÇÃO DOS USA
Magali Simone de Oliveira
Jornalista, graduada pela PUC/MG, mestre em
Letras pela UFSJ e doutoranda em Estudos de
Linguagem, na linha de Análise do Discurso
pelo CEFET-MG. E-mail: magalisimone1@
gmail.com. Artigo apresentado na disciplina
Tópicos Especiais em Estudos de Linguagens:
Silenciamento e Evidenciamento no discurso.
RESUMO: O objetivo deste artigo é evidenciar
as estratégias discursivas utilizadas pelos
adversários do presidente Donald Trump contra
a continuação da “politica de tolerância zero”
estadunidense, calcada na separação entre
os “imigrantes ilegais” e suas crianças, detidas
em jaulas e/ou em presídios, sem possibilidade
de contato com seus pais ou responsáveis. A
partir de teóricos como Pêcheux (In: Gadet e
Hak, 2014) e Orlandi (2003) e (2007), pretendese identificar e descrever o que se salienta e
o que se se ofusca nestes discursos repletos
de silêncios. Este artigo também se propõe
a refletir como os discursos fundadores
mundiais e estadonidenses ajudam a construir
representações identitárias capazes de elaborar
discursos que dão novos sentidos às várias
formas de silêncio. (Orlandi, 2007).
PALAVRAS-CHAVE: Formações imaginárias;
discurso fundador, discursos do silêncio;
imigrantes não-legais, crianças enjauladas.
Ciências da Comunicação
ABSTRACT: The objective of this article is to
highlight the discursive strategies used by
President Donald Trump’s opponents against
the continuation of the US “zero tolerance
policy”, based on the separation between “illegal
immigrants” and their children, held in cages and
/ or prisons, without possibility of contact with
their parents or guardians. From the theorists
such as Pêcheux (In: Gadet and Hak, 2014)
and Orlandi (2003) and (2007), it is intended to
identify and describe what stands out and what
is obscured in these discourses full of silences.
This article also aims to reflect how the founding
discourses of the world and the United States
help to construct representations capable of
elaborating discourses that give new meanings
to the various forms of silence. (Orlandi, 2007).
KEYWORDS: Imaginary formations; discourse
of the founder, discourses of silence; non-legal
immigrants, caged children.
1 | INTRODUÇÃO
Em vários países, à ideia de que a família
é a base da sociedade é um discurso fundador.
Para Pêcheux (In: Gadet, 2014) o discurso,
como parte da linguagem, é constituído ao
mesmo tempo por caraterísticas sociais e
históricas em que se confrontam sujeitos
que ocupam diferentes ‘lugares” em uma
Capítulo 17
192
determinada sociedade. Tal premissa ajuda a identificar e descrever os efeitos de
sentido causados pelo acirramento da política de tolerância zero à imigração ilegal
que causou escândalo ao separar “imigrantes ilegais” de seus filhos, sobrinhos, netos
ou tutelados menoes de idade.
Desde o dia 19 de junho de 2018, imagens de crianças, algumas bem pequenas,
detidas em jaulas, chorando e gritando por seus pais, em presídios e abrigos do Texas,
nos Estados Unidos da América ganhou os holofotes da mídia em todo o mndo. A
medida refletia o acirramento da política de tolerância zero à imigração ilegal imposta
pelo presidente deste país, o republicano, Donald Trump.
De acordo com o site News/BBC Brasil 1, durante o governo do democrata Barack
Obama, imigrantes sem documentos condenados por crimes graves ou considerados
“ameaça à segurança nacional” eram deportados. Os flagrados sem documentação
eram presos, mas havia atenuantes neste tipo de julgamento. Além da possibilidade de
entrar com recurso e de pagar fiança; laços com a comunidade e o fato de trabalharem
eram levados em conta no momento de determinar ou não a deportação.2
Já com Trump, ainda segundo o site da BBC, qualquer tipo de infração ou crime
pode justificar a expulsão do país. Disposto a intensificar a política de retaliação à
imigração ilegal, o presidente estadunidense decretou que filhos, sobrinhos, netos
ou tutelados detidos junto aos “imigrantes ilegais” fossem mantidos em presídios e
abrigos separados de seus familitares e tutores. De abril até junho de 2018 mais de
2000 crianças foram submetidas a este tipo de “punição”.
Mas as imagens destes meninos e meninas enjaulados, chorando, sem os
cuidados de seus familiares colocou a política de tolerância zero em xeque. Integrantes
da mídia e à opinião pública estadunidense e internacional, opositores do partido
Democrata, e até correligionários de Trump, do partido Republicano criticaram a
adoção de tal medida.
Não bastasse isso, a separação das crianças de seus pais foi criticada ainda pela
própria esposa do presidente, Melania Trump3 que, em um raríssimo prounciamento,
disse em nota divulgada à imprensa, que “detestava ver as crianças sepraradas de
suas famílias” e que esperava que imigrantes e o governo chegassem a um consenso.
A ex-primeira-dama, Laura Bush, mulher do Republicano George W. Bush, em
artigo no “Washington Post”, disse que a separação das crianças “parte seu coração”.
Ela também acrescentou “Eu moro em estado fronteiriço ao “Texas”. Eu aprecio a
necessidade de cumprir a lei e proteger nossas fronteiras; mas esta política de
tolerância zero é cruel. É imoral” 4
1. Brooks, Dario. BBC Mundo. 5 questões para entender como é o processo de deportação de imigrantes ilegais
nos Estados Unidos. Atualizado em 22 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/
internacional-39049799
2. Os democratas aprovaram uma lei proibindo que crianças fossem detidas em presídios com seus pais, mas a
separação , segundo o site, era uma exceção. Em geral, pais e filhos eram deportados.
3. Jornal O TEMPO/RIO EL PASO. Avó brasileira está separada do neto autista há dez meses. Jornal O TEMPO.
Número 7859. Ano 22. Pág. 19/06/2018.
4. Idem
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
193
Pelo menos quatro estados 5 se recusaram a cumprir à ordem dada por Trump
de enviar reforços militaries para as fronteiras: Colorado, Nova York, Mariland e
Massachusetts.
O governador de Nova York, o democrata Andrew Cuomo6, em Twitter divulgado
no dia 19 de junho declarou: “Não seremos cúmplices dessa tragédia humana. Diante
do tratamento desumano do governo federal com as famílias de imigrantes, Nova York
não irá contribuir com a Guarda Nacional da Fronteira”.
As críticas à detenção das crianças também serviram como justificativa para
que os Estados Unidos decidissem abandonar a Comissão de Direitos Humanos da
ONU, medida anunciada no dia 19 de junho pelo governo Trump. O acirramento desta
política foi classificado como uma “medida impiedosa” por , Zeid Ra´ad al Husseim,
alto comissário da ONU para Direitos Humanos, entidade que também questiona
outras medidas adotadas pelos USA.
Embora não tenha o hábito de recuar em suas decisões; Trump assumiu, segundo
matéria do jornal O TEMPO7, ter ficado “tocado pela repetição das cenas divulgadas
pela mídia que mostraram as crianças chorando”. Então, no dia 21 de junho de 2018,
ele assinou um decreto determinando que as crianças fiquem no mesmo centro de
detenção que seus pais8. E justificou: “todos com coração agiriam da mesma forma”.
As imagens de meninos e meninas, enjaulados, chamando em espanhol por
seus pais, de acordo com análise feita neste artigo, articulou três tipos de elementos
consonantes ou relacionados à Análise do Discurso proposta por Pechêux e Orlandi
(2007): i- as formações imaginárias9 e ii- o discurso fundador10 e iii- os discursos do
silêncio11.
Este artigo parte da pretensão de se fazer uma análise, usando tais conceitos,
para entender as estratégias discursivas utilizadas pelos adversários e alidados de
Trump para criticar a intensificação da política de tolerância zero à entrada ilegal de
imigrantes nas fronteiras dos Estados Unidos; e do próprio presidente para justificar
seu recuo; o que deverá ser feito a seguir.
2 | COMO AS IMAGENS DAS CRIANÇAS ENJAULADAS SE RELACIONAM COM
AS FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS DE PÊCHEUX (2014) E OS DISCURSOS DE
5. Jornal O TEMPO/WASHINGTON. Quatro Estados desafiam Trump. Jornal O TEMPO. Número 7860. Ano 22.
Pág. 15. Publicado em 20/06/2018.
6. Idem.
7. Jornal O TEMPO/WASHINGTON. Trump recua e suspende a separação de crianças. Jornal O TEMPO. Número
7861. Ano 22. Pág. 16. Publicado em 21/06/2018.
8. Idem
9. Pechêux (In:Gadet e Hak, 2014).
10. Orlandi (2003).
11. Orlandi (2007).
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
194
SILÊNCIO DE ORLANDI (2007)
Em uma explicação rasa; às formações imaginárias, segundo Pechêux (In: Gadet,
2014) remetem às posições, ou papéis sociais, que o sujeito assume em uma dada
situação comunicativa. Assim, as formações imaginárias são elementos que designam
o “lugar”, (ou papéis sociais) que os sujeitos como locutores e interlocutores atribuem
cada um a si próprios e ao outro em um determinado ato de comunicação.
…esses lugares estão representados nos processos discursivos que são
colocados em jogo. Entretanto, seria ingênuo supor que o lugar como feixe de
traços objetivos funciona como tal no interior do processo discursivo; ele se
encontra aí representado, isto é, presente, mas transformado, em outros termos, o
que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que
designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro. Se assim ocorre,
existem nos mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que
estabelecem as relações (objetivamente definíveis) e as posições (representações
dessas situações) (Pêcheux In: Gadet, 2014, pág. 81).
Assim para Pêcheux (In: Gadet, 2014) todo processo discursivo relaciona-
se com as formações imaginárias (representações que cada um faz de si e de seu
interlocutor) baseadas nas seguintes relações de força: i- quem sou eu para lhe
falar assim?(imagem que o locutor A faz de si); ii- quem é ele para que eu lhe fale
assim?(imagem que o interlocutor B faz do locutor A), iii-quem sou eu para eles me
falem assim (representação que o interloutor B faz de si mesmo) e iv- quem sou eu
para que ele me fale assim? ( representação que o locutor A faz do interlocutor B) .
Deste modo, as imagens das crianças enjauladas chorando se articulam com o
conceito de formações imaginárias porque os sujeitos e seus interlocutores, segundo
Pêcheux (2014), não são apenas pessoas que dialogam, mas são perpassados pelos
papéis sociais que ocupam, pelo momento histórico que vivenciam e pela ideologia
que marca o tempo e o espaço onde estão inseridos.
De um lado, denominadas como locutor A, as crianças projetam imagens do
lugar que ocupam (quem sou eu para lhes falar assim?); do outro; a imagem do lugar
de B (adversários, opositores, mídia, opinião pública estadunidense e mundial, aliados
de Trump contrários à política de tolerância zero) faz do locutor A. Nesta relação de
forças há também a imagem que o locutor B faz de si mesmo e a forma como o locutor
A percebe o locutor B.
Assim, descrevemos à análise de tais representações feitas por meio do quadro
a seguir:
1. Quadro representando o jogo de formações imaginárias nas imagens de
crianças enjauladas
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
195
Expressões que designam
as formações imaginárias
Significado da expressão
Questão implícita cuja
resposta subentende
a formação imaginária
correspondente
A para B- Crianças que não Imagem que o locutor A faz Quem sou eu para lhe falar
podem
dizer,
reivinidicar, se de si mesmo.
assim? As cianças separadas
denunciar, expõem a crueldade
de seus pais, classificados
da situação. Ao chorar e
como “criminosos”, não têm
chamar: “pai, “mãe”, “tio
voz. Mas em seu discurso de
(a)”,”avó (a)”. Ou ao responder,
lágrimas, em seu (não) poder
boa parte em espanhol, às
dizer - pois são menores e
perguntas dos repórteres.
não respondem por seus
“Sou da Guatemala, de Costa
atos – explicitam, salientam
Rica, do México, por exemplo,
a crueldade da política de
provocam sentimentos de
tolerância zero à imigração do
solidariedade e empatia.
governo Trump.
B - Todos que se posicionam
contra
a
separação
as
crianças e emprestam suas
vozes às crianças sem voz,
para denunciar a crueldade da
situação.
Ao
assumirem-se
como
interlocutores das crianças,
os adversários da política
de
tolerância
zero
à
imigração chamam para si a
responsabilidade de exigirem
a
reunião
das
famílias
constituídas pelos imigrantes
ilegais.
B para A
Imagem do lugar de B para
o sujeito colocado A
Imagem do lugar de B para
o sujeito colocado B
Quem sou eu para lhe falar
assim? Mais que adversários
e aliados de Trump contra a
política de tolerância zero,
estas pessoas se tornaramse porta-vozes de A, que não
têm legitimidade para dizer, ou
reivindicar algo.
Quem sou eu para que ele me
fale assim? São pessoas que
tem consciência de seu poder
de intervir a favor das crianças
porque “tiveram seu coração
partido”,
“por desejarem
a união das famílias”, “por
classificarem tal prática como
“cruel”, ou uma “tragédia” e ou
que se recusam a obedecer as
ordens do presidente. Como
cidadãos cobram o fim de
uma prática que repudiam: a
separação dos pais e tutores
de crianças indefesas.
Imagem do lugar de A para o Quem sou eu para que eles
sujeito colocado em B
me falem assim? Os aliados
e adversários de Trump se
reconhecem como os únicos
com poder de exigir o fim da
separação das famílias de
imigrantes ilegais. Assumem,
assim, o dever de se
comportar como porta-vozes
das crianças.
Assim, de acordo com a análise dessas formações imaginárias; à luz de
Pêcheux (In: Gadet e Hak, 2014), fica claro a desigualdade das imagens dos sujeitos
enunciadores dentro do discurso. As crianças enjauladas, vítimas do endurecimento
da política contra à imigração ilegal, não ocupam os mesmos papéis sociais que seus
defensores. Deste modo, articulam formações discursivas e ideológicas distintas das
dos seus porta-vozes.
Suas lágrimas não são secadas. Estas crianças, algumas presas há quatro
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
196
meses, chamam os pais, os avós, os tios - ou outros responsáveis que ultrapassaram
a fronteira com eles- mas só ouvem o silêncio. A seus pais, familiares e responsáveis
também detidos, e, que, como eles (não) podem falar, é imposto “um silenciamento
como parte da identidade, pois é parte constitutiva do processo de identificação, é o
que lhe dá espaço diferencial, condição de movimento…” (Orlandi, 2007, pág. 49).
Desta forma, segundo categorização de Orlandi(2007), os imigrantes ilegais são
silenciados pelo “silêncio fundante”.
Há pois, uma declinação política da significação que resulta no silenciamento como
forma não de calar, mas de dizer “uma coisa”, para não deixar de dizer “outras”. Ou
seja, o silêncio recorta o dizer. Esta é sua dimensão política. Essa dimensão política
do silêncio está, no entanto, assentada sobre o fato de que o silêncio faz parte de
todo o processo de significação (dimensão fundante do silêncio). Sem silêncio, não
há sentido porque o silêncio é a matéria significativa por excelência, ou como diz
Witgenstein (1961): “a relação do silêncio com a linguagem mostra a constituição
essencial da linguagem”. (Orlandi, 2007, pág. 54).
Deste modo, o silenciamento das crianças em seu discurso de lágirmas, segundo
Orlandi (2007), é perpassado por sentidos. Embora não lhes seja concedido o direito
legítimo ao dizer – são menores de idade e não responsáveis por seus atos- o fato de
estarem dentro de jaulas, de terem sido detidas sem terem culpa, de chamarem por
seus pais - soa como gritos que expõem a crueldade da intensificação da política de
tolerância zero à imigração.
Já as manifestações contrárias à política de Trump; as pessoas que deram
ouvidos aos discursos de dor silenciados das crianças e seus familiares assumem
como papéis sociais a função de porta-vozes destas crianças. Quebram o silêncio
dos silenciados, mas por meio de um novo tipo de discurso do silêncio: o silêncio
constitutivo: calcado na premissa , segundo Orlandi (2007), de que para dizer algo, é
preciso não dizer alguma coisa. Assim, necessariamente, ao se dizer algo, se deixa de
falar aquilo que não se considerou relevante.
Segundo Orlandi (2007), a análise das formas de silêncio na linguagem é algo
complexo. Deve-se partir não só de “marcas”, “conjecturas”, mas também do caráter
histórico (discursivo) e também levar em conta a interdiscursividade. Ainda é necessário
trabalhar com a noção de completude/incompletude e analisar as “figuras” como
produtoras do processo de deslocamento retórico “como sintomas”, da marginalização
dos processos de significação. Ainda é preciso levar em conta os múltiplos textos, as
paráfrases.
Deste modo, “ao falar pelos imigrantes ilegais”; aliados e adversários de Trump,
cujos discursos foram expostos neste artigo, limitaram os “sentidos” por eles articulados
para protestar contra a política de tolerância zero à imigração a uma construção
discursiva constituída por sintagmas verbais e ou adjetivais de caráter patêmico, ou
seja, emocional.
São exemplos destas estratégias discursivas o uso de expressões como:
“detestava ver as crianças sepraradas de suas famílias”; “parte meu coração”, “esta
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
197
política de tolerância é cruel. E imoral”; “Não seremos cúmplices dessa tragédia
humana”, ou “medida impiedosa”.
Ao se posicionarem usando tais estratégias discursivas que remetem a sentidos
patêmicos; salientando as emoções negativas de tristeza, solidariedade, angústia
causada
pela separação e encareceramento de crianças (não responsáveis por
ultrapassarem a fronteira de forma ilegal); os opositores às medidas de separação
das famílias de “imigrantes ilegais”; não expõem discursos de outra ordem, são assim,
ignorados.
Alguns, como Laura Bush, dão dicas do que é silenciado. Ela assume defender
“a lei e o cumprimento das normas que limitam a entrada de imigrantes nos Estados
Unidos”. Como ela, os demais defensores das crianças não discutem as regras que
fundamentam a legislação de contenção à imigração, ou os critérios que definem quais
imigrantes são desejáveis ou não.
Ou ainda: não há discursos questionando possíveis causas da imigração como
a interferência político-econômica dos Estados Unidos nos países subdesenvolvidos–
como o estímulo às ditaduras militares instituídas na América do Sul, no século
passado - ou à ações de empresas estadunidenses como exploradoras de madeira
na Amazônia brasileira, taxações nas importações de produtos oriundos destes países
e a compra de parte do pré-sal pelo USA.
Tais questões, em sua interdisciplinariedade com discursos de partidos e
ideológos da esquerda sul-americana, não são discutidas sequer pela mídia. Também
não se questiona quem está mais suscetível a ser considerado indesejável. São
os negros? Os latinos? Todos originados de países subdesenvolvidos (pobres)?
Os que apresentam algum tipo de doença
ou necessidade especial? São critérios
ideológicos? Questões religiosas? Justificativas relacionadas ao tipo de atividade que
estes imigrantes pretendem exercer no país: trabalho, estudo ou lazer?
O silêncio sobre estas nuances ideológicas e políticas está carregado de sentidos
constituídos por incompletudes. Assim, ainda segundo Orlandi (2007), mesmo que
não tenham consciência do que dizem ao não dizer, os sujeitos estabelecem laços
com o silêncio. Desta maneira, o que é silenciado é perpassado, segundo Orlandi
(2007) por sentidos polissêmicos constituídos pela presença dos sujeitos sociais em
seus discursos
.…o silêncio é mais ainda. – ele significa por si mesmo: “O silêncio não são palavras
silenciadas que guardam um silêncio sem dizer. O silêncio guarda um outro
segredo que o movimento das palavras não atinge” (M. Le Bot, 1984) (Orlandi,
2007, pág. 69).
Desta forma, quem exige o fim da sepração das crianças de seus pais; não
discursa sobre o lema “América para americanos”, uma das principais bandeiras de
Donald Trump, enquanto candidato. Apenas exigem o fim da crueldade imposta às
crianças. A reviravolta no caso, quando Trump decidiu revogar o decreto e reunir
os meninos e meninas detidos às suas respectivas famílias; remete a outro tipo de
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
198
formação imaginária, segundo Pêcheux (In Gadet e Hak, 2014).
Apesar da disparidade de visadas dos sujeitos do discurso que se confrontam em
relação de força díspares; os sentidos articulados nesta nova composição de agentes
sociais articulam formações discursivas e ideológicas semelhantes como demonstrado
no quadro a seguir:
2. b- Quadro representando o jogo de formações imaginárias nas imagens entre
opositores e Trump crianças enjauladas
Expressões que designam
as formações imaginárias
A –Aliados e opositores
de Trump que agem como
porta-vozes das crianças
e exigem, por meio de
argumentos patêmicos,
o fim da separação das
famílias dos imigrantes
ilegais
B para A
Significado da expressão
Imagem do lugar A para o
sujeito colocado em A.
Imagem do lugar de B para
o sujeito colocado A
Imagem do lugar de B para
o sujeito colocado B
Questão implícita cuja
resposta subentende
a formação imaginária
correspondente
Quem sou eu para lhe
falar assim? São familiares
(a mulher), republicanos (a
ex-mulher de George W.
Bush); a mídia; governadores
de quatro Estados, o alto
comissário da ONU para os
Direitos Humanos, a opínião
pública, eleitores de Trump
e seu partido. Valem-se de
um discurso patêmico para
exigir o fim da separação das
famílias dos imigrantes ilegais.
Quem é ele para que eu lhe
fale assim? O presidente dos
Etados Unidos, Donald Trump,
único, um dos homens mais
poderosos do mundo e único
capaz de revogar o decreto
e reunir às crianças às suas
famílias. Em um regime
democrático, ele deve ouvir
às cobranças dos diversos
agentes políticos desta
sociedade.
Quem sou eu para que
eles me falem assim? É
o presidente dos Estados
Unidos. Como político, deve
primar por sua imagem
arranhada pela crueldade
imputada às crianças, objeto
de várias críticas da mídia, e
dos demais agentes sociais
como opositores, seus
correligionários, opinião
pública (eleitores). Acata às
exigências , também usando
discursos patêmicos.
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
199
A para B
Imagem do lugar de A para
o sujeito colocado em B
Quem sou eu para que ele
me fale assim? Os aliados,
opositores, familiares, mídia,
órgõas internacionais, opiniãopública e parte do eleitorado
consciente do poder que
têm cobram, por meio de
discursos emotivos à reunião
das famílias.
Desta maneira, como na primeira análise do quadro 1, todos os discursos expostos
no quadro 2 - a despeito de a relação de força entre os sujeitos ser menos desigual do
observado no quadro 1- articulam formações discursivas e ideológicas semelhantes,
baseando-se em sentidos patêmicos, também perpassados pelo silêncio classificado
como Orlandi (2007) como constitutivo.
O que é alvo de discussão de opositores e do próprio Trump são as doxas,
os valores, as crenças da sociedade estadunidense sobre os limites da punição às
crianças, que não podem ser responsabilizadas pela decisão de seus pais e tutores
de ultrapassar a fronteira de forma classificada como “ilegal” pela justiça deste país.
Trump admite ter sido “tocado pela repetição das cenas divulgadas pela mídia que
mostraram as crianças chorando”. Ele também reconhece que todos “com coração”,
agiriam da mesma forma (recuar), justificando, deste modo, sua decisão de reunir as
famílias de imigrantes ilegais.
Ficam assim silenciados nos discursos articulados pelos sujeitos A (porta-
vozes das crianças) e pelo interlocutor B, Trump. As explicações patêmcias silenciam
“explicações” às causas da imigração. Ao explorarem economicamente, de forma
predatória, os países subdesenvolvidos, contraditoriamente, os EUA, criam um
problema para si: aumentam o número de pessoas que ultrapassam as fronteiras de
forma ilegal em busca das promessas de felicidade associadas ao american way of
life.
3 | AS
CRIANÇAS
ENJAULADAS
E
SUA RELAÇÃO
COM
DISCURSOS
FUNDADORES GLOBALIZANTES
O caráter patêmico das manifestações contrárias à política de Trump se opondo
à separação das crianças e de seus pais se articulam com doxas ligadas a discursos
fundadores como a importância dos laços familiares na constituição de indivíduos
capazes de respeitar normas e agir conforme os valores hegemônicos de uma dada
sociedade.
Assim, segundo Calhau (2005, apud Portugal)12, a falta de estrutura familiar
12. Portugal, Maria G. O papel da família em relação à criminalidade. Jurídico Certo. Publicação da Instituição
Jurídico Certo. Publicado em 28/02/2018. Disponível em: https://juridicocerto.com/p/advocacia-maria-por/artigos/o-papel-da-familia-em-relacao-a-criminalidade-4340#
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
200
pode gerar adultos considerados problemáticos, com dificuldade de se relacionar
socialmente, ou que desenvolvam patologias como o vício das drogas e do alcoolismo,
muitas vezes associado à prática de delitos.
Dentro desse contexto, pode-se afirmar que existe uma relação íntima sobre a
criminalidade e a base educacional oriunda da família. Assim, as transformações
estruturais são notadas pelo acerco de ações iniciando com a publicação do
movimento e culminando com o concretizar. Atualmente, na maioria dos índices
de criminalidade analisados na sociedade pode-se observar a predominância
de uma grande participação de jovens, em sua maioria de origem de famílias
desestruturadas (Jurídico Certo, 2018).13
Segundo Kellner (2001), as narrativas veiculadas pela mídia estadunidense,
constituída pela televisão, cinema, rádio, ou outras publicações a que os trabalhadores
têm acesso em seu tempo de lazer servem como modelos de valores sociais instituindo
o que deve ser considerado positivo ou negativo, moral ou imoral, sucesso ou a falta
dele, e, assim por diante.
Deste modo, o cinema americano, assim como algumas séries de sucesso
produzidas neste país ajudam a difundir doxas hegemônicas capitalistas, divulgando
valores ou instituições como a família – que tem apelo religioso, não só por sua relação
com os princípios cristãos de sagrada família14, mas também pelos rituais como o
casamento e a relação de respeito e hierarquia que, supostamente, deve nortear as
relações familiares.
Assim, por exemplo, na década de 1980, filmes como Atração Fatal15 constituiu-se
como um com forte apelo moralista em defesa da instituição casamento monogâmico.
Ainda conforme Kellner (2001), a antagonista, Alex (Glen Glose), seduz Dan Galanger
(Michael Douglas) homem casado, integrante de uma família bem estruturada que
passa a ser perseguido por esta mulher que se torna a vilã ao tentar destruir o
casamento (instituição sagrada, base da família) de seu amado.
13. Tal discurso reverbera o conceito de Althusser (1980) que classifica a família como um “aparelho ideológico
do Estado”, ou seja, uma instituição que padroniza gostos, valores, comportamentos adequados à ideologia hegemônica imposta pela elite.
14. O Papa João Paulo II teria classificado a família como “Santuário da vida”. Ainda segundo a visão deste papa,
seria missão das famílias “guardar, revelar e comunicar ao mundo o amor e a vida. Também é ressaltado que Jesus
de Nazaré teria escolhido para constituir sua Sagrada Família, um pai adotivo (José) e sua esposa, Maria, que o
teria concebido virgem. Tal premissa é defendida no artigo escrito por Aquino, Felipe “ A Sagrada Família hoje”, do
site da emissora católica Canção Nova. Não há data de publicação. Visto em 04/06/2018. Dispónível em : https://
formacao.cancaonova.com/familia/a-sagrada-familia-hoje/ Sentido semelhante é atribuído também por parte dos
evangélicos que consideram a família de Jesus constituída por pessoas guiadas por Deus. Ver em : A Sagrada Família. Fuga para o Egito. Blog “ Atualidades da OESI- Ordem dos Servos Intercessores”.Publicado em setembro de
2013.Visto em 04/06/2018.Disponível em: http://ordemevangelica.blogspot.com/2013/12/a-sagrada-familia.html.
15 Dirigido por Adrian Lyne, o filme lançado pela Paramount Pictures, em 1987, se tornou “queiridinho” do público
em todo o mundo, tornando-se cult. Foi indicado a três Oscars: melhor diretor Adrian Lyne, melhor atriz, Glen Glose
e melhor atriz coadjuvante, Anne Archer. Visto em 04/06/2018. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/
filme-3106/
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
201
O outro lado de Atração fatal é a moral da história para os homens, pois os adverte
de que caso se desviassem da monogamia matrimonial – nem que por uma só vez, o resultado são as desgraças e a destruição daquilo que é apresentado como a
coisa mais importante da vida [no caso a família, grifo meu] (Kellner, 2001, págs.
151-152).
Seguindo a mesma lógica, outras séries mais recentes, algumas dedicadas à
adolescentes como The Vampire Diares16, ou mesmo Game of Thrones17, também
mantém uma representação da família, que por meio destas narrativas têm acesso
a padronização de gostos, valores, crenças (doxas) que, segundo Kellner (2001),
“fornece o material com que muitas pessoas constroem o senso de “classe”, de etnia
e raça, de nacionalidade, de sexualidade , de “nós” e “eles”.
É interessante que as representações de núcleos familiares nas séries da TV
estadunidense, sobretudo naquelas direcionadas ao público adolescente, como The
Originals18 parecem ter sido reatualizadas. Questões como divórcio, ou as novas
configurações famíliares – alguns dos integrantes desta família e outros personagens
importantes são homossexuais - também são representadas e defendidas como
instituições base da sociedade estadunidense.
Na contemporaneidade observa-se várias composições familiares constituídas
pelos laços da aliança. A consanguinidade deixou de ser condição necessária e
obrigatória e cedeu espaço ao afeto em questões de laços e obrigações familiares.
Assim, deixou-se de falar em família, mas em famílias, dada a existência de diversas
configurações familiares. (...). A concepção da família nuclear constituída por pai,
mãe e filhos a que estávamos habituados não existe mais como modelo único; a
sociedade passou por inúmeras transformações e com ela o comportamento dos
seus integrantes e da vida familiar. (Wirth, 2013, p.01).
Assim, a separação das famílias de imigrantes ilegais de suas crianças
articulam interdiscursos que remetem ao que Orlandi (2003) denomina de “discursos
fundadores”, ou narrativas discursivas que fazem parte dos imaginários que permeiam
as diferentes imagens pelos quais uma nação se identifica ou se sente simbolicamente
representada. Assim:
Nós acrescentaríamos: enunciados, como os dos discursos fundadores, aqueles
que vão nos inventando, um passado inequívoco e empurrando um futuro pela
frente e nos dão a sensação de estarmos dentro de uma história de um mundo
16. “The Vampire Diare”s é uma série baseada no triângulo amoroso entre dois irmãos Damon e Stefan Salvatore
que disputam o amor da estudante Elena Gilbert, sem abrir mão da amizade que os une. Foi lançado em 2009,
pela emissora CVW e saiu do ar, em 2017, após oito temporadas. Foi exibido no Brasil pela MTV, SBT e está disponível na Netflix. Visto em 04/07/2018. Disponível em: pt.wikipedia.org/wiki/The_Vampire_Diaries_(série_de_televisão)#Exibição
17. Baseada na obra de George. R.R Martin “A song of ice and fire” e produzida pela HBO, Game of Thrones, ou
Got foi lançada em 2011. A nona e última temporada deve chegar ao público, por esta emissora a cabo, no ano que
vem. Também mostra brigas internas familiares e entre os diferentes clãs pelo poder, ou seja, o trono dos sete reinos. Têm fãs em todo o mundo. Visto em 04/07/2018. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Game_of_Thrones
18. Spin-off (série originada de outra, no caso, The Vampire Diaries, produzido pela emissora CVW. Está em
sua quinta e última temporada. Conta a história dos vampiros originais, a família MiKaelson, que vivem em New
Orleans. Eles enfrentam perigosos inimigos, e, apesar das brigas familiares tem como mote “Always and Forever”
mantra que sela o pacto de união eterna entre os irmãos e a defesa da família. Uma das personagens, Freya é
lésbica e se relaciona com Keeling. Na série Hope é filha de Niklaus Mikaelson e Hayley Marshal que se torna
amante, por vários episódios, do tio de sua filha, Elijah, situação aceita de forma natural. A série foi exibida até à
terceira temporada pela MTV brasileira.
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
202
conhecido: diga ao povo que eu fico, quem for brasileiro, siga-me, libertas que
sera tamem, independência ou morte, em se plantando tudo dá. (Orlandi, 2003,
pág. 12).
Desta maneira, as imagens das crianças enjauladas, gritando por seus pais
remeteram ainda a outros interdiscursos que remetem à discursos fundadores
internacionais do século XX, como os horrores impostos aos povos europeus vitimados
pelo nazismo.
Ao jogarem a bomba atômica no Japão, encerrando assim a Segunda Grande
Guerra Mundial; os Estados Unidos não só se tornaram os “grandes vitoriosos” de um
dos maiores conflitos internacionais até o presente momento; mas se consolidaram
como uma das maiores potências econômica e política, dando início a um outro tipo
de confronto: a Guerra Fria que dividiu o mundo em dois blocos: o capitalista (por eles
liderados) e o comunista (liderados pela URSS).
Como uma das principais nações responsáveis pelo fim do terror nazista; os
estadunidenses não parecem se sentir “confortáveis”, em reproduzir, por meio da
política de tolerância zero contra a imigração ilegal, representações de si que resignifiquem de alguma forma, imagens associadas, interdicusivamente, com os
horrores que remetem “ao legado” de Hitler e Mussolini: a morte de mais de 6 milhões
de seres humanos.
Assim, neste deslizamento de sentidos, as imagens das crianças enjauladas
também se relacionam, ou re-significam às imagens dos filhos de judeus; de
testemunhas de Jeová, de ciganos, adolescentes homossexuais, ou portadores de
necessidades especiais enviados aos campos de concentração, e, separados de seus
familiares para morrer.
A memória discursiva de tais comparações, no entanto, circulou nas mídias
sociais, como o Facebook, por meio de postagens anônimas, associando discursos
de Trump aos de Hitler como demonstrado abaixo19:
Figura 1- Como Hitler fez com os judeus, Trump defende que imigrantes ilegais não são
humanos
Desta forma, se para Hitler, pessoas de origem judia não poderiam ser
19. A tradução da imagem é a seguinte: judeus não são pessoas, eles são animais, Adolf Hitler. Imigrantes sem
documentos (ou ilegais) não são pessoas, eles são animais. A segunda frase é atribuída a Trump em artigo HYPENESS/da redação. Para Donald Trump, imigrantes ilegais não são “pessoas” e “sim animais”.
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
203
consideradas “humanas”, e sim classificadas como “animais”; para Trump20 e parte
de seus eleitoresl, há pessoas (sobretudo os africanos, latinos, pessoas cuja religião
ou ideologia possam ser consideradas ameaças à sociedade estadunidense) que,
supostamente, também não seriam “humanas”.
Como não humanos, tais homens, mulheres e crianças não estariam assim, aptos
a conseguirem os documentos exigidos para o visto necessário à imigração “legal”.
Por outro lado, o silêncio de políticos, da mídia, dos representantes de entidades
como a ONU, da Anistia Internacional, dos presidentes de países como o Brasil - que
teve cerca de 50 crianças separadas de seus pais neste processo – também está
impregnado de discursos perpassados por silêncios.
No mesmo dia em que seu marido revogou o decreto que ordenava a separação
das famílias de imigrantes ilegais, Melania Trump, em viagem ao Texas, para visitar as
crianças separadas de seus pais nos abrigos ali localizados, vestiu um casaco21 com
os seguintes dizeres “I really don’t care. Do u?22
No dia 30/06/201823 mais de 700 manifestações, em todos os estados do USA,
reuniram milhares de pessoas e ongs de ativistas contrários à separação das famílias
de imigrantes ilegais. Novamente, as estratégias discursivas, mesmo reverberando
discursos fundadores estadunidenses, foram perpassadas por doxas de defesa da
família e contrárias à possibilidade de associações interdiscursivas implícitas à práticas
cruíes do nazismo.
Dois dos participantes destas manifestações, identificados como Megan e Joshua
defenderam as famílias dos imigrantes ilegais. A primeira entrevistada disse que ser
mãe e que teve “seu coração partido ao ver filhos separados de suas mães”. “Não
posso acreditar que nós tratamos seres humanos assim.” Já Joshua, classificou como
“vergonhoso que isso esteja sendo feito em nome dos Estados Unidos”.
Desta forma, mesmo a articulação interdiscursiva com discursos fundadores
e com as imagens de como a sociedade estadunidense se percebe, também é
constituída por discursos patêmicos, perpassados por silêncios constitutivos, que em
seus ditos, não dizem, ou silenciam, questionamentos sobre o caráter epistemológico
das normas jurídicas que constituem as leis anti-imigração adotadas pelo país.
4 | DISCURSOS DE DESIGUALDADE QUE EVIDENCIAM OS DISCURSOS DE
20. Da Redação/ HYPNESS. Para Donald Trump imigrantes ilegais “não são pessoas” e sim “animais”. Publicado em maio de 2018. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2018/05/para-donald-trump-imigrantes-ilegais-nao-sao-pessoas-e-sim-animais/. Acesso em 24 de junho de 2018.
21. G1. Melania Trump usa casaco com frase “Eu realmente não me importo” ao viajar para visitar crianças na
fronteira. Publicado em 21/06/2018. Visto em 26/06/2018. Disponível em https://g1.globo.com/mundo/noticia/melania-trump-usa-casaco-com-frase-eu-realmente-nao-me-importo-para-visitar-criancas-na-fronteira.ghtml.
22. Embora tenha atibuído à associação da escolha do casaco usado nesta visita à fake news; o episódio fez com
que algumas marcas produzissem casacos semelhantes com o seguinte dizer “I really care, don´t u?. Elle. Drehmer, Raquel. Marcas criam respostas à jaqueta de Melania Trump. Publicado em 04/07/2018. Visto em 04/07/2018.
Disponível em: https://elle.abril.com.br/moda/resposta-a-jaqueta-melania-trump-visita-criancas-detidas/
23. G1- Manifestantes protestam nos Estados Unidos contra política de imigração de Trump. Jornal Nacional. Edição do dia 30/06/2018. Publicado dia 30/06/2018. Visto em 03/06/2018.
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
204
SILÊNCIOS DE LOOSERS E WINNERS
É comum ver em filmes e programas estadunidenses às expressões winners
(vencedores, quem se sobressai, é popular, ou ascende socialmente)” e loosers
(desajustados, pessoas que não se adequam aos padrões de sucesso desta
sociedade). Enquanto parte dos nascidos nos EUA expôs seu repúdio moral à política
de tolerância zero à imigração; os presidentes da maioria dos países de origem dos
imigrantes ilegais separados de suas crianças não se manifestaram publicamente
sobre a violência imputada a seus cidadãos.
A linguagem como uma prática social institui novos sentidos ao se mudar os
sujeitos do discurso e as formações ideológicas a que eles se filiam. Desta forma, do
lado dos loosers, ou dos líderes destes países entre eles Brasil, Guatemala e Costa
Rica, conscientes do que estava acontecendo, limitaram-se a acompanhar, por meio
de consulados de seus paíes nos Estados Unidos, a situação dos detidos, sem interferir
diretamente a favor dos cidadãos detidos.
Determinado pelo caráter fundador do silêncio, o silêncio constitutivo pertence à
própria ordem de sentido e preside qualquer produção de linguagem. Representa
a política do silêncio com um efeito de discurso que instala o anti-implícito. Se diz
“X” para não se dizer “Y”, este sendo o sentido a se descartar do dito. É o não dito
que se quer evitar...(Orladi, 2007, págs 73-74).
Frágeis econômica, política e socialmente, adotaram o discurso dos “loosers’,
sujeitos não capazes de denunciarem a violência ou de adotarem critérios similares
para a imigração de cidadãos estadunidenseses em suas fronteiras. Assim, em seu
silêncio, classificado por Orlandi (2007), como silêncio local , ou “manifestação da
censura”, parecem reconhecer as normas que delineiam a política de imigração e o
direito de punir quem desrespeita tais regras.
Por outro lado, tal silêncio pode ser visto como uma estratégia de resistência,
evitando assim, provocar a ira dos USA e seu beligerante presidente. Assim: “O silêncio,
mediando às relações entre linguagem, mundo e pensamento, resiste à pressão de
controle exercida pela urgência da linguagem e significa de outras e muitas maneiras.”
(Orlandi, 2007, p. 37).
5 | ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS REAÇÕES AOS DISCURSOS DE
TOLERÂNCIA ZERO À IMIGRAÇÃO
Assim como a imagem de um Donald Trump enorme frente a uma criança
pequena e assustada, que ilustrou a capa da revista Time24; os presidentes dos
países que tiveram “imigrantes ilegais” separados de seus filhos, mostram–se, em seu
silêncio constitutivo/local, tão frágeis quanto a menininha hondurenha, de dois anos,
24. Da Redação/São Paulo. Revista Time faz capa com Trump encarando criança imigrante. Folha de São Paulo.
Publicado em 21/06/2018. Visto em 04/07/2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/06/revista-time-faz-capa-com-trump-encarando-crianca-imigrante.shtml
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
205
intimidada pela imagem do presidente estadunidense nesta já citada edição25.
Sem ter coragem de protestarem contra o tratamento desumano imputado aos
seus cidadãos, os presidentes dos países de origem dos “imigrantes ilegais” parecem
reforçar a tese dos Estados Unidos - que se apoderou do adjetivo gentílico “América”,
de que somente eles são “americanos”; silenciando desta forma, o fato de que “los
cucarachas” são tão americanos quanto eles.
A premissa de que “todos somos iguais, mas uns são mais iguais que outros”,
de Orwell (1945)26 continua em vigor. Assim, no jogo de formações imaginárias, as
crianças e os imigrantes ilegais são representados como “ninguéns”, sujeitos do não(poder) dizer.
Aos“loosers”, é dado o tratamento oferecido aos “bad gays”: prisões, torturas
físicas e psicológicas, humilhações diversas. Nesta relação de forças, em que os
“imigrantes ilegais” , supostamente “não são humanos o sufiente” para cruzar as
fronteiras dos USA, o american way of life nada mais é que uma versão piorada do
“canto das sereias”.
Seu poder de sedução ilude os incautos navegantes e exploradores, convencendo-
os a “abandonarem seus barcos” fazendo-os, assim, se afogar nas profundezas do
mar capitalista, da livre concorrência e da meritocracia, em que os loosers não são
pessoas, mas aberrações de um bizarro circo de horrores.
REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença/
Martins Fontes, 1998.
GADET, François, HAK, Tony (Orgs). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à
obra de Michel Pêcheux. Tradução Berthania S. Mariani... [et.al] – 5ª ed- Campinas, SP. Editora da
Unicamp. 2014.
KELLNER, Douglas. A Cultura das Mídias. Estudos culturais: identidade e política entre o moderno
e o pós-moderno. Tradução Ivone Castilho Benedetti. Bauru. SP. EDUC, 2001.
ORLANDI, ENI. (ORG). O Discurso Fundador. A formação do país e a construção da identidade
nacional. Belo Horizonte. Pontes. 3ª ed. 2003.
_________________ As formas do silêncio. Campinas. Editora da Unicamp, 2007.
25. Mundo/Folha de São Paulo. Em conversa telefônica de meia hora, Trump e AMLO falam de imigração e comércio. Folha de São Paulo. Disponível: Da Redação/São Paulo. Revista Time faz capa com Trump encarando criança
imigrante. Folha de São Paulo. Publicado em 21/06/2018. Visto em 04/07/2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/06/revista-time-faz-capa-com-trump-encarando-crianca-imigrante.shtm Publicado em
02/07/2018. Visto em 04/07/2018. Ligado à esquerda, o presidente mexicano eleito no último dia 01/07/2018 foi
uma exceção entre as lideranças dos países de origem dos imigrantes ilegais. Ele disse ter proposto a Trump um
acordo comercial abrangente que possa gerar empregos e diminuir a imigração mexicana. Tal proposta vai contra
a ideia do presidente estadunidense de exigir que o México construa um muro para impedir a entrada de seus
cidadãos de forma ilegal nos EUA.
26. Orwell, George. A revolução dos bichos: um conto de fadas/ tradução Heitor Aquino Ferreira; posfácio Cristopher Hitchens – São Paulo: Companhia das Letras.2007.
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
206
ORWELL, George. A revolução dos bichos: um conto de fadas/ tradução Heitor Aquino Ferreira;
posfácio Cristopher Hitchens – São Paulo: Companhia das Letras. 2007.
Jornal O TEMPO/RIO EL PASO. Avó brasileira está separada do neto autista há dez meses. Jornal O
TEMPO. Número 7859. Ano 22. Pág. 19/06/2018.
Jornal O TEMPO/WASHINGTON. Quatro Estados desafiam Trump. Jornal O TEMPO. Número 7860.
Ano 22. Pág. 15. Publicado em 20/06/2018.
Jornal O TEMPO/WASHINGTON. Trump recua e suspende a separação de crianças. Jornal O
TEMPO. Número 7861. Ano 22. Pág. 16. Publicado em 21/06/2018.
Aquino, Felipe “A Sagrada Família hoje”, do site da emissora católica Canção Nova. Não há data de
publicação. Visto em 04/06/2018. Dispónível em: https://formacao.cancaonova.com/familia/a-sagradafamilia-hoje/
Brooks, Dario. BBC Mundo. 5 questões para entender como é o processo de deportação de
imigrantes ilegais nos Estados Unidos. Atualizado em 22 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://
www.bbc.com/portuguese/internacional-39049799
Da Redação/ HYPNESS. Para Donald Trump imigrantes ilegais “não são pessoas” e sim “animais”.
Publicado em maio de 2018. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2018/05/para-donaldtrump-imigrantes-ilegais-nao-sao-pessoas-e-sim-animais/. Acesso em 24 de junho de 2018.
Da Redação/ HYPNESS. Para Donald Trump imigrantes ilegais “não são pessoas” e sim “animais”.
Publicado em maio de 2018. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2018/05/para-donaldtrump-imigrantes-ilegais-nao-sao-pessoas-e-sim-animais/. Acesso em 24 de junho de 2018.
Elle. Drehmer, Raquel. Marcas criam respostas à jaqueta de Melania Trump. Publicado em:
04/07/2018. Visto em: 04/07/2018. Disponível em: https://elle.abril.com.br/moda/resposta-a-jaquetamelania-trump-visita-criancas-detidas/.
Da Redação Folha de São Paulo/São Paulo. Revista Time faz capa com Trump encarando criança
imigrante. Folha de São Paulo. Publicado em 21/06/2018. Visto em 04/07/2018. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/06/revista-time-faz-capa-com-trump-encarando-criancaimigrante.shtml
G1. Melania Trump usa casaco com frase “Eu realmente não me importo” ao viajar para visitar
crianças na fronteira. Publicado em 21/06/2018. Visto em 26/06/2018.
G1- Manifestantes protestam nos Estados Unidos contra política de imigração de Trump. Jornal
Nacional. Edição do dia 30/06/2018. Publicado dia 30/06/2018. Visto em 03/06/2018. Disponível
em https://g1.globo.com/mundo/noticia/melania-trump-usa-casaco-com-frase-eu-realmente-nao-meimporto-para-visitar-criancas-na-fronteira.ghtml.
Jurídico Certo Portugal, Maria G. O papel da família em relação à criminalidade. Jurídico Certo.
Publicação da Instituição Jurídico Certo. Publicado em 28/02/2018. Disponível em: https://juridicocerto.
com/p/advocacia-maria-por/artigos/o-papel-da-familia-em-relacao-a-criminalidade-4340#
Mundo/Folha de São Paulo. Em conversa telefônica de meia hora, Trump e AMLO falam de
imigração e comércio. Folha de São Paulo. Disponível: Da Redação/São Paulo. Revista Time faz capa
com Trump encarando criança imigrante. Folha de São Paulo. Publicado em 21/06/2018. Visto em
04/07/2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/06/revista-time-faz-capa-comtrump-encarando-crianca-imigrante.shtm. Publicado em 02/07/2018. Visto em 04/07/2018.
Ciências da Comunicação
Capítulo 17
207
CAPÍTULO 18
O IMIGRANTE NO MEIO ACADÊMICO: ESTUDO DE
CASO
Benalva da Silva Vitorio
Universidade Católica de Santos (UniSantos),
Centro de Ciências da Educação e Comunicação
- Santos – São Paulo
RESUMO: Na convivência entre brasileiros
e imigrantes em sala de aula, observase resistência mútua para se estabelecer
comunicação, o que dificulta o processo
pedagógico e compromete o exercício da
cidadania. Eis, portanto, a reflexão neste trajeto
discursivo, a partir de observação participante
e entrevista, com objetivo de contribuir para
a relação entre Nós e os Outros no contexto
conturbado do processo migratório no século
XXI.
PALAVRAS-CHAVE: imigração; convivência;
meio acadêmico.
observation and interview, aiming to contribute
to the relationship between Us and Others in the
troubled context of the migratory process in the
21st century.
KEYWORDS:
immigration;
coexistence;
academic environment.
1 | A ARTE DA CONVIVÊNCIA
No contexto do mundo globalizado, os
recursos tecnológicos contribuem tanto para
aproximação quanto para afastamento das
pessoas que tecem relacionamentos por meio
das redes sociais. Geralmente, essas pessoas,
principalmente os jovens, sem conhecer com
quem se comunicam trocam informações
rápidas nos meios digitais a respeito de
variados assuntos, colecionando “seguidores”.
Quase sempre opinam e discutem de forma
superficial, sem o devido conhecimento do que
THE IMMIGRANT IN ACADEMIA: A CASE
STUDY
ABSTRACT: In the coexistence between
Brazilians and immigrants in the classroom,
mutual resistance is observed to establish
communication,
which
hampers
the
pedagogical process and compromises the
exercise of citizenship. This is the reflection
on this discursive path, based on participant
Ciências da Comunicação
está em pauta.
A esse respeito, Bauman (2004, p. 52)
considerou que nos relacionamentos virtuais
“não são as mensagens em si, mas seu ir e vir,
sua circulação, que constitui a mensagem –
não importa o conteúdo”. Assim, para o referido
autor, quem entra nos chats para conversar tem
“camaradas que vêm e vão, entram e saem do
circuito”. Portanto, sem conhecer devidamente
uns aos outros, em relacionamentos efêmeros
Capítulo 18
208
e “líquidos”, os “camaradas” virtuais pertencem “ao fluxo constante de palavras e
sentenças inconclusas (abreviadas, truncadas para acelerar a circulação)”. Pertencem
“à conversa, não aquilo sobre o que se conversa”.
Nas redes sociais, as pessoas tanto podem promover campanhas de
solidariedade, conclamar para a participação em movimentos sociais, quanto eleger
e destruir ídolos, manchar a reputação de figuras públicas ou privadas. Geralmente
quem está por trás desses procedimentos, sobretudo os malevolentes, tem a ilusão
de que está protegido na “comunidade de semelhança”, como Bauman (2004, p. 134)
explica a “mixofobia”, ou seja, “impulso que conduz a ilhas de semelhança e mesmice
em meio a um oceano de variedade e diferença”. Segundo esse autor, a atração
exercida por uma comunidade da mesmice está “na segurança contra os riscos de que
está repleta a vida cotidiana num mundo polifônico”. Contudo, considera que o abrigo
nessa comunidade “não reduz os riscos, muito menos os afasta”, representa apenas
paliativo para a segurança de quem teme aprender e preservar a arte da convivência
com a diferença.
O meio acadêmico representa oportunidade para que os jovens aprendam a tecer
a arte da convivência, a partir da sala de aula. Com essa aprendizagem serão capazes
de participar em comunidades reais, onde possam conviver com a diferença, estando
face a face uns com os outros. Assim, a universidade, como espaço de produção do
conhecimento, contribui para a formação da cidadania, promovendo a convivência e
a partilha em relação à alteridade externa, evitando o perigo explicitado por Bauman
(2004, pp. 134-135).
Quanto mais as pessoas permanecem num ambiente uniforme, na companhia de
outras “como elas”, com as quais podem “socializar-se” de modo superficial e
prosaico, sem o risco de serem mal compreendidas, nem a irritante necessidade
de tradução entre diferentes universos de significações, mais se tornam propensas
a “desaprender” a arte de negociar um modus convivendi e significados
compartilhados.
Embora o ambiente universitário seja propício para aprender a arte de negociar
a convivência e os significados compartilhados, tenho observado em sala de aula
situações que complicam o trabalho pedagógico. Por meio do celular, os alunos formam
“ilhas da mesmice”, trocando informações desvinculadas do conteúdo curricular.
Nesse ambiente, considero que mais constrangedor do que o alheamento ao discurso
docente é o isolamento dos alunos imigrantes, o que me levou a refletir sobre essa
problemática.
A imigração, que envolve sujeitos em diferentes contextos, constitui problemática
que se acentua na atualidade. Portanto, proporciona “condição essencial à realização
de investigações científicas e ao avanço do conhecimento”, desde que haja cooperação
no meio acadêmico, como explica Gatti (2005, p. 124), enfatizando o papel do
pesquisador.
O pesquisador não trabalha sozinho, nem produz sozinho. A intercomunicação
com pares, o trabalho em equipe, as redes de trocas de idéias e disseminação
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
209
de propostas e achados de investigação, os grupos de referência temática,
constituem hoje uma condição essencial à realização de investigações científicas
e ao avanço do conhecimento. Para os pesquisadores mais experientes, esse
diálogo permanente com grupos de referência temática torna-se fundamental ao
avanço crítico e criterioso em teorizações, em metodologias, em inferências. Para
os menos experientes, ou iniciantes, é fundamental para sua formação, pois não
se aprende a pesquisar, não se desenvolvem habilidades de investigador apenas
lendo manuais. Essa aprendizagem processa-se por interlocuções, interfaces,
participações fecundas em grupos de trabalho, em redes que se criam, na vivência
e convivência com pesquisadores mais maduros.
Convicta na tradição latino-americana de combinar questões de várias ordens,
em ações transdisciplinares, a fim de “constituir campos de trabalho a partir de temas,
objetos ou problemas específicos”, como recomenda Schwartzman (1992, pp. 191198), procuro seguir os princípios expostos acima, explorando diferentes objetos de
pesquisa, entre os quais a imigração, objeto de pesquisa nos dois Pós-Doutorados que
realizei em Portugal, na Universidade de Coimbra (VITORIO, 2007) e na Universidade
Aberta de Lisboa (VITORIO, 2015).
Ao conjugar Comunicação e Cidadania no Grupo de Pesquisa que coordeno
na UniSantos, procuro desenvolver pesquisas que dizem respeito não somente à
satisfação dos direitos para assegurar igualdade, mas também assegurar os direitos
à diferença como parte do processo democrático. No que diz respeito à comunicação,
há urgência, na atualidade, para se compreender com mais clareza a complexidade
dos atos comunicativos que contam, narram e constroem histórias. Referindo-se
ao trabalho do jornalista, Resende (1999, p. 36) explica que “histórias são relatos,
fios que tecem a ação comunicativa e que nela são tecidas pelos sujeitos-artesãos,
recriadores do real, construtores do passado, do presente ou de algo maior ainda da
contemporaneidade”. O autor justifica que, “na modernidade tardia, contar as histórias
do mundo, além de saber contá-las, emerge de uma necessidade de compreensão do
próprio mundo em que se vive”. Quanto à cidadania, a questão deve ser deslocada da
sua dimensão política – “os direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais para os que
nasceram em um território” – para contemplar também as práticas sociais e culturais
“que dão dimensão ao pertencimento e fazem com que se sintam diferentes os que
possuem uma mesma língua, formas semelhantes de organização e satisfação de
suas necessidades”, como observa Canclini (1995, p. 22).
Considero as instituições de ensino, em todos os níveis da educação, como espaço
ideal para propagar o princípio de convivência, promovendo relação entre sujeitos
e disciplinas de diferentes áreas do conhecimento para se compreender o Outro,
por meio de ações pedagógicas que incluam discussão e reflexão sobre conceitos
e problemáticas relacionados aos deslocamentos humanos, que acentuam o drama
humanitário no século XXI. Nesse sentido, a problemática que norteou o presente
artigo decorre das seguintes questões: como o imigrante universitário estabelece
relações no meio acadêmico? Enfrenta dificuldades para conviver com estudantes e
professores brasileiros? Consegue acompanhar os conteúdos das disciplinas do curso
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
210
que frequenta? Tem facilidade para estabelecer comunicação em sala de aula? Sente
interesse dos colegas brasileiros sobre a cultura de seu país de origem? Fecha-se em
concha ou abre-se com espontaneidade?
Diante de tais questionamentos, trabalhei com a premissa de que o imigrante
universitário, principalmente quem está na categoria de refugiado, encontra dificuldades
para a convivência no meio acadêmico. Geralmente, ele é considerado como o Outro,
o Diferente, com dificuldade para se aproximar dos colegas de classe e até mesmo dos
professores e funcionários. A tendência é o esforço para superar tanto as dificuldades
com a língua para compreender os conteúdos das disciplinas quanto às vicissitudes
da vida em geral. Assim, sempre isolado no meio acadêmico, reserva-se ao silêncio e
à observação.
A motivação para desenvolver esse trabalho foi o desejo de contribuir para a
integração do estudante imigrante no meio acadêmico, a fim de despertar interesse
para o conhecimento recíproco entre Nós (brasileiros) e os Outros (imigrantes),
compreendendo, na prática, a problemática do fluxo migratório na sociedade
globalizada. Assim, justifica-se o exercício da cidadania, por meio da comunicação,
abrindo os braços e erguendo a cabeça ao acolher e compreender o Outro.
Como docente no curso de graduação em Relações Internacionais da
UniSantos, onde sempre há aluno estrangeiro, notei em sala de aula o que coloquei
como premissa. Assim, para escrever esse artigo, além da observação participante,
recorri à entrevista com sujeitos envolvidos na problemática exposta acima, procurando
traçar histórias de vida para contemplar, no sentido de compreender, a trajetória do
imigrante. Nas entrevistas, realizadas em agosto de 2017, contei com a colaboração
de Rosilandy Carina Cândida Lapa, mestranda em Direito e membro do Grupo de
Pesquisa Comunicação e Cidadania.
2 | IMIGRANTE E CRISE DE IDENTIDADE
Na diferença e não fora dela, na relação com o Outro, são construídas as
identidades, inclusive as dos imigrantes. O deslocamento humano faz parte da história
da civilização. Por diferentes motivos e condições variadas, há sempre sujeitos isolados
ou grupo de nacionais que deixam a terra de origem para fixar-se em outro país. No
primeiro momento, enquanto emigrantes, eles sonham com o recomeço, carregando
a esperança na bagagem. Depois, na condição de imigrante, tentam superar as
barreiras, tentam se adaptar ao meio e aos Outros, na esperança de que as crises,
inclusive a identitária, não interfiram em seus propósitos.
De acordo com pesquisadores dos estudos culturais, a crise representa avanço
para compreender a identidade como transformação contínua. No caso do imigrante,
a relação que estabelece com ele mesmo, com suas lembranças e consciência, o
contato com o Outro (o Diferente), promovem mudanças individuais e coletivas em
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
211
seu universo. Mudanças como “continuum de transformação” referido por Elias (1998,
p. 57), ou seja, a unidade está na continuidade com que uma transformação surge
de outra. Assim, o autor considera que a identidade é um processo contínuo, “uma
continuidade lembrada – por mensagens, apelos, respostas – e reinterpretadas”.
Em sua trajetória, o imigrante vive o que Hall (2000, pp. 34-46) chama de “crise
de identidade” como o duplo deslocamento do sujeito: tanto do seu lugar no mundo
social e cultural quanto de si mesmo. Essa “crise”, decorrente das transformações a
partir do século XX, alterou as identidades pessoais, como explica o autor. No lugar
do sujeito integrado, passou a existir a instabilidade ou “descentração do sujeito”. O
crítico cultural Mercer (1990, p. 43) vê na crise identitária “a experiência da dúvida e da
incerteza”, porque houve a deslocação do que se supunha “fixo, coerente e estável”.
Tendo que conviver com a diferença, em terra estrangeira, o sujeito pode sofrer a
crise de identidade, dependendo da motivação para deixar a terra de origem e a forma
de convivência com o Outro no país que buscou para recomeçar sua vida. Ao contrário
de muitos pesquisadores que condicionam o fenômeno da imigração ao mercado de
trabalho, Vitorio (2015) considera que nem sempre essa motivação é determinante para
o sujeito deixar o seu país de origem. As razões podem ser tanto econômica, quanto
política, ideológica, étnica, religiosa, cultural, ambiental e até emocional. No entanto,
geralmente os imigrantes são classificados como refugiado ou asilado, “rótulos” que
estigmatizam as pessoas.
Cabe, então, explicitar a diferença entre conceitos referentes ao processo
migratório. Segundo Charleaux (2015), “migrante é toda pessoa em trânsito, que
emigra (sai) de seu país de origem e, quando chega a seu destino, é chamado de
imigrante (entra)”. Refugiados e asilados são, portanto, nada mais do que categorias de
Imigrante. Em Portugal, circula na mídia e no meio acadêmico o termo “indocumentado”,
atribuído aos imigrantes que não detém o título de entrada ou de residência exigido
pela legislação. Popularmente, são chamados imigrantes “ilegais”, “clandestinos”,
“irregulares” ou “sem papéis”.
Portanto, os estrangeiros que entram em um país com objetivo de fixar residência,
por diferentes motivos, são imigrantes.
Muitas vezes, contudo, categorizam os
imigrantes de forma equivocada por falta de conhecimento, acentuando a exclusão
daqueles que procuram outro país para a reconstrução de vida, o que pode dificultar a
inserção dos mesmos na sociedade, inclusive no mercado de trabalho.
Nesse sentido, tomei conhecimento, ao escrever esse artigo, do caso referente
a um aluno imigrante, no último semestre de um curso de graduação da UniSantos,
que não conseguia estágio, requisito obrigatório para se formar. Ele considerou que o
motivo não era sua falta de qualificação ou experiência, mas a discriminação por ser
refugiado, pois era dispensado ao apresentar seus documentos. Garantiu que não é
o único refugiado a passar por essa situação, que se torna mais complicada para os
africanos, devido à cor da pele.
Há, no entanto, imigrantes na categoria de refugiado com diploma de curso
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
212
superior que, devido à crise econômica no Brasil, se submetem a qualquer tipo de
trabalho, inclusive varredor de rua, como Pagotto (2016) descreve a situação de
“engenheiros de diversas áreas, professores universitários e até um médico e um
psicólogo”, contratados por uma empresa responsável pela limpeza pública de parte
da cidade de São Paulo, vinculada no projeto em parceria com o Centro de Apoio
ao Trabalho e Empreendedorismo (CATe) e Centro de Referência e Acolhida para
Imigrantes (CRAI). Entre eles, um engenheiro agrônomo alega que no seu país (Congo)
é perseguido político e prefere “ser trabalhador braçal vivo aqui do que um intelectual
morto na África”. Outro, um psicólogo angolano, justifica que fugiu de seu país porque
foi ameaçado por parentes, depois de uma disputa familiar por herança.
Qualquer que seja o motivo para deixar sua terra de origem e recomeçar a vida
como imigrante em outro país há sempre justificativa para a escolha, conforme o
desabafo de um refugiado congolês no Brasil. “Vocês não sabem a benção que é não
ter guerra e ter democracia. Aqui, a presidente [referindo-se ao impeachment de Dilma
Rousseff] está saindo e ninguém morreu. No Congo, quando muda o governo logo
matam a oposição” (PAGOTTO, 2016).
O termo refugiado se aplica a quem foge de seu país de origem alegando “fundados
temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social
ou opiniões políticas”, em situações nas quais “não possa ou não queira regressar”,
segundo convenção internacional específica de 1951, o Estatuto dos Refugiados.
No Brasil, o refúgio também pode ser aplicado em casos de “graves e generalizadas
violações de direitos humanos”, de acordo com a Lei 9.474, de 1997.
Enquanto o refúgio é de natureza exclusivamente humanitária, o asilo tem acento
mais político com significado amplo nas diferentes culturas, considera Charleaux (2015),
lembrando que, juridicamente, o asilo ganhou força na América Latina, nos anos 1960
e 1970, quando perseguidos políticos buscaram proteção em países vizinhos.
Portanto, o sujeito é emigrante no seu país de origem, de onde saiu. Ao chegar
ao país de destino ele se torna um imigrante. Assim, de acordo com o dicionário,
tanto refugiados quanto asilados podem ser migrantes, emigrantes ou imigrantes. As
diferenças dizem respeito à política e ao direito, como explicita Charleaux (2015).
Enquanto a concessão do refúgio depende de um trâmite técnico num órgão
colegiado, o asilo pode ser concedido por arbítrio exclusivo do presidente da
República, sem que seja necessário embasamento de ordem estritamente legal. É,
portanto, uma ferramenta política. Esse aspecto político do asilo é visível no debate
que se estende a proteção para além do território do país de abrigo, incluindo
também veículos diplomáticos e embaixadas como “território protegido” para o
asilado.
Contudo, há que se ter cuidado ao atribuir categorias ao imigrante, considerando-
se a subjetividade e até mesmo a “oportunidade” do requerente à concessão do
status de refugiado ou asilado. Assim, creio eu, evita-se a difusão de estereótipos do
imigrante como vítima de mazelas, o que pode levá-lo tanto à situação de “protegido”
em detrimento dos nacionais, quanto à situação de intolerância e até mesmo exclusão
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
213
no meio que pretende ser acolhido em busca de uma vida mais estável.
Independente da razão para o ato de emigrar e as formas de emigração, deve-se
respeitar a dignidade humana, “quaisquer que sejam as suas crenças ou a sua cor, e
qualquer que seja a sua importância numérica”, como defende Maalouf (1999, p. 166).
Contudo, o fluxo migratório intenso em um país quase sempre suscita polêmicas, como
acontece atualmente com o deslocamento de pessoas da África e do Oriente Médio
para a Europa; do Haiti e, ultimamente, da Venezuela para o Brasil. A única saída para
esse impasse é reconhecer que cada pessoa deve ser tratada como cidadão de corpo
inteiro, quaisquer que sejam as suas pertenças.
Nos dezessete anos da minha experiência como imigrante, em Portugal e
Moçambique, aprendi que quanto maior a distância entre Eles (nacionais) e Nós
(estrangeiros) mais difícil é a identificação, “podendo a relação tender para formas
de rejeição mais ou menos intensas” (RAMALHO, 2003, p. 187). Rejeição que pode
criar “as identidades assassinas”, como Maalouf (1999, p. 41) denuncia a redução
da identidade a uma única pertença, o que “leva os homens a uma atitude parcial,
sectária, intolerante, dominadora, por vezes suicida, e tantas vezes os transforma em
assassinos ou em partidários dos assassinos”.
Crítico da separação entre os “nossos” e os “outros”, entre “nós” e “eles”, Maalouf
(1999, p. 42) defende a concepção da identidade como construção de “pertenças
múltiplas, algumas ligadas a uma história étnica e outras não, algumas ligadas a
uma tradição religiosa e outras não”. No entanto, ao considerar a identidade como
“aspiração legítima”, esse autor alerta que ela se transforma em “instrumento de
guerra”, semeando ações terroristas, cobrindo o mundo de “comunidades feridas” que
sofrem perseguições, preservam lembranças de sofrimentos antigos, sonham com
vinganças.
Para sair dos conflitos identitários, a solução está no reconhecimento de nossas
“pertenças múltiplas”, como recomenda Maalouf (1999, p. 42). Enquanto fui imigrante,
nas décadas de 70 e 80 do século XX, ao reconhecer minhas múltiplas pertenças
(africano, indígena e português), estabeleci relação de proximidade com os Outros,
em diferentes contextos, sentindo-me familiar em terra estrangeira. Mas, nem todos os
imigrantes conseguem traçar sua trajetória entendendo que a identidade “não é fixa,
é sempre híbrida”, como explica Hall (2003, p. 433), porque consiste de “formações
históricas específicas, de histórias e repertórios culturais de enunciação muito
específicos”.
Assim, procurei compreender no relato de imigrantes universitários histórias
tecidas por lembranças expressas por meio das palavras em curso, ou seja, o discurso.
Nessa tessitura, observei o sentido do “silêncio que atravessa as palavras, que existe
entre elas, ou que indica que o sentido pode sempre ser outro, ou ainda que aquilo que
é o mais importante nunca se diz”, porque “as palavras são cheias de sentidos a não
se dizer e, além disso, colocamos no silêncio muitas delas” (ORLANDI, 1995, p. 14).
No movimento entre palavra e silêncio constatei que cada uma das histórias
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
214
de identidade está inscrita nas posições que os sujeitos assumem e com as quais
se identificam. Posição, por exemplo, assumida por dois dos meus ex-alunos que se
identificaram com a problemática desse artigo e, voluntariamente, contaram as suas
histórias de imigrantes.
3 | NAS HISTÓRIAS, AS POSIÇÕES IDENTITÁRIAS
Antes de relatar as histórias dos dois universitários, como estudo de caso, convém
contextualizar a Instituição de Ensino Superior que eles frequentavam e a relação da
mesma com o programa do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR),
iniciado na América Latina, em 2003, para capacitar e formar docentes e discentes
universitários no campo do direito internacional dos refugiados. O projeto recebeu
o nome de Cátedra Sérgio Vieira de Mello, em homenagem ao brasileiro, morto no
Iraque em 2003 e que dedicou grande parte de sua carreira profissional nas Nações
Unidas, trabalhando no ACNUR em prol dos refugiados.
Pioneira na Região Metropolitana da Baixada Santista no ensino superior, a
Universidade Católica de Santos aderiu ao projeto Cátedra Sérgio Vieira de Mello
em 2007. A partir de 2012, passou a conceder anualmente três bolsas de estudo a
imigrantes refugiados residentes no Brasil, inscritos e aprovados no exame de seleção,
para a frequência nos cursos de graduação de quatro anos.
Como imigrantes na categoria de refugiado, os dois entrevistados são bolsistas
da UniSantos. Ao receber o convite para contribuir nesse estudo de caso, eles foram
devidamente esclarecidos sobre o trabalho, assinaram o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, agendaram dia e horário para a entrevista. Para preservá-los de
possível constrangimento, cada um foi identificado no artigo por duas letras maiúsculas
diferentes. As conversas foram gravadas e transcritas na íntegra, de acordo com o
roteiro de entrevista em apêndice.
Ao analisar a transcrição das entrevistas, lembrei-me do conselho que ouvi de
alguém no tempo em que fui imigrante. “Saudade é olhar o passado. No presente,
não há tempo para lembrar, é preciso conquistar o lugar de chegada”. Apesar de
não ser fácil dissociar os dois tempos na vida de quem atravessou fronteiras, muitas
vezes transgredindo normas e convenções, enfrentando situações adversas para
conquistar o seu espaço na vida em outro lugar, segui aquele conselho: mergulhei no
presente, apaguei a saudade e esqueci as lembranças. No ano seguinte que cheguei
a Moçambique, 1979, passei uns três meses sem dar notícias para minha família
no Brasil. Preocupada com o clima de guerra no país, minha irmã telefonou para a
Embaixada do Brasil no Maputo para saber do meu paradeiro. Naquele momento,
o meu presente representava o futuro: estava grávida do meu filho, que nasceu em
África.
Na narrativa dos dois entrevistados, de acordo com o roteiro estabelecido, as
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
215
histórias seguiram a linha do tempo, ou seja, do passado para o presente. Assim, por
caminhos diferentes, eles chegaram ao Brasil em 2000 e frequentaram o curso de
Relações Internacionais: O. G. franco-congolês, 38 anos, bacharel em Direito, Filosofia
e Teologia; I. P. sérvio, 38 anos.
No Congo, O. G. foi seminarista e trabalhou como subdiretor da Cáritas
Arquidiocesana no escritório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(UNDP) e no Word Food Program, da ONU. No final do seu mandato na Cáritas, passou
a integrar o quadro de funcionários da ONU, quando começou a guerra no Congo
motivada por rivalidades étnicas e disputa por recursos minerais. Como funcionário da
ONU a proteger “pessoas vulneráveis”, O. G. foi vítima de ataque na diocese, onde
vivia. Com os sobreviventes da diocese, fugiu para a Bélgica. Depois de recuperado
dos ferimentos, voltou com os padres para o Congo. Em 1999, acirrou o conflito no
país e a embaixada da Bélgica conseguiu resgatar os padres. Como não era belga,
embora trabalhasse na ONU, O. G. foi preso por motivos políticos e confinado em um
buraco, por tempo que não soube determinar [“uns meses”]. Apanhava todos os dias
com chibata, até que o militar responsável pelos presos políticos, “um ruandês forte
e alto, um Tutsi”, grupo étnico de Ruanda, reconheceu O. G. como a pessoa que o
adotou quando criança. O militar, então, preparou a sua fuga. Do Congo, ele foi para
o Burundi, Zâmbia e África do Sul, onde conseguiu asilo político, trabalhou, estudou
e retornou à sua congregação religiosa que, por motivo de segurança, o encaminhou
para o Brasil, onde inicialmente foi viver na congregação de São Miguel, em Irati,
Paraná. Depois mudou para a cidade de São Paulo, quando se inscreveu no vestibular
para refugiado na UniSantos.
Já I. P. considera que teve vários motivos para deixar a Sérvia, seu país de origem:
envolvimento em manifestações políticas, problemas religioso e étnico na família,
alistamento obrigatório para o serviço militar. Sentindo-se ameaçado e perseguido,
saiu do país acompanhado do pai. Primeiro foi para a Bósnia, depois Alemanha e, por
fim, chegou ao Brasil, em 2000. Atualmente mora na cidade de São Vicente, litoral do
estado de São Paulo.
Ao relatar as dificuldades enfrentadas no Brasil, O. G. destacou o desencanto
com o país devido à “segregação muito forte” e I. P. criticou a falta de informação aos
estrangeiros para conseguir a documentação, conforme transcrição abaixo.
“Visto de fora, o Brasil é bom. Mas, quando você entra aqui, vê que o povo
brasileiro é muito discriminador, xenofóbico. Alguns de forma velada, mas discriminam
muito. Mesmo em minha casa [o seminário], onde nós éramos 15 religiosos, eu era o
único negro e estrangeiro. Quanta discriminação! Eles falavam muito mal de África,
dos negros. Tudo de ruim que acontecia dentro da congregação ou do seminário a
culpa era minha. Eu nunca tive amigos (O. G.).
“A primeira dificuldade é a mesma para qualquer estrangeiro, que é a língua. Eu
não falava nada [de Português]. Então, no começo foi extremamente difícil. [...] Mas,
a falta de condições, de documentos, foi a maior dificuldade. Você não tem acesso à
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
216
informação e eu acho que ainda hoje continua assim. [...]. Então, a dificuldade maior
é conseguir o protocolo [de refugiado] para conseguir ajuda do exterior, da família, por
exemplo, pois sem documentos você não consegue abrir uma conta no banco” (I. P.).
Por intermédio da Cáritas Brasileira, organismo da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), os dois entrevistados procuraram a Universidade Católica de
Santos, com objetivo de conseguir bolsa de estudo para refugiado em um dos cursos
de graduação. Os dois pretendiam cursar Direito, como não conseguiram, optaram por
Relações Internacionais, sendo que O. G. freqüentou antes um semestre no curso de
Tradução, na perspectiva de trabalhar como tradutor jurídico.
Quanto à bolsa de estudo, os dois teceram críticas à falta de apoio financeiro
para a manutenção dos bolsistas. Nesse sentido, O. G. desabafou. “Eu era faxineiro e
ganhava R$100,00, me ofereceram uma bolsa de R$1.500,00 [valor da mensalidade
do curso]. Desse valor não vou receber nenhum centavo. Eu chego aqui sem conhecer
ninguém, não tenho casa, não tenho emprego, comida ou transporte. Depois das aulas
[das 19h às 22h40] para onde vou? Na rua? O que vou comer? Como vou me vestir?”.
Na mesma linha de raciocínio, I. P. considera que há “alguns pontos que devem
ser trabalhados sobre o aspecto de suporte, moradia, trabalho, uma integração maior.
Não apenas uma bolsa”. Para ele, “este estudo para dar as bolsas não foi feito de
forma correta”. E explica: “Você vai deslocar um estrangeiro de São Paulo, ele não
vai ter um suporte na cidade, não tem as mínimas condições para sobreviver, muito
menos estudar”. Assim, considera a bolsa de estudo “inviável” e recomenda estudos
“para comprovar que não traz benefícios para o refugiado, pois ele não consegue
sobreviver com a bolsa”. Contudo, lembra a ajuda que receberam [ele e O.G], “depois
de muita luta”, do subsídio no valor de R$400,00, “primeiro da Mantenedora, depois da
Diocese, da Cúria. Nos ajuda no transporte ou pagar uma Xerox, o básico do básico”.
Os dois entrevistados consideram que, atualmente, dominam a língua portuguesa.
Para O. G. somente o emprego da gíria e o sotaque dos brasileiros dificultam a sua
compreensão. Contudo, há diferença na posição dos dois quanto ao relacionamento
no meio acadêmico. Enquanto O. G. se sente segregado, I. P. afirma que não sofreu
preconceito, como declararam na entrevista.
“Quando eu cheguei [referindo-se ao curso de Tradução], já tinha segregação.
Quando tinha trabalho em grupo, ninguém queria fazer comigo, eu estava sempre
jogado fora, ninguém queria conversar comigo, parece que eu era um tipo de sujeira,
ninguém queria mexer comigo e eu estava sempre sozinho. Aí fui para Relações
Internacionais, foi pior ainda. Os alunos não gostavam de mim, até hoje sempre
arrumam briga, alguns professores não gostam, eu sou estrangeiro e negro. Para
algumas pessoas refugiado é fugitivo e bandido, mesmo na faculdade. Sou excluído,
na sala de aula e na universidade. Muito excluído, 90% excluído. Por isso, eu chego,
eu estudo, fico no meu canto e, quando preciso responder, eu respondo” (O. G.).
Já I. P. afirmou que não sofreu preconceito por ser estrangeiro ou refugiado.
“Talvez coisas pequenas. Só posso dar a minha perspectiva como branco, eu não
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
217
sofri preconceito [no meio acadêmico]. Fui representante de classe por dois anos e só
reclamei uma única vez [quando não foi convidado a participar do amigo secreto]. Não
sei se foi descaso ou sem querer, mas não levei como um preconceito”. Portanto, em
sala de aula sentiu-se excluído “apenas naquela situação do amigo secreto”. Quanto
ao mercado de trabalho, “aí sim, não sei se por discriminação ou preferência procuram
alguém jovem. Tenho vários pontos negativos: eu tenho idade mais avançada [em
relação aos colegas de classe], sou estrangeiro, sou refugiado. Então, existe sim
dificuldade no mercado de trabalho, inclusive devido ao momento econômico, muita
falta de informação e divulgação”.
Nesse sentido, I. P. levanta questões e aponta saída. “O que é um estrangeiro? O
que é um refugiado? É aquele que foge? Diante da dúvida, o que diz a empresa? Não”.
Portanto, ele considera que a universidade deveria promover palestras, encontros com
empresários, para sanar essas dúvidas, abrindo um canal para informar e conscientizar
os empresários. “Se tiverem informações, irão encontrar pontos positivos para contratar
refugiado. Temos o Porto na cidade, com área de Relações Internacionais, onde os
estrangeiros podem ser muito bem aproveitados nas empresas. Há refugiados que
falam cinco línguas”.
Os dois universitários declararam não ter dificuldades para acompanhar as aulas.
Contudo O. G. disse que encontrou obstáculos com professores, “que me prejudicaram
muito”, explicando que eles não consideraram que é estrangeiro com cultura diferente.
“Infelizmente, aqui parece que eles não gostam dos refugiados”. Diante de problemas
e conflitos, ele disse que não consegue se defender, “pois eu sou estrangeiro, negro
e refugiado. Para mim é difícil, eu quero muito ter o diploma, mas de verdade não há
convivência”, referindo-se ao meio acadêmico.
A convivência, bem como a identidade, constitui processo em construção: “tijolo
com tijolo em um desenho mágico”, como escreveu Chico Buarque de Holanda, em
1971. Mas, para o sucesso da obra é preciso que haja harmonia entre os construtores.
No caso da imigração, o êxito implica também conhecimento recíproco entre Nós (os
nacionais) e os Outros (os estrangeiros). Assim, será possível evitar que as fronteiras
dos países se transformem em “fortalezas”, que se propaguem “as identidades
assassinas”. Para tanto, há que se cultivar o respeito mútuo, independente das
características físicas, da nacionalidade, dos princípios religiosos, das posições
ideológicas dos sujeitos, compreendendo e aceitando as pertenças múltiplas, sem
hierarquização ou auto vitimização.
No discurso dos entrevistados, compreendi o funcionamento das relações de
sentido, de força e o mecanismo da antecipação, que Orlandi (1999, p. 39) chama
de formações imaginárias: um dizer tem relação com outros dizeres realizados,
imaginados ou possíveis; o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que
ele diz; sua argumentação visa causar efeitos sobre seu interlocutor, que tanto pode
ser cúmplice ou adversário. Assim, estrangeiro e negro apontam para xenofobia,
discriminação, exclusão; ao falar do lugar de imigrante, suas palavras significam de
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
218
modo diferente do que se falassem do lugar de brasileiros, argumentando de forma
que prevê cumplicidade na interlocução.
Ao relacionar o que observei em sala de aula com a exposição dos entrevistados,
compreendi melhor o comportamento do imigrante no meio acadêmico, inclusive a
observação silenciosa, considerando o que diz Orlandi (1995, pp. 69, 162), ou seja, “o
silêncio, assim como a linguagem, não é transparente”, [...] “o silêncio é a possibilidade
do dizer vir a ser outro”, [...] porque “todo sentido posto em palavra já se dispôs antes
em silêncio”.
Na medida em que o imigrante consegue superar as dificuldades com a língua
oficial do país em que se instala, ele rompe o silêncio e se apropria da palavra. Em
sala de aula, observei que o silêncio dos imigrantes estava associado ao “medo” da
língua portuguesa, “a língua do estranho, do outro”, como explica Coracini (2003,
p. 149). “O medo pode, em circunstâncias particulares, bloquear a aprendizagem,
impondo uma barreira ao encontro com o outro, dificultando e, por vezes, impedindo
uma aprendizagem eficaz e prazerosa”. Por outro lado, há aqueles que sentem forte
atração para aprender língua estrangeira, que para Coracini representa “o desejo do
outro, desse outro que nos constitui e cujo acesso nos é interditado, esse outro que
viria completar o um”.
Como sujeitos e sentidos são incompletos e devem estar abertos para se tornarem
outros, como diz Orlandi (1995, p. 182), o mesmo considero para esse meu trajeto de
reflexão, que não se fecha, mas aponta para o futuro discursivo. Portanto, entrego aos
leitores na esperança de que, na construção de sentidos, surjam novos percursos,
apontando perspectivas para se traçar caminhos de convivência entre os homens de
múltiplas pertenças do mundo globalizado, aonde “chegar e partir são os dois lados
da mesma viagem”, lembrando a letra da canção “Encontros e Despedidas”, de Milton
Nascimento e Fernando Brant.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
CANCLINI, Nestor García. Consumidores e Cidadãos. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
CHARLEAUX, João Paulo. Qual a diferença entre refugiado, asilado e migrante. Nexo, jornal digital
(HTTPS://www.nexojornal.com.br/expresso). Dez. 2015. Acesso em 18/8/2017.
CORACINI, Maria José R. Faria. Língua estrangeira e língua materna: uma questão de sujeito
e identidade. In: CORACINI, Maria José (Org.). Identidade & discurso: (des)construindo
subjetividades. Campinas: Editora da UNICAMP. Chapecó: Argos Editora Universitária, 2003, p. 139159.
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
GATTI, Bernardete A. Formação de grupos e redes de intercâmbio em pesquisa educacional: dialogia
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
219
e qualidade. Revista Brasileira de Educação, nº 30, Set./Out./Nov./Dez. 2005.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. 4ª ed. Rio de Janeiro: DP7A, 2000.
______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Tradução de Adelaide La
Guardia Resende et al. Belo Horizonte: UFMG, Brasilia: UNESCO no Brasil, 2003.
MAALOUF, Amin. As identidades assassinas. Tradução de Susana Serras Pereira. Algés/ Portugal:
Difel, 1999.
MERCER, Kobena. Welcome to the jungle. Londres: Lawrence and Wishart, 1990.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 3ª ed. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 1995.
_______. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999.
PAGOTTO, Fábio. Engenheiros e professores refugiados estão entre varredores de ruas de SP. Folha
on line, 25 jun. 2016. Disponível em: <http://www.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/06/1785591>.
Acesso em: 29 ago. 2017.
RAMALHO, José Pereirinha. Desenvolvimento da autonomia e da identidade nos jovens
portugueses com experiência migratória. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a
Ciência e a Tecnologia, 2003.
RESENDE, Fernando. O jornal e o jornalista: atores sociais no espaço público contemporâneo. In:
Novos Olhares. São Paulo: ECA/USP, ano 2, n. 3, 1º semestre 1999, pp. 17-49.
SCHWARTZMAN, Simon. O sentido da interdisciplinaridade. In: Novos Estudos CEBRAP. São
Paulo, n. 32, 1992, pp. 191-198.
VITORIO, Benalva da Silva. Imigração brasileira em Portugal: identidade e perspectivas. Santos:
Editora Universitária Leopoldianum, 2007.
______. Imigrantes brasileiros e a crise em Portugal. Santos: Editora Universitária Leopoldianum,
2015.
______. Imigrantes brasileiros em Portugal: retrospectiva de percurso. In: Imigração e imigrantes:
uma coletânea interdisciplinar. Salvador: Editora Pontocom, 2015, pp. 209-226.
______. A relação do idoso no cotidiano. In: Revista de Estudos e Comunicações da Universidade
Católica de Santos. Ano 41 – nº 113, 114 e 115. Santos: Editora Universitária Leopoldianum, 2016,
pp. 207 – 245.
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
220
APÊNDICE
Roteiro de entrevista
1. Ano em que saiu do país de origem
2. Motivo(s) para sair do país de origem
3. Com quem saiu do país de origem
4. Quando chegou ao Brasil
5. Dificuldades enfrentadas no Brasil
6. Domínio da língua portuguesa
7. Bolsa de estudo
8. Relacionamento com os colegas de classe, com os professores e com os
funcionários na universidade
9. Dificuldades no acompanhamento das aulas
10. Inclusão ou exclusão na sala de aula e na universidade
Ciências da Comunicação
Capítulo 18
221
CAPÍTULO 19
UMA DISCUSSÃO SOBRE A DIVERSIDADE ÉTNICORACIAL NA UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL
DO PARANÁ
Alcilaine de Macedo Alencar
Universidade Tecnológica Federal do Paraná,
Curso de Comunicação Organizacional
Curitiba - Paraná
Carolina Fernandes da Silva Mandaji
Universidade Tecnológica Federal do Paraná,
Curso de Comunicação Organizacional
Curitiba - Paraná
RESUMO: Este trabalho busca lançar luz à
temática da diversidade e pluralidade étnicoracial presente nas instituições educacionais
brasileiras de ensino superior, a partir de
uma pesquisa exploratória realizada na
Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR) durante o ano de 2018. Para isso,
o estudo parte do conceito de diversidade
cultural, entendendo a cultura em seu sentido
mais amplo como práticas que implicam
modos de vida, direitos fundamentais do
ser humano, sistema de valores, tradições e
crenças (UNESCO). Nesse sentido, a questão
da diversidade cultural implica também as
discussões de como a sociedade e suas
instituições se organizam para negociar suas
relações, torna-se assim, relevante investigar
como essas relações estão presentes numa
universidade pública brasileira. Ainda como
parte do referencial teórico, o trabalho debruçase na contextualização das leis brasileiras de
Ciências da Comunicação
ações afirmativas no cenário nacional e na
instituição e utiliza um aporte-teórico que busca
compreender o cenário de desigualdade racial
e social, o conceito de diversidade e, por fim as
políticas públicas implementadas atualmente.
Serão utilizados dados da pesquisa realizada
na UTFPR (2018) e como dados secundários a
IV Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural
dos Estudantes de graduação (2014).
PALAVRAS-CHAVE:
Diversidade;
Ações
Afirmativas; Étnico-Racial; Instituições; UTFPR.
ABSTRACT: This work search to throw light to
the theme of the diversity and present ethnicracial plurality in the institutions education
higher education Brazilians, starting from an
exploratory research accomplished in the
Federal Technological University of Paraná
(UTFPR) during the year of 2018. for that, the
study part of the concept of cultural diversity,
understanding the culture in his/her wider sense
as practices than they implicate life manners,
the human being’s fundamental rights, system
of values, traditions and faiths (UNESCO). In
that sense, the subject of the cultural diversity
also implicates the discussions of as the society
and their institutions are organized to negotiate
their relationships, he/she becomes like this,
relevant to investigate as those relationships
they are present in a Brazilian public university.
Still as part of the theoretical referencial, the
Capítulo 19
222
work leans over on the contextualization of the Brazilian laws of affirmative actions in
the national scenery and in the institution and it uses a contribution-theoretical one that
he/she looks for to understand the scenery of racial and social inequality, the diversity
concept and, finally the public politics implemented now. Data of the research will be
used accomplished in UTFPR (2018) and as secondary data to IV Research of the
Socioeconomic and Cultural Profile of the graduation Students (2014).
KEYWORDS: Diversity; Affirmative Actions; Ethnic-Racial; Institutions; UTFPR.
1 | INTRODUÇÃO
O ponto de partida para essa investigação é uma provocação inicial de José
Márcio Barros (2009, p.10) sobre a complexidade do processo da diversidade: “As
diferenças culturais tanto inauguram possibilidades de uma nova ordem social quanto
nos remetem aos desumanos processos de exclusão”.
Se junto do autor entendermos a diversidade cultural como processos decorrentes
das diferenças, sejam elas línguas, linguagens, hábitos culturais, vestuários, religiões
e tantas outras, sejam as diferentes formas como sociedades, grupos sociais e
indivíduos se organizam e interagem, entre si e com o ambiente. “Diversidade cultural,
portanto, refere-se tanto aos processos de construção de nossas diferenças quanto
aos processos de interação que se estabelecem entre tais diferenças” (BARROS,
2018, p. 121). Nesse sentido, este trabalho busca explorar como se dão essas práticas
dentro de um espaço a partir da diversidade cultural instaurada, entendendo-as como
um direito ou garantia de cidadania, mas considerando também que pode ser fonte de
intolerância e discriminação.
O autor continua ponderando a importância dessa discussão como um tema
atual, complexo, mas a ser abordado por/em diferentes campos do saber, como a
comunicação. Diz ele:
Conjugar a cultura com o direito, a igualdade com a diversidade pode apontar
para possibilidades de reflexões e práticas transversais e abertas, que assegurem
as identidades referenciais, mas que garantam as possibilidades de trocas e o
reconhecimento das formas híbridas (BARROS, 2009, p.11).
Tal conceito de cultura permeia um sentido mais amplo, que não se restringe
a um aspecto particular das práticas humanas, mas a todas as dimensões do
comportamento individual e/ou coletivo; que não se reduz “aos processos de produção,
circulação e consumo de bens simbólicos reconhecidos socialmente por seus valores
e características artísticas” (BARROS, 2018, p.120), o que promove processos de
mediação pautados pela experiência de pertencimento e compartilhamento entre os
sujeitos. Esse conceito foi proposto pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura:
[...] como o complexo integral de distintos traços espirituais, materiais, intelectuais
e emocionais que caracterizam uma sociedade ou grupo social. Ela inclui não
Ciências da Comunicação
Capítulo 19
223
apenas as artes e as letras, mas também modos de vida, os direitos fundamentais
do ser humano, sistemas de valores, tradições e crenças. (UNESCO, 1982, p.1)
Assim, esse texto tem como objetivo apresentar a pesquisa sobre diversidade
e pluralidade étnico-racial realizada na Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR), Campus Curitiba/PR. A pesquisa desenvolvida, durante o ano de 2018,
como parte de um plano de trabalho de Iniciação Científica - Programa de ações de
bolsas de Iniciação Científica nas ações afirmativas -PIBIC, Instituição financiadora
Fundação Araucária (ano 2018) - tinha o propósito de identificar qual a percepção dos
estudantes da UTFPR sobre a temática da diversidade.
Este trabalho busca entender como essas práticas e trocas estão presentes numa
instituição pública de ensino superior, iniciando por um histórico das ações afirmativas;
depois a apresentação de um referencial teórico norteador composto pelas seguintes
obras: “Nem preto nem Branco” de Lilia Schwarcz, com a contextualização histórica de
desigualdade social e racial, “O Negro no Mundo dos Brancos” de Florestan Fernandes
e “Diversidade na Universidade: o BID e as políticas educacionais de inclusão étnico-
racial no Brasil” de Nina Paiva Almeida. Foram utilizadas também as obras “Ação
afirmativa no ensino superior brasileiro” de Feres Júnior e Zoninsein e “Políticas
Públicas: Uma revisão na Literatura” de Celina Souza. Por fim, com a apresentação dos
Dados Secundários da IV Pesquisa do Perfil socioeconômico e cultural dos estudantes
de graduação 2014 e da descrição dos dados da pesquisa “Diversidade e Pluralidade
étnico-racial na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)”.
A metodologia de pesquisa exploratória quantitativa foi a aplicação de questionário
por meio da plataforma Google Formulário. A UTFPR atualmente possui cerca de 11
mil estudantes, para a pesquisa priorizou-se o envio para os de graduação e pósgraduação (nível mestrado) do campus Curitiba. A pesquisa que ficou disponível entre
os dias 23 de março e 20 de abril de 2018 era dividida em três seções: a) identificação
e perfil do estudante; b) Leis afirmativas, e; c) qual a percepção dos alunos sobre
a diversidade na UTFPR. A pesquisa tinha um total de 26 perguntas. Foram 674
respostas.
2 | HISTÓRICO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS
A partir do ano 2000, no âmbito do ensino superior surgiram legislações para
a promoção da diversidade. Em 2002, foi implementada a primeira lei de incentivo
às ações afirmativas nas Universidades Públicas a Lei 10.558/2002 - o Programa
Diversidade na Universidade (PDU) - que tinha como objetivo a promoção ao acesso
ao ensino superior a população, negra e indígena (PLANALTO, 2002).
No final de 2003, foi regulamentada a Lei Nº 10.639, que passa a incluir no
currículo escolar do ensino escolar do fundamental e médio, os conhecimentos sobre
a história Afro-Brasileira. Assim, os conteúdos da História da África e seus povos, a
cultura negra brasileira, a luta dos negros no Brasil e o negro na formação da sociedade
Ciências da Comunicação
Capítulo 19
224
brasileira passam a ser obrigatórios (PLANALTO, 2003). No mesmo ano, em 2003,
é constituída a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), com o
propósito de reduzir as desigualdades raciais, fazendo valer os direitos, das ações
afirmativas nas questões de raça e gênero (JUSBRASIL, 2003).
Em 2009, foi aprovado o decreto que diz respeito ao Plano Nacional de Promoção
da Igualdade Racial (PLANAPIR), atuante nos eixos da educação, cultura, diversidade,
trabalho e segurança pública (PLANALTO, 2009). A lei federal 12.711, aprovada em
2012, instituiu que as instituições federais de educação superior vinculadas aos
Ministério da Educação (MEC) devem destinar - em cada ingresso seletivo - 50% das
vagas aos estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas
públicas (PLANALTO, 2012).
Medeiros (2015, p. 67) explica que na Universidade Tecnológica Federal do
Paraná (UTFPR), as ações afirmativas surgiram em 1910 ainda com a escola de
Aprendizes e Artífices assim nomeada, cujo objetivo à época, era o de ensinar e acolher
crianças em situação de vulnerabilidade social. Em 1936, a escola fora transferida para
a Avenida Sete de Setembro no centro de Curitiba/PR, onde começou a ministrar cursos
de 1° Grau, denominado como Liceu Industrial do Paraná. Em 1942, a organização se
torna reconhecida em todo o Brasil pelo ensino industrial e no ano seguinte, iniciam-se
os cursos técnicos com a alteração do nome para Escola Técnica Federal do Paraná.
Em 1978, a instituição foi transformada em Centro Federal de Educação Tecnológica
do Paraná (CEFET-PR) passando a ofertar cursos de graduação (MEDEIROS, 2015,
p. 67). Em 2005, a instituição mudou de (CEFET-PR) para Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (UTFPR). A partir desse ano, a instituição passou por mudanças
com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais (REUNI).
O REUNI é um Decreto n.º 6.096, do ano de 2007 que tinha como objetivo
principal ampliar o acesso nas universidades federais. Entre as ações do REUNI, está
o aumento de vagas nos cursos de graduação, a inovações pedagógicas e o
combate à evasão Anos mais tarde, em 2008, a UTFPR passa a incluir no processo
de vestibular dos cursos técnicos, o sistema de cotas destinando 50% das vagas
a alunos de escolas públicas. Além de considerar a nota do Exame nacional do
Ensino médio (ENEM)para o ingresso do aluno (UTFPR, 2017). Já em 2010,
a seleção e ingresso dos alunos começa a ser realizada pelo SISU (Sistema de
Seleção Unificada). O SISU é um sistema informatizado gerenciado pelo Ministério da
Educação (MEC), onde o candidato escolhe a Universidade pública dentre as opções
incluídas no programa (SISU, 2018).
Com a aprovação da Lei de cotas, em 2012, fica determinado que todos os
Centros, Institutos e Universidades Federais destinem 50% das vagas a candidatos
de escola pública, com renda inferior a 1,5 salário mínimo ou preto, pardos e índios
ofertados semestralmente nos processos seletivos. Tais candidatos podem se inscrever
nas categorias de cotas conforme descrito na tabela abaixo:
Ciências da Comunicação
Capítulo 19
225
Categoria 1
Cotista oriundo de família com renda bruta, comprovada, igual ou
inferior a 1,5 salário-mínimo, que não se declarou ser preto, pardo ou
indígena
Categoria 2
Cotista oriundo de família com renda bruta, comprovada, igual ou
inferior a 1,5 salários-mínimos e autodeclarado preto, pardo ou
indígena
Categoria 3
Cotista independente de renda (sem necessidade de comprovação) e
que não se declarou preto, pardo ou indígena.
Categoria 4
Cotista independente de renda (sem necessidade de comprovação) e
autodeclarado preto, autodeclarado pardo ou autodeclarado indígena
Tabela 1: Categoria de cotas Lei de 2012
Fonte: Produção própria
No primeiro semestre de 2018, a UTFPR passa a considerar uma nova categoria
de cotas instituída através da Portaria normativa n° 9 que inclui o acesso de pessoas
com deficiência. Tais categorias estão descritas na tabela a seguir:
Categoria 1 (C1c)
Cotista que possa comprovar ser Pessoa com Deficiência oriundo de
família com renda bruta, comprovada, igual ou inferior a 1,5 saláriomínimo, que não se declarou preto, pardo ou indígena.
Categoria 1 (C1s)
Cotista oriundo de família com renda bruta, comprovada, igual ou
inferior a 1,5 salário-mínimo, que não se declarou preto, pardo ou
indígena
Categoria 2 (C2c)
Cotista que possa comprovar ser Pessoa com Deficiência oriundo de
família com renda bruta, comprovada, igual ou inferior a 1,5 saláriomínimo, autodeclarado preto, pardo ou indígena
Categoria 2 (C2s)
Cotista oriundo de família com renda bruta, comprovada, igual ou
inferior a 1,5 salário-mínimo, autodeclarado preto, pardo ou indígena
Categoria 3 (C3c)
Cotista que possa comprovar ser Pessoa com Deficiência
independente de renda (sem necessidade de comprovação), que não
se declarou preto, pardo ou indígena
Categoria 3 (C3s)
Cotista independente de renda (sem necessidade de comprovação),
que não se declarou preto, pardo ou indígena
Categoria 4 (C4c)
Cotista que possa comprovar ser Pessoa com Deficiência
independente de renda (sem necessidade de comprovação),
autodeclarado preto, pardo ou indígena
Categoria 4 (C4s)
Cotista independente de renda (sem necessidade de comprovação),
autodeclarado preto
Tabela 2: Categoria de cotas a partir de 2018
Fonte: Produção própria
Ciências da Comunicação
Capítulo 19
226
3 | REFERENCIAL TEÓRICO
Segundo Schwarcz (2012), a discussão sobre as raças chegou ao Brasil em
meados do século XIX, no momento em que a abolição era irreversível. A escravidão
legitimou a inferioridade inibindo qualquer debate sobre democracia e igualdade,
disseminando o trabalho escravo e a violência na sociedade, assim fazendo emergir
desigualdades raciais e sociais, o que ocasionou diferenças no acesso à educação
e lazer, e na distribuição de renda, sendo evidente no nosso cotidiano até hoje. “As
teorias raciais só chegaram por aqui a partir de meados do século XIX. Neste país de
larga convivência com a escravidão onde o cativeiro durante ou mais de três séculos”
(SCHWARCZ, 2012, p. 19).
De acordo com Schwarcz o tema “raça” foi introduzido com base nas teorias
biológicas da época, como uma ciência positiva que pretendia explicar o fenótipo e
questões físicas e do cérebro, assim eliminando o pensamento de pensar no indivíduo
e na sua cidadania. Afirma a autora que tal pensamento sobre o determinismo racial que criou novas formas de hierarquia e estratificação - contribuiu para livrar a população
dos cativeiros mas não possibilitou a exclusão e diferenciação social. “Dessa maneira
em vista a promessa de igualdade jurídica a resposta foi a comprovação científica da
desigualdade biológica entre os homens” (SCHWARCZ, 2012, p. 19).
Para Fernandes (2015), o tema sobre raça e cor na sociedade sempre teve
repercussão entre os assuntos essenciais para os brasileiros. refletindo a questão
de identidade nacional a partir do século XIX, por meio da discussão sobre raça
identificado um Brasil negro e mestiço e indígena, assim o autor identificou em outras
pesquisas um conflito racial na sociedade brasileira, identificando a desigualdade e
discriminação, para o autor as relações raciais são entendidas como sistemas sociais
de exclusão pois o Brasil não realizava ações que construísse uma linha democrática
que incluísse e almeja-se de alguma forma o mais fragilizados em nossa sociedade.
Fernandes (1979, p 49) apresenta a ideia de que a “democracia racial” está
disfarçada de “tolerância racial”, é uma democracia que “significa igualdade social
econômica e política”. Para o autor a “democracia racial” é um mito criado pela maioria,
visando o interesse de um grupo. “Democracia racial não passa, infelizmente, de um
mito social. É um mito criado pela maioria e tendo em vista os interesses sociais e
valores morais dessa maioria”, diz o autor. Assim o mito da “democracia racial” atua
como “tolerância racial” não ajudando nem o branco e nem o negro a lutar e modificar
as questões raciais e sociais na sociedade brasileira (FERNANDES, 1979, p. 49.)
Logo após, o autor aponta as questões sobre a existência do preconceito, apesar
da sociedade brasileira parecer repugnar esses atos, ainda assim é possível observá-
los. Fernandes faz alguns questionamentos: sobre a posição do homem negro e do
homem branco na sociedade; de como a escravidão foi possível em um país cristão?
Por isso surgiu no Brasil o preconceito reativo, buscando combater o preconceito
contra quem promovia o preconceito.
Ciências da Comunicação
Capítulo 19
227
[...] o preconceito contra o preconceito ou preconceito de ter preconceito. Ao que
parece, entendia que o preconceito era algo degradante e o esforço maior passou
a ser o combater a ideia de que existiria preconceito no Brasil, sem fazer nada de
melhorar a situação do negro e de acabar com as misérias inerentes ao seu destino
humano na sociedade (FERNANDES, 1979, p 42.)
Nina Paiva (2008, p. 5) explica que o termo diversidade tem sido amplamente
difundido
no
campo
das
políticas
governamentais,
presente
nas
teorias
contemporâneas como a do multiculturalismo que refere-se não só a questões raciais
e étnicas, atrelado também a uma série de outros campos da vida social; fala-se, desta
maneira, em diversidade sexual, religiosa, cultural. Entende-se, aqui, “multicultural”
e “multiculturalismo” como substantivo que designa estratégias e políticas adotadas
para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade que ocorrem
em sociedades multiculturais (ALMEIDA, 2008, p. 122).
Para os autores Zoninsein e Feres Júnior, (2008, p. 27) a diversidade étnica
e racial é um componente de mobilização política, gerenciando conflitos e atuando
como inclusão social e visando o crescimento econômico, de acordo com os autores a
percepção de multiculturalista se adequa a liberdade de política e de identidade criando
mecanismo de distribuição e promoção social, assim encaminhando as escolhas por
liberdade multicultural.
As ações de promoção da diversidade no espaço universitário passam a ser
compreendidas através do Programa Diversidade na Universidade (PDU) criado pelo
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, por meio da Lei 10.558/2002 com
a finalidade de implementar ao ensino superior, os grupos desfavorecidos como a
população negra e indígenas. Após a implementação da lei essa pauta começou a
repercutir com maior visibilidade, dentro do mundo acadêmico na imprensa e no senso
comum, para Nina Paiva (2008) a diversidade na universidade são ações pensadas
e voltadas para as questões étnico- racial, que insere no campo de ações afirmativas
até então compreendida e estabelecida de acordo com cada instituição, que a partir
do PDU a diversidade na universidade passa a ser um paradigma sendo executadas
no contexto nacional (ALMEIDA, 2008, p. 124).
As ações afirmativas têm como propósito tentar reduzir as desvantagens
históricas da população marginalizadas e menos favorecidas assim o conceito de ação
afirmativa pode ser entendido como um conjunto que busca promover a igualdade e
não submetê-los a um processo universal, pois as falhas nos critérios de igualdade e
alguns fatores que interferem são os contexto social, econômico, político, racial, a ideia
de igualdade não é algo concreto mas sim compreendida como algo aprimore a ser
conquistado por meios dessas ações em busca da igualdade (ZONINSEIN, FERES,
2008, p. 9).
No Brasil, as ações afirmativas são consideradas constitucional sob duas linhas
de pensamentos, a primeira diz sobre a legalidade que assimila o fundamento mais
radical e está associada a uma política conservadora, já a outra, seria a moralidade,
ao adquirir o fundamento progressista compreendendo, assim, que a constituição é
Ciências da Comunicação
Capítulo 19
228
um documento aberto a comunidade e a outros intérpretes. Com base nessas duas
perspectivas positivistas, as ações afirmativas atuam no Brasil promovendo a cultura
indígena e afro-brasileira (ZONINSEIN, FERES, 2008, p. 11).
Para os autores (2008, p.23), as ações afirmativas no âmbito do ensino superior
possibilita a inserção de grupos étnicos raciais além de se beneficiar tais grupos com
as ações promovendo a reforma do ensino superior promoção social, econômica e
financeira dos estudantes, além de contribuir para a sociedade brasileira superar o
atraso de desigualdades sociais e raciais presente em nossa sociedade a décadas.
De acordo com os autores as ações afirmativas no ensino superior são analisadas
não apenas como uma ação compensatória, mas em formação de capital humano,
melhoria e bem-estar social e eliminação da desigualdade.
A política pública como política social busca entender suas multidisciplinaridades
de maneira holística onde o todo é mais importante que indivíduos, instituições,
ideologias e interações (SOUZA, 2006, p.6). A teoria da política pública é constituída
no campo da ciência política, ciência econômica e sociologia, assim a política pública
ecoa na economia e sociedade explicando a relação entre Estado, economia, política
e sociedade. A concepção de políticas públicas estabelece a formação dos governos
democráticos traduzindo seus propósitos em ações que refletirá em mudança na
realidade futura dessas ações. “As políticas públicas após desenhadas e formuladas
desdobram se em planos, programas, projetos bases de dados e ou sistema de
informações e pesquisas” (SOUZA, 2006, p.7).
4 | DADOS SECUNDÁRIOS/PESQUISA UTFPR
Como dados secundários foi utilizada neste trabalho, a IV Pesquisa do Perfil
Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Instituições Federais
de Ensino superior brasileiros do ano de 2014, pelo Fórum Nacional de Pró-reitores
de assuntos estudantis (FONAPRACE) e Associação Nacional dos Dirigentes das
Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES). A pesquisa tem por fim possibilitar
políticas de equidade e ações aos estudantes que permitam sua permanência no ensino
superior. Dentre esses fatores apresentamos de maneira macro como se caracteriza
esse cenário nas questões de raça, renda bruta familiar e área do conhecimento nas
Universidades Federais em todo território nacional no ano de 2014.
Diante desses dados, no ano de 2014, 939.604 mil estudantes estavam
matriculados em instituições federais; autodeclarados amarelos 2,3%; autodeclarados
brancos 45,67%; pardos 37,74%; pretos 9,81%; indígenas 0,6 % e não declarados
3,78%.
Em questões de bruta familiar 1,06% declaram não ter renda, 2,62 % declararam
renda de até meio salário mínimo; 48,81 % entre 0,5 a 2 salários mínimos; 24,72
% entre 3 a 5 salários mínimos; 10,3 % entre 6 a 8 salários mínimos; 2,96 % entre
Ciências da Comunicação
Capítulo 19
229
9 a 10 salários mínimos; 10,6% acima de 10 salários mínimos no total de 939.604
mil estudantes graduandos segunda a área de conhecimento qual está matriculado,
ciências agrárias 6,97 %, Ciências biológicas 4,2%, Ciências Exatas e da Terra 13,95%,
Ciências Sociais Aplicadas 22,23%, Ciências da Saúde 13,88%, Ciências Humanas
15,39%, Engenharias 15,66%, Linguística Letras e Artes 7,72% (ANDIFES, 2014.)
No aspecto micro será apresentada a pesquisa sobre “Diversidade e Pluralidade
étnico-racial na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), realizada
no período de 23 de março a 20 de abril com estudantes de graduação, técnico e
mestrado do campus Curitiba. O objetivo da pesquisa foi identificar a perspectiva dos
estudantes sobre diversidade dentro da instituição. Através de um formulário online da
plataforma Google enviado aos estudantes do campus em Curitiba, com 26 questões
separadas em três seções; Identificação e perfil básico do estudante, Leis afirmativas
e qual a percepção de diversidade na UTFPR. Na primeira semana do lançamento da
pesquisa foram obtidas 94, 65% de respostas, já na segunda semana o questionário
obteve 4,4% respostas, por fim a última semana obteve o total de 1,03% de respostas
totalizando 674 respostas. Ainda com base nesta pesquisa, é possível apontar os
principais dados sobre raça, renda familiar e área do conhecimento dos estudantes e
ingressantes na UTFPR pelo sistema de cotas.
Do universo de 674 respostas, conforme descrito anteriormente, quanto à raça e
etnia dos discentes, 1,6% se autodeclaram amarelos, 75,2% se autodeclaram Brancos,
0,1% indígena, 17,8% se declaram Pardos e 5,2% se declaram Pretos.
A renda per capita por família dos estudantes 3,1% inferior a meio salário mínimo,
23% entre 1 a 2 salários mínimos, 39,8% entre 3 a 5 salários mínimos, 16,8% entre 6
a 8 salários mínimos, 6,1% entre 9 a 10 salários mínimos, 11,3% acima de 10 salários
mínimos.
De acordo com a área do conhecimento que o estudante que estavam matriculados
na (UTFPR), Ciências agrárias 0,3%, Ciências biológicas 0,7%, Ciências Exatas e
da Terra 21%, Ciências Sociais Aplicadas 12,1%, Ciências da Saúde 4,5%, Ciências
Humanas 8,1%, Engenharias 35,4%, Linguística Letras e Artes 17,09% do total de 670
resposta.
Outro ponto é a forma de ingresso na UTFPR: 63,5% ingressaram na universidade
pela ampla concorrência enquanto 36,5% aderiram aos sistemas de cotas. Disposto
através das categorias de cotas 3,6% ingressaram na universidade por meio da
Categoria (C1c); seguida por 28,6% ingressaram por meio da Categoria (C1s); 1,6%
na Categoria (C2c); 16,5% Categoria 2 (C2s); enquanto 2,4% Categoria 3 (C3c); já
33,9% na Categoria 3 (C3s); 0% a Categoria 4 -(C4c); 13,3% Categoria 4 -(C4s). Por
fim se o aluno entrou na instituição pelo sistema de cotas, 63,5 afirmou ter ingressado
na instituição por ampla concorrência no processo seletivo SISU, enquanto 36,5
ingressaram na universidade pelo sistema de cotas.
Dispostos a seguir os gráficos com os dados da pesquisa na UTFPR quanto
à identificação e perfil básico do estudante, Leis afirmativas, qual a percepção de
Ciências da Comunicação
Capítulo 19
230
diversidade na UTFPR e ingressante na universidade pelo sistema de cotas:
Figura 1: Perfil básico dos estudantes da UTFPR
Fonte: Produção própria
Com a pesquisa realizada na UTFPR, identificamos o perfil dos alunos ingressantes
pelo sistema de cotas na instituição, estudantes autodeclarados pretos 5,2%, pardos
17,8%, indígena 1,6%, enquanto os alunos declarados brancos somam 75%. A renda
bruta desses estudantes com base na pesquisa, menor que meio salário mínimo, 3,1%
entre 1 e 2 salários 23%, entre 3 a 5 salários mínimos com 35,4%, entre 6 e 8 salários
mínimos 16,8%, considerando os alunos que obtêm renda acima de 8 salários mínimos
17,4 %. A área do conhecimento de Engenharia com 35,4 % seguida pela área Ciências
Exatas da Terra sendo que 36,5% ingressaram na universidade pelo sistema de cotas,
enquanto 63,5% ingressaram na universidade por ampla concorrência. A categoria de
cotas para o ingresso 33,9% Categoria 3 (C3c), a segunda 28,6% Categoria 1(C1s).
Através dos dados, compreendemos que a sociedade ainda não conseguiu ser
homogênea ou igualitária, pois alguns fatores demonstram a não inserção e noções
de democracia a todos independente de raça e/ou renda. Fernandes explica que é
preciso evoluir para noções menos toscas e egoístas do que vem a ser democracia,
compreender que “uma sociedade nacional não pode ser homogênea equilibradamente
sob a permanência de fatores de desigualdades que solapam a solidariedade nacional
(FERNANDES, 1979, p. 34). Junto do autor, entendemos que tal evolução é de longo
prazo mas que uma das medidas para a inclusão e inserção da diversidade na UTFPR
seja por meio de ações afirmativas.
5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos apresentar a pesquisa sobre “Diversidade e Pluralidade Étnico-
Racial, realizada na UTFPR” em 2018, partindo do conceito de diversidade cultural,
Ciências da Comunicação
Capítulo 19
231
abordando uma breve contextualização do histórico de leis afirmativas e regulamentação
em âmbito nacional e na instituição estudada.
No decorrer do processo da pesquisa foi realizada também uma pesquisa com os
docentes cujo objetivo era de identificar a percepção da diversidade na UTFPR. Foram
recebidas 58 respostas dos docentes do campus Curitiba. Vale ressaltar dentre as 26
perguntas, perguntamos se os professores participavam de ações à diversidade dentro
da universidade. Resposta de uns dos professores “Projetos sobre gênero, migração,
educação e trabalho.” Com essa descrição, notamos o quanto é necessário que outros
trabalhos, movimentos e coletivos discuta e debata sobre o tema de diversidade e
pluralidade não só no contexto acadêmico, mas sim em outros fatores que englobam
a sociedade como um todo.
Na pesquisa realizada os estudantes da UTFPR, campus Curitiba, responderam
se eram a favor ou contra os sistemas de cotas na universidade, 82,9% apontou a
favor enquanto 17,1% se disse contra. Dentre as justificativas, um dos estudantes
justificou ser a favor do sistema devido o contexto histórico. Segundo o discente, tal
contexto
[...] contribuiu e ainda contribui para o acúmulo de desigualdades. O sistema de
cotas é uma medida válida que trabalha as consequências dessa disparidade
entre alguns grupos. Não trabalha a causa, mas por trabalhar a consequência, é de
uma maneira mínima, uma certa “compensação” pela falta de suporte e apoio, que
no passado, vários grupos e sofreram, gerando consequências de opressão, falta
de oportunidades, entre outros... tais questões, se perduram até os dias atuais.
(DISCENTE, UTFPR, 2018)
Entretanto, dentre os discentes que se declaram contra o sistema de cotas,
também foi dada uma justificativa. Diz o discente: “Sou contra o sistema de cotas pois
somos iguais perante a lei”.
Assim, concluímos que as leis de ações afirmativas e o sistema de cotas contribuem
para a inclusão e inserção da diversidade cultural, bem como a percepção dessa
diversidade por parte dos discentes e docentes da UTFPR. É possível apontarmos
para um caminho no qual os fatores econômicos, sociais e políticos de desigualdade
racial e social presente na sociedade brasileira, pode no decorrer dos anos - com a
continuidade das ações afirmativas - modificar o contexto das universidades brasileiras.
REFERÊNCIAS
ANDIFES. IV Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das
Instituições Federais de Ensino superior brasileiros ano de 2014. Disponível em: <http://www.
andifes.org.br/iv-pesquisa-perfil-socioeconomico-e-cultural-dos-estudantes-de-graduacao/> Acesso
em 07 jul. de 2018.
ALMEIDA, Nina Paiva. Diversidade na Universidade: o BID e as políticas educacionais de
inclusão étnico-racial no Brasil. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro, UFRJ/MN/PPGAS2008. Disponível em:
<http://flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/285.pdf > Acesso em 06 jul. 2018.
Ciências da Comunicação
Capítulo 19
232
BARROS, José Márcio, BEZERRA, Jocastra Holanda (orga.). Gestão Cultural e Diversidade: do
Pensar ao Agir. Belo Horizonte : EdUEMG, 2018. [recurso eletrônico: e-book]. Disponível em <http://
observatoriodadiversidade.org.br/site/wp-content/uploads/2018/10/BARROS_e_BEZERRA_Gestao_
cultural_e_diversidade.pdf>. Acesso em 20 nov. 2018.
BARROS, José Márcio. Aos leitores. IN: Revista Observatório Itaú Cultural. Número 8 (abr.
jul./2009). São Paulo: Itaú Cultural, 2009. pp. 10-14. Disponível em: <https://issuu.com/itaucultural/
docs/revista-observatorio-8 >. Acesso em 20 nov. 2018.
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos Brancos. Disponível em: <https://books.google.
com.br/books?id=PMZcBAAAQBAJ&printsec=frontcover&dq=Fl orestan+fernandes&hl=pt-BR&sa=X&
ved=0ahUKEwiRrY7U4IbcAhXMi5AKHZ- DBS8Q6AEIODAD#v=onepage&q=desigualdade&f=false>.
Acesso em 06 jul. 2018.
FERNANDES, Florestan. O Negro no Mundo dos Brancos. Ed. Difusão Europeia do Livro, São
Paulo. 1972.
MEDEIROS, Jussara Marques. A política de Cotas na Universidade Tecnológica Federal do
Paraná. Dissertação (Mestrado tecnologia e trabalho) Universidade Federal do Paraná, UTFPR/
PR.
2015. Disponível em: <http://repositorio.utfpr.edu.br/jspui/bitstream/1/2638/1/CT_PPGTE_M_
Medeiros%2C% 20Jussara%20Marques%20de_2015.pdf >. Acessado em 06 jul. 2018.
JUSBRASIL. Decreto 4886/03. Disponível em: <https://presrepublica.jusbrasil.com.br/
legislacao/98187/decreto-4886-03> Acesso em 05 jul. 2018.
PLANALTO. Lei 10.558/2002. Disponível em: <http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/
Viw_Identificacao/lei%2010.558- 2002?OpenDocument>. Acesso em 06 jul. 2018.
PLANALTO. Lei 10.639/2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.
htm >. Acesso em 05 jul. 2018.
PLANALTO. Decreto 6872/2009. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2009/decreto/d6872.htm>. Acesso em 05 jul. 2018.
PLANALTO. Lei Nº 12.711, de 29 de Agosto De 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>. Acesso em 05 jul. 2018.
REUNI. Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. Disponível em: <http://reuni.
mec.gov.br/o-que-e-o-reuni>. Acesso em 05 jul. 2018.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem Preto nem Branco, muito pelo contrário cor e raça na
sociabilidade Brasileira. São Paulo: Claroenigma, 2012. Disponível em: <https://books.google.
com.br/books?id=8u2nBAAAQBAJ&pg=PT26&dq=desigualdade+social+lilia+schwarcz&hl=pt-BR&sa
=X&ved=0ahUKEwjlg7LAnoncAhWHQZAKHUTMCJ0Q6AEIOTAD#v=onepage&q= desigualdade%20
social%20lilia%20schwarcz&f=false > Acesso em 06 jul. 2018.
SOUZA, Celina. Políticas Públicas: Uma revisão na Literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8,
n°16, jul./dez 2006, p 20-40. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/soc/n16/a03n16 >. Acesso em
06 jul. 2018.
SISU. O que é o Sisu?. Disponível em: <http://sisu.mec.gov.br/inicial >. Acesso em 05 jul. 2018.
UNESCO. World conference on cultural policies, Mexico City, 26 july- 6 august 1982. Paris,
1982.197 p. Disponível em: <https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000052505>. Acesso em 20
nov. 2018.
UNESCO. Relatório Mundial da UNESCO Investir na diversidade cultural e no diálogo
Ciências da Comunicação
Capítulo 19
233
intercultural. Paris, 2009. Disponível em: <https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000127160>.
Acesso em 20 nov. 2018.
UTFPR. Em números 2015. Disponível em: <http://www.utfpr.edu.br/estruturauniversitaria/
diretoriasdegestao/dircom/noticias/materiais-institucionais-da-comunicacao/utfpr-em-numeros-2015>.
Acesso em 05 jul. 2018.
UTFPR. Processo seletivo SISU 2018-1. Disponível em: <http://portal.utfpr.edu.br/editais/
graduacao-e-educacaoprofissional/reitoria/sisu/edicoes-anteriores/2018.1/sisu-2018-1-retificadoem-08-03-18/view/++widget++form.widgets.arquivo_edital/@@download/4-Edital+001+2018PROGRAD+SISU+2018-1-Retific+em+08+03+18.pdf>. Acesso em 7 dez. 2018.
UTFPR. Nova Lei de Cotas sancionada será adaptada na UTFPR. Disponível em: <http://portal.
utfpr.edu.br/comunicacao/arquivo-de-noticias/reitoria/2012/nova-lei-de-cotas- sancionada-seraadaptada-na-utfpr >. Acesso em 06 jul. de 2018.
UTFPR. UTFPR irá adotar integralmente Lei de Cotas já no próximo Siso. Disponível em: < http://
www.utfpr.edu.br/doisvizinhos/estrutura-universitaria/assessorias/ascom/noticias/acervo/2012/utfpr-iraadotar-integralmente-lei-de-cotas-ja-no-proximo-sisu >. Acesso em 06 jul. de 2018.
UTFPR. VAGAS SISU 2018/2. Disponível em: <http://portal.utfpr.edu.br/cursos/estudenautfpr/sisu/
anexos/anexo-i-cursos-e-vagas.pdf>. Acesso em 05 jul. 2018.
ZONINSEIN, Jonas, FERES, João (org.). Ação afirmativa no ensino superior brasileiro.
Belo Horizonte Ed: UFMG;
Rio de Janeiro: IUPERJ. 2008. Disponível em: <https://books.
google.com.br/books?id=ig9eTgds_JkC&pg=PA35&dq=a%C3%A7%C3%A3o+a firmativa&hl=ptBR&sa=X&ved=0ahUKEwjphZjo5oXcAhVGjpAKHXFOCmgQ6AEIMzAC#v=onepage&q=a
%C3%A7%C3%A3o%20afirmativa&f=false >. Acesso em 06 jul. 2018.
Ciências da Comunicação
Capítulo 19
234
CAPÍTULO 20
A CULTURA DO SOL NASCENTE NAS TERRAS
CAPIXABAS
Rafaela Daima Lima
Universidade Vila Velha – UVV, Curso de
Jornalismo
Vila Velha – ES
Danielly Veloso Schulthais
Universidade Vila Velha – UVV, Curso de
Jornalismo
Vila Velha – ES
Andressa Zoi Nathanailides
Universidade Vila Velha – UVV, Curso de
Jornalismo
Vila Velha – ES
RESUMO: O artigo aborda as tradições da
comunidade japonesa no Espírito Santo, o
início da associação Nikkei e a sua rotina, como
festivais, cursos de língua, esporte e eventos
que envolvem os associados. Apresenta
alguns personagens importantes na imigração
japonesa no estado por meio da história oral,
que também foi utilizada para entender a cultura,
através de entrevistas com diferentes gerações,
mostrando o ponto de vista de cada um sobre
as tradições e costumes do Brasil, país em que
decidiram se estabelecer. O trabalho também
pretende ilustrar alguns dos principais aspectos
culturais da comunidade, externados a partir de
eventos promovidos pela instituição.
PALAVRAS-CHAVES: Associação Nikkei;
Tradição japonesa; Cultura.
Ciências da Comunicação
ABSTRACT: This paper proposes a study about
the Japanese traditions in the state of Espírito
Santo, the beginning of the Nikkei Association
and its routine, such as festivals, language
courses, sports and events that involve the
associates. Introducing some important
characters in the Japanese immigration in the
state through oral history, that was also used
to understand culture through interviews with
different generations, showing their views about
Brazilian traditions and customs, a country
where they decided to establish themselves.
This paper also aims to show some of the main
cultural aspects of said community externalized
through the events promoted by the Association.
KEYWORDS: Nikkei Association; Japanese
Tradition; Culture.
1 | INTRODUÇÃO
O Japão depois da Segunda Guerra
Mundial (1939 – 1945) começou a evoluir
economicamente e socialmente, na educação e
na saúde. Com isso, houve o grande crescimento
da população em um pequeno espaço, logo,
um aumento de desemprego, ocasionando a
imigração.
Um dos países que recebeu a maior parte
dos imigrantes japoneses foi o Brasil, devido
ao extenso território e à falta de mão de obra.
Capítulo 20
235
Desta forma, os imigrantes ajudaram na revolução industrial brasileira.
A imigração japonesa no Espírito Santo começou devido às siderúrgicas
japonesas que se estabeleceram no estado. Conforme discorre SUZUKI (no prelo):
O Estado do Espírito Santo teve início ao grande salto na industrialização
principalmente relacionado à siderurgia a começar pela implantação da COFAVI
em 1967, Hitachi Metalmecânica-1977, ELETROPLANET Filial Vitória em 1977,
start-up da NIBRASCO em 1978 e CST cujo start-up em 1983. (SUZUKI, noprelo)
Nesta época teve um grande crescimento da industrialização capixaba e a
presença nipônica foi um dos principais motivos para este acontecimento. (SUZUKI,
Prelo)
Cada trabalhador trouxe a sua família e com isso o número de membros da
comunidade foi aumentando. Eles vinham principalmente de outros estados, como
São Paulo e Paraná, com o maior fluxo migratório japonês. De 1977 a 1994 foi criada
por parte da Companhia Siderúrgica Tubarão (CST), “Sociedade Civil de Divulgação
Cultural e Educacional de Vitória”, uma organização para amparar os imigrantes e seus
dependentes. Em 1981, criaram a “Sundayclub”, um clube voltado ao entretenimento
dos Isseis (Primeira geração, os japoneses imigrantes) e os Nisseis (Segunda geração,
filhos nascidos no território brasileiro).
Este clube deu origem à Associação Nikkei Vitória, o núcleo da comunidade
japonesa no estado. Esta é a responsável pelo curso de língua japonesa, pelos
esportes, atividades e por repassar as tradições nipônicas para os descendentes e
pessoas interessadas na cultura oriental. Alguns dos pontos principais são os festivais
culinários que apresentam “novas” comidas japonesas para o povo capixaba. (SUZUKI,
Prelo)
No início, o papel principal da associação era fornecer um estudo adequado
equivalente ao país de origem para as famílias dos imigrantes, mas depois de alguns
anos a instituição ganhou outros objetivos sendo o principal transmitir a cultura nipônica
para os capixabas, pois muitos associados nos dias atuais são não-descendentes
casados com japoneses ou famílias que possuem algum vínculo com a associação.
(SUZUKI, no prelo)
2 | ASSOCIAÇÃO NIKKEI EM VITÓRIA
O Espírito Santo passou por um processo intenso de industrialização,
principalmente na área siderúrgica. Foram implantadas no estado empresas como
Companhia Ferro e Aço de Vitória (Cofavi), Eletro Planet e Companhia Siderúrgica
de Tubarão (CST), entre os anos de 1967 e 1983. Segundo Minetaka Suzuki (no
prelo), “junto com essas empresas vieram Técnicos, Engenheiros e Administrativos
japoneses, e para compor as equipes de coordenação da empresa foram contratados
muitos técnicos de cada especialidade com conhecimentos de idioma japonês [...]”.
Suzuki (no prelo) explica que:
Ciências da Comunicação
Capítulo 20
236
Com a siderúrgica CST vieram se estalar na Grande Vitória o grupo Kawasaki Steel
Corporation, e a empresa com obrigação de dar amparos para os seus funcionários
criou a “Sociedade Civil de Divulgação Cultural e Educacional de Vitória”. Tendo
em vista o aumento da população japonesa e de seus descendentes, foi fundada
em 1984 a Associação Nikkei (SUZUKI, no prelo).
De acordo com o estudo mais recente realizado 2012, são cerca de 110 famílias
que estão cadastradas na associação, cerca de 345 pessoas, sendo 100 famílias com
descendência nipônica e dez não nipônica.
De acordo com dados divulgados pela Central Intelligence Agency (CIA) em
2016, o Brasil é o país que possui o maior número de japoneses e descendentes fora
do Japão, são mais de 1,6 milhão de pessoas. O “Bairro da Liberdade” localizado na
cidade de São Paulo abriga a maior colônia japonesa do mundo fora do Japão.
Diferente da comunidade nipônica de São Paulo, no Espírito Santo os japoneses
e descendentes vieram de outros estados, de forma que emigração fora estimulada
sobretudo pela siderurgia.
3 | A PRESENÇA JAPONESA
A presença do Japão no Brasil teve a sua principal importância no crescimento
industrial. Segundo Saito (1989), o fluxo migratório ocorreu em três fases, diferenciandose pelo contato que os imigrantes tinham com o seu país de origem e seus objetivos
no Brasil.
A primeira fase ocorreu entre 1908 a 1941 e ficou conhecida pela vinda dos
imigrantes agrícolas para suprir a falta de mão de obra nas lavouras de café. Já a
segunda ocorreu na época pós-guerra, entre 1953 a 1962, quando o fluxo migratório
declinou devido à crescente industrialização no Japão. A última dessas fases começou
na década de 60 e continua até nos dias atuais, havendo o aumento de imigração
devido às montagens de empresas japonesas no território brasileiro.
Essa nova modalidade de imigração alcança seu ponto culminante no quinqüênio
de 1969 a 1973, período cognominado de ‘milagre brasileiro’, transferiram-se e /
ou instalaram-se mais de 300 empresas nesse qüinqüênio, em variados setores de
atividades industriais, comerciais e financeiras, quer aplicação do capital exclusivo,
quer mediante a participação na forma de joiní-venture. (SUZUKI, 1980, p.84)
Segundo Saito (1989), nas duas primeiras fases, os imigrantes tinham um bom
relacionamento, chamado de “espírito da colônia”, porém não ocorre o mesmo com
o advento da terceira fase empresarial, devido ao tempo limitado de permanência
e grande ligação com o país de origem. Na época de 1908 a 1962, os nikkeys que
vinham para o Brasil estavam à procura de uma nova qualidade de vida para eles e
para sustentar o restante da família que permanecia no Japão, pois geralmente vinha
um dos filhos mais velho a procurar emprego. Quando vinham para o Brasil, muitos
acabaram por fixar suas permanências, constituindo suas próprias famílias a partir do
casamento com brasileiras, fato que implicou na reconfiguração identitária do referido
Ciências da Comunicação
Capítulo 20
237
grupo.
4 | IMIGRAÇÃO JAPONESA E IDENTIDADE NACIONAL
O Japão é conhecido por suas tradições e uma das mais importantes, é o respeito
com os mais velhos. Com a crise no Japão pós-guerra, muitos vieram para o Brasil
à procura de qualidade de vida e crescimento financeiro. Como é muito comum nos
fluxos migratórios, após constituir família, decidiram não mais regressar à terra natal.
A presença desses imigrantes e seus descendentes inevitavelmente, acarretou novos
contornos culturais que revelam em formas híbridas o encontro entre as duas culturas.
“[...] a cultura brasileira inevitavelmente adquirida, passa a fazer parte da vida de tais
descendentes que, além de conviver com os hábitos japoneses, também se sentem
vinculados ao Brasil.” (ALMEIDA, 2007, p.7)
Segundo Almeida (2007), os descendentes entendem a importância da mistura
da tradição nipo-brasileira, devido ao papel dos japoneses na identidade nacional.
5 | HISTÓRIA ORAL
A base principal para realização deste artigo é a História Oral, que consiste em
recolher informações baseadas em experiências vividas por diferentes gerações e
povos. Segundo Thompson (1998, p.197) “Toda fonte histórica derivada da percepção
humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetividade:
descolar as camadas da memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de
atingir a verdade oculta.”
Através de observações de historiadores orais, foi possível constatar que fontes
mais idosas, por terem mais experiências, relatam casos específicos com enorme
quantidade de detalhes. De acordo com Thompson (1998, p.204), tais fontes “[...] ao
narrar sua história usam o ‘eu’ ativo, tendo como certo serem eles mesmos o sujeito
de suas ações por meio das formas de falar que utilizam.”
Para colher as informações necessárias, é preciso estruturar uma boa entrevista
com perguntas que possibilitam extrair ao máximo todos os conhecimentos do
entrevistado, permitindo ao entrevistador se aprofundar no assunto.
De acordo com Thompson (1998), um bom entrevistador deve conter habilidades
e qualidades essenciais para alcançar uma entrevista bem-sucedida como, por
exemplo, deixar a fonte falar e buscar compreender da melhor maneira possível o
que foi passado, sem contestar sempre. Para Thompson (1998, p.254) “Quem não
consegue parar de falar, nem resistir à tentação de discordar do informante, ou de lhe
impor suas próprias idéias, irá obter informações que, ou são inúteis, ou positivamente
enganosas.” (sic)
As entrevistas são realizadas a fim de conceder a quem está entrevistando,
conhecimentos sobre o assunto abordado. Entretanto, algumas fontes buscam testar
Ciências da Comunicação
Capítulo 20
238
as habilidades do historiador oral, passando a ideia de inversão de papeis, quando o
entrevistado vira entrevistador. Essa atitude dificulta o andamento do diálogo, assim,
o profissional deve manter a calma e contornar a situação.
As perguntas de uma entrevista podem ser feitas através de questionários
fechados, em que as respostas são curtas e diretas, ou de forma livre, quando se
podem obter respostas mais amplas e memoráveis das experiências vividas. Segundo
Thompson (1998, p.258) “O argumento em favor de uma entrevista completamente livre
em seu fluir fica mais forte quando seu principal objetivo não é a busca de informações
ou evidências que valham por si mesmas, mas sim fazer um registro ‘subjetivo’ de um
homem [...]”.
Essas técnicas foram utilizadas em todas as entrevistas realizadas para a
construção deste artigo e, a partir delas, obtiveram-se informações e dados essenciais
de como viveram e como foi o processo de imigração das primeiras gerações
descendentes japoneses no estado do Espírito Santo.
6 | A ENTREVISTA: INSTRUMENTAL DE COLETA DE DADOS
A entrevista é uma conversa que tem como objetivo obter informações sobre
determinada pessoa ou assunto. Segundo Scheuch (1973, p.171-172) “Ela tornou-se
técnica clássica de obtenção de informação nas ciências sociais, com larga adoção
em área como sociologia, comunicação, antropologia, administração, educação e
psicologia.” (apud BARROS e DUARTE, 2014, p.62)
A entrevista utilizada para a realização desse artigo é a individual em profundidade,
que consiste em recolher respostas a partir de experiências vivenciadas pela fonte.
Para obter o sucesso desejado, o questionário, que será dirigido ao entrevistado, deve
estar estruturado de forma que permita uma grande exploração e aprofundamento do
assunto. De acordo com Barros e Duarte (2014, p.63) “[...] as perguntas possibilitam
ainda identificar problemas, micro interações, padrões e detalhes, obter juízo de
valor e interpretações, caracterizar a riqueza de um tema e explicar fenômenos de
abrangência limitada.”
As entrevistas são classificadas de três formas distintas: aberta, semi-aberta
e fechada. A primeira é marcada por fluir livremente, podendo ser aprofundada em
qualquer momento do diálogo, não tendo uma sequência de perguntas e nem um
parâmetro de respostas. Já a segunda possui um roteiro a ser seguido, porém a
lista de questões-chaves pode ser adaptada ao longo da conversa. E a terceira tem
a finalidade de comparar as respostas de vários entrevistados, impondo a mesma
pergunta a todos, nesse caso não há um debate do assunto entre o entrevistador e o
entrevistado. (apud BARROS e DUARTE,2014)
Utilizando essa técnica de entrevista, o analista possui a liberdade de gerar
pareceres e críticas ao assunto. Para Barros e Duarte (2014, p.81) “[...] mais do que uma
Ciências da Comunicação
Capítulo 20
239
técnica de coleta de informações interativa baseada na consulta direta de informantes,
a entrevista em profundidade pode ser um rico processo de aprendizagem [...]”
Para garantir a segurança no momento da coleta de informações, foram utilizados
também instrumentos como, caderneta de anotações, gravador, telefone e internet.
Ressalta-se o fato de que as falas foram transcritas integralmente, visando obter
a máxima aproximação com a autenticidade do depoimento dos entrevistados.
7 | ENTREVISTA COM AMANDA YUKI
Os avôs de Amanda Yuki vieram para o Brasil e tiveram seus filhos. Eles
cresceram e se conheceram, tendo sempre a cultura japonesa muito presente em
suas vidas. Eles se casaram e voltaram para o Japão em 1997, e em 1998 a Yuki
nasceu em Hiroshima.
Viveram vários anos no Japão, mas os pais de Yuki sofreram muito preconceito,
pois mesmo tendo características orientais eles eram considerados estrangeiros
por terem nascido no Brasil, sendo assim, não foram reconhecidos pelos vizinhos
e colegas de trabalhos, o que ocasionou dificuldades para continuarem vivendo na
“Terra do Sol Nascente”. Outro ponto importante foi que não conseguiram registrar a
Yuki e seus irmãos no Japão. Amanda disse que não chegou a sofrer bulling, mas que
esta era uma realidade muito presente na escola em que estudava, principalmente se
alguém possuía características não orientais.
Seus pais decidiram voltar, pois sobreviver no Japão ficou mais difícil a cada dia,
e pensando em seus filhos, a família decidiu se mudar para o Brasil. Inicialmente, foram
morar em São Paulo, onde Amanda e seus irmãos aprenderam a Língua Portuguesa.
“Aprendi português, entrei no ensino médio e comecei um treinamento que ouvia
conversas em português. A escrita no Japão, as palavras são soltas, e aqui treinava
escrevendo corrido no Kumon.” (YUKI, 2018).
Ela aprendeu português no Kumon e disse que foi bem difícil e que ainda hoje,
após cinco anos desde que chegou ao Brasil, possui dificuldades com algumas
colocações e na escrita. Várias mudanças ocorreram para que adaptar-se à cultura
brasileira, e um dos fatos mais chocantes para ela foi a presença de mendigos, a
desorganização e sujeira nas ruas.
“Eu achei que mendigo era tudo de televisão, ai na primeira vez que eu vi eu falei
‘é TV?’ e a minha mãe falou que aqui tinha isso e fiquei muito chocada. E as ruas
também, no Japão é tudo certinho e aqui não, e isso me chocou.”(YUKI, 2018)
Para Yuki, outro choque de cultura foi o contato físico que faz com que a cultura
brasileira difere-se da japonesa, como por exemplo, abraçar as pessoas quando
acabam de se conhecer. Ela estranhou no início mas depois se acostumou, porém
seus pais ainda possuem dificuldades com o contato físico até hoje, pois é diferente
da cultura que está enraizada.
Ciências da Comunicação
Capítulo 20
240
“Nossa, eu fiquei parada tipo robô ‘o que ele está fazendo em mim’, mas depois
eu percebi que é normal. Para me acostumar foi difícil, agora já me acostumei. No
início falava, ‘sem abraço’, ‘não abraça’, mas com o tempo eu acostumei, mas foi
difícil no começo.”
Ela permaneceu durante dois anos em São Paulo e depois seus pais decidiram
vir para o Espírito Santo, pois já tinham morado no estado.
Quando chegou ao solo capixaba, alguns de seus amigos de Yuki falaram sobre
a associação Nikkei, logo, ela foi procurar a instituição, pois já dava aulas particulares
de japonês. Quando chegou, descobriu que um dos associados era conhecido de sua
avó, pois na época que seus pais e avós moravam no Brasil, ele tinha uma loja de
fotografia em frente ao restaurante de sua família.
Quando cheguei lá tinha uma pessoa que conhecia a minha avó, pois ela teve
o primeiro restaurante japonês do espírito santo e em frente tinha uma loja de
fotografia do Irie san, então a minha avó conheceu e conseguiu intimidade, e ai que
eu consegui, pois ele falou que a professora voluntária ia embora e iria precisar de
uma professora e como estava aumentando os alunos na escola, foi uma chance
para mim. (YUKI, 2018. Entrevista)
Yuki leciona na Associação Nikkei aulas particulares de japonês e participa dos
eventos promovidos pela instituição.
8 | MATÉRIA E ENTREVISTA DO SHIRO IRIE
Shiro Irie é nascido em Taiwan durante a Segunda Guerra Mundial em 1943. Na
entrevista, ele conta sobre o local em que nasceu: “Na época Taiwan pertenceu ao
Japão mais de 50 anos, Mesmo nascendo em Taiwan meu registro é tudo no cartório
de Japão” (IRIE, 2018. Entrevista)
Quando tinha 14 anos de idade, Irie imigrou com sua família para o Brasil,
permanecendo inicialmente no interior de São Paulo para trabalhar em uma lavoura
de café. Depois de alguns anos seus pais se mudaram, mas ele continuou no mesmo
local, pois, estudava em uma escola e começou a trabalhar como aprendiz em um
estúdio fotográfico. Para se aprimorar na área, ele teria que fazer um curso e conseguir
equipamentos mais profissionais. Irie teve uma oportunidade de realizar a cobertura
fotográfica da comitiva japonesa que veio para a comemoração dos 400 anos do Rio
de Janeiro. Assim conseguiu aprimorar suas técnicas na fotografia no Japão.
Nesta comitiva estava o gran mestre do cerimônia do chá do estilo Owara, 15ª
mestra da linhagem Ura Senke, o Sr. IremotoHou Um, que foi designado como
representante cultural do Japão. Uma tia do Sr. Irie era representante do estilo Owara
da cidade Kita Kyushu e por intermédio da indicação dela, o Sr. Irie fez a cobertura
fotográfica da comitiva durante a estada no Brasil. Através do encaminhamento do
Sr. Kasuhiko Kudo que fazia parte desta comitiva e professor da cerimônia do chá,
o Sr. Irie conseguiu uma oportunidade de aprofundar nas técnicas fotográficas no
Japão. (MATSUDA, 2013,p.2)
Irie fez um curso de cinco anos em um estúdio fotográfico em Tóquio, quando
retornou para o Brasil montou um estúdio em São Paulo, mas depois escolheu se
Ciências da Comunicação
Capítulo 20
241
mudar para o Espírito Santo, e veio com alguns equipamentos fotográficos. Quando
chegou ao solo capixaba montou a sua loja de fotografia “Foto Japan” situada na Mata
da Praia, em Vitória, em 1974.
No início o estúdio não tinha clientes, mas com a vinda de outros japoneses para
o estado tornaram-se conhecidos e a clientela passou a aumentar.
Irie participou da organização da associação Nikkei no ínicio, e continua até os
dias de hoje. Após trinta anos, os filhos dos associados partiram para outros estados
ou para o Japão, mas a instituição continua ensinando a cultura para os descendentes
e para a comunidade capixaba.
9 | ENTREVISTA COM HACHIRO OUCHI
Hachiro veio para o Brasil com dezenove anos em 1960, trabalhando inicialmente
com sua família, que era dona de uma mercearia em São Paulo. Ele afirma que nos
cinco primeiros anos foi difícil a adaptação, devido o a cultura brasileira e a dificuldade
com a língua portuguesa.
Hachiro se acostumou com o novo país, quando começou a conhecer outros
japoneses e entrou em um cursinho para aprender português, já que queria prestar
vestibular. No Japão ele estudava para cursar medicina, mas quando tentou aqui
no Brasil sentiu dificuldade devido a língua, por isso escolheu economia, pois tinha
facilidade com os números.
“Fui escolher uma área que tem menos complicação. Matemática e inglês pois
eram matérias que eram comum no Japão. Terminei curso de economia e fiz pósgraduação em economia também.” (OUCHI, 2018. Entrevista)
Depois que terminou os estudos recebeu uma proposta de um amigo para ir para
o Espírito Santo para trabalhar na Vale do Rio Doce. Ele permaneceu no estado de
1974 a 1989, durante quinze anos, após este período foi transferido para um escritório
da Vale em Tóquio, onde ficou por cinco anos. Quando retornou para o Brasil foi para
o Rio de Janeiro, e depois de cinco anos a filial que trabalhava fechou, sabendo desta
situação, um amigo de Hachiro o chamou para retornar ao solo capixaba, ficando até
2001. Após esta data, foi para Belo Horizonte permanecendo no local até 2006, depois
se aposentou.
“O chefe me chamou e disse que já estava na hora de me aposentar, tinha mais
de 35 anos de trabalho, muito mais, e depois voltei para cá em 2007 por aí e voltei para
a atividade da associação no cargo de presidente.” (OUCHI, 2018. Entrevista).
Quando retornou para Vitória, recebeu a presidência da associação Nikkei,
ficando cinco anos no cargo, depois passou para Nakamura. Após ficou com função
de diretor da Escola de Língua Japonesa (EMOJAVI - abreviação da sigla japonesa).
Ciências da Comunicação
Capítulo 20
242
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os imigrantes japoneses realizaram a migração para o Espírito Santo tardiamente,
começando por volta de 1960 devido às siderúrgicas japonesas que se instalaram
no estado. Com a vinda dos funcionários e de suas respectivas famílias, houve a
necessidade de uma instituição que ensinasse a língua japonesa com a mesma
qualidade do Japão, assim criou-se a Associação Nikkei que passou por diversas
transformações ao longo desse tempo.
Quando os japoneses chegam ao Brasil, enfrentam algumas dificuldades para
se adaptar devido às diferenças culturais. Amanda Yuki, nos primeiros contatos com
os brasileiros na época do ensino médio relatou que sentiu desconforto quando as
pessoas lhe abraçavam e seus pais até nos dias de hoje não conseguem se acostumar
com algumas atitudes.
Já Hachiro sentiu dificuldades de aceitação devido ao jeito que os clientes os
tratavam, principalmente a forma de se comunicar. Isso é muito frequente entre os
imigrantes, ou estranham o local pelo modo e costumes da sociedade ou pela língua.
No caso do Brasil o português é uma das línguas mais difíceis por suas variantes, e
também se diferencia da língua japonesa. Irie teve dificuldades, pois trouxe técnicas
de sua profissão, a fotografia, na qual o povo capixaba não sabia a necessidade de tal
serviço, mas teve progresso com a chegada de outros imigrantes japoneses.
A Associação Nikkei possui o papel de unir as duas culturas, promovendo alguns
eventos e festivais tradicionais do Japão, como a excursão para ver as cerejeiras
(hanami) em Domingo Martins que acontece em julho, e o festival culinário, um evento
que ocorre duas vezes por ano e oferece vários tipos de comidas típicas. Estas são
formas de transmitir para os associados que preservam suas conexões japonesas e
também traz para as pessoas que se interessam por esta cultura, um maior contato
com as tradições nipônicas.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Sandra. Imigração japonesa e identidade nacional.Brasília: Monografia do Centro
Universidade de Brasília,2007.
BARROS, Antonio; DUARTE, Jorge. Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. 2. ed. São
Paulo: Editora Atlas S.A, 2014.
OUCHI, Hachiro. Depoimento: 5 mai. 2018. Entrevista concedida a Rafaela Daima Lima. Vitória, ES,
2018. 1 arquivo.mp3 (42 min. 36 seg.).
SAITO, Hiroshi (Org.). A presença japonesa no Brasil. São Paulo: T.A. Queiroz: Ed. da Universidade
de São Paulo, 1980.
SHIRO, Irie. Explicação sobre seu nascimento em Taiwan.Vitória. 2018. Entrevista concedida a
Rafaela Daima Lima, Vitória, 6 de junho de2018.
Ciências da Comunicação
Capítulo 20
243
SHIRO, Irie. Salto a uma terra nova somente com uma câmera. Jornal São Paulo Shimbum, São
Paulo, 26 de maio de 2013. Entrevista concedida a Massao Matsuda.
SUZUKI, Minekata. História da comunidade japonesa de vitória.Vitória: No prelo, s.d. THOMPSON,
Paul. A voz do passado: História oral.Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1998.
YUKI, Amanda Kato. Depoimento: 8 mai. 2018. Entrevista concedida a Rafaela Daima Lima. Vila
Velha, ES, 2018. 2 arquivo.mp3 (08 min. 19 seg.).
Ciências da Comunicação
Capítulo 20
244
CAPÍTULO 21
A REPRESENTAÇÃO DOS ASIÁTICOS NA TV
BRASILEIRA: APONTAMENTOS INICIAIS
Krystal Urbano
Universidade Federal Fluminense (PPGCom UFF)
Niterói - Rio de Janeiro
Maria Elizabeth Pinto de Melo
Universidade Federal Fluminense (PPGCom UFF)
Niterói - Rio de Janeiro
Obra e adaptação das autoras, baseada em sua produção para
o Intercom ed. 2018.
RESUMO: O objetivo desse artigo consiste
em apontar inicialmente como as dinâmicas
de representação asiática funcionam e são
estruturadas na televisão brasileira. A noção de
negritude aqui aparece como um guia para se
pensar branquitude e este artigo acrescenta a
problemática enfrentada por asiáticos e seus
descendentes no Brasil. A premissa central
é que a discriminação contra os asiáticos na
sociedade brasileira, sobretudo nos ambientes
das mídias locais, seja sustentada por redes
da branquitude brasileira que atua de forma
narcisista e em constante rivalidade com nãobrancos.
PALAVRAS-CHAVE:
identidades
étnicoraciais;
branquitude;
representatividade
asiática; televisão brasileira.
ABSTRACT: This article have the intention
to introduce how the dynamics of Asian
representation work and are structured in
Brazilian television. The ‘Blackness” is being
using as a guide to think about whiteness and
some problems faced by Asians and theirs
descendants in Brazil. The central premise is that
discrimination against Asians in Brazilian society,
especially in the local media environments is
sustained by networks of Brazilian whiteness
that acts narcissistically and in constant rivalry
with non-whites.
KEYWORDS: ethnic-racial identities; whiteness;
Asian representativeness; Brazilian television.
1 | INTRODUÇÃO
No dia 14 de março de 2017, foi ao ar
na Rede Globo de Televisão uma reportagem
bastante controversa no programa Globo
Esporte, telejornal esportivo veiculado de
segunda a sábado nas tardes da referida
emissora. A matéria tinha como foco o Glory of
Heroes, a maior competição de artes marciais
da China que desembarcaria no Brasil para
uma edição inédita no ginásio do Ibirapuera na
cidade de São Paulo.
No dia 16 de março, o canal do YouTube
Yo Ban Boo, lançou um vídeo
“Fala Frango!”
1
chamado
destacando as partes mais
1. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JxMHrklSC2E>
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
245
desagradáveis e polêmicas dessa reportagem de quase quatro minutos de duração.
As principais críticas à matéria do Globo Esporte centravam-se na questão linguística
através da qual a repórter Camila Silva “brincou” com os entrevistados cobrando uma
fala mais “nativa” brasileira. De fato, toda a reportagem disponível no GloboPlay2
trabalha em torno da dificuldade de alguns entrevistados falarem português-brasileiro
e pouco se fala sobre as competições e a relevância do evento em si. Dentre os
comentários mais significativos recebidos dos seguidores do canal Yo Ban Boo
destacam-se aqueles que mencionaram o fato da repórter ser negra e ter sido capaz
de reproduzir piadas discriminatórias nas perguntas direcionadas aos imigrantes
chineses entrevistados na matéria. O canal, no entanto, se posicionou em defesa da
repórter como mostra esse disclaimer fixado pela equipe nos comentários do vídeo:
Esse vídeo é para mostrar como a mídia, no caso o Globo Esporte, normaliza esse
tipo de atitude. Este vídeo não é uma crítica individual a repórter e pedimos respeito.
Ela sozinha não deu esse tom à entrevista. Quem editou? De todas as perguntas
que ela fez, por que colocaram só essas partes? Aquela musiquinha, a direção,
quem orientou o tom das entrevistas? Ela só foi a única que expôs o rosto. Faltou
noção da realidade, mas a responsabilidade é da Globo, da mídia. Comentários
racistas e/ou preconceituosos serão excluídos e bloqueados.
De fato, após a exibição da fatídica reportagem e sua negativa repercussão
no ambiente das mídias sociais, a repórter do Globo Esporte escreveu um extenso
pedido de desculpas em seu Facebook e no próprio canal do Yo Ban Boo, no YouTube,
explicando que a reportagem não ficou no formato desejado por ela; que as perguntas
ofensivas expressavam o oposto da sua intenção na ocasião. Não obstante, a
repórter foi alvo nos dias seguintes de ataques igualmente discriminatórios devido
a este episódio, tendo recebido diversos comentários depreciativos em suas mídias
sociais (do tipo “pelo menos comem frango e não bananas”, “imagina se fala imita um
macaco”, dentre outros). Talvez mais importante e relevante para o nosso argumento
seja o fato de que entre todos os envolvidos na reportagem (produtores, editores,
dentre outros), Camila tenha sido a única a se desculpar publicamente pelo ocorrido,
nos levando a crer que sua posição enquanto mulher negra tenha contribuído para tal
posicionamento, em oposição à atitude adotada pela emissora de TV responsável pelo
programa, que não se pronunciou sobre o caso em questão.
Se for consenso que identidade e representação caminham juntas, como bem
nos explica Stuart Hall (1997, 2000, 2003), não significa que ambas caminhem
apoiando-se mutuamente. Sendo a identidade uma “arena de disputas pelo direito de
significar” e a representação “uma instância que materializa as dinâmicas constitutivas
da primeira” e, concebendo ambas como um “processo discursivo”, pode acontecer
que “identidades fluidas e cambiantes sejam fixadas por sistemas de representação
estáticos, pautados por essencialismos e mediados pelo discurso do senso comum”
(MONTEIRO, 2008, p. 08).
Com efeito, no que diz respeito à representatividade midiática, os brasileiros de
2. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/5726148/>.
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
246
ascendência asiática têm pouca visibilidade na mídia brasileira, sendo rara a presença
destes em comerciais, telenovelas e filmes e, quando ocorrida, fundamentalmente
é marcada por estereótipos recorrentes, ocasionando uma sub-representatividade
nesse universo3. Na teledramaturgia nacional, por exemplo, atores de origem oriental
apenas conseguem papéis caricatos e que remetem ao estereótipo do japonês/
asiático, como de feirantes e pasteleiros ou de aficionados por tecnologia, praticantes
de artes marciais e vendedores de sushi, gueixas e samurais. Em testes para um papel
na televisão, há relatos de atores que são obrigados a forçar um “sotaque japonês”,
mesmo estando a comunidade nipônica na quinta geração no Brasil. Dificilmente um
ator oriental consegue um papel que não tenha relação com a sua origem étnica, que
é potencializada nessas representações.
O objetivo desse artigo consiste em apontar inicialmente como as dinâmicas de
representação asiática funcionam e são estruturadas na televisão brasileira. Temos a
intenção de pensar de forma interseccional não apenas levando em consideração a
tríade de raça, gênero e sexualidade (CRESHAW, 1995; LUGONES, 2008; BIDASECA,
2010), como também as realidades de grupos (raciais) não-brancos distintos com um
problema em comum: o branco. A noção de negritude aqui aparece como um guia
para se pensar branquitude4 e este artigo acrescenta a problemática enfrentada por
asiáticos e seus descendentes no Brasil.
Tendo em vista atingir os objetivos propostos, o argumento do artigo se divide
em duas partes. A primeira destaca de forma mais contingente o branco como foco do
problema do racismo contra asiáticos e, na segunda parte, discutimos sobre a forma
que os asiáticos e seus descendentes costumam ser retratados na mídia televisiva
brasileira através de alguns casos previamente elencados. Nossa aposta é que a
discriminação contra os asiáticos na sociedade brasileira, sobretudo nos ambientes
das mídias locais, seja sustentada por redes da branquitude brasileira que atua de
forma narcisista e em constante rivalidade com não-brancos.
2 | FOCO DO PROBLEMA RACIAL: A BRANQUITUDE NA RELAÇÃO COM OS
“OUTROS”
Quando se trabalha com a noção de raça, é comum que o foco das discussões
não seja o branco e que o “privilegiado” como “objeto de estudo” seja o negro. Isso
porque a branquitude foi construída como padrão, isenta de problemas, ou seja, como
3. O ator Carlos Takeshi após ter dito em agosto do ano passado, semanas antes da estreia de “Sol Nascente”, um
dos casos que será abordado nesse artigo: “Adoro Luis Melo. Adoro Giovana Antonelli. Odeio discriminação. Odeio
preconceito. Por que trocaram (o ator) Ken Kaneko? Oriental não pode ser protagonista? Vivem me pedindo para
forçar sotaque e quando o ator tem sotaque naturalmente é descartado para um papel de destaque? Vão ter que
explicar muito bem. Eu não engulo a mestiçagem que criaram para o personagem”. Disponível em: <https://www.
otvfoco.com.br/ator-que-criticou-globo-por-japoneses-fakes-entra-para-sol-nascente/>.
4. Branquitude (ou branquidade) está sendo usado neste artigo como referente à noção de identidade branca.
Ao longo do artigo será possível compreender minimamente como ela é construída e alguns dos problemas que
surgiram a partir dela.
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
247
o ideal. O negro, por outro lado, foi construído como o extremo oposto do branco:
atrasado, pecador, tribal, selvagem e o mais feio de todos. O problema portanto,
normalmente é encontrado no não branco, e dificilmente é visto no branco. Dentro da
lógica criada a partir da hierarquia racial, no entanto, existem muitos “níveis” entre o
negro e o branco. O asiático (amarelo), nesse sentido, posiciona-se em uma posição
intermediária e complicada para se estudar, pois a bibliografia mais densa que existe
no Brasil trabalha justamente o contraste entre o branco e o negro.
A colonização epistemológica colabora com essa dinâmica, pois permite que o
branco controle a produção o suficiente para que a branquitude não receba o destaque
necessário mesmo em trabalhos sobre etnicidade e racialidade, pois não falar sobre
o problema da construção da branquitude ajuda na manutenção de seus privilégios
(SILVA; 2017). A branquitude, enquanto elemento resultante da estrutura colonialista
europeia foi e continua sendo responsável pela estrutura de poder mundial atual (SILVA,
2017), ou seja, as diferenças raciais não são apenas um “legado histórico” inflexíveis
e sim, constantemente reforçadas, adaptadas e materializadas (SCHUCMAN, 2012).
Os estudos críticos da branquitude nasceram da percepção de que era preciso
analisar o papel da identidade racial branca enquanto elemento ativo nas relações
raciais em sociedades marcadas pelo colonialismo europeu. Percepção esta que
esteve presente nos estudos de intelectuais como W. E. B. Du Bois (1920, 1935);
Frantz Fanon (1952); Albert Memmi (1957), hoje compreendidos como precursores
dos estudos sobre a branquitude (CARDOSO, 2008; 2010 e 2014). Tais intelectuais,
em diferentes contextos históricos e sociais, chamaram a atenção para os efeitos
da colonização e do racismo na subjetividade não só do negro, mas sobretudo,
do branco. Leitura que desafiava a interpretação unívoca a qual via o negro como
“objeto de estudo”, “tema de estudo” privilegiado para compreensão das relações
raciais. Seguindo esse lastro, na década de 1990, intelectuais norte-americanos
iniciaram uma reflexão sistemática sobre o fenômeno da branquitude e seus
efeitos. O tema difundiu-se rapidamente por diferentes áreas de estudo (direito,
arquitetura, geografia, antropologia, sociologia, psicologia). (SILVA, 2017, p. 21)
Como demonstrou o pesquisador Lourenço Cardoso (2008, 2010 e 2014), no Brasil
os estudos sobre branquitude emergiram de forma mais sistemática a partir do
ano 2000. (...) Os primeiros intelectuais que se ocuparam em entender o papel da
identidade branca nas relações sócio-raciais em nosso país foram Alberto Guerreiro
Ramos, Edith Piza, César Rossato e Verônica Gesser, Maria Aparecida Bento e Liv
Sovik (CARDOSO, 2008). (SILVA, 2017, p. 25)
Como Schucman (2012) descreveu, o poder da branquitude funciona em rede.
É importante ter isso em mente ao pensarmos nas mídias contemporâneas: os
envolvidos fazem parte de uma rede de poder que se auto privilegia pautando-se na
própria mentalidade de mundo racializada e na rivalidade com não-brancos. Como a
raça é uma categoria relacional, ela se adapta ao contexto. Para que ela se adapte,
ela precisa atualizar as lógicas das hierarquias para que alguém seja considerado o
“mais branco” e permaneça ao topo, dessa forma a rivalidade se faz necessária. O
“medo branco”5 também pode ser relacionado com essa rivalidade pois a resistência
5. O “medo branco” tratado aqui é referente ao que Schucman trabalhou em sua tese: o temor que a hierarquia
racial se inverta. Mas, no nosso entendimento, além disso é o medo que vem da ideia de que criar hierarquias
raciais é algo intrínseco ao ser humano. Ou seja, a branquitude tem dificuldades em enxergar um mundo em que
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
248
do branco aos não-brancos aparece quando o mesmo acredita que o outro pode olhar
para ele como algo negativo retirando o seu privilégio como “ser ideal” e/ou normativo.
Além disso, se esses não-brancos forem auto-suficientes, o branco tende a acreditar
que eles podem rejeitá-lo e mudar toda a dinâmica na qual o branco se sente em
vantagem e confortável.
Para entender a branquitude é importante entender de que forma se constroem as
estruturas de poder concretas em que as desigualdades raciais se ancoram. Por
isso, é necessário entender as formas de poder da branquitude, onde ela realmente
produz efeitos e materialidades. (SCHUCMAN, 2012, p. 23)
Destacamos aqui, duas entrevistas presentes na tese de Schucman (2012, p.
75-76) que focam na relação branco-negro, mas que pode nos ajudar a compreender
como o branco se enxerga. A pesquisadora conversa com dois paulistas brancos que
falam sobre ausência de negros ocupando alguns cargos no mercado de trabalho.
Um deles afirmou que em sua loja prefere contratar vendedores brancos para que
o cliente se identifique e a outra afirma que na empresa onde trabalha, mesmo que
tenha estudado em uma universidade com diversos estudantes negros, não encontra
essas pessoas ocupando cargos como o dela. Aqui é possível observar que o próprio
dono da loja percebeu, através da própria vivência, a dificuldade que os brancos têm
de identificar-se com não-brancos e que independente da qualificação do negro, ele
tende a ser rejeitado de espaços que podem colaborar com o seu crescimento pessoal
e profissional porque a sua imagem ocupando espaços de poder acionam o “medo
branco” já mencionado.
No momento em que o branco ocupa o protagonismo de não-brancos através
do Whitewashing6, é importante observar a intenção de se constituir como centro
e/ou referência. Ou seja, existe uma tendência e um esforço em se legitimar como
central em todas as ocasiões em que se insere. Além disso, o branco, devido a sua
personalidade narcisa, acredita que ele próprio eleva a qualidade de qualquer cultura
ao apropriar-se dela (CARDOSO, 2014). Mas essa não é uma atitude meramente
individual. A coletividade sistematizou-se (em redes) para funcionar dessa forma
guiada por noções de hierarquia racializada.
O branco Narciso ou narcísico é aquele que enxerga, porém, com um detalhe,
enxerga somente a si (Bento, 2002a,b). O seu espelho é a uma imagem de fotografia.
Uma imagem congelada. Ele é a expressão do divino, do belo, da inteligência. Com
efeito, o branco Narciso somente tem olhos para si. Ele é enamorado por si. E como
o branco Drácula, faz com que todos os outros não-brancos sejam apaixonados
por ele. Somente o branco é passível de se apaixonar por si mesmo. Nos termos
que poderemos considerar como sadio. Somente ao branco é possível, “beberse”, “devorar-se”, ser Narciso. Seria uma característica restrita ao seu grupo a
possibilidade de amor-próprio, porque ele é desejo. Enquanto, os Outros são
repulsivos, feios, patológicos (Ramos, 1995[1957]b). (CARDOSO, 2014)
Arriscariamos dizer que a apropriação do branco brasileiro das culturas asiáticas
as diferenças não se organizem verticalmente.
6. Neste artigo utilizamos o termo para nos referirmos ao ato de atores brancos protagonizarem papéis originalmente asiáticos.
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
249
invisibilizando o asiático (tornando-o bizarro e risível) sentindo-se superior enquanto
utiliza seus adereços e ocupa seus espaços é a forma que o branco criou de identificarse com o que é do outro e produzir novas identidades brancas, pois o apagamento
de não-brancos possibilita que brancos sejam referência para eles mesmos mesmo
quando estão se apropriando de culturas originárias de povos considerados não-
brancos. Dessa forma, a branquitude de adapta a diferentes contextos, produz novas
identidades, atualiza as lógicas de hierarquia e consegue sobreviver como detentora
de privilégios.
É a partir dessas adaptações que é possível observar também as hierarquias
criadas entre os próprios brancos: os “encardidos”, os brancos e os branquíssimos
descritos por Schucman (2012). Hierarquias essas pautadas por religiões,
nacionalidades, fenótipos, culturas, etc. Nessa lógica, os branquíssimos carregam a
ideia de “pureza” e os brancos e “encardidos” carregam identidades mais “flexíveis” e
“mestiças”.
No entanto, Cardoso (2014) e Schucman (2012) irão afirmar que brancos, apesar
dos obstáculos materializados pela branquitude, têm a capacidade de autorreflexão a
respeito das próprias identidades racializadas. Cardoso (2014), inclusive, irá denominá-
los como branquitude “crítica”, enquanto Schucman (2012) afirma que o branco que
possui “relações de afetos não hierarquizadas” com não-brancos tende a ter maior
facilidade de autorreflexão e a rejeitar a hierarquia racial criada pela branquitude
da qual não desejam pertencer. Porém, é importante destacar que apesar dessa
capacidade de autorreflexão é extremamente difícil encontrar evidências de sujeitos
isentos de racismo.
3 | DA PRESENÇA E (IN)VISIBILIDADE DO ASIÁTICO NAS MÍDIAS BRASILEIRAS:
O CASO TELEVISIVO
A construção da imagem do asiático no Brasil é feita desde o início do século
20, quando o governo passou a incentivar a vinda de imigrantes para compor a
mão de obra nacional, após o término da escravidão. Nesse imaginário, explica
historiadores, houve uma “castração” do homem asiático, ao mesmo tempo em que
a mulher foi hipersexualizada7.
(ANDO FILHO, Nexo Jornal, 2016)
A representação dos asiáticos (e brasileiros de ascendência asiática) na mídia
brasileira pouco mudou com o decorrer do tempo. Isto é, ainda que existam muitos
descendentes de asiáticos no Brasil (2,08 milhões segundo o censo de 2010), eles
são vistos como “o outro”, o brasileiro não legítimo e o outro não pode apoderar-se
de um espaço que é majoritariamente “branco”, pois a branquitude se constrói como
“lugar de poder” e “símbolo de dominação” (SILVA, 2017). Apesar disso, sua presença
7. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/07/27/Jovens-de-origem-asi%C3%A1tica-se-mobilizam-por-maior-representatividade>
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
250
pode ser sentida em casos localizados que seguem nesse texto. Quem não se recorda
da colorida personagem Miyuki, interpretada por Daniele Suzuki, na telenovela teen
Malhação, da irreverente participante da terceira edição do Big Brother Brasil, Sabrina
Sato, ou mais recentemente, da primeira protagonista oriental da Globo, a Tina
de Malhação - Viva a Diferença, interpretada por Ana Hikari?
O fato é que desde Daniele Sukuki à Ana Hikari, novelas e programas televisivos
de grande audiência junto a população ainda reforçam as mesmas imagens
estereotipadas, ganhando novos adereços, muitos destes recorrentes da intensa
penetração dos produtos pop que compõem a Japão Mania desde os anos 1990 no
Brasil (URBANO & ARAUJO, 2018). O esquema “sushi-mangá-pokemon” que refere-
se a popularização do pop japonês na sociedade brasileira, antes de mais nada,
conota uma reafirmação de vários estereótipos do nipodescendente, ampliando o
processo radical de exotização (RIBEIRA, 2011). Já no caso dos coreanos, a questão
da representatividade (ou falta dela) nas mídias locais se coloca ainda de maneira mais
contundente, uma vez que sua ausência favoreceu leituras sobre esses imigrantes,
seus descendentes e sua cultura, onde o Japão e seus imigrantes ocupam seu principal
referencial de “asianidade” (URBANO & ARAUJO, 2018).
Outra questão fundamental que se coloca, diz respeito à ausência de referências
nas mídias locais sobre a sexualidade dos brasileiros de ascendência asiática ou da
sexualidade em si mesma, o que levanta questionamentos concernentes às intersecção
entre raça/gênero/sexualidade. Neste contexto, é de fundamental importância pensar
a intersecção entre raça/gênero/sexualidade como expoentes de discursos e práticas
libertadoras que visam romper com idéias dominantes e conservadoras presentes nas
sociedades que se desdobram nos movimentos feministas e anti-racistas. Quem invoca
o conceito de “intersecção” é Kimberly Creshaw (1995) para analisar em conjunto
uma série de variáveis que vão desde a violência doméstica a políticas anti-racistas,
por meio de outras ações opressivas com base em múltiplas variáveis. Trocando
em miúdos, Creshaw (1995) aponta que há uma opressão intercategorial, e que se
torna difícil estudar e interpretar essas lutas sem uma análise interseccional. Cabe
a esta batalha analítica o objetivo de encontrar formas de interpretar as diferentes
ferramentas de poder que nos deram a episteme eurocêntrica: colonialista, capitalista
e patriarcal (BIDASECA, 2010; LUGONES, 2008). Uma vez que “a casa do amo não
se derruba com as ferramentas do amo” (LORDE, 1979), parece que necessitamos
encontrar novos caminhos interseccionais que nos permitam desarmar as estruturas
de pensamento eurocêntrico.
No caso das mulheres asiáticas, sua posição histórica de objeto de fetiche – uma
atitude que não é exclusiva dos brasileiros, mas um problema de âmbito internacional
– tidas no imaginário do senso comum como submissas, caladas e dóceis, como
destaca Carolina Ricca, de ascendência sino-japonesa: “Como mulher brasileira de
ascendência asiática, eu sinto que as compreensões sobre opressão reúnem muito
essa fórmula que é etnia, raça e gênero, pois querendo ou não existe uma objetificação
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
251
imensa sobre o meu corpo, e uma fetichização sobre esse corpo e essa cultura que
em fenótipo acompanha ela”8. Tal imaginário fetichista9 pode ser evidenciado em
comentários recorrentes aos asiáticos brasileiros como “adoro pegar orientais” ou
“sempre quis namorar um(a) japonês(a)”. Já no caso masculino, a sexualidade foi e
ainda é, em grande parte, omitida ou tida como algo incipiente, com pouco vigor e até
feminizada nos estereótipos veiculados na sociedade brasileira, estendendo-se assim
aos demais brasileiros de ascendência asiática – coreanos, taiwaneses, okinawanos,
dentre outros - (insivisibilizando-os, por tabela) que residem em nosso país.
Um exemplo particularmente elucidativo desta dinâmica discursiva da ordem
do senso comum acerca dos asiáticos brasileiros presente na mídia brasileira se
dá no âmbito da teledramaturgia nacional. Na telenovela “Belíssima”, por exemplo,
que foi produzida e exibida pela Rede Globo entre 7 de novembro de 2005 e 7 de
julho de 2006 (e atualmente encontra-se em exibição no Vale a Pena Ver de Novo),
encontramos um indicativo poderoso associado ao argumento que expomos aqui, a
partir da construção discursiva do personagem Takae Shigeto, interpretado pelo ator
Carlos Takeshi. O retrato produzido por Silvio de Abreu de Takae não poderia ser mais
estereotipado: dono de uma quitanda que também funciona como peixaria, Takae é
casado com Safira (Claudia Raia) que, por sua vez, terá um caso com o mecânico
do bairro, interpretado por Reynaldo Gianecchini, compondo assim um triângulo
amoroso. A construção narrativa de Takae se coloca como importante indicativo dessa
construção discursiva da ordem do senso comum sobre o homem nipodescendente
que veio se formando nas mídias nacionais.
Contudo, é pena que a família do Takae de ‘Belíssima’ seja uma caricatura do que
se acha que são os japoneses. Não sei se o núcleo grego ou o judeu também
estão caricatos, mas o fato é que o pai Takae é um exagero, apesar de engraçado.
Sinceramente, alguém conhece um japonês que age como ele? (RIBEIRA, 2011,
p. 95).
Já na novela “Geração Brasil”, produzida e exibida pela Rede Globo entre maio
e outubro de 2014, Rodrigo Pandolfo interpretou Shin-So, um sul-coreano que rompeu
relações com seu irmão gêmeo e veio para o Brasil, onde trabalha como repórter de
celebridades na Parker TV, comandando os principais programas deste canal de TV
a cabo. Para além da representação exótica e construção discursiva do personagem,
notadamente inspirada no rapper Psy e na indústria da música k-pop, talvez mais
curioso seja o fato de que o ator utilizou ao longo das gravações uma espécie de fita
adesiva para mudar o formato dos olhos10. Mais do que isso: a escolha de atores
8. O que move o feminismo asiático no Brasil? Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HsUHTvgOLQU>
9. Pressionado pela audiência de Gugu Liberato, no SBT, que exibia duelos entre homens e mulheres ensaboados
no famoso quadro da banheira, em 1997, o “Domingão do Faustão” da Rede Globo de Televisão apresentou o
quadro “sushi erótico”, com as especialidades japonesas servidas sobre o corpo de mulheres nuas. As câmeras
da emissora mostraram nus frontais por volta das 17h. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/
236036-exu-sushi-erotico-e-hipnose.shtml?loggedpaywall#_=>
10. Para o carnaval de 2008 a modelo e rainha de bateria da Escola de Samba Porto da Pedra Ângela Bismarchi
se submeteu a uma cirurgia de orientalização, na qual teve seus olhos repuxados por fios de ouro, para se integrar
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
252
brancos para interpretarem personagens de origem asiática, enquanto prática
corporativa ainda disseminada pelas emissoras de televisão no país, não nos parece
justificável dado a presença histórica e relações bilateriais estabelecida entre Ásia e
Brasil iniciada ainda no século XIX.
Mais recentemente para a novela “Sol Nascente”, também produzida e
exibida pela Rede Globo no ano de 2016, atores orientais que fizeram teste para
os papéis foram dispensados e a emissora escalou artistas brancos para interpretar
personagens de origem japonesa na novela. Dada a importância do núcleo japonês
para todo o desenrolar da trama (expressado no nome da produção, por exemplo), os
integrantes da comunidade nipônica brasileira, atores de ascendência asiática e seus
simpatizantes acusaram a emissora de racismo e de fomentar o Yellowface, prática
que não é novidade na Rede Globo, tampouco no mercado audiovisual mundial:
“Em “Sol Nascente”, próxima novela das 18h da Globo, com estreia no fim de
agosto, as trajetórias de uma família japonesa e de uma italiana se fundem no
romance entre seus primogênitos, vividos por Giovanna Antonelli e Bruno Gagliasso.
Uma brasileira órfã adotada pelo padrasto japonês foi a solução encontrada pela
emissora para acobertar uma possível estranheza do público ao ver Antonelli
protagonista do núcleo nipônico. Não que a compatibilidade entre a etnia dos
atores fosse preocupação, já que o patriarca japonês, Kazuo Tanaka, será vivido
por Luis Melo” (Folha de São Paulo, 2016).
A repercussão do fatídico episódio de Sol Nascente no meio artístico e junto às
entidades de preservação da cultura asiática foi tanta, que diversas sátiras, paródias11
e memes envolvendo o ator Luís Melo e a atriz Giovanna Antonelli, passaram a
circular nas redes digitais, demonstrando assim que questões sobre identidade e
representação12 vem ganhando bastante presença no cenário contemporâneo, neste
caso, impulsionado pelos movimentos dos asiáticos brasileiros nas mídias sociais,
denotando assim uma militância asiática que, pouco a pouco, vem se mobilizando
a partir deste meios. No nosso entendimento, o episódio consiste num poderoso
indicativo de que a mídia local brasileira, aqui representada pela teledramaturgia
nacional, trabalha de forma incisiva na desvalorização do não-branco desrespeitando
a paisagem cultural do país. Esse sistema favorece discursos e micro-agressões que
revelam um imaginário racial caricatural e essencialista pelo qual os brasileiros de
ascendência asiática são “imaginados” no Brasil. Ademais, é importante ressaltar que
o uso da expressão “não-branco” no masculino, para além da gramática, representa a
dominância masculina como padrão da branquitude.
Como argumento de minimizar os riscos e potencializar os lucros de bilheteria,
o mercado cinematográfico representado pela indústria hollywoodiana opta
o enredo da escola que abordou os 100 da imigração japonesa na avenida.
Disponível em: <http://ego.globo.com/Gente/Noticias/0,,MUL314554-9798,00-ANGELA+BISMARCHI+DECIDE+VIRAR+JAPONESA+DE+VEZ+E+RECUPERAR+A+VIRGINDADE.html>
11. Paródia da novela Sol Nascente no canal Yo Ban Boo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JWPHDYxbqII>
12. Vídeo do canal Yo Ban Boo | “O que significa se sentir representado”? Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=J2HUE-z9eHk&t=267s>
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
253
frequentemente pela prática do Whitewashing. A prática, antiga e recorrente da indústria
cinematográfica estadunidense, consiste em escalar um elenco de atrizes e atores
brancos para papéis que, fora da ficção, seriam ocupados por pessoas de raça, cor ou
etnia13 diferentes, como asiáticos, latinos, negros ou indígenas. Além disso, durante
muito tempo, o cinema estadunidense fez uso de tinta para transformar atrizes e
atores brancos em personagens – geralmente exagerados, burlescos e carregados de
estereótipos – negros (Blackface) ou asiáticos (Yellowface)14. O Whitewashing, embora
se esconda e pareça uma questão e decisão puramente de cunho mercadológico,
consiste num problema quando se tem grupos étnico-raciais sub-representados nas
produções culturais que circulam em caráter global devido a uma percepção racista de
qualidade proveniente da branquitude que detém poder sobre essas produções.
Uma pesquisa publicada e reproduzida pelo Nexo Jornal em 2017 sob o título
“O que é whitewashing. E por que o cinema é tão criticado por isso”15 traz dados
sobre a representatividade étnico-racial no entretenimento em filmes de 2011 a 2015.
Ela foi intitulada “Inclusão ou invisibilidade?” e conduzida por pesquisadores da USC
(Universidade do Sul da Califórnia), na unidade de Los Angeles, cidade que abriga
o polo cinematográfico de Hollywood. A pesquisa aponta que metade dos filmes
estadunidenses daquele ano não tem nenhum personagem negro ou asiático. E que,
olhando para os bastidores, a proporção de diretores brancos é de 7 para 1 de raça,
cor ou etnia diferentes. Já o relatório anual sobre diversidade em Hollywood, publicado
em abril de 2017 pela UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), aponta que
entre 2011 e 2015, o número de protagonistas não-brancos em filmes variou de 10,5%
(2011) e 16,7% (2013) para 13,6% (2015). Parte das explicações sobre a recorrência
desse tipo de prática, pelo lado de quem produz filmes e séries nos EUA, recai sobre
a dificuldade de se encontrar atrizes e atores para os papéis.
Masi Oka, um dos produtores do filme “Death Note”, lançado em agosto de 2017
pela Netflix, justificou ao responder a acusações de Whitewashing (o filme adaptou
o enredo do anime japonês para se passar nos EUA com protagonistas brancos)
acrescentando que os estúdios cobraram a busca por atores asiáticos e que eles
estavam conscientes da questão.
13. Quando destacamos três termos que parecem se referir à mesma coisa (raça) ou utilizamos o termo “étnico-racial”, estamos destacando que uma identidade racializada pode estar relacionada à cor da pele da pessoa, ao
fenótipo como um todo, à sua religião, à sua nacionalidade, à sua cultura e que todas essas e outras variantes
podem estar sendo consideradas ao mesmo tempo.
14. Alguns exemplos incluem o personagem negro interpretado por Al Jolson no musical “O cantor de Jazz” (1927);
e o caricato japonês Sr. Yunioshi, feito pelo por Mickey Rooney em “Bonequinha de Luxo” (1961). O truque de maquiar atores, que ganhou o nome de Blackface (cara preta) e Yellowface (cara amarela), perdeu força na segunda
metade do século XX.
Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/08/30/O-que-%C3%A9-whitewashing.-E-por-que-o-cinema-%C3%A9-t%C3%A3o-criticado-por-isso>.
15. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/08/30/O-que-%C3%A9-whitewashing.-E-por-que-o-cinema-%C3%A9-t%C3%A3o-criticado-por-isso>.
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
254
Nossos diretores de casting [seleção de elenco] fizeram uma extensa busca por
atores asiáticos, mas não conseguiram achar a pessoa certa. Os atores com quem
conversamos não falavam inglês perfeitamente… e os personagens foram então
reescritos (Nexo Jornal, 2017).
Nossa hipótese diante todo o exposto é que embora os asiáticos brasileiros
(sobretudo, japoneses e seus descendentes) pareçam ter tido relativo êxito em
construir uma imagem positiva do Japão e de si próprios enquanto “minoria modelo”
no Brasil, a partir da circulação de imagens e sonoridades japonesas nas mídias e
fora delas (URBANO & ARAUJO, 2018), isso contribuiu para uma representatividade
estática e pautada por um exotismo que veio se consolidando nas mídias em nosso
país. A figura do(a) “japa”, sempre associada a ideais de eficiência e esforço, de um
dom natural que emerge naturalmente associado a partir do fenótipo, e corroborado
pelo mito da “minoria modelo” embora num primeiro olhar pareça ter uma conotação
positiva, desvela, paradoxalmente, o véu dessa construção discursiva da ordem do
senso comum, no qual os brasileiros de ascendência asiática são imaginados sempre
como o “estrangeiro e/ou outro não-pertencente” ao local, levantando questões
concernentes aos mecanismos pelo qual opera o racismo contra o asiático no Brasil.
(...) o brasileiro descendente de japonês, mesmo que esteja no Brasil pelo número
igual de gerações que um brasileiro descendente de imigrante russo, por exemplo,
é considerado japonês e não brasileiro. Isso deixa claro que o tripé consagrado por
Gilberto Freyre como “o povo brasileiro” - o branco colonizador, o negro escravo e
o índio nativo - são aqueles que dividem no imaginário de nossa cultura a condição
de brasileiros. (SCHUCMAN, 2017, p. 69)
Dois episódios recentes da TV aberta brasileira nos remetem diretamente às
questões que abordamos até aqui. O primeiro caso também é originário na Rede
Globo de televisão, envolvendo a apresentadora Angélica em seu programa atual
“Estrelas”, exibido nas tardes de sábado na referida emissora. Na matéria exibida16,
a apresentadora visita o bairro da Liberdade em São Paulo acompanhada da cantora
Paula Fernandes e da dupla sertaneja Marcos e Belutti. Para além das piadas
recorrentes por parte da apresentadora e das celebridades integrantes da matéria, o
que fica explícito é o caráter exótico pelo qual os brasileiros de ascendência asiática
e sua cultura são construídos exoticamente a partir das narrativas produzidas pelas (e
nas) mídias e frequentemente reforçado pelas celebridades e apresentadores locais.
Outro exemplo recente inclui a apresentação do quarteto de k-pop K.A.R.D
em 2017 no programa Raul Gil17, exibido no SBT e apresentado também nas tardes
de sábado. O referido episódio é extremamente importante para entendermos as
recorrentes micro-agressões contidas no ato aparentemente inocente de “puxar os
olhos”, para emular as características orientais. Com efeito, torna-se imperiosa a
pergunta: afinal, por quais mecanismos opera o racismo em torno dos brasileiros de
múltiplas ascendências asiáticas que residem em nosso país? De fato, os mecanismos
16. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/6314200/>
17. Programa Raul Gil em ocasião da visita do K.A.R.D completo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kA_xu8tlePE&t=6s>
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
255
do racismo contra asiáticas/os no Brasil parecem ainda não serem bem compreendidos,
muito menos a formulação da ideia de solidariedade entre não-brancos, principalmente
no seio das colônias asiáticas em território brasileiro, como o episódio “Fala Frango”,
que abriu esse artigo, bem nos demonstrou.
Ao longo da sua existência, a televisão brasileira passou por momentos de
adaptações e re-significações tentando acompanhar as transformações da sociedade.
A programação televisiva, em especial o telejornalismo, os programas de entretenimento
e as telenovelas, reproduzia tendências e estilos do exterior para, com o passar dos
anos, construir e formar um caráter televisivo brasileiro, com características próprias,
vinculadas às questões nacionais (KILLP, 2003; MATTOS, 2002). Apesar de a
instituição televisiva deter um senso de legitimidade, especialmente o telejornalismo
que construiu uma autoridade comprometida com a verdade e o conhecimento, as
análises presentes neste trabalho mostram que a abordagem de certos assuntos pode
apresentar falhas aos olhos de quem possui um conhecimento maior sobre o tema ou
está inserido em um meio que lhe fornece informações mais completas. A aparente
falta de proximidade cultural (STRAUBHAAR, 1991), não poderia justificar, no caso
específico brasileiro, as micro-agressões pelas quais os brasileiros de ascendência
asiática e sua cultura são submetidos a partir de um discurso midiático altamente
estereotipado e exotizado que persiste em se disseminar.
4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando iniciamos a produção deste artigo nos deparamos com a dificuldade de
encontrar textos sobre branquitude que discutissem sobre a relação entre o branco
e o asiático, pois o maior foco dos estudos críticos da branquitude no Brasil está
no contraste entre o negro e o branco. Depois entendemos que essa relação entre
estudos sobre negros e asiáticos não é apenas interessante como fundamental,
pois a negritude enquanto campo epistemológico, segundo nossas referências, foi
capaz de enxergar pioneiramente o papel do branco na construção do racismo e
acumular informações fundamentais para o entendimento das hierarquias raciais. Em
outra instância, o asiático ocupa outro papel dentro dessas hierarquias raciais e é
capaz de mostrar realidades entre os extremos. Nesse sentido, é importante também
destacarmos o importante papel dos pesquisadores brancos, que através de seus
privilégios e espaços dentro das redes da branquitude, foram capazes que colher
informações que dificilmente seriam compartilhadas com não-brancos.
Quando a representatividade asiática é questionada, é bastante recorrente que
fontes que abordem a noção de negritude sejam acionadas. Isso provavelmente
acontece porque a literatura sobre questões raciais voltadas para os problemas
enfrentados por negros é muito mais densa e direta no Brasil podendo, assim, servir
como referência para outros grupos étnico-raciais não-brancos. No entanto, negros e
asiáticos, como vimos aos longo do artigo, são estereotipados, tratados e exotizados de
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
256
maneiras diferentes nos mesmos espaços. As mídias brasileiras podem ser entendidas
neste artigo como exemplos de espaços desses acontecimentos. Essas mídias, por
sua vez, são majoritariamente pertencentes à branquitude (ou branquitudes, esta pois
esta não é uniforme) cujo funcionamento se estrutura através de redes. Pouco se fala
da representatividade asiática nos meios de comunicação brasileiros e o enfoque na
atuação da branquitude nesse processo é menor ainda.
A intenção deste trabalho foi demonstrar como a forma que asiáticos são
retratados na televisão brasileira está diretamente relacionada com a construção
da branquitude que detém o poder sobre essa mídia. A branquitude aparece, dessa
forma, como identidade relacional criada por um coletivo em rede que se auto privilegia
motivado pelo “medo branco” e pelo narcisismo branco que acionam a rivalidade
do branco com os não-brancos aqui mencionados (negros e asiáticos). No caso
específico da teledramaturgia nacional, a contratação de atrizes e atores etnicamente
diversos para papéis de destaque e correspondentes não costuma acontecer com
frequência na televisão local, o que provoca reações segundo as quais é preciso
melhorar a representatividade das minorias não-brancas nas produções televisivas e
nas mídias locais. Não podemos esquecer também momentos em que não-brancos
atacam não-brancos de grupos étnicos-raciais diferentes dos seus e reproduzem o
racismo estruturado pela branquitude conforme o caso que abriu nossa discussão
demonstrou. Essas e outras questões pertinentes à discussão aqui apresentada,
serão aprofundadas mais adiante, no desenrolar de nossa investigação.
REFERÊNCIAS
BIDASECA, Karina. Perturbando el texto colonial. Los Estudios (pos)coloniales en América Latina.
Buenos Aires: SB, 2010.
CARDOSO, Lourenço. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no
Brasil. Tese de doutorado publicada pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual
Paulista. Brasil 2014.
CRESHAW, Kimberlé Williams. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence
Against Women of Color. 1995.
HALL, Stuart. Cultural identity and diaspora. In: RUTHERFORD, Jonathan. (Ed.) Identity. Comunity.
Culture. London: Lawrence & Wishart, 1997.
__________. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
__________. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
KILPP, Suzana. Ethicidades televisivas. Sentidos identitários na TV: moldurações homológicas e
tensionamentos. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
LORDE, Audre. Las herramientas del amo nunca desarmarán la casa del amo. Sobre el segundo
sexo, 1979.
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
257
LUGONES, María. Colonialidad y género. In: Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, No.9: 73-101, juliodiciembre, 2008.
RIBEIRA, Fabio R. O estranho enjaulado e o exótico domesticado: reflexões sobre exotismo e abjeção
entre nipodescendentes. In: MACHADO, I. J. R. (Org.). Japonesidades multiplicadas: Novos
estudos sobre a presença japonesa no Brasil. São Carlos: EdUFSCar, 2011.
MATTOS, Sérgio. História da televisão brasileira: uma visão econômica, social e política. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 2002
MAZUR, Daniela; VINCO, Alessandra. A Representação do Asiático-americano na TV
Estadunidense: O Caso de Fresh Off The Boat. Congresso Internacional Comunicação e Consumo
- 6º Encontro de GTS de Pós-Graduação, 2016.
MONTEIRO, Tiago J. L..Cartografias do imaginário navegante: reflexões sobre a identidade
narrativa diaspórica, o “senso comum mítico” e nosso (des)conhecimento da cultura portuguesa
contemporânea. In: 31º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação - Anais do Intercom, Natal,
2008.
SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e
poder na construção da branquitude paulistana / Lia Vainer Schucman; orientadora Leny Sato. -- São
Paulo, 2012.
SILVA, Priscila Elisabete da. O conceito de branquitude: reflexões para o campo de estudo. In:
Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil / Tância Mara Pedroso Müller,
Lourenço Cardoso. - 1. ed. - Curitiba: Appris, 2017.
STRAUBHAAR, Joseph. Beyond Media Imperialism: Assymetrical Interdependence and Cultural
Proximity. Critical Studies in Mass Communication 8(1): 39-59,1991.
URBANO, Krystal; ARAUJO, Mayara. Beyond Japanese Lenses: reflections on the Korean
diaspora and the Hallyu Wave in Brazil. In: 9th World Congress of Korean Studies, 2018, Seul,
South Korea, 2018. p.01 – 14.
URBANO, Krystal.; MELO, Maria Elizabeth Pinto. A Representação dos Asiáticos na TV Brasileira:
Apontamentos Iniciais In: Anais do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Joinville,
2018.
“Globo favorece atores ocidentais em núcleo japonês de nova novela das 18h”. Folha de S. Paulo, 08
de agosto de 2016. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/08/1800063-globofavorece-atores-ocidentais-em-nucleo-japones-de-nova-novela-das-18h.shtml> Acesso em: Jul/2018.
“Exu, sushi erótico e hipnose”. Folha de S. Paulo, 11 de outubro de 2015. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/236036-exu-sushi-erotico-e-hipnose.shtml?loggedpaywall#_=_>
Acesso em: Jul/2018.
“Ângela Bismarchi decide virar japonesa de vez e recuperar a virgindade”. Portal EGO - Globo.
com, 12 de fevereiro de 2008. Disponível em: <http://ego.globo.com/Gente/Noticias/0,,MUL3145549798,00-ANGELA+BISMARCHI+DECIDE+VIRAR+JAPONESA+DE+VEZ+E+RECUPERAR+A+VIRGI
NDADE.html> Acesso em: Jul/2018.
“O que é whitewashing. E por que o cinema é tão criticado por isso”. Nexo Jornal, 30 de agosto
de 2017. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/08/30/O-que-%C3%A9whitewashing.-E-por-que-o-cinema-%C3%A9-t%C3%A3o-criticado-por-isso> Acesso em: Jul/2018.
“Ator que criticou globo por japoneses fakes entra para Sol Nascente”. Disponível em: <https://www.
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
258
otvfoco.com.br/ator-que-criticou-globo-por-japoneses-fakes-entra-para-sol-nascente/> Acesso em:
Jul/2018.
“Jovens de origem asiática se mobilizam por maior representatividade”. Nexo Jornal, 30 de agosto
de 2017. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/07/27/Jovens-de-origemasi%C3%A1tica-se-mobilizam-por-maior-representatividade> Acesso em: Jul/2018.
Ciências da Comunicação
Capítulo 21
259
CAPÍTULO 22
CULTURA ORGANIZACIONAL PROPÍCIA
ÀS POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO E
RESPONSABILIDADE SOCIAL: POSSIBILIDADES
METODOLÓGICAS PARA IDENTIFICAR OS TIPOS DE
CULTURA ORGANIZACIONAL
Maria José da Costa Oliveira
Pós-Doutora, Doutora e Mestre em Ciências da
Comunicação. Presidente da ABRAPCORP –
gestão 2016/2018; Diretora Admininistrativa da
SOCICOM – gestão 2016/2018. Integra o Grupo
de Pesquisa em Comunicação Pública e Política –
COMPOL – da ECA-USP.
Campinas - SP
RESUMO: Ainda que a cultura organizacional
seja um tema bastante explorado na sua
interface com a comunicação, este estudo
tem objetivo de analisar metodologias que
contribuam com a identificação dos tipos de
cultura que facilitam a adoção de políticas de
comunicação e responsabilidade social.
PALAVRAS-CHAVES:
Cultura
Organizacional; Comunicação Organizacional;
Responsabilidade Social; Metodologias.
ORGANIZATIONAL CULTURE FOR
COMMUNICATION POLICIES AND SOCIAL
RESPONSIBILITY: METHODOLOGICAL
POSSIBILITIES TO IDENTIFY THE TYPES OF
with communication, this study aims to
analyze methodologies that contribute to the
identification of the types of culture that facilitate
the adoption of communication policies and
social responsibility.
KEYWORDS:
Organizational
culture;
Organizational
communication;
Social
responsability; Methodologies.
1 | INTRODUÇÃO
Conhecer a cultura de uma organização
representa um desafio que instiga muitos
pesquisadores,
gestores
e
consultores,
afinal, ao se identificar o tipo de cultura ou as
subculturas presentes, muitas questões acerca
do comportamento que se pode esperar de
seus membros são reveladas.
Nesse sentido, a identificação da cultura
pode facilitar a adoção de políticas adequadas
ao
perfil
organizacional,
entre
as
quais
podemos incluir as políticas de comunicação e
de responsabilidade social.
Partindo dessa noção, é necessário
entender o que vem a ser cultura organizacional,
já que, conforme Fleury (1989), trata-se de
ORGANIZATIONAL CULTURE
fenômeno cuja complexidade ilude e confunde
ABSTRACT: Although the organizational
culture is a theme explored in its interface
a maioria dos pesquisadores, sendo, em geral,
Ciências da Comunicação
entendida como padrões culturais a partir da
somatória de opiniões e percepções de seus
Capítulo 22
260
membros, expressa, conforme Janice Beyer e Harrison Trice (1986), como uma “rede
de concepções, normas e valores que são tomados por certos e que permanecem
submersos à vida organizacional”.
A evolução do pensamento administrativo a partir da Teoria Clássica e Científica
até as teorias mais contemporâneas de gestão (Ferreira, Reis e Pereira, 1997),
demonstra que o contexto histórico, com sua abrangência social, cultural, política e
econômica se refletiu e se reflete no tipo de gestão que as organizações utilizam.
Porém, não resta dúvida de que algumas escolas do pensamento administrativo
foram as responsáveis por alertar que não existe um padrão de administração para
todas as organizações, já que deve-se considerar o comportamento de seus membros,
a contingência vivenciada, o perfil de seus fundadores e sua capacidade de influência,
entre outros aspectos.
Essas novas formas de conceber gestão passaram a valorizar a cultura
organizacional e, consequentemente, o desafio de desvendar a cultura presente em
uma organização tem se evidenciado como uma tarefa nada fácil pois, assim como as
pessoas são únicas e diferentes, as organizações, ainda que tenham características
que as aproximem de outras, contam também com suas peculiaridades, que evidenciam
seu perfil, sua identidade própria.
Quando se fala de cultura organizacional, a ousadia é realizar uma análise mais
sistêmica, que permita a definição de metodologias adequadas para se classificar
os tipos de cultura. Alguns autores têm procurado oferecer contribuição, como é o
caso de Charles Handy (1994) que propõe uma classificação dos tipos de cultura
organizacional, relacionando-os aos deuses da mitologia grega, com a identificação
da cultura de clube (Zeus), da cultura de função (Apolo), da cultura de tarefa (Atena) e
da cultura existencial (Dionísio).
O próprio autor reconhece a dificuldade para classificar uma organização em
apenas um tipo, já que cada uma conta com a presença de diferentes grupos ou
subgrupos, e esses, muitas vezes, seguem padrões próprios.
Para Handy, há um elenco de características que permitem analisar se a
organização é, por exemplo, um clube constituído por pessoas semelhantes, com
ideias semelhantes, sem regras explícitas, formando praticamente um grupo de
amigos, muito presente em organizações pequenas. Ou se, à medida que cresce, vai
se tornando mais profissionalizada, exigindo a definição de funções de seus membros
e o estabelecimento de hierarquia.
Há, por outro lado, exemplos de organizações que valorizam mais o talento e que
identificam a tarefa a ser feita, ao invés de realizar uma divisão delimitada das funções.
Por fim, de acordo com Handy, há aquelas que proporcionam mais liberdade, mais
autonomia, mais iniciativa e desejam que seus membros encontrem nelas condições
de autorrealização.
Outro aspecto interessante da abordagem de Handy diz respeito à propensão
ou não para a comunicação e o relacionamento interpessoal, dependendo da cultura
Ciências da Comunicação
Capítulo 22
261
existente. Com isso, Handy ajuda a perceber os desafios que cada organização revela,
de acordo com sua cultura, de forma a influenciar como serão concebidas ou ajustadas
as políticas de comunicação e relacionamento.
Diante do que até agora foi exposto, resta-nos perguntar como é possível
identificar os tipos de cultura organizacional? Quais as metodologias possíveis de
serem empregadas para tal identificação?
2 | POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA A IDENTIFICAÇÃO DA CULTURA
ORGANIZACIONAL
Se por um lado há quem recorra a metodologias mais básicas, por outro há os
que buscam caminhos metodológicos mais inovadores, abrangentes e consistentes.
Fleury (1989), por exemplo, indica que há diversas opções metodológicas voltadas
para diagnosticar a cultura organizacional envolvendo desde a descrição dos símbolos
e rituais das organizações até os estudos de caráter antropológico.
Schein (citado por Fleury, 1989) alerta sobre a necessidade de se ter cuidado para
não considerar que a cultura se revela facilmente, porque, em parte, nós raramente
sabemos pelo que estamos procurando, em parte porque seus pressupostos básicos
são difíceis de discernir e são tão ‘Take for granted’ (tomados como certo) que aparecem
como invisíveis e estranhos.
Uma questão importante que reforça a complexidade da cultura organizacional
diz respeito ao seu caráter interdisciplinar, já que abrange aspectos antropológicos,
psicológicos, comunicacionais, administrativos, etc. Nesse sentido, Fleury (1989)
oferece uma importante contribuição às pesquisas em cultura organizacional ao
apresentar as metodologias a partir:
a. da postura empiricista, que, para Thiollent, volta-se a construir teorias não
a partir de problemáticas prévias, mas a partir do processamento de dados
de onde deveriam surgir os conceitos, as hipóteses empiricamente comprovadas (investiga a realidade sem um referencial teórico e sem proceder à
crítica epistemológica);
b. da postura do antropólogo, que aproxima-se da realidade social a ser investigada com um quadro de referências teóricas formulado previamente. Age
como observador ou como observador participante , vivenciando as mais
diversas facetas da organização pesquisada (deve ter consentimento para
tal). O objetivo é responder às questões colocadas pelo pesquisador;
c. da postura do clínico ou terapeuta, cuja demanda parte da própria organização, conduzindo a uma relação diversa entre pesquisador e pesquisado,
mediada por um contrato psicológico que leva a organização a se abrir e
colocar à disposição do pesquisador dados e informações de diversas naturezas, dificilmente acessíveis a qualquer outra pessoa.
Ciências da Comunicação
Capítulo 22
262
A perspectiva clínica traz à tona o irracional nas organizações, segundo Schein
(1986). Nesse caso, parte-se de um modelo conceitual prévio, que orienta o processo
de coleta, análise e interpretação das informações, sendo considerada por Schein
como a postura mais adequada para o estudo dos fenômenos culturais.
Para o desenvolvimento conceitual de cultura para a área organizacional parte-
se de raízes antropológicas e sociológicas, sendo que das raízes antropológicas surge
a dimensão simbólica, que permite atribuir significado a certas ações e em função
da qual busca-se as mediações possíveis, enquanto que as raízes sociológicas
evidenciam o interacionismo simbólico com o compartilhamento de senso comum e
produção de signos.
Para Berger e Luckmann, a construção do universo simbólico, seus processos
de legitimação, de socialização primária e secundária são importantes para o
desenvolvimento do conceito de cultura organizacional.
A utilização de metodologia adequada para a identificação da cultura
organizacional é condição necessária, uma vez que, segundo Schein (1986), a cultura
de uma organização pode ser apreendida em vários níveis:
1. nível dos artefatos visíveis;
2. nível dos valores que governam;
3. nível dos pressupostos inconscientes.
Para investigar os fenômenos culturais, Schein considera fundamental aplicar,
entre as técnicas, entrevistas com membros fundadores da organização, além de
abranger a análise do teor e do processo de socialização de novos membros da
organização; análise das respostas a incidentes críticos da história da organização;
análise das crenças, valores e convicções dos criadores ou portadores de cultura.
É importante enfatizar que a identificação da cultura organizacional parte do
levantamento do histórico da organização, do processo de socialização que se pratica
com novos membros, das políticas de recursos humanos que são estabelecidas, do
processo de comunicação que é adotado, da organização e processo de trabalho.
Entre os instrumentos para esse levantamento inclui-se desde questionários
com perguntas fechadas, utilizando escalas até entrevistas estruturadas ou
semiestruturadas, quando a ênfase é quantitativa; como também dados secundários
da organização (documentos, relatórios, manuais de pessoal, organograma, jornais ou
dados estatísticos sobre o setor da atividade econômica, sobre o mercado e trabalho)
e dados primários (entrevistas, observação participante e não participante, dinâmicas
de grupo com uso de jogos e simuladores).
Dada a complexidade que representa desvendar a cultura organizacional,
a recomendação é que sejam utilizados diferentes instrumentos quantitativos e
qualitativos e se leve em conta, quando o objetivo for o gerenciamento da cultura,
quando se busca a manutenção dos padrões ou mudança dos padrões culturais,
considerando fatores internos e fatores externos.
Ciências da Comunicação
Capítulo 22
263
Portanto, a análise da cultura não se limita ao ambiente interno, já que a
sobrevivência das organizações está também condicionada ao entendimento do
cenário social, cultural, político, tecnológico, ambiental e econômico, evidenciando
a relação entre o interno e o externo, entre o privado e o público, e destacando a
importância da relação que a cultura estabelece com a comunicação organizacional,
conforme analisado a seguir.
3 | CULTURA E COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL
Diante da perspectiva anteriormente apresentada, a relação entre comunicação e
cultura organizacional merece uma análise mais delimitada já que, conforme destacado
por muitos autores, há uma relação de interdependência entre esses conceitos.
Ao evidenciar a relação entre cultura organizacional e comunicação, Marchiori
(2006, p. 24), alerta para a necessidade das organizações precisarem preocupar-se
cada vez mais com o monitoramento das informações e a abertura do diálogo com
seus diferentes grupos de interesse, entendendo que seu comportamento deve ir além
do repasse de informações.
A autora reforça que é preciso atuar no sentido de selecionar informações que
façam parte do contexto vivenciado pela empresa e que tenham sentido para os
públicos, produzindo assim uma comunicação que gere atitude.
Tanto a cultura organizacional como a comunicação organizacional têm se
revelado cada vez mais complexas. Ao tratar de comunicação organizacional Kunsch
(2009, p. 75) considera que essa vem ganhando uma dimensão cada vez mais ampla:
Hoje, pode-se dizer que os estudos são mais abrangentes e contemplam muitos
assuntos em uma perspectiva mais ampla, como análise de discurso, tomada de
decisão, poder, aprendizagem organizacional, tecnologia, liderança, identidade
organizacional, globalização e organização, entre outros.
Numa retrospectiva histórica, Kunsch (2009) também mostra como o conceito
de comunicação organizacional tem evoluído, já que antes “o foco estava na
comunicação administrativa/interna e nos processos informativos de gestão; nas redes
de comunicação; nos canais, nas mensagens, na cultura e no clima organizacional;
na estrutura organizacional e nos fluxos, nas redes, etc.; nos inputs e outputs das
organizações” (Kunsch, 2009, p. 75).
Entretanto, as diferentes abordagens passaram a revelar novas possibilidades.
Kunsch (2009, p. 75) citando George Cheney e Lars Thoger Christensen (2001, p. 235)
observa que os autores chamam a atenção para a interdependência e interrelação da
comunicação interna com a externa.
Haswani (2011, p. 93) também endossa essa visão ao analisar que os estudos
recentes da comunicação organizacional apontam uma perspectiva de abertura ao
diálogo e à participação conjunta entre os diferentes setores.
Mesmo tendo em vista, de forma mais específica, o setor privado, é importante
Ciências da Comunicação
Capítulo 22
264
lembrar que esse tem sido cobrado por seus impactos junto à sociedade e ao meio
ambiente, o que exige a adoção de práticas e políticas de responsabilidade social e
ambiental.
Assim, a análise da cultura deve considerar os avanços na relação entre o
microambiente e o macro, já que não há mais muros entre o interno e o externo, entre
o público e o privado, pois as empresas são cobradas, cada vez mais, pela coerência
que mantêm entre o discurso e a prática.
Nesse sentido, a interrelação entre comunicação e responsabilidade social,
ocorre por meio das possibilidades de manifestação dos grupos sociais com os quais
as organizações se relacionam, já que essa predisposição para o diálogo tem relação
direta com o tipo de cultura organizacional existente.
4 | CULTURA
ORGANIZACIOAL,
COMUNICAÇÃO
E
RESPONSABILIDADE
SOCIAL EMPRESARIAL
A efetividade das políticas de responsabilidade social exige uma política de
comunicação organizacional que entenda os grupos sociais e indivíduos como sujeitos
interlocutores, cidadãos, que têm percepção de suas necessidades e querem que
as organizações, sejam elas públicas ou privadas, contribuam efetivamente com a
sociedade, não apenas para sua autopromoção, garantindo ganhos para sua imagem,
reputação e marca, mas que tragam reais benefícios para todos.
Assim, as políticas de comunicação alinhadas com o interesse público são
dependentes dos valores com os quais a organização se compromete, e que, portanto,
estão incorporados em sua cultura organizacional. Por isso, uma questão que se
apresenta como fundamental é entender o nível de consciência que as empresas são
capazes de ter, voltada ao interesse público e que as tornam propensas a desenvolver
politicas sólidas de responsabilidade social.
Para tanto, é útil a menção ao modelo dos Sete Níveis de Consciência desenvolvido
por Richard Barrett (apud Fejgelman, 2008, p. 154-156) e que permite identificar as
diferenças de comprometimento organizacional.
Níveis
1
Ciências da Comunicação
Níveis de Consciência Pessoal
Sobrevivência – Focaliza as questões
de sobrevivência física. Inclui valores
como estabilidade financeira, riqueza,
segurança, autodisciplina e saúde. Os
aspectos potencialmente limitadores
deste nível são gerados por medos
em torno da sobrevivência. Valores
limitantes incluem ganância, controle e
cautela.
Níveis de Consciência Organizacional
Finanças – Focaliza a questão
financeira e o crescimento
organizacional. Inclui valores como
lucratividade, valor do acionista, saúde
e segurança do funcionário. Os valores
potencialmente limitantes deste nível são
gerados pelo medo da sobrevivência,
como controle, territorialidade, cautela e
exploração.
Capítulo 22
265
2
Relacionamentos – Este nível
se preocupa com a qualidade dos
relacionamentos interpessoais. Inclui
valores como comunicação, família,
amizade, resolução de conflitos e
respeito. Os aspectos potencialmente
limitantes deste nível resultam de
medos em relação à perda de controle
ou consideração. Valores limitantes
incluem rivalidade, intolerância e
necessidade de ser gostado.
Relacionamentos – Contempla
a qualidade dos relacionamentos
interpessoais entre colaboradores e
clientes/fornecedores e inclui valores
como comunicação aberta, resolução
de conflitos, satisfação do cliente,
cortesia e respeito. Os aspectos
potencialmente limitantes deste nível
nascem de medos relacionados à perda
de controle e consideração pessoal.
Isso gera manipulação, culpabilização e
competição interna.
3
Autoestima – Enfatiza a questão do
reconhecimento. Ele inclui valores como
ser o melhor, ambição, crescimento
profissional e recompensa. Os aspectos
potencialmente limitantes deste nível
se originam de uma baixa autoestima
ou da perda de controle. Valores
potencialmente limitantes incluem
status, arrogância e imagem.
Autoestima – Este nível se preocupa
com práticas de gestão que
melhoram os métodos de trabalho
e a entrega de serviços e produtos,
incluindo valores como produtividade,
eficiência, crescimento profissional,
desenvolvimento de habilidades e
qualidade. Os aspectos potencialmente
limitantes são o resultado de baixa
autoestima e da perda de controle e
incluem valores como status, arrogância,
burocracia e complacência.
4
Transformação – Focaliza a autorealização e crescimento pessoal.
Contém valores como coragem,
responsabilidade e desenvolvimento
pessoal. Este é o nível em que as
pessoas trabalham para se libertar
de seus medos. Isso requer um
questionamento contínuo das próprias
crenças e pressupostos. É também o
nível em que o profissional encontra
equilíbrio em sua vida.
Transformação – Visa a renovação
contínua e o desenvolvimento de
novos produtos e serviços. Ele contém
valores que sobrepõem os valores
potencialmente limitantes dos níveis
1 a 3. Valores neste nível incluem
responsabilidade, participação do
funcionário, aprendizagem, inovação,
trabalho em equipe, desenvolvimento
pessoal e compartilhar conhecimento.
5
Significado - Voltada para a
preocupação do indivíduo com a
busca de significado e comunidade.
Aqueles que operam como neste
nível não pensam mais em termos de
emprego ou cargo, mas em termos
de missão. Esse nível contém valores
como comprometimento, criatividade,
entusiasmo, humor/alegria, excelência,
generosidade e honestidade.
Coesão Interna – Foca o espírito
de comunidade na empresa. Ele
inclui valores confiança, integridade,
honestidade, consciência de valores,
cooperação, excelência e justiça. O
resultado é alegria, entusiasmo, paixão,
comprometimento e criatividade.
6
Fazer a diferença – Traz a questão de
fazer a diferença no mundo. É também
o nível de envolvimento ativo na
comunidade local. Indivíduos operando
neste nível honram a instituição e
a contribuição. Eles podem estar
preocupados com o meio ambiente
ou questões locais. Contém valores
tais como aconselhamento, trabalho
comunitário, empatia e consciência
ambiental.
Inclusão – Foca no amadurecimento
e fortalecimento dos relacionamentos
e na realização do funcionário.
Dentro da organização inclui valores
como desenvolvimento da liderança,
capacidade de ser mentor, capacidade
de ser coaching e realização do
funcionário. Externamente inclui valores
como colaboração com clientes e
fornecedores, criar parcerias, alianças
estratégicas, envolvimento com a
comunidade, consciência ambiental e
fazer a diferença.
Ciências da Comunicação
Capítulo 22
266
Servir – Reflete a mais alta ordem de
conexão interna e externa. Ele foca no
servir aos outros e o planeta. Indivíduos
operando neste nível lidam bem com a
incerteza. Eles demonstram sabedoria,
compaixão e capacidade de perdoar,
têm uma perspectiva global e estão
preocupados com questões como
justiça social, direitos humanos e as
futuras gerações.
7
Unidade – Reflete o nível mais alto de
conexão interna e externa. Dentro da
organização inclui valores como visão,
sabedoria, capacidade de perdoar e
compaixão. Externamente incluir valores
como justiça social, direitos humanos,
perspectiva global e futuras gerações.
Quadro 1 – Níveis de consciência pessoal e organizacional de Richard Barrett, 1998*
*(apud Fejgelman, 2008)
Conforme pode ser observado, há a evolução do nível de consciência, seja
pessoal ou organizacional, dependendo da cultura, dos valores e da maturidade. Isso
sugere que as empresas que estão efetivamente comprometidas com o interesse
público, são aquelas que estão localizadas em níveis mais elevados de consciência, já
que os níveis mais baixos restringem-se a buscar a sobrevivência pessoal ou atender
a sustentabilidade financeira das organizações.
Tal abordagem nos leva a entender porque há empresas que valorizam a
comunicação, o relacionamento, a participação, enquanto outras se mostram distantes
dessa percepção. Aquelas que se encontram, em especial, no 1o. Nível, quando
realizam ações sociais/ambientais, tendem a esconder as reais intenções de suas
práticas, camuflando interesses basicamente promocionais.
Por outro lado, as organizações que são identificadas a partir do nível 4
mostram-se mais propícias a adoção de políticas mais autênticas de comunicação e
responsabilidade social. Portanto, fica evidente a necessidade de identificar e analisar
o nível de consciência organizacional, para que sejam alinhadas as expectativas e as
possibilidades de práticas coerentes com a cultura organizacional.
5 | OS ARQUÉTIPOS EXPRESSANDO A CULTURA ORGANIZACIONAL
Se por um lado temos níveis de consciência organizacional, que contribuem para
diagnosticar a cultura organizacional, por tratarmos aqui da relação com comunicação,
torna-se útil acrescentar uma abordagem sobre arquétipos, a partir da contribuição
de Jung (1919, apud Mark e Pearson, 2012). Afinal, a criação de uma personalidade
para a organização, deve expressar sua cultura organizacional. Nesse sentido, Jung
define arquétipos como conjuntos de “imagens primordiais” que “estão presentes em
todo o tempo e em todo o lugar” passadas em muitas gerações, armazenadas no
inconsciente coletivo.
Esses conjuntos de imagens são passados de geração em geração, tornando-se
importantes para definir a identidade da marca, contribuindo com uma percepção que
se relaciona com a cultura organizacional.
Ciências da Comunicação
Capítulo 22
267
Utilizando os arquétipos criados por Jung, Mark e Pearson exploram novas
possibilidades para o branding das marcas. Assim, entendemos que o arquétipo está
diretamente relacionado com as características da organização e, portanto, deve
também expressar sua cultura, já que existe uma movimento que vai do interior para
o exterior e vice-versa, permitindo que haja coerência entre o que a organização é e
o que ela parece ser. Cultura, imagem, identidade, reputação se integram, exigindo
que as políticas de comunicação e responsabilidade social sejam concebidas a partir
dessa interrelação.
Cada arquétipo está agrupado em uma das necessidades principais citadas na
tabela a seguir:
Arquétipo
Necessidades
Fora da Lei
Alguém rebelde, selvagem, que quebra todas as regras. Este personagem
se vê em um mundo no qual ele faz as regras, deseja vingança ou então
revolução. A liberdade é muito importante, sem contar o medo de perder
o controle ou ser comum. O fora da lei precisa aparecer, então ele resolve
quebrar, brigar, humilhar, fazer de tudo para manter o poder sob seu domínio.
A meia idade ou adolescência são períodos da vida com grandes conflitos na
família e sociedade, então, a marca que vende para este público pode ter este
arquétipo como referência.
Criador
Bobo da
Corte
Amante
Criar algo novo é o lema, pois se algo não existe pode ser construído. Este
tipo de personagem tem como aliados a criatividade e a imaginação, sempre
inovando em algo duradouro e evitando a mediocridade na hora de elaborar
uma grande sacada.
São personagens que ao se depararem com um dia difícil vão para casa e
pintam, criam alguma coisa além do esperado. O desejo e satisfação tem muito
a contribuir na hora de se envolver em projetos criativos.
Os produtos e serviços oferecidos por marcas associadas a este arquétipo
prestam assistência ao usuário, além de chamar a atenção para o status, pois
engloba a ideia de construção e personalização. A venda de pinturas, quadros,
móveis, serviços de decoração e muito mais, são exemplos de produtos e
serviços que se acoplam a este perfil.
É o ser que vai aproveitar cada momento e viver intensamente os
minutos, fugindo totalmente do tédio. Este é um arquétipo que busca
travessuras, jogos e pinta o sete, mas tem suas fraquezas, como por exemplo,
perder o tempo ou a frivolidade.
Além de ser brincalhão e alegre, este personagem quer ser visto como ele é,
sem máscaras ou fingimentos. O grupo precisa aceitá-lo do jeito dele. Ao levar
a vida mais leve, quem segue este arquétipo faz com que através da inovação
e informalidade processos complicados e tediosos fiquem mais interessantes
de serem executados.
O mundo da moda, estética e beleza conseguem associar muito suas marcas
a este arquétipo. Existe um culto e valorização da beleza, sexo e romances,
chamando a atenção para o corpo e suas formas. Aqui neste perfil observa-se a
tendência em desejar relacionamentos com pessoas e o trabalho, mas se perde
em prazeres e por vezes pode ser manipulado. É elegante e lúdico, prestando
atenção aos divertimentos de modo intenso dentro de sua admiração ao corpo.
Governante O controle, poder, revolução e liderança pertencem a este arquétipo. Apesar
de ser alguém responsável e com muito peso nas costas, precisa liderar, ser o
chefe. No marketing poderíamos associa-lo a uma marca que reforça atributos
de liderança e prestígio, reafirmando o poder que o consumidor tem, que o
cliente está no poder. Marcas que possuem o target focado em classes sociais
mais altas e empresas relacionadas a crédito e dinheiro em geral tendem a ser
governantes.
Ciências da Comunicação
Capítulo 22
268
Prestativo
Amar ao próximo é com ele mesmo. Um verdadeiro altruísta e cuidador, o
prestativo vê o mundo com compaixão e amabilidade. Seria terrível para ele o
egoísmo e a ingratidão, assim como a instabilidade e dificuldade.
Ele vê as dificuldades do usuário e se coloca no lugar, facilitando a vida de
todos. Atividades como restauração, consertos, cuidados com idosos ou
crianças, limpeza, preocupação com o bem-estar e muito mais, são marcas que
podem se beneficiar deste arquétipo.
Mago
Tem coisas que não podem ser explicadas em números ou dados, então entra
em cena o Mago. A sabedoria para ele consiste em entender os fenômenos
através da ciência, religião e tecnologia. Ele faz com que um sonho se torne
realidade.
Produtos e/ou serviços que curam, nos fazem relaxar, catalisam mudanças,
influenciam pessoas com gatilhos mentais, afirmam e constroem suas ideias
para o público e sabem encontrar os resultados certos são perfeitos para o
perfil do mago.
Explorador
Livre, leve e solto é o lema, pois viajar o mundo faz parte da rotina. O
explorador pode ser relacionado a marcas que incentivam seus consumidores
a descobrir novos mundos e a experimentar o novo. A inquietação e a falta de
rotina, assim como a independência são essência deste arquétipo.
A geração Y tem muito a ver com este perfil, sendo elas pessoas inquietas, que
quebram regras e apreciam sua individualidade, esta é uma boa opção para
marcas com este target.
Herói
Para empresas com consumidores dinâmicos, que buscam desafios e
velocidade, o herói preenche a lacuna. A ideia aqui é ser o mais forte possível e
esquecer a arrogância, sempre pensando na batalha a ser conquistada. Outro
ponto importante é o fato que são pessoas protetoras e fazem o que deve ser
feito para cuidar de alguém. Disciplina e foco são primordiais, assim como ser o
mais competente e corajoso.
Inocente
Bondade, amor, fraternidade e pureza são elementos-chave para este perfil.
O estilo de vida aqui é o mais natural e simples, retirando rótulos sociais
e optando por uma qualidade de vida acima do comum. A fé e otimismo
constroem um forte laço entre este arquétipo, o qual tem a tendência de fazer
tudo o mais correto possível.
Cara
Comum
O cara comum pensa que todo mundo é igual e nele há grande vontade de
pertencimento a grupos, odiando ser deixado de lado e evitando se destacar.
Pense em alguém que ama se conectar a outras pessoas e se junta facilmente
a uma multidão. Pois bem, este é o cara comum. Ele também utiliza o conceito
de democracia e se realiza quando encontra e integra grupos com a mesma
ideologia. Infelizmente é um alvo fácil de ser manipulado, deixando de lado
muitas vezes sua individualidade em prol do grupo.
Sábio
Típico de quem é investigador, pensador e vive dando conselhos. Costuma ver
o mundo de um jeito diferente, através da ótica do conhecimento. São pessoas
que fazem uma análise de si e tem compromisso com o autoconhecimento.
Este arquétipo vive em busca da verdade que trará alívio e liberdade ao seu
existir, validando e mensurando tudo que possa ser questionado.
Adaptado pela autora com base em Mark e Pearson
Assim como é possível associar o nível de consciência com a cultura organizacional,
podemos observar que os arquétipos escolhidos para dar personalidade a uma marca
também precisariam considerar a cultura organizacional para que soem coerentes
com o que pretendem expressar aos seus públicos.
Arquétipos como prestativo, herói, inocente, cara comum e sábio, por exemplo,
Ciências da Comunicação
Capítulo 22
269
tendem a revelar um perfil mais condizente com marcas comprometidas com
responsabilidade social, e, por isso mesmo, suas intenções são vistas com mais
confiança por seus públicos.
Todavia, como muitas vezes a relação com a cultura não é considerada para
a definição dos arquétipos, em geral são associados com a marca apenas para
resultados mercadológicos, sem considerar a perspectiva institucional.
6 | CONCLUSÃO
A análise da cultura organizacional exige uma visão sistêmica, que considere as
possibilidades metodológicas, seja a partir de uma postura empiricista, antropológica
ou clínica, por meio das quais pode-se analisar se a cultura tende a ser de clube,
função, tarefa ou existencial, ou mesmo utilizar outras tipologias, além de se permitir
levantar o nível de consciência organizacional presente e considerar os arquétipos
mais coerentes com os quais a organização mais se alinhe para transmitir como
expressão de sua personalidade.
É desse cruzamento, unindo métodos, tipos, níveis de consciência e arquétipos,
que é possível contar com um diagnóstico mais preciso sobre a cultura organizacional
e entender a comunicação e a responsabilidade social como o elo que, ao mesmo
tempo, expressa a cultura, como também traz a influência das demandas externas
sobre a mesma, já que esta se transforma em decorrência da interação com o meio
em que se insere.
Se, por exemplo, há uma cultura de respeito à sociedade e se pratica ações
nesse sentido, a comunicação é capaz de fortalecer essa identidade e percepção de
reputação junto aos stakeholders,
Identificar e compreender a cultura organizacional é o pressuposto para o
desenvolvimento das políticas de comunicação e de responsabilidade social, que só
têm sentido se integrarem a rotina das pessoas que vivem o dia a dia e representam
a organização.
Afinal, não só a cultura é condicionante da comunicação, como a comunicação é
condicionante da cultura existente, já que, conforme Hall (1959), cultura é comunicação
e comunicação é cultura.
REFERÊNCIAS
BERGER & LUCKMANN. The social construction of reality. Nova York, Anchor Books, 1967.
BEYER, I. & TRICE, H. How an organization’s rites reveal it’s culture. Organizational Dynamics, 1986.
FEIGELMAN, D. B. Valores compartilhados: o desafio de levar a teoria à prática. In: Organicom
– Revista Brasileira de Comunicação Organizacional e Relações Públicas. Ano 5, número 8, 1o.
semestre 2008.
Ciências da Comunicação
Capítulo 22
270
FERREIRA, A. A.; REIS, A.C.F; PEREIRA, M.I.Gestão Empresarial: de Taylor aos nossos dias.
Evolução e Tendências da Moderna Administração de Empresas. São Paulo, Pioneira, 1997.
FLEURY, M. Tereza Lema & FISCHER, R. Maria. O desvendar a cultura de uma organização: uma
discussão metodológica. In: FLEURY, M. T. L, FISCHER, R.M. Cultura e Poder nas Organizações. São
Paulo: Atlas, 1989.
Hall, Edward T. The silent language. New York: Doubleday & Company, Inc., 1959.
HANDY, Charles. Deuses da Administração. São Paulo, Senac, 1994.
HASWANI, M. F. Comunicação pública 360 grausae a garantia de direitos. In: KUNSCH. M. M. K.
Comunicação Pública, Sociedade e Cidadania. 1 . Ed., São Caetano do Sul, SP, Difusão Editora,
2011.
KUNSCH, M. M. K. (org.). Comunicação Organizacional: histórico, fundamentos e processos. Vol. I.
São Paulo, Saraiva, 2009.
MARCHIORI, M. Cultura e Comunicação Organizacional: Um olhar estratégico sobre a organização.
São Caetano, Difusão, 2006.
MARK, M; PEARSON, Carol S. O herói e o Fora da Lei: Como construir marcas extraordinárias
usando o poder dos arquétipos. São Paulo, Editora Cultrix, 2012.
SCHEIN, E. Organizational culture and leadership. San Francisco, Jossey Bass, 1986.
THIOLLENT, M. Crítica metodológica e investigação social. são Paulo, Polis, 1980.
Ciências da Comunicação
Capítulo 22
271
CAPÍTULO 23
COMO O OMBUDSMAN DE DADOS PODE
REFORÇAR A MULTIDISCIPLINARIDADE NA
COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL?
Wallace Chermont Baldo
Universidade Metodista de São Paulo
São Bernardo do Campo – SP
RESUMO: O objetivo é compreender – com
base em uma revisão bibliográfica – como a
aplicação do big data pelos profissionais de
comunicação organizacional pode representar
não apenas um recurso estratégico, mas
incorporar ao dia a dia das equipes o (aqui
denominado) ombudsman de dados, entre
outras funções. Tais mudanças reforçam a
multidisciplinaridade cada vez mais necessária
à implantação de ações comunicacionais, além
de enfrentar as justas preocupações quanto
à falta de segurança e privacidade dos dados
coletados, que permitem a identificação não
consentida de pessoas – e levantam outras
questões morais, legais e éticas. Conclui-se que
tão fundamental quanto saber as perguntas é
ter clareza sobre o que fazer com as respostas
obtidas a partir da tecnologia: a atuação de
profissionais como o ombudsman de dados
pode ser relevante nesse sentido.
PALAVRAS-CHAVE:
comunicação
organizacional; big data; ombudsman de dados.
ABSTRACT: The objective is to understand
- based on a bibliographical review - how
the adoption of big data by organizational
Ciências da Comunicação
communication professionals can represent
not only a strategic resource, but also
incorporate into the routine of the teams the
(here denominated) data ombudsman, among
other functions. These changes reinforce the
multidisciplinarity that is increasingly necessary
for the deployment of communication actions, as
well as addressing the fair concerns about the
lack of security and privacy of the collected data,
which allow the non-consensual identification of
people - and raise other moral, legal and ethical
issues. Conclusion is that as fundamental as
knowing the questions is to have clarity on what
to do with the answers obtained through the
technology: the performance of professionals
like the data ombudsman can be relevant in this
sense.
KEYWORDS: organizational communication;
big data; data ombudsman.
1 | INTRODUÇÃO
“Dados são o novo petróleo”, declarou em
2006 Clive Humby, um matemático da cidade
inglesa de Sheffield que, junto com a esposa,
Edwina Dunn, fez fortuna ao ajudar companhias
como a varejista britânica Tesco a transformar
seu relacionamento com os clientes: a empresa
dos dois, Dunnhumby, implantou novidades
como o cartão de fidelidade (ARTHUR, 2013).
Capítulo 23
272
A frase repercutiu bastante e foi uma das manifestações que começou a despertar
na mente de executivos a percepção de que há muito a ganhar (ou perder) com a
triagem cuidadosa ou descuidada do chamado “big data” – relata Charles Arthur,
no jornal britânico The Guardian. Mas do que tratam essas duas palavras? Hoje, as
organizações têm à disposição sistemas de hardware e software capazes de coletar
dados em “velocidade”, “variedade” e “volume” inéditos, as três dimensões essenciais
do conceito. Isso já é uma mudança significativa, mas o que realmente faz a diferença
é o tratamento dispensado à miríade de bytes, que pode lhes conferir “valor”. Outra
característica importante é a “veracidade” (confiabilidade) dos dados obtidos. Na
mesma publicação, Michael Palmer, da ANA – Association of National Advertisers,
desenvolveu o raciocínio de Humby: “Dados são como petróleo cru. É valioso, mas
se não refinado não pode realmente ser usado. Tem que ser transformado em gás,
plástico, produtos químicos etc. para criar uma entidade valiosa que impulsiona
atividade rentável; por isso os dados devem ser discriminados, analisados para que
tenham valor”, afirmou.
Em outras palavras, o valor fundamental do big data “vem dos padrões que
podem ser obtidos ao fazer as conexões entre partes de dados, sobre um indivíduo,
sobre indivíduos em relação aos outros, sobre grupos de pessoas, ou simplesmente
sobre a estrutura da própria informação” (BOYD; CRAWFORD, 2011, p. 2).
Estudos já traduzem essas afirmações em números:
Erik Brynjolfsson, professor de negócios na Sloan School of Management, do MIT,
e seus colegas estudaram o desempenho de empresas que se destacaram em
decisões tomadas com base em dados e o compararam com o desempenho de
outras empresas. Eles descobriram que os níveis de produtividade eram até 6%
maiores nessas empresas que nas que não enfatizam o uso de dados na tomada
de decisões (MAYER-SCHONBERGER; CUKIER, 2013, p. 101).
Além disso, o McKinsey Global Institute publicou um relatório com a estimativa
de que uma empresa varejista que adote sistemas de big data pode aumentar sua
margem operacional em mais de 60% (MANYIKA et al., 2011, p. 6). De acordo com
os autores, o “uso de big data está se tornando uma chave para levar as empresas a
superar os seus pares”.
Mas o big data também possui seu lado sombrio. O perigo engloba questões
de privacidade, segurança e chega à probabilidade. Autores como Viktor Mayer-
Schonberger e Kenneth Cukier (2013, p. 11) argumentam que, com a adoção da
tecnologia, que tem na capacidade de previsão um ponto forte (mas não infalível), as
decisões serão tomadas cada vez mais por máquinas. “A sociedade tem milênios de
experiência na compreensão do comportamento humano. Mas como regulamos um
algoritmo?”, questionam.
Diante de tantas discussões, uma área de estudo ainda apresenta tímidas
reflexões sobre o assunto: a comunicação organizacional. Em 2017, Christian
Wiencierz e Ulrike Röttger (p. 258-259, 261, 263), da Universidade de Münster, na
Alemanha, publicaram um artigo que demonstra, de um lado, que o big data é capaz
Ciências da Comunicação
Capítulo 23
273
de destacar insights gerados pelos públicos de interesse, de modo a permitir a criação
de estratégias de comunicação mais efetivas. De outro lado, reconhece a “dramática”
falta de pesquisa com relação a aplicações de big data associada, por exemplo, a
relações públicas e comunicação interna. Os autores avaliaram 53 artigos científicos
publicados entre 2010 e 2015, que abordaram diferentes esferas da comunicação:
comunicação de marketing, relações públicas e comunicação interna. A análise dos
artigos indica que a grande maioria deles (49, ou 92,5% do total) trata de aplicações
na comunicação de marketing. Comunicação interna é o assunto de apenas quatro
pesquisas (7,5%), enquanto apenas seis textos (11,3%) abordam relações públicas
como tema de pesquisa ou ao menos mencionam RP – tópicos relacionados, como
gestão de conflitos e comunicação de crise, só aparecem em 7,5% (quatro vezes) e
1,9% (uma vez) dos estudos, respectivamente. Essa carência precisa ser revertida:
dados coletados a partir de sistemas compatíveis com o conceito de big data podem
gerar informações e oportunidades de grande valor para profissionais do setor,
traduzidos em insights para o planejamento e a execução de suas tarefas.
Assim, a tecnologia pode ser um trunfo para que a comunicação contemporânea
nas empresas seja, de fato, considerada estratégica, devido à mudança social que
proporciona às ações de informar e transmitir conteúdo. Ao mesmo tempo, não se pode
pensar essa comunicação sem uma visão de seu planejamento integrado e alinhado
à estratégia global da organização, com inteligência, agilidade e antecipação: “Na
sequência, se estratégica e integrada, a Comunicação contemporânea também atua
direta e diferencialmente no processo de competitividade global em que as empresas
hoje se veem inseridas” (CORRÊA, 2005, p. 100).
Wilson da Costa Bueno (2014a, p. 204) defende que as empresas modernas
capazes de enxergar rapidamente as oportunidades têm condições de ocupar
nichos de mercado e usufruir dos benefícios desse pioneirismo, ao contrário de seus
seguidores que, na maioria das vezes, são obrigados a investir recursos muito maiores
para ocupar o mesmo lugar. Para ele, “a internetização das relações estabelece um
outro timing para os negócios e os relacionamentos, que têm, agora, como meta a
excelência do online”. Como resultado, todas as atividades implícitas em uma política
de comunicação devem se reorganizar em função desse cenário emergente.
Dessa forma, o objetivo é demonstrar – com base em uma revisão bibliográfica –
que a utilização do big data pela comunicação organizacional representa não apenas
um aliado natural para a superação dos desafios apontados, mas que a novidade pode
incorporar no dia a dia profissionais como o algoritmista de dados – ou a denominação
alternativa ombudsman de dados, aqui sugerida. A tendência ganha força com a
entrada em vigor, em maio de 2018, da General Data Protection Regulation (GDPR),
lei europeia que reforça a proteção de dados aos cidadãos do continente.
Ciências da Comunicação
Capítulo 23
274
2 | CONCEITOS
Para demonstrar como o big data pode apoiar a comunicação nas organizações,
é válido recuperar alguns conceitos-chave. Em primeiro lugar, talvez seja importante
retomar a velha distinção entre dados, informação e conhecimento, com a ajuda de
Thomas Davenport: “Durante anos, as pessoas se referiram a dados como informação;
agora, veem-se obrigadas a lançar mão de conhecimento para falar sobre informação
– daí a popularidade da ‘administração do conhecimento’” (1998, p. 18). O autor define
dados como ‘observações sobre o estado do mundo’. A observação desses fatos brutos
pode ser feita por pessoas ou por uma tecnologia apropriada. Ele lembra que Peter
Drucker definiu informação como “dados dotados de relevância e propósito”. E são os
seres humanos quem os dota de tais atributos. Assim, temos o conhecimento como a
informação mais valiosa e, portanto, mais difícil de gerenciar. “É valiosa porque alguém
deu à informação um contexto, um significado, uma interpretação”, afirma Davenport.
Outro conceito fundamental é a definição de comunicação empresarial ou
comunicação organizacional, como o conjunto “integrado de ações, estratégias, planos,
políticas e produtos planejados e desenvolvidos por uma organização para estabelecer
a relação permanente e sistemática com todos os seus públicos de interesse”, de acordo
com Bueno (2014b, p. 3-4). Sob essa perspectiva, os termos integram e articulam
as chamadas comunicação institucional e mercadológica, ou seja, incorporam ações
voltadas para funcionários, clientes, acionistas, imprensa, sindicatos, parlamentares,
entidades e grupos organizados e mobilizados da comunidade (ambientalistas, por
exemplo), entre outros, e a sociedade em geral. Um dos desafios a serem vencidos pela
comunicação nas organizações é a sua consolidação como instrumento de inteligência
empresarial, de acordo com o autor. Apesar da crescente profissionalização da área,
o empirismo ainda fundamenta grande parte das ações e estratégias de comunicação
postas em prática pelas empresas ou entidades. É preciso incorporar a prática de
pesquisa e desenvolver metodologias para mensurar resultados, o que permitirá à
área atingir um novo patamar. Com o conhecimento mais detalhado do mercado,
surge um processo irreversível de segmentação, com a criação de canais ou veículos
específicos para atender a demandas localizadas. Essa segmentação também deve
chegar ao trabalho de relacionamento com os meios de comunicação, agora vistos
não como um segmento uniforme, mas composto de unidades personalizadas e que
requerem abordagens singulares e especializadas. Assim, Bueno (2014b, p. 16, 41)
indica que a comunicação nas organizações deve respaldar-se em bancos de dados
inteligentes, em um conhecimento mais profundo de seus públicos de interesse, dos
canais de comunicação e da própria mídia, de modo a deixar para trás processos
de planejamento e tomada de decisões fundados na visão “impressionista de seus
profissionais (por melhores que eles sejam), quase sempre carregada de vieses e
preconceitos”. Ele observa, ainda, que é fundamental lembrar que não se trata de
prever o futuro, mas de um trabalho sistemático de avaliação de tendências, respaldado
Ciências da Comunicação
Capítulo 23
275
em dados confiáveis para a construção de cenários, sempre em busca da redução
dos níveis de incerteza e da adaptação a uma realidade em permanente mudança.
É preciso capacitar a organização para uma cultura de planejamento que valorize a
flexibilidade e a agilidade para responder a novos desafios.
Pois, em sua essência, big data relaciona-se com previsões, com a construção de
cenários. Apesar de ser descrito como um ramo da ciência da computação chamado
inteligência artificial e, mais especificamente, uma área denominada aprendizado de
máquina (ou machine learning), trata-se de uma ideia enganosa. Segundo Mayer-
Schonberger e Cukier (2013, p. 8), big data não tem a ver com tentar “ensinar” um
computador a “pensar” como ser humano. Trata-se, em vez disso, da aplicação da
matemática a enormes quantidades de dados a fim de prever probabilidades. Os
sistemas são criados para se aperfeiçoarem com o tempo, ao analisar e identificar
os melhores sinais e padrões – em busca de mais dados. Os autores defendem que
“no futuro – e mais cedo do que pensamos –, muitos aspectos do nosso mundo, hoje
sujeito apenas à visão humana, serão complementados ou substituídos por sistemas
computadorizados”. A comunicação organizacional certamente pode fazer parte desse
processo.
E como podem os profissionais compreender plenamente os desafios que
enfrentam no mundo das comunicações de hoje? Em primeiro lugar, empreendendo
uma revisão completa e de mente aberta do enorme número de canais e métodos de
comunicações disponíveis. E, em segundo, considerando como realizar o planejamento
estratégico dessas inúmeras opções, alternativas e combinações. São definidos como
canais de comunicação qualquer meio, mídia ou disciplina de comunicação com o
consumidor ou de influência sobre ele, seja propaganda convencional, relações
públicas ou CRM, propaganda boca a boca ou marketing de guerrilha, anúncio
impresso de página inteira, um evento esportivo, símbolo em uma porta de banheiro
ou um programa global de fidelização de consumidores. No contexto do planejamento
de canais de comunicações, os insights desempenham um papel central. Para Mark
Austin e Jim Aitchison (2006, p. 51), esses só podem ser obtidos a partir de um
conhecimento profundo do consumidor, dos canais de comunicações que afetam seu
comportamento e de como a combinação de tais fatores pode afetar o desempenho
das marcas.
Para isto é preciso obter as respostas para quatro perguntas simples:
1. Com quem precisamos falar?
2. Como falamos com eles?
3. O que devemos dizer a eles?
4. Quando e onde podemos nos comunicar com eles de forma mais eficaz?
(AUSTIN; AITCHISON, 2006, p. 141).
Esse é o caminho para o encontro das conexões ou pontos de contato mais
valiosos entre a marca e seus públicos, que só é “possível por meio da pesquisa – não
Ciências da Comunicação
Capítulo 23
276
no sentido convencional, não em grupos de debate ou assemelhados [...] – mas de
uma pesquisa que gere insights genuínos sobre o que de fato está passando na mente
dos consumidores” (AUSTIN; AITCHISON, 2006, p. 142-143). Com eles, é possível
fazer uma análise dos mercados, consumidores e canais de comunicações de todos
os ângulos, o que permitirá a ação em várias frentes.
E essa foi exatamente uma das grandes perturbações trazidas pelo big data a
papéis consolidados nas organizações: o fato de colocar a descoberta e a análise como
uma prioridade (DAVENPORT; BARTH; BEAN, 2012, p. 23-24). A nova geração de
processos e sistemas foi concebida para insights, não apenas automação. Ambientes
de big data devem dar sentido a novos dados, ir além de relatórios sintéticos, que não
são mais suficientes. Isto significa que essas aplicações de tecnologia da informação
precisam medir e relatar, de forma transparente, uma ampla variedade de dimensões,
como interações com os clientes, utilização de produtos, ações de serviço e outras
medidas dinâmicas. Com sua evolução, a arquitetura irá desenvolver um ecossistema,
uma rede de serviços internos e externos capaz de compartilhar informação, otimizar
decisões, comunicar resultados e gerar novas perspectivas para as empresas.
Fica nítido que não é suficiente a capacidade de monitorar um fluxo contínuo de
informações. As organizações precisam estar preparadas para tomar decisões e agir,
a partir do estabelecimento de processos desenhados com essas finalidades. Isso
ajuda a determinar quais são os stakeholders interessados, bem como procedimentos,
critérios e prazos para que as resoluções sejam tomadas.
3 | ALÉM DA TECNOLOGIA
Entretanto, Thomas Davenport (1998, p. 11-12) lembra, em seu livro “A Ecologia
da Informação”, que o fascínio pela tecnologia pode fazer com que as pessoas se
esqueçam que informar é o objetivo primordial, ou seja, a evolução dos sistemas de
nada servirá se os usuários não estiverem interessados na informação que pode ser
gerada por eles. É inútil aumentar as capacidades de obtenção de informação se os
stakeholders não a compartilham. Novidades como big data não serão úteis se forem
adotadas com muita rapidez, sem tempo para assimilação, ou se não estiverem à
disposição especialistas dispostos a ensinar o que sabem. “Informação e conhecimento
são, essencialmente, criações humanas, e nunca seremos capazes de administrá-los
se não levarmos em consideração que as pessoas desempenham, nesse cenário,
papel fundamental”, afirma. O autor ressalta, ainda, que a estratégia geralmente
adotada para a gestão de informações, centrada fundamentalmente no investimento
em tecnologias, não funciona. É necessária uma perspectiva holística, capaz de
assimilar as alterações repentinas no mundo dos negócios e nas realidades sociais.
A nova abordagem, denominada por ele ecologia da informação, leva em conta o
ambiente da informação em sua totalidade, ao lado dos valores e crenças empresariais
Ciências da Comunicação
Capítulo 23
277
sobre o tema (cultura); comportamento e processos de trabalho; armadilhas capazes
de interferir no intercâmbio de informações; e, por fim, os sistemas tecnológicos já
instalados.
Fica evidente que mudar o status quo de uma organização nunca é fácil. De
acordo com Davenport (1998, p. 14-15, 20), a ecologia da informação exige, de
saída, novas estruturas administrativas, incentivos e atitudes em direção à hierarquia,
à complexidade e à divisão de recursos da organização. Para ele, à medida que a
informação se torna mais e mais importante, é preciso aprender a pensar além das
máquinas. A importância do envolvimento humano aumenta à medida que evolui o
processo dados – informação – conhecimento. “Os computadores são ótimos para nos
ajudar a lidar com dados, mas não são tão adequados para lidar com informações e,
menos ainda, com o conhecimento”, diz.
Tais conceitos encontram eco no pensamento de Wilson da Costa Bueno. Ele
defende que a tecnologia não se confunde necessariamente com a comunicação, e
representa uma possibilidade, um recurso adicional importante para a implantação
de ações e canais de relacionamento (2014a, p. 149). E nota que, se assim não
fosse, portais, intranets e sites das organizações seriam menos poluídos e mais
fáceis de navegar. Dessa maneira, uma proposta de comunicação competente deve
incluir recursos tecnológicos mais ou menos sofisticados, mas não ser reduzida a
eles. Há alternativas ou recursos que desviam a atenção, são pobres de conteúdo e
de inteligência corporativa e se revelam descoladas dos objetivos estratégicos e da
cultura da organização. Muitas vezes falta a capacidade de pensar em estratégias
realmente competentes ou inovadoras para atrair e manter os públicos de interesse. O
ideal é que o planejamento e a gestão da comunicação – nesse quadro de evolução
tecnológica – possuam uma perspectiva mais abrangente e estratégica, e que
tenham sido concebidos e executados por uma equipe multidisciplinar, que incorpore
especialistas em big data e gestores de comunicação que saibam exatamente o que
as organizações desejam, que possam definir quais as perguntas corretas a serem
respondidas pelos sistemas – sem deixar de considerar as implicações legais, morais
e éticas de seu uso.
4 | NOVAS FUNÇÕES
Fábia Pereira Lima e Hérica Luzia Maimoni (2012, p. 101-102) explicam que,
se, de um lado, a operacionalização das novas tecnologias demanda conhecimentos
crescentemente especializados, de outro a gestão integrada destes exige cada vez
mais a formação de profissionais com visões mais globais do processo. “Por isso,
a comunicação integrada realiza-se com a formação de equipes multidisciplinares e
com diversas e complementares habilidades (não necessariamente habilitações)”,
afirmam. Aqui surgem oportunidades – e desafios – para a adequada aplicação de
Ciências da Comunicação
Capítulo 23
278
recursos tecnológicos como o big data.
Sebastião Squirra (2013, p. 91) também vê na convergência de talentos em
formato aberto e no modelo colaborativo, com a união dos saberes das ciências
humanas e setores da engenharia, matemática, física e segmentos das ciências sociais
(comunicação, linguística etc.), um estímulo “para a compreensão dos processos e
efeitos da simbiose tecnológica que a sociedade experimenta”.
Surge, então, nessa equação multidisciplinar, um novo personagem: o cientista
de dados (DAVENPORT; BARTH; BEAN, 2012, p. 23). Embora sempre tenha havido
uma demanda por profissionais analíticos nas organizações, com o big data mudam
os requisitos para o pessoal de apoio. Como interagir com os dados em si – seja em
sua obtenção, extração, manipulação ou estruturação – é fundamental para qualquer
análise, as pessoas que trabalham na área precisam não apenas de habilidades
de tecnologia, mas também de criatividade. Precisam estar perto de produtos e
processos dentro das organizações, o que significa que devem ser organizados de
forma diferente da que o pessoal analítico era no passado. Os cientistas de dados
precisam entender de análise, mas muitas vezes são bem versados em ciência da
computação, física computacional ou biologia – ou ciências sociais orientadas a rede.
O amplo (e escasso) conjunto de habilidades para gestão de dados inclui programação,
habilidades matemáticas e estatísticas, bem como a visão de negócios e a capacidade
de se comunicar de forma eficaz com quem toma as decisões, o que vai muito além do
necessário para analistas de dados no passado.
Os profissionais de comunicação organizacional, e de outros setores, devem
se preparar para essa convivência. Mayer-Schonberger e Cukier (2013, p. 98-100)
acreditam que os especialistas vão perder um pouco de seu brilho em comparação com
o estatístico ou analista de dados, que “não se impressionam com as velhas práticas e
deixam os dados se manifestarem”. Para eles, o maior impacto do big data será o fato
de que decisões tomadas com base em dados disputarão ou superarão o julgamento
humano: nesse quadro, os especialistas não desaparecerão, mas sua supremacia
diminuirá. “Mas quando dispomos de muitos dados, podemos usá-los melhor. Assim,
aqueles capazes de analisar o big data podem ultrapassar superstições ou o raciocínio
convencional, não porque são mais inteligentes, e sim porque têm os dados”, afirmam.
Assim, para ter sucesso no mundo do big data, as organizações precisam não
apenas saber as perguntas a serem feitas, em busca de insights, mas também o que
fazer com as respostas, os dados obtidos.
Elucidativo é talvez o fato de que o conceito da ‘sociedade do conhecimento’ esteja
sendo mais ou menos usado como sinônimo do de “sociedade da informação”.
Vivemos numa sociedade do conhecimento porque somos soterrados por
informações. Nunca antes houve tanta informação sendo transmitida por tantos
meios ao mesmo tempo. Mas esse dilúvio de informações é de fato idêntico a
conhecimento? Estamos informados sobre o caráter da informação? Conhecemos
afinal que tipo de conhecimento é esse? Na verdade o conceito de informação
não é, de modo nenhum, abarcado por uma compreensão bem elaborada do
conhecimento. O significado de ‘informação’ é tomado num sentido muito mais
Ciências da Comunicação
Capítulo 23
279
amplo e refere-se também a procedimentos mecânicos (KURZ, 2002).
Mayer-Schonberger e Cukier (2013, p. 120, 126) defendem que “novas instituições
e profissionais serão necessários para interpretar os complexos algoritmos que perfazem
as descobertas do big data e para defender as pessoas que podem ser atingidas por
ele”. Vislumbram, ainda, a demanda por um novo tipo de profissional, denominado
por eles “algoritmista interno”, capaz de trabalhar dentro de uma organização para
monitorar as atividades de big data, encarregado de garantir que a informação pessoal
não seja usada de forma equivocada no ambiente corporativo. A ideia é que ele cuide
não apenas dos interesses da empresa, mas também dos das pessoas afetadas pelas
análises de big data, supervisionando “operações de big data e atuando como primeiro
contato de qualquer pessoa afetada pelas previsões da empresa”. Outra função seria
examinar e se certificar que as análises tenham integridade e precisão antes que
ganhem vida. O cargo prevê, assim, um certo nível de autonomia e imparcialidade
dentro da organização, e não seria uma novidade: acontece, por exemplo, nas divisões
de monitoramento das grandes instituições financeiras, nos conselhos diretores
de várias empresas, e publicações como os jornais Folha de S. Paulo e O Povo,
que há anos empregam o ombudsman com a responsabilidade principal de manter
a confiança pública nessas companhias. A Alemanha, por exemplo, exige desde a
década de 1970 que empresas de determinado porte (geralmente com 10 ou mais
pessoas empregadas no processamento de informações pessoais) contratem um
representante de proteção de dados – esses representantes internos desenvolveram
uma ética profissional própria.
Como a definição de comunicação organizacional aqui adotada “dá conta
de todo o processo de relacionamento da organização com os seus públicos de
interesse, normalmente designados pela expressão stakeholders” (BUENO, 2014b, p.
3), é possível inferir a eventual disseminação da função de “algoritmista interno”, ou
“ombudsman de dados” – denominação alternativa aqui sugerida. A função seria capaz
de constituir uma futura frente de trabalho multidisciplinar no dia a dia da comunicação
organizacional: seus gestores precisariam, no mínimo, entender as premissas e
acompanhar as implicações da nova função – sem mencionar todas as questões de
segurança e privacidade dos públicos, ensejadas pelo big data, a partir da coleta de
tamanha quantidade de dados.
Um livro publicado pela IBM (BALLARD et al., 2014, p. 17), fornecedora de
sistemas de big data, traz alertas importantes nesse sentido. Nele, os autores expõem
que a proporção de dados a ser protegida cresce mais rápido que o próprio universo
digital: de menos de um terço, em 2010, para uma estimativa de mais de 40%, em
2020. Eles observam que há muitas considerações sobre como o big data impacta a
segurança e a privacidade, levantando também questões legais, competitivas, morais,
políticas e éticas. De um lado, as empresas devem cumprir com as leis existentes. De
outro, existem escassas regulações sobre a proteção e divulgação de novos tipos de
Ciências da Comunicação
Capítulo 23
280
dados, como a geolocalização. Além disso, há muitos regulamentos inconsistentes
entre os países. Em muitas dessas áreas, as implicações apenas começam a surgir.
A combinação de fontes de dados pode causar uma exposição inesperada: quando se
associam endereços IP com informações demográficas, por exemplo, a identidade de
um indivíduo pode ser revelada acidentalmente. As organizações que protegerem os
dados sensíveis e protegerem a privacidade de seus clientes deverão se sobressair no
mercado. Violações de privacidade recentes afetaram consideravelmente a reputação
corporativa, especialmente nos setores bancário e de saúde. Os autores questionam,
por exemplo, se seria moral ou ético para as empresas tomar decisões de crédito com
base nos amigos do Facebook de um cliente, compartilhar dados médicos que expõem
informações sobre o risco de doença de uma família e cobrar tarifas maiores dos
usuários de dispositivos Apple porque a pesquisa mostrou que eles estão dispostos
a pagar mais por serviços de viagem. Aqui surge um exemplo em que a atuação do
ombudsman de dados pode fazer a diferença.
Ganhou também repercussão internacional o caso da varejista norte-americana
Target que, a partir das correlações de dados, consegue prever, por exemplo, que uma
mulher está grávida – em alguns casos, antes da própria família – e até o estágio da
gestação (DUHIGG, 2012). Correspondente de economia do New York Times, Charles
Duhigg revelou o caso do pai de uma adolescente que, na cidade norte-americana de
Mineápolis, foi até uma loja da empresa reclamar dos cupons de roupas de bebê e
berços enviados à sua filha, entendidos como um estímulo para que ela engravidasse.
O gerente se desculpou prontamente mas, dias depois, recebeu uma ligação e um
pedido de desculpas do futuro avô. O caso deixou evidente que a aplicação de big
data pelas empresas, em sua comunicação, pode gerar constrangimentos às partes
envolvidas – ao mesmo tempo em que revela a importância de um controle interno
independente para dirimir abusos.
5 | CONCLUSÕES
O objetivo inicial deste texto foi alcançado, ao demonstrar que a incorporação do
big data pelos profissionais de comunicação organizacional representa mais que um
aliado natural para que a área reforce seu caráter estratégico: os profissionais do setor
já podem contar no dia a dia com especialistas, como o cientista de dados, juntamente
com novas funções, como o ombudsman de dados. O atual cenário evidencia que
a comunicação deve cada vez mais ser concebida e executada por uma equipe
multidisciplinar.
Além disso, os textos elencados demonstram que a comunicação nas organizações
demanda bancos de dados inteligentes e que deve se basear em um conhecimento
mais profundo de seus públicos de interesse, dos canais de comunicação e da própria
mídia. Se o ideal é que o planejamento e a gestão da comunicação – nesse quadro
Ciências da Comunicação
Capítulo 23
281
de evolução tecnológica – possuam uma perspectiva mais abrangente e estratégica,
o uso eficaz (mas, ao mesmo tempo, legal, moral e ético) dos dados obtidos pode ser
de grande valia.
Assim, os profissionais de comunicação precisam se preparar para a nova
realidade que se apresenta e ter em mente que o mais importante não é a tecnologia,
mas saber quais são as perguntas a serem feitas e o que fazer com as respostas
obtidas a partir dela. A atuação de profissionais como o ombudsman de dados pode
ser relevante nesse sentido.
REFERÊNCIAS
ARTHUR, Charles. Tech giants may be huge, but nothing matches big data. The Guardian, 23 ago.
2013. Disponível em: <https://www.theguardian.com/technology/2013/aug/23/tech-giants-data>.
Acesso em: 22 jun. 2016.
AUSTIN, Mark; AITCHISON, Jim. Tem alguém aí? - As comunicações no século XI. São Paulo:
Nobel, 2006.
BALLARD, Chuck et al. Information governance principles and practices for a Big Data
landscape. [s.l.] IBM, 2014.
BOYD, Dana; CRAWFORD, Kate. Six provocations for Big Data. A Decade in Internet Time:
Symposium on the Dynamics of the Internet and Society. Anais... Oxford: 2011. Disponível em: <http://
ssrn.com/paper=1926431>
BUENO, Wilson da Costa. Comunicação Empresarial: alinhando teoria e prática. São Paulo:
Manole, 2014a.
BUENO, Wilson da Costa. Comunicação Empresarial: políticas e estratégias. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2014b.
CORRÊA, Elizabeth Saad. Comunicação digital: uma questão estratégica e de relacionamento com
públicos. Organicom, n. 3, p. 94–111, 2005.
DAVENPORT, Thomas H. Ecologia da informação: por que só a tecnologia não basta para o
sucesso na era da informação. 4. ed. São Paulo: Futura, 1998.
DAVENPORT, Thomas H.; BARTH, Paul; BEAN, Randy. How “ Big Data” is different. MIT Sloan
Management Review, v. 54, n. 1, p. 22–24, 2012.
DUHIGG, Charles. How Companies Learn Your Secrets. The New York Times, 19 fev. 2012.
Disponível em: <http://www.nytimes.com/2012/02/19/magazine/shopping-habits.html?_r=0>. Acesso
em: 24 jun. 2016.
KURZ, Robert. A ignorância da sociedade do conhecimento. Folha de S. Paulo, Mais! p. 14, 13 jan.
2002.
MANYIKA, James et al. Big Data: the next frontier for innovation, competition, and productivity. [s.l.]:
McKinsey Global Institute, 2011.
MAYER-SCHONBERGER, Viktor; CUKIER, Kenneth. Big Data: como extrair volume, variedade,
velocidade e valor da avalanche de informação cotidiana. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
Ciências da Comunicação
Capítulo 23
282
SQUIRRA, Sebastião. A iComunicação: da metacomunicação à Ciberlogia. Revista Iberoamericana
de la Comunicación, v. 2, n. ago, p. 86–97, 2013.
WIENCIERZ, Christian; RÖTTGER, Ulrike. The use of big data in corporate communication.
Corporate Communications: An International Journal, vol. 22, n. 3, p. 258-272, 2017.
Ciências da Comunicação
Capítulo 23
283
CAPÍTULO 24
COMUNICAÇÃO MERCADOLÓGICA EM CLUBES
DE FUTEBOL DO BRASIL E DA AMÉRICA LATINA:
RELACIONAMENTO COM OS PÚBLICOS-ALVO
Karla Caldas Ehrenberg
Centro Universitário Adventista de São Paulo
(UNASP)
Engenheiro Coelho e Hortolândia – SP
Ary José Rocco Junior
Escola de Educação Física e Esporte da
Universidade de São Paulo (EEFE-USP)
São Paulo – SP
Carlos Henrique de Souza Padeiro
FMU e Universidade Anhembi Morumbi
São Paulo – SP
RESUMO: A partir da abrangência da
comunicação organizacional realizada no
ambiente digital conectado, este artigo analisa os
sites oficiais de oito clubes brasileiros de futebol
e oito clubes de outros países latino-americanos
(selecionados com base nos valores de suas
marcas), para detectar quais aspectos do viés
da comunicação organizacional mercadológica
são trabalhados nessas plataformas. Foi
desenvolvido um protocolo de observação
para 17 itens, e a avaliação dos portais dos
times ocorreu durante o mês de maio de 2018.
Constataram-se lacunas que precisam ser
preenchidas para aperfeiçoar a comunicação
mercadológica dessas instituições, cujo objetivo
primordial é se relacionar com a imprensa,
noticiar o dia a dia do time profissional de
futebol, divulgar as marcas de seus parceiros e
Ciências da Comunicação
atrair sócios-torcedores.
PALAVRAS-CHAVE:
Comunicação
organizacional, gestão de marcas, clubes
esportivos, futebol, internet
ABSTRACT: Based on the scope of the
organizational communication carried out in
the connected digital environment, this article
analyzes the official websites of eight Brazilian
soccer clubs and eight clubs from other Latin
American countries (selected based on the
values of their brands), to detect which aspects
of the marketing organizational communication
are worked on these platforms. An observation
protocol was developed for 17 items, and the
evaluation of the portals of the teams took place
during the month of May 2018. There were gaps
that need to be filled in order to improve the
marketing communication of these institutions,
whose primary objective is to relate to press,
report the day to day professional football team,
publicize the brands of its partners and attract
fan-members.
KEYWORDS: Organizational communication,
brand management, sports clubs, soccer,
internet
1 | INTRODUÇÃO
A
comunicação
desenvolvida
em
plataformas digitais expande sua penetração
Capítulo 24
284
social de maneira contínua, corroborando decisivamente para a integração dos
ambientes on e off-line nos processos relacionais. É cada vez menos adequado falar
sobre a separação desses ambientes, como se existissem dois mundos diferentes em
que as práticas são autônomas, pois esses dois universos coexistem e se influenciam
mutuamente em uma dinâmica cíclica e constante.
No cenário das comunicações organizacionais, é notório o interesse pelo uso
de plataformas de redes sociais digitais que possibilitam uma aproximação entre
instituições e públicos, especialmente os consumidores e a comunidade de forma geral.
Por proporcionarem uma comunicação rápida, interativa e com ampla divulgação,
redes como Facebook, Twitter e Instagram ganham notoriedade no planejamento de
comunicação integrada organizacional.
Mesmo diante dessa explosão de interesse pelas redes sociais digitais, é
imprescindível o entendimento de que elas não formam, de maneira exclusiva, o
universo da comunicação organizacional digital. Portais, sites, blogs, newsletters,
e-mail marketing e outros formatos são fundamentais para que a comunicação das
organizações se estabeleça efetiva e eficazmente. Afinal, cada um desses meios possui
suas características e suas utilidades específicas, contribuindo para a consolidação de
uma relação ampla, integrada e assertiva com diferentes públicos de interesse.
A partir desse olhar abrangente sobre a comunicação organizacional realizada
no ambiente digital conectado, este artigo determina como recorte a investigação de
portais de clubes brasileiros e de outros países da América Latina para detectar quais
aspectos do viés da comunicação organizacional mercadológica são trabalhados
nessas plataformas. Reconhecendo os portais e sites como uma espécie de plataforma
mais institucionalizada, onde as informações e os discursos oficiais se encontram
publicados de forma sistematizada, o interesse dos pesquisadores encontra-se no
sentido de identificar, por meio de um protocolo previamente desenvolvido, quais
conteúdos de interesse mercadológico são trabalhados nessas plataformas.
Os autores do artigo compreendem a importância das redes sociais digitais,
porém entendem que os portais e sites não devem ser negligenciados tanto nos
aspectos mercadológicos quanto nas investigações acadêmicas, já que suas estruturas
possibilitam um tipo de comunicação organizacional estruturada e necessária para a
solidificação da identidade e imagem organizacionais.
Os dados foram coletados durante o mês de maio de 2018. Para compor a
amostra da pesquisa, ficou definido que seriam estudados clubes com visibilidade no
futebol, sendo oito clubes brasileiros e oito clubes de outros países latino-americanos.
A definição teve como base o ranking de valor de marca da BDO 2017 e da Forbes
2017, ficando a amostra composta da seguinte forma:
Ciências da Comunicação
•
Clubes brasileiros: Flamengo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Grêmio,
Internacional, Atlético Mineiro e Cruzeiro;
•
Clubes latino-americanos (sem o Brasil): Chivas Guadalajara, Monterrey,
América-MEX, River Plate, Boca Juniors, Tijuana, Santos Laguna e Atlético
Capítulo 24
285
Nacional (COL).
2 | COMUNICAÇÃO E ESPORTE NA CONTEMPORANEIDADE
A comunicação dentro do ambiente organizacional se consolidou e se expandiu
no país desde a segunda metade do século passado. Os profissionais que atuam
nesse segmento desenvolveram ao longo do tempo uma visão integrada das
empresas, adquirindo noções de gestão empresarial, buscando o conhecimento mais
profundo sobre seus públicos de interesse e intensificando o uso de variados meios de
comunicação para transmitir suas mensagens.
Com um foco inicial destinado à divulgação de produtos e serviços, a comunicação
organizacional foi ampliando o seu entendimento sobre todo o universo em que está
inserida, e a gestão de marcas passou a ocupar um local bastante importante nos
planejamentos comunicacionais. Não basta mais a divulgação de informações sobre os
diferenciais e benefícios dos produtos. Em uma espécie de atuação funcional, tornouse necessário o trabalho no sentido de posicionar as marcas como elementos sociais
que despertam desejos e que oferecem atributos e status àqueles que as consomem.
Sobre o papel das marcas no contexto atual, Semprini (2010, p.74) considera
que “seu papel não é só aquele de lubrificar o espaço social, mas de constituí-lo e
permitir sua existência”. Na discussão inicial de seu livro, o autor avalia que esse
posicionamento social das marcas é influenciado por três grandes aspectos: a
transformação das mídias em atores do espaço social (e não mais apenas como
mediadores desse espaço), a mudança da cena social provocada por essa atuação
dos meios de comunicação, que passam a definir quem, e por quanto tempo, terá
acesso à cena social, e o desenvolvimento das novas tecnologias, especialmente a
internet (SEMPRINI, 2010, p. 74-76).
O autor avalia as marcas sob um aspecto amplo, incorporando questões
econômicas, políticas, culturais e comunicacionais, considerando esses aspectos
capazes de influenciar a sociedade em uma escala que ultrapassa algumas visões de
gestão de marca que limitam-se aos perímetros que rodeiam as corporações.
Ainda sobre esse tema e corroborando com o pensamento de Semprini, Bueno
(2018) destaca que a construção da imagem da marca é um fator de extrema
importância, salientando que esse processo não deve ser trabalhado apenas para
agradar ao mercado, mas que deve estar intimamente ligado aos aspectos fundamentais
da identidade das organizações. O autor comenta que é preciso compreender que a
imagem da marca corporativa e a imagem da marca de produtos e serviços devem ser
trabalhadas de acordo com suas particularidades, porque normalmente obedecem a
segmentações distintas, direcionando-se a públicos que podem não ser coincidentes
(BUENO, 2018).
Desta forma, as questões que envolvem a construção e gestão de marcas passa,
Ciências da Comunicação
Capítulo 24
286
necessariamente, por aspectos ligados à gestão organizacional, não podendo se
restringir ao universo da comunicação e do marketing. Essa ligação se faz necessária,
pois a construção da imagem de marcas é complexa e envolve questões tangíveis e
intangíveis que impactam sua penetração, consolidação e expansão no âmbito social.
Nesse ponto, é interessante retomar Semprini quando ele destaca que a imagem
da marca comunica sua identidade, transmitindo uma mensagem clara e concreta,
mesmo que envolta em um sistema de produção de sentido. Para o autor, torna-se
mais aplicável falar sobre identidade da marca em vez de imagem da marca, já que a
gestão de marcas na contemporaneidade deve atuar no sentido de manter a coerência
e a unidade de discursos (SEMPRINI, 2010).
O imperativo de uniformidade entre atuação e divulgação de marcas pode
ser exemplificado pelo tipo de comunicação atual, influenciada pelos aspectos
da comunicação digital. No ciberespaço, os processos de busca e escalabilidade
potencializam-se. Os conteúdos divulgados em portais, sites, blogs, vlogs e redes
sociais espalham-se em ampla velocidade e atingem milhares, ou milhões, de pessoas
rapidamente. Já a facilidade em encontrar uma informação torna muito mais difícil não
atuar de maneira transparente e coesa, pois com apenas alguns cliques a verdade
organizacional pode aparecer.
Nesse sentido, os profissionais da área necessitam ampliar, constantemente,
os seus entendimentos sobre as plataformas de comunicação digital. Elas devem
ser utilizadas de forma integrada, dentro de um planejamento de comunicação que
envolva objetivos, estratégias e táticas, e não devem se limitar em atingir um retorno
rápido e simplista. Os processos comunicacionais digitais são complexos e diferem-se
daqueles realizados nas mídias consideradas tradicionais. A participação dos públicos
na produção e distribuição de conteúdos é um aspecto inovador e culmina em formas
diferenciadas de consumo de informações.
A comunicação organizacional desenvolvida no ambiente digital deve priorizar a
divulgação de conteúdos que sejam de interesse das marcas e de seus públicos – por
isso, é necessário conhecer os públicos em profundidade. Necessita ser dialógica,
realizada em tempo real e buscar explicitar os aspectos tangíveis e intangíveis que
constituem as suas identidades.
Mesmo quando a comunicação organizacional não é realizada nas plataformas
de redes sociais, e se manifesta em sites ou mesmo em meios off-line, é preciso ter
especial atenção para as características mencionadas, pois, como já dito na introdução
deste artigo, cabe mais a separação de mundo entre real e virtual. Corroborando com
essa visão, Cipriani (2001) faz um alerta:
Uma empresa social não é aquela que simplesmente adota ferramentas de Web
2.0, mas aquela que coloca funcionários e líderes em contato com o mercado face a
face, com criatividade, autonomia e transparência. Isso vale tanto para estabelecer
diálogo proativo como também para monitorar e participar das discussões
passivamente. Tornando-se mais humana, a empresa passa a entender melhor a
comunidade de clientes que atende e naturalmente passa a explorar com mais
Ciências da Comunicação
Capítulo 24
287
eficiência esse ecossistema (CIPRIANI, 2010, p.22).
Essa humanização da comunicação caminha no mesmo sentido de expor a
complexidade que é o trabalho de gerenciamento e divulgação de marcas discutido
até então. Quando a marca em questão encontra-se no segmento esportivo, a
multiplicidade de fatores a serem analisados se amplia, pois esse segmento é bastante
singular no que se refere ao relacionamento das organizações e seus públicos.
O desenvolvimento correto e adequado do gerenciamento das comunicações
interna e externa, dentro do conceito de comunicação integrada desenvolvido
pela professora Margarida Kunsch (2003), traz excelentes reflexos nos resultados
econômico e financeiro das organizações empresariais.
A gestão estratégica da comunicação integrada em organizações empresariais
é fundamental para o processo de identificação das empresas com seus diversos
grupos de interesses. Processo de identificação que será melhor construído a partir
da estruturação, por parte das organizações empresariais, de uma adequada filosofia
de comunicação integrada que transmita, em um só sentido, as diversas facetas das
relações que a entidade mantém com seus mais variados stakeholders.
Do ponto de vista teórico, a comunicação integrada deve ser vista como um
processo relacionado diretamente à gestão estratégica das organizações (KUNSCH,
2003; 2006). Como disciplina, a comunicação integrada estuda a comunicação das
organizações, inclusive dentro do esporte, no âmbito da sociedade global. Trata-se de
um fenômeno inerente à natureza das organizações e aos agrupamentos de pessoas
que a integram, permitindo a construção de uma visão abrangente dos processos
comunicativos nas e das organizações.
Deve considerar todos os aspectos relacionados com a complexidade do fenômeno
comunicacional inerente à natureza das organizações, bem como os relacionamentos
interpessoais presentes na dimensão humana da comunicação, além das dimensões
estratégica e instrumental.
A comunicação integrada permite compreender a comunicação organizacional
muito além do ponto de vista meramente centrado na transmissão de informações e da
produção de mídias. Ademais, a “comunicação organizacional integrada” configura as
diferentes modalidades que permeiam o seu conceito e as suas práticas, envolvendo
concomitantemente a comunicação institucional, a mercadológica, a interna e a
administrativa (KUNSCH, 2003, p. 149).
No mesmo sentido do conceito de comunicação integrada proposto por
Kunsch (2003; 2006), Pedersen, Miloch e Laucella (2007), no livro Strategic Sport
Communication, apresentam um interessante modelo estratégico para a comunicação
no esporte que integra todas as vertentes da comunicação propostas pela pesquisadora
brasileira.
Ciências da Comunicação
Capítulo 24
288
Figura 1 – Modelo Estratégico de Comunicação no Esporte (The Strategic Sport Communication
Model).
Fonte: Adaptado pelo autor de Pedersen et al., 2007
O modelo proposto pelos pesquisadores norte-americanos (PEDERSEN et al,
2007) envolve a organização esportiva em seu relacionamento com o mercado, com
seus torcedores e fãs, com seus colaboradores e com diversos outros grupos de
interesses que orbitam em torno das organizações esportivas. Trata-se de um modelo
para a gestão estratégica da comunicação específica para as organizações esportivas.
Os autores dividem a comunicação nas entidades que trabalham com o esporte,
conforme Figura 1, em três componentes: Comunicação Pessoal e Organizacional no
Esporte, Esporte e Mídia de Massa e Serviços e Suporte à Comunicação Esportiva.
Importante observar, dentro do modelo proposto por Pedersen, Miloch e Laucella
(2007), que o Componente I (Comunicação Pessoal e Organizacional no Esporte)
apresenta relação estreita com os Componentes II (Mídia de Esporte de Massa) e III
(Comunicação de Serviços e Suporte ao Esporte).
A comunicação integrada encontra, no esporte contemporâneo, território profícuo
para desempenhar seu papel com plenitude. O caráter intangível do produto esportivo,
quando bem trabalhado pelos profissionais de comunicação, permite a construção
de forte apelo institucional para a consolidação de uma cultura sólida para entidades
esportivas. O marketing passa a funcionar como ferramenta de apoio de um processo
maior, o da comunicação integrada.
Ciências da Comunicação
Capítulo 24
289
No início de 2015, a European Club Association (ECA), entidade que congrega
mais de 210 agremiações do Velho Continente, publicou uma compilação das
melhores práticas de gestão dos clubes europeus, o ECA Club Management Guide.
No importante documento, os clubes de futebol da Europa assumiram, como premissa
básica, o modelo apresentado na Figura 2 como princípio para o desenvolvimento de
suas estratégias individuais.
Os clubes europeus, através de uma de suas entidades principais, a ECA, dividem
seu núcleo central (Club Core) de atividades em três grandes grupos: Esportivas
(Sport), Negócios e Mercado (Business) e Comunidade (Community). As estratégias
de atuação das agremiações europeias (Club Strategies) devem combinar: ações
voltadas para o êxito no campo esportivo, com a conquista de boas performances nas
competições que disputam; a obtenção de resultados econômicos e financeiros, com
excelente posicionamento de mercado e valorização de suas marcas; e, finalmente,
a construção de um relacionamento sólido com a comunidade e/ou com os diversos
agentes com os quais a organização de relaciona. A comunicação assume, assim,
importante papel na construção dessas pontes de relacionamento com a comunidade
e a sociedade como um todo.
Figura 2 – Modelo de Gestão dos Clubes Europeus.
Fonte: Adaptado pelo autor de ECA, 2015
A efetividade dos relacionamentos entre as entidades esportivas e seus públicos
é consequência de uma combinação entre uma estratégia de comunicação bem
planejada e os bons resultados obtidos nas disputas esportivas. Valores e crenças
de agremiações vencedoras são mais facilmente assimilados por seus públicos do
Ciências da Comunicação
Capítulo 24
290
que valores e crenças de entidades perdedoras. A gestão estratégica combinando
preparação esportiva, foco e concentração na competição e relacionamento com
os stakeholders facilita o processo em que os resultados econômicos, financeiros e
esportivos são mesclados positivamente, maximizando a atuação do gestor do esporte.
O esporte e suas organizações apresentam, assim, um vasto universo para o
estudo da comunicação organizacional e a construção e desenvolvimento de uma
cultura própria para cada entidade esportiva, de acordo com suas características e
com as diversas identidades dos seus stakeholders.
De forma bastante simplificada, a intenção deste projeto de pesquisa foi analisar a
sobreposição dos dois modelos de comunicação apresentados acima. Como o Modelo
Estratégico de Comunicação no Esporte, proposto por Pedersen, Miloch & Laucella
(2007), pode ser encontrado no desenho de Comunicação Organizacional Integrada
desenvolvido pela Profa. Margarida Kunsch (2003).
Mais do que isso, o propósito desta pesquisa foi o de avaliar como os principais
clubes esportivos do Brasil, em comparação com seus pares da América Latina, estão
posicionados, em seu estágio de desenvolvimento gerencial, em relação aos dois
modelos de comunicação apresentados acima.
3 | ANÁLISE DOS PORTAIS DOS CLUBES
A análise empírica deste artigo teve como foco o estudo de portais de oito clubes
brasileiros de futebol e oito clubes de futebol de outros países da América Latina.
Como descrito na introdução, a escolha dos clubes teve como base os rankings da
BDO e da Forbes de 2017.
No Brasil, o ranking BDO de 2017 aponta os seguintes clubes como os de marca
mais valiosas: Flamengo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Grêmio, Internacional,
Atlético Mineiro e Cruzeiro. Nos demais países da América Latina, o ranking Forbes
2017 indica os seguintes clubes: Chivas Guadalajara, Monterrey, América-MEX, River
Plate, Boca Juniors, Tijuana e Santos Laguna (são clubes de México e Argentina). O
Atlético Nacional, da Colômbia, foi selecionado por ser um clube-empresa e por ter se
destacado pelo trabalho de comunicação realizado após a trágica queda do avião que
levava a delegação da Chapecoense e jornalistas brasileiros a Medellín, em novembro
de 2016, quando 71 pessoas morreram.
Os dados foram coletados durante o mês de maio de 2018. Para este artigo,
serão analisados apenas os conteúdos relacionados à comunicação mercadológica,
mais direcionada ao relacionamento com torcedores, comunidade e imprensa. Outros
dados coletados a partir da observação dos portais servirão como base para outras
pesquisas.
A fim de estabelecer uma coleta de informações sistematizada, foi desenvolvido
um protocolo de observação. Para a obtenção dos dados relativos à comunicação
mercadológica, foram destacados 17 itens, a saber: Materiais Impressos de Divulgação
Ciências da Comunicação
Capítulo 24
291
- Públicos / Valores de Patrocínio / Programa de Sócio-Torcedor ou de benefícios /
Relacionamento com Associados / Atendimento a Cliente / Idiomas do portal / Política
de acesso ao portal / Veículos Eletrônicos - TV, Portal, Rádio, etc. / Redes Sociais participação / Aplicativos / Lojas e/ou espaços para comercialização de produtos on-line
/ Lojas e/ou espaços físicos para comercialização de produtos / Catálogo de Produtos
/ Franquias e outras ações de vendas de produtos / Patrocinadores / Fornecedores de
Material Esportivo / Atletas participam de ações mercadológicas. Os dados coletados
foram organizados e dispostos na seguinte tabela:
Item analisado
Materiais Impressos de
Divulgação
Clubes que possuem1
SPFC (revista e releases) e CRU
(revista)
Valores de Patrocínio
Flamengo e Internacional
Programa de Sócio-Torcedor ou
de benefícios
Relacionamento com
Associados
Todos os clubes possuem espaço para
sócio-torcedor
Todos possuem informações sobre
suas sedes, regulamentos etc
Todos possuem ouvidoria ou outro tipo
de atendimento
Atendimento a Cliente
Clubes que NÃO possuem
COR, PAL, ATL-MG, FLA, INT
e GRE
COR, PAL, SPFC, ATL-MG,
GRE e CRU
Idiomas do portal
Português, Inglês e Espanhol: SPFC; COR, PAL, FLA, INT, GRE
Português, Inglês, Espanhol e Chinês: e CRU só têm a opção em
Atlético-MG
português
Política de acesso ao portal
PAL E GRE possuem Política de
Privacidade; CRU possui código de
conduta para o uso de redes sociais
Veículos Eletrônicos - TV,
Portal, Rádio, etc
Todos os clubes possuem TV; COR,
PAL, GRE e INT possuem rádio
Redes Sociais
Todos os clubes têm redes sociais
Aplicativos
COR, PAL, SPFC, ATL, INT e GRE
Lojas para comercialização de
produtos on-line
Lojas físicas para
comercialização de produtos
Catálogo de Produtos
Todos os clubes possuem informações
sobre suas lojas físicas
Todos os clubes possuem diferentes
produtos em suas lojas online
Fornecedores de Material
Esportivo
Atletas participam de ações
mercadológicas
Em notícias, todos relatam a presença
de atletas em eventos
Patrocinadores
FLA e CRU (sem indicação no
site)
Todos os clubes possuem lojas online
COR, SPFC, ATL, FLA, PAL, GRE
e CRU possuem informações sobre
franquias e escolinhas de futebol
Todos os clubes divulgam os seus
patrocinadores nos sites
Todos os clubes divulgam no site as
marcas de seus fornecedores
Franquias e outras ações de
vendas de produtos
COR, SPFC, ATL, FLA e INT
Internacional
1. As abreviaturas na tabela com as informações dos clubes brasileiros significam: ATL - Atlético Mineiro; COR - Corinthians; CRU - Cruzeiro, FLA- Flamengo; GRE - Grêmio; INT - Internacional; PAL - Palmeiras; SPFC - São Paulo.
Ciências da Comunicação
Capítulo 24
292
Em relação aos clubes brasileiros, é possível afirmar que os portais possuem
bastante informação sobre suas ações mercadológicas, como programas de sócio-
torcedor, ações com atletas, patrocínios e venda de produtos. Também possuem
meios de divulgação de notícias como seus canais de TV (no Youtube), suas redes
sociais e o próprio botão de notícias do site - todos atualizados e com vasto volume de
conteúdo. Um acesso fácil para o atendimento ao cliente também está presente em
todos os portais dos clubes.
Um ponto questionável seria a pouca presença de políticas de acesso ao portal.
Apenas três clubes possuem políticas de privacidade, com detalhamento para o uso de
dados e informações dos internautas que fazem cadastros. Outra fragilidade aparente
é o número restrito de clubes que se preocupam em ter suas versões em mais idiomas
além do português. O São Paulo possui versões do portal em inglês e espanhol, e o
Atlético-MG, em inglês, espanhol e chinês. O Internacional tem um arquivo em seis
idiomas diferentes com informações gerais sobre o clube, o estádio e a cidade de
Porto Alegre. Os outros cinco clubes possuem apenas informações em português.
Item analisado
Clubes que possuem2
Clubes que NÃO possuem
Materiais Impressos de
Divulgação
BOC, TIJ, SAN, NAC
CHI, MON, AME e RIV
Valores de Patrocínio
Nenhum
Os clubes não divulgam valores
de patrocínio
Programa de Sócio-Torcedor ou Todos os clubes possuem espaço
de benefícios
para sócio-torcedor
Relacionamento com
Associados
MON, AME, RIV, BOC, TIJ, SAN,
NAC
Atendimento a Cliente
Todos possuem ouvidoria ou outro
tipo de atendimento
Idiomas do portal
Espanhol e Inglês: AME, RIV, TIJ
e SAN; Espanhol, Inglês, Italiano e
Genôves: BOC
CHI, MON e NAC só têm a
opção em espanhol
Política de acesso ao portal
CHI, MON, AME, TIJ, SAN e NAC
RIV e BOC não têm
Veículos Eletrônicos - TV,
Portal, Rádio, etc
Todos possuem TV ou canal de
Youtube. NAC tem link para rádio
Redes Sociais
Todos os sites apresentam os ícones
das redes sociais
Chivas, River Plate, Boca Juniors,
Monterrey e Tijuana não
Atlético Nacional
possuem
Aplicativos
CHI
Lojas para comercialização de
produtos on-line
CHI, AME, RIV, BOC, TIJ, SAN e
NAC
MON (existe o link, porém está
fora do ar)
Lojas físicas para
comercialização de produtos
MON, BOC, TIJ, SAN e NAC
possuem dados sobre lojas físicas
CHI, AME e RIV não têm dados
sobre lojas físicas
2. As abreviaturas na tabela com as informações dos clubes latino-americanos significam: AME - América do México; BOC - Boca Juniors; CHI - Chivas Guadalajara; MON - Monterrey; NAC - Atlético Nacional; RIV - River Plate;
SAN - Santos Laguna; TIJ - Tijuana.
Ciências da Comunicação
Capítulo 24
293
Patrocinadores
CHI, AME, RIV, BOC, TIJ, SAN e
NAC possuem diferentes produtos
Monterrey
em suas lojas online
Todos os clubes têm algum tipo de
franquia (escola de futebol, tours nos
estádios, agências de turismo)
Todos os clubes divulgam os seus
patrocinadores nos sites
Fornecedores de Material
Esportivo
Todos os clubes divulgam no site as
marcas de seus fornecedores
Atletas participam de ações
mercadológicas
Na parte de notícias, MON, RIV,
BOC, TIJ e SAN relatam a presença
de atletas em eventos
Catálogo de Produtos
Franquias e outras ações de
vendas de produtos
CHI, AME e NAC não possuem
notícias a respeito
Na análise dos clubes de outros países da América Latina, nota-se que os
argentinos Boca Juniors e River Plate oferecem muitas informações ao público. Seus
portais são melhores desenvolvidos, em relação aos maiores clubes mexicanos e ao
colombiano Atlético Nacional. Em comparação com os brasileiros, há uma preocupação
maior em atender ao público estrangeiro. Cinco dos oito clubes analisados (América-
MEX, River Plate, Tijuana, Santos Laguna e Boca Juniors) têm uma versão de seus
portais em inglês. O argentino Boca Juniors disponibiliza a opção para a leitura em
italiano e em genovês (provavelmente por conta da origem da instituição, fundada por
imigrantes italianos e seus descendentes).
Para as equipes mexicanas, é importante a versão em inglês, pela proximidade
com o mercado dos Estados Unidos. Chama a atenção o fato de o Chivas Guadalajara,
clube mexicano mais rico (segundo o ranking de 2017 da Forbes) e que já investiu em
uma franquia nos Estados Unidos (o Chivas USA), não oferecer um portal em inglês.
Todos os clubes têm estratégias para sócios-torcedores, uma forma de fidelizar
os torcedores e gerar renda, e investem na comunicação para atrair esse público. Há
uma lacuna, porém, no que diz respeito a ações em parceria com os patrocinadores
dos clubes (América-MEX, Chivas e Nacional-COL não noticiam a presença de atletas
em eventos mercadológicos).
4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
As características do produto esportivo fizeram crescer a importância da
comunicação integrada. Com o apoio da mídia e um processo de gestão bem
estruturado, que implante, desenvolva, comunique e deixe transparecer os valores
da agremiação para todos os stakeholders de uma entidade esportiva, certamente
haverá benefícios econômicos, financeiros e esportivos para o clube, a federação ou
a confederação que a implantar.
O desenvolvimento de uma identidade organizacional, por exemplo, integra os
agentes internos da organização esportiva com seu posicionamento de mercado. A
forma de agir, as atitudes dos atletas, seu comportamento dentro e fora das praças
Ciências da Comunicação
Capítulo 24
294
esportivas, a forma de praticar o esporte, as postagens de clubes e atletas nas redes
sociais, todos esses elementos comunicacionais devem estar integrados e colaboram
tanto para a conquista de títulos, a performance esportiva, como para o correto e
desejado posicionamento no mercado de consumo de bens e serviços esportivos,
sua rentabilidade econômica e financeira. Todos esses elementos absolutamente
integrados e equilibrados.
Este artigo é parte de uma pesquisa ampla, que busca analisar e comparar a
comunicação integrada dos mais valiosos clubes de futebol do Brasil, da América
Latina e dos Estados Unidos. Neste recorte do levantamento, constata-se que os oito
mais ricos clubes brasileiros e os oito mais ricos de outros países da América Latina
investem na comunicação mercadológica com o objetivo de: se relacionar com a
imprensa e noticiar o dia a dia do time profissional de futebol (o que atrai a atenção de
seus torcedores); divulgar as marcas de seus parceiros e patrocinadores; atrair sóciostorcedores. Porém, como discutido anteriormente, lacunas precisam ser preenchidas
para aperfeiçoar essa comunicação mercadológica.
A metodologia utilizada para o presente estudo pode ser válida para análises
futuras do tema em confederações, federações e outras entidades que apresentem o
esporte como seu negócio principal. A metodologia permite, também, a comparação
da comunicação integrada dos clubes brasileiros com outros mercados do futebol
mundial, e qualquer outro país que apresente agremiações com portais oficiais na
internet.
O presente artigo apresenta como limitação principal o fato de ter trabalhado
apenas com a análise da comunicação realizada pelas entidades esportivas no
universo digital. Sabemos que, em muitas oportunidades, os portais oficiais das
entidades esportivas se apresentam desatualizados, não refletindo o real estágio da
comunicação das organizações.
REFERÊNCIAS
BDO Publicações. 10º Valor das Marcas dos Clubes Brasileiros - Finanças dos Clubes. 2017.
BUENO, Wilson da Costa. Comunicação e gestão de marcas: revisando conceitos e práticas. In.
BUENO, Wilson da Costa (org). Comunicação empresarial e gestão de marcas. Barueri: Manole,
2018.
CIPRIANI, Fabio. Estratégia em mídias sociais: como romper o paradoxo das redes sociais e tornar
a concorrência irrelevante. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
ECA (2015). ECA Club Management Guide, Nyon: ECA.
KUNSCH, M. M. K. (2003). Planejamento de relações públicas na comunicação integrada. 4a. ed.
– revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Summus.
________________(2006). Comunicação organizacional: conceitos e dimensões dos estudos e das
práticas In: MARCHIORI, M. Faces da cultura e da comunicação organizacional. São Caetano do Sul,
Ciências da Comunicação
Capítulo 24
295
SP: Difusão Editora, p. 167-190.
PEDERSEN, P. M.; MILOCH, K. S.; LAUCELLA, P. C. (2007). Strategic Sport Communication.
Champaign: Human Kinetics.
PERES, Ivan. Los 50 equipos de futbol más valiosos de América. In Forbes. México: 2017. Disponível
em: https://www.forbes.com.mx/los-50-equipos-de-futbol-mas-valiosos-de-america/.
ROCCO JÚNIOR, A. J.; CARLASSARA, E. O. C.; PAROLINI, P. L. L. Comunicação comunitária e
responsabilidade social em clubes de futebol do Brasil e da Europa: muito além do “sócio-torcedor”.
In Organicom - Revista Brasileira de Comunicação Organizacional e Relações Públicas. São Paulo:
ECA-USP, Ano 13, Número 24, 1º semestre de 2016.
SEMPRINI, Andrea. A marca pós-moderna: poder e fragilidade da marca na sociedade
contemporânea. Tradução de Elisabeth Leone. 2.ed. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010.
Ciências da Comunicação
Capítulo 24
296
CAPÍTULO 25
OS PÚBLICOS PROJETADOS: CONSTRUÇÕES
DISCURSIVAS NA PROPOSIÇÃO DE EXPERIÊNCIAS
PELAS ORGANIZAÇÕES
Márcio Simeone Henriques
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte - Minas Gerais
RESUMO: Estudo exploratório realizado com o
objetivo de verificar empiricamente no discurso
corporativo elementos que compõem a formação
de públicos na projeção de experiências pelas
organizações. Como parte de uma investigação
maior que busca compreender as dinâmicas
de formação e de movimentação de públicos,
buscou avaliar construções textuais sugestivas
de dez empresas sob a perspectiva das visões
de mundo, de negócios e de relacionamento que
mobilizam quadros de sentido potencialmente
organizadores de uma experiência singular dos
públicos com cada organização.
PALAVRAS-CHAVE:
Comunicação
organizacional – Relações Públicas - Públicos
- Experiência.
of experiences by the organizations. As part
of a larger research that seeks to understand
the dynamics of formation and movement of
publics, it sought to evaluate textual suggestive
constructions of ten companies from the
perspective of worldviews, business values and
visions of relationships that mobilize frames of
meaning and potentially organize an experience
with each organization for its publics.
KEYWORDS: Organizational communication –
Public Relations – Publics - Experience
1 | INTRODUÇÃO
É visão corrente que as estratégias
de comunicação das organizações “criam”
públicos, mas pouco se busca compreender
acerca do processo pelo qual são “projetados”.
Estudam-se, em geral, os efeitos das ações
organizacionais como sinais de influência,
sem observar a construção dessa influência
como um processo complexo de interações.
PROJECTED PUBLICS: DISCURSIVE
CONSTRUCTIONS IN THE PROPOSITION
OF EXPERIENCES BY ORGANIZATIONS
ABSTRACT: This is an exploratory study carried
out with the purpose of verifying empirically in
the corporate discourse elements that make
up the formation of publics in the projection
Ciências da Comunicação
Nosso intuito com este trabalho é enfocar
os processos pelos quais as organizações
são capazes de formar públicos a partir da
promoção de seus interesses e da projeção
de experiências sobre eles. Enquadra-se em
nossas recentes preocupações de pesquisa
que buscam compreender as lógicas relacionais
Capítulo 25
297
presentes na formação e na movimentação de públicos e aspectos das dinâmicas
político-institucionais que as organizações estabelecem com a sociedade, por um viés
relacional e crítico.
Embora os públicos estejam no vocabulário organizacional em destacada posição,
geralmente associados a interesses e ao campo de relacionamentos que as organizações
precisam manter com a sociedade, é comum que sejam instrumentalizados, ou seja,
objetificados numa relação que os percebe como audiências ou como agregados
determinados apenas pelo direcionamento das mensagens (como alvo a ser atingido).
Sob o ponto de vista das organizações, este é um ato político fundamental. Fixar
os públicos em categorias faz parte de um jogo estratégico que visa reduzir suas
possibilidades de movimentação e, consequentemente, de sua influência social. Por
outro lado, essa instrumentalização contrasta com uma visão mais ampla de estratégia,
que está presente nas decisões organizacionais, mesmo que de forma difusa, mas
nem sempre visível. Afinal, algum nível de segredo faz parte das estratégias que se
formam pelos interesses em disputa. Essa fixação dos públicos serve, portanto, como
uma tentativa de criar significados mais estáveis e duradouros, de evitar ao menos
que os sentidos discursivamente formados acerca da organização sejam desafiados
a todo instante. Serve para buscar impor certas posições e narrativas como razoáveis
e inquestionáveis. Isso está na raiz dos embates pela formação do interesse público.
As organizações, ao se empenharem estrategicamente na promoção do interesse
público, criam projeções desses mesmos públicos, propondo-lhes algum tipo de
experiência. Discute-se neste trabalho o que constitui esses “públicos em projeto” e
como se constroem as bases discursivas que permitem criar um quadro de sentido
(GOFFMAN, 1986) para propor essas experiências (que dão forma aos públicos). A
ideia é de que essa projeção requer um esforço de elaboração discursiva para dar um
sentido definido à experiência proposta.
O estudo empreendido, aqui parcialmente relatado, envolveu uma exploração
empírica que consistiu em captar elementos do discurso corporativo publicamente
disponível nos sites de organizações na internet, nas declarações de missão, visão
e valores e em outros textos institucionais. Contemplou 36 grandes corporações no
Brasil, com abrangência e atuação nacional/transnacional, com capital majoritariamente
privado, focalizando, em recorte posterior, 10 dessas organizações. O conteúdo foi
analisado com o intuito de produzir uma classificação primária em categorias que
expressem modalidades sugeridas de experiência em termos de crenças, estilos,
comportamentos etc.
2 | OS PÚBLICOS PROJETADOS
Tomamos os públicos como agregações formadas num processo de
problematização de ações que afetam os sujeitos para além das consequências
Ciências da Comunicação
Capítulo 25
298
imediatas aos que se envolvem direta e particularmente nas diversas transações
(DEWEY, 2012) e como uma modalidade de experiência (QUERÉ, 2003). São uma
categoria que se refere fundamentalmente à ação, numa dinâmica complexa e
aberta, que se dá no embate e na controvérsia permanentes entre público e privado.
Constituem uma estrutura que é sempre menos ou mais definida, difusa, organizada
ou estável, a depender da efetivação das interações e dos vínculos entre os seus
membros (HENRIQUES, 2017).
Dessa visão dos públicos decorre basicamente o raciocínio de que sua ação está
ligada ao contínuo deslocamento de questões de domínios de interesses particulares
para um âmbito coletivo de ampla visibilidade (no espaço público) e que, neste
movimento, os públicos, divididos em suas posições, entram tanto em conflito como
em colaboração entre si – o que quer dizer que as ações dos públicos provocam
influências entre si. Ao definir os públicos como uma modalidade de experiência,
Quéré (2003) chama a atenção para a sua existência em discurso/ação. Acreditamos
que essa lógica explicativa nos conduz a uma percepção dos públicos como formas
de ação que se constituem como experiência em público (ou seja, em condições de
publicidade), compondo quadros de sentido que delineiam essa experiência.
A ideia de que públicos buscam influenciar outros públicos gera a ideia de um
campo de relações e vínculos complexos e intercambiáveis que contraria a visão
desses entes como isoláveis e como destinatários finais de mensagens. Compõem,
na verdade, uma vasta rede relacional. Porém, não é sem razão que as organizações
se preocupam com a potência de alguns grupos e atores sociais que, em sua ação,
são capazes de interferir nas questões controversas, mobilizar e gerar alianças com
outros públicos. A base da chamada Teoria dos Stakeholders está no reconhecimento
do poder de influência (positiva ou negativa) de públicos na tomada de decisões
organizacionais (FREEMAN, 1984).
Uma visão de públicos que não seja estritamente focada na recepção permite-
nos reconhecê-los como agentes, numa relação que é, antes de tudo, reflexiva. Temos
sustentado que os públicos são tanto constituídos por si próprios - por interesses
comuns reconhecíveis que seus membros manifestam em relação às controvérsias
(que envolvem as organizações), quanto por interesses (das organizações ou dos
públicos) que são projetados sobre pessoas e grupos (HENRIQUES, 2018). Esses
dois movimentos são, na verdade, indissociáveis, na lógica de formação. Fazem parte
do mesmo domínio de ações, que incidem umas sobre as outras. Se a problematização
comum de aspectos da realidade mobiliza as pessoas como públicos, por outro as
instituições, as organizações de qualquer natureza e os próprios públicos (menos ou
mais definidos) promovem seus interesses para públicos diversos. Ao fazerem isso,
criam formas de endereçamento de seus discursos e obtêm ressonância (positiva ou
não) pela situação desses agrupamentos em torno das posições que são promovidas.
Para elas, os públicos são também um projeto de ação. Esse projeto deve manifestarse, de fato, nas atitudes e ações dos públicos. Formar públicos é, nesta perspectiva,
Ciências da Comunicação
Capítulo 25
299
sugerir uma localização (posição), alinhada aos interesses organizacionais e envolve
um paradoxo: ao mesmo tempo essas organizações incitam os públicos que podem
fortalecer e ampliar suas posições a mover-se publicamente, a exercer sua influência
sobre outros públicos, também sugerem, de outro lado, certa acomodação desses
públicos em torno daquela posição desejável. No sentido inverso, buscam conter
a movimentação de outros públicos cujas posições não são desejáveis. A visão
estratégica, portanto, se aplica quando a visão de movimentação desses atores e de
suas interinfluências em longo prazo se materializa num conjunto de relações e de
vínculos diferenciados que a organização tenta construir para obter para si posições
de maior vantagem nesses embates.
A constituição de públicos pelas organizações (como projetos) depende, então,
de uma visão projetada no tempo e no espaço: (a) das possíveis movimentações e
tomadas de posição; (b) das performances dos públicos na cena pública e (c) de uma
evolução do contexto das ações. Essa dramaturgia envolve, portanto, a experiência de
cada um desses atores em público e a construção de quadros de sentido que dão a ver
esse conjunto de ações (e de relações) em curso (GOFFMAN, 1986). Uma das formas
de construção da influência das organizações sobre este vasto campo relacional está
em sugerir aos públicos como se movimentar, pontos onde se posicionar e formas de
enquadrar essa movimentação – condizentes e alinhadas com a sua perspectiva. Com
isso queremos dizer, principalmente: que este conjunto de ações constitui um campo
de experiência de relacionamento público desses atores, que há uma disputa entre
eles pela forma como irão dar sentido e enquadrar essas experiências e colocá-las
em perspectiva e que uns buscam influenciar tanto o tipo de experiência dos outros
quanto as formas de enquadrá-las.
Sobre este último aspecto, em particular, cabe especular sobre como as
organizações buscam fazer isso. Uma das maneiras, à qual já nos referimos, é a
promoção dos seus interesses frente aos públicos. Ao falar de promoção, queremos
aqui enfatizar o sentido já arraigado nas próprias práticas publicitárias do verbo
promover: colocar em evidência, impulsionar, fomentar. Portanto, é mais do que
apresentar publicamente seus interesses, mas impelir, instigar, incitar, necessitando,
para isso, de uma construção discursiva coerente e potente. Este movimento permite
construir um sentido geral para esses interesses, postulados como sendo não apenas
da organização, mas de toda uma coletividade. Contudo, essa busca por influência
não se esgota na promoção do interesse: também se dá e se completa por um
processo de projeção da experiência, ou seja, pela proposição aos públicos de certas
condutas e ações que possam projetar-se no tempo e no espaço, como anteriormente
nos referimos (HENRIQUES, 2018). É um processo de sugestão - não só de ações
e comportamentos desejáveis, como também de modos de interpretar e enquadrar
significativamente essa experiência.
É bastante sintomático que a palavra “experiência” em si mesma tenha sido
convocada a frequentar cada vez mais o discurso promocional das organizações e que
Ciências da Comunicação
Capítulo 25
300
hoje essa noção figure como uma das peças centrais na chamada “gestão de marca”
(branding). Isso denota a dimensão estética dessa projeção/sugestão e a expansão
daquilo que é necessário para gerar e manter o vínculo dos atores em relação: o
processo empático, um envolvimento emocional que permita a identificação com a
experiência do(s) outro(s). Assim, as organizações empenham-se continuamente
em idealizar seus públicos, em dirigir a eles algo que possa interessá-los (no sentido
de envolvê-los), em sugerir comportamentos, ações e modos de interpretá-las em
quadros de sentido que possam consumar uma experiência.
3 | AS DIMENSÕES DA PROJEÇÃO DA EXPERIÊNCIA PELAS ORGANIZAÇÕES
A projeção da experiência pelas organizações sobre os seus públicos materializa-
se de várias formas em suas ações. Não somente nas suas estratégias e produtos de
comunicação, mas no conjunto da gestão e também na práxis cotidiana. As práticas
específicas de comunicação são, no entanto, elementos estruturantes, na medida em
que selecionam, organizam, difundem e processam os elementos dessa projeção,
dão suporte, relevo e potência simbólica a ela. As campanhas são, provavelmente, o
exemplo máximo disso, ao realizarem um esforço concentrado e maciço de sugestão,
geralmente manejando vários instrumentos ao mesmo tempo. É tanto mais evidente
quanto mais ligada à experiência direta e concreta que se dá pelo contato dos públicos
com produtos ou serviços. Porém, mesmo as organizações que podem prover este
tipo de experiência direta necessitam também fomentar outras modalidades de
experiência, diretas ou indiretas, dos públicos com suas marcas, no nível institucional.
Uma experiência de consumo não se completa por si mesma, sem a remissão a
sentidos mais amplos.
Nosso intuito neste estudo foi o de verificar evidências empíricas da composição
desse quadro de sentido mais amplo. Estamos cientes de que essa dimensão encerra um
composto simbólico vasto e complexo que constitui o ethos da organização, compondo
sua marca, em noção mais abrangente, cuja compreensão implica investigar um terreno
mais vasto para compreender os diversos meandros da projeção da experiência e
seus nexos com a formação e movimentação de públicos. Isso inclui uma percepção
mais integrada entre elementos textuais e não textuais e uma leitura de elementos
estéticos. Nossa escolha recaiu sobre o discurso de apresentação das organizações
expresso em suas declarações de missão, visão e valores e em documentos de
apresentação publicamente disponíveis (concentrando-nos aqui, especificamente, em
relatórios anuais). Esse conjunto textual, em geral, é menos evidente e eloquente
que as logomarcas, os slogans, os jingles, os apelos de campanha, os eventos. Por
vezes é desprestigiado por assumir certa fórmula padronizada, por parecer simplório
ou ingênuo como visão de mundo ou concepção de negócio ou simplesmente por
parecer figurar ali como uma obrigação, sem nenhum cuidado em sua formulação e
Ciências da Comunicação
Capítulo 25
301
sem conexão com a prática de negócios e a percepção social acerca da organização.
Para o raciocínio aqui desenvolvido, no entanto, há algo que os torna interessantes,
pois fornecem um esquema para o enquadramento e chaves de leitura das experiências
projetadas (e delas não se dissociam).
Embora genérico, tal discurso parece cumprir outra função, que é a de amalgamar
um conjunto de experiências de caráter diverso, formando uma unidade experiencial.
Segundo Dewey, “temos uma experiência singular quando o material vivenciado faz
o percurso até a sua consecução” (2010, p. 109). Para ele as experiências ocorrem
continuamente, mas nem sempre se compõem numa experiência singular, “integrada
e demarcada no fluxo geral da experiência proveniente de outras experiências” (Idem).
Assim, uma leitura desses elementos textuais por si mesmos é fraca, mas na formação
de um conjunto coerente que ajuda a dar forma e, mais ainda, pela sua reiteração e
acúmulo no contexto maior das diversas organizações, dão suporte a uma visão de
sociedade e de vida em comum e sugerem enfeixar as experiências projetadas em
experiências singulares, portanto, mais substantivas. O estudo empírico teve o objetivo
de colher algumas evidências presentes no discurso organizacional mais amplo e
genérico que ressaltem essa pretensão de sugerir enquadramentos e de projetar uma
singularidade experiencial sobre os públicos.
4 | A EXPLORAÇÃO DAS FORMAS DE SUGESTÃO
A exploração abarcou inicialmente 36 corporações brasileiras de grande porte,
com abrangência e atuação nacional/transnacional, com capital majoritariamente
privado, dos setores de varejo, de serviços, de bens de produção, de bens de
consumo e de finanças. Deste conjunto foi selecionado um corpus específico de 10
organizações, sendo pelo menos uma de cada setor, tendo como critério o volume de
material textual obtido1. Não nos preocupamos em obter uma amostra representativa
nem nos empenhamos em tecer comparações, mas apenas em colher subsídios para
melhor conhecimento das ideias que comumente guiam esses discursos. Por meio de
análise do conteúdo textual, foram selecionados, compilados e organizados trechos
que evidenciam formas sugestivas.
Traçamos inicialmente três categorias básicas de composição de enquadramentos:
(a) visão de mundo; (b) visão de negócios e (c) visão de relacionamento. Essas
categorias, entretanto, não são estanques, porque o que se mostra é que são
indissociáveis, na formação de uma unidade discursiva. O que queremos ressaltar
com isso é que todos os textos explorados contêm uma combinação de elementos
dessas três visões, ou seja, isso faz parte do padrão discursivo reconhecível. Essas
três categorias permitem visualizar como as sugestões variam em amplitude. Mesmo
na generalidade desse conjunto textual, as idealizações são dispostas de modo a
1. Unilever, Livraria Saraiva, General Motors do Brasil, Vivo, Grupo Pão de Açúcar, Itaú-Unibanco, Arcor, Porto
Seguro, Merck e Arcelor Mittal.
Ciências da Comunicação
Capítulo 25
302
contemplar uma visão abrangente de mundo e de sociedade, outra mais focalizada na
forma de operar o negócio da organização (no plano do mercado) e ainda outra que
explicita as formas de relacionamento desejáveis. Apresentamos em seguida nossas
observações sobre cada categoria, extraindo alguns elementos ilustrativos do corpus.
(a) Visão de Mundo - É comum observarmos a formulação de uma visão de
mundo mais geral: “estamos comprometidos com o crescimento de uma sociedade
justa, humana e saudável” (Grupo Pão de Açúcar)2, porém observa-se que em muitos
textos essa composição é feita de modo a fazer alusão à natureza do negócio da
organização: “educação, cultura e lazer devem estar disponíveis a todos porque são
essenciais para a construção de um mundo melhor” (Livraria Saraiva)3. Porém é neste
domínio que se manifesta, de modo menos ou mais explícito, uma visão civilizatória
que as organizações assumem. É notável uma tendência a sugerir o papel social e
civilizador das organizações perante os desafios das mudanças globais, a geração
de soluções (criativas) para melhorar o mundo e a necessidade de contribuir para um
futuro sustentável:
As empresas que não apresentam um impacto positivo na resposta a desafios
como a fome, alterações climáticas, igualdade de gênero ou acesso à educação,
em breve não terão mais razão para existir. (Unilever)4
Participamos e contribuímos para a melhoria das comunidades onde trabalhamos
ao redor do mundo. (General Motors)5
Somos unidos pela paixão por novas ideias. Na Merck, queremos incentivar
aqueles que buscam fazer uma diferença positiva por meio de ideias criativas e
engenhosas para transformar o mundo em que vivemos. (Merck)6
O propósito da nossa marca é promover mudanças positivas na vida das pessoas
e da sociedade. Nossa responsabilidade com o desenvolvimento do país está́
na nossa essência. Além da transformação inerente à nossa atividade principal,
também investimos em projetos ligados a educação, cultura, esportes e mobilidade
urbana. (Itaú Unibanco)7
Nós não esperamos que os outros nos mostrem o caminho. Nós encontramos o
caminho, e ao fazermos isso, demonstramos aos stakeholders o valor que a nossa
empresa pode trazer para a sociedade. (ArcelorMittal)8
Assim, as organizações buscam unificar as experiências propostas aos públicos
num nível em que se conecta a um modelo de sociedade que as justifica e magnifica seu
2. Disponível em: <http://www.grupopaodeacucar.com.br/o-grupo/missao--visao-e-pilares/>. Acesso
em: 12 ago 2017.
3. Disponível em: <http://images.livrariasaraiva.com.br/quem-somos/nossa-missao.htm>. Acesso em:
15 jul 2017.
4. Relatório de Sustentabilidade 2016. Disponível em: <https://www.unilever.com.br/Images/relatorio-de-progresso-2016-portugues_tcm1284-510366_pt.pdf>. Acesso em: 18 ago 2017.
5. Disponível em: <http://www.chevrolet.com.br/sobre-a-gm/chevrolet-agora-para-sempre-pilares-marca.html>. Acesso em 18 ago 2017.
6. Disponível em: <http://www.merck.com.br/pt/company/merck_sa/missao/missao.html>. Acesso em:
15 jul 2017.
7. Disponível em: <https://www.itau.com.br/sobre/marca/>. Acesso em: 04 jul 2017.
8. Disponível em: <http://brasil.arcelormittal.com/quem-somos/missao-visao-valores>. Acesso em: 04 jul 2017.
Ciências da Comunicação
Capítulo 25
303
papel como atores sociais. Mas há também exemplos que trazem uma proposta mais
explícita da experiência de “estar no mundo” segundo a ótica e o estilo da organização,
como por exemplo: “ampliar as possibilidades de conexão entre as pessoas para que
possam viver de forma mais humana, segura, inteligente e divertida, em todos os seus
papeis” (Vivo, grifo nosso)9.
(b) Visão de negócios - Na face mais diretamente ligada aos negócios, surgem
com mais força as diferenças entre as organizações com base na sua natureza, uma
vez que aquelas que são ligadas mais diretamente ao consumo de produtos e serviços
tendem a enfatizar essa experiência direta. Porém, aqui aparecem mais indícios de
como tentam enquadrar numa singularidade um conjunto de múltiplas experiências,
sejam diretas ou indiretas, dos públicos com elas:
A missão da Unilever é levar vitalidade para o dia-a-dia. Atendemos às necessidades
diárias de nutrição, higiene e cuidados pessoais com marcas que ajudam as
pessoas a se sentirem bem, bonitas e aproveitarem mais a vida (Unilever, grifos
nossos)10
Nossas marcas inspiram paixão e lealdade. (General Motors)11
Oferecer às pessoas em todo o mundo a oportunidade de desfrutar de alimentos e
guloseimas de qualidade, gostosos e saudáveis, transformando o seu dia a dia em
“Momentos Mágicos” de encontro e comemoração. (Arcor, grifo nosso)12
Uma instituição financeira pode ajudar a realizar sonhos e investir em grandes
ideias. Um banco incentiva pessoas a crescer e empresas a progredir. (Itaú
Unibanco, grifo nosso)13
Nossa missão é assumir riscos e prestar serviços, por meio de um atendimento
familiar que supere expectativas, garantindo agilidade a custos competitivos com
responsabilidade social e ambiental. (Porto Seguro, grifo nosso)14
Em algumas aparece explicitamente a palavra “experiência”, corroborando a
tendência que anteriormente apontamos: “garantir a melhor experiência de compra
para todos os nossos clientes, em cada uma de nossas lojas” (Grupo Pão de
Açúcar)15. Realizar sonhos, ajudar a progredir, inspirar paixão e lealdade, proporcionar
familiaridade, “momentos mágicos”, bem-estar e beleza são ideias-força que dão
apoio específico à consecução de experiências singulares e que podem ser, por sua
vez, reunidas numa experiência singular mais abrangente (no mundo, na sociedade),
para o que estas organizações se postulam como imprescindíveis.
9. Disponível em: <http://www.vivo.com.br/portalweb/appmanager/env/web?_nfls=false&_nfpb=true&_pageLabel=vivoVivoInstAMarcaPage#>. Acesso em: 04 jul 2017.
10. Disponível em: <https://missaovisaovalores.wordpress.com/tag/unilever/>. Acesso em: 18 ago 2017.
11. Disponível em: <http://www.chevrolet.com.br/sobre-a-gm/chevrolet-agora-para-sempre-pilares-marca.html>.
Acesso em 18 ago 2017.
12. Disponível em: <http://arcor.com.br/nossa-companhia/missao>. Acesso em: 02 ago 2017.
13. Disponível em: <https://www.itau.com.br/sobre/marca/>. Acesso em: 04 jul 2017.
14. Disponível em: <https://www.portoseguro.com.br/a-porto-seguro/conheca-a-porto-seguro/missao-valores-e-filosofia>. Acesso em: 02 ago 2017.
15. Disponível em: <http://www.grupopaodeacucar.com.br/o-grupo/missao--visao-e-pilares/>. Acesso em: 12 ago
2017.
Ciências da Comunicação
Capítulo 25
304
(c) A visão de relacionamento - Neste campo as sugestões se referem às
atitudes, tanto das organizações quanto dos públicos, no ambiente relacional.
Embora as declarações de missão, visão e valores em muitos casos reflita condutas
desejadas dos próprios colaboradores16, várias delas, bem como outros documentos
que reafirmam os princípios e diretrizes maiores da organização, trazem sugestões
sobre como deve se dar o relacionamento tanto com públicos internos como externos
e, mais especificamente, com clientes:
Nosso sucesso é fundamentado na coragem, realização, responsabilidade,
respeito, integridade e transparência. Estes valores determinam as nossas relações
com clientes e parceiros de negócios, bem como o nosso trabalho em equipe e a
nossa colaboração uns com os outros. (Merck)17
Para ter sucesso é necessário (sic) “os mais altos padrões de comportamento
empresarial de todos com os quais trabalhamos, as comunidades que tocamos e o
ambiente que impactamos” (Unilever)18
Nosso sucesso depende de nossos relacionamentos dentro e fora da empresa.
Globalmente, encorajamos diferentes maneiras de pensar e colaborar, para
oferecer a melhor experiência para o cliente. O cliente está no centro de tudo
que fazemos. Ouvimos com atenção às suas necessidades. Cada interação é
importante. (General Motors)19
A inovação vai além dos nossos produtos e serviços, ela está em tudo o que
fazemos. Na forma como nos relacionamos e na nossa visão de negócios. Ela nos
inspira a explorar o potencial que a conexão tem de melhorar a vida das pessoas
ao transformar limites em oportunidades. (Vivo)20
São comuns sugestões sobre o tipo de vínculo que almejam e propõem, o que
geralmente denota um desejo de estabelecer relações mais contínuas e duradouras.
Nestes exemplos, essa durabilidade é colocada em direta relação com a projeção de
experiências significativas:
Estar a serviço do desenvolvimento humano por meio de experiências relevantes
que criem relacionamentos duradouros e gerem valor para todos, garantindo a
perenidade da marca Saraiva. (Livraria Saraiva)21
Trabalhamos para surpreender, divertir, alegrar e propiciar todos os dias vínculos
sinceros e duradouros. (Arcor)22
Em muitos casos é possível observar um nexo entre os valores que as organizações
associam às marcas, quando qualificam as relações esperadas em termos de atitudes
16. Aqui procuramos uma focalização mais geral, mas acreditamos que uma apreciação mais detalhada sobre
o discurso para o corpo interno em moldes semelhantes seja frutífera, colocando-a sob o prisma da projeção da
experiência.
17. Disponível em: <http://www.merck.com.br/pt/company/merck_sa/missao/missao.html>. Acesso em: 15 jul 2017.
18. Disponível em: <https://www.unilever.com.br/about/who-we-are/purpose-and-principles/>. Acesso em: 16 jul
2017.
19. Disponível em: <http://www.chevrolet.com.br/sobre-a-gm/chevrolet-agora-para-sempre-pilares-marca.html>.
Acesso em 18 ago 2017.
20. Disponível em: <http://www.vivo.com.br/portalweb/appmanager/env/web?_nfls=false&_nfpb=true&_pageLabel=vivoVivoInstAMarcaPage#>. Acesso em: 04 jul 2017.
21. Disponível em: <http://images.livrariasaraiva.com.br/quem-somos/nossa-missao.htm>. Acesso em: 15 jul 2017.
22. Disponível em: <http://arcor.com.br/nossa-companhia/missao>. Acesso em: 02 ago 2017.
Ciências da Comunicação
Capítulo 25
305
(não apenas de si mesmas e de seus colaboradores, mas nas interações com os
diversos públicos):
Nosso sucesso é fundamentado na coragem, realização, responsabilidade,
respeito, integridade e transparência. Estes valores determinam as nossas relações
com clientes e parceiros de negócios, bem como o nosso trabalho em equipe e a
nossa colaboração uns com os outros. (Merck)23
Todos os dias, buscamos fazer com que nossos valores - cooperação,
transparência, justiça e atitude de atender com genuíno interesse - não sejam
apenas palavras repetidas, mas verdades percebidas por todos os nossos públicos
de relacionamento. (Porto Seguro)24
5 | CONCLUSÃO
As evidências aqui reunidas demonstram que as visões de mundo, de negócio
e de relacionamento são indissociáveis. Elas se mesclam e se combinam de modo
diferente, segundo a natureza da atividade e os modos e níveis de experiência que
estas organizações são capazes de oferecer. É possível observar que as organizações,
em suas interações cotidianas, propõem continuamente um conjunto de experiências
que podem ser tomadas cada uma em sua singularidade, em escalas diferentes –
das mais específicas às mais gerais. Percebe-se que a função de sugestões mais
generalizantes está na agregação coerente de experiências que se dão em escala
menor e mais específica, sob um quadro de sentido no qual este conjunto possa ser
percebido como uma experiência singular. Ao fazerem isso, buscam unir experiências
diretas e indiretas dos sujeitos com as organizações. Estes movimentos, entre particular
e geral, entre afetação direta e indireta fazem parte da formação dos públicos e de sua
dinâmica no espaço público.
REFERÊNCIAS
DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
DEWEY, John. The public and its problems: An essay in political inquiry. Philadelphia: Penn State
Press, 2012.
FREEMAN, R. Edward. Stakeholder management: framework and philosophy. Boston/EUA: Pitman,
1984.
GOFFMAN, Erwing. Frame analysis: an essay of the organization of the experience. Boston:
Northeastern University Press, 1986.
HENRIQUES, Márcio S. As organizações e a vida incerta dos públicos. In:
23. Disponível em: <http://www.merck.com.br/pt/company/merck_sa/missao/missao.html>. Acesso em: 15 jul 2017.
24. Relatório de Sustentabilidade 2016. Disponível em: <http://ri.portoseguro.com.br/conteudo_pt.asp?idioma=0&conta=28&tipo=58436>. Acesso em: 02 ago 2017.
Ciências da Comunicação
Capítulo 25
306
MARQUES, Ângela C. S.; OLIVEIRA, Ivone de L.; LIMA, Fábia P. (orgs.). Comunicação
organizacional: vertentes conceituais e metodológicas. 1.ed. Vol. 2. Belo Horizonte: PPGCOM
UFMG, 2017. p. 119-129.
HENRIQUES, Márcio S. Promoção do interesse e projeção da experiência: a formação dos públicos
na interação com as organizações. In: FRANÇA, Vera V.; SIMÕES, Paula G. (Orgs.). O modelo
praxiológico e os desafios da pesquisa em comunicação. 1.ed.Porto Alegre: Sulina, 2018, p. 161174.
QUÉRÉ, Louis. Le public comme forme et comme modalité d’expérience. In:
CEFÄI, D; PASQUIER, D. (Org.). Le sens du public; publics politiques, publics mediatiques. Paris:
Press Universitaire de France, 2003.
Ciências da Comunicação
Capítulo 25
307
CAPÍTULO 26
ACESSIBILIDADE E COMUNICAÇÃO
ORGANIZACIONAL: PLANEJAMENTO E PÚBLICOS
EM UMA CAMPANHA INCLUSIVA PARA PESSOAS
CEGAS E COM BAIXA VISÃO
Victor Said dos Santos Sousa
Universidade do Estado da Bahia, Departamento
de Ciências Humanas, Campus I, Curso de
Comunicação Social – Relações Públicas, e-mail:
victorsssousa@gmail.com
Salvador-BA
Leonardo Santa Inês Cunha
Universidade do Estado da Bahia, Departamento
de Ciências Humanas, Campus I, Curso de
Comunicação Social – Relações Públicas, e-mail:
lscunha@uneb.br
Salvador-BA
Lidiane Santos de Lima Pinheiro
Universidade do Estado da Bahia, Departamento
de Ciências Humanas, Campus I, Curso de
Comunicação Social – Relações Públicas, e-mail:
lidicom@gmail.com
Salvador-BA
RESUMO: O presente artigo discute os
elementos de uma campanha de comunicação
inclusiva, voltada para pessoas com deficiência,
a partir do estudo do caso da UNEX Inclusiva
2018. A UNEX – Associação dos Ex-alunos
da Universidade do Estado da Bahia – é uma
associação civil, sem fins lucrativos, localizada
em Salvador, oferece cursos de inglês, espanhol
e pré-vestibular a baixo custo. Sua campanha
de matrículas, em 2018, foi direcionada também
para deficientes visuais, cegos ou com baixa
Ciências da Comunicação
visão; por isso, foi planejada de forma acessível
e inclusiva, para divulgar a oferta de bolsas
integrais no curso de idiomas. Buscando refletir
sobre como tornar as estratégias e conteúdos
de comunicação organizacional acessíveis para
pessoas com deficiência a partir de uma visão
com foco na responsabilidade social, o artigo
analisa o histórico e a legislação brasileiros
sobre acessibilidade e o conceito de públicos
em Relações Públicas, de modo a analisar
como estes elementos estão presentes no caso
estudado.
PALAVRAS-CHAVE:
Comunicação
Organizacional; pessoas com deficiência;
Responsabilidade
social;
acessibilidade,
públicos organizacionais.
ABSTRACT: This paper discusses the
components of an inclusive communication
campaign focused on people with disabilities.
It is based on a case study of Unex Inclusiva
2018. UNEX – Alumni Association of Bahia State
University – is a civil non-profit organization
located in Salvador, Brazil, and works with
low income courses of Spanish and English
language and University preparatory. The
2018 enrollment campaign was designated to
people with visual disabilities, blind and low
range vision. The campaign was planned in an
accessible and inclusive way to publicize the
scholarship program of the language courses.
Capítulo 26
308
Thinking over how to turn the strategies and content of organizational communication,
under a social responsibility inspiration, accessible to people with disabilities, the paper
analyzes the history and legislation about inclusion of people with disabilities and the
concept of organizational publics in Public Relation. Following this direction, we analyze
how those aspects can be found in the case studied.
KEYWORDS: Organizational Communication; people with disabilities; social
responsibility; accessibility; organizational publics.
1 | APRESENTAÇÃO
Pessoas com deficiência representam aproximadamente 24% da população
brasileira, segundo dados do IBGE, e constituem-se em um público organizacional
de relevância para uma série de organizações de diferentes naturezas. As produções
acadêmicas no campo da comunicação sobre acessibilidade ainda são insipientes,
mas é possível obter indicações relevantes a partir da bibliografia da área de Relações
Públicas. O presente artigo apresenta os resultados da análise de um estudo de caso
sobre a construção de uma campanha de comunicação inclusiva para pessoas com
deficiência, mais especificamente, com deficiência visual (cegas e com baixa visão),
a fim de refletir sobre como torná-la acessível a tal público, a partir de uma visão
da comunicação organizacional com foco na responsabilidade social. Para tanto,
neste artigo, emprega-se três procedimentos metodológicos: a revisão bibliográfica,
elaborada através da pesquisa de artigos, periódicos, livros e dissertações; o estudo de
caso, elaborado a partir da campanha da Associação dos Ex-alunos da Universidade
do Estado da Bahia, a “UNEX Inclusiva 2018”, que ocorreu no período de 08 a 19 de
maio e de 18 a 30 de junho de 2018; o relato de experiência, baseado na construção
da campanha.
O artigo está dividido em 4 sessões. Primeiramente, são apresentados dados sobre
o desenvolvimento de políticas voltadas para pessoas com deficiência. Em seguida,
o conceito de público em Relações Públicas é analisado, com foco em elementos
aplicáveis à temática do estudo. A terceira sessão consiste na descrição e análise
da campanha de comunicação “UNEX Inclusiva 2018”. Por fim, são apresentadas
considerações sobre os resultados encontrados e possibilidades de estudos futuros.
2 | POLÍTICAS PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL
Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, tem ocorrido
um amplo debate acerca da inclusão das minorias sociais nos diversos setores da
sociedade, conforme analisa Monteiro (2011). Estes debates perpassaram as últimas
décadas e se mantêm atuais, considerando a diversidade e especificidades de cada
grupo minoritário e a necessidade de inclusão social destes. Dentro deste universo,
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
309
o grupo que nos interessa, particularmente, é o de Pessoas com Deficiência (PCD).
A Legislação Brasileira define deficiência através do Decreto Nº 3.298, de 20
de dezembro de 1999, Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de
Deficiência, como sendo “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função
psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de
atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”. Este Decreto,
responsável por consolidar a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora
de Deficiência, define quatro tipos de deficiência: física, auditiva, visual e mental.
Historicamente, a nomenclatura representou estigma e segregação social,
como aponta Lima (2016, p. 7). As pessoas com deficiência eram alvo de preconceito
(capacitismo), que impossibilitava a inserção destes indivíduos dentro do contexto
social. Entretanto, esta visão, em sua concepção mais profunda, vem se modificando
ao longo dos tempos, principalmente através dos marcos na legislação brasileira,
conforme relata a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, passando pela
Constituição Federal, de 1988, continuando com o Programa Nacional dos Direitos
Humanos, de 1996, e a Lei da Acessibilidade, de 19.12.2000, todos esses ditames,
bem como seus desdobramentos e regulamentações, impõem que haja equidade
de direitos e acessibilidade. (ABNT, 2008, p. v)
O marco regulatório no Brasil se consolidou, também, através da Lei nº 10.098/00,
da Promoção de Acessibilidade para PCD, e da Lei nº 13.146/15, da Inclusão da Pessoa
com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Considerando a promoção de
um maior grau de integração nos diversos setores da sociedade – em especial, devido
às políticas de acessibilidade e inclusão –, ocorre uma reconfiguração do papel social
destes indivíduos, que passam a ocupar diversos espaços.
Para Monteiro (2011), é necessário compreender as políticas de inclusão como
“os processos que envolvem a consolidação do direito que todo e qualquer cidadão
tem de participar ativamente da sociedade, contribuindo de alguma forma para o
seu desenvolvimento” (WERNECK, 2000; WERNECK, 2003 apud MONTEIRO et.
al., 2011). Nesse sentido, segundo Batista Júnior, a concretização dessas políticas
impactou diretamente nas práticas educacionais, alicerce da Educação Inclusiva:
Observamos, assim, a crescente matrícula de alunos e alunas com deficiência
nas escolas regulares, que resultou em mudanças profundas tanto na prática
pedagógica e na metodologia de ensino como nas estruturas das escolas, na
formação docente e, principalmente, na política educacional voltada para pessoas
com deficiência. (BATISTA JÚNIOR, 2016, p. 11)
As PCD estão cada vez mais ativas, ocupando novos espaços, sendo vistas
e respeitadas em todas as suas potencialidades. Essas transformações decorrem,
além das políticas de acessibilidade, da promoção e incentivo às ações inclusivas, que
buscam proporcionar equidade.
Considerando a relevância social desta temática e a necessidade de compreender
a singularidade dos públicos inseridos em uma campanha de comunicação inclusiva
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
310
como esta, explicaremos o processo de construção da campanha supracitada, que
visou a inclusão de PCD nos cursos de idiomas do Programa de Inclusão de Pessoas
com Deficiência da Associação dos Ex-alunos (UNEX) da maior instituição de ensino
superior da Bahia, a UNEB. Antes, porém, apresentaremos os resultados da pesquisa
teórica realizada para embasar o planejamento da própria campanha, bem como para
fundamentar o presente artigo.
3 | A COMPREENSÃO DE PÚBLICO PARA A INCLUSÃO DE PESSOAS CEGAS E
COM BAIXA VISÃO
De acordo com Kunsch (2014), as organizações devem ser analisadas num
contexto amplo, compreendendo seus impactos no desenvolvimento econômico e
social, além de suas contribuições para as transformações no mundo contemporâneo.
Para a autora, é necessário aproximar as organizações da realidade, impactando em
suas comunidades; compete à comunicação organizacional essa aproximação:
No contexto da comunicação organizacional cabe aos gestores de comunicação
sensibilizar os dirigentes de que não basta só gerar empregos, pagar impostos
e atingir lucros, mas que se deve ir além, contribuir para uma sociedade melhor.
(KUNSCH, 2014, p. 37)
Na complexa era moderna, marcada pela sociedade em rede e pela mediação
dos meios de comunicação de massa, as organizações reestruturam-se perante o
fenômeno da globalização, conferindo grande poder à comunicação (THOMPSON,
1999; CASTELLS, 2003; KUNSCH, 2014). A comunicação passa a ser central no
relacionamento e consolidação dos públicos (FRANÇA, 2009), atuando ainda como um
dos mecanismos centrais na promoção de mudanças embasadas na responsabilidade
social das organizações (KUNSCH, 2014).
A atuação responsável das organizações, portanto, deve ser incentivada e
mediada pelos setores de comunicação destas. Socialmente, houve uma mudança
na significação e valor da responsabilidade social, que passou a ser vista como pauta
estratégica da comunicação organizacional:
É importante que as organizações tenham esse olhar social, pois a responsabilidade
social pode ser utilizada como uma estratégia de comunicação para que consigam
atingir os seus públicos ou até conseguir novos. (PIRES, 2015, p. 7)
Práticas organizacionais responsáveis atuam como ferramenta para consolidar a
marca perante os públicos, pois possibilita a divulgação da marca, produtos e serviços
(PIRES, 2015). A imagem de uma organização socialmente responsável se torna um
diferencial para o consumo. Portanto, as organizações contemporâneas precisam
definir e conhecer seus públicos, para alcançar e consolidar um bom relacionamento
com seus consumidores, conforme analisa França (2009), esta é a função do
profissional de Relações Públicas:
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
311
Em relações públicas, atividade essencialmente de relacionamentos com pessoas,
é imprescindível que os públicos da organização sejam corretamente identificados,
para que se possa estabelecer com eles uma interação produtiva e dialógica.
(FRANÇA, 2009, p. 210)
Uma campanha de comunicação inclusiva se configura como uma interessante
prática de responsabilidade social, pois possibilita comunicação com propósito,
aproximando a organização da realidade social, distanciando o discurso vazio da
comunicação e incentivando transformações sociais. As práticas de inclusão se
configuram como relevantes, pois tornam determinada pauta/produto acessível à
minoria social incluída, podendo incentivar ao ingresso no mundo do trabalho, por
exemplo, conforme analisa Monteiro:
A inclusão tem importância política, cultural, social e econômica, uma vez que a
sociedade tem suas estruturas sustentadas pelo trabalho. Todo cidadão, com ou
sem deficiência, precisa trabalhar para acessar os bens disponíveis no mundo
moderno, bem como apoderar-se da construção da sua sociedade. (MONTEIRO,
2011)
Nesse contexto, conhecer o perfil do público para uma campanha de comunicação
inclusiva é fundamental. No caso estudado, o público são as pessoas com deficiência,
especificamente com deficiência visual (cegos e com baixa visão). De acordo com
França (2009), é necessário efetuar a conceituação lógica dos públicos para melhor
compreendê-lo, definindo as estratégias e ações de comunicação direcionadas, capaz
de alcançá-lo, promovendo o diálogo, pois
Não se trata de qualquer relacionamento, mas daquele que deve ser definido como
especializado, com conhecimento das partes, da organização e dos públicos,
fundamentado em diretrizes que devem orientá-lo, bem como das mensagens que
devem ser enviadas, via mídia dirigida, para cada público, de modo que a empresa
seja compreendida e percebida como deseja. (FRANÇA, 2009, p. 210)
Desta forma, para a análise do público abordado, é necessário defini-lo. A
deficiência visual é definida, conforme a Legislação Brasileira, Decreto Nº 3.298, de
20 de dezembro de 1999, como sendo:
III - deficiência visual - cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que
0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa
acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os
casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for
igual ou menor que 60°; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições
anteriores. (PLANALTO BRASILEIRO, 1999)
No cenário brasileiro, de acordo com o IBGE (2014), através do Censo
Demográfico de 2010, constatou-se que 23,9% da população brasileira, correspondente
a 45.606.048 milhões de pessoas na época, declararam ter pelo menos uma das
deficiências investigadas pelo instituto. As pesquisas se basearam na percepção do
indivíduo sobre sua dificuldade em enxergar, ouvir ou se locomover, e na existência da
deficiência mental ou intelectual. Conforme aponta o IBGE (apud LIMA, 2016, p. 13),
“a deficiência visual aparece em primeiro lugar com 18,6% de ocorrência”, isto é, mais
de 35 milhões, estando dividida em cegueira total ou parcial, além da baixa visão.
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
312
Para a consolidação das práticas de inclusão, independente da natureza da
deficiência, há a demanda de ajustes comunicacionais na organização e em relação
ao público. Lima (2016) reflete sobre as diretrizes que orientam a construção de uma
campanha de comunicação inclusiva. Para a autora, para alcançar uma comunicação
acessível, é necessário atingir, no mínimo, estes quatro itens fundamentais:
1 - Ela deve ser pensada de forma a contemplar o maior número de pessoas possível,
se atentando para o fato de que as pessoas são diferentes e se comunicam de
formas diversas;
2 – A linguagem utilizada deve ser a mais clara e transparente possível para que
não gere ambiguidade, permitindo que qualquer um possa entender o que está
sendo transmitido;
3 – Se em sua gênese a comunicação não puder atingir uma diversidade considerável
de públicos, é fundamental a disponibilização do conteúdo em formatos alternativos
para que pessoas com deficiência ou com alguma necessidade de suporte
comunicacional possam acessá-lo;
4 – Ela deve servir como um canal que divulgue a importância da eliminação de
barreiras físicas, comunicacionais, instrumentais, metodológicas e atitudinais.
(LIMA, 2016, p. 45)
Dentro desse cenário, França (2009, p. 225) indica que “cabe à empresa
determinar quais públicos escolherá para com eles interagir, definir os objetivos e as
expectativas da relação, sua duração e a sua importância, bem como as formas de
avaliação dessa parceria.” Assim, a elaboração de uma campanha de comunicação
para pessoas cegas e com baixa visão requer uma ampla compreensão da natureza
deste público.
Para este autor, compete à organização gerenciar os relacionamentos, de modo
a potencializar a relação com os públicos. Portanto, faz-se necessário estudar os
mecanismos de interação e percepção com o mundo, os meios de comunicação que
são predominantemente consumidos; os principais canais de comunicação utilizados,
como as redes sociais e recursos da informática etc. Deste modo, a compreensão
do público é fundamental para a estruturação de uma campanha de comunicação
inclusiva, alcançando efetivamente o público analisado e fomentando uma ação de
responsabilidade social acessível para pessoas com deficiência visual.
4 | A UNEX E O PROGRAMA DE INCLUSÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
A UNEX (Associação dos Ex-alunos da Universidade do Estado da Bahia –
UNEB), fundada em outubro de 2001, é uma associação sem fins lucrativos, formada
por egressos dos cursos de graduação e pós-graduação da UNEB. A UNEB (2018a)
é a maior instituição pública superior do estado da Bahia, estruturada no sistema
multicampi, faz-se presente em 24 municípios baianos e visa aliar “[...] a excelência
acadêmica à sua missão social, contribuindo, assim, para o desenvolvimento
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
313
socioeducacional e econômico da Bahia e do país”.
A Associação opera em parceria com a Universidade através do convênio
24/2016, que tem por finalidade a cooperação técnica, científica, administrativa e
cultural para a realização dos cursos de idiomas e do pré-vestibular. Atualmente, a
Associação atua oferecendo cursos de idiomas (inglês e espanhol) e pré-ENEM (Prévestibular Vestibular Social Zeferina) a preços populares em Salvador.
Em seus 17 anos de atuação, a UNEX promoveu seminários, congressos,
conferências, cursos e debates de caráter científico, além de participar de projetos
sociais conveniados com o Ministério da Educação e a UNESCO (Projeto Diversidade
na Universidade); com a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Governo da Bahia
(Curso de Formação de Professores Educação e Diversidade) e com a Secretaria da
Reparação da Prefeitura de Salvador, através do Programa de Apoio aos Quilombos
Educacionais (UNEB, 2018b).
A UNEX compactua com os valores da UNEB em atuar como instituição de
ensino popular e inclusiva, tanto que desde sua fundação, a Associação conta com
política de assistência estudantil que contempla bolsas de estudos em seus cursos, a
doação de quilos de alimentos arrecadados na matrícula dos cursos às Residências
Universitárias, a realização de estágios por estudantes da UNEB, além do apoio aos
eventos realizados pelo corpo discente da universidade (UNEB, 2018b).
Em 2009, fundou o Programa de Inclusão para Pessoas com Deficiência, que
visa ofertar bolsas de ensino para PCD e, desde 2014, o programa passou a incluir
pessoas cegas e com baixa visão, ofertando curso de língua inglesa baseado nos
princípios da educação acessível e inclusiva.
Como instituição de ensino, a UNEX converge com a concepção de França (et
al., 2017), compreendendo que, no âmbito educacional, a expressão PCD passa a
ser utilizada para pessoa com necessidades educativas específicas; uma vez que
engloba pessoas com limitações físicas, sensoriais ou intelectivas que necessitam de
atendimento especializado.
O Programa de Inclusão de Pessoas com Deficiência parte do princípio da
educação inclusiva, oferecendo bolsas integrais para os cursos de idiomas da
instituição. O Programa prevê, além da bolsa aos estudantes contemplados, material
didático inclusivo (em braile ou ampliado), adaptado às necessidades únicas de cada
discente e acompanhamento pedagógico durante o período.
A iniciativa apresenta-se como importante ação de inclusão social das PCD,
tendo em vista que fornece meios sólidos para garantir a qualidade de ensino deste
público. Especialmente no caso dos deficientes visuais, como aponta França (et al.,
2017, p. 9), “é fundamental que o docente conheça as necessidades dos seus alunos
deficientes visuais para que sua postura em sala de aula se adapte à realidade de
quem não enxerga”.
Para a consolidação do processo de ensino aprendizagem, e a eficácia do
Programa, é necessário adaptar a metodologia de ensino considerando a deficiência
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
314
deste estudante que, apesar de possuir limitações na visão, cognitivamente é tão
capaz quanto um aluno não-cego, conforme relata França:
Como os alunos cegos e com baixa visão se diferenciam pela necessidade de
abordagens diferenciadas, com materiais que promovam um ensino/aprendizagem
significativo, suas capacidades de aprendizado se equiparam às de alunos
videntes. (FRANÇA et al., 2017, p. 4)
Nesse sentido, uma das principais ferramentas para construir um processo
de ensino-aprendizagem eficaz, dialógico e funcional para este público tange à
assertividade da linguagem utilizada, conforme indica Motta (2004):
Ao ter conhecimento da importância da linguagem para os alunos cegos e com
baixa visão, cabe [...] propiciar comunicação clara, [...], passando a fazer uso
de outros instrumentos que possam abrir caminhos para o entendimento, como a
exploração dos sons e da entonação, por exemplo. (MOTTA, 2004, p. 70).
A linguagem, então, é um dos principais mecanismos de aprendizado e de
comunicação para este público. Tendo em vista a audição como seu principal sentido
e a necessidade de um meio eficaz de comunicação, optou-se pela elaboração de um
produto de comunicação institucional radiofônico como peça basilar para a construção
desta campanha inclusiva.
Através da campanha inclusiva proposta pela Associação, e descrita a seguir,
buscou-se promover uma ação de comunicação acessível, que estimule a educação
inclusiva para pessoas cegas e com baixa visão, direcionada ao ensino de língua
inglesa e espanhola. A proposta justifica-se pela alta relevância de difundir o ensino
de língua estrangeira, expandindo a percepção do estudante com deficiência através
do aprendizado de uma nova língua.
Para impulsionar as ações do Programa em 2018, a UNEX lançou a campanha
de comunicação inclusiva, divulgando a oferta de dez bolsas integrais para os cursos
de inglês ou espanhol para PCD. Para alcançar o público, foi elaborada uma campanha
utilizando as mídias virtuais, tendo como ator central o produto radiofônico, utilizado
para a comunicação institucional. A campanha foi pensada de modo a ser integralmente
acessível. Considerando que a audição é o principal sentido deste público, conforme
consulta ao Instituto de Cegos da Bahia, a campanha em áudio apresentou-se como
um mecanismo acessível e de fácil consumo.
Também de acordo com o Instituto, muitos deficientes visuais são usuários da
informática, acessando informações e descrições de imagens, especialmente quando
veiculadas em redes sociais, como Facebook, WhatsApp e Youtube. O acesso à
informação por este público ocorre com o auxílio de leitores de tela e por meio do
recurso de áudio descrição.
Nas redes sociais, a áudio descrição é acionada a partir da hashtag #ParaCegoVer,
que descreve os cards, fotografias e conteúdos visuais em rede. Diante disso, todas
as mídias veiculadas nas redes sociais da UNEX, como os Cards para Facebook
e Whatsapp, contaram com a legenda #ParaCegoVer, descrevendo as imagens
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
315
presentes nas peças veiculadas nas redes sociais.
Para elaboração desta campanha inclusiva, estruturou-se e definiu-se a
metodologia, inicialmente, através da pesquisa documental, consultando artigos, teses,
leis e literatura disponível sobre acessibilidade, inclusão social, além de campanhas,
processo de ensino-aprendizagem etc. que abordassem especificamente deficientes
visuais. Foi elaborada ampla pesquisa bibliográfica, apesar de haver pouca literatura
disponível sobre campanhas para estes públicos.
Considerando essas dificuldades, a UNEX firmou duas parcerias fundamentais
para a compreensão e análise destes públicos: Instituto de Cegos da Bahia (ICB)
e Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual (CAP). Estas parcerias foram
fundamentais para compreensão e análise dos públicos, conforme sugere França
(2009), pois são órgãos especializados, com ampla expertise.
Após realizar reuniões e solicitar orientações para estes órgãos, foi possível
conhecer melhor o tema e estabelecer parâmetros gerais de abordagem. Também
ocorreu uma entrevista semiestruturada com um ex-aluno do curso de inglês da UNEX,
Robenilson Nascimento, que possui deficiência visual e foi beneficiário do Programa
de Inclusão de Pessoas com Deficiência. A entrevista teve por objetivo identificar quais
os melhores meios, canais de divulgação, abordagem, linguagem, chamadas etc.
Concluindo a etapa de pesquisas, consultou-se novamente o CAP e ICB, órgãos
de referência no acompanhamento de pessoas com deficiência visual, a fim de reforçar
determinadas conclusões sobre tal processo. As organizações foram esclarecedoras e
enfáticas ao corroborar com as demais fontes, pois afirmaram que o melhor mecanismo
para alcançar pessoas com deficiência visual é por meio de uma campanha de áudio,
considerando que a audição é um dos sentidos centrais na percepção das PCD visual,
e, convergindo com o depoimento de Robenilson, foi recomendada a divulgação nas
seguintes plataformas: Youtube, Whatsapp e Facebook. A figura 1 apresenta um
exemplo de card da campanha publicado no Facebook com a legenda descritiva.
Conforme a Figura 1, veiculada 09 de maio de 2018, o card contém uma chamada
para as inscrições do teste de nivelamento da Associação.
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
316
Figura 1 – Exemplo de Card divulgado nas redes sociais com legenda #PraCegoVer
Fonte: UNEX, 2018.
Além da chamada com informações sobre a avaliação, a peça publicada contém a
hashtag: “#PraCegoVer No card com filtro azul, há estudantes seis estudantes brancos
e negros, sentados em carteiras fazendo uma avaliação. No texto em destaque:
“Inscrições Abertas: Teste de Nivelamento”. Na parte superior o símbolo da Unex.”
Considerando todos os aspectos elencados até aqui, após a definição dos meios
e dos canais, da linguagem e da abordagem, e considerando as recomendações
de Lima (2016) e Motta (2004), elaborou-se o roteiro de gravação do spot. O spot
foi gravado em parceria com a Agência e-RP e Ilha de Edição do DCH-I. Durante
a gravação foram dadas orientações e suporte sobre dicção, clareza, entonação,
velocidade, respiração etc. A gravação ocorreu em ambiente com isolamento acústico,
utilizando equipamento fornecido pela ilha de edição.
O produto gravado foi um spot, que consiste em uma propaganda gravada em
áudio, utilizando recursos radiofônicos, como a voz, música (background) e efeitos. O
objeto gravado tem duração de 1’07’’, tendo como narrador o autor deste artigo, Victor
Said (vide nota 5). O áudio foi gravado na terceira pessoa do singular, falando para a
segunda pessoa, como se dialogasse diretamente com o interlocutor. Abaixo, segue
roteiro da peça gravada:
“Olá! A UNEX /Associação dos Ex-alunos da UNEB / está com matrículas abertas
para os cursos de Inglês e Espanhol para pessoas cegas e com baixa visão//
Venha estudar com a gente! // São dez bolsas integrais para pessoas
com deficiência// Como aluno/ você terá direito a material didático adaptado/
acompanhamento pedagógico e professores qualificados//
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
317
Estudantes cegos ou com baixa visão podem se matricular gratuitamente! Basta
comparecer à UNEX, até o dia 12 de maio com cópias do RG/ CPF e laudo médico//
A UNEX fica na Rua Silveira Martins/ número 2555/ NO Campus I da UNEB/ NO
BAIRRO DO CABULA EM SALVADOR//
Estude no melhor horário para você!// Temos turmas as segundas e quartas ou
terças e quintas/ pela manhã tarde ou noite no Cabula// Essa é a oportunidade de se
desenvolver e aprender um novo idioma// Se conecte ao mundo// VENHA ESTUDAR
COM A GENTE!//
Para maiores informações, entre em contato conosco: nosso é Whatsapp (71)
99294-1240 / nosso e-mail: unex@uneb.br / ou liga pra gente: (71) 3117-2408///”.
Após a finalização da gravação, foi solicitada da monitora de extensão e
estudante de Relações Públicas da UNEB, Kelly Veiga que elaborasse a peça tema
da campanha, considerando que o spot teria de ser compartilhado em formato de
vídeo. A arte construída consta na Figura 2, e foi utilizada como imagem fixa durante
todo o vídeo. Após a união das peças de áudio e imagem, a campanha foi veiculada
na página do Facebook e Youtube da UNEX no dia 08 de maio de 2018.
Figura 2 – Arte da campanha elaborada com a legenda #PraCegoVer
Fonte: UNEX, 2018.
A figura 2 contou com a seguinte legenda nas redes sociais: #PraCegoVer A peça
é trabalhada nas cores vermelho, azul e branco. Na parte superior consta a seguinte
frase: «UNEX: Programa de Inclusão de Pessoas com Deficiência». Na parte central
da imagem há três estudantes, um cego e dois não-cegos, sentados em carteiras,
dentro de uma sala de aula. Na parte direita, há uma professora de língua inglesa,
segurando a bandeira dos Estados Unidos da América, e atrás dela uma caixa de som.
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
318
Na parte inferior direita está escrita a frase «realização:» seguidas dos logos da UNEX
e da Agência e-RP.
A partir das métricas coletadas nas redes sociais, o spot e as publicações no
Facebook alcançaram 8.224 pessoas, principalmente no estado da Bahia, totalizando
781 visualizações do vídeo no Facebook e Youtube. A campanha foi veiculada pelo
portal da UNEB, após envio de release pela assessoria de comunicação da UNEX, e
foi compartilhada nas redes sociais da Universidade. No todo, foi compartilhada mais
de 30 vezes, gerando um engajamento da comunidade, com mais de 130 reações e
20 comentários. A campanha resultou em frutos positivos, considerando que 50% das
bolsas foram ofertadas para este público durante a campanha trimestral e extrapolou a
quantidade de inscritos e contemplados na campanha do segundo semestre de 2018.
5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Elaborar uma campanha para um público de pessoas cegas e com baixa visão
requer ampla pesquisa, empatia e compreensão da complexidade e singularidade que
é a condição do outro. Através da elaboração desta campanha, foi possível articular
saberes teóricos do curso de Relações Públicas com a prática de planejamento e
execução. A decisão de elaborar um produto de comunicação institucional radiofônico
foi certeira, considerando a percepção da pessoa com deficiência visual através da
audição.
Durante o período de matrícula, os estudantes contemplados informaram que
ficaram sabendo da campanha por meio do WhatsApp e do Facebook da UNEX, sendo
dois estudantes encaminhados pelo ICB. Com esta campanha a UNEX atua como
organização inclusiva, atendendo aos valores da responsabilidade social ao ofertar
bolsas integrais para estes estudantes, associadas ao material didático adaptado e
acompanhamento pedagógico. A iniciativa se soma a outras, como o uso da hashtag
#PraCegoVer, que tornam a campanha do segundo trimestre de 2018 inclusiva e
acessível.
Tal estudo nos revelou que os trabalhos publicados sobre comunicação inclusiva
e, especificamente, sobre a atuação das relações públicas direcionada para públicos
com deficiências são ainda incipientes, em um contexto no qual os discursos
acadêmicos e organizacionais sobre responsabilidade social se agigantam. Diante
disso, propomos aqui uma reflexão inicial sobre o assunto, a partir de uma experiência
prática, marcada pelas limitações e superações de uma prática comunicacional ligada
a uma universidade pública. Nesse sentido, esperamos continuar aprimorando a
pesquisa e a execução de campanhas inclusivas, a fim de contribuir efetivamente com
as investigações na área.
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
319
REFERÊNCIAS
BATISTA JÚNIOR, J. R. L. Pesquisas em educação inclusiva: questões teóricas e metodológicas.
Recife: Pipa Comunicação, 2016.
BRASIL. Cartilha do Censo 2010: Pessoas com deficiência. Disponível em: <https://goo.gl/tafGE7>.
Acesso em: 11 abr. 2014.
______. Deficiência, Viver sem Limite – Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com. [S.l]:
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) / Secretaria Nacional de
Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD), 2013. Disponível em: <http://goo.gl/
vp9Q2G>. Acesso em: 24 abr. 2018.
CÂMARA DE DEPUTADOS. Guia Legal - Portador de deficiência visual. Disponível em: <http://www2.
camara.leg.br/a-camara/programas-institucionais/inclusao-social-e-equidade/acessibilidade/pdfs>.
Acesso em: 08 jul. 2018.
CASTELLS, Manuel. A Galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade.
Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
FRANÇA, Fábio. A releitura dos conceitos de público pela conceituação lógica. In: KUNSCH,
Margarida M. Krohling (Org.). Relações públicas: História, teorias e estratégias nas organizações
contemporâneas. São Paulo: Saraiva, 2009.
FRANÇA, S. R. et al. Ensino de língua inglesa para alunos cegos e com baixa visão em salas
inclusivas do ensino médio. Disponível em: <https://goo.gl/hWxPfo>. Acesso em: 24 abr. 2018.
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de janeiro: Objetiva, 2001.
KUNSCH, M. M. K. Comunicação Organizacional: contextos, paradigmas e abrangência conceitual.
Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/viewFile/90446/93218>. Acesso em: 08
jul. 2018.
LIMA, R. A. J. Comunicação e acessibilidade: princípios e ferramentas para a construção de uma
comunicação inclusiva. Salvador, UNEB, 2016.
MONTEIRO, L. G.; OLIVEIRA, S. M. Q. RODRIGUES, S. M.; DIAS, C. A. Responsabilidade social
empresarial: inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Disponível em: <http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-65382011000300008>. Acesso em: 08 jul.
2018.
MOTTA, L. M. V. M. Aprendendo a ensinar inglês para alunos cegos e com baixa visão um
estudo na perspectiva da teoria da atividade. Disponível em: <https://www.vercompalavras.com.br/
pdf/tese_doutorado.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2018.
PIRES, A. S. A Responsabilidade Social como estratégia de Comunicação Organizacional:
uma análise da empresa arrozeira Camil Alimentos SA. Disponível em: <http://cursos.unipampa.edu.
br/cursos/relacoespublicas/files/2015/03/A-Responsabilidade-Social-como-estrat%C3%A9gia-deComunica%C3%A7%C3%A3o-Organizacional-uma-an%C3%A1lise-da-empresa-arrozeira-CamilAlimentos-SA.pdf>. Acesso em: 09 jul. 2018.
PLANALTO BRASILEIRO. Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Disponível em: < http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm>. Acesso em: 08 jul. 2018.
PLANALTO BRASILEIRO. Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10098.htm>. Acesso em: 24 abr. 2018.
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
320
______. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em: 24 abr. 2018.
THOMPSON, John Brookshire. A transformação da visibilidade. In: ______. A mídia e a
modernidade: uma teoria social da mídia. 2. Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, cap. 4. Tradução
Wagner de Oliveira Brandão.
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA. A universidade. Disponível em: <http://www.uneb.br/
institucional/a-universidade/>. Acesso em: 09 jul. 2018.
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA. A Unex. Disponível em: <http://www.uneb.br/unex/sobre/>.
Acesso em: 09 jul. 2018.
Ciências da Comunicação
Capítulo 26
321
CAPÍTULO 27
COMUNICAÇÃO COTIDIANA DOS VALORES DE
RESPONSABILIDADE SOCIAL: REPRODUZINDO
CULTURA NAS REDES SOCIAIS (OU NÃO)
Maria Augusta de Castro Seixas
Universidade Federal Fluminense, Laboratório de
Tecnologia, Gestão de Negócios e Meio Ambiente
(Latec)
Niterói – RJ
Emmanuel Paiva de Andrade
Universidade Federal Fluminense, Laboratório de
Tecnologia, Gestão de Negócios e Meio Ambiente
(Latec)
Niterói – RJ
RESUMO: Este estudo analisa os valores de
responsabilidade social empresarial (RSE) tal
como se expressam em dois veículos de uma
empresa brasileira nas redes sociais, conteúdo
este que sofre a influência da compreensão do
profissional de comunicação social. Utilizouse a perspectiva do interpretativismo e os
procedimentos metodológicos da Análise de
Conteúdo. Os resultados mostraram que a
agenda de RSE não é plenamente explorada
na comunicação cotidiana e isso compromete
a contribuição da comunicação para o fomento
de uma nova cultura.
PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade Social.
Cultura Organizacional. Redes Sociais.
ABSTRACT: This study analyzes the values
of corporate social responsibility (CSR) as
expressed in two vehicles of a Brazilian
Ciências da Comunicação
company in social media, content that suffers the
influence of social communication professionals’
understanding. It was used the interpretative
perspective and the methodological procedures
of Content Analysis. The results showed
that the CSR agenda is not fully exploited in
everyday communication and this compromises
the contribution of communication to promote a
new culture.
KEYWORDS:
Social
Responsibility.
Organizational Culture. Social Media.
1 | INTRODUÇÃO
A habilidade para reunir diferentes formas
de perceber, pensar e agir em torno de um
diálogo, capaz de fomentar o respeito mútuo e
criar uma ação coordenada, contribui para manter
a unidade de uma organização. A construção
de uma dinâmica organizacional efetiva implica
mesclar subculturas, encorajando a evolução
de metas, linguagens e procedimentos comuns
para a solução de problemas. Uma vez aceitos
e internalizados, os valores passam a fazer
parte da mente coletiva e são considerados
como princípios de todas as atividades na
organização. Nessa dinâmica, a comunicação
corporativa reproduz os valores, disseminando
práticas e soluções que reforçam as diretrizes e
valores que reafirmam sua identidade em face
Capítulo 27
322
de seus públicos (SCHEIN, 2010; FREITAS, 2007; FLEURY, 2009).
Para aquelas empresas que declaram adotar os princípios da responsabilidade
social empresarial (RSE), a comunicação é uma das ferramentas que deve ser
utilizada, conforme orientação da ISO 26000, a fim de elevar o nível de percepção das
iniciativas. A disseminação de conhecimento e o desenvolvimento de competências
para a implantação de práticas de RSE é um caminho para engajar partes interessadas
das organizações e fomentar uma cultura socialmente responsável (ABNT, 2010).
Nesse contexto, é relevante identificar como os valores compreendidos em
tais práticas são incorporados pelos profissionais que produzem a comunicação
corporativa. Alguns estudos se dedicam ao desenvolvimento da cultura, com foco
em RSE, e também à importância da comunicação a respeito da sustentabilidade,
expressa nos relatórios anuais (JUNQUILHO; SILVA, 2004; BIANCHI et al., 2013;
IRIGARAY; VERGARA; ARAÚJO, 2017). A contribuição deste trabalho é analisar
o conteúdo gerado e distribuído no dia a dia em mensagens que são consumidas
pelas partes interessadas. A pergunta a que se pretende responder é se os sujeitos
comunicativos, que reproduzem a voz da organização, se pautam nos princípios da
RSE como conceito transversal a todas as atividades da empresa.
Nesse sentido, o objetivo do trabalho é comparar as mensagens cotidianas
postadas na rede social de uma empresa brasileira com o conteúdo expresso em
seu Relatório de Sustentabilidade, pois é nesse documento que a empresa declara
seus compromissos de RSE. Buscou-se identificar como os valores e compromissos
declarados no documento anual são reproduzidos no dia a dia, ou seja, como esses
valores se manifestam através das lentes dos comunicadores. A escolha do veículo
rede social se justifica pelo fato de ele ser um meio de autocomunicação de massa
pelo qual as empresas se comunicam diretamente com seus públicos, além de ser
uma comunicação não vinculada ao Relatório de Sustentabilidade (CASTELLS, 2015).
A pesquisa teve por orientação a perspectiva teórica do interpretativismo,
considerando que a construção da mensagem comunicativa é criada a partir da
interação entre o sujeito e o mundo percebido. Do Relatório de Sustentabilidade 2016,
publicado em junho de 2017, se extraíram os valores e compromissos declarados como
parâmetros para compará-los com os valores presentes nas mensagens publicadas
nas redes sociais. O corpus foi delimitado nas postagens publicadas três meses
antes a três meses depois da publicação do relatório. Utilizou-se o método Análise de
Conteúdo descrito por Bardin (2016) para a abordagem indutiva (GRAY, 2012).
Os resultados apontaram para o fato de que existe uma lacuna entre o que a
empresa declara em seu Relatório de Sustentabilidade e a comunicação cotidiana
via redes sociais. Observou-se que alguns temas são tratados de forma pontual, sem
associação com o negócio. Além disso, constatou-se que existem temas relevantes
que não são explorados pelos comunicadores.
A seguir, apresentamos o referencial teórico sobre RSE, comunicação e cultura
que compõe os conceitos identificados no mapa da literatura desta pesquisa. As
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
323
sessões seguintes versam sobre os procedimentos metodológicos, a apresentação e
análise dos dados e as considerações finais.
2 | RESPONSABILIDADE SOCIAL, COMUNICAÇÃO E CULTURA
O contexto histórico, as crises capitalistas e os movimentos sociais contribuíram
para fomentar conceitos de responsabilidade social empresarial (RSE) que evoluíram
a partir da década de 1950 refletindo preocupações e expectativas das organizações.
Embora nem sempre tenha havido um consenso, em comum os pesquisadores referem-
se às empresas como atores sociais que contribuem para o desenvolvimento e devem
se relacionar com grupos sociais de forma ética e com respeito às pessoas e ao meio
ambiente. A partir dos anos 1990, organizações empresariais como o World Business
Council for Sustainable Development (WBCSD) e o Banco Mundial entram no debate
para pensar sobre como aplicar esses conceitos em prática. Foram variadas as formas
de incorporar os valores envolvidos ao sistema de gestão (CARROLL, 1999; CESAR,
2008; DAHLSRUD, 2008; ALMEIDA, 2009; IRIGARAY; VERGARA; ARAÚJO, 2017).
Um contraponto faz Comte-Sponville (2011) ao dizer que a responsabilidade
depende de escolhas que são feitas com hierarquias e renúncias. No mundo real,
de complexidades e incertezas, não há espaço para teorias homogêneas onde uma
incógnita “x” é suficiente para solucionar o problema. Ser responsável é tomar decisões
que contemplem vários aspectos, fazer escolhas, estabelecer critérios. A empresa
não tem ética, não tem deveres, só tem interesses e obrigações; são as pessoas
que precisam ser éticas. Essa visão traz para o profissional a responsabilidade de
refletir sobre a sua contribuição para os temas que estão em pauta na sociedade,
como as questões socioambientais. Nesse contexto, a visão tecnicista e econômica da
comunicação como ferramenta para vender ideias e produtos são insuficientes para
responder às exigências da sociedade por transparência, comportamentos éticos,
preservação do planeta. A comunicação será estratégica se integrar um sistema de
gestão interdisciplinar (KUNSCH, 2014).
A Norma ISO 26000 se tornou referência para as empresas não apenas pela
capilaridade da International Organization for Standarization (ISO), mas também pelo
fato de o documento ter sido criado em meio a um processo de diálogo com as partes
interessadas, envolvendo especialistas de mais de 90 países e 40 organizações
internacionais. A necessidade de engajamento e diálogo, que é uma das premissas a
serem adotadas por um sistema de gestão socialmente responsável, mostra que os
processos de comunicação têm um papel a desempenhar (ABNT, 2010; BIANCHI et
al., 2013).
Aos processos de comunicação é atribuído o papel de contribuir para a formação
de uma cultura de RSE, seja ajudando a engajar e estabelecer diálogo com as partes
interessadas, seja divulgando informações sobre impactos das atividades, produtos e
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
324
serviços da organização. A comunicação auxilia fortalecendo a reputação no que se
refere à ação responsável e dissemina o respeito pelos princípios da RSE ao mesmo
tempo em que conecta pessoas e conhecimentos em torno de uma visão sistêmica. A
inserção da RSE na cultura da organização no longo prazo, como um sentido comum,
contribui para que as ações sejam mais que modismos passageiros, planos de
marketing ou táticas para conquistar aceitação do público (FASSIN; BUELEN, 2011;
BIANCHI et al., 2013; SARDINHA, 2009; ANDRADE, 2009)
Quanto à forma, a norma identifica sete características que convém adotar na
comunicação organizacional. As informações devem ser i) completas, abordando
impactos significativos; ii) claras, considerando o nível cultural do público; iii) responsivas,
respondendo aos interesses dos públicos; iv) exatas, fornecendo detalhes corretos e
suficientes para que sejam úteis; v) equilibradas, não omitindo informações negativas;
vi) tempestivas, sendo atualizadas e identificando o período do acontecimento; e vii)
acessíveis, sendo disponibilizadas em meio adequado para o público (ABNT, 2010).
O relacionamento da organização com as partes interessadas requer um
reposicionamento da comunicação unidirecional (emissor-receptor) para uma
comunicação multidirecional, multifuncional, multicanal, características da era
da informação. A nova posição possibilita conhecer o que as pessoas têm a dizer,
recriar significados a partir do compartilhamento de visões, construir conhecimentos,
tomar decisões baseadas em compreensão comum dos propósitos e objetivos da
organização, requisitos indispensáveis para organizações que aprendem (CASTELLS,
2015; CHOO, 2006; SENGE, 2013).
Ao mesmo tempo em que a cultura é uma força estabilizadora capaz de tornar
previsíveis as questões relevantes para a empresa, e por isso mesmo difícil de mudar,
a cultura da aprendizagem traz uma flexibilidade para adotar mudanças necessárias
num ambiente dinâmico. A comunicação e a informação são centrais para a organização
transmitir e fixar crenças, valores e suposições básicas. Para os líderes, considerados
responsáveis pela condução da cultura, não existe escolha entre comunicar ou não,
mas apenas como administram aquilo que comunicam e isso inclui a comunicação
organizacional entre outros processos (SCHEIN, 2010).
O estudo de Bianchi et al. (2013) coletou dados dos balanços sociais e relatórios
de sustentabilidade e identificou que a ideia de RSE está presente na cultura
organizacional de empresas da região sul do Brasil porque os temas relacionados
estão presentes nas respectivas estratégias e há gestão sobre eles. As declarações
da empresa refletem, no entanto, uma camada intermediária da cultura. As crenças
e valores assumidos nesses relatos precisam ser aceitos e compartilhados pelos
membros da organização; caso contrário, haverá um distanciamento entre o discurso e
a prática. Quando confirmados, os valores passam a integrar a camada mais profunda
da cultura, as suposições básicas, que compõem uma espécie de mente coletiva e são
considerados como princípios de todas as atividades na organização (BIANCHI et al.,
2013; HOFSTEDE, 2001; BAUMGARTNER, 2009; SCHEIN, 2010).
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
325
A comunicação nesse processo vai além de uma perspectiva linear-instrumental
de transmitir informações às partes interessadas. A escolha de diferentes canais e a
produção de mensagens numa visão interpretativo-crítica considera as características
das pessoas e o contexto político, econômico e social para mobilizar, dialogar, educar,
orientar, promover relacionamento. No processo comunicativo participam as tecnologias
(ferramentas), as características de emissores e receptores das mensagens (códigos
culturais), protocolos de comunicação (linguagem) e a abrangência do processo
comunicativo (CASTELLS, 2015; KUNSCH, 2014).
A internet ampliou a abrangência da comunicação pela sua capacidade de
enviar mensagem para muitos em tempo real e tempo escolhido. Segundo Castells
(2015), a autocomunicação de massa incorpora as características das comunicações
interpessoal e de massa. Ela tem o potencial de atingir um público global ao mesmo
tempo em que a produção de mensagens é autogerada, os receptores podem ser
autodirecionados e a recuperação do conteúdo é autoselecionada. A autocomunicação
de massa, amplamente adotada por empresas, interage e complementa a comunicação
interpessoal e a comunicação de massa. Apesar do amplo potencial do meio, ele não
determina o conteúdo e o efeito das mensagens.
A complementaridade que caracteriza a convergência das mídias não se
dá apenas no nível tecnológico, mas sim na compreensão dos consumidores da
informação, que constroem a própria interpretação a partir de pedaços e fragmentos
de informações extraídos do fluxo de mídia e dando sentido de acordo com as próprias
vivências. A comunicação está inserida nesse processo de produção simbólica que
envolve interação entre pessoas e mensagens que ocorre de várias maneiras em
determinado contexto (JENKINS, 2008; KUNSCH, 2014).
Destacamos que o emissor é também um ator que absorve, ressignifica e
compartilha os valores culturais, ou seja, o sujeito comunicativo não está isolado, ele
cria significados de forma interativa e dissemina visões que podem ser experimentadas
por outras pessoas. A produção de mensagens que representa a voz da empresa pode
contribuir para impulsionar os princípios da RSE desde que o sujeito comunicativo
compartilhe desse valor e esteja atento à necessidade de construção desse conteúdo.
Para Fassin e Buelens (2011), dois dos motivos de dissonância entre a mensagem e a
realidade são justamente a retórica idealista e a seletividade reducionista das pautas
concentradas em programas e resultados e isso não contribui para a implantação da
RSE nem para a disseminação de valores culturais. O autor afirma que a intensidade
do esforço de implantar a RSE e a sua respectiva comunicação são fatores-chave para
alcançar a coerência entre o discurso e a prática. É responsabilidade da comunicação,
segundo Andrade (2009), operar essa coerência que envolve a organização e as partes
interessadas para que a gestão possa dar unidade à diversidade de conhecimentos e
posições.
As iniciativas de RSE e as ações de comunicação têm efeito na construção de
uma nova ética para a condução dos negócios, para a formação de uma nova cultura
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
326
e de líderes que percebam que não há um “mundo dos negócios”, mas um mundo
vivo e complexo do qual os negócios fazem parte. Essa demanda exige uma visão
holística e interdisciplinar que engloba diversos atores e disciplinas em torno de um
modelo de gestão chamado de responsabilidade social empresarial (ELKINGTON,
2001; SARDINHA, 2009).
3 | METODOLOGIA
Adotou-se a perspectiva teórica do interpretativismo e utilizou procedimentos do
método Análise de Conteúdo descrito por Bardin (2016). Essa abordagem foi adequada
para atingir o objetivo de compreender como a cultura, no que tange aos princípios
da responsabilidade social empresarial (RSE), está refletida na comunicação de uma
empresa. Não se busca confrontar o discurso expresso no Relatório de Sustentabilidade
com a prática noticiada no cotidiano no sentido de monitorar o que se comunica, mas
identificar os aspectos da cultura de RSE que são (ou não) absorvidos e disseminados
por meio do trabalho do profissional de comunicação, considerado aqui como sujeito
da comunicação ou emissor (GRAY, 2012; YIN, 2016; BARDIN, 2016).
O método Análise de Conteúdo é um instrumento polimorfo e polifuncional, que
oscila entre o rigor da objetividade e a natureza flexível da subjetividade. As inferências
podem responder sobre as causas ou antecedentes da mensagem ou os possíveis
efeitos, como um procedimento intermediário entre a etapa descritiva e a etapa de
interpretação. Ao analisar o conteúdo, o pesquisador não faz uma leitura unicamente
da “letra”, mas ele busca um sentido presente num segundo plano, o que está por trás
das mensagens e fala sobre a realidade (BARDIN, 2016).
Na etapa de pré-análise, buscou-se no Relatório de Sustentabilidade 2016
informações que revelassem o que a empresa destaca sobre sua forma de pensar e
agir na atividade produtiva, expressas nas suas escolhas, decisões e processos. O
documento, publicado no site oficial, adota as diretrizes para o relato da sustentabilidade
da Global Reporting Initiative (GRI), que traz indicadores econômicos, sociais e
ambientais.
Ainda nesta etapa, foram escolhidos os meios que dão suporte às mensagens e
constituem o corpus da pesquisa. Selecionamos para coleta de dados dois veículos de
autocomunicação de massa por meio dos quais a empresa divulga suas informações
de maneira sistemática e direta. A empresa estudada possui um site oficial, que
ancora canais de comunicação dedicados a investidores, público interno, clientes,
fornecedores e imprensa, sendo esses quatro últimos com acesso mediante cadastro.
Nas redes sociais, a empresa está presente no Twitter, Facebook, Youtube, LinkedIn,
Google Mais e Instagram. A coleta de dados foi concentrada na página da empresa no
Twitter e no blog de notícias também ancorado no site oficial.
O levantamento de informações, seguindo a regra de pertinência do método, foi
delimitado ao período de 1º de março a 30 de agosto de 2017, que abarca 3 meses
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
327
antes e 3 meses depois da publicação do Relatório de Sustentabilidade. A escolha
dessas duas redes sociais, atendendo à regra de homogeneidade na escolha do
corpus, se deve ao fato de elas serem convergentes. Do total de 163 notícias, 52% são
conteúdos do Twitter que remetem o leitor para texto complementar no blog de notícias
e 21% das publicações do blog não tem conexão com o Twitter. No período estudado,
registrou-se ainda que 7% das mensagens direcionam a leitura complementar para
hotsites, outros 7% para o site oficial da empresa e 11% são conteúdos sem links,
embora abordem assuntos contidos no blog de notícias.
O Relatório apresenta cinco valores culturais e o seu o conteúdo é direcionado
para 20 temas materiais, isto é, conteúdos que podem sofrer ou gerar impactos
econômicos, sociais ou ambientais relevantes para suas atividades pois podem afetar
a capacidade de criação de valor. Utilizamos critérios semânticos de classificação,
selecionando os valores como categorias temáticas e os temas materiais como
subcategorias. Relacionamos os temas com os valores declarados com as dimensões
econômica, social e ambiental, que representam o tripé da sustentabilidade, conforme
Quadro 1 (ELKINGTON, 2001). Essa correlação se baseou no conteúdo do Relatório
de Sustentabilidade, durante a pré-análise. A correlação entre as categorias e
subcategorias temáticas foi confirmada durante a exploração do material.
O agrupamento dos conteúdos em torno dessas categorias e subcategorias
contribuiu para a organização do material. A leitura dos textos em blocos temáticos
favoreceu o surgimento de inferências que possibilitaram a interpretação e a
identificação dos achados da pesquisa. Além disso, o cruzamento de valores com
os quais a empresa conduz seus negócios e temas materiais que impactam suas
atividades nos trouxe uma leitura sobre contexto no qual a comunicação está sendo
produzida. Na pesquisa qualitativa, essas condições contextuais podem influenciar na
análise sobre o conteúdo e a forma como a comunicação é conduzida (BARDIN, 2016;
YIN, 2016).
O quadro mostrou que 13 dos 20 temas materiais estão relacionados à variável
econômica, concentrados nos valores “orientação para o mercado”, “superação
e confiança” e “resultados”. Oito temas materiais são relacionados a impactos na
sociedade, sendo que “conformidade, ética e combate a corrupção” e “comunicação
e relacionamento com públicos de interesse” são subcategorias que coexistem tanto
no valor “Ética e Transparência” como em “Superação e Confiança”. Isso evidencia
os aspectos em que a empresa busca superar-se. Apenas dois são relacionados à
dimensão ambiental, sendo um deles, “pesquisa, desenvolvimento e inovação”, o único
que coexiste nas três dimensões da sustentabilidade, sempre ligado à “superação e
confiança”.
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
328
Valores
Variável Econômica
Respeito à vida,
às pessoas e ao
meio ambiente
Variável Social
Variável Ambiental
Segurança operacional e
saúde do trabalhador
Emissões Atmosféricas
e Estratégia Climática
Conformidade, ética,
prevenção e combate à
corrupção
Ética e
transparência
Comunicação e
Relacionamento com
públicos de interesse
Estratégia de negócios
Eficiência de
investimentos
Governança
Gestão de Fornecedores
Política de preços
Parcerias e
desinvestimentos
Orientação para
o mercado
Reposição de recursos
minerais
Impacto do preço da
commodity e taxa de
cambio
Renegociação com
acionista
Perda do grau de
investimento
Superação e
confiança
Pesquisa,
desenvolvimento e
inovação
Pesquisa,
Pesquisa, desenvolvimento e
desenvolvimento e
inovação
inovação
Gestão de recursos
críticos
Investigação pública
Comunicação e
Relacionamento com
públicos de interesse
Conformidade, ética,
prevenção e combate à
corrupção
Resultados
Desalavancagem
Financeira
Eficiência Operacional
e gestão de custos
Gestão de riscos
Quadro 1 - Correlação categorias e subcategorias temáticas
Os 20 temas materiais selecionados pela alta administração, gerentes da empresa
e especialistas de mercado também estão conectados às escolhas e decisões da
empresa. Isso porque a desalavancagem financeira, a eficiência de investimentos, a
política de preços, a parceria e venda de ativos, a eficiência operacional e redução de
custos são os princípios da estratégia de negócios, confirmando forte viés econômico.
A partir da revisão de literatura e da pré-análise, identificamos algumas
questões que foram exploradas na etapa de interpretação. Essas questões integram
o delineamento da pesquisa e contribuem para o direcionamento da análise dos
dados. A intenção em explicitá-las nesse protocolo de pesquisa foi identificar pontos
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
329
de atenção na exploração do corpus, aproximando a pergunta da pesquisa e os dados
coletados. O protocolo apresentado no Quadro 2 não pretende, contudo, esgotar as
possibilidades de observação no processo de análise (BARDIN, 2016; YIN, 2016).
Questões:
Conteúdo ditto
Conteúdo não ditto
Forma
De que forma os valores da empresa são reafirmados?
Quais são as notícias que refletem os impactos e compromissos
assumidos pela empresa?
Como o diálogo com as partes interessadas e a empresa se
materializa na comunicação através dessas redes sociais?
De que forma a comunicação cotidiana incorpora os princípios da
responsabilidade social?
Existem notícias relacionadas a valores não declarados? Quais?
Existem conteúdos relacionados a temas que não são explicitamente
associados à RSE?
As mensagens são completas, claras, responsivas, exatas,
equilibradas, tempestivas e acessíveis?
Quadro 2: Protocolo de pesquisa
4 | ANÁLISE DOS DADOS
A organização estudada é uma empresa de engenharia de sociedade anônima
e capital aberto, com mais de 50 mil empregados distribuídos em 56 profissões
de nível superior e 22 profissões de nível médio. Atua no Brasil, principalmente na
região sudeste, e em quatro países da América Latina, Estados Unidos e Nigéria.
No que tange ao contexto externo, o mercado de atuação se caracteriza por forte
regulamentação legal, impacto geopolítico e influência do mercado internacional no
preço da commodity.
O contexto da comunicação é retratado na sessão Mensagem do Presidente no
Relatório de Sustentabilidade, que enfatiza a necessidade de superar a maior crise
de sua história, razão pela qual o plano de negócios reforça o compromisso com a
segurança operacional e a redução da dívida da empresa. Ao longo do relatório, observase a declaração de outros compromissos, sendo esses dois os únicos que apresentam
metas que são acompanhadas pela diretoria executiva. O presidente também anuncia
a Política de Responsabilidade Social, na qual a empresa se compromete a respeitar
direitos humanos e o meio ambiente, o que significa relacionar-se de forma responsável
com as comunidades locais e superar desafios de sustentabilidade. Pesquisa e
inovação, gestão transparente e entrega de resultados também estão na mensagem
assinada pelo líder formal, um dos responsáveis por dar direção à cultura da empresa
(SCHEIN, 2010; FREITAS, 2007; BAUMGARTNER, 2009).
Entre 1º de março e 30 de agosto de 2017, foram registradas 163 publicações
na página da empresa no Twitter e no blog de notícias (BARDIN, 2016). Identificamos
que 89% das mensagens do microblog, que conta com 507.883 seguidores, divulga
links para outros veículos com informações complementares, o que denota a intenção
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
330
de utilizar essa rede social para potencializar a repercussão dos conteúdos publicados
por meio da convergência de mídias (JENKINS, 2008). Além da linguagem textual,
utilizam-se imagens (fotos, gravuras e vídeos) para captar a atenção do leitor. Outro
recurso utilizado é o “Leia Mais” ao final dos textos do blog de notícias convidando o
leitor a conhecer notícias correlatas.
Durante etapa de classificação das publicações, identificamos que 10 textos
não se enquadravam nas cinco classificações temáticas (valores), e por isso, foi
criada uma unidade de registro denominada “Outros”. Os conteúdos também foram
classificados com subcategorias correspondentes aos temas materiais, conforme
Quadro 1 (BARDIN, 2016).
A classificação “Orientações para o mercado” reúne 36% das notícias, maior
volume se comparado a outros valores. As pautas abordam a melhoria da avaliação
de agências de risco; pagamentos de dívidas; parcerias para desenvolvimento de
operações, pesquisa e tecnologia; fortalecimento da governança; política de preços
e venda de ativos, todas relacionadas ao plano estratégico da empresa. Ademais
de reforçar o sentido de segurança financeira e operacional, os textos reafirmam a
importância da tecnologia como garantia da sustentabilidade: “[...] a combinação de
competência humana e a capacidade computacional de elevado desempenho será
fator decisivo para a superação dos desafios atuais da indústria”, nas palavras do
redator.
Nas notícias de revisão mensal da política de preços existe uma estrutura textual
que traz informações sobre a decisão tomada, o contexto que balizou a decisão, a
relação com a estratégia, os custos que impactam na formação de preços e o aspecto
legal de garantia da liberdade de preços no mercado. Por trás desse roteiro existe a
intenção de conferir transparência nas decisões e expor o limite da responsabilidade
da empresa no que tange ao repasse de preços na cadeia produtiva.
Os textos sobre a venda de ativos e ações em bolsa de valores falam em
oportunidade. Esse impacto positivo do ponto de vista estratégico contrasta com
comentários que citam o impacto negativo da perda de empregos (KUNSCH, 2014). O
plano de vendas requereu revisão da sistemática de desinvestimentos por orientação
de órgão público e envolve conflitos judiciais. A divulgação tempestiva é uma exigência
legal cumprida especialmente por meio do blog de notícias, que remete o leitor para
o site oficial dedicado aos investidores e não é repercutida no Twitter. A linguagem
bastante técnica nem sempre favorece a clareza da mensagem (ABNT, 2010).
O conteúdo classificado como “Respeito à vida, às pessoas e ao meio ambiente”
está associado à prevenção a acidentes. De forma educativa, a mensagem cita as ações
que podem impactar a segurança das operações e a importância da colaboração das
comunidades. No período, foi publicada uma única notícia de simulado de emergência
em torno de um dos riscos.
A pauta de segurança operacional também está associada à produção de
tecnologias, ressaltando os valores de inovação e pioneirismo além de confiabilidade
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
331
das operações. Ainda que o tema esteja associado à mitigação de vazamento de
produtos, há notícia não conectada ao valor de “Respeito à vida e ao meio ambiente”
e com “Leia Mais” conduzindo o leitor a outras reportagens sobre inovação (JENKINS,
2008; BERGER; LUCKMANN, 2014). A única notícia com impacto negativo, e sem
foto, fala sobre a ocorrência de um acidente que gerou ferimentos leves em quatro
profissionais, que receberam atendimento médico, mas não paralisou a operação.
Essa notícia, assim como a do simulado, não foi repercutida no Twitter.
O tempo de relacionamento com um projeto de preservação marinha e recuperação
de espécie em extinção foi uma notícia. Apesar de o conteúdo trazer ações e resultados
do projeto, com maior peso noticioso, o tempo de patrocínio mereceu o destaque
no título. A excelência do projeto é retratada como um valor em trechos como: “O
projeto é o responsável pelo início da recuperação – comprovada cientificamente –
das populações de três espécies” e “Reconhecido internacionalmente como uma das
mais bem-sucedidas experiências de conservação marinha”. A reportagem não traz
informações sobre programa de patrocínios a projetos socioambientais. O “Leia Mais”
conecta o leitor a uma notícia sobre uma das unidades operacionais conhecida por
sua excelência em gestão ambiental, que traz exemplos de ações de mitigação dos
impactos ambientais.
Destacamos ainda uma notícia que traz a imagem de uma profissional sorrindo
em ambiente de trabalho. O texto ganha uma linguagem humanizada (pouco comum no
corpus) ao colocar essa personagem para representar as empregadas que receberam
o benefício destinado a mães que amamentam. A matéria mostra o compromisso da
empresa com a valorização da mulher e os compromissos em combater a discriminação
e promover os direitos humanos (RUGGIE, 2014). Esse foi o único conteúdo no período
estudado que pode ser recuperado colocando a expressão “responsabilidade social”
na ferramenta de busca do blog de notícias e também o único que direciona o leitor
para conhecer a Política de Responsabilidade Social da empresa.
Três dos compromissos assumidos no Relatório de Sustentabilidade se referem
a práticas éticas e de transparência, seja na governança corporativa, nas ações
de combate à fraude e à corrupção, seja na conformidade com requisitos legais,
regulatórios ou melhores práticas do mercado (ELKINGTON, 2001). Essas escolhas
estão referenciadas nas notícias classificadas como “Ética e transparência”, cujos
temas abordam mudanças em procedimentos na gestão. Requisitos de transparência
são anunciados nos novos critérios de indicação para administradores e na carta anual
de políticas públicas e de governança corporativa, por exemplo.
A política de governança e os conceitos de due diligence e de compliance são
pauta de três matérias, que mesclam linguagem textual e em vídeo, no blog de notícias.
Com foco educativo e argumento de especialistas e líderes da empresa, enfatiza-se
a importância da criação de uma cultura ética por meio de práticas éticas (RUGGIE,
2014). O mote da comunicação são as mudanças para seguir em frente, em alusão à
superação da crise mencionada na Mensagem do Presidente.
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
332
Esses conceitos estão refletidos ainda em pautas que tratam do desbloqueio
de dois fornecedores que estavam com relações comerciais suspensas em razão de
corrupção (ABNT, 2010). Numa das reportagens é ressaltada uma frase atribuída a um
ente público na qual a empresa é elogiada pela colaboração nas investigações, “criando
ambiente desfavorável à continuidade de práticas ilícitas em seu interior e ampliando
as possibilidades do ressarcimento em prol dos cofres da empresa e dos acionistas”.
O trecho denota que a crise trouxe o aprendizado sobre brechas existentes na gestão
ao mesmo tempo em que reforça a preocupação apenas com o aspecto econômico
do conceito de sustentabilidade e somente um público de interesse (CHOO, 2006;
CESAR, 2008).
A visão funcionalista (linear-instrumental) oriunda da formação acadêmica de
comunicadores apresenta-se como um filtro no reconhecimento do que é notícia na
empresa (KUNSCH, 2014). Isso porque os pressupostos filosóficos e ações em torno
da governança e das demonstrações financeiras, por exemplo, se tornam pauta à
medida que as ações recebam premiações. Ou seja, tais ações que refletem esforço
de mudança cultural não seriam notícia se não houvesse esses reconhecimentos
externos. A lógica de noticiar informações em razão de prêmios ou eventos e datas
comemorativas é recorrente.
Entre as notícias classificadas no valor “Superação e confiança”, duas reportagens
trazem o diretor de governança falando sobre ações de melhorias em sua pasta.
Ele comenta as ações e avanços nos dois anos de sua gestão e, no segundo texto,
anuncia o pedido de certificação do modelo de governança para a bolsa de valores.
A boa-nova sobre a conquista da certificação foi anunciada três meses depois, de
forma tempestiva (ABNT, 2010). Nos textos está explicitada a proposta de restaurar a
confiança na relação com os investidores e reforçar normas e processos (ou artefatos
culturais) que favoreçam a cultura ética e a confiança. Os textos são entremeados
por vídeos nos quais o diretor empresta sua autoridade de líder e especialista para
reforçar a superação da empresa e a confiança nas ações de due diligence, criação do
canal denúncia e treinamento da alta direção e empregados (SCHEIN, 2010).
Em se tratando de “Superação e confiança”, é recorrente a pauta acerca do
tema material “Pesquisa, desenvolvimento e inovação”. A tecnologia está a serviço do
cumprimento de metas de produção e segurança operacional e representa “desafios”,
palavra bastante usada pelos comunicadores para denotar o esforço empreendido.
Embora o Relatório de Sustentabilidade informe sobre a contribuição da empresa para
o desenvolvimento de pesquisa nas universidades e pesquisas que visam à redução
de impactos ambientais, esses aspectos não foram notícia no período estudado
(BARDIN, 2016). Informações sobre monitoramento de qualidade de produtos, tempo
de relacionamento com a empresa, recebimento de prêmios são enfatizados para
conferir sentido de credibilidade e confiança (MOSCOVICI, 2015).
Uma empregada foi primeira brasileira a receber prêmio de uma associação
internacional de sua área de atuação. Na reportagem ela comenta sobre a condição
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
333
feminina no mercado das geociências e recorda que a empresa não estava preparada
para receber mulheres em atividades de campo nos anos 1970. Esses dados parecem
pitorescos na história dela, já que as ações de RSE no que concerne a questões
de gênero não são mencionadas no texto ou no “Leia Mais”. Em vez disso, um link
direciona o leitor para saber mais sobre um reconhecimento como empresa inovadora
(KUNSCH, 2014).
Um grupo de 10 reportagens foi classificado como “Outros” porque as postagens
não pareciam dialogar com os valores declarados no Relatório de Sustentabilidade
2016, mas com dois valores declarados até 2014: “Empreendedorismo e inovação” e
“Diversidade humana e cultural”. Em comum, elas divulgam realizações ou eventos dos
projetos culturais e esportivos patrocinados com o propósito de dar retorno à marca.
Uma afirmação do gerente executivo de comunicação evidencia a associação dos
projetos com esses valores, vigentes nos critérios de patrocínio: “Esse projeto valoriza
as nossas raízes, a riqueza cultural do Brasil, e traz para a dança a pesquisa de nova
linguagem e a inovação. Tudo isso guarda sinergia muito grande com a empresa”. A
inovação, excelência técnica, potencial de retorno e alinhamento à estratégia de marca
são reafirmados em outras matérias, inclusive em uma sobre uma mostra de cinema
e direitos humanos e outra sobre um espetáculo de dança inspirado num poema
sobre a degradação da natureza. O conteúdo desses projetos não é associado aos
compromissos assumidos na atual Política de Responsabilidade Social (MOSCOVICI,
2015).
Entre as notícias classificadas com o valor “Resultados”, as pautas estão
vinculadas ao compromisso de realizar investimentos e reduzir endividamento.
Mensalmente a empresa publica os principais resultados operacionais associando-os
ao contexto da empresa e aos fatores externos a ela, bem como a relação dos números
com as metas. Esse contexto citado traz relação apenas com os aspectos econômicos
da produção, sem um diálogo interdisciplinar. Um exemplo são as paralisações para
manutenção que impactam a produção, numa visão linear. Os textos não mencionam
o aspecto de segurança para as pessoas e o meio ambiente (visão crítica), um dos
compromissos da empresa associado ao valor “Respeito à vida, às pessoas e ao meio
ambiente” e a dois temas materiais (KUNSCH, 2014).
A possibilidade de interação e diálogo com os leitores do Twitter e do blog de
notícias não é um recurso muito utilizado (CASTELLS, 2015). No microblog, observou-
se que os comentários são bastante críticos e, muitas vezes, hostis. Há muitas
referências negativas a episódios de corrupção e críticas à estratégia de venda de
ativos, que dividem espaço com elogios, presentes com menor frequência, em geral
nas pautas de tecnologia. Não é muito comum encontrar respostas da empresa.. No
blog de notícias, que tem 78,5% dos textos sem comentários, a dinâmica de diálogos
não é diferente. A exceção fica por conta de três reportagens sobre o programa de
estágios e seleção de profissionais, nas quais todas as dúvidas tiveram algum tipo de
resposta. Uma reportagem relativa ao valor “Ética e transparência” chamou a atenção
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
334
pelo fato de ter 14 comentários da mesma pessoa. Eram críticas com base em
argumentos técnicos. No quarto trecho, contudo, o leitor reclamou da não publicação
dos comentários anteriores, chamando a atenção para a mediação do blog: “nem só
de bons comentários sobrevive uma instituição do porte desta empresa” (BERGER;
LUCKMANN, 2014; KUNSCH, 2014).
Quanto à forma, as mensagens são acessíveis na internet em diferentes níveis
de profundidade a depender da necessidade de informação do público, haja vista
numerosos veículos produzidos. Especificamente quanto ao equilíbrio, as publicações
são majoritariamente positivas, sendo evitadas as repercussões polêmicas ou aspectos
de impacto negativo, o que prejudica também a avaliação quanto à completude. Não
foi possível analisar as características de exatidão da comunicação (ABNT, 2010).
5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Identificamos que a empresa faz uma convergência de mídias digitais,
compreendendo website, blog de notícias e redes sociais, de forma a complementar
conteúdos e ampliar o alcance aos públicos. Essa estratégia, associada ao valor
transparência, traz para os comunicadores a responsabilidade de traduzir a voz da
organização. As mensagens reforçam fortemente o posicionamento estratégico, com
foco em aspectos econômicos. Os compromissos e valores de responsabilidade
social empresarial (RSE) ficam em segundo plano no que concerne à comunicação
realizada via Twitter e blog de notícias. As pautas que abordaram as ações socialmente
responsáveis no período estudado são pontuais ou não são diretamente associadas às
atividades da empresa, o que limita a contribuição da comunicação para o incremento
de uma cultura de responsabilidade social. Também não é muito explorada a ferramenta
de diálogo, própria das redes sociais. A análise sugere que os valores da RSE estão
parcialmente refletidos na mente dos comunicadores da organização.
O método utilizado contribuiu para os achados da pesquisa especialmente por
permitir analisar o dito e o não dito no corpus. Comparando os temas abordados do
Relatório de Sustentabilidade com a comunicação cotidiana, pode-se inferir que a
agenda de RSE não é plenamente explorada no Twitter e no blog de notícias. Algumas
das possíveis pautas não exploradas são: ações de diálogo contínuo com comunidades
do entorno das unidades operacionais; desenvolvimento das comunidades locais em
decorrência dos empreendimentos; correlação de investimentos sociais aos Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável (ODS); contribuição para recuperação de áreas
degradadas e conservação de florestas,, entre outros. Por outro lado, os impactos
negativos das atividades da empresa não estão na pauta.
Apesar de os temas materiais serem apresentados no Relatório como assuntos
relevantes para a gestão, a empresa não informa com clareza quais são os impactos
positivos e negativos reais e potenciais relacionados. Essa falta de clareza e completude
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
335
compromete, de acordo com a ABNT (2010), o conceito de transparência, que é um
dos princípios da RSE e também um dos valores da empresa. Nas redes sociais, por
exemplo, a pauta sobre venda ou fechamento de ativos, uma das iniciativas do plano
estratégico para a redução da alavancagem financeira, não aborda os impactos dessa
ação para os empregados, fornecedores, clientes e comunidade local. Isso contribui,
ao menos em parte, para reações negativas dos consumidores da informação e tem
o potencial de impactar negativamente a credibilidade e a imagem da empresa e não
reafirma a cultura de RSE na empresa.
REFERÊNCIAS
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR ISO 26000: Diretrizes sobre
responsabilidade social. Rio de Janeiro, 2010.
ALMEIDA, F. Os valores pessoais e o comprometimento social dos gestores: um estudo sobre a
Responsabilidade Social das empresas no Brasil. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n.
86, p. 145-166, 2009.
ANDRADE, C. Comunicação nas empresas sustentáveis. In: FÉLIX, J. B.; BORDA, G. Z. (Org.).
Gestão da Comunicação e Responsabilidade Socioambiental. São Paulo, Atlas, 2009. p. 117-146.
BARDIN, L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.
BAUMGARTNER, R. J. Organizational culture and leadership: Preconditions for the development of a
sustainable corporation. Sustainable Development Journal, New York, v.17, n. 2, p. 102 -113, Jan./
Feb. 2009.
BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção da realidade. 36. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
BIANCHI, M. FAE, M.D.; GELATTI, R.; DA ROCHA, J.M.L. A responsabilidade social como parte
integrante da cultura organizacional em empresas socialmente responsáveis: análise de conteúdo
entre a prática e o discurso. Revista Eletrônica de Estratégia e Negócios, Florianópolis, v. 6, n. 1,
2013.
CARROLL, A. B. Corporate Social Responsibility: Evolution of a Definititonal Construct. Business &
Society, Chicago, v. 38, n. 3, 1999.
CASTELLS, M. O Poder da Comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
CESAR, M. J. Empresa cidadã: uma estratégia de cidadania. São Paulo: Cortez, 2008.
CHOO, C.W. Organização do Conhecimento: como as organizações usam a informação para
criar significado, construir conhecimento e tomar decisões. 2. ed. São Paulo: Senac, 2006.
COMTE-SPONVILLE, A. O capitalismo é moral? 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
DAHLSRUD, A. How Corporate Social Responsibility is Defined: an Analysis of 37 Definitions.
Corporate Social Responsibility and Environmental Management, Chichester, v. 15, n. 1, p. 1-13,
Jan./Feb. 2008.
ELKINGTON, J. Canibais com Garfo e Faca. São Paulo: Makron Books, 2001.
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
336
FASSIN, Y.; BUELENS, M. The hipocrisy-Sincerity continuum in corporate communication and decision
making. Management Decision, York, England, v. 49, n. 4, 2011.
FLEURY, M. T. L.; FISCHER, R. M. Cultura e Poder nas Organizações. São Paulo: Atlas, 2009.
FREITAS, M. E. Cultura Organizacional: evolução e crítica. São Paulo: Thompson Learning, 2007.
GRAY, D. Pesquisa no Mundo Real. 2. ed. Porto Alegre: Penso, 2012.
HOFSTEDE, G. Cultures Consequences: comparing values, behaviors and organizations across
nations. 2. ed. London: Sage Publications, 2001.
IRIGARAY, H. A.; VERGARA, S. C.; ARAÚJO, R. G. Responsabilidade Social Corporativa: o que
revelam os relatórios sociais das empresas. Organizações e Sociedade, Salvador, v. 24, n. 80, p.
73-88, jan./mar. 2017.
JENKINS, H. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008.
JUNQUILHO, G. S.; SILVA, A. Carta de Valores Versus Carta de Intenções: uma reflexão sobre a
abordagem integrativa da dimensão cultural em organizações. Organizações & Sociedade, Salvador,
v. 11, n. 31, p. 135-152, set./dec. 2004.
KUNSCH, M. K. Comunicação Organizacional: Contextos, paradigmas e abrangência conceitual.
Matrizes, São Paulo, v. 8, n. 2, p. 35-61, jul./dez. 2014.
MOSCOVICI, S. Representações Sociais: Investigações em psicologia social. 11. ed. Petrópolis:
Vozes, 2015.
RUGGIE, J. G. Quando negócios não são apenas Negócios. São Paulo: Planeta Sustentável,
2014.
SARDINHA, G. Sustentabilidade nas organizações. In.: FÉLIX, J. B.; BORDA, G. Z. (Org.). Gestão da
Comunicação e Responsabilidade Socioambiental. São Paulo: Atlas, 2009.
SENGE, P. M. A Quinta Disciplina: A Arte e a Prática da Organização que Aprende. Rio de
Janeiro: BestSeller, 2013.
SCHEIN, E. Organizational Culture and Leadership. 4th ed. San Francisco: Jossey-Bass, 2010.
YIN, R. Pesquisa Qualitativa do Início ao Fim. Porto Alegre: Penso, 2016.
Ciências da Comunicação
Capítulo 27
337
CAPÍTULO 28
A COMUNICAÇÃO PÚBLICA NA ASSISTÊNCIA
TÉCNICA RURAL PARA O DESENVOLVIMENTO
REGIONAL DO ESTADO DE RONDÔNIA
Edna Mendes dos Reis Okabayashi
Universidade Taubaté
Taubaté, SP.
Moacir José dos Santos
Universidade Taubaté
Taubaté, SP.
Monica Franchi Carniello
Universidade Taubaté
Taubaté, SP.
RESUMO: Esta pesquisa objetiva discutir a
comunicação pública no âmbito da Assistência
Técnica Rural em Rondônia. A metodologia
da pesquisa é configurada como de caráter
exploratória e descritiva, composta por análise
e diagnóstico das estratégias de comunicação
pública no âmbito da EMATER-RO, com vistas
ao desenvolvimento regional do estado de
Rondônia. O corpus de análise foi composto pelos
canais de comunicação pública da Empresa
de Assistência Técnica e Extensão Rural do
Estado de Rondônia (EMATER-RO). Concluiuse, por ora, que os canais de comunicação
existem e são regularmente atualizados com
conteúdo informativo, predominando uma visão
difusionista, sem promoção do diálogo entre
assistentes e assistidos.
PALAVRAS-CHAVE: Comunicação Pública.
Assistência e Extensão Rural. Desenvolvimento
Ciências da Comunicação
Regional.
ABSTRACT: This research aims to discuss
public communication in the field of Rural
technical assistance in Rondônia. The research
methodology is configured as an exploratory
and descriptive character, consisting of
analysis and diagnosis of public communication
strategies within the scope of Emater-RO, with
a view to the regional development of the state
of Rondônia. The corpus of analysis fell on the
public communication channels of the company
of technical assistance and Rural extension
of the state of Rondônia (Emater-RO). It was
concluded, for now, that the communication
channels exist and are regularly updated with
informative content, predominating a diffusionist
view, without promoting the dialogue between
assistants and assisted.
KEYWORDS:
Public
communication.
Assistance and Rural extension. Regional
development.
1 | INTRODUÇÃO
Ao considerar a comunicação pública
como fator primordial para o desenvolvimento
regional, esta pesquisa tem como objetivo
analisar os modos pelos quais a comunicação
pública acontece no âmbito da Empresa de
Capítulo 28
338
Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Rondônia (EMATER-RO). As
análises sob os modos como é realizada a comunicação pública são necessárias,
haja vista que é preciso conhecimento sobre as estruturas estabelecidas a partir da
relação entre governo e cidadãos, considerando o fato de que é por meio dos órgãos
de comunicação pública que são desencadeados os processos de desenvolvimento
da região.
A importância desse estudo consiste no fato de que os debates aqui contidos
tratam sobre as funções da comunicação pública para o desenvolvimento regional
do Estado de Rondônia, por meio de análises dos processos comunicacionais
planejados e executados no âmbito da EMATER – RO, autarquia estadual que mantem
relacionamento próximo à população, principalmente ao público da zona rural.
Esta pesquisa situa-se no escopo da relação entre comunicação rural e
desenvolvimento, preconizada por José Marques de Melo em seus estudos sobre as
perspectivas dos meios de comunicação coletiva utilizados para a informação rural, já
nas décadas de 1960 e 1970 (KUNSCH, 2000).
Inicialmente, discutiu-se sobre comunicação pública, a relação entre comunicação
pública e informação e também acerca da assistência técnica e extensão rural.
Num segundo momento, elucidam-se os caminhos metodológicos percorridos para
a realização dessa pesquisa, detalhando os métodos utilizados para o alcance dos
objetivos propostos. Em seguida, aparecem os resultados e discussões obtidos com a
execução da metodologia. Nessa seção constam os dados colhidos a partir da análise
dos canais de comunicação pública da EMATER. Por fim, estão as considerações finais
desta pesquisa, apontando as principais observações e sugerindo novas possibilidades
de posturas frente à importância da comunicação pública para o desenvolvimento do
campo da agricultura e, consequentemente, do desenvolvimento regional do estado.
Há, ainda, as referencias bibliográficas das produções que subsidiaram essa pesquisa.
2 | EMBASAMENTO TEÓRICO
2.1 A Comunicação Pública
O conceito de ‘Comunicação Pública’ está diretamente relacionado à necessidade
de legitimação de um processo de comunicação acerca da responsabilidade do Estado
e/ou Governo. A comunicação pública é constituída por um processo instaurado na
esfera pública entre agentes de um tripé composto por Governo-Estado-Sociedade.
Assim, ela funciona como um espaço privilegiado de negociações entre os interesses
das diversas instâncias de poder constitutivas da vida pública no país (BRANDÃO E
GUIMARÃES, 2000).
Nessa perspectiva, é possível a consideração de três pontos principais na
formação da comunicação pública: objetivos dos emissários; interesse público X
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
339
interesse do público e direcionamento ideológico (DUARTE, 2007). Esses aspectos
não possuem dependência entre si, havendo, ainda, outros aspectos como as questões
de financiamento, controle social, qualidade do conteúdo, autonomia da gestão e etc.
Apesar de o termo ‘Comunicação Pública’ estar empiricamente ligado aos
veículos de comunicação do Poder Executivo, ela se refere, também, à esfera da
atuação coletiva dos cidadãos em sociedade. Os meios de comunicação pública
devem a promoção de diferentes visões informativas e comunicacionais à sociedade,
pois, ao atravessarem o véu criado, no imaginário, por uma espécie de ‘visibilidade
padrão’, definida pela indústria do entretenimento, ela estimula inovações de linguagem
relacionadas às linguagens empregadas pela comunicação comercial. Ao fazer isso,
põe em xeque a ideia de que o produto multimídia seja destinado única e tão somente
ao consumo individual, à fruição imediata (BUCCI, 2012, p. 13).
Dessa forma, enquanto a comunicação comercial promove o seu próprio lucro, a
comunicação pública promove o bem comum e os interesses da sociedade por meio
de informações que são pertinentes a ela. Essa diferenciação não é suficiente para
a conceituação de comunicação pública, pois existem diversas aspectos para tal. É
necessário saber, a priori, que há diversos tipos de comunicação pública, haja vista a
existência de diversas emissoras que vão do campo comunitário até o legislativo com
base em identidades não-comerciais (INTERVOZES, 2017).
Numa outra definição, a comunicação pública pode ser conceituada também
como aquela que recebe recursos públicos para o desenvolvimento e manutenção
de suas atividades. A comunicação, nesse caso, é pública, porque todos os serviços
geridos pelo Estado são públicos. Nesse sentido, por ser financiada pelo estado, a
comunicação pública não pode sofrer influências dos interesses de grupos aliados
à administração pública. As empresas que constituem a comunicação pública são
públicas porque defendem os interesses do povo e são impessoais. Dessa forma, a
comunicação pública é configurada como uma garantia legal, funcionando como um
instrumento de acompanhamento das mudanças de comportamento da sociedade,
nos dias atuais ainda mais potencializada pelas mídias digitais.
Além da diferenciação entre comunicação pública e comunicação comercial,
é necessário o desvelamento acerca da diferenciação entre comunicação pública
e comunicação política.
A primeira é garantida legalmente, funcionando como
instrumento de acompanhamento das mudanças de comportamento da sociedade,
potencializada, na atualidade pelas facilidades da era digital (CARNIELLO, et al., 2016).
Ela é configurada como um ‘refinamento’ da comunicação governamental, acarretando
uma relação participativa que envolve Estado, Governo e Sociedade e que é mantida
por um fluxo intenso de intercâmbio de informações. Assim, a comunicação pública
exerce função singular no campo da democracia, meio pelo qual divulga e assegura o
conhecimento das ações da administração pública (MATOS, 2006, p. 37).
Já a segunda é definida como instrumento de influência e convencimento do
público acerca dos aspectos específicos de suas decisões direcionadas aos temas
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
340
políticos, por intermédio de estratégias de marketing e com objetivos alcançáveis a
curto prazo (MATOS, 1998).
Nos últimos anos, acompanhando a evolução tecnológica pela qual a
administração pública passa, a comunicação pública em nosso país tornou-se um
mecanismo de comunicação entre o governo e a sociedade, dando repercussão às
mudanças políticas, sociais e econômicas do país (MATOS, 2006, p. 29). Exemplo
disso, é a constante atividade das instituições públicas em redes sociais, informando,
por meio de uma linguagem leve e descontraída, os fatos, as mudanças e campanhas
instituições desses órgãos.
Em outros casos de comunicação para o desenvolvimento, há a Lei Nº 12.527, de
18 de novembro de 2011, intitulada de Acesso à Informação e a Lei Nº 12.741, de 08 de
dezembro de 2012, batizada de Lei da Transparência Fiscal, que ratificam o papel da
comunicação pública e dão as condições fundamentais para o exercício da democracia
e, consequentemente, do desenvolvimento da sociedade, haja vista oportunizarem a
participação de diversos atores da sociedade, na elaboração, execução e fiscalização
das ações da administração pública, realizando, assim, a participação singular da
sociedade.
2.2 Assistência Técnica e Extensão Rural em Rondônia
As características da agricultura brasileira relacionam-se ao perfil da colonização
da América portuguesa quando a grande propriedade, a monocultura e o trabalho
escravo constituíram a base para a produção da riqueza. As transformações históricas
que alteraram a sociedade brasileira não ensejaram a redução do predomínio da
concentração da posse da terra e a relação estrutural da produção com o mercado
externo. Desde o século XVI a exploração do território configurou-se para atender
a demanda metropolitana, dinâmica mantida com a emancipação em relação à
Portugal, quando o país se manteve integrado ao circuito econômico internacional
como fornecedor de produtos primários, com destaque para o café.
Neste cenário, o desenvolvimento da agricultura no Brasil foi permeado por
conflitos relacionados ao acesso e à posse da terra decorrentes do modelo produtivo,
com o desafio de incrementar a produtividade à medida em que ocorria a integração
à economia mundial e a expansão para as regiões com ocupação escassa, como
o Centro-Oeste e o Norte. Ainda que seja possível identificar, ao longo da história
nacional, conflitos associados à luta por acesso e posse da terra, a explicitação política
dessa situação ocorreu entre as décadas de 1950 e 1960, quando emergiram as Ligas
Camponesas, com a proposta de organizar os trabalhadores quanto a reivindicação
da posse da terra (MARTINS, 1984).
O golpe militar e civil de 1964 teve entre suas pretensões se contrapor à
reforma agrária almejada pelas Ligas Camponesas, daí a perseguição às suas
principais lideranças e a efetivação de um modelo de colonização das regiões com
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
341
reduzida densidade demográfica. Embora denominada como reforma agrária, a ação
dos governos do período situado entre 1964 e 1985 relacionava-se à política de
segurança nacional mediante a elevação da presença nacional em áreas de fronteira,
e simultaneamente, esvaziava os conflitos explicitados com as Ligas Camponesas ao
direcionar os trabalhadores sem-terra para as regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil
(MARTINS, 1984).
Nota-se que, no período da Ditadura Militar, implementaram-se incentivos para
associar a atividade agrícola e pecuária ao capital industrial, o que constitui as bases
do setor denominado como agronegócio. Entre as consequências desse tipo de
política pública para a agricultura é possível identificar a elevação da concentração
da propriedade de terra, associada à intenção de modernizar a agricultura mediante o
fortalecimento dos complexos agroindustriais (IANNI, 1986).
Entre as consequências das ações da Ditadura Militar para agricultura está o
aprofundamento dos conflitos no campo, pois as políticas para o setor no período
não enfrentaram a concentração da propriedade da terra, com consequências para
os conflitos presentes nas cidades do país mediante o êxodo rural e o crescimento
desordenado nas principais áreas urbanas brasileiras. Esse processo contou inclusive
com a formação de um contingente de trabalhadores temporários residentes nas áreas
urbanas, mas ocupados nas atividades agrícolas, os boias-frias (FERNANDES, 2005).
O desenvolvimento rural brasileiro tem como desafio enfrentar a histórica
concentração da propriedade da terra relacionada à preferência consolidada para
a exportação da produção, o que implica em condicionar a estrutura produtiva à
demanda internacional. Neste cenário, a agricultura familiar e os pequenos produtores
constituem alternativa para a produção voltada para o abastecimento do mercado
interno. Para cumprir essa função, faz-se necessária a articulação de políticas públicas
para o aperfeiçoamento da produção e dos mecanismos de inserção no mercado. Daí
a necessidade de políticas públicas voltadas para o campo para atender os produtores
com perfil distinto daqueles com acesso à capital e recursos técnicos relacionados
aos grandes empreendimentos, historicamente favorecidos por suas vantagens
econômicas e políticas, notadamente o acesso à terra e financiamento da produção e
respectiva circulação.
A Assistência Técnica e Extensão Rural surgiu da necessidade de produção de
matérias-primas em maiores escalas, a partir da Revolução Industrial que concentrou
maior contingente humano nas cidades e demandou mais insumos para a indústria de
alimentos. Nesse cenário, surgiram, na Europa, pessoas que visitavam as fazendas
para disseminar conhecimentos sobre as práticas agrícolas, iniciando a assistência
técnica e a extensão rural, instruindo e assistindo os agricultores (FREITAS, 1990).
Em 08 de junho de 1990 foi fundada a Associação Brasileira das Entidades de
Assistência Técnica e Extensão Rural (ASBRAER), a partir da reorganização das
instituições de extensão rural brasileiras, defendendo os interesses da área com a
força de uma instituição governamental constituída e sustentada por seus seguimentos
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
342
interessados (ASBRAER, 2011).
Após esse período, a assistência e a extensão tornou-se pauta forte na agenda do
desenvolvimento. O sistema de extensão agrícola é um dos mais importantes veículos
para a disseminação de conhecimentos e tecnologias, e, portanto, possui claramente
um papel importante a desempenhar no setor agrícola e seu desenvolvimento
(UMALI, 1997, KIDD et al., 2000, ALLAHYARI, 2009). As mudanças mundiais que
acarretaram modificações no ambiente rural obrigando uma profissionalização do setor
impulsionaram uma visão mais atualizada, contemplada no documento que fundou as
Políticas Nacionais de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER).
Nesse sentido, o Governo Federal, compreendendo a importância da extensão
rural e buscando a retomada da credibilidade ao produtor, criou o Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA), em 2003, órgão responsável pelas atividades de
Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), objetivando a mudança das práticas de
extensão rural convencional, para a adoção de metodologias que colaborem para a
democratização da relação entre profissionais e produtores.
No estado de Rondônia, a Empresa Estadual de Assistência Técnica e Extensão
Rural do Estado de Rondônia (EMATER-RO), com autonomia jurídica, administrativa,
orçamentária e financeira, integrante da Administração Indireta do Estado de Rondônia,
transformada por meio da Emenda Constitucional 084, datada de 24 de abril de 2013
e regularizada por meio da Lei 3.138, de 05 de julho de 2013 e pela Lei 3.308, de 19
de dezembro de 2013, é instituição vinculada à Secretaria de Estado de Agricultura,
Pecuária, Desenvolvimento e Regularização Fundiária de Rondônia.
No que se refere à natureza jurídica, a EMATER-RO é uma empresa pública, de
prestação de serviços públicos, dotada de personalidade jurídica de direito privado,
com patrimônio próprio e autonomia jurídica, administrativa, orçamentária e financeira,
vinculada à Secretaria de Estado da Agricultura, Pecuária e Regularização Fundiária
(SEAGRI) ou a quem suceder como dispõe as Leis 3.138 de 05 de julho de 2013 e Lei
3.308, de 19 de dezembro de 2013. É administrada pelo Conselho de Administração e
pela Diretoria Executiva.
A EMATER-RO tem como papel na sociedade, a prestação de serviços de ATER
com excelência, em que as ações são desenvolvidas de modo educativo, participativo,
para e com os agricultores familiares (atores do desenvolvimento) e suas organizações,
com uma visão holística da propriedade; buscando a integração e complementaridade
dos fatores de produção, valendo-se, para isso, das novas metodologias, técnicas e
ferramentas participativas, objetivando o desenvolvimento humano, social e econômico
sustentável (EMATER, 2018).
Criado em 31 de agosto de 1971, com o nome de Associação de Crédito e
Assistência Rural do Território Federal de Rondônia (ACAR-RO), integrante da
Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural (ABCAR), com personalidade
jurídica de sociedade civil, com fins educativos e sem finalidade lucrativa, surgindo
para a promoção da extensão rural no Território Federal de Rondônia.
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
343
Nesse mesmo ano, 240 famílias de agricultores de produtos extrativistas, como
borracha, castanha e ipecacuanha, de produtos agrícolas, como arroz, milho, feijão e
mandioca, produtores na área de avicultura, bovinocultura, produtos florestais entre
outros, foram atendidos, de acordo com o Site da EMATER (2018). Ainda com base
no sítio eletrônico, o primeiro produtor assistido pela EMATER Rondônia foi o Sr. José
Alves Pereira, em 1971, no município de Porto Velho, acerca da cultura da mandioca,
produto cultivado pelo agricultor. Atualmente, a EMATER-RO atua nos 52 municípios
e distritos rondonienses, por meio de 84 unidades operacionais conforme pode ser
visto na figura abaixo.
3 | METODOLOGIA
A presente pesquisa é configurada como de caráter exploratória e descritiva,
composta por análise e diagnóstico das estratégias de comunicação pública no âmbito
da EMATER-RO, com vistas ao desenvolvimento regional do estado de Rondônia. A
identificação da participação da comunicação pública no desenvolvimento do estado é
fundamental para ajustes nas práticas comunicativas e/ou criação de novas estratégias
de comunicação pública.
Para a pesquisa do problema, foi considerada a hipótese de que a comunicação
pública é instrumento ímpar no processo de desenvolvimento regional do estado
de Rondônia (RONDÔNIA, 2013). O método científico é a forma encontrada pela
sociedade para a legitimação de um conhecimento adquirido empiricamente, isto é,
quando um conhecimento é obtido pelo método científico, qualquer pesquisador que
repita a investigação, nas mesmas circunstâncias, obterá um resultado semelhante.
O processo de investigação teve base no pressuposto teórico e do referencial básico
que fundamentou os resultados encontrados durante a pesquisa. Foram realizadas
etapas como o levantamento de possíveis fontes teóricas (como artigos, dissertações,
teses, publicações em periódicos e revistas eletrônicas), bem como a leitura, reflexão
e elaboração do presente trabalho.
A pesquisa possibilitou a leitura de textos e análise bibliográfica que resultou em
uma retomada dos registros históricos da colonização do estado e ofereceu uma reflexão
sobre os ensinamentos dos teóricos e uma reflexão da prática da comunicação pública
no governo do estado de Rondônia. A metodologia é uma preocupação instrumental,
que representa o caminho para a ciência tratar a realidade teórica e prática e centra-se,
geralmente, no esforço de transmitir uma iniciação aos procedimentos lógicos voltados
para questões da causalidade, dos princípios formais da identidade, da dedução e da
indução, da objetividade, etc. (DEMO, 1987, p. 45).
A pesquisa tem como objetivo analisar as estratégias de comunicação pública
realizadas pela Empresa Estadual de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado
de Rondônia (EMATER-RO), para a verificação dos modos pelos quais a comunicação
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
344
pública colabora para o desenvolvimento das práticas agrícolas e, consequentemente,
das condições necessárias para o desenvolvimento da região. Foram analisados todos
os meios de comunicação da Instituição, tais como site eletrônico, portal institucional e
demais possibilidades de comunicação pública entre a EMATER-RO e seus assistidos.
4 | RESULTADOS E DISCUSSÕES
4.1 A Comunicação Pública na Assistência Técnica Rural em Rondônia
O ambiente democrático não é uma alternativa para o problema da representação,
mas sim o cenário que elucida as ações de comunicação necessárias entre os
representantes e representados (BOURDIN, 2001). Nesse sentido, os meios de
comunicação são mecanismos ímpares de aproximação entre esses sujeitos tão
importantes para o desenvolvimento da sociedade.
As tecnologias da atualidade possibilitam que o cidadão mostre ao mundo todo o
local em que vive, realizando a inserção de sua vivência ao contexto mundial (MÉGARD,
2002). A problemática que fomentou as discussões dessa pesquisa surgiu a partir
do questionamento: “em que, precisamente, o uso da comunicação contribui para a
mudança no desenvolvimento econômico e social?” É comum que sejam encontradas
respostas teorizando que a comunicação pública cria ou estabelece o clima para que
o desenvolvimento ocorra (SCHRAMM; LERNER, 1973, p. 31).
Por isso, não pode ser diminuída ao mero convencimento estratégico ou ao envio
constante de mensagens institucionais das esferas mais altas do governo, para os
cidadãos do meio rural. Assim, a comunicação pública deve ser pensada e desenvolvida
como o início de um processo de diálogo, negociação e tomada de decisões que
envolve Estado, Governo e Sociedade (MATOS, 2006, p. 31).
A criação dos serviços de extensão rural incentivou o desenvolvimento de uma área
de comunicação direcionada à formação e informação da população agrícola, conhecida
como comunicação rural (BRANDÃO, 2000, p. 13). O crescimento da extensão e o
êxito de seus resultados ocorreram devido às metodologias extensionistas, métodos
de comunicação executadas a partir das pesquisas e dos estudos produzidos no
âmbito do desenvolvimentismo. Esse modelo de comunicação adotado pela extensão
rural ficou popularmente conhecido como difusionismo e seu maior nome é Everett
M. Rogers, da Universidade de Stanford, que construiu um grupo de agricultores para
a descrição dos modos pelos quais a população rural lidava e reagia às mudanças
introduzidas em seu meio (BRANDÃO, 2000, p. 14).
Contrário a esse modelo difusionista de comunicação oral, surgem propostas
de uma comunicação mais participativa, que tem como pressuposto básico o fato
de considerar, em seus processos comunicacionais, o fato de o público rural possuir
características diferentes, de acordo com o grau de escolaridade, região do país
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
345
e etnia. No Brasil, esse modelo de comunicação teve como apoiadores Juan Dias
Bordenave, que pensava numa educação mais regionalizada e que considerasse
a diversidade cultural, de costumes e hábitos das populações, e o educador Paulo
Freire, que aplicou seus princípios da “pedagogia do oprimido” à questão extensionista
(DUARTE, 2000, p. 24).
A adoção dessa concepção de comunicação participativa oportuniza as iniciativas
para a contribuição da autoemancipação dos cidadãos envolvidos. Essa participação
se caracteriza como uma estratégia para a ampliação da cidadania, não sendo apenas
a mera difusão das mensagens ou facilitação do acesso à informação, mas sim a
criação das condições para a efetivação dos processos horizontais de comunicação,
partindo das comunidades das pequenas e distantes localidades, até as estruturas
municipais, estaduais e nacionais de comunicação (DUARTE, 2000, p. 81).
A relação existente entre comunicação pública e desenvolvimento regional está
descrita na história da humanidade. Historicamente, o homem percebeu o poder da
comunicação para todos os propósitos, a responsabilidade pela transmissão de uma
informação e os canais de comunicação, se apropriando desses para a execução de
seus propósitos (DUARTE, 2000, p. 108). No que se refere à comunicação pública na
assistência técnica no estado de Rondônia, estão analisados, a seguir, os canais de
comunicação da EMATER-RO junto aos seus produtores.
O site eletrônico da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado
de Rondônia, a EMATER – RO, foi criado em 2010, podendo ser acessado por meio
do endereço eletrônico: http://www.emater.ro.gov.br/ematerro/.
Figura 02 – Site da EMATER - RO
Fonte: Site oficial.
O site oficial da EMATER - RO possui abas de conteúdo com informações sobre
a história, a constituição e a estrutura da instituição. Há outras abas que mostram
informações sobre os projetos prioritários, os relatórios anuais, os serviços prestados
e o campo da comunicação institucional desenvolvida aos assistidos.
Na aba ‘Comunicação’ há quatro seções que tratam sobre a comunicação
da instituição: 1) Programa de Rádio; 2) TV Emater; 3) Publicações e 4) Notícias
Anteriores. O programa de rádio ‘EMATER e o Campo’ é uma produção da Assessoria
de Comunicação da EMATER – RO e está no ar há 17 anos, sendo transmitido
semanalmente, às 06 horas da manhã pela Rádio Caiari 1430 AM. Com duração
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
346
de 01 hora, esse programa tem caráter instrutivo e dissemina noticias relacionadas
à agricultura e ao âmbito rural, com execução de músicas sertanejas, participação
de autoridades e produtores da região. Há ainda, blocos com pesquisa semanal de
preços, previsão do tempo e notícias do campo. O programa EMATER e o Campo fica
disponível no site oficial da EMATER, sendo possível ouvir edições atuais e anteriores.
Figura 03 – Programa de Rádio EMATER e o Campo.
Fonte: Site oficial.
A segunda seção, denominada TV EMATER, consiste no Canal de Vídeos no
serviço de vídeos YouTube disponível desde 10 de fevereiro de 2015, em que estão
hospedados vídeos de divulgação produzidos pela Assessoria de Comunicação da
Secretaria de Agricultura (SEAGRI) acerca das ações desenvolvidas pela EMATER,
como pode ser visto a seguir.
Figura 04 – TV EMATER.
Fonte: Disponível em https://www.youtube.com/channel/UCL1qyY_nNxGVemDvwEPs2jA.
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
347
As seções 3) Publicações e 4) Notícias, trazem, como dito, publicações e notícias
sobre as temáticas abordadas pela EMATER, visando a informar os seus assistidos.
No cenário comunicacional da atualidade, as redes sociais e os instrumentos digitais,
se configuram como mecanismos de incentivo à comunicação pública, pois ampliam a
eficiência e a eficácia dos serviços de informação, permitindo o acesso às informações
até então mais lentas na divulgação e estabelecendo um novo modo de comunicação
com os cidadãos (SCHRAMM, 1970).
Nesse sentido, a EMATER – Rondônia também possui redes sociais, como a
exemplo da página na rede social Facebook (facebook.com/emater.ro.oficial), em
que também são publicadas notícias, vídeos e publicações com relevância para a
população do campo.
Cabe tecer considerações sobre a questão das condições de recepção do
conteúdo no âmbito da comunicação rural. Segundo a pesquisa TIC domicílios 2017,
conduzida pelo Comitê Gestor de Internet no Brasil (GGI), há uma discrepância no
percentual de internautas entre as áreas geográficas do país, pois 95% dos usuários de
Internet residem em regiões urbanas, enquanto apenas 5% estão situados em zonas
rurais (CGI, 2017). Apesar de a comunicação pública ter como premissa atender a
todos os segmentos da sociedade, e não apenas a maiorias (nas concepções tanto
quantitativa quanto qualitativa do termo), faz-se necessário fazer um contraponto a
tal discrepância suportado pelas considerações de Veiga (2007). O autor afirma que
“o entendimento do processo de urbanização do Brasil é atrapalhado por uma regra
que é única no mundo. O país considera urbana toda sede de município (cidade)
e de distrito (vila), sejam quais forem suas características estruturais ou funcionais”
(VEIGA, 2007, p. 6). Tal informação permite inferir que entre os 95% dos internautas
que habitam em ambiente oficialmente categorizado como urbano, grande parcela
deve morar em pequenos municípios cuja economia e estilo de vida se aproximam
mais das características da ruralidade. Tal leitura permite inferir que há um alcance
significativo do conteúdo da comunicação rural por meio das mídias digitais.
5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após os debates e as reflexões aqui realizadas, é possível concluir, por ora, que
a comunicação pública é um campo rico e cheio de oportunidades para a promoção do
desenvolvimento regional do estado. Os canais de comunicação pública da Empresa
de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Rondônia, a EMATER – RO
são instrumentos para a efetivação da comunicação entre o público do meio rural e os
governantes, seja por meio do site, das redes sociais, da TV EMATER e até mesmo
do programa de rádio EMATER e o Campo.
Apesar da existência desses canais de comunicação, foi possível analisar que tais
informações disponíveis nesses canais de comunicação têm caráter prioritariamente
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
348
informativo, em que o Governo informa ao agricultor, sem a existência de um feedback
do agricultor por meio de ferramentas de comunicação mão dupla em ambiente digital,
caracterizando uma comunicação de caráter prioritariamente difusionista, apesar do
potencial dos meios. É possível que as interações ocorram por meio de outros canais
formais de comunicação da instituição que não foram foco deste estudo.
A comunicação pública insere a centralidade dos processos de comunicação no
cidadão, não apenas pela garantia do direito constitucional à informação, mas também
pelo direito ao diálogo, do respeito às características e necessidades, de estímulo à
participação ativa, racional e responsável.
Dessa forma, em uma perspectiva participativa, a comunicação pública é
realizada por profissionais e sujeitos participantes, que se comunicam, de igual para
igual, sem que alguém transmita o conhecimento a outro, mas sim, que possam
compartilhar conhecimentos técnicos e práticos, para o alcance de produções fortes e
rentáveis. Nesse sentido, a identificação da participação da comunicação pública no
desenvolvimento regional é fundamental para os ajustes das práticas comunicativas e/
ou criação de novas estratégias de comunicação pública.
Por ora, é possível concluir que os canais de comunicação existem e são
constantemente utilizados pela EMATER para informar a seus assistidos acerca de
temas do interesse. Mas, apesar da existência desses caminhos de comunicação,
essa é realizada somente com base numa comunicação difusionista no âmbito das
mídias analisadas, em que o estado, por meio da EMATER é o difusor de informações
e instruções.
Conclui-se que há potencialidade para a adoção de uma comunicação participativa
fazendo uso das mídias digitais, dadas suas características que favorecem instrumentos
de interação, em que os agricultores, produtores e demais sujeitos envolvidos nesses
processos sejam ouvidos e tratados como fontes de informações práticas por meio
das mídias digitais. Dessa forma, serão exploradas as condicionantes para que todos
os agentes envolvidos colaborem igualmente para a construção de uma comunicação
pública que contribua para o desenvolvimento regional do Estado de Rondônia.
REFERÊNCIAS
ASBRAER. Associação Brasileira das Entidades de Assistência Técnica e Extensão Rural.
Disponível em: <http://www.asbraer.org.br>. Acesso em: 05 jan. 2018.
BOURDIN, A. A questão local. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
BRANDÃO, E. P. Conceito de comunicação pública. In: DUARTE, Jorge (Org). Comunicação
Pública: Estado, mercado, sociedade e interesse público. São Paulo: Atlas, 2000. p. 1-33.
BRANDÃO, H. P.; GUIMARÃES, T. de A. Gestão de competências e gestão de desempenho. In:
WOOD JR. (Org.). Gestão Empresarial – o fator humano. São Paulo: Atlas, 2000.
BRASIL. Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
349
Reforma Agrária – PNATER. Lei n°12.188, de 11 de janeiro de 2010.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 12.188, de 11 de janeiro de 2010. Institui a Política
Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma
Agrária - PNATER e o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na
Agricultura Familiar e na Reforma Agrária - PRONATER, altera a Lei nº 8.666, de 21 de junho
de 1993, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2010/Lei/L12188.htm>. Acesso em 12 jan. de 2018.
BUCCI, E. TV Brasil: pública, estatal ou governamental? Folha de São Paulo. São Paulo, 2 set. 2012,
p. 2.
CARNIELLO, M. F. ; SANTOS, M. J. dos; GALVÃO JÚNIOR, L. da C.; OLIVEIRA, E. A. Q. de A..
Comunicação para o desenvolvimento: considerações para uma construção de interfaces temáticas.
Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional G&DR, v. 12, n. 4 (número especial),
p. 3-30, dez/2016, Taubaté, SP, Brasil. Disponível em: < http://www.rbgdr.net/revista/index.php/rbgdr/
article/view/2601/553> Acesso em: 18 nov. 2018.
COMITÊ GESTOR DE INTERNET NO BRASIL (CGI). Pesquisa sobre o uso das tecnologias de
informação e comunicação nos domicílios brasileiros [livro eletrônico]: TIC domicílios 2017.
Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR - São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil,
2018. Disponível em: < https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/2/tic_dom_2017_livro_eletronico.
pdf> Acesso em: 18 nov. 2018.
DEMO, P. Introdução à metodologia científica. São Paulo: Atlas, 1987.
DUARTE, J. Instrumentos de Comunicação Pública. In: _____ (Org). Comunicação Pública: Estado,
mercado, sociedade e interesse público. São Paulo: Atlas, 2007. p. 59-71.
DUARTE, J. Comunicação Pública: Estado, mercado, sociedade e interesse público. Editora
Atlas SA, 2000.
FERNANDES, B. M. Movimentos socioterritoriais e movimentos socioespaciais: contribuição teórica
para uma leitura geográfica dos movimentos sociais. Revista Nera, Presidente Prudente: Unesp, ano
8, n. 6, p. 14 – 34, jan./jun. 2005.
FREITAS, M. L. Conceito de extensão rural e perfil do extensionista para o estado do Rio
Grande do Norte – um estudo délfico. 1990. 164 f. Dissertação (Mestrado). CPGER. Universidade
Federal de Santa Maria. Santa Maria, 1990.
IANNI, O. Ditadura e Agricultura. O desenvolvimento do capitalismo na Amazônia: 1964-1978. 2. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
INTERVOZES. Direito Humano à Comunicação. Disponível em: <http://intervozes.org.br/copy_of_
destaque-4/>. Acesso em: 20 jan.2018.
KUNSCH, W. L. Comunicação social: teoria e pesquisa trinta anos de uma obra pioneira.
Comunicação & Sociedade. V. 22, n. 34, 2000. Disponível em: < https://www.metodista.br/revistas/
revistas-ims/index.php/CSO/article/viewFile/4325/3983> Acesso em: 18 nov. 2018.
MARTINS, J. S. A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984.
MATOS, H. Comunicação pública, democracia e cidadania: o caso do Legislativo. I Seminário de
Comunicação Legislativa do Senado Federal, 1998. Disponível em: . Acesso em: 05 ago. 2017.
MATOS, H. A Comunicação Pública no Brasil e na França: desafios conceituais. In: CONGRESSO
BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 32. Anais... Curitiba: Intercom, 2006. Disponível
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
350
em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2009/resumos/R43060-1.pdf>. Acesso em: 22 jan.
2018.
MÉGARD, D. Communication publique, médias et démocratie. Pouvoirs Locaux – les cahiers de la
décentralisation, vol.1, nº52, p.40-44, 2002. Paris.
SCHRAMM, W. Comunicação de massa e desenvolvimento; o papel da informação nos países
em crescimento. São Paulo: Bloch, 1970.
SCHRAMM, W.; LERNER, D. Comunicação Pública e mudança nos países em desenvolvimento.
Comunicação e mudança nos países em desenvolvimento. São Paulo: Melhoramentos, 1973.
UMALI, D.D, Public and private agricultural extension: partners or rivals?, World Bank Research
Observer, v. 12, n. 2, p. 203-24, 1997. Available at: http://wbro.oxfordjournals.org/cgi/content/
abstract/12/2/203. 1997. Acesso em: 19 jan. 2018.
VEIGA, J. E. da. Mudanças nas relações entre espaços rurais e urbanos. 2007. Disponível em:
< http://www.zeeli.pro.br/wp-content/uploads/2012/06/Mudancas_nas_relacoes_entre_espacos.pdf>
Acesso em: 19 jan. 2018.
Ciências da Comunicação
Capítulo 28
351
SOBRE A ORGANIZADORA
VANESSA CRISTINA DE ABREU TORRES HRENECHEN Graduada em Comunicação
Social/Jornalismo (UEPG); mestre em Crítica de Mídia (UEPG). Tem 10 anos de experiência
em assessoria de imprensa. Atualmente é proprietária de agência de publicidade que presta
serviços na área de marketing e comunicação empresarial.
Ciências da Comunicação
Sobre a organizadora
352