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Vanessa Cristina de Abreu Torres Hrenechen CAPÍTULO (Organizadora) RESERVADO PARA TITULO Ciências da Comunicação Atena Editora 2019 Ciências da Comunicação Capítulo 2 2019 by Atena Editora Copyright da Atena Editora Editora Chefe: Profª Drª Antonella Carvalho de Oliveira Diagramação e Edição de Arte: Natália Sandrini e Lorena Prestes Revisão: Os autores Conselho Editorial Prof. Dr. Alan Mario Zuffo – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Prof. Dr. Álvaro Augusto de Borba Barreto – Universidade Federal de Pelotas Prof. Dr. Antonio Carlos Frasson – Universidade Tecnológica Federal do Paraná Prof. Dr. Antonio Isidro-Filho – Universidade de Brasília Profª Drª Cristina Gaio – Universidade de Lisboa Prof. Dr. Constantino Ribeiro de Oliveira Junior – Universidade Estadual de Ponta Grossa Profª Drª Daiane Garabeli Trojan – Universidade Norte do Paraná Prof. Dr. Darllan Collins da Cunha e Silva – Universidade Estadual Paulista Profª Drª Deusilene Souza Vieira Dall’Acqua – Universidade Federal de Rondônia Prof. Dr. Eloi Rufato Junior – Universidade Tecnológica Federal do Paraná Prof. Dr. Fábio Steiner – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul Prof. Dr. Gianfábio Pimentel Franco – Universidade Federal de Santa Maria Prof. Dr. Gilmei Fleck – Universidade Estadual do Oeste do Paraná Profª Drª Girlene Santos de Souza – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Profª Drª Ivone Goulart Lopes – Istituto Internazionele delle Figlie de Maria Ausiliatrice Profª Drª Juliane Sant’Ana Bento – Universidade Federal do Rio Grande do Sul Prof. Dr. Julio Candido de Meirelles Junior – Universidade Federal Fluminense Prof. Dr. Jorge González Aguilera – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Profª Drª Lina Maria Gonçalves – Universidade Federal do Tocantins Profª Drª Natiéli Piovesan – Instituto Federal do Rio Grande do Norte Profª Drª Paola Andressa Scortegagna – Universidade Estadual de Ponta Grossa Profª Drª Raissa Rachel Salustriano da Silva Matos – Universidade Federal do Maranhão Prof. Dr. Ronilson Freitas de Souza – Universidade do Estado do Pará Prof. Dr. Takeshy Tachizawa – Faculdade de Campo Limpo Paulista Prof. Dr. Urandi João Rodrigues Junior – Universidade Federal do Oeste do Pará Prof. Dr. Valdemar Antonio Paffaro Junior – Universidade Federal de Alfenas Profª Drª Vanessa Bordin Viera – Universidade Federal de Campina Grande Profª Drª Vanessa Lima Gonçalves – Universidade Estadual de Ponta Grossa Prof. Dr. Willian Douglas Guilherme – Universidade Federal do Tocantins C569 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG) Ciências da comunicação [recurso eletrônico] / Organizadora Vanessa Cristina de Abreu Torres Hrenechen. – Ponta Grossa (PR): Atena Editora, 2019. – (Ciências da Comunicação; v. 1) Formato: PDF Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-7247-204-3 DOI 10.22533/at.ed.043192503 1. Comunicação – Aspectos políticos. 2. Comunicação de massa. 3. Internet. 4. Jornalismo. I. Hrenechen, Vanessa Cristina de Abreu Torres. II. Série. CDD 302.2 Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422 O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correção e confiabilidade são de responsabilidade exclusiva dos autores. 2019 Permitido o download da obra e o compartilhamento desde que sejam atribuídos créditos aos autores, mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais. www.atenaeditora.com.br APRESENTAÇÃO O primeiro volume da obra “Ciências da Comunicação” é composto por 28 artigos que aproximam as reflexões teóricas da prática cotidiana profissional e trazem importantes contribuições para a área da comunicação. Dividido em três núcleos temáticos, o livro reúne aportes teóricos sobre os movimentos sociais e ações coletivas e apresenta pesquisas referentes à democratização da comunicação, ao papel do jornalismo alternativo na sociedade e às formas de financiamento da imprensa baseadas em novos modelos de negócio. A obra também traz algumas análises de coberturas jornalísticas, uma pesquisa sobre o interagendamento e contra-agendamento midiático de acordo com os conceitos de Maxell McCombs e Luiz Martins da Silva e reforça a importância da crítica para o jornalismo. A partir do segundo núcleo temático, o leitor encontrará pesquisas sobre o posicionamento da mulher na sociedade e a sua imagem na mídia. As pesquisas discutem a diversidade na perspectiva do gênero, a formação de estereótipos na comunicação audiovisual, os desafios enfrentados pelos imigrantes e a representação de diferentes culturas pelos meios de comunicação. Por fim, o último núcleo temático reúne pesquisas referentes à comunicação organizacional, às estratégias voltadas aos diferentes públicos e às construções discursivas realizadas pelas organizações. Vanessa Cristina de Abreu Torres Hrenechen SUMÁRIO CAPÍTULO 1 ................................................................................................................ 1 MOVIMENTOS SOCIAIS E DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE NO CASO BRASILEIRO Carlos Henrique Demarchi DOI 10.22533/at.ed.0431925031 CAPÍTULO 2 .............................................................................................................. 12 “O JORNAL BURGUÊS CONSEGUE FAZER-SE PAGAR PELA PRÓPRIA CLASSE TRABALHADORA QUE ELE COMBATE SEMPRE”: FINANCIAMENTO E INDEPENDÊNCIA DE CLASSE NO JORNALISMO SEGUNDO LÊNIN E GRAMSCI Willian Casagrande Fusaro Manoel Dourado Bastos DOI 10.22533/at.ed.0431925032 CAPÍTULO 3 .............................................................................................................. 21 DA IMPRENSA SINDICAL PARA A IMPRENSA DE MASSA: INTERAGENDAMENTO E CONTRAAGENDAMENTO Alexsandro Teixeira Ribeiro DOI 10.22533/at.ed.0431925033 CAPÍTULO 4 .............................................................................................................. 33 MÍDIA NINJA: PROCESSO DE PRODUÇÃO DE INFORMAÇÕES AUDIOVISUAIS, POR MEIO DE DISPOSITIVOS MÓVEIS, SOBRE O CASO MARIELLE FRANCO Valéria Noronha de Oliveira DOI 10.22533/at.ed.0431925034 CAPÍTULO 5 .............................................................................................................. 44 MANIFESTAÇÕES EM MEGAEVENTOS: APONTAMENTOS SOBRE A COBERTURA DO SITE G1 E MÍDIA NINJA DA COPA DO MUNDO 2014 Milton Julio Faccin Marcelo Vinícius Masseno Viana DOI 10.22533/at.ed.0431925035 CAPÍTULO 6 .............................................................................................................. 55 ENCHENTES DE 2017 NO RIO GRANDE DO SUL PELOS PORTAIS DE NOTÍCIAS DE TENENTE PORTELA Lidia Paula Trentin Mônica Cristine Fort DOI 10.22533/at.ed.0431925036 CAPÍTULO 7 .............................................................................................................. 67 O MONTE EVEREST EM “NO AR RAREFEITO” – UMA ANÁLISE NA PERSPECTIVA DIALÓGICA Taíssa Maria Tavares Guerreiro Deivid Santos Vieira Isabelle Caroline Rodrigues de Sá Kethleen Guerreiro Rebêlo Liam Cavalcante Macedo Marcos Felipe Rodrigues de Souza DOI 10.22533/at.ed.0431925037 CAPÍTULO 8 .............................................................................................................. 77 “DANÇANDO SOBRE ARQUITETURA” - DESAFIOS ATUAIS DA CRÍTICA DE MÚSICA Rafael Machado Saldanha DOI 10.22533/at.ed.0431925038 CAPÍTULO 9 .............................................................................................................. 89 ALBERTO DINES E O PAPEL DA CRÍTICA JORNALÍSTICA NA IMPRENSA BRASILEIRA Diana de Azeredo DOI 10.22533/at.ed.0431925039 CAPÍTULO 10 .......................................................................................................... 103 DILMA ROUSSEFF: O PAPEL DA MULHER NA POLÍTICA BRASILEIRA Tylcéia Tyza Ribeiro Xavier Silvia Ramos Bezerra DOI 10.22533/at.ed.04319250310 CAPÍTULO 11 .......................................................................................................... 117 JORNALISMO, CULTURA E GÊNERO: UMA ANÁLISE DAS MULHERES NAS CAPAS DA ROLLING STONE BRASIL Luiz Henrique Zart DOI 10.22533/at.ed.04319250311 CAPÍTULO 12 .......................................................................................................... 131 A PRESENÇA FEMININA NO JORNALISMO ESPORTIVO DA TELEVISÃO ABERTA: UMA ANÁLISE DO PROGRAMA “JOGO ABERTO”, DA BANDEIRANTES Érika Alfaro de Araújo Mauro de Souza Ventura DOI 10.22533/at.ed.04319250312 CAPÍTULO 13 .......................................................................................................... 146 DIVERSINE, UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA FÍLMICA PARA PENSAR A DIVERSIDADE NA PERSPECTIVA DO GÊNERO Hugo Bueno Badaró Thaumaturgo Ferreira de Souza Maria Lúcia Tinoco Pacheco DOI 10.22533/at.ed.04319250313 CAPÍTULO 14 .......................................................................................................... 155 COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL E FORMAÇÃO DE ESTEREÓTIPOS: HOMOSSEXUALIDADE NA TELEVISÃO BRASILEIRA Pablo de Oliveira Lopes DOI 10.22533/at.ed.04319250314 CAPÍTULO 15 .......................................................................................................... 165 O HOMEM TRANS NA PUBLICIDADE: UMA ANÁLISE DO ANÚNCIO UNLIMITED COURAGE, DA MARCA NIKE Nicolau Jordan Girardi Adriana Stela Bassini Edral DOI 10.22533/at.ed.04319250315 CAPÍTULO 16 .......................................................................................................... 180 VIOLAÇÃO DE DIREITOS LGBTI+ NA CAMPANHA DA RÁDIO JOVEM PAN PARA O DIA INTERNACIONAL DE COMBATE À LGBTIFOBIA Adriano Quaresma da Costa Armando Leandro Ribeiro da Silva Esthefany Carolyne Silva da Cruz Karen Isabela Leite Alcântara Matheus Henrique Cardoso Luz Lorena Cruz Esteves Suzana de Cassia Serrão Magalhães DOI 10.22533/at.ed.04319250316 CAPÍTULO 17 .......................................................................................................... 192 EVIDÊNCIAS E SILÊNCIAMENTOS NOS DISCURSOS DE LÁGRIMAS CONTRA A POLÍTICA DE TOLERÂNCIA ZERO ANTI-IMIGRAÇÃO DOS USA Magali Simone de Oliveira DOI 10.22533/at.ed.04319250317 CAPÍTULO 18 .......................................................................................................... 208 O IMIGRANTE NO MEIO ACADÊMICO: ESTUDO DE CASO Benalva da Silva Vitorio DOI 10.22533/at.ed.04319250318 CAPÍTULO 19 .......................................................................................................... 222 UMA DISCUSSÃO SOBRE A DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL NA UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ Alcilaine de Macedo Alencar Carolina Fernandes da Silva Mandaji DOI 10.22533/at.ed.04319250319 CAPÍTULO 20 .......................................................................................................... 235 A CULTURA DO SOL NASCENTE NAS TERRAS CAPIXABAS Rafaela Daima Lima Danielly Veloso Schulthais Andressa Zoi Nathanailides DOI 10.22533/at.ed.04319250320 CAPÍTULO 21 .......................................................................................................... 245 A REPRESENTAÇÃO DOS ASIÁTICOS NA TV BRASILEIRA: APONTAMENTOS INICIAIS Krystal Urbano Maria Elizabeth Pinto de Melo DOI 10.22533/at.ed.04319250321 CAPÍTULO 22 .......................................................................................................... 260 CULTURA ORGANIZACIONAL PROPÍCIA ÀS POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO E RESPONSABILIDADE SOCIAL: POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA IDENTIFICAR OS TIPOS DE CULTURA ORGANIZACIONAL Maria José da Costa Oliveira DOI 10.22533/at.ed.04319250322 CAPÍTULO 23 .......................................................................................................... 272 COMO O OMBUDSMAN DE DADOS PODE REFORÇAR A MULTIDISCIPLINARIDADE NA COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL? Wallace Chermont Baldo DOI 10.22533/at.ed.04319250323 CAPÍTULO 24 .......................................................................................................... 284 COMUNICAÇÃO MERCADOLÓGICA EM CLUBES DE FUTEBOL DO BRASIL E DA AMÉRICA LATINA: RELACIONAMENTO COM OS PÚBLICOS-ALVO Karla Caldas Ehrenberg Ary José Rocco Junior Carlos Henrique de Souza Padeiro DOI 10.22533/at.ed.04319250324 CAPÍTULO 25 .......................................................................................................... 297 OS PÚBLICOS PROJETADOS: CONSTRUÇÕES EXPERIÊNCIAS PELAS ORGANIZAÇÕES DISCURSIVAS NA PROPOSIÇÃO DE Márcio Simeone Henriques DOI 10.22533/at.ed.04319250325 CAPÍTULO 26 .......................................................................................................... 308 ACESSIBILIDADE E COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL: PLANEJAMENTO E PÚBLICOS EM UMA CAMPANHA INCLUSIVA PARA PESSOAS CEGAS E COM BAIXA VISÃO Victor Said dos Santos Sousa Leonardo Santa Inês Cunha Lidiane Santos de Lima Pinheiro DOI 10.22533/at.ed.04319250326 CAPÍTULO 27 .......................................................................................................... 322 COMUNICAÇÃO COTIDIANA DOS VALORES DE RESPONSABILIDADE SOCIAL: REPRODUZINDO CULTURA NAS REDES SOCIAIS (OU NÃO) Maria Augusta de Castro Seixas Emmanuel Paiva de Andrade DOI 10.22533/at.ed.04319250327 CAPÍTULO 28 .......................................................................................................... 338 A COMUNICAÇÃO PÚBLICA NA ASSISTÊNCIA TÉCNICA RURAL PARA O DESENVOLVIMENTO REGIONAL DO ESTADO DE RONDÔNIA Edna Mendes dos Reis Okabayashi Moacir José dos Santos Monica Franchi Carniello DOI 10.22533/at.ed.04319250328 SOBRE A ORGANIZADORA................................................................................... 352 CAPÍTULO 1 MOVIMENTOS SOCIAIS E DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE NO CASO BRASILEIRO Carlos Henrique Demarchi UNESP – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação Bauru – São Paulo processes. KEYWORDS: democratization of communication; social movements; citizenship; social participation; media. RESUMO: O presente artigo discute, com base nos aportes teóricos acerca dos movimentos sociais, a contribuição de ações coletivas no debate sobre a democratização da comunicação. A partir de revisão bibliográfica, aponta-se a atuação dessas organizações na proposição de alternativas para o setor midiático no caso brasileiro. Conclui-se que as ações pela democratização fomentam a circulação de ideias em defesa da cidadania nos processos comunicacionais. PALAVRAS-CHAVE: democratização da comunicação; movimentos sociais; cidadania; participação social; mídia. 1 | INTRODUÇÃO ABSTRACT: This article discusses, based on theoretical approach about social movements, the contribution of collective actions in the debate on the democratization of communication. From the bibliographical review, it is pointed out how these organizations acted in suggesting alternatives to the Brazilian media sector. It is concluded that these actions towards democratization promoted the circulation of ideas verificada no segmento de radiodifusão. that stands up for citizenship in communication Ciências da Comunicação de Com um histórico sistema comercial comunicação predominante, o Brasil experimentou, mais especificamente após o processo de redemocratização em meados da década de 1980, o surgimento de iniciativas sociais voltadas para debater a democratização da mídia. Se anteriormente o tema ficava circunscrito a instituições acadêmicas, a discussão passou a ter maior abrangência na medida em que emergiram grupos sociais com a preocupação de buscar alternativas para limitar a concentração dos meios de comunicação, mais centralmente Ao longo desse período, tais movimentos sociais e organizações têm buscado, por meio de ações em busca do apoio governamental, defender os direitos coletivos e de cidadania, entre os quais o direito à comunicação. Nesta luta por mudanças na área, as pautas pela democratização da mídia incluem a defesa de mudanças na legislação, a criação de canais de interlocução com a sociedade civil nas decisões Capítulo 1 1 que envolvem o setor, o respeito aos direitos humanos na mídia, entre outras medidas. Na disputa por mais espaços democráticos e de participação, as organizações se deparam com os desafios de mudar uma concepção midiática na qual as ambições mercantis predominam sobre os interesses de cidadania. Nesse debate, outra dificuldade que se evidencia ocorre nas próprias relações com o poder público que, não raro, deixa de enfrentar os conflitos expressos pelos movimentos. Por meio de canais informais, institucionalizados ou não, os movimentos sociais estão adquirindo cada vez mais a capacidade de veicular opiniões diversas dos conteúdos apresentados nos meios tradicionais de comunicação. Diante deste cenário, o presente artigo discute, com base nos aportes teóricos sobre os movimentos sociais, a contribuição dessas ações coletivas para a democratização da comunicação. A base da pesquisa é bibliográfica. Na primeira parte, busca-se, por meio de breves apontamentos, apresentar os referenciais teóricos sobre os movimentos sociais. Em seguida, mostra-se como o tema da democratização da comunicação é definido e trabalhado nestas ações coletivas. Por fim, o texto relata o caso brasileiro do movimento pela democratização dos meios e sua contribuição para esse debate. 2 | ABORDAGENS TEÓRICAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS O contexto latino-americano é caracterizado pela heterogeneidade de movimentos sociais. Por conta das múltiplas ações, causas e lutas, surge um conjunto cada vez maior de definições para explicar o que seriam esses movimentos e quais práticas adotam na sociedade, distinguindo-os de outros atores sociais. Para Vizer (2007), os movimentos sociais representam uma forma específica e historicamente diferenciada de organização social, cuja origem remonta os fins do século XIX, como manifestação de setores sociais fundamentalmente urbanos que cobraram consciência de ser encontrados sujeitos em condições de vida não apenas injustas, mas também compartilhadas por um setor ou grupo social identificável e identificado. Em princípio, os movimentos sociais seriam uma forma de ação social que pretende justamente transformar as condições objetivas de seu ambiente. Assim, no entendimento do autor, os movimentos sociais atuais devem ser analisados “tanto como formas de ações coletivas construídas em função das condições econômicas, políticas e sociais críticas deste novo milênio quanto à necessidade de se compreender a emergência de novas e diferentes formas de organização, surgidas das atuais condições de existência social e da vida cotidiana” (VIZER, 2007 p. 46). Seguindo esta definição, o autor pontua quais seriam as principais ações e características comumente associadas aos movimentos sociais: 1. Desenvolver (práticas e dispositivos instrumentais de ação); 2. Com o fim de transformar (as relações e as práticas de poder instituídas: por exemplo, no governo, o sistema legal, as formas de propriedade etc); 3. Por meio da mobilização (ações Ciências da Comunicação Capítulo 1 2 de resistência instituintes); 4. Apropriando-se conflitivamente (de tempos e espaços públicos); 5. Motivados para cultivar (vínculos, instituições de agrupamento e contenção); 6. Motivados e inspirados criativamente (o enorme universo da cultura, a comunicação e as formas simbólicas). (VIZER, 2007, p. 46) Conforme Vizer (2007), a articulação e a combinação das categorias descritas estruturam nos atores sociais a percepção, a crença e as ações sobre a realidade em diferentes ordens: “desde o mundo real, passando pelos processos simbólicos e comunicativos, até mobilizar os imaginários da vida social” (VIZER, 2007, p. 46). Segundo Gohn (2012), os elementos internos e externos dos movimentos sociais se conectam. Os primeiros representariam as demandas, reivindicações e repertórios de ações coletivas que geram e suas articulações. Por sua vez, os elementos externos abrangem o contexto sociopolítico e cultural em que os movimentos se inserem, bem como as relações externas estabelecidas pela militância com outros atores sociais e os opositores. “O conjunto das articulações nos dá o princípio articulatório que estrutura o movimento como um todo” (GOHN, 2012, p. 255). Outra abordagem sobre os movimentos sociais se faz presente na obra de Alain Touraine, autor que influenciou uma infinidade de estudiosos em torno do assunto, em especial na América Latina. “Toda ação coletiva supõe a existência de um ator, outros atores portadores de interesses diferentes dos seus e de um campo social onde se colocam suas relações” (TOURAINE, 1994, p. 284). Conforme esta definição, Touraine (1994, 1999) enfatiza a concepção de movimentos sociais como contestação da dominação social existente. Os atores do movimento seriam forças sociais tentando exercer certa influência sobre as decisões que serão impostas a uma coletividade. Exerceriam, portanto, o papel de grupos de interesse ou pressão: Um movimento social não é uma corrente de opinião, uma vez que questiona uma relação de poder que se inscreve muito concretamente nas instituições e organizações, mas ele é o alvo de orientações culturais através das relações de poder e das relações de desigualdade. (TOURAINE, 1999, p. 257-258) A ideia de movimentos sociais em Touraine (1994, 1999) também não se reduz à noção de conflito e de reivindicações. “É uma conduta coletiva orientada, não no sentido dos valores da organização social ou da participação em um sistema de decisão, mas no sentido do que está em jogo nos conflitos de classes” (TOURAINE, 1994, p. 294). Melucci (1989) aponta a necessidade de uma releitura dos movimentos sociais nas sociedades contemporâneas diante das mudanças sociais e do aparecimento de organizações coletivas com novas demandas e necessidades em áreas anteriormente intocadas pelos conflitos sociais. Neste sentido, em aproximação com o pensamento de Touraine, Melucci (1989) afirma que os movimentos sociais contestam as orientações culturais de dada época. A definição apresentada para o termo é a seguinte: Eu defino analiticamente um movimento social como uma forma de ação coletiva (a) baseada na solidariedade, (b) desenvolvendo um conflito, (c) rompendo os limites do sistema em que ocorre a ação. Estas dimensões permitem que os Ciências da Comunicação Capítulo 1 3 movimentos sociais sejam separados dos outros fenômenos coletivos (delinquência, reivindicações organizadas, comportamento agregado de massa) que são, com muita frequência, empiricamente associados com “movimentos” e “protesto”. O que nós costumeiramente chamamos de movimento social muitas vezes contém uma pluralidade destes elementos e devemos ser capazes de distingui-los se quisermos entender o resultado de uma dada ação coletiva. (MELUCCI, 1989, p. 57) Com base nesta concepção, o autor destaca ainda que os atores sociais dos movimentos sociais envolvidos nos conflitos têm como função revelar os projetos e anunciar para a sociedade a existência de um problema fundamental em uma determinada área (MELUCCI, 1989). Desta forma, os atores sociais detêm expressiva função simbólica, uma vez que não lutam meramente por bens materiais ou para ampliar a participação no sistema. Trata-se de uma luta por projetos simbólicos e culturais, por um significado e uma orientação diferentes da ação social. Dito de outra forma, os atores buscam mudar a vida das pessoas, levando a crer que a vida cotidiana pode mudar à medida que ocorrem as lutas por mudanças mais gerais na sociedade. Della Porta e Diani (2006) acrescentam que as estratégias específicas adotadas pelos movimentos sociais no curso de suas ações impactam na amplitude e na forma de mobilização. Assim, aspectos particulares, como a distância dos níveis de poder, a definição heterogênea dos objetivos e a instabilidade organizacional dos movimentos sociais dificultam o alcance dos objetivos pretendidos. Della Porta e Diani (2006) também enumeram a ideologia, os repertórios e a estrutura social dos movimentos como sendo os recursos materiais e culturais para a ação, variando de país para país. Para os autores, ainda que a criação dos movimentos sociais seja atrelada a uma demanda particular caracterizadora da identidade coletiva, “as ações raramente se resumem a uma pauta e objetivo reivindicados pelo grupo” (DELLA PORTA; DIANI, 2006, p. 21). Com isso, os movimentos seriam efetivos em trazer novas questões para o debate público, na medida em que evidenciam a insatisfação com as decisões tomadas em determinado campo. No Brasil, Gohn (2014) conceitua os movimentos sociais a partir de uma série de características comuns, a saber: Um movimento social é sempre expressão de uma ação coletiva e decorre de uma luta sociopolítica, econômica ou cultural. Usualmente ele tem os seguintes elementos constituintes: demandas que configuram sua identidade; adversários e aliados; bases, lideranças e assessorias – que se organizam em articuladores e articulações e formam redes de mobilizações -; práticas comunicativas diversas que vão da oralidade direta aos modernos recursos tecnológicos; projetos ou visões de mundo que dão suporte a suas demandas; e culturas próprias nas formas como sustentam e encaminham suas reivindicações. (GOHN, 2014, p. 14) Segundo a autora, os movimentos sociais, criados e desenvolvidos a partir de grupos da sociedade civil, têm nos direitos a fonte de inspiração para a construção de sua identidade (GOHN, 2014). Essa definição dialoga com Peruzzo (2009), para a qual “os movimentos sociais populares são articulações da sociedade civil constituídas por Ciências da Comunicação Capítulo 1 4 segmentos da população que se reconhecem como portadores de direitos, mas que ainda não são efetivados na prática” (p. 35). Outro aspecto destacado na obra de Gohn remete à definição dos movimentos sociais como “processos político-sociais”. Logo, “consideramos os movimentos sociais como expressões de poder da sociedade civil, e sua existência, independente do tipo de suas demandas, sempre se desenvolve num contexto de correlação de força social” (GOHN, 2012, p. 251). Deste modo, essas ações coletivas seriam efetivas em inserir as demandas verificadas nos campos sociais e culturais em uma esfera pública de luta política, buscando com isso obter maior igualdade de direitos e de cidadania. É o que ocorre no campo das comunicações no Brasil que, marcado pela concentração dos meios e pela necessidade de uma nova regulação para o setor, fomenta a luta pela democratização por parte dos movimentos sociais. 3 | A DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO EM PAUTA Pode-se afirmar que a temática da democratização da comunicação ganha espaço e visibilidade, em termos mundiais, no final da década de 1970, ao ter como ponto de partida os debates promovidos pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em torno dos desequilíbrios informativos entre os países centrais e em desenvolvimento. Tais debates internacionais, que propuseram uma Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação (Nomic), tiveram como desdobramentos a publicação do Relatório MacBride (Um mundo e muitas vozes) em 1980, resultante dos trabalhos de uma comissão internacional para o estudo dos problemas da comunicação, formada por investigadores de 16 países (REYES MATTA, 1984). O documento pôs em evidência a preocupação com a concentração dos meios de comunicação, indicando alternativas para superar as desigualdades de ordem social, cultural e econômica. A democratização da comunicação é tratada em um dos tópicos do informe – a recomendação 55 -, trazendo a seguinte indicação: (…) que todos os países adotem medidas para aumentar as fontes de informação que os cidadãos necessitam em suas vidas diárias. Deverá ser retomada uma análise aprofundada das leis e dos regulamentos existentes a fim de reduzir as limitações, as disposições de sigilo e outras restrições às práticas de informação. (UNESCO, 1993, p. 234-235, tradução nossa) Marques de Melo (2008), ao analisar as teses e os desdobramentos do relatório décadas mais tarde, salienta que a democratização da comunicação seria justificada pela existência de “falha das relações democráticas” na sociedade contemporânea, o que expressaria a distância entre os sistemas de comunicação e os anseios populares, e a necessidade de estabelecer relações democráticas diante das transformações no campo da comunicação. Ciências da Comunicação Capítulo 1 5 O relatório MacBride foi combatido pelos grandes veículos de comunicação. Mesmo após as recomendações da Unesco, a concentração da propriedade da mídia se agravou, dificultando a implementação de medidas regulatórias para a área em muitos países. Por outro lado, o saldo positivo do informe foi ter ampliado o debate sobre o tema no ambiente acadêmico e também em fóruns, coletivos e organizações da sociedade civil. Os movimentos sociais buscaram referências no relatório para nortear suas lutas em prol da defesa do direito à comunicação e de mecanismos para garantir uma comunicação mais democrática, participativa e cidadã. Para Mattelart (2009), a democratização da comunicação está intrinsecamente ligada à garantia do direito à comunicação. Afirma o autor: Desde o início, o direito à comunicação é apresentado como uma “idéia” e um “ideal”. O relatório da comissão MacBride, criada em 1977 pelo diretor-geral da Unesco, endossa e insiste no fato de que não há possibilidade de um direito à comunicação sem políticas públicas de comunicação e de cultura. Um está intimamente ligado à outra. Uma dá significado ao outro. Foi nessa perspectiva que levantou-se abertamente a questão da transnacionalização e da concentração da mídia e das indústrias culturais. A concentração é identificada como um dos obstáculos para a democratização da comunicação. (MATTELART, 2009, p. 38-39) Como forma de superar essa realidade, a comunicação alternativa – que inclui espaços diversos dos meios hegemônicos, como blogs, sites e redes sociais - também seria um caminho para democratizar a mídia, desde que o conjunto da sociedade fosse mobilizado para alcançar metas de interesse coletivo. Logo: Os novos atores sócio-políticos amplificaram suas perspectivas estratégicas. Eles não lutam somente pela legalização e sustentabilidade das mídias cidadãs (comunitárias, associativas, livres e independentes); eles também se tornaram uma força de pressão que visa modificar estruturalmente a organização de todo o sistema midiático e que busca legitimar a idéia de regulação reabilitando da idéia do público. Trata-se de, ao mesmo tempo, fortalecer um terceiro setor na Comunicação; reformar, consolidar ou criar, quando não existir, um serviço público que não seja um prolongamento da voz estatal; e, finalmente, de exigir que o setor privado/comercial seja consciente com a concessão do bem público – o espectro radiofônico – que lhe foi permitido utilizar. A prova do processo de “cidadanização” em andamento é a proliferação de debates e de mobilizações para mudar leis de rádio e televisão em países tão diferentes como México, Argentina e Brasil; três países envolvidos com oligopólios midiáticos. (MATTELART, 2009, p. 44-45) A exemplo de Mattelart (2009), Segura (2014) concorda que as organizações da sociedade civil têm sido protagonistas no contexto latino-americano acerca dos debates e da incorporação da questão comunicacional na agenda governamental, pois apesar de serem atores de menor influência no processo, tais grupos têm conseguido ter certa capacidade de incidência nos processos de formulação de políticas públicas de comunicação. As propostas da sociedade civil organizada assumem os postulados que tradicionalmente ligavam a comunicação à mudança social. Nesse sentido, quase todas as propostas enfocam o direito à comunicação como motor das liberdades e direitos a ele vinculados, seja o direito à expressão, o acesso à informação, etc. O Ciências da Comunicação Capítulo 1 6 direito à comunicação é então visto como um direito humano do mesmo nível que os direitos à saúde e à educação, e como uma condição necessária da democracia e do desenvolvimento dos povos. Essas organizações recuperam os postulados das lutas para democratizar as comunicações desenvolvidas nos anos sessenta e setenta. (SEGURA, 2014, p 49, tradução nossa) Ainda conforme a autora, por conta de menos recursos econômicos e visibilidade institucional, esses setores sociais que almejam a ampliação da democracia e dos direitos de cidadania necessitam da cooperação do Estado para alcançar mudanças nos sistemas de comunicação. Neste sentido, as propostas de democratização que impulsionam os movimentos sociais teriam como função redefinir o poder dos agentes que intervêm no espaço público, visando ampliar as possibilidades dos cidadãos na participação dos serviços públicos de comunicação. León (2013) entende que a democracia midiática somente será alcançada mediante a criação de instrumentos de participação social: A democratização da comunicação é, antes de tudo, uma questão de cidadania e justiça social, enquadrada no direito humano à informação e comunicação. Então, é consubstancial à vida democrática da sociedade, cuja vitalidade depende de uma cidadania devidamente informada e deliberada para participar e ser corresponsável na tomada de decisões dos assuntos públicos. (LEÓN, 2013, p. 9, tradução nossa) Não obstante, o autor ainda reconhece a complexidade das propostas de mudanças legais em países latino-americanos diante dos poderosos interesses econômicos da mídia hegemônica. Em sua análise, atribui às forças dominantes neoliberais o poder para restringir as iniciativas dos movimentos sociais, ao colocar o mercado como eixo de ordem social em detrimento da cidadania. 4 | A LUTA PARA DEMOCRATIZAR A COMUNICAÇÃO NO BRASIL: UMA PROPOSTA No Brasil, a ideia de se discutir a democratização da comunicação começou ainda durante o final do período militar, na década de 1980, alcançando maior vigor com a redemocratização do país. A formulação de propostas tendo como escopo a democratização da comunicação ocorre pela primeira vez no curso de comunicação social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo com atores sociais os alunos e professores da instituição. O movimento consegue o apoio de organizações da sociedade civil, levando à criação de uma frente nacional para debater as questões de comunicação – a Frente Nacional por Políticas Democráticas de Comunicação. Esse movimento social pela democratização da comunicação trouxe as bases para a criação, em 1991, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que nasce na condição de associação civil focada em mobilizar, planejar e formular medidas legais e políticas para promover a democracia na comunicação. Ciências da Comunicação Capítulo 1 7 (FNDC, 2018). Quatro anos depois, no dia 20 de agosto 1995, o FNDC passou a existir como entidade. Conforme informações do estatuto social do FNDC, o fórum é uma associação civil, de âmbito nacional e sem fins lucrativos, constituída por instituições da sociedade civil, igualmente sem fins lucrativos, que representam setores da sociedade que assumam a importância da área das comunicações para a construção da democracia e da cidadania (ESTATUTO, 2013). Com sede em Brasília, o FNDC é dirigido por um conselho deliberativo, administrado por uma coordenação executiva, fiscalizado por um conselho fiscal e tem a plenária nacional como órgão máximo de representação dos seus associados (ESTATUTO, 2013). A entidade que luta pela democratização da comunicação completou 26 anos de criação em 2017 e tem em sua composição sindicatos, organizações nãogovernamentais, associações, federações, coletivos e movimentos populares, envolvendo um amplo espectro de organizações da sociedade com causas diversas, como a questão dos trabalhadores, a igualdade, a luta pela moradia e a defesa dos direitos humanos. São exemplos desses grupos afiliados ao FNDC a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Marcha Mundial das Mulheres, a União de Negros pela Igualdade, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o coletivo Jornalistas Livres, o Mídia Ninja, entre outros. Trata-se de um grupo cujas causas são diversas e que se reúne com o objetivo comum de ter mais força para reivindicar a democratização. Conforme Souza (1996), as ações do grupo para democratizar a comunicação são conhecidas como o que se convencionou chamar de “movimento pela democratização da comunicação”, expressão que abarcaria inúmeros grupos, movimentos e experiências socioculturais que surgem na sociedade para dar espaço e voz a culturas e ideologias praticamente ignoradas pela grande mídia no país. Assim: Para o crescimento e enriquecimento do Fórum, bem como para o benefício da luta pela cidadania e democracia brasileiras é fundamental o desafio de romper com o corporativismo, no sentido de fazer com que uma grande parcela da sociedade civil brasileira (não-especialista em comunicação) assuma a causa da democratização da comunicação como luta prioritária para a democratização do país. (SOUZA, 1996, p. 186) Formada por uma rede de movimentos sociais, essa iniciativa tem fomentado a circulação de ideias não-hegemônicas, além de estimular um debate crítico sobre a atuação da mídia brasileira, questionando a concentração do setor, a preponderância do sistema comercial e a defesa da atualização regulatória no campo da radiodifusão e do controle social da mídia. Essas ideias encontram ressonância nos estudos de McQuail (2012), para o qual essas medidas podem ser alcançadas mediante a implementação de políticas públicas incidentes sobre o setor. Para o autor, “essas ações tentam igualar as oportunidades de acesso à mídia, incentivar uma representação mais justa e limitar, ou compensar, algumas das imperfeições, ou ‘parcialidades’, do mercado” (MCQUAIL, 2012, p. 163). Ciências da Comunicação Capítulo 1 8 Ainda segundo o mesmo autor, essa intervenção é aplicada abertamente em nome dos grupos que são simplesmente incapazes, por razões econômicas, de obter acesso adequado ao sistema da mídia (MCQUAIL, 2012). Os objetivos das ações reivindicadas pelos atores sociais seriam, neste sentido, garantir um modelo de mídia variado e representativo e auxiliar os “emissores” a superar os efeitos das desigualdades fundamentais da sociedade. Uma das conquistas mais representativas do movimento pela democratização da comunicação ao longo de sua atuação foi a ocorrência da 1ª Confecom (Conferência Nacional de Comunicação), realizada em Brasília em 2009. A mobilização social em todo o país para debater o setor adquiriu expressividade e é compreendida com uma vitória dos movimentos sociais. Para Guareschi (2013), a Confecom demonstrou ser possível construir uma comunicação democrática e participativa, ao mesmo tempo em que expôs o desinteresse de setores da grande mídia em contribuir para o debate público sobre as comunicações no país. Além disso: O que nos falta é um marco regulatório capaz de democratizar a mídia no país, feito através de uma discussão nacional, em que os diferentes grupos possam expressar suas opiniões e interesses, através de uma ação comunicativa que estabeleça instâncias éticas de como a comunicação deve servir. (GUARESCHI, 2013, p. 180) Não obstante, no pós-Confecom, as diretrizes propostas foram diluídas diante da pressão dos grandes meios de comunicação e da dificuldade dos governos recentes em implementar as medidas sugeridas na conferência. Com base nos referenciais dos movimentos sociais, observa-se que a atuação do movimento brasileiro pela democratização expressa a existência de um conflito no plano cultural, ou seja, busca apresentar para a sociedade que existe a necessidade de haver uma mídia mais plural, diversificada e participativa. Uma das frentes de atuação e mobilização se dá por meio do site do FNDC (www.fndc.org.br) e também pelas redes sociais, que trazem informações constantes sobre as ações da entidade. O questionamento ao status quo do setor empresarial que domina a mídia revela ser esse ator social o principal adversário definido do movimento pela democratização. Por outro lado, o governo, embora tenha sido um ator social frequente de diálogo com as organizações, sendo prova dessa interlocução a realização da própria Confecom, veio por adotar posturas em desacordo com o que apregoa o movimento, por exemplo, ao não avançar na democratização da área. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS A luta por condições de igualdade no processo de comunicação tem sido a bandeira de atuação dos movimentos sociais que lutam pela democratização dos meios no Brasil há mais de três décadas. Ciências da Comunicação Capítulo 1 9 Em decorrência dos desequilíbrios informativos, cujas consequências para a democracia já eram indicadas em 1980 pelo Relatório MacBride, a participação efetiva dos cidadãos na gestão e no acompanhamento da atuação da mídia prossegue sendo distante da realidade brasileira. Todavia, graças às ações de grupos articulados a fazer esse debate, como é o caso do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, iniciativas procuram levar ao público orientações sobre como funciona a mídia brasileira, quais são as normas legais para a área e os problemas envolvendo a falta de debate público e cidadania no setor. Os apontamentos mostram que essa atuação dos movimentos sociais tornase fundamental por estimular os debates sobre cidadania, direito à comunicação e pluralidade e diversidade midiáticas, fomentando mudanças em um setor de mídia cada vez mais atravessado pelas lógicas do mercado. Os desafios também passam em fazer esse debate chegar a um conjunto maior da sociedade, aproveitando inclusive as potencialidades oferecidas pelas redes sociais. Embora os movimentos sociais pela democratização da mídia tenham conseguido um grau de mobilização amplo recente, congregando grupos com causas diversificadas, as ações desenvolvidas continuam sendo silenciadas pelos grandes veículos de comunicação, quando não criminalizadas ou tratadas como ideias limitadoras da liberdade de expressão. Da mesma forma, a existência de um programa de formação crítica de mídia nas escolas poderia ser um caminho a ser trilhado para que a população viesse a entender melhor como se dá o funcionamento da mídia e de que forma poderia participar do processo de comunicação voltado para a cidadania. REFERÊNCIAS DELLA PORTA, Donatella; DIANI, Mario. Social movements: an introduction. Oxford: Blackwell Publishing, 2006. ESTATUTO social do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.fndc.org.br/system/uploads/ck/files/Estatuto%20Social%20enumerado%20 e%20em%20papel%20timbrado.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2018. FNDC. 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São Paulo: Paulus, 2007. p. 23-52. Ciências da Comunicação Capítulo 1 11 CAPÍTULO 2 “O JORNAL BURGUÊS CONSEGUE FAZER-SE PAGAR PELA PRÓPRIA CLASSE TRABALHADORA QUE ELE COMBATE SEMPRE”: FINANCIAMENTO E INDEPENDÊNCIA DE CLASSE NO JORNALISMO SEGUNDO LÊNIN E GRAMSCI Willian Casagrande Fusaro Mestrando em Comunicação na Universidade Estadual de Londrina (UEL) Londrina – PR Manoel Dourado Bastos Professor adjunto do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (UEL) Londrina – PR RESUMO: A escatologia sobre o “fim do jornalismo” colocou em debate formas de financiamento da imprensa baseadas em “novos modelos de negócios” do “jornalismo alternativo”. Esse debate ignora experiências prévias. O presente texto busca avaliar um momento em que este debate esteve presente. No início do século 20, num momento de transformações sociais, Gramsci e Lênin colocaram em debate a relação entre autofinanciamento e independência da imprensa proletária. Assim, ao acompanhar os argumentos de ambos sobre o financiamento da imprensa proletária e as formas de agitprop, em contraste com as propostas das imprensas social-democrata e burguesa, observaremos alguns termos pertinentes para o debate contemporâneo sobre os “novos modelos de negócios”. PALAVRAS-CHAVE: autofinanciamento; Ciências da Comunicação agitprop; fim do jornalismo; alternativo; imprensa proletária. jornalismo ABSTRACT: The eschatology about the “end of journalism” has challenged forms of media financing based on “new business models” of “alternative journalism.” This debate ignores previous experiences. The present text seeks to evaluate a moment in which this debate was present. At the beginning of the 20th century, in a moment of social transformation, Gramsci and Lenin questioned the relationship between selffinancing and independence of the proletarian press. Thus, in following the arguments of both on the financing of the proletarian press and the forms of agitprop, in contrast to the proposals of the social-democrat and bourgeois press, we will observe some pertinent terms for the contemporary debate on “new business models”. KEYWORDS: self-funding; agitprop; end of journalism; alternative journalism; proletarian press. 1 | INTRODUÇÃO A dinâmica de crise do capitalismo que se desdobra desde os anos 1970 atingiu as indústrias midiáticas, como era inevitável, tendo em vista que a assim chamada Terceira Capítulo 2 12 Revolução Industrial da Microeletrônica, que está na base do colapso do sistema mundial produtor de mercadorias, tinha por um de seus elementos decisivos a informação. Nesta segunda década do século 21, a tematização da questão em salas de aula nas escolas de comunicação, vista até recentemente como catastrofista, foi dando lugar ao cansaço e à irritação diante da mera reafirmação discursiva do “fim do jornalismo”, sendo sobreposta por uma consequente adoção de projetos práticos que enfrentam a questão. Dentre esses projetos, uma parte significativa é inteiramente capitaneada pelas mentes inquietas dos jovens estudantes de jornalismo interessados em alterações gerais no modo de produzir jornalismo legado pelo século 20. Nomear essa nova leva de projetos de “jornalismo alternativo” parece em princípio razoável, visto que eles se propõem a não seguir os parâmetros das propostas tradicionais que ainda fundamentam os currículos dos cursos de Jornalismo e também a produção jornalística das empresas e profissionais que se aferram nostalgicamente ao modo até então vigente. Contudo, o termo “alternativo” que adjetiva o jornalismo que daí se desdobra diz pouco respeito às propostas de “comunicação alternativa” que se apresentaram em épocas de violência autoritária, ditaduras militares e seu enfrentamento no campo ideológico com a produção contracultural. É verdade que é um fato recente nos estudos de comunicação a preocupação crescente com os modelos de financiamento do jornalismo, mas vale lembrar que mesmo essa questão já apareceu, por exemplo, no vivo debate em torno das “cooperativas de jornalistas”, justamente na época em que o “jornalismo alternativo” significava um esforço de enfrentamento ante os desmandos de generais da ditadura civil-militar. Hoje, o “alternativo” no jornalismo derivado da reestruturação produtiva do capitalismo diz respeito a “novos modelos de negócios” que visam suplantar os métodos organizativos herdados do regime fordista de acumulação, apresentando, porém, uma solução edificante do assim chamado “jornalismo pós-industrial”. Não nos resta dúvidas de que o problema que se coloca diante de nós alcança camadas mais profundas do motor capitalista como autovalorização do valor, de maneira que toda a avaliação baseada em soluções por meio de novos modelos de negócio, mesmo sendo tentativas de boa-fé com seus apontamentos econômicos ignorados pelos estudos de comunicação, perdem justamente o ponto crítico que está no cerne da dinâmica da reestruturação produtiva, que parece não mais conhecer soluções cíclicas. Assim, fundamentados naquele cansaço e irritação diante da escatologia sobre o assim chamado jornalismo industrial, estamos interessados em apontar para uma práxis que vise superar a subsunção (formal e real) da comunicação ao capital, nesse sentido sem se condicionar pelos “novos modelos de negócio” do “jornalismo alternativo” que não tencionam as contradições da própria comunicação como forma de manifestação do capital. Para isso, imbuídos do aparato crítico da Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura, partimos para uma avaliação das questões relativas justamente aos aspectos de sustentação econômica nos debates Ciências da Comunicação Capítulo 2 13 sobre jornalismo em meio à construção do projeto comunista no início do século 20, especialmente nos argumentos sobre a questão das emblemáticas figuras de Lênin e Gramsci, proeminentes lideranças comunistas que viram no jornalismo um elemento chave da luta revolucionária. Recorrer à recapitulação analítica dos achados de Lênin e Gramsci se justifica tendo em vista que também eles viviam em meio a um momento em que se consolidavam as mudanças no âmbito midiático, passando dos jornais impressos para a radiodifusão como aspecto decisivo da produção comunicativa. Cientes das diferenças históricas e espaciais que nos separam das duas lideranças comunistas, achamos coerente reconhecer nessas ideias motivos para reflexão sobre as questões colocadas pelo período em que vivemos. Para isso, num primeiro momento, observaremos os argumentos de Lênin sobre a importância da independência do jornal proletário, que passava pela viabilidade do financiamento de sua produção pela coleta de dinheiro entre os próprios trabalhadores. Num segundo momento, veremos que os argumentos de Gramsci sobre o autofinanciamento do jornal proletário seguem de muito perto as linhas propostas por Lênin. Nas considerações finais, vamos sugerir que as propostas comunicativas às questões que preocupavam os dois autores, tal qual se apresentou na agitprop desenvolvida em meio ao período de Guerra Civil que se sucedeu à Revolução de Outubro de 1917, foram deturpadas e subvertidas pelo desenvolvimento da Indústria Cultural, cujo cerne está na reordenação do projeto econômico para a produção comunicativa. 2 | LÊNIN: “UM KOPEK PARA O JORNAL PROLETÁRIO” Lênin cunhou o termo agitação e propaganda (agitprop) russa em meio a uma série de debates, tanto na Rússia quanto em todo o movimento socialista europeu, para criar uma imprensa que efetivamente atuasse como um órgão de classe no interior dos partidos comunistas. O termo tem suas origens nos textos Por Onde Começar? (1901) e Que Fazer (1902), escritos políticos de Lênin sobre os rumos da revolução na Rússia. Na época, o dirigente se confrontava publicamente com outras personagens do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR). Nesses textos, Lênin delineou as primeiras bases do que seria uma comunicação feita por militantes profissionais do partido, pela organização revolucionária, no sentido de esclarecer às massas o conflito ideológico entre a burguesia decadente e o proletariado, o que foi classificado pelo dirigente como agitação e propaganda. De acordo com Daniel Cassol, em Por Onde Começar?, texto publicado no jornal Iskra (Fagulha, em russo), Lênin estabelece as primeiras diretrizes do que seria a base do pensamento da esquerda marxista a respeito do papel da imprensa como “um instrumento de agitação e propaganda dos valores socialistas e revolucionários e também como um fio condutor na organização política dos trabalhadores” (Cassol, 2010, Ciências da Comunicação Capítulo 2 14 p.53). O jornal, nesse contexto, estabelece-se como um instrumento de organização política coletiva, criado e mantido pelo Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) principalmente durante os períodos de organização coletiva da esquerda, ou seja, anteriormente às irrupções revolucionárias. Questionar se se deve trabalhar por criar uma organização combativa e realizar uma agitação política em qualquer situação, em períodos “cinzentos”, “pacíficos”, em períodos de “declínio do espírito revolucionário”, quando ao contrário, exatamente nessas situações e nesses períodos é particularmente necessário esse trabalho, porque nos momentos de explosões sociais não há tempo hábil para criar uma organização, que nesses momentos já deve estar pronta para poder desenvolver imediatamente sua atividade (LÊNIN, 1901). Posteriormente, no texto que lançaria o nome do dirigente russo no círculo da esquerda socialista europeia, Que Fazer?, Lênin prossegue na explicação da importância de um jornal político regular, profissionalizado e mantido pelo próprio Partido. Sobre isso, chega a sugerir que cada célula local “imediatamente reserve um quarto de suas forças para a participação ativa na obra comum” (1902). Ao exercitar regularmente o ofício, os revolucionários profissionais manteriam a circulação periódica do jornal político comum, de forma a preparar o proletariado para a insurreição “mesmo nos períodos de calma absoluta” (LENIN, 1902). Lênin ressalta, também, a necessidade de profissionalização do corpo militante, para que o trabalho seja contínuo e profissional – o amadorismo e a falta de regularidade das publicações eram as características dos jornais proletários que mais irritavam o dirigente. No interior do debate da agitação e propaganda e da comunicação como instrumento central de organização do partido, a discussão sobre a independência de classe do jornal proletário, para Lênin, foi preponderante em um determinado período histórico. Segundo Rafael Venancio, essa centralidade veio nos anos de 1912 e 1914, quando a Rússia já contava com o primeiro grande jornal proletário em décadas circulando livremente, o Pravda – o qual, após a Revolução de Outubro de 1917, passaria a ser o órgão oficial do novo regime. O início dessa experiência de tolerância democrática durante o czarismo – conseguida após intensas pressões oriundas dos movimentos dos trabalhadores – proporcionou uma série de debates a respeito da viabilidade de um jornal financiado somente pelos trabalhadores, para manter sua independência de classe frente à burguesa. Segundo Venancio, Lênin se empenhou em estudar os balanços das primeiras edições regulares do Pravda para já analisar a viabilidade econômica do jornal, levando em conta sua ideia de autofinanciamento da empresa jornalística do partido por si só. O primeiro desses estudos surge na metade de 1912, no qual Lênin analisa as coletas de dinheiro que ajudariam o Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR) a fundar o Pravda, além da manutenção de outros dois periódicos do partido, o Zviezda (que foi substituído pelo Pravda) e o Niévskaia Zviezda, jornal de “2ª linha” dos bolcheviques (VENANCIO, 2010). As primeiras constatações de Lênin foram muito otimistas. Os três jornais Ciências da Comunicação Capítulo 2 15 bolcheviques receberam 504 coletas – ou seja, manifestações livres de apoio direto dos trabalhadores –, o que levou o líder bolchevique a classificar a campanha de arrecadação como exitosa (VENANCIO, 2010). Nesse ínterim, surge a campanha “Um kopek para o jornal proletário”, lançada por Lênin para o operariado russo assinar e comprar os jornais feitos pelos jornalistas do partido. Basta já de dominação, senhores do kopek burguês! Basta de tantos jornalecos sem princípios, sem outro foco que não o mercantilismo! (...) Que se amplie e fortaleça o costume de um kopek proletário para o jornal proletário! (LENIN, 1978a apud VENANCIO, 2010, p. 72) Essa campanha de Lênin estava embasada em uma forte concepção da independência de classe necessária à imprensa do partido na Rússia, ainda mais em uma época revolucionária, em que os embates entre classes eram evidentes e explícitos. Um jornal do kopek proletário significaria um jornal que representaria este interesse e, consequentemente, esse interesse se tornaria o guia do jornal (VENANCIO, 2010, p. 72). Dessa forma, o jornal seria apenas um meio para que o proletariado fosse atingido pela mensagem proletária do partido, enquanto o jornal financiado pelo kopek burguês levaria uma mensagem burguesa ao proletariado, por consequência, o que era duplamente danoso para Lênin. Lênin, contudo, não direcionou sua crítica exatamente aos jornais burgueses, por acreditar que esses veículos de comunicação não tinham, já desde início, compromisso com a classe trabalhadora. Preocupou-se com os jornais da social-democracia que deveriam estar em condições econômicas de produção alinhadas com a classe que diziam representar, mas não estavam. Esses veículos eram editados pelas alas liquidacionistas do partido, que foram denominadas assim no Congresso de Praga do POSDR. Na ocasião, os bolcheviques, hegemônicos no congresso, classificaram assim os sociais-democratas que renegavam as diretrizes da ala bolchevique. Segundo Lênin, O jornal liquidacionista é, principalmente, uma empresa burguesa, ainda que uma minoria de trabalhadores a siga. Os dados sobre a origem das arrecadações mostram também a situação de classe dos leitores, compradores do jornal. As contribuições voluntárias precedem somente de leitores permanentes, aqueles que simpatizam mais conscientemente com a orientação do jornal (LÊNIN, 1978aapud VENANCIO, 2010, p. 80). Tal concepção a respeito da independência de classe do jornal proletário é indissociável do debate, levado a cabo em um momento posterior, sobre a liberdade de imprensa para os bolcheviques. Lênin considera a liberdade de imprensa uma das principais chaves para a “democracia pura”, porém sem deixar de levar em conta que essa “liberdade” é um engano “enquanto as melhores rotativas, os melhores estoques de papel estão monopolizados pelos capitalistas” (1978, p. 175). O líder bolchevique chega até a sugerir que, para que esse estágio de desenvolvimento da democracia plena seja alcançado – o que se confunde com a própria concepção de ditadura do proletariado para Lênin – “o capital seja privado da possibilidade de alugar escritores, Ciências da Comunicação Capítulo 2 16 comprar editoriais e subornar jornais” (LÊNIN, 1978bapud VENANCIO, 2010, p. 175). Dessa forma, o exercício pleno da democracia na imprensa, ou a verdadeira liberdade de imprensa, é a supressão do monopólio de comunicação burguês. Ou seja, Lênin somente considera que a liberdade de imprensa burguesa (a possibilidade de ser livre para comprar o meio de produção jornal e publicar o que bem entender, portanto) não basta, é insuficiente porque o que interessa de fato é a propriedade do meio de comunicação. Dessa forma, é mais viável, em Lênin, falar de igualdade de imprensa ao invés de liberdade de imprensa, segundo Venancio (2010, p. 90). 3 | GRAMSCI E O BOICOTE AO JORNALISMO BURGUÊS No interior do movimento comunista, no mesmo período histórico de Lênin, outro importante dirigente comunista sustentava ideias muito similares sobre a necessária independência de classe dos jornais dos trabalhadores. O dirigente italiano Antonio Gramsci, no texto Os jornais e os operários (1916), resumiu sua posição teórica e política a respeito do financiamento da imprensa operária. O dirigente comunista, além de sustentar que o trabalhador italiano não assinasse os jornais burgueses, defendeu o autofinanciamento da imprensa proletária como forma de garantir a independência de classe desta frente ao capital. [O trabalhador] deveria recorda-se sempre, sempre, sempre que o jornal burguês (qualquer que seja sua cor) é um instrumento de luta movido por ideias e interesses que estão em contraste com os seus. Tudo o que se publica é constantemente influenciado por uma ideia: servir a classe dominante, o que se traduz sem dúvida num fato: combater a classe trabalhadora. E, de fato, da primeira à última linha, o jornal burguês sente e revela esta preocupação. Mas o pior reside nisto: em vez de pedir dinheiro à classe burguesa para subvencionar a obra de defesa exposta em seu favor, o jornal burguês consegue fazer-se pagar pela própria classe trabalhadora que ele combate sempre. E a classe trabalhadora paga, pontualmente, generosamente (GRAMSCI, 1916). Gramsci não hesita em reconhecer o caráter de classe da imprensa burguesa. O que motiva o operário a assinar os jornais burgueses é a possibilidade de receber informação periódica e atualizada. No entanto, acredita que o fato de a informação conter em si a ideologia burguesa não é percebido pelo trabalhador quanto este consome a “mercadoria jornal”, “aquele folheto de quatro ou seis páginas que todas as manhãs ou tardes vai injetar no espírito do leitor os modos de sentir e julgar os fatos da atualidade política” (GRAMSCI, 1916). Centenas de milhares de operários contribuem regularmente todos os dias com seu dinheiro para o jornal burguês, aumentando a sua potência. Por quê? Se perguntarem ao primeiro operário que encontrarem no bonde ou na rua, com a folha burguesa desdobrada à sua frente, ouvirão esta resposta: é porque tenho necessidade de saber o que há de novo. E não lhe passa sequer pela cabeça que as notícias e os ingredientes com os quais são cozinhadas podem ser expostos com uma arte que dirija o seu pensamento e influa no seu espírito em determinado Ciências da Comunicação Capítulo 2 17 sentido (GRAMSCI, 1916). Os jornais, para Gramsci, ocupam um papel quase central na luta de classes, pois se inserem como aparelhos privados de hegemonia no interior da sociedade civil. Para o autor, são organismos relativamente autônomos em relação ao Estado, em sentido estrito, como a Igreja, associações, sindicatos ou partidos políticos, que se inserem na disputa de hegemonia na obrigação de reverter o quadro geral da dominação no plano político e cultural (GRAMSCI, 1999-2002, v.1 e 3). Na opinião de Denis de Moraes, a hegemonia não se reduz à força ou coerção militar e policial, mas, sim, pressupõe a capacidade de um bloco hegemônico (aliança ampla e durável de classes ou frações de classes) dirigir moral e culturalmente, de forma sustentada, o conjunto da sociedade (2008, p. 40). O jornal para Gramsci, portanto, ocupa um espaço de grande importância na produção de estratégias e táticas que objetivam construir, progressivamente, uma nova hegemonia (MORAES, 2008). Isto posto, é plausível e coerente a defesa do autofinanciamento da imprensa pelos próprios trabalhadores, pois o consenso social que busca a classe trabalhadora na luta de classes só pode ocorrer pela via do embate político na sociedade civil, tendo os jornais participação decisiva na formação de um ambiente cultural e político favorável à classe trabalhadora. Dessa forma, Lênin concordaria integralmente com a análise de Gramsci, para quem a disputa em busca de leitores dos jornais proletários contra os jornais burgueses era mais intensa. No entanto, Lênin, por estar imerso no debate com as alas reformistas do partido social-democrata russo, centra sua crítica de forma mais incisiva nos jornais liquidacionistas dos socialistas, que também conseguiam um maciço apoio proletário, a despeito de serem majoritariamente financiados pela burguesia e pela pequena burguesia. 4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Em texto anterior (BASTOS, 2014), afirmamos que aquilo que se chamou no ambiente revolucionário russo do início do século 20 de agitprop se produziu fundamentalmente em contraste com o forte crescimento e consolidação da indústria cultural. Se é verdade que as ações originárias de agitprop nas duas primeiras décadas do século 20 estavam diante de uma produção comunicativa com limitações territoriais, de velocidade de difusão e de impacto, podemos também afirmar que as experiências soviéticas que encontraram seu auge em meio à Guerra Civil que sucedeu a Revolução de Outubro de 1917 entraram em descrédito forçado pela ação da política cultural estalinista, quando já se conhecia os efeitos políticos do impactante aparato radiofônico. É possível contrastar, nesses termos, a concentração de capital organizando marcos de sistemas nacionais de difusão, aspecto decisivo da indústria cultural, com Ciências da Comunicação Capítulo 2 18 as ações de agitprop que perseguiam a ampliação territorial, de velocidade de difusão e de alcance, ou seja, de sua capacidade comunicativa, por meio da adoção de formas como o jornal vivo ou os trens de agitação. Assim, a preocupação da agitprop com a práxis comunicativa visando formas que complementassem ou mesmo suplantassem as formas tradicionais de comunicação passou por uma “mudança de função” (para usar um termo caro a Brecht e Benjamin) a fim de assumir os desígnios da Indústria Cultural. Mas, além das novas formas (num sentido por assim dizer tecnoestético), essa “mudança de função” também foi promovida por novas formulações dos modelos de financiamento da produção comunicativa. As novas formas de comunicação baseadas na radiodifusão capturavam o espírito de superação dos entraves da imprensa escrita tal qual formulados pela agitprop soviética, de modo a estabelecer uma relação comunicativa cada vez mais direta com os trabalhadores, ao mesmo tempo em que alterava suas funções, ao adotar progressivamente um sistema de financiamento baseado em verbas publicitárias. Isso viabilizava a manutenção das relações comunicativas alargadas, mas restringia sua independência, ao escamotear os termos da propriedade privada e concentração de capital. Por outro lado, o financiamento da produção comunicativa burguesa por meio da dinâmica das verbas publicitárias colocou novos problemas para o debate sobre o autofinanciamento da produção comunicativa proletária. Se ainda estava em questão para Lênin e para Gramsci o fato dos trabalhadores usarem seu dinheiro para financiar a imprensa burguesa, com o modelo de financiamento baseado nas verbas publicitárias a gratuidade para o acesso desloca a questão, na medida em que estabiliza um modo de acesso à produção comunicativa que dificulta o engajamento do apoio financeiro como modelo de financiamento. As novas formas de comunicação se fizeram nos limites das dificuldades de alcance dos projetos de agitprop e da imprensa proletária, posto que sua capacidade comunicativa e sua gratuidade superavam esses limites e satisfizeram demandas da classe trabalhadora. Agora que a reestruturação produtiva coloca em questão aspectos decisivos da Indústria Cultural, não será verdade que a discussão de “novos modelos de negócio” do assim chamado “jornalismo alternativo” perde a oportunidade de tematizar questões que, ao tempo de Lênin e Gramsci, pareciam distantes de serem compreendidas, como a relação forte entre o processo cego de autovalorização do valor e as formas de comunicação daí derivadas? As formulações de Lênin e Gramsci, ainda que estipulassem as possibilidades de concreção da superação da propriedade burguesa dos meios de produção comunicativa pela via do autofinanciamento, visto que tal proposta parecia a única viável, não estariam apontando para a compreensão de uma práxis que pretenda superar a própria articulação entre autovalorização do valor e formas de comunicação, como se viu no extraordinário período em que as experiências de agitprop, impulsionadas pela Revolução e as possibilidades de ação que tinha o aparato estatal como anteparo? Ciências da Comunicação Capítulo 2 19 A difícil adoção de “novos modelos de negócio” se dá, parece-nos, pelo esgotamento real e cada vez mais marcante das possibilidades de produção de valor e de realização de rendas informacionais. À revelia deles mesmos, os projetos alternativos do dito jornalismo pós-industrial, por meio de sua progressiva inviabilidade num momento de crise e colapso da socialização pelo trabalho, muito provavelmente nos levarão para formas que estarão além da manifestação do capital e seu sujeito de comunicação. Em termos históricos diferentes, trata-se de formular tal qual Lênin e Gramsci quais as dimensões objetivas de financiamento da comunicação que se pretende além do capital numa época que vive sua crise e colapso. REFERÊNCIAS BASTOS, Manoel Dourado. Agitprop contra indústria cultural: contrastes das experiências comunicativas diante dos antagonismos sociais. Anais do 5º Encontro Regional Sul de História da Mídia – Alcar Sul, 2014. Disponível em: <http://alcarsul2014.sites.ufsc.br/wp-content/ uploads/2014/10/gtmidiaalternativa_manoel_bastos.pdf> Acessado em: 20 de jun. 2018. CASSOL, Daniel Barbosa. Brasil de Fato: A imprensa popular alternativa em tempos de crise. 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Ciências da Comunicação Capítulo 2 20 CAPÍTULO 3 DA IMPRENSA SINDICAL PARA A IMPRENSA DE MASSA: INTERAGENDAMENTO E CONTRAAGENDAMENTO Alexsandro Teixeira Ribeiro sobretudo pela impossibilidade de apreensão da totalidade dos acontecimentos, pois, “o mundo que temos que considerar está politicamente RESUMO: O presente artigo vislumbra apontar a influência do papel da imprensa sindical nas pautas da imprensa de massa comercial por meio do interagendamento e contra-agendamento midiático. Com base nos conceitos de agendamento de Maxell McCombs e as ponderações de contraagendamento apontados por Luiz Martins da Silva, foi analisada a reportagem publicada pelo Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Curitiba (Sismuc) e sua repercussão nos portais paranaenses de comunicação da Gazeta do Povo, Paraná Online e portal Bonde. Algumas marcas textuais presentes nas reportagens apontam para a ocorrência de um interagendamento midiático, originado da imprensa sindical, partindo para a imprensa de massa. PALAVRAS-CHAVES: imprensa sindical, contra-agendamento, interagendamento sociedade e imaginado” (LIPPMANN, 2008, p.40). Na medida em que capta os temas de interesse público candentes na sociedade civil com o objetivo de publicizar e reverberar os debates públicos, a imprensa desempenha um papel fundamental para a sociedade, agindo de forma a enriquecer as discussões na esfera pública. Na mesma medida, conforme aponta a teoria do agendamento, ou agenda-setting, a imprensa têm o poder de sugestão de temas a serem debatidos pelos públicos, bem como orientar, por meio dos atributos ressaltados em suas publicações e pelo enquadramento dos acontecimentos reportados, as perspectivas e viés dos temas que serão discutidos e abordados na agenda da sociedade (McCOMBS, 2009). Desta forma, a imprensa torna-se também uma arena de disputas, na medida em que as buscam inserir suas pautas e reivindicações cada vez mais complexa, maior é a necessidade dos meios de comunicação para mediar a relação dos indivíduos com as realidades. Isso se dá Ciências da Comunicação compreensão. Tem que ser explorado, relatado organizações e entidades da sociedade civil INTRODUÇÃO Numa fora de nosso alcance, fora de nossa visão e na pauta midiática, com vistas a lançar na agenda da sociedade as suas demandas. Os sindicatos, enquanto entidades que integram o rol de instituições que compõem a sociedade Capítulo 3 21 civil, atua de forma a atuar na agenda da imprensa e na agenda pública, sobretudo no tocante às manifestações de greve de categorias profissionais, com o objetivo de sensibilizar a sociedade e o patronato em relação às reivindicações dos trabalhadores. Conforme aponta Silva (2007) ao propor um debate sobre contra-agendamento – em que se destaca o contra-fluxo no direcionamento das agendas, comumente tido como da mídia para o público - , na medida em que as entidades sindicais realizam ações que o objetivo último de se inserirem na agenda midiática, elas atuam de forma a promoverem ações de advocacy. Essas ações podem ser identificadas em atos públicos, passeatas e outras manifestações produzidas especificamente para gerar publicização por meio da imprensa e dos meios de comunicação de massa. Por outro lado, as entidades sindicais também dispendem de meios de comunicação para informar aos trabalhadores as atuações da entidade, e em alguma medida também à sociedade em geral e a imprensa. Ocorre que, muitas vezes, as pautas dos meios sindicais influenciam as agendas midiáticas por meio do interagendamento midiático, inserindo seus temas, enquadramento e atributos na imprensa de massa. Sendo o que apresenta, sob a perspectiva do agendamento (McCOMBS, 2002, 2008, 2009) e do contra-agendamento (SILVA, 2007), o objetivo do presente trabalho foi o de analisar a repercussão da reportagem “Denúncia: Central de Abastecimento infestada de ratos e pombos”, publicado no portal do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Curitiba – Sismuc (2014) nos portais da imprensa da massa da Gazeta do Povo, Paraná Online e Bonde News, com vistas a identificar se a inserção da pauta sindical na da imprensa de massa se deu por meio de interagendamente ou por contraagendamento. Para isso, buscou-se identificar marcas, atributos e enquadramentos da reportagem publicada no portal sindical, para, em comparação com as reportagens da imprensa de massa, identificar a origem das informações veiculadas pela imprensa de massa, se são provenientes do produto jornalístico do sindicato ou da ação política da entidade. O presente trabalho buscou como corpus as reportagens publicados pelo Sismuc e pelos portais paranaenses de notícia Paraná Online, Gazeta do Povo e Bonde News. O objetivo foi analisar as mensagens, e por meio do texto identificar as ações de agendamento. Por se tratar de poucos textos – quatro reportagens - não extensos, optou-se por uma leitura crítica e comparativa entre as matérias jornalísticas, buscando identificar elementos que se repetissem em todos os textos e que dessem subsídios para analisar a forma de agendamento. Os elementos buscados foram a identificação das fontes – institucionalizadas e personagens que apareceram nas reportagens -, comparar o conteúdo e forma de apresentação de suas falas, comparar a forma de apresentação e as informações chaves que sustentassem a narrativa dos fatos apresentados nos textos, como a origem da denúncia, os locais em que foram identificados os fatos que geraram as denúncias etc. Ciências da Comunicação Capítulo 3 22 AGENDAMENTO TEMÁTICO A imprensa e os meios de comunicação de massa desempenham um papel de construção da realidade, na medida em que reportam o acontecimento não pela sua plenitude, mas por um recorte e orientações. Para Lippmann, a realidade dos acontecimentos são grandes e complexos para serem percebidos diretamente, sendo que a percepção do evento de quem não o vivenciou é o sentimento da imagem mental do evento, assim, “teremos que presumir que o que cada homem faz está baseado não em conhecimento direto e determinado, em imagens feita por ele mesmo ou transmitidas a ele” (2008 p.31). Ao publicar a obra Opinião Pública, em 1922, Lippmann ressaltou a função de construção de significado desempenhada pela imprensa, propondo uma discussão sobre como as interpretações dos acontecimentos pela imprensa podem alterar as interpretações da realidade pelo público e seus consequentes modelos de ação. Desta forma, Lippmann inaugura um filão de pesquisas que vão levar em consideração a influência dos meios de comunicação na percepção e construção da realidade. O título da primeira parte “o mundo exterior e as imagens em nossas mentes”, sintetiza uma das ideias centrais da obra, uma vez que as pessoas não agem com base dos acontecimentos reais, mas naquilo que imaginam que seja a situação real, percebida pelas informações da imprensa. Pois, conforme afirma: “ em todas as instâncias devemos observar particularmente um fator comum. É a inserção entre os seres humanos e seu ambiente de um pseudo-ambiente. A este pseudo-ambiente é que seu comportamento é uma resposta. Mas porque é um comportamento, as consequências, se elas são fatos, operam não no pseudoambiente onde o comportamento é estimulado, mas no ambiente real, onde as ações acontecem” (LIPPMANN, 2008 p.30). Segundo o autor, a analise da opinião pública precisa começar reconhecendo a relação triangular entre a cena da ação, a imagem humana daquela cena e a resposta humana àquela imagem atuando sobre a cena da ação, pois o mundo que temos que considerar está politicamente fora do nosso alcance, fora de nossa visão e compreensão. O poder do jornalismo e dos meios de comunicação está na publicização e fornecimento de um caráter de existência aos acontecimentos, tanto na sua capacidade de seleção de acontecimento quanto na possibilidade de os transformar em notícia, moldando “a imagem das realidades” e apresentando aos públicos “noticias que são o resultados de um complexo processo de negociação e de uma luta que se trava a dois níveis: na seleção e no enquadramento dos acontecimento” (CABRERA, 2001, p.195). Uma das perspectivas influenciadas por Lippmann foi a da teoria do agendamento, pela qual há uma relação entre os temas abordados pela imprensa e a agenda de debate público, conforme aponta McCombs, que, junto com Donald Shaw, desenvolveu as principais fundamentações teóricas do agenda-setting: Ciências da Comunicação Capítulo 3 23 As origens da teoria remontam a Walter Lippmann[...]. Sua tese é a de que a mídia é a ponte até nossas mentes em termos de informação. Porém, os anos mais recentes têm se transformado em algo diferente daquilo que ele descreveu. Em 1968, Shaw e eu resolvemos testar aquilo que Lippmann tinha escrito. Os estudos mais remotos avaliavam a influência da mídia nas atitudes e na opinião pública (McCOMBS, 2008, p.205) A ideia central da teoria do agendamento é de que os temas proeminentes na agenda da mídia tornam-se também os temas a serem abordados nos debates públicos, sendo que “aqueles elementos enfatizados na agenda da mídia, acabam tornando-se igualmente importantes para o público” (McCOMBS, 2009, p.111). Apesar de perceber a influência da imprensa nos assuntos abordados pelo público, a teoria do agendamento não considera os públicos como influenciáveis na sua totalidade, prontos a serem bombardeados pelas opiniões e enquadramentos da imprensa, e a responderem de pronto a expectativa dos produtores de conteúdos, conforme a teoria hipodérmica. A teoria da agenda “atribui um papel central aos veículos noticiosos por serem capazes de definir itens para a agenda pública[...] E, além disso, é o conjunto total da informação fornecida pelos veículos noticiosos que influencia estas imagens” (McCOMBS, 2009, p.24). Essa relação se funda principalmente na necessidade dos indivíduos em buscarem orientações para os assuntos públicos, sendo que a necessidade de orientação é diretamente proporcional à atenção dedicada à agenda da mídia (2009, p.94). Essa necessidade de orientação, segundo McCombs, é definida pela relevância e incerteza, sendo que a primeira está relacionada aos interesses dos públicos, e o segundo ao grau de necessidade de orientação, sendo que “no caso dos indivíduos que por qualquer razão percebem que a relevância de um tópico é alta […] o nível de incerteza sobre o tópico precisa ser também considerado” (McCOMBS, 2009, p.92). Se não define diretamente no que o público pensa, a imprensa e os meios de comunicação, no entanto, têm o poder de sugestionar sobre o quê os indivíduos debatem nos espaços púbicos e sob quais perspectivas interpretativas, ao ressaltar os atributos dos assuntos, que, ao serem “proeminentes nas apresentações da mídia são proeminentes na mente do público” (McCOMBS, 2009 p.129). Desta forma, a agenda de atributos indica a temática, direcionando, em alguns casos, a opinião pública à perspectiva apontada pelos meios. Conforme aponta McCOMBS, apesar de influenciar a agenda pública, a imprensa e os meios de comunicação não são o suficiente para definir, na totalidade, a agenda da sociedade, uma vez que: Although the influence of the media agenda can be substantial, it alone does not determine the public agenda. Information and cues about object and attribute salience provided by the news media are far from the only determinants of the public agenda. This substantial influence of the news media has no way overturned or nullified the basic assumption of democracy that the people at large have sufficient wisdom to determine the course of their nation, their state, and their local Ciências da Comunicação Capítulo 3 24 communities. (McCOMBS, 2002 p.8).1 A primeira dimensão do agendamento, segundo McCombs, é o de elencar os temas das agendas públicas por meio dos temas veiculados pela imprensa e meios de comunicação (2009, p.133). A segunda dimensão do agendamento se dá pela relação dos aspectos dos temas da agenda midiática e sua transposição para a agenda pública, “onde aspectos específicos do conteúdo da mídia sobre temas públicos estão implicitamente ligados ao formato da opinião pública” (2009, p.134). No agendamento de atributos, relativos à segunda dimensão do agendamento, um conceito-chave a ser abordado é o enquadramento, que é a seleção “de ênfase- nos atributos particulares de uma agenda da mídia quando se tratar de um objeto” (2009, p.137). Assim, o público adota graus de ênfase nos temas de acordo com as saliências destes na imprensa e nos meios de comunicação. INTERAGENDAMENTO, MÍDIA DAS FONTES E CONTRA-AGENDAMENTO Segundo McCombs, a agenda da mídia é definida por uma série de elementos com espaços de forças dispostos em camadas, em que a parte externa estaria a cargo das fontes noticiosas externa-chaves, seguida de outras fontes midiáticas e notícias, num processo de interação entre as mídias, e mais próximo à agenda da mídia, as notícias comuns, que disputam a agenda midiática sob perspectivas inerentes aos valores jornalísticos (McCOMBS, 2009, p.155). Dentre essas influências na agenda da mídia, para o presente trabalho, será discorrido apenas o agendamento intermídia, pela qual os meios noticiosos influenciam as agendas de outros veículos (McCOMBS, 2009, p.174). Ao debater o interagendamento midiático, McCombs ressalta essa influência de veículos de elite nos pequenos veículos, porém não descarta a existência de outras relações de influência, como os agendamentos da imprensa influenciados pelas agências de comunicação, apontando que, “todos os dias à medida que organizações noticiosas constroem suas agendas diárias a partir de um enorme volume de noticias que lhe é enviado pelas agências” (McCOMBS, 2009, p.177), ou ainda influência da agenda da mídia de entretenimento sobre a agenda noticiosa (2009, p.181). Ainda sobre a direção de um fluxo de interagendamento, Hohlfeldt aponta uma certa hierarquia dessa influência, partindo da mídia impressa para a eletrônica, “tanto no que toca ao agendamento do receptor em geral [...] quanto sobre as demais mídias. Estabelece-se, desta maneira, uma espécie de suíte sui generis, em que um tipo de mídia vai agendando o outro” (HOHLFELDT, 1997, p.47-48). Retomando a relação da imprensa com a agenda pública, McCombs aponta, no entanto, que os meios de comunicação não são as únicas fontes dos assuntos públicos, sendo estes 1. Embora a influência da agenda da mídia possa ser substancial ela sozinha não determina a agenda pública. As informações e sugestões do enquadramento e a saliência dos atributos estão longe serem os únicos determinantes da agenda pública. A influência dos meios de comunicação não anula ou derruba os pressupostos básicos da democracia e de que as pessoas em geral têm conhecimento suficiente para determinar o curso de sua nação, estado e comunidades locais. ( McCombs , 2002 p.8, tradução nossa) Ciências da Comunicação Capítulo 3 25 também mediados por relações pessoas, familiares, dentre outros, sendo que a “fonte dominante da influência, naturalmente, variará de tema para tema” (2009 p. 99). Um dos espaços afora a imprensa de massa comercial que podem influenciar a agenda pública e por conseguinte a esfera pública são os meios de comunicação das entidades da sociedade civil e corporativas, apontadas por Sant’Anna como mídia das fontes, sendo estas “mantidas e administradas por atores sociais que, até então, se limitavam a desempenhar o papel de fontes de informações” (2008, p.3). Assim, a opinião pública conta também com os meios institucionais com pautas e informações captadas dos movimentos sociais tratadas editorialmente pelas instituições. O objetivo da mídia das fontes seria, até certo grau, disputar a hegemonia no espaço público com os meios de comunicação de massa comerciais, atuando de forma a lutar pela inclusão dos temas de interesse de suas bases e representação na agenda pública, constituindo-se num embate de predominância de ideias na esfera pública, sendo que, “em função dessa predominância, poder-se-á influenciar, dentre outros efeitos, a definição de políticas públicas, privilegiando ou prejudicando este ou aquele segmento social” (SANT’ANNA, 2006, p.10). Na dificuldade e/ou impossibilidade de atuar ativamente na agenda da mídia tradicional, e por conseguinte na agenda pública, cresce a atuação dessa mídia das fontes, que se constitui “um novo elemento estratégico inserido neste front de disputa midiática” (SANT’ANNA, 2006, p.13), sendo essa ação informativa uma tentativa de garantir um referencial informativo e ideológico no seio da sociedade, nova proposta de agendamento face ao padrão mercantilizado, ou mesmo estéril em relação a determinados temas adotado pelo newsmaking da imprensa tradicional (SANT’ANNA, 2006, p.26) Desta forma, sob a perspectiva da concepção de mídia das fontes e sua atuação na busca pelo agendamento público de seus temas, é possível sugerir que, em alguma medida, esta mídia possa atuar de forma a influenciar a agenda da imprensa e dos meios de comunicação de massa. Conforme apontado anteriormente, uma dessas formas de agendamento da mídia, apontado por McCombs (2009), seria o interagendamento, em que a imprensa agenda a pauta da própria imprensa. No entanto, esta não é a única forma de se influenciar a agenda da mídia. Uma outra medida de pautar a agenda midiática é a do contra-agendamento, pelo qual a sociedade civil busca, por meio de ações como manifestações públicas, chamar a atenção da imprensa para suas demandas. Silva (2007), mesmo reconhecendo a validade das teorias clássicas do agendamento, ressalta a existência de outras formas de influencia agendas, como a do contra-agendamento, que propõe um fluxo contrário ao da agenda-setting e do interagendamento, partindo do público para a imprensa: há a existência de uma outra agenda-setting, na contramão da primeira, um fenômeno que denominaremos de contra-agendamento, sob uma hipótese de trabalho, a de que a sociedade também tem a sua pauta ou, no plural, as suas pautas, e as deseja ver atendidas pela mídia e tenta, diariamente, e sob as mais variadas maneiras, incluir temas nesse espaço público que é a mídia; e na esfera Ciências da Comunicação Capítulo 3 26 pública que se constitui da tematização polêmica das questões de uma atualidade (SILVA, 2007, p.85) No contra-fluxo do comumente contemplado, a agenda, desta forma, é definida da sociedade para a mídia, por meio de ações de organizações e setores da sociedade civil vislumbrando a atenção midiática para suas pautas, sendo esse movimento “consequência do empoderamento dos sujeitos da sociedade civil e da complexificação das relações entre mídia e sociedade” (SIRENA, 2013, p.4). Contra-agendamento seria então uma série de atuações das organizações da sociedade civil, estrategicamente aplicadas para atingir a imprensa e os meios de comunicação, com o objetivo de publicização e visibilidade pública. Cabe ressaltar que a atuação das organizações da sociedade civil tem sido fundamental para a publicização de temas de interesse públicos, sendo esse papel “responsável pela inserção na esfera pública de temas sociais e projetos de intervenção locais bemsucedidos que, com a devida promoção e visibilidade midiática, podem ser replicados e, assim, oferecer uma perspectiva de mudança social” (ROSSY, 2007, p.5). Segundo Silva, o conceito-chave do contra-agendamento é o advocacy, tido como um elemento “qualificador da ação do agendamento institucional”, voltado especificamente para a defesa da pauta frente à imprensa, já que sua atividade “é focada social, econômica e culturalmente, embora dependa, enfatizamos, visceralmente da visibilidade que encontre na mídia” (SILVA, 2007, p.87), sendo compreendido advocacy como “a ação do lobby [...] em favor de um tema institucionalizado ou em vias de institucionalização” (2007, p.87). A definição de advocacy apontada por Silva, portanto, é a de atuação das entidades na defesa dos interesses públicos, ou seja, “falar ou advogar em nome de outro a fim de obter justiça”, significando também “propor ou recomendar alguma coisa a alguém” (2007 p.87). Portanto, as ações de advocacy estão focadas sob a perspectiva de pressionar o poder público para a implementação de políticas públicas nas diversas áreas, além de serem utilizadas também na defesa dos direitos de segmentos ou públicos específicos (ROSSY, 2007, p. 7) Mesmo admitindo que o contra-agendamento está relacionado à questão da mediação – tanto entendida quanto a busca dos meios de comunicação para composição de associativismo e dar corpo ás organizações, quanto pela questão da visibilidade e publicização de seus temas e consequentemente seu lançamento à esfera pública – e do agendamento que possibilitado nesse contra-fluxo da agenda- setting tida convencionalmente, Silva reitera que estas duas questões não seriam possíveis sem a advocacia de interesses (2007, p.100). Retomando os conceitos apontados, percebe-se uma pluralidade de agendas na sociedade, como a da imprensa e da sociedade. Ocorre que tais agendas atuam de forma a influenciar umas as outras, em medidas diferentes. No interagendamento midiático, os fluxos de influências são restritos às pautas da própria imprensa, no qual as notícias e seus enquadramentos publicados por determinados veículos Ciências da Comunicação Capítulo 3 27 são replicados e/ou influenciam as reportagens de outros veículos. Já no contraagendamento, ocorre uma inversão do fluxo de influência apontado pela teoria clássica do agendamento. Se anteriormente o que se percebia era a influência da imprensa na agenda de discussões da sociedade, no contra-agendamento, ocorre a influência das ações da sociedade civil nas pautas da imprensa. No entanto, conforme apontado por Silva (2007), o contra-agendamento se dá quando há clara intenção por parte da sociedade civil em promover uma ação que objetiva a inserção na imprensa, ou seja, uma ação idealizada e realizada exclusivamente para ser midiatizada. IMPRENSA SINDICAL E IMPRENSA DE MASSA: INTERAGENDAMENTO OU CONTRA-AGENDAMENTO? No dia 23 de julho de 2014, o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Curitiba (Sismuc) publicou em site uma reportagem repercutindo uma denúncia realizada pelo sindicato à Prefeitura de Curitiba acerca da falta de manutenção e sanitização da Central de Abastecimento, responsável pelo armazenamento de alimentos de 32 Armazéns da Família de Curitiba. Segundo a denúncia, os alimentos ficam expostos à urina e fezes de ratos e pombos, que também põe em risco a saúde de trabalhadores que manuseiam os alimentos e sobretudo dos consumidores (SISMUC, 2014). No dia 23 de julho de 2014, às 17h11, o portal Bonde News, do grupo Folha de Londrina, publicou um texto, sob o título “Sindicato denuncia presença de ratos e pombos na Central de Abastecimento de Curitiba” (BONDE, 2014), repercutindo a denúncia do Sismuc. No mesmo dia, às 17h04, foi a vez do portal Paraná Online publicar a reportagem sobre a denúncia, intitulada “Sindicato diz que há pragas em Central de Abastecimento” (PARANÁ 2014), seguido da Gazeta do Povo, que levou ao ar em seu site às 19h43 a reportagem sob o título “Sindicato denuncia falta de higiene na Central de Abastecimento em Curitiba” (GAZETA, 2014). A repercussão da denúncia indica o agendamento da pauta sindical à agenda midiática. No entanto, conforme apontado anteriormente, objetivamos analisar sob qual perspectiva do agendamento midiático se dá a relação da publicação do sindicato às dos portais noticiosos. Desta forma, partimos para a identificação de elementos da reportagem sindical e suas aparições nos textos veiculados pela imprensa de massa. Para tanto, como indicado anteriormente, buscamos nos textos marcas que identifiquem a replicação de informação, ou seja, a reincidência de elementos que nos deem subsídios para identificar a forma de agendamento, como quem são as fontes de informação recorridas, o conteúdo de suas falas, as formas de apresentar as informações bases da denúncias, dentre outros. As informações sobre o local da infestação – Central de Abastecimento -, o bairro – Capão da Imbuia-, a origem das denúncia – servidores municipais-, a instituição que oficializou a denúncia – Sismuc – e o motivo da denúncia – infestação de ratos e Ciências da Comunicação Capítulo 3 28 pombos e o contato dos alimentos com seus dejetos – estão presentes em todos os textos, como subsídios que fundamentam o conteúdo do texto jornalístico. Ressalta- se a complementaridade indicada à localidade da infestação, de que a Central de Abastecimento é responsável pelo fornecimento de alimentos a 32 Armazéns da Família, e sua aparição em todos os textos no início das reportagens e/ou em locais de destaque, como elemento que indica a amplitude do acontecimento e dimensiona o impacto da infestação. A publicação do Sismuc é estruturada em três eixos informativos, sendo o primeiro referente à denúncia e a infestação da Centra de Abastecimento por ratos e pombos, a segunda é referente ao desperdício de alimentos afetados pelo contato com os dejetos dos animais, e o terceiro é sobre a resposta da prefeitura ante o questionamento do sindicato e a indicação de uma reunião entre a entidade e o executivo municipal (SISMUC, 2014). Na reportagem veiculada pelo Bonde News e pelo Paraná Online foram contemplados os três primeiros eixos informativos do texto do Sismuc, citando apenas a reunião anunciada no terceiro eixo (BONDE, 2014; PARANÁ, 2014). Já na reportagem da Gazeta do Povo, há a presença dos três eixos da reportagem do Sismuc (GAZETA, 2014). Quanto as informações contempladas nas reportagens dos veículos informativos das empresas de comunicação, há presença de conteúdos proveniente de contato das redações com a prefeitura na da Gazeta do Povo e do Paraná Online. No Bonde News, as informações veiculadas são retiradas do informativo sindical. Quanto a aparição de vozes de fontes e personagens, a reportagem do Sismuc conta com fala institucionalizada do coordenador do sindicato, sobre a preocupação da entidade em relação aos riscos de saúde dos consumidores dos alimentos expostos às fezes e urinas dos pombos e ratos; a fala da coordenadora geral do sindicato, reiterando a existência dos indícios de infestação na Central de Abastecimento, e de um servidor anônimo, falando sobre os desperdícios de alimentos devido ao contato destes com os dejetos dos animais (SISMUC, 2014). Na reportagem do Bonde News, há a aparição total da fala direta – entre aspas - do coordenador do sindicato, nos mesmos termos da reportagem do sindicato, e parte da fala direta – entre aspas - do servidor, bem como o uso de informações da fala do servidor diluída no texto, sem indicação de fonte. Na reportagem do Paraná Online, há a aparição total direta da fala do coordenador do sindicato, e uso do conteúdo da fala do servidor, descaracterizado, no entanto, de sua autorial, arrolando como informação indicada como da assessoria de comunicação da entidade. Na Gazeta do Povo, há apenas parte da fala do coordenador do Sismuc, inserida na reportagem na forma direta, ou seja entre aspas. Quanto a origem da informação, na reportagem do Bonde News, a origem das informações são creditadas ao Sismuc, sem qualquer menção da localidade de obtenção da informação e/ou da assessoria de comunicação da entidade. Na reportagem do Paraná Online, há indicação da assessoria de comunicação como fonte da produção das noticias. Já na reportagem da Gazeta do Povo, além da indicação da assessoria de Ciências da Comunicação Capítulo 3 29 comunicação na origem da informação, há a indicação da localidade da informação como “matéria publicada no site do sindicato”. Desta forma, indicada as origens da informação, quais sejam: a assessoria de comunicação do sindicato e o site da instituição; é possível indicar - mesmo no caso da reportagem do Bonde News - em que não há clara indicação da origem da informação, mas em que é possível deduzi-la pelo conteúdo e pelas falas institucionalizadas veiculadas - que houve um agendamento da pauta midiática do Sismuc nas pautas dos referidos veículos de comunicação de massa. Em segundo ponto, também é possível sugerir que o agendamento também se deu pelos atributos, por meio da replicação dos pontos indicados na reportagem do Sismuc nas publicadas nos portais da imprensa, bem como o enquadramento da matéria do meio de comunicação sindical, apontado nos três eixos informativos e presentes no textos dos portais de comunicação da imprensa de massa. Quanto a possibilidade do contra-agendamento, cabe apontar que não há na publicação uma pretensão de se buscar o agendamento da imprensa de massa, como intuito primeiro da publicação, característica das ações de contra-agendamento apontada por Silva (2007), bem como a existência de ações de advocacy – também enquanto ação que visa o agendamento da mídia -, elemento fundamental para a conceituação do contra-fluxo proposto por Silva. Não há marcas nas reportagens, tanto na do Sismuc quanto nas dos meios de comunicação, que indiquem qualquer ação de advogacia da entidade com fins de sensibilização da mídia, como a realização de um ato público, etc. Por outro lado, ainda levando em consideração a possibilidade da sociedade civil de influenciar a agenda da mídia, e sob a perspectiva do conceito de mídia das fontes, apontado por Sant’anna, é possível sugerir um agendamento intermidiático da pauta do portal do Sismuc, enquanto meio de comunicação da entidade sindical e dos trabalhadores que a organização representa, influenciando as agendas dos meios massivo de comunicação. Uma das indicações que reforçam tal interpretação, conforme citado acima, é o de indicação da origem da informação, com destaque para a publicação da Gazeta do Povo, que credita a pauta à matéria publicada no site do sindicato. Por fim, ressalta-se que esse agendamento não se deu apenas na transposição do tema, por parte da agenda do Sismuc, a ser veiculado pelos meios de comunicação de massa, mas sobretudo pelos atributos e enquadramentos das reportagens sugestionados pela matéria da entidade sindical. CONSIDERAÇÕES FINAIS Se não definem o quê pensamos, a imprensa e os meios de comunicação de massa, por meio da publicização de temas, e pelos atributos, recortes e enquadramentos utilizados nas veiculações desses temas, podem influenciar no quê iremos debater, e sob quais perspectivas trataremos determinados assuntos. No entanto, essas Ciências da Comunicação Capítulo 3 30 características de influência dos meios para o público, objeto de análise da teoria do agendamento, pode não dar conta da complexidade dos inúmeros cruzamentos de agendas existentes na sociedade como um todo (SILVA, 2007). Afinal, a imprensa também tem uma agenda e ela é sensível a diversas agendas da sociedade, como a da sociedade civil, que por meio do contra-agendamento busca inserir nos meios de comunicação suas pautas e reivindicações. Como aponta Silva, no entanto, esse agendamento é orientado pela ação do advocacy, que tem por norte defender a bandeira da instituição com o objetivo último de propor a influência das suas pautas nos meios. Outro fenômeno apontado na teoria do agendamento é o interagendamento midiático, pelo qual a imprensa influencia a agenda de outros veículos de comunicação. Afora as discussões sobre as pretensões de se influenciar ou não as agendas de outras mídias, no interagendamento midiático ocorre na medida em que determinados temas e enquadramentos publicados por alguns veículos de imprensa são replicados por outros veículos. Por outro lado, como entidade da sociedade civil responsável pela defesa e reverberação dos direitos dos trabalhadores, os sindicatos dispendem de meios próprios de comunicação, que objetivam, em primeiro plano, a informação, aglutinação e orientação político-ideológica de seus públicos, e em segundo plano, a busca pela publicização nos meios massivos de comunicação. Ocorre que, muitas vezes, as pautas sindicais influenciam as agendas midiáticas, quer seja pelo contra-agendamento, na medida em que emprega ações que vislumbrem a atenção da imprensa, com atos públicos e manifestações, quer por meio do interagendamento midiático, influenciando as pautas da imprensa de massa por meios das veiculações informativas em seus próprios meios. Durante as análises das reportagens do Sismuc e dos portais paranaenses de notícias - Paraná Online, Bonde News e Gazeta do Povo – não se percebeu ações que pudessem sugerir intenção última da entidade sindical de influenciar a agenda midiática, como ações de advocacy (SILVA, 2007), apontados como fundamentais para o contra-agendamento. Conforme apontado no presente trabalho, as análises das reportagens do Sismuc e dos portais de notícia paranaenses Paraná Online, Bonde News e Gazeta do Povo, sugerem uma ação de interagendamento midiático no tocante a influência da reportagem do site do sindicato nas publicações dos portais da imprensa de massa. REFERÊNCIAS BONDE News. Sindicato denuncia presença de ratos e pombos na Central de Abastecimento de Curitiba. Portal Bonde News. 23 de julho de 2014. Disponível em: <http://www.bonde.com.br/?id_ bonde=1-3--787-20140723&tit=sindicato+denuncia+presenca+de+ratos+e+pombos+na+central+de+a bastecimento+de+curitiba>. Acesso em: 05 de dezembro de 2014 CABRERA, Ana. Missão Paz em Timor: percurso de um pseudo-acontecimento. In: TRAQUINA, Ciências da Comunicação Capítulo 3 31 Nelson et al. O jornalismo português em análise de casos. Lisboa, Caminho, 2001. Pp: 195-260. GAZETA do Povo. Sindicato denuncia falta de higiene na Central de Abastecimento em Curitiba. Vida e Cidadania. Portal da Gazeta do Povo. 23 de julho de 2014. Disponível em: <http://www. gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1486127>. Acesso em: 05 de dezembro de 2014. HOHLFELDT, Antonio. Os estudos sobre a hipótese de agendamento. Revista Famecos, Porto Alegre, n. 7, p. 42-51, nov. 1997. LIPPMANN, Walter. Opinião pública. Editora Vozes: Petrópolis, 2008. McCOMBS, Maxwell. A Teoria da Agenda: a mídia e a opinião pública. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. McCOMBS, Maxwell. Entrevista concedida a José Afonso da Silva Junior, Pedro Paulo Procópio, Mônica dos Santos Melo. 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Mídia das fontes: o difusor do jornalismo corporativo. Biblioteca on-line de Ciência da Comunicação, Lisboa, 2006. SILVA, Luiz Martins da. Sociedade, esfera pública e agendamento. In: BENETTI, Márcia; LAGO, Cláudia. (Org.). Metodologia de pesquisa em jornalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. Ciências da Comunicação Capítulo 3 32 CAPÍTULO 4 MÍDIA NINJA: PROCESSO DE PRODUÇÃO DE INFORMAÇÕES AUDIOVISUAIS, POR MEIO DE DISPOSITIVOS MÓVEIS, SOBRE O CASO MARIELLE FRANCO Valéria Noronha de Oliveira Universidade Federal do Piauí Teresina, Piauí RESUMO: A mídia alternativa ganha novamente destaque com o assassinato da vereadora e ativista Marielle Franco, em especial a Mídia Ninja, objeto desta pesquisa. Milhares de pessoas vão às ruas com seus smartphones e publicam o evento via streaming nas redes sociais. Dentre elas estão colaboradores do coletivo Narrativas Independentes Jornalismo em Ação. A produção midiativista reacende o debate contra os meios de comunicação hegemônicos ao dar voz às classes sociais heterogêneas. É neste contexto que o presente estudo analisa a produção noticiosa, no formato audiovisual, por meio dos dispositivos móveis, para confecção de materiais acerca dos movimentos desencadeados no dia 15 de março de 2018 em todo o Brasil. Trata-se de um estudo de caso, com análise das 35 transmissões realizadas com as hashtags #AoVivo e #MariellePresente na página da Mídia Ninja no Facebook. PALAVRAS - CHAVE: Mídia Ninja; Mobilidade; Contra-hegemonia; Produção audiovisual; Dispositivos móveis. ABSTRACT: The alternative media is again Ciências da Comunicação highlighted by the murder of councilwoman and activist Marielle Franco, especially the Mídia Ninja, object of this research. Thousands of people take to the streets with their smartphones and publish the event via streaming on social networks. Among them are collaborators of the collective Narrativas Independentes em Ação. The media production rekindles the debate against the hegemonic media by giving voice to the heterogeneous social classes. It is in this context that the present study analyzes the news production, in the audiovisual format, through the mobile devices, to make materials about the movements unleashed on March 15, 2018 throughout Brazil. This is a case study, with analysis of the 35 transmissions carried out with the hashtags #AoVivo and #MariellePresente on the page of the Media Ninja on Facebook. KEYWORDS: Mídia Ninja; Mobility; Counterhegemony; Audiovisual production; Mobile devices. 1 | INTRODUÇÃO Com o advento das tecnologias digitais, o fazer jornalístico ganhou ferramentas hoje indispensáveis para a construção, apuração, circulação e consumo de informações. Dispositivos móveis, como smartphones e tablets, foram apropriados por jornalistas nas Capítulo 4 33 redações, portais e TVs, fenômeno que tem impactado não só nos aspectos técnicos de produção, mas na proximidade e interatividade para com o público consumidor dos serviços via aplicativos ou por meio de páginas nas redes sociais (SILVA, 2014). O jornalismo móvel digital possibilitou maior dinâmica aos profissionais e a transmissão de furos em tempo real, não sendo necessária a presença de uma equipe de reportagem. Os smartphones dispõem de boas câmeras, aplicativos de edição e acesso à internet, que promovem a união da característica móvel dos dispositivos, referente à mobilidade, e digital, à digitalização, levando à descentralização da redação jornalística (GOMES, 2017). A mídia tradicional ou hegemônica tem se adaptado às transformações, embora a essência das informações coletadas e fontes sejam as mesmas. Aos poucos, os grandes meios de comunicação dão abertura ao chamado jornalismo colaborativo, em outras palavras o crowdsourcing, potencializado pelos dispositivos móveis. De acordo com Träsel (2010), a “ferramenta libera os repórteres de tarefas repetitivas e de pouca exigência técnica, garantindo mais tempo para minerar pautas inovadoras e informação realmente inédita”. Em contraponto, a mídia alternativa é constituída por colaboradores, formados ou não em jornalismo, que assumem o papel de comunicadores junto aos movimentos sociais. Os midiativistas, munidos com câmeras de celulares, acesso às redes sociais por meio da internet móvel e outros mecanismos de transmissão disponibilizados nas plataformas digitais, remam contra a maré dos meios de comunicação hegemônicos para levar não só imagens, mas informações narradas por vozes desconhecidas (BITTENCOURT; PUHL, 2013). A hegemonia de Gramsci remete à dominação, com ou sem consentimento, de forma globalizada, arraigadas por ideias neoliberais e de democracia representativa, que por fim só levam ao monopólio econômico e político do mundo, acrescido de desigualdades sociais. É neste contexto que faíscas de resistência, simbolizadas por lutas e disputas, entram em choque com o arsenal gigantesco da grande mídia (GÓES, 2007). Peruzzo (2004) esclarece que, quando as classes dos setores sociais manifestam insatisfação, questionam e reivindicam mudanças no poder público e capital privado, e barganham pequenas conquistas, o poder contra-argumentativo é lançado. “Para haver transformação social devem ser construídos novos valores culturais e serem criados numa nova visão de mundo e de coesão social” (GÓES, 2007, p.3). A partir disto nasce o que Gramsci chama de força contra-hegemônica, reconhecida como aquela capaz de modificar e alterar dada estrutura social. O levante desta força está nos movimentos sociais, conectados e divulgados pelos meios alternativos. Nos últimos anos, a mídia alternativa digital ou midiativista começou a conquistar voz no contexto atual. Foi em junho de 2013, que eclodiu nas redes sociais um grupo chamado Narrativas Independentes Jornalismo em Ação, a Mídia Ninja, impulsionada pela cobertura via streaming, no Facebook, do Movimento Passe Livre (MPL). A mídia Ninja, ao contrário da hegemônica se utiliza, quase que exclusivamente do jornalismo Ciências da Comunicação Capítulo 4 34 colaborativo. Uma outra característica é ela estar atrelada a movimentos sociais com ideologia declarada. Becker e Machado (2014) avaliam o modo de produção da mídia como amadora, mas com grande força de testemunho, seja por conta da grande quantidade de vídeos e fotos produzidas, como também do público alcançado pelas redes sociais. A pluralidade toma o lugar do homogêneo. No dia 14 de março de 2018, um novo evento fez borbulhar gritos por justiça no Brasil e no mundo. A vereadora do PSOL e ativista dos direitos humanos Marielle Franco foi assassinada quando voltava para casa às 21:30H, no Estácio, centro do Rio de Janeiro. Em polvorosa, os meios de comunicação tradicionais divulgaram o ocorrido, porém a Mídia Ninja só iria se manifestar no dia seguinte. Dessa forma, o presente trabalho pretende analisar a produção noticiosa, no formato audiovisual, com utilização dos dispositivos móveis, para confecção de materiais acerca de movimentos desencadeados com o assassinato da vereadora Marielle Franco. A plataforma tomada como base foi a página Mídia Ninja, da rede social Facebook. A metodologia abordada foi estudo de caso com análise dos vídeos produzidos no dia 15 de março de 2018 com as hashtags #AoVivo e #MariellePresente. Ao todo, foram analisados 35 vídeos, publicados via streaming, editados pela própria Mídia ou colaboradores. 2 | DISPOSITIVOS MÓVEIS PARA A CONSOLIDAÇÃO DO MODO DE PRODUÇÃO ALTERNATIVO Os portais e redações tradicionais são impactados com o processo de convergência jornalística, na qual novos modelos convertem-se em multiplataformas. A multimidialidade e convergência, personalização, interatividade, memória e atualização contínua resultam em características do jornalismo digital (BARBOSA, 2013). Soma-se a esse contexto o potencial da mobilidade, que tem permitido formas de produção e circulação de informações alternativas e instantâneas por indivíduos não necessariamente profissionalizados e/ou organizados, desde que munidos de acesso à rede e a um dispositivo para registro das imagens (REGO, 2016). A mídia alternativa se apropria da funcionalidade dos dispositivos móveis para dar uma nova roupagem aos movimentos sociais, como por exemplo, a construção de um novo padrão com linguagens, rotinas e narrativas próprias da Rua-mídia. Isso permite, pelo menos, a redução da assimetria, antes mais evidente e impositiva, que caracterizava a tarefa do jornalista, considerado o portador da notícia e o seletor da agenda, impactando não apenas o jornalismo, como também a rotina dos usuários em seus mais diversos âmbitos (LUCHESSI, 2015; MISSAU, 2015; BECKER, 2016). Conforme pondera Bentes (2014, p.331): Ciências da Comunicação Capítulo 4 35 Estamos diante de uma mobilização global político-afetiva nas ruas e nas redes. Os ciclos de lutas globais tornaram-se referência e laboratório global das novas lutas e nessas experiências as imagens em tempo real produzem outra qualidade de relação com o presente e na constituição dos novos sujeitos políticos. Trata-se de um impacto cognitivo-afetivo produzido pela transmissão ao vivo (streaming) durante centenas de horas ininterruptas. As emissões ao vivo têm sido associadas a posts, hashtags, tweets e memes online, para criar ondas de intensa participação em que a experiência de tempo e de espaço, a partilha do sensível, a intensidade da comoção e engajamento constroem um complexo sistema de espelhamento, potencialização entre redes e ruas (BENTES, 2014, p.331). Góes (2007) aborda o ciberespaço como palco da luta contra-hegemônica. A internet é o abrigo onde os movimentos sociais, políticos e culturais se encontram para se legitimar e alcançar suas bases sociais. Outro ponto é o baixo custo. As redes sociais fornecem ferramentas que aumentam o poder de distribuição e de denúncia das mazelas da sociedade. Castells (2001) aponta que a internet, neste caso, tornase um instrumento de transformação social. “Lá referenciam suas demandas, contam suas histórias, denunciam seus opressores e potencializam suas bases sociais de apoio. É no ciberespaço que suas histórias de luta estão registradas e onde suas experiências podem ser somadas às de outros movimentos” (GÓES, 2007, p.7). A mídia de rua destaca-se pela seleção (de pauta) e framing (enquadramento) das notícias. Enquanto os meios tradicionais se preocupam com a forma de abordar determinado acontecimento, filtrando informações e polindo os assuntos que serão tratados, o midiativismo vai selecionar temas negligenciados, como a violação dos direitos humanos ou casas de orixás que serão derrubadas para construir uma nova praça, por exemplo. E o mais importante, dá vida às narrativas, o framing, na voz dos movimentos sociais e/ou de quem sofre o problema. Há, o que Atton (2002) diz ser a erupção dos gritos abafados para a sociedade com surdez seletiva. Existe, portanto, um potencial para uma prática comunicacional mais cidadã. Afinal, conforme argumenta Caballero (2012), em todo processo de apropriação há um ato popular de transformação do sentido e da experiência; e, no processo de inclusão digital, essa apropriação poderia ser de empoderamento e cidadania. No conceito de cidadania, em consonância com Dourado, Lopes e Marques (2014), englobamos as esferas civil, política e social, acreditando que o exercício dos direitos e deveres do cidadão para com o Estado e com a comunidade perpassa diferentes âmbitos: público, privado e governamental. Exercício esse que tem, hoje, a potencialidade de ocorrer em tempo real e em diferentes plataformas tecnológicas, incluindo a televisão e os dispositivos móveis. Este fato é evidenciado durante a análise das transmissões ao vivo e vídeos editados pela Mídia Ninja um dia após o assassinato de Marielle Franco. Mulheres negras tomam a frente das marchas, usam o microfone para discursar poemas, histórias de vida pela qual Marielle lutava em seus ativismos. A personalização do framing em proximidade com o medo do silenciamento, da violência, crenças e sonhos das mulheres negras são a extensão da força e sentimentos que o movimento erguido Ciências da Comunicação Capítulo 4 36 por Marielle buscava alcançar. Este é um dos papéis da mídia contra-hegemônica de Gramsci reformulada através do tempo. A Mídia Ninja fez emergir e deu visibilidade ao “pós-telespectador” de uma “pósTv” nas redes, com manifestantes virtuais que participam ativamente dos protestos/ emissões discutindo, criticando, estimulando, observando e intervindo ativamente nas transmissões em tempo real e se tornando uma referência por potencializar a emergência de “ninjas” e midialivristas em todo o Brasil (BENTES, 2014, p. 331). Embora o público da Mídia Ninja, no Facebook, seja restrito a um pouco mais de dois milhões de inscritos, os vídeos sobre Marielle Franco entraram na espiral de recirculação, abrangendo um número maior de pessoas, que apoiam ou não os movimentos sociais desencadeados. Em dado momento, a hashtag #MariellePresente ultrapassa a fronteira brasileira para outras nações. 3 | A MÍDIA NINJA NO CASO MARIELLE Por volta das 21:30H, do dia 14 de março de 2018, Marielle voltava para casa após reunião com membros de um movimento negro que participava. O carro conduzido por Anderson Gomes com a ativista e sua assessora foi interceptado por outro veículo não identificado no Estácio, próximo à Prefeitura do Rio de Janeiro. Vários tiros foram disparados, nove acertaram o corpo de Marielle. Sem possibilidade de socorro, ela e Anderson não resistiram aos ferimentos. Dias atrás, a vereadora havia criticado, nas redes sociais, uma ação militar na favela de Acari. Mulher, negra, lésbica, Marielle lutava em prol dos direitos humanos e desde fevereiro de 2018 operava o observatório de segurança, da intervenção federal no Rio. A notícia do assassinato foi repercutida minutos após o crime pelas mídias nacionais. Na página do Facebook da Mídia Ninja foi postado o vídeo da campanha de candidatura da vereadora, porém no dia 15 de março, a rede social começou a ser movimentada com as chamadas live streaming, transmissões ao vivo em português, acontecidas em seis capitais brasileiras: Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Porto Alegre e Brasília. Esta última não participou da análise, pois foi recirculada do site da TV Câmara. Naquele dia foram publicados 35 vídeos relacionados ao caso Marielle produzidos, em sua maioria, por dispositivos móveis com as hashtags #AoVivo e #MariellePresente, desde transmissões em tempo real e editadas pela Mídia Ninja ou colaboradores. Dos 35 vídeos, 24 são live streaming, 11 editados, 7 pela Mídia estudada e 4 por contribuintes. A análise foi subdividida nestas três categorias e abordadas de forma independente, sendo escolhidos de um a dois vídeos para ilustração do conteúdo no presente artigo. Bentes (2014) reflete sobre a importância das mídias livres na proposição de outras estéticas, da quantidade de informações e transmissões ao vivo, “que se apropriam das figuras de linguagem do próprio cinema, da televisão e das redes sociais” (p.332). Ciências da Comunicação Capítulo 4 37 Para a autora, os movimentos de câmera, que por vezes dão a impressão de correria (câmera cega), as respirações, narrativa dos colaboradores e pessoas captadas na rua transcendem o caráter documental das transmissões. As emissões são singulares como o próprio imprevisível dos acontecimentos nas ruas e ao mesmo tempo fazem emergir figuras de linguagem, gestos e atos cinematográficos recorrentes: uma instável câmera subjetiva, câmera cega, o oscilante dispositivo de câmera/celular anômala, narração em direto imprevisível, autoperformance, plano-sequências extensos, edição na própria câmera. Arriscaríamos dizer que nessas imagens a estética pode ser pensada como um “resto”, o que sobra, o que sobrevive de uma intensa intercomunicabilidade expressiva. São imagens que carregam a marca de quem afeta e é afetado de forma violenta, colocando o corpo/câmera em cena e em ato. (BENTES, 2014, p.333) As transmissões ao vivo foram estabelecidas por dispositivos móveis em atos, marchas, inclusive referentes ao velório de Marielle e Anderson, na Câmara dos Vereadores do Rio. Os conteúdos possuem estilo amador, com ou sem narração do portador do smartphone, inundados de ruídos, sem cortes, viabilizados, em certos momentos, pela internet de telefonia móvel, 3G e 4G. Assim, os vídeos editados em caráter urgente dão fôlego para as novas movimentações que vem a seguir. Figura 01: Transmissão em tempo real feita por colaboradores da Mídia Ninja. Fonte: captura de tela. Além do compartilhamento de conteúdos audiovisuais on-line, o fenômeno de convergência ocorre durante bate-papo desencadeado via streaming na rede social. Esta é mais uma forma de interatividade e multiaplicabilidade da tecnologia digital como fomentadora da democracia (SILVA, 2014). As tags redirecionam os internautas para a página de transmissão, recurso utilizado nos sistemas de buscas das redes. Os primeiros ao vivo do dia partiram de colaboradores na chamada “#AoVivo – Ato em memória da guerreira Marielle Franco na tenda Povo Sem Medo, durante o Fórum Social Mundial em Salvador”. O framing utilizado no primeiro streaming acompanha passivamente os discursos de ordem política do evento sobre Marielle, enquanto surge Ciências da Comunicação Capítulo 4 38 um choro abafado por trás da câmera. A seleção (pauta) não se resume a homenagear a ativista, mas também a reivindicar visibilidade para as minorias e manutenção da luta por seus direitos. É neste formato que se insere a resistência contra-hegemônica (GÓES, 2007). O ato se transforma em jornada com o nome “Marcha #Mariellepresente direto do Fórum Social Mundial”. A autora das imagens se propôs a contextualizar os fatos para quem acabava de chegar, semelhante à programação do Radiojornalismo, mecanismo que revela o imediatismo das imagens. Os enquadramentos são preservados, enquanto discursos são proferidos por quem faz parte do movimento e se aglutina a ele. Os 11 vídeos editados duram, em média, dois minutos e transmitem, de maneira poética, mensagens sobre e para Marielle. Em alguns, nota-se a presença de vinheta, indicando que aquela edição pertence à Mídia Ninja. A captação de imagens, formação e montagem de conteúdo, etc., são realizadas por voluntários e o financiamento da mídia ocorre por doações. Na descrição ou legenda do produto midiativista, percebe- se o destaque para a voz daqueles que constituem o movimento, personalizando-o. O uso de frames e sons capturados ao longo do dia, ressignificam e entoam a mensagem que a mídia ativista se preocupa em repercutir. As colaborações de produtos audiovisuais são selecionadas por meio de filtros para compartilhamento manejados pela administração da página. Vídeos sem cortes, embora gravados em ambientes pouco iluminados com o auxílio dos dispositivos móveis entram no círculo de publicações, por conterem material de manifesto social, da Mídia-Multidão e movimento de rua. Como afirma Bentes (2014), há alguns parâmetros expressos na tipologia de produção e veiculação do audiovisual. Dentre eles, a autora destaca o estado de atenção e urgência e a importância das vozes e ruídos. A imersão do telespectador nas ruas pode ser comparada a um animal à espreita, de sentidos aguçados, a contemplar o acontecimento. Os dispositivos móveis empunhados pelos emissores das informações adquirem a forma de “animais paranoides, uma câmera-dispositivo-corpo em fuga, em devir e deriva” (BENTES, 2014, p.335). Assim, as imagens captadas pelos midiativistas interagem com a audiência ao despertar múltiplas sensações na percepção das vozes, ruídos e movimentos de câmera. Ciências da Comunicação Capítulo 4 39 Figura 02: Vídeo editado pela Mídia Ninja com legenda de grito oriundo dos manifestos próMarielle. Fonte: captura de tela. 4 | DISCUSSÕES SOBRE O TEOR JORNALÍSTICO DA MÍDIA ALTERNATIVA No site oficial da Mídia Ninja, o Narrativas Independentes Jornalismo em Ação se declara partidário das causas sociais e não esconde sua inclinação política, como a editoria de um jornal ou programa famoso dos meios de comunicação hegemônicos o fazem, embora em muitos casos não literalmente. Becker (2013) aponta que a produção colaborativa audiovisual, sobretudo a apresentada pela midiativista, configura relatos plurais dos acontecimentos em relação ao modelo empregado na grande mídia. A quantidade de ferramentas e tecnologias digitais disponíveis não são suficientes para garantir a qualidade do material veiculado. Dessa forma, a apropriação dos modelos empregados pela web e aplicativos chegam de forma incipiente aos jornais televisivos. As programações da TV aberta começam a passar por um período de adaptação para as telas dos smartphones e é cada vez mais forte a presença do jornalismo colaborativo nesses tipos de mídia. Porém há de se ter certa cautela. Para Deuze (2013), a televisão ainda ocupa lugar estratégico na construção da realidade cotidiana e assuntos como a ruptura cultural e a democratização, por meio das transmissões por dispositivos móveis na rede, ainda são questões complexas. É reconhecida a facilidade com a qual as informações são disseminadas, porém esta não é a garantia de que o mesmo tratamento imparcial do mundo off-line seja dado no mundo on-line. “O mundo on-line é cheio de protocolos que também controlam a produção de informação e mediações na rede, que por sua vez produzem diversidade cultural e singularidades tanto quanto aliança e tradicionalismo” (BECKER; MACHADO, 2014, p. 39). Já Góes (2007) indica que a produção heterogênea na internet, com a presença de personagens singulares dos movimentos sociais são características que a mídia Ciências da Comunicação Capítulo 4 40 alternativa carrega. Porém acreditar que as tecnologias digitais trouxeram uma nova era para superar a hegemonia é um mito. 5 | CONCLUSÕES Com efeito, a Mídia Ninja na plataforma Facebook movimenta mais de dois milhões de pessoas. A produção audiovisual na rede é a força motriz da circulação e recirculação de conteúdo, que conta com a participação voluntária de milhares de pessoas no Brasil e em alguns países da América Latina e Europa. Outros serviços como a fotografia e confecção de memes são pontuados na página. O midiativismo encontrado na internet, segundo Góes (2007), anda de mãos dadas com movimentos contra-hegemônicos capazes de mudar certas estruturas sociais do meio. Foi neste contexto que ocorreu a elaboração do presente artigo com o estudo de caso do Narrativas Independentes Jornalismo em Ação e análise da produção audiovisual com dispositivos móveis desdobrada após o assassinato da vereadora e ativista Marielle Franco. Pode-se perceber que a seleção (de pauta) e framing (enquadramento), empregados na rotina de produção de conteúdo audiovisual estavam voltados para os personagens que compunham os movimentos de rua do dia 15 de março de 2018. A maioria dos vídeos produzidos no canal de transmissões live streaming, contabilizadas em 24 dos 35 vídeos analisados. Destes, 11 foram editados pela Mídia Ninja ou cedidos por colaboradores. Para efeito de localização, as legendas vinham acompanhadas das tags: #MariellePresente e #AoVivo. Bentes (2014) destaca o arquétipo audiovisual empregado pelos midialivristas como próximo ao cinema, que se utiliza de elementos sonoros e movimentos de câmera que denotam ação, estados de alerta, percepção do território e sensibilizam o espectador como se este participasse fisicamente do manifesto ou outro ato de cobertura no ao vivo. As transmissões podem ser localizadas pelas tags, característica que só o meio digital tem acesso. Com elas é possível encontrar, por meio dos mecanismos de busca das redes sociais, conteúdos afins. A mídia alternativa aqui estudada se autodeclara partidária a movimentos sociais e ideologias, fato que traz questionamentos quanto ao teor jornalístico empregado na produção. Entretanto, Becker e Machado (2014) apontam a importância histórica de registro e heterogeneidade das vozes representadas na web. Os meios hegemônicos de comunicação, aos poucos começam a se utilizar das ferramentas digitais e do jornalismo colaborativo para confecção do material noticioso, além de alcançar outras plataformas além da TV, como é o caso da adaptação das programações jornalísticas aos aplicativos para smartphones. A produção audiovisual do caso Marielle na Mídia Ninja repercutiu o seio dos movimentos sociais desencadeados em seis estados brasileiros, dando visibilidade Ciências da Comunicação Capítulo 4 41 e autonomia às múltiplas vozes que compõem as manifestações em prol dos direitos humanos e ainda ecoam nos conteúdos contra-hegemônicos. REFERÊNCIAS ATTON, Chris. 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Ciências da Comunicação Capítulo 4 43 CAPÍTULO 5 MANIFESTAÇÕES EM MEGAEVENTOS: APONTAMENTOS SOBRE A COBERTURA DO SITE G1 E MÍDIA NINJA DA COPA DO MUNDO 2014 Milton Julio Faccin Universidade Estácio de Sá Rio de Janeiro – RJ Marcelo Vinícius Masseno Viana Universidade Estácio de Sá Rio de Janeiro – RJ RESUMO: Os grandes eventos têm se tornado um dos principais focos de interesse das municipalidades, pois possibilitam que as cidades se projetem mundialmente. Capitalizar uma imagem favorável é uma da principais metas dos organizadores, que dependem da mídia para a cidade sede ter melhor visibilidade no espaço público. Fatores como mobilizações sociais podem provocar fissuras na imagem desses locais e tem mudado suas estratégias com o advento das redes sociais. O presente artigo é resultado de uma pesquisa realizada em 2015 e que levantou dados da cobertura jornalística no período que antecedeu a Copa das Confederações no Brasil, em 2014. Foi analisado o funcionamento discursivo de dois veículos digitais: o portal G1 (http://g1.globo. com), de propriedade do Grupo Globo, e o site colaborativo Mídia Ninja (https://ninja. oximity.com/), criado em 2013, como parte de um movimento chamado Midiativismo (uma rede de comunicadores que produzem e distribuem informação em movimento, Ciências da Comunicação agindo e comunicando). Respectivamente, eles representam de um lado aqueles veículos empresariais dos grandes grupos de comunicação e de outro aqueles que pertencem a grupos independentes. PALAVRAS CHAVE: Visibilidade social; megaevento; movimento social; redes sociais; Copa do Mundo. ABSTRACT: Great events have become a major focus of interest of municipalities, as they allow that cities will project worldwide. Capitalize a favorable image is one of the main goals of the organizers, who depend on the media to the host city to have better visibility in the public space. Factors such as social mobilizations can cause cracks in the image of these places and have changed their strategies with the advent of social networks. This article is the result of a survey conducted in 2015 and collected data from media coverage in the run-up to the Confederations Cup in Brazil in 2014. It was analyzed the discursive operation of two digital vehicles: the G1 website (http: // g1.globo. com), owned by Globo Organizations, and the collaborative Midia Ninja (https://ninja.oximity. com/), created in 2013 as part of a movement called Midiativismo [“media-activism”] (a network of communicators who produce and distribute information in motion, acting and communicating). Respectively, they represent Capítulo 5 44 those corporate vehicles of large media groups at one side and at the other the ones who belong to the independent groups. KEYWORDS: :Social visibility; great events; social movements; social networks; World Cup. INTRODUÇÃO O advento dos núcleos urbanos e o desenvolvimento do sistema de transportes nas sociedades modernas, aliados às potencialidades tecnológicas de transmissão de informação e de comunicação favoreceram o aumento dos eventos em escala mundial. Se na Antiguidade eles se reduziam a encontros locais, hoje eles são multifacetados podendo ser acompanhado, inclusive, de forma simultânea em diferentes países, como é o caso da cerimônia do Oscar, em Los Angeles, nos Estados Unidos. Matias avalia que “(…) sem dúvida a Revolução Industrial foi o grande impulso na área dos eventos, onde proporcionou grandes transformações na sociedade” (Matias, 2002, p.71). Ao traçar a trajetória histórica dos eventos nas sociedades, alguns autores revelam que eles fazem parte da vida cotidiana desde quando o homem se reunia em torno da caça, na Pré-História. De acordo com Matias (2002), o primeiro evento que se tem notícias da História foram os Jogos Olímpicos da Era Antiga, datados de 776 a.C, realizado na cidade grega de Olímpia. Devido ao seu sucesso, ele foi repetido a cada quatro anos durante mais de mil anos, expandindo-se, inclusive, para outras cidades gregas até a Idade Média, quando ficou suspenso por séculos até retornar em 1896. Os Jogos Olímpicos tornaram-se tão importantes que até as guerras eram suspensas naquela época, durante o período da sua realização. Outro exemplo eram os chamados Congressos, realizados em Corinto, na Grécia, em 377 a.C, em que os delegados das cidades gregas se reuniam para discutir questões de interesse público. Na avaliação de Matias, tais eventos deram àquele país a fama de difusor do espírito de hospitalidade, organização, adequação da infraestrutura logística e segurança nas estradas. Já durante a Idade Média, mesmo com incidência menor de grandes eventos, teatral e comercial (feiras). destacaram-se os de caráter religioso, Atualmente, há uma vasta literatura sobre o assunto, pesquisas de marketing e técnicas que orientam a preparação para um evento de sucesso. Em seu sentido léxico, evento representa um acontecimento (festa, espetáculo, comemoração, solenidade etc.) organizado por especialistas, com objetivos institucionais, comunitários ou promocionais. Para Meireles, a reunião caracteriza-se como o embrião de todos os tipos de eventos. Segundo o autor, “(...) trata-se do encontro de duas ou mais pessoas, a fim de discutir, debater e solucionar questões sobre determinado tema relacionado com suas áreas de atividade”. (Meireles, 1999, p.30) No entender de Poit, “(...) evento é um acontecimento previamente planejado, Ciências da Comunicação Capítulo 5 45 com objetivos claramente definidos” (2006, p. 19). Ella explica que eles têm um perfil marcante: esportivo, social, cultural, filantrópico, religioso, entre outros. Sua realização obedece a um cronograma e uma de suas metas é a interação entre seus participantes, público, personalidades e entidades. As redes sociais alastraram o leque de possibilidades no sentido de organização, natureza, mobilização humana, divulgação e visibilidade social dos eventos. Dentre as sua diferentes contribuições está a sua potencialidade de criar vínculos, não apenas entre seus participantes, mas com os locais onde ocorrem. É o caso, por exemplo, dos eventos esportivos realizados em escala mundial. Tanto é verdade que em relação ao Brasil o governo federal publicou, em 2008, através do Ministério do Esporte, um livro intitulado O legado dos megaeventos esportivos”, contendo 608 páginas. Nele, 71 autores brasileiros e quatro estrangeiros, pertencentes a 35 universidades, apresentam o resultado de suas pesquisas, desde análises de impacto financeiro, cultural e social, até levantamento de percepção de imaginário, estratégias de marketing, educação e mídia. O sucesso de um evento depende da construção de um clima favorável, pois ele necessita a adesão de um grande número de pessoas para atingir os seus propósitos. A sua ocorrência é apenas o ápice do processo de preparação que inicia com muito tempo de antecedência. Para isso, a mídia torna-se aliada fundamental dos organizadores. No caso do jornalismo, se eles não conseguirem conquistar parceria, o evento fica vulnerável à forma que os diferentes veículos mobilizam seus discursos. No caso do Brasil, a preparação da Copa das Confederações de Futebol, em 2014, foi antecedida por protestos pelas ruas, com repercussão mundial. A principal bandeira de ordem dos manifestantes foi: “não vai ter copa”. Esse cenário criou um clima de instabilidade para o evento, rompendo, de certa forma, com a euforia que faz esquecer os problemas durante a realização de qualquer grande evento. Os movimentos sociais que lutavam pelas modificações na estrutura sócio-política brasileira viram naquele momento a oportunidade de dar visibilidade a seus ideais. Para isso, fizeram uso da vitrine proporcionada pelo evento Copa para colocarem em evidência suas reivindicações. A grande mídia passou a cobrir jornalisticamente todos os episódios das manifestações públicas, que acabou sendo relacionado com o evento Copa. Assim, o jornalismo passou a direcionar olhares sobre o evento, orientar interpretações e especular seus desdobramentos e responsabilidades. MEGAEVENTOS E A PROJEÇÃO DO RIO DE JANEIRO Dentre as beneficies decorrentes de um evento com proporções internacionais, denominado aqui de megaevento - destaca-se o turismo, que vem sendo um recurso fundamental para popularizar cidades e países em um mercado cada vez mais amplo. Esse setor tem se mostrado fundamental para a economia contemporânea, Ciências da Comunicação Capítulo 5 46 mas também para um mercado simbólico que projeta imagens e oxigena culturas em espaços citadinos que sofrem intervenções urbanísticas, arquitetônicas e veem surgir projetos de revitalização tanto estrutural e ações sociais que repercutem diretamente no orgulho local, gerando um debate sobre o pertencimento territorial, cujo sucesso dependerá da performance multimidiática das forças envolvidas no processo. O desempenho em termos de organização e o nível de engajamento da população de cada cidade sede de um megaevento acaba refletindo na imagem de cada cidade sede do megaevento, consequentemente do país. Por isso mesmo elas são visadas pela imprensa internacional, desde o momento em que são escolhidas para sediar o megaevento até a cerimônia final. Além de acompanhar a preparação do grande espetáculo, a imprensa exerce relevante poder de intervenção na esfera pública, criando expectativas, debates e formas de representações da cidade, a medida em que mobiliza um discurso capaz de orientar, esclarecer, explicar, especular e cobrar ações dos organizadores., inclusive em termos de problemas sociais, políticos e econômicos. Pesavento atenta para o momento de espera para o qual vive uma cidade escolhida para sediar um megaevento: “A transformação da cidade desencadeia uma luta de representações entre o progresso e a tradição: uma cidade moderna é aquela que destrói para construir, arrasando para embelezar, realizando cirurgias urbanas para redesenhar o espaço em função da técnica, da higiene, da estética”. (Pesavento, 2014, 79) O artifício de arrumar a casa é também forte argumento para as cidades conseguirem capitalizar uma imagem favorável internacionalmente. No caso do Brasil, já em 1908 o Rio de Janeiro entrara na mira dos megaeventos, quando a cidade se preparou para sediar a Exposição Universal, recebendo mais de um milhão de pessoas. Para Ricardo Freitas, naquela época, a cidade já começava a ser vista como uma cidade-espetáculo. Por suas palavras, “(...) o Rio de Janeiro começa a construir um conceito de cidade que sabe recepcionar os estrangeiros, com grande interferência da arquitetura, dos negócios e da comunicação” (Freitas, 2011). Nessa mesma linha, Rafael Soares Gonçalves revela que a Exposição Internacional Comemorativa do Centenário da Independência do Brasil, ocorrida na cidade em 1922 também se destacara por receber inúmeras delegações estrangeiras, permitindo, com isso, “a inserção do país na modernidade” (Gonçalves, 2013). Outros megaeventos também projetaram o Rio de Janeiro no cenário mundial, como a Copa do Mundo de 1950, em que a cidade foi palco da partida final ocorrida no estádio Mário Filho (Maracanã), com a derrota do Brasil por um a zero contra a seleção do Uruguai. Pode-se citar, também, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco 92) e os Jogos Pan-americanos de 2007, além da Copa das Confederações, em 2013. Nesta, o Ministério do Turismo (2013) contabilizou mais de 25 mil turistas estrangeiros, sendo a cidade do Rio de Janeiro a mais visitada do país (67,5%). Esse percentual aumentou na Copa das Confederações Ciências da Comunicação Capítulo 5 47 de 2014, quando 70,7% dos turistas no Brasil visitaram o Rio de Janeiro. Eventos mais recentes como a Jornada Mundial da Juventude, em 2014, que atraiu 3,7 milhões de visitantes revela o potencial da cidade para abrigar grandes eventos. Dentre os megaeventos do calendário da cidade, o Rio de Janeiro tem protagonizado grandes shows, como as edições do Rock in Rio, em 1985, 2013 e 2015, além do tradicional Carnaval, conhecido mundialmente. Andrea Semprini explica que, no caso do esporte, os megaeventos atraem marcas de empresas mundiais, que tem a intenção de gastar muito dinheiro, já que esses eventos contam com um público global. “A midiatização dos grandes eventos atrai um público planetário, que atrai, por sua vez, anunciantes de prestígio e prontos a pagar preços muito altos (...) Em um espaço pós-moderno, as lógicas do espetáculo e a das marcas, encontram no esporte um catalizador particularmente poderoso e articulam-se conforme um mecanismo de ajuste recíproco.” (Semprini, 2008, 266) Em um país cercado de belezas naturais como o Brasil, a cidade do Rio de Janeiro é, para os turistas, a que mais se destaca, até porque está em uma posição geográfica privilegiada, pois favorece o deslocamento humano. Uma pesquisa do Ministério da Cultura (2014) revela que em 2014 mais de 1,6 milhões de turistas estrangeiros visitaram a cidade. Apenas a festa de Réveillon por si só costuma reunir anualmente cerca de dois milhões de turistas na praia de Copacabana. O Rio de Janeiro foi a única cidade brasileira entre as cem mais visitadas por turistas em 2013 (O Globo, 2015). Gonçalves (2013) avalia que os Jogos Pan Americanos de 2007 podem ser considerados o divisor de águas na cidade, já que esse evento foi marcado pela “(...) a confluência de interesses das três esferas do poder (União, Estado e município)”. Pesavento (1997, p. 13) pondera que os megaeventos realizados na cidade possibilitam a criação de um “imaginário de sonho e desejos (…) marcados pela monumentalidade em todas as suas dimensões e invadindo todos os setores da vida social”. As ações desenvolvidas pela sua organização possibilitariam a produção de sentimentos coletivos - positiva ou negativamente – a medida em que a população experimenta a concretização desses sonhos e desejos. Nesta vitrine de megaeventos, a cidade do Rio de Janeiro torna-se uma importante marca comercializada, atraindo turistas e negócios, além de se projetar mundialmente, através das diferentes formas de visibilidade midiática. OS MEGAEVENTOS, A CIDADE E OS MOVIMENTOS SOCIAIS O pesquisador Henrique Freitas (2014) caracteriza os megaeventos a partir de quatro fatores. O primeiro deles, é a capacidade de ecoar antes, durante e depois da sua realização. O segundo, refere-se à capacidade de atração de um grande público através dos meios de comunicação social e das mídias sociais. O terceiro fator, é a capacidade de gerar um debate social a medida em que vira pauta de interesse de Ciências da Comunicação Capítulo 5 48 diferentes setores. Por último, é a avaliação do impacto econômico que ele provoca. Levando-se em consideração tais aspectos, para garantir o sucesso dos megaeventos, os organizadores promovem ações com o objetivo de mobilizar os diferentes setores público e privado da sociedade. Assim, contam com os veículos de comunicação que divulgam campanhas sociais e de marketing, além de promoverem um debate público para garantir o engajamento humano. Semprini (2008, p. 271) avalia que “(...) as mídias ocupam um lugar absolutamente especial no espaço pósmoderno, no qual uma das características é precisamente a sua onipresença”. Pelo seu poder discursivo, que seleciona, edita, hierarquiza e nomeia fatos do cotidiano a partir de regras e normas particulares de produção, o jornalismo tem a capacidade de apresentar para a sociedade tanto o que seria a realidade quanto os argumentos que alimentam, em grande parte, o debate na esfera pública. Mas, se por um lado, há um trabalho dos organizadores dos megaeventos para gerar uma imagem positiva em relação à cidade sede, por outro, os problemas sociais, econômicos, políticos e estruturais, também tornam-se visíveis. Entre eles, assuntos como a exploração sexual e a violência urbana são recorrentes na agenda pública, bem como a ocorrência dos movimentos sociais, que aproveitam os megaeventos para, além de pressionar as lideranças locais, sensibilizar a sociedade mundial em prol das suas reivindicações. Na recente história do Brasil, pode-se encontrar exemplos de ações de movimentos sociais que conseguiram repercussão internacional como aquele que resultou no fim do redime ditatorial militar, em 1988. A votação contrária do projeto de Emenda Constitucional Dante de Oliveira, 25 de abril de 1984, que previa o fim dos colégios eleitorais e a volta das eleições diretas, especialmente para presidente da República foi o estopim que faltava para levar muita gente às ruas em todo o País, dando início a um movimento chamado de “Diretas já”. Esse resultou na elaboração de uma nova Constituição, em 1988, e à volta das eleições diretas no ano seguinte. Outro exemplo é o que ocorreu em 1992, quando a população foi às ruas em um movimento chamado “Caras-pintadas”, nome dado aos jovens que saíram às ruas com o objetivo de pedir o impeachment do então presidente da República, Fernando Collor de Mello. Tanto que a União Nacional dos Estudantes protagonizou uma das maiores passeatas contra Collor. Para Luiz Antônio Dias, o movimento “Caras-pintadas” nasceu e se desenvolveu entre os jovens de 16 a 18 anos, que entravam no cenário político naquele momento e votaram em Collor, sendo assim, “sentiram-se traídos ao perceberem que apesar do discurso modernizante e inovador, Collor representava, na realidade, a velha política tradicional de favorecimento e corrupção” (Dias, 2015). Além dos estudantes, esse movimento teve grande participação da população, artistas, intelectuais, religiosos e lideranças sindicais em todo território nacional. Protestos contra o aumento das tarifas do transporte público em algumas capitais brasileiras, também é outro exemplo de mobilização de grande repercussão, ocorridos em 2013, e que se alastraram até a Copa das Confederações no Brasil, em 2014. Ciências da Comunicação Capítulo 5 49 Com grande repercussão midiática e um intenso uso da internet através das redes sociais, o movimento levou milhares de pessoas às ruas em todo território nacional, para demonstrar insatisfação aos possíveis usos de recursos públicos a obras de preparação para a Copa. Gilberto Maringoni (2015) relata que essa manifestação contestava os gastos públicos com as construções de estádios, o desenvolvimento de infraestrutura para os jogos e as intervenções urbanas, exigências impostas pela Fifa para que o país pudesse receber o mundial. Com o tempo, o movimento incluiu em sua pauta de reivindicações a melhoria nos setores educacional e da saúde, controle nos gastos da Copa e o fim da violência praticada pela polícia. Passeatas como as do “Passe Livre” e “Não Vai Ter Copa” acabaram repercutindo internacionalmente, criando a imagem de um país vulnerável ao desenrolar dos acontecimentos e aos discursos jornalísticos disponíveis. De acordo com dados de Ricardo Antunes, as manifestações diárias atingiram seu ponto culminante em 17 de junho, com mais de 70 mil participantes em São Paulo, dezenas de milhares no Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e outras cidades, contabilizando quase 400 cidades, incluindo 22 capitais (Antunes, 2013). O papel das redes sociais foi fundamental neste caso. Isso porque após o surgimento da internet 2.0, os movimentos sociais ganharam força e se proliferaram no ciberespaço. Ao avaliar esse tipo de organização, Castells (2012, p. 160) esclarece que, embora tenham articulação nas redes sociais, os movimentos tendem a ocupar o espaço urbano das cidades. Eles encontraram na web um canal de propaganda ideológica sem limites, que permite agilmente convocar passeatas em todo país sem custo financeiro, através de interfaces digitais como páginas no Facebook, fan pages, sites, twitter e blogs para então saírem às ruas. ENTREMEIOS JORNALÍSTICOS E VISIBILIDADE SOCIAL Há pelo menos dois séculos, o jornalismo mundial tem construído o seu papel junto à sociedade com base em um paradigma focado na neutralidade da informação noticiosa e, por isso mesmo, o representante legítimo dos interesses da sociedade, defensor do bem comum e com capacidade profissional para dar visibilidade pública a temas sociais que servirão de referência para a formação da opinião pública. De mera modalidade de transmissão cultural, um artefato simbólico da indústria cultural, o jornalismo atual aparece como “forma de relação social” (Rodrigues, 1997, p.96.) e instância mediadora das necessidades e interesses coletivos. Torna-se, pois, um espaço privilegiado da dimensão da sociabilidade contemporânea porque concorre a uma “nova forma de visibilidade social (...) e produz uma dilatação do espaço público” (Imbert, 1984. p.115). Concorre porque nas últimas décadas tem perdido espaço para as novas instâncias de mediação social. Até então mediadas pela prática jornalística as manifestações dos sujeitos na esfera pública partem agora de um nova forma de Ciências da Comunicação Capítulo 5 50 sociabilidade e de representação do social, que instauram também novas formas de visibilidade, sem depender da seleção de fatos e opiniões pela imprensa. A essas novas formas de visibilidade social, Imbert (1984, p, 130-34) relaciona quatro fatores que marcam a sua feição: a) ostentação dos aparatos de representação (mediatização dos processos eleitorais e da vida política em geral, por exemplo); b) representação dos atores coletivos em suas diferentes encarnações (povo, nação, eleitores projetados nas simulações estatísticas, por exemplo); c) visibilização dos atores sociais através de seus representantes (porta-vozes, instituições, associações, organizações, por exemplo); d) publicação da privacidade mediante um processo generalizado de espetacularização, como por exemplo o reforço da cultura de massa como semiocracia, que permitiria a participação coletiva de membros de um determinado grupo (social, político, acadêmico, artístico entre outros). Rodrigues (1996, p.41) ensina que o jornalismo tem uma competência discursiva de dessacralização das esferas privadas, tornando seus discursos, suas ideias, suas plataformas abertos a todos. Assim, enquanto os diferentes setores da sociedade possuiriam um domínio específico da experiência, transformando seus discursos incompreensíveis e opacos, o jornalismo, pelo contrário, tende a transformar esses transparentes e universalmente compreensíveis na esfera pública. Tal dessacralização está relacionada ao estatuto da transparência do seu trabalho jornalístico que, ao dar inteligibilidade social, exerce seu poder de formador de consensos (p.157). Nessa linha tênue do tecido social de atuação do jornalismo é que se posicionou a cobertura do caso analisado - a cobertura das manifestações que antecederam a Copa do Mundo de 2014, no Brasil. Para a análise, seguiu-se parte da metodologia proposta por Christa Berger (2015), em sua tese de doutorado intitulada “Campos em confronto: Jornalismo e Movimentos Sociais”. Foram produzidas 29 tabelas a partir de dados coletados nas matérias publicadas no site G1 e Mídia Ninja sobre as manifestações sociais entre os dias 11 de 18 de junho de 2014. Foram identificados o narrador das matérias, o personagem principal - tanto na ação de quanto no papel de -, o local de ocorrência e a interação com outros atores apresentados nos relatos jornalísticos. As tabelas foram divididas em duas categorias: a primeira com dados das notícias que obtiveram envolvimento de manifestações populares contra a Copa 2014 ou que tiveram o tema Copa do Mundo no Brasil; a segunda, com dados de notícias relacionadas ao dia-a-dia da população do Rio de Janeiro no período do evento. Buscou-se, também, reconhecer as formas de nomeação dos fatos dos sites analisados. NUANCES DA COBERTURA: NOTAS CONCLUSIVAS De modo geral, nota-se que as manifestações de 2014 contra o fato do Brasil ser sede da Copa do Mundo da Fifa foi o ponto central do agendamento da mídia de Ciências da Comunicação Capítulo 5 51 qualquer inclinação ideológica. No site Midia Ninja, essa postura reverberou de modo mais explícito antes, durante e depois da Copa. As operações de nomeação do que estava ocorrendo na cidade demonstra a inclinação para um discurso bélico. Termos como protesto, manifestantes, violência, confronto, intimidação, reivindicações, prisão, reprimidos, militarização, direito, violação, bomba, letal foram utilizados constantemente no texto noticioso, em um total de 76 aparições. Dessa forma, o valor-notícia que norteia esse veículo é carregado de um olhar contra o megaevento, mas não é só isso, também é contra a abordagem violenta praticada pelas forças policiais. Tais designações léxicas marcam a linha editorial do veículo, a qual dá ênfase a um discurso impregnado de subjetividade sobre os acontecimentos, através das notícias carregadas de valores, tais como “defesa do direito à manifestação”, “agressividade exacerbada no confronto entre manifestantes e policiais com o uso de bombas, explosivos e arma de fabricação caseira”. Essas ações acarretaram prisões e detenções que, segundo o site Mídia Ninja, foram violações e cerceamento dos direitos que cabem a um cidadão livre. Isso fica evidente quando se identifica o uso e a repetição constante de palavras como violência, violentamente, violência policial, confronto, dispersou, intimidação, Black Blocs, atacou, discussão, espancam. Esses vocábulos aparecem quinze vezes nos textos analisados, o que denota que jornalistas, colaboradores, participantes que compõem a construção da notícia no site da Mídia Ninja procuraram evidenciar a manifestação como um protesto. E, quando pontuavam fatos que levaram à violência física, deixaram claro que tais acontecimentos partiram do lado oposto, ou seja, da polícia. Dessa forma, deixaram claros seus filtros e linha editorial, reconhecidos pelo seu público. Já o site de notícia G1, que faz parte do Grupo Globo, agenda os transtornos causados pelas manifestações de modo mais contundente, pautando diversos relatos sobre os problemas contra o patrimônio público e privado decorrentes da ação dos manifestantes nas ruas. Pela forma de nomeação dos atuantes, nota-se um forte apelo para classifica-los como um grupo de pessoas que atentam contra a ordem pública. Termos como bomba, explosivo, coquetéis molotov, protesto, detenções, prisão, violência, Black Blocs, mascarados, vândalos, depredaram, confronto, tumulto estiveram muito presente na cobertura, totalizando 72 ocorrências. Como é um veículo que faz parte da grande mídia, através do seu discurso o G1 tenta desvincular as manifestações sociais do megaevento Copa do Mundo, já que o mundo estaria voltado para o campeonato. Sendo assim, presume-se que os protestos contra a realização da Copa do Mundo não poderiam ser matéria noticiosa para esse veículo, especialmente se tiver um viés social. Dessa forma, através das palavras-chave pode ser identificado o processo de agendamento da notícia do G1, no qual tais acontecimentos só viraram notícias quando os enfoques foram atrelados a atitudes individualizadas de “baderneiros agressivos” e não para as reivindicações sociais dessas mobilizações. Tanto é que termos como Ciências da Comunicação Capítulo 5 52 bomba caseira, bomba de gás lacrimogênio, explosivo, explode, coquetéis molotov, bomba de efeito moral, bala de borracha, cassetete, spray de pimenta, letal ocupam a primeira colocação na contagem dos dados. REFERÊNCIAS Antunes, R. 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Ciências da Comunicação Capítulo 5 54 CAPÍTULO 6 ENCHENTES DE 2017 NO RIO GRANDE DO SUL PELOS PORTAIS DE NOTÍCIAS DE TENENTE PORTELA Lidia Paula Trentin Universidade Tuiuti do Paraná, Programa de PósGraduação em Comunicação e Linguagens Curitiba - Paraná Mônica Cristine Fort Universidade Tuiuti do Paraná, Programa de PósGraduação em Comunicação e Linguagens Curitiba - Paraná RESUMO: Esse estudo, de cunho quantitativo, é o processo inicial de uma pesquisa qualitativa. A presente investigação pretende verificar de que maneira os portais de notícias Portela Online e Província, de Tenente Portela, Rio Grande do Sul, veicularam as notícias relativas às enchentes que ocorreram nos meses de maio e junho de 2017 no Estado, bem como observar as formas das notícias que eles transmitiram. Para tanto, foi realizada uma análise quantitativa do conteúdo das notícias sobre o assunto publicadas durante esses dois meses. Com a pesquisa, pode-se perceber que, mesmo tendo a possibilidade de produzir conteúdos próprios, ambos os portais deram preferência a notícias fornecidas por assessorias de comunicação e outros veículos de comunicação, e muitas vezes sem creditar as notícias produzidas por outros profissionais. PALAVRAS-CHAVE: jornalismo na internet; enchentes; portais de notícias; Tenente Portela. Ciências da Comunicação ABSTRACT: This quantitative study is the initial process of a qualitative research. The present investigation intends to verify how the news portals Portela Online and Província, of Tenente Portela, Rio Grande do Sul, broadcast the news related to the floods that occurred in the months of May and June of 2017 in the State, as well as observing the forms of the news that they transmitted. To do so, a quantitative analysis of the content of the news about the subject were published during those two months. With the research, it can be seen that, even with the possibility of producing own content, both portals gave preference to news provided by communications agencies and other communication vehicles, and often without crediting the news produced by other professionals. KEYWORDS: journalism on the internet; floods; news portals; Tenente Portela. 1 | INTRODUÇÃO Conforme a Pesquisa Brasileira de Mídia de 2016, o meio de comunicação mais utilizado pelos brasileiros para obter informações ainda é a televisão, mencionada como primeira opção por 63% dos entrevistados e como segunda por 89%. A internet aparece em segundo lugar, Capítulo 6 55 sendo mencionada por 26% como primeiro meio de comunicação escolhido na busca por informações e por 49% como segunda opção. Os locais mais utilizados para acessar a internet são em casa e no trabalho, e os dispositivos são, em primeiro lugar o telefone celular (smartphone), seguido do computador e depois o tablet. O acesso se dá com maior frequência durante a semana (de segunda a sexta-feira), seguido de todos os dias, e a média de utilização da internet é de 4 horas e 30 minutos por dia, incluindo os sete dias da semana. Levando esses dados em consideração, uma vez que a internet está cada vez mais presente no dia-a-dia dos brasileiros, optou-se por observar de que maneira os portais de notícias Portela Online e Província, de Tenente Portela, Rio Grande do Sul, divulgaram as notícias sobre as enchentes que ocorreram na região Noroeste (onde está localizado o município) e em todo o Estado durante os meses de maio e junho de 2017, visto que: A noção de comunicação recobre uma multiplicidade de sentidos. Se isso vem sendo assim há muito, a proliferação das tecnologias e a profissionalização das práticas acrescentaram novas vozes a essa polifonia, num fim de século que faz da comunicação uma figura emblemática da sociedade do Terceiro Milênio (MATTELART; MATTELART, 2009, p. 09). O município de Tenente Portela foi escolhido por ser pequeno – com população estimada pelo IBGE de 14.023 habitantes em 2016 – e rodeado por rios, sendo que os principais e maiores são o Rio Turvo – que fica na divisa entre Tenente Portela e Três Passos – e o Rio Guarita – que limita os municípios Tenente Portela e Palmitinho. Desse modo, quando ocorrem enchentes, o município de Tenente Portela e seus habitantes são diretamente afetados, principalmente os ribeirinhos, que muitas vezes perdem todos os bens materiais. Os portais de notícias Portela Online e Província foram escolhidos por levarem as informações de Tenente Portela e região para qualquer parte do mundo, fazendo com que familiares e amigos de quem vive nos locais atingidos pelas enchentes consigam acessar informações que muitas vezes não obteriam de outra maneira. Assim sendo, o presente estudo tem como objetivo geral averiguar de que maneira os portais de notícias Portela Online e Província veicularam reportagens relativas às enchentes que ocorreram no Estado em maio e junho do ano passado, observando o tipo de conteúdo noticiado. Como objetivos específicos têm-se: a. Verificar qual a autoria das notícias publicadas nos sites, ou seja, notícias próprias, de outros veículos de comunicação ou produzidas por assessorias de comunicação; b. Apurar quais as fontes de informação – fontes oficiais, especializadas e não oficiais (leigas) – entrevistadas para a produção das notícias; c. Constatar a origem das imagens e dos vídeos (nas notícias em que eles Ciências da Comunicação Capítulo 6 56 estão presentes) utilizados para ilustrar e complementar o conteúdo; e d. Verificar quais as palavras mais utilizadas nos títulos das notícias, uma vez que a escolha certa de palavras chama a atenção do público. Essa é uma pesquisa quantitativa e preliminar, que será continuada posteriormente de forma qualitativa. Nos próximos estudos, buscar-se-á analisar com maior profundidade a produção e a veiculação das notícias sobre as enchentes por meio de entrevistas em profundidade com os profissionais que trabalham nos dois sites e com os leitores dos portais, além de uma observação participante da rotina de trabalho desses profissionais, enquanto produzem conteúdo. Nas pesquisas futuras, que terão como base o presente estudo, serão observados os critérios de noticiabilidade (WOLF, 2001) utilizados nas produções jornalísticas em ambos os sites. 2 | JORNALISMO NA INTERNET O jornalismo na internet, webjornalismo e jornalismo online são, nesse estudo, termos utilizados como sinônimos, utilizando a explicação de Ward (2006, p. 09) para o termo como base, uma vez que o autor apresenta jornalismo online como uma expressão genérica, utilizada para descrever o acesso, a disseminação e/ou a recuperação de informações digitais, dessa forma, “se um jornal tiver um website para complementar suas edições publicadas no papel, isso é considerado como uma versão online do jornal impresso”. A expressão jornalismo digital não foi utilizada nesse estudo pois o digital não necessariamente está online, como se pode verificar na descrição apresentada pelo autor (2006): O processo digital separa todas as informações – dados, textos, gráficos, sons, imagens fixas ou vídeo – em uma sequência de números (dígitos), e as transporta a um destino por um fio, cabo ou frequência de transmissão; então, volta a agrupálas em sua forma original (WARD, 2006, p. 08). No jornalismo online mantém-se o processo jornalístico tradicional, utilizado em todos os meios de comunicação: perceber um fato inédito e/ou interessante, que o jornalista acredite ser relevante para o público; buscar informações precisas acerca da pauta escolhida; produzir o texto de forma clara, objetiva e concisa; e divulgar para o público. Entretanto, a internet viabiliza diversas novas possibilidades, que não eram imaginadas nos meios de comunicação tradicionais, como o impresso, o rádio e a televisão. Por exemplo, a utilização de conteúdos multimídia e multiplataforma, ou seja, o uso de texto, áudio, fotografias, vídeo, infográficos, quadros e tabelas em uma mesma notícia. Sempre com o intuito de melhor informar e envolver o público. Os elementos que compõem o conteúdo on-line vão muito além dos tradicionalmente utilizados na cobertura impressa – textos, fotos e gráficos. Pode-se adicionar sequências de vídeo, áudio e ilustrações animadas. Até mesmo o texto deixou de ser definitivo - um e-mail com comentários sobre determinada matéria pode Ciências da Comunicação Capítulo 6 57 trazer novas informações ou um novo ponto de vista, tornando-se, assim, parte da cobertura jornalística. E acessar um conteúdo não é necessariamente a leitura de uma notícia, já que engloba textos que trafegam pelas salas de bate-papo, mensagens enviadas nos fóruns, resenhas de livros e discos e colunas. Enfim, o conteúdo não está apenas na área de notícias dos portais, mas sim espalhado por quase todos os produtos oferecidos pelo endereço eletrônico (FERRARI, 2003, p. 39). Os textos jornalísticos para a internet devem ser, segundo Miranda (2004), objetivos, concisos e curtos. O autor também explica que “no jornalismo on-line, trabalha-se com a perspectiva da atualização permanente durante as vinte e quatro horas do dia” (MIRANDA, 2004, p. 71). Assim, um dos desafios do jornalismo na internet é preparar os profissionais de comunicação que trabalham com jornalismo, isso porque eles precisam desenvolver habilidades que antes, nos meios tradicionais, não eram exigidas. “O jornalista passou a desempenhar inúmeras funções, havendo maior sobrecarga de trabalho nas redações (assim como há também no nosso cotidiano) por salários iguais ou menores se comparado com o momento em que havia maior especialização” (BARBOSA, 2013, p. 343). Isso significa que, quando trabalham com a internet, explica Ferrari (2003, p. 48), os jornalistas “precisam sempre pensar em elementos diferentes e em como eles podem ser complementados”, refletindo bem sobre as legendas, informações complementares e recursos que serão utilizados – vídeo, áudio, entre outros. Na internet, é possível que o jornalista encontre rapidamente informações e fontes que o ajudarão a produzir conteúdo, mas é necessário ter cuidado, pois, conforme Barbosa (2013) a abundância de informações na rede pode acabar causando desinformação, visto que na internet há muitos dados incorretos e informações falsas. Além disso, ela permite que os leitores colaborarem “com a narrativa da reportagem por apresentarem as suas próprias experiências, [...] as antigas certezas começam a ser desafiadas”, uma vez que no ambiente digital a disseminação da informação é imediata e todo o conteúdo pode ser arquivado (WARD, 2006, p. 18). A participação de não jornalistas na produção das notícias na internet, segundo Zago (2011), nos faz repensar a função do jornalismo, pois: Além de ampliar as fontes de pesquisa, acelerar o processo de busca ou monitoramento de informações e permitir novas formas de publicar notícias e reportagens, o jornalista precisa conhecer os hábitos e preferências do público na internet. Isso permite a repórteres e editores decidir melhor quando mesclar recursos de texto, áudio, gráficos, links, animações, etc., além de levá-los à experimentação de novas formas narrativas e diferentes olhares sobre o tipo de matéria-prima necessária ao processo produtivo, gerando novas práticas de trabalho (LUZ, 2010, p. 383). No que se refere aos consumidores de notícias pela internet, Belochio (2013, p. 239) explica que esse público pode ter alterado a forma como vê “o consumo e a interação que pode ter com os conteúdos jornalísticos”, além disso, os próprios jornalistas podem ter modificado a maneira de “produzir e de pensar os formatos da Ciências da Comunicação Capítulo 6 58 informação oferecida aos destinatários”, isso pode transformar o modo como o perfil dos consumidores de conteúdos jornalísticos é imaginado. Assim, com o surgimento das novas tecnologias e com a convergência tecnológica, a forma de consumir informação mudou. Jenkins (2008, p. 29) explica que a convergência não ocorre através de dispositivos, ela acontece “dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros”. O autor (2008, p. 228-229) também coloca que ainda não se sabe como viver neste momento de “convergência das mídias, inteligência coletiva e cultura participativa”, mesmo assim, não há “uma reação unificada da direita ou da esquerda à cultura da convergência”. Dessa forma, o público passa a ser também produtor de conteúdo, logo, sua figura ganha um novo conceito com a convergência, o que tem grande impacto, pois, conforme o autor (2008, p. 227), estas novas mídias estão sendo utilizadas para envolver os consumidores “com o conteúdo dos velhos meios de comunicação, encarando a Internet como um veículo para ações coletivas”, ou seja, a internet está sendo usada para criar conteúdo de maneira coletiva, solucionar problemas e também debater. Os novos dispositivos que permitem o acesso fácil e rápido à internet, como smartphones, tablets e notebooks, aumentaram as formas de disponibilização dos conteúdos noticiosos e de contato destes com o público, destaca Belochio (2013). Com estes dispositivos móveis o usuário pode se conectar à internet a qualquer hora e de qualquer lugar do mundo, desde que exista sinal. Levando todo o processo de produção e transmissão de conteúdos jornalísticos na internet em consideração, a seguir serão apresentados os históricos dos portais de notícias utilizados como objetos empíricos da presente pesquisa. 2.1 O Portal de Notícias Portela Online O site Portela Online foi criado em outubro de 2007 e lançado na internet no dia 04 de novembro do mesmo ano por Sandro Medeiros. A criação se deu porque Medeiros possuía uma empresa de assistência técnica de computadores e uma Lan House e queria ampliar os trabalhos realizados. Inicialmente, o site se referia ao trabalho realizado na empresa, posteriormente, Medeiros modificou o site para um guia comercial do município de Tenente Portela e foi acrescentando recursos, como informações turísticas, histórico e informações do município. Após perceber que o trabalho estava evoluindo, Medeiros começou a fazer fotos em eventos e notícias relacionadas a Tenente Portela e postar no Portela Online. A primeira notícia foi veiculada no site no dia 04 de janeiro de 2008. À medida que as emissoras de rádio da região começaram a entrar em contato com Medeiros buscando detalhes de acontecimentos deu-se início a uma troca de pautas e informações entre os veículos de comunicação da região e o site. A escolha por Tenente Portela ocorreu pelo fato de ser o município de residência Ciências da Comunicação Capítulo 6 59 de Medeiros. Já a opção por um site e não por outro meio de comunicação se deu por Medeiros ter conhecimento na área de linguagem de programação direcionada para internet, o que utilizou no desenvolvimento do portal e também nas atualizações. O nome foi escolhido porque os habitantes do município costumam chamá-lo não de Tenente Portela, mas sim somente de Portela, e como o nome do município é composto, Medeiros pensou ser mais viável utilizar a nomenclatura Portela Online. O criador do Portela Online não é jornalista e atualmente não há nenhum profissional habilitado na área prestando assistência ao site, que conta com o trabalho de Medeiros, um funcionário fixo e alguns colaboradores que auxiliam em fotos de eventos. No site, além de notícias em formato de texto e imagens, há matérias e entrevistas em vídeo e áudio, produzidas e editadas por Medeiros. No escritório do portal de notícias há um espaço reservado para realizar entrevistas em vídeo e também mesa de som para produzir áudios. 2.2 O Sistema Província de Comunicação O Sistema Província de Comunicação teve início com o Jornal Província, que foi criado por Jalmo Fornari em 1986. A ideia do jornal surgiu antes, quando Fornari fazia faculdade de Jornalismo na PUC de Porto Alegre, a Famecos, ele teve que fazer um trabalho sobre o bairro que morava, como ele é de Tenente Portela decidiu criar um projeto chamado Província Kaingang, em 1981. Em 1985, quando voltou para Tenente Portela, percebeu que haviam só jornais regionais circulando na cidade, por isso, no dia 31 de março de 1986 criou o Jornal Província. O jornal estreou com 2.000 exemplares, que além de serem distribuídos para os assinantes, eram enviados para várias localidades de Tenente Portela, ele também circulava em vários municípios como Crissiumal, Humaitá, Sede Nova e Três Passos. Mediante a distribuição de 200 exemplares, algumas pessoas atuavam como correspondentes, enviando ao jornal notícias de suas localidades. Em 1991 foi interrompida a circulação do jornal por dificuldades financeiras, mas em 1994 ele voltou a circular. Em 1998 o dono do jornal comprou uma página na internet, sendo um o primeiro jornal da região a ser veiculado na web. Além do jornal impresso Província e do site, a rádio Província FM faz parte da rede de comunicação Sistema Província. Atualmente, o Sistema Província conta com sete comunicadores, sendo que quatro deles também são responsáveis por atualizar o site. Não há um profissional que se dedique exclusivamente ao portal. 3 | METODOLOGIA Para a realização da presente pesquisa foi feita uma análise quantitativa das notícias sobre as enchentes que ocorreram no Rio Grande do Sul nos meses de maio Ciências da Comunicação Capítulo 6 60 e junho de 2017, tendo como objetos empíricos os portais de notícias Portela Online e Província, de Tenente Portela. Esse estudo servirá como base para uma pesquisa futura, de cunho qualitativo. Sendo assim, as notícias foram analisadas a partir das seguintes categorias: • A quantidade de notícias próprias, de notícias de outros veículos de comunicação e também de notícias produzidas por assessorias de comunicação; • As fontes de informação utilizadas (os entrevistados): fontes oficiais, não oficiais, especializadas ou não utilização de fontes; • A origem das fotografias utilizadas para ilustrar as notícias: próprias dos portais, de outros veículos, enviadas pelo público ou fotos meramente ilustrativas; • A origem dos vídeos (quando utilizados): próprios, de outros veículos, ou enviados pelo público; • Links utilizados para complementar o conteúdo: que levam para o próprio site, para sites de outros veículos de comunicação ou para sites de empresas que não são de comunicação; • As palavras mais utilizadas nos títulos das notícias: enchente, chuva, emergência, temporal, cheias, alerta, defesa civil, alagamento, prejuízo, estragos, rio, balsa e instabilidade, visto que essas palavras chamam a atenção, principalmente no momento vivido nos dois meses estudados. Isto posto, a seguir serão apresentados os resultados obtidos por meio da pesquisa. 4 | RESULTADOS Com o estudo, observou-se que a veiculação de notícias sobre as chuvas e enchentes teve início nos dias 23 e 24 de maio e terminou nos dias 21 e 26 de junho nos sites Portela Online e Província, respectivamente, sendo que no primeiro foram veiculadas 42 notícias acerca do tema e no segundo 50. Em ambos os sites as notícias se referem tanto a Tenente Portela quanto à região e Estado como um todo. A publicação de notícias com essa temática não ocorria todos os dias em ambos os sites. Enquanto no Portela Online foram 30 dias entre a primeira e a última notícia sobre as enchentes, com 21 dias com matérias publicadas e 09 sem nenhuma, no Província se passaram 34 dias entre a primeira e a última notícia, contando também com 21 dias com publicações, mas 13 sem qualquer atualização. Apesar de estarem inseridos em um município (Tenente Portela) e em uma região bastante afetada pelas chuvas que ocorreram nos meses de maio e junho, ambos os portais produziram poucas notícias próprias. O site Portela Online publicou 07, correspondendo a 17%1 do total de notícias veiculadas; assim como as matérias sem qualquer indicação de autoria, que também corresponderam a 17%; metade das 1. Os valores percentuais obtidos nos cálculos para as notícias do site Portela Online foram arredondados para facilitar a leitura do texto bem como seu entendimento. Ciências da Comunicação Capítulo 6 61 matérias publicadas foram releases enviados por assessorias de comunicação; as notícias produzidas por outros veículos corresponderam a pouco mais de 14%; e as notícias oficiais, produzidas por sites de meteorologia, por exemplo, 2%. No caso do site Província, das 50 notícias sobre as enchentes publicadas no portal, 12 eram próprias, correspondendo a 24% das publicações; tal como as notícias de assessorias (24%); as notícias produzidas por outros veículos de comunicação totalizaram 46%; e as notícias com a autoria não identificada corresponderam a 6% do total. As imagens utilizadas para ilustrar e complementar as notícias no site Portela Online foram produzidas principalmente por assessorias de comunicação (31%); seguidas por imagens meramente ilustrativas (19%); fotos próprias (14%); produzidas por outros veículos (14%); notícias sem imagens (14%); imagens oficiais, produzidas por sites especializados, como de meteorologia, por exemplo (5%); e fotos enviadas por leitores do site (3%). Foram utilizados vídeos em 06 matérias, todos produzidos pelo profissional do site Portela Online. Já no portal Província, as imagens mais utilizadas foram produzidas por outros veículos, correspondendo a 46%; seguidas por fotografias fornecidas por assessorias de comunicação (26%); fotos próprias e imagens ilustrativas corresponderam a 14% cada. Assim como no site Portela Online, foram utilizados vídeos em algumas notícias (03) e todos foram produzidos pelos profissionais do portal. A metade das notícias veiculadas no site Portela Online não possuía nenhuma fonte de informação, ou seja, ninguém foi entrevistado para a produção da matéria (pelo menos no texto não havia nenhuma menção a alguma pessoa); em 45% foram utilizadas fontes oficiais, como prefeitos, secretários e bombeiros. Fontes não oficiais, como cidadãos da comunidade, e outras fontes (um funcionário de um serviço de balsa) foram utilizadas apenas uma vez em duas notícias, contabilizando 2.5% cada. No caso do site Província, o número de notícias sem entrevistados foi maior, 62%; as fontes oficiais foram entrevistadas em 30% das matérias; outros entrevistados (repórteres de outros meios) corresponderam a 4%; seguido de fontes não oficiais (2%); e especializadas (2%). A falta de notícias e fotografias próprias, bem como a ausência de entrevistados nas matérias causa estranheza, visto que Tenente Portela é um município pequeno, o que facilita a localização de fontes de informação e a produção de notícias e imagens sobre as enchentes. Encontrar famílias que foram afetadas diretamente pelas enchentes, que precisaram sair de suas casas, perderam bens materiais, animais e produção agrícola é simples, assim como fazer fotografias da situação dessas pessoas. Ainda assim, ambos os portais optaram por utilizar principalmente notícias e imagens de outros veículos ou de assessorias de comunicação. No que diz respeito à lincagem, das notícias veiculadas no Portela Online, 04 possuíam links, sendo que dois direcionavam para o próprio site, um para um site de outro veículo de comunicação e outro para um site de meteorologia. Já no portal Ciências da Comunicação Capítulo 6 62 Província, nenhuma notícia possuía links. Durante as análises, foram verificadas as palavras relacionadas às chuvas e enchentes mais utilizadas nos títulos das notícias: Palavra Emergência Chuva Portela Online 28.57% 21.42% % Palavra Chuva Emergência Defesa Civil 11.90% Rio Temporal 7.14% Prejuízo Prejuízo Estragos Balsa Cheias Enchente Alerta Alagamento Rio Instabilidade 7.14% 4.76% 4.76% 2.38% 2.38% 2.38% 2.38% 2.38% 2.38% Província 28.88% 22.22% 15.55% Defesa Civil 6.66% Cheias 4.44% Risco Enchente Temporal Alerta Balsa Alagamento % 6.66% 4.44% 2.22% 2.22% 2.22% 2.22% 2.22% Quadro 01 - Palavras mais utilizadas nos títulos. Fonte: as autoras. A utilização de palavras que causam impacto se dá para chamar a atenção do público para as notícias publicadas, uma vez que além de ficar em destaque nos sites, os títulos são compartilhados nas redes sociais dos portais juntamente com o link da notícia. Apesar disso, nem todas as notícias mencionavam essas palavras nos títulos, algumas possuíam títulos que não remetiam às chuvas, apenas abrindo e lendo o conteúdo da notícia percebia-se que se tratava de uma matéria relacionada às enchentes. A autoria das notícias foi verificada com cuidado, pois, no site Província somente dois profissionais do sistema de comunicação assinaram as notícias publicadas, sendo que um deles, que se dedica principalmente ao jornal impresso, foi o único produtor de notícias próprias do site. O outro profissional assinou notícias enviadas por assessorias de comunicação e obtidas por meio de outros veículos, colocando nelas também os créditos dos autores originais. Entretanto, assinar as notícias não foi uma regra percebida, visto que nem todas as notícias eram assinadas pelos profissionais do portal. No site Província as notícias produzidas por outros veículos ou por assessorias de comunicação são identificadas com maior frequência. No caso do site Portela Online, não há identificação da autoria das notícias, em alguns casos, há apenas a legenda das imagens com o crédito. Isso demonstra que os profissionais que trabalham nos dois sites, principalmente no Portela Online, podem acreditar que, ao mudar algumas partes do texto, acabam por se tornar os autores das notícias, não creditando a matéria Ciências da Comunicação Capítulo 6 63 a quem realmente escreveu. Os dois sites veicularam 13 notícias iguais, com a mesma autoria original, elas foram produzidas por assessorias de comunicação, tanto dos municípios atingidos quanto da própria Defesa Civil, e também por outros veículos de comunicação. Foram feitas algumas mudanças nas matérias para que não fossem publicadas exatamente iguais, cada profissional alterou o que achou conveniente e necessário. Entretanto, fazer alterações em um texto não faz com que quem o alterou se torne o autor, as notícias e complementos, como imagens, áudios, vídeo, infográficos, entre outros, devem sempre ser creditados, uma vez que a utilização de obras de outras pessoas sem os devidos créditos é plágio. Houve também nos dois portais: um mesmo release publicado com enfoque e destaque para diferentes informações no título e no lide (lead); e um release com poucas palavras alteradas, o título é o mesmo nos dois sites, e em nenhum deles há a identificação do autor (sabe-se que é release pelas informações contidas no texto). Esses dois releases chamam a atenção para o fato de que nem sempre há uma preocupação com a busca de novas informações, o conteúdo recebido das assessorias é publicado com um mínimo de alterações e utilizando sempre fontes oficiais. Dessa forma, observou-se que, por diversas vezes nas notícias, o autor não era mencionado, dando a impressão aos leitores que os profissionais dos sites é que haviam produzido as matérias. Isso ocorreu com maior frequência no site Portela Online, que, frequentemente, creditava apenas as imagens. Algumas notícias se revelaram releases depois de uma leitura atenta. Entretanto, os leitores que não possuem conhecimentos técnicos em jornalismo podem não perceber e creditar a notícia aos profissionais dos portais. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao finalizar a presente pesquisa, pode-se concluir que, mesmo com a possibilidade de produzir uma ampla quantidade de conteúdo próprio, uma vez que, como o município é pequeno, há uma grande facilidade em encontrar fontes de informação e produzir imagens sobre a situação das pessoas atingidas pelas enchentes, os dois portais escolhidos como objetos empíricos optaram por utilizar notícias já prontas, onde não havia a necessidade de buscar entrevistados e informações nem produzir as próprias fotografias. Isso pode ser justificado pelo fato de a equipe de ambos os sites ser pequena. De tal modo, as notícias publicadas em ambos os sites eram produzidas, principalmente, por assessorias ou outros veículos de comunicação, sendo poucas as notícias produzidas pelos profissionais dos portais Portela Online e Província. O mesmo ocorreu em relação às imagens utilizadas para complementar e ilustrar as reportagens. A autoria original das notícias nem sempre era especificada, principalmente quando se tratava de matérias produzidas por assessorias de comunicação. Ciências da Comunicação Capítulo 6 64 Nem todas as notícias possuíam entrevistados como fonte de informação, e naquelas que havia, eram fontes oficiais, ou seja, prefeitos, secretários, bombeiros, policiais. As pessoas afetadas diretamente pelas chuvas, como os ribeirinhos ou quem precisava utilizar balsas, por exemplo, não foram utilizadas em nenhum momento como fontes de informação. Tendo isso em vista, propõe-se algumas ideias de fontes entrevistadas e também notícias que poderiam ter sido produzidas durante as enchentes no Rio Grande do Sul : entrevistas com pessoas que vivem na beira dos rios; com parentes e amigos que estão longe; com pessoas que precisam atravessar os rios com frequência; notícias sobre a regularidade das cheias nos rios; prejuízos com a agricultura (entrevistando agrônomos e agricultores); cuidado com os animais nesse período de chuvas (entrevista com veterinários e criadores de animais). São muitas as possibilidades de reportagens que poderiam ser feitas acerca do assunto e diversas as possibilidades de fontes de dados para as notícias, o que daria maior credibilidade às informações, uma vez que o público se veria representado e incluso nas matérias, que tratariam principalmente do cotidiano daqueles que sofreram as consequências das enchentes. Como já mencionado, essa é uma pesquisa preliminar e de caráter quantitativo, que dará embasamento para um futuro estudo qualitativo, no qual buscar-se-á analisar com maior profundidade a produção e a veiculação das notícias sobre essas enchentes nos portais Portela Online e Província, por meio de entrevistas em profundidade com os profissionais que trabalham nos dois sites e também através de observação participante de suas rotinas de trabalho, enquanto produzem conteúdo para os portais. Dessa forma, serão observados os critérios de noticiabilidade utilizados nas produções jornalísticas em ambos os sites, de acordo os apresentados por Mauro Wolf em sua obra “Teorias da Comunicação”, de 2001. Além disso, na pesquisa futura, internautas que acessam as notícias de ambos os sites serão entrevistados, para que se possa verificar a confiabilidade dos dois portais perante o público, uma vez que, segundo a PBM 2016 a internet é o meio menos confiável no que se refere a notícias de sites, blogs e redes sociais. REFERÊNCIAS BARBOSA, Marialva. História da comunicação no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. BELOCHIO, Vivian. Convergência com meios digitais em Zero Hora multiplataforma. In: PRIMO, Alex. (org.) A Internet em rede. Porto Alegre: Sulina, 2013, p. 233-255. BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Pesquisa brasileira de mídia 2016. Brasília: Secom, 2016. FERRARI, Pollyana. Jornalismo digital. São Paulo: Contexto, 2003. FORNARI, Jalmo. Entrevista concedida a Lidia Paula Trentin. Tenente Portela, RS, jun. 2017. Ciências da Comunicação Capítulo 6 65 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE Cidades: Tenente Portela, Rio Grande do Sul, 2016. Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=432140>. Acesso em: junho de 2017. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Tradução: Susana Alexandria. 2 ed. São Paulo: Aleph, 2008. LUZ, Andréa Aparecida da. Cenário de convergência, impactos no webjornalismo e o caso Clarín.com. In: AMARAL, Adriana; AQUINO, Maria Clara; MONTARDO, Sandra. (orgs.). INTERCOM Sul 2010: Perspectivas da Pesquisa em Comunicação Digital. São Paulo: Intercom, 2010, p. 374-402. MATTELART, Armand; MATTELART, Michèle. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 12 ed, 2009. 227 p. MEDEIROS, Sandro. Entrevista concedida a Lidia Paula Trentin. Tenente Portela, RS, jun. 2017. MIRANDA, Luciano. Jornalismo on-line. Passo Fundo: UPF, 2004. PORTELA ONLINE. Sobre o Portela Online. Disponível em: <https://portelaonline.com.br/sobre-oportela-online/>. Acesso em: junho de 2017. PROVÍNCIA. Sistema Província de Comunicação. 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The objective of this article is to indicate how the highest top of the world is described and perceived by those who scale it. KEYWORDS: Dialogism; Everest; Book report. Kethleen Guerreiro Rebêlo Universidade Federal do Amazonas Parintins – Amazonas Liam Cavalcante Macedo Universidade Federal do Amazonas Parintins – Amazonas Marcos Felipe Rodrigues de Souza Universidade Federal do Amazonas Parintins – Amazonas 1 | INTRODUÇÃO O monte Everest é a montanha de maior altitude da terra, a qual atrai alpinistas e curiosos de todo o mundo para escalada até o topo, entretanto, é também caracterizado como um local perigoso de condições não favoráveis à sobrevivência humana, pois abriga em sua grandiosidade um dos maiores empecilhos RESUMO: O presente artigo apresenta os resultados de uma análise discursiva do livroreportagem “No Ar Rarefeito “, do escritor Jon Krakauer, a partir da perspectiva dialógica de Mikhail Bakhtin utilizada como metodologia de análise do discurso. O objetivo deste artigo é indicar como o topo mais alto do mundo é descrito e percebido por quem o escala. PALAVRAS-CHAVE: Dialogismo; Everest; Livro-reportagem. Ciências da Comunicação para a resistência humana, o ar rarefeito – um gás pouco denso que é encontrado em grandes altitudes. Em “No ar rarefeito”, o autor Jon Krakauer narra com detalhes a história da maior tragédia em expedição ao Everest: o maior número de mortes em um ano, e entre as vítimas estavam dois alpinistas experientes e líderes da expedição. Além de revelar minudências da tragédia testemunhada, o autor evidencia Capítulo 7 67 as características do monte e as condições físicas e psicológicas enfrentadas pelos alpinistas. À vista disso, a escolha da obra se deu em função do produto ser baseado em fatos reais, onde o narrador é também o principal protagonista pois ele compartilha sua experiência, diferente de outros livros-reportagem nos quais os narradores contam histórias das quais não se inserem como participantes. Desse modo, este trabalho tem como objetivo geral atribuir resposta à questão: Como o monte Everest é caracterizado no livro-reportagem “No ar rarefeito”, de Jon Krakauer? Isto posto, analisando as posições discursivas assumidas pelo autor no livro e também as outras vozes discursivas que estruturam essa interpretação, buscou-se respostas aos objetivos específicos – como é caracterizado o monte Everest em seu aspecto físico; as consequências psicológicas causadas pelo ar rarefeito e, ainda, entender a ambição e o encanto que uma expedição ao Everest gera – a fim de se obter compreensão abrangente sobre o assunto. Assim, este trabalho caracteriza-se como relevante por contribuir no campo da análise do discurso, sobretudo, no que tange ao método de utilização da perspectiva dialógica bakhtiniana, uma vez que busca indicar as formas de caracterização do monte Everest, ou seja, como o topo mais alto do mundo é descrito e percebido por quem o escala. 2 | O LIVRO-REPORTAGEM COMO GÊNERO DO DISCURSO Segundo Bakhtin (2011) todas as esferas da atividade humana estão interligadas ao uso da língua, e, consequentemente, seu emprego é realizado na forma de enunciados, sejam estes orais ou escritos, que por sua vez são reflexos da intencionalidade de quem os produz, sendo evidenciados pelo conteúdo temático (o tipo de informação que se deseja repassar), estilo da linguagem (o próprio estilo da linguagem utilizada que vai além da classificação formal/informal; alguns gêneros exigem adjetivações, vocabulário específico, entre outros) e construção composicional (a forma/estrutura padrão de um texto). Para o autor “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso” (Idem, 2011, p. 262). Isto posto, compreendemos que qualquer esfera de utilização da língua elabora determinados enunciados, por conseguinte, esses enunciados possuem uma certa estabilidade que permite a comunicação, entretanto, essa estabilidade é relativa, pois uma vez que a esfera da atividade humana se desenvolve, as formas de texto (enunciado) se transformam para atender às necessidades de comunicação desse grupo. Assim, entende-se que a sociedade se comunica por meio de gêneros do discurso, os quais são modificados ao longo do tempo em virtude da intencionalidade comunicacional particular do indivíduo. Catalão (2010) interpreta a língua como uma estrutura de relações dialógicas, e Ciências da Comunicação Capítulo 7 68 afirma que em diálogo organizam-se os seus termos, assim como as relações entre eles e os sentidos que o homem produza por meio dela. De tal modo, em diálogo ocorre o contato da língua com a realidade, o qual se dá no enunciado e gera a centelha da expressão (BAKHTIN, 2003 apud CATALÃO 2010). Assim, compreendemos que é por meio do diálogo que se constituem os enunciados, os quais Eliziário e Catalão Jr (2011, p. 2) definem como “a materialização de uma enunciação, por meio do qual o sujeito insere-se e assume posições particulares na inacabável cadeia da comunicação discursiva”. Em conformidade com Bakhtin, Catalão (2010, p. 16) diz “se não é um Adão bíblico, o pesquisador nunca inventa totalmente, a partir ‘do nada’, os elementos de sua pesquisa”. O autor afirma que tanto o objeto de estudo quanto os conceitos teóricos utilizados e também a metodologia, “constitui-se sempre como resposta a enunciados anteriores, dos quais a origem absoluta nunca está em si – mesmo quando essa perspectiva é ‘criação sua’” (Idem, 2010, p. 16). Assim, compreendemos que os enunciados são, então, réplicas, pois segundo Pinto (2002, p. 31) “todo texto se constrói por um debate com outros – o que foi denominado de dialogismo por Mikhail Bakhtin”. Por conseguinte, em conformidade com o pensamento bakhtiniano, o dialogismo caracteriza-se como princípio fundamental da linguagem. Catalão (2010, p. 50) considera o livro-reportagem como um gênero do discurso, uma vez que esse produto é resultado de um processo discursivo, de uma escolha proposital devido as informações que se deseja repassar, ou seja, conforme a intencionalidade do autor, caracterizando-se sempre como um rebate pessoal a outros enunciados. Se reportar, segundo Jorge (2008), significa narrar fatos, então a reportagem relata um acontecimento, que por sua vez, deve ser de interesse coletivo e a partir disso o repórter deve aprofundar-se em informações; ir além, evidenciando entendimento completo ao leitor/telespectador; trazendo informações adicionais. Do mesmo modo, para Lage (2001, p. 49) reportagem “é a exposição que combina interesse do assunto com o maior número possível de dados, formando um todo compreensível e abrangente”. Outrossim, segundo Rocha e Xavier (2013, p. 144) considera-se um livro-reportagem “quando uma obra trata de acontecimentos ou de fenômenos reais e utiliza, para sua produção, procedimentos metodológicos inerentes ao campo do jornalismo, sem, contudo, descartar certas nuances literárias”, logo, o livro-reportagem carrega os mesmos princípios seguidos pela reportagem, entretanto, com uma carga literária. Além disso, uma das grandes vantagens do livro reportagem é a possibilidade de o autor ampliar suas pesquisas, inserir maior número de informações, relatos e diálogos, detalhes, ou seja, permite apuração extrema ao mesmo tempo em que o toque literário torna a leitura prazerosa, uma vez que, segundo Rocha e Xavier (2013, p. 155) o suporte livro-reportagem “exige um número suficiente de informações, dados, fontes, depoimentos para que contemple o conteúdo e o volume de um livro Ciências da Comunicação Capítulo 7 69 sem desfigurar sua relação com a realidade, sem migrar para a ‘invenção’, ou mesmo ficção”. À vista disso, entendemos que um enunciado é constituído sempre em debate com outros textos, dando origem ao dialogismo. Assim, as posições discursivas dos enunciadores estão presentes no texto sendo possível identificá-las por meio de análise, tal como realizado neste artigo com o livro-reportagem “No ar rarefeito”. 3 | METODOLOGIA Para realização deste estudo utilizamos a perspectiva dialógica de Mikhail Bakhtin como método de análise do discurso. Assim, o livro “No ar rarefeito” de Jon Krakauer, objeto da pesquisa, foi tido como enunciado uma vez que se buscou identificar, interpretar e discorrer sobre as posições que o autor assume no que se refere ao monte Everest, além dos discursos de outras fontes que foram essenciais no processo de apuração. A perspectiva dialógica de Bakhtin tenciona a existência do debate entre textos, do diálogo, da comunicação entre enunciados, uma vez que, segundo o teórico, os enunciados são sempre respostas a outros enunciados, ou seja, eles dialogam com outros textos que são concernentes ao âmbito de um mesmo estudo, assim, afirma: “todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo [...]” (Idem, 2011, p. 272). Logo, entendemos que uma obra não pertence inteiramente a um determinado autor, por mais que este a tenha escrito, pois a discussão primária não lhe pertence, entretanto, ele contribui no campo da discussão acrescentando novos estudos, teorias, ou seja, respostas a enunciados. Dessa forma, o livro-reportagem, tido como um gênero do discurso, descreve um objeto a partir das relações dialógicas construídas no processo da prática jornalística. Isto posto, entendemos que todas as concepções presentes no produto são imprescindíveis para sua concretização, tanto por sua forma de produção – uma vez que é por meio de depoimentos/discursos que o livro-reportagem é composto em grande parte –, quanto por seu consumo, pois os leitores compreendem e recebem as informações de forma mais abrangente. Nesse sentido, a princípio buscou-se identificar as passagens referentes à caracterização do monte, as fontes presentes, ou seja, as relações dialógicas situadas por Krakauer. Posteriormente, atentamos em analisar de que forma esses discursos foram inseridos no texto, se de forma direta ou indireta. A partir disso, a análise se voltou ao posicionamento dos discursos no que se refere à caracterização física do monte Everest; à caracterização dos problemas psicológicos causados pelo ar rarefeito na expedição, além dos motivos que levam uma pessoa a possuir ambição e fascínio pela escalada ao monte. Desse modo, Ciências da Comunicação Capítulo 7 70 obtivemos uma dimensão geral da caracterização do monte Everest feita pelo autor e demais fontes, que culminou nos resultados dessa análise. 4 | RESULTADOS E DISCUSSÕES 4.1 A caracterização física do Monte Everest Na caracterização quanto à natureza física do monte Everest, no livro “No ar rarefeito” de Jon Krakauer, o autor enfatiza o Everest como um ambiente arriscado, repleto de empecilhos naturais, os quais podem gerar graves consequências para quem o ousar escalar. No entanto, esses obstáculos serviram como motivação aos montanhistas para alcançar o topo. Sobretudo na primeira parte do livro, a questão dos “aspectos naturais” é focalizada para situar o leitor sobre como e quais condições se realizaram a expedição no local. Além das características da montanha propriamente dita, outro detalhe natural crucial é a falta do oxigênio em ambientes de grande altitude, fator capaz de afetar profundamente o discernimento da consciência humana e alterar noções da própria lembrança, ponto que dificultou a “busca pela verdade” tão almejada por Krakauer ao questionar os alpinistas. O segundo capítulo do livro relata de forma breve parte da história do descobrimento do Everest, além de algumas expedições e nomes importantes. Ao narrar a primeira expedição bem-sucedida, Krakauer menciona as concepções dos alpinistas que descreveram uma parte do monte. O fragmento a seguir revela: Por volta das 9h00 estavam no cume sul, diante da estonteante crista estreita que leva ao pico propriamente dito. Uma hora depois estavam ao pé do que Hillary descreveu como “o problema mais espinhoso da crista - um escalão de rocha de uns 12 metros de altura. [...] A rocha em si, lisa e quase sem pontos de apoio, poderia ter sido um interessante desafio domingueiro para um grupo de alpinistas experientes na região inglesa de Lake District, porém ali era uma barreira cuja superação ia muito além de nossas frágeis forças”. (p. 18) Constata-se que durante o período de expedição no Everest, Krakauer detalha os traços físicos do lugar como de um local inóspito, repleto de armadilhas moldadas pela ação natural de milhares de anos, as quais ameaçam qualquer homem que decida escalá-lo. O autor, no início do livro, descreve o monte segundo a visão de montanistas experientes e pessoas com estudos voltados à área da geologia: “Entre alpinistas e outras pessoas conhecedoras de formas geológicas, o Everest não é tido como um pico muito bonito. Suas formas são parrudas, muito esparramadas, entalhadas de modo rude” (p.26). Mesmo com essas características não tão empolgantes, do ponto de vista da estética natural, o Everest, segundo eles, encanta por sua grandiosidade: “Contudo, o que falta em graça arquitetônica o Everest compensa com sua massa esmagadora” (p.26). Ao especificar os capítulos, o autor utiliza logo abaixo fragmentos relacionados ao Ciências da Comunicação Capítulo 7 71 Everest ou a expedições que foram escritos por participantes de escaladas, alpinistas, montanistas e outros. Neste fragmento nos são repassadas por George Leigh Mallory – em carta à sua mulher em 1921 – descrições das cristas: “Basta dizer que [o Everest] tem as cristas mais alcantiladas e os precipícios mais tenebrosos que já vi na vida e que toda aquela conversa sobre uma encosta de neve fácil é puro mito. [...]” (p. 80). Em síntese, levando em consideração os aspectos físico-naturais do monte Everest detalhados na obra, compreendemos tratar-se de um ambiente nada bucólico, o qual certamente cobra um alto grau de determinação, uma boa dosagem de discrição, uma noção satisfatória de alpinismo e uma branda sanidade física e psicológica daqueles que almejam chegar ao ponto mais alto do planeta Terra. Ademais, com os discursos elencados, percebemos que além das concepções do autor sobre a montanha no que se refere a sua forma e condições físicas, outros discursos foram inseridos na obra de forma direta e indireta para complementar a descrição e contribuir no entendimento do leitor acerca do monte mais alto do planeta, como constatações de alpinistas, participantes de expedições e geólogos, ou seja, vozes discursivas que complementaram as percepções do autor Krakauer. 4.2 A expedição: consequências psicológicas do ar rarefeito Na perspectiva de Krakauer, a escalada permitiu conhecer além do pico mais alto do planeta, ou seja, constituiu vivenciar um dos maiores dramas de sua história, o que o ajudou a ter uma visão diferente sobre a atividade de escalada e o monte Everest. Os relatos revelam desconforto, agonia e drama, principalmente no que se refere ao gás pouco denso presente no Everest, o ar rarefeito. Na expedição até o monte, em relatos do livro-reportagem, Krakauer evidencia desde o início o desconforto causado pela baixa concentração de gases. Problemas psicológicos como a não precisão de informações, atordoamentos e alucinações são descritos como consequências da exposição ao ar rarefeito. Já na introdução, ao situar o leitor acerca do cenário real e participantes da expedição, além de algumas circunstâncias vividas, o autor revela um dos problemas enfrentados, a não precisão de informações, uma vez que a falta de oxigênio implica o prejuízo do discernimento da consciência humana e altera noções básicas do funcionamento mental como a memória. Descrito como quase um obstáculo em sua apuração jornalística, Krakauer discorre sobre o empecilho e as tentativas de solucioná-lo. O fragmento a seguir revela a dificuldade na imprescindível apuração de depoimentos: [...] a seqüência de eventos fora de uma complexidade frustrante e as lembranças dos sobreviventes estavam muito distorcidas pela exaustão, falta de oxigênio e choque. Em certo ponto de minha pesquisa, pedi a três outras pessoas para contarem um incidente que nós quatro testemunhamos, na alta montanha, mas ninguém foi capaz de concordar quanto a fatos cruciais, como a hora, o que fora dito e nem mesmo quanto a quem estava presente (p. 9). Nas descrições do momento mais dramático da excursão, seu retorno do topo Ciências da Comunicação Capítulo 7 72 do cume, o autor revela em detalhes as sensações que o ar rarefeito causa em um ser humano, exemplificando com seu colega de escalada, Andy. O recorte seguinte configura o relato da confusão de pensamentos e a sensação de decadência do corpo: [...] pedi a Andy que me fizesse um favor em troca, desligando meu regulador para economizar oxigênio até que o escalão ficasse desimpedido. Entretanto ele se enganou, abriu a válvula em vez de fechá-la, e dez minutos depois meu oxigênio acabara. Minhas funções cognitivas, que já estavam bastante prejudicadas, começaram a declinar muito depressa. Sentia-me como se tivesse tomado uma overdose de algum sedativo poderoso (p. 190). O trecho revela dois problemas psicológicos. O primeiro refere-se ao fato de Andy ter se confundido ao abrir a válvula de oxigênio, pois, com atenção limitada decorrente da falta de oxigênio, é comum que haja esse tipo de confusão nos pensamentos e, consequentemente, nas ações. O segundo problema psicológico ocorre com Krakauer, uma vez que tem disperso seu pouco de oxigênio artificial, o autor tem a sensação imediata de estar sendo sedado, sem capacidade de exercer controle hábil sobre suas coordenações. Outro aspecto emblemático descrito na obra são as alucinações. O autor cita algumas fantasias mentais que outros alpinistas relataram em expedições anteriores e menciona em seguida sua experiencia com a perturbação psicológica, repassando um misto de sensações que envolvem agonia, encantamento e mistério, pois é profundamente insano pensar que, em estado de ação, um indivíduo possa ver coisas que não são reais. O fragmento a seguir evidencia detalhes do relato: A literatura sobre o Everest é cheia de relatos de experiências alucinatórias, atribuíveis à hipoxia e à fadiga. Em 1933, o famoso alpinista inglês Frank Smythe observou “dois objetos curiosos flutuando no céu” diretamente acima dele, aos 8230 metros: “[Um] possuía o que pareciam ser asas atrofiadas, não desenvolvidas, e o outro uma protuberância que sugeria um bico. Eles ficaram parados, imóveis, mas pareciam vibrar lentamente”. Em 1980, durante sua escalada solo, Reinhold Messner imaginou que havia um companheiro invisível escalando a seu lado. Aos poucos me dei conta de que minha mente também estava atordoada e observei, com um misto de fascínio e horror, a mim mesmo escorregando para fora da realidade (p.88). Outrossim, o autor relata também outro momento de confusão mental e alucinação vivido em conjunto com um colega de escalada, evidenciando a problemática causada na mente humana como fator torturante e aflitivo. O trecho a seguir revela o momento: Por várias vezes Hall anunciou que estava se preparando para descer e num determinado momento estávamos certos de que ele finalmente saíra do cume sul. No acampamento 4, Lhakpa Chhiri e eu tremíamos do lado de fora das barracas, espiando um minúsculo ponto se deslocando vagarosamente, descendo a parte superior da crista sudeste. Convencidos de que se tratava de Rob, voltando afinal, Lhakpa e eu batemos nas costas um do outro e o aplaudimos. Porém, uma hora mais tarde, meu otimismo de repente se extinguiu quando reparei que o pontinho continuava no mesmo lugar: na verdade não passava de uma rocha — mais uma alucinação induzida pela altitude. Na verdade, Rob não chegara sequer a sair do cume sul (p. 103-104). Em suma, constata-se que Krakauer descreve como aflitiva, tormentosa Ciências da Comunicação Capítulo 7 73 e dramática a exposição ao ar rarefeito, uma vez que relata, com tom realista, as sensações estranhas no funcionamento da percepção e ordenação de pensamentos dos alpinistas envolvidos. Além disso, não há indícios no texto de momentos tranquilos ou favoráveis quanto à exposição ao ar no topo do cume ou em seu trajeto. O que se destaca nos relatos é sempre a concepção de condições respiratórias e, consequentemente cerebrais, degradantes. Para mais, constata-se que devido as influências do ar rarefeito na memória, foram necessárias consultas imprescindíveis aos participantes da excursão para confirmação e também apuração de outros acontecimentos, sendo narradas junto de outras implicações, como as alucinações, que posteriormente foram introduzidas na obra de forma direta, indireta e embutidas na narrativa do autor visando contribuir na formação de conhecimento do leitor. 4.3 A ambição e o encanto que uma expedição ao Monte Everest gera Krakauer relata em sua obra os motivos que levam um indivíduo a possuir o sentimento de ambição, encantamento e também desejo de escalada ao topo do Everest, revelando em uma das passagens considerações próprias. Fatores como a busca por adrenalina, por satisfação de curiosidades e a ousadia em condições ditas impossíveis de vida são levantados como causas relevantes. Discorrendo sobre a historicidade do descobrimento do monte Everest e a repercussão no que concerne ao desejo de o escalar, o autor evidencia argumentos de um montanista que justificam o fascínio de conquistar o topo do mundo, o qual o descreveu com ar curioso e desafiador. O trecho seguinte revela detalhes: Uma vez estabelecido que o Everest era o pico mais alto da Terra, foi apenas uma questão de tempo até que as pessoas decidissem que precisavam escalá-lo. Depois que o explorador norte-americano Robert Peary proclamou ter chegado ao Pólo Norte, em 1909, e Roald Amundsen liderou uma equipe norueguesa ao Pólo Sul, em 1911, o Everest - o chamado Terceiro Pólo - tornou-se o objeto mais cobiçado no reino das explorações terrestres. Chegar ao topo, declarou Gunther O. Dyren-furth, um influente alpinista e cronista das primeiras expedições ao Himalaia, era “uma questão de empenho humano universal, uma causa da qual não há como fugir, sejam quais forem as perdas que exija”. Essas perdas, como se veria a seguir, não foram insignificantes. (p. 25). Ao narrar os primeiros momentos de viagem até o destino, o autor descreve o evidente interesse de escalada ao Everest de um de seus colegas de alpinismo que conhecera no saguão do aeroporto, Andy, que acabou por despertar seus antigos sentimentos de escalada: O interesse visível de Andy pelo alpinismo, seu entusiasmo genuíno pelas montanhas me deixaram com saudades da época em que escalar era, para mim, a coisa mais importante da vida, da época em que eu mapeava o curso da existência em termos das montanhas que escalara e das que esperava um dia poder escalar. Pouco antes de Kasischke - um homem atlético, alto, de cabelos prateados, reservado e aristocrático - emergir da fila da alfândega, perguntei a Andy quantas Ciências da Comunicação Capítulo 7 74 vezes estivera no Everest. “Na verdade”, ele confessou alegremente, “esta vai ser minha primeira vez, como você. Vai ser interessante ver como eu me viro lá em cima” (p. 23). O autor explicita os fatores que compõem a ambição de escalar o topo mais alto do mundo, e descreve os grandes desafios que os alpinistas impõem a si próprios como estratégias de visibilidade e superioridade, uma demonstração de força e resistência – principalmente masculina – chegando a se maltratarem com tantas ousadias no trajeto de escalada, como podemos observar no recorte: A cultura do montanhismo era caracterizada por uma competição intensa e por um machismo indisfarçável; a grande preocupação da maioria de seus integrantes era impressionar uns aos outros. Chegar ao topo de uma determinada montanha tinha muito menos importância do que a maneira como se chegava lá: o prestígio vinha de se atacar a mais impiedosa das rotas com o mínimo de equipamento, no estilo mais ousado que se pudesse imaginar. Ninguém era mais admirado do que o chamado solista livre: visionários que subiam sozinhos, sem corda nem ferramentas (p.32) Em sua chegada ao cume, o autor descreve sua própria sensação de alcançar um lugar que poucos têm o privilégio de conhecer: “Chegar ao topo do Everest supostamente desencadeia uma onda de intensa alegria; apesar de todos os pesares, eu atingira uma meta cobiçada desde a infância” (p.188). Em síntese, à vista dos aspectos descritos em relação ao fascínio que o monte Everest causa nos alpinistas e curiosos, compreendemos a necessidade de enxergar além dos desejos impulsivos e fantasiosos que uma expedição desse porte pode ocasionar, visando a sensatez e controle emocional como pontos fortes no percurso. Contudo, além da inferência de concepções do autor, os discursos de montanistas, colegas de alpinismo e outras fontes consultadas na apuração são evidenciados como posições discursivas que auxiliam no entendimento do aspecto apontado. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo buscou contribuir no âmbito da análise do discurso, sobretudo no que concerne a discussões sobre a perspectiva dialógica de Bakhtin, pois traz as características descritas do monte Everest na perspectiva de quem o escala. Assim, a pesquisa possibilitou a identificação das concepções do autor e de outras fontes por meio da metodologia utilizada, a perspectiva dialógica bakhtianiana. Como resultado dessa análise, chegamos à decifração da questão principal: Como o monte Everest é caracterizado no livro-reportagem “No ar rarefeito”, de Jon Krakauer? Assim sendo, constatamos que através do processo de apuração jornalística, o autor complementou suas ideias com relatos de alpinistas, especialistas e pessoas que conhecera durante suas escaladas ou que já haviam escalado o Everest, além de consultar outros meios de informação como escritos e materiais que apontassem dados precisos sobre um acontecimento. Isto posto, entendemos que ele seguiu os princípios de apuração que são necessários para o aprofundamento dos fatos e que, Ciências da Comunicação Capítulo 7 75 por consequência, implicam as relações dialógicas apontadas por Bakhtin. Ou seja, na formação do livro-reportagem é necessária a presença do dialogismo, esse “debate” entre textos/enunciados. Concretizado dessa forma, podemos compreender as informações que estão contidas na obra de forma abrangente e concluir, então, que “No ar rarefeito” reporta o Everest como um lugar que oferece condições precárias para a sobrevivência humana devido sua formação natural, além da presença do ar rarefeito que impossibilita o bom funcionamento do cérebro. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra; prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CATALÃO JUNIOR, Antonio Heriberto. Jornalismo best-seller: o livro-reportagem no Brasil contemporâneo, 2010. 252 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, 2010. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/103497>. Acesso em: 08 de junho de 2018. ELIZIÁRIO, Eva Maria da Silva; CATALÃO JR, Antonio Heriberto. Amazônia em “Chico Mendes: crime e castigo” – uma caracterização dialógica, 2011. 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Ciências da Comunicação Capítulo 7 76 CAPÍTULO 8 “DANÇANDO SOBRE ARQUITETURA” - DESAFIOS ATUAIS DA CRÍTICA DE MÚSICA Rafael Machado Saldanha Universidade Estadual do Rio de Janeiro Rio de Janeiro - RJ RESUMO: O artigo discute o papel do crítico musical no cenário contemporâneo da indústria da música. Se anteriormente o crítico se destacava por ser um orientador para o público do que deveria ou não ser consumido, hoje essa função de prescritor musical se encontra cada vez mais questionada. Esse trabalho busca então entender quais são os fatores determinantes para se desempenhar esse papel de guia de escolhas e o porquê dos críticos musicais estarem perdendo essa função no panorama atual. PALAVRAS-CHAVE: Crítica de música; Prescrição musical; Jornalismo cultural; Música popular; Curadoria. ABSTRACT: The article discusses the role of the music critic in the contemporary setting of the music industry. If previously the critic stood out for being a guide to the public of what should or should not be consumed, today this function of musical prescriber is increasingly questioned. This work seeks to understand which the determinant factors are in order to play this role of choices guide and why the music critics are losing this function in the current panorama. Ciências da Comunicação KEYWORDS: Music criticism; Musical prescription; Cultural journalism; Popular music; Curatorship. 1 | INTRODUÇÃO “Escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura”. A frase, comumente atribuída ao músico inglês Elvis Costello, ilustra bem a dificuldade que existe em se tentar avaliar racionalmente algo que foi feito para ser sentido. Nas últimas décadas, o jornalismo cultural exerceu uma importante função dentro do campo musical: além de disseminar a informação, foi responsável pela prescrição de músicas antes mesmo de haver mídia audiovisual massiva. Num momento histórico em que o acesso a discos era caro e difícil, as pessoas precisavam escolher bem quais obras eram dignas de serem compradas. Nesse cenário, a figura do crítico de música, que serviria como uma espécie de guia, era fundamental para orientar os consumidores. No entanto, as mudanças bruscas nas formas de se consumir e distribuir músicas do final do século XX fizeram com que o acesso aos produtos fonográficos se tornasse fácil e barato – muitas vezes até mesmo gratuito. Assim, passou-se a questionar o papel do crítico musical como Capítulo 8 77 orientador do que é bom ou ruim. O presente trabalho se propõe a iniciar uma discussão sobre os elementos necessários para se desempenhar essa função de prescritor musical e debater as razões pelas quais se acredita que o crítico musical vem perdendo força nessa posição. 2 | JORNALISMO CULTURAL A definição acadêmica do que seria o jornalismo cultural foi, por muito tempo, motivo de controvérsia. Partindo de uma discussão antropológica, com seu conceito amplo de cultura, era comum ler que todo jornalismo é cultural, uma vez que cultura seria tudo aquilo produzido pelo pensamento ou pela ação humana (SALDANHA, 2005). No entanto, uma rápida observação pelos cadernos especializados em cultura nos periódicos jornalísticos nos indica que “cultura” é entendida por estes de uma forma mais restrita. Voltado para artes e espetáculos, alguns autores tendem a chamar essa segmentação de Jornalismo da Indústria Cultura. Artista e jornalista participam do circuito, em pontos diferentes da linha de montagem: um músico, um pintor, um escritor, dependem não só do seu próprio fazer, mas também da imagem que conseguem articular frente ao público. O jornalismo cultural, mesmo o mais independente, é o virtual complemento do mercado artístico, é algo que está fora e dentro da cultura. (SUZUKI JR apud SALDANHA, 2005a: s/n) Essa classificação muitas vezes carrega um viés classista, que coloca os produtos da chamada “cultura de massa” como inferiores a um ideal puro de “alta cultura”, ou simplesmente enxerga nos produtos da “Indústria Cultural” uma distração sem valor, criada para afastar o proletariado de uma emancipação por meio da arte (MORIN, 1997, PIZA, 2003). Podemos afirmar, no entanto, que o jornalismo cultural como relato e análise de performances artísticas já existia antes mesmo da chamada “Indústria Cultural” se firmar. No século XIX, jornais brasileiros já dedicavam páginas para a avaliação de espetáculos exibidos nas principais cidades do país (GIRON, 2004). Oscar Guanabarino, considerado “fundador da crítica especializada no Brasil” (GIRON, 2004:16), já atuava em periódicos na década de 1870. Nesse trabalho, ecoamos a visão de Piza, que ao relativizar o caráter efêmero do mercado de obras criadas dentro da lógica da indústria cultural diz que O jornalismo, que faz parte dessa história de ampliação do acesso a produtos culturais, desprovidos de utilidade prática imediata, precisa saber observar esse mercado sem preconceitos ideológicos, sem parcialidade política. Por outro lado, como a função jornalística é selecionar aquilo que reporta (editar, hierarquizar, comentar, analisar), influir sobre os critérios de escolha dos leitores, fornecer elementos e argumentos para sua opinião, a imprensa cultural tem o dever do senso crítico, da avaliação de cada obra cultural e das tendências que o mercado valoriza por seus interesses, e o dever de olhar para as induções simbólicas e morais que o cidadão recebe. (PIZA, 2003:45) Ciências da Comunicação Capítulo 8 78 Não nos interessa, assim, discutir a qualidade dos produtos analisados por esse jornalismo cultural, e sim avaliar o papel que esse jornalismo tem desempenhado atualmente no mercado da música. 3 | O JORNALISMO CULTURAL E A PRESCRIÇÃO MUSICAL A ideia de se entender os processos necessários para que a música produzida encontre seu público consumidor é algo imperativo para o mercado fonográfico. Bourdieu (2015), ao falar sobre o processo de autonomização da arte, enxergava o surgimento de instâncias de difusão e consagração, que se posicionariam entre o campo da produção e o campo do consumo no mercado de bens simbólicos. Esses “intermediários” seriam entidades “(...) investidas por uma legitimidade propriamente cultural, ainda que (…) continuem subordinadas a obrigações econômicas e sociais capazes de influir, por seu intermédio, sobre a própria vida intelectual.” (BOURDIEU, 2015:100). Amparados por Ventura (2009), podemos afirmar que, historicamente, o jornalismo cultural – em especial a crítica cultural – foi um dos fatores a ocupar esse espaço intermediário, pois “o jornalismo cultural, mas não apenas este, cumpre uma função de legitimação ao transformar estes ou aqueles fatos culturais em notícia, delimitando aquilo que merece ser transmitido, difundido, criticado e, por isso mesmo, conservado, daqueles fatos que não o merecem.” (VENTURA, 2009:3). Herschmann reforça essa ideia no campo da música ao dizer que: (...) analisando os últimos sessenta anos da história da música poder-se-ia afirmar que, após a Segunda Guerra Mundial, os jovens entravam em contato com a música através de discos compactos (com singles), Long Plays e estações de rádio. Nos anos 1980 e 1990, ocorre uma mudança e passam a tomar gosto pelos diferentes gêneros também através de revistas especializadas, CDs, da MTV e de outros canais de televisão dedicados à música. (HERSCHMANN, 2010a: 105-106) Gallego chama esse processo de “prescrição musical”. Embora o dicionário ofereça uma acepção mais ampla, o verbo “prescrever”, em sua forma transitiva, remete no Brasil ao ato médico de receitar um tratamento. Gallego (2011) reconhece esse entendimento ao dizer que, embora vinculado à relação médico-paciente, o vocábulo foi adaptado ao mundo empresarial. Ele se baseia em um artigo de jornal para tentar definir o que seria a prescrição musical. Segundo esse artigo, o prescritor seria “Um sujeito – pessoa, empresa, associação setorial, chat, portal ou comunidade virtual – que, tanto na rede ou fora dela, emite uma opinião ou uma recomendação (feedback) com influência na decisão de compra ou contratação de outros usuários.” (FERREIRA, 2003: 57). Na sequência, ele nomeia quem seriam esses prescritores: A partir dessas definições, deduzimos que a indústria musical teve como principais formadores de opinião o locutor de rádio, o crítico musical e o programador de televisão. A estes se somam sem dúvida, a propaganda boca a boca (ou seja, as recomendações das pessoas de confiança do consumidor). Amigos, conhecidos ou comerciários das lojas de discos foram, historicamente, pessoas chave na hora de selecionar e recomendar produtos culturais – filmes, músicas, livros. Ciências da Comunicação Capítulo 8 79 Não se pode negar a importância desses atores no desenvolvimento do gosto, mas na hora de gerar uma massa globalizada em torno do consumo da cultura, a presença da grande mídia foi fundamental ao longo da história. (GALLEGO, 2011:48. Grifo nosso). Para entender esse ponto, podemos voltar ao artigo de jornal “Los prescriptores ganan terreno en Internet”, de onde Gallego tomou emprestado o conceito de prescrição. Investigando sobre as características desejáveis aos prescritores digitais, a autora entrevista dois especialistas: José Maria Insúa, diretor de tecnologia e segurança da PwC A condição sine qua non para atuar como prescritor, tanto online como em ambientes convencionais, é desfrutar de prestígio entre os consumidores a quem se quer influenciar. (...) Lluís Renart, professor do IESE Toda prescrição é baseada na confiança. Esta, por sua vez, depende de uma constatação, além de qualquer dúvida razoável, que o prescritor tem capacidade técnica e conhecimento suficientes e retitude em sua intenção. Ou seja, emitir sua prescrição desejando ser verdadeiramente útil e o bem do destinatário. (FERREIRA, 2003:7...Tradução nossa.) Baseando-se conceitos de Anthony Giddens, Miguel (1999) estabelece o jornalismo como um sistema perito, conceito que aproximaria este de uma instância prescritora. O autor estipula duas características como essenciais para os sistemas peritos: um alto grau de autonomia do sistema em relação aos consumidores, que não influenciam neste senão por mecanismos de mercado, e a crença dos consumidores na competência do sistema. Coincidentemente, o exemplo de sistema perito usado por Miguel em seu artigo é a medicina, que mais uma vez nos remete à ideia de prescrição. Um dos atrativos do jornalismo cultural é justamente o fato de ele estar sempre “nos indicando, em geral, coisas boas para fazer” (Piza, 2003:64). Para o autor, (…) uma função básica da crítica é, sim, julgar, no sentido de fazer uma opção pessoal, de qualificar uma obra em escala (de péssima a excelente), e o leitor que concorde ou discorde. Cabe ao crítico, primeiro, tentar compreender a obra, colocar-se no lugar do outro, suspender seus preceitos, para então sedimentar as ideias e, mesmo que exprimindo dúvidas, chegar a uma avaliação. O leitor, além do próprio artista, quer essa reação”. (PIZA, 2003: 78-79) Ao discutir a obra de grandes escritores que atuaram como críticos musicais, Bollos (2005) deixa clara a função de orientador de consumo do crítico ao falar do desempenho do poeta mineiro Murilo Mendes, que “colaborava regularmente em jornais escrevendo sobre música erudita com a proposta de auxiliar seus leitores a compor uma discoteca de música.” (BOLLOS, 2005:270-271. Grifo nosso). A autora, no entanto, censura a prática atual por enxergar uma “insuficiência da crítica cultural Ciências da Comunicação Capítulo 8 80 atual na análise de música, sendo esta relegada, ou melhor, esquecida do seu papel primordial, que é a compreensão da obra.” (BOLLOS,2006:121) 4 | A CRISE DA CRÍTICA COMO PRESCRITOR MUSICAL Recentemente, uma série de artigos em veículos de comunicação norte- americanos começou a discutir a falência do jornalismo musical, mais precisamente a crítica de discos. Em fevereiro de 2016, o site de entretenimento Noisey perguntava: “Is the album review dead?”. Em 14 de agosto de 2017, o respeitado The Wall Street Journal tinha como manchete em seu caderno Life & Arts: “What happened to the negative review?” (“O que aconteceu com as resenhas negativas”, tradução nossa.), pergunta que foi repetida uma semana depois pelo site especializado em música Bearded Gentleman Music. O que motivaria esses questionamentos? Seriam eles indicativos do ocaso do jornalismo musical como espaço de prescrição musical? O artigo da Noisey, escrito por Dan Ozzi, dá vários indícios da perda desse espaço. Ao final do quinto parágrafo, ele explicita a função de orientador de consumo ao dizer: “Em 1970 — uma época em que ainda não existia internet, MTV, e rádio satélite — as resenhas eram uma fonte valiosa de informações para os fãs de música. As resenhas tinham o poder de formar opiniões. As resenhas tinham o poder de vender discos.”(OZZI, 2016). No entanto, ao empregar o verbo no passado (“tinham”) e colocar as resenhas em oposição a outros meios de prescrição musical surgidos mais recentemente, ele dá a entender que o jornalismo musical foi superado nessa atribuição. Como vimos, a capacidade do jornalismo cultural como prescritor musical está diretamente ligado à confiança da isenção dos interesses de seus atores e na crença na sua capacidade. Tentaremos identificar a seguir os problemas da atuação dos críticos musicais relacionados a esses aspectos. 4.1 Críticos pouco confiáveis? O primeiro fator que leva à desconfiança da isenção dos críticos em suas resenhas é a interferência econômica por parte do campo de produção. Essa ingerência não é exclusiva dos meios jornalísticos, afetando quase todas as entidades identificadas como prescritoras musicais. Proibida nos Estados Unidos – onde é chamada de payola – no Brasil o chamado “jabá”, embora malvisto, é liberado. (...) uma prática muito comum para se ter acesso às rádios e emissoras de televisão a cobrança de um valor financeiro chamado vulgarmente de “jabá”. Sem este pagamento, o artista que não desperte maior interesse dos patrocinadores destas mídias de comunicação fica excluído da grade de programação e a ausência de visibilidade junto ao público pode prejudicar a sua carreira. Nesse sistema, o público é visto como mero consumidor, ao invés de participar deste processo de criação de produção cultural. (MATOS et al: 2014:2) Ciências da Comunicação Capítulo 8 81 Embora seja mais comum em veículos que se propõem a executar a música propriamente dita, deixando a avaliação para o próprio ouvinte, críticos e resenhistas não estão imunes à sedução financeira direta ou indireta por parte dos produtores: A forma mais desavergonhada é o jabá, remuneração recebida de forma direta ou indireta, em retribuição à qual o jornalista privilegia, em sua cobertura, o produto/ evento cultural que o pagou, transformando o que seria um espaço de apuração jornalística em espaço comercial, sem informar explicitamente ao leitor. Um desdobramento do jabá, pois também enfoca uma relação promíscua do jornalista com os departamentos de marketing da IC, é o chamado junket, ou “viagem paga”. (CUNHA et al, 2002:13) No entanto, a pressão financeira não é a única a atuar sobre os jornalistas que cobrem e opinam na área da música. Um intrincado sistema de compadrio atua no meio, fazendo com que alguns artistas tenham resenhas mais favoráveis independente da qualidade da obra analisada, por possuírem prestígio junto aos agentes do meio jornalístico. Outra questão, destacada por Antônio Siúves, editor do Magazine, caderno cultural do jornal O Tempo, é o que ele chama de “síndrome de quermesse”: o provincianismo nas relações da imprensa com artistas e personalidades. “aqueles que se sentem lesados ligam diretamente para os diretores de redação, querendo saber porque foram discriminados em determinadas pautas”. (SJC, 1998) No extremo, isto acaba gerando, segundo Luís Antônio Giron (SJC, 1998), uma espécie de “lista branca”, composta por artistas ou personalidades inatacáveis, por serem amigas da direção, ou por serem consideradas unanimidades artísticas ou intelectuais. (CUNHA et al, 2002: 14) O artigo de Ozzi levanta ainda uma outra possibilidade de constrangimento no exercício da crítica que levaria os analistas a usarem “tintas suaves” ao resenhar uma determinada obra: alguns artistas teriam bases de fãs que os defenderiam incondicionalmente. Assim, uma resenha negativa poderia gerar um problema tanto para quem publica esses textos como para quem os escreve. Para o veículo, pode resultar em um boicote dos fãs do artista criticado. Para o autor, as consequências podem ser ainda mais graves: Não é preciso blogar um texto de 1.600 palavras para realizar uma refutação eficiente, contudo. Com o simples uso de uma “@” em um tuíte, um artista pode foder toda uma semana da vida do crítico, transformando seus milhares de fãs em armas que atacarão o agressor. Às vezes é algo inócuo e inofensivo, e pode até mesmo estimular um diálogo público. Quando isso é direcionado a resenhistas mulheres, a coisa pode ficar especialmente feia. Depois que a escritora Lynn Hirschberg escreveu sobre M.I.A. na The New York Times Magazine em 2010, a artista inglesa reagiu tuitando o número de telefone de Hirschberg, estimulando os fãs a ligar para ela e deixar mensagens, um ato que Hirschberg mais tarde classificou como “exasperante, mas não surpreendente”. (OZZI, 2016). Em abril de 2016, a Vice – revista eletrônica do mesmo grupo da Nosey – publicou um outro artigo, chamado “I was threatened with death after writing a bad music review” (“Eu fui ameaçado de morte após uma resenha musical ruim”. Tradução nossa. ), onde o crítico John Doran descreve as inúmeras ameaças de morte que havia sofrido em Ciências da Comunicação Capítulo 8 82 mais de uma década de jornalismo musical. De uma forma ou de outra, a pressão dos leitores sobre os autores rompe com a autonomia necessária entre as partes descrita por Miguel (1999) para caracterizar o sistema-perito. Resultado dessas pressões ou não, o fato é que cada vez menos resenhas negativas de discos vêm sendo publicadas. Usando dados do site Metacritic, um agregador de críticas que reúne as análises publicadas pelos principais meios de comunicação dos Estados Unidos, o jornalista Neil Shah (2017) constatou que entre 2012 e 2016, somente oito discos entre os 7287 avaliados tiveram resenhas desfavoráveis. O número não se repete quando o objeto de crítica é cinema, videogames ou programas de televisão. Em seu artigo, Aaron Cooper (2017) argumenta que essa “falta de negatividade” acaba não despertando discussões sobre as obras, e que artistas que recebem somente resenhas positivas têm pouco estímulo para melhorar. 4.2 Críticos pouco competentes? Se a isenção dos críticos é questionada, o mesmo pode ser dito da capacidade técnica destes nos tempos de hoje. A musicóloga Liliana Bollos vê no afastamento dos eruditos e acadêmicos das redações de jornais um sinal dessa degeneração: Diferentemente da crítica de música erudita, que produziu um jornalismo cultural de características literárias desde a primeira metade do século XX com expoentes importantes da nossa cultura como os escritores Mário de Andrade, Murilo Mendes e Otto Maria Carpeaux, a crítica de música popular no Brasil teve início efetivamente com o advento da bossa nova, na segunda metade do século XX, alvo da primeira grande manifestação de crítica nos jornais brasileiros. Influenciado pela indústria cultural e pelo poder dos meios de comunicação (e mais tarde pela obrigatoriedade do diploma de jornalismo), esse formato de jornalismo impôs novos padrões à crítica musical, sendo o escritor substituído pelo “cronista”, pelo jornalista nãoespecialista, e irá explorar do texto um caráter mais ideológico e histórico e menos estético, deixando os aspectos musicais para segundo plano. Consideramos esse fato um aspecto negativo da crítica musical, criando mesmo um obstáculo para o entendimento do repertório musical brasileiro, pois, o objetivo da crítica jornalística é o de ser capaz de identificar o projeto do artista analisando a obra, possibilitando que esta seja divulgada e assimilada por outras pessoas. (BOLLOS, 2005:272) Cespede (2013) vê nessa postura de sobrevalorizar somente o saber douto um processo que relega o homem comum a um papel de mero consumidor dessa cultura musical, sem direito a fala. A mudança no perfil crítico cultural, que Bollos vê como problema, é vista de maneira mais otimista por Cunha et al (2002). O que faltava em saber técnico era compensado com uma vivência que garantia um olhar menos desconfiado em relação ao objeto de análise: (...) motivo apontado para a mudança de postura dos cadernos de cultura é o fato de que os próprios jornalistas que entraram nas redações na década de 1980 já tinham vivenciado (e não como jornalistas) a contracultura dos anos 1960 e 1970, e não aceitavam rotular a cultura de massas, como um todo, como adversária, perigosa, colonialista. É o que explica DAPIEVE (2001:167/169), citando o exemplo da explosão roqueira no Brasil (e na mídia brasileira), nos anos 1980: Ciências da Comunicação Capítulo 8 83 Antes da minha geração, a idéia de que rock pudesse ser cultura brasileira era absolutamente herética. As pessoas achavam que era impossível se fazer rock no Brasil porque rock só podia ser cantado em inglês, era uma forma necessariamente imperialista, americana ou inglesa, de tratar das coisas (...) (Já os roqueiros da minha geração encontraram eco) em jornalistas que tinham a idade deles ou até um pouco mais, e que tinham crescido com as cabeças feitas pelos ideais da década de 1960 que passaram pelo rock, fossem Beatles, Bob Dylan ou Grateful Dead, mas que tinham uma coisa em comum: o rock era um dado contracultural, não necessariamente uma manobra das gravadoras americanas para impingir um tipo de música à juventude do resto do mundo e lobotomizá-la. (CUNHA et al, 2002: 7-8) Porém mesmo essa “vivência” passa a ser questionada recentemente. Ballerini (2015) aponta para um cenário onde o jornalista não faz adequadamente nem a crítica estética nem a avaliação histórica: Contribui para um cenário difícil a própria formação do jornalista cultural musical. Lobão chegou a viver situações constrangedoras por causa disso. “Já aconteceram coisas absurdas, como comentarem o meu show afirmando que eu estava fazendo um cover do Cazuza com ‘Vida louca vida”. Isso numa das revistas especializadas de maior prestígio. (...)”, diz o músico. (BALLERINI, 2015, p.158) Piza(2003) ainda ressalta que é um equívoco acreditar que o pop – a música produzida dentro da indústria cultural – não demanda conhecimentos prévios. Ele vê nessa prática uma certa dose de “esnobismo”. Pode-se pensar ainda que o problema não é a falta de competência dos agentes, mas sim a precariedade do processo. Dapieve (Apud CUNHA, 2002) sugere que com redações reduzidas e fluxo grande de fatos, privilegia-se a informação sobre a opinião. “O problema se intensifica na medida em que o tempo de produção de um caderno é acelerado, caso típico do jornalismo diário. Aqui há uma dificuldade maior em superar os obstáculos e limites impostos pelo ritmo industrial do veículo (CUNHA et al, 2002:10)”. Um fator pouco trabalhado pela academia que determinava o papel do crítico como prescritor musical era seu acesso facilitado aos bens culturais – no caso LPs e Singles que custavam caro para a maioria das pessoas, mas eram fornecidos gratuitamente para os veículos de comunicação. Assim, a opinião do crítico era relevante até mesmo pela escassez de outras opiniões. Isso chama a atenção de Ozzi (2016), que constata: Há tantos serviços competindo para nos oferecer streaming de música — Spotify, Pandora, YouTube, Apple Music, Tidal, Google Play, Amazon Prime, Rhapsody, 8tracks, Soundcloud e Bandcamp, para mencionar apenas alguns (e isso deixando de fora o mercado de downloads ilegais) — que para ouvir tudo seriam precisos centenas de milhares de anos. Então, com cada novo disco disponível ao clique de um mouse de maneira totalmente gratuita no mesmo instante em que ele é lançado, para que você mesmo forme uma opinião sobre o disco, é preciso fazer a pergunta: nós ainda precisamos das críticas? (OZZI, 2016). O acesso à informação deixou de ser um fator relevante, já que a internet possibilita que qualquer pessoa conectada a ela chegue a qualquer arquivo que nela estiver disponível. A escassez, que antes determinava as escolhas dos indivíduos, foi substituída por um excesso, que poderia dificultar o usuário a travar conhecimento Ciências da Comunicação Capítulo 8 84 do que está disponível. Cespede (2013) vê nesse fenômeno uma lógica que passa a ser “bottom-up” – de baixo pra cima – onde cada usuário anônimo tem o potencial de influenciar, e até mesmo “reverter as dinâmicas de mediação de conteúdo e conhecimento presentes desde o surgimento dos meios de comunicação de massa no início do século XX” (CESPEDE, 2013, p.90). Um veículo popular de prescrição musical é a plataforma de vídeos YouTube, principalmente através dos chamados “vídeos de reação”. Kim (2016) demonstra esse fato ao observar que os vídeos de reação à músicas de grupos de K-Pop se tornam tão populares que por vezes passam a substituir o consumo dos vídeos originais por parte da audiência, tendo assim caráter formativo na economia da atenção. Economia da atenção é, segundo Goldhaber (1997), uma nova forma de economia surgida na era digital, onde atenção é enxergada como propriedade. Diferentemente da informação, que é abundante, atenção é um recurso escasso e é negociado numa relação competitiva e exclusiva. (…) Vídeos de reação, o tema da pesquisa atual, são notáveis por terem um efeito formativo na economia da atenção, por levarem a troca da atenção das estrelas do K-Pop nos videoclipes para as pessoas comuns em vídeos de reação.” (KIM, 2016, p.334. Tradução nossa.) Essa ideia das pessoas comuns agindo como prescritoras é, de alguma forma, corroborada por Ozzi: Gradualmente, com o crescimento da popularidade dos blogs, as pessoas normais aproveitaram a oportunidade de tomar para si o poder da crítica, outrora exercido exclusivamente por publicações tradicionais. Webzines como Pitchfork e Buddyhead, ambas criadas por indivíduos em suas próprias casas no final dos anos 90, ganharam prestígio por conta de suas análises críticas subjetivas, inexperientes e sem filtros das músicas, arrebanhando públicos que rivalizavam com os de veículos financiados por corporações, como Rolling Stone e SPIN. Eles eram os novos substitutos do velho mundo do jornalismo de música, que requeria editores, copidesques e escritórios de tijolo e argamassa. Ao contrário dos zines impressos de circulação limitada, esses sites tinham o potencial de alcançar o mundo inteiro. Agora tudo estava em condições de igualdade, e a crítica musical, de repente, podia ser feita por qualquer blogueiro enfurnado em qualquer quarto que tivesse uma conexão com a internet. Alguns desses blogs se oficializaram no decorrer da década seguinte — o caso mais notável sendo o da Pitchfork, que foi adquirida no ano passado pela gigante Condé Nast. Mas até mesmo a Pitchfork, que por uma década deteve o padrão de ouro das críticas de discos, agora está perdendo terreno para opiniões em tempo real emitidas pelas massas por meio de serviços de mídia social como o Twitter. (OZZI, 2016) O jornalista demonstra ainda preocupação com os rumos que o jornalismo musical (e a própria música) podem tomar diante disso. O influxo de potencialmente qualquer pessoa no campo da prescrição poderia diluir sua relevância ao ponto da quase insignificância. Nesse cenário, onde o acesso aos conteúdos musicais é facilitado, não bastasse o jornalismo cultural ganhar a concorrência do homem comum no processo de prescrever músicas, surgem também sistemas de recomendação musical baseados em algoritmos e operados por computadores. Ciências da Comunicação Capítulo 8 85 5 | CONCLUSÃO Mesmo com todas essas críticas, não é possível decretar o fim do jornalismo cultural como elemento de prescrição musical. Segundo Ozzi (2016), ainda hoje lojistas percebem uma venda melhor de discos que receberam boas resenhas, seja de críticos especialistas em veículos tradicionais, seja nos veículos surgidos com a emergência da opinião do homem comum. O que não se pode negar é que o campo passou por uma grande transformação, e que o papel da crítica musical e seus agentes precisa ser ressignificado. Lester Bangs aponta para um cenário onde o próprio ouvinte forma sua opinião sobre a música que toma contato, ao dizer que “se você pode ouvir uma música nas rádios, isso vai influenciar você a comprar o disco muito mais do que qualquer coisa que tenha lido.” (OZZI, 2016). Ao escrever sobre novas formas de prescrição musical, Gallego (2011) descreve o panorama da indústria da música onde o rádio, a TV, os videogames e os programas de streaming competem com o crítico musical na hora de dizer o que será consumido pelos ouvintes. Na atual conjuntura, onde todos têm acesso rápido e fácil a quase qualquer música produzida, a prescrição está mais em direcionar essas músicas para que efetivamente cheguem aos ouvintes do que em tentar influenciar na reação destes à música. Porém, se a crítica musical foi – ao menos em parte – destituída de sua função de prescrever, ainda resta o papel de registrar a maneira como determinadas obras foram recebidas em seu tempo (GIRON, 2004) e de servir como uma resposta mais elaborada para os próprios artistas pensarem em suas obras. REFERÊNCIAS BALLERINI, Franthiesco. Jornalismo cultural no século 21: literatura, artes visuais, teatro, cinema e música: a história, as novas plataformas, o ensino e as tendências na prática. São Paulo: Summus, 2015. BOLLOS, Liliana H.. Crítica musical no jornal: uma reflexão sobre a cultura brasileira. Em: Opus (Porto Alegre), Campinas, v. 11, n.11, 2005. ______________. Mário de Andrade e a formação da crítica musical brasileira na imprensa. Em: MÚSICA HODIE, v. 6, 2006. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2015. CESPEDES, Fernando Garbini. 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Em: Diario Expansión, Madri, 24 de outubro de 2003. p.57. GALLEGO, Juan Ignácio. Novas formas de prescrição musical. Em: HERSCHMANN, Micael. Nas bordas e/ou fora do mainstream. Novas tendências da Indústria da Música Independente no início do século XXI. São Paulo: Ed. Estação das Letras e das Cores, 2011. GIRON, Luís Antônio. Minoridade crítica – a ópera e o teatro nos folhetins da corte. 1826 – 1861. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo – Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. HERSCHMANN, Micael. A indústria da música em transição. São Paulo: Ed. Estação das letras e cores, 2010a. ______________. Uma nova indústria da música “mostra sua cara”: relevância socioeconômica dos videogames musicais. Em: TRANS – Revista transcultural de música. 2010b. KIM, Y. Globalization of the privatized self-image: The reaction video and its attention economy on YouTube. Em: Routledge handbook of new media in Asia. Nova Iorque: Routledge, 2016. 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Em: RUMORES (USP), v. 6, p. SetDez, 2009. Ciências da Comunicação Capítulo 8 88 CAPÍTULO 9 ALBERTO DINES E O PAPEL DA CRÍTICA JORNALÍSTICA NA IMPRENSA BRASILEIRA Diana de Azeredo Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (UFSC) Florianópolis - SC RESUMO: Este artigo apresenta uma síntese da contribuição de Alberto Dines para pensar sobre o jornalismo brasileiro. A ênfase é dada para suas reflexões acerca da crítica de mídia, área na qual foi o precursor no país. Ao ter como ponto de partida a biografia e as principais obras do jornalista, segue-se registrando as suas ideias sobre liberdade de imprensa e autorregulamentação da imprensa. Como estratégia metodológica, utiliza-se o estudo de caso, considerando o autor, a produção e o contexto produtivo. Devido às limitações de espaço, objetivo é propor um registro das ideias que marcam a trajetória de Dines como um praticante e um observador do jornalismo. PALAVRAS-CHAVE: Alberto Dines. Jornalismo. Crítica. ABSTRACT: This paper shows a synthesis of Alberto Dines’s contribuition for to think about brasilian journalism. A emphasis is on his reflections about media criticism, where he was precursor in our country. As of journalist’s biography and his principal works, this research registers his ideas about press freedon and Ciências da Comunicação press self-regulation. The method is case study, considering author, work and worked context. Because of space’s limitations, the objective is to propose the ideas’s register remarkables of Dines’s life trajectory like a exerciser and a observer of journalism. KEYWORDS: Alberto Dines. Journalism. Criticism. 1 | O JORNALISTA, O OBSERVADOR E O CIENTISTA Alberto Dines faleceu, aos 86 anos, devido a uma pneumonia, em 22 de maio deste ano. Nunca se disse cientista. Chamou a si mesmo de “experimentador”. “Vale dizer que, no máximo, pratico ciência, não a formulo”, alertou já na introdução de sua obra clássica (DINES, 1977, p. 3). Uma década depois, outra grande referência na pesquisa em jornalismo, Melo (1986, p. 12) reconheceu a “nítida vocação científica” de Alberto Dines. E cita a carreira profissional do jornalista para confirmar seu apontamento. Filho de imigrantes judeus poloneses, Dines nasceu no Rio de Janeiro, em 19 de fevereiro de 1932. Ao completar 85 anos, foi homenageado com um livro que reúne ensaios a respeito de seus temas preferidos. Na obra, Capítulo 9 89 Milgram e Koifman (2017) resumem a biografia de Dines. Segundo eles, como filho de quem aprendera a arte de escriba e, após ser matriculado na Escola Popular Israelita Brasileira Scholem Aleichem, desenvolveu sua paixão pelas letras (impressas e desenhadas) por meio da literatura. Foi durante uma visita do escritor Stefan Zweig ao colégio, quando Dines era um estudante de oito anos de idade, que uma semente foi plantada: quatro décadas depois, em 1981, o jornalista brasileiro lançou a biografia “Morte no Paraíso”, relatando parte da vida e da obra do intelectual judeu, oriundo da Áustria. O tema acabou se tornando uma obsessão para Dines, que assinou quatro edições revistas e ampliadas do livro1. Ele ainda foi o responsável por reunir contribuições de amigos e comprar a casa onde Zweig morou no Brasil, juntamente com sua esposa. A Casa Stefan Zweig2, localizada no Rio de Janeiro, abriga também um memorial em homenagem a outros refugiados do nazismo que residiriam no Brasil. Dines coordenou o levantamento de 200 biografias de exilados ilustres, que contribuíram para o desenvolvimento nacional, com conhecimentos em áreas como arquitetura, artes plásticas e literatura. O arquivo chama-se “Canto dos Exilados”. Outras obras de autoria de Dines são “O Baú de Abravanel: uma crônica de sete séculos até Sílvio Santos”, “Vínculos do fogo: Antônio José da Silva, o Judeu, e outras histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil”, “Posso?” (coletânea de contos), “Erico Verissimo: História e Literatura” e “E por que não eu?”. Milgram e Koifman (2017) listam ainda 11 produções coordenadas e/ou organizadas por ele, 10 livros assinados em parceria com outros autores, 20 artigos publicados em anais, revistas ou livros e 42 textos que incluem prefácios, apresentações, posfácios, entrevistas e memórias. Dines iniciou a carreira no jornalismo aos 20 anos de idade. Adquiriu experiência trabalhando nos jornais “Última Hora”, “Diário da Noite” e “Correio da Manhã” e nas revistas “A Cena Muda”, “Manchete”, “Fatos e Fotos” e “Visão”. Abreu (2017) relata que ele fez um curso na Universidade de Columbia e realizou estágio em jornais dos Estados Unidos. Nesse contato, teria aprendido a defender a “ética do jornalismo liberal americano – uma ética ainda fora de lugar no Brasil” (KUCINSKI, 2017, p. 45). Com essa perspectiva, foi editor-chefe do “Jornal do Brasil” durante 12 anos, onde ajudou a implementar uma mudança gráfica e editorial que marcou a imprensa brasileira (e foi seguida por outros veículos da época)3. No JB, inaugurou a crítica de mídia nacional e sistemática no suplemento chamado inicialmente “Cadernos de 1. Existe uma controvérsia em relação à morte do casal Zweig e, em decorrência disso, o escritor e psicólogo Jacob Pinheiro Goldberg questiona o trabalho de apuração de Dines e as afirmações contidas na biografia “Morte no Paraíso”. Mais detalhes podem ser conferidos no link: http://jacobpinheirogoldberg.blogspot.com.br/2009/07/ resposta-alberto-dines.html 2. Mais informações sobre o projeto estão disponíveis em: http://www.casastefanzweig.org/index.php?language=pt_br 3. Abreu (2017) explica que a reforma no JB durou 10 anos e envolveu diferentes jornalistas (um grupo criava e outro consolidava as alterações). Entre as inovações, Dines foi o responsável por aumentar o destaque às fotos, delimitar a quantia de anúncios na capa e instituir a reunião de pauta (até então, inexistente nas redações brasileiras). Ciências da Comunicação Capítulo 9 90 Jornalismo” e, depois, “Cadernos de Jornalismo e Comunicação”. Foi demitido da empresa antes de publicar um texto que, depois de aprimorado, se tornou o clássico livro “O papel do jornal”. A demissão ocorreu porque o então editor desobedeceu a ordem de não divulgar manchete4 sobre a derrubada do governo de Salvador Allende, no Chile, pelo golpe militar. O jornalista seguiu fazendo crítica de mídia nas colunas “Jornal dos Jornais” (Folha de São Paulo), “Jornal da Cesta” (O Pasquim), “Pasca Tasca” (O Pasquim de São Paulo) e “Circo da Notícia” e “Observatório” (Revista Imprensa). Também trabalhou na Editora Abril, fez crônicas para a Rádio Capital e artigos para jornais nacionais e estrangeiros. Lecionou as disciplinas de “Jornalismo Comparado” e “Teoria da Comunicação” na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) entre 1963-1973, foi professor-visitante na Escola de Pós-Graduação em Jornalismo na Universidade de Columbia em 1974-1975 e ajudou a fundar o Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LabJor) na Universidade de Campinas (Unicamp) em 1994. Dois anos depois, tendo voltado de Portugal, onde ajudara a fundar o Observatório da Imprensa português, Dines, juntamente com os professores Carlos Vogt e José Marques de Melo, parceiros do LabJor, deu início ao site “Observatório da Imprensa”5. Fórum permanente de debate sobre a mídia, a página reúne textos de jornalistas, cientistas e leitores comuns. Além das manifestações escritas, as mensagens são transmitidas por meio de vídeos e áudios (programas de TV e rádio, que chegaram a circular em canais de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Rio Grande do Sul). Entre agosto de 1997 e março de 2000, era veiculada a versão impressa, patrocinada pela Xerox do Brasil e distribuída mediante assinatura gratuita. Conforme Egypto e Malin (2008, p. 178), “o OI converteu-se numa história de sucesso feita com meios franciscanos e conceitos poderosos”. Com o trabalho de profissionais contratados e colaboradores eventuais, o objetivo era, ao mesmo tempo, promover um fórum de debates e fazer um veículo jornalístico que aborde o jornalismo. Em 1996, sua periodicidade era mensal. No mesmo ano, passou a ser quinzenal. Atualmente, é diária. As manifestações vindas do público, desde que tratem sobre a cobertura midiática e não contenham ofensas pessoais, intolerâncias ou apologia a preconceitos, são conferidas e publicadas. Os autores sublinham que o projeto idealizado e colocado em prática por Dines é incompleto. A pretensão é fornecer “chaves de compreensão” para que as pessoas não leiam mais o “jornal do mesmo jeito” (EGYPTO; MALIN, 2008, p. 183). Por meio dessa iniciativa, “o media criticism deixou de ser mais um exercício acadêmico para assumir o status de ação social exercida em nome da cidadania” (EGYPTO; MALIN, 2008, p. 182). Além disso, ambos enfatizam as ações do Observatório em defesa da 4. A capa, juntamente com um texto avaliativo do jornalista Mário Magalhães, pode ser conferida no link: https:// blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2013/09/11/exclusivo-bloqueado-pela-censura-o-jornal-do-brasil-saiu-sem-manchete-no-dia-seguinte-ao-golpe-40-anos-depois-alberto-dines-conta-qual-seria-o-titulo-proibido/ 5. Página acessível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/ Ciências da Comunicação Capítulo 9 91 criação do Conselho de Comunicação Social e do Código de Ética do Jornalismo. 2 | JORNALISMO EM SITUAÇÃO DE CRISE POLÍTICA E ECONÔMICA A fim de compreender a contribuição de Alberto Dines para o entendimento do jornalismo como ciência, é imprescindível iniciar pela abordagem de sua obra clássica. Em “O papel do jornal”, cuja primeira edição foi lançada em 1974, o pesquisador dedica-se a explicar as causas da crise instaurada no jornalismo brasileiro. Começa por identificar a natureza mutante da prática jornalística enquanto atividade humana. Para ele, o desenvolvimento da humanidade (e, consequentemente, da comunicação) ocorre em um movimento pendular de crescimento, maturação e contenção. Ou seja, é inútil esperar uma evolução linear, constante. Segundo ele, no Brasil, a produção e a circulação de periódicos passaram por diferentes fases. Iniciaram com o “beletrismo”, quando o jornalismo era considerado um “subproduto da literatura – a literatura sob pressão, como definiu Alceu de Amoroso Lima” (DINES, 1977, p. 8). Entre 1940 e 1960, as mudanças na sociedade (retomada industrial, reabertura política) resultaram em jornalistas mais preocupados com a funcionalidade e a eficiência. De acordo com Dines (1977, p. 8), a objetividade e o uso do lead marcaram a “fase de ouro do jornalismo brasileiro”. Durante os anos 60, a televisão alcançou seu primeiro auge e a proposta de especialização ganhou força em todos os meios. Na década seguinte, a multidisciplinaridade voltou a ser valorizada e traços da subjetividade humana, subestimados em função de doutrinas, técnicas e programas empresariais, passaram a ser novamente enaltecidos nas redações. É neste contexto que Dines (1977, p. 10), em sua experiência de professor universitário, promovendo ações em parceria com psicólogos e educadores, a fim de sensibilizar os universitários para as humanidades, ensinou: A disposição jornalística é antes de tudo um estado de espírito e este não se aprende em bancos acadêmicos ou por osmose. Esta atitude básica do jornalista, traço eminentemente vocacional, pode, no entanto, ser desenvolvida e elaborada num treinamento que combine as teorias científicas com fatores psicológicos fundamentais, como o inconformismo, a disponibilidade e o dinamismo intelectuais. Para o estudioso, a abertura do jornalismo para a multidisciplinaridade e para “tantos polos de irradiação de força” (DINES, 1977, p. 11) caracterizaram os anos de 1970. Convergiram no mesmo sentido da distensão política anunciada pelo governo do general Ernesto Geisel. A ditadura militar, vale frisar, integrou o cenário brasileiro e influenciou na forma de fazer e perceber o jornalismo. Egypto (2017, p. 53) reproduz trechos do texto de estreia da coluna “Jornal dos Jornais”, intitulado “A distensão é para todos” e publicado em 6 de julho de 1975: “O direito à informação não funciona apenas num sentido, mas tem múltiplas direções: serve aos veículos para informar ao público e serve ao público para se informar sobre Ciências da Comunicação Capítulo 9 92 os veículos. Democracia vale para todos, caso contrário não é democracia”. É neste contexto que Dines propôs reflexões sobre crítica de mídia, censura e liberdade de expressão, tópicos aprofundados mais adiante. Por ora, é necessário descrever a situação econômica que tensionou a atividade jornalística neste período. Em sua análise, o pesquisador apresentou a relação entre o aumento mundial do consumo de papel, a dependência de papel importado (e dos preços impostos por indústrias estrangeiras), as intempéries (impossibilidade de abater as árvores e transportá-las pelas vias pluviais, ocasionando falta de matéria- prima), a crise do petróleo (devido ao consumo superestimulado, que gerou escassez, aumento de preço e alto custo dos meios para transportar papel e jornais), controle ambiental (fechamento de fábricas e redução do licenciamento a novas indústrias a fim de minimizar danos à natureza) e greves de industriários do setor de papel. “Estamos vivendo não apenas uma, mas várias crises concêntricas”, alertou Dines (1977, p. 18). Segundo ele, porém, identificar o problema não deve ser motivo para a generalização do pânico paralisante. Em vez disso, a reflexão proposta visou a encontrar soluções possíveis para o caso brasileiro. “Jornais com menos papel podem ser melhores jornais”, observou Dines (1977, p. 19). Como? Mantendo uma postura de honestidade em relação ao leitor, a começar pelos custos da empresa jornalística e do produto final. Se o negócio do jornalismo é caro, se a informação isenta e imparcial deve ser valorizada por um preço, este preço tem de ser enfrentado, não pode ser escamoteado ao público. O leitor só reage ao aumento do preço de venda avulsa quando sente que o jornal não vale, quando percebe que os anúncios compram opinião e que esta se põe a serviço do poder. (DINES, 1977, p. 26). O autor explica que a economia de uma empresa jornalística deve considerar os gastos com papel, profissionais (talento) e maquinaria. Há também os custos com distribuição e venda. Ao abordar esse aspecto, o jornalista fez uma crítica aos responsáveis pela agência de correios e aos donos de banca que cobravam muito por um serviço nem sempre bem prestado. Ao dividir os problemas do jornalismo impresso em 3 E’s (econômicos, estratégicos e estilísticos), Dines (1977) defendeu que o jornal seja, financeiramente, dependente do leitor. A publicidade deve ser adequada ao perfil dos leitores, mas não pode determinar o conteúdo das matérias para agradar aos interesses dos anunciantes. “A pendência empresa versus imprensa existe apenas para quem não sabe valorizar o jornalismo. A empresa deve servir de base à instituição pública que é um jornal e este, quanto mais bem feito, mais independente e influente, melhor servirá à empresa”, ensinou Dines (1977, p. 115). Exatamente 20 anos depois, o estudioso continuou apontando os problemas de misturar marketing e jornalismo. Seguiu, inclusive, criticando os interesses empresariais imediatos que, quando priorizados, colocam em risco o exercício jornalístico. “Essa impaciência e onipotência de proprietários de jornais têm levado muitos veículos ao desatino”, sentenciou Dines Ciências da Comunicação Capítulo 9 93 (1977, p. 40) para insistir no alerta: “a busca de resultados imediatos empobrece o jornalismo brasileiro” (DINES, 1997, p. 38). De acordo com ele, a imitação de modismos importados de instituições estrangeiras, sem considerar a realidade nacional, conduz à homogeneização da imprensa – o que é extremamente prejudicial. Por isso, ao abordar o “E” de “estratégia”, o autor defendeu a especialização como um caminho para lidar com a crise. Seria necessário, conforme ele, encontrar o espaço aberto na cobertura de outros jornais para divulgar a informação inédita. Em 2012, ampliou essa reflexão durante o programa “Roda Viva”. Avaliou que faltava controvérsia entre coberturas de diferentes jornais. Além da inexistência de pluralidade, outro grande problema identificado foi a falta de debate. “Essa é a função da imprensa: debater, dar a notícia, debatê-la, renová-la, contraditá-la” (DINES, 2012, s/n). Pensando em estratégia, previu, no final da década de 70, que os veículos locais e regionais tinham grande chance de se desenvolver, absorvendo jornalistas recémformados. “A imprensa provincial, especialmente, pode vir a ser o maior incentivador do processo cultural brasileiro” (DINES, 1977, p. 133). “É no jornalismo regional, estadual, que se pode fazer muita coisa. (...) a renovação da imprensa deve começar no pequeno e no médio jornal”, repetiu Dines (1981, p. 26). Outras táticas sugeridas pelo professor são: investimento em setor de pesquisa (com possibilidade de compreender situações históricas e antecipar novidades), estabelecimento de vínculo com escolas (o “Jornal do Brasil” foi o pioneiro nessa estratégia, ao criar um Departamento Educacional na redação e produzir publicações voltadas a professores e estudantes). Aconselhou a valorização do profissional culto e experiente e a contratação de correspondentes para cobrir outros países (especialmente, na fronteira). Conforme Dines (1977), uma das principais funções da imprensa é chamar o cidadão à responsabilidade. Eximir-se desse papel é uma atitude perigosa tanto em tempos de crise quanto em períodos de calmaria. “Uma corajosa menção aos problemas e às suas causas explicará os programas empreendidos para saná-los e levará a sociedade a uma parceria construtiva” (DINES, 1977, p. 127). Por fim, como estratégia, o pesquisador alertou para os riscos do vínculo entre imprensa e poder governamental6. Segundo ele, essas relações corrompidas existem desde a Proclamação da República. Porém, é preciso lutar contra elas. O jornalista deve manter uma postura de distanciamento, mesmo arriscando-se a soar deselegante ao recusar convites para festas, por exemplo. Essa é uma estratégia que visa a romper os laços que impedem o pleno exercício jornalístico. 6. Conforme o jornalista, historiador e professor universitário Juremir Machado da Silva, Alberto Dines, logo no início do golpe militar, em 1º de abril de 1964, demonstrou ser favorável à ditadura. Ele cita o livro “Os idos de março e a queda de abril”, em que Dines defende a tomada do governo. Como o objetivo, neste artigo, não é avaliar a obra ou a postura do Jornal do Brasil durante 1964-1985, fica o registro e os links para os textos do Juremir, caso o leitor queira aprofundar o conhecimento sobre o tema: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/ juremirmachado/2013/07/4557/ate-alberto-dines-apoiou-o-golpe-de-1964/ e http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2014/03/5741/o-peleguismo-primario-de-alberto-dines-interventor-da-ditadura-e-personagem-confiavel-para-o-sni/ Ciências da Comunicação Capítulo 9 94 Sobre o “E” de “estilo”, a principal lição é criatividade para reagir. Ainda que pareça um conselho “estratégico”, a leitura completa da obra e de ensinamentos posteriores remete a conceitos mais específicos, relacionados à apresentação gráfica e ao tom da narrativa escolhido pelo veículo. O autor explica, por exemplo, a importância de manter a coerência, a ligação temporal entre as matérias e a organização visual a fim de aproveitar a característica periódica do jornal. Dines afirmou ser favorável ao jornalismo investigativo, interpretativo e analítico, combinado ao depoimento pessoal do repórter. Chamou a atenção para a valorização do trabalho de campo em vez do de gabinete, questionou a validade do excessivo gasto de papel e impressão com a editoria de serviços (listas de aprovados em vestibular...) e propôs que os cortes em textos fossem feitos por meio do “buril” (com cuidado, discernimento) e não da “foice” (comprometendo, muitas vezes, informações importantes). Analisando a mídia brasileira 20 anos depois, Dines (1997, p. 40) criticou a “juvenilização da imprensa”, com a oferta de conteúdos pobres e simplistas, como se o jovem fosse também idiota. Reprovou o culto às celebridades de sucesso meteórico e a priorização do entretenimento superficial em vez da cultura. Disse que os jornais estavam tentando imitar os canais de televisão comercial e ponderou que essa atitude era um erro, inclusive, na tentativa mal feita de segmentar a informação. “O velho jornalão está hoje pulverizado em jornaizinhos”, comentou Dines (1997, p. 39). Em 2012, reclamou que o jornal impresso estava “espremido por colunas” (DINES, 2012, s/n) e necessitava arejar sua diagramação. Sobre a relação do impresso com outros meios, Dines (1977) citou o teórico Wilbur Schramm para explicar as especificidades de cada um. Não tardou a tranquilizar os ânimos de quem temia o desaparecimento do rádio, da revista e do jornal quando a televisão emergiu. “Veículos não se extinguem como tal, transformam-se” (DINES, 1977, p. 31). Além do temor da extinção, o pesquisador combateu a tentação de mimetizar o formato da televisão. Insistiu que era possível se valer das diferenças para, no caso do impresso, aprofundar temas superficialmente abordados nos noticiários da TV. Apostar no fortalecimento da identidade do jornalista foi o incentivo do professor. De acordo com ele, a profissão é uma atividade intelectual que requer tomada rápida de decisões e um perfil, calado ou expansivo, mas de espírito inquieto, inconformado. Apesar de enaltecer as qualidades do jornalista, percebendo nele, “em última análise, um educador” (DINES, 1977, p. 117), pontua que ninguém é semideus. As virtudes, além de não serem identificáveis em todos os profissionais, muitas vezes são resultado de experiências dolorosas, desenvolvidas ao longo da carreira no convívio com os outros e acompanhadas de ônus. Cada componente positiva do comportamento jornalístico tem a sua contrafação negativa. O intransigente compromisso com a verdade torna o jornalista teimoso, inflexível. O comprometimento com a causa pública torna o jornalista incômodo Ciências da Comunicação Capítulo 9 95 e aparentemente antissocial. A detecção permanente e devidamente antecipada dos gostos, tendências e motivações coletivas, desgasta-o mais depressa que ao cidadão que vai no seu caudal. (DINES, 1977, p. 123). Essa identidade profissional, combinada às peculiaridades de cada indivíduo, deve convergir para o cumprimento do objetivo: fechar a edição do dia. “Dizer que jornal é trabalho de equipe é dizer muito pouco. Jornal bem sucedido é trabalho de uma orquestra de personalidades diferentes ou mesmo antagônicas, porém complementares, harmonizadas e equilibradas por normas ou metas comuns”, sintetizou Dines (1977, p. 48). Ao final da obra, o autor dedicou seis páginas para divulgar uma coletânea de conselhos, destinados a profissionais da imprensa, feita pelo jornalista e editor responsável pela editora Artenova, Álvaro Pacheco. Essa “doutrinação cotidiana” (DINES, 1977, p. 143), oriunda da experiência dos repórteres, desenvolvida dentro da empresa jornalística e voltada ao aprimoramento da própria instituição, vai originar os manuais de redação e estilo. Em um segundo movimento, vão contribuir para a elaboração da dimensão secundária de teorias e da consolidação do jornalismo como ciência. 3 | CENSURA E LIBERDADE DE EXPRESSÃO Quando os militares tomaram o Governo do Brasil em 1º de abril de 1964, Alberto Dines estava com 32 anos e já trabalhava como jornalista há 12. As duas décadas seguintes coincidiram com o auge de sua carreira na imprensa e com a ditadura no país. Por isso, ao dar lições sobre jornalismo, é comum propor reflexões sobre a censura e a liberdade de expressão. O que não pode haver numa sociedade que busca a perfeição econômica, social e política é o espírito de “dedo no gatilho” contra a imprensa. Se um jornal cutucou um fato inconfortável, não é motivo para que seja fechado ou silenciado. Mais lícito seria mandar investigar e punir os responsáveis pelo fato que gerou a denúncia. Se um jornalista foi insistente demais em denunciar algum escândalo, mesmo numa empresa privada, não é motivo para pedir a censura sobre ele. A explicação, o desmentido, a resposta à altura são mais dignos que o silêncio imposto pela censura. Quando governos e elites compreenderem isto, os jornalistas serão entendidos. E poderão ser melhores jornalistas. (DINES, 1974, p. 124). Em entrevista a Moacir Pereira, Dines (1981) relata que, em 1968, quando o Ato Institucional nº 5 foi promulgado pelo general Costa e Silva e as manifestações contrárias à ditadura militar passaram a ser duramente combatidas, a imprensa começou a ser censurada previamente. No “Jornal do Brasil”, dois oficiais do Exército permaneciam dentro da redação para conferir a elaboração da edição. Caso identificassem uma matéria desfavorável aos interesses do Governo, ordenavam a substituição por outro texto. Não era permitido deixar o espaço em branco a fim de alertar o leitor para a publicação censurada. Na primeira edição do “JB” produzida sob censura, Alberto Dines, então editor- Ciências da Comunicação Capítulo 9 96 chefe, com o aval do diretor do jornal, coordenou uma veiculação histórica7. Na capa, um pequeno quadro trazia uma previsão meteorológica curiosa: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, nas Laranjeiras8” (JORNAL DO BRASIL, 1968, p. 1). Somada ao texto de cobertura da promulgação do AI 5, no qual era enfatizada a data da decisão (“sexta-feira 13”), a estranha previsão teve o objetivo de servir de alerta implícito aos leitores. A censura estava ocorrendo. E era necessário avisar o público, transmitindo uma mensagem sutil, que não seria identificada pelos censores. Nesta edição de 46 páginas, há outros sinais e ironias que passaram despercebidas aos fiscais (mas, não aos leitores e aos registros históricos sobre o jornalismo brasileiro). Pela análise de apenas uma edição, é impossível dimensionar as tentativas de resistência à censura empenhadas pelos jornalistas. Porém, em seus relatos, Dines (1981, p. 20) lembra da experiência como um ato de heroísmo: “não sabíamos o que ia acontecer, mas estávamos certos de ter realizado algo importante”. E tendo experimentado intensamente a repressão dos “anos de chumbo”, ele, que lançou livros sobre a inquisição católica, explica que a ditadura militar não pode ser vista como uma exceção na história da imprensa brasileira. Houve censura, segundo o estudioso, de 1500 a 1808, quando o país era colônia portuguesa. Mesmo após a retomada democrática, a mídia passou a ser controlada de outra forma: pela iniciativa privada e pela autocensura. Em 1981, criticou as mensagens uníssonas dos jornais, a redação autocensurada e a falta de isenção causada pelas tentações do poder econômico. “Antes, os controles vinham de cima, autoridades civis e militares ou donos de empresas a elas associados, enquanto hoje a distorção e a manipulação muitas vezes são de origem corporativa (...) ou, simplesmente, conveniências pessoais”, avaliou Dines (1986, p. 21). Em 2008, apontou a ditadura do marketing como o grande problema na mídia nacional. Na retomada democrática, Dines (1986, p. 21) arriscou a previsão de que “a pretendida democracia irá medir-se, obrigatoriamente, pelo padrão de comportamento de nossos veículos de comunicação”. Após uma década, já apontava um dos principais impedimentos ao desenvolvimento político nacional: “Até que ponto o denuncismo obsessivo da imprensa, nem sempre fundado em apuração rigorosa dos fatos, vem atemorizando os cidadãos e minando a sua confiança na democracia e na liberdade de expressão?” (DINES, 1997, p. 13, grifo do autor). Portanto, para ele, o prejuízo ao jornalismo livre não se limitava à censura militar ou à escassez de papel para imprimir informações. Interesses monetários, ideologias corporativas e falta de apuração são laços que amarram jornalistas e impedem a 7. Disponível no link: https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19681214&printsec=frontpage&hl=pt-BR 8. Apesar de a sede do Governo estar situada em Brasília desde 1960, a decisão sobre a promulgação do AI 5 ocorreu no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Ciências da Comunicação Capítulo 9 97 transmissão informativa comprometida com a cidadania. O compromisso de jornais e jornalistas é com a informação. Seu empenho nesta tarefa faz, de um jornal qualquer, um jornal livre, logo um grande jornal. Uma nação de grandes jornais é uma grande nação. Sem este valor intrínseco, sem este quilate que advém de um entendimento superior das suas funções, um jornal, por melhor que seja organizado e construído, será apenas um catálogo de notícias. (DINES, 1977, p. 142). Por fim, ao defender o diploma do jornalista, quando ocorreu formalmente a primeira tentativa de derrubá-lo na década de 1980, o autor, na reedição de sua obra clássica, reforçou a defesa da liberdade de imprensa. Argumentou que a exigência do curso universitário não era um ataque à manifestação livre. O impedimento à liberdade de expressão, para ele, eram a exploração na venda de impressos e as concessões de canais de televisão e emissoras de rádio no Brasil, que priorizavam políticos e empresários com grande poder aquisitivo. 4 | ENSINO UNIVERSITÁRIO E AUTOCRÍTICA MIDIÁTICA Apesar de nunca ter feito graduação, o ex-professor universitário defendeu a academia. Reconheceu que o contato com estudantes, mesmo na condição de mestre, contribuiu muito na sua formação profissional e humana. Foi na universidade que encontrou a chance de sistematizar sua experiência como jornalista. É na sala de aula, no exercício da teoria e na avaliação da prática, que o profissional pode enxergar mais longe. A reflexão não precisa necessariamente ser convertida em pomposas doutrinas mas pode converter-se em conceitos e, sobretudo, ideais. Não existe melhor lugar para usinar a prática com a teoria do que a universidade. (...) Existem técnicas jornalísticas e filosofias do jornalismo que precisam ser trabalhadas conjuntamente, longe da correria dos “fechamentos”, das injunções e precariedades do dia a dia. A sala de aula, conveniente e necessariamente equipada – em termos materiais como humanos – é insubstituível para fundir ética com técnica, ideal com real, de modo a impedir que algumas vestais, quando lhes dá na veneta, atribuam-se o papel autoritário do pontificar sobre o que é certo ou errado. A campanha contra o ensino do jornalismo, a pretexto de proteger a imprensa do abominável licenciamento, na verdade, inspira-se em aberração autoritária ainda maior – a crença de que o jornalismo é apenas “vocação” sem compromissos maiores com a sociedade, missão para alguns iluminados escolhidos por outros coleguinhas iluminados que galgaram o poder ou o receberam de mão beijada. (DINES, 1986, p. 22). É essa compreensão que o autoriza, dez anos mais tarde, a chamar a atenção para o risco de as universidades transformarem manuais de redação em bíblias e reforçarem “vícios no lugar de exportar suas virtudes” (DINES, 1997, p. 46). Ele enfatizou que a demanda empresarial não pode ditar o ritmo e o conteúdo do ensino acadêmico. “A escola de jornalismo deve converter-se em inspiração para o mercado”, afirmou Dines (1997, p. 47). Na defesa da liberdade de imprensa, Dines (1974, p. 120-121) argumentou a favor da autorregulamentação: “comitês profissionais ou acadêmicos para julgar os erros éticos dariam também às classes envolvidas um salutar espírito disciplinar, um Ciências da Comunicação Capítulo 9 98 verdadeiro “esprit-de-corps”, antipaternalista e protetor”. Seguiu com esse pensamento quase 40 anos depois, ao salientar que os jornalistas não deveriam esperar que o Governo regulamentasse sua atividade profissional ou instituísse um conselho. “Temos que criar o clima para que a lei seja produzida” (DINES, 2012, s/n). E esse “clima” seria a disposição para a autocrítica. “O jornalismo é um exercício crítico permanente ao qual todos devem ser submetidos, sobretudo o próprio jornalismo. Quando a imprensa se exclui do debate torna-se automaticamente suspeita”, escreveu Dines (2006, s/n). Para ele, ampliar os canais de participação popular e a conscientização da audiência quanto aos bastidores da mídia é imprescindível para a democracia. Porém, é difícil que a iniciativa em prol da lisura seja tomada pelos veículos de comunicação. “A imprensa brasileira jamais prestou contas à sociedade que lhe outorgou condições para executar seu poder”, provocou Dines (1986, p. 148). Conforme o precursor da crítica midiática nacional, a ausência de profissionais como o ombudsman9 prova a dificuldade de jornalistas cobrarem de si mesmos a qualidade rigorosa e a transparência competente que cobram de outros profissionais. É necessário, de acordo com ele, resistir à arrogância e promover a autoanálise, a admissão dos erros e a prestação de contas. O compromisso é coletivo. “A crítica da imprensa tem que ser uma atitude conjunta da imprensa. Toda imprensa tem que se autoexaminar” (DINES, 1981, p. 18). Ele, que criou o LabJor e o Observatório da Imprensa com o objetivo de realizar essa crítica, ensinou que ela requer as mesmas “condições ambientais” do exercício jornalístico: “atualidade, esmero, empenho, referências, equilíbrio, pluralismo, constância” (DINES, 2008, p. 8). Egypto (2017) ao fazer referência a essas lições, lembrou que o jornalismo é fundamental para equilibrar poderes e promover a democracia. Trata-se de uma atividade socialmente necessária. Essa imprescindibilidade justifica o compromisso do Observatório da Imprensa em qualificar o debate público sobre a mídia. “Por isso a luta de uma vida inteira de Alberto Dines em favor de uma mídia jornalística forte, plural e diversificada. Como deve ser. Como a sociedade requer e precisa” (EGYPTO, 2017, p. 66). 5 | O JORNALISMO, CONFORME O PRÍNCIPE Especificamente, “jornalismo é a busca de circunstâncias”, definiu Dines (1977, p. 7). Ampliando o conceito, após uma década, ponderou que não estava se referindo à superficialidade. “O jornalismo é a técnica de investigar, arrumar, referenciar, distinguir circunstâncias” (DINES, 1986, p. 18). Já no novo milênio, Dines (2012, s/n) decretou: “jornalismo é pulsação, inspiração e ciência. Você tem que estudá-lo como ciência, 9. Jornalista contratado para responder manifestações (elogios, reclamações e dúvidas) do público e para publicar uma avaliação (geralmente, semanal) das publicações do veículo para o qual trabalha. Atualmente, no Brasil, os únicos jornais que possuem ombudsman são a Folha de S. Paulo e O Povo. Ciências da Comunicação Capítulo 9 99 mas praticá-lo como artista”. Conforme o pesquisador, o exemplar impresso reflete anseios, dúvidas, versões históricas (nem piores, nem melhores) dos emissores e receptores. “Jornal é, ao mesmo tempo, espelho e miragem da sua audiência, caricatura e ideal de seus leitores”, escreveu Dines (1986, p. 21). O jornalista e o leitor, assim, fazem parte de um mesmo bolo social; são, em última análise, a mesma coisa. É por esta razão que não se pode dizer que a imprensa de determinado país ou região é ruim ou boa. Ela é um reflexo e um segmento da própria sociedade a que serve. Jornalista e leitor são os que melhor se entendem e sintonizam, pois se os primeiros são treinados para sentir as necessidades do último, este foi domesticado para receber aquilo que certamente lhe agradará. Jornalista é o leitor em função de emissão. (DINES, 1977, p. 44-45). Aprimorou essa afirmação ao explicar, vinte anos depois, que o jornal deve ser um espelho polido a fim de “representar não só a imagem do que está refletido, mas aquilo que o objeto gostaria de parecer. A imprensa não deve ser reprodução exata do país que a produz. Tem que ser melhor – para servir de estímulo e fornecer os desafios” (DINES, 1997, p. 16). Ao analisar a postura midiática durante e após a ditadura militar, percebeu o “medo de servir plenamente à sociedade. (...) Nos dois momentos, as mesmas circunstâncias e falta de convicção no papel do jornal e da imprensa em geral” (DINES, 1986, p. 19). Ele insistiu em frisar a importância da consciência do compromisso jornalístico entre os profissionais. Os jornais não alcançam grandes vendagens e, portanto, não possuem grandes tiragens, porque estes jornais não são feitos para atender a todas as necessidades de seus leitores. Essas necessidades são: independência, isenção, etc. Para falar em termos comerciais, os jornais fazem um produto que não atende ao mercado. (DINES, 1981, p. 15). Cerca de 15 anos depois, o crítico não creditou mais o esquecimento do leitor à ingenuidade ou ao amadorismo profissional. “Continuamos achando que o leitor não sabe, não deseja, nem merece saber. Transposição do elitismo mandonista dos tempos coloniais. (...) Do desrespeito para com a inteligência do leitor resulta na arrogância do nosso jornalismo” (DINES, 1997, p. 36). Em 2012, examinando a situação atual da imprensa brasileira, declarou que estava muito tecnicista e pouco vibrante. Negou saudosismo, mas disse que, no passado, os jornais transmitiam mais entusiasmo. Para ele, o que faltaria no país era um jornal semanal para “amarrar o fluxo excessivo informativo da internet” (DINES, 2012, s/n). Apesar de soar normativa, a compreensão de jornalismo do autor não pode ser ignorada. Ao marcar a sua carreira pela crítica de mídia, Alberto Dines inevitavelmente tende a salientar aspectos negativos e apontar caminhos para a melhoria do exercício jornalístico. Nessa condição de analista, inclusive, negou ter cometido algum erro (DINES, 2012, s/n). Ele afirma que seu livro clássico foi “uma das primeiras tentativas de somar experiência com reflexão resistindo à tentação de fazer ciência” (DINES, Ciências da Comunicação Capítulo 9 100 1986, p. 17). No parecer de Melo (1986, p. 10), porém, trata-se muito mais do que isso. Ao escrevê-lo, o jornalista captou os dados fundamentais do momento histórico – a crise da imprensa no bojo da crise econômica internacional (escassez de papel, escassez de petróleo) e da crise política nacional (esgotamento do regime militar instaurado em 1964). Mas não se limitou a isso. Interpretou sistematicamente as variáveis da conjuntura e as articulou com as tendências observadas no movimento da imprensa brasileira para identificar traços capazes de explicarem sua trajetória recente e as projeções perceptíveis. Realizou, assim, um trabalho de cientista do jornalismo. Melo (1986, p. 10) justificou a “natureza científico-jornalística” da obra como motivo para ser inserida nas bibliografias dos cursos de graduação. Frisou que, mesmo quando editava o suplemento do “Jornal do Brasil”, “Cadernos de Jornalismo e Comunicação”, o “Príncipe dos Jornalistas Brasileiros”10 já demonstrava interesse e competência para “teorizar sobre a sua prática cotidiana e retirar lições capazes de guiarem os novos talentos” (MELO, 1986, p. 12). Por fim, o fato de ter sido convidado para lecionar em Columbia foi a “legitimação do trabalho de Alberto Dines como cientista do jornalismo” (MELO, 1986, p. 12). REFERÊNCIAS ABREU, A. A. Alberto Dines: um jornalista inovador. In: MILGRAM, A.; KOIFMAN, F. (Orgs.). Ensaios em homenagem a Alberto Dines. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2017. DINES, Alberto. O papel do jornal: tendências da comunicação e do jornalismo no mundo em crise. Rio de Janeiro: Artenova, 1977. ______. Imprensa e Poder Militar. In: A imprensa em debate: entrevistas a Moacir Pereira. Florianópolis: Lunardelli/Assembleia Legislativa, 1981. ______. O papel do jornal: uma releitura. São Paulo: Summus, 1986. ______. Um compromisso, uma história, um saldo. Observatório da Imprensa, São Paulo, 2 mai. 2006. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/um-compromissouma-historia-um-saldo/ Acesso em: 31 jan. 2018. ______. Observação e participação: da física quântica à dinâmica da sociedade civil. In: CHRISTOFOLETTI, R.; MOTTA, L. G. (Orgs.). Observatórios de mídia: olhares da cidadania. São Paulo: Paulus, 2008. DINES, A.; VOGT, C.; MELO, J. M. (Orgs.). A imprensa em questão. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. EGYPTO, Luiz. O jornalista e o engraxate. In: MILGRAM, A.; KOIFMAN, F. (Orgs.). Ensaios em homenagem a Alberto Dines. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2017. EGYPTO, L.; MALIN, M. Um observatório, mais observatórios. In: CHRISTOFOLETTI, R.; MOTTA, L. G. (Orgs.). Observatórios de mídia: olhares da cidadania. São Paulo: Paulus, 2008. 10. De acordo com Melo (1986, p. 13), esse foi o apelido dado a Dines pelo historiador Alceu Amoroso Lima. Ciências da Comunicação Capítulo 9 101 JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro. Diário. Disponível em: https://news.google.com/newspapers?nid =0qX8s2k1IRwC&dat=19681214&printsec=frontpage&hl=pt-BR Acesso em: 20 jan. 2018. KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo fora de lugar: uma breve história sobre o jornalismo brasileiro. In: MILGRAM, A.; KOIFMAN, F. (Orgs.). Ensaios em homenagem a Alberto Dines. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2017. MELO, José Marques de. Apresentação. In: O papel do jornal: uma releitura. São Paulo: Summus, 1986. MILGRAM, A.; KOIFMAN, F. (Orgs.). Ensaios em homenagem a Alberto Dines. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2017. PROGRAMA Roda Viva. Produção da TV Cultura. São Paulo: TV Cultura, 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UbCo-ugid7I Acesso em: 18 jan. 2018. Ciências da Comunicação Capítulo 9 102 CAPÍTULO 10 DILMA ROUSSEFF: O PAPEL DA MULHER NA POLÍTICA BRASILEIRA Tylcéia Tyza Ribeiro Xavier Silvia Ramos Bezerra Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT contraste com 468 deputados. Desta forma, mesmo com mais da metade da população de eleitores sendo feminina e o país possuindo cerca de 6,3 milhões de mulheres a mais do que homens, segundo a PNAD (Pesquisa RESUMO: O objetivo deste trabalho é discutir o papel conferido à mulher na política brasileira, revelando como, no episódio da eleição da primeira mulher a presidência em 2011, a economista Dilma Rousseff, e seu impeachment em 2016, tornou-se possível observar e reconhecer, através do recolhimento de material jornalístico do período, sua face marcadamente machista e excludente. PALAVRAS-CHAVE: Dilma Rousseff; Brasil; Comunicação; Mulher; Política. Nacional por Amostra de Domicílios), a ínfima participação feminina na política é ainda uma realidade. INTRODUÇÃO Assim como a maioria das democracias ocidentais e quase todos os governos nos Distribuição de cargos na administração pública Fonte: Boletim estatístico de pessoal SIAPE, Brasil demais países pelo mundo, a política no Brasil sempre foi composta em sua maioria por políticos do sexo masculino. Esta discrepância é evidente nos dados coletados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística): em 2015 apenas 10% da Câmara dos Deputados do Brasil era composta por mulheres, são 51 deputadas em Ciências da Comunicação Esses dados nos impõem que façamos os seguintes questionamentos: quais razões político-sociais justificam essa baixíssima participação feminina na política no Brasil? E principalmente, como os meios de comunicação contribuem para a cultura política que afasta as mulheres das esferas de poder machista na Capítulo 10 103 política? Desta forma, buscando iniciar uma compreensão sobre as causas desta disparidade, escolhemos analisar material comunicativo variado (notícias, memes, páginas do Facebook, entre outros) que circulou nos meses anteriores e posteriores ao impeachment da primeira mulher eleita presidente do Brasil, a economista Dilma Vana Rousseff. O corpus do presente trabalho, portanto, fora recortado tendo em conta não apenas conteúdo jornalístico, mas também satírico de grande circulação na Internet no período de tempo informado, cujo mote principal era de construir a imagem pública da presidente em torno de signos marcadamente reconhecidos na literatura feminista contemporânea como signos próprios da cultura machista. Neste sentido, as imagens coletadas tinham como marcas simbólicas: a loucura, a incompetência, a inadequação física/corporal que eram associadas à presidente Dilma Rousseff em sua condição de mulher. Foto oficial da presidente Dilma Rousseff (2011-2016) POR QUE ESCOLHEMOS FALAR DA MULHER NA POLÍTICA? A política tornou-se, recentemente, uma temática presente no debate popular brasileiro. Hoje parece ter havido a superação da máxima folclórica de que “o povo brasileiro não se interessa por política”. Muitos estudiosos parecem estar atribuindo esta mudança cultural aos processos socioculturais oriundos da popularização da Internet e do fenômeno da inclusão digital (JENNINGS, ZEITNER, 2003; OWEN, VIDERAS, WILLEMSEN, 2008). Se ampliação do uso político da Internet registrado no Brasil nos últimos tempos abriu caminho para uma maior participação política, ela parece não ter sido suficiente para quebrar a barreira que separa as mulheres brasileiras de chegar aos mandatos políticos. Assim, se o espaço da política é tão importante para definição dos rumos da sociedade, por que se levou tanto tempo para que a mulher - que possui um papel fundamental para a continuidade da raça humana – pudesse ingressar na política e dela participar? Historicamente, uma bibliografia vasta sobre o tema tem se formado. Recorremos, Ciências da Comunicação Capítulo 10 104 contudo, a conceito de dominação masculina (1995), do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Para o autor, o homem desfrutou historicamente de um “livre poder”, cabendo diversas restrições que foram dadas à mulher. Como esclarece Bourdieu: A dominação masculina encontra, assim, reunidas todas as condições de seu pleno exercício. A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos os habitas: moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes (BOURDIEU, 1995, p. 45). A filósofa francesa Simone de Beauvoir consagrou-se no debate feminista com o livro “O Segundo Sexo” (1949), em que faz o questionamento que ainda permeia as sociedades contemporâneas: “o que é ser mulher?”. Beauvoir mostra como a mulher, desde o momento que nasce, é criada para ocupar uma posição subalterna em relação ao homem, devendo manter-se na condição de mãe e esposa. A condição feminina, portanto, não é natural, mas é histórica e culturalmente construída. Não acredito que existam qualidades, valores, modos de vida especificamente femininos: seria admitir a existência de uma natureza feminina, quer dizer, aderir a um mito inventado pelos homens para prender as mulheres na sua condição de oprimidas. Não se trata para a mulher de se afirmar como mulher, mas de tornaremse seres humanos na sua integridade (BEAUVOIR, 1949). A recente ampliação do debate feminista no Brasil, com a presença cada vez mais acentuada de teorias e lutas pautadas na igualdade de gênero, permite que possamos refletir sobre o protagonismo da mulher na sociedade, tomando em conta também a sua dimensão política. É o que relatam Grossi e Miguel: Nos últimos anos, crescem as reflexões, articulações e manifestações do movimento de mulheres e feministas, em torno da questão do acesso ao poder e do chamado empoderamento das mulheres. Essa também vem sendo a postura da bancada feminina no Congresso Nacional que, recorrentemente, articulada com diferentes organizações de mulheres, vem realizando ações com o objetivo de incentivar a participação de mais mulheres no âmbito do legislativo e nos demais espaços de poder. As parlamentares eleitas e as feministas militantes de partidos políticos têm influenciado seus partidos na criação de núcleos, coordenações ou articulações de mulheres, ao mesmo tempo em que têm contribuído para a introdução da política de cotas em algumas das direções partidárias (2001, p.01). O FEMININO NA POLÍTICA BRASILEIRA Pelo mundo, as sufragistas, mulheres que lutaram pela garantia do direito ao voto, viram esta conquista acontecer, em certos países, apenas no começo do século XX. Como afirma Abreu: As sufragistas argumentavam que as vidas das mulheres não melhorariam até que os políticos tivessem de prestar contas a um eleitorado feminino. Acreditavam Ciências da Comunicação Capítulo 10 105 que as muitas desigualdades legais, econômicas e educacionais com que se confrontavam jamais seriam corrigidas, enquanto não tivessem o direito de voto. A luta pelo direito de voto era, portanto, um meio para atingir um fim (2002, p. 460). No Brasil, as mulheres conseguiram direito ao voto parcial somente em 1932, sendo habilitadas para exercer o voto apenas as mulheres que tivessem autorização do pai, no caso de mulheres solteiras, ou do marido, se casadas. Entretanto, antes disso, em 1928, temos a excepcional trajetória de Luísa Alzira Teixeira Soriano, foi a primeira mulher da América Latina a governar uma cidade, antes mesmo que o direito ao voto feminino fosse conquistado. Foto de Luísa Alzira Teixeira Soriano Soriano liderou a cidade de Lajes no Estado Rio Grande do Norte, ganhando as eleições com 60% dos votos como votos masculinos, pois as mulheres ainda nem haviam conquistado o direito ao voto. A eleição de Luísa Soriano aconteceu graças à indicação para concorrer à prefeitura feita pela advogada Bertha Lutz, uma das responsáveis por trazer o feminismo ao Brasil. Os tempos parecem ter mudado definitivamente nesses idos dos anos 1930, além da eleição de Luísa Soriano, as sufragistas por todo o país obtêm vitórias importantes. Após grande mobilização, Getúlio Vargas assina, em fevereiro de 1932, o decreto que confere direito de voto às mulheres. Em 1933, brasileiras passam a poder eleger os candidatos para a Assembleia Constituinte em todo o país, sendo, contudo, o voto feminino de caráter ainda facultativo. Nessa data é eleita a primeira deputada brasileira, a pedagoga, médica e escritora Carlota Pereira de Queirós. Ciências da Comunicação Capítulo 10 106 Foto de Carlota Pereira de Queiroz Em 1934, com a promulgação da Carta Magna de 1934, o direito feminino de voto passa a ser obrigatório e a mulher passa a poder votar sem quaisquer restrições. Consagra-se, desta forma, definitivamente, o direito feminino ao voto no Brasil, pois “com a queda de Vargas, em 1945, o país retorna à democracia e elabora-se uma nova Constituição. A Carta de 1946 não retrocede quanto ao direito de voto das mulheres e torna-o obrigatório” (MARQUES, 2018, p. 123). Art. 133. O alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de ambos os sexos, salvo as exceções previstas em lei (BRASIL, 1946) Mesmo com sua participação política feminina ter sido iniciada em meados do século XX, somente décadas depois, em 2011, o Brasil vai eleger sua primeira presidente. A primeira mulher chegou à presidência do Brasil após 35 presidentes do sexo masculino terem governado o país nos 196 anos de República. Desde a década de 1970, as mulheres vêm ampliando a presença no somatório de eleitores. Em 1970, elas representavam 35% do eleitorado e no ano de 2006 atingem a marca de 50% do total de eleitores, quebrando finalmente a maioria masculina no voto. A supremacia feminina no eleitorado não é encontrada com relação à disputa eleitoral, uma vez que, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o número de candidaturas femininas alcançou apenas 31,7% do total de registros nas eleições de 2012. O que significa certo avanço, embora não haja correspondência destes números com relação aos mandatos conquistados por mulheres, que, como vimos, representam apenas 10% do total. DILMA ROUSSEFF Dilma Vana Rousseff nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, no dia 14 dezembro de 1947. Rousseff formou-se em economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, após ter sido presa e torturada durante três anos sob o regime militar. A carreira da ex-presidente Dilma iniciou-se muitos anos antes de seu auge Ciências da Comunicação Capítulo 10 107 na Presidência da República. Ao cursar o Ensino Médio em 1964, Dilma Rousseff ingressou no Movimento Estudantil do colégio, que na época chamava-se Colégio Estadual Central, para lutar contra o regime ditatorial que fora imposto no Brasil. Durante esses mesmos anos, a ex-presidente também se aliou ao Partido Socialista Brasileiro, até ao optar pela luta armada contra a ditadura, atuando no grupo Comando de Libertação Nacional (COLINA), uma organização de extrema-esquerda que lutava contra o regime militar imposto. Em 1969, Rousseff começou a defender os ideais políticos da organização Vanguarda Armada Revolucionário Palmares (VAR-Palmares), um grupo de extremaesquerda que, assim como o COLINA, defendia a luta armada contra a repressão ditatorial. Nesse mesmo ano, Dilma foi enviada para São Paulo com o encargo de manter em segurança as armas de seu grupo, sendo capturada no ano seguinte, em 1970 pela Operação Bandeirante (OBAN) e pelo Departamento de Ordem Política Social (DOPS), ficando presa e sofrendo torturas até o ano de 1972, quando deixou a prisão. Nos anos que se seguiram, Rousseff se graduou e trabalhou arduamente na política, tendo passado pela Secretaria Municipal da Fazenda, Secretaria Estadual de Energia, Minas e Comunicações, Ministério de Minas e Energia, Ministério da Casa Civil. Percorreu um longo caminho repleto de altos e baixos e polêmicas, tornando- se em 2011, a 36ª presidente da República do Brasil, entre os anos de 2011 e 2016, quando sofreu um impeachment por aquilo que ficou midiaticamente conhecido por “pedaladas fiscais”. As tais pedaladas foram, na verdade, o uso de decretos de crédito suplementar. Dilma acabou por ser deposta da presidência antes do fim de seu segundo mandato através de um impeachment realizado pelo Congresso Nacional. Muito foi discutido sobre os processos políticos e econômicos que estão presentes na saída de Dilma Rousseff da presidência (PRADO, 2017; JINKINGS, DORIA, 2016). Para alguns autores, as medidas de austeridade iniciadas no segundo mandato, a galopante crise econômica e mesmo a tentativa da elite política em barrar os efeitos jurídicos da operação Lava-Jato (operações policiais que envolviam investigar desvios de dinheiro na empresa estatal Petrobrás) são apontadas como razões para a articulação política que resultou na retirada da presidente do poder em 2016. Dilma Rousseff e o machismo Visando observar como a cultura machista brasileira teve influência nos processos que desembocaram na retirada de Dilma da presidência da República em 2016, no transcurso desse trabalho, recolhemos, a título de demonstração, capas das principais revistas semanais brasileiras entre os anos de 2010, ano de candidatura, a 2016, ano de seu impeachment. Desde que iniciou sua campanha ao cargo de presidente da República em 2010, Ciências da Comunicação Capítulo 10 108 Dilma Rousseff enfrentou a cultura machista brasileira. A sua ascensão eleitoral também foi marcada por discursos incrédulos do potencial técnico de seu futuro governo. Após sua posse, Dilma continuou a sofrer ataques misóginos constantes, muitos vindos da na internet. Em 2011 enquanto a então presidente, Dilma Rousseff estava com sua comitiva do Partido Trabalhista (PT), nos Estados Unidos, foi insultada pelo jovem Igor Gilly, que infiltrado a chamou de “vagabunda”, sendo aclamado pelo público contrário à Dilma, na Internet. Entretanto, os comentários não terminaram em Igor; mais tarde no mesmo ano, o deputado Jair Bolsonaro, atualmente presidente eleito, em seu discurso na tribuna da Câmara pediu pra Rousseff parar “de mentir” e assumir “se gosta de homossexual”, “se o teu negócio é amor com homossexual, assuma”, se referindo à mais um estereótipo de que sendo uma mulher de ideais e imponente, logicamente, não teria um homem ao seu lado, mas seria homossexual. Já em 2015 durante o processo de impeachment sofrido pela ex-presidente, o já citado deputado Jair Bolsonaro, ao dar o seu voto favorável ao processo na Câmara de Deputados, em seu discurso votou pela memória do já falecido Coronal Brilhante Ustra, que foi condenado na Justiça por tortura e sequestro na Ditadura Militar. Ustra foi chefe do Doi-Codi, considerado o pior órgão de repressão da ditadura militar, além de ter estuprado e torturado não só Dilma Rousseff, mas outras mulheres prisioneiras à época. Esses eventos, bem como a eleição posterior de Bolsonaro à presidência em 2018, apenas reforçam a leitura que apresentamos a seguir sobre o caráter amplamente misógino da política brasileira, evidenciando que os signos e imagens encontrados na campanha contrária a presidente Dilma Rousseff representada no material comunicativo selecionado são expoentes de uma cultura ainda fortemente presente. A capa de revista escolhida é a da revista semanal Istoé, do dia 01 de abril de 2016, período que antecedeu ao impeachment. Nela, a presidente Dilma aparece com a boca aberta, olhos arregalados. A tônica da imagem é consagrar uma expressão de desvario, de loucura, de descontrole. O título corrobora para esse entendimento: “Uma presidente fora de si”, bem como a frase “As explosões nervosas da presidente”. Ciências da Comunicação Capítulo 10 109 Capa da revista Istoé. Fonte: Istoé Ao analisarmos a imagem é possível perceber que os sentidos se multiplicam: loucura versus presidência; descontrole versus poder político, o que nos impõe pensar que a associação evidente, dado o contexto vivido no momento da publicação, é da incapacidade da presidente em permanecer no cargo para o qual fora eleita. Evidente que o tom satírico, e mesmo agressivo, de capas semelhantes já foram usados no Brasil contra presidentes do sexo masculino, contudo, impõe refletirmos que a particularidade de se associar a figura feminina com a loucura, descontrole e desvario tem sido uma prática discursiva da cultura machista há séculos. Os processos político-sociais que estavam relacionados com os estratagemas do impeachment diziam respeito às disputas vividas no interior da política brasileira, e tinham pouca ou nenhuma ligação com o temperamento ou carisma da presidente eleita. Mas, infelizmente, a construção simbólica produzida através da escolha de imagens da presidente nas revistas semanais, em especial a Istoé, durante o impeachment passou muito mais pelo reforço das “incapacidades” psicológicas de Dilma do que pelo debate político-ideológico. Conforme publicação de página feminista, a capa da revista Istoé tornou-se emblemática deste período e do reforço da cultura que atribuí um papel minoritário a mulher ocupa na política brasileira: Essa semana a capa da Isto É colocou a presidenta Dilma Rousseff como alguém que está perdendo o seu equilíbrio emocional. Aliás, não apenas a capa, mas a matéria da revista sobre Dilma parece querer a todo momento afirmar que ela não está aguentando a forte pressão da crise política, chegando inclusive a comparála com “Maria, a Louca”, que foi a primeira Rainha do Brasil. Na matéria, também há especulações sobre remédios que Dilma estaria tomando, além de opiniões de especialistas sobre o possível desequilíbrio de Dilma. Bem, você pode se perguntar qual a relação disso com o feminismo. A questão é que você pode discordar da Ciências da Comunicação Capítulo 10 110 Dilma, do governo dela, do partido, etc. E eu entendo que você tem razão pra isso. Sou mulher e por isso tenho várias razões para criticar esse governo. Só que justamente por ser mulher, sei que o machismo estrutural nos atinge das mais variadas formas. E claro, não seria diferente com Dilma. A revista Isto É resolveu se utilizar de uma imagem de mulher louca, mulher surtada, mulher histérica para explicar tudo o que está acontecendo politicamente (ATHAYDE, 2016). Esta forma de conceber a mulher como propensa a loucura é historicamente reconhecida na literatura científica como parte da opressão de gênero experimentada pelas mulheres ao longo do século: Analisando a questão a partir de olhares atuais, pode-se perceber que, naqueles contextos históricos, enlouquecer já seria em si desastroso, pelo precário esclarecimento em relação ao tema e pela falta de recursos terapêuticos para seu manejo. Mas quando o sujeito acometido pertencia ao sexo feminino, as concepções discriminatórias e opressoras em relação à mulher, místicas e supersticiosas do mundo antigo e medieval potencializavam o sofrimento a partir das relações de gênero. Como se pôde constatar, passar por esta experiência era absurdamente diferente para o homem e para a mulher, uma vez que a ela muito pouco era tolerado (ESQUINSANI, DAMETTO, 2012, p. 206). É preciso esclarecer que diversos veículos de comunicação opositores ao governo Dilma, mantiveram a mesma estratégia discursiva em suas capas. O caso da revista Istoé é emblemático, por ser uma empresa jornalística de linha editorial de oposição desde o período eleitoral de Dilma em 2011. Ainda conforme a matéria, trechos da revista, se referindo a fontes internas ligadas a Dilma que: Não bastassem as crises moral, política e econômica, Dilma Rousseff perdeu também as condições emocionais para conduzir o governo. Assessores palacianos, mesmo os já acostumados com a descompostura presidencial, andam aturdidos com o seu comportamento às vésperas da votação do impeachment pelo Congresso. Segundo relatos, a mandatária está irascível, fora de si e mais agressiva do que nunca. (ISTOÉ, 2016). Na matéria, tais fontes traziam informações que pareciam construir uma nova face da presidente, uma Dilma que nunca antes havia sido mostrada: um lado frágil e incapaz de Rousseff. A informação, portanto, se coaduna com os signos apresentados na capa: o descontrole de quem tinha “ataques”, e de que desta forma, não poderia presidir o Brasil. Na revista, a presidente inclusive é comparada a rainha Maria I, a Louca, que reinou sobre Portugal no século XVIII. Em ação impetrada na Justiça, Dilma Rousseff ganhou o direito de resposta, pois a referida capa foi considerada ofensiva e seu teor inverídico, pois, segundo a decisão: “ser objeto de publicação a pessoa ocupante da Presidência da República não autoriza qualquer meio de comunicação a divulgar deliberadamente quaisquer informações escondendo-se sob o manto do direito de informação, uma vez que tal direito tem de ser guiado pela veracidade do conteúdo publicado”. O caso da presidente Dilma Rousseff demonstra que: está em curso um projeto patriarcal e fundamentalista que visa manter as mulheres confinadas à esfera privada e dedicadas às tarefas de cuidados com a família e Ciências da Comunicação Capítulo 10 111 educação dos/as filhos/as, um projeto que propaga um perfil de mulher ideal como “bela, recatada e do lar”, bem distante dos holofotes da vida pública e dos cargos políticos que ainda permanecem sob domínio masculino de quem tem aquilo roxo (ZDEBSKYI, MARANHÃO, PEDRO, 2015, p. 229). IMPEACHMENT E A INCAPACIDADE FEMININA Após intensos ataques a seu governo e mandato, em dezembro de 2015, tem-se início o processo de impeachment em Dilma Rousseff, por crime de responsabilidade (lei orçamentária e lei de improbidade administrativa). Durante esse processo de deposição da então presidente, os comentários de opositores em rede sociais não eram apenas com relação ao governo ou ao conteúdo investigado, mas sobremaneira, a associação com o fato de uma mulher, de idade mais avançada estar à frente do país. A misoginia tornou-se parte da batalha discursiva para a queda de Dilma. Como veremos adiante, Dilma estava sendo julgada por seu porte físico, roupas ou mesmo sua sexualidade. Como afirma a cientista política Maria Abreu, o machismo e a misoginia são formas cada vez mais percebidas de violência contras as mulheres, e só perpetuação é responsável pelo atual estado de constante opressão vivido pelas mulheres no Brasil e no mundo. O machismo objetifica os corpos das mulheres, mas, para um machista, esses corpos contêm um valor que a ele, machista, deve pertencer. Para o misógino, a mulher não tem valor e a mulher negra, menos ainda o têm[v]. É um objeto que pode ser descartado, sem qualquer dignidade intrínseca. Talvez, para um misógino, um animal doméstico valha mais que a mulher livre. Se a mulher livre quis a liberdade sexual, então ela terá. E será punida por isso. Se a mulher quer frequentar espaços públicos à noite, deve saber que corre mais riscos de sofrer qualquer tipo de violência sexual. Se ousa ser presidenta ou primeira ministra de um país, sofrerá críticas por suas roupas, por seu excesso de feminilidade, ou pela falta de feminilidade. Será criticada por sua voz excessivamente doce, ou por sua voz dura. A violência contra a mulher parece ser maior quanto mais inadequada é considerada a posição em que ela se coloca. Sua liberdade de se expressar intelectual, política e sexualmente sempre estará sob um crivo mais severo do que aquele aplicado aos homens. Homens podem esquecer, com frequência, bobagens que fizeram em uma noite aleatória ou disseram em uma mesa de debate. Mulheres, ainda que esqueçam, serão julgadas por isso, muitas vezes sem o saber (ABREU, 2016). Durante todo o seu mandato Dilma Rousseff foi alvo de críticas não só ao seu governo, mas ao seu vestuário, gerando imagens satíricas na Internet e levando ao contínuo julgamento na associação do modo de vestir com as capacidades técnicas e políticas da presidente. As críticas ao vestuário não são comuns aos presidentes do sexo masculino, mas ganhou proveniência num governo liderado por uma presidente mulher. A seguir, em material comunicativo retirado de redes sociais, vemos como a imagem pública da presidente é comparada a elementos depreciativos e vexatórios. Como na imagem em que a presidente é fotografada no Congresso Nacional e seu Ciências da Comunicação Capítulo 10 112 vestido é comparado com capa de botijão, numa clara relação entre o público e o privado; a política e o lar; prestígio e banal. Comparação da roupa de Dilma Rousseff a capa de botijão de gás. Fonte: Ego Na imagem a seguir, a questão da adequação visual feminina é o tema. Dilma aparece trajando um conjunto já usado em outros eventos e por isso, na frase, ela é “incapaz de mudar o Brasil”. Dilma usando conjunto repetido Fonte: Gerador Memes No Brasil, o culto ao corpo feminino padronizado e o excessivo valor social atribuído à chamada “beleza feminina” (considerada inclusive item de exportação e frequentemente relacionada com o tráfico de mulheres, a prostituição, a pedofilia, entre outros) faz com que o visual de uma mulher seja considerado uma de suas maiores grandezas. Esse é o mito da incapacidade feminina, atualizado a cultura da excessiva sexualização, que baseia as capacidades de uma mulher apenas na aparência e na beleza. O tom jocoso, satírico e agressivo das imagens da ex-presidente Dilma Rousseff Ciências da Comunicação Capítulo 10 113 podem ser encontrados em profusão. As imagens aqui selecionadas são pequena mostra do sexismo que marcou todo o processo de crítica ao governo e a personalidade política Dilma Rousseff. Para além das críticas naturais ao seu governo, importante salientar que a oposição à Dilma recuperou signos misóginos e trouxe à tona um conteúdo latente de preconceito contra as formas, projetos e capacidades femininas que ainda sobrevive no país. A pouca participação política das mulheres no Brasil pode, sobremaneira, ser compreendida à luz de tais exemplos. Apesar de existirem diversas iniciativas visando o fim da desigualdade de gênero na política, como a obrigatoriedade dos partidos políticos passarem ao menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) para candidaturas de mulheres, os ainda presentes valores machistas da cultura brasileira são, ao nosso ver, os principais vetores do afastamento das mulheres das posições de comando e gestão. Como levar as mulheres a enfrentarem todos os desafios que as impedem de partilhar com os homens o poder político? Esta dúvida parece ainda não ter podido ser respondida. CONSIDERAÇÕES FINAIS Noventa anos separam a eleição da primeira mulher a um cargo público no Brasil. Nesses noventas anos que separam Luísa Soriano e Dilma Rousseff vemos que muito foi conquistado na busca pela igualdade de gênero na política. Se antes o direito ao voto não era uma certeza, no Brasil de hoje a luta é para que as mulheres possam se candidatar e governar em pé de igualdade, para que as mulheres enfrentem os desafios da gestão pública sem carregar nos ombros o fardo do machismo. A Internet e os meios de comunicação têm papel primordial no processo de combate ao machismo estrutural ainda vigente e não podem atuar como parte deste problema que permite que o Brasil esteja assemelhado aos países não-democráticos com relação ao acesso da mulher à política. Para além das disputas políticas momentâneas, a ética comunicativa deve prevalecer como ideal na construção de uma sociedade com mais igualdade de gênero e menos violência contras as mulheres. REFERÊNCIAS AB’SÁBER, Tales. Dilma Rousseff e o ódio político. São Paulo: Hedra, 2015. ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Luta das Mulheres pelo Direito de Voto. Movimentos sufragistas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Arquipélago – Revista da Universidade dos Açores,Ponto Delgada, 2ª série, VI, 2002. ABREU, Trocando o machismo pela misoginia? Revista Escuta. Abril, 2018. Disponível em: https:// Ciências da Comunicação Capítulo 10 114 revistaescuta.wordpress.com/2016/11/28/trocando-o-machismo-pela-misoginia/ Acesso em junho de 2018. BARANOV, Támara. A conquista do voto feminino. Rio Claro, São Paulo, 2014. BARBARA, Leila. GOMES, Maira Carmen Aires. Mulheres, Política e Mídia: Algumas incursões em torno da representação sociocultural de Dilma Rousseff. PUC-SP, UFV, 2012. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. - 11° ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. 1998. BRASIL. Cresce a participação de mulheres em cargos de comando na Câmara. Brasília, DF, 2015. Disponível em <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ POLITICA/482910CRESCE-A-PARTICIPACAO-DE-MULHERES-EM-CARGOS-DE-COMANDO-NA-CAMARA.html> Acesso em 06 de junho de 2018. BRASIL. Boletim Estatístico de Pessoal e Informações Organizacionais. Ministério do Planejamento, vol. 19, n. 214, fevereiro de 2014. BRASIL. Mulheres conquistam direitos nos últimos 100 anos. 2014. Disponível em <http://www. brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/03/mulheres-conquistam-direitos-nos-ultimos-100-anos> Acesso em 07 de junho de 2018. ESQUINSANI, Rosimar. DAMETTO, Jarbas. Questões de gênero e a experiência da loucura na Antiguidade e na Idade média. Estudos de sociologia, Araraquara, v.17, n.32, p.205-222, 2012. GILMAN, Charlotte. O Papel de Parede Amarelo. 1891. GROSSI, MÍRIAM PILLAR; MIGUEL, SÔNIA MALHEIROS. Transformando a diferença: as mulheres na política. Rev. Estud. 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Por isso, este estudo procura apontar situações em que o jornalismo reproduz preconceitos e posturas de segregação ao retratar as mulheres, analisando a Revista Rolling Stone Brasil, que publicou apenas quatro capas com mulheres entre as 12 veiculadas entre julho de 2016 e julho de 2017. Para fundamentar a proposta, busca-se a revisão bibliográfica de assuntos como jornalismo cultural, de revista e suas capas, além de questões de gênero – sob a perspectiva de Guacira Lopes Louro (2008), e relações de poder nas quais a imprensa atua. Entende-se que discutir práticas jornalísticas e compreender o papel da mídia é perceber que ela, mesmo em veículos segmentados, reafirma a estigmatização da mulher. PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo Cultural; Jornalismo de Revista; Rolling Stone Brasil; Gênero; Representatividade. ABSTRACT: The media resigns the daily life through its representations. Therefore, this study seeks to point out situations in which journalism reproduces prejudices and segregation Ciências da Comunicação postures when portraying women, analyzing brazilian edition of Rolling Stone magazine, which published only four covers with women among the 12 published between July 2016 and July 2017. In order to substantiate the proposal, we search for a bibliographical review of subjects such as cultural journalism, magazine and its covers, as well as gender issues – from Guacira Lopes Louro’s (2008) perspctive, and power relations in which the press operates. It’s understood that discussing journalistic practices and understanding the role of the media is to realize that, even in segmented vehicles, the stigmatization of women’s reaffirmed. KEYWORDS: Cultural Journalism; Magazine Journalism; Rolling Stone Brazil; Gender; Representativeness. 1 | INTRODUÇÃO: JORNALISMO CULTURAL E AS CAPAS NO JORNALISMO DE REVISTA O discurso jornalístico, que se estrutura a partir de textos, imagens, títulos, diagramação e outros recursos, “articula, conecta uma multiplicidade de vozes, sentidos e códigos diferenciados, os quais fizeram, fazem ou passarão a fazer parte do imaginário em que ele se constitui” (GADINI, 2009, p. 48). Produzem o relato do acontecimento e, com ele, um novo acontecimento, em uma atividade cíclica Capítulo 11 117 interminável (ZART, 2015), onde as informações são “resultado de um processo de produção, definido como percepção, seleção e transformação de uma matéria-prima, os acontecimentos, num produto, as notícias” (GADINI, 2009, p. 51). Fundamentalmente, portanto, imerso na indústria cultural, o jornalismo de mesmo gênero se interessa pela materialização da cultura por meio da mídia jornalística. O jornalismo cultural nasce em paralelo com a própria prática jornalística, uma vez que ambos têm relações bastante próximas. Considera-se a ideia de que todo jornalismo é cultural no sentido de que é um meio transmissor de representações e, por isso, desde o princípio da história tem papel relevante na circulação de informações. Afinal, quando o assunto é jornalismo cultural, duas questões precisam ficar claras, de acordo com Piza (2007, p. 7): “o que se entende por ‘cultura’ e o que se entende por ‘jornalismo’. A rigor, todos os fatos noticiados são culturais, afinal a cultura está em tudo, é de sua essência misturar assuntos e atravessar linguagens” desde depois do Renascimento até a formação do que se entende por esfera pública, com manifestações de seus cidadãos participando de grupos sociais (AZZOLINO, 2010). O jornalismo cultural está em uma zona heterogênea dos meios, com propostas criativas e críticas ou de divulgação de acontecimentos de campos das artes, letras e humanidades simbolicamente. O alcance é amplo conforme a temática abordada (Idem). Meios de comunicação são reflexos diretos da sociedade, e têm nas revistas um suporte que se sintoniza com o seu tempo. Ela conta em detalhes o que grande parte dos outros meios, sufocados pela velocidade e pela imediaticidade cotidiana, são incapazes de fazer. Representantes de um período histórico, as revistas acompanham mudanças vividas pela sociedade. São “onipresença da mídia como eficiente modificadora e formadora de opinião a respeito da realidade” (HOHLFELDT, 1998, p. 37). Assim, o público – a sociedade – é cotidiana e sistematicamente colocado diante de uma realidade artificialmente criada pela mídia, e que se contradiz, se contrapõe e frequentemente se superpõe e domina a realidade real que ele vive e conhece. [...] A imensa parte da realidade, ele a capta por meio da imagem artificial e irreal da realidade criada pela imprensa (ABRAMO, 2003, p. 24). Desde sua origem, a revista é um “produto jornalístico peculiar e adquiriu marcas próprias, indicativas de suas especificidades e, ao mesmo tempo, de sua inserção em um contexto de referência na produção da informação” (TAVARES; SCHWAAB, 2013, p. ix). Diante disso, entende-se que a revista tem práticas informativas específicas, que diferem dos demais meios de comunicação. É uma mídia segmentada, que se volta a parcelas determinadas de público, com uma periodicidade mais espaçada e a consequente reconfiguração do fazer jornalístico. Revistas destacam ainda mais a função de bem informar seu público, uma vez que vão além da notícia, reportando os acontecimentos. Como destaca Azubel (2013, p. 259), a revista recria, traz análise e reflexão nas experiências de leitura. Porém, no sentido oposto, “são capazes de promover a miséria do pensamento, erigir Ciências da Comunicação Capítulo 11 118 mitos, sustentar estereótipos e fomentar ideologias” (Ibidem, loc. cit). Em relação à mulher, esta lógica é latente, como um “fio invisível que une um grupo de pessoas e, nesse sentido, ajuda a construir uma identidade, ou seja, cria identificações, dá sensação de pertencer a um determinado grupo” (SCALZO, 2004, p. 12). Revista é “publicação periódica que trata de assuntos de interesse geral ou relacionados a uma determinada atividade ou ramo do conhecimento (literatura, ciência, comércio, política etc.)” (RABAÇA; BARBOSA, 1978, p. 411). Souza (2016, p. 28) define as características da revista como: produto segmentado por público e interesse; durável e colecionável; com conteúdo e material gráfico distintos dos demais impressos; com identidade visual particular; abriga estilos textuais diferentes; aborda mais temas; é mais próxima de seu leitor; dá espaço a reportagens de longa duração e produção. A revista representa um “grande sistema de comunicação”, para Azubel (2013, p. 62). Com títulos, textos, fotografias e outros elementos dispostos de certa maneira, as publicações representam uma visão de mundo particular – que surge da integração destes elementos. Neste sentido, uma das partes às quais se orienta o trabalho de qualquer publicação impressa é a capa. Revistas envolvem planejamento, mais precisamente planejamento gráfico. É ele que dita de que forma os conteúdos estarão dispostos em uma publicação, seja ela impressa ou digital. E um dos assuntos pertinentes a este processo é a diagramação. Orienta elementos como ilustrações, colunas e títulos, entre outros, para que se gere um significado a quem está em contato com a mensagem veiculada. Segundo Takahashi (2010, p. 4), a diagramação envolve a conciliação de estética com técnica. “Estética no sentido de deixar a página leve, suave e com uma bonita apresentação. Já a técnica diz respeito aos recursos práticos que têm a finalidade de tornar o processo de leitura algo coerente, lógico e agradável”. Os elementos de uma capa, o “cartão de visitas” (TAKAHASHI, 2010, p. 446), podem transmitir o perfil editorial e a opinião de uma publicação. É preciso considerar também que os sentidos empreendidos por uma capa de revista podem ser muitos: com a intenção de alegrar, encantar, persuadir, assustar, refletir, etc. As possibilidades são muitas. Longhi (2006) esclarece o design de capas de viés opinativo é visível em revistas, “nas quais o conjunto de ilustração/foto, título, uso da cor, dentre outros elementos, fornece o posicionamento do veículo” (LONGHI, 2006, p. 117). Outro ponto importante nas composições de capa, de acordo com Scalzo (2004, p. 69), é a fotografia, porque “quando alguém olha para uma página de revista, a primeira coisa que vê são as fotografias. Antes de ler qualquer palavra, é a fotografia que vai prendê-lo àquela página ou não”. Quando associadas às palavras, ganham expressividade e conferem o mesmo ao texto. Desde o início da imprensa a fotografia fez parte de rupturas nos paradigmas da profissão de jornalista (aliás, em tantas outras). De acordo com Dondis (2003), o retrato persuade, tem capacidades expressivas diferenciadas e chama atenção, simplesmente porque pessoas se interessam por Ciências da Comunicação Capítulo 11 119 outras pessoas e por saber mais. Além dos ângulos, cores e denotações, importam os métodos de edição e as opções de fotografia coerentes com a mensagem que se pretende divulgar (SANTOS, 2014). As imagens são uma parte de suma importância no conteúdo jornalístico, entrelaçadas aos textos no sentido de que apresentam e complementam os mesmos de diversas maneiras, todas importantes. 2 | REVISTA ROLLING STONE: PEDRAS ROLANDO EM TODOS OS CANTOS A Revista Rolling Stone surgiu em San Francisco, nos EUA, em meio a uma década de 1960 de muita efervescência cultural. Em 9 de novembro de 1967, no auge da contracultura, a publicação foi criada pelo publisher Jann Simon Wenner e pelo crítico musical Ralph Glason. O nome é uma referência homônima a uma série de marcos da música, com bandas que representaram (e ainda representam) o espírito da mudança comportamental baseada na revolução cultural da época: “Rolling Stone teve seu nome inspirado por artistas como o músico Muddy Waters – consagrado pela música Rollin’ Stone –, Bob Dylan,que gravou o hit Like a Rolling Stone, e a banda inglesa Rolling Stones” (SOUZA, 2016, p. 30). Dedicada em especial o rock’n’roll, política e questões comportamentais dos jovens, mobilizou gerações aos ideais contraculturais por meio da “contestação política, da recusa dos padrões de comportamento estabelecidos e da sociedade de consumo”, conforme aponta Paixão (2013, p. 44). A primeira edição, sobre o Monterey International Pop Music Festival, em 1967. 2.1 Rolling Stone no Brasil A Rolling Stone está presente no Brasil desde quando Luís Carlos Maciel conseguiu os direitos para publicação em território nacional. Dramaturgo, roteirista, escritor da coluna Underground no icônico periódico O Pasquim em plena Ditadura Militar, Acabou se tornando o primeiro editor-chefe da filial brasileira, sediada no Rio de Janeiro. Maciel foi responsável pela circulação clandestina da Rolling Stone por aqui a partir do final de 1972 por conta da falta de pagamento dos royalties. Essa primeira experiência durou só 36 edições, quando deixou de circular por questões financeiras. A primeira das edições “piratas” teve Gal Costa na capa, em novembro do ano de lançamento. Durou até 5 de janeiro de 1973 para, então, passar por um hiato de 33 anos. Até que, em outubro de 2006, já com novos proprietários, a Rolling Stone voltou às terras brasileiras sob o selo da Editora Spring Comunicações. A primeira capa teve como protagonista a modelo Gisele Bündchen, com uma tiragem mensal de 100 mil exemplares (PAIXÃO, 2013). As reportagens seguem o modelo da matriz americana, tanto em aspectos gráficos quanto editoriais, com matérias voltadas ao entretenimento e à cultura pop (BIANCHINI; ANDRÉ, 2017). Voltando à atenção às capas, é interessante frisar um padrão: a fotografia em Ciências da Comunicação Capítulo 11 120 evidência, a personalidade externando traços particulares, sob um fundo de cor única, centralização de elementos, com o nome da personalidade em destaque em plano americano (SANTOS, 2014, p. 18-19). É uma indicação de que a mídia, como reflexo da sociedade – aqui retratada com foco na Revista Rolling Stone – perpetua estigmas e artificializa os relatos ao seu modo. 3 | IMPRENSA, MÚSICA E MULHER: GÊNERO E RELAÇÕES DE PODER Mais do que nunca, as sociedades se constituem hoje como organismos vivos, mutáveis a cada momento que passa. Com a comunicação diretamente envolvida neste processo, cabe aqui analisar a atuação dos meios de comunicação em relação à posição que a mulher ocupa nas estruturas de poder e o que faz com que ela seja subjugada pela imprensa. Assim, será possível compreender a relevância da análise das capas da edição brasileira da Revista Rolling Stone. Destaca-se que, a partir do século XX, a mulher protagonizou uma mudança em padrões comportamentais e diante da sociedade. Neste sentido, a história tem papel determinante no entendimento da posição feminina tanto nos meios de comunicação quanto na sociedade. Focada sob padrões modernos na lógica da velocidade e do avanço tecnológico, tem nas suas raízes um caráter imediatista, que não permite uma visão panorâmica adequada dos assuntos mais humanos, se assim pode-se dizer. É preciso, então, admitir que é urgente notar o que significa a construção de direitos e de cidadania, para que os conceitos estigmatizados que tomam conta do debate sejam “dessimbolizados” (COSTA, 2009, p. 112-113). A ideia de construção das noções de masculino e feminino em sociedade leva a entender as relações estabelecidas como discursos e maneiras de atuação no mundo, em “uma forma de representação, ou seja, uma significação da realidade, instituindo e construindo a realidade através de significados” (CRUZ, 2008, p. 4-5). É válido pensar que se as relações sociais são fundadas nas relações de poder que, também, saem das concepções de gênero, existem quatro elementos a serem considerados. Os símbolos, que representam e comunicam; a forma pela qual eles são interpretados em espaços de poder; as instituições que suportam esta estigmatização; e a interpretação da subjetividade sob a aculturação. De acordo com Louro (2008), Gênero e sexualidade são construídos através de inúmeras aprendizagens e práticas, empreendidas por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais, de modo explícito ou dissimulado, num processo sempre inacabado. Na contemporaneidade, essas instâncias multiplicaram-se e seus ditames são, muitas vezes, distintos. Nesse embate cultural, torna-se necessário observar os modos como se constrói e se reconstrói a posição da normalidade e a posição da diferença, e os significados que lhes são atribuídos (LOURO, 2008, p. 17). Entende-se que, de acordo com a autora, as palavras têm e fazem história (Ibidem). Então, é válido pontuar a frase de Simone de Beauvoir que, há mais de 60 anos, disse Ciências da Comunicação Capítulo 11 121 que ninguém nasce mulher: torna-se mulher. De certa forma, representou o despertar de mulheres de diferentes posições, que desde então fizeram questão de imprimir no mundo suas formas de ser e estar. Assim, fazer-se mulher não ocorria em um ato único e isolado, mas “dependia das marcas, dos gestos, dos comportamentos, das preferências e dos desgostos que lhes eram ensinados e reiterados, cotidianamente, conforme normas e valores de uma dada cultura” (LOURO, 2008, p. 17). Muito mudou desde então. A frase foi amplificada e pluralizou-se, sendo um estímulo aos estudos tanto do feminismo, quanto nas questões relacionadas ao gênero e à sexualidade, sendo estendida mesmo aos homens, já que “fazer de alguém um homem requer, de igual modo, investimentos continuados. Nada há de puramente natural e dado em tudo isso: ser homem e ser mulher constituem-se em processos que acontecem no âmbito da cultura” (Ibidem, p. 17-18). Desta maneira, ainda que existam divergências na atribuição de sentido a estes processos, há entendimento de que não é o momento do nascimento do corpo macho/fêmea que torna o sujeito homem ou mulher, mas todo um percurso, contínuo e infindável, de significações e costumes. Por isso mesmo, o conceito de gênero está ligado tanto política quanto linguisticamente ao movimento feminista, caracterizado por ações contrárias à opressão das mulheres, especialmente a partir do séc. XX – com maior expressividade desde a luta pelo direito do voto às mulheres, o sufragismo. No desdobramento do que se conheceu como a “segunda onda” do movimento, a partir do fim da década de 1960, as construções teóricas se desenvolvem além de preocupações sociais e políticas, diante da efervescência cultural dos atos de maio de 1968 (Ibidem; Idem, 1997). E através das feministas anglo-saxãs que gender passa a ser usado como distinto de sex. Visando “rejeitar um determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual”, elas desejam acentuar, através da linguagem, “o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo” (Scott, 1995, p. 72). O conceito serve, assim, como uma ferramenta analítica que é, ao mesmo tempo, uma ferramenta política (LOURO, 1997, p. 21). Por meio de discursos, segue Louro (2008), é preciso ressaltar que “a segregação social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas tivera como conseqüência a sua ampla invisibilidade como sujeito [...]”. Neste momento e por este motivo é imprescindível considerar que há diversas instâncias responsáveis por inscrever em nossos corpos as marcas a serem seguidas. Nas mais variadas situações, a construção de gênero e sexualidade se dá por meio de aprendizados e práticas, explícitas ou não. Se constitui, portanto, como “um processo minucioso, sutil, sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo constitutivo” (Ibidem, p. 18). Como provas deste sistema aparecem a publicidade, as revistas, a internet, a TV, novelas, pesquisas de consumo, entre tantas outras formas. Estamos mergulhados na instituição estrutural do controle dos corpos, especialmente os femininos, alvos de imposição, censura, constituídos como “pedagogias culturais” (Ibidem, loc. cit.). Ciências da Comunicação Capítulo 11 122 De uma forma geral, o conceito de gênero se estabelece de uma forma discursiva, ou seja, não são propriamente as características sexuais que vão constituir o que é o masculino e o feminino, mas sim os discursos propagados e construídos socialmente e culturalmente sobre essas características. São as formas como as características são “representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico” (LOURO, 2003, p.21) No âmbito da cultura, cabe observar a construção de um conceito de normalidade ou diferença ao longo do processo de entendimento do gênero e da sexualidade. Assim, quando se borram as fronteiras das figuras comumente atribuídas ao masculino e ao feminino, antigas certezas são desestabilizadas, pondo à prova também formas de amor, de morrer, nascer e crescer (Ibidem). Neste contexto, considera-se neste estudo que existe, por parte da imprensa, a adoção da “heteronormatividade” em seus discursos, focando em “papéis e funções” atribuídas a homens e mulheres em sociedade (SILVA, 2010, p. 53). Transformações são inerentes à história e à cultura, mas, nos últimos tempos, elas parecem ter se tornado mais visíveis ou ter se acelerado. Proliferaram vozes e verdades. Novos saberes, novas técnicas, novos comportamentos, novas formas de relacionamento e novos estilos de vida foram postos em ação e tornaram evidente uma diversidade cultural que não parecia existir (LOURO, 2008, p. 19) Neste contexto, as chamadas minorias, representadas pelas políticas de identidade, passaram a se posicionar, criando novos pontos de vista e interpretações contra-hegemônicas, denunciando inconformidade. Assim, contra a normatividade, inscrevem suas colocações na cultura, um dos elementos mais dinâmicos e mais imprevisíveis da mudança histórica, em uma luta, portanto, cada vez mais simbólica e discursiva. Daí que os recursos para lutar contra os tipos de opressão são “peculiares e engenhosos” para conseguir espaço em espaços culturais, de acordo com Louro (2008). colocava-se, como uma meta urgente para os grupos submetidos, apropriar-se dessas instâncias culturais e aí inscrever sua própria representação e sua história, pôr em evidência as questões de seu interesse. A luta no terreno cultural mostravase (e se mostra), fundamentalmente, como uma luta em torno da atribuição de significados produzidos em meio a relações de poder (LOURO, 2008, p. 21). Então, sair da lógica dos esquemas binários é o grande desafio. Maior, inclusive, para setores resistentes às mudanças, como a mídia, já mencionada como parte integrante do complexo de instâncias culturais que reproduzem a vigilância das questões do sexo, bem como a perpetuação das estruturas de poder por uma lógica quase invisível (EWALD, 1993 apud LOURO, 2008). A mídia se apresenta como um dos agentes que, continuamente, impõem e inscrevem marcas da diferença – ensinada – legitimando saberes por meio de discursos. O que Foucault (1988) entende, na história da sexualidade, como “invenção social”, ou seja, compreendendo que a sexualidade se constitui a partir de discursos que regulam, normalizam, fixam saberes e verdades. Assim, ocorre a naturalização das estruturas de poder que oprimem os sujeitos compostos como mulheres diante da condição masculina. A dominação androcêntrica Ciências da Comunicação Capítulo 11 123 se espalha nas mais diversas esferas, ocasionando tipos diferentes de violência, além da física, psicológica (ou emocional), as já mencionadas violência simbólica, institucional. Tem origem aí o machismo, condição de dominação objetiva e subjetiva dos corpos, seus gestos e ações (BIROLI, 2015). Daí a necessidade de recorrer a instrumentos jurídicos para que exista espaço para a mulher: prova de uma sociedade historicamente machista, “com uma falsa aparência de igualdade que encobre uma estrutura falocêntrica, e que se reproduz em diversos âmbitos de nossa sociedade, inclusive na mídia” (CHAVES, 2015, p. 2). 3.1 Os meios de comunicação e a reprodução de estereótipos de gênero Nesta estrutura instituída, os meios de comunicação atuam na eterna repetição do presente (PENA, 2015, p. 38), da seguinte forma: “na ânsia de trazer novidades, será que a imprensa simplesmente não repete os mesmos enredos? E os personagens que povoam as páginas dos periódicos não têm sempre as mesmas características?”. Entende-se que, deste contexto, os meios de comunicação têm um papel central. A difusão de representações que constroem o mundo social como determinantes à formação de referências no imaginário do público (BIROLI, 2001, p. 13). Atuam na formação do corpo que, segundo Meyer (2003, p. 15), é um construto “sociocultural e linguístico, produto e efeito de relações de poder”. Assim “o gênero engloba todas as formas de construção cultural, linguística e social que estão inseridas nos processos que estabelecem diferenças entre mulheres e homens, incluindo aqui os procedimentos que produzem seus corpos” (PILGER, 2017, p. 2). Então, muito além da diferença biológica, que é o parâmetro que orienta análises mais problemáticas, a ideia de sujeitos compostos como resultado das ações e das relações de poder. Os meios de comunicação, então, reconfiguram os espaços sociais e conferem a eles sentidos diversos e segmentados. Com impacto indiscutível no cotidiano, indica uma naturalização das condições de gênero impostas (MIGUEL; BIROLI, 2009). Existe, então, uma relação entre a presença de grupos e indivíduos na mídia e a maneira pela qual ela retrata estes grupos, tendo efeitos diretos na sua representação, com o discurso como exercício do poder (JOHN et al., 2013, p. 8). Assim, verificar de que forma a mulher é (ou não) representada na mídia implica que “sua construção discursiva pode contribuir para a desmistificação de tabus, mitos e estereótipos ou, ao contrário, contribuir para reforçá-los e legitimá-los” (JOHN et al., 2013, p. 5). Chaves (2015, p. 3) classifica a violência praticada pela mídia como sutil, mas naturalizada. A mídia insiste em não reconhecer a mulher como um sujeito dotado de direitos, com vontade própria. Quando selecionam e dão outra forma aos acontecimento, os meios de comunicação “apresentam-se como um lugar de tensão em que operam forças que levam tanto ao enfraquecimento da memória e ao esquecimento, quanto à sua estabilização (RIBEIRO, 1996 apud CHAVES, 2015, p. 4). No caso da Rolling Stone Brasil, esta reflexão envolve dois aspectos. Como aponta Denora (2004, p. 17), primeiro, destaca-se a ideia de que a música se entrelaça Ciências da Comunicação Capítulo 11 124 na estrutura social como elemento transformador, que influencia a forma com a qual as pessoas constroem seus corpos, “se comportam, vivenciam a passagem do tempo e sentem sobre si – em termos de energia e emoção –, sobre os outros e sobre as situações”. É destas concepções que se parte, propriamente, para a análise das capas da Revista Rolling Stone Brasil, próximo – e último – passo desta reflexão. 4 | VALORIZAÇÃO, DESVALORIZAÇÃO E SENSACIONALISMO: AS MULHERES NAS CAPAS DA ROLLING STONE BRASIL Pode-se perceber que a prática jornalística muitas vezes destoa do que seria ideal, justo e equitativo. A fim de buscar uma maneira eficiente e prática de verificar o conteúdo de cada uma das capas, individualmente, deixamos de lado o “o quê”, que já será apresentado em forma de quatro capas e edições, e o foco estará no “porquê”, listando uma série de apontamentos. As observações desenvolvidas procuram compor uma análise breve e prática. Analisando o período de julho de 2016 a julho de 2017, percebe-se que somente quatro capas são constituídas de uma figura feminina individual, em contraste com as demais que apresentam cantores, grupos e desenhos ou animações. Justamente por este detalhe, nos atemos a elas. Figura 1: Edições da RS Brasil: #126 (fev/17), #127 (mar/17), #130 (jun/17) e #131 (jul/17) A capa de fevereiro de 2017, edição nº 126, traz Paris Jackson, filha de Michael Jackson, como protagonista. A chamada para sua entrevista é acompanhada de um texto bastante sensacionalista (Os segredos da filha de Michael Jackson). A tipografia e a escolha do preto para destacar as poucas chamadas desta capa dão a ela um tom bastante sério e agressivo, remetendo até mesmo à morte do cantor – porque liga diretamente os tons de preto ao luto na cultura ocidental. A tarja com a palavra “Exclusivo” logo acima da chamada da reportagem de capa reforça esta ideia. A expressão é séria e remete a um padrão editorial de moda, mas o semblante contribui novamente para a situação de seriedade e polêmica da capa, que é facilmente vista quando analisada com atenção. Como é praxe em praticamente todas suas edições, a fotografia de Paris encontra-se centralizada na capa. A percepção de que Ciências da Comunicação Capítulo 11 125 Paris é somente a “filha de Michael Jackson” e não uma mulher independente da história do pai é um clichê fortemente visto na mídia. Ao tratá-la como uma personagem secundária, subjetivamente pressupõem que ela não possui relatos interessantes sobre a própria vida, suas próprias conquistas ou até mesmo nada a contribuir para o público alvo da revista. Como visto nos capítulos anteriores, a RS tem um público superior masculino, e isso certamente é levado em consideração na hora de elaborarem os elementos gráficos que irão compor a capa de cada edição. Nesse caso, usando os argumentos levantados, podemos questionar que há uma possível inferiorização de Paris por conta de ser mulher, filha de um personagem midiático icônico e ainda não se tratar de uma cantora – principal foco do periódico. Em suma, dá a entender que Paris tem algo polêmico a contar. Mas que não tem a ver com ela, pois ela não é importante, e sim seu pai. Ela é uma mulher bonita e com estilo, mas sua reportagem, com exceção dos segredos fascinantes da morte do pai, não trará nada de muito relevante ao leitor. A edição nº 127, de março de 2017 traz como personagem a rapper brasileira Karol Conká. Com seu nome escrito em letras garrafais em forma de chamada no canto inferior direito da capa, acompanhada de uma chamada com assuntos e segmentos que ganharam bastante destaque e atenção nos últimos anos, em especial nos últimos meses “rapper, negra e feminista”, a revista a chama de o “maior destaque no hip-hop nacional”. A foto está centralizada na capa, com um fundo em tons roxos, assim como seu cabelo e sua maquiagem. As cores remetem a uma temática retrô e de estilo. Seu visual é bastante moderno e contemporâneo, conectando a situação da roupa extravagante com o – de certa forma – elogio apresentado pela revista em sua chamada: “[...] faz sucesso sem abrir mão das próprias verdades”. Muito diferente do que é apresentado na edição anterior, a escolha de cores é mais quente e imponente, justamente a imagem da rapper que a revista tenta passar. O destaque em toda a capa, além de encaixar a cantora como negra e feminista, está no elemento da combatividade, inclusive nas demais chamadas para as matérias, buscando engajamento do público. A ideia da Conká para esta edição é muito próxima do que se encontrava nas edições iniciais do periódico aqui analisado, em sua versão americana: trazer assuntos que os jovens procurem – principalmente na internet, neste caso – e que vão contra os modelos ideais de comportamento na sociedade atual, considerando a onda de conservadorismo que vem assolando o país nos últimos anos. Ela cumpre sua função bem enquanto capa, neste caso, justamente por representar esta nova onda de jovens que utilizam a música, o entretenimento e a arte como forma de expressarem-se politicamente frente aos problemas sociais – coisa que ela, inclusive, faz muito bem. A edição nº 130, de junho de 2017 traz em destaque a cantora Elza Soares. Numa capa bastante intimista em relação às outras edições, especialmente aquelas com mulheres, a capa de Elza é mais clean, com apenas duas chamadas além de seu nome e mais uma faixa sobre o logotipo da revista. O texto de chamada para a reportagem de capa, “ultrapassou fome, abuso e morte para continuar cantando” Ciências da Comunicação Capítulo 11 126 vem ao encontro do foco que o retorno definitivo de Elza à mídia tem recebido. Ainda, mesmo tendo lançado seu álbum, Mulher do Fim do Mundo, em 2015. As duas chamadas, ao mesmo tempo históricas e melancólicas – uma anunciando os 50 anos de Sgt. Peppers e a outra relatando os últimos dias do cantor Chris Cornell, combinam com o tom da capa. A imagem de Elza, um pouco mais posicionada à direita, diferente do que é costumeiro em nosso objeto de análise traz um fundo escuro que remete ao clássico e ao respeito com a artista, valorizando-a e apontando sua importância, mas também apresenta um tipo de solidão e tristeza. Não deixa, isso, de fazer parte do histórico da cantora, que é fortemente conhecida pela trajetória dificultosa, bem apresentada em sua descrição na chamada – apesar de que esta soa, ao mesmo tempo, excessivamente sensacionalista até certo ponto. O semblante da cantora é verdadeiro e honesto, carregando o fardo dos anos difíceis e apresentando a sua versão mais presente na mídia dos últimos anos: uma mulher completa, mas calejada pelas adversidades e pelo racismo que enfrentou. A imagem passa um ar de respeito com a artista – principalmente na escolha da paleta de cores, de tons sérios e íntegros, como o preto e o cinza, dando a devida importância que ela merece. As apresentações de Elza lembram muito a melancolia vista em seu olhar na fotografia aqui analisada: uma mulher sofrida – com músicas que relatam a violência doméstica e o racismo sofridos por ela –, com um canto incrível, mas cansado, com letras que passam exatamente a mesma sensação. A “Mulher do Fim do Mundo” constitui a melhor capa dentre as analisadas neste trabalho. A edição nº 131, de julho de 2017 traz a atriz Emilia Clarke, conhecida pela série Game of Thrones, que há anos vem sendo um dos maiores destaques do entretenimento mundial. A chamada, que a define como “mãe dos dragões”, como é conhecida na série, carrega todo o hype gerado pela obra. Também vale destacar que há chamadas sobre o assassinato de jovens negros no Brasil, despertando curiosidade: “Recorde Sangrento”. Além disso, há uma entrevista com Maurício de Souza e 20 anos de OK Computer, icônico álbum do Radiohead, misturando entretenimento e temas sérios para o mesmo nicho. A serenidade da capa, voltada à cor branca, tenta destacar a suavidade dos traços da entrevistada, que segue padrões tradicionais do estereótipo do papel de feminilidade atribuído na cultura ocidental, abordado nos estudos de gênero. Esta é a capa que mais remete às outras do periódico desde o seu lançamento. Traz uma imagem mais “entretenimento de televisão”, sem muitas informações subjetivas ou que nos façam questionar, com o objetivo de “vender” a atriz e a série como conteúdo. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise das quatro edições da Rolling Stone Brasil escolhidas como objeto de estudo dá a dimensão da forma pela qual a imprensa trata a representação feminina – Ciências da Comunicação Capítulo 11 127 como na sociedade de modo geral, de forma destoada, injusta, segregativa e machista. Nesta mídia específica, a partir das concepções de Louro (2008; 1997), a leitura foi clara: se a formação de conceitos de gênero e sexualidade ocorre por meio da cultura, a mídia contribui neste processo como uma das principais instituições de geração de significações e discursos, reforçando a depreciação da figura feminina. A concepção de gênero aqui tratada, por parte da revista, é heteronormativa. Ainda recorre à contemplação das diferenças, sem refletir e examinar de que forma essas diferenças se produzem (LOURO, 2008). É sobretudo uma formação cultural que se contrapõe à “naturalidade” do gênero e da sexualidade (PILGER, 2017, p. 2). O período analisado de um ano mostrou uma subrepresentatividade nas capas. De 12, quatro possuem mulheres individualmente, sendo que algumas dessas ainda contam com capas duplas, e em nenhum dos casos são duas capas com duas mulheres. O problema é que, em todos os casos, a editoria “trata” as figuras femininas por vezes correta e parcial, por vezes completamente imparcial e bastante sensacionalista. A linha editorial e as informações gráficas das capas vêm de encontro com esta ideia e parecem destoar de uma edição para a outra. Enquanto uma capa pode trazer um viés de puro entretenimento, sem deixar espaço para assuntos polêmicos e que gerem discussão, outra é muito mais política. Isso quando não ilustra as mulheres de uma forma pejorativa e sensacionalista, dando a entender que não importam tanto. A premissa inicial do desenvolvimento deste trabalho foi apontar possíveis situações de segregação e exclusão das mulheres. Parte desta problemática foi descoberta na análise, mas o que se viu, além disso, foi algo ainda mais complexo e importante: o periódico tende a apelar para as massas – especialmente seu público- alvo – moldando as situações de interesse no entretenimento e até mesmo na política conforme seu padrão de sensacionalismo permite. Isso resulta em capas por vezes justas e com informações enriquecedoras no sentido de contribuir com o pensamento crítico, mas até mesmo nestes casos o sensacionalismo fica evidente. Como uma possibilidade futura ao estudo, é preciso ressaltar também que a questão racial é importante, mas não pode ser completamente empreendida aqui. Destaca-se que, das quatro revistas duas contemplam cantoras negras – duas brasileiras, o que pode significar, inclusive, uma ruptura e, também, uma manutenção da ordem. Quebra o paradigma quando representa mulheres brancas e negras em equidade, e por destacar a mulher negra, algo bem distante das representações midiáticas, com histórias de vida com marcas deixadas pelo racismo. REFERÊNCIAS ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. Ed. 1 – São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. AZUBEL, L.L.R. Jornalismo de revista: um olhar complexo. Rumores, n. 13, v. 7, janeiro-jun/2013. Ciências da Comunicação Capítulo 11 128 AZZOLINO, A.; et al. 7 Propostas para o jornalismo cultural - Reflexões e experiências. São Paulo, Editora Ramalivros, 2010. BIROLI, F. Uma posição desigual: mulheres, divisão sexual do trabalho e democracia. In: Blog da Boitempo, 06 mar. 2015. __________. É assim, que assim seja: mídia, estereótipos e exercício de poder. 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Ciências da Comunicação Capítulo 11 130 CAPÍTULO 12 A PRESENÇA FEMININA NO JORNALISMO ESPORTIVO DA TELEVISÃO ABERTA: UMA ANÁLISE DO PROGRAMA “JOGO ABERTO”, DA BANDEIRANTES Érika Alfaro de Araújo Universidade Estadual Paulista – Unesp – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Bauru, SP Mauro de Souza Ventura Universidade Estadual Paulista – Unesp – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Bauru, SP RESUMO: Esta análise toma como base o programa “Jogo Aberto”, da Rede Bandeirantes, para verificar o espaço ocupado pela mulher no jornalismo esportivo da televisão aberta brasileira na atualidade, desde a produção, até a reportagem, a apresentação e os comentários. Para isso, a presença feminina é estudada nas diferentes etapas do processo de produção do referido programa jornalístico esportivo por meio da análise de conteúdo e sob a luz das questões de gênero. Averiguamos de que forma o produto chega aos telespectadores, com foco na presença da mulher jornalista, visando entender cada função ocupada pela figura feminina dentro das redações e o seu papel profissional na televisão aberta, tendo em vista o contexto majoritariamente masculino, como é o caso do jornalismo esportivo. PALAVRAS-CHAVE: jornalismo; jornalismo esportivo; gênero; mulher jornalista; Jogo Aberto. Ciências da Comunicação ABSTRACT: This analysis is based on the television program “Jogo Aberto”, from Rede Bandeirantes, and its main purpose is to verify the women’s place in open television sports journalism nowadays, from production to reporting, presentation and comments. The female presence is studied in different stages of the production process of the referred sports journal through analysis of content and in the light of gender issues. The research examined how the product reaches the viewers, focusing on the presence of female journalists, with the purpose to understand each function occupied by the female journalists within the newsrooms and their professional role in open television, given the context, mainly masculine, such as is the case of sports journalism. KEYWORDS: journalism; sports journalism; gender; female journalist; Jogo Aberto. 1 | INTRODUÇÃO Entre as lutas sociais da contemporaneidade, uma das mais significativas está no espaço conquistado pelas mulheres nas diferentes instâncias da sociedade. No esporte, elas buscaram participação como torcedoras, atletas e, no jornalismo, como profissionais. Tendo em vista essa conjuntura, consideramos de extrema relevância averiguar a situação Capítulo 12 131 em que as jornalistas esportivas se encontram, quais cargos e funções exercem nos postos de trabalho da televisão aberta do Brasil. No processo de produção, reportagem, apresentação e opinião dos programas esportivos, cada uma dessas funções expressa um tipo de visão sobre o trabalho jornalístico da mulher. A produção, que acontece nos bastidores, diz respeito ao planejamento e à realização dos conteúdos. A reportagem apura e divulga as notícias, configurando-se como uma atividade informativa. A apresentação expressa a imagem do programa e ainda exige dos indivíduos posturas objetivas e roteirizadas em boa parte do tempo. Já a análise, que é o âmago dos programas de esporte, exige conhecimento aprofundado, posicionamento fundamentado sobre a temática esportiva e autoridade para transmitir confiabilidade ao público por se tratar de um estilo opinativo. Conforme Barbeiro e Rangel, mais do que qualquer outro membro da equipe, o comentarista precisa ter conhecimento profundo das regras do esporte sobre o qual fala. E é justamente nessa área que a mulher possui menos atuação. Ao estudar a participação feminina nesse contexto, teremos um reflexo da sociedade brasileira atual e de uma trajetória histórica de busca por igualdade. O mundo esportivo – assim como muitos outros – sempre foi considerado uma área masculina, por isso o predomínio dos homens sempre foi a regra. Porém, com o surgimento dos movimentos feministas e a atuação pioneira de mulheres, a conquista de direitos básicos se tornou evidente, o que abriu espaço para questionamentos sobre o lugar feminino em diversos setores da sociedade. Para realizarmos tais avaliações, selecionamos o programa “Jogo Aberto”, da rede Bandeirantes, com o objetivo de estudar a configuração de sua equipe de produção jornalística, bem como o produto que chega ao público. 2 | ASPECTOS HISTÓRICOS Uma breve referência histórica pode nos dar pistas para entender de que forma se deu a relação entre gênero e jornalismo esportivo no decorrer do tempo. Embora os primeiros jornais esportivos tenham surgido no final do século 19, como os franceses Le Vélo e Journals des Haras (ANDÚJAR, 2013, p. 9), foi preciso que se passasse mais de um século até o surgimento do nome de Maria Helena Rangel no esporte. Em meio a profissionais homens, ela foi a primeira mulher a atuar na cobertura esportiva brasileira. É considerada a primeira jornalista do país e era atleta (campeã) em arremesso de disco (RAMOS, 2010, p.31). Em 1947, foi contratada pelo jornal Gazeta Esportiva e seguiu na profissão por cerca de cinco anos. Vale ressaltar que Mary Zilda Grassia Sereno, em 1934, tirava fotos de esporte. Em um episódio com o jornal O Globo, após a Copa de 1934, capturou uma imagem de uma freira italiana comemorando o título da seleção nacional de futebol, conforme Ramos (2010, p. 261). Segundo Dantas (2016, p. 37), o veículo publicou a foto, mas não a contratou pelo fato de ser uma mulher. Ciências da Comunicação Capítulo 12 132 Na década de 1980, na televisão, Isabela Scalabrini foi uma das primeiras representantes femininas a produzir reportagens esportivas. Configurando-se como um fenômeno recente, na década de 1990, Mylena Ciribelli foi a primeira mulher a apresentar o Esporte Espetacular. Em outro âmbito dos programas esportivos está o debate. Nessa área, o pioneirismo é de Renata Fan. Por meio de sua figura, o Jogo Aberto é a primeira atração esportiva no formato mesa-redonda a contar com uma mulher no comando. 3 | JOGO ABERTO O programa Jogo Aberto estreou na televisão no dia 5 de fevereiro de 2007. Em sua formação original, Renata Fan ocupava o posto de apresentadora. Uma das jornalistas esportivas mais conhecidas do país, é figura importante para os propósitos desta pesquisa. Com o tempo, o comando do programa foi mantido e os comentários renovados entre jornalistas, personalidades esportivas, ex-jogadores de futebol e exárbitros também de futebol. Com 34% de audiência feminina, segundo dados divulgados pela emissora com base na exibição para a Grande São Paulo, o Jogo Aberto, da Band, está há dez anos no ar e engloba duas horas da programação, das 11 horas da manhã até às 13 horas da tarde. O programa é dividido em duas partes: a primeira é destinada às notícias e informações sobre diversos esportes, mas o foco é, invariavelmente, o futebol. Nessa etapa, a apresentadora Renata Fan e o comentarista Denílson estão à frente das ações. Já a segunda parte é destinada ao debate. Esse é o momento no qual os comentaristas analisam e discutem as principais pautas relacionadas ao futebol, sempre deixando clara a expressão de suas opiniões. Os comentaristas são: Denílson (ex-jogador de futebol), Heverton Guimarães (jornalista que se concentra no futebol mineiro), Chico Garcia (jornalista que, inicialmente, comentava o futebol gaúcho), Paulo Roberto Martins (jornalista cujo trabalho sempre foi na editoria esportiva), Ulisses Costa (além de comentarista, também locutor de rádio) e Ronaldo Giovanelli (ex-jogador de futebol). Nessa hora, Renata Fan comanda as ações, fazendo perguntas, direcionando os comentários, administrando as discussões e expondo sua própria opinião. O debate do Jogo Aberto é uma das principais atrações do programa, conhecido por seu humor, opiniões fortes e discussões acaloradas. 4 | ANÁLISE DAS EDIÇÕES Os recortes a seguir foram selecionados por conta da cobertura da final da Copa do Brasil 2017, entre Cruzeiro e Flamengo, da qual o time mineiro se saiu campeão. Além disso, a semana conta com duas etapas de pautas jornalísticas interessantes às atrações e à pesquisa: o pós-jogo do clássico entre São Paulo e Corinthians e o préjogo do clássico entre Palmeiras e Santos. O Jogo Aberto, que é da capital paulista, Ciências da Comunicação Capítulo 12 133 deslocaria suas equipes principais para tais reportagens, o que renderia material adequado para a investigação. Por meio da verificação de cinco edições – as quais foram obtidas conforme a disponibilização do material na íntegra, no canal oficial no YouTube – de segunda a sexta-feira, do dia 25 a 29 de setembro, buscamos apurar as informações coletadas com foco na presença feminina. Sendo assim, analisamos individualmente cada programa e edição por meio das categorias M (mulher) e H (homem), separando cada atração dos programas (reportagens, comentários, entradas ao vivo e etc.) e medindo o tempo de cada etapa, fator que, na televisão, demonstra o valor e a importância de cada conteúdo, pauta ou pessoa, da mesma forma que o espaço no jornal impresso. Por meio da semana construída, percebemos no JA um formato bem definido e a descontração como característica marcante. Tanto nos programas analisados quanto na visita ao estúdio, constatamos que se trata de um aspecto dos participantes na frente das câmeras e nos bastidores. Também apuramos, com a presença no local, que Renata Fan participa desse contexto e, por vezes, é alvo desses momentos de descontração. As circunstâncias em que Renata Fan aparece e fala sozinha são a abertura e as chamadas das matérias e reportagens. Depois da abertura, em que menciona os destaques do programa, uma matéria/reportagem é exibida e, na volta para o estúdio, Renata já aparece posicionada ao lado de Denílson, para quem faz perguntas sobre os temas. Nesse contexto, a apresentadora também emite suas opiniões. Depois dessa sequência de matéria e comentários, o debate tem início. Renata apresenta todos os comentaristas e conduz as discussões, alternando as falas para que todos possam participar. Sendo assim, foram destacadas as categorias: abertura, que se refere ao momento inicial do programa, em que Renata Fan aparece sozinha trazendo os destaques da atração; chamada, momento no qual a apresentadora chama ou faz a cabeça da reportagem; matéria, que são feitas e narradas pelos repórteres; comentários, momentos nos quais Renata Fan e Denílson avaliam temas; entradas ao vivo, feitas por repórteres em algumas edições; e debate, parte do programa em que Renata e Denílson se unem aos outros comentaristas com o intuito de discutirem as pautas. Dessa forma, as categorias foram enumeradas conforme aparecem em cada um dos programas. 4.1 Jogo aberto: segunda-feira, dia 25 de setembro Nessa data, o programa deu grande destaque à repercussão do clássico do final de semana entre o São Paulo e Corinthians. Outras reportagens abordaram: gols da rodada do Brasileirão; jogo entre Atlético-MG e Vitória; Santos e Atlético-PR; Grêmio e Bahia; Palmeiras e Fluminense. Algumas matérias contam com a narração, ou seja, o off gravado e colocado por cima do vídeo, já outras contam com passagens Ciências da Comunicação Capítulo 12 134 dos repórteres. No caso apenas da narração, a mesma foi destacada. No caso dos comentários antes do debate em que os demais participantes estão presentes, Renata conduz a discussão, emite suas opiniões, mas, quando o tempo é reduzido, opta por comentários pontuais. Diante de tais pautas, a hegemonia do futebol no programa se torna nítida, uma vez que foi dominante. Conteúdo Tempo aproximado M ou H Abertura 1 min 30 s M Chamada 1 35 s M 2 min 40 s H 1 min 20s MeH Chamada 2 10 s M Matéria 2 8 min 30s H Matéria 1 Comentários 1 Chamada de sonora 10 s M Sonora 20s H 12 min 50s MeH Comentários 2 Chamada 3 Matéria 3 Comentários 3 Chamada 4 Matéria 4 Comentários 4 Chamada 5 Matéria 5 Comentários 5 Chamada 6 Matéria 6 Chamada 7 Matéria 7 Debate 30s M 2 min H 2 min MeH 15 s M 2 min 40 s H 50 s MeH 20s M 3 min 30 s H 1 min MeH 10 s M 4 min M 15 s M Nome(s) Renata Fan Renata Fan Narração: Rafael Aguiar Renata Fan e Denílson Renata Fan André Galvão Renata Fan Jogador: Petros Renata Fan e Denílson Renata Fan André Salles Renata Fan e Denílson Renata Fan Marcelo Rozenberg Renata Fan e Denílson Renata Fan Narração: Rafael Aguiar Renata Fan e Denílson Renata Fan Roberta Barroso Renata Fan 6 min 30 s M Kalinka Schutel 18 min 30s Renata Fan, Héverton Guimarães, M, H, H, H e H Ulisses Costa, Paulo Roberto Martins, Denílson e Ronaldo Tabela 1 – Programa 1 Fonte: Elaborado pelos autores, 2017. No primeiro programa analisado, a participação feminina se configura por meio da ampla atuação de Renata Fan, que conduz a atração e comenta os temas, e das repórteres Roberta Barroso e Kalinka Schutel. Das sete matérias da edição, cinco foram de homens e apenas duas de mulheres. Vale ressaltar que Renata aparece sozinha na abertura do programa e nas chamadas, que se mostraram trechos curtos. Nos comentários, após cada tema ser apresentado pelas reportagens, Renata está ao lado do comentarista Denílson. Já na parte do debate, está acompanhada de quatro homens. Ciências da Comunicação Capítulo 12 135 4.2 Jogo aberto: 26 de setembro, terça-feira O jogo entre São Paulo e Corinthians continuou repercutindo. Podemos destacar uma matéria sobre as probabilidades dos clubes da série A do Brasileirão, com entrevistas de pessoas nas ruas (todos homens), comentando as projeções para cada equipe. Conteúdo Tempo aproximado M ou H Abertura 1 min 30 s M Nome(s) Renata Fan Comentários 1 30 s MeH Chamada 1 10 s M Renata Fan Entrada ao vivo 1 (entrevista coletiva) 7 min 40 s H Willian Lopes 3 min MeH Renata Fan e Denílson Chamada 2 1 min 20 s M Matéria 1 4 min 45 s M Comentários 2 Comentários 3 Chamada 3 Matéria 2 Comentários 4 Chamada 4 Entrada ao (entrevista) vivo 2 Comentário 5 Chamada 5 Matéria 3 3 min 20 s MeH 15 s M 2 min 40 s M Renata Fan e Denílson Renata Fan Narração: Heloise Ornelas Renata Fan e Denílson Renata Fan Narração: Adriana Almeida 4 min 5 s MeH Renata Fan e Denílson 10 s M Renata Fan 4 min 30 s H Fernando Fernandes 10 s M 5s Renata Fan M Renata Fan 5 min 50 s H William Lopes Debate 23 min 30 s M, H, H, H e H Renata Fan, Denílson, Ulisses Costa, Paulo Roberto Martins e Héverton Guimarães Matéria 2 reexibida 2 min 40 s M Narração: Adriana Almeida Entrada ao vivo 1 min H William Lopes Tabela 2 – Programa 2 Fonte: Elaborado pelos autores, 2017. Renata Fan se faz presente na condução e nos comentários do programa, ao lado dos outros comentaristas, todos homens. Duas reportagens são narradas por mulheres, uma feita por um homem e as três entradas ao vivo realizadas por repórteres do sexo masculino. Sendo assim, apesar da presença feminina ainda ser menor nos conteúdos produzidos fora do estúdio, na edição da terça-feira existe um equilíbrio maior. 4.3 Jogo aberto: 27 de setembro, quarta-feira As pautas exploradas foram: pós-clássico; Corinthians na sequência do Campeonato Brasileiro; a apresentação do técnico Oswaldo de Oliveira no AtléticoCiências da Comunicação Capítulo 12 136 MG; notícias do treino do Palmeiras. Mas o destaque da edição foi a partida finalíssima da Copa do Brasil. A série B foi assunto por meio do jogo entre o Internacional e o América-MG. O clube do Sul é o time do coração de Renata Fan, e a gaúcha não escondeu sua ansiedade e expectativa para o confronto entre o líder e vice-líder da competição. Conteúdo Abertura Tempo aproximado M ou H 1 min 30 s M Comentários 1 1 min 35 s MeH Chamada 1 10 s M Matéria 1 5 min 20 s H Chamada 2 Entrada ao vivo 1 Comentários 2 25 s M 3 min 30 s H 1 min 20 s MeH Chamada 3 10 s M Matéria 2 1 min 10 s H Comentários 3 50 s MeH Chamada 4 Matéria 3 Chamada 5 Entrada ao vivo 2 Chamada 6 (feita na entrada ao vivo) Matéria 4 Comentários 4 Chamada 7 5s M 5 min 40 s 25 s H M Renata Fan Nome(s) Renata Fan e Denílson Renata Fan Thiago Kansler Renata Fan William Lopes Renata Fan e Denílson Renata Fan Narração: Rafael Aguiar Renata Fan e Denílson Renata Fan André Galvão Renata Fan 1 min 45 H Gustavo Berton 10 s H Gustavo Berton 2 min 30 s H Diogo Ramalho 2 min 25 s MeH Renata Fan e Denílson 50 s MeH Renata Fan e Denílson 45 s - - 35 s MeH Renata Fan e Denílson 25 s MeH Renata Fan e Denílson Comentários 7 40 s MeH Renata Fan e Denílson Chamada 8 10 s M Matéria 6 2 min 20 s H Comentários 8 15 s MeH Chamada 9 10 s M Matéria 7 4 min H William Lopes 9 min 45 s M, H, H, H, H eH Renata Fan, Héverton Guimarães, Ronaldo Giovanelli, Denílson, Ulisses Costa e Paulo Roberto Martins. Matéria 5 (trechos do programa Exathlon) Comentários 5 Passagem de bloco e comentários 6 Debate Renata Fan Filipe Duarte Renata Fan e Denílson Renata Fan Tabela 3 – Programa 3 Fonte: Elaborado pelos autores, 2017. No terceiro programa analisado, a participação de Renata Fan segue a tendência dos outros dois: a gaúcha apresentou sozinha a abertura e as chamadas – com exceção da chamada 6, feita pelo repórter Gustavo Berton – e comentou os temas Ciências da Comunicação Capítulo 12 137 ao lado de Denílson na primeira etapa e dos outros quatro comentaristas na segunda parte. As seis matérias de conteúdos jornalísticos e as duas entradas ao vivo tiveram como encarregados repórteres homens. Portanto, Renata foi a única representante feminina do Jogo Aberto nessa data. 4.4 Jogo aberto: 28 de setembro, quinta-feira Na edição da quinta-feira, o título do Cruzeiro ganhou notoriedade. A vitória do Internacional na série B do Campeonato Brasileiro também foi contada e o clássico que estava por vir no final de semana, entre Palmeiras e Santos, foi bastante discutido. Conteúdo Tempo aproximado M ou H Nome(s) Abertura 1 min M Renata Fan Comentários 1 2 min 5 s MeH Renata Fan e Denílson Chamada 1 10 s M Renata Fan Matéria 1 5 min 40 s H Gustavo Berton Comentários 2 10 min 25 s MeH Renata Fan e Denílson Chamada 2 15 s M Renata Fan Matéria 2 2 min 5 s H Marcelo Rozenberg Chamada 3 25 s M Renata Fan Matéria 3 2 min 15 s H Max Correa Comentários 3 2 min 40 s MeH Renata Fan e Denílson Chamada 4 15 s M Renata Fan Matéria 4 3 min 10 s H André Galvão Chamada 5 15 s M Renata Fan Matéria 5 2 min 10 s H Igor Calian Debate 11 min M, H, H, H e H Renata Fan, Héverton Guimarães, Paulo Roberto Martins, Ulisses Costa e Denílson Tabela 4 – programa 4 Fonte: Elaborado pelos autores, 2017. No quarto programa analisado, cinco matérias apresentaram conteúdo de futebol: todas assinadas por homens. Assim, pelo segundo dia consecutivo, Renata Fan foi o único nome feminino do programa da Band. Por isso, confirmamos a menor participação de mulheres em tais edições e no geral até aqui. 4.5 Jogo aberto: 29 de setembro, sexta-feira Na sexta-feira, o confronto entre Palmeiras e Santos e as expectativas de Ciências da Comunicação Capítulo 12 138 cada lado foram pauta de matéria e comentários. A comemoração dos jogadores do Cruzeiro e foi abordada, assim como o lado do Flamengo. Vale ressaltar que foram feitas entrevistas com torcedores na rua, perguntando a opinião dos mesmos sobre a partida final, e todos eles eram homens, apesar da repórter que conduziu a matéria ser uma mulher. Conteúdo Tempo M ou H Nome(s) Abertura 1 min 15 s M Renata Fan Chamada 1 15 s M Renata Fan Matéria 1 1 min 40 s M Roberta Barroso Comentários 1 2 min 40 s MeH Renata Fan e Denílson Chamada 2 15 s M Renata Fan Matéria 2 6 min 40 s H Narração: Rafael Aguiar Comentários 2 4 min MeH Renata Fan e Denílson Chamada 3 15 s M Renata Fan Matéria 3 3 min H Marcelo Rozenberg Comentários 3 3 min 50 s MeH Renata Fan e Denílson Chamada 4 20 s M Renata Fan Matéria 4 1 min 45 s M Roberta Barroso 15 s MeH Renata Fan e Denílson Comentários parte 1 4 40 s H 1 min 45 s MeH Renata Fan e Denílson Chamada 5 20 s M Renata Fan Matéria 5 2 min 15 s M Narração: Heloise Ornelas Comentários 5 1 min 20 s MeH Renata Fan e Denílson Chamada 6 25 s M Renata Fan Matéria 6 2 min 55 s M Isabela Labate Comentários 6 3 min 45 s MeH Renata Fan e Denílson Comentários 7 30 s MeH Renata Fan e Denílson Chamada 7 20 s M Renata Fan Matéria 7 2 min 55 s H William Lopes Chamada 8 10 s M Renata Fan Matéria 8 4 min H Thiago Kansler VT Comentários parte 2 Debate 4 Gatito Fernandéz (goleiro do Botafogo) 29 min 30 s M, H, H, H e H Renata Fan, Ronaldo Giovanelli, Paulo Roberto Martins, Denílson e Matéria 3 reexibida 3 min H Héverton Guimarães Marcelo Rozenberg Tabela 5 – Programa 5 Fonte: Elaborado pelos autores, 2017 A quinta edição analisada do Jogo Aberto foi a primeira e única a contar com a igualdade entre representantes homens e mulheres: das oito matérias apresentadas, quatro foram de figuras femininas e quatro masculinas. Durante a semana, houve Ciências da Comunicação Capítulo 12 139 apenas uma edição em que a distribuição foi equilibrada e, no restante, a maioria foi masculina, nunca feminina – inclusive, duas edições foram dominadas pelos homens. 5 | A PARTICIPAÇÃO DE RENATA FAN Renata Fan é uma figura emblemática não apenas para o Jogo Aberto e para a Band, mas para o jornalismo esportivo brasileiro, uma vez que é pioneira e mantém uma posição de destaque desde 2007. Conforme constatado, a gaúcha aparece e fala sozinha nas chamadas e na abertura do programa (com raras exceções), já a sua atuação nos comentários se dá ao lado de Denílson na primeira etapa e dos outros comentaristas na segunda. Tendo em vista esse cenário, preparamos dados com a síntese de sua participação na semana estudada, destacando o tempo em que a apresentadora aparece sozinha, acompanhada na primeira parte e acompanhada na segunda parte. Vale ressaltar que o tempo total de cada programa corresponde ao material disponibilizado no YouTube no canal do Jogo Aberto, por esse motivo, os intervalos comerciais não são englobados. Além disso, por conta de direitos de uso de imagens, alguns trechos são cortados. Sendo assim, os valores utilizados como referência são aqueles oferecidos pela emissora. Programa Fan sozinha (em minutos) Fan acompanhada Fan acompanhada Tempo total do – 1ª parte (em – 2ª parte programa minutos) 1 (25/9/17) 3 min 55 s 18 min 18 min 30 s 1 h 13 min 29 s 2 (26/9/17) 3 min 40 s 10 min 55 s 23 min 30 s 1 h 4 min 20 s 3 (27/9/17) 3 min 55 s 8 min 5 s 9 min 45 s 51 min 56 s 4 (28/9/17) 2 min 20 15 min 10 s 11 min 44 min 21 s 5 (29/9/17) 3 min 35 s 18 min 5 s 29 min 30 s 1 h 17 min 41 s Total em 5 programas 17 min 25 s 1 h 10 min 15 s 1 h 32 min 15 s 5 h 26 min 21 s Tabela 6 – Tempo ocupado por Renata Fan Fonte: Elaborado pelos autores, 2017. Em posse de tais dados, podemos afirmar que Renata Fan possui maior atuação (em tempo) quando está acompanhada de Denílson e dos comentaristas na parte do debate, uma vez que seu papel de apresentadora (programado e, por vezes, roteirizado) é pequeno. Assim, a ocupação de tempo exclusivamente feminino é minoria. Ciências da Comunicação Capítulo 12 140 6 | JOGO ABERTO: PRESENÇA MAJORITARIAMENTE MASCULINA Conforme avaliamos nas tabelas anteriores, a presença feminina no Jogo Aberto se mantém restrita a Renata Fan. Já nas reportagens, a participação das mulheres nem sempre ocorre, uma vez que, durante duas edições do programa, nenhuma repórter mulher assinou matéria. Contando que as posições de apresentadora e comentaristas se mostraram fixas no Jogo Aberto, as reportagens são um campo de mudanças. Sendo assim, computamos um número geral para percebermos como esses materiais se relacionam à presença feminina – contando apenas o nome dos repórteres, que são os encarregados pelas matérias. Vale ressaltar que não foram consideradas as matérias reexibidas, mas foram computadas as entradas ao vivo, prática comum no programa. Gráfico 1 – Mulheres e homens nas reportagens do Jogo Aberto na semana estudada Fonte: Elaborado pelos autores, 2017. No Jogo Aberto da semana analisada, foram exibidas 34 matérias, das quais 26 foram conduzidas por repórteres homens e 8 por repórteres mulheres. Em números percentuais, conforme o gráfico 1, são 24% de material de jornalistas mulheres comparados a 76% de conteúdos assinados por homens. Esses dados apontam para o predomínio da presença masculina no Jogo Aberto. No decorrer desse trabalho, buscamos deixar evidente a presença minoritária da mulher nas edições do programa da Band, fato que vale para os programas esportivos da televisão aberta. De posse de tais dados, podemos perceber que, embora as lutas feministas tenham inserido as mulheres em contextos antes negados a elas, o predomínio masculino em espaços, como o esporte e o jornalismo esportivo, continua sendo perpetuado, fenômeno que ocorre como fruto de uma visão naturalizada do papel do homem. A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa Ciências da Comunicação Capítulo 12 141 justificação (BOURDIEU, 2003, p. 18). “A visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos”. (BOURDIEU, 2003, p. 18) A dominação masculina é tamanha e tomou conta de tantos setores da vida social que as pessoas, geralmente, não a reconhecem. E, em certos momentos, nem mesmo as próprias mulheres. Assim, temos o que Bourdieu chama de violência simbólica. O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura, de língua etc.) se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos habitus e que fundamentam, aquém das decisões da consciência e dos controles da vontade, uma relação de conhecimento profundamente obscura a ela mesma. (BOURDIEU, 2003, p. 49) Embora perceba situações em que a divisão do mundo a partir do gênero se encarrega de separá-lo entre “coisa de homem” e “de mulher”, algumas limitações, por serem veladas, não revelam de forma explicita essa raiz da diferenciação entre os gêneros. Segundo Fan (2017, informação oral), o mercado de trabalho, hoje, é muito mais fácil do que há 14 anos, quando começou. “A mulher, dentro dos programas esportivos, era uma figuração, era mais vista pela estética, e não pelas opiniões emitidas” (FAN, 2017, informação oral). Ainda segundo a profissional, naquela época não era possível que o trabalho feminino fosse valorizado. “E não porque as mulheres não tivessem condições, mas porque elas não tinham espaço; e isso foi acontecendo gradativamente” (FAN, 2017, informação oral). “Quando as mulheres começaram a trabalhar, quando mostraram sua competência, o quanto elas são profissionais, o quanto, realmente, elas fazem a diferença, isso acabou ganhando espaço, abrindo um novo caminho para todas nós. E, na verdade, quando uma mulher tem sucesso, outra ganha oportunidade, outra vai ter a chance de mostrar algo novo, diferente”. (FAN, 2017, informação oral) Dessa forma, Fan também admite a importância da representatividade, de mulheres que ocupem espaços e demonstrem suas capacidades para que o caminho seja aberto para outras, o que ressalta a importância da presença feminina em contextos nos quais percebe-se a divisão sexuada do trabalho, como o universo esportivo. No mesmo sentido, Mills (2017, informação escrita), diretor do Jogo Aberto desde 2014, avalia que, a cada dia que passa, o espaço para as mulheres em programas esportivos é maior. O diretor também oferece os dados da atração. Conforme Mills (2017, informação escrita), dos 10 profissionais que editam o programa no dia a dia, em São Paulo, três são mulheres. O que resultaria em 30%. Nas ruas, produzindo as matérias, ainda de acordo com o profissional, são 11 repórteres, dos quais três são mulheres. O que, transpondo para um número percentual, resultaria em aproximadamente 27,2%. Renata Fan, a apresentadora, ocupa sozinha essa posição Ciências da Comunicação Capítulo 12 142 e, nos debates, é a única mulher entre uma quantidade variável de comentaristas – de três a cinco por programa – mas, sempre, todos eles homens. Além disso, observamos durante a visita ao programa, que, no estúdio, além de Renata, havia apenas outras duas mulheres, que eram sua maquiadora e cabelereira. Os câmeras e produtores presentes no local em que o programa é transmitido são todos homens. 7 | CONSIDERAÇÕES FINAIS O jornalismo esportivo surgiu no Brasil na década de 1850, e, um século depois, o campo ainda era dominado por homens no país, com raras representantes femininas até, pelo menos, 1970. Tendo em vista esse cenário, neste trabalho, após uma breve contextualização histórica que objetivou traçar um caminho até os dias atuais, analisamos o Jogo Aberto, um programa esportivo exibido na televisão aberta na atualidade. Para isso, utilizamos tabelas para computar os dados de conteúdo e verificar de que forma a presença feminina se realiza nas atrações, levantamentos encontrados desde a tabela 1 até a tabela 5. Por meio desses dados foi possível concluir que o Jogo Aberto tem em Renata Fan uma figura importante e participativa, pioneira e diferenciada por ser uma figura feminina que emite opiniões sobre esporte na televisão aberta – e, nesse aspecto, atua sempre ao lado de homens. Nas reportagens e na posição de comentaristas, a dominação ainda é masculina. Por meio dos dados levantados ao assistir os programas da semana selecionada e a montagem das tabelas, calculamos: foram exibidas 34 matérias ao todo, das quais 26 foram feitas por homens e 8 por mulheres. Consideramos, desta forma, que as raízes da atuação minoritária feminina estão intimamente ligadas à desigualdade de gêneros, que nada mais é do que a manifestação de uma cultura de diferenciação entre os sexos que se estabeleceu no passado, construindo os gêneros, e se perpetuou por meio de estruturas, como a exclusão ou a dominação de mulheres em determinados contextos, a exemplo do esporte. O sociólogo francês Pierre Bourdieu (2003, p. 72) afirma que há posições oferecidas às mulheres pela estrutura, ainda fortemente sexuada, da divisão de trabalho. Nesse caso, percebemos a divisão e separação bem demarcada do esporte e do universo feminino. Bordieu (2003, p. 18-20) explica que existe um programa social de percepção incorporada, ou seja, uma noção aprendida, que se aplica a todas as coisas do mundo e ao próprio corpo em sua realidade biológica. É ele [corpo] que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho, na realidade da ordem social. A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho (BOURDIEU, 2003, p. 20) Ciências da Comunicação Capítulo 12 143 Apesar do discurso de igualdade e de avanços, as análises de cada dia dos programas nos mostraram que as mulheres ainda são minoria e que o processo histórico de luta feminista que acontece até os dias de hoje não foi o suficiente para inserir a mulher nesse contexto, ainda reprodutor da imagem do homem ligada ao esporte. Sendo assim, percebemos que os efeitos da dominação masculina ainda estão presentes na sociedade atual e influenciando o trabalho de mulheres no jornalismo esportivo, mostrando que será necessária muita luta além daquelas já travadas. REFERÊNCIAS ANDÚJAR, Clara Sainz de Baranda. Orígenes de la prensa diária deportiva: El Mundo Deportivo. Artigo acadêmico. Universidad Carlos III de Madrid. Materiales para La Historia del Desporte, N° 11. Madrid, Espanha: 2013. BAGGIO, Luana Maia. Representação da mulher no telejornalismo esportivo: a atuação da jornalista Renata Fan no programa Jogo Aberto da TV Bandeirantes. Rio Grande do Sul, 2012. BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica - História da Imprensa Brasileira. São Paulo: Ática, 1990. BARBEIRO, Heródoto e RANGEL, Patrícia. Manual do jornalismo esportivo. São Paulo: Contexto, 2006. BARROS, Ciro. Jornalismo Esportivo: nem mulheres nem fontes. In: Apublica.org. 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Acesso em: 2 de dezembro de 2017. “Íntegra Jogo Aberto - 27/09/2017”. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=0h8ucD3wY8I&spfreload=1>. Acesso em: 4 de dezembro de 2017. “Íntegra Jogo Aberto - 28/09/2017”. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=a5oWjQ7RJ0g&spfreload=1>. Acesso em: 5 de dezembro de 2017. “Íntegra Jogo Aberto - 29/09/2017”. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=muzNLQcVyCs>. Acesso em: 6 de dezembro de 2017. “Perfil de audiência”. In: Band.com.br. Disponível em <http://www.band.uol.com.br/comercial/ audiencia.asp>. Acessado em 17 de novembro de 2017. Ciências da Comunicação Capítulo 12 145 CAPÍTULO 13 DIVERSINE, UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA FÍLMICA PARA PENSAR A DIVERSIDADE NA PERSPECTIVA DO GÊNERO Hugo Bueno Badaró Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, Manaus, AM Thaumaturgo Ferreira de Souza Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, Manaus, AM Maria Lúcia Tinoco Pacheco Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, Manaus, AM RESUMO: O presente artigo visa apresentar a experiência do “Projeto Diversine”, ocorrida no segundo semestre de 2017, no campus Manaus Centro/CMC, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas/IFAM. O principal objetivo do projeto foi promover, a partir da arte cinematográfica e seu viés estético, um debate sobre o tema diversidade junto à comunidade escolar do CMC. Como um dos maiores desafios no contexto educacional, considerando-se o paradigma inclusivo, é a mudança atitudinal, a necessidade de se empregar diferentes estratégias nos levou ao cinema como um espaço de formação importante. O recorte para esse trabalho se dará em torno de dois filmes nos quais a questão de gênero foi evidenciada. O projeto atingiu 5 turmas, num total de 87 estudantes. PALAVRAS-CHAVE: Projeto Diversine; Diversidade; Gênero; Cinema; Educação. Ciências da Comunicação ABSTRACT: This article aims to present the experience of the “Diversine Project”, held in the second half of 2017, at the Manaus Centro / CMC campus, at the Federal Institute of Education, Science and Technology of Amazonas / IFAM. The main objective of the project was to promote a debate about the diversity theme with the CMC school community, through an approach of the cinematografic art and it’s aesthetic nature. As one of the major challenges in the educational context, considering the inclusive paradigm is the attitudinal change, the need to employ different strategies has led us to the cinema as an important space for formation. This work will consider only two films in which the gender issue was evidenced. The project reached 5 classes, with a total of 87 students. KEYWORDS: Diversine Project; Diversity; Genre; Movie; Education. 1 | INTRODUÇÃO: DA INCLUSÃO À DIVERSIDADE, UM PROJETO Nos últimos dez anos, a sociedade brasileira tem acompanhado uma mudança pontual no que se refere à inclusão e muito embora o tema não seja novo, em contexto social posto que desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), ele já apareça, é somente agora que o tema inclusão, na Capítulo 13 146 perspectiva da diversidade, encontrou espaço na agenda política do Brasil, em que se insere a educação. Diremos, inclusive, tomando como referência o documento anteriormente citado, que a inclusão caminhou de uma ideia de igualdade entre os povos para o reconhecimento da diversidade, na perspectiva dos diversos sujeitos que compõem essa última. Em um breve recorte documental a ideia de inclusão no campo educacional passa, portanto, pelo entendimento de que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.”, dentre esses, o direito à educação (DUDH, 1948), mas agora não mais aquela homogênea, mas àquela que atenda as diferenças como apregoa a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, de 1990. 3. A prioridade mais urgente é melhorar a qualidade e garantir o acesso à educação para meninas e mulheres [...] 4. Um compromisso efetivo para superar as disparidades educacionais deve ser assumido. Os grupos excluídos – os pobres; os meninos e meninas de rua ou trabalhadores; as populações das periferias urbanas e zonas rurais; os nômades e os trabalhadores migrantes; os povos indígenas; as minorias étnicas, raciais e linguísticas; os refugiados; os deslocados pela guerra; e os povos submetidos a um regime de ocupação – não devem sofrer qualquer tipo de discriminação no acesso às oportunidades educacionais. 5. As necessidades básicas de aprendizagem das pessoas portadoras de deficiências requerem atenção especial. (Art.3) Atrelados então ao reconhecimento do sujeito diverso, de que trata o documento de 1990, o discurso da inclusão, nos tempos de agora, passou a incluir e ressignificar outros vocábulos como respeito, cultura, acessibilidade, desenho universal, gênero, diversidade, mudança atitudinal, dentre outros. E sobre esse último se assenta o campo educacional e um dos desafios à política educacional vigente: Como educar para a diversidade? Foi a partir do desafio de pensar em estratégias capazes de promover essa mudança de comportamento em favor da diversidade e da inclusão, em que pudéssemos construir um olhar plural sobre o tema, que propusemos o “Projeto Diversine”, que tem como princípio norteador a relação cinema-educação-comportamento. Proposto por meio de edital de assistência estudantil (PAES), o projeto manteve como preocupação constante o ato de educar por meio da arte fílmica. Dentre os filmes trabalhados no período de vigência do projeto, estavam, de 2014, a produção inglesa “O jogo da Imitação”, biografia de Alan Turing, e de 2016, o filme “Estrelas além do Tempo”, produção norte-americana, autobiográfica, que apresenta a história de três mulheres negras, no exercício de suas profissões na NASA, na década de 60. Ambos os filmes são recortes da diversidade na questão do gênero e dos estereótipos e nos aproximam da relação inclusão e diversidade. Ciências da Comunicação Capítulo 13 147 2 | DO CINEMA E DA EDUCAÇÃO, O PROJETO DIVERSINE Dentre os muitos teóricos que tratam da arte cinematográfica, Walter Benjamin (1987) é aquele que mais trouxe contribuições das mais importantes para o contexto deste trabalho. Para ele, o cinema é “uma obra da coletividade” dadas as condições de produção e recepção, “que serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações” (1987, p. 174) e, enquanto obra de arte, é aquela que permite ao homem contemporâneo, uma experiência estética, por meio da qual ele se confronta profundamente com sua existência e com tudo que dela faz parte. Segundo Neves (2012, p. 3), em Benjamin, o “cinema tinha a capacidade de ir até estratos ocultos da realidade, provocando paralelamente à diversão um alargamento da percepção”, ou seja, para além da diversão e do prazer lúdico, é nessa ampliação da percepção sobre a existência humana, nessa “visualização cinematográfica” dos problemas, desejos e enfrentamentos, que emerge no público uma reflexão sobre seu mundo e sua própria prática social. Filmes interessantes, tanto quanto livros bons, são aqueles capazes de provocar no seu interlocutor um incômodo, uma insatisfação. Em uma breve analogia, o cinema é uma grande caixa preta (mágica) pela qual temos que passar. Antes de adentrá-la somos um, após a passagem por ela, na saída, já não somos mais o mesmo que entrou. É nesse sentido que Benjamin vê o cinema: um espaço de afetação. Afetado pelo que viu e ouviu nesta experiência, o públicoreceptor é chamado a uma mudança. No que tange à diversidade, a promoção de um comportamento inclusivo, a mudança, é fundamental; logo, apropriar-se de uma ferramenta como o cinema, capaz de provocar uma reflexão sobre o tema no contexto educacional pareceu-nos fecundo e promissor. Sabe-se que a utilização de filmes não está atrelada a um ou outro campo, e embora seu uso não seja novo na escola e seu emprego geralmente ligado a certo pedagogismo e menos a uma experiência individual (e também coletiva) com uma arte, não se pode negar que eles “[...] podem contribuir com a promoção da sensibilização, da expansão da consciência e do reconhecimento das desigualdades sociais e preconceitos.” (NEVES, 2012, p. 2). Para Napolitano (2009), ao ser tomado como um texto gerador, ou seja, do qual é possível debater um tema ou vários outros atrelados a uma mesma ideia, o filme não promove tal discussão somente por meio de seu conteúdo literal, mas, sobretudo, por seu caráter estético e ideológico, metafórico. O filme, como um texto, possui entrelinhas, que permitem ao público uma experiência diferenciada. Afetado pelo que viu e ouviu nesta experiência, o receptor é chamado a uma mudança. Nesse sentido, resgatar a relação do cinema com a educação brasileira, que se inicia por volta dos anos 20, quando os filmes nos surgem em contextos de projetos Ciências da Comunicação Capítulo 13 148 educacionais, por apresentarem potencial educativo (LEITE, 2005), e ressignificar seu valor artístico, estético e cultural no que se refere à construção de um olhar plural sobre a diversidade foi o objetivo que norteou o Projeto Diversine. Centrado na arte cinematográfica, em diálogo com a educação, considerando- se, sobretudo, seu objetivo principal que fora promover, a partir da sétima arte e seu viés estético, um debate sobre o tema diversidade, o projeto Diversine teve nos seus interlocutores – a comunidade escolar do IFAM – e na recepção que fizeram do material selecionado o ponto principal de sua atividade. De natureza interventivo – investigativa, e abordagem qualitativa, o projeto considerou as seguintes atividades: 1ª Preparação da equipe do projeto e material publicitário; 2ª Seleção e Edição de filmes com enfoque em deficiência, gênero, orientação sexual e cultura; 3ª Debate sobre o filme pela equipe de trabalho; 4ª Produção de questionário semiaberto; 5ªExibição fílmica, seguida de diálogo com a turma e aplicação do questionário; 6ª Produção de relatório parcial e final; 7ª Socialização do projeto em amostra institucional. De modo geral, essas atividades foram distribuídas em duas fases: na primeira, denominada “Planejamento”, tivemos a preparação da equipe executora por parte do coordenador, e incluiu a apresentação do plano de trabalho, com as reuniões de grupo. Nessa, ocorria a seleção do material fílmico a ser exibido no mês subsequente, o levantamento de pontos a serem discutidos, a confecção de material para divulgação do projeto (figura 1), a produção de questionário específico sobre a exibição feita (figura 2), e a definição da abordagem a ser empregada junto ao público no momento da sessão. Figura 1 – Cartaz do projeto Fonte: Bolsistas/Voluntário do Projeto Diversine (2017) Ciências da Comunicação Capítulo 13 149 Figura 2 – Modelo de questionário específico Fonte: Projeto Diversine (2017) Nas reuniões preparatórias da equipe, ganhou relevância o modo como a arte cinematográfica fora trabalhada sob o viés da linguagem, das escolhas estéticas dos realizadores do material, da performance dos atores, da construção das personagens, dentre outros, e de como estes aspectos apresentaram a diversidade, de modo direto ou indireto, se por meio de comparações ou por meio alegorias. Na segunda fase, denominada “Exibição”, ocorreu a apresentação fílmica, seguida do diálogo com o público e da aplicação do questionário junto a ele. A partir das respostas dadas ao questionário, da observação direta sobre a plateia e da receptividade da atividade proposta, a equipe, em reunião posterior, avaliou a condução do processo e do impacto da exibição na comunidade. 3 | OS FILMES: DA EXIBIÇÃO ÀS DISCUSSÕES Nesta etapa do projeto foi feita a exibição dos filmes selecionados, seguida de uma conversa com a plateia sobre os variados aspectos que aquela experiência propunha, a começar pelo roteiro proposto. Os filmes apresentados, no contexto da diversidade, com recorte na questão do gênero (e sexualidade), foram “O Jogo da Imitação” e “Estrelas além do tempo”. Lembramos que a seleção desses e de outros filmes se deu no âmbito das reuniões dos gestores do projeto. Sobre a escolha pesou, sobretudo, a experiência fílmica individual vivenciada pelos membros da equipe inicialmente, as discussões posteriores em torno das percepções que tivemos quando feitas as reuniões. A ideia era trazer para o nosso público o mesmo clima, da experiência individual à coletiva, a produção de um olhar sobre a diversidade. O filme “O jogo da imitação” de Allan Turing, foi pensado e escolhido por diversas questões pertinentes no mesmo, questões essas, que estão diretamente ligadas ao objetivo e assunto que queremos tratar. Visto como um tabu à época em que se Ciências da Comunicação Capítulo 13 150 passa, e, mas que tem permeado até os dias atuais, a questão do homossexualismo, adensado por uma sociedade onde o machismo é preponderante, é tema no filme. Em “Estrelas além do tempo”, a abordagem que fora um pouco diferente, manteve o mesmo objetivo, promover no público-alvo uma mudança de pensamentos e atitude. Nesse filme, tratamos da questão das minorias, agora visto pelo olhar da pessoa negra, da mulher negra, ou melhor dizendo – das mulheres negras. O filme nos permitiu acompanhar a dificuldade por que passaram as protagonistas, vivenciando jornadas duplas e também sofrendo duplamente, tanto por serem mulheres, quanto por serem negras. Por outro lado, mostra o enfrentamento de determinada situação é necessário para a mudança que se quer. Os filmes acima mencionados foram escolhidos dentre todos os outros, pensados e discutidos, pois além de tratarem como diz Benjamim, de “perigos existenciais” totalmente pertinentes em nossa sociedade como o tratamento diferenciado entre os gêneros, a sexualidade enquanto tabu, racismo e machismo, também dizem respeito às dificuldades enfrentadas em partes pelo nosso público - os alunos do IFAM. Para Gomes (1996), o racismo, a discriminação racial e de gênero, que fazem parte da cultura e da estrutura da sociedade brasileira, estão presentes na vida e nas relações entre educadores e educandos. Após a escolha dos filmes e a respectiva apresentação e discussão posterior, houve a aplicação do questionário, no qual os alunos puderam nos dar mais informações sobre essa experiência. Foi por meio dele também que conhecemos o ponto de vista e experiências sobre o assunto e sobre o que foi tratado em sala. 3.1 O Jogo da Imitação O filme foi exibido em duas turmas de informática do ensino médio técnico, na modalidade integral – INF11A e INF11B –, em dias diferenciados, e assistido por cinquenta e dois (52) estudantes, no total. Muitos, mesmo sendo do curso de informática, nunca tinham ouvido falar de Alan Turing, e muito menos do Teste de Turing - avaliação para saber quão humano uma máquina pode parecer. A diversidade no filme, segundo os alunos que assistiram à exibição, estava diretamente relacionada ao preconceito, ao machismo e ao homossexualismo. Sobre a orientação sexual, um estudante discorreu: “Na minha opinião, ele realmente pode ter se suicidado, pelo viveu. Por ser homossexual, ele não aguentou viver com esse preconceito e com o acordo judicial, ou seja, ele pode ter ficado com depressão por esse motivo”. Para outros alunos, “ [...] a diversidade está presente no filme quando uma mulher trabalha no meio de homens, mesmo sofrendo muito machismo e discriminação, que era muito intenso e extremo na época”. Um outro ponto, bastante mencionado pelos alunos nos questionários, foi a superação contida nele, tanto pela personagem Joan Clarke, única integrante feminina da equipe – quando ela suplanta obstáculos e preconceito e consegue se destacar Ciências da Comunicação Capítulo 13 151 na cena em que ela finaliza a prova que a colocaria em melhor posição na equipe em relação aos outros, quanto pelo protagonista – na criação da máquina, mesmo quando todos desacreditaram e duvidaram dele. Superação essa, bem descrita pela frase mencionada no filme, “Aqueles de quem menos se imaginam, fazem coisas que ninguém sequer poderia imaginar”. Realizar uma abordagem pessoal do personagem Alan Turing, visando os obstáculos que sofreu por ser homossexual e fora dos padrões da sociedade serviu para que muitos alunos enxergassem o humano por trás do gênio, inclusive, considerando que a genialidade é também um fator de diferença e preconceito. A partir dos dados coletados verificamos que os alunos dessas turmas possuem uma grande disposição para essa temática, apesar de seu pouco conhecimento. Nesse sentido, buscar meios e estratégias para uma maior abordagem do tema diversidade ajudará na compreensão do que a ela é e das suas implicações para a inclusão. 3.2 Estrelas Além do Tempo Na turma de mecânica (EMEC), em virtude de problemas de ordem técnica, o que comprometeu o tempo destinado à atividade, optou-se por uma palestra sobre Diversidade a partir da seleção de cenas específicas do filme “Estrelas além do tempo”. Surgiram no contexto do debate, por meio do alunado, as questões do gênero e da raça no mundo do trabalho e do conhecimento científico. O curso de engenharia mecânica no IFAM é marcadamente composto por um público masculino. Na turma do 10º período, em que o debate ocorreu, há dez (10) alunos matriculados; mas apenas um é do sexo feminino. Essa disparidade nos revela, consequentemente, ainda, o domínio dos homens em determinadas áreas de trabalho, dentre as quais, a engenharia mecânica. O filme “Estrelas além do Tempo”, situado na década de 60, resgata, nesse sentido, essa divisão, marcadamente histórica, do trabalho e do conhecimento, entre homens e mulheres. As cenas selecionadas para essa atividade objetivaram apresentar, portanto, os enfrentamentos da mulher negra, à época, no mundo do trabalho, em áreas denominadas convencionalmente como “lugares de homens”. A partir da escuta estabelecida no processo dessa exposição, os estudantes dessa turma consideraram que a engenharia mecânica é, como a matemática da década de 60, sobre a qual o filme trata, ainda uma área com predominância masculina, o que implica para as mulheres que procuram cursos dessa natureza desafios importantes tanto na faculdade, na condição de aluna, quanto no trabalho, quando profissional. Os cursos de engenharia mecânica, tanto na fala de alunos quanto de alunas, também é um espaço masculinizado, que se revela inclusive no tratamento das alunas em sala de aula por parte de quadro docente, que em sua maioria também é composta de homens. Tais quais as protagonistas dos filmes, que ouviram que a NASA não era um lugar para mulheres, as alunas da turma revelaram que muitos discursos proferidos, Ciências da Comunicação Capítulo 13 152 ainda que em “tom de brincadeira”, como por exemplo, a pergunta “O que vocês estão fazendo aqui?” tem a mesma conotação. É uma experiência de segregação. Nas falas, pontuou-se, sobremaneira, o tratamento diferenciado e desigual a que muitas mulheres são submetidas: sujeitar-se a cobranças maiores no mundo do trabalho para comprovar o que sabem diante de seus pares profissionais, em grande maioria, homens; além das diferenças salariais, que as pesquisas de modo geral já assinalam. Sobre a questão da raça, apontada inicialmente, embora tenha sido pouco aprofundada no contexto de hoje, reconhece-se haver preconceito racial, no entanto, para a maioria, no âmbito da mecânica a problemática do gênero é mais acentuada. No entanto, todos os estudantes, no momento do debate, que muitas situações exigem enfrentamentos e observar com isso se deu na trajetória das protagonistas do filme e onde elas puderam chegar mesmo com tamanhas dificuldades é um caminho a ser trilhado. Por fim, os estudantes pontuaram que é necessário que a mudança não deva recair somente sobre o sujeito excluído, como se ele sozinho tivesse a responsabilidade de mudar seu destino. A mudança deve ser parte de um conjunto maior, o que inclui a sociedade e seus mecanismos sociais: instituições, dispositivos legais, ações. 4 | CONCLUSÃO Após a finalização do projeto “Diversine”, através dos métodos de coleta utilizados, avaliamos que a utilização da arte cinematográfica com enfoque na diversidade no contexto do IFAM-CMC foi de grande valia e se caracteriza como ferramenta de reflexão no contexto de educação para a diversidade. O cinema como estratégia para conscientização dos docentes e discentes no meio acadêmico tem se mostrado bastante produtivo e significativo, pois além de se trabalhar com a imagem e os audiovisuais, linguagem do mundo atual, tem se mostrado promissor na quebra dos preconceitos e paradigmas em nossa sociedade, de maneira simples, clara e através de uma experiência individual e ao mesmo tempo coletiva. A partir dos filmes selecionados e em meio às temáticas específicas abordadas com o público do IFAM, dentre elas, o racismo, o machismo e a homofobia, pudemos observar e medir a importância e o valor da educação para a diversidade. Por meio dessa experiência, dos comentários e da discussão da qual participamos todos, equipe, professores e alunos, verificamos a presença do preconceito e da discriminação ainda enraizados nas turmas do instituto. Por outro lado, percebemos que há espaços possíveis para a discussão e que a comunidade apresenta predisposição para participar dela e mudar seu comportamento. O bom uso de estratégias e ferramentas como filmes que promovam a reflexão, podem serem diferenciais nesse processo no momento atual. Ver a mulher de modo igual, discutir os direitos do outro, entender a alteridade Ciências da Comunicação Capítulo 13 153 nos ambientes educacionais passa pelas escolhas pedagógicas. Nisso, se reafirma o papel social da escola que é o de promover espaços que acolham as diferenças. REFERÊNCIAS Assembleia Geral da ONU. (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos (217 [III] A). Paris. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: _______. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras Escolhidas v.1) ESTRELAS ALÉM DO TEMPO. Direção de Theodore Melfi. Estados Unidos da América, 2016. GOMES, Nilma L. 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Ciências da Comunicação Capítulo 13 154 CAPÍTULO 14 COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL E FORMAÇÃO DE ESTEREÓTIPOS: HOMOSSEXUALIDADE NA TELEVISÃO BRASILEIRA Pablo de Oliveira Lopes Universidade Santo Amaro, São Paulo - SP RESUMO: O campo da Análise do Discurso (AD) estabelece como objeto de estudos a produção de efeitos de sentido atribuída por sujeitos sociais que lançam mão da linguagem e produzem verdades. A comunicação áudio-visual pode desenvolver uma relação profícua com a AD ao problematizar o papel dos discursos na produção das identidades sociais, pois a retórica do preconceito é uma das diversas maneiras de formação de consciências e identidades. Partindo das premissas que envolvem questões éticas na comunicação audiovisual, o presente artigo visa refletir sobre a representatividade dos gays na televisão brasileira. Com base na semântica, os resultados parciais permitem considerar que a televisão contribui para a propagação de uma imagem distorcida da realidade, cuja desconstrução revela representações que valorizam o universo social heteronormativo e homofóbico. PALAVRAS-CHAVE: Gay; preconceito; televisão; mídia. ABSTRACT: The Field of Discourse Analysis (AD) establishes as object of studies the production of effects of meaning attributed by Ciências da Comunicação social subjects that use language and produce truths. Audio-visual communication can develop a fruitful relationship with AD by problematizing the role of discourses in the production of social identities, since the rhetoric of prejudice is one of the many ways of forming consciousness and identities. Based on the premisses that involve ethical issues in audiovisual communication, this article aims to reflect on the representativeness of gays in Brazilian television. On the basis of semantics, partial results allow us to consider that television contributes to the propagation of a distorted image of reality, whose deconstruction reveals representations that value the heteronormative and homophobic social universe. KEYWORDS: Gay; preconception; television; media. 1 | INTRODUÇÃO A retórica do preconceito é uma das diversas maneiras de expressão do discurso social. O discurso é uma ferramenta de construção da identidade, que influencia diretamente na percepção que cada ser humano tem de si mesmo. Assim sendo, atravessa o discurso midiático e exerce papel fundamental na formação de consciências e identidades. Para Gregolin, “A análise do discurso pode Capítulo 14 155 delinear algumas relações que a mídia estabelece, interdiscursivamente, com outros dispositivos textuais que circulam na sociedade” (2007, p.3). Partindo dessa premissa, como se aborda a questão da representatividade homossexual na televisão brasileira? Segundo Tucci Carneiro (1996), o discurso da intolerância caracteriza-se por diferentes formas de expressão: pela linguagem escrita, visual e oral. Na linguagem visual, encontram-se os filmes, as telenovelas, os programas humorísticos, as gravuras, as caricaturas e as fotografias como formas de expressão nas quais podem ser identificadas palavras, frases, gestos e comportamentos que contribuem para a perpetuação do preconceito por meio da reprodução de estereótipos. O estereótipo pode ser definido como um dispositivo cognitivo que facilita o acesso a novas situações. Equivale a categorias que definem padrões de aproximação e de julgamento que orientam a leitura do novo a partir de referências prévias e, assim, reduz a complexidade das interações concretas e contribui para ampliar o grau de previsibilidade nas novas interações. Crença rígida e simplificada, o estereótipo minimiza as variações presentes nos comportamentos individuais, definidos e explicitados em interações e contextos sociais específicos. Estereótipos e realidade dependem um do outro e ratificam comportamentos e valores socialmente produzidos. O estereótipo remete ao etnocentrismo, visão de mundo que considera um grupo étnico, nacionalidade ou nação superiores aos demais. Estereótipo e etnocentrismo relacionam-se com o julgamento de práticas e padrões culturais e atribuição de valores a algumas características de determinados grupos de indivíduos. Muitas vezes pejorativos, tais julgamentos tendem a colocar as pessoas em posição de inferioridade, considerações que remetem a interpretações raciais de cunho eugênico. Eugenia foi um termo criado por Francis Galton (1822-1911), em 1883, definido como o estudo dos agentes sob o controle social, que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações. Galton pregava a aplicação do melhoramento genético na população humana. Exemplo extremo de eugenia foi o da Alemanha Nazista, onde o regime de Adolf Hitler (1889-1945) pregava a supremacia da raça ariana. O Holocausto adveio de tal princípio e resultou na morte de judeus, negros, gays, portadores de deficiência e demais indivíduos pertencentes a ‘ raças’ ditas inferiores. Expressões populares presentes no dia-a-dia reafirmam o preconceito gerado pela disseminação de estereótipos: é o caso de ‘Não tenho nada contra, mas…’, ‘Ele é gay mas ninguém diz. Se veste igual a todo mundo’, ‘Não tenho preconceito, tenho até amigos que são gays’, ‘Tudo bem ser gay, mas não precisa ficar desmunhecando’, ‘Pode ser lésbica, mas não precisa se vestir como homem’, ‘Não precisa ficar contando para todo mundo que você é gay’ e ‘Ele é tão bonito, nem parece que é gay’. Elas denotam a rejeição aos homossexuais, sentimento que podem ser explícito ou velado. A homofobia camuflada aparece como uma recusa em aceitar que os homossexuais são seres humanos iguais aos heterossexuais. Homofóbicos preferem não manter contato Ciências da Comunicação Capítulo 14 156 com homossexuais. A atitude homofóbica, em geral, vem acompanhada da frase ‘não tenho nada contra, mas…’. Nesse sentido, é possível considerar que costuma haver um discurso de cunho religioso, com forte apelo moral, atrelado a estereótipos como ‘homossexuais são quase sempre promíscuos’. As frases citadas têm impacto na produção midiática, sobretudo na comunicação audiovisual. Nesse sentido, cabe questionar como os meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão, exercem influência na fabricação de estereótipos sobre gays. A ampliação dessas construções e permanências remonta a aspectos oriundos da saúde e da medicina, pois a homossexualidade já foi considerada doença. Em 1952, a Associação Americana de Psiquiatria publicou em seu primeiro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais que a homossexualidade era uma desordem, o que levou diversos cientistas a tentar comprovar que havia um distúrbio mental nos gays. Com a falta de comprovação, em 1973, a mesma associação retirou a opção sexual da lista de transtornos mentais. Uma outra causa de hostilidade face à homossexualidade foi a sua classificação como patologia pela comunidade médica do Séc. XIX. Nos primórdios do Séc. XX a homossexualidade foi incluída no ramo das doenças mentais e foram criadas clínicas para tratar os doentes homossexuais. A junção da visão médica às ideias emergentes da pureza racial e eugenia nos anos 1930 tiveram consequências desastrosas: cerca de 20.000 homossexuais masculinos, identificados por um triângulo cor-de-rosa, foram mortos em campos de concentração pelos nazistas. (Poeschl; Venâncio; Costa, 2012, p. 2). Em 1975, a Associação Americana de Psicologia seguiu o mesmo caminho e orientou os profissionais a não adotarem tal postura, evitando a difusão de preconceito. Entretanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu o homossexualismo na classificação internacional de doenças (CID) de 1977 como uma enfermidade mental, mas o retirou em 1990. Por essa razão, o dia 17 de maio tornou-se o Dia Internacional contra a Homofobia. O longo período em que a homossexualidade ocupou a posição de transtorno mental conferiu aos gays estigmas de doença e contribuiu, posteriormente, para o surgimento da associação entre homossexuais e uma grave enfermidade dos anos 1980: a AIDS. A geração dos anos 80 enfrentou a doença como uma sentença de morte, a chamada ‘peste gay’, termo carregado de preconceito e simbologia, que marcou anônimos e personagens famosos. Em junho de 1981, o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos registrou os primeiros casos de uma enfermidade considerada, à época, uma incógnita. Em 1982, ela recebeu o nome provisório de ‘Doença dos 5 H’, em razão de casos identificados em homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos (usuários de heroína injetável) e prostitutas (hookers em inglês). No mesmo ano, autoridades sanitárias detectaram a possibilidade de transmissão pelo ato sexual, pelo uso de drogas injetáveis e pela exposição a sangue e derivados. No Brasil, o primeiro caso é diagnosticado em São Paulo. A doença recebe o nome Ciências da Comunicação Capítulo 14 157 definitivo de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Sida, em espanhol, ou Aids, na sigla em inglês). Em 1984, a equipe do virologista francês Luc Montagnier isola e caracteriza um retrovírus, vírus mutante que se transforma de acordo com o meio em que vive, como o causador da doença. Especialistas concluem que a Aids representa a fase final de uma doença provocada pelo HIV. Três anos depois, o medicamento AZT é a primeira droga a reduzir a multiplicação do vírus no organismo humano. Ainda em 1987, a Assembleia Mundial de Saúde anuncia a data de 1º de dezembro como o Dia Mundial de Luta contra a Aids. Segundo dados de 2011 do Portal Brasil, os casos registrados, no país, totalizam 2.775 no período, seguidos por 4.535 em 1988 e por 6.295 no ano seguinte. Só em 1991 começa a distribuição gratuita de antirretrovirais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já registrava 10 milhões de pessoas infectadas em todo o mundo. 2 | A HOMOSSEXUALIDADE AO LONGO DA HISTÓRIA: HOMOAFETIVIDADE E HOMOFOBIA Existem diversos registros que apontam relacionamentos homoafetivos, de pinturas rupestres a corpos sepultados com indícios de práticas sexuais homossexuais e de transexualidade. Personalidades históricas, que atuaram na construção da civilização, seja nas artes, na ciência, na política, na religião e na filosofia, foram homossexuais ou fizeram alusão ao assunto em suas obras. Entretanto, a compreensão da homossexualidade foi prejudicada e influenciada por valores desprovidos de senso crítico, baseados em senso comum e dogmas religiosos, o que acabou por incentivar o surgimento de uma cultura de ódio em relação aos homossexuais, com reflexos na postura social e legal em relação aos diferentes gêneros. Ao contrário do que se possa acreditar, o comportamento homossexual nem sempre foi visto como errado. Em várias civilizações antigas da Ásia, África, Médio Oriente e América do Sul era considerado normal. O motivo da mudança poderá ter como base a tradição judaico-cristã e as interpretações das suas Escrituras por necessidade de assegurar a linhagem, os povos israelitas, constantemente acossados e ameaçados por vários outros, tinham, com efeito, condenado o prazer e definido a homossexualidade como pecado. Assim, a partir da Idade Média, os comportamentos homossexuais foram incluídos na luta contra todas as formas de comportamentos não normativos. Observou-se uma tendência para aglomerar práticas como a feitiçaria e a ligação ao demônio, e grupos como os heréticos, judeus e homossexuais, numa só categoria distinta e ameaçadora. (Poeschl; Venâncio; Costa, 2012, p. 2). A terminologia ‘homoafetividade’ foi criada para incluir as uniões entre pessoas do mesmo sexo no âmbito de proteção dos regimes jurídicos da união estável e do casamento civil. Isto porque as uniões conjugais entre pessoas do mesmo sexo são pautadas no mesmo afeto romântico que as uniões de sexos opostos. O termo homoafetividade foi cunhado por Maria Berenice Dias com o intuito de destacar Ciências da Comunicação Capítulo 14 158 o amor romântico (e não o afeto fraterno) entre duas pessoas do mesmo gênero sexual. (Mesquita, 2017, p. 13). A homossexualidade tem sido objeto de acentuado preconceito ao longo da história humana e, com isso, passou a ser encarada pela sociedade em geral como algo ‘ não natural’, um pecado ou, ainda, uma doença, desvio ou perversão psicológica. Na antiguidade a relação homossexual era aceita. Inclusive, na Grécia antiga, a relação heterossexual era meramente para procriação. E o afeto, em sua maioria, era encontrado na relação homossexual. Portanto a homossexualidade é uma realidade que sempre existiu, é tão antiga quanto a heterossexualidade. Nas sociedades primitivas, os relacionamentos sexuais entre homens era prática constante e amplamente aceita, institucionalizada na cultura. Essa relação geralmente era realizada entre um homem mais velho e um adolescente (até atingir a fase adulta), pois via-se nesse tipo de relacionamento a forma pela qual o adolescente alcançaria a masculinidade, por meio da exclusão do contato dele com a mãe e das mulheres em geral. Algumas dessas práticas eram também baseadas na crença que o jovem só alcançaria fertilidade necessária a uma futura procriação através da sua realização. (Mesquita, 2017, p. 11). Apenas relacionamentos sexuais entre homens são mencionados, não havendo muitas referências históricas sobre as mulheres, já que o entendimento dominante entre os homens da época era o de que não se poderia falar em relação sexual sem a presença de um homem. Desta forma, a sexualidade das mulheres era ignorada em virtude do preconceito. O termo lesbianismo, por sua vez, também denota tempos remotos, possui ligação com as habitantes da ilha de Lesbos, por volta de 600 a. C., quando a poetiza Safo escrevia poemas descrevendo a beleza das garotas, demonstrando que tinha atração por mulheres, o termo então passou a ter o significado atual. (Mesquita, 2017, p. 11). Segundo Poeschl, Venâncio e Costa (2012), o termo ‘homofobia’ foi cunhado pelo psicólogo George Weinberg, em 1972, para referir-se ao desprezo de alguns por homossexuais e também pelo rechaço de certos homossexuais por si próprios devido à sua orientação sexual. A homofobia pode ocorrer de diversas maneiras, entre elas o heterossexismo: as instituições sociais, por meio de seus discursos sobre gênero e moralidade, tentam manter o status dos grupos dominante e desviante, condenando qualquer comportamento ou relação que não seja heterossexual. O preconceito sexual é um pré-julgamento. A homofobia continua também a manifestar-se nas profissões da saúde: estudos revelam que 89% das pessoas ligadas aos serviços de saúde manifestam reações negativas (como embaraço, rejeição, ou excessiva curiosidade) quando um/uma paciente se identifica como sendo gay ou lésbica. Existem diversas situações onde a homofobia se manifesta, como no fato do/a companheiro/a não ter direito às visitas em caso de internamento do/a outro/a nos cuidados intensivos, não o/a poder acompanhar na ambulância, e não ter direito a conhecer o seu estado de saúde. (Poeschl; Venâncio; Costa, 2012, p. 3). Ainda de acordo com Poeschl, Venâncio e Costa (2012), existem diferenças nos níveis de preconceito sexual manifestados pelos indivíduos: muitos estudos apontam Ciências da Comunicação Capítulo 14 159 que as mulheres são, em média, mais tolerantes para com a homossexualidade do que os homens e que a homossexualidade feminina é melhor aceita do que a homossexualidade masculina. Tendo em vista a influência das religiões judaico-cristãs, o mundo ocidental tornou-se homofóbico, principalmente nos Estados Teocráticos (em que Estado e religião se misturam). Defendendo a ideia de que a homossexualidade configura um pecado e vai contra os desígnios de Deus, a religião contribuiu para a disseminação do preconceito. 3 | GAYS NA TELENOVELA BRASILEIRA A telenovela brasileira, como tudo de resto, não retrata a realidade como ela é. Trata-se de uma ficção, de uma construção literária, porém, influencia poderosamente a cultura brasileira. No que se relaciona ao tratamento dispensado aos gays na mídia audiovisual brasileira, os contrastes produzem um sentido danoso à comunidade LGBT. A homoafetividade acompanha a humanidade desde os seus primórdios, tornando-se difícil determinar, com exatidão, a primeira referência histórica ou literária sobre o fenômeno. Todavia, sabe-se que em praticamente todas as civilizações as relações homossexuais sempre estiveram presentes. O discurso midiático também pode ser responsabilizado pela imagem que se tem dos homossexuais. Nas novelas e séries exibidas na televisão brasileira, gays são retratados com inúmeros trejeitos e, geralmente, são afeminados. Características a eles atribuídas para dar-lhes um tom de humor, aproximando-os do público, que acolhe com mais facilidade personagens engraçados. Para esconder ou amenizar o que se supõe ser um defeito, elabora-se uma caricatura que, por sua vez, acaba por adentrar o caminho da generalização. Não é incorreto afirmar que gays podem ser afeminados e que, em alguns casos, comportam-se de maneira semelhante às mulheres. Lésbicas também podem assumir comportamentos masculinos. Entretanto, ainda que essa dimensão exista, deve-se considerar que homossexuais são diferentes em suas identidades, com personalidades construídas em histórias de vida singulares, o que os leva a ter outras manifestações corporais, comportamentais, de luta e de resistência frente aos padrões normativos que imperam e fabricam gays. Vale dizer, não existe uma identidade fixa, mas diversidade na diferença. Estereótipos acompanharam os homossexuais que viveram a década de 1980, período em que a AIDS ganhou força e se espalhou mundo afora. A associação ente HIV e gays passou, sem dúvida, pela percepção de que todos os homossexuais eram promíscuos. A criação de estereótipos e sua reprodução tem como um dos alicerces justamente a generalização, a criação de rótulos. A discriminação continua a existir. Ciências da Comunicação Capítulo 14 160 Segundo Gianna (2017), uma pesquisa realizada pelo CRT DST/AIDS-SP, em conjunto com a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, em 2011, na capital paulista, homens que fazem sexo com homens (HSH) e transgêneros como travestis e transsexuais são vítimas de preconceito. Entre 1.217 entrevistados, 33,5% disseram ter sofrido abuso, 15,1% sofreram agressões físicas e 62,3% ofensa verbal. Há 30 anos, a AIDS era sinônimo de morte. Nos dias de hoje, é considerada uma doença crônica e ,mpor conta dos avanços nos campos do diagnóstico e do tratamento da enfermidade, pessoas infectadas pelo HIV vivem com mais qualidade. O desafio atual consiste na promoção dos direitos humanos e na prevenção de novas infecções em jovens HSH. Para se alcançar tal desafio, a luta de coletivos de defesa dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexuais (LGBT) tem contribuído para que essa parcela da população seja reconhecida e conquiste o respeito da sociedade. Passos importantes no combate ao preconceito já foram dados apesar das dificuldades existentes. Todavia, considera-se que, dado o impacto das mídias audiovisuais na vida social mais ampla, faz-se necessário maior representatividade de gays para que estes não figurem somente como doentes e subjugados. Assim, sem pretender uma interpretação unilateral, é correto afirmar a existência de mudanças em curso, pois as novelas brasileiras têm mostrado relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo com cenas de beijo e carícias, algo difícil de se imaginar, na década de 1980, por exemplo. Caso recente foi retratado pela novela ‘Liberdade, Liberdade’, exibida pela TV Globo em 2016. “Protagonizada por Ricardo Pereira e Caio Blat, a cena é considerada a primeira envolvendo sexo entre dois homens na teledramaturgia brasileira” (MARANHA, 2016, p.2). Da mesma forma que o primeiro beijo entre dois homens na novela ‘Amor à Vida’, de 2014, a cena gerou polêmica. A telenovela acontece no Brasil do século XVIII e retrata hábitos, costumes e percepções daquele período histórico. Nesse contexto, observa-se a ousadia da obra televisiva em abordar um relacionamento homossexual, algo considerado crime em uma sociedade conservadora e influenciada, em larga medida, por valores religiosos. Os personagens vividos por Caio Blat e Ricardo Pereira encontram-se às escondidas e temem serem flagrados juntos. A narrativa considera que relações homoafetivas existiam, mas as convenções sociais e a rigidez moral impunham aos gays enormes barreiras, que dificultavam a vida amorosa e profissional dos cidadãos homossexuais na época em que se desenrola a trama. A despeito dessas limitações ou dificuldades, a homossexualidade foi mostrada. A atual novela da faixa das 21 horas, exibida pela TV Globo, também aborda a questão LGBT. ‘A Força do Querer’, da autora Glória Perez, aborda os dilemas vividos por Ivana, personagem da atriz Carol Duarte, que passará por transição de gênero ao longo da trama. Já o personagem de Silvero Pereira, Nonato, é uma travesti, que atende pelo nome de Elis Miranda. Rejeitado pela família, Nonato vai do Ceará para o Rio de Janeiro, onde tenta ser artista. Sem grande aceitação, acaba trabalhando como motorista. Temendo estereótipos e preconceito, ele esconde ser travesti. Ciências da Comunicação Capítulo 14 161 A personagem Ivana não reconhece o próprio corpo como seu. Não gosta dos seus seios e prefere usar roupas masculinas, como as do irmão. Busca apoio psicológico para responder seus questionamentos e vive em permanente conflito com a mãe, que tenta fazer com que ela seja feminina, use vestidos e tenha apreço por maquiagem. Por meio da transexualidade, a autora trata de temas como identidade de gênero e orientação sexual, termos que podem provocar confusão entre os telespectadores, tornando significativa sua discussão. A sociedade dissemina a crença de que os órgãos genitais definem se alguém é homem ou mulher. Entretanto, o fator que determina se uma pessoa é homem ou mulher não é biológico, mas social. Segundo Jesus (2012), em termos biológicos, o que determina o sexo de uma pessoa é o tamanho das suas células reprodutivas (pequenas: espermatozóides, logo, macho; grandes: óvulos, por conseguinte, fêmea), e só. Isso não define o comportamento masculino ou feminino dos indivíduos: isso é determinado pela cultura, a qual classifica alguém como masculino ou feminino. Sexo é biológico e gênero, social. Ao contrário da crença comum hoje em dia, adotada por algumas vertentes científicas, entende-se que a vivência de um gênero (social, cultural) discordante com o que se esperaria de alguém de um determinado sexo (biológico) é uma questão de identidade, e não um transtorno. Esse é o caso das pessoas conhecidas como travestis, e das transexuais, que são tratadas, coletivamente, como partedo grupo que alguns chamam de ‘transgenero’, ou mais popularmente, trans. (JESUS, 2012, p. 9). Cisgênero é o termo usado para designar a pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Indivíduos não-cisgêneros, que não se identificam com o gênero a eles atribuído, são ditos trasngêneros ou trans. Segundo Jesus (2012), analisando-se a diversidade de formas de viver o gênero, dois aspectos enquadram- se na dimensão geral que denominamos de ‘transgênero’, como expressões diferentes da condição trans. A vivência do gênero pode ocorrer por: identidade (o que caracteriza transexuais e travestis) ou funcionalidade (representado por crossdressers, drag queens, drag kings e transformistas). Gênero se refere a formas de se identificar e ser identificado como homem ou mulher. Orientação sexual é a atração afetivossexual por alguém de algum gênero. Um não depende do outro. Pessoas transgênero e cisgênero podem ter qualquer orientação sexual: heterossexual, homossexual e bissexual. A transexualidade é uma questão de identidade e não corresponde a doença nem perversão sexual. “Pessoas transexuais geralmente sentem que seu corpo não está adequado à forma como pensam e se sentem, e querem corrigir isso adequando seu corpo à imagem de gênero que têm de si.” (JESUS, 2012, p. 15). Travestis são pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino, mas que não se identificam com homens ou mulheres, fazendo parte de um terceiro gênero. A maioria das travestis preferem ser ser tratadas no feminino. Portanto, diga-se “as travestis’. De acordo com Jesus (2012), deve-se ressaltar que nem toda travesti é profissional do Ciências da Comunicação Capítulo 14 162 sexo. Muitas são forçadas a transitar pela marginalidade, fazendo sexo por dinheiro, algo que ocorre devido à estigmatização, à discriminação e à exclusão social. Historicamente, a população transgênero ou trans é segregada, vítima de preconceito, já que a crença na anormalidade predomina entre uma parte da sociedade. O fato de alguém não se identificar com o gênero atribuído ao nascimento, relega tal indivíduo a uma categoria de pessoas que muitos consideram ‘anormais’. Violências físicas, psicológicas e simbólicas são constantes. De acordo com a organização internacional Transgender Europe, no período de três anos entre 2008 e 2011, trezentas e vinte e cinco pessoas trans foram assassinadas no Brasil. A maioria das vítimas são as mulheres transexuais e as travestis. Até meados de 2012, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia, noventa e três travestis e transexuais foram assassinadas. (JESUS, 2012, p. 11). Crimes são motivados pelo ódio ou aversão a características da pessoa agredida, que a identifique como parte de um grupo discriminado, segregado, apartado da sociedade. Daí o uso do termo transfobia para definir preconceito e discriminação sofridos por pessoas transgênero. Tendo em vista a reprodução de estereótipos, a propagação de preconceitos e as atitudes discriminatórias contra gays, lésbicas e pessoas trans, a televisão assume papel relevante no debate de ideias que giram entorno do assunto. Sobretudo quando se sabe que para 76,4% dos brasileiros a TV é o meio de comunicação preferido. Segundo Alcântara (2014), tal dado faz parte da ‘Pesquisa Brasileira de Mídia’, documento elaborado a pedido da Presidência da República para auxiliar na criação de política de comunicação e divulgação social do Executivo Federal. Atendo-se especificamente à audiência da novela das 21 horas, ‘A Força do Querer’, observa-se quão grande ainda é a penetração do folhetim nos lares brasileiros e como pode ser significativa sua participação na questão em destaque: segundo Peccoli (2017), a média de audiência da trama de Gloria Perez entre 03 de abril e 03 de junho deste ano (9 semanas), no PNT (Painel Nacional de Televisão), foi de 32 pontos, com 49% de participação. Em São Paulo, a média é de 32 pontos com 47% de participação e, no Rio de Janeiro, 34 pontos com 51% de participação. Dados presentes no site do IBOPE media, comprovam que a telenovela mencionada está entre os programas de maior audiência da televisão brasileira. 4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS É possível considerar que o discurso televisivo contribui para a (des)construção da representatividade gay na sociedade brasileira. A participação de tal segmento social na construção da identidade brasileira é alvo de programas de televisão e pode ser retratada de maneira pejorativa ou não. Tal abordagem depende do discurso empregado. Palavras e imagens podem enaltecer e valorizar traços culturais e comportamentais, mas também podem ser depreciativas, na dependência do contexto em que aparecem. A semântica pode ser uma das chaves para isso. De acordo com a Ciências da Comunicação Capítulo 14 163 ideologia da retórica televisiva, gays podem ser reconhecidos como parte integrante da composição cidadã da nação ou podem ser marginalizados. REFERÊNCIAS ALCÂNTARA, Diogo. Internet é o meio de comunicação que mais cresce entre brasileiros. Portal Terra, 07 mar. 2014. Disponível em:<https://www.terra.com.br/economia/internet-e-o-meio-decomunicacao-que-mais-cresce-entre-brasileiros,93855add93994410VgnVCM4000009bcceb0aRCRD. html>. Acesso em: 10 jun. 2017. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O discurso da intolerância: fontes para o estudo do racismo. In: Fontes históricas: abordagens e métodos. São Paulo: Faculdade de Ciências e Letras-Unesp. Campus de Assis. Programa de Pós-Graduação em História, 1996. p. 21-32. DESCOBERTA da Aids completa 30 anos. Portal Brasil, 06 jun. 2011. Disponível em:<https://www. brasil.gov.br/saude/2011/06/descoberta-da-aids-completa-30-anos>. Acesso em: 10 jun. 2017. GIANNA, Maria Clara. Aids: novos e velhos desafios. Revista Ser Médico, São Paulo, n.78, p.1215, jan./mar. 2017. GREGOLIN, Maria do Rosario. Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades. Comunicação, mídia e consumo, São Paulo, v. 4, n.11, p.11-25, nov. 2007. 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PECCOLI, Vitor. ‘A Força do Querer’ tem recorde em quatro anos no país e Globo dispara na principal praça da Record. TV Foco, 07 jun. 2017. Disponível em:<http://www.otvfoco.com.br/aforca-do-querer-tem-recorde-em-quatro-anos-no-pais-e-globo-dispara-na-principal-praca-da-record/>. Acesso em: 10 jun. 2017. POESCHL, Gabrielle; VENÂNCIO, Joana; COSTA, Daniel. Consequências da (não) revelação da homossexualidade e preconceito sexual: o ponto de vista das pessoas homossexuais. Psicologia, Lisboa, v. 26, n.1, 2012. Disponível em:<http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0874-20492012000100003>. Acesso em: 10 jun. 2017. Ciências da Comunicação Capítulo 14 164 CAPÍTULO 15 O HOMEM TRANS NA PUBLICIDADE: UMA ANÁLISE DO ANÚNCIO UNLIMITED COURAGE, DA MARCA NIKE Nicolau Jordan Girardi Graduação em Publicidade e Propaganda pela Universidade do Vale do Itajaí. Itajaí - SC Adriana Stela Bassini Edral Professora do Curso de Publicidade e Propaganda da UNIVALI – Universidade do Vale do Itajaí. Mestra pela UNISUL – Universidade de Santa Catarina no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem. Itajaí - SC RESUMO: A discussão sobre identidade de gênero e a aparição de pessoas transgêneros na mídia ganharam força nos últimos anos, o que pode ser ilustrado pelas campanhas veiculadas no Brasil a partir de 2015 utilizando protagonistas trans. Entretanto, o assunto se tornou tema de estudos e análises filosóficas há muito mais tempo. Pensadores como Judith Butler, Paul B. Preciado, Virginie Despentes e Djamila Ribeiro trouxeram outra visão do que seria gênero. Este trabalho tem o objetivo de analisar com cunho qualitativo como o homem transgênero está sendo representado na publicidade, fazendo uma interface com os sentidos percebidos no anúncio Unlimited Courage, da marca Nike, usado e embasado no método de Estudos Culturais. Ao mesmo tempo em que a publicidade deu lugar a um Ciências da Comunicação personagem transgênero muito seguro de si, está apresenta uma voz off que “rouba” o lugar de fala do sujeito trans e o questiona em toda a narrativa. PALAVRAS-CHAVE: Identidade de Gênero. Visibilidade Trans na publicidade. Consumo e comportamento. Estudos Culturais. ABSTRACT: The debate over gender identity and the presence of transgender subjects on the media have won strength over the last years, what could illustrated by broadcasted campaigns in 2015, in Brazil, using transgender protagonists. However, this matter became theme of philosophical analysis and studies long ago. Philosophers as Judith Butler, Paul B. Preciado, Virginie Despentes and Djamila Ribeiro have brought other points of view on what could be gender studies. This work aims to analyze, through a qualitative research, how the trans man is being represented on advertising pieces, relating the image of the trans man to the meanings perceived in the ad Unlimited Courage, by Nike, based on the Cultural Studies methodology. At the same time the ad has given place to a transgender character that is very confident, there is always a present voice that “steals” the trans subject’s place of speech, questioning him throughout the narrative. PALAVRAS-CHAVE: Gender Identity. Trans Visibility in Advertising. Consumer Behavior. Capítulo 15 165 Cultural Studies. INTRODUÇÃO O cenário transgênero vem ganhando espaço e visibilidade e nos últimos anos se tornou público-alvo de campanhas publicitárias (DUARTE; SILVA, 2017), pauta de movimentos sociais, mudanças legislativas, teorias filosóficas e objeto de estudo da Psicologia e Medicina. Entretanto, mesmo com a desconstrução social que está se solidificando a “passos curtos”, a identidade de gênero de acordo com teóricos de gênero, como Judith Butler (1990), ainda é um problema cultural e social muito presente. O conteúdo da publicidade muda conforme os acontecimentos sociais e culturais do seu público, esta também, é influenciada pela legislação, a qual precisa seguir. A publicidade tem o poder de emocionar, impactar e também segundo Duarte e Silva (2017) influenciar a opinião pública. Contudo, não se pode ignorar que a publicidade produz o que vende, promove, se diferencia e cria vínculo com seus consumidores, e não necessariamente se preocupa com a causa proposta em sua campanha publicitária. Com o embasamento de teorias que contextualizam gênero, transgênero, sociedade, cultura e publicidade, o presente trabalho analisa o discurso da campanha Unlimited You, da marca Nike, objeto de pesquisa desse artigo. O atleta transgênero Chris Mosier, primeiro homem transgênero a participar de uma Olimpíada, é também protagonista desse anúncio, o primeiro homem trans a participar de uma campanha publicitária. Esse trabalho atua com a seguinte pergunta: Quais são os sentidos sobre a identidade transgênero presentes no anúncio Unlimited Courage, da campanha Unlimited You e quais são seus efeitos sobre a questão transgênero? Assim, seu objetivo geral é analisar os sentidos sobre a identidade transgênero presentes nos elementos discursivos do anúncio Unlimited Courage, percebendo quais seus efeitos sobre a questão transgênero. Como objetivos específicos, tem-se: a) investigar o contexto social e cultural referentes às condições de produção do anúncio Unlimited Courage, da campanha Unlimited You; b) identificar nos discursos e nas imagens do anúncio Unlimited Courage, elementos de consenso e dissenso com a Teoria de Gênero; e c) analisar os sentidos construídos sobre a identidade transgênero a partir do anúncio. A metodologia de pesquisa utilizada para construção do trabalho passa pela abordagem dos Estudos Culturais, que permite um olhar de abrangência e de teorias multidisciplinares que se fundem, onde foi possível realizar a análise da campanha publicitária Unlimited Courage, da marca Nike. O presente trabalho tem a importância de difundir o questionamento sobre a questão de gênero na publicidade, cuja visibilidade tem sido cada vez mais relevante e crucial nas minúcias que constituem a sociedade. Ciências da Comunicação Capítulo 15 166 GÊNERO Em entrevista na edição especial da revista Cult, Quuer cultura e subversões das identidades, Judith Butler (2016), define gênero como o ato da “contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de um quadro regulatório altamente rígido e que se cristaliza ao longo do tempo”. A filósofa e ativista defende que, se tornar um sujeito feminino ou masculino, não acontece em um único ato ou prática e nem mesmo é algo natural. É sim uma construção que parte do que fazemos não podendo ser deduzida por um corpo, senão do efeito de discursos, concluindo desta forma que o gênero, sobretudo é performativo. O movimento feminista foi “porta de entrada” para o diálogo e discurso sobre gênero. Judith Butler (1990), o movimento não é apenas sobre o direito das mulheres, mas também sobre a desconstrução do que se chama “mulheres”. Para a autora se trata de provocar o poder normativo que a sociedade confunde como “verdade” diante das questões de gênero. Butler (2016) defende todo tipo de identidade de gênero que oprime as singularidades humanas que não se encaixam, que não são “adequadas” ou “corretas” no cenário da dicotomia na qual entendemos as relações entre pessoas “concretas”. Assim, ela se opõe às filosofias tradicionais que ainda permeiam a sociedade contemporânea, que tratariam o sujeito transgênero como aberração ou anomalia. A autora também defende que o ser excluído, seja ele transgênero, negro e outros, é produzido em um discurso em que seu lugar é o silêncio, o que, nos termos sociais, significa que o excluído não teria o poder de existir. A mesma, luta pela liberdade desses sujeitos excluídos, que precisam existir e entrar no cenário social atual. Rompendo com as classificações e dando lugar às expressões singulares dos sujeitos, em respeito às individualidades contra um movimento que tenta proibir, silenciar e condenar os excluídos. SOCIEDADE, CULTURA E PUBLICIDADE TRANS A sociedade atual, de acordo com Baudrillard (2009), pensa e fala como sociedade de consumo. Está consome e consome-se, assim a publicidade vende esta ideia e cria a moral da modernidade com imagem e narcisismo. Entretanto, na visão de Bauman (2008), os produtos e serviços sempre precisam estar à frente e alimentando esta sociedade consumista com tendências. Uma estratégia nesta sociedade é a do pertencimento, que substituem os “totens” originários por outra coisa. Para um sujeito coexistir nessa sociedade ele precisa aparecer, precisa pertencer a algo. Um exemplo que pode ser dado é as novas redes sócias, se uma pessoa não está nas redes sociais, ela não existe. Neste sentido, o sujeito transgênero necessita pertencer a algo. Gaigher e Silva (2017) discutem a cultura como uma construção da história de um povo, que Ciências da Comunicação Capítulo 15 167 transforma comportamentos coletivos e modos de ser pessoais. Afirmando isto, não se pode ignorar a individualidade do ser e as vertentes variáveis de um conjunto social, como o caso dos sujeitos transgêneros. No entanto, para um melhor entendimento destas questões, é necessário entender o que é a identidade e a construção do sujeito na sociedade. Hall (2006) relata que as velhas identidades, por um longo período, estabilizaram o mundo social, contudo vem sofrendo declínio e com isto surge novas identidades resultando o sujeito moderno, perante isto pode-se dizer que o indivíduo transgênero faz parte desse novo elemento. Preciado (2002) defende que o gênero/a identidade é um ato político e Hall (2006) expõe que a identidade muda de acordo com como o sujeito é representado e que por vezes isto resulta não como uma mudança de política de identidade, mas sim, mudança política de diferença. Contudo, mesmo que seja reconhecida a existência de tal diferença, não significa que esta é respeitada e tratada como normativa. Assim, entende-se a importância da publicidade dialogar com o sujeito trans e com a sociedade. A comunidade transgênero faz parte da sociedade. Porém, mesmo assim, é historicamente marginalizado por esta. Segundo Costa (2013), a publicidade reflete costumes e ideologias sociais, como no início dos programas de humor brasileiro em que as pessoas transgêneras foram inseridas com recursos de humor, tom grosseiro relacionado ao sexo e utilização de estereótipos. Porém, um dado relevante e que explica a mudança do “olhar” da publicidade perante o sujeito transgênero é que segundo Kotler (2007) apud Sheila Costa (2013) com base em pesquisas de marketing realizadas nos Estados Unidos o público LGBT é um mercado extremamente lucrativo. Com isto pensa-se que este tipo de consumidor vale a atenção e investimento, como por exemplo, a Netflix que em sua plataforma o conteúdo LGBT divide-se como segmento de mercado. Contudo, nas campanhas publicitárias brasileiras, o público transgênero apenas teve maior visibilidade a partir de 2015. Duarte e Silva (2017) trazem cinco anúncios em suas pesquisas e é importante notar que, destes, apenas uma teve todo o processo de produção e veiculação no Brasil (#EuUsoAssim: Outubro Rosa estrelando por Mel Candy, marca Avon). As demais apenas foram trazidas de seu país de origem e veiculas no Brasil, incluindo suas personagens transgêneros, como as marcas Elseve e L`OREAL. Não obstante, a publicidade utiliza modelos de sucesso isolados, que fogem da grande realidade vivida pelos sujeitos transgêneros, o que passa ao espectador leigo uma falsa imagem de aceitação nos diversos âmbitos sociais. De acordo com os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais em 2017, somente no Brasil, ocorreram 179 homicídios contra pessoas transgêneras e travestis. Em média, uma pessoa trans é assassinada em 48 horas. A partir disto podemos refletir que não existe uma “boa” relação entre a sociedade e o sujeito transgênero. O debate das identidades sexuais ocorre desde 1960, sendo estas definidas Ciências da Comunicação Capítulo 15 168 e construídas no decorrer da história e da cultura. Foi a partir desta linha política de inclusão que surgiram movimentos sociais e a primeira organização em prol dos direitos aos homossexuais, GLS (gays, lésbicas e simpatizantes). Porém, apenas depois se tornou mais abrangente e então tornou-se LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros). Todavia a representatividade destes é desigual na publicidade, pois enquanto um foi mencionado em 1979 (homossexuais) na publicidade, o outro (transgênero) apenas em 2015. (RODRIGUES e CARVALHO, 2015). Segundo os dados de Rodrigues e Carvalho (2015), 8,5% dos comerciais contendo relação à comunidade LGBT abordam o sujeito trans e travesti. Estes começando a ser veiculado na televisão aberta em 1999, na categoria de utensílios de limpeza com a apresentadora e travesti Rogéria, depois em 2014, uma publicidade relacionada à cidadania contou com duas travestis. Mas como mencionado anteriormente, Duarte e Silva (2017) debatem cinco anúncios publicitários (Dove, Elseve, Avon, L’Oréal Paris e Westwing) que contem transexuais ou travestis, este público ganha uma maior representatividade a partir de 2015, porém até 2016 um homem transgênero não parece ter sido representado nos anúncios publicitários veiculados no Brasil. NIKE E A REPRESENTATIVIDADE TRANS A marca Nike tem um forte posicionamento em relação à superação de seus limites, ao movimento de fazer você mesmo, tanto que seu slogan de sucesso “Just do it” remete a isso, quando o sujeito usa o produto da Nike ele pode chegar mais longe, o fato é percebido também em suas publicidades disponíveis em seu canal oficial no youtube, como a campanha Unlimited You (Você sem Limites). Em 2016, a Nike lançou sua campanha Unlimited You, contendo seis anúncios publicitários cinco destes focando em atletas que participaram das olimpíadas de 2016, na capital Rio de Janeiro no Brasil, e um conversando diretamente com o seu público. As produções audiovisuais discutiam resistência, ilimitação, dedicação, coragem, luta e comprometimento. E foi nesta campanha que, pela primeira vez no Brasil foi veiculada um anúncio publicitário contendo um homem trans. No comercial Unlimited Courage, com o primeiro atleta transgênero a ingressar na equipe americana, Chris Moiser, O atleta diz que em sua transição foi como uma mentalização, e em entrevista retirada no Meio & Mensagem (2016) relata: Eu não sabia que eu seria competitivo contra os homens; eu simplesmente o fiz. Todo o sucesso que eu tive desde então me mostrou que tudo é realmente possível. Por não me bloquear, não me limitar e realmente ir em frente, eu aprendi muito sobre mim mesmo e também tive a oportunidade de ampliar a conversa sobre a inclusão transgênero nos esportes (CHRIS MOISER, 2016). O comercial já tem 3.194.237 visualizações na plataforma Youtube, quase seis Ciências da Comunicação Capítulo 15 169 mil avaliações como “gostei” e quase 2.500 avaliadas como “não gostei”. A campanha é sutil e talvez a questão transgênero passe despercebida o que não gerou as reações recorrentes que ocorreram em outros comerciais quando retratavam a comunidade LGBT, como o caso da O Boticário, por exemplo. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Analisa-se a campanha publicitária Unlimited Courage, da marca Nike, por meio dos discursos presentes no anúncio publicitário, tendo como abordagem os Estudos Culturais, que permite uma proximidade com as narrativas e o campo dos estudos culturais, além de uma abrangência por permitir um olhar teórico multidisciplinar que ao se fundirem podem promover um novo pensar perante a cultura, assim não se prendendo a métodos estruturalistas. Moresco e Ribeiro (2015) explicam que os Estudos Culturais compõem uma linha de pesquisa baseadas, nas relações entre a cultura e a sociedade, abrangendo suas diversas formas e práticas sociais. Os Estudos Culturais buscam compreender as inter-relações das mais diversas áreas temáticas culturais, como o gênero. Mas exigem o entendimento do pesquisador, que este esteja ciente de que sua pesquisa é uma intervenção política no desenvolvimento de um olhar crítico. Segundo Stuart Hall (2003), existem duas questões nos Estudos Culturais: a amplitude que os estudos culturais podem alcançar; e a política do intelectual, a qual não necessariamente terá uma clausura teórica final. A partir disto foi feita uma análise c do anúncio publicitário Unlimited Courage, veiculado em 2016 no youtube e na TV aberta. O anúncio escolhido faz parte de uma campanha que conta com seis produções audiovisuais, nomeada Unlimited You, entretanto, somente um se utiliza de um protagonista transgênero. Contudo na publicidade isto é refletido pelas raras e quase inexistente aparições de homens trans. Assim, uma das etapas para sustentar a pesquisa é entender as concepções de gênero, transgênero, cultura e sociedade, a partir de estudos bibliográficos, para que, em segundo momento, analisar a construção do objeto que constitui no discurso (narrativa) e o produto audiovisual (imagem) e seus significados. Por fim, a narrativa e as imagens foram relacionadas com pensamentos/estudos que concordam ou se contrapõem baseadas pelas teorias de Paul Preciado, Virginie Despentes, Judith Butler e Djamila Ribeiro, tendo de fato uma análise crítica sobre Unlimited Courage e a cultura que a permeia. OBJETO DE ESTUDO Como já mencionado neste trabalho, o filme publicitário analisado é Unlimited Courage, da marca Nike que apresenta pela primeira vez na publicidade um personagem Ciências da Comunicação Capítulo 15 170 transgênero homem, o atleta Chris Mosier, veiculado em 2016 na época que acontecia a olimpíada no Brasil. O anúncio faz parte da campanha Unlimited You que conta com seis filmes publicitários, sendo que cinco apresentam atletas e suas histórias vinculadas a alguma palavra: resistência, ilimitação, dedicação, coragem, luta e comprometimento. Entretanto, a produção audiovisual publicitária contendo Chris Moiser é o único das seis produções que, além da voz do personagem há uma locução em off. É interessante ressaltar alguns elementos sobre essa produção audiovisual de 40 segundos: o primeiro é que todo o anúncio publicitário passa movimento, percebido isso no movimento de câmera, movimento do personagem durante grande parte do anúncio e elementos que fazem movimento fazendo parte da narrativa e da composição do filme, levando em conta que Chris um atleta, mas a produção audiovisual não se trata apenas da sua profissão, porém também da sua determinação, coragem e quebra de desafios tanto físicos quanto de construção social. Chris é uma figura que resistiu à normalização da masculinidade e da feminilidade perante sua performance como atleta transgênero, que antes competia com mulheres e passa a conquistar a convivência, ideia defendida por Paul Preciado (2016) em entrevista para a revista Cult. Além disso, as cores sofrem mudanças decorrentes principalmente à narração linguística, que será analisada no próximo tópico. Contudo, é importante ressaltar que dois figurinos do personagem têm as cores azuis e brancas, em destaque seu uniforme, pois estas duas cores fazem parte da bandeira transgênero e é um totem da luta trans. A LOCUÇÃO: QUEM FALA DE CHRIS? As duas vozes do anúncio são do personagem Chris Mosier e a de uma voz masculina em locução off. É importante relembrar que dos seis anúncios que compõem a campanha Unlimited You, este é o único com voz off, ao contrário dos outros que são monólogos, assim o filme publicitário já começa com uma legenda que apresenta o personagem “CHRIS MOSIER, duatleta”, em conjunto com a locução off: “Este é Chris Mosier”. A voz em off começa um diálogo com o personagem, dando a ele um bom dia. O atleta responde, dando início à dinâmica do anúncio: a voz em off pergunta, o personagem responde. A voz off apresenta Chris e parece estar em constante questionamento em relação ao atleta, utilizando de uma espécie de entrevista com o mesmo. E isso pode ser interpretado e soa como o discurso da sociedade em relação a Chris, em relação a sua trajetória até se tornar parte da seleção olímpica, mas também podendo ser muito sobre si mesmo, sobre sua transição e quem ele é. Assim, podendo partir de uma das primeiras falas da locução off: “como você Ciências da Comunicação Capítulo 15 171 sabia que seria rápido o bastante para competir com homens?”, a primeira impressão que se passa é que existe um separativo de sujeito entre Chris e homem, ou seja, separatismo entre o sujeito transgênero e cisgênero como se o atleta não fosse classificado e tão pouco um homem, mas o que é o homem? Esta discussão está presente em teorias de vários autores trazidos neste trabalho, em sua maioria mulheres, Simone de Beauvoir mencionada na obra Manifesto Contrassexual de Paul Preciado (2017), defendia que tanto mulheres quanto homens não nasciam sendo mulheres ou homens, se tornavam. Já Judith Butler (1990) argumenta que é apenas uma sequência de performance (não apenas um único ato que define o sujeito, mas uma sequência de atos, discursos e gestos), entretanto, Preciado (2014) traz uma visão que várias teorias que sustentavam a masculinidade e feminilidade se quebram ao passar do tempo, com isto, o questionamento do locutor off perde o sentido se for interpretado seu discurso com o separatismo homem vs Chris e homem cisgênero vs Chris homem transgênero, pois em suma de significados e teorias todos podemos ser homens. Outro ponto que deve ser destacado é que a fala da voz off pode soar como se ele (Chris) não tivesse a capacidade que homens 1cisgêneros tem como um sujeito transgênero2, podendo fortalecer este argumento com o questionamento seguinte da locução : “Ou forte o bastante”, remetendo que Chris provavelmente não seria rápido e forte o bastante, não por ser um meio de competitividade e sim por uma questão exclusivamente de construção de gênero e desconstrução do corpo meramente cultura, assim, colocando-o em um lugar de inferioridade, Preciado (2017) relata que esta prática é realizada para que não haja mudança no “domínio” dos homens cisgêneros heterossexuais no poder da sociedade, assim, tudo que foge deste carácter sofre e precisa ser controlado. Contudo, o questionamento do locutor analisado, usa do adjetivo “forte”, em grande parte das vezes ligado ao homem. Virginie Despentes (2016) dialoga com a problemática dos estereótipos e pressões sociais, utilizando de exemplo postos sob as mulheres, porém também sob os homens, em que os homens não podem demonstrar sensibilidade, não podem ser desprovidos da força, pois este sendo assim, não é um homem de verdade. Logo em seguida a locução parte para outra questão: o da aceitação a partir da frase “Mas como você sabia que a equipe te aceitaria?”, pois neste momento do anúncio, já não passa apenas ser necessário ser rápido, forte, corajoso, capaz, mas também quando se supera isso é necessário ter a aceitação, o sujeito precisa não apenas existir, não apenas ter sua essência, esta precisa ser reconhecida, reajustada nas normas, ou seja, aprovada por algo ou alguém que não seja o próprio sujeito e sim além deste. E mais uma vez isto pode ser reafirmado pela sequência da narrativa em off: “Ou que você teria autorização para competir”. Entretanto é importante fazer 1. Sujeito cisgênero é aquele que se identifica com o mesmo gênero que foi designado ao nascimento; 2. Sujeito transgênero é aquele que não se identifica com o gênero que foi designado ao nascimento. Ciências da Comunicação Capítulo 15 172 uma observação, o homem transgênero para ser visto com respeito e mais próximo à igualdade em relação ao homem cisgênero é necessário que ele faça muito mais do que o homem cis faz, ele precisa se superar e superar vários homens cis, e este fato ocorre, por exemplo, na desigualdade salarial entre homens e mulheres ambos cis no Brasil. O sujeito transgênero, como Butler (2016) relata em suas pesquisas, é oprimido, o discurso de voz off tem vestígios disto, pois inicia apresentando o atleta e durante todo o filme publicitário o questiona, pois este foge da normatização de um cenário social nenhum pouco “democrático”, uma vez que a expressão livre perante o corpo sofre tabus e grande resistência, mas até o fim do anuncio existe essa ruptura. Então para finalizar, quando existe uma quebra de todos esses questionamentos pelo atleta Chris, pela sua posição no cenário do esporte mundial, a voz off precisa relembrar: “Deve ter sido difícil para você! Você nunca pensou em desistir?”. E nesta última locução podemos ter dois caminhos; o primeiro de que é difícil para ele se tornar um dos melhores corredores do mundo, pois existem milhares de atletas e a vida de um atleta é baseada em muita dedicação, treinamento e superação de limites. E, o segundo viés é o que retrata sobre o processo de sua vida de transição e de reconhecimento em ser um homem, até porque o homem transgênero sempre é acompanhado após o substantivo homem com o substantivo transgênero. Embora a sociedade não faz o mesmo aos homens cisgênero e lembrado constantemente pela sociedade de maneira negativa e opressora que este nasceu em um corpo ao qual foi registrado e designado em uma posição que não o pertence, entretanto, o pertencimento é uma luta diária. Substantivo neste caso se refere ao significado de senso comum: a designação dos seres de uma mesma espécie de forma genérica. Na visão de Butler (2016), o trans é a quebra de vários paradigmas de gênero e teorias de sustentação de práticas e costumes sociais, e o sujeito que abre o discurso sobre: o que é homem, o que é mulher e qual seus lugares na sociedade. Já para Preciado (2017), é um ato político revolucionário, e é importante ressaltar neste capítulo a resposta final de Chris: “Sim, Mas eu não desisti!”, a qual é acompanhado de um silêncio e finalização. Chris apresenta seu lugar na sociedade, e que este lugar existe e não é o silêncio ou a exclusão, além de todas suas respostas apresentarem “!”, demonstrando certeza e firmeza e um posicionamento de: Chris sabe quem é, sabe seu lugar e assim a sociedade já não o afeta, pois ele já conquistou seu lugar em todos os sentidos, sendo assim não é ele que precisa lidar com isto, a sociedade que lide. O NOME DO ANÚNCIO: CORAGEM O filme publicitário analisado em seu título e conteúdo trata da coragem sem limites, mas porque este nome? A coragem em seu significado de senso comum é a bravura, a moral forte perante o perigo e o espírito forte para enfrentar situações emocionais ou moralmente difíceis, é um sentimento que não se trata da ausência do Ciências da Comunicação Capítulo 15 173 medo, mas sim da superação deste. Para o psicanalista Rocha (2013), o medo é apenas uma palavra e não um conceito, ao qual, traz sensações que mobilizam a mente e o corpo, e que muitas vezes demonstram o desprezar perante um objeto, e para ele enfrentar o medo pode resultar em uma superação, porém tanto quanto uma conquista moral de narcisismo. Segundo Lemos (2013), também psicanalista, o medo precisa ser estudado, pois é algo que tira o equilíbrio do sujeito e se trata sobretudo de um sintoma acompanhado de rupturas, marcas, vestígios na inconsciência de acontecimentos, ou um sentimento de alerta, que nos ajudou na nossa sobrevivência. Mas podemos dar um novo significado a coragem, Despentes (2016), em sua teoria e obra King Kong, relata sobre o estereótipo de homem e como este é agredido quando discute pontos que a sociedade lhe opõe na concepção de ser, como por exemplo, o homem precisa ser valente, ou quando é “obrigado” a valorizar a força mesmo quando não quer uma ou ambas estas coisas, e coragem é uma característica muito ligada ao gênero masculino e não foge desta obrigatoriedade em sua concepção de gênero, assim é interessante perceber como características, sensações, normas são concebidas e criadas em cima do que é chamado de gênero. Porém, Preciado (2017) crítica a coragem vinculada à masculinidade e à virilidade, pois cita que nenhum homem construiu uma obra literária discutindo e criticando a construção desta performance masculina como as literaturas feministas fizeram. Contudo no anúncio publicitário temos Chris Mosier como exemplo de coragem, um homem transgênero que desafia a normatividade de gênero e sua construção quando conquista o direito de primeiro atleta transgênero a fazer parte da equipe masculina. O personagem sai da zona de silêncio que Butler (1990) apresenta em sua teoria Queer. Este é o lugar destinado a homens e mulheres trans, mas o atleta passa a não existir mais nesse local de exclusão da sociedade e dá um passo ainda maior ao competir diretamente com homens cisgêneros em sua profissão perante sua coragem e determinação. Todavia toda essa construção não deveria ser uma questão, se torna uma questão e discussão quando não é aceita de fato. O sujeito trans não tem uma composição superficial, é um ser complexo e com uma vivência de desafios e obstáculos, inicialmente a do descobrimento de si mesmo e reafirmação, além de luta por direitos civis como mudança de nome e gênero para integração na sociedade e por fim procedimentos médicos como hormonização e cirurgias. A pessoa transgênero passa por momentos de tensão psicológica, mental e social, porém o atleta como mencionado foi, além disso, quando conquistou o direito de representar uma nação em um esporte de alcance olímpico, a coragem presente no filme publicitário também é remetendo e refletindo isso. Tanto que suas respostas repetidas “Eu não sabia!”, a todas as perguntas retratam esta coragem, onde ele já está em uma zona de segurança e de estabilidade consigo mesmo, pois ele teve coragem de alcançar tudo, seu direito civil, sua carreira, sua aceitação perante o que Ciências da Comunicação Capítulo 15 174 almejava e, sobretudo a coragem de ser leal consigo mesmo. O LUGAR DE FALA DE CHRIS MOSIER Neste tópico é feito uma relação entre o produto audiovisual Unlimited Courage e a obra de Djamila Ribeiro (2017), O que é lugar de fala? A autora traz uma narrativa crítica sobre o racismo patriarcal heteronormativo e relata a cultura atual em que a palavra tem muito poder, principalmente para expor atrocidades e gerar discurso de mudanças, assim podendo extrair ideias e utilizar na análise discurso do sujeito transgênero vs narrador off do comercial. Contudo, primeiramente é interessante relembrar que Butler (1990) discute o lugar de silêncio das minorias e como somente o sujeito patriarcal heteronormativa tem direito a voz e toma uma postura de dominação perante os outros sujeitos para complementar esta ideia segundo Ribeiro (2017) o discurso tem poder e controle quando sua estrutura é de imaginário social. Sendo assim, podemos inicialmente levantar alguns questionamentos nesta análise como: porque somente o anúncio contendo um sujeito trans é utilizado voz off? Porque é dado a palavra a um sujeito homem em narração off? Porque não é dado a voz/fala ao personagem Chris? Ribeiro (2017) relata o quanto o sujeito não considerado normalizado é silenciado e somente tendo o direito à fala em terceira pessoa, ou seja, não é o indivíduo que fala é o outro que fala em seu lugar. No filme publicitário, essa relação é claramente notável já na primeira cena, iniciando pelo personagem ser apresentado pela narração off e em seguida definido por esta, além de que em nenhum momento ser Chris que fala “Eu sou Chris”, “Eu sou um homem transgênero”. Porém, o discurso na comunicação é a ponte que “leva” as posições simbólicas sociais, mas que necessita o entendimento sobre essas posições para que haja a compreensão do grupo\coletividade (RIBEIRO, 2017). Este ponto no filme publicitário Unlimited Courage como na publicidade em geral que apresenta o sujeito trans apresenta um grande problema sobre a representatividade do sujeito, pois na sociedade e cultura atual a ideia e entendimento de homem/mulher trans é extremamente miserável, ou seja, a mensagem pode ser totalmente desviada e o poder desse discurso anulado. O personagem Chris Mosier sofre uma violação a sua fala de início ao fim da produção audiovisual da locução off. O atleta está na zona de rebater e reagir, assim, uma posição de defensiva ou até mesmo indiferença. Sobretudo o filme publicitário pode ser analisado como uma forma ilustrativa da realidade do lugar de fala e o que está significa, pois Chris Mosier sofre uma tentativa de silenciar sua fala e seu sujeito, o personagem sofre questionamento em todas as cenas e construções narrativas. O fato só muda no momento em que o personagem sai da sua zona defensiva e de indiferença ao mudar sua resposta e falar: “Sim, mas eu não desisti!” Assim se opõem finalmente e esta cena é o momento de desconstrução, Ciências da Comunicação Capítulo 15 175 poder de voz e como resultado silêncio de quem tinha esse poder neste caso a voz off. Ribeiro (2017) coloca o discurso frente às desigualdades e como é refletido no sujeito e em suas várias performances, nesta visão o anúncio publicitário também conversa com essa ideia, pois relata o caso de Chris Mosier ser trans e competir pela seleção olímpica composta somente por homens cisgênero até então, concluindo que nesta análise a atuação do sujeito já é a própria representação do discurso. Além de Ribeiro (2007) citar que colocar e tratar o problema de lugar do sujeito como individual, gera apenas mais distanciamento da dignidade social, até porque esta menciona que seria muito mais vantajoso e correto todos os sujeitos mesmo com suas diferenças terem direito aos mesmos espaços e poder hierárquico. E o que a autora aponta acontece no filme publicitário, pois Chris compete e está nesse ambiente ilustrado com as cenas onde se encontra no vestuário masculino e em uma corrida cercado de outros homens, porém em contrapartida este como já mencionados cisgêneros. Ribeiro (2017), explica o lugar do sujeito como tendo muita relação às suas condições sociais, ao qual definem se este é discriminado ou não da sociedade, tem ou não um lugar de cidadania e que para solucionar isto é necessário entender a estrutura social de cada grupo social. Entretanto esta abordagem pode nos fazer questionar a escolha de Chris Mosier no filme publicitário, pois ele tem um lugar de aceitação pela sua condição social, mas perante esta perspectiva gera um reflexo que não condiz com a maioria dos sujeitos trans e sua relação tanto com a sociedade quanto com o direito a fala. A autora, Ribeiro (2017) completa ao decorrer de sua obra como o regime autoritário reflete nessas vozes e quando se existe a voz mesmo que sutil, pois existe uma tentativa de combate por justificativa de crer, por exemplo, que o sujeito transgênero não tem fala e lugar. Neste sentido ao pensar que fazem dois anos do primeiro anúncio publicitário com um personagem transgênero (Unlimited Courage) não houve mais nenhum no Brasil, além de que no país o cenário transgênero passa por uma mudança de direitos e com isso gera mais visibilidade a causa e ao movimento, contudo ainda é um sujeito invisível. Por fim, a grande crítica da obra de Ribeiro (2017) que soma neste trabalho é que a mestre em filosofia política nos fala que existe apenas uma fala e um poder de fala atualmente e isto é uma pretensão social, pois não existe de forma alguma apenas uma voz como universal quando os sujeitos são diferentes e têm suas vivências divergentes, sendo assim seria ideal aceitar todas as vozes que de fato constrói a construção social, até porque questões de raça, gênero, classe e sexualidade se cruzam. E finalmente na publicidade o homem transgênero foi representado, porém não podemos ser ingênuos, pois até então apenas uma grande marca teve esta posição, sendo que no anúncio o personagem não apresenta grande poder e liberdade a fala muito menos poder a este. Talvez este fato é percebido quando se fala de sujeito transgênero pelo Ciências da Comunicação Capítulo 15 176 cuidado e medo de expressão, pois quando é feito desestabiliza a norma hegemônica é visto como agressivo e inapropriado como traz Ribeiro (2017) porque sobretudo confronta o poder. CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo do presente trabalho foi analisar os sentidos de identidade transgênero presentes nos elementos discursivos no anúncio Unlimited Courage da marca Nike, como objeto de estudo. Isto posto, o trabalho foi dividido em três etapas de investigação: a) apurar o contexto cultural e social referentes a construção do filme publicitário; b) identificar nos discursos e imagens elementos que conversem com a teoria de gênero e c) analisar sentidos construídos sobre identidade de gênero no anúncio. A pesquisa de cunho qualitativo foi elaborada com base na abordagem dos Estudos Culturais e teorias interdisciplinares. Teorias estas que discutem sociedade, cultura, multicultura, identidade, gênero e construção social. Sendo Judith Butler, Paul Preciado, Virginie Despentes e Djamila Ribeiro os principais autores alicerces da teoria de gênero. Esta pesquisa analisou dados de acordo com a metodologia citada anteriormente e por meio desta é perceptível que o cenário do sujeito transgênero na sociedade brasileira é de integração, faltando muito entendimento sobre este, principalmente se tratando dos homens trans que começam a apresentar vestígios de reivindicação ao lugar de fala. Nas teorias utilizadas para fundamentar este trabalho a visão do sujeito transgênero ter o local de silêncio definido pela sociedade é unânime, contudo “agora o lixo vai falar”. No vídeo como objeto de análise é notável a percepção do sujeito transgênero como elemento principal no produto audiovisual que introduz alguns elementos importantes que ajudam a entender que Chris está muito seguro consigo mesmo apresentando posturas ao decorrer do filme publicitário ao ser questionado como a não interrupção do seu treino e principalmente quando em cena aparece sem camisa, ou seja, remete a estar de peito aberto. Embora a narrativa do anúncio seja questionável, não existe a utilização de monólogo como nos outros filmes publicitários da campanha Unlimited You e sim um personagem off, que pode ser interpretado como o papel da sociedade a qual está em constante questionamento com este sujeito “não normativo” e que em sua maioria não sabe lidar com essa pessoa que também compõem a sociedade e nem mesmo aceita seu lugar na mesma. Assim, o elemento Coragem (condutor chave deste anúncio) tem grande importância na construção do objeto de estudo, pois em uma realidade apontada pelos teóricos de gênero, o sujeito trans é descriminalizado e diariamente tem seu lugar negado ir contra todas estas variáveis e assumir seu lugar de homem, trans e atleta, reflete em uma postura de empoderamento, luta e direito conquistado, onde se volta a Ciências da Comunicação Capítulo 15 177 sociedade/espectador que é este que precisa lidar e administrar que sim este sujeito trans faz parte da sociedade e existe. Porém o último elemento analisado e com uma essência mais “dura” discute o lugar de fala que acaba por fortalecer todos os outros elementos e abre questionamento para outros posicionamentos, porque o sujeito transgênero tem convicção de quem é este e como ser humano deseja ter fala, lugar, respeito, contudo a sociedade normatizada não consegue ter discernimentos éticos e morais sobre este e sim, utiliza de seu poder para silenciar a pessoa trans e medir a liberdade deste. Com isto é importante relatar e ter uma postura crítica que a discussão sobre identidade de gênero, por exemplo, no Brasil, começou a ganhar força apenas nos últimos anos, porém a mídia traz uma imagem distorcida, apresentando modelos isolados de sucesso e é esquecido o espaço que diferencia ficção e realidade, transparecendo mais uma estratégia do poder para controlar um sistema hierárquico onde fala no lugar destes sujeitos “invisíveis”, aos quais assumem sua existência. Contudo, não lhes permite o direito civil de ir e vir e move-se entre estes vários espaços sociais, o poder dita o lugar do sujeito. E a campanha Unlimited Courage nos apresenta esses vários fragmentos, elementos e finaliza com o poder de voz e de lugar do homem transgênero interpretado pelo atleta Chris Mosier, e é este fato e visão que faz o objeto de estudo ser tão importante e significativo. Por fim, ao decorrer deste trabalho, foi notável a falta de estudos focados no sujeito transgênero como este tendo lugar de autoria. Como Ribeiro (2017) fala em seu trabalho, é necessário que cada vez mais homens brancos cisgêneros estudem branquitude, cisgeneridade e masculinidade, como é extremamente importante o sujeito transgênero estudar e entender seu lugar e local de fala. Ter esta atitude é uma questão ética e tem o intuito de mobilizar o pensamento crítico sobre pobreza, racismo, sexismo e desigualdade. São sugeridos novos estudos críticos em relação ao poder de fala, identidade, gênero, enfatizando a falta de autores transgêneros sobre estudos de gênero como também falta de pesquisadores homens cisgênero heteronormativos sobre masculinidade e pôr fim a falta de visibilidade trans e queer na publicidade. REFERÊNCIAS BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. 3. ed. Lisboa: Edições 70, 2009. 270 p; BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 190 p; BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. 236 p. Disponível em: <https://cadernoselivros.files.wordpress. com/2017/04/butler-problemasdegenero-ocr.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2018; CAMILA DE ÁVILA DUARTE (Paraíba). Tarcisio Torres Silva. A efígie trans na publicidade brasileira. Temática, Paraíba, v. 14, n. 1, p.1-16, 8 ago. 2017. Mensal. 2018; Ciências da Comunicação Capítulo 15 178 DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. São Paulo: N-1 Edições, 2016. 127 p. Tradução Márcia Bechara; GAIGHER, Livia; CAMPELLO, Bósio. CULTURA E MULTICULTURALISMO: IDENTIDADE LGBT, TRANSEXUAIS E QUESTÕES DE GÊNERO. . 2017. Disponível em: . Acesso em: 3 fev. 2018; HALL, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Dp&a, 2006. 102 p; HALL, S. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003; JORGE, Sheila Costa. A publicidade das imagens Cristalizadas: Uma analise das representações de gênero. Revista Anagrama:: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação e-ISSN, São Paulo, v. 2, n. 7, p.1-16, 1 dez. 2013. Semestral; MENSAGEM, Meio &. Nike apresenta primeiro atleta transgênero: Chris Moiser ingressou na equipe masculina dos Estados Unidos em 2015. 2016. Patrocinado pelo SporTV. Disponível em: <http://olimpiadas.meioemensagem.com.br/2016/08/09/nike-apresenta-primeiro-atleta-trans e nero/>. Acesso em: 22 abr. 2018; NÚMERO DE ASSASSINATOS DE PESSOAS TRANS NO BRASIL É O MAIOR EM DEZ ANOS. São Paulo, 27 jan. 2018; O CONCEITO DE IDENTIDADE NOS ESTUDOS CULTURAIS BRITÂNICOS E LATINOAMERICANOS:: UM RESGATE TEÓRICO. Curitiba: Animus, v. 14, n. 27, 2015. Semestral. Disponível em: <file:///C:/Users/5656745/Downloads/13570-89729-1-PB (1).pdf>. Acesso em: 14 mar. 2018; PRECIADO, Paul B.. Manifesto contrassexual: Práticas subversivas de identidade sexual. 2. ed. São Paulo: N-1 Edições, 2017. 221 p. Tradução Maria Paula Gurgel Ribeiro; QUEER: Cultura e subversões das identidades. São Paulo: Cult, v. 6, n. 19, 1 jun. 2015. Mensal. Edição Especial; RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. 111 p; RODRIGUES, André Iribure; CARVALHO, Amanda de. Desde a Década de Setenta, em Setenta Comerciárias:: as representações LGBT na publicidade e propaganda veiculadas na televisão brasileira. Porto Alegre: 10o Encontro Nacional da História da Mídia, 2015. 15 p. Disponível em: <http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:D1XvzBjIsIMJ:www.ufrgs.br/alcar / encontros-nacionais-1/encontros-nacionais/10o-encontro-2015/historia-da-publicidade-e-dacomunicacao-institucional/desde-a-decada-de-setenta-em-setenta-comerciais-as-representac eslgbt-na-publicidade-e-propaganda-veiculadas-na-televisao-brasileira/at_download/file+&cd=2&hl=ptBR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 20 abr. 2018. UNLIMITED Courage. Direção de Nike. Estados Unidos, 2016. (040 min.), son., color. Legendado. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_gq8PO9XK2Y>. Acesso em: 5 fev. 2018. Ciências da Comunicação Capítulo 15 179 CAPÍTULO 16 VIOLAÇÃO DE DIREITOS LGBTI+ NA CAMPANHA DA RÁDIO JOVEM PAN PARA O DIA INTERNACIONAL DE COMBATE À LGBTIFOBIA Adriano Quaresma da Costa Universidade Federal do Pará, Faculdade de Comunicação. Belém - Pará Armando Leandro Ribeiro da Silva Universidade Federal do Pará, Faculdade de Comunicação. Belém - Pará Esthefany Carolyne Silva da Cruz Universidade Federal do Pará, Faculdade de Comunicação. Belém - Pará Karen Isabela Leite Alcântara Universidade Federal do Pará, Faculdade de Comunicação. Belém - Pará Matheus Henrique Cardoso Luz Universidade Federal do Pará, Faculdade de Comunicação. Belém - Pará Lorena Cruz Esteves Universidade Federal do Pará, Faculdade de Comunicação. Belém - Pará Suzana de Cassia Serrão Magalhães Universidade Federal do Pará, Faculdade de Comunicação. Belém - Pará RESUMO: Este trabalho busca analisar como Ciências da Comunicação a campanha da rádio Jovem Pan para o Dia Internacional de Combate a LGBTIfobia violou os direitos LGBTI+, assim como esmiuçar a simbologia da peça que foi veiculada no Facebook, Twitter e Instagram, nos perfis oficiais da emissora de rádio. Foram também utilizados alguns comentários retirados das publicações originais, com o fim de ilustrar a recepção do público à campanha. Tendo como base teórica autores que discutem publicidade, mídias sociais, estereótipo e violação de direitos de minorias políticas para fomentar as reflexões, como Código de Ética dos Profissionais da Propaganda (1957), Manual de Comunicação LGBT (2009), DIAS (2007), RECUERO (2009), concluiu-se que a campanha falhou ao tentar visibilizar a comunidade, reforçando um discurso preconceituoso que violou os direitos como cidadãos dessa população. PALAVRA-CHAVE: Jovem Pan. LGBTIfobia. Violação de direitos humanos. Mídias sociais. ABSTRACT: This work aims to analyze how the Jovem Pan radio advertising campaign for the International Day to Combat LGBTIphobia violated LGBTI+ rights, as well as to dissect the symbology of the ad that was posted on Facebook, Twitter and Instagram’s official profiles of the radio station. Some comments were also taken from the original publications, in order to illustrate public’s reception of Capítulo 16 180 the campaign. Based on theoretical authors who discuss advertising, social media, stereotype and violation of rights of political minorities to foster reflections, such as Propaganda Professionals Code of Ethics (1957), LGBT Communication Manual (2009), Dias (2007), Recuero (2009), concluded that the campaign failed to make the community visible, reinforcing a prejudiced discourse that violated the rights as citizens of this population. KEYWORDS: Jovem Pan. LGBTIfobia. Violations of human rights. Social media. 1 | INTRODUÇÃO Há 28 anos, no dia 17 de maio, a Organização Mundial de Saúde (OMS) deixou de considerar a homossexualidade como doença, um marco na luta pelos direitos LGBTI+. Foi instituído nesta data, em 1992, o Dia Internacional de Combate à LGBTfobia para lembrar essa importante conquista e protestar contra toda violência e discriminação que a comunidade homoafetiva e que se encontra fora da heteronormatividade sofre. De acordo com a relatório realizado pelo Grupo Gay da Bahia, o Brasil está em primeiro lugar no continente americano em número de homicídios de pessoas LGBT, além de ser o país que mais mata transsexuais no mundo (MOTT; MICHELS; PAULINHO, 2017, p.14). Estes dados evidenciam o poder do discurso de ódio e fomentam a necessidade do combate de tais práticas. Por este motivo, neste estudo será feita uma análise crítica à violação dos direitos LGBTI+ gerada pela campanha do Dia Internacional de Combate à LGBTfobia da empresa Jovem Pan, na qual, como será demonstrado nesta pesquisa, deixa margem para uma interpretação que faz apologia à violência e que é conivente com os estereótipos de sexualidade. A campanha produziu grande impacto nas redes sociais, contando com diversos comentários e reações que deram visibilidade às pessoas que se sentiram diretamente afetadas pelo discurso irresponsável da emissora de rádio e direcionaram as críticas atribuídas neste artigo à peça e ao texto que a acompanhava. Nessa pesquisa serão discutidos a publicidade, a estereotipação e os limites que não podem ser cruzados para que a integridade do ser humano, amparado pela Declaração Universal de Direitos Humanos, não seja ferida. 2 | VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS NA PUBLICIDADE Comunicação é um fenômeno social. Ela reflete a interação entre as pessoas e, para além, tratando do cenário mercadológico, das relações de consumo entre clientes e anunciantes. Para responder a essa interação, é evidente que a publicidade, enquanto maneira de comunicação, procura adequar-se a um posicionamento e atinja especificamente o público para o qual as empresas se voltam. Compreendendo, então, Ciências da Comunicação Capítulo 16 181 a sociedade como uma instância repleta de diversidade, na qual encontram-se pessoas com as mais diferentes personalidades, percebe-se, de acordo com Sant’anna (2015), o quanto a propaganda está em constante movimento com fenômenos paralelos, dos quais ela colhe subsídios. A partir desse aportes é que a publicidade se estabelece enquanto comunicação com resultados efetivos. Nesse contexto, a criação publicitária exercita as maneiras como a propaganda deve atingir o público-alvo em específico. Na visão de Kotler (2000), toda oferta de marketing traz em sua essência uma ideia básica, a qual pode influir sobre a decisão de compra dos consumidores de acordo com o seu posicionamento e direcionamento de linguagem. Nesse sentido, a diversidade de opiniões, gostos e preferências que as pessoas constroem de acordo com as vivências particulares norteiam suas posturas também enquanto consumidores de uma determinada marca. Sendo assim, as empresas têm mais sucesso ao prepararem propostas de marketing customizadas, orientando-se a partir dessas opiniões do seu público para que isso reflita nos lucros (KOTLER, 2000). Desse modo, nota-se uma comunicação que entrelaça o posicionamento das marcas à postura do próprio cliente. Assim, as práticas para a conquista desse consumidor vão sendo construídas sempre com a finalidade de lucro. Com isso, as empresas procuram tomar por base a definição específica dos seus mercados-alvo para que as campanhas publicitárias possam ser mais bem direcionadas e planejadas. Então, segmentando o público, há uma maior possibilidade de tentar entendê-lo e, assim, construir uma publicidade que dialogue com a sua realidade, produzindo seus objetivos pré-definidos, ou seja, as vendas. Para alcançar sua lucratividade, uma das estratégias usadas pela publicidade é utilizar de sensos comuns, isto é, ideias conhecidas e naturalizadas socialmente. Nesse ínterim, por mais que uma segmentação a nível macro possa auxiliar na comunicação entre empresas e público, entende-se que as pessoas, mesmo que muito semelhantes em alguns sentidos (como sexo, idade, classe social), possuem especificidades em níveis inclusive psicológicos, auxiliando em sua diferenciação. Logo, é comum utilizar um elemento que possa unificá-las, ou então, que todos daquele segmento compartilhem. Nesse sentido, ideias gerais, muitas vezes incorretas e imprecisas, servem como um saber prévio partilhado socialmente (DIAS, 2007) que poderá ser entendido por todos daquele mercado segmentado e, dessa forma, dar prosseguimento ao ciclo da comunicação. Trabalha-se, portanto, a ideia dos estereótipos dentro da publicidade. Segundo Dias (2007), o termo comporta em si uma referência ao que foi pré-determinado e encontra-se fixado, solidificado. Neste contexto, trata-se basicamente a respeito de diversos fenômenos sociais que podem, ou não, refletir acerca da realidade vivencial. Como exemplo, temos a tradicional afirmação “todo brasileiro ama futebol”, que espelha uma característica social comum em uma parcela da sociedade brasileira, entretanto não reflete acerca da totalidade da população. A respeito disso, a autora Ciências da Comunicação Capítulo 16 182 comenta ainda: O fato de ele ser tomado como uma idéia que foi se solidificando ao longo do tempo e, por isso, possa ter se distanciado da “realidade”, fez com que fosse entendido como elemento falseador e pernicioso para as relações sociais. (DIAS, 2007, p. 26). Nesse sentido, entende-se que os estereótipos de alguma forma remetem a elementos sociais que, entretanto, não podem ser tomados enquanto regras que pré-determinam as características das pessoas, mas que, por serem de comum conhecimento, acabam possibilitando o entendimento da mensagem e do produto a ser oferecido. Por outro lado, ao utilizar deste recurso, a publicidade encontra alguns impasses. Quando ela usa os estereótipos para fins mercadológicos, ela cria situações ficcionais nas quais o consumo do produto/serviço entra como elemento fundamental na narrativa construída, a qual toma por base a própria realidade do cliente. A generalização que os estereótipos acrescentam ao conteúdo causa familiaridade no público por se tratar de elementos ditos comuns na realidade. Nesse sentido, por representá-la, a publicidade também auxilia a moldá-la, no sentido de que ela acaba por atualizar e difundir o esteriótipos, dando muitas vezes a impressão de que ela é a responsável por tais representações convencionais (DIAS, 2007). A exemplo, têm-se inúmeras propagandas que se utilizam da imagem da mulher como sinônimo de sexualidade e que reforçam padrões estéticos femininos como os mais admissíveis. Da mesma forma, muitos outros exemplos são visíveis envolvendo diversos atores sociais. Nesse sentido, a representação de negros, mulheres e LGBTs nas propagandas publicitárias é uma questão que levanta debates profundos a respeito dos valores e representações da sociedade atual. Em diversos casos, ainda são atribuídos estigmas sobre a população negra como força braçal da sociedade, destinados apenas a trabalhos manuais; enquanto homossexuais aparecem como figuras humorísticas, sempre alegres, caricatas, com excesso de trejeitos femininos. Sobre isso, a psicóloga social Adriane Roso alerta que quando as formas simbólicas de determinada propaganda são criadas, contribuem para reforçar e estabelecer relações de dominação ou de exclusão, isso personaliza-se como um problema de ordem ideológica (ROSO et al., 2002)1. Nesse sentido, a mídia interfere como catalisadora desse fenômeno. Para evitar isso, já há normatizações que regulamentam o tratamento distinto desses sujeitos dentro das publicidades. No caso específico dos LGBTI+, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais e Travestis (ABLGT) criou um manual próprio (MARTINS et al, 2009), contendo orientações de como esse público deve ser representado, sendo que há um incentivo à uma postura ética, pouco sensacionalista, sem banalização ou ridicularização das pessoas pelos meios de comunicação. Desse modo, o não cumprimento é entendido como violação contra os 1. Ver artigo: ROSO, Adriane et al. Cultura e ideologia: a mídia revelando estereótipos raciais e de gênero, publicado na revista Psicologia e Sociedade em 2002. Ciências da Comunicação Capítulo 16 183 direitos dos LGBTs, pautado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a qual alega que todos são iguais em dignidade e direitos (artigo 1º) e tem direito ao reconhecimento da sua personalidade jurídica (artigo 6º), passível, então, de defesa pela lei. Outrossim, há ainda um regimento que orienta a atividade publicitária como um todo. De acordo com Código de Ética dos Profissionais de Propaganda, no princípio II, que afirma que: O profissional da propaganda, cônscio do poder que a aplicação de sua técnica lhe põe nas mãos, compromete-se a não utilizá-la senão em campanhas que visem ao maior consumo dos bons produtos, à maior utilização dos bons serviços, ao progresso das boas instituições e à difusão de idéias sadias (APP, 2014). Nesse sentido, a propaganda deve ser um instrumento para o respeito ao valor humano, previsto na Declaração dos Direitos, de forma a propagar ideias verdadeiramente saudáveis para todos os públicos e, também, a respeito deles. 3 | OBJETO DE ANÁLISE E A HISTÓRIA DA MARCA “JOVEM PAN” No estudo de caso dessa pesquisa, há a análise de como os direitos dos LGBTs são violados de diferentes maneiras pela publicidade brasileira na campanha promovida pela emissora de rádio Jovem Pan. De início, um breve histórico da empresa se faz necessário2, porém, devido a escassez de materiais científicos sobre a rádio Jovem Pan, foi preciso recorrer às informações providas no site da emissora de rádio. A rádio Jovem Pan, inicialmente chamada de Rádio Panamericana S.A, realizou sua primeira transmissão no dia 3 de maio de 1944. Porém, em 1945, após ser comprada por Paulo Machado de Carvalho em dezembro de 1944, passou a integrar o Grupo das Emissoras Unidas e veio a se tornar uma “emissora de esportes”. O nome Jovem Pan surgiu em 1965, criado por Paulo Machado. Sob a direção de Antônio Augusto Amaral de Carvalho (conhecido como “Tuta”), e a grande transformação da rádio Panamericana, teve início em 1966. Já utilizando o nome atual, a rádio iniciou diversos programas com ídolos da MPB (Música Popular Brasileira) que, na época, faziam bastante sucesso na TV Record. Seus programas jornalísticos foram criados de 1970 a 1972, período no qual surgiram a “Equipe Sete Trinta”, o “Jornal de Integração Nacional” e o “Jornal da Manhã”. Hoje, por meio do sistema SAT, conta com correspondentes em Brasília, Rio de Janeiro e outras capitais do Brasil, além de profissionais correspondentes na Europa, Japão e Estados Unidos. Com seu público-alvo sendo os jovens, a emissora possui uma programação diversificada e se utiliza do humor, além de sua programação musical. Como objeto de análise deste artigo, tem-se um exemplo dessa postura, que é a 2. Ver Radio Joven Pan em: https://goo.gl/tHJrQq; e em: https://jovempan.uol.com.br/sobre. Ciências da Comunicação Capítulo 16 184 campanha “Minha Última Música” lançada pela rádio nas suas plataformas digitais no dia 17 de Maio de 2018, conhecido mundialmente como o Dia Internacional Contra a LGBTfobia. A ação buscou conscientizar a população sobre os riscos de morte diários enfrentados pela população LGBTI+ no Brasil e fazer com que todos se tornassem mais empáticos com a causa. Figura 1 - Imagem principal da Campanha “Minha Última Música” Fonte: Reprodução Google Uma análise dos aspectos simbólicos da campanha acrescenta uma nova profundidade à pesquisa. Assim, a primeira cor notada, ao olhar para a imagem, é o rosa choque utilizado no fundo. Aos poucos vamos percebendo a tipografia na cor amarelo ouro e, finalmente, a estampa de difícil entendimento utilizada na lateral direita da imagem - que após uma longa contemplação veio-se a descobrir que se trata de uma representação de uma nota musical em pedaços, como se estivesse quebrada. “A cor rosa simboliza a força dos fracos, como o charme e amabilidade”. (HELLER, 2013, p. 398). A fim de demonstrar a força dos LGBTI+, utilizou-se do rosa, provavelmente, com o intuito de ocasionar amabilidade no público. Entretanto, em uma pesquisa feita por Heller (2013), com dois mil homens e mulheres, entre 14 e 97 anos, na Alemanha, os pesquisados, espontaneamente citaram, a cor rosa pink como a menos favorita, associando a tonalidade à vulgaridade. Ou seja, acredita-se que cor escolhida para o fundo da imagem acabou não sendo a mais apropriada para a temática da campanha. Além disso, a cor amarela, utilizada na tipografia da peça, é considerada a cor mais ambígua entre todas, de acordo com Heller (2013, p. 152). O amarelo é a cor do otimismo – mas também da irritação, da hipocrisia e da inveja. Ele é a cor da iluminação, do entendimento; mas é também a cor dos desprezados e dos traidores. É assim, extremamente ambígua, a cor amarela. A tonalidade amarelo ouro, selecionada para fazer parte da composição da peça, é associada à beleza e ao caráter valioso de algo, de acordo com a pesquisa feita Ciências da Comunicação Capítulo 16 185 por Heller (2013). Quando as duas cores são analisadas, percebe-se que não houve uma preocupação com as sensações que são despertadas no público, quando este se depara com estas cores. Além do fato de que a combinação de cores não é harmônica e causa um desconforto visual. Muito discretamente, utilizado na estampa na lateral direita da peça, temos a cor violeta. Para Farina et al. (2006), é uma cor comumente associada afetivamente à características negativas (engano, violência, furto, agressão, entre outros). Juntamente com a simbologia das cores usadas, a linguagem verbal também transmite uma mensagem. O texto da peça, caracterizado por uma tipografia sem serifa e mais grossa, busca chamar atenção para a hashtag #MinhaÚltimaMúsica e lembrar da seriedade do tema abordado na campanha. Logo abaixo, tem-se a seguinte descrição: “A LGBTfobia mata uma pessoa por dia no Brasil. Se você fosse a próxima vítima, qual seria a última música que você pediria?”. Um dos sentidos que se pode interpretar na campanha “Minha Última Música” é fazer com que a sociedade se torne mais empática com aqueles que enfrentam riscos de morte diariamente, somente pelo fato de não se encaixarem nos padrões de relacionamento impostos socialmente. Em comentário para a redação da revista Meio e Mensagem, a agência Lew’Lara/TBWA, idealizadora da campanha publicitária, posicionou-se da seguinte forma: O Brasil tem muitas estatísticas tristes. Infelizmente, uma delas é o assassinato de um LGBTI a cada 25 horas, nos colocando como o país que mais mata LGBTIs no mundo. A campanha tem como objetivo chamar a atenção das pessoas para essa estatística aterradora, trazendo o assunto para a pauta, fazendo as pessoas refletirem sobre o fato terrível de que um brasileiro morre diariamente apenas por causa de sua orientação sexual. Ao convidar no programa de rádio os ouvintes a - no lugar de pedirem a sua música favorita - pedirem a possível última música que ouviriam em vida, sugerimos uma reflexão delicada: todos nos imaginarmos como uma vítima dessa violência sem sentido. (Agência Lew’Lara/TBWA, Meio e Mensagem, 2018).3 Dessa forma, tentar colocar as pessoas no lugar das vítimas de LGBTIfobia foi a ideia principal que permeou a campanha, porém a execução acabou gerando uma repercussão extremamente negativa para a marca, principalmente no ambiente digital, pois colocar-se no lugar de vítima de um sistema opressor pode trazer ainda mais sentimentos negativos sobre ser LGBTI+ num contexto violento e de muitos preconceitos. 4 | REPERCUSSÃO NAS REDES SOCIAIS Para entender a recepção e difusão da publicidade nas redes sociais, foi analisada a repercussão nas plataformas Facebook, Twitter e Instagram. Abaixo, uma tabela com as interações encontradas: 3. Ver matéria disponível em Meio & Mensagem: https://goo.gl/eXshp4 Ciências da Comunicação Capítulo 16 186 Total: 8,5 mil Reações Grr: 7,7 mil (90%) Triste: 334 (4%) Haha:234 (2,7%) Curtir: 112 (1,3%) 3,3 mil Comentários 1.726 Compartilhamentos Tabela 1 - Dados coletados do Facebook até o dia 06/06/2018 Fonte: Elaboração própria. 665 Curtidas 3,4 mil Comentários 231 Retweets Tabela 2 - Dados coletados do Twitter até o dia 06/06/2018 Fonte: Elaboração própria 949 Curtidas 5.940 Comentários Tabela 3 - Dados coletados do Instagram até o dia 14/06/2018 Fonte: Elaboração própria Partindo disso, tem-se a visão de Recuero (2009) que coloca os atores dessas interações como o primeiro elemento das redes sociais, aqueles que vão moldálas, baseados nas relações construídas nesses meios. Além disso, esses espaços constituem-se como representações desses atores, servindo para expressar seus discursos e outros elementos individuais. Ademais, Recuero (2009) afirma que toda campanha publicitária online preza por uma interação com seu público usuário/espectador, e esse processo, em seu tipo ideal, necessita de uma resposta de satisfação dos atores envolvidos. Com isso, a produção do material publicitário acaba sendo direcionada para públicos específicos, de maneira a dialogar com sua realidade e vivências. Entretanto, é perceptível que o objeto em questão não teve o cuidado de realizar uma pesquisa adequada acerca do público ao qual se referia e desejava atingir, visto que o retorno obtido foi majoritariamente de reações negativas no Facebook (94%, somados as reações “Grr” - que quer dizer raiva - e “Triste”). A falha é reforçada ao notar-se que a campanha utiliza referenciais subvertidos, como um tipo de humor inapropriado e trabalha em cima de sensos comuns que não se encaixam para um data de resistência, como alguns comentários retirados do Facebook denotam, o primeiro com 2,3 mil reações e 29 comentários e o segundo com 1,8 mil reações e 12 respostas: [Comentário 1]: Como que uma campanha dessa vai pro ar? Ciências da Comunicação Capítulo 16 187 Brieffing, redator, designer, aprovação, passa por um monte de gente e não tem UM pra falar “meu ta meio estranho isso” ??????????? de extremo mal gosto, ofensivo, parabéns vocês estão disparados na disputa pelo prêmio de pior publicidade do ano hein parabéns a equipe. (Comentário retirado do Facebook). [Comentário 2]: Eu não quero pensar em qual seria minha última música Jovem Pan porque eu NÃO quero pensar que eu posso virar estatística todo dia nesse país. Eu quero pensar que músicas vou escutar durante TODA minha expectativa de vida como cidadão comum! Eu quero a trilha sonora da minha vida e não a última música! Não quero celebrar o momento que perderei minha vida pra um ser humano cujo ódio não pôde guardar dentro de si. (Comentário retirado do Facebook). E outros comentários, com o mesmo teor, retirados do Twitter. O primeiro com 155 retweets, 8 comentários e 299 curtidas e o segundo com 19 retweets, 96 curtidas e 1 comentário: [Comentário 1]: No Dia Internacional Contra a Homofobia, a Rádio Jovem Pan lança a campanha #MinhaÚltimaMúsica para que LGBTs digam qual última música gostariam de ouvir antes de morrer. Isso não é mau gosto, não é falta de noção, não é sem querer, o nome disso é escárnio (Comentário retirado do Twitter). [Comentário 2]: Se vcs estão preocupados MESMO com a nossa vida, @ radiojovempan, não perguntem qual será a #MinhaÚltimaMusica, mas ajudem a construir uma sociedade onde eu não precise pensar nisso, e que eu possa ter milhares de trilhas, em uma vida longa, coberta de dignidade e respeito (Comentário retirado do Twitter). Por fim, um comentário retirado do Instagram, com 1664 curtidas e 2 comentários: [Comentário 1]: CAMPANHA PÉSSIMA. Gente, que falta de noção. Que falta de tato e empatia. Bota uma galera lgbt pra aprovar uma pauta que voces tem zero conhecimento, mas nao brinca com A MORTE DE LGBT. O Brasil é o país que mais mata LGBT no MUNDO. Eu tenho medo de sair na rua com a minha namorada e morrer, eu nao fico pensando qual seria minha ultima musica, eu fico pensando pra qual canto eu posso correr pra me defender se eu for atacada na rua, fico pensando em como proteger minha amiga e namorada de todas as agressoes verbais de familia e sociedade. Serio, erraram FEIO. (Comentário retirado do Instagram). Com esse olhar, é essencial ressaltar o Manual da ABLGT (MARTINS et al, 2009), que orienta os meios de comunicação em zelar para que suas referências aos LGBTI+ respeitem as particularidades desse grupo, não alimentando preconceitos, os induzindo a um sentimento de menos valia e desprezo . Logo, ao não fomentar um debate sobre o tema, não problematizar a violência contra essa população e apenas questionar qual última música o ouvinte gostaria de escutar antes de morrer, a campanha estimula justamente o contrário do que o Manual preconiza, já que banaliza o assunto e carrega um sentimento de conformidade sobre a violência LGBTIfóbica, ignorando o sentido de luta da data, interferindo e reduzindo o diálogo que o movimento tenta construir com a mídia. Em analogia com esse pensamento, DIAS (2002) afirma que as minorias políticas possuem traços culturais ou físicos característicos que são desvalorizados e invisibilizados da cultura da maioria, sendo assim excluídos e discriminados. Seria ideal, diante do simbolismo e resistência que a data da campanha em questão representa, Ciências da Comunicação Capítulo 16 188 utilizar-se de recursos e estratégias publicitárias que visassem a visibilização adequada e respeitosa da população LGBTI+, a fim de retirá-los desse processo segregador e visibilizar suas reivindicações. Outrossim, o objeto de estudo ainda levantou o questão do LGBTI+ como cidadãos de direitos. Vivarta (2006) aponta que existe uma compreensão de que o branco, heteressexual, adulto, homem e com dinheiro possui mais direitos do que os outros, os que não pertencem a esse perfil. As minorias, acabam sendo não reconhecidos com os mesmo direitos, enquadrando-se também na definição de DIAS (2002) de maioria e minoria. Aliado a isso, temos a noção de que “as imagens intencionais transmitidas pelos meios de comunicação são consumidas inocentemente pelo público, que não as vê como sistemas de valores, mas como fatos dados, um processo natural”. (ROSO et al., 2002, p. 75). Assim, ao banalizar a LGBTIfobia, a campanha acaba por colocá-la como um produto da realidade que não podemos combater, cujo cerne é tão inquebrável que o máximo de luta alcançado é escolher sua última música. A campanha perpassa também esse ideal para as pessoas que não formam o seu público-alvo, aqueles que não vão prestar atenção e interpretar a mensagem, apenas tomá-la como verdade, incentivando a perpetuação da violência. Por fim, é necessário perceber que diante de toda a repercussão negativa que a campanha obteve, a empresa não se pronunciou. Essa ausência denota falta de empatia com as necessidades sociais da população LGBTI+, em que muitos veículos midiáticos se apropriam de discursos e datas de empoderamentos de minorias apenas com intenções de abraçar esses públicos, sem necessariamente saber ou pesquisar sobre suas demandas e, como foi o caso do nosso objeto, muitas vezes reforçam discriminações inviabilizam lutas, o que indica uma falta de entendimento da linguagem e das lutas sociais, bem como de uma adequação publicitária adequada. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do caminho que este trabalho percorreu, faz-se necessário voltar a atenção para a forma como a campanha foi criada. A publicidade não conseguiu utilizar-se de sua capacidade transgressora, pois retoma os estereótipos vigentes e assim os atualiza e propaga (DIAS, 2017). Entretanto, a campanha poderia ter contribuído para a superação do senso comum sobre a população LGBTI+, e ainda além, poderia ter estimulado a criticidade para a maneira como essa população tem sido majoritariamente referenciada, retirando-a de seu patamar comumente invisibilizado e/ou caricato, para, assim, promover a conscientização e ações que permitissem sua igualdade na sociedade. É crucial também explicitar nesta discussão o papel da resposta social na internet, pois estas interações nas mídias sociais influenciaram positivamente na tentativa de inserção adequada da minoria social em questão, tendo sido fundamental Ciências da Comunicação Capítulo 16 189 na exposição do descontentamento com a campanha e na reivindicação dos direitos deste grupo social. Como foi mostrado, quando se emite uma mensagem, a interpretação vai além do que é dito: ela alcança o modo de se dizer, que não foi dito, o porque disso ter sido omitido e a forma como o consumidor vai receber isso4. A construção da campanha da Jovem Pan mostrou exatamente isso, a maneira como, mesmo que inconsciente, a publicidade ainda está impregnada de estereótipos que, mesmo pretendendo falar por várias vozes, acaba passando uma mensagem ultrapassada. A campanha poderia ter conversado com um assunto realmente importante, no contexto certo, no entanto, optou pelo modo inadequado de dizer. Portanto, desta análise surge o incentivo e uma fonte de pesquisa para que falhas como a apresentada anteriormente não se repitam. Sendo necessário, portanto, que os ideais éticos preconizados aos publicitários e à publicidade sejam seguidos, e, assim, possam realizar seus trabalhos prezando sempre pelo reconhecimento e a promoção de igualdade entre todos na sociedade, como é previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos. REFERÊNCIAS APP - Associação dos Profissionais de Propaganda. Código de Ética dos Profissionais da Propaganda. Outubro de 1957, revisado em 2014. Disponível em: http://appbrasil.org.br/app-brasil/ servicos-e-manuais/codigo-de-etica-dos-profissionais-de-propaganda/>. Acesso em: 09 jun. 2018 BORGES, Thais Machado. Passando dos limites? Mídia e transgressão – Casos brasileiros. Issue No 2, Stockholm Review Of Latin American Studies, November 2007. FARINA; Modesto; PEREZ, Clotilde; BASTOS; Dorinho. Psicodinâmica das cores em comunicação. São Paulo. Edgard Blucher. ed.5. 2006. Disponível em: <ttp://www.youblisher.com/ p/892657-Psicodinamica-das-cores-em-Comunicacao/ >. Acesso em: 09 jun. 2018. HELLER, Eva. A psicologia das cores: como as cores afetam a emoção e a razão. São Paulo: Gustavo Gili, 2013. KOTLER, Philip; KELLER, Kevin. Administração de Marketing. São Paulo: Prentice Hall, 2000. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: <https://goo.gl/arJCv1> Acesso em: 09 jun. 2018. MARTINS, Fernando; ROMÃO, Lilian; LIDNER, Liandro; REIS, Toni. Manual de Comunicação LGBT. Associação brasileira de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexuais. Ltda. 2009. Disponível em: <https://goo.gl/EAYP1P>. Acesso em: 09 jun. 2018. MOTT, Luiz; MICHELS, Eduardo; PAULINHO. Pessoas LGBT mortas no Brasil: relatório 2017. Grupo Gay da Bahia. 2017. Disponível em: <https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/12/ relatorio-2081.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2018. 4. Ver artigo: ROSO, Adriane, et al. Cultura e ideologia: a mídia revelando estereótipos raciais e de gênero, publicado na revista Psicologia e Sociedade em 2002. Ciências da Comunicação Capítulo 16 190 RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009 ROSO, Adriane; STREY, M. N.; GUARESCHI, Pedrinho; BUENO, S. M. N. Cultura e Ideologia: a mídia revelando estereótipos raciais e de gênero. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica, 2002. SANT’ANNA, Armando et al. Propaganda: teoria, técnica e prática. São Paulo: Cengage Learning, 2015. VIVARTA, Veet; CANELA, Guilherme. Mídia e Direitos Humanos. Brasília: ANDI, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2006. Ciências da Comunicação Capítulo 16 191 CAPÍTULO 17 EVIDÊNCIAS E SILÊNCIAMENTOS NOS DISCURSOS DE LÁGRIMAS CONTRA A POLÍTICA DE TOLERÂNCIA ZERO ANTI-IMIGRAÇÃO DOS USA Magali Simone de Oliveira Jornalista, graduada pela PUC/MG, mestre em Letras pela UFSJ e doutoranda em Estudos de Linguagem, na linha de Análise do Discurso pelo CEFET-MG. E-mail: magalisimone1@ gmail.com. Artigo apresentado na disciplina Tópicos Especiais em Estudos de Linguagens: Silenciamento e Evidenciamento no discurso. RESUMO: O objetivo deste artigo é evidenciar as estratégias discursivas utilizadas pelos adversários do presidente Donald Trump contra a continuação da “politica de tolerância zero” estadunidense, calcada na separação entre os “imigrantes ilegais” e suas crianças, detidas em jaulas e/ou em presídios, sem possibilidade de contato com seus pais ou responsáveis. A partir de teóricos como Pêcheux (In: Gadet e Hak, 2014) e Orlandi (2003) e (2007), pretendese identificar e descrever o que se salienta e o que se se ofusca nestes discursos repletos de silêncios. Este artigo também se propõe a refletir como os discursos fundadores mundiais e estadonidenses ajudam a construir representações identitárias capazes de elaborar discursos que dão novos sentidos às várias formas de silêncio. (Orlandi, 2007). PALAVRAS-CHAVE: Formações imaginárias; discurso fundador, discursos do silêncio; imigrantes não-legais, crianças enjauladas. Ciências da Comunicação ABSTRACT: The objective of this article is to highlight the discursive strategies used by President Donald Trump’s opponents against the continuation of the US “zero tolerance policy”, based on the separation between “illegal immigrants” and their children, held in cages and / or prisons, without possibility of contact with their parents or guardians. From the theorists such as Pêcheux (In: Gadet and Hak, 2014) and Orlandi (2003) and (2007), it is intended to identify and describe what stands out and what is obscured in these discourses full of silences. This article also aims to reflect how the founding discourses of the world and the United States help to construct representations capable of elaborating discourses that give new meanings to the various forms of silence. (Orlandi, 2007). KEYWORDS: Imaginary formations; discourse of the founder, discourses of silence; non-legal immigrants, caged children. 1 | INTRODUÇÃO Em vários países, à ideia de que a família é a base da sociedade é um discurso fundador. Para Pêcheux (In: Gadet, 2014) o discurso, como parte da linguagem, é constituído ao mesmo tempo por caraterísticas sociais e históricas em que se confrontam sujeitos que ocupam diferentes ‘lugares” em uma Capítulo 17 192 determinada sociedade. Tal premissa ajuda a identificar e descrever os efeitos de sentido causados pelo acirramento da política de tolerância zero à imigração ilegal que causou escândalo ao separar “imigrantes ilegais” de seus filhos, sobrinhos, netos ou tutelados menoes de idade. Desde o dia 19 de junho de 2018, imagens de crianças, algumas bem pequenas, detidas em jaulas, chorando e gritando por seus pais, em presídios e abrigos do Texas, nos Estados Unidos da América ganhou os holofotes da mídia em todo o mndo. A medida refletia o acirramento da política de tolerância zero à imigração ilegal imposta pelo presidente deste país, o republicano, Donald Trump. De acordo com o site News/BBC Brasil 1, durante o governo do democrata Barack Obama, imigrantes sem documentos condenados por crimes graves ou considerados “ameaça à segurança nacional” eram deportados. Os flagrados sem documentação eram presos, mas havia atenuantes neste tipo de julgamento. Além da possibilidade de entrar com recurso e de pagar fiança; laços com a comunidade e o fato de trabalharem eram levados em conta no momento de determinar ou não a deportação.2 Já com Trump, ainda segundo o site da BBC, qualquer tipo de infração ou crime pode justificar a expulsão do país. Disposto a intensificar a política de retaliação à imigração ilegal, o presidente estadunidense decretou que filhos, sobrinhos, netos ou tutelados detidos junto aos “imigrantes ilegais” fossem mantidos em presídios e abrigos separados de seus familitares e tutores. De abril até junho de 2018 mais de 2000 crianças foram submetidas a este tipo de “punição”. Mas as imagens destes meninos e meninas enjaulados, chorando, sem os cuidados de seus familiares colocou a política de tolerância zero em xeque. Integrantes da mídia e à opinião pública estadunidense e internacional, opositores do partido Democrata, e até correligionários de Trump, do partido Republicano criticaram a adoção de tal medida. Não bastasse isso, a separação das crianças de seus pais foi criticada ainda pela própria esposa do presidente, Melania Trump3 que, em um raríssimo prounciamento, disse em nota divulgada à imprensa, que “detestava ver as crianças sepraradas de suas famílias” e que esperava que imigrantes e o governo chegassem a um consenso. A ex-primeira-dama, Laura Bush, mulher do Republicano George W. Bush, em artigo no “Washington Post”, disse que a separação das crianças “parte seu coração”. Ela também acrescentou “Eu moro em estado fronteiriço ao “Texas”. Eu aprecio a necessidade de cumprir a lei e proteger nossas fronteiras; mas esta política de tolerância zero é cruel. É imoral” 4 1. Brooks, Dario. BBC Mundo. 5 questões para entender como é o processo de deportação de imigrantes ilegais nos Estados Unidos. Atualizado em 22 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/ internacional-39049799 2. Os democratas aprovaram uma lei proibindo que crianças fossem detidas em presídios com seus pais, mas a separação , segundo o site, era uma exceção. Em geral, pais e filhos eram deportados. 3. Jornal O TEMPO/RIO EL PASO. Avó brasileira está separada do neto autista há dez meses. Jornal O TEMPO. Número 7859. Ano 22. Pág. 19/06/2018. 4. Idem Ciências da Comunicação Capítulo 17 193 Pelo menos quatro estados 5 se recusaram a cumprir à ordem dada por Trump de enviar reforços militaries para as fronteiras: Colorado, Nova York, Mariland e Massachusetts. O governador de Nova York, o democrata Andrew Cuomo6, em Twitter divulgado no dia 19 de junho declarou: “Não seremos cúmplices dessa tragédia humana. Diante do tratamento desumano do governo federal com as famílias de imigrantes, Nova York não irá contribuir com a Guarda Nacional da Fronteira”. As críticas à detenção das crianças também serviram como justificativa para que os Estados Unidos decidissem abandonar a Comissão de Direitos Humanos da ONU, medida anunciada no dia 19 de junho pelo governo Trump. O acirramento desta política foi classificado como uma “medida impiedosa” por , Zeid Ra´ad al Husseim, alto comissário da ONU para Direitos Humanos, entidade que também questiona outras medidas adotadas pelos USA. Embora não tenha o hábito de recuar em suas decisões; Trump assumiu, segundo matéria do jornal O TEMPO7, ter ficado “tocado pela repetição das cenas divulgadas pela mídia que mostraram as crianças chorando”. Então, no dia 21 de junho de 2018, ele assinou um decreto determinando que as crianças fiquem no mesmo centro de detenção que seus pais8. E justificou: “todos com coração agiriam da mesma forma”. As imagens de meninos e meninas, enjaulados, chamando em espanhol por seus pais, de acordo com análise feita neste artigo, articulou três tipos de elementos consonantes ou relacionados à Análise do Discurso proposta por Pechêux e Orlandi (2007): i- as formações imaginárias9 e ii- o discurso fundador10 e iii- os discursos do silêncio11. Este artigo parte da pretensão de se fazer uma análise, usando tais conceitos, para entender as estratégias discursivas utilizadas pelos adversários e alidados de Trump para criticar a intensificação da política de tolerância zero à entrada ilegal de imigrantes nas fronteiras dos Estados Unidos; e do próprio presidente para justificar seu recuo; o que deverá ser feito a seguir. 2 | COMO AS IMAGENS DAS CRIANÇAS ENJAULADAS SE RELACIONAM COM AS FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS DE PÊCHEUX (2014) E OS DISCURSOS DE 5. Jornal O TEMPO/WASHINGTON. Quatro Estados desafiam Trump. Jornal O TEMPO. Número 7860. Ano 22. Pág. 15. Publicado em 20/06/2018. 6. Idem. 7. Jornal O TEMPO/WASHINGTON. Trump recua e suspende a separação de crianças. Jornal O TEMPO. Número 7861. Ano 22. Pág. 16. Publicado em 21/06/2018. 8. Idem 9. Pechêux (In:Gadet e Hak, 2014). 10. Orlandi (2003). 11. Orlandi (2007). Ciências da Comunicação Capítulo 17 194 SILÊNCIO DE ORLANDI (2007) Em uma explicação rasa; às formações imaginárias, segundo Pechêux (In: Gadet, 2014) remetem às posições, ou papéis sociais, que o sujeito assume em uma dada situação comunicativa. Assim, as formações imaginárias são elementos que designam o “lugar”, (ou papéis sociais) que os sujeitos como locutores e interlocutores atribuem cada um a si próprios e ao outro em um determinado ato de comunicação. …esses lugares estão representados nos processos discursivos que são colocados em jogo. Entretanto, seria ingênuo supor que o lugar como feixe de traços objetivos funciona como tal no interior do processo discursivo; ele se encontra aí representado, isto é, presente, mas transformado, em outros termos, o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro. Se assim ocorre, existem nos mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que estabelecem as relações (objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas situações) (Pêcheux In: Gadet, 2014, pág. 81). Assim para Pêcheux (In: Gadet, 2014) todo processo discursivo relaciona- se com as formações imaginárias (representações que cada um faz de si e de seu interlocutor) baseadas nas seguintes relações de força: i- quem sou eu para lhe falar assim?(imagem que o locutor A faz de si); ii- quem é ele para que eu lhe fale assim?(imagem que o interlocutor B faz do locutor A), iii-quem sou eu para eles me falem assim (representação que o interloutor B faz de si mesmo) e iv- quem sou eu para que ele me fale assim? ( representação que o locutor A faz do interlocutor B) . Deste modo, as imagens das crianças enjauladas chorando se articulam com o conceito de formações imaginárias porque os sujeitos e seus interlocutores, segundo Pêcheux (2014), não são apenas pessoas que dialogam, mas são perpassados pelos papéis sociais que ocupam, pelo momento histórico que vivenciam e pela ideologia que marca o tempo e o espaço onde estão inseridos. De um lado, denominadas como locutor A, as crianças projetam imagens do lugar que ocupam (quem sou eu para lhes falar assim?); do outro; a imagem do lugar de B (adversários, opositores, mídia, opinião pública estadunidense e mundial, aliados de Trump contrários à política de tolerância zero) faz do locutor A. Nesta relação de forças há também a imagem que o locutor B faz de si mesmo e a forma como o locutor A percebe o locutor B. Assim, descrevemos à análise de tais representações feitas por meio do quadro a seguir: 1. Quadro representando o jogo de formações imaginárias nas imagens de crianças enjauladas Ciências da Comunicação Capítulo 17 195 Expressões que designam as formações imaginárias Significado da expressão Questão implícita cuja resposta subentende a formação imaginária correspondente A para B- Crianças que não Imagem que o locutor A faz Quem sou eu para lhe falar podem dizer, reivinidicar, se de si mesmo. assim? As cianças separadas denunciar, expõem a crueldade de seus pais, classificados da situação. Ao chorar e como “criminosos”, não têm chamar: “pai, “mãe”, “tio voz. Mas em seu discurso de (a)”,”avó (a)”. Ou ao responder, lágrimas, em seu (não) poder boa parte em espanhol, às dizer - pois são menores e perguntas dos repórteres. não respondem por seus “Sou da Guatemala, de Costa atos – explicitam, salientam Rica, do México, por exemplo, a crueldade da política de provocam sentimentos de tolerância zero à imigração do solidariedade e empatia. governo Trump. B - Todos que se posicionam contra a separação as crianças e emprestam suas vozes às crianças sem voz, para denunciar a crueldade da situação. Ao assumirem-se como interlocutores das crianças, os adversários da política de tolerância zero à imigração chamam para si a responsabilidade de exigirem a reunião das famílias constituídas pelos imigrantes ilegais. B para A Imagem do lugar de B para o sujeito colocado A Imagem do lugar de B para o sujeito colocado B Quem sou eu para lhe falar assim? Mais que adversários e aliados de Trump contra a política de tolerância zero, estas pessoas se tornaramse porta-vozes de A, que não têm legitimidade para dizer, ou reivindicar algo. Quem sou eu para que ele me fale assim? São pessoas que tem consciência de seu poder de intervir a favor das crianças porque “tiveram seu coração partido”, “por desejarem a união das famílias”, “por classificarem tal prática como “cruel”, ou uma “tragédia” e ou que se recusam a obedecer as ordens do presidente. Como cidadãos cobram o fim de uma prática que repudiam: a separação dos pais e tutores de crianças indefesas. Imagem do lugar de A para o Quem sou eu para que eles sujeito colocado em B me falem assim? Os aliados e adversários de Trump se reconhecem como os únicos com poder de exigir o fim da separação das famílias de imigrantes ilegais. Assumem, assim, o dever de se comportar como porta-vozes das crianças. Assim, de acordo com a análise dessas formações imaginárias; à luz de Pêcheux (In: Gadet e Hak, 2014), fica claro a desigualdade das imagens dos sujeitos enunciadores dentro do discurso. As crianças enjauladas, vítimas do endurecimento da política contra à imigração ilegal, não ocupam os mesmos papéis sociais que seus defensores. Deste modo, articulam formações discursivas e ideológicas distintas das dos seus porta-vozes. Suas lágrimas não são secadas. Estas crianças, algumas presas há quatro Ciências da Comunicação Capítulo 17 196 meses, chamam os pais, os avós, os tios - ou outros responsáveis que ultrapassaram a fronteira com eles- mas só ouvem o silêncio. A seus pais, familiares e responsáveis também detidos, e, que, como eles (não) podem falar, é imposto “um silenciamento como parte da identidade, pois é parte constitutiva do processo de identificação, é o que lhe dá espaço diferencial, condição de movimento…” (Orlandi, 2007, pág. 49). Desta forma, segundo categorização de Orlandi(2007), os imigrantes ilegais são silenciados pelo “silêncio fundante”. Há pois, uma declinação política da significação que resulta no silenciamento como forma não de calar, mas de dizer “uma coisa”, para não deixar de dizer “outras”. Ou seja, o silêncio recorta o dizer. Esta é sua dimensão política. Essa dimensão política do silêncio está, no entanto, assentada sobre o fato de que o silêncio faz parte de todo o processo de significação (dimensão fundante do silêncio). Sem silêncio, não há sentido porque o silêncio é a matéria significativa por excelência, ou como diz Witgenstein (1961): “a relação do silêncio com a linguagem mostra a constituição essencial da linguagem”. (Orlandi, 2007, pág. 54). Deste modo, o silenciamento das crianças em seu discurso de lágirmas, segundo Orlandi (2007), é perpassado por sentidos. Embora não lhes seja concedido o direito legítimo ao dizer – são menores de idade e não responsáveis por seus atos- o fato de estarem dentro de jaulas, de terem sido detidas sem terem culpa, de chamarem por seus pais - soa como gritos que expõem a crueldade da intensificação da política de tolerância zero à imigração. Já as manifestações contrárias à política de Trump; as pessoas que deram ouvidos aos discursos de dor silenciados das crianças e seus familiares assumem como papéis sociais a função de porta-vozes destas crianças. Quebram o silêncio dos silenciados, mas por meio de um novo tipo de discurso do silêncio: o silêncio constitutivo: calcado na premissa , segundo Orlandi (2007), de que para dizer algo, é preciso não dizer alguma coisa. Assim, necessariamente, ao se dizer algo, se deixa de falar aquilo que não se considerou relevante. Segundo Orlandi (2007), a análise das formas de silêncio na linguagem é algo complexo. Deve-se partir não só de “marcas”, “conjecturas”, mas também do caráter histórico (discursivo) e também levar em conta a interdiscursividade. Ainda é necessário trabalhar com a noção de completude/incompletude e analisar as “figuras” como produtoras do processo de deslocamento retórico “como sintomas”, da marginalização dos processos de significação. Ainda é preciso levar em conta os múltiplos textos, as paráfrases. Deste modo, “ao falar pelos imigrantes ilegais”; aliados e adversários de Trump, cujos discursos foram expostos neste artigo, limitaram os “sentidos” por eles articulados para protestar contra a política de tolerância zero à imigração a uma construção discursiva constituída por sintagmas verbais e ou adjetivais de caráter patêmico, ou seja, emocional. São exemplos destas estratégias discursivas o uso de expressões como: “detestava ver as crianças sepraradas de suas famílias”; “parte meu coração”, “esta Ciências da Comunicação Capítulo 17 197 política de tolerância é cruel. E imoral”; “Não seremos cúmplices dessa tragédia humana”, ou “medida impiedosa”. Ao se posicionarem usando tais estratégias discursivas que remetem a sentidos patêmicos; salientando as emoções negativas de tristeza, solidariedade, angústia causada pela separação e encareceramento de crianças (não responsáveis por ultrapassarem a fronteira de forma ilegal); os opositores às medidas de separação das famílias de “imigrantes ilegais”; não expõem discursos de outra ordem, são assim, ignorados. Alguns, como Laura Bush, dão dicas do que é silenciado. Ela assume defender “a lei e o cumprimento das normas que limitam a entrada de imigrantes nos Estados Unidos”. Como ela, os demais defensores das crianças não discutem as regras que fundamentam a legislação de contenção à imigração, ou os critérios que definem quais imigrantes são desejáveis ou não. Ou ainda: não há discursos questionando possíveis causas da imigração como a interferência político-econômica dos Estados Unidos nos países subdesenvolvidos– como o estímulo às ditaduras militares instituídas na América do Sul, no século passado - ou à ações de empresas estadunidenses como exploradoras de madeira na Amazônia brasileira, taxações nas importações de produtos oriundos destes países e a compra de parte do pré-sal pelo USA. Tais questões, em sua interdisciplinariedade com discursos de partidos e ideológos da esquerda sul-americana, não são discutidas sequer pela mídia. Também não se questiona quem está mais suscetível a ser considerado indesejável. São os negros? Os latinos? Todos originados de países subdesenvolvidos (pobres)? Os que apresentam algum tipo de doença ou necessidade especial? São critérios ideológicos? Questões religiosas? Justificativas relacionadas ao tipo de atividade que estes imigrantes pretendem exercer no país: trabalho, estudo ou lazer? O silêncio sobre estas nuances ideológicas e políticas está carregado de sentidos constituídos por incompletudes. Assim, ainda segundo Orlandi (2007), mesmo que não tenham consciência do que dizem ao não dizer, os sujeitos estabelecem laços com o silêncio. Desta maneira, o que é silenciado é perpassado, segundo Orlandi (2007) por sentidos polissêmicos constituídos pela presença dos sujeitos sociais em seus discursos .…o silêncio é mais ainda. – ele significa por si mesmo: “O silêncio não são palavras silenciadas que guardam um silêncio sem dizer. O silêncio guarda um outro segredo que o movimento das palavras não atinge” (M. Le Bot, 1984) (Orlandi, 2007, pág. 69). Desta forma, quem exige o fim da sepração das crianças de seus pais; não discursa sobre o lema “América para americanos”, uma das principais bandeiras de Donald Trump, enquanto candidato. Apenas exigem o fim da crueldade imposta às crianças. A reviravolta no caso, quando Trump decidiu revogar o decreto e reunir os meninos e meninas detidos às suas respectivas famílias; remete a outro tipo de Ciências da Comunicação Capítulo 17 198 formação imaginária, segundo Pêcheux (In Gadet e Hak, 2014). Apesar da disparidade de visadas dos sujeitos do discurso que se confrontam em relação de força díspares; os sentidos articulados nesta nova composição de agentes sociais articulam formações discursivas e ideológicas semelhantes como demonstrado no quadro a seguir: 2. b- Quadro representando o jogo de formações imaginárias nas imagens entre opositores e Trump crianças enjauladas Expressões que designam as formações imaginárias A –Aliados e opositores de Trump que agem como porta-vozes das crianças e exigem, por meio de argumentos patêmicos, o fim da separação das famílias dos imigrantes ilegais B para A Significado da expressão Imagem do lugar A para o sujeito colocado em A. Imagem do lugar de B para o sujeito colocado A Imagem do lugar de B para o sujeito colocado B Questão implícita cuja resposta subentende a formação imaginária correspondente Quem sou eu para lhe falar assim? São familiares (a mulher), republicanos (a ex-mulher de George W. Bush); a mídia; governadores de quatro Estados, o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, a opínião pública, eleitores de Trump e seu partido. Valem-se de um discurso patêmico para exigir o fim da separação das famílias dos imigrantes ilegais. Quem é ele para que eu lhe fale assim? O presidente dos Etados Unidos, Donald Trump, único, um dos homens mais poderosos do mundo e único capaz de revogar o decreto e reunir às crianças às suas famílias. Em um regime democrático, ele deve ouvir às cobranças dos diversos agentes políticos desta sociedade. Quem sou eu para que eles me falem assim? É o presidente dos Estados Unidos. Como político, deve primar por sua imagem arranhada pela crueldade imputada às crianças, objeto de várias críticas da mídia, e dos demais agentes sociais como opositores, seus correligionários, opinião pública (eleitores). Acata às exigências , também usando discursos patêmicos. Ciências da Comunicação Capítulo 17 199 A para B Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em B Quem sou eu para que ele me fale assim? Os aliados, opositores, familiares, mídia, órgõas internacionais, opiniãopública e parte do eleitorado consciente do poder que têm cobram, por meio de discursos emotivos à reunião das famílias. Desta maneira, como na primeira análise do quadro 1, todos os discursos expostos no quadro 2 - a despeito de a relação de força entre os sujeitos ser menos desigual do observado no quadro 1- articulam formações discursivas e ideológicas semelhantes, baseando-se em sentidos patêmicos, também perpassados pelo silêncio classificado como Orlandi (2007) como constitutivo. O que é alvo de discussão de opositores e do próprio Trump são as doxas, os valores, as crenças da sociedade estadunidense sobre os limites da punição às crianças, que não podem ser responsabilizadas pela decisão de seus pais e tutores de ultrapassar a fronteira de forma classificada como “ilegal” pela justiça deste país. Trump admite ter sido “tocado pela repetição das cenas divulgadas pela mídia que mostraram as crianças chorando”. Ele também reconhece que todos “com coração”, agiriam da mesma forma (recuar), justificando, deste modo, sua decisão de reunir as famílias de imigrantes ilegais. Ficam assim silenciados nos discursos articulados pelos sujeitos A (porta- vozes das crianças) e pelo interlocutor B, Trump. As explicações patêmcias silenciam “explicações” às causas da imigração. Ao explorarem economicamente, de forma predatória, os países subdesenvolvidos, contraditoriamente, os EUA, criam um problema para si: aumentam o número de pessoas que ultrapassam as fronteiras de forma ilegal em busca das promessas de felicidade associadas ao american way of life. 3 | AS CRIANÇAS ENJAULADAS E SUA RELAÇÃO COM DISCURSOS FUNDADORES GLOBALIZANTES O caráter patêmico das manifestações contrárias à política de Trump se opondo à separação das crianças e de seus pais se articulam com doxas ligadas a discursos fundadores como a importância dos laços familiares na constituição de indivíduos capazes de respeitar normas e agir conforme os valores hegemônicos de uma dada sociedade. Assim, segundo Calhau (2005, apud Portugal)12, a falta de estrutura familiar 12. Portugal, Maria G. O papel da família em relação à criminalidade. Jurídico Certo. Publicação da Instituição Jurídico Certo. Publicado em 28/02/2018. Disponível em: https://juridicocerto.com/p/advocacia-maria-por/artigos/o-papel-da-familia-em-relacao-a-criminalidade-4340# Ciências da Comunicação Capítulo 17 200 pode gerar adultos considerados problemáticos, com dificuldade de se relacionar socialmente, ou que desenvolvam patologias como o vício das drogas e do alcoolismo, muitas vezes associado à prática de delitos. Dentro desse contexto, pode-se afirmar que existe uma relação íntima sobre a criminalidade e a base educacional oriunda da família. Assim, as transformações estruturais são notadas pelo acerco de ações iniciando com a publicação do movimento e culminando com o concretizar. Atualmente, na maioria dos índices de criminalidade analisados na sociedade pode-se observar a predominância de uma grande participação de jovens, em sua maioria de origem de famílias desestruturadas (Jurídico Certo, 2018).13 Segundo Kellner (2001), as narrativas veiculadas pela mídia estadunidense, constituída pela televisão, cinema, rádio, ou outras publicações a que os trabalhadores têm acesso em seu tempo de lazer servem como modelos de valores sociais instituindo o que deve ser considerado positivo ou negativo, moral ou imoral, sucesso ou a falta dele, e, assim por diante. Deste modo, o cinema americano, assim como algumas séries de sucesso produzidas neste país ajudam a difundir doxas hegemônicas capitalistas, divulgando valores ou instituições como a família – que tem apelo religioso, não só por sua relação com os princípios cristãos de sagrada família14, mas também pelos rituais como o casamento e a relação de respeito e hierarquia que, supostamente, deve nortear as relações familiares. Assim, por exemplo, na década de 1980, filmes como Atração Fatal15 constituiu-se como um com forte apelo moralista em defesa da instituição casamento monogâmico. Ainda conforme Kellner (2001), a antagonista, Alex (Glen Glose), seduz Dan Galanger (Michael Douglas) homem casado, integrante de uma família bem estruturada que passa a ser perseguido por esta mulher que se torna a vilã ao tentar destruir o casamento (instituição sagrada, base da família) de seu amado. 13. Tal discurso reverbera o conceito de Althusser (1980) que classifica a família como um “aparelho ideológico do Estado”, ou seja, uma instituição que padroniza gostos, valores, comportamentos adequados à ideologia hegemônica imposta pela elite. 14. O Papa João Paulo II teria classificado a família como “Santuário da vida”. Ainda segundo a visão deste papa, seria missão das famílias “guardar, revelar e comunicar ao mundo o amor e a vida. Também é ressaltado que Jesus de Nazaré teria escolhido para constituir sua Sagrada Família, um pai adotivo (José) e sua esposa, Maria, que o teria concebido virgem. Tal premissa é defendida no artigo escrito por Aquino, Felipe “ A Sagrada Família hoje”, do site da emissora católica Canção Nova. Não há data de publicação. Visto em 04/06/2018. Dispónível em : https:// formacao.cancaonova.com/familia/a-sagrada-familia-hoje/ Sentido semelhante é atribuído também por parte dos evangélicos que consideram a família de Jesus constituída por pessoas guiadas por Deus. Ver em : A Sagrada Família. Fuga para o Egito. Blog “ Atualidades da OESI- Ordem dos Servos Intercessores”.Publicado em setembro de 2013.Visto em 04/06/2018.Disponível em: http://ordemevangelica.blogspot.com/2013/12/a-sagrada-familia.html. 15 Dirigido por Adrian Lyne, o filme lançado pela Paramount Pictures, em 1987, se tornou “queiridinho” do público em todo o mundo, tornando-se cult. Foi indicado a três Oscars: melhor diretor Adrian Lyne, melhor atriz, Glen Glose e melhor atriz coadjuvante, Anne Archer. Visto em 04/06/2018. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/ filme-3106/ Ciências da Comunicação Capítulo 17 201 O outro lado de Atração fatal é a moral da história para os homens, pois os adverte de que caso se desviassem da monogamia matrimonial – nem que por uma só vez, o resultado são as desgraças e a destruição daquilo que é apresentado como a coisa mais importante da vida [no caso a família, grifo meu] (Kellner, 2001, págs. 151-152). Seguindo a mesma lógica, outras séries mais recentes, algumas dedicadas à adolescentes como The Vampire Diares16, ou mesmo Game of Thrones17, também mantém uma representação da família, que por meio destas narrativas têm acesso a padronização de gostos, valores, crenças (doxas) que, segundo Kellner (2001), “fornece o material com que muitas pessoas constroem o senso de “classe”, de etnia e raça, de nacionalidade, de sexualidade , de “nós” e “eles”. É interessante que as representações de núcleos familiares nas séries da TV estadunidense, sobretudo naquelas direcionadas ao público adolescente, como The Originals18 parecem ter sido reatualizadas. Questões como divórcio, ou as novas configurações famíliares – alguns dos integrantes desta família e outros personagens importantes são homossexuais - também são representadas e defendidas como instituições base da sociedade estadunidense. Na contemporaneidade observa-se várias composições familiares constituídas pelos laços da aliança. A consanguinidade deixou de ser condição necessária e obrigatória e cedeu espaço ao afeto em questões de laços e obrigações familiares. Assim, deixou-se de falar em família, mas em famílias, dada a existência de diversas configurações familiares. (...). A concepção da família nuclear constituída por pai, mãe e filhos a que estávamos habituados não existe mais como modelo único; a sociedade passou por inúmeras transformações e com ela o comportamento dos seus integrantes e da vida familiar. (Wirth, 2013, p.01). Assim, a separação das famílias de imigrantes ilegais de suas crianças articulam interdiscursos que remetem ao que Orlandi (2003) denomina de “discursos fundadores”, ou narrativas discursivas que fazem parte dos imaginários que permeiam as diferentes imagens pelos quais uma nação se identifica ou se sente simbolicamente representada. Assim: Nós acrescentaríamos: enunciados, como os dos discursos fundadores, aqueles que vão nos inventando, um passado inequívoco e empurrando um futuro pela frente e nos dão a sensação de estarmos dentro de uma história de um mundo 16. “The Vampire Diare”s é uma série baseada no triângulo amoroso entre dois irmãos Damon e Stefan Salvatore que disputam o amor da estudante Elena Gilbert, sem abrir mão da amizade que os une. Foi lançado em 2009, pela emissora CVW e saiu do ar, em 2017, após oito temporadas. Foi exibido no Brasil pela MTV, SBT e está disponível na Netflix. Visto em 04/07/2018. Disponível em: pt.wikipedia.org/wiki/The_Vampire_Diaries_(série_de_televisão)#Exibição 17. Baseada na obra de George. R.R Martin “A song of ice and fire” e produzida pela HBO, Game of Thrones, ou Got foi lançada em 2011. A nona e última temporada deve chegar ao público, por esta emissora a cabo, no ano que vem. Também mostra brigas internas familiares e entre os diferentes clãs pelo poder, ou seja, o trono dos sete reinos. Têm fãs em todo o mundo. Visto em 04/07/2018. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Game_of_Thrones 18. Spin-off (série originada de outra, no caso, The Vampire Diaries, produzido pela emissora CVW. Está em sua quinta e última temporada. Conta a história dos vampiros originais, a família MiKaelson, que vivem em New Orleans. Eles enfrentam perigosos inimigos, e, apesar das brigas familiares tem como mote “Always and Forever” mantra que sela o pacto de união eterna entre os irmãos e a defesa da família. Uma das personagens, Freya é lésbica e se relaciona com Keeling. Na série Hope é filha de Niklaus Mikaelson e Hayley Marshal que se torna amante, por vários episódios, do tio de sua filha, Elijah, situação aceita de forma natural. A série foi exibida até à terceira temporada pela MTV brasileira. Ciências da Comunicação Capítulo 17 202 conhecido: diga ao povo que eu fico, quem for brasileiro, siga-me, libertas que sera tamem, independência ou morte, em se plantando tudo dá. (Orlandi, 2003, pág. 12). Desta maneira, as imagens das crianças enjauladas, gritando por seus pais remeteram ainda a outros interdiscursos que remetem à discursos fundadores internacionais do século XX, como os horrores impostos aos povos europeus vitimados pelo nazismo. Ao jogarem a bomba atômica no Japão, encerrando assim a Segunda Grande Guerra Mundial; os Estados Unidos não só se tornaram os “grandes vitoriosos” de um dos maiores conflitos internacionais até o presente momento; mas se consolidaram como uma das maiores potências econômica e política, dando início a um outro tipo de confronto: a Guerra Fria que dividiu o mundo em dois blocos: o capitalista (por eles liderados) e o comunista (liderados pela URSS). Como uma das principais nações responsáveis pelo fim do terror nazista; os estadunidenses não parecem se sentir “confortáveis”, em reproduzir, por meio da política de tolerância zero contra a imigração ilegal, representações de si que resignifiquem de alguma forma, imagens associadas, interdicusivamente, com os horrores que remetem “ao legado” de Hitler e Mussolini: a morte de mais de 6 milhões de seres humanos. Assim, neste deslizamento de sentidos, as imagens das crianças enjauladas também se relacionam, ou re-significam às imagens dos filhos de judeus; de testemunhas de Jeová, de ciganos, adolescentes homossexuais, ou portadores de necessidades especiais enviados aos campos de concentração, e, separados de seus familiares para morrer. A memória discursiva de tais comparações, no entanto, circulou nas mídias sociais, como o Facebook, por meio de postagens anônimas, associando discursos de Trump aos de Hitler como demonstrado abaixo19: Figura 1- Como Hitler fez com os judeus, Trump defende que imigrantes ilegais não são humanos Desta forma, se para Hitler, pessoas de origem judia não poderiam ser 19. A tradução da imagem é a seguinte: judeus não são pessoas, eles são animais, Adolf Hitler. Imigrantes sem documentos (ou ilegais) não são pessoas, eles são animais. A segunda frase é atribuída a Trump em artigo HYPENESS/da redação. Para Donald Trump, imigrantes ilegais não são “pessoas” e “sim animais”. Ciências da Comunicação Capítulo 17 203 consideradas “humanas”, e sim classificadas como “animais”; para Trump20 e parte de seus eleitoresl, há pessoas (sobretudo os africanos, latinos, pessoas cuja religião ou ideologia possam ser consideradas ameaças à sociedade estadunidense) que, supostamente, também não seriam “humanas”. Como não humanos, tais homens, mulheres e crianças não estariam assim, aptos a conseguirem os documentos exigidos para o visto necessário à imigração “legal”. Por outro lado, o silêncio de políticos, da mídia, dos representantes de entidades como a ONU, da Anistia Internacional, dos presidentes de países como o Brasil - que teve cerca de 50 crianças separadas de seus pais neste processo – também está impregnado de discursos perpassados por silêncios. No mesmo dia em que seu marido revogou o decreto que ordenava a separação das famílias de imigrantes ilegais, Melania Trump, em viagem ao Texas, para visitar as crianças separadas de seus pais nos abrigos ali localizados, vestiu um casaco21 com os seguintes dizeres “I really don’t care. Do u?22 No dia 30/06/201823 mais de 700 manifestações, em todos os estados do USA, reuniram milhares de pessoas e ongs de ativistas contrários à separação das famílias de imigrantes ilegais. Novamente, as estratégias discursivas, mesmo reverberando discursos fundadores estadunidenses, foram perpassadas por doxas de defesa da família e contrárias à possibilidade de associações interdiscursivas implícitas à práticas cruíes do nazismo. Dois dos participantes destas manifestações, identificados como Megan e Joshua defenderam as famílias dos imigrantes ilegais. A primeira entrevistada disse que ser mãe e que teve “seu coração partido ao ver filhos separados de suas mães”. “Não posso acreditar que nós tratamos seres humanos assim.” Já Joshua, classificou como “vergonhoso que isso esteja sendo feito em nome dos Estados Unidos”. Desta forma, mesmo a articulação interdiscursiva com discursos fundadores e com as imagens de como a sociedade estadunidense se percebe, também é constituída por discursos patêmicos, perpassados por silêncios constitutivos, que em seus ditos, não dizem, ou silenciam, questionamentos sobre o caráter epistemológico das normas jurídicas que constituem as leis anti-imigração adotadas pelo país. 4 | DISCURSOS DE DESIGUALDADE QUE EVIDENCIAM OS DISCURSOS DE 20. Da Redação/ HYPNESS. Para Donald Trump imigrantes ilegais “não são pessoas” e sim “animais”. Publicado em maio de 2018. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2018/05/para-donald-trump-imigrantes-ilegais-nao-sao-pessoas-e-sim-animais/. Acesso em 24 de junho de 2018. 21. G1. Melania Trump usa casaco com frase “Eu realmente não me importo” ao viajar para visitar crianças na fronteira. Publicado em 21/06/2018. Visto em 26/06/2018. Disponível em https://g1.globo.com/mundo/noticia/melania-trump-usa-casaco-com-frase-eu-realmente-nao-me-importo-para-visitar-criancas-na-fronteira.ghtml. 22. Embora tenha atibuído à associação da escolha do casaco usado nesta visita à fake news; o episódio fez com que algumas marcas produzissem casacos semelhantes com o seguinte dizer “I really care, don´t u?. Elle. Drehmer, Raquel. Marcas criam respostas à jaqueta de Melania Trump. Publicado em 04/07/2018. Visto em 04/07/2018. Disponível em: https://elle.abril.com.br/moda/resposta-a-jaqueta-melania-trump-visita-criancas-detidas/ 23. G1- Manifestantes protestam nos Estados Unidos contra política de imigração de Trump. Jornal Nacional. Edição do dia 30/06/2018. Publicado dia 30/06/2018. Visto em 03/06/2018. Ciências da Comunicação Capítulo 17 204 SILÊNCIOS DE LOOSERS E WINNERS É comum ver em filmes e programas estadunidenses às expressões winners (vencedores, quem se sobressai, é popular, ou ascende socialmente)” e loosers (desajustados, pessoas que não se adequam aos padrões de sucesso desta sociedade). Enquanto parte dos nascidos nos EUA expôs seu repúdio moral à política de tolerância zero à imigração; os presidentes da maioria dos países de origem dos imigrantes ilegais separados de suas crianças não se manifestaram publicamente sobre a violência imputada a seus cidadãos. A linguagem como uma prática social institui novos sentidos ao se mudar os sujeitos do discurso e as formações ideológicas a que eles se filiam. Desta forma, do lado dos loosers, ou dos líderes destes países entre eles Brasil, Guatemala e Costa Rica, conscientes do que estava acontecendo, limitaram-se a acompanhar, por meio de consulados de seus paíes nos Estados Unidos, a situação dos detidos, sem interferir diretamente a favor dos cidadãos detidos. Determinado pelo caráter fundador do silêncio, o silêncio constitutivo pertence à própria ordem de sentido e preside qualquer produção de linguagem. Representa a política do silêncio com um efeito de discurso que instala o anti-implícito. Se diz “X” para não se dizer “Y”, este sendo o sentido a se descartar do dito. É o não dito que se quer evitar...(Orladi, 2007, págs 73-74). Frágeis econômica, política e socialmente, adotaram o discurso dos “loosers’, sujeitos não capazes de denunciarem a violência ou de adotarem critérios similares para a imigração de cidadãos estadunidenseses em suas fronteiras. Assim, em seu silêncio, classificado por Orlandi (2007), como silêncio local , ou “manifestação da censura”, parecem reconhecer as normas que delineiam a política de imigração e o direito de punir quem desrespeita tais regras. Por outro lado, tal silêncio pode ser visto como uma estratégia de resistência, evitando assim, provocar a ira dos USA e seu beligerante presidente. Assim: “O silêncio, mediando às relações entre linguagem, mundo e pensamento, resiste à pressão de controle exercida pela urgência da linguagem e significa de outras e muitas maneiras.” (Orlandi, 2007, p. 37). 5 | ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS REAÇÕES AOS DISCURSOS DE TOLERÂNCIA ZERO À IMIGRAÇÃO Assim como a imagem de um Donald Trump enorme frente a uma criança pequena e assustada, que ilustrou a capa da revista Time24; os presidentes dos países que tiveram “imigrantes ilegais” separados de seus filhos, mostram–se, em seu silêncio constitutivo/local, tão frágeis quanto a menininha hondurenha, de dois anos, 24. Da Redação/São Paulo. Revista Time faz capa com Trump encarando criança imigrante. Folha de São Paulo. Publicado em 21/06/2018. Visto em 04/07/2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/06/revista-time-faz-capa-com-trump-encarando-crianca-imigrante.shtml Ciências da Comunicação Capítulo 17 205 intimidada pela imagem do presidente estadunidense nesta já citada edição25. Sem ter coragem de protestarem contra o tratamento desumano imputado aos seus cidadãos, os presidentes dos países de origem dos “imigrantes ilegais” parecem reforçar a tese dos Estados Unidos - que se apoderou do adjetivo gentílico “América”, de que somente eles são “americanos”; silenciando desta forma, o fato de que “los cucarachas” são tão americanos quanto eles. A premissa de que “todos somos iguais, mas uns são mais iguais que outros”, de Orwell (1945)26 continua em vigor. Assim, no jogo de formações imaginárias, as crianças e os imigrantes ilegais são representados como “ninguéns”, sujeitos do não(poder) dizer. Aos“loosers”, é dado o tratamento oferecido aos “bad gays”: prisões, torturas físicas e psicológicas, humilhações diversas. Nesta relação de forças, em que os “imigrantes ilegais” , supostamente “não são humanos o sufiente” para cruzar as fronteiras dos USA, o american way of life nada mais é que uma versão piorada do “canto das sereias”. Seu poder de sedução ilude os incautos navegantes e exploradores, convencendo- os a “abandonarem seus barcos” fazendo-os, assim, se afogar nas profundezas do mar capitalista, da livre concorrência e da meritocracia, em que os loosers não são pessoas, mas aberrações de um bizarro circo de horrores. REFERÊNCIAS ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença/ Martins Fontes, 1998. GADET, François, HAK, Tony (Orgs). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução Berthania S. Mariani... [et.al] – 5ª ed- Campinas, SP. Editora da Unicamp. 2014. KELLNER, Douglas. A Cultura das Mídias. Estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Tradução Ivone Castilho Benedetti. Bauru. SP. EDUC, 2001. ORLANDI, ENI. (ORG). O Discurso Fundador. A formação do país e a construção da identidade nacional. Belo Horizonte. Pontes. 3ª ed. 2003. _________________ As formas do silêncio. Campinas. Editora da Unicamp, 2007. 25. Mundo/Folha de São Paulo. Em conversa telefônica de meia hora, Trump e AMLO falam de imigração e comércio. Folha de São Paulo. Disponível: Da Redação/São Paulo. Revista Time faz capa com Trump encarando criança imigrante. Folha de São Paulo. Publicado em 21/06/2018. Visto em 04/07/2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/06/revista-time-faz-capa-com-trump-encarando-crianca-imigrante.shtm Publicado em 02/07/2018. Visto em 04/07/2018. Ligado à esquerda, o presidente mexicano eleito no último dia 01/07/2018 foi uma exceção entre as lideranças dos países de origem dos imigrantes ilegais. Ele disse ter proposto a Trump um acordo comercial abrangente que possa gerar empregos e diminuir a imigração mexicana. Tal proposta vai contra a ideia do presidente estadunidense de exigir que o México construa um muro para impedir a entrada de seus cidadãos de forma ilegal nos EUA. 26. Orwell, George. A revolução dos bichos: um conto de fadas/ tradução Heitor Aquino Ferreira; posfácio Cristopher Hitchens – São Paulo: Companhia das Letras.2007. Ciências da Comunicação Capítulo 17 206 ORWELL, George. A revolução dos bichos: um conto de fadas/ tradução Heitor Aquino Ferreira; posfácio Cristopher Hitchens – São Paulo: Companhia das Letras. 2007. Jornal O TEMPO/RIO EL PASO. Avó brasileira está separada do neto autista há dez meses. Jornal O TEMPO. Número 7859. Ano 22. Pág. 19/06/2018. Jornal O TEMPO/WASHINGTON. Quatro Estados desafiam Trump. Jornal O TEMPO. Número 7860. Ano 22. Pág. 15. Publicado em 20/06/2018. Jornal O TEMPO/WASHINGTON. Trump recua e suspende a separação de crianças. Jornal O TEMPO. Número 7861. Ano 22. Pág. 16. Publicado em 21/06/2018. Aquino, Felipe “A Sagrada Família hoje”, do site da emissora católica Canção Nova. Não há data de publicação. Visto em 04/06/2018. Dispónível em: https://formacao.cancaonova.com/familia/a-sagradafamilia-hoje/ Brooks, Dario. BBC Mundo. 5 questões para entender como é o processo de deportação de imigrantes ilegais nos Estados Unidos. Atualizado em 22 de fevereiro de 2017. Disponível em: https:// www.bbc.com/portuguese/internacional-39049799 Da Redação/ HYPNESS. Para Donald Trump imigrantes ilegais “não são pessoas” e sim “animais”. Publicado em maio de 2018. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2018/05/para-donaldtrump-imigrantes-ilegais-nao-sao-pessoas-e-sim-animais/. Acesso em 24 de junho de 2018. Da Redação/ HYPNESS. Para Donald Trump imigrantes ilegais “não são pessoas” e sim “animais”. Publicado em maio de 2018. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2018/05/para-donaldtrump-imigrantes-ilegais-nao-sao-pessoas-e-sim-animais/. Acesso em 24 de junho de 2018. Elle. Drehmer, Raquel. Marcas criam respostas à jaqueta de Melania Trump. Publicado em: 04/07/2018. Visto em: 04/07/2018. Disponível em: https://elle.abril.com.br/moda/resposta-a-jaquetamelania-trump-visita-criancas-detidas/. Da Redação Folha de São Paulo/São Paulo. Revista Time faz capa com Trump encarando criança imigrante. Folha de São Paulo. Publicado em 21/06/2018. Visto em 04/07/2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/06/revista-time-faz-capa-com-trump-encarando-criancaimigrante.shtml G1. Melania Trump usa casaco com frase “Eu realmente não me importo” ao viajar para visitar crianças na fronteira. Publicado em 21/06/2018. Visto em 26/06/2018. G1- Manifestantes protestam nos Estados Unidos contra política de imigração de Trump. Jornal Nacional. Edição do dia 30/06/2018. Publicado dia 30/06/2018. Visto em 03/06/2018. Disponível em https://g1.globo.com/mundo/noticia/melania-trump-usa-casaco-com-frase-eu-realmente-nao-meimporto-para-visitar-criancas-na-fronteira.ghtml. Jurídico Certo Portugal, Maria G. O papel da família em relação à criminalidade. Jurídico Certo. Publicação da Instituição Jurídico Certo. Publicado em 28/02/2018. Disponível em: https://juridicocerto. com/p/advocacia-maria-por/artigos/o-papel-da-familia-em-relacao-a-criminalidade-4340# Mundo/Folha de São Paulo. Em conversa telefônica de meia hora, Trump e AMLO falam de imigração e comércio. Folha de São Paulo. Disponível: Da Redação/São Paulo. Revista Time faz capa com Trump encarando criança imigrante. Folha de São Paulo. Publicado em 21/06/2018. Visto em 04/07/2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/06/revista-time-faz-capa-comtrump-encarando-crianca-imigrante.shtm. Publicado em 02/07/2018. Visto em 04/07/2018. Ciências da Comunicação Capítulo 17 207 CAPÍTULO 18 O IMIGRANTE NO MEIO ACADÊMICO: ESTUDO DE CASO Benalva da Silva Vitorio Universidade Católica de Santos (UniSantos), Centro de Ciências da Educação e Comunicação - Santos – São Paulo RESUMO: Na convivência entre brasileiros e imigrantes em sala de aula, observase resistência mútua para se estabelecer comunicação, o que dificulta o processo pedagógico e compromete o exercício da cidadania. Eis, portanto, a reflexão neste trajeto discursivo, a partir de observação participante e entrevista, com objetivo de contribuir para a relação entre Nós e os Outros no contexto conturbado do processo migratório no século XXI. PALAVRAS-CHAVE: imigração; convivência; meio acadêmico. observation and interview, aiming to contribute to the relationship between Us and Others in the troubled context of the migratory process in the 21st century. KEYWORDS: immigration; coexistence; academic environment. 1 | A ARTE DA CONVIVÊNCIA No contexto do mundo globalizado, os recursos tecnológicos contribuem tanto para aproximação quanto para afastamento das pessoas que tecem relacionamentos por meio das redes sociais. Geralmente, essas pessoas, principalmente os jovens, sem conhecer com quem se comunicam trocam informações rápidas nos meios digitais a respeito de variados assuntos, colecionando “seguidores”. Quase sempre opinam e discutem de forma superficial, sem o devido conhecimento do que THE IMMIGRANT IN ACADEMIA: A CASE STUDY ABSTRACT: In the coexistence between Brazilians and immigrants in the classroom, mutual resistance is observed to establish communication, which hampers the pedagogical process and compromises the exercise of citizenship. This is the reflection on this discursive path, based on participant Ciências da Comunicação está em pauta. A esse respeito, Bauman (2004, p. 52) considerou que nos relacionamentos virtuais “não são as mensagens em si, mas seu ir e vir, sua circulação, que constitui a mensagem – não importa o conteúdo”. Assim, para o referido autor, quem entra nos chats para conversar tem “camaradas que vêm e vão, entram e saem do circuito”. Portanto, sem conhecer devidamente uns aos outros, em relacionamentos efêmeros Capítulo 18 208 e “líquidos”, os “camaradas” virtuais pertencem “ao fluxo constante de palavras e sentenças inconclusas (abreviadas, truncadas para acelerar a circulação)”. Pertencem “à conversa, não aquilo sobre o que se conversa”. Nas redes sociais, as pessoas tanto podem promover campanhas de solidariedade, conclamar para a participação em movimentos sociais, quanto eleger e destruir ídolos, manchar a reputação de figuras públicas ou privadas. Geralmente quem está por trás desses procedimentos, sobretudo os malevolentes, tem a ilusão de que está protegido na “comunidade de semelhança”, como Bauman (2004, p. 134) explica a “mixofobia”, ou seja, “impulso que conduz a ilhas de semelhança e mesmice em meio a um oceano de variedade e diferença”. Segundo esse autor, a atração exercida por uma comunidade da mesmice está “na segurança contra os riscos de que está repleta a vida cotidiana num mundo polifônico”. Contudo, considera que o abrigo nessa comunidade “não reduz os riscos, muito menos os afasta”, representa apenas paliativo para a segurança de quem teme aprender e preservar a arte da convivência com a diferença. O meio acadêmico representa oportunidade para que os jovens aprendam a tecer a arte da convivência, a partir da sala de aula. Com essa aprendizagem serão capazes de participar em comunidades reais, onde possam conviver com a diferença, estando face a face uns com os outros. Assim, a universidade, como espaço de produção do conhecimento, contribui para a formação da cidadania, promovendo a convivência e a partilha em relação à alteridade externa, evitando o perigo explicitado por Bauman (2004, pp. 134-135). Quanto mais as pessoas permanecem num ambiente uniforme, na companhia de outras “como elas”, com as quais podem “socializar-se” de modo superficial e prosaico, sem o risco de serem mal compreendidas, nem a irritante necessidade de tradução entre diferentes universos de significações, mais se tornam propensas a “desaprender” a arte de negociar um modus convivendi e significados compartilhados. Embora o ambiente universitário seja propício para aprender a arte de negociar a convivência e os significados compartilhados, tenho observado em sala de aula situações que complicam o trabalho pedagógico. Por meio do celular, os alunos formam “ilhas da mesmice”, trocando informações desvinculadas do conteúdo curricular. Nesse ambiente, considero que mais constrangedor do que o alheamento ao discurso docente é o isolamento dos alunos imigrantes, o que me levou a refletir sobre essa problemática. A imigração, que envolve sujeitos em diferentes contextos, constitui problemática que se acentua na atualidade. Portanto, proporciona “condição essencial à realização de investigações científicas e ao avanço do conhecimento”, desde que haja cooperação no meio acadêmico, como explica Gatti (2005, p. 124), enfatizando o papel do pesquisador. O pesquisador não trabalha sozinho, nem produz sozinho. A intercomunicação com pares, o trabalho em equipe, as redes de trocas de idéias e disseminação Ciências da Comunicação Capítulo 18 209 de propostas e achados de investigação, os grupos de referência temática, constituem hoje uma condição essencial à realização de investigações científicas e ao avanço do conhecimento. Para os pesquisadores mais experientes, esse diálogo permanente com grupos de referência temática torna-se fundamental ao avanço crítico e criterioso em teorizações, em metodologias, em inferências. Para os menos experientes, ou iniciantes, é fundamental para sua formação, pois não se aprende a pesquisar, não se desenvolvem habilidades de investigador apenas lendo manuais. Essa aprendizagem processa-se por interlocuções, interfaces, participações fecundas em grupos de trabalho, em redes que se criam, na vivência e convivência com pesquisadores mais maduros. Convicta na tradição latino-americana de combinar questões de várias ordens, em ações transdisciplinares, a fim de “constituir campos de trabalho a partir de temas, objetos ou problemas específicos”, como recomenda Schwartzman (1992, pp. 191198), procuro seguir os princípios expostos acima, explorando diferentes objetos de pesquisa, entre os quais a imigração, objeto de pesquisa nos dois Pós-Doutorados que realizei em Portugal, na Universidade de Coimbra (VITORIO, 2007) e na Universidade Aberta de Lisboa (VITORIO, 2015). Ao conjugar Comunicação e Cidadania no Grupo de Pesquisa que coordeno na UniSantos, procuro desenvolver pesquisas que dizem respeito não somente à satisfação dos direitos para assegurar igualdade, mas também assegurar os direitos à diferença como parte do processo democrático. No que diz respeito à comunicação, há urgência, na atualidade, para se compreender com mais clareza a complexidade dos atos comunicativos que contam, narram e constroem histórias. Referindo-se ao trabalho do jornalista, Resende (1999, p. 36) explica que “histórias são relatos, fios que tecem a ação comunicativa e que nela são tecidas pelos sujeitos-artesãos, recriadores do real, construtores do passado, do presente ou de algo maior ainda da contemporaneidade”. O autor justifica que, “na modernidade tardia, contar as histórias do mundo, além de saber contá-las, emerge de uma necessidade de compreensão do próprio mundo em que se vive”. Quanto à cidadania, a questão deve ser deslocada da sua dimensão política – “os direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais para os que nasceram em um território” – para contemplar também as práticas sociais e culturais “que dão dimensão ao pertencimento e fazem com que se sintam diferentes os que possuem uma mesma língua, formas semelhantes de organização e satisfação de suas necessidades”, como observa Canclini (1995, p. 22). Considero as instituições de ensino, em todos os níveis da educação, como espaço ideal para propagar o princípio de convivência, promovendo relação entre sujeitos e disciplinas de diferentes áreas do conhecimento para se compreender o Outro, por meio de ações pedagógicas que incluam discussão e reflexão sobre conceitos e problemáticas relacionados aos deslocamentos humanos, que acentuam o drama humanitário no século XXI. Nesse sentido, a problemática que norteou o presente artigo decorre das seguintes questões: como o imigrante universitário estabelece relações no meio acadêmico? Enfrenta dificuldades para conviver com estudantes e professores brasileiros? Consegue acompanhar os conteúdos das disciplinas do curso Ciências da Comunicação Capítulo 18 210 que frequenta? Tem facilidade para estabelecer comunicação em sala de aula? Sente interesse dos colegas brasileiros sobre a cultura de seu país de origem? Fecha-se em concha ou abre-se com espontaneidade? Diante de tais questionamentos, trabalhei com a premissa de que o imigrante universitário, principalmente quem está na categoria de refugiado, encontra dificuldades para a convivência no meio acadêmico. Geralmente, ele é considerado como o Outro, o Diferente, com dificuldade para se aproximar dos colegas de classe e até mesmo dos professores e funcionários. A tendência é o esforço para superar tanto as dificuldades com a língua para compreender os conteúdos das disciplinas quanto às vicissitudes da vida em geral. Assim, sempre isolado no meio acadêmico, reserva-se ao silêncio e à observação. A motivação para desenvolver esse trabalho foi o desejo de contribuir para a integração do estudante imigrante no meio acadêmico, a fim de despertar interesse para o conhecimento recíproco entre Nós (brasileiros) e os Outros (imigrantes), compreendendo, na prática, a problemática do fluxo migratório na sociedade globalizada. Assim, justifica-se o exercício da cidadania, por meio da comunicação, abrindo os braços e erguendo a cabeça ao acolher e compreender o Outro. Como docente no curso de graduação em Relações Internacionais da UniSantos, onde sempre há aluno estrangeiro, notei em sala de aula o que coloquei como premissa. Assim, para escrever esse artigo, além da observação participante, recorri à entrevista com sujeitos envolvidos na problemática exposta acima, procurando traçar histórias de vida para contemplar, no sentido de compreender, a trajetória do imigrante. Nas entrevistas, realizadas em agosto de 2017, contei com a colaboração de Rosilandy Carina Cândida Lapa, mestranda em Direito e membro do Grupo de Pesquisa Comunicação e Cidadania. 2 | IMIGRANTE E CRISE DE IDENTIDADE Na diferença e não fora dela, na relação com o Outro, são construídas as identidades, inclusive as dos imigrantes. O deslocamento humano faz parte da história da civilização. Por diferentes motivos e condições variadas, há sempre sujeitos isolados ou grupo de nacionais que deixam a terra de origem para fixar-se em outro país. No primeiro momento, enquanto emigrantes, eles sonham com o recomeço, carregando a esperança na bagagem. Depois, na condição de imigrante, tentam superar as barreiras, tentam se adaptar ao meio e aos Outros, na esperança de que as crises, inclusive a identitária, não interfiram em seus propósitos. De acordo com pesquisadores dos estudos culturais, a crise representa avanço para compreender a identidade como transformação contínua. No caso do imigrante, a relação que estabelece com ele mesmo, com suas lembranças e consciência, o contato com o Outro (o Diferente), promovem mudanças individuais e coletivas em Ciências da Comunicação Capítulo 18 211 seu universo. Mudanças como “continuum de transformação” referido por Elias (1998, p. 57), ou seja, a unidade está na continuidade com que uma transformação surge de outra. Assim, o autor considera que a identidade é um processo contínuo, “uma continuidade lembrada – por mensagens, apelos, respostas – e reinterpretadas”. Em sua trajetória, o imigrante vive o que Hall (2000, pp. 34-46) chama de “crise de identidade” como o duplo deslocamento do sujeito: tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmo. Essa “crise”, decorrente das transformações a partir do século XX, alterou as identidades pessoais, como explica o autor. No lugar do sujeito integrado, passou a existir a instabilidade ou “descentração do sujeito”. O crítico cultural Mercer (1990, p. 43) vê na crise identitária “a experiência da dúvida e da incerteza”, porque houve a deslocação do que se supunha “fixo, coerente e estável”. Tendo que conviver com a diferença, em terra estrangeira, o sujeito pode sofrer a crise de identidade, dependendo da motivação para deixar a terra de origem e a forma de convivência com o Outro no país que buscou para recomeçar sua vida. Ao contrário de muitos pesquisadores que condicionam o fenômeno da imigração ao mercado de trabalho, Vitorio (2015) considera que nem sempre essa motivação é determinante para o sujeito deixar o seu país de origem. As razões podem ser tanto econômica, quanto política, ideológica, étnica, religiosa, cultural, ambiental e até emocional. No entanto, geralmente os imigrantes são classificados como refugiado ou asilado, “rótulos” que estigmatizam as pessoas. Cabe, então, explicitar a diferença entre conceitos referentes ao processo migratório. Segundo Charleaux (2015), “migrante é toda pessoa em trânsito, que emigra (sai) de seu país de origem e, quando chega a seu destino, é chamado de imigrante (entra)”. Refugiados e asilados são, portanto, nada mais do que categorias de Imigrante. Em Portugal, circula na mídia e no meio acadêmico o termo “indocumentado”, atribuído aos imigrantes que não detém o título de entrada ou de residência exigido pela legislação. Popularmente, são chamados imigrantes “ilegais”, “clandestinos”, “irregulares” ou “sem papéis”. Portanto, os estrangeiros que entram em um país com objetivo de fixar residência, por diferentes motivos, são imigrantes. Muitas vezes, contudo, categorizam os imigrantes de forma equivocada por falta de conhecimento, acentuando a exclusão daqueles que procuram outro país para a reconstrução de vida, o que pode dificultar a inserção dos mesmos na sociedade, inclusive no mercado de trabalho. Nesse sentido, tomei conhecimento, ao escrever esse artigo, do caso referente a um aluno imigrante, no último semestre de um curso de graduação da UniSantos, que não conseguia estágio, requisito obrigatório para se formar. Ele considerou que o motivo não era sua falta de qualificação ou experiência, mas a discriminação por ser refugiado, pois era dispensado ao apresentar seus documentos. Garantiu que não é o único refugiado a passar por essa situação, que se torna mais complicada para os africanos, devido à cor da pele. Há, no entanto, imigrantes na categoria de refugiado com diploma de curso Ciências da Comunicação Capítulo 18 212 superior que, devido à crise econômica no Brasil, se submetem a qualquer tipo de trabalho, inclusive varredor de rua, como Pagotto (2016) descreve a situação de “engenheiros de diversas áreas, professores universitários e até um médico e um psicólogo”, contratados por uma empresa responsável pela limpeza pública de parte da cidade de São Paulo, vinculada no projeto em parceria com o Centro de Apoio ao Trabalho e Empreendedorismo (CATe) e Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes (CRAI). Entre eles, um engenheiro agrônomo alega que no seu país (Congo) é perseguido político e prefere “ser trabalhador braçal vivo aqui do que um intelectual morto na África”. Outro, um psicólogo angolano, justifica que fugiu de seu país porque foi ameaçado por parentes, depois de uma disputa familiar por herança. Qualquer que seja o motivo para deixar sua terra de origem e recomeçar a vida como imigrante em outro país há sempre justificativa para a escolha, conforme o desabafo de um refugiado congolês no Brasil. “Vocês não sabem a benção que é não ter guerra e ter democracia. Aqui, a presidente [referindo-se ao impeachment de Dilma Rousseff] está saindo e ninguém morreu. No Congo, quando muda o governo logo matam a oposição” (PAGOTTO, 2016). O termo refugiado se aplica a quem foge de seu país de origem alegando “fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas”, em situações nas quais “não possa ou não queira regressar”, segundo convenção internacional específica de 1951, o Estatuto dos Refugiados. No Brasil, o refúgio também pode ser aplicado em casos de “graves e generalizadas violações de direitos humanos”, de acordo com a Lei 9.474, de 1997. Enquanto o refúgio é de natureza exclusivamente humanitária, o asilo tem acento mais político com significado amplo nas diferentes culturas, considera Charleaux (2015), lembrando que, juridicamente, o asilo ganhou força na América Latina, nos anos 1960 e 1970, quando perseguidos políticos buscaram proteção em países vizinhos. Portanto, o sujeito é emigrante no seu país de origem, de onde saiu. Ao chegar ao país de destino ele se torna um imigrante. Assim, de acordo com o dicionário, tanto refugiados quanto asilados podem ser migrantes, emigrantes ou imigrantes. As diferenças dizem respeito à política e ao direito, como explicita Charleaux (2015). Enquanto a concessão do refúgio depende de um trâmite técnico num órgão colegiado, o asilo pode ser concedido por arbítrio exclusivo do presidente da República, sem que seja necessário embasamento de ordem estritamente legal. É, portanto, uma ferramenta política. Esse aspecto político do asilo é visível no debate que se estende a proteção para além do território do país de abrigo, incluindo também veículos diplomáticos e embaixadas como “território protegido” para o asilado. Contudo, há que se ter cuidado ao atribuir categorias ao imigrante, considerando- se a subjetividade e até mesmo a “oportunidade” do requerente à concessão do status de refugiado ou asilado. Assim, creio eu, evita-se a difusão de estereótipos do imigrante como vítima de mazelas, o que pode levá-lo tanto à situação de “protegido” em detrimento dos nacionais, quanto à situação de intolerância e até mesmo exclusão Ciências da Comunicação Capítulo 18 213 no meio que pretende ser acolhido em busca de uma vida mais estável. Independente da razão para o ato de emigrar e as formas de emigração, deve-se respeitar a dignidade humana, “quaisquer que sejam as suas crenças ou a sua cor, e qualquer que seja a sua importância numérica”, como defende Maalouf (1999, p. 166). Contudo, o fluxo migratório intenso em um país quase sempre suscita polêmicas, como acontece atualmente com o deslocamento de pessoas da África e do Oriente Médio para a Europa; do Haiti e, ultimamente, da Venezuela para o Brasil. A única saída para esse impasse é reconhecer que cada pessoa deve ser tratada como cidadão de corpo inteiro, quaisquer que sejam as suas pertenças. Nos dezessete anos da minha experiência como imigrante, em Portugal e Moçambique, aprendi que quanto maior a distância entre Eles (nacionais) e Nós (estrangeiros) mais difícil é a identificação, “podendo a relação tender para formas de rejeição mais ou menos intensas” (RAMALHO, 2003, p. 187). Rejeição que pode criar “as identidades assassinas”, como Maalouf (1999, p. 41) denuncia a redução da identidade a uma única pertença, o que “leva os homens a uma atitude parcial, sectária, intolerante, dominadora, por vezes suicida, e tantas vezes os transforma em assassinos ou em partidários dos assassinos”. Crítico da separação entre os “nossos” e os “outros”, entre “nós” e “eles”, Maalouf (1999, p. 42) defende a concepção da identidade como construção de “pertenças múltiplas, algumas ligadas a uma história étnica e outras não, algumas ligadas a uma tradição religiosa e outras não”. No entanto, ao considerar a identidade como “aspiração legítima”, esse autor alerta que ela se transforma em “instrumento de guerra”, semeando ações terroristas, cobrindo o mundo de “comunidades feridas” que sofrem perseguições, preservam lembranças de sofrimentos antigos, sonham com vinganças. Para sair dos conflitos identitários, a solução está no reconhecimento de nossas “pertenças múltiplas”, como recomenda Maalouf (1999, p. 42). Enquanto fui imigrante, nas décadas de 70 e 80 do século XX, ao reconhecer minhas múltiplas pertenças (africano, indígena e português), estabeleci relação de proximidade com os Outros, em diferentes contextos, sentindo-me familiar em terra estrangeira. Mas, nem todos os imigrantes conseguem traçar sua trajetória entendendo que a identidade “não é fixa, é sempre híbrida”, como explica Hall (2003, p. 433), porque consiste de “formações históricas específicas, de histórias e repertórios culturais de enunciação muito específicos”. Assim, procurei compreender no relato de imigrantes universitários histórias tecidas por lembranças expressas por meio das palavras em curso, ou seja, o discurso. Nessa tessitura, observei o sentido do “silêncio que atravessa as palavras, que existe entre elas, ou que indica que o sentido pode sempre ser outro, ou ainda que aquilo que é o mais importante nunca se diz”, porque “as palavras são cheias de sentidos a não se dizer e, além disso, colocamos no silêncio muitas delas” (ORLANDI, 1995, p. 14). No movimento entre palavra e silêncio constatei que cada uma das histórias Ciências da Comunicação Capítulo 18 214 de identidade está inscrita nas posições que os sujeitos assumem e com as quais se identificam. Posição, por exemplo, assumida por dois dos meus ex-alunos que se identificaram com a problemática desse artigo e, voluntariamente, contaram as suas histórias de imigrantes. 3 | NAS HISTÓRIAS, AS POSIÇÕES IDENTITÁRIAS Antes de relatar as histórias dos dois universitários, como estudo de caso, convém contextualizar a Instituição de Ensino Superior que eles frequentavam e a relação da mesma com o programa do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), iniciado na América Latina, em 2003, para capacitar e formar docentes e discentes universitários no campo do direito internacional dos refugiados. O projeto recebeu o nome de Cátedra Sérgio Vieira de Mello, em homenagem ao brasileiro, morto no Iraque em 2003 e que dedicou grande parte de sua carreira profissional nas Nações Unidas, trabalhando no ACNUR em prol dos refugiados. Pioneira na Região Metropolitana da Baixada Santista no ensino superior, a Universidade Católica de Santos aderiu ao projeto Cátedra Sérgio Vieira de Mello em 2007. A partir de 2012, passou a conceder anualmente três bolsas de estudo a imigrantes refugiados residentes no Brasil, inscritos e aprovados no exame de seleção, para a frequência nos cursos de graduação de quatro anos. Como imigrantes na categoria de refugiado, os dois entrevistados são bolsistas da UniSantos. Ao receber o convite para contribuir nesse estudo de caso, eles foram devidamente esclarecidos sobre o trabalho, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, agendaram dia e horário para a entrevista. Para preservá-los de possível constrangimento, cada um foi identificado no artigo por duas letras maiúsculas diferentes. As conversas foram gravadas e transcritas na íntegra, de acordo com o roteiro de entrevista em apêndice. Ao analisar a transcrição das entrevistas, lembrei-me do conselho que ouvi de alguém no tempo em que fui imigrante. “Saudade é olhar o passado. No presente, não há tempo para lembrar, é preciso conquistar o lugar de chegada”. Apesar de não ser fácil dissociar os dois tempos na vida de quem atravessou fronteiras, muitas vezes transgredindo normas e convenções, enfrentando situações adversas para conquistar o seu espaço na vida em outro lugar, segui aquele conselho: mergulhei no presente, apaguei a saudade e esqueci as lembranças. No ano seguinte que cheguei a Moçambique, 1979, passei uns três meses sem dar notícias para minha família no Brasil. Preocupada com o clima de guerra no país, minha irmã telefonou para a Embaixada do Brasil no Maputo para saber do meu paradeiro. Naquele momento, o meu presente representava o futuro: estava grávida do meu filho, que nasceu em África. Na narrativa dos dois entrevistados, de acordo com o roteiro estabelecido, as Ciências da Comunicação Capítulo 18 215 histórias seguiram a linha do tempo, ou seja, do passado para o presente. Assim, por caminhos diferentes, eles chegaram ao Brasil em 2000 e frequentaram o curso de Relações Internacionais: O. G. franco-congolês, 38 anos, bacharel em Direito, Filosofia e Teologia; I. P. sérvio, 38 anos. No Congo, O. G. foi seminarista e trabalhou como subdiretor da Cáritas Arquidiocesana no escritório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP) e no Word Food Program, da ONU. No final do seu mandato na Cáritas, passou a integrar o quadro de funcionários da ONU, quando começou a guerra no Congo motivada por rivalidades étnicas e disputa por recursos minerais. Como funcionário da ONU a proteger “pessoas vulneráveis”, O. G. foi vítima de ataque na diocese, onde vivia. Com os sobreviventes da diocese, fugiu para a Bélgica. Depois de recuperado dos ferimentos, voltou com os padres para o Congo. Em 1999, acirrou o conflito no país e a embaixada da Bélgica conseguiu resgatar os padres. Como não era belga, embora trabalhasse na ONU, O. G. foi preso por motivos políticos e confinado em um buraco, por tempo que não soube determinar [“uns meses”]. Apanhava todos os dias com chibata, até que o militar responsável pelos presos políticos, “um ruandês forte e alto, um Tutsi”, grupo étnico de Ruanda, reconheceu O. G. como a pessoa que o adotou quando criança. O militar, então, preparou a sua fuga. Do Congo, ele foi para o Burundi, Zâmbia e África do Sul, onde conseguiu asilo político, trabalhou, estudou e retornou à sua congregação religiosa que, por motivo de segurança, o encaminhou para o Brasil, onde inicialmente foi viver na congregação de São Miguel, em Irati, Paraná. Depois mudou para a cidade de São Paulo, quando se inscreveu no vestibular para refugiado na UniSantos. Já I. P. considera que teve vários motivos para deixar a Sérvia, seu país de origem: envolvimento em manifestações políticas, problemas religioso e étnico na família, alistamento obrigatório para o serviço militar. Sentindo-se ameaçado e perseguido, saiu do país acompanhado do pai. Primeiro foi para a Bósnia, depois Alemanha e, por fim, chegou ao Brasil, em 2000. Atualmente mora na cidade de São Vicente, litoral do estado de São Paulo. Ao relatar as dificuldades enfrentadas no Brasil, O. G. destacou o desencanto com o país devido à “segregação muito forte” e I. P. criticou a falta de informação aos estrangeiros para conseguir a documentação, conforme transcrição abaixo. “Visto de fora, o Brasil é bom. Mas, quando você entra aqui, vê que o povo brasileiro é muito discriminador, xenofóbico. Alguns de forma velada, mas discriminam muito. Mesmo em minha casa [o seminário], onde nós éramos 15 religiosos, eu era o único negro e estrangeiro. Quanta discriminação! Eles falavam muito mal de África, dos negros. Tudo de ruim que acontecia dentro da congregação ou do seminário a culpa era minha. Eu nunca tive amigos (O. G.). “A primeira dificuldade é a mesma para qualquer estrangeiro, que é a língua. Eu não falava nada [de Português]. Então, no começo foi extremamente difícil. [...] Mas, a falta de condições, de documentos, foi a maior dificuldade. Você não tem acesso à Ciências da Comunicação Capítulo 18 216 informação e eu acho que ainda hoje continua assim. [...]. Então, a dificuldade maior é conseguir o protocolo [de refugiado] para conseguir ajuda do exterior, da família, por exemplo, pois sem documentos você não consegue abrir uma conta no banco” (I. P.). Por intermédio da Cáritas Brasileira, organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), os dois entrevistados procuraram a Universidade Católica de Santos, com objetivo de conseguir bolsa de estudo para refugiado em um dos cursos de graduação. Os dois pretendiam cursar Direito, como não conseguiram, optaram por Relações Internacionais, sendo que O. G. freqüentou antes um semestre no curso de Tradução, na perspectiva de trabalhar como tradutor jurídico. Quanto à bolsa de estudo, os dois teceram críticas à falta de apoio financeiro para a manutenção dos bolsistas. Nesse sentido, O. G. desabafou. “Eu era faxineiro e ganhava R$100,00, me ofereceram uma bolsa de R$1.500,00 [valor da mensalidade do curso]. Desse valor não vou receber nenhum centavo. Eu chego aqui sem conhecer ninguém, não tenho casa, não tenho emprego, comida ou transporte. Depois das aulas [das 19h às 22h40] para onde vou? Na rua? O que vou comer? Como vou me vestir?”. Na mesma linha de raciocínio, I. P. considera que há “alguns pontos que devem ser trabalhados sobre o aspecto de suporte, moradia, trabalho, uma integração maior. Não apenas uma bolsa”. Para ele, “este estudo para dar as bolsas não foi feito de forma correta”. E explica: “Você vai deslocar um estrangeiro de São Paulo, ele não vai ter um suporte na cidade, não tem as mínimas condições para sobreviver, muito menos estudar”. Assim, considera a bolsa de estudo “inviável” e recomenda estudos “para comprovar que não traz benefícios para o refugiado, pois ele não consegue sobreviver com a bolsa”. Contudo, lembra a ajuda que receberam [ele e O.G], “depois de muita luta”, do subsídio no valor de R$400,00, “primeiro da Mantenedora, depois da Diocese, da Cúria. Nos ajuda no transporte ou pagar uma Xerox, o básico do básico”. Os dois entrevistados consideram que, atualmente, dominam a língua portuguesa. Para O. G. somente o emprego da gíria e o sotaque dos brasileiros dificultam a sua compreensão. Contudo, há diferença na posição dos dois quanto ao relacionamento no meio acadêmico. Enquanto O. G. se sente segregado, I. P. afirma que não sofreu preconceito, como declararam na entrevista. “Quando eu cheguei [referindo-se ao curso de Tradução], já tinha segregação. Quando tinha trabalho em grupo, ninguém queria fazer comigo, eu estava sempre jogado fora, ninguém queria conversar comigo, parece que eu era um tipo de sujeira, ninguém queria mexer comigo e eu estava sempre sozinho. Aí fui para Relações Internacionais, foi pior ainda. Os alunos não gostavam de mim, até hoje sempre arrumam briga, alguns professores não gostam, eu sou estrangeiro e negro. Para algumas pessoas refugiado é fugitivo e bandido, mesmo na faculdade. Sou excluído, na sala de aula e na universidade. Muito excluído, 90% excluído. Por isso, eu chego, eu estudo, fico no meu canto e, quando preciso responder, eu respondo” (O. G.). Já I. P. afirmou que não sofreu preconceito por ser estrangeiro ou refugiado. “Talvez coisas pequenas. Só posso dar a minha perspectiva como branco, eu não Ciências da Comunicação Capítulo 18 217 sofri preconceito [no meio acadêmico]. Fui representante de classe por dois anos e só reclamei uma única vez [quando não foi convidado a participar do amigo secreto]. Não sei se foi descaso ou sem querer, mas não levei como um preconceito”. Portanto, em sala de aula sentiu-se excluído “apenas naquela situação do amigo secreto”. Quanto ao mercado de trabalho, “aí sim, não sei se por discriminação ou preferência procuram alguém jovem. Tenho vários pontos negativos: eu tenho idade mais avançada [em relação aos colegas de classe], sou estrangeiro, sou refugiado. Então, existe sim dificuldade no mercado de trabalho, inclusive devido ao momento econômico, muita falta de informação e divulgação”. Nesse sentido, I. P. levanta questões e aponta saída. “O que é um estrangeiro? O que é um refugiado? É aquele que foge? Diante da dúvida, o que diz a empresa? Não”. Portanto, ele considera que a universidade deveria promover palestras, encontros com empresários, para sanar essas dúvidas, abrindo um canal para informar e conscientizar os empresários. “Se tiverem informações, irão encontrar pontos positivos para contratar refugiado. Temos o Porto na cidade, com área de Relações Internacionais, onde os estrangeiros podem ser muito bem aproveitados nas empresas. Há refugiados que falam cinco línguas”. Os dois universitários declararam não ter dificuldades para acompanhar as aulas. Contudo O. G. disse que encontrou obstáculos com professores, “que me prejudicaram muito”, explicando que eles não consideraram que é estrangeiro com cultura diferente. “Infelizmente, aqui parece que eles não gostam dos refugiados”. Diante de problemas e conflitos, ele disse que não consegue se defender, “pois eu sou estrangeiro, negro e refugiado. Para mim é difícil, eu quero muito ter o diploma, mas de verdade não há convivência”, referindo-se ao meio acadêmico. A convivência, bem como a identidade, constitui processo em construção: “tijolo com tijolo em um desenho mágico”, como escreveu Chico Buarque de Holanda, em 1971. Mas, para o sucesso da obra é preciso que haja harmonia entre os construtores. No caso da imigração, o êxito implica também conhecimento recíproco entre Nós (os nacionais) e os Outros (os estrangeiros). Assim, será possível evitar que as fronteiras dos países se transformem em “fortalezas”, que se propaguem “as identidades assassinas”. Para tanto, há que se cultivar o respeito mútuo, independente das características físicas, da nacionalidade, dos princípios religiosos, das posições ideológicas dos sujeitos, compreendendo e aceitando as pertenças múltiplas, sem hierarquização ou auto vitimização. No discurso dos entrevistados, compreendi o funcionamento das relações de sentido, de força e o mecanismo da antecipação, que Orlandi (1999, p. 39) chama de formações imaginárias: um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis; o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz; sua argumentação visa causar efeitos sobre seu interlocutor, que tanto pode ser cúmplice ou adversário. Assim, estrangeiro e negro apontam para xenofobia, discriminação, exclusão; ao falar do lugar de imigrante, suas palavras significam de Ciências da Comunicação Capítulo 18 218 modo diferente do que se falassem do lugar de brasileiros, argumentando de forma que prevê cumplicidade na interlocução. Ao relacionar o que observei em sala de aula com a exposição dos entrevistados, compreendi melhor o comportamento do imigrante no meio acadêmico, inclusive a observação silenciosa, considerando o que diz Orlandi (1995, pp. 69, 162), ou seja, “o silêncio, assim como a linguagem, não é transparente”, [...] “o silêncio é a possibilidade do dizer vir a ser outro”, [...] porque “todo sentido posto em palavra já se dispôs antes em silêncio”. Na medida em que o imigrante consegue superar as dificuldades com a língua oficial do país em que se instala, ele rompe o silêncio e se apropria da palavra. Em sala de aula, observei que o silêncio dos imigrantes estava associado ao “medo” da língua portuguesa, “a língua do estranho, do outro”, como explica Coracini (2003, p. 149). “O medo pode, em circunstâncias particulares, bloquear a aprendizagem, impondo uma barreira ao encontro com o outro, dificultando e, por vezes, impedindo uma aprendizagem eficaz e prazerosa”. Por outro lado, há aqueles que sentem forte atração para aprender língua estrangeira, que para Coracini representa “o desejo do outro, desse outro que nos constitui e cujo acesso nos é interditado, esse outro que viria completar o um”. Como sujeitos e sentidos são incompletos e devem estar abertos para se tornarem outros, como diz Orlandi (1995, p. 182), o mesmo considero para esse meu trajeto de reflexão, que não se fecha, mas aponta para o futuro discursivo. Portanto, entrego aos leitores na esperança de que, na construção de sentidos, surjam novos percursos, apontando perspectivas para se traçar caminhos de convivência entre os homens de múltiplas pertenças do mundo globalizado, aonde “chegar e partir são os dois lados da mesma viagem”, lembrando a letra da canção “Encontros e Despedidas”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 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Ano em que saiu do país de origem 2. Motivo(s) para sair do país de origem 3. Com quem saiu do país de origem 4. Quando chegou ao Brasil 5. Dificuldades enfrentadas no Brasil 6. Domínio da língua portuguesa 7. Bolsa de estudo 8. Relacionamento com os colegas de classe, com os professores e com os funcionários na universidade 9. Dificuldades no acompanhamento das aulas 10. Inclusão ou exclusão na sala de aula e na universidade Ciências da Comunicação Capítulo 18 221 CAPÍTULO 19 UMA DISCUSSÃO SOBRE A DIVERSIDADE ÉTNICORACIAL NA UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ Alcilaine de Macedo Alencar Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curso de Comunicação Organizacional Curitiba - Paraná Carolina Fernandes da Silva Mandaji Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curso de Comunicação Organizacional Curitiba - Paraná RESUMO: Este trabalho busca lançar luz à temática da diversidade e pluralidade étnicoracial presente nas instituições educacionais brasileiras de ensino superior, a partir de uma pesquisa exploratória realizada na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) durante o ano de 2018. Para isso, o estudo parte do conceito de diversidade cultural, entendendo a cultura em seu sentido mais amplo como práticas que implicam modos de vida, direitos fundamentais do ser humano, sistema de valores, tradições e crenças (UNESCO). Nesse sentido, a questão da diversidade cultural implica também as discussões de como a sociedade e suas instituições se organizam para negociar suas relações, torna-se assim, relevante investigar como essas relações estão presentes numa universidade pública brasileira. Ainda como parte do referencial teórico, o trabalho debruçase na contextualização das leis brasileiras de Ciências da Comunicação ações afirmativas no cenário nacional e na instituição e utiliza um aporte-teórico que busca compreender o cenário de desigualdade racial e social, o conceito de diversidade e, por fim as políticas públicas implementadas atualmente. Serão utilizados dados da pesquisa realizada na UTFPR (2018) e como dados secundários a IV Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de graduação (2014). PALAVRAS-CHAVE: Diversidade; Ações Afirmativas; Étnico-Racial; Instituições; UTFPR. ABSTRACT: This work search to throw light to the theme of the diversity and present ethnicracial plurality in the institutions education higher education Brazilians, starting from an exploratory research accomplished in the Federal Technological University of Paraná (UTFPR) during the year of 2018. for that, the study part of the concept of cultural diversity, understanding the culture in his/her wider sense as practices than they implicate life manners, the human being’s fundamental rights, system of values, traditions and faiths (UNESCO). In that sense, the subject of the cultural diversity also implicates the discussions of as the society and their institutions are organized to negotiate their relationships, he/she becomes like this, relevant to investigate as those relationships they are present in a Brazilian public university. Still as part of the theoretical referencial, the Capítulo 19 222 work leans over on the contextualization of the Brazilian laws of affirmative actions in the national scenery and in the institution and it uses a contribution-theoretical one that he/she looks for to understand the scenery of racial and social inequality, the diversity concept and, finally the public politics implemented now. Data of the research will be used accomplished in UTFPR (2018) and as secondary data to IV Research of the Socioeconomic and Cultural Profile of the graduation Students (2014). KEYWORDS: Diversity; Affirmative Actions; Ethnic-Racial; Institutions; UTFPR. 1 | INTRODUÇÃO O ponto de partida para essa investigação é uma provocação inicial de José Márcio Barros (2009, p.10) sobre a complexidade do processo da diversidade: “As diferenças culturais tanto inauguram possibilidades de uma nova ordem social quanto nos remetem aos desumanos processos de exclusão”. Se junto do autor entendermos a diversidade cultural como processos decorrentes das diferenças, sejam elas línguas, linguagens, hábitos culturais, vestuários, religiões e tantas outras, sejam as diferentes formas como sociedades, grupos sociais e indivíduos se organizam e interagem, entre si e com o ambiente. “Diversidade cultural, portanto, refere-se tanto aos processos de construção de nossas diferenças quanto aos processos de interação que se estabelecem entre tais diferenças” (BARROS, 2018, p. 121). Nesse sentido, este trabalho busca explorar como se dão essas práticas dentro de um espaço a partir da diversidade cultural instaurada, entendendo-as como um direito ou garantia de cidadania, mas considerando também que pode ser fonte de intolerância e discriminação. O autor continua ponderando a importância dessa discussão como um tema atual, complexo, mas a ser abordado por/em diferentes campos do saber, como a comunicação. Diz ele: Conjugar a cultura com o direito, a igualdade com a diversidade pode apontar para possibilidades de reflexões e práticas transversais e abertas, que assegurem as identidades referenciais, mas que garantam as possibilidades de trocas e o reconhecimento das formas híbridas (BARROS, 2009, p.11). Tal conceito de cultura permeia um sentido mais amplo, que não se restringe a um aspecto particular das práticas humanas, mas a todas as dimensões do comportamento individual e/ou coletivo; que não se reduz “aos processos de produção, circulação e consumo de bens simbólicos reconhecidos socialmente por seus valores e características artísticas” (BARROS, 2018, p.120), o que promove processos de mediação pautados pela experiência de pertencimento e compartilhamento entre os sujeitos. Esse conceito foi proposto pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura: [...] como o complexo integral de distintos traços espirituais, materiais, intelectuais e emocionais que caracterizam uma sociedade ou grupo social. Ela inclui não Ciências da Comunicação Capítulo 19 223 apenas as artes e as letras, mas também modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, sistemas de valores, tradições e crenças. (UNESCO, 1982, p.1) Assim, esse texto tem como objetivo apresentar a pesquisa sobre diversidade e pluralidade étnico-racial realizada na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Campus Curitiba/PR. A pesquisa desenvolvida, durante o ano de 2018, como parte de um plano de trabalho de Iniciação Científica - Programa de ações de bolsas de Iniciação Científica nas ações afirmativas -PIBIC, Instituição financiadora Fundação Araucária (ano 2018) - tinha o propósito de identificar qual a percepção dos estudantes da UTFPR sobre a temática da diversidade. Este trabalho busca entender como essas práticas e trocas estão presentes numa instituição pública de ensino superior, iniciando por um histórico das ações afirmativas; depois a apresentação de um referencial teórico norteador composto pelas seguintes obras: “Nem preto nem Branco” de Lilia Schwarcz, com a contextualização histórica de desigualdade social e racial, “O Negro no Mundo dos Brancos” de Florestan Fernandes e “Diversidade na Universidade: o BID e as políticas educacionais de inclusão étnico- racial no Brasil” de Nina Paiva Almeida. Foram utilizadas também as obras “Ação afirmativa no ensino superior brasileiro” de Feres Júnior e Zoninsein e “Políticas Públicas: Uma revisão na Literatura” de Celina Souza. Por fim, com a apresentação dos Dados Secundários da IV Pesquisa do Perfil socioeconômico e cultural dos estudantes de graduação 2014 e da descrição dos dados da pesquisa “Diversidade e Pluralidade étnico-racial na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)”. A metodologia de pesquisa exploratória quantitativa foi a aplicação de questionário por meio da plataforma Google Formulário. A UTFPR atualmente possui cerca de 11 mil estudantes, para a pesquisa priorizou-se o envio para os de graduação e pósgraduação (nível mestrado) do campus Curitiba. A pesquisa que ficou disponível entre os dias 23 de março e 20 de abril de 2018 era dividida em três seções: a) identificação e perfil do estudante; b) Leis afirmativas, e; c) qual a percepção dos alunos sobre a diversidade na UTFPR. A pesquisa tinha um total de 26 perguntas. Foram 674 respostas. 2 | HISTÓRICO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS A partir do ano 2000, no âmbito do ensino superior surgiram legislações para a promoção da diversidade. Em 2002, foi implementada a primeira lei de incentivo às ações afirmativas nas Universidades Públicas a Lei 10.558/2002 - o Programa Diversidade na Universidade (PDU) - que tinha como objetivo a promoção ao acesso ao ensino superior a população, negra e indígena (PLANALTO, 2002). No final de 2003, foi regulamentada a Lei Nº 10.639, que passa a incluir no currículo escolar do ensino escolar do fundamental e médio, os conhecimentos sobre a história Afro-Brasileira. Assim, os conteúdos da História da África e seus povos, a cultura negra brasileira, a luta dos negros no Brasil e o negro na formação da sociedade Ciências da Comunicação Capítulo 19 224 brasileira passam a ser obrigatórios (PLANALTO, 2003). No mesmo ano, em 2003, é constituída a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), com o propósito de reduzir as desigualdades raciais, fazendo valer os direitos, das ações afirmativas nas questões de raça e gênero (JUSBRASIL, 2003). Em 2009, foi aprovado o decreto que diz respeito ao Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PLANAPIR), atuante nos eixos da educação, cultura, diversidade, trabalho e segurança pública (PLANALTO, 2009). A lei federal 12.711, aprovada em 2012, instituiu que as instituições federais de educação superior vinculadas aos Ministério da Educação (MEC) devem destinar - em cada ingresso seletivo - 50% das vagas aos estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas (PLANALTO, 2012). Medeiros (2015, p. 67) explica que na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), as ações afirmativas surgiram em 1910 ainda com a escola de Aprendizes e Artífices assim nomeada, cujo objetivo à época, era o de ensinar e acolher crianças em situação de vulnerabilidade social. Em 1936, a escola fora transferida para a Avenida Sete de Setembro no centro de Curitiba/PR, onde começou a ministrar cursos de 1° Grau, denominado como Liceu Industrial do Paraná. Em 1942, a organização se torna reconhecida em todo o Brasil pelo ensino industrial e no ano seguinte, iniciam-se os cursos técnicos com a alteração do nome para Escola Técnica Federal do Paraná. Em 1978, a instituição foi transformada em Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná (CEFET-PR) passando a ofertar cursos de graduação (MEDEIROS, 2015, p. 67). Em 2005, a instituição mudou de (CEFET-PR) para Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). A partir desse ano, a instituição passou por mudanças com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI). O REUNI é um Decreto n.º 6.096, do ano de 2007 que tinha como objetivo principal ampliar o acesso nas universidades federais. Entre as ações do REUNI, está o aumento de vagas nos cursos de graduação, a inovações pedagógicas e o combate à evasão Anos mais tarde, em 2008, a UTFPR passa a incluir no processo de vestibular dos cursos técnicos, o sistema de cotas destinando 50% das vagas a alunos de escolas públicas. Além de considerar a nota do Exame nacional do Ensino médio (ENEM)para o ingresso do aluno (UTFPR, 2017). Já em 2010, a seleção e ingresso dos alunos começa a ser realizada pelo SISU (Sistema de Seleção Unificada). O SISU é um sistema informatizado gerenciado pelo Ministério da Educação (MEC), onde o candidato escolhe a Universidade pública dentre as opções incluídas no programa (SISU, 2018). Com a aprovação da Lei de cotas, em 2012, fica determinado que todos os Centros, Institutos e Universidades Federais destinem 50% das vagas a candidatos de escola pública, com renda inferior a 1,5 salário mínimo ou preto, pardos e índios ofertados semestralmente nos processos seletivos. Tais candidatos podem se inscrever nas categorias de cotas conforme descrito na tabela abaixo: Ciências da Comunicação Capítulo 19 225 Categoria 1 Cotista oriundo de família com renda bruta, comprovada, igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo, que não se declarou ser preto, pardo ou indígena Categoria 2 Cotista oriundo de família com renda bruta, comprovada, igual ou inferior a 1,5 salários-mínimos e autodeclarado preto, pardo ou indígena Categoria 3 Cotista independente de renda (sem necessidade de comprovação) e que não se declarou preto, pardo ou indígena. Categoria 4 Cotista independente de renda (sem necessidade de comprovação) e autodeclarado preto, autodeclarado pardo ou autodeclarado indígena Tabela 1: Categoria de cotas Lei de 2012 Fonte: Produção própria No primeiro semestre de 2018, a UTFPR passa a considerar uma nova categoria de cotas instituída através da Portaria normativa n° 9 que inclui o acesso de pessoas com deficiência. Tais categorias estão descritas na tabela a seguir: Categoria 1 (C1c) Cotista que possa comprovar ser Pessoa com Deficiência oriundo de família com renda bruta, comprovada, igual ou inferior a 1,5 saláriomínimo, que não se declarou preto, pardo ou indígena. Categoria 1 (C1s) Cotista oriundo de família com renda bruta, comprovada, igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo, que não se declarou preto, pardo ou indígena Categoria 2 (C2c) Cotista que possa comprovar ser Pessoa com Deficiência oriundo de família com renda bruta, comprovada, igual ou inferior a 1,5 saláriomínimo, autodeclarado preto, pardo ou indígena Categoria 2 (C2s) Cotista oriundo de família com renda bruta, comprovada, igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo, autodeclarado preto, pardo ou indígena Categoria 3 (C3c) Cotista que possa comprovar ser Pessoa com Deficiência independente de renda (sem necessidade de comprovação), que não se declarou preto, pardo ou indígena Categoria 3 (C3s) Cotista independente de renda (sem necessidade de comprovação), que não se declarou preto, pardo ou indígena Categoria 4 (C4c) Cotista que possa comprovar ser Pessoa com Deficiência independente de renda (sem necessidade de comprovação), autodeclarado preto, pardo ou indígena Categoria 4 (C4s) Cotista independente de renda (sem necessidade de comprovação), autodeclarado preto Tabela 2: Categoria de cotas a partir de 2018 Fonte: Produção própria Ciências da Comunicação Capítulo 19 226 3 | REFERENCIAL TEÓRICO Segundo Schwarcz (2012), a discussão sobre as raças chegou ao Brasil em meados do século XIX, no momento em que a abolição era irreversível. A escravidão legitimou a inferioridade inibindo qualquer debate sobre democracia e igualdade, disseminando o trabalho escravo e a violência na sociedade, assim fazendo emergir desigualdades raciais e sociais, o que ocasionou diferenças no acesso à educação e lazer, e na distribuição de renda, sendo evidente no nosso cotidiano até hoje. “As teorias raciais só chegaram por aqui a partir de meados do século XIX. Neste país de larga convivência com a escravidão onde o cativeiro durante ou mais de três séculos” (SCHWARCZ, 2012, p. 19). De acordo com Schwarcz o tema “raça” foi introduzido com base nas teorias biológicas da época, como uma ciência positiva que pretendia explicar o fenótipo e questões físicas e do cérebro, assim eliminando o pensamento de pensar no indivíduo e na sua cidadania. Afirma a autora que tal pensamento sobre o determinismo racial que criou novas formas de hierarquia e estratificação - contribuiu para livrar a população dos cativeiros mas não possibilitou a exclusão e diferenciação social. “Dessa maneira em vista a promessa de igualdade jurídica a resposta foi a comprovação científica da desigualdade biológica entre os homens” (SCHWARCZ, 2012, p. 19). Para Fernandes (2015), o tema sobre raça e cor na sociedade sempre teve repercussão entre os assuntos essenciais para os brasileiros. refletindo a questão de identidade nacional a partir do século XIX, por meio da discussão sobre raça identificado um Brasil negro e mestiço e indígena, assim o autor identificou em outras pesquisas um conflito racial na sociedade brasileira, identificando a desigualdade e discriminação, para o autor as relações raciais são entendidas como sistemas sociais de exclusão pois o Brasil não realizava ações que construísse uma linha democrática que incluísse e almeja-se de alguma forma o mais fragilizados em nossa sociedade. Fernandes (1979, p 49) apresenta a ideia de que a “democracia racial” está disfarçada de “tolerância racial”, é uma democracia que “significa igualdade social econômica e política”. Para o autor a “democracia racial” é um mito criado pela maioria, visando o interesse de um grupo. “Democracia racial não passa, infelizmente, de um mito social. É um mito criado pela maioria e tendo em vista os interesses sociais e valores morais dessa maioria”, diz o autor. Assim o mito da “democracia racial” atua como “tolerância racial” não ajudando nem o branco e nem o negro a lutar e modificar as questões raciais e sociais na sociedade brasileira (FERNANDES, 1979, p. 49.) Logo após, o autor aponta as questões sobre a existência do preconceito, apesar da sociedade brasileira parecer repugnar esses atos, ainda assim é possível observá- los. Fernandes faz alguns questionamentos: sobre a posição do homem negro e do homem branco na sociedade; de como a escravidão foi possível em um país cristão? Por isso surgiu no Brasil o preconceito reativo, buscando combater o preconceito contra quem promovia o preconceito. Ciências da Comunicação Capítulo 19 227 [...] o preconceito contra o preconceito ou preconceito de ter preconceito. Ao que parece, entendia que o preconceito era algo degradante e o esforço maior passou a ser o combater a ideia de que existiria preconceito no Brasil, sem fazer nada de melhorar a situação do negro e de acabar com as misérias inerentes ao seu destino humano na sociedade (FERNANDES, 1979, p 42.) Nina Paiva (2008, p. 5) explica que o termo diversidade tem sido amplamente difundido no campo das políticas governamentais, presente nas teorias contemporâneas como a do multiculturalismo que refere-se não só a questões raciais e étnicas, atrelado também a uma série de outros campos da vida social; fala-se, desta maneira, em diversidade sexual, religiosa, cultural. Entende-se, aqui, “multicultural” e “multiculturalismo” como substantivo que designa estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade que ocorrem em sociedades multiculturais (ALMEIDA, 2008, p. 122). Para os autores Zoninsein e Feres Júnior, (2008, p. 27) a diversidade étnica e racial é um componente de mobilização política, gerenciando conflitos e atuando como inclusão social e visando o crescimento econômico, de acordo com os autores a percepção de multiculturalista se adequa a liberdade de política e de identidade criando mecanismo de distribuição e promoção social, assim encaminhando as escolhas por liberdade multicultural. As ações de promoção da diversidade no espaço universitário passam a ser compreendidas através do Programa Diversidade na Universidade (PDU) criado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, por meio da Lei 10.558/2002 com a finalidade de implementar ao ensino superior, os grupos desfavorecidos como a população negra e indígenas. Após a implementação da lei essa pauta começou a repercutir com maior visibilidade, dentro do mundo acadêmico na imprensa e no senso comum, para Nina Paiva (2008) a diversidade na universidade são ações pensadas e voltadas para as questões étnico- racial, que insere no campo de ações afirmativas até então compreendida e estabelecida de acordo com cada instituição, que a partir do PDU a diversidade na universidade passa a ser um paradigma sendo executadas no contexto nacional (ALMEIDA, 2008, p. 124). As ações afirmativas têm como propósito tentar reduzir as desvantagens históricas da população marginalizadas e menos favorecidas assim o conceito de ação afirmativa pode ser entendido como um conjunto que busca promover a igualdade e não submetê-los a um processo universal, pois as falhas nos critérios de igualdade e alguns fatores que interferem são os contexto social, econômico, político, racial, a ideia de igualdade não é algo concreto mas sim compreendida como algo aprimore a ser conquistado por meios dessas ações em busca da igualdade (ZONINSEIN, FERES, 2008, p. 9). No Brasil, as ações afirmativas são consideradas constitucional sob duas linhas de pensamentos, a primeira diz sobre a legalidade que assimila o fundamento mais radical e está associada a uma política conservadora, já a outra, seria a moralidade, ao adquirir o fundamento progressista compreendendo, assim, que a constituição é Ciências da Comunicação Capítulo 19 228 um documento aberto a comunidade e a outros intérpretes. Com base nessas duas perspectivas positivistas, as ações afirmativas atuam no Brasil promovendo a cultura indígena e afro-brasileira (ZONINSEIN, FERES, 2008, p. 11). Para os autores (2008, p.23), as ações afirmativas no âmbito do ensino superior possibilita a inserção de grupos étnicos raciais além de se beneficiar tais grupos com as ações promovendo a reforma do ensino superior promoção social, econômica e financeira dos estudantes, além de contribuir para a sociedade brasileira superar o atraso de desigualdades sociais e raciais presente em nossa sociedade a décadas. De acordo com os autores as ações afirmativas no ensino superior são analisadas não apenas como uma ação compensatória, mas em formação de capital humano, melhoria e bem-estar social e eliminação da desigualdade. A política pública como política social busca entender suas multidisciplinaridades de maneira holística onde o todo é mais importante que indivíduos, instituições, ideologias e interações (SOUZA, 2006, p.6). A teoria da política pública é constituída no campo da ciência política, ciência econômica e sociologia, assim a política pública ecoa na economia e sociedade explicando a relação entre Estado, economia, política e sociedade. A concepção de políticas públicas estabelece a formação dos governos democráticos traduzindo seus propósitos em ações que refletirá em mudança na realidade futura dessas ações. “As políticas públicas após desenhadas e formuladas desdobram se em planos, programas, projetos bases de dados e ou sistema de informações e pesquisas” (SOUZA, 2006, p.7). 4 | DADOS SECUNDÁRIOS/PESQUISA UTFPR Como dados secundários foi utilizada neste trabalho, a IV Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Instituições Federais de Ensino superior brasileiros do ano de 2014, pelo Fórum Nacional de Pró-reitores de assuntos estudantis (FONAPRACE) e Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES). A pesquisa tem por fim possibilitar políticas de equidade e ações aos estudantes que permitam sua permanência no ensino superior. Dentre esses fatores apresentamos de maneira macro como se caracteriza esse cenário nas questões de raça, renda bruta familiar e área do conhecimento nas Universidades Federais em todo território nacional no ano de 2014. Diante desses dados, no ano de 2014, 939.604 mil estudantes estavam matriculados em instituições federais; autodeclarados amarelos 2,3%; autodeclarados brancos 45,67%; pardos 37,74%; pretos 9,81%; indígenas 0,6 % e não declarados 3,78%. Em questões de bruta familiar 1,06% declaram não ter renda, 2,62 % declararam renda de até meio salário mínimo; 48,81 % entre 0,5 a 2 salários mínimos; 24,72 % entre 3 a 5 salários mínimos; 10,3 % entre 6 a 8 salários mínimos; 2,96 % entre Ciências da Comunicação Capítulo 19 229 9 a 10 salários mínimos; 10,6% acima de 10 salários mínimos no total de 939.604 mil estudantes graduandos segunda a área de conhecimento qual está matriculado, ciências agrárias 6,97 %, Ciências biológicas 4,2%, Ciências Exatas e da Terra 13,95%, Ciências Sociais Aplicadas 22,23%, Ciências da Saúde 13,88%, Ciências Humanas 15,39%, Engenharias 15,66%, Linguística Letras e Artes 7,72% (ANDIFES, 2014.) No aspecto micro será apresentada a pesquisa sobre “Diversidade e Pluralidade étnico-racial na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), realizada no período de 23 de março a 20 de abril com estudantes de graduação, técnico e mestrado do campus Curitiba. O objetivo da pesquisa foi identificar a perspectiva dos estudantes sobre diversidade dentro da instituição. Através de um formulário online da plataforma Google enviado aos estudantes do campus em Curitiba, com 26 questões separadas em três seções; Identificação e perfil básico do estudante, Leis afirmativas e qual a percepção de diversidade na UTFPR. Na primeira semana do lançamento da pesquisa foram obtidas 94, 65% de respostas, já na segunda semana o questionário obteve 4,4% respostas, por fim a última semana obteve o total de 1,03% de respostas totalizando 674 respostas. Ainda com base nesta pesquisa, é possível apontar os principais dados sobre raça, renda familiar e área do conhecimento dos estudantes e ingressantes na UTFPR pelo sistema de cotas. Do universo de 674 respostas, conforme descrito anteriormente, quanto à raça e etnia dos discentes, 1,6% se autodeclaram amarelos, 75,2% se autodeclaram Brancos, 0,1% indígena, 17,8% se declaram Pardos e 5,2% se declaram Pretos. A renda per capita por família dos estudantes 3,1% inferior a meio salário mínimo, 23% entre 1 a 2 salários mínimos, 39,8% entre 3 a 5 salários mínimos, 16,8% entre 6 a 8 salários mínimos, 6,1% entre 9 a 10 salários mínimos, 11,3% acima de 10 salários mínimos. De acordo com a área do conhecimento que o estudante que estavam matriculados na (UTFPR), Ciências agrárias 0,3%, Ciências biológicas 0,7%, Ciências Exatas e da Terra 21%, Ciências Sociais Aplicadas 12,1%, Ciências da Saúde 4,5%, Ciências Humanas 8,1%, Engenharias 35,4%, Linguística Letras e Artes 17,09% do total de 670 resposta. Outro ponto é a forma de ingresso na UTFPR: 63,5% ingressaram na universidade pela ampla concorrência enquanto 36,5% aderiram aos sistemas de cotas. Disposto através das categorias de cotas 3,6% ingressaram na universidade por meio da Categoria (C1c); seguida por 28,6% ingressaram por meio da Categoria (C1s); 1,6% na Categoria (C2c); 16,5% Categoria 2 (C2s); enquanto 2,4% Categoria 3 (C3c); já 33,9% na Categoria 3 (C3s); 0% a Categoria 4 -(C4c); 13,3% Categoria 4 -(C4s). Por fim se o aluno entrou na instituição pelo sistema de cotas, 63,5 afirmou ter ingressado na instituição por ampla concorrência no processo seletivo SISU, enquanto 36,5 ingressaram na universidade pelo sistema de cotas. Dispostos a seguir os gráficos com os dados da pesquisa na UTFPR quanto à identificação e perfil básico do estudante, Leis afirmativas, qual a percepção de Ciências da Comunicação Capítulo 19 230 diversidade na UTFPR e ingressante na universidade pelo sistema de cotas: Figura 1: Perfil básico dos estudantes da UTFPR Fonte: Produção própria Com a pesquisa realizada na UTFPR, identificamos o perfil dos alunos ingressantes pelo sistema de cotas na instituição, estudantes autodeclarados pretos 5,2%, pardos 17,8%, indígena 1,6%, enquanto os alunos declarados brancos somam 75%. A renda bruta desses estudantes com base na pesquisa, menor que meio salário mínimo, 3,1% entre 1 e 2 salários 23%, entre 3 a 5 salários mínimos com 35,4%, entre 6 e 8 salários mínimos 16,8%, considerando os alunos que obtêm renda acima de 8 salários mínimos 17,4 %. A área do conhecimento de Engenharia com 35,4 % seguida pela área Ciências Exatas da Terra sendo que 36,5% ingressaram na universidade pelo sistema de cotas, enquanto 63,5% ingressaram na universidade por ampla concorrência. A categoria de cotas para o ingresso 33,9% Categoria 3 (C3c), a segunda 28,6% Categoria 1(C1s). Através dos dados, compreendemos que a sociedade ainda não conseguiu ser homogênea ou igualitária, pois alguns fatores demonstram a não inserção e noções de democracia a todos independente de raça e/ou renda. Fernandes explica que é preciso evoluir para noções menos toscas e egoístas do que vem a ser democracia, compreender que “uma sociedade nacional não pode ser homogênea equilibradamente sob a permanência de fatores de desigualdades que solapam a solidariedade nacional (FERNANDES, 1979, p. 34). Junto do autor, entendemos que tal evolução é de longo prazo mas que uma das medidas para a inclusão e inserção da diversidade na UTFPR seja por meio de ações afirmativas. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Procuramos apresentar a pesquisa sobre “Diversidade e Pluralidade Étnico- Racial, realizada na UTFPR” em 2018, partindo do conceito de diversidade cultural, Ciências da Comunicação Capítulo 19 231 abordando uma breve contextualização do histórico de leis afirmativas e regulamentação em âmbito nacional e na instituição estudada. No decorrer do processo da pesquisa foi realizada também uma pesquisa com os docentes cujo objetivo era de identificar a percepção da diversidade na UTFPR. Foram recebidas 58 respostas dos docentes do campus Curitiba. Vale ressaltar dentre as 26 perguntas, perguntamos se os professores participavam de ações à diversidade dentro da universidade. Resposta de uns dos professores “Projetos sobre gênero, migração, educação e trabalho.” Com essa descrição, notamos o quanto é necessário que outros trabalhos, movimentos e coletivos discuta e debata sobre o tema de diversidade e pluralidade não só no contexto acadêmico, mas sim em outros fatores que englobam a sociedade como um todo. Na pesquisa realizada os estudantes da UTFPR, campus Curitiba, responderam se eram a favor ou contra os sistemas de cotas na universidade, 82,9% apontou a favor enquanto 17,1% se disse contra. Dentre as justificativas, um dos estudantes justificou ser a favor do sistema devido o contexto histórico. Segundo o discente, tal contexto [...] contribuiu e ainda contribui para o acúmulo de desigualdades. O sistema de cotas é uma medida válida que trabalha as consequências dessa disparidade entre alguns grupos. Não trabalha a causa, mas por trabalhar a consequência, é de uma maneira mínima, uma certa “compensação” pela falta de suporte e apoio, que no passado, vários grupos e sofreram, gerando consequências de opressão, falta de oportunidades, entre outros... tais questões, se perduram até os dias atuais. (DISCENTE, UTFPR, 2018) Entretanto, dentre os discentes que se declaram contra o sistema de cotas, também foi dada uma justificativa. Diz o discente: “Sou contra o sistema de cotas pois somos iguais perante a lei”. Assim, concluímos que as leis de ações afirmativas e o sistema de cotas contribuem para a inclusão e inserção da diversidade cultural, bem como a percepção dessa diversidade por parte dos discentes e docentes da UTFPR. É possível apontarmos para um caminho no qual os fatores econômicos, sociais e políticos de desigualdade racial e social presente na sociedade brasileira, pode no decorrer dos anos - com a continuidade das ações afirmativas - modificar o contexto das universidades brasileiras. REFERÊNCIAS ANDIFES. IV Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Instituições Federais de Ensino superior brasileiros ano de 2014. Disponível em: <http://www. andifes.org.br/iv-pesquisa-perfil-socioeconomico-e-cultural-dos-estudantes-de-graduacao/> Acesso em 07 jul. de 2018. ALMEIDA, Nina Paiva. Diversidade na Universidade: o BID e as políticas educacionais de inclusão étnico-racial no Brasil. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ/MN/PPGAS2008. Disponível em: <http://flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/285.pdf > Acesso em 06 jul. 2018. Ciências da Comunicação Capítulo 19 232 BARROS, José Márcio, BEZERRA, Jocastra Holanda (orga.). Gestão Cultural e Diversidade: do Pensar ao Agir. Belo Horizonte : EdUEMG, 2018. [recurso eletrônico: e-book]. Disponível em <http:// observatoriodadiversidade.org.br/site/wp-content/uploads/2018/10/BARROS_e_BEZERRA_Gestao_ cultural_e_diversidade.pdf>. Acesso em 20 nov. 2018. BARROS, José Márcio. Aos leitores. IN: Revista Observatório Itaú Cultural. Número 8 (abr. jul./2009). São Paulo: Itaú Cultural, 2009. pp. 10-14. Disponível em: <https://issuu.com/itaucultural/ docs/revista-observatorio-8 >. Acesso em 20 nov. 2018. FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos Brancos. Disponível em: <https://books.google. com.br/books?id=PMZcBAAAQBAJ&printsec=frontcover&dq=Fl orestan+fernandes&hl=pt-BR&sa=X& ved=0ahUKEwiRrY7U4IbcAhXMi5AKHZ- DBS8Q6AEIODAD#v=onepage&q=desigualdade&f=false>. Acesso em 06 jul. 2018. FERNANDES, Florestan. O Negro no Mundo dos Brancos. Ed. 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Lei Nº 12.711, de 29 de Agosto De 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>. Acesso em 05 jul. 2018. REUNI. Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. Disponível em: <http://reuni. mec.gov.br/o-que-e-o-reuni>. Acesso em 05 jul. 2018. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem Preto nem Branco, muito pelo contrário cor e raça na sociabilidade Brasileira. São Paulo: Claroenigma, 2012. Disponível em: <https://books.google. com.br/books?id=8u2nBAAAQBAJ&pg=PT26&dq=desigualdade+social+lilia+schwarcz&hl=pt-BR&sa =X&ved=0ahUKEwjlg7LAnoncAhWHQZAKHUTMCJ0Q6AEIOTAD#v=onepage&q= desigualdade%20 social%20lilia%20schwarcz&f=false > Acesso em 06 jul. 2018. SOUZA, Celina. Políticas Públicas: Uma revisão na Literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n°16, jul./dez 2006, p 20-40. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/soc/n16/a03n16 >. Acesso em 06 jul. 2018. SISU. O que é o Sisu?. Disponível em: <http://sisu.mec.gov.br/inicial >. 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Apresenta alguns personagens importantes na imigração japonesa no estado por meio da história oral, que também foi utilizada para entender a cultura, através de entrevistas com diferentes gerações, mostrando o ponto de vista de cada um sobre as tradições e costumes do Brasil, país em que decidiram se estabelecer. O trabalho também pretende ilustrar alguns dos principais aspectos culturais da comunidade, externados a partir de eventos promovidos pela instituição. PALAVRAS-CHAVES: Associação Nikkei; Tradição japonesa; Cultura. Ciências da Comunicação ABSTRACT: This paper proposes a study about the Japanese traditions in the state of Espírito Santo, the beginning of the Nikkei Association and its routine, such as festivals, language courses, sports and events that involve the associates. Introducing some important characters in the Japanese immigration in the state through oral history, that was also used to understand culture through interviews with different generations, showing their views about Brazilian traditions and customs, a country where they decided to establish themselves. This paper also aims to show some of the main cultural aspects of said community externalized through the events promoted by the Association. KEYWORDS: Nikkei Association; Japanese Tradition; Culture. 1 | INTRODUÇÃO O Japão depois da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) começou a evoluir economicamente e socialmente, na educação e na saúde. Com isso, houve o grande crescimento da população em um pequeno espaço, logo, um aumento de desemprego, ocasionando a imigração. Um dos países que recebeu a maior parte dos imigrantes japoneses foi o Brasil, devido ao extenso território e à falta de mão de obra. Capítulo 20 235 Desta forma, os imigrantes ajudaram na revolução industrial brasileira. A imigração japonesa no Espírito Santo começou devido às siderúrgicas japonesas que se estabeleceram no estado. Conforme discorre SUZUKI (no prelo): O Estado do Espírito Santo teve início ao grande salto na industrialização principalmente relacionado à siderurgia a começar pela implantação da COFAVI em 1967, Hitachi Metalmecânica-1977, ELETROPLANET Filial Vitória em 1977, start-up da NIBRASCO em 1978 e CST cujo start-up em 1983. (SUZUKI, noprelo) Nesta época teve um grande crescimento da industrialização capixaba e a presença nipônica foi um dos principais motivos para este acontecimento. (SUZUKI, Prelo) Cada trabalhador trouxe a sua família e com isso o número de membros da comunidade foi aumentando. Eles vinham principalmente de outros estados, como São Paulo e Paraná, com o maior fluxo migratório japonês. De 1977 a 1994 foi criada por parte da Companhia Siderúrgica Tubarão (CST), “Sociedade Civil de Divulgação Cultural e Educacional de Vitória”, uma organização para amparar os imigrantes e seus dependentes. Em 1981, criaram a “Sundayclub”, um clube voltado ao entretenimento dos Isseis (Primeira geração, os japoneses imigrantes) e os Nisseis (Segunda geração, filhos nascidos no território brasileiro). Este clube deu origem à Associação Nikkei Vitória, o núcleo da comunidade japonesa no estado. Esta é a responsável pelo curso de língua japonesa, pelos esportes, atividades e por repassar as tradições nipônicas para os descendentes e pessoas interessadas na cultura oriental. Alguns dos pontos principais são os festivais culinários que apresentam “novas” comidas japonesas para o povo capixaba. (SUZUKI, Prelo) No início, o papel principal da associação era fornecer um estudo adequado equivalente ao país de origem para as famílias dos imigrantes, mas depois de alguns anos a instituição ganhou outros objetivos sendo o principal transmitir a cultura nipônica para os capixabas, pois muitos associados nos dias atuais são não-descendentes casados com japoneses ou famílias que possuem algum vínculo com a associação. (SUZUKI, no prelo) 2 | ASSOCIAÇÃO NIKKEI EM VITÓRIA O Espírito Santo passou por um processo intenso de industrialização, principalmente na área siderúrgica. Foram implantadas no estado empresas como Companhia Ferro e Aço de Vitória (Cofavi), Eletro Planet e Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST), entre os anos de 1967 e 1983. Segundo Minetaka Suzuki (no prelo), “junto com essas empresas vieram Técnicos, Engenheiros e Administrativos japoneses, e para compor as equipes de coordenação da empresa foram contratados muitos técnicos de cada especialidade com conhecimentos de idioma japonês [...]”. Suzuki (no prelo) explica que: Ciências da Comunicação Capítulo 20 236 Com a siderúrgica CST vieram se estalar na Grande Vitória o grupo Kawasaki Steel Corporation, e a empresa com obrigação de dar amparos para os seus funcionários criou a “Sociedade Civil de Divulgação Cultural e Educacional de Vitória”. Tendo em vista o aumento da população japonesa e de seus descendentes, foi fundada em 1984 a Associação Nikkei (SUZUKI, no prelo). De acordo com o estudo mais recente realizado 2012, são cerca de 110 famílias que estão cadastradas na associação, cerca de 345 pessoas, sendo 100 famílias com descendência nipônica e dez não nipônica. De acordo com dados divulgados pela Central Intelligence Agency (CIA) em 2016, o Brasil é o país que possui o maior número de japoneses e descendentes fora do Japão, são mais de 1,6 milhão de pessoas. O “Bairro da Liberdade” localizado na cidade de São Paulo abriga a maior colônia japonesa do mundo fora do Japão. Diferente da comunidade nipônica de São Paulo, no Espírito Santo os japoneses e descendentes vieram de outros estados, de forma que emigração fora estimulada sobretudo pela siderurgia. 3 | A PRESENÇA JAPONESA A presença do Japão no Brasil teve a sua principal importância no crescimento industrial. Segundo Saito (1989), o fluxo migratório ocorreu em três fases, diferenciandose pelo contato que os imigrantes tinham com o seu país de origem e seus objetivos no Brasil. A primeira fase ocorreu entre 1908 a 1941 e ficou conhecida pela vinda dos imigrantes agrícolas para suprir a falta de mão de obra nas lavouras de café. Já a segunda ocorreu na época pós-guerra, entre 1953 a 1962, quando o fluxo migratório declinou devido à crescente industrialização no Japão. A última dessas fases começou na década de 60 e continua até nos dias atuais, havendo o aumento de imigração devido às montagens de empresas japonesas no território brasileiro. Essa nova modalidade de imigração alcança seu ponto culminante no quinqüênio de 1969 a 1973, período cognominado de ‘milagre brasileiro’, transferiram-se e / ou instalaram-se mais de 300 empresas nesse qüinqüênio, em variados setores de atividades industriais, comerciais e financeiras, quer aplicação do capital exclusivo, quer mediante a participação na forma de joiní-venture. (SUZUKI, 1980, p.84) Segundo Saito (1989), nas duas primeiras fases, os imigrantes tinham um bom relacionamento, chamado de “espírito da colônia”, porém não ocorre o mesmo com o advento da terceira fase empresarial, devido ao tempo limitado de permanência e grande ligação com o país de origem. Na época de 1908 a 1962, os nikkeys que vinham para o Brasil estavam à procura de uma nova qualidade de vida para eles e para sustentar o restante da família que permanecia no Japão, pois geralmente vinha um dos filhos mais velho a procurar emprego. Quando vinham para o Brasil, muitos acabaram por fixar suas permanências, constituindo suas próprias famílias a partir do casamento com brasileiras, fato que implicou na reconfiguração identitária do referido Ciências da Comunicação Capítulo 20 237 grupo. 4 | IMIGRAÇÃO JAPONESA E IDENTIDADE NACIONAL O Japão é conhecido por suas tradições e uma das mais importantes, é o respeito com os mais velhos. Com a crise no Japão pós-guerra, muitos vieram para o Brasil à procura de qualidade de vida e crescimento financeiro. Como é muito comum nos fluxos migratórios, após constituir família, decidiram não mais regressar à terra natal. A presença desses imigrantes e seus descendentes inevitavelmente, acarretou novos contornos culturais que revelam em formas híbridas o encontro entre as duas culturas. “[...] a cultura brasileira inevitavelmente adquirida, passa a fazer parte da vida de tais descendentes que, além de conviver com os hábitos japoneses, também se sentem vinculados ao Brasil.” (ALMEIDA, 2007, p.7) Segundo Almeida (2007), os descendentes entendem a importância da mistura da tradição nipo-brasileira, devido ao papel dos japoneses na identidade nacional. 5 | HISTÓRIA ORAL A base principal para realização deste artigo é a História Oral, que consiste em recolher informações baseadas em experiências vividas por diferentes gerações e povos. Segundo Thompson (1998, p.197) “Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas da memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta.” Através de observações de historiadores orais, foi possível constatar que fontes mais idosas, por terem mais experiências, relatam casos específicos com enorme quantidade de detalhes. De acordo com Thompson (1998, p.204), tais fontes “[...] ao narrar sua história usam o ‘eu’ ativo, tendo como certo serem eles mesmos o sujeito de suas ações por meio das formas de falar que utilizam.” Para colher as informações necessárias, é preciso estruturar uma boa entrevista com perguntas que possibilitam extrair ao máximo todos os conhecimentos do entrevistado, permitindo ao entrevistador se aprofundar no assunto. De acordo com Thompson (1998), um bom entrevistador deve conter habilidades e qualidades essenciais para alcançar uma entrevista bem-sucedida como, por exemplo, deixar a fonte falar e buscar compreender da melhor maneira possível o que foi passado, sem contestar sempre. Para Thompson (1998, p.254) “Quem não consegue parar de falar, nem resistir à tentação de discordar do informante, ou de lhe impor suas próprias idéias, irá obter informações que, ou são inúteis, ou positivamente enganosas.” (sic) As entrevistas são realizadas a fim de conceder a quem está entrevistando, conhecimentos sobre o assunto abordado. Entretanto, algumas fontes buscam testar Ciências da Comunicação Capítulo 20 238 as habilidades do historiador oral, passando a ideia de inversão de papeis, quando o entrevistado vira entrevistador. Essa atitude dificulta o andamento do diálogo, assim, o profissional deve manter a calma e contornar a situação. As perguntas de uma entrevista podem ser feitas através de questionários fechados, em que as respostas são curtas e diretas, ou de forma livre, quando se podem obter respostas mais amplas e memoráveis das experiências vividas. Segundo Thompson (1998, p.258) “O argumento em favor de uma entrevista completamente livre em seu fluir fica mais forte quando seu principal objetivo não é a busca de informações ou evidências que valham por si mesmas, mas sim fazer um registro ‘subjetivo’ de um homem [...]”. Essas técnicas foram utilizadas em todas as entrevistas realizadas para a construção deste artigo e, a partir delas, obtiveram-se informações e dados essenciais de como viveram e como foi o processo de imigração das primeiras gerações descendentes japoneses no estado do Espírito Santo. 6 | A ENTREVISTA: INSTRUMENTAL DE COLETA DE DADOS A entrevista é uma conversa que tem como objetivo obter informações sobre determinada pessoa ou assunto. Segundo Scheuch (1973, p.171-172) “Ela tornou-se técnica clássica de obtenção de informação nas ciências sociais, com larga adoção em área como sociologia, comunicação, antropologia, administração, educação e psicologia.” (apud BARROS e DUARTE, 2014, p.62) A entrevista utilizada para a realização desse artigo é a individual em profundidade, que consiste em recolher respostas a partir de experiências vivenciadas pela fonte. Para obter o sucesso desejado, o questionário, que será dirigido ao entrevistado, deve estar estruturado de forma que permita uma grande exploração e aprofundamento do assunto. De acordo com Barros e Duarte (2014, p.63) “[...] as perguntas possibilitam ainda identificar problemas, micro interações, padrões e detalhes, obter juízo de valor e interpretações, caracterizar a riqueza de um tema e explicar fenômenos de abrangência limitada.” As entrevistas são classificadas de três formas distintas: aberta, semi-aberta e fechada. A primeira é marcada por fluir livremente, podendo ser aprofundada em qualquer momento do diálogo, não tendo uma sequência de perguntas e nem um parâmetro de respostas. Já a segunda possui um roteiro a ser seguido, porém a lista de questões-chaves pode ser adaptada ao longo da conversa. E a terceira tem a finalidade de comparar as respostas de vários entrevistados, impondo a mesma pergunta a todos, nesse caso não há um debate do assunto entre o entrevistador e o entrevistado. (apud BARROS e DUARTE,2014) Utilizando essa técnica de entrevista, o analista possui a liberdade de gerar pareceres e críticas ao assunto. Para Barros e Duarte (2014, p.81) “[...] mais do que uma Ciências da Comunicação Capítulo 20 239 técnica de coleta de informações interativa baseada na consulta direta de informantes, a entrevista em profundidade pode ser um rico processo de aprendizagem [...]” Para garantir a segurança no momento da coleta de informações, foram utilizados também instrumentos como, caderneta de anotações, gravador, telefone e internet. Ressalta-se o fato de que as falas foram transcritas integralmente, visando obter a máxima aproximação com a autenticidade do depoimento dos entrevistados. 7 | ENTREVISTA COM AMANDA YUKI Os avôs de Amanda Yuki vieram para o Brasil e tiveram seus filhos. Eles cresceram e se conheceram, tendo sempre a cultura japonesa muito presente em suas vidas. Eles se casaram e voltaram para o Japão em 1997, e em 1998 a Yuki nasceu em Hiroshima. Viveram vários anos no Japão, mas os pais de Yuki sofreram muito preconceito, pois mesmo tendo características orientais eles eram considerados estrangeiros por terem nascido no Brasil, sendo assim, não foram reconhecidos pelos vizinhos e colegas de trabalhos, o que ocasionou dificuldades para continuarem vivendo na “Terra do Sol Nascente”. Outro ponto importante foi que não conseguiram registrar a Yuki e seus irmãos no Japão. Amanda disse que não chegou a sofrer bulling, mas que esta era uma realidade muito presente na escola em que estudava, principalmente se alguém possuía características não orientais. Seus pais decidiram voltar, pois sobreviver no Japão ficou mais difícil a cada dia, e pensando em seus filhos, a família decidiu se mudar para o Brasil. Inicialmente, foram morar em São Paulo, onde Amanda e seus irmãos aprenderam a Língua Portuguesa. “Aprendi português, entrei no ensino médio e comecei um treinamento que ouvia conversas em português. A escrita no Japão, as palavras são soltas, e aqui treinava escrevendo corrido no Kumon.” (YUKI, 2018). Ela aprendeu português no Kumon e disse que foi bem difícil e que ainda hoje, após cinco anos desde que chegou ao Brasil, possui dificuldades com algumas colocações e na escrita. Várias mudanças ocorreram para que adaptar-se à cultura brasileira, e um dos fatos mais chocantes para ela foi a presença de mendigos, a desorganização e sujeira nas ruas. “Eu achei que mendigo era tudo de televisão, ai na primeira vez que eu vi eu falei ‘é TV?’ e a minha mãe falou que aqui tinha isso e fiquei muito chocada. E as ruas também, no Japão é tudo certinho e aqui não, e isso me chocou.”(YUKI, 2018) Para Yuki, outro choque de cultura foi o contato físico que faz com que a cultura brasileira difere-se da japonesa, como por exemplo, abraçar as pessoas quando acabam de se conhecer. Ela estranhou no início mas depois se acostumou, porém seus pais ainda possuem dificuldades com o contato físico até hoje, pois é diferente da cultura que está enraizada. Ciências da Comunicação Capítulo 20 240 “Nossa, eu fiquei parada tipo robô ‘o que ele está fazendo em mim’, mas depois eu percebi que é normal. Para me acostumar foi difícil, agora já me acostumei. No início falava, ‘sem abraço’, ‘não abraça’, mas com o tempo eu acostumei, mas foi difícil no começo.” Ela permaneceu durante dois anos em São Paulo e depois seus pais decidiram vir para o Espírito Santo, pois já tinham morado no estado. Quando chegou ao solo capixaba, alguns de seus amigos de Yuki falaram sobre a associação Nikkei, logo, ela foi procurar a instituição, pois já dava aulas particulares de japonês. Quando chegou, descobriu que um dos associados era conhecido de sua avó, pois na época que seus pais e avós moravam no Brasil, ele tinha uma loja de fotografia em frente ao restaurante de sua família. Quando cheguei lá tinha uma pessoa que conhecia a minha avó, pois ela teve o primeiro restaurante japonês do espírito santo e em frente tinha uma loja de fotografia do Irie san, então a minha avó conheceu e conseguiu intimidade, e ai que eu consegui, pois ele falou que a professora voluntária ia embora e iria precisar de uma professora e como estava aumentando os alunos na escola, foi uma chance para mim. (YUKI, 2018. Entrevista) Yuki leciona na Associação Nikkei aulas particulares de japonês e participa dos eventos promovidos pela instituição. 8 | MATÉRIA E ENTREVISTA DO SHIRO IRIE Shiro Irie é nascido em Taiwan durante a Segunda Guerra Mundial em 1943. Na entrevista, ele conta sobre o local em que nasceu: “Na época Taiwan pertenceu ao Japão mais de 50 anos, Mesmo nascendo em Taiwan meu registro é tudo no cartório de Japão” (IRIE, 2018. Entrevista) Quando tinha 14 anos de idade, Irie imigrou com sua família para o Brasil, permanecendo inicialmente no interior de São Paulo para trabalhar em uma lavoura de café. Depois de alguns anos seus pais se mudaram, mas ele continuou no mesmo local, pois, estudava em uma escola e começou a trabalhar como aprendiz em um estúdio fotográfico. Para se aprimorar na área, ele teria que fazer um curso e conseguir equipamentos mais profissionais. Irie teve uma oportunidade de realizar a cobertura fotográfica da comitiva japonesa que veio para a comemoração dos 400 anos do Rio de Janeiro. Assim conseguiu aprimorar suas técnicas na fotografia no Japão. Nesta comitiva estava o gran mestre do cerimônia do chá do estilo Owara, 15ª mestra da linhagem Ura Senke, o Sr. IremotoHou Um, que foi designado como representante cultural do Japão. Uma tia do Sr. Irie era representante do estilo Owara da cidade Kita Kyushu e por intermédio da indicação dela, o Sr. Irie fez a cobertura fotográfica da comitiva durante a estada no Brasil. Através do encaminhamento do Sr. Kasuhiko Kudo que fazia parte desta comitiva e professor da cerimônia do chá, o Sr. Irie conseguiu uma oportunidade de aprofundar nas técnicas fotográficas no Japão. (MATSUDA, 2013,p.2) Irie fez um curso de cinco anos em um estúdio fotográfico em Tóquio, quando retornou para o Brasil montou um estúdio em São Paulo, mas depois escolheu se Ciências da Comunicação Capítulo 20 241 mudar para o Espírito Santo, e veio com alguns equipamentos fotográficos. Quando chegou ao solo capixaba montou a sua loja de fotografia “Foto Japan” situada na Mata da Praia, em Vitória, em 1974. No início o estúdio não tinha clientes, mas com a vinda de outros japoneses para o estado tornaram-se conhecidos e a clientela passou a aumentar. Irie participou da organização da associação Nikkei no ínicio, e continua até os dias de hoje. Após trinta anos, os filhos dos associados partiram para outros estados ou para o Japão, mas a instituição continua ensinando a cultura para os descendentes e para a comunidade capixaba. 9 | ENTREVISTA COM HACHIRO OUCHI Hachiro veio para o Brasil com dezenove anos em 1960, trabalhando inicialmente com sua família, que era dona de uma mercearia em São Paulo. Ele afirma que nos cinco primeiros anos foi difícil a adaptação, devido o a cultura brasileira e a dificuldade com a língua portuguesa. Hachiro se acostumou com o novo país, quando começou a conhecer outros japoneses e entrou em um cursinho para aprender português, já que queria prestar vestibular. No Japão ele estudava para cursar medicina, mas quando tentou aqui no Brasil sentiu dificuldade devido a língua, por isso escolheu economia, pois tinha facilidade com os números. “Fui escolher uma área que tem menos complicação. Matemática e inglês pois eram matérias que eram comum no Japão. Terminei curso de economia e fiz pósgraduação em economia também.” (OUCHI, 2018. Entrevista) Depois que terminou os estudos recebeu uma proposta de um amigo para ir para o Espírito Santo para trabalhar na Vale do Rio Doce. Ele permaneceu no estado de 1974 a 1989, durante quinze anos, após este período foi transferido para um escritório da Vale em Tóquio, onde ficou por cinco anos. Quando retornou para o Brasil foi para o Rio de Janeiro, e depois de cinco anos a filial que trabalhava fechou, sabendo desta situação, um amigo de Hachiro o chamou para retornar ao solo capixaba, ficando até 2001. Após esta data, foi para Belo Horizonte permanecendo no local até 2006, depois se aposentou. “O chefe me chamou e disse que já estava na hora de me aposentar, tinha mais de 35 anos de trabalho, muito mais, e depois voltei para cá em 2007 por aí e voltei para a atividade da associação no cargo de presidente.” (OUCHI, 2018. Entrevista). Quando retornou para Vitória, recebeu a presidência da associação Nikkei, ficando cinco anos no cargo, depois passou para Nakamura. Após ficou com função de diretor da Escola de Língua Japonesa (EMOJAVI - abreviação da sigla japonesa). Ciências da Comunicação Capítulo 20 242 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os imigrantes japoneses realizaram a migração para o Espírito Santo tardiamente, começando por volta de 1960 devido às siderúrgicas japonesas que se instalaram no estado. Com a vinda dos funcionários e de suas respectivas famílias, houve a necessidade de uma instituição que ensinasse a língua japonesa com a mesma qualidade do Japão, assim criou-se a Associação Nikkei que passou por diversas transformações ao longo desse tempo. Quando os japoneses chegam ao Brasil, enfrentam algumas dificuldades para se adaptar devido às diferenças culturais. Amanda Yuki, nos primeiros contatos com os brasileiros na época do ensino médio relatou que sentiu desconforto quando as pessoas lhe abraçavam e seus pais até nos dias de hoje não conseguem se acostumar com algumas atitudes. Já Hachiro sentiu dificuldades de aceitação devido ao jeito que os clientes os tratavam, principalmente a forma de se comunicar. Isso é muito frequente entre os imigrantes, ou estranham o local pelo modo e costumes da sociedade ou pela língua. No caso do Brasil o português é uma das línguas mais difíceis por suas variantes, e também se diferencia da língua japonesa. Irie teve dificuldades, pois trouxe técnicas de sua profissão, a fotografia, na qual o povo capixaba não sabia a necessidade de tal serviço, mas teve progresso com a chegada de outros imigrantes japoneses. A Associação Nikkei possui o papel de unir as duas culturas, promovendo alguns eventos e festivais tradicionais do Japão, como a excursão para ver as cerejeiras (hanami) em Domingo Martins que acontece em julho, e o festival culinário, um evento que ocorre duas vezes por ano e oferece vários tipos de comidas típicas. Estas são formas de transmitir para os associados que preservam suas conexões japonesas e também traz para as pessoas que se interessam por esta cultura, um maior contato com as tradições nipônicas. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Sandra. Imigração japonesa e identidade nacional.Brasília: Monografia do Centro Universidade de Brasília,2007. BARROS, Antonio; DUARTE, Jorge. Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2014. OUCHI, Hachiro. Depoimento: 5 mai. 2018. Entrevista concedida a Rafaela Daima Lima. Vitória, ES, 2018. 1 arquivo.mp3 (42 min. 36 seg.). SAITO, Hiroshi (Org.). A presença japonesa no Brasil. São Paulo: T.A. Queiroz: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. SHIRO, Irie. Explicação sobre seu nascimento em Taiwan.Vitória. 2018. Entrevista concedida a Rafaela Daima Lima, Vitória, 6 de junho de2018. Ciências da Comunicação Capítulo 20 243 SHIRO, Irie. Salto a uma terra nova somente com uma câmera. Jornal São Paulo Shimbum, São Paulo, 26 de maio de 2013. Entrevista concedida a Massao Matsuda. SUZUKI, Minekata. História da comunidade japonesa de vitória.Vitória: No prelo, s.d. THOMPSON, Paul. A voz do passado: História oral.Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1998. YUKI, Amanda Kato. Depoimento: 8 mai. 2018. Entrevista concedida a Rafaela Daima Lima. Vila Velha, ES, 2018. 2 arquivo.mp3 (08 min. 19 seg.). Ciências da Comunicação Capítulo 20 244 CAPÍTULO 21 A REPRESENTAÇÃO DOS ASIÁTICOS NA TV BRASILEIRA: APONTAMENTOS INICIAIS Krystal Urbano Universidade Federal Fluminense (PPGCom UFF) Niterói - Rio de Janeiro Maria Elizabeth Pinto de Melo Universidade Federal Fluminense (PPGCom UFF) Niterói - Rio de Janeiro Obra e adaptação das autoras, baseada em sua produção para o Intercom ed. 2018. RESUMO: O objetivo desse artigo consiste em apontar inicialmente como as dinâmicas de representação asiática funcionam e são estruturadas na televisão brasileira. A noção de negritude aqui aparece como um guia para se pensar branquitude e este artigo acrescenta a problemática enfrentada por asiáticos e seus descendentes no Brasil. A premissa central é que a discriminação contra os asiáticos na sociedade brasileira, sobretudo nos ambientes das mídias locais, seja sustentada por redes da branquitude brasileira que atua de forma narcisista e em constante rivalidade com nãobrancos. PALAVRAS-CHAVE: identidades étnicoraciais; branquitude; representatividade asiática; televisão brasileira. ABSTRACT: This article have the intention to introduce how the dynamics of Asian representation work and are structured in Brazilian television. The ‘Blackness” is being using as a guide to think about whiteness and some problems faced by Asians and theirs descendants in Brazil. The central premise is that discrimination against Asians in Brazilian society, especially in the local media environments is sustained by networks of Brazilian whiteness that acts narcissistically and in constant rivalry with non-whites. KEYWORDS: ethnic-racial identities; whiteness; Asian representativeness; Brazilian television. 1 | INTRODUÇÃO No dia 14 de março de 2017, foi ao ar na Rede Globo de Televisão uma reportagem bastante controversa no programa Globo Esporte, telejornal esportivo veiculado de segunda a sábado nas tardes da referida emissora. A matéria tinha como foco o Glory of Heroes, a maior competição de artes marciais da China que desembarcaria no Brasil para uma edição inédita no ginásio do Ibirapuera na cidade de São Paulo. No dia 16 de março, o canal do YouTube Yo Ban Boo, lançou um vídeo “Fala Frango!” 1 chamado destacando as partes mais 1. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JxMHrklSC2E> Ciências da Comunicação Capítulo 21 245 desagradáveis e polêmicas dessa reportagem de quase quatro minutos de duração. As principais críticas à matéria do Globo Esporte centravam-se na questão linguística através da qual a repórter Camila Silva “brincou” com os entrevistados cobrando uma fala mais “nativa” brasileira. De fato, toda a reportagem disponível no GloboPlay2 trabalha em torno da dificuldade de alguns entrevistados falarem português-brasileiro e pouco se fala sobre as competições e a relevância do evento em si. Dentre os comentários mais significativos recebidos dos seguidores do canal Yo Ban Boo destacam-se aqueles que mencionaram o fato da repórter ser negra e ter sido capaz de reproduzir piadas discriminatórias nas perguntas direcionadas aos imigrantes chineses entrevistados na matéria. O canal, no entanto, se posicionou em defesa da repórter como mostra esse disclaimer fixado pela equipe nos comentários do vídeo: Esse vídeo é para mostrar como a mídia, no caso o Globo Esporte, normaliza esse tipo de atitude. Este vídeo não é uma crítica individual a repórter e pedimos respeito. Ela sozinha não deu esse tom à entrevista. Quem editou? De todas as perguntas que ela fez, por que colocaram só essas partes? Aquela musiquinha, a direção, quem orientou o tom das entrevistas? Ela só foi a única que expôs o rosto. Faltou noção da realidade, mas a responsabilidade é da Globo, da mídia. Comentários racistas e/ou preconceituosos serão excluídos e bloqueados. De fato, após a exibição da fatídica reportagem e sua negativa repercussão no ambiente das mídias sociais, a repórter do Globo Esporte escreveu um extenso pedido de desculpas em seu Facebook e no próprio canal do Yo Ban Boo, no YouTube, explicando que a reportagem não ficou no formato desejado por ela; que as perguntas ofensivas expressavam o oposto da sua intenção na ocasião. Não obstante, a repórter foi alvo nos dias seguintes de ataques igualmente discriminatórios devido a este episódio, tendo recebido diversos comentários depreciativos em suas mídias sociais (do tipo “pelo menos comem frango e não bananas”, “imagina se fala imita um macaco”, dentre outros). Talvez mais importante e relevante para o nosso argumento seja o fato de que entre todos os envolvidos na reportagem (produtores, editores, dentre outros), Camila tenha sido a única a se desculpar publicamente pelo ocorrido, nos levando a crer que sua posição enquanto mulher negra tenha contribuído para tal posicionamento, em oposição à atitude adotada pela emissora de TV responsável pelo programa, que não se pronunciou sobre o caso em questão. Se for consenso que identidade e representação caminham juntas, como bem nos explica Stuart Hall (1997, 2000, 2003), não significa que ambas caminhem apoiando-se mutuamente. Sendo a identidade uma “arena de disputas pelo direito de significar” e a representação “uma instância que materializa as dinâmicas constitutivas da primeira” e, concebendo ambas como um “processo discursivo”, pode acontecer que “identidades fluidas e cambiantes sejam fixadas por sistemas de representação estáticos, pautados por essencialismos e mediados pelo discurso do senso comum” (MONTEIRO, 2008, p. 08). Com efeito, no que diz respeito à representatividade midiática, os brasileiros de 2. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/5726148/>. Ciências da Comunicação Capítulo 21 246 ascendência asiática têm pouca visibilidade na mídia brasileira, sendo rara a presença destes em comerciais, telenovelas e filmes e, quando ocorrida, fundamentalmente é marcada por estereótipos recorrentes, ocasionando uma sub-representatividade nesse universo3. Na teledramaturgia nacional, por exemplo, atores de origem oriental apenas conseguem papéis caricatos e que remetem ao estereótipo do japonês/ asiático, como de feirantes e pasteleiros ou de aficionados por tecnologia, praticantes de artes marciais e vendedores de sushi, gueixas e samurais. Em testes para um papel na televisão, há relatos de atores que são obrigados a forçar um “sotaque japonês”, mesmo estando a comunidade nipônica na quinta geração no Brasil. Dificilmente um ator oriental consegue um papel que não tenha relação com a sua origem étnica, que é potencializada nessas representações. O objetivo desse artigo consiste em apontar inicialmente como as dinâmicas de representação asiática funcionam e são estruturadas na televisão brasileira. Temos a intenção de pensar de forma interseccional não apenas levando em consideração a tríade de raça, gênero e sexualidade (CRESHAW, 1995; LUGONES, 2008; BIDASECA, 2010), como também as realidades de grupos (raciais) não-brancos distintos com um problema em comum: o branco. A noção de negritude aqui aparece como um guia para se pensar branquitude4 e este artigo acrescenta a problemática enfrentada por asiáticos e seus descendentes no Brasil. Tendo em vista atingir os objetivos propostos, o argumento do artigo se divide em duas partes. A primeira destaca de forma mais contingente o branco como foco do problema do racismo contra asiáticos e, na segunda parte, discutimos sobre a forma que os asiáticos e seus descendentes costumam ser retratados na mídia televisiva brasileira através de alguns casos previamente elencados. Nossa aposta é que a discriminação contra os asiáticos na sociedade brasileira, sobretudo nos ambientes das mídias locais, seja sustentada por redes da branquitude brasileira que atua de forma narcisista e em constante rivalidade com não-brancos. 2 | FOCO DO PROBLEMA RACIAL: A BRANQUITUDE NA RELAÇÃO COM OS “OUTROS” Quando se trabalha com a noção de raça, é comum que o foco das discussões não seja o branco e que o “privilegiado” como “objeto de estudo” seja o negro. Isso porque a branquitude foi construída como padrão, isenta de problemas, ou seja, como 3. O ator Carlos Takeshi após ter dito em agosto do ano passado, semanas antes da estreia de “Sol Nascente”, um dos casos que será abordado nesse artigo: “Adoro Luis Melo. Adoro Giovana Antonelli. Odeio discriminação. Odeio preconceito. Por que trocaram (o ator) Ken Kaneko? Oriental não pode ser protagonista? Vivem me pedindo para forçar sotaque e quando o ator tem sotaque naturalmente é descartado para um papel de destaque? Vão ter que explicar muito bem. Eu não engulo a mestiçagem que criaram para o personagem”. Disponível em: <https://www. otvfoco.com.br/ator-que-criticou-globo-por-japoneses-fakes-entra-para-sol-nascente/>. 4. Branquitude (ou branquidade) está sendo usado neste artigo como referente à noção de identidade branca. Ao longo do artigo será possível compreender minimamente como ela é construída e alguns dos problemas que surgiram a partir dela. Ciências da Comunicação Capítulo 21 247 o ideal. O negro, por outro lado, foi construído como o extremo oposto do branco: atrasado, pecador, tribal, selvagem e o mais feio de todos. O problema portanto, normalmente é encontrado no não branco, e dificilmente é visto no branco. Dentro da lógica criada a partir da hierarquia racial, no entanto, existem muitos “níveis” entre o negro e o branco. O asiático (amarelo), nesse sentido, posiciona-se em uma posição intermediária e complicada para se estudar, pois a bibliografia mais densa que existe no Brasil trabalha justamente o contraste entre o branco e o negro. A colonização epistemológica colabora com essa dinâmica, pois permite que o branco controle a produção o suficiente para que a branquitude não receba o destaque necessário mesmo em trabalhos sobre etnicidade e racialidade, pois não falar sobre o problema da construção da branquitude ajuda na manutenção de seus privilégios (SILVA; 2017). A branquitude, enquanto elemento resultante da estrutura colonialista europeia foi e continua sendo responsável pela estrutura de poder mundial atual (SILVA, 2017), ou seja, as diferenças raciais não são apenas um “legado histórico” inflexíveis e sim, constantemente reforçadas, adaptadas e materializadas (SCHUCMAN, 2012). Os estudos críticos da branquitude nasceram da percepção de que era preciso analisar o papel da identidade racial branca enquanto elemento ativo nas relações raciais em sociedades marcadas pelo colonialismo europeu. Percepção esta que esteve presente nos estudos de intelectuais como W. E. B. Du Bois (1920, 1935); Frantz Fanon (1952); Albert Memmi (1957), hoje compreendidos como precursores dos estudos sobre a branquitude (CARDOSO, 2008; 2010 e 2014). Tais intelectuais, em diferentes contextos históricos e sociais, chamaram a atenção para os efeitos da colonização e do racismo na subjetividade não só do negro, mas sobretudo, do branco. Leitura que desafiava a interpretação unívoca a qual via o negro como “objeto de estudo”, “tema de estudo” privilegiado para compreensão das relações raciais. Seguindo esse lastro, na década de 1990, intelectuais norte-americanos iniciaram uma reflexão sistemática sobre o fenômeno da branquitude e seus efeitos. O tema difundiu-se rapidamente por diferentes áreas de estudo (direito, arquitetura, geografia, antropologia, sociologia, psicologia). (SILVA, 2017, p. 21) Como demonstrou o pesquisador Lourenço Cardoso (2008, 2010 e 2014), no Brasil os estudos sobre branquitude emergiram de forma mais sistemática a partir do ano 2000. (...) Os primeiros intelectuais que se ocuparam em entender o papel da identidade branca nas relações sócio-raciais em nosso país foram Alberto Guerreiro Ramos, Edith Piza, César Rossato e Verônica Gesser, Maria Aparecida Bento e Liv Sovik (CARDOSO, 2008). (SILVA, 2017, p. 25) Como Schucman (2012) descreveu, o poder da branquitude funciona em rede. É importante ter isso em mente ao pensarmos nas mídias contemporâneas: os envolvidos fazem parte de uma rede de poder que se auto privilegia pautando-se na própria mentalidade de mundo racializada e na rivalidade com não-brancos. Como a raça é uma categoria relacional, ela se adapta ao contexto. Para que ela se adapte, ela precisa atualizar as lógicas das hierarquias para que alguém seja considerado o “mais branco” e permaneça ao topo, dessa forma a rivalidade se faz necessária. O “medo branco”5 também pode ser relacionado com essa rivalidade pois a resistência 5. O “medo branco” tratado aqui é referente ao que Schucman trabalhou em sua tese: o temor que a hierarquia racial se inverta. Mas, no nosso entendimento, além disso é o medo que vem da ideia de que criar hierarquias raciais é algo intrínseco ao ser humano. Ou seja, a branquitude tem dificuldades em enxergar um mundo em que Ciências da Comunicação Capítulo 21 248 do branco aos não-brancos aparece quando o mesmo acredita que o outro pode olhar para ele como algo negativo retirando o seu privilégio como “ser ideal” e/ou normativo. Além disso, se esses não-brancos forem auto-suficientes, o branco tende a acreditar que eles podem rejeitá-lo e mudar toda a dinâmica na qual o branco se sente em vantagem e confortável. Para entender a branquitude é importante entender de que forma se constroem as estruturas de poder concretas em que as desigualdades raciais se ancoram. Por isso, é necessário entender as formas de poder da branquitude, onde ela realmente produz efeitos e materialidades. (SCHUCMAN, 2012, p. 23) Destacamos aqui, duas entrevistas presentes na tese de Schucman (2012, p. 75-76) que focam na relação branco-negro, mas que pode nos ajudar a compreender como o branco se enxerga. A pesquisadora conversa com dois paulistas brancos que falam sobre ausência de negros ocupando alguns cargos no mercado de trabalho. Um deles afirmou que em sua loja prefere contratar vendedores brancos para que o cliente se identifique e a outra afirma que na empresa onde trabalha, mesmo que tenha estudado em uma universidade com diversos estudantes negros, não encontra essas pessoas ocupando cargos como o dela. Aqui é possível observar que o próprio dono da loja percebeu, através da própria vivência, a dificuldade que os brancos têm de identificar-se com não-brancos e que independente da qualificação do negro, ele tende a ser rejeitado de espaços que podem colaborar com o seu crescimento pessoal e profissional porque a sua imagem ocupando espaços de poder acionam o “medo branco” já mencionado. No momento em que o branco ocupa o protagonismo de não-brancos através do Whitewashing6, é importante observar a intenção de se constituir como centro e/ou referência. Ou seja, existe uma tendência e um esforço em se legitimar como central em todas as ocasiões em que se insere. Além disso, o branco, devido a sua personalidade narcisa, acredita que ele próprio eleva a qualidade de qualquer cultura ao apropriar-se dela (CARDOSO, 2014). Mas essa não é uma atitude meramente individual. A coletividade sistematizou-se (em redes) para funcionar dessa forma guiada por noções de hierarquia racializada. O branco Narciso ou narcísico é aquele que enxerga, porém, com um detalhe, enxerga somente a si (Bento, 2002a,b). O seu espelho é a uma imagem de fotografia. Uma imagem congelada. Ele é a expressão do divino, do belo, da inteligência. Com efeito, o branco Narciso somente tem olhos para si. Ele é enamorado por si. E como o branco Drácula, faz com que todos os outros não-brancos sejam apaixonados por ele. Somente o branco é passível de se apaixonar por si mesmo. Nos termos que poderemos considerar como sadio. Somente ao branco é possível, “beberse”, “devorar-se”, ser Narciso. Seria uma característica restrita ao seu grupo a possibilidade de amor-próprio, porque ele é desejo. Enquanto, os Outros são repulsivos, feios, patológicos (Ramos, 1995[1957]b). (CARDOSO, 2014) Arriscariamos dizer que a apropriação do branco brasileiro das culturas asiáticas as diferenças não se organizem verticalmente. 6. Neste artigo utilizamos o termo para nos referirmos ao ato de atores brancos protagonizarem papéis originalmente asiáticos. Ciências da Comunicação Capítulo 21 249 invisibilizando o asiático (tornando-o bizarro e risível) sentindo-se superior enquanto utiliza seus adereços e ocupa seus espaços é a forma que o branco criou de identificarse com o que é do outro e produzir novas identidades brancas, pois o apagamento de não-brancos possibilita que brancos sejam referência para eles mesmos mesmo quando estão se apropriando de culturas originárias de povos considerados não- brancos. Dessa forma, a branquitude de adapta a diferentes contextos, produz novas identidades, atualiza as lógicas de hierarquia e consegue sobreviver como detentora de privilégios. É a partir dessas adaptações que é possível observar também as hierarquias criadas entre os próprios brancos: os “encardidos”, os brancos e os branquíssimos descritos por Schucman (2012). Hierarquias essas pautadas por religiões, nacionalidades, fenótipos, culturas, etc. Nessa lógica, os branquíssimos carregam a ideia de “pureza” e os brancos e “encardidos” carregam identidades mais “flexíveis” e “mestiças”. No entanto, Cardoso (2014) e Schucman (2012) irão afirmar que brancos, apesar dos obstáculos materializados pela branquitude, têm a capacidade de autorreflexão a respeito das próprias identidades racializadas. Cardoso (2014), inclusive, irá denominá- los como branquitude “crítica”, enquanto Schucman (2012) afirma que o branco que possui “relações de afetos não hierarquizadas” com não-brancos tende a ter maior facilidade de autorreflexão e a rejeitar a hierarquia racial criada pela branquitude da qual não desejam pertencer. Porém, é importante destacar que apesar dessa capacidade de autorreflexão é extremamente difícil encontrar evidências de sujeitos isentos de racismo. 3 | DA PRESENÇA E (IN)VISIBILIDADE DO ASIÁTICO NAS MÍDIAS BRASILEIRAS: O CASO TELEVISIVO A construção da imagem do asiático no Brasil é feita desde o início do século 20, quando o governo passou a incentivar a vinda de imigrantes para compor a mão de obra nacional, após o término da escravidão. Nesse imaginário, explica historiadores, houve uma “castração” do homem asiático, ao mesmo tempo em que a mulher foi hipersexualizada7. (ANDO FILHO, Nexo Jornal, 2016) A representação dos asiáticos (e brasileiros de ascendência asiática) na mídia brasileira pouco mudou com o decorrer do tempo. Isto é, ainda que existam muitos descendentes de asiáticos no Brasil (2,08 milhões segundo o censo de 2010), eles são vistos como “o outro”, o brasileiro não legítimo e o outro não pode apoderar-se de um espaço que é majoritariamente “branco”, pois a branquitude se constrói como “lugar de poder” e “símbolo de dominação” (SILVA, 2017). Apesar disso, sua presença 7. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/07/27/Jovens-de-origem-asi%C3%A1tica-se-mobilizam-por-maior-representatividade> Ciências da Comunicação Capítulo 21 250 pode ser sentida em casos localizados que seguem nesse texto. Quem não se recorda da colorida personagem Miyuki, interpretada por Daniele Suzuki, na telenovela teen Malhação, da irreverente participante da terceira edição do Big Brother Brasil, Sabrina Sato, ou mais recentemente, da primeira protagonista oriental da Globo, a Tina de Malhação - Viva a Diferença, interpretada por Ana Hikari? O fato é que desde Daniele Sukuki à Ana Hikari, novelas e programas televisivos de grande audiência junto a população ainda reforçam as mesmas imagens estereotipadas, ganhando novos adereços, muitos destes recorrentes da intensa penetração dos produtos pop que compõem a Japão Mania desde os anos 1990 no Brasil (URBANO & ARAUJO, 2018). O esquema “sushi-mangá-pokemon” que refere- se a popularização do pop japonês na sociedade brasileira, antes de mais nada, conota uma reafirmação de vários estereótipos do nipodescendente, ampliando o processo radical de exotização (RIBEIRA, 2011). Já no caso dos coreanos, a questão da representatividade (ou falta dela) nas mídias locais se coloca ainda de maneira mais contundente, uma vez que sua ausência favoreceu leituras sobre esses imigrantes, seus descendentes e sua cultura, onde o Japão e seus imigrantes ocupam seu principal referencial de “asianidade” (URBANO & ARAUJO, 2018). Outra questão fundamental que se coloca, diz respeito à ausência de referências nas mídias locais sobre a sexualidade dos brasileiros de ascendência asiática ou da sexualidade em si mesma, o que levanta questionamentos concernentes às intersecção entre raça/gênero/sexualidade. Neste contexto, é de fundamental importância pensar a intersecção entre raça/gênero/sexualidade como expoentes de discursos e práticas libertadoras que visam romper com idéias dominantes e conservadoras presentes nas sociedades que se desdobram nos movimentos feministas e anti-racistas. Quem invoca o conceito de “intersecção” é Kimberly Creshaw (1995) para analisar em conjunto uma série de variáveis que vão desde a violência doméstica a políticas anti-racistas, por meio de outras ações opressivas com base em múltiplas variáveis. Trocando em miúdos, Creshaw (1995) aponta que há uma opressão intercategorial, e que se torna difícil estudar e interpretar essas lutas sem uma análise interseccional. Cabe a esta batalha analítica o objetivo de encontrar formas de interpretar as diferentes ferramentas de poder que nos deram a episteme eurocêntrica: colonialista, capitalista e patriarcal (BIDASECA, 2010; LUGONES, 2008). Uma vez que “a casa do amo não se derruba com as ferramentas do amo” (LORDE, 1979), parece que necessitamos encontrar novos caminhos interseccionais que nos permitam desarmar as estruturas de pensamento eurocêntrico. No caso das mulheres asiáticas, sua posição histórica de objeto de fetiche – uma atitude que não é exclusiva dos brasileiros, mas um problema de âmbito internacional – tidas no imaginário do senso comum como submissas, caladas e dóceis, como destaca Carolina Ricca, de ascendência sino-japonesa: “Como mulher brasileira de ascendência asiática, eu sinto que as compreensões sobre opressão reúnem muito essa fórmula que é etnia, raça e gênero, pois querendo ou não existe uma objetificação Ciências da Comunicação Capítulo 21 251 imensa sobre o meu corpo, e uma fetichização sobre esse corpo e essa cultura que em fenótipo acompanha ela”8. Tal imaginário fetichista9 pode ser evidenciado em comentários recorrentes aos asiáticos brasileiros como “adoro pegar orientais” ou “sempre quis namorar um(a) japonês(a)”. Já no caso masculino, a sexualidade foi e ainda é, em grande parte, omitida ou tida como algo incipiente, com pouco vigor e até feminizada nos estereótipos veiculados na sociedade brasileira, estendendo-se assim aos demais brasileiros de ascendência asiática – coreanos, taiwaneses, okinawanos, dentre outros - (insivisibilizando-os, por tabela) que residem em nosso país. Um exemplo particularmente elucidativo desta dinâmica discursiva da ordem do senso comum acerca dos asiáticos brasileiros presente na mídia brasileira se dá no âmbito da teledramaturgia nacional. Na telenovela “Belíssima”, por exemplo, que foi produzida e exibida pela Rede Globo entre 7 de novembro de 2005 e 7 de julho de 2006 (e atualmente encontra-se em exibição no Vale a Pena Ver de Novo), encontramos um indicativo poderoso associado ao argumento que expomos aqui, a partir da construção discursiva do personagem Takae Shigeto, interpretado pelo ator Carlos Takeshi. O retrato produzido por Silvio de Abreu de Takae não poderia ser mais estereotipado: dono de uma quitanda que também funciona como peixaria, Takae é casado com Safira (Claudia Raia) que, por sua vez, terá um caso com o mecânico do bairro, interpretado por Reynaldo Gianecchini, compondo assim um triângulo amoroso. A construção narrativa de Takae se coloca como importante indicativo dessa construção discursiva da ordem do senso comum sobre o homem nipodescendente que veio se formando nas mídias nacionais. Contudo, é pena que a família do Takae de ‘Belíssima’ seja uma caricatura do que se acha que são os japoneses. Não sei se o núcleo grego ou o judeu também estão caricatos, mas o fato é que o pai Takae é um exagero, apesar de engraçado. Sinceramente, alguém conhece um japonês que age como ele? (RIBEIRA, 2011, p. 95). Já na novela “Geração Brasil”, produzida e exibida pela Rede Globo entre maio e outubro de 2014, Rodrigo Pandolfo interpretou Shin-So, um sul-coreano que rompeu relações com seu irmão gêmeo e veio para o Brasil, onde trabalha como repórter de celebridades na Parker TV, comandando os principais programas deste canal de TV a cabo. Para além da representação exótica e construção discursiva do personagem, notadamente inspirada no rapper Psy e na indústria da música k-pop, talvez mais curioso seja o fato de que o ator utilizou ao longo das gravações uma espécie de fita adesiva para mudar o formato dos olhos10. Mais do que isso: a escolha de atores 8. O que move o feminismo asiático no Brasil? Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HsUHTvgOLQU> 9. Pressionado pela audiência de Gugu Liberato, no SBT, que exibia duelos entre homens e mulheres ensaboados no famoso quadro da banheira, em 1997, o “Domingão do Faustão” da Rede Globo de Televisão apresentou o quadro “sushi erótico”, com as especialidades japonesas servidas sobre o corpo de mulheres nuas. As câmeras da emissora mostraram nus frontais por volta das 17h. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/ 236036-exu-sushi-erotico-e-hipnose.shtml?loggedpaywall#_=> 10. Para o carnaval de 2008 a modelo e rainha de bateria da Escola de Samba Porto da Pedra Ângela Bismarchi se submeteu a uma cirurgia de orientalização, na qual teve seus olhos repuxados por fios de ouro, para se integrar Ciências da Comunicação Capítulo 21 252 brancos para interpretarem personagens de origem asiática, enquanto prática corporativa ainda disseminada pelas emissoras de televisão no país, não nos parece justificável dado a presença histórica e relações bilateriais estabelecida entre Ásia e Brasil iniciada ainda no século XIX. Mais recentemente para a novela “Sol Nascente”, também produzida e exibida pela Rede Globo no ano de 2016, atores orientais que fizeram teste para os papéis foram dispensados e a emissora escalou artistas brancos para interpretar personagens de origem japonesa na novela. Dada a importância do núcleo japonês para todo o desenrolar da trama (expressado no nome da produção, por exemplo), os integrantes da comunidade nipônica brasileira, atores de ascendência asiática e seus simpatizantes acusaram a emissora de racismo e de fomentar o Yellowface, prática que não é novidade na Rede Globo, tampouco no mercado audiovisual mundial: “Em “Sol Nascente”, próxima novela das 18h da Globo, com estreia no fim de agosto, as trajetórias de uma família japonesa e de uma italiana se fundem no romance entre seus primogênitos, vividos por Giovanna Antonelli e Bruno Gagliasso. Uma brasileira órfã adotada pelo padrasto japonês foi a solução encontrada pela emissora para acobertar uma possível estranheza do público ao ver Antonelli protagonista do núcleo nipônico. Não que a compatibilidade entre a etnia dos atores fosse preocupação, já que o patriarca japonês, Kazuo Tanaka, será vivido por Luis Melo” (Folha de São Paulo, 2016). A repercussão do fatídico episódio de Sol Nascente no meio artístico e junto às entidades de preservação da cultura asiática foi tanta, que diversas sátiras, paródias11 e memes envolvendo o ator Luís Melo e a atriz Giovanna Antonelli, passaram a circular nas redes digitais, demonstrando assim que questões sobre identidade e representação12 vem ganhando bastante presença no cenário contemporâneo, neste caso, impulsionado pelos movimentos dos asiáticos brasileiros nas mídias sociais, denotando assim uma militância asiática que, pouco a pouco, vem se mobilizando a partir deste meios. No nosso entendimento, o episódio consiste num poderoso indicativo de que a mídia local brasileira, aqui representada pela teledramaturgia nacional, trabalha de forma incisiva na desvalorização do não-branco desrespeitando a paisagem cultural do país. Esse sistema favorece discursos e micro-agressões que revelam um imaginário racial caricatural e essencialista pelo qual os brasileiros de ascendência asiática são “imaginados” no Brasil. Ademais, é importante ressaltar que o uso da expressão “não-branco” no masculino, para além da gramática, representa a dominância masculina como padrão da branquitude. Como argumento de minimizar os riscos e potencializar os lucros de bilheteria, o mercado cinematográfico representado pela indústria hollywoodiana opta o enredo da escola que abordou os 100 da imigração japonesa na avenida. Disponível em: <http://ego.globo.com/Gente/Noticias/0,,MUL314554-9798,00-ANGELA+BISMARCHI+DECIDE+VIRAR+JAPONESA+DE+VEZ+E+RECUPERAR+A+VIRGINDADE.html> 11. Paródia da novela Sol Nascente no canal Yo Ban Boo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JWPHDYxbqII> 12. Vídeo do canal Yo Ban Boo | “O que significa se sentir representado”? Disponível em: <https://www.youtube. com/watch?v=J2HUE-z9eHk&t=267s> Ciências da Comunicação Capítulo 21 253 frequentemente pela prática do Whitewashing. A prática, antiga e recorrente da indústria cinematográfica estadunidense, consiste em escalar um elenco de atrizes e atores brancos para papéis que, fora da ficção, seriam ocupados por pessoas de raça, cor ou etnia13 diferentes, como asiáticos, latinos, negros ou indígenas. Além disso, durante muito tempo, o cinema estadunidense fez uso de tinta para transformar atrizes e atores brancos em personagens – geralmente exagerados, burlescos e carregados de estereótipos – negros (Blackface) ou asiáticos (Yellowface)14. O Whitewashing, embora se esconda e pareça uma questão e decisão puramente de cunho mercadológico, consiste num problema quando se tem grupos étnico-raciais sub-representados nas produções culturais que circulam em caráter global devido a uma percepção racista de qualidade proveniente da branquitude que detém poder sobre essas produções. Uma pesquisa publicada e reproduzida pelo Nexo Jornal em 2017 sob o título “O que é whitewashing. E por que o cinema é tão criticado por isso”15 traz dados sobre a representatividade étnico-racial no entretenimento em filmes de 2011 a 2015. Ela foi intitulada “Inclusão ou invisibilidade?” e conduzida por pesquisadores da USC (Universidade do Sul da Califórnia), na unidade de Los Angeles, cidade que abriga o polo cinematográfico de Hollywood. A pesquisa aponta que metade dos filmes estadunidenses daquele ano não tem nenhum personagem negro ou asiático. E que, olhando para os bastidores, a proporção de diretores brancos é de 7 para 1 de raça, cor ou etnia diferentes. Já o relatório anual sobre diversidade em Hollywood, publicado em abril de 2017 pela UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), aponta que entre 2011 e 2015, o número de protagonistas não-brancos em filmes variou de 10,5% (2011) e 16,7% (2013) para 13,6% (2015). Parte das explicações sobre a recorrência desse tipo de prática, pelo lado de quem produz filmes e séries nos EUA, recai sobre a dificuldade de se encontrar atrizes e atores para os papéis. Masi Oka, um dos produtores do filme “Death Note”, lançado em agosto de 2017 pela Netflix, justificou ao responder a acusações de Whitewashing (o filme adaptou o enredo do anime japonês para se passar nos EUA com protagonistas brancos) acrescentando que os estúdios cobraram a busca por atores asiáticos e que eles estavam conscientes da questão. 13. Quando destacamos três termos que parecem se referir à mesma coisa (raça) ou utilizamos o termo “étnico-racial”, estamos destacando que uma identidade racializada pode estar relacionada à cor da pele da pessoa, ao fenótipo como um todo, à sua religião, à sua nacionalidade, à sua cultura e que todas essas e outras variantes podem estar sendo consideradas ao mesmo tempo. 14. Alguns exemplos incluem o personagem negro interpretado por Al Jolson no musical “O cantor de Jazz” (1927); e o caricato japonês Sr. Yunioshi, feito pelo por Mickey Rooney em “Bonequinha de Luxo” (1961). O truque de maquiar atores, que ganhou o nome de Blackface (cara preta) e Yellowface (cara amarela), perdeu força na segunda metade do século XX. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/08/30/O-que-%C3%A9-whitewashing.-E-por-que-o-cinema-%C3%A9-t%C3%A3o-criticado-por-isso>. 15. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/08/30/O-que-%C3%A9-whitewashing.-E-por-que-o-cinema-%C3%A9-t%C3%A3o-criticado-por-isso>. Ciências da Comunicação Capítulo 21 254 Nossos diretores de casting [seleção de elenco] fizeram uma extensa busca por atores asiáticos, mas não conseguiram achar a pessoa certa. Os atores com quem conversamos não falavam inglês perfeitamente… e os personagens foram então reescritos (Nexo Jornal, 2017). Nossa hipótese diante todo o exposto é que embora os asiáticos brasileiros (sobretudo, japoneses e seus descendentes) pareçam ter tido relativo êxito em construir uma imagem positiva do Japão e de si próprios enquanto “minoria modelo” no Brasil, a partir da circulação de imagens e sonoridades japonesas nas mídias e fora delas (URBANO & ARAUJO, 2018), isso contribuiu para uma representatividade estática e pautada por um exotismo que veio se consolidando nas mídias em nosso país. A figura do(a) “japa”, sempre associada a ideais de eficiência e esforço, de um dom natural que emerge naturalmente associado a partir do fenótipo, e corroborado pelo mito da “minoria modelo” embora num primeiro olhar pareça ter uma conotação positiva, desvela, paradoxalmente, o véu dessa construção discursiva da ordem do senso comum, no qual os brasileiros de ascendência asiática são imaginados sempre como o “estrangeiro e/ou outro não-pertencente” ao local, levantando questões concernentes aos mecanismos pelo qual opera o racismo contra o asiático no Brasil. (...) o brasileiro descendente de japonês, mesmo que esteja no Brasil pelo número igual de gerações que um brasileiro descendente de imigrante russo, por exemplo, é considerado japonês e não brasileiro. Isso deixa claro que o tripé consagrado por Gilberto Freyre como “o povo brasileiro” - o branco colonizador, o negro escravo e o índio nativo - são aqueles que dividem no imaginário de nossa cultura a condição de brasileiros. (SCHUCMAN, 2017, p. 69) Dois episódios recentes da TV aberta brasileira nos remetem diretamente às questões que abordamos até aqui. O primeiro caso também é originário na Rede Globo de televisão, envolvendo a apresentadora Angélica em seu programa atual “Estrelas”, exibido nas tardes de sábado na referida emissora. Na matéria exibida16, a apresentadora visita o bairro da Liberdade em São Paulo acompanhada da cantora Paula Fernandes e da dupla sertaneja Marcos e Belutti. Para além das piadas recorrentes por parte da apresentadora e das celebridades integrantes da matéria, o que fica explícito é o caráter exótico pelo qual os brasileiros de ascendência asiática e sua cultura são construídos exoticamente a partir das narrativas produzidas pelas (e nas) mídias e frequentemente reforçado pelas celebridades e apresentadores locais. Outro exemplo recente inclui a apresentação do quarteto de k-pop K.A.R.D em 2017 no programa Raul Gil17, exibido no SBT e apresentado também nas tardes de sábado. O referido episódio é extremamente importante para entendermos as recorrentes micro-agressões contidas no ato aparentemente inocente de “puxar os olhos”, para emular as características orientais. Com efeito, torna-se imperiosa a pergunta: afinal, por quais mecanismos opera o racismo em torno dos brasileiros de múltiplas ascendências asiáticas que residem em nosso país? De fato, os mecanismos 16. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/6314200/> 17. Programa Raul Gil em ocasião da visita do K.A.R.D completo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kA_xu8tlePE&t=6s> Ciências da Comunicação Capítulo 21 255 do racismo contra asiáticas/os no Brasil parecem ainda não serem bem compreendidos, muito menos a formulação da ideia de solidariedade entre não-brancos, principalmente no seio das colônias asiáticas em território brasileiro, como o episódio “Fala Frango”, que abriu esse artigo, bem nos demonstrou. Ao longo da sua existência, a televisão brasileira passou por momentos de adaptações e re-significações tentando acompanhar as transformações da sociedade. A programação televisiva, em especial o telejornalismo, os programas de entretenimento e as telenovelas, reproduzia tendências e estilos do exterior para, com o passar dos anos, construir e formar um caráter televisivo brasileiro, com características próprias, vinculadas às questões nacionais (KILLP, 2003; MATTOS, 2002). Apesar de a instituição televisiva deter um senso de legitimidade, especialmente o telejornalismo que construiu uma autoridade comprometida com a verdade e o conhecimento, as análises presentes neste trabalho mostram que a abordagem de certos assuntos pode apresentar falhas aos olhos de quem possui um conhecimento maior sobre o tema ou está inserido em um meio que lhe fornece informações mais completas. A aparente falta de proximidade cultural (STRAUBHAAR, 1991), não poderia justificar, no caso específico brasileiro, as micro-agressões pelas quais os brasileiros de ascendência asiática e sua cultura são submetidos a partir de um discurso midiático altamente estereotipado e exotizado que persiste em se disseminar. 4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando iniciamos a produção deste artigo nos deparamos com a dificuldade de encontrar textos sobre branquitude que discutissem sobre a relação entre o branco e o asiático, pois o maior foco dos estudos críticos da branquitude no Brasil está no contraste entre o negro e o branco. Depois entendemos que essa relação entre estudos sobre negros e asiáticos não é apenas interessante como fundamental, pois a negritude enquanto campo epistemológico, segundo nossas referências, foi capaz de enxergar pioneiramente o papel do branco na construção do racismo e acumular informações fundamentais para o entendimento das hierarquias raciais. Em outra instância, o asiático ocupa outro papel dentro dessas hierarquias raciais e é capaz de mostrar realidades entre os extremos. Nesse sentido, é importante também destacarmos o importante papel dos pesquisadores brancos, que através de seus privilégios e espaços dentro das redes da branquitude, foram capazes que colher informações que dificilmente seriam compartilhadas com não-brancos. Quando a representatividade asiática é questionada, é bastante recorrente que fontes que abordem a noção de negritude sejam acionadas. Isso provavelmente acontece porque a literatura sobre questões raciais voltadas para os problemas enfrentados por negros é muito mais densa e direta no Brasil podendo, assim, servir como referência para outros grupos étnico-raciais não-brancos. No entanto, negros e asiáticos, como vimos aos longo do artigo, são estereotipados, tratados e exotizados de Ciências da Comunicação Capítulo 21 256 maneiras diferentes nos mesmos espaços. As mídias brasileiras podem ser entendidas neste artigo como exemplos de espaços desses acontecimentos. Essas mídias, por sua vez, são majoritariamente pertencentes à branquitude (ou branquitudes, esta pois esta não é uniforme) cujo funcionamento se estrutura através de redes. Pouco se fala da representatividade asiática nos meios de comunicação brasileiros e o enfoque na atuação da branquitude nesse processo é menor ainda. A intenção deste trabalho foi demonstrar como a forma que asiáticos são retratados na televisão brasileira está diretamente relacionada com a construção da branquitude que detém o poder sobre essa mídia. A branquitude aparece, dessa forma, como identidade relacional criada por um coletivo em rede que se auto privilegia motivado pelo “medo branco” e pelo narcisismo branco que acionam a rivalidade do branco com os não-brancos aqui mencionados (negros e asiáticos). No caso específico da teledramaturgia nacional, a contratação de atrizes e atores etnicamente diversos para papéis de destaque e correspondentes não costuma acontecer com frequência na televisão local, o que provoca reações segundo as quais é preciso melhorar a representatividade das minorias não-brancas nas produções televisivas e nas mídias locais. Não podemos esquecer também momentos em que não-brancos atacam não-brancos de grupos étnicos-raciais diferentes dos seus e reproduzem o racismo estruturado pela branquitude conforme o caso que abriu nossa discussão demonstrou. Essas e outras questões pertinentes à discussão aqui apresentada, serão aprofundadas mais adiante, no desenrolar de nossa investigação. REFERÊNCIAS BIDASECA, Karina. Perturbando el texto colonial. Los Estudios (pos)coloniales en América Latina. Buenos Aires: SB, 2010. CARDOSO, Lourenço. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil. 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Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana / Lia Vainer Schucman; orientadora Leny Sato. -- São Paulo, 2012. SILVA, Priscila Elisabete da. O conceito de branquitude: reflexões para o campo de estudo. In: Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil / Tância Mara Pedroso Müller, Lourenço Cardoso. - 1. ed. - Curitiba: Appris, 2017. STRAUBHAAR, Joseph. Beyond Media Imperialism: Assymetrical Interdependence and Cultural Proximity. Critical Studies in Mass Communication 8(1): 39-59,1991. URBANO, Krystal; ARAUJO, Mayara. Beyond Japanese Lenses: reflections on the Korean diaspora and the Hallyu Wave in Brazil. In: 9th World Congress of Korean Studies, 2018, Seul, South Korea, 2018. p.01 – 14. URBANO, Krystal.; MELO, Maria Elizabeth Pinto. A Representação dos Asiáticos na TV Brasileira: Apontamentos Iniciais In: Anais do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Joinville, 2018. “Globo favorece atores ocidentais em núcleo japonês de nova novela das 18h”. Folha de S. Paulo, 08 de agosto de 2016. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/08/1800063-globofavorece-atores-ocidentais-em-nucleo-japones-de-nova-novela-das-18h.shtml> Acesso em: Jul/2018. “Exu, sushi erótico e hipnose”. Folha de S. Paulo, 11 de outubro de 2015. Disponível em: <http:// www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/236036-exu-sushi-erotico-e-hipnose.shtml?loggedpaywall#_=_> Acesso em: Jul/2018. “Ângela Bismarchi decide virar japonesa de vez e recuperar a virgindade”. Portal EGO - Globo. com, 12 de fevereiro de 2008. Disponível em: <http://ego.globo.com/Gente/Noticias/0,,MUL3145549798,00-ANGELA+BISMARCHI+DECIDE+VIRAR+JAPONESA+DE+VEZ+E+RECUPERAR+A+VIRGI NDADE.html> Acesso em: Jul/2018. “O que é whitewashing. 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Ciências da Comunicação Capítulo 21 259 CAPÍTULO 22 CULTURA ORGANIZACIONAL PROPÍCIA ÀS POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO E RESPONSABILIDADE SOCIAL: POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA IDENTIFICAR OS TIPOS DE CULTURA ORGANIZACIONAL Maria José da Costa Oliveira Pós-Doutora, Doutora e Mestre em Ciências da Comunicação. Presidente da ABRAPCORP – gestão 2016/2018; Diretora Admininistrativa da SOCICOM – gestão 2016/2018. Integra o Grupo de Pesquisa em Comunicação Pública e Política – COMPOL – da ECA-USP. Campinas - SP RESUMO: Ainda que a cultura organizacional seja um tema bastante explorado na sua interface com a comunicação, este estudo tem objetivo de analisar metodologias que contribuam com a identificação dos tipos de cultura que facilitam a adoção de políticas de comunicação e responsabilidade social. PALAVRAS-CHAVES: Cultura Organizacional; Comunicação Organizacional; Responsabilidade Social; Metodologias. ORGANIZATIONAL CULTURE FOR COMMUNICATION POLICIES AND SOCIAL RESPONSIBILITY: METHODOLOGICAL POSSIBILITIES TO IDENTIFY THE TYPES OF with communication, this study aims to analyze methodologies that contribute to the identification of the types of culture that facilitate the adoption of communication policies and social responsibility. KEYWORDS: Organizational culture; Organizational communication; Social responsability; Methodologies. 1 | INTRODUÇÃO Conhecer a cultura de uma organização representa um desafio que instiga muitos pesquisadores, gestores e consultores, afinal, ao se identificar o tipo de cultura ou as subculturas presentes, muitas questões acerca do comportamento que se pode esperar de seus membros são reveladas. Nesse sentido, a identificação da cultura pode facilitar a adoção de políticas adequadas ao perfil organizacional, entre as quais podemos incluir as políticas de comunicação e de responsabilidade social. Partindo dessa noção, é necessário entender o que vem a ser cultura organizacional, já que, conforme Fleury (1989), trata-se de ORGANIZATIONAL CULTURE fenômeno cuja complexidade ilude e confunde ABSTRACT: Although the organizational culture is a theme explored in its interface a maioria dos pesquisadores, sendo, em geral, Ciências da Comunicação entendida como padrões culturais a partir da somatória de opiniões e percepções de seus Capítulo 22 260 membros, expressa, conforme Janice Beyer e Harrison Trice (1986), como uma “rede de concepções, normas e valores que são tomados por certos e que permanecem submersos à vida organizacional”. A evolução do pensamento administrativo a partir da Teoria Clássica e Científica até as teorias mais contemporâneas de gestão (Ferreira, Reis e Pereira, 1997), demonstra que o contexto histórico, com sua abrangência social, cultural, política e econômica se refletiu e se reflete no tipo de gestão que as organizações utilizam. Porém, não resta dúvida de que algumas escolas do pensamento administrativo foram as responsáveis por alertar que não existe um padrão de administração para todas as organizações, já que deve-se considerar o comportamento de seus membros, a contingência vivenciada, o perfil de seus fundadores e sua capacidade de influência, entre outros aspectos. Essas novas formas de conceber gestão passaram a valorizar a cultura organizacional e, consequentemente, o desafio de desvendar a cultura presente em uma organização tem se evidenciado como uma tarefa nada fácil pois, assim como as pessoas são únicas e diferentes, as organizações, ainda que tenham características que as aproximem de outras, contam também com suas peculiaridades, que evidenciam seu perfil, sua identidade própria. Quando se fala de cultura organizacional, a ousadia é realizar uma análise mais sistêmica, que permita a definição de metodologias adequadas para se classificar os tipos de cultura. Alguns autores têm procurado oferecer contribuição, como é o caso de Charles Handy (1994) que propõe uma classificação dos tipos de cultura organizacional, relacionando-os aos deuses da mitologia grega, com a identificação da cultura de clube (Zeus), da cultura de função (Apolo), da cultura de tarefa (Atena) e da cultura existencial (Dionísio). O próprio autor reconhece a dificuldade para classificar uma organização em apenas um tipo, já que cada uma conta com a presença de diferentes grupos ou subgrupos, e esses, muitas vezes, seguem padrões próprios. Para Handy, há um elenco de características que permitem analisar se a organização é, por exemplo, um clube constituído por pessoas semelhantes, com ideias semelhantes, sem regras explícitas, formando praticamente um grupo de amigos, muito presente em organizações pequenas. Ou se, à medida que cresce, vai se tornando mais profissionalizada, exigindo a definição de funções de seus membros e o estabelecimento de hierarquia. Há, por outro lado, exemplos de organizações que valorizam mais o talento e que identificam a tarefa a ser feita, ao invés de realizar uma divisão delimitada das funções. Por fim, de acordo com Handy, há aquelas que proporcionam mais liberdade, mais autonomia, mais iniciativa e desejam que seus membros encontrem nelas condições de autorrealização. Outro aspecto interessante da abordagem de Handy diz respeito à propensão ou não para a comunicação e o relacionamento interpessoal, dependendo da cultura Ciências da Comunicação Capítulo 22 261 existente. Com isso, Handy ajuda a perceber os desafios que cada organização revela, de acordo com sua cultura, de forma a influenciar como serão concebidas ou ajustadas as políticas de comunicação e relacionamento. Diante do que até agora foi exposto, resta-nos perguntar como é possível identificar os tipos de cultura organizacional? Quais as metodologias possíveis de serem empregadas para tal identificação? 2 | POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS PARA A IDENTIFICAÇÃO DA CULTURA ORGANIZACIONAL Se por um lado há quem recorra a metodologias mais básicas, por outro há os que buscam caminhos metodológicos mais inovadores, abrangentes e consistentes. Fleury (1989), por exemplo, indica que há diversas opções metodológicas voltadas para diagnosticar a cultura organizacional envolvendo desde a descrição dos símbolos e rituais das organizações até os estudos de caráter antropológico. Schein (citado por Fleury, 1989) alerta sobre a necessidade de se ter cuidado para não considerar que a cultura se revela facilmente, porque, em parte, nós raramente sabemos pelo que estamos procurando, em parte porque seus pressupostos básicos são difíceis de discernir e são tão ‘Take for granted’ (tomados como certo) que aparecem como invisíveis e estranhos. Uma questão importante que reforça a complexidade da cultura organizacional diz respeito ao seu caráter interdisciplinar, já que abrange aspectos antropológicos, psicológicos, comunicacionais, administrativos, etc. Nesse sentido, Fleury (1989) oferece uma importante contribuição às pesquisas em cultura organizacional ao apresentar as metodologias a partir: a. da postura empiricista, que, para Thiollent, volta-se a construir teorias não a partir de problemáticas prévias, mas a partir do processamento de dados de onde deveriam surgir os conceitos, as hipóteses empiricamente comprovadas (investiga a realidade sem um referencial teórico e sem proceder à crítica epistemológica); b. da postura do antropólogo, que aproxima-se da realidade social a ser investigada com um quadro de referências teóricas formulado previamente. Age como observador ou como observador participante , vivenciando as mais diversas facetas da organização pesquisada (deve ter consentimento para tal). O objetivo é responder às questões colocadas pelo pesquisador; c. da postura do clínico ou terapeuta, cuja demanda parte da própria organização, conduzindo a uma relação diversa entre pesquisador e pesquisado, mediada por um contrato psicológico que leva a organização a se abrir e colocar à disposição do pesquisador dados e informações de diversas naturezas, dificilmente acessíveis a qualquer outra pessoa. Ciências da Comunicação Capítulo 22 262 A perspectiva clínica traz à tona o irracional nas organizações, segundo Schein (1986). Nesse caso, parte-se de um modelo conceitual prévio, que orienta o processo de coleta, análise e interpretação das informações, sendo considerada por Schein como a postura mais adequada para o estudo dos fenômenos culturais. Para o desenvolvimento conceitual de cultura para a área organizacional parte- se de raízes antropológicas e sociológicas, sendo que das raízes antropológicas surge a dimensão simbólica, que permite atribuir significado a certas ações e em função da qual busca-se as mediações possíveis, enquanto que as raízes sociológicas evidenciam o interacionismo simbólico com o compartilhamento de senso comum e produção de signos. Para Berger e Luckmann, a construção do universo simbólico, seus processos de legitimação, de socialização primária e secundária são importantes para o desenvolvimento do conceito de cultura organizacional. A utilização de metodologia adequada para a identificação da cultura organizacional é condição necessária, uma vez que, segundo Schein (1986), a cultura de uma organização pode ser apreendida em vários níveis: 1. nível dos artefatos visíveis; 2. nível dos valores que governam; 3. nível dos pressupostos inconscientes. Para investigar os fenômenos culturais, Schein considera fundamental aplicar, entre as técnicas, entrevistas com membros fundadores da organização, além de abranger a análise do teor e do processo de socialização de novos membros da organização; análise das respostas a incidentes críticos da história da organização; análise das crenças, valores e convicções dos criadores ou portadores de cultura. É importante enfatizar que a identificação da cultura organizacional parte do levantamento do histórico da organização, do processo de socialização que se pratica com novos membros, das políticas de recursos humanos que são estabelecidas, do processo de comunicação que é adotado, da organização e processo de trabalho. Entre os instrumentos para esse levantamento inclui-se desde questionários com perguntas fechadas, utilizando escalas até entrevistas estruturadas ou semiestruturadas, quando a ênfase é quantitativa; como também dados secundários da organização (documentos, relatórios, manuais de pessoal, organograma, jornais ou dados estatísticos sobre o setor da atividade econômica, sobre o mercado e trabalho) e dados primários (entrevistas, observação participante e não participante, dinâmicas de grupo com uso de jogos e simuladores). Dada a complexidade que representa desvendar a cultura organizacional, a recomendação é que sejam utilizados diferentes instrumentos quantitativos e qualitativos e se leve em conta, quando o objetivo for o gerenciamento da cultura, quando se busca a manutenção dos padrões ou mudança dos padrões culturais, considerando fatores internos e fatores externos. Ciências da Comunicação Capítulo 22 263 Portanto, a análise da cultura não se limita ao ambiente interno, já que a sobrevivência das organizações está também condicionada ao entendimento do cenário social, cultural, político, tecnológico, ambiental e econômico, evidenciando a relação entre o interno e o externo, entre o privado e o público, e destacando a importância da relação que a cultura estabelece com a comunicação organizacional, conforme analisado a seguir. 3 | CULTURA E COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL Diante da perspectiva anteriormente apresentada, a relação entre comunicação e cultura organizacional merece uma análise mais delimitada já que, conforme destacado por muitos autores, há uma relação de interdependência entre esses conceitos. Ao evidenciar a relação entre cultura organizacional e comunicação, Marchiori (2006, p. 24), alerta para a necessidade das organizações precisarem preocupar-se cada vez mais com o monitoramento das informações e a abertura do diálogo com seus diferentes grupos de interesse, entendendo que seu comportamento deve ir além do repasse de informações. A autora reforça que é preciso atuar no sentido de selecionar informações que façam parte do contexto vivenciado pela empresa e que tenham sentido para os públicos, produzindo assim uma comunicação que gere atitude. Tanto a cultura organizacional como a comunicação organizacional têm se revelado cada vez mais complexas. Ao tratar de comunicação organizacional Kunsch (2009, p. 75) considera que essa vem ganhando uma dimensão cada vez mais ampla: Hoje, pode-se dizer que os estudos são mais abrangentes e contemplam muitos assuntos em uma perspectiva mais ampla, como análise de discurso, tomada de decisão, poder, aprendizagem organizacional, tecnologia, liderança, identidade organizacional, globalização e organização, entre outros. Numa retrospectiva histórica, Kunsch (2009) também mostra como o conceito de comunicação organizacional tem evoluído, já que antes “o foco estava na comunicação administrativa/interna e nos processos informativos de gestão; nas redes de comunicação; nos canais, nas mensagens, na cultura e no clima organizacional; na estrutura organizacional e nos fluxos, nas redes, etc.; nos inputs e outputs das organizações” (Kunsch, 2009, p. 75). Entretanto, as diferentes abordagens passaram a revelar novas possibilidades. Kunsch (2009, p. 75) citando George Cheney e Lars Thoger Christensen (2001, p. 235) observa que os autores chamam a atenção para a interdependência e interrelação da comunicação interna com a externa. Haswani (2011, p. 93) também endossa essa visão ao analisar que os estudos recentes da comunicação organizacional apontam uma perspectiva de abertura ao diálogo e à participação conjunta entre os diferentes setores. Mesmo tendo em vista, de forma mais específica, o setor privado, é importante Ciências da Comunicação Capítulo 22 264 lembrar que esse tem sido cobrado por seus impactos junto à sociedade e ao meio ambiente, o que exige a adoção de práticas e políticas de responsabilidade social e ambiental. Assim, a análise da cultura deve considerar os avanços na relação entre o microambiente e o macro, já que não há mais muros entre o interno e o externo, entre o público e o privado, pois as empresas são cobradas, cada vez mais, pela coerência que mantêm entre o discurso e a prática. Nesse sentido, a interrelação entre comunicação e responsabilidade social, ocorre por meio das possibilidades de manifestação dos grupos sociais com os quais as organizações se relacionam, já que essa predisposição para o diálogo tem relação direta com o tipo de cultura organizacional existente. 4 | CULTURA ORGANIZACIOAL, COMUNICAÇÃO E RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL A efetividade das políticas de responsabilidade social exige uma política de comunicação organizacional que entenda os grupos sociais e indivíduos como sujeitos interlocutores, cidadãos, que têm percepção de suas necessidades e querem que as organizações, sejam elas públicas ou privadas, contribuam efetivamente com a sociedade, não apenas para sua autopromoção, garantindo ganhos para sua imagem, reputação e marca, mas que tragam reais benefícios para todos. Assim, as políticas de comunicação alinhadas com o interesse público são dependentes dos valores com os quais a organização se compromete, e que, portanto, estão incorporados em sua cultura organizacional. Por isso, uma questão que se apresenta como fundamental é entender o nível de consciência que as empresas são capazes de ter, voltada ao interesse público e que as tornam propensas a desenvolver politicas sólidas de responsabilidade social. Para tanto, é útil a menção ao modelo dos Sete Níveis de Consciência desenvolvido por Richard Barrett (apud Fejgelman, 2008, p. 154-156) e que permite identificar as diferenças de comprometimento organizacional. Níveis 1 Ciências da Comunicação Níveis de Consciência Pessoal Sobrevivência – Focaliza as questões de sobrevivência física. Inclui valores como estabilidade financeira, riqueza, segurança, autodisciplina e saúde. Os aspectos potencialmente limitadores deste nível são gerados por medos em torno da sobrevivência. Valores limitantes incluem ganância, controle e cautela. Níveis de Consciência Organizacional Finanças – Focaliza a questão financeira e o crescimento organizacional. Inclui valores como lucratividade, valor do acionista, saúde e segurança do funcionário. Os valores potencialmente limitantes deste nível são gerados pelo medo da sobrevivência, como controle, territorialidade, cautela e exploração. Capítulo 22 265 2 Relacionamentos – Este nível se preocupa com a qualidade dos relacionamentos interpessoais. Inclui valores como comunicação, família, amizade, resolução de conflitos e respeito. Os aspectos potencialmente limitantes deste nível resultam de medos em relação à perda de controle ou consideração. Valores limitantes incluem rivalidade, intolerância e necessidade de ser gostado. Relacionamentos – Contempla a qualidade dos relacionamentos interpessoais entre colaboradores e clientes/fornecedores e inclui valores como comunicação aberta, resolução de conflitos, satisfação do cliente, cortesia e respeito. Os aspectos potencialmente limitantes deste nível nascem de medos relacionados à perda de controle e consideração pessoal. Isso gera manipulação, culpabilização e competição interna. 3 Autoestima – Enfatiza a questão do reconhecimento. Ele inclui valores como ser o melhor, ambição, crescimento profissional e recompensa. Os aspectos potencialmente limitantes deste nível se originam de uma baixa autoestima ou da perda de controle. Valores potencialmente limitantes incluem status, arrogância e imagem. Autoestima – Este nível se preocupa com práticas de gestão que melhoram os métodos de trabalho e a entrega de serviços e produtos, incluindo valores como produtividade, eficiência, crescimento profissional, desenvolvimento de habilidades e qualidade. Os aspectos potencialmente limitantes são o resultado de baixa autoestima e da perda de controle e incluem valores como status, arrogância, burocracia e complacência. 4 Transformação – Focaliza a autorealização e crescimento pessoal. Contém valores como coragem, responsabilidade e desenvolvimento pessoal. Este é o nível em que as pessoas trabalham para se libertar de seus medos. Isso requer um questionamento contínuo das próprias crenças e pressupostos. É também o nível em que o profissional encontra equilíbrio em sua vida. Transformação – Visa a renovação contínua e o desenvolvimento de novos produtos e serviços. Ele contém valores que sobrepõem os valores potencialmente limitantes dos níveis 1 a 3. Valores neste nível incluem responsabilidade, participação do funcionário, aprendizagem, inovação, trabalho em equipe, desenvolvimento pessoal e compartilhar conhecimento. 5 Significado - Voltada para a preocupação do indivíduo com a busca de significado e comunidade. Aqueles que operam como neste nível não pensam mais em termos de emprego ou cargo, mas em termos de missão. Esse nível contém valores como comprometimento, criatividade, entusiasmo, humor/alegria, excelência, generosidade e honestidade. Coesão Interna – Foca o espírito de comunidade na empresa. Ele inclui valores confiança, integridade, honestidade, consciência de valores, cooperação, excelência e justiça. O resultado é alegria, entusiasmo, paixão, comprometimento e criatividade. 6 Fazer a diferença – Traz a questão de fazer a diferença no mundo. É também o nível de envolvimento ativo na comunidade local. Indivíduos operando neste nível honram a instituição e a contribuição. Eles podem estar preocupados com o meio ambiente ou questões locais. Contém valores tais como aconselhamento, trabalho comunitário, empatia e consciência ambiental. Inclusão – Foca no amadurecimento e fortalecimento dos relacionamentos e na realização do funcionário. Dentro da organização inclui valores como desenvolvimento da liderança, capacidade de ser mentor, capacidade de ser coaching e realização do funcionário. Externamente inclui valores como colaboração com clientes e fornecedores, criar parcerias, alianças estratégicas, envolvimento com a comunidade, consciência ambiental e fazer a diferença. Ciências da Comunicação Capítulo 22 266 Servir – Reflete a mais alta ordem de conexão interna e externa. Ele foca no servir aos outros e o planeta. Indivíduos operando neste nível lidam bem com a incerteza. Eles demonstram sabedoria, compaixão e capacidade de perdoar, têm uma perspectiva global e estão preocupados com questões como justiça social, direitos humanos e as futuras gerações. 7 Unidade – Reflete o nível mais alto de conexão interna e externa. Dentro da organização inclui valores como visão, sabedoria, capacidade de perdoar e compaixão. Externamente incluir valores como justiça social, direitos humanos, perspectiva global e futuras gerações. Quadro 1 – Níveis de consciência pessoal e organizacional de Richard Barrett, 1998* *(apud Fejgelman, 2008) Conforme pode ser observado, há a evolução do nível de consciência, seja pessoal ou organizacional, dependendo da cultura, dos valores e da maturidade. Isso sugere que as empresas que estão efetivamente comprometidas com o interesse público, são aquelas que estão localizadas em níveis mais elevados de consciência, já que os níveis mais baixos restringem-se a buscar a sobrevivência pessoal ou atender a sustentabilidade financeira das organizações. Tal abordagem nos leva a entender porque há empresas que valorizam a comunicação, o relacionamento, a participação, enquanto outras se mostram distantes dessa percepção. Aquelas que se encontram, em especial, no 1o. Nível, quando realizam ações sociais/ambientais, tendem a esconder as reais intenções de suas práticas, camuflando interesses basicamente promocionais. Por outro lado, as organizações que são identificadas a partir do nível 4 mostram-se mais propícias a adoção de políticas mais autênticas de comunicação e responsabilidade social. Portanto, fica evidente a necessidade de identificar e analisar o nível de consciência organizacional, para que sejam alinhadas as expectativas e as possibilidades de práticas coerentes com a cultura organizacional. 5 | OS ARQUÉTIPOS EXPRESSANDO A CULTURA ORGANIZACIONAL Se por um lado temos níveis de consciência organizacional, que contribuem para diagnosticar a cultura organizacional, por tratarmos aqui da relação com comunicação, torna-se útil acrescentar uma abordagem sobre arquétipos, a partir da contribuição de Jung (1919, apud Mark e Pearson, 2012). Afinal, a criação de uma personalidade para a organização, deve expressar sua cultura organizacional. Nesse sentido, Jung define arquétipos como conjuntos de “imagens primordiais” que “estão presentes em todo o tempo e em todo o lugar” passadas em muitas gerações, armazenadas no inconsciente coletivo. Esses conjuntos de imagens são passados de geração em geração, tornando-se importantes para definir a identidade da marca, contribuindo com uma percepção que se relaciona com a cultura organizacional. Ciências da Comunicação Capítulo 22 267 Utilizando os arquétipos criados por Jung, Mark e Pearson exploram novas possibilidades para o branding das marcas. Assim, entendemos que o arquétipo está diretamente relacionado com as características da organização e, portanto, deve também expressar sua cultura, já que existe uma movimento que vai do interior para o exterior e vice-versa, permitindo que haja coerência entre o que a organização é e o que ela parece ser. Cultura, imagem, identidade, reputação se integram, exigindo que as políticas de comunicação e responsabilidade social sejam concebidas a partir dessa interrelação. Cada arquétipo está agrupado em uma das necessidades principais citadas na tabela a seguir: Arquétipo Necessidades Fora da Lei Alguém rebelde, selvagem, que quebra todas as regras. Este personagem se vê em um mundo no qual ele faz as regras, deseja vingança ou então revolução. A liberdade é muito importante, sem contar o medo de perder o controle ou ser comum. O fora da lei precisa aparecer, então ele resolve quebrar, brigar, humilhar, fazer de tudo para manter o poder sob seu domínio. A meia idade ou adolescência são períodos da vida com grandes conflitos na família e sociedade, então, a marca que vende para este público pode ter este arquétipo como referência. Criador Bobo da Corte Amante Criar algo novo é o lema, pois se algo não existe pode ser construído. Este tipo de personagem tem como aliados a criatividade e a imaginação, sempre inovando em algo duradouro e evitando a mediocridade na hora de elaborar uma grande sacada. São personagens que ao se depararem com um dia difícil vão para casa e pintam, criam alguma coisa além do esperado. O desejo e satisfação tem muito a contribuir na hora de se envolver em projetos criativos. Os produtos e serviços oferecidos por marcas associadas a este arquétipo prestam assistência ao usuário, além de chamar a atenção para o status, pois engloba a ideia de construção e personalização. A venda de pinturas, quadros, móveis, serviços de decoração e muito mais, são exemplos de produtos e serviços que se acoplam a este perfil. É o ser que vai aproveitar cada momento e viver intensamente os minutos, fugindo totalmente do tédio. Este é um arquétipo que busca travessuras, jogos e pinta o sete, mas tem suas fraquezas, como por exemplo, perder o tempo ou a frivolidade. Além de ser brincalhão e alegre, este personagem quer ser visto como ele é, sem máscaras ou fingimentos. O grupo precisa aceitá-lo do jeito dele. Ao levar a vida mais leve, quem segue este arquétipo faz com que através da inovação e informalidade processos complicados e tediosos fiquem mais interessantes de serem executados. O mundo da moda, estética e beleza conseguem associar muito suas marcas a este arquétipo. Existe um culto e valorização da beleza, sexo e romances, chamando a atenção para o corpo e suas formas. Aqui neste perfil observa-se a tendência em desejar relacionamentos com pessoas e o trabalho, mas se perde em prazeres e por vezes pode ser manipulado. É elegante e lúdico, prestando atenção aos divertimentos de modo intenso dentro de sua admiração ao corpo. Governante O controle, poder, revolução e liderança pertencem a este arquétipo. Apesar de ser alguém responsável e com muito peso nas costas, precisa liderar, ser o chefe. No marketing poderíamos associa-lo a uma marca que reforça atributos de liderança e prestígio, reafirmando o poder que o consumidor tem, que o cliente está no poder. Marcas que possuem o target focado em classes sociais mais altas e empresas relacionadas a crédito e dinheiro em geral tendem a ser governantes. Ciências da Comunicação Capítulo 22 268 Prestativo Amar ao próximo é com ele mesmo. Um verdadeiro altruísta e cuidador, o prestativo vê o mundo com compaixão e amabilidade. Seria terrível para ele o egoísmo e a ingratidão, assim como a instabilidade e dificuldade. Ele vê as dificuldades do usuário e se coloca no lugar, facilitando a vida de todos. Atividades como restauração, consertos, cuidados com idosos ou crianças, limpeza, preocupação com o bem-estar e muito mais, são marcas que podem se beneficiar deste arquétipo. Mago Tem coisas que não podem ser explicadas em números ou dados, então entra em cena o Mago. A sabedoria para ele consiste em entender os fenômenos através da ciência, religião e tecnologia. Ele faz com que um sonho se torne realidade. Produtos e/ou serviços que curam, nos fazem relaxar, catalisam mudanças, influenciam pessoas com gatilhos mentais, afirmam e constroem suas ideias para o público e sabem encontrar os resultados certos são perfeitos para o perfil do mago. Explorador Livre, leve e solto é o lema, pois viajar o mundo faz parte da rotina. O explorador pode ser relacionado a marcas que incentivam seus consumidores a descobrir novos mundos e a experimentar o novo. A inquietação e a falta de rotina, assim como a independência são essência deste arquétipo. A geração Y tem muito a ver com este perfil, sendo elas pessoas inquietas, que quebram regras e apreciam sua individualidade, esta é uma boa opção para marcas com este target. Herói Para empresas com consumidores dinâmicos, que buscam desafios e velocidade, o herói preenche a lacuna. A ideia aqui é ser o mais forte possível e esquecer a arrogância, sempre pensando na batalha a ser conquistada. Outro ponto importante é o fato que são pessoas protetoras e fazem o que deve ser feito para cuidar de alguém. Disciplina e foco são primordiais, assim como ser o mais competente e corajoso. Inocente Bondade, amor, fraternidade e pureza são elementos-chave para este perfil. O estilo de vida aqui é o mais natural e simples, retirando rótulos sociais e optando por uma qualidade de vida acima do comum. A fé e otimismo constroem um forte laço entre este arquétipo, o qual tem a tendência de fazer tudo o mais correto possível. Cara Comum O cara comum pensa que todo mundo é igual e nele há grande vontade de pertencimento a grupos, odiando ser deixado de lado e evitando se destacar. Pense em alguém que ama se conectar a outras pessoas e se junta facilmente a uma multidão. Pois bem, este é o cara comum. Ele também utiliza o conceito de democracia e se realiza quando encontra e integra grupos com a mesma ideologia. Infelizmente é um alvo fácil de ser manipulado, deixando de lado muitas vezes sua individualidade em prol do grupo. Sábio Típico de quem é investigador, pensador e vive dando conselhos. Costuma ver o mundo de um jeito diferente, através da ótica do conhecimento. São pessoas que fazem uma análise de si e tem compromisso com o autoconhecimento. Este arquétipo vive em busca da verdade que trará alívio e liberdade ao seu existir, validando e mensurando tudo que possa ser questionado. Adaptado pela autora com base em Mark e Pearson Assim como é possível associar o nível de consciência com a cultura organizacional, podemos observar que os arquétipos escolhidos para dar personalidade a uma marca também precisariam considerar a cultura organizacional para que soem coerentes com o que pretendem expressar aos seus públicos. Arquétipos como prestativo, herói, inocente, cara comum e sábio, por exemplo, Ciências da Comunicação Capítulo 22 269 tendem a revelar um perfil mais condizente com marcas comprometidas com responsabilidade social, e, por isso mesmo, suas intenções são vistas com mais confiança por seus públicos. Todavia, como muitas vezes a relação com a cultura não é considerada para a definição dos arquétipos, em geral são associados com a marca apenas para resultados mercadológicos, sem considerar a perspectiva institucional. 6 | CONCLUSÃO A análise da cultura organizacional exige uma visão sistêmica, que considere as possibilidades metodológicas, seja a partir de uma postura empiricista, antropológica ou clínica, por meio das quais pode-se analisar se a cultura tende a ser de clube, função, tarefa ou existencial, ou mesmo utilizar outras tipologias, além de se permitir levantar o nível de consciência organizacional presente e considerar os arquétipos mais coerentes com os quais a organização mais se alinhe para transmitir como expressão de sua personalidade. É desse cruzamento, unindo métodos, tipos, níveis de consciência e arquétipos, que é possível contar com um diagnóstico mais preciso sobre a cultura organizacional e entender a comunicação e a responsabilidade social como o elo que, ao mesmo tempo, expressa a cultura, como também traz a influência das demandas externas sobre a mesma, já que esta se transforma em decorrência da interação com o meio em que se insere. Se, por exemplo, há uma cultura de respeito à sociedade e se pratica ações nesse sentido, a comunicação é capaz de fortalecer essa identidade e percepção de reputação junto aos stakeholders, Identificar e compreender a cultura organizacional é o pressuposto para o desenvolvimento das políticas de comunicação e de responsabilidade social, que só têm sentido se integrarem a rotina das pessoas que vivem o dia a dia e representam a organização. Afinal, não só a cultura é condicionante da comunicação, como a comunicação é condicionante da cultura existente, já que, conforme Hall (1959), cultura é comunicação e comunicação é cultura. REFERÊNCIAS BERGER & LUCKMANN. The social construction of reality. Nova York, Anchor Books, 1967. BEYER, I. & TRICE, H. How an organization’s rites reveal it’s culture. Organizational Dynamics, 1986. FEIGELMAN, D. B. Valores compartilhados: o desafio de levar a teoria à prática. In: Organicom – Revista Brasileira de Comunicação Organizacional e Relações Públicas. Ano 5, número 8, 1o. semestre 2008. Ciências da Comunicação Capítulo 22 270 FERREIRA, A. A.; REIS, A.C.F; PEREIRA, M.I.Gestão Empresarial: de Taylor aos nossos dias. Evolução e Tendências da Moderna Administração de Empresas. São Paulo, Pioneira, 1997. FLEURY, M. Tereza Lema & FISCHER, R. Maria. O desvendar a cultura de uma organização: uma discussão metodológica. In: FLEURY, M. T. L, FISCHER, R.M. Cultura e Poder nas Organizações. 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Ciências da Comunicação Capítulo 22 271 CAPÍTULO 23 COMO O OMBUDSMAN DE DADOS PODE REFORÇAR A MULTIDISCIPLINARIDADE NA COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL? Wallace Chermont Baldo Universidade Metodista de São Paulo São Bernardo do Campo – SP RESUMO: O objetivo é compreender – com base em uma revisão bibliográfica – como a aplicação do big data pelos profissionais de comunicação organizacional pode representar não apenas um recurso estratégico, mas incorporar ao dia a dia das equipes o (aqui denominado) ombudsman de dados, entre outras funções. Tais mudanças reforçam a multidisciplinaridade cada vez mais necessária à implantação de ações comunicacionais, além de enfrentar as justas preocupações quanto à falta de segurança e privacidade dos dados coletados, que permitem a identificação não consentida de pessoas – e levantam outras questões morais, legais e éticas. Conclui-se que tão fundamental quanto saber as perguntas é ter clareza sobre o que fazer com as respostas obtidas a partir da tecnologia: a atuação de profissionais como o ombudsman de dados pode ser relevante nesse sentido. PALAVRAS-CHAVE: comunicação organizacional; big data; ombudsman de dados. ABSTRACT: The objective is to understand - based on a bibliographical review - how the adoption of big data by organizational Ciências da Comunicação communication professionals can represent not only a strategic resource, but also incorporate into the routine of the teams the (here denominated) data ombudsman, among other functions. These changes reinforce the multidisciplinarity that is increasingly necessary for the deployment of communication actions, as well as addressing the fair concerns about the lack of security and privacy of the collected data, which allow the non-consensual identification of people - and raise other moral, legal and ethical issues. Conclusion is that as fundamental as knowing the questions is to have clarity on what to do with the answers obtained through the technology: the performance of professionals like the data ombudsman can be relevant in this sense. KEYWORDS: organizational communication; big data; data ombudsman. 1 | INTRODUÇÃO “Dados são o novo petróleo”, declarou em 2006 Clive Humby, um matemático da cidade inglesa de Sheffield que, junto com a esposa, Edwina Dunn, fez fortuna ao ajudar companhias como a varejista britânica Tesco a transformar seu relacionamento com os clientes: a empresa dos dois, Dunnhumby, implantou novidades como o cartão de fidelidade (ARTHUR, 2013). Capítulo 23 272 A frase repercutiu bastante e foi uma das manifestações que começou a despertar na mente de executivos a percepção de que há muito a ganhar (ou perder) com a triagem cuidadosa ou descuidada do chamado “big data” – relata Charles Arthur, no jornal britânico The Guardian. Mas do que tratam essas duas palavras? Hoje, as organizações têm à disposição sistemas de hardware e software capazes de coletar dados em “velocidade”, “variedade” e “volume” inéditos, as três dimensões essenciais do conceito. Isso já é uma mudança significativa, mas o que realmente faz a diferença é o tratamento dispensado à miríade de bytes, que pode lhes conferir “valor”. Outra característica importante é a “veracidade” (confiabilidade) dos dados obtidos. Na mesma publicação, Michael Palmer, da ANA – Association of National Advertisers, desenvolveu o raciocínio de Humby: “Dados são como petróleo cru. É valioso, mas se não refinado não pode realmente ser usado. Tem que ser transformado em gás, plástico, produtos químicos etc. para criar uma entidade valiosa que impulsiona atividade rentável; por isso os dados devem ser discriminados, analisados para que tenham valor”, afirmou. Em outras palavras, o valor fundamental do big data “vem dos padrões que podem ser obtidos ao fazer as conexões entre partes de dados, sobre um indivíduo, sobre indivíduos em relação aos outros, sobre grupos de pessoas, ou simplesmente sobre a estrutura da própria informação” (BOYD; CRAWFORD, 2011, p. 2). Estudos já traduzem essas afirmações em números: Erik Brynjolfsson, professor de negócios na Sloan School of Management, do MIT, e seus colegas estudaram o desempenho de empresas que se destacaram em decisões tomadas com base em dados e o compararam com o desempenho de outras empresas. Eles descobriram que os níveis de produtividade eram até 6% maiores nessas empresas que nas que não enfatizam o uso de dados na tomada de decisões (MAYER-SCHONBERGER; CUKIER, 2013, p. 101). Além disso, o McKinsey Global Institute publicou um relatório com a estimativa de que uma empresa varejista que adote sistemas de big data pode aumentar sua margem operacional em mais de 60% (MANYIKA et al., 2011, p. 6). De acordo com os autores, o “uso de big data está se tornando uma chave para levar as empresas a superar os seus pares”. Mas o big data também possui seu lado sombrio. O perigo engloba questões de privacidade, segurança e chega à probabilidade. Autores como Viktor Mayer- Schonberger e Kenneth Cukier (2013, p. 11) argumentam que, com a adoção da tecnologia, que tem na capacidade de previsão um ponto forte (mas não infalível), as decisões serão tomadas cada vez mais por máquinas. “A sociedade tem milênios de experiência na compreensão do comportamento humano. Mas como regulamos um algoritmo?”, questionam. Diante de tantas discussões, uma área de estudo ainda apresenta tímidas reflexões sobre o assunto: a comunicação organizacional. Em 2017, Christian Wiencierz e Ulrike Röttger (p. 258-259, 261, 263), da Universidade de Münster, na Alemanha, publicaram um artigo que demonstra, de um lado, que o big data é capaz Ciências da Comunicação Capítulo 23 273 de destacar insights gerados pelos públicos de interesse, de modo a permitir a criação de estratégias de comunicação mais efetivas. De outro lado, reconhece a “dramática” falta de pesquisa com relação a aplicações de big data associada, por exemplo, a relações públicas e comunicação interna. Os autores avaliaram 53 artigos científicos publicados entre 2010 e 2015, que abordaram diferentes esferas da comunicação: comunicação de marketing, relações públicas e comunicação interna. A análise dos artigos indica que a grande maioria deles (49, ou 92,5% do total) trata de aplicações na comunicação de marketing. Comunicação interna é o assunto de apenas quatro pesquisas (7,5%), enquanto apenas seis textos (11,3%) abordam relações públicas como tema de pesquisa ou ao menos mencionam RP – tópicos relacionados, como gestão de conflitos e comunicação de crise, só aparecem em 7,5% (quatro vezes) e 1,9% (uma vez) dos estudos, respectivamente. Essa carência precisa ser revertida: dados coletados a partir de sistemas compatíveis com o conceito de big data podem gerar informações e oportunidades de grande valor para profissionais do setor, traduzidos em insights para o planejamento e a execução de suas tarefas. Assim, a tecnologia pode ser um trunfo para que a comunicação contemporânea nas empresas seja, de fato, considerada estratégica, devido à mudança social que proporciona às ações de informar e transmitir conteúdo. Ao mesmo tempo, não se pode pensar essa comunicação sem uma visão de seu planejamento integrado e alinhado à estratégia global da organização, com inteligência, agilidade e antecipação: “Na sequência, se estratégica e integrada, a Comunicação contemporânea também atua direta e diferencialmente no processo de competitividade global em que as empresas hoje se veem inseridas” (CORRÊA, 2005, p. 100). Wilson da Costa Bueno (2014a, p. 204) defende que as empresas modernas capazes de enxergar rapidamente as oportunidades têm condições de ocupar nichos de mercado e usufruir dos benefícios desse pioneirismo, ao contrário de seus seguidores que, na maioria das vezes, são obrigados a investir recursos muito maiores para ocupar o mesmo lugar. Para ele, “a internetização das relações estabelece um outro timing para os negócios e os relacionamentos, que têm, agora, como meta a excelência do online”. Como resultado, todas as atividades implícitas em uma política de comunicação devem se reorganizar em função desse cenário emergente. Dessa forma, o objetivo é demonstrar – com base em uma revisão bibliográfica – que a utilização do big data pela comunicação organizacional representa não apenas um aliado natural para a superação dos desafios apontados, mas que a novidade pode incorporar no dia a dia profissionais como o algoritmista de dados – ou a denominação alternativa ombudsman de dados, aqui sugerida. A tendência ganha força com a entrada em vigor, em maio de 2018, da General Data Protection Regulation (GDPR), lei europeia que reforça a proteção de dados aos cidadãos do continente. Ciências da Comunicação Capítulo 23 274 2 | CONCEITOS Para demonstrar como o big data pode apoiar a comunicação nas organizações, é válido recuperar alguns conceitos-chave. Em primeiro lugar, talvez seja importante retomar a velha distinção entre dados, informação e conhecimento, com a ajuda de Thomas Davenport: “Durante anos, as pessoas se referiram a dados como informação; agora, veem-se obrigadas a lançar mão de conhecimento para falar sobre informação – daí a popularidade da ‘administração do conhecimento’” (1998, p. 18). O autor define dados como ‘observações sobre o estado do mundo’. A observação desses fatos brutos pode ser feita por pessoas ou por uma tecnologia apropriada. Ele lembra que Peter Drucker definiu informação como “dados dotados de relevância e propósito”. E são os seres humanos quem os dota de tais atributos. Assim, temos o conhecimento como a informação mais valiosa e, portanto, mais difícil de gerenciar. “É valiosa porque alguém deu à informação um contexto, um significado, uma interpretação”, afirma Davenport. Outro conceito fundamental é a definição de comunicação empresarial ou comunicação organizacional, como o conjunto “integrado de ações, estratégias, planos, políticas e produtos planejados e desenvolvidos por uma organização para estabelecer a relação permanente e sistemática com todos os seus públicos de interesse”, de acordo com Bueno (2014b, p. 3-4). Sob essa perspectiva, os termos integram e articulam as chamadas comunicação institucional e mercadológica, ou seja, incorporam ações voltadas para funcionários, clientes, acionistas, imprensa, sindicatos, parlamentares, entidades e grupos organizados e mobilizados da comunidade (ambientalistas, por exemplo), entre outros, e a sociedade em geral. Um dos desafios a serem vencidos pela comunicação nas organizações é a sua consolidação como instrumento de inteligência empresarial, de acordo com o autor. Apesar da crescente profissionalização da área, o empirismo ainda fundamenta grande parte das ações e estratégias de comunicação postas em prática pelas empresas ou entidades. É preciso incorporar a prática de pesquisa e desenvolver metodologias para mensurar resultados, o que permitirá à área atingir um novo patamar. Com o conhecimento mais detalhado do mercado, surge um processo irreversível de segmentação, com a criação de canais ou veículos específicos para atender a demandas localizadas. Essa segmentação também deve chegar ao trabalho de relacionamento com os meios de comunicação, agora vistos não como um segmento uniforme, mas composto de unidades personalizadas e que requerem abordagens singulares e especializadas. Assim, Bueno (2014b, p. 16, 41) indica que a comunicação nas organizações deve respaldar-se em bancos de dados inteligentes, em um conhecimento mais profundo de seus públicos de interesse, dos canais de comunicação e da própria mídia, de modo a deixar para trás processos de planejamento e tomada de decisões fundados na visão “impressionista de seus profissionais (por melhores que eles sejam), quase sempre carregada de vieses e preconceitos”. Ele observa, ainda, que é fundamental lembrar que não se trata de prever o futuro, mas de um trabalho sistemático de avaliação de tendências, respaldado Ciências da Comunicação Capítulo 23 275 em dados confiáveis para a construção de cenários, sempre em busca da redução dos níveis de incerteza e da adaptação a uma realidade em permanente mudança. É preciso capacitar a organização para uma cultura de planejamento que valorize a flexibilidade e a agilidade para responder a novos desafios. Pois, em sua essência, big data relaciona-se com previsões, com a construção de cenários. Apesar de ser descrito como um ramo da ciência da computação chamado inteligência artificial e, mais especificamente, uma área denominada aprendizado de máquina (ou machine learning), trata-se de uma ideia enganosa. Segundo Mayer- Schonberger e Cukier (2013, p. 8), big data não tem a ver com tentar “ensinar” um computador a “pensar” como ser humano. Trata-se, em vez disso, da aplicação da matemática a enormes quantidades de dados a fim de prever probabilidades. Os sistemas são criados para se aperfeiçoarem com o tempo, ao analisar e identificar os melhores sinais e padrões – em busca de mais dados. Os autores defendem que “no futuro – e mais cedo do que pensamos –, muitos aspectos do nosso mundo, hoje sujeito apenas à visão humana, serão complementados ou substituídos por sistemas computadorizados”. A comunicação organizacional certamente pode fazer parte desse processo. E como podem os profissionais compreender plenamente os desafios que enfrentam no mundo das comunicações de hoje? Em primeiro lugar, empreendendo uma revisão completa e de mente aberta do enorme número de canais e métodos de comunicações disponíveis. E, em segundo, considerando como realizar o planejamento estratégico dessas inúmeras opções, alternativas e combinações. São definidos como canais de comunicação qualquer meio, mídia ou disciplina de comunicação com o consumidor ou de influência sobre ele, seja propaganda convencional, relações públicas ou CRM, propaganda boca a boca ou marketing de guerrilha, anúncio impresso de página inteira, um evento esportivo, símbolo em uma porta de banheiro ou um programa global de fidelização de consumidores. No contexto do planejamento de canais de comunicações, os insights desempenham um papel central. Para Mark Austin e Jim Aitchison (2006, p. 51), esses só podem ser obtidos a partir de um conhecimento profundo do consumidor, dos canais de comunicações que afetam seu comportamento e de como a combinação de tais fatores pode afetar o desempenho das marcas. Para isto é preciso obter as respostas para quatro perguntas simples: 1. Com quem precisamos falar? 2. Como falamos com eles? 3. O que devemos dizer a eles? 4. Quando e onde podemos nos comunicar com eles de forma mais eficaz? (AUSTIN; AITCHISON, 2006, p. 141). Esse é o caminho para o encontro das conexões ou pontos de contato mais valiosos entre a marca e seus públicos, que só é “possível por meio da pesquisa – não Ciências da Comunicação Capítulo 23 276 no sentido convencional, não em grupos de debate ou assemelhados [...] – mas de uma pesquisa que gere insights genuínos sobre o que de fato está passando na mente dos consumidores” (AUSTIN; AITCHISON, 2006, p. 142-143). Com eles, é possível fazer uma análise dos mercados, consumidores e canais de comunicações de todos os ângulos, o que permitirá a ação em várias frentes. E essa foi exatamente uma das grandes perturbações trazidas pelo big data a papéis consolidados nas organizações: o fato de colocar a descoberta e a análise como uma prioridade (DAVENPORT; BARTH; BEAN, 2012, p. 23-24). A nova geração de processos e sistemas foi concebida para insights, não apenas automação. Ambientes de big data devem dar sentido a novos dados, ir além de relatórios sintéticos, que não são mais suficientes. Isto significa que essas aplicações de tecnologia da informação precisam medir e relatar, de forma transparente, uma ampla variedade de dimensões, como interações com os clientes, utilização de produtos, ações de serviço e outras medidas dinâmicas. Com sua evolução, a arquitetura irá desenvolver um ecossistema, uma rede de serviços internos e externos capaz de compartilhar informação, otimizar decisões, comunicar resultados e gerar novas perspectivas para as empresas. Fica nítido que não é suficiente a capacidade de monitorar um fluxo contínuo de informações. As organizações precisam estar preparadas para tomar decisões e agir, a partir do estabelecimento de processos desenhados com essas finalidades. Isso ajuda a determinar quais são os stakeholders interessados, bem como procedimentos, critérios e prazos para que as resoluções sejam tomadas. 3 | ALÉM DA TECNOLOGIA Entretanto, Thomas Davenport (1998, p. 11-12) lembra, em seu livro “A Ecologia da Informação”, que o fascínio pela tecnologia pode fazer com que as pessoas se esqueçam que informar é o objetivo primordial, ou seja, a evolução dos sistemas de nada servirá se os usuários não estiverem interessados na informação que pode ser gerada por eles. É inútil aumentar as capacidades de obtenção de informação se os stakeholders não a compartilham. Novidades como big data não serão úteis se forem adotadas com muita rapidez, sem tempo para assimilação, ou se não estiverem à disposição especialistas dispostos a ensinar o que sabem. “Informação e conhecimento são, essencialmente, criações humanas, e nunca seremos capazes de administrá-los se não levarmos em consideração que as pessoas desempenham, nesse cenário, papel fundamental”, afirma. O autor ressalta, ainda, que a estratégia geralmente adotada para a gestão de informações, centrada fundamentalmente no investimento em tecnologias, não funciona. É necessária uma perspectiva holística, capaz de assimilar as alterações repentinas no mundo dos negócios e nas realidades sociais. A nova abordagem, denominada por ele ecologia da informação, leva em conta o ambiente da informação em sua totalidade, ao lado dos valores e crenças empresariais Ciências da Comunicação Capítulo 23 277 sobre o tema (cultura); comportamento e processos de trabalho; armadilhas capazes de interferir no intercâmbio de informações; e, por fim, os sistemas tecnológicos já instalados. Fica evidente que mudar o status quo de uma organização nunca é fácil. De acordo com Davenport (1998, p. 14-15, 20), a ecologia da informação exige, de saída, novas estruturas administrativas, incentivos e atitudes em direção à hierarquia, à complexidade e à divisão de recursos da organização. Para ele, à medida que a informação se torna mais e mais importante, é preciso aprender a pensar além das máquinas. A importância do envolvimento humano aumenta à medida que evolui o processo dados – informação – conhecimento. “Os computadores são ótimos para nos ajudar a lidar com dados, mas não são tão adequados para lidar com informações e, menos ainda, com o conhecimento”, diz. Tais conceitos encontram eco no pensamento de Wilson da Costa Bueno. Ele defende que a tecnologia não se confunde necessariamente com a comunicação, e representa uma possibilidade, um recurso adicional importante para a implantação de ações e canais de relacionamento (2014a, p. 149). E nota que, se assim não fosse, portais, intranets e sites das organizações seriam menos poluídos e mais fáceis de navegar. Dessa maneira, uma proposta de comunicação competente deve incluir recursos tecnológicos mais ou menos sofisticados, mas não ser reduzida a eles. Há alternativas ou recursos que desviam a atenção, são pobres de conteúdo e de inteligência corporativa e se revelam descoladas dos objetivos estratégicos e da cultura da organização. Muitas vezes falta a capacidade de pensar em estratégias realmente competentes ou inovadoras para atrair e manter os públicos de interesse. O ideal é que o planejamento e a gestão da comunicação – nesse quadro de evolução tecnológica – possuam uma perspectiva mais abrangente e estratégica, e que tenham sido concebidos e executados por uma equipe multidisciplinar, que incorpore especialistas em big data e gestores de comunicação que saibam exatamente o que as organizações desejam, que possam definir quais as perguntas corretas a serem respondidas pelos sistemas – sem deixar de considerar as implicações legais, morais e éticas de seu uso. 4 | NOVAS FUNÇÕES Fábia Pereira Lima e Hérica Luzia Maimoni (2012, p. 101-102) explicam que, se, de um lado, a operacionalização das novas tecnologias demanda conhecimentos crescentemente especializados, de outro a gestão integrada destes exige cada vez mais a formação de profissionais com visões mais globais do processo. “Por isso, a comunicação integrada realiza-se com a formação de equipes multidisciplinares e com diversas e complementares habilidades (não necessariamente habilitações)”, afirmam. Aqui surgem oportunidades – e desafios – para a adequada aplicação de Ciências da Comunicação Capítulo 23 278 recursos tecnológicos como o big data. Sebastião Squirra (2013, p. 91) também vê na convergência de talentos em formato aberto e no modelo colaborativo, com a união dos saberes das ciências humanas e setores da engenharia, matemática, física e segmentos das ciências sociais (comunicação, linguística etc.), um estímulo “para a compreensão dos processos e efeitos da simbiose tecnológica que a sociedade experimenta”. Surge, então, nessa equação multidisciplinar, um novo personagem: o cientista de dados (DAVENPORT; BARTH; BEAN, 2012, p. 23). Embora sempre tenha havido uma demanda por profissionais analíticos nas organizações, com o big data mudam os requisitos para o pessoal de apoio. Como interagir com os dados em si – seja em sua obtenção, extração, manipulação ou estruturação – é fundamental para qualquer análise, as pessoas que trabalham na área precisam não apenas de habilidades de tecnologia, mas também de criatividade. Precisam estar perto de produtos e processos dentro das organizações, o que significa que devem ser organizados de forma diferente da que o pessoal analítico era no passado. Os cientistas de dados precisam entender de análise, mas muitas vezes são bem versados em ciência da computação, física computacional ou biologia – ou ciências sociais orientadas a rede. O amplo (e escasso) conjunto de habilidades para gestão de dados inclui programação, habilidades matemáticas e estatísticas, bem como a visão de negócios e a capacidade de se comunicar de forma eficaz com quem toma as decisões, o que vai muito além do necessário para analistas de dados no passado. Os profissionais de comunicação organizacional, e de outros setores, devem se preparar para essa convivência. Mayer-Schonberger e Cukier (2013, p. 98-100) acreditam que os especialistas vão perder um pouco de seu brilho em comparação com o estatístico ou analista de dados, que “não se impressionam com as velhas práticas e deixam os dados se manifestarem”. Para eles, o maior impacto do big data será o fato de que decisões tomadas com base em dados disputarão ou superarão o julgamento humano: nesse quadro, os especialistas não desaparecerão, mas sua supremacia diminuirá. “Mas quando dispomos de muitos dados, podemos usá-los melhor. Assim, aqueles capazes de analisar o big data podem ultrapassar superstições ou o raciocínio convencional, não porque são mais inteligentes, e sim porque têm os dados”, afirmam. Assim, para ter sucesso no mundo do big data, as organizações precisam não apenas saber as perguntas a serem feitas, em busca de insights, mas também o que fazer com as respostas, os dados obtidos. Elucidativo é talvez o fato de que o conceito da ‘sociedade do conhecimento’ esteja sendo mais ou menos usado como sinônimo do de “sociedade da informação”. Vivemos numa sociedade do conhecimento porque somos soterrados por informações. Nunca antes houve tanta informação sendo transmitida por tantos meios ao mesmo tempo. Mas esse dilúvio de informações é de fato idêntico a conhecimento? Estamos informados sobre o caráter da informação? Conhecemos afinal que tipo de conhecimento é esse? Na verdade o conceito de informação não é, de modo nenhum, abarcado por uma compreensão bem elaborada do conhecimento. O significado de ‘informação’ é tomado num sentido muito mais Ciências da Comunicação Capítulo 23 279 amplo e refere-se também a procedimentos mecânicos (KURZ, 2002). Mayer-Schonberger e Cukier (2013, p. 120, 126) defendem que “novas instituições e profissionais serão necessários para interpretar os complexos algoritmos que perfazem as descobertas do big data e para defender as pessoas que podem ser atingidas por ele”. Vislumbram, ainda, a demanda por um novo tipo de profissional, denominado por eles “algoritmista interno”, capaz de trabalhar dentro de uma organização para monitorar as atividades de big data, encarregado de garantir que a informação pessoal não seja usada de forma equivocada no ambiente corporativo. A ideia é que ele cuide não apenas dos interesses da empresa, mas também dos das pessoas afetadas pelas análises de big data, supervisionando “operações de big data e atuando como primeiro contato de qualquer pessoa afetada pelas previsões da empresa”. Outra função seria examinar e se certificar que as análises tenham integridade e precisão antes que ganhem vida. O cargo prevê, assim, um certo nível de autonomia e imparcialidade dentro da organização, e não seria uma novidade: acontece, por exemplo, nas divisões de monitoramento das grandes instituições financeiras, nos conselhos diretores de várias empresas, e publicações como os jornais Folha de S. Paulo e O Povo, que há anos empregam o ombudsman com a responsabilidade principal de manter a confiança pública nessas companhias. A Alemanha, por exemplo, exige desde a década de 1970 que empresas de determinado porte (geralmente com 10 ou mais pessoas empregadas no processamento de informações pessoais) contratem um representante de proteção de dados – esses representantes internos desenvolveram uma ética profissional própria. Como a definição de comunicação organizacional aqui adotada “dá conta de todo o processo de relacionamento da organização com os seus públicos de interesse, normalmente designados pela expressão stakeholders” (BUENO, 2014b, p. 3), é possível inferir a eventual disseminação da função de “algoritmista interno”, ou “ombudsman de dados” – denominação alternativa aqui sugerida. A função seria capaz de constituir uma futura frente de trabalho multidisciplinar no dia a dia da comunicação organizacional: seus gestores precisariam, no mínimo, entender as premissas e acompanhar as implicações da nova função – sem mencionar todas as questões de segurança e privacidade dos públicos, ensejadas pelo big data, a partir da coleta de tamanha quantidade de dados. Um livro publicado pela IBM (BALLARD et al., 2014, p. 17), fornecedora de sistemas de big data, traz alertas importantes nesse sentido. Nele, os autores expõem que a proporção de dados a ser protegida cresce mais rápido que o próprio universo digital: de menos de um terço, em 2010, para uma estimativa de mais de 40%, em 2020. Eles observam que há muitas considerações sobre como o big data impacta a segurança e a privacidade, levantando também questões legais, competitivas, morais, políticas e éticas. De um lado, as empresas devem cumprir com as leis existentes. De outro, existem escassas regulações sobre a proteção e divulgação de novos tipos de Ciências da Comunicação Capítulo 23 280 dados, como a geolocalização. Além disso, há muitos regulamentos inconsistentes entre os países. Em muitas dessas áreas, as implicações apenas começam a surgir. A combinação de fontes de dados pode causar uma exposição inesperada: quando se associam endereços IP com informações demográficas, por exemplo, a identidade de um indivíduo pode ser revelada acidentalmente. As organizações que protegerem os dados sensíveis e protegerem a privacidade de seus clientes deverão se sobressair no mercado. Violações de privacidade recentes afetaram consideravelmente a reputação corporativa, especialmente nos setores bancário e de saúde. Os autores questionam, por exemplo, se seria moral ou ético para as empresas tomar decisões de crédito com base nos amigos do Facebook de um cliente, compartilhar dados médicos que expõem informações sobre o risco de doença de uma família e cobrar tarifas maiores dos usuários de dispositivos Apple porque a pesquisa mostrou que eles estão dispostos a pagar mais por serviços de viagem. Aqui surge um exemplo em que a atuação do ombudsman de dados pode fazer a diferença. Ganhou também repercussão internacional o caso da varejista norte-americana Target que, a partir das correlações de dados, consegue prever, por exemplo, que uma mulher está grávida – em alguns casos, antes da própria família – e até o estágio da gestação (DUHIGG, 2012). Correspondente de economia do New York Times, Charles Duhigg revelou o caso do pai de uma adolescente que, na cidade norte-americana de Mineápolis, foi até uma loja da empresa reclamar dos cupons de roupas de bebê e berços enviados à sua filha, entendidos como um estímulo para que ela engravidasse. O gerente se desculpou prontamente mas, dias depois, recebeu uma ligação e um pedido de desculpas do futuro avô. O caso deixou evidente que a aplicação de big data pelas empresas, em sua comunicação, pode gerar constrangimentos às partes envolvidas – ao mesmo tempo em que revela a importância de um controle interno independente para dirimir abusos. 5 | CONCLUSÕES O objetivo inicial deste texto foi alcançado, ao demonstrar que a incorporação do big data pelos profissionais de comunicação organizacional representa mais que um aliado natural para que a área reforce seu caráter estratégico: os profissionais do setor já podem contar no dia a dia com especialistas, como o cientista de dados, juntamente com novas funções, como o ombudsman de dados. O atual cenário evidencia que a comunicação deve cada vez mais ser concebida e executada por uma equipe multidisciplinar. Além disso, os textos elencados demonstram que a comunicação nas organizações demanda bancos de dados inteligentes e que deve se basear em um conhecimento mais profundo de seus públicos de interesse, dos canais de comunicação e da própria mídia. Se o ideal é que o planejamento e a gestão da comunicação – nesse quadro Ciências da Comunicação Capítulo 23 281 de evolução tecnológica – possuam uma perspectiva mais abrangente e estratégica, o uso eficaz (mas, ao mesmo tempo, legal, moral e ético) dos dados obtidos pode ser de grande valia. Assim, os profissionais de comunicação precisam se preparar para a nova realidade que se apresenta e ter em mente que o mais importante não é a tecnologia, mas saber quais são as perguntas a serem feitas e o que fazer com as respostas obtidas a partir dela. A atuação de profissionais como o ombudsman de dados pode ser relevante nesse sentido. REFERÊNCIAS ARTHUR, Charles. Tech giants may be huge, but nothing matches big data. The Guardian, 23 ago. 2013. Disponível em: <https://www.theguardian.com/technology/2013/aug/23/tech-giants-data>. Acesso em: 22 jun. 2016. AUSTIN, Mark; AITCHISON, Jim. Tem alguém aí? - As comunicações no século XI. São Paulo: Nobel, 2006. BALLARD, Chuck et al. Information governance principles and practices for a Big Data landscape. [s.l.] IBM, 2014. BOYD, Dana; CRAWFORD, Kate. Six provocations for Big Data. A Decade in Internet Time: Symposium on the Dynamics of the Internet and Society. Anais... Oxford: 2011. Disponível em: <http:// ssrn.com/paper=1926431> BUENO, Wilson da Costa. Comunicação Empresarial: alinhando teoria e prática. São Paulo: Manole, 2014a. BUENO, Wilson da Costa. Comunicação Empresarial: políticas e estratégias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014b. CORRÊA, Elizabeth Saad. Comunicação digital: uma questão estratégica e de relacionamento com públicos. Organicom, n. 3, p. 94–111, 2005. DAVENPORT, Thomas H. 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Ciências da Comunicação Capítulo 23 283 CAPÍTULO 24 COMUNICAÇÃO MERCADOLÓGICA EM CLUBES DE FUTEBOL DO BRASIL E DA AMÉRICA LATINA: RELACIONAMENTO COM OS PÚBLICOS-ALVO Karla Caldas Ehrenberg Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP) Engenheiro Coelho e Hortolândia – SP Ary José Rocco Junior Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP) São Paulo – SP Carlos Henrique de Souza Padeiro FMU e Universidade Anhembi Morumbi São Paulo – SP RESUMO: A partir da abrangência da comunicação organizacional realizada no ambiente digital conectado, este artigo analisa os sites oficiais de oito clubes brasileiros de futebol e oito clubes de outros países latino-americanos (selecionados com base nos valores de suas marcas), para detectar quais aspectos do viés da comunicação organizacional mercadológica são trabalhados nessas plataformas. Foi desenvolvido um protocolo de observação para 17 itens, e a avaliação dos portais dos times ocorreu durante o mês de maio de 2018. Constataram-se lacunas que precisam ser preenchidas para aperfeiçoar a comunicação mercadológica dessas instituições, cujo objetivo primordial é se relacionar com a imprensa, noticiar o dia a dia do time profissional de futebol, divulgar as marcas de seus parceiros e Ciências da Comunicação atrair sócios-torcedores. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação organizacional, gestão de marcas, clubes esportivos, futebol, internet ABSTRACT: Based on the scope of the organizational communication carried out in the connected digital environment, this article analyzes the official websites of eight Brazilian soccer clubs and eight clubs from other Latin American countries (selected based on the values of their brands), to detect which aspects of the marketing organizational communication are worked on these platforms. An observation protocol was developed for 17 items, and the evaluation of the portals of the teams took place during the month of May 2018. There were gaps that need to be filled in order to improve the marketing communication of these institutions, whose primary objective is to relate to press, report the day to day professional football team, publicize the brands of its partners and attract fan-members. KEYWORDS: Organizational communication, brand management, sports clubs, soccer, internet 1 | INTRODUÇÃO A comunicação desenvolvida em plataformas digitais expande sua penetração Capítulo 24 284 social de maneira contínua, corroborando decisivamente para a integração dos ambientes on e off-line nos processos relacionais. É cada vez menos adequado falar sobre a separação desses ambientes, como se existissem dois mundos diferentes em que as práticas são autônomas, pois esses dois universos coexistem e se influenciam mutuamente em uma dinâmica cíclica e constante. No cenário das comunicações organizacionais, é notório o interesse pelo uso de plataformas de redes sociais digitais que possibilitam uma aproximação entre instituições e públicos, especialmente os consumidores e a comunidade de forma geral. Por proporcionarem uma comunicação rápida, interativa e com ampla divulgação, redes como Facebook, Twitter e Instagram ganham notoriedade no planejamento de comunicação integrada organizacional. Mesmo diante dessa explosão de interesse pelas redes sociais digitais, é imprescindível o entendimento de que elas não formam, de maneira exclusiva, o universo da comunicação organizacional digital. Portais, sites, blogs, newsletters, e-mail marketing e outros formatos são fundamentais para que a comunicação das organizações se estabeleça efetiva e eficazmente. Afinal, cada um desses meios possui suas características e suas utilidades específicas, contribuindo para a consolidação de uma relação ampla, integrada e assertiva com diferentes públicos de interesse. A partir desse olhar abrangente sobre a comunicação organizacional realizada no ambiente digital conectado, este artigo determina como recorte a investigação de portais de clubes brasileiros e de outros países da América Latina para detectar quais aspectos do viés da comunicação organizacional mercadológica são trabalhados nessas plataformas. Reconhecendo os portais e sites como uma espécie de plataforma mais institucionalizada, onde as informações e os discursos oficiais se encontram publicados de forma sistematizada, o interesse dos pesquisadores encontra-se no sentido de identificar, por meio de um protocolo previamente desenvolvido, quais conteúdos de interesse mercadológico são trabalhados nessas plataformas. Os autores do artigo compreendem a importância das redes sociais digitais, porém entendem que os portais e sites não devem ser negligenciados tanto nos aspectos mercadológicos quanto nas investigações acadêmicas, já que suas estruturas possibilitam um tipo de comunicação organizacional estruturada e necessária para a solidificação da identidade e imagem organizacionais. Os dados foram coletados durante o mês de maio de 2018. Para compor a amostra da pesquisa, ficou definido que seriam estudados clubes com visibilidade no futebol, sendo oito clubes brasileiros e oito clubes de outros países latino-americanos. A definição teve como base o ranking de valor de marca da BDO 2017 e da Forbes 2017, ficando a amostra composta da seguinte forma: Ciências da Comunicação • Clubes brasileiros: Flamengo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Grêmio, Internacional, Atlético Mineiro e Cruzeiro; • Clubes latino-americanos (sem o Brasil): Chivas Guadalajara, Monterrey, América-MEX, River Plate, Boca Juniors, Tijuana, Santos Laguna e Atlético Capítulo 24 285 Nacional (COL). 2 | COMUNICAÇÃO E ESPORTE NA CONTEMPORANEIDADE A comunicação dentro do ambiente organizacional se consolidou e se expandiu no país desde a segunda metade do século passado. Os profissionais que atuam nesse segmento desenvolveram ao longo do tempo uma visão integrada das empresas, adquirindo noções de gestão empresarial, buscando o conhecimento mais profundo sobre seus públicos de interesse e intensificando o uso de variados meios de comunicação para transmitir suas mensagens. Com um foco inicial destinado à divulgação de produtos e serviços, a comunicação organizacional foi ampliando o seu entendimento sobre todo o universo em que está inserida, e a gestão de marcas passou a ocupar um local bastante importante nos planejamentos comunicacionais. Não basta mais a divulgação de informações sobre os diferenciais e benefícios dos produtos. Em uma espécie de atuação funcional, tornouse necessário o trabalho no sentido de posicionar as marcas como elementos sociais que despertam desejos e que oferecem atributos e status àqueles que as consomem. Sobre o papel das marcas no contexto atual, Semprini (2010, p.74) considera que “seu papel não é só aquele de lubrificar o espaço social, mas de constituí-lo e permitir sua existência”. Na discussão inicial de seu livro, o autor avalia que esse posicionamento social das marcas é influenciado por três grandes aspectos: a transformação das mídias em atores do espaço social (e não mais apenas como mediadores desse espaço), a mudança da cena social provocada por essa atuação dos meios de comunicação, que passam a definir quem, e por quanto tempo, terá acesso à cena social, e o desenvolvimento das novas tecnologias, especialmente a internet (SEMPRINI, 2010, p. 74-76). O autor avalia as marcas sob um aspecto amplo, incorporando questões econômicas, políticas, culturais e comunicacionais, considerando esses aspectos capazes de influenciar a sociedade em uma escala que ultrapassa algumas visões de gestão de marca que limitam-se aos perímetros que rodeiam as corporações. Ainda sobre esse tema e corroborando com o pensamento de Semprini, Bueno (2018) destaca que a construção da imagem da marca é um fator de extrema importância, salientando que esse processo não deve ser trabalhado apenas para agradar ao mercado, mas que deve estar intimamente ligado aos aspectos fundamentais da identidade das organizações. O autor comenta que é preciso compreender que a imagem da marca corporativa e a imagem da marca de produtos e serviços devem ser trabalhadas de acordo com suas particularidades, porque normalmente obedecem a segmentações distintas, direcionando-se a públicos que podem não ser coincidentes (BUENO, 2018). Desta forma, as questões que envolvem a construção e gestão de marcas passa, Ciências da Comunicação Capítulo 24 286 necessariamente, por aspectos ligados à gestão organizacional, não podendo se restringir ao universo da comunicação e do marketing. Essa ligação se faz necessária, pois a construção da imagem de marcas é complexa e envolve questões tangíveis e intangíveis que impactam sua penetração, consolidação e expansão no âmbito social. Nesse ponto, é interessante retomar Semprini quando ele destaca que a imagem da marca comunica sua identidade, transmitindo uma mensagem clara e concreta, mesmo que envolta em um sistema de produção de sentido. Para o autor, torna-se mais aplicável falar sobre identidade da marca em vez de imagem da marca, já que a gestão de marcas na contemporaneidade deve atuar no sentido de manter a coerência e a unidade de discursos (SEMPRINI, 2010). O imperativo de uniformidade entre atuação e divulgação de marcas pode ser exemplificado pelo tipo de comunicação atual, influenciada pelos aspectos da comunicação digital. No ciberespaço, os processos de busca e escalabilidade potencializam-se. Os conteúdos divulgados em portais, sites, blogs, vlogs e redes sociais espalham-se em ampla velocidade e atingem milhares, ou milhões, de pessoas rapidamente. Já a facilidade em encontrar uma informação torna muito mais difícil não atuar de maneira transparente e coesa, pois com apenas alguns cliques a verdade organizacional pode aparecer. Nesse sentido, os profissionais da área necessitam ampliar, constantemente, os seus entendimentos sobre as plataformas de comunicação digital. Elas devem ser utilizadas de forma integrada, dentro de um planejamento de comunicação que envolva objetivos, estratégias e táticas, e não devem se limitar em atingir um retorno rápido e simplista. Os processos comunicacionais digitais são complexos e diferem-se daqueles realizados nas mídias consideradas tradicionais. A participação dos públicos na produção e distribuição de conteúdos é um aspecto inovador e culmina em formas diferenciadas de consumo de informações. A comunicação organizacional desenvolvida no ambiente digital deve priorizar a divulgação de conteúdos que sejam de interesse das marcas e de seus públicos – por isso, é necessário conhecer os públicos em profundidade. Necessita ser dialógica, realizada em tempo real e buscar explicitar os aspectos tangíveis e intangíveis que constituem as suas identidades. Mesmo quando a comunicação organizacional não é realizada nas plataformas de redes sociais, e se manifesta em sites ou mesmo em meios off-line, é preciso ter especial atenção para as características mencionadas, pois, como já dito na introdução deste artigo, cabe mais a separação de mundo entre real e virtual. Corroborando com essa visão, Cipriani (2001) faz um alerta: Uma empresa social não é aquela que simplesmente adota ferramentas de Web 2.0, mas aquela que coloca funcionários e líderes em contato com o mercado face a face, com criatividade, autonomia e transparência. Isso vale tanto para estabelecer diálogo proativo como também para monitorar e participar das discussões passivamente. Tornando-se mais humana, a empresa passa a entender melhor a comunidade de clientes que atende e naturalmente passa a explorar com mais Ciências da Comunicação Capítulo 24 287 eficiência esse ecossistema (CIPRIANI, 2010, p.22). Essa humanização da comunicação caminha no mesmo sentido de expor a complexidade que é o trabalho de gerenciamento e divulgação de marcas discutido até então. Quando a marca em questão encontra-se no segmento esportivo, a multiplicidade de fatores a serem analisados se amplia, pois esse segmento é bastante singular no que se refere ao relacionamento das organizações e seus públicos. O desenvolvimento correto e adequado do gerenciamento das comunicações interna e externa, dentro do conceito de comunicação integrada desenvolvido pela professora Margarida Kunsch (2003), traz excelentes reflexos nos resultados econômico e financeiro das organizações empresariais. A gestão estratégica da comunicação integrada em organizações empresariais é fundamental para o processo de identificação das empresas com seus diversos grupos de interesses. Processo de identificação que será melhor construído a partir da estruturação, por parte das organizações empresariais, de uma adequada filosofia de comunicação integrada que transmita, em um só sentido, as diversas facetas das relações que a entidade mantém com seus mais variados stakeholders. Do ponto de vista teórico, a comunicação integrada deve ser vista como um processo relacionado diretamente à gestão estratégica das organizações (KUNSCH, 2003; 2006). Como disciplina, a comunicação integrada estuda a comunicação das organizações, inclusive dentro do esporte, no âmbito da sociedade global. Trata-se de um fenômeno inerente à natureza das organizações e aos agrupamentos de pessoas que a integram, permitindo a construção de uma visão abrangente dos processos comunicativos nas e das organizações. Deve considerar todos os aspectos relacionados com a complexidade do fenômeno comunicacional inerente à natureza das organizações, bem como os relacionamentos interpessoais presentes na dimensão humana da comunicação, além das dimensões estratégica e instrumental. A comunicação integrada permite compreender a comunicação organizacional muito além do ponto de vista meramente centrado na transmissão de informações e da produção de mídias. Ademais, a “comunicação organizacional integrada” configura as diferentes modalidades que permeiam o seu conceito e as suas práticas, envolvendo concomitantemente a comunicação institucional, a mercadológica, a interna e a administrativa (KUNSCH, 2003, p. 149). No mesmo sentido do conceito de comunicação integrada proposto por Kunsch (2003; 2006), Pedersen, Miloch e Laucella (2007), no livro Strategic Sport Communication, apresentam um interessante modelo estratégico para a comunicação no esporte que integra todas as vertentes da comunicação propostas pela pesquisadora brasileira. Ciências da Comunicação Capítulo 24 288 Figura 1 – Modelo Estratégico de Comunicação no Esporte (The Strategic Sport Communication Model). Fonte: Adaptado pelo autor de Pedersen et al., 2007 O modelo proposto pelos pesquisadores norte-americanos (PEDERSEN et al, 2007) envolve a organização esportiva em seu relacionamento com o mercado, com seus torcedores e fãs, com seus colaboradores e com diversos outros grupos de interesses que orbitam em torno das organizações esportivas. Trata-se de um modelo para a gestão estratégica da comunicação específica para as organizações esportivas. Os autores dividem a comunicação nas entidades que trabalham com o esporte, conforme Figura 1, em três componentes: Comunicação Pessoal e Organizacional no Esporte, Esporte e Mídia de Massa e Serviços e Suporte à Comunicação Esportiva. Importante observar, dentro do modelo proposto por Pedersen, Miloch e Laucella (2007), que o Componente I (Comunicação Pessoal e Organizacional no Esporte) apresenta relação estreita com os Componentes II (Mídia de Esporte de Massa) e III (Comunicação de Serviços e Suporte ao Esporte). A comunicação integrada encontra, no esporte contemporâneo, território profícuo para desempenhar seu papel com plenitude. O caráter intangível do produto esportivo, quando bem trabalhado pelos profissionais de comunicação, permite a construção de forte apelo institucional para a consolidação de uma cultura sólida para entidades esportivas. O marketing passa a funcionar como ferramenta de apoio de um processo maior, o da comunicação integrada. Ciências da Comunicação Capítulo 24 289 No início de 2015, a European Club Association (ECA), entidade que congrega mais de 210 agremiações do Velho Continente, publicou uma compilação das melhores práticas de gestão dos clubes europeus, o ECA Club Management Guide. No importante documento, os clubes de futebol da Europa assumiram, como premissa básica, o modelo apresentado na Figura 2 como princípio para o desenvolvimento de suas estratégias individuais. Os clubes europeus, através de uma de suas entidades principais, a ECA, dividem seu núcleo central (Club Core) de atividades em três grandes grupos: Esportivas (Sport), Negócios e Mercado (Business) e Comunidade (Community). As estratégias de atuação das agremiações europeias (Club Strategies) devem combinar: ações voltadas para o êxito no campo esportivo, com a conquista de boas performances nas competições que disputam; a obtenção de resultados econômicos e financeiros, com excelente posicionamento de mercado e valorização de suas marcas; e, finalmente, a construção de um relacionamento sólido com a comunidade e/ou com os diversos agentes com os quais a organização de relaciona. A comunicação assume, assim, importante papel na construção dessas pontes de relacionamento com a comunidade e a sociedade como um todo. Figura 2 – Modelo de Gestão dos Clubes Europeus. Fonte: Adaptado pelo autor de ECA, 2015 A efetividade dos relacionamentos entre as entidades esportivas e seus públicos é consequência de uma combinação entre uma estratégia de comunicação bem planejada e os bons resultados obtidos nas disputas esportivas. Valores e crenças de agremiações vencedoras são mais facilmente assimilados por seus públicos do Ciências da Comunicação Capítulo 24 290 que valores e crenças de entidades perdedoras. A gestão estratégica combinando preparação esportiva, foco e concentração na competição e relacionamento com os stakeholders facilita o processo em que os resultados econômicos, financeiros e esportivos são mesclados positivamente, maximizando a atuação do gestor do esporte. O esporte e suas organizações apresentam, assim, um vasto universo para o estudo da comunicação organizacional e a construção e desenvolvimento de uma cultura própria para cada entidade esportiva, de acordo com suas características e com as diversas identidades dos seus stakeholders. De forma bastante simplificada, a intenção deste projeto de pesquisa foi analisar a sobreposição dos dois modelos de comunicação apresentados acima. Como o Modelo Estratégico de Comunicação no Esporte, proposto por Pedersen, Miloch & Laucella (2007), pode ser encontrado no desenho de Comunicação Organizacional Integrada desenvolvido pela Profa. Margarida Kunsch (2003). Mais do que isso, o propósito desta pesquisa foi o de avaliar como os principais clubes esportivos do Brasil, em comparação com seus pares da América Latina, estão posicionados, em seu estágio de desenvolvimento gerencial, em relação aos dois modelos de comunicação apresentados acima. 3 | ANÁLISE DOS PORTAIS DOS CLUBES A análise empírica deste artigo teve como foco o estudo de portais de oito clubes brasileiros de futebol e oito clubes de futebol de outros países da América Latina. Como descrito na introdução, a escolha dos clubes teve como base os rankings da BDO e da Forbes de 2017. No Brasil, o ranking BDO de 2017 aponta os seguintes clubes como os de marca mais valiosas: Flamengo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Grêmio, Internacional, Atlético Mineiro e Cruzeiro. Nos demais países da América Latina, o ranking Forbes 2017 indica os seguintes clubes: Chivas Guadalajara, Monterrey, América-MEX, River Plate, Boca Juniors, Tijuana e Santos Laguna (são clubes de México e Argentina). O Atlético Nacional, da Colômbia, foi selecionado por ser um clube-empresa e por ter se destacado pelo trabalho de comunicação realizado após a trágica queda do avião que levava a delegação da Chapecoense e jornalistas brasileiros a Medellín, em novembro de 2016, quando 71 pessoas morreram. Os dados foram coletados durante o mês de maio de 2018. Para este artigo, serão analisados apenas os conteúdos relacionados à comunicação mercadológica, mais direcionada ao relacionamento com torcedores, comunidade e imprensa. Outros dados coletados a partir da observação dos portais servirão como base para outras pesquisas. A fim de estabelecer uma coleta de informações sistematizada, foi desenvolvido um protocolo de observação. Para a obtenção dos dados relativos à comunicação mercadológica, foram destacados 17 itens, a saber: Materiais Impressos de Divulgação Ciências da Comunicação Capítulo 24 291 - Públicos / Valores de Patrocínio / Programa de Sócio-Torcedor ou de benefícios / Relacionamento com Associados / Atendimento a Cliente / Idiomas do portal / Política de acesso ao portal / Veículos Eletrônicos - TV, Portal, Rádio, etc. / Redes Sociais participação / Aplicativos / Lojas e/ou espaços para comercialização de produtos on-line / Lojas e/ou espaços físicos para comercialização de produtos / Catálogo de Produtos / Franquias e outras ações de vendas de produtos / Patrocinadores / Fornecedores de Material Esportivo / Atletas participam de ações mercadológicas. Os dados coletados foram organizados e dispostos na seguinte tabela: Item analisado Materiais Impressos de Divulgação Clubes que possuem1 SPFC (revista e releases) e CRU (revista) Valores de Patrocínio Flamengo e Internacional Programa de Sócio-Torcedor ou de benefícios Relacionamento com Associados Todos os clubes possuem espaço para sócio-torcedor Todos possuem informações sobre suas sedes, regulamentos etc Todos possuem ouvidoria ou outro tipo de atendimento Atendimento a Cliente Clubes que NÃO possuem COR, PAL, ATL-MG, FLA, INT e GRE COR, PAL, SPFC, ATL-MG, GRE e CRU Idiomas do portal Português, Inglês e Espanhol: SPFC; COR, PAL, FLA, INT, GRE Português, Inglês, Espanhol e Chinês: e CRU só têm a opção em Atlético-MG português Política de acesso ao portal PAL E GRE possuem Política de Privacidade; CRU possui código de conduta para o uso de redes sociais Veículos Eletrônicos - TV, Portal, Rádio, etc Todos os clubes possuem TV; COR, PAL, GRE e INT possuem rádio Redes Sociais Todos os clubes têm redes sociais Aplicativos COR, PAL, SPFC, ATL, INT e GRE Lojas para comercialização de produtos on-line Lojas físicas para comercialização de produtos Catálogo de Produtos Todos os clubes possuem informações sobre suas lojas físicas Todos os clubes possuem diferentes produtos em suas lojas online Fornecedores de Material Esportivo Atletas participam de ações mercadológicas Em notícias, todos relatam a presença de atletas em eventos Patrocinadores FLA e CRU (sem indicação no site) Todos os clubes possuem lojas online COR, SPFC, ATL, FLA, PAL, GRE e CRU possuem informações sobre franquias e escolinhas de futebol Todos os clubes divulgam os seus patrocinadores nos sites Todos os clubes divulgam no site as marcas de seus fornecedores Franquias e outras ações de vendas de produtos COR, SPFC, ATL, FLA e INT Internacional 1. As abreviaturas na tabela com as informações dos clubes brasileiros significam: ATL - Atlético Mineiro; COR - Corinthians; CRU - Cruzeiro, FLA- Flamengo; GRE - Grêmio; INT - Internacional; PAL - Palmeiras; SPFC - São Paulo. Ciências da Comunicação Capítulo 24 292 Em relação aos clubes brasileiros, é possível afirmar que os portais possuem bastante informação sobre suas ações mercadológicas, como programas de sócio- torcedor, ações com atletas, patrocínios e venda de produtos. Também possuem meios de divulgação de notícias como seus canais de TV (no Youtube), suas redes sociais e o próprio botão de notícias do site - todos atualizados e com vasto volume de conteúdo. Um acesso fácil para o atendimento ao cliente também está presente em todos os portais dos clubes. Um ponto questionável seria a pouca presença de políticas de acesso ao portal. Apenas três clubes possuem políticas de privacidade, com detalhamento para o uso de dados e informações dos internautas que fazem cadastros. Outra fragilidade aparente é o número restrito de clubes que se preocupam em ter suas versões em mais idiomas além do português. O São Paulo possui versões do portal em inglês e espanhol, e o Atlético-MG, em inglês, espanhol e chinês. O Internacional tem um arquivo em seis idiomas diferentes com informações gerais sobre o clube, o estádio e a cidade de Porto Alegre. Os outros cinco clubes possuem apenas informações em português. Item analisado Clubes que possuem2 Clubes que NÃO possuem Materiais Impressos de Divulgação BOC, TIJ, SAN, NAC CHI, MON, AME e RIV Valores de Patrocínio Nenhum Os clubes não divulgam valores de patrocínio Programa de Sócio-Torcedor ou Todos os clubes possuem espaço de benefícios para sócio-torcedor Relacionamento com Associados MON, AME, RIV, BOC, TIJ, SAN, NAC Atendimento a Cliente Todos possuem ouvidoria ou outro tipo de atendimento Idiomas do portal Espanhol e Inglês: AME, RIV, TIJ e SAN; Espanhol, Inglês, Italiano e Genôves: BOC CHI, MON e NAC só têm a opção em espanhol Política de acesso ao portal CHI, MON, AME, TIJ, SAN e NAC RIV e BOC não têm Veículos Eletrônicos - TV, Portal, Rádio, etc Todos possuem TV ou canal de Youtube. NAC tem link para rádio Redes Sociais Todos os sites apresentam os ícones das redes sociais Chivas, River Plate, Boca Juniors, Monterrey e Tijuana não Atlético Nacional possuem Aplicativos CHI Lojas para comercialização de produtos on-line CHI, AME, RIV, BOC, TIJ, SAN e NAC MON (existe o link, porém está fora do ar) Lojas físicas para comercialização de produtos MON, BOC, TIJ, SAN e NAC possuem dados sobre lojas físicas CHI, AME e RIV não têm dados sobre lojas físicas 2. As abreviaturas na tabela com as informações dos clubes latino-americanos significam: AME - América do México; BOC - Boca Juniors; CHI - Chivas Guadalajara; MON - Monterrey; NAC - Atlético Nacional; RIV - River Plate; SAN - Santos Laguna; TIJ - Tijuana. Ciências da Comunicação Capítulo 24 293 Patrocinadores CHI, AME, RIV, BOC, TIJ, SAN e NAC possuem diferentes produtos Monterrey em suas lojas online Todos os clubes têm algum tipo de franquia (escola de futebol, tours nos estádios, agências de turismo) Todos os clubes divulgam os seus patrocinadores nos sites Fornecedores de Material Esportivo Todos os clubes divulgam no site as marcas de seus fornecedores Atletas participam de ações mercadológicas Na parte de notícias, MON, RIV, BOC, TIJ e SAN relatam a presença de atletas em eventos Catálogo de Produtos Franquias e outras ações de vendas de produtos CHI, AME e NAC não possuem notícias a respeito Na análise dos clubes de outros países da América Latina, nota-se que os argentinos Boca Juniors e River Plate oferecem muitas informações ao público. Seus portais são melhores desenvolvidos, em relação aos maiores clubes mexicanos e ao colombiano Atlético Nacional. Em comparação com os brasileiros, há uma preocupação maior em atender ao público estrangeiro. Cinco dos oito clubes analisados (América- MEX, River Plate, Tijuana, Santos Laguna e Boca Juniors) têm uma versão de seus portais em inglês. O argentino Boca Juniors disponibiliza a opção para a leitura em italiano e em genovês (provavelmente por conta da origem da instituição, fundada por imigrantes italianos e seus descendentes). Para as equipes mexicanas, é importante a versão em inglês, pela proximidade com o mercado dos Estados Unidos. Chama a atenção o fato de o Chivas Guadalajara, clube mexicano mais rico (segundo o ranking de 2017 da Forbes) e que já investiu em uma franquia nos Estados Unidos (o Chivas USA), não oferecer um portal em inglês. Todos os clubes têm estratégias para sócios-torcedores, uma forma de fidelizar os torcedores e gerar renda, e investem na comunicação para atrair esse público. Há uma lacuna, porém, no que diz respeito a ações em parceria com os patrocinadores dos clubes (América-MEX, Chivas e Nacional-COL não noticiam a presença de atletas em eventos mercadológicos). 4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS As características do produto esportivo fizeram crescer a importância da comunicação integrada. Com o apoio da mídia e um processo de gestão bem estruturado, que implante, desenvolva, comunique e deixe transparecer os valores da agremiação para todos os stakeholders de uma entidade esportiva, certamente haverá benefícios econômicos, financeiros e esportivos para o clube, a federação ou a confederação que a implantar. O desenvolvimento de uma identidade organizacional, por exemplo, integra os agentes internos da organização esportiva com seu posicionamento de mercado. A forma de agir, as atitudes dos atletas, seu comportamento dentro e fora das praças Ciências da Comunicação Capítulo 24 294 esportivas, a forma de praticar o esporte, as postagens de clubes e atletas nas redes sociais, todos esses elementos comunicacionais devem estar integrados e colaboram tanto para a conquista de títulos, a performance esportiva, como para o correto e desejado posicionamento no mercado de consumo de bens e serviços esportivos, sua rentabilidade econômica e financeira. Todos esses elementos absolutamente integrados e equilibrados. Este artigo é parte de uma pesquisa ampla, que busca analisar e comparar a comunicação integrada dos mais valiosos clubes de futebol do Brasil, da América Latina e dos Estados Unidos. Neste recorte do levantamento, constata-se que os oito mais ricos clubes brasileiros e os oito mais ricos de outros países da América Latina investem na comunicação mercadológica com o objetivo de: se relacionar com a imprensa e noticiar o dia a dia do time profissional de futebol (o que atrai a atenção de seus torcedores); divulgar as marcas de seus parceiros e patrocinadores; atrair sóciostorcedores. Porém, como discutido anteriormente, lacunas precisam ser preenchidas para aperfeiçoar essa comunicação mercadológica. A metodologia utilizada para o presente estudo pode ser válida para análises futuras do tema em confederações, federações e outras entidades que apresentem o esporte como seu negócio principal. A metodologia permite, também, a comparação da comunicação integrada dos clubes brasileiros com outros mercados do futebol mundial, e qualquer outro país que apresente agremiações com portais oficiais na internet. O presente artigo apresenta como limitação principal o fato de ter trabalhado apenas com a análise da comunicação realizada pelas entidades esportivas no universo digital. Sabemos que, em muitas oportunidades, os portais oficiais das entidades esportivas se apresentam desatualizados, não refletindo o real estágio da comunicação das organizações. REFERÊNCIAS BDO Publicações. 10º Valor das Marcas dos Clubes Brasileiros - Finanças dos Clubes. 2017. BUENO, Wilson da Costa. Comunicação e gestão de marcas: revisando conceitos e práticas. In. BUENO, Wilson da Costa (org). Comunicação empresarial e gestão de marcas. Barueri: Manole, 2018. CIPRIANI, Fabio. Estratégia em mídias sociais: como romper o paradoxo das redes sociais e tornar a concorrência irrelevante. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. ECA (2015). ECA Club Management Guide, Nyon: ECA. KUNSCH, M. M. K. (2003). Planejamento de relações públicas na comunicação integrada. 4a. ed. – revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Summus. ________________(2006). Comunicação organizacional: conceitos e dimensões dos estudos e das práticas In: MARCHIORI, M. Faces da cultura e da comunicação organizacional. São Caetano do Sul, Ciências da Comunicação Capítulo 24 295 SP: Difusão Editora, p. 167-190. PEDERSEN, P. M.; MILOCH, K. S.; LAUCELLA, P. C. (2007). Strategic Sport Communication. Champaign: Human Kinetics. PERES, Ivan. Los 50 equipos de futbol más valiosos de América. In Forbes. México: 2017. Disponível em: https://www.forbes.com.mx/los-50-equipos-de-futbol-mas-valiosos-de-america/. ROCCO JÚNIOR, A. J.; CARLASSARA, E. O. C.; PAROLINI, P. L. L. Comunicação comunitária e responsabilidade social em clubes de futebol do Brasil e da Europa: muito além do “sócio-torcedor”. In Organicom - Revista Brasileira de Comunicação Organizacional e Relações Públicas. São Paulo: ECA-USP, Ano 13, Número 24, 1º semestre de 2016. SEMPRINI, Andrea. A marca pós-moderna: poder e fragilidade da marca na sociedade contemporânea. Tradução de Elisabeth Leone. 2.ed. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010. Ciências da Comunicação Capítulo 24 296 CAPÍTULO 25 OS PÚBLICOS PROJETADOS: CONSTRUÇÕES DISCURSIVAS NA PROPOSIÇÃO DE EXPERIÊNCIAS PELAS ORGANIZAÇÕES Márcio Simeone Henriques Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte - Minas Gerais RESUMO: Estudo exploratório realizado com o objetivo de verificar empiricamente no discurso corporativo elementos que compõem a formação de públicos na projeção de experiências pelas organizações. Como parte de uma investigação maior que busca compreender as dinâmicas de formação e de movimentação de públicos, buscou avaliar construções textuais sugestivas de dez empresas sob a perspectiva das visões de mundo, de negócios e de relacionamento que mobilizam quadros de sentido potencialmente organizadores de uma experiência singular dos públicos com cada organização. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação organizacional – Relações Públicas - Públicos - Experiência. of experiences by the organizations. As part of a larger research that seeks to understand the dynamics of formation and movement of publics, it sought to evaluate textual suggestive constructions of ten companies from the perspective of worldviews, business values and visions of relationships that mobilize frames of meaning and potentially organize an experience with each organization for its publics. KEYWORDS: Organizational communication – Public Relations – Publics - Experience 1 | INTRODUÇÃO É visão corrente que as estratégias de comunicação das organizações “criam” públicos, mas pouco se busca compreender acerca do processo pelo qual são “projetados”. Estudam-se, em geral, os efeitos das ações organizacionais como sinais de influência, sem observar a construção dessa influência como um processo complexo de interações. PROJECTED PUBLICS: DISCURSIVE CONSTRUCTIONS IN THE PROPOSITION OF EXPERIENCES BY ORGANIZATIONS ABSTRACT: This is an exploratory study carried out with the purpose of verifying empirically in the corporate discourse elements that make up the formation of publics in the projection Ciências da Comunicação Nosso intuito com este trabalho é enfocar os processos pelos quais as organizações são capazes de formar públicos a partir da promoção de seus interesses e da projeção de experiências sobre eles. Enquadra-se em nossas recentes preocupações de pesquisa que buscam compreender as lógicas relacionais Capítulo 25 297 presentes na formação e na movimentação de públicos e aspectos das dinâmicas político-institucionais que as organizações estabelecem com a sociedade, por um viés relacional e crítico. Embora os públicos estejam no vocabulário organizacional em destacada posição, geralmente associados a interesses e ao campo de relacionamentos que as organizações precisam manter com a sociedade, é comum que sejam instrumentalizados, ou seja, objetificados numa relação que os percebe como audiências ou como agregados determinados apenas pelo direcionamento das mensagens (como alvo a ser atingido). Sob o ponto de vista das organizações, este é um ato político fundamental. Fixar os públicos em categorias faz parte de um jogo estratégico que visa reduzir suas possibilidades de movimentação e, consequentemente, de sua influência social. Por outro lado, essa instrumentalização contrasta com uma visão mais ampla de estratégia, que está presente nas decisões organizacionais, mesmo que de forma difusa, mas nem sempre visível. Afinal, algum nível de segredo faz parte das estratégias que se formam pelos interesses em disputa. Essa fixação dos públicos serve, portanto, como uma tentativa de criar significados mais estáveis e duradouros, de evitar ao menos que os sentidos discursivamente formados acerca da organização sejam desafiados a todo instante. Serve para buscar impor certas posições e narrativas como razoáveis e inquestionáveis. Isso está na raiz dos embates pela formação do interesse público. As organizações, ao se empenharem estrategicamente na promoção do interesse público, criam projeções desses mesmos públicos, propondo-lhes algum tipo de experiência. Discute-se neste trabalho o que constitui esses “públicos em projeto” e como se constroem as bases discursivas que permitem criar um quadro de sentido (GOFFMAN, 1986) para propor essas experiências (que dão forma aos públicos). A ideia é de que essa projeção requer um esforço de elaboração discursiva para dar um sentido definido à experiência proposta. O estudo empreendido, aqui parcialmente relatado, envolveu uma exploração empírica que consistiu em captar elementos do discurso corporativo publicamente disponível nos sites de organizações na internet, nas declarações de missão, visão e valores e em outros textos institucionais. Contemplou 36 grandes corporações no Brasil, com abrangência e atuação nacional/transnacional, com capital majoritariamente privado, focalizando, em recorte posterior, 10 dessas organizações. O conteúdo foi analisado com o intuito de produzir uma classificação primária em categorias que expressem modalidades sugeridas de experiência em termos de crenças, estilos, comportamentos etc. 2 | OS PÚBLICOS PROJETADOS Tomamos os públicos como agregações formadas num processo de problematização de ações que afetam os sujeitos para além das consequências Ciências da Comunicação Capítulo 25 298 imediatas aos que se envolvem direta e particularmente nas diversas transações (DEWEY, 2012) e como uma modalidade de experiência (QUERÉ, 2003). São uma categoria que se refere fundamentalmente à ação, numa dinâmica complexa e aberta, que se dá no embate e na controvérsia permanentes entre público e privado. Constituem uma estrutura que é sempre menos ou mais definida, difusa, organizada ou estável, a depender da efetivação das interações e dos vínculos entre os seus membros (HENRIQUES, 2017). Dessa visão dos públicos decorre basicamente o raciocínio de que sua ação está ligada ao contínuo deslocamento de questões de domínios de interesses particulares para um âmbito coletivo de ampla visibilidade (no espaço público) e que, neste movimento, os públicos, divididos em suas posições, entram tanto em conflito como em colaboração entre si – o que quer dizer que as ações dos públicos provocam influências entre si. Ao definir os públicos como uma modalidade de experiência, Quéré (2003) chama a atenção para a sua existência em discurso/ação. Acreditamos que essa lógica explicativa nos conduz a uma percepção dos públicos como formas de ação que se constituem como experiência em público (ou seja, em condições de publicidade), compondo quadros de sentido que delineiam essa experiência. A ideia de que públicos buscam influenciar outros públicos gera a ideia de um campo de relações e vínculos complexos e intercambiáveis que contraria a visão desses entes como isoláveis e como destinatários finais de mensagens. Compõem, na verdade, uma vasta rede relacional. Porém, não é sem razão que as organizações se preocupam com a potência de alguns grupos e atores sociais que, em sua ação, são capazes de interferir nas questões controversas, mobilizar e gerar alianças com outros públicos. A base da chamada Teoria dos Stakeholders está no reconhecimento do poder de influência (positiva ou negativa) de públicos na tomada de decisões organizacionais (FREEMAN, 1984). Uma visão de públicos que não seja estritamente focada na recepção permite- nos reconhecê-los como agentes, numa relação que é, antes de tudo, reflexiva. Temos sustentado que os públicos são tanto constituídos por si próprios - por interesses comuns reconhecíveis que seus membros manifestam em relação às controvérsias (que envolvem as organizações), quanto por interesses (das organizações ou dos públicos) que são projetados sobre pessoas e grupos (HENRIQUES, 2018). Esses dois movimentos são, na verdade, indissociáveis, na lógica de formação. Fazem parte do mesmo domínio de ações, que incidem umas sobre as outras. Se a problematização comum de aspectos da realidade mobiliza as pessoas como públicos, por outro as instituições, as organizações de qualquer natureza e os próprios públicos (menos ou mais definidos) promovem seus interesses para públicos diversos. Ao fazerem isso, criam formas de endereçamento de seus discursos e obtêm ressonância (positiva ou não) pela situação desses agrupamentos em torno das posições que são promovidas. Para elas, os públicos são também um projeto de ação. Esse projeto deve manifestarse, de fato, nas atitudes e ações dos públicos. Formar públicos é, nesta perspectiva, Ciências da Comunicação Capítulo 25 299 sugerir uma localização (posição), alinhada aos interesses organizacionais e envolve um paradoxo: ao mesmo tempo essas organizações incitam os públicos que podem fortalecer e ampliar suas posições a mover-se publicamente, a exercer sua influência sobre outros públicos, também sugerem, de outro lado, certa acomodação desses públicos em torno daquela posição desejável. No sentido inverso, buscam conter a movimentação de outros públicos cujas posições não são desejáveis. A visão estratégica, portanto, se aplica quando a visão de movimentação desses atores e de suas interinfluências em longo prazo se materializa num conjunto de relações e de vínculos diferenciados que a organização tenta construir para obter para si posições de maior vantagem nesses embates. A constituição de públicos pelas organizações (como projetos) depende, então, de uma visão projetada no tempo e no espaço: (a) das possíveis movimentações e tomadas de posição; (b) das performances dos públicos na cena pública e (c) de uma evolução do contexto das ações. Essa dramaturgia envolve, portanto, a experiência de cada um desses atores em público e a construção de quadros de sentido que dão a ver esse conjunto de ações (e de relações) em curso (GOFFMAN, 1986). Uma das formas de construção da influência das organizações sobre este vasto campo relacional está em sugerir aos públicos como se movimentar, pontos onde se posicionar e formas de enquadrar essa movimentação – condizentes e alinhadas com a sua perspectiva. Com isso queremos dizer, principalmente: que este conjunto de ações constitui um campo de experiência de relacionamento público desses atores, que há uma disputa entre eles pela forma como irão dar sentido e enquadrar essas experiências e colocá-las em perspectiva e que uns buscam influenciar tanto o tipo de experiência dos outros quanto as formas de enquadrá-las. Sobre este último aspecto, em particular, cabe especular sobre como as organizações buscam fazer isso. Uma das maneiras, à qual já nos referimos, é a promoção dos seus interesses frente aos públicos. Ao falar de promoção, queremos aqui enfatizar o sentido já arraigado nas próprias práticas publicitárias do verbo promover: colocar em evidência, impulsionar, fomentar. Portanto, é mais do que apresentar publicamente seus interesses, mas impelir, instigar, incitar, necessitando, para isso, de uma construção discursiva coerente e potente. Este movimento permite construir um sentido geral para esses interesses, postulados como sendo não apenas da organização, mas de toda uma coletividade. Contudo, essa busca por influência não se esgota na promoção do interesse: também se dá e se completa por um processo de projeção da experiência, ou seja, pela proposição aos públicos de certas condutas e ações que possam projetar-se no tempo e no espaço, como anteriormente nos referimos (HENRIQUES, 2018). É um processo de sugestão - não só de ações e comportamentos desejáveis, como também de modos de interpretar e enquadrar significativamente essa experiência. É bastante sintomático que a palavra “experiência” em si mesma tenha sido convocada a frequentar cada vez mais o discurso promocional das organizações e que Ciências da Comunicação Capítulo 25 300 hoje essa noção figure como uma das peças centrais na chamada “gestão de marca” (branding). Isso denota a dimensão estética dessa projeção/sugestão e a expansão daquilo que é necessário para gerar e manter o vínculo dos atores em relação: o processo empático, um envolvimento emocional que permita a identificação com a experiência do(s) outro(s). Assim, as organizações empenham-se continuamente em idealizar seus públicos, em dirigir a eles algo que possa interessá-los (no sentido de envolvê-los), em sugerir comportamentos, ações e modos de interpretá-las em quadros de sentido que possam consumar uma experiência. 3 | AS DIMENSÕES DA PROJEÇÃO DA EXPERIÊNCIA PELAS ORGANIZAÇÕES A projeção da experiência pelas organizações sobre os seus públicos materializa- se de várias formas em suas ações. Não somente nas suas estratégias e produtos de comunicação, mas no conjunto da gestão e também na práxis cotidiana. As práticas específicas de comunicação são, no entanto, elementos estruturantes, na medida em que selecionam, organizam, difundem e processam os elementos dessa projeção, dão suporte, relevo e potência simbólica a ela. As campanhas são, provavelmente, o exemplo máximo disso, ao realizarem um esforço concentrado e maciço de sugestão, geralmente manejando vários instrumentos ao mesmo tempo. É tanto mais evidente quanto mais ligada à experiência direta e concreta que se dá pelo contato dos públicos com produtos ou serviços. Porém, mesmo as organizações que podem prover este tipo de experiência direta necessitam também fomentar outras modalidades de experiência, diretas ou indiretas, dos públicos com suas marcas, no nível institucional. Uma experiência de consumo não se completa por si mesma, sem a remissão a sentidos mais amplos. Nosso intuito neste estudo foi o de verificar evidências empíricas da composição desse quadro de sentido mais amplo. Estamos cientes de que essa dimensão encerra um composto simbólico vasto e complexo que constitui o ethos da organização, compondo sua marca, em noção mais abrangente, cuja compreensão implica investigar um terreno mais vasto para compreender os diversos meandros da projeção da experiência e seus nexos com a formação e movimentação de públicos. Isso inclui uma percepção mais integrada entre elementos textuais e não textuais e uma leitura de elementos estéticos. Nossa escolha recaiu sobre o discurso de apresentação das organizações expresso em suas declarações de missão, visão e valores e em documentos de apresentação publicamente disponíveis (concentrando-nos aqui, especificamente, em relatórios anuais). Esse conjunto textual, em geral, é menos evidente e eloquente que as logomarcas, os slogans, os jingles, os apelos de campanha, os eventos. Por vezes é desprestigiado por assumir certa fórmula padronizada, por parecer simplório ou ingênuo como visão de mundo ou concepção de negócio ou simplesmente por parecer figurar ali como uma obrigação, sem nenhum cuidado em sua formulação e Ciências da Comunicação Capítulo 25 301 sem conexão com a prática de negócios e a percepção social acerca da organização. Para o raciocínio aqui desenvolvido, no entanto, há algo que os torna interessantes, pois fornecem um esquema para o enquadramento e chaves de leitura das experiências projetadas (e delas não se dissociam). Embora genérico, tal discurso parece cumprir outra função, que é a de amalgamar um conjunto de experiências de caráter diverso, formando uma unidade experiencial. Segundo Dewey, “temos uma experiência singular quando o material vivenciado faz o percurso até a sua consecução” (2010, p. 109). Para ele as experiências ocorrem continuamente, mas nem sempre se compõem numa experiência singular, “integrada e demarcada no fluxo geral da experiência proveniente de outras experiências” (Idem). Assim, uma leitura desses elementos textuais por si mesmos é fraca, mas na formação de um conjunto coerente que ajuda a dar forma e, mais ainda, pela sua reiteração e acúmulo no contexto maior das diversas organizações, dão suporte a uma visão de sociedade e de vida em comum e sugerem enfeixar as experiências projetadas em experiências singulares, portanto, mais substantivas. O estudo empírico teve o objetivo de colher algumas evidências presentes no discurso organizacional mais amplo e genérico que ressaltem essa pretensão de sugerir enquadramentos e de projetar uma singularidade experiencial sobre os públicos. 4 | A EXPLORAÇÃO DAS FORMAS DE SUGESTÃO A exploração abarcou inicialmente 36 corporações brasileiras de grande porte, com abrangência e atuação nacional/transnacional, com capital majoritariamente privado, dos setores de varejo, de serviços, de bens de produção, de bens de consumo e de finanças. Deste conjunto foi selecionado um corpus específico de 10 organizações, sendo pelo menos uma de cada setor, tendo como critério o volume de material textual obtido1. Não nos preocupamos em obter uma amostra representativa nem nos empenhamos em tecer comparações, mas apenas em colher subsídios para melhor conhecimento das ideias que comumente guiam esses discursos. Por meio de análise do conteúdo textual, foram selecionados, compilados e organizados trechos que evidenciam formas sugestivas. Traçamos inicialmente três categorias básicas de composição de enquadramentos: (a) visão de mundo; (b) visão de negócios e (c) visão de relacionamento. Essas categorias, entretanto, não são estanques, porque o que se mostra é que são indissociáveis, na formação de uma unidade discursiva. O que queremos ressaltar com isso é que todos os textos explorados contêm uma combinação de elementos dessas três visões, ou seja, isso faz parte do padrão discursivo reconhecível. Essas três categorias permitem visualizar como as sugestões variam em amplitude. Mesmo na generalidade desse conjunto textual, as idealizações são dispostas de modo a 1. Unilever, Livraria Saraiva, General Motors do Brasil, Vivo, Grupo Pão de Açúcar, Itaú-Unibanco, Arcor, Porto Seguro, Merck e Arcelor Mittal. Ciências da Comunicação Capítulo 25 302 contemplar uma visão abrangente de mundo e de sociedade, outra mais focalizada na forma de operar o negócio da organização (no plano do mercado) e ainda outra que explicita as formas de relacionamento desejáveis. Apresentamos em seguida nossas observações sobre cada categoria, extraindo alguns elementos ilustrativos do corpus. (a) Visão de Mundo - É comum observarmos a formulação de uma visão de mundo mais geral: “estamos comprometidos com o crescimento de uma sociedade justa, humana e saudável” (Grupo Pão de Açúcar)2, porém observa-se que em muitos textos essa composição é feita de modo a fazer alusão à natureza do negócio da organização: “educação, cultura e lazer devem estar disponíveis a todos porque são essenciais para a construção de um mundo melhor” (Livraria Saraiva)3. Porém é neste domínio que se manifesta, de modo menos ou mais explícito, uma visão civilizatória que as organizações assumem. É notável uma tendência a sugerir o papel social e civilizador das organizações perante os desafios das mudanças globais, a geração de soluções (criativas) para melhorar o mundo e a necessidade de contribuir para um futuro sustentável: As empresas que não apresentam um impacto positivo na resposta a desafios como a fome, alterações climáticas, igualdade de gênero ou acesso à educação, em breve não terão mais razão para existir. (Unilever)4 Participamos e contribuímos para a melhoria das comunidades onde trabalhamos ao redor do mundo. (General Motors)5 Somos unidos pela paixão por novas ideias. Na Merck, queremos incentivar aqueles que buscam fazer uma diferença positiva por meio de ideias criativas e engenhosas para transformar o mundo em que vivemos. (Merck)6 O propósito da nossa marca é promover mudanças positivas na vida das pessoas e da sociedade. Nossa responsabilidade com o desenvolvimento do país está́ na nossa essência. Além da transformação inerente à nossa atividade principal, também investimos em projetos ligados a educação, cultura, esportes e mobilidade urbana. (Itaú Unibanco)7 Nós não esperamos que os outros nos mostrem o caminho. Nós encontramos o caminho, e ao fazermos isso, demonstramos aos stakeholders o valor que a nossa empresa pode trazer para a sociedade. (ArcelorMittal)8 Assim, as organizações buscam unificar as experiências propostas aos públicos num nível em que se conecta a um modelo de sociedade que as justifica e magnifica seu 2. Disponível em: <http://www.grupopaodeacucar.com.br/o-grupo/missao--visao-e-pilares/>. Acesso em: 12 ago 2017. 3. Disponível em: <http://images.livrariasaraiva.com.br/quem-somos/nossa-missao.htm>. Acesso em: 15 jul 2017. 4. Relatório de Sustentabilidade 2016. Disponível em: <https://www.unilever.com.br/Images/relatorio-de-progresso-2016-portugues_tcm1284-510366_pt.pdf>. Acesso em: 18 ago 2017. 5. Disponível em: <http://www.chevrolet.com.br/sobre-a-gm/chevrolet-agora-para-sempre-pilares-marca.html>. Acesso em 18 ago 2017. 6. Disponível em: <http://www.merck.com.br/pt/company/merck_sa/missao/missao.html>. Acesso em: 15 jul 2017. 7. Disponível em: <https://www.itau.com.br/sobre/marca/>. Acesso em: 04 jul 2017. 8. Disponível em: <http://brasil.arcelormittal.com/quem-somos/missao-visao-valores>. Acesso em: 04 jul 2017. Ciências da Comunicação Capítulo 25 303 papel como atores sociais. Mas há também exemplos que trazem uma proposta mais explícita da experiência de “estar no mundo” segundo a ótica e o estilo da organização, como por exemplo: “ampliar as possibilidades de conexão entre as pessoas para que possam viver de forma mais humana, segura, inteligente e divertida, em todos os seus papeis” (Vivo, grifo nosso)9. (b) Visão de negócios - Na face mais diretamente ligada aos negócios, surgem com mais força as diferenças entre as organizações com base na sua natureza, uma vez que aquelas que são ligadas mais diretamente ao consumo de produtos e serviços tendem a enfatizar essa experiência direta. Porém, aqui aparecem mais indícios de como tentam enquadrar numa singularidade um conjunto de múltiplas experiências, sejam diretas ou indiretas, dos públicos com elas: A missão da Unilever é levar vitalidade para o dia-a-dia. Atendemos às necessidades diárias de nutrição, higiene e cuidados pessoais com marcas que ajudam as pessoas a se sentirem bem, bonitas e aproveitarem mais a vida (Unilever, grifos nossos)10 Nossas marcas inspiram paixão e lealdade. (General Motors)11 Oferecer às pessoas em todo o mundo a oportunidade de desfrutar de alimentos e guloseimas de qualidade, gostosos e saudáveis, transformando o seu dia a dia em “Momentos Mágicos” de encontro e comemoração. (Arcor, grifo nosso)12 Uma instituição financeira pode ajudar a realizar sonhos e investir em grandes ideias. Um banco incentiva pessoas a crescer e empresas a progredir. (Itaú Unibanco, grifo nosso)13 Nossa missão é assumir riscos e prestar serviços, por meio de um atendimento familiar que supere expectativas, garantindo agilidade a custos competitivos com responsabilidade social e ambiental. (Porto Seguro, grifo nosso)14 Em algumas aparece explicitamente a palavra “experiência”, corroborando a tendência que anteriormente apontamos: “garantir a melhor experiência de compra para todos os nossos clientes, em cada uma de nossas lojas” (Grupo Pão de Açúcar)15. Realizar sonhos, ajudar a progredir, inspirar paixão e lealdade, proporcionar familiaridade, “momentos mágicos”, bem-estar e beleza são ideias-força que dão apoio específico à consecução de experiências singulares e que podem ser, por sua vez, reunidas numa experiência singular mais abrangente (no mundo, na sociedade), para o que estas organizações se postulam como imprescindíveis. 9. Disponível em: <http://www.vivo.com.br/portalweb/appmanager/env/web?_nfls=false&_nfpb=true&_pageLabel=vivoVivoInstAMarcaPage#>. Acesso em: 04 jul 2017. 10. Disponível em: <https://missaovisaovalores.wordpress.com/tag/unilever/>. Acesso em: 18 ago 2017. 11. Disponível em: <http://www.chevrolet.com.br/sobre-a-gm/chevrolet-agora-para-sempre-pilares-marca.html>. Acesso em 18 ago 2017. 12. Disponível em: <http://arcor.com.br/nossa-companhia/missao>. Acesso em: 02 ago 2017. 13. Disponível em: <https://www.itau.com.br/sobre/marca/>. Acesso em: 04 jul 2017. 14. Disponível em: <https://www.portoseguro.com.br/a-porto-seguro/conheca-a-porto-seguro/missao-valores-e-filosofia>. Acesso em: 02 ago 2017. 15. Disponível em: <http://www.grupopaodeacucar.com.br/o-grupo/missao--visao-e-pilares/>. Acesso em: 12 ago 2017. Ciências da Comunicação Capítulo 25 304 (c) A visão de relacionamento - Neste campo as sugestões se referem às atitudes, tanto das organizações quanto dos públicos, no ambiente relacional. Embora as declarações de missão, visão e valores em muitos casos reflita condutas desejadas dos próprios colaboradores16, várias delas, bem como outros documentos que reafirmam os princípios e diretrizes maiores da organização, trazem sugestões sobre como deve se dar o relacionamento tanto com públicos internos como externos e, mais especificamente, com clientes: Nosso sucesso é fundamentado na coragem, realização, responsabilidade, respeito, integridade e transparência. Estes valores determinam as nossas relações com clientes e parceiros de negócios, bem como o nosso trabalho em equipe e a nossa colaboração uns com os outros. (Merck)17 Para ter sucesso é necessário (sic) “os mais altos padrões de comportamento empresarial de todos com os quais trabalhamos, as comunidades que tocamos e o ambiente que impactamos” (Unilever)18 Nosso sucesso depende de nossos relacionamentos dentro e fora da empresa. Globalmente, encorajamos diferentes maneiras de pensar e colaborar, para oferecer a melhor experiência para o cliente. O cliente está no centro de tudo que fazemos. Ouvimos com atenção às suas necessidades. Cada interação é importante. (General Motors)19 A inovação vai além dos nossos produtos e serviços, ela está em tudo o que fazemos. Na forma como nos relacionamos e na nossa visão de negócios. Ela nos inspira a explorar o potencial que a conexão tem de melhorar a vida das pessoas ao transformar limites em oportunidades. (Vivo)20 São comuns sugestões sobre o tipo de vínculo que almejam e propõem, o que geralmente denota um desejo de estabelecer relações mais contínuas e duradouras. Nestes exemplos, essa durabilidade é colocada em direta relação com a projeção de experiências significativas: Estar a serviço do desenvolvimento humano por meio de experiências relevantes que criem relacionamentos duradouros e gerem valor para todos, garantindo a perenidade da marca Saraiva. (Livraria Saraiva)21 Trabalhamos para surpreender, divertir, alegrar e propiciar todos os dias vínculos sinceros e duradouros. (Arcor)22 Em muitos casos é possível observar um nexo entre os valores que as organizações associam às marcas, quando qualificam as relações esperadas em termos de atitudes 16. Aqui procuramos uma focalização mais geral, mas acreditamos que uma apreciação mais detalhada sobre o discurso para o corpo interno em moldes semelhantes seja frutífera, colocando-a sob o prisma da projeção da experiência. 17. Disponível em: <http://www.merck.com.br/pt/company/merck_sa/missao/missao.html>. Acesso em: 15 jul 2017. 18. Disponível em: <https://www.unilever.com.br/about/who-we-are/purpose-and-principles/>. Acesso em: 16 jul 2017. 19. Disponível em: <http://www.chevrolet.com.br/sobre-a-gm/chevrolet-agora-para-sempre-pilares-marca.html>. Acesso em 18 ago 2017. 20. Disponível em: <http://www.vivo.com.br/portalweb/appmanager/env/web?_nfls=false&_nfpb=true&_pageLabel=vivoVivoInstAMarcaPage#>. Acesso em: 04 jul 2017. 21. Disponível em: <http://images.livrariasaraiva.com.br/quem-somos/nossa-missao.htm>. Acesso em: 15 jul 2017. 22. Disponível em: <http://arcor.com.br/nossa-companhia/missao>. Acesso em: 02 ago 2017. Ciências da Comunicação Capítulo 25 305 (não apenas de si mesmas e de seus colaboradores, mas nas interações com os diversos públicos): Nosso sucesso é fundamentado na coragem, realização, responsabilidade, respeito, integridade e transparência. Estes valores determinam as nossas relações com clientes e parceiros de negócios, bem como o nosso trabalho em equipe e a nossa colaboração uns com os outros. (Merck)23 Todos os dias, buscamos fazer com que nossos valores - cooperação, transparência, justiça e atitude de atender com genuíno interesse - não sejam apenas palavras repetidas, mas verdades percebidas por todos os nossos públicos de relacionamento. (Porto Seguro)24 5 | CONCLUSÃO As evidências aqui reunidas demonstram que as visões de mundo, de negócio e de relacionamento são indissociáveis. Elas se mesclam e se combinam de modo diferente, segundo a natureza da atividade e os modos e níveis de experiência que estas organizações são capazes de oferecer. É possível observar que as organizações, em suas interações cotidianas, propõem continuamente um conjunto de experiências que podem ser tomadas cada uma em sua singularidade, em escalas diferentes – das mais específicas às mais gerais. Percebe-se que a função de sugestões mais generalizantes está na agregação coerente de experiências que se dão em escala menor e mais específica, sob um quadro de sentido no qual este conjunto possa ser percebido como uma experiência singular. Ao fazerem isso, buscam unir experiências diretas e indiretas dos sujeitos com as organizações. Estes movimentos, entre particular e geral, entre afetação direta e indireta fazem parte da formação dos públicos e de sua dinâmica no espaço público. REFERÊNCIAS DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010. DEWEY, John. The public and its problems: An essay in political inquiry. Philadelphia: Penn State Press, 2012. FREEMAN, R. Edward. Stakeholder management: framework and philosophy. Boston/EUA: Pitman, 1984. GOFFMAN, Erwing. Frame analysis: an essay of the organization of the experience. Boston: Northeastern University Press, 1986. HENRIQUES, Márcio S. As organizações e a vida incerta dos públicos. In: 23. Disponível em: <http://www.merck.com.br/pt/company/merck_sa/missao/missao.html>. Acesso em: 15 jul 2017. 24. Relatório de Sustentabilidade 2016. Disponível em: <http://ri.portoseguro.com.br/conteudo_pt.asp?idioma=0&conta=28&tipo=58436>. Acesso em: 02 ago 2017. Ciências da Comunicação Capítulo 25 306 MARQUES, Ângela C. S.; OLIVEIRA, Ivone de L.; LIMA, Fábia P. (orgs.). Comunicação organizacional: vertentes conceituais e metodológicas. 1.ed. Vol. 2. Belo Horizonte: PPGCOM UFMG, 2017. p. 119-129. HENRIQUES, Márcio S. Promoção do interesse e projeção da experiência: a formação dos públicos na interação com as organizações. In: FRANÇA, Vera V.; SIMÕES, Paula G. (Orgs.). O modelo praxiológico e os desafios da pesquisa em comunicação. 1.ed.Porto Alegre: Sulina, 2018, p. 161174. QUÉRÉ, Louis. Le public comme forme et comme modalité d’expérience. In: CEFÄI, D; PASQUIER, D. (Org.). Le sens du public; publics politiques, publics mediatiques. Paris: Press Universitaire de France, 2003. Ciências da Comunicação Capítulo 25 307 CAPÍTULO 26 ACESSIBILIDADE E COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL: PLANEJAMENTO E PÚBLICOS EM UMA CAMPANHA INCLUSIVA PARA PESSOAS CEGAS E COM BAIXA VISÃO Victor Said dos Santos Sousa Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas, Campus I, Curso de Comunicação Social – Relações Públicas, e-mail: victorsssousa@gmail.com Salvador-BA Leonardo Santa Inês Cunha Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas, Campus I, Curso de Comunicação Social – Relações Públicas, e-mail: lscunha@uneb.br Salvador-BA Lidiane Santos de Lima Pinheiro Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas, Campus I, Curso de Comunicação Social – Relações Públicas, e-mail: lidicom@gmail.com Salvador-BA RESUMO: O presente artigo discute os elementos de uma campanha de comunicação inclusiva, voltada para pessoas com deficiência, a partir do estudo do caso da UNEX Inclusiva 2018. A UNEX – Associação dos Ex-alunos da Universidade do Estado da Bahia – é uma associação civil, sem fins lucrativos, localizada em Salvador, oferece cursos de inglês, espanhol e pré-vestibular a baixo custo. Sua campanha de matrículas, em 2018, foi direcionada também para deficientes visuais, cegos ou com baixa Ciências da Comunicação visão; por isso, foi planejada de forma acessível e inclusiva, para divulgar a oferta de bolsas integrais no curso de idiomas. Buscando refletir sobre como tornar as estratégias e conteúdos de comunicação organizacional acessíveis para pessoas com deficiência a partir de uma visão com foco na responsabilidade social, o artigo analisa o histórico e a legislação brasileiros sobre acessibilidade e o conceito de públicos em Relações Públicas, de modo a analisar como estes elementos estão presentes no caso estudado. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação Organizacional; pessoas com deficiência; Responsabilidade social; acessibilidade, públicos organizacionais. ABSTRACT: This paper discusses the components of an inclusive communication campaign focused on people with disabilities. It is based on a case study of Unex Inclusiva 2018. UNEX – Alumni Association of Bahia State University – is a civil non-profit organization located in Salvador, Brazil, and works with low income courses of Spanish and English language and University preparatory. The 2018 enrollment campaign was designated to people with visual disabilities, blind and low range vision. The campaign was planned in an accessible and inclusive way to publicize the scholarship program of the language courses. Capítulo 26 308 Thinking over how to turn the strategies and content of organizational communication, under a social responsibility inspiration, accessible to people with disabilities, the paper analyzes the history and legislation about inclusion of people with disabilities and the concept of organizational publics in Public Relation. Following this direction, we analyze how those aspects can be found in the case studied. KEYWORDS: Organizational Communication; people with disabilities; social responsibility; accessibility; organizational publics. 1 | APRESENTAÇÃO Pessoas com deficiência representam aproximadamente 24% da população brasileira, segundo dados do IBGE, e constituem-se em um público organizacional de relevância para uma série de organizações de diferentes naturezas. As produções acadêmicas no campo da comunicação sobre acessibilidade ainda são insipientes, mas é possível obter indicações relevantes a partir da bibliografia da área de Relações Públicas. O presente artigo apresenta os resultados da análise de um estudo de caso sobre a construção de uma campanha de comunicação inclusiva para pessoas com deficiência, mais especificamente, com deficiência visual (cegas e com baixa visão), a fim de refletir sobre como torná-la acessível a tal público, a partir de uma visão da comunicação organizacional com foco na responsabilidade social. Para tanto, neste artigo, emprega-se três procedimentos metodológicos: a revisão bibliográfica, elaborada através da pesquisa de artigos, periódicos, livros e dissertações; o estudo de caso, elaborado a partir da campanha da Associação dos Ex-alunos da Universidade do Estado da Bahia, a “UNEX Inclusiva 2018”, que ocorreu no período de 08 a 19 de maio e de 18 a 30 de junho de 2018; o relato de experiência, baseado na construção da campanha. O artigo está dividido em 4 sessões. Primeiramente, são apresentados dados sobre o desenvolvimento de políticas voltadas para pessoas com deficiência. Em seguida, o conceito de público em Relações Públicas é analisado, com foco em elementos aplicáveis à temática do estudo. A terceira sessão consiste na descrição e análise da campanha de comunicação “UNEX Inclusiva 2018”. Por fim, são apresentadas considerações sobre os resultados encontrados e possibilidades de estudos futuros. 2 | POLÍTICAS PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, tem ocorrido um amplo debate acerca da inclusão das minorias sociais nos diversos setores da sociedade, conforme analisa Monteiro (2011). Estes debates perpassaram as últimas décadas e se mantêm atuais, considerando a diversidade e especificidades de cada grupo minoritário e a necessidade de inclusão social destes. Dentro deste universo, Ciências da Comunicação Capítulo 26 309 o grupo que nos interessa, particularmente, é o de Pessoas com Deficiência (PCD). A Legislação Brasileira define deficiência através do Decreto Nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, como sendo “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”. Este Decreto, responsável por consolidar a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, define quatro tipos de deficiência: física, auditiva, visual e mental. Historicamente, a nomenclatura representou estigma e segregação social, como aponta Lima (2016, p. 7). As pessoas com deficiência eram alvo de preconceito (capacitismo), que impossibilitava a inserção destes indivíduos dentro do contexto social. Entretanto, esta visão, em sua concepção mais profunda, vem se modificando ao longo dos tempos, principalmente através dos marcos na legislação brasileira, conforme relata a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, passando pela Constituição Federal, de 1988, continuando com o Programa Nacional dos Direitos Humanos, de 1996, e a Lei da Acessibilidade, de 19.12.2000, todos esses ditames, bem como seus desdobramentos e regulamentações, impõem que haja equidade de direitos e acessibilidade. (ABNT, 2008, p. v) O marco regulatório no Brasil se consolidou, também, através da Lei nº 10.098/00, da Promoção de Acessibilidade para PCD, e da Lei nº 13.146/15, da Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Considerando a promoção de um maior grau de integração nos diversos setores da sociedade – em especial, devido às políticas de acessibilidade e inclusão –, ocorre uma reconfiguração do papel social destes indivíduos, que passam a ocupar diversos espaços. Para Monteiro (2011), é necessário compreender as políticas de inclusão como “os processos que envolvem a consolidação do direito que todo e qualquer cidadão tem de participar ativamente da sociedade, contribuindo de alguma forma para o seu desenvolvimento” (WERNECK, 2000; WERNECK, 2003 apud MONTEIRO et. al., 2011). Nesse sentido, segundo Batista Júnior, a concretização dessas políticas impactou diretamente nas práticas educacionais, alicerce da Educação Inclusiva: Observamos, assim, a crescente matrícula de alunos e alunas com deficiência nas escolas regulares, que resultou em mudanças profundas tanto na prática pedagógica e na metodologia de ensino como nas estruturas das escolas, na formação docente e, principalmente, na política educacional voltada para pessoas com deficiência. (BATISTA JÚNIOR, 2016, p. 11) As PCD estão cada vez mais ativas, ocupando novos espaços, sendo vistas e respeitadas em todas as suas potencialidades. Essas transformações decorrem, além das políticas de acessibilidade, da promoção e incentivo às ações inclusivas, que buscam proporcionar equidade. Considerando a relevância social desta temática e a necessidade de compreender a singularidade dos públicos inseridos em uma campanha de comunicação inclusiva Ciências da Comunicação Capítulo 26 310 como esta, explicaremos o processo de construção da campanha supracitada, que visou a inclusão de PCD nos cursos de idiomas do Programa de Inclusão de Pessoas com Deficiência da Associação dos Ex-alunos (UNEX) da maior instituição de ensino superior da Bahia, a UNEB. Antes, porém, apresentaremos os resultados da pesquisa teórica realizada para embasar o planejamento da própria campanha, bem como para fundamentar o presente artigo. 3 | A COMPREENSÃO DE PÚBLICO PARA A INCLUSÃO DE PESSOAS CEGAS E COM BAIXA VISÃO De acordo com Kunsch (2014), as organizações devem ser analisadas num contexto amplo, compreendendo seus impactos no desenvolvimento econômico e social, além de suas contribuições para as transformações no mundo contemporâneo. Para a autora, é necessário aproximar as organizações da realidade, impactando em suas comunidades; compete à comunicação organizacional essa aproximação: No contexto da comunicação organizacional cabe aos gestores de comunicação sensibilizar os dirigentes de que não basta só gerar empregos, pagar impostos e atingir lucros, mas que se deve ir além, contribuir para uma sociedade melhor. (KUNSCH, 2014, p. 37) Na complexa era moderna, marcada pela sociedade em rede e pela mediação dos meios de comunicação de massa, as organizações reestruturam-se perante o fenômeno da globalização, conferindo grande poder à comunicação (THOMPSON, 1999; CASTELLS, 2003; KUNSCH, 2014). A comunicação passa a ser central no relacionamento e consolidação dos públicos (FRANÇA, 2009), atuando ainda como um dos mecanismos centrais na promoção de mudanças embasadas na responsabilidade social das organizações (KUNSCH, 2014). A atuação responsável das organizações, portanto, deve ser incentivada e mediada pelos setores de comunicação destas. Socialmente, houve uma mudança na significação e valor da responsabilidade social, que passou a ser vista como pauta estratégica da comunicação organizacional: É importante que as organizações tenham esse olhar social, pois a responsabilidade social pode ser utilizada como uma estratégia de comunicação para que consigam atingir os seus públicos ou até conseguir novos. (PIRES, 2015, p. 7) Práticas organizacionais responsáveis atuam como ferramenta para consolidar a marca perante os públicos, pois possibilita a divulgação da marca, produtos e serviços (PIRES, 2015). A imagem de uma organização socialmente responsável se torna um diferencial para o consumo. Portanto, as organizações contemporâneas precisam definir e conhecer seus públicos, para alcançar e consolidar um bom relacionamento com seus consumidores, conforme analisa França (2009), esta é a função do profissional de Relações Públicas: Ciências da Comunicação Capítulo 26 311 Em relações públicas, atividade essencialmente de relacionamentos com pessoas, é imprescindível que os públicos da organização sejam corretamente identificados, para que se possa estabelecer com eles uma interação produtiva e dialógica. (FRANÇA, 2009, p. 210) Uma campanha de comunicação inclusiva se configura como uma interessante prática de responsabilidade social, pois possibilita comunicação com propósito, aproximando a organização da realidade social, distanciando o discurso vazio da comunicação e incentivando transformações sociais. As práticas de inclusão se configuram como relevantes, pois tornam determinada pauta/produto acessível à minoria social incluída, podendo incentivar ao ingresso no mundo do trabalho, por exemplo, conforme analisa Monteiro: A inclusão tem importância política, cultural, social e econômica, uma vez que a sociedade tem suas estruturas sustentadas pelo trabalho. Todo cidadão, com ou sem deficiência, precisa trabalhar para acessar os bens disponíveis no mundo moderno, bem como apoderar-se da construção da sua sociedade. (MONTEIRO, 2011) Nesse contexto, conhecer o perfil do público para uma campanha de comunicação inclusiva é fundamental. No caso estudado, o público são as pessoas com deficiência, especificamente com deficiência visual (cegos e com baixa visão). De acordo com França (2009), é necessário efetuar a conceituação lógica dos públicos para melhor compreendê-lo, definindo as estratégias e ações de comunicação direcionadas, capaz de alcançá-lo, promovendo o diálogo, pois Não se trata de qualquer relacionamento, mas daquele que deve ser definido como especializado, com conhecimento das partes, da organização e dos públicos, fundamentado em diretrizes que devem orientá-lo, bem como das mensagens que devem ser enviadas, via mídia dirigida, para cada público, de modo que a empresa seja compreendida e percebida como deseja. (FRANÇA, 2009, p. 210) Desta forma, para a análise do público abordado, é necessário defini-lo. A deficiência visual é definida, conforme a Legislação Brasileira, Decreto Nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, como sendo: III - deficiência visual - cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60°; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores. (PLANALTO BRASILEIRO, 1999) No cenário brasileiro, de acordo com o IBGE (2014), através do Censo Demográfico de 2010, constatou-se que 23,9% da população brasileira, correspondente a 45.606.048 milhões de pessoas na época, declararam ter pelo menos uma das deficiências investigadas pelo instituto. As pesquisas se basearam na percepção do indivíduo sobre sua dificuldade em enxergar, ouvir ou se locomover, e na existência da deficiência mental ou intelectual. Conforme aponta o IBGE (apud LIMA, 2016, p. 13), “a deficiência visual aparece em primeiro lugar com 18,6% de ocorrência”, isto é, mais de 35 milhões, estando dividida em cegueira total ou parcial, além da baixa visão. Ciências da Comunicação Capítulo 26 312 Para a consolidação das práticas de inclusão, independente da natureza da deficiência, há a demanda de ajustes comunicacionais na organização e em relação ao público. Lima (2016) reflete sobre as diretrizes que orientam a construção de uma campanha de comunicação inclusiva. Para a autora, para alcançar uma comunicação acessível, é necessário atingir, no mínimo, estes quatro itens fundamentais: 1 - Ela deve ser pensada de forma a contemplar o maior número de pessoas possível, se atentando para o fato de que as pessoas são diferentes e se comunicam de formas diversas; 2 – A linguagem utilizada deve ser a mais clara e transparente possível para que não gere ambiguidade, permitindo que qualquer um possa entender o que está sendo transmitido; 3 – Se em sua gênese a comunicação não puder atingir uma diversidade considerável de públicos, é fundamental a disponibilização do conteúdo em formatos alternativos para que pessoas com deficiência ou com alguma necessidade de suporte comunicacional possam acessá-lo; 4 – Ela deve servir como um canal que divulgue a importância da eliminação de barreiras físicas, comunicacionais, instrumentais, metodológicas e atitudinais. (LIMA, 2016, p. 45) Dentro desse cenário, França (2009, p. 225) indica que “cabe à empresa determinar quais públicos escolherá para com eles interagir, definir os objetivos e as expectativas da relação, sua duração e a sua importância, bem como as formas de avaliação dessa parceria.” Assim, a elaboração de uma campanha de comunicação para pessoas cegas e com baixa visão requer uma ampla compreensão da natureza deste público. Para este autor, compete à organização gerenciar os relacionamentos, de modo a potencializar a relação com os públicos. Portanto, faz-se necessário estudar os mecanismos de interação e percepção com o mundo, os meios de comunicação que são predominantemente consumidos; os principais canais de comunicação utilizados, como as redes sociais e recursos da informática etc. Deste modo, a compreensão do público é fundamental para a estruturação de uma campanha de comunicação inclusiva, alcançando efetivamente o público analisado e fomentando uma ação de responsabilidade social acessível para pessoas com deficiência visual. 4 | A UNEX E O PROGRAMA DE INCLUSÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA A UNEX (Associação dos Ex-alunos da Universidade do Estado da Bahia – UNEB), fundada em outubro de 2001, é uma associação sem fins lucrativos, formada por egressos dos cursos de graduação e pós-graduação da UNEB. A UNEB (2018a) é a maior instituição pública superior do estado da Bahia, estruturada no sistema multicampi, faz-se presente em 24 municípios baianos e visa aliar “[...] a excelência acadêmica à sua missão social, contribuindo, assim, para o desenvolvimento Ciências da Comunicação Capítulo 26 313 socioeducacional e econômico da Bahia e do país”. A Associação opera em parceria com a Universidade através do convênio 24/2016, que tem por finalidade a cooperação técnica, científica, administrativa e cultural para a realização dos cursos de idiomas e do pré-vestibular. Atualmente, a Associação atua oferecendo cursos de idiomas (inglês e espanhol) e pré-ENEM (Prévestibular Vestibular Social Zeferina) a preços populares em Salvador. Em seus 17 anos de atuação, a UNEX promoveu seminários, congressos, conferências, cursos e debates de caráter científico, além de participar de projetos sociais conveniados com o Ministério da Educação e a UNESCO (Projeto Diversidade na Universidade); com a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Governo da Bahia (Curso de Formação de Professores Educação e Diversidade) e com a Secretaria da Reparação da Prefeitura de Salvador, através do Programa de Apoio aos Quilombos Educacionais (UNEB, 2018b). A UNEX compactua com os valores da UNEB em atuar como instituição de ensino popular e inclusiva, tanto que desde sua fundação, a Associação conta com política de assistência estudantil que contempla bolsas de estudos em seus cursos, a doação de quilos de alimentos arrecadados na matrícula dos cursos às Residências Universitárias, a realização de estágios por estudantes da UNEB, além do apoio aos eventos realizados pelo corpo discente da universidade (UNEB, 2018b). Em 2009, fundou o Programa de Inclusão para Pessoas com Deficiência, que visa ofertar bolsas de ensino para PCD e, desde 2014, o programa passou a incluir pessoas cegas e com baixa visão, ofertando curso de língua inglesa baseado nos princípios da educação acessível e inclusiva. Como instituição de ensino, a UNEX converge com a concepção de França (et al., 2017), compreendendo que, no âmbito educacional, a expressão PCD passa a ser utilizada para pessoa com necessidades educativas específicas; uma vez que engloba pessoas com limitações físicas, sensoriais ou intelectivas que necessitam de atendimento especializado. O Programa de Inclusão de Pessoas com Deficiência parte do princípio da educação inclusiva, oferecendo bolsas integrais para os cursos de idiomas da instituição. O Programa prevê, além da bolsa aos estudantes contemplados, material didático inclusivo (em braile ou ampliado), adaptado às necessidades únicas de cada discente e acompanhamento pedagógico durante o período. A iniciativa apresenta-se como importante ação de inclusão social das PCD, tendo em vista que fornece meios sólidos para garantir a qualidade de ensino deste público. Especialmente no caso dos deficientes visuais, como aponta França (et al., 2017, p. 9), “é fundamental que o docente conheça as necessidades dos seus alunos deficientes visuais para que sua postura em sala de aula se adapte à realidade de quem não enxerga”. Para a consolidação do processo de ensino aprendizagem, e a eficácia do Programa, é necessário adaptar a metodologia de ensino considerando a deficiência Ciências da Comunicação Capítulo 26 314 deste estudante que, apesar de possuir limitações na visão, cognitivamente é tão capaz quanto um aluno não-cego, conforme relata França: Como os alunos cegos e com baixa visão se diferenciam pela necessidade de abordagens diferenciadas, com materiais que promovam um ensino/aprendizagem significativo, suas capacidades de aprendizado se equiparam às de alunos videntes. (FRANÇA et al., 2017, p. 4) Nesse sentido, uma das principais ferramentas para construir um processo de ensino-aprendizagem eficaz, dialógico e funcional para este público tange à assertividade da linguagem utilizada, conforme indica Motta (2004): Ao ter conhecimento da importância da linguagem para os alunos cegos e com baixa visão, cabe [...] propiciar comunicação clara, [...], passando a fazer uso de outros instrumentos que possam abrir caminhos para o entendimento, como a exploração dos sons e da entonação, por exemplo. (MOTTA, 2004, p. 70). A linguagem, então, é um dos principais mecanismos de aprendizado e de comunicação para este público. Tendo em vista a audição como seu principal sentido e a necessidade de um meio eficaz de comunicação, optou-se pela elaboração de um produto de comunicação institucional radiofônico como peça basilar para a construção desta campanha inclusiva. Através da campanha inclusiva proposta pela Associação, e descrita a seguir, buscou-se promover uma ação de comunicação acessível, que estimule a educação inclusiva para pessoas cegas e com baixa visão, direcionada ao ensino de língua inglesa e espanhola. A proposta justifica-se pela alta relevância de difundir o ensino de língua estrangeira, expandindo a percepção do estudante com deficiência através do aprendizado de uma nova língua. Para impulsionar as ações do Programa em 2018, a UNEX lançou a campanha de comunicação inclusiva, divulgando a oferta de dez bolsas integrais para os cursos de inglês ou espanhol para PCD. Para alcançar o público, foi elaborada uma campanha utilizando as mídias virtuais, tendo como ator central o produto radiofônico, utilizado para a comunicação institucional. A campanha foi pensada de modo a ser integralmente acessível. Considerando que a audição é o principal sentido deste público, conforme consulta ao Instituto de Cegos da Bahia, a campanha em áudio apresentou-se como um mecanismo acessível e de fácil consumo. Também de acordo com o Instituto, muitos deficientes visuais são usuários da informática, acessando informações e descrições de imagens, especialmente quando veiculadas em redes sociais, como Facebook, WhatsApp e Youtube. O acesso à informação por este público ocorre com o auxílio de leitores de tela e por meio do recurso de áudio descrição. Nas redes sociais, a áudio descrição é acionada a partir da hashtag #ParaCegoVer, que descreve os cards, fotografias e conteúdos visuais em rede. Diante disso, todas as mídias veiculadas nas redes sociais da UNEX, como os Cards para Facebook e Whatsapp, contaram com a legenda #ParaCegoVer, descrevendo as imagens Ciências da Comunicação Capítulo 26 315 presentes nas peças veiculadas nas redes sociais. Para elaboração desta campanha inclusiva, estruturou-se e definiu-se a metodologia, inicialmente, através da pesquisa documental, consultando artigos, teses, leis e literatura disponível sobre acessibilidade, inclusão social, além de campanhas, processo de ensino-aprendizagem etc. que abordassem especificamente deficientes visuais. Foi elaborada ampla pesquisa bibliográfica, apesar de haver pouca literatura disponível sobre campanhas para estes públicos. Considerando essas dificuldades, a UNEX firmou duas parcerias fundamentais para a compreensão e análise destes públicos: Instituto de Cegos da Bahia (ICB) e Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual (CAP). Estas parcerias foram fundamentais para compreensão e análise dos públicos, conforme sugere França (2009), pois são órgãos especializados, com ampla expertise. Após realizar reuniões e solicitar orientações para estes órgãos, foi possível conhecer melhor o tema e estabelecer parâmetros gerais de abordagem. Também ocorreu uma entrevista semiestruturada com um ex-aluno do curso de inglês da UNEX, Robenilson Nascimento, que possui deficiência visual e foi beneficiário do Programa de Inclusão de Pessoas com Deficiência. A entrevista teve por objetivo identificar quais os melhores meios, canais de divulgação, abordagem, linguagem, chamadas etc. Concluindo a etapa de pesquisas, consultou-se novamente o CAP e ICB, órgãos de referência no acompanhamento de pessoas com deficiência visual, a fim de reforçar determinadas conclusões sobre tal processo. As organizações foram esclarecedoras e enfáticas ao corroborar com as demais fontes, pois afirmaram que o melhor mecanismo para alcançar pessoas com deficiência visual é por meio de uma campanha de áudio, considerando que a audição é um dos sentidos centrais na percepção das PCD visual, e, convergindo com o depoimento de Robenilson, foi recomendada a divulgação nas seguintes plataformas: Youtube, Whatsapp e Facebook. A figura 1 apresenta um exemplo de card da campanha publicado no Facebook com a legenda descritiva. Conforme a Figura 1, veiculada 09 de maio de 2018, o card contém uma chamada para as inscrições do teste de nivelamento da Associação. Ciências da Comunicação Capítulo 26 316 Figura 1 – Exemplo de Card divulgado nas redes sociais com legenda #PraCegoVer Fonte: UNEX, 2018. Além da chamada com informações sobre a avaliação, a peça publicada contém a hashtag: “#PraCegoVer No card com filtro azul, há estudantes seis estudantes brancos e negros, sentados em carteiras fazendo uma avaliação. No texto em destaque: “Inscrições Abertas: Teste de Nivelamento”. Na parte superior o símbolo da Unex.” Considerando todos os aspectos elencados até aqui, após a definição dos meios e dos canais, da linguagem e da abordagem, e considerando as recomendações de Lima (2016) e Motta (2004), elaborou-se o roteiro de gravação do spot. O spot foi gravado em parceria com a Agência e-RP e Ilha de Edição do DCH-I. Durante a gravação foram dadas orientações e suporte sobre dicção, clareza, entonação, velocidade, respiração etc. A gravação ocorreu em ambiente com isolamento acústico, utilizando equipamento fornecido pela ilha de edição. O produto gravado foi um spot, que consiste em uma propaganda gravada em áudio, utilizando recursos radiofônicos, como a voz, música (background) e efeitos. O objeto gravado tem duração de 1’07’’, tendo como narrador o autor deste artigo, Victor Said (vide nota 5). O áudio foi gravado na terceira pessoa do singular, falando para a segunda pessoa, como se dialogasse diretamente com o interlocutor. Abaixo, segue roteiro da peça gravada: “Olá! A UNEX /Associação dos Ex-alunos da UNEB / está com matrículas abertas para os cursos de Inglês e Espanhol para pessoas cegas e com baixa visão// Venha estudar com a gente! // São dez bolsas integrais para pessoas com deficiência// Como aluno/ você terá direito a material didático adaptado/ acompanhamento pedagógico e professores qualificados// Ciências da Comunicação Capítulo 26 317 Estudantes cegos ou com baixa visão podem se matricular gratuitamente! Basta comparecer à UNEX, até o dia 12 de maio com cópias do RG/ CPF e laudo médico// A UNEX fica na Rua Silveira Martins/ número 2555/ NO Campus I da UNEB/ NO BAIRRO DO CABULA EM SALVADOR// Estude no melhor horário para você!// Temos turmas as segundas e quartas ou terças e quintas/ pela manhã tarde ou noite no Cabula// Essa é a oportunidade de se desenvolver e aprender um novo idioma// Se conecte ao mundo// VENHA ESTUDAR COM A GENTE!// Para maiores informações, entre em contato conosco: nosso é Whatsapp (71) 99294-1240 / nosso e-mail: unex@uneb.br / ou liga pra gente: (71) 3117-2408///”. Após a finalização da gravação, foi solicitada da monitora de extensão e estudante de Relações Públicas da UNEB, Kelly Veiga que elaborasse a peça tema da campanha, considerando que o spot teria de ser compartilhado em formato de vídeo. A arte construída consta na Figura 2, e foi utilizada como imagem fixa durante todo o vídeo. Após a união das peças de áudio e imagem, a campanha foi veiculada na página do Facebook e Youtube da UNEX no dia 08 de maio de 2018. Figura 2 – Arte da campanha elaborada com a legenda #PraCegoVer Fonte: UNEX, 2018. A figura 2 contou com a seguinte legenda nas redes sociais: #PraCegoVer A peça é trabalhada nas cores vermelho, azul e branco. Na parte superior consta a seguinte frase: «UNEX: Programa de Inclusão de Pessoas com Deficiência». Na parte central da imagem há três estudantes, um cego e dois não-cegos, sentados em carteiras, dentro de uma sala de aula. Na parte direita, há uma professora de língua inglesa, segurando a bandeira dos Estados Unidos da América, e atrás dela uma caixa de som. Ciências da Comunicação Capítulo 26 318 Na parte inferior direita está escrita a frase «realização:» seguidas dos logos da UNEX e da Agência e-RP. A partir das métricas coletadas nas redes sociais, o spot e as publicações no Facebook alcançaram 8.224 pessoas, principalmente no estado da Bahia, totalizando 781 visualizações do vídeo no Facebook e Youtube. A campanha foi veiculada pelo portal da UNEB, após envio de release pela assessoria de comunicação da UNEX, e foi compartilhada nas redes sociais da Universidade. No todo, foi compartilhada mais de 30 vezes, gerando um engajamento da comunidade, com mais de 130 reações e 20 comentários. A campanha resultou em frutos positivos, considerando que 50% das bolsas foram ofertadas para este público durante a campanha trimestral e extrapolou a quantidade de inscritos e contemplados na campanha do segundo semestre de 2018. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Elaborar uma campanha para um público de pessoas cegas e com baixa visão requer ampla pesquisa, empatia e compreensão da complexidade e singularidade que é a condição do outro. Através da elaboração desta campanha, foi possível articular saberes teóricos do curso de Relações Públicas com a prática de planejamento e execução. A decisão de elaborar um produto de comunicação institucional radiofônico foi certeira, considerando a percepção da pessoa com deficiência visual através da audição. Durante o período de matrícula, os estudantes contemplados informaram que ficaram sabendo da campanha por meio do WhatsApp e do Facebook da UNEX, sendo dois estudantes encaminhados pelo ICB. Com esta campanha a UNEX atua como organização inclusiva, atendendo aos valores da responsabilidade social ao ofertar bolsas integrais para estes estudantes, associadas ao material didático adaptado e acompanhamento pedagógico. A iniciativa se soma a outras, como o uso da hashtag #PraCegoVer, que tornam a campanha do segundo trimestre de 2018 inclusiva e acessível. Tal estudo nos revelou que os trabalhos publicados sobre comunicação inclusiva e, especificamente, sobre a atuação das relações públicas direcionada para públicos com deficiências são ainda incipientes, em um contexto no qual os discursos acadêmicos e organizacionais sobre responsabilidade social se agigantam. Diante disso, propomos aqui uma reflexão inicial sobre o assunto, a partir de uma experiência prática, marcada pelas limitações e superações de uma prática comunicacional ligada a uma universidade pública. Nesse sentido, esperamos continuar aprimorando a pesquisa e a execução de campanhas inclusivas, a fim de contribuir efetivamente com as investigações na área. Ciências da Comunicação Capítulo 26 319 REFERÊNCIAS BATISTA JÚNIOR, J. R. L. Pesquisas em educação inclusiva: questões teóricas e metodológicas. Recife: Pipa Comunicação, 2016. BRASIL. Cartilha do Censo 2010: Pessoas com deficiência. Disponível em: <https://goo.gl/tafGE7>. Acesso em: 11 abr. 2014. ______. Deficiência, Viver sem Limite – Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com. [S.l]: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) / Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD), 2013. Disponível em: <http://goo.gl/ vp9Q2G>. Acesso em: 24 abr. 2018. CÂMARA DE DEPUTADOS. Guia Legal - Portador de deficiência visual. Disponível em: <http://www2. camara.leg.br/a-camara/programas-institucionais/inclusao-social-e-equidade/acessibilidade/pdfs>. Acesso em: 08 jul. 2018. CASTELLS, Manuel. A Galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. FRANÇA, Fábio. A releitura dos conceitos de público pela conceituação lógica. In: KUNSCH, Margarida M. Krohling (Org.). Relações públicas: História, teorias e estratégias nas organizações contemporâneas. São Paulo: Saraiva, 2009. FRANÇA, S. R. et al. Ensino de língua inglesa para alunos cegos e com baixa visão em salas inclusivas do ensino médio. Disponível em: <https://goo.gl/hWxPfo>. Acesso em: 24 abr. 2018. HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de janeiro: Objetiva, 2001. KUNSCH, M. M. K. Comunicação Organizacional: contextos, paradigmas e abrangência conceitual. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/viewFile/90446/93218>. Acesso em: 08 jul. 2018. LIMA, R. A. J. Comunicação e acessibilidade: princípios e ferramentas para a construção de uma comunicação inclusiva. Salvador, UNEB, 2016. MONTEIRO, L. G.; OLIVEIRA, S. M. Q. RODRIGUES, S. M.; DIAS, C. A. Responsabilidade social empresarial: inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Disponível em: <http:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-65382011000300008>. Acesso em: 08 jul. 2018. MOTTA, L. M. V. M. 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Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em: 24 abr. 2018. THOMPSON, John Brookshire. A transformação da visibilidade. In: ______. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 2. Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, cap. 4. Tradução Wagner de Oliveira Brandão. UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA. A universidade. Disponível em: <http://www.uneb.br/ institucional/a-universidade/>. Acesso em: 09 jul. 2018. UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA. A Unex. Disponível em: <http://www.uneb.br/unex/sobre/>. Acesso em: 09 jul. 2018. Ciências da Comunicação Capítulo 26 321 CAPÍTULO 27 COMUNICAÇÃO COTIDIANA DOS VALORES DE RESPONSABILIDADE SOCIAL: REPRODUZINDO CULTURA NAS REDES SOCIAIS (OU NÃO) Maria Augusta de Castro Seixas Universidade Federal Fluminense, Laboratório de Tecnologia, Gestão de Negócios e Meio Ambiente (Latec) Niterói – RJ Emmanuel Paiva de Andrade Universidade Federal Fluminense, Laboratório de Tecnologia, Gestão de Negócios e Meio Ambiente (Latec) Niterói – RJ RESUMO: Este estudo analisa os valores de responsabilidade social empresarial (RSE) tal como se expressam em dois veículos de uma empresa brasileira nas redes sociais, conteúdo este que sofre a influência da compreensão do profissional de comunicação social. Utilizouse a perspectiva do interpretativismo e os procedimentos metodológicos da Análise de Conteúdo. Os resultados mostraram que a agenda de RSE não é plenamente explorada na comunicação cotidiana e isso compromete a contribuição da comunicação para o fomento de uma nova cultura. PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade Social. Cultura Organizacional. Redes Sociais. ABSTRACT: This study analyzes the values of corporate social responsibility (CSR) as expressed in two vehicles of a Brazilian Ciências da Comunicação company in social media, content that suffers the influence of social communication professionals’ understanding. It was used the interpretative perspective and the methodological procedures of Content Analysis. The results showed that the CSR agenda is not fully exploited in everyday communication and this compromises the contribution of communication to promote a new culture. KEYWORDS: Social Responsibility. Organizational Culture. Social Media. 1 | INTRODUÇÃO A habilidade para reunir diferentes formas de perceber, pensar e agir em torno de um diálogo, capaz de fomentar o respeito mútuo e criar uma ação coordenada, contribui para manter a unidade de uma organização. A construção de uma dinâmica organizacional efetiva implica mesclar subculturas, encorajando a evolução de metas, linguagens e procedimentos comuns para a solução de problemas. Uma vez aceitos e internalizados, os valores passam a fazer parte da mente coletiva e são considerados como princípios de todas as atividades na organização. Nessa dinâmica, a comunicação corporativa reproduz os valores, disseminando práticas e soluções que reforçam as diretrizes e valores que reafirmam sua identidade em face Capítulo 27 322 de seus públicos (SCHEIN, 2010; FREITAS, 2007; FLEURY, 2009). Para aquelas empresas que declaram adotar os princípios da responsabilidade social empresarial (RSE), a comunicação é uma das ferramentas que deve ser utilizada, conforme orientação da ISO 26000, a fim de elevar o nível de percepção das iniciativas. A disseminação de conhecimento e o desenvolvimento de competências para a implantação de práticas de RSE é um caminho para engajar partes interessadas das organizações e fomentar uma cultura socialmente responsável (ABNT, 2010). Nesse contexto, é relevante identificar como os valores compreendidos em tais práticas são incorporados pelos profissionais que produzem a comunicação corporativa. Alguns estudos se dedicam ao desenvolvimento da cultura, com foco em RSE, e também à importância da comunicação a respeito da sustentabilidade, expressa nos relatórios anuais (JUNQUILHO; SILVA, 2004; BIANCHI et al., 2013; IRIGARAY; VERGARA; ARAÚJO, 2017). A contribuição deste trabalho é analisar o conteúdo gerado e distribuído no dia a dia em mensagens que são consumidas pelas partes interessadas. A pergunta a que se pretende responder é se os sujeitos comunicativos, que reproduzem a voz da organização, se pautam nos princípios da RSE como conceito transversal a todas as atividades da empresa. Nesse sentido, o objetivo do trabalho é comparar as mensagens cotidianas postadas na rede social de uma empresa brasileira com o conteúdo expresso em seu Relatório de Sustentabilidade, pois é nesse documento que a empresa declara seus compromissos de RSE. Buscou-se identificar como os valores e compromissos declarados no documento anual são reproduzidos no dia a dia, ou seja, como esses valores se manifestam através das lentes dos comunicadores. A escolha do veículo rede social se justifica pelo fato de ele ser um meio de autocomunicação de massa pelo qual as empresas se comunicam diretamente com seus públicos, além de ser uma comunicação não vinculada ao Relatório de Sustentabilidade (CASTELLS, 2015). A pesquisa teve por orientação a perspectiva teórica do interpretativismo, considerando que a construção da mensagem comunicativa é criada a partir da interação entre o sujeito e o mundo percebido. Do Relatório de Sustentabilidade 2016, publicado em junho de 2017, se extraíram os valores e compromissos declarados como parâmetros para compará-los com os valores presentes nas mensagens publicadas nas redes sociais. O corpus foi delimitado nas postagens publicadas três meses antes a três meses depois da publicação do relatório. Utilizou-se o método Análise de Conteúdo descrito por Bardin (2016) para a abordagem indutiva (GRAY, 2012). Os resultados apontaram para o fato de que existe uma lacuna entre o que a empresa declara em seu Relatório de Sustentabilidade e a comunicação cotidiana via redes sociais. Observou-se que alguns temas são tratados de forma pontual, sem associação com o negócio. Além disso, constatou-se que existem temas relevantes que não são explorados pelos comunicadores. A seguir, apresentamos o referencial teórico sobre RSE, comunicação e cultura que compõe os conceitos identificados no mapa da literatura desta pesquisa. As Ciências da Comunicação Capítulo 27 323 sessões seguintes versam sobre os procedimentos metodológicos, a apresentação e análise dos dados e as considerações finais. 2 | RESPONSABILIDADE SOCIAL, COMUNICAÇÃO E CULTURA O contexto histórico, as crises capitalistas e os movimentos sociais contribuíram para fomentar conceitos de responsabilidade social empresarial (RSE) que evoluíram a partir da década de 1950 refletindo preocupações e expectativas das organizações. Embora nem sempre tenha havido um consenso, em comum os pesquisadores referem- se às empresas como atores sociais que contribuem para o desenvolvimento e devem se relacionar com grupos sociais de forma ética e com respeito às pessoas e ao meio ambiente. A partir dos anos 1990, organizações empresariais como o World Business Council for Sustainable Development (WBCSD) e o Banco Mundial entram no debate para pensar sobre como aplicar esses conceitos em prática. Foram variadas as formas de incorporar os valores envolvidos ao sistema de gestão (CARROLL, 1999; CESAR, 2008; DAHLSRUD, 2008; ALMEIDA, 2009; IRIGARAY; VERGARA; ARAÚJO, 2017). Um contraponto faz Comte-Sponville (2011) ao dizer que a responsabilidade depende de escolhas que são feitas com hierarquias e renúncias. No mundo real, de complexidades e incertezas, não há espaço para teorias homogêneas onde uma incógnita “x” é suficiente para solucionar o problema. Ser responsável é tomar decisões que contemplem vários aspectos, fazer escolhas, estabelecer critérios. A empresa não tem ética, não tem deveres, só tem interesses e obrigações; são as pessoas que precisam ser éticas. Essa visão traz para o profissional a responsabilidade de refletir sobre a sua contribuição para os temas que estão em pauta na sociedade, como as questões socioambientais. Nesse contexto, a visão tecnicista e econômica da comunicação como ferramenta para vender ideias e produtos são insuficientes para responder às exigências da sociedade por transparência, comportamentos éticos, preservação do planeta. A comunicação será estratégica se integrar um sistema de gestão interdisciplinar (KUNSCH, 2014). A Norma ISO 26000 se tornou referência para as empresas não apenas pela capilaridade da International Organization for Standarization (ISO), mas também pelo fato de o documento ter sido criado em meio a um processo de diálogo com as partes interessadas, envolvendo especialistas de mais de 90 países e 40 organizações internacionais. A necessidade de engajamento e diálogo, que é uma das premissas a serem adotadas por um sistema de gestão socialmente responsável, mostra que os processos de comunicação têm um papel a desempenhar (ABNT, 2010; BIANCHI et al., 2013). Aos processos de comunicação é atribuído o papel de contribuir para a formação de uma cultura de RSE, seja ajudando a engajar e estabelecer diálogo com as partes interessadas, seja divulgando informações sobre impactos das atividades, produtos e Ciências da Comunicação Capítulo 27 324 serviços da organização. A comunicação auxilia fortalecendo a reputação no que se refere à ação responsável e dissemina o respeito pelos princípios da RSE ao mesmo tempo em que conecta pessoas e conhecimentos em torno de uma visão sistêmica. A inserção da RSE na cultura da organização no longo prazo, como um sentido comum, contribui para que as ações sejam mais que modismos passageiros, planos de marketing ou táticas para conquistar aceitação do público (FASSIN; BUELEN, 2011; BIANCHI et al., 2013; SARDINHA, 2009; ANDRADE, 2009) Quanto à forma, a norma identifica sete características que convém adotar na comunicação organizacional. As informações devem ser i) completas, abordando impactos significativos; ii) claras, considerando o nível cultural do público; iii) responsivas, respondendo aos interesses dos públicos; iv) exatas, fornecendo detalhes corretos e suficientes para que sejam úteis; v) equilibradas, não omitindo informações negativas; vi) tempestivas, sendo atualizadas e identificando o período do acontecimento; e vii) acessíveis, sendo disponibilizadas em meio adequado para o público (ABNT, 2010). O relacionamento da organização com as partes interessadas requer um reposicionamento da comunicação unidirecional (emissor-receptor) para uma comunicação multidirecional, multifuncional, multicanal, características da era da informação. A nova posição possibilita conhecer o que as pessoas têm a dizer, recriar significados a partir do compartilhamento de visões, construir conhecimentos, tomar decisões baseadas em compreensão comum dos propósitos e objetivos da organização, requisitos indispensáveis para organizações que aprendem (CASTELLS, 2015; CHOO, 2006; SENGE, 2013). Ao mesmo tempo em que a cultura é uma força estabilizadora capaz de tornar previsíveis as questões relevantes para a empresa, e por isso mesmo difícil de mudar, a cultura da aprendizagem traz uma flexibilidade para adotar mudanças necessárias num ambiente dinâmico. A comunicação e a informação são centrais para a organização transmitir e fixar crenças, valores e suposições básicas. Para os líderes, considerados responsáveis pela condução da cultura, não existe escolha entre comunicar ou não, mas apenas como administram aquilo que comunicam e isso inclui a comunicação organizacional entre outros processos (SCHEIN, 2010). O estudo de Bianchi et al. (2013) coletou dados dos balanços sociais e relatórios de sustentabilidade e identificou que a ideia de RSE está presente na cultura organizacional de empresas da região sul do Brasil porque os temas relacionados estão presentes nas respectivas estratégias e há gestão sobre eles. As declarações da empresa refletem, no entanto, uma camada intermediária da cultura. As crenças e valores assumidos nesses relatos precisam ser aceitos e compartilhados pelos membros da organização; caso contrário, haverá um distanciamento entre o discurso e a prática. Quando confirmados, os valores passam a integrar a camada mais profunda da cultura, as suposições básicas, que compõem uma espécie de mente coletiva e são considerados como princípios de todas as atividades na organização (BIANCHI et al., 2013; HOFSTEDE, 2001; BAUMGARTNER, 2009; SCHEIN, 2010). Ciências da Comunicação Capítulo 27 325 A comunicação nesse processo vai além de uma perspectiva linear-instrumental de transmitir informações às partes interessadas. A escolha de diferentes canais e a produção de mensagens numa visão interpretativo-crítica considera as características das pessoas e o contexto político, econômico e social para mobilizar, dialogar, educar, orientar, promover relacionamento. No processo comunicativo participam as tecnologias (ferramentas), as características de emissores e receptores das mensagens (códigos culturais), protocolos de comunicação (linguagem) e a abrangência do processo comunicativo (CASTELLS, 2015; KUNSCH, 2014). A internet ampliou a abrangência da comunicação pela sua capacidade de enviar mensagem para muitos em tempo real e tempo escolhido. Segundo Castells (2015), a autocomunicação de massa incorpora as características das comunicações interpessoal e de massa. Ela tem o potencial de atingir um público global ao mesmo tempo em que a produção de mensagens é autogerada, os receptores podem ser autodirecionados e a recuperação do conteúdo é autoselecionada. A autocomunicação de massa, amplamente adotada por empresas, interage e complementa a comunicação interpessoal e a comunicação de massa. Apesar do amplo potencial do meio, ele não determina o conteúdo e o efeito das mensagens. A complementaridade que caracteriza a convergência das mídias não se dá apenas no nível tecnológico, mas sim na compreensão dos consumidores da informação, que constroem a própria interpretação a partir de pedaços e fragmentos de informações extraídos do fluxo de mídia e dando sentido de acordo com as próprias vivências. A comunicação está inserida nesse processo de produção simbólica que envolve interação entre pessoas e mensagens que ocorre de várias maneiras em determinado contexto (JENKINS, 2008; KUNSCH, 2014). Destacamos que o emissor é também um ator que absorve, ressignifica e compartilha os valores culturais, ou seja, o sujeito comunicativo não está isolado, ele cria significados de forma interativa e dissemina visões que podem ser experimentadas por outras pessoas. A produção de mensagens que representa a voz da empresa pode contribuir para impulsionar os princípios da RSE desde que o sujeito comunicativo compartilhe desse valor e esteja atento à necessidade de construção desse conteúdo. Para Fassin e Buelens (2011), dois dos motivos de dissonância entre a mensagem e a realidade são justamente a retórica idealista e a seletividade reducionista das pautas concentradas em programas e resultados e isso não contribui para a implantação da RSE nem para a disseminação de valores culturais. O autor afirma que a intensidade do esforço de implantar a RSE e a sua respectiva comunicação são fatores-chave para alcançar a coerência entre o discurso e a prática. É responsabilidade da comunicação, segundo Andrade (2009), operar essa coerência que envolve a organização e as partes interessadas para que a gestão possa dar unidade à diversidade de conhecimentos e posições. As iniciativas de RSE e as ações de comunicação têm efeito na construção de uma nova ética para a condução dos negócios, para a formação de uma nova cultura Ciências da Comunicação Capítulo 27 326 e de líderes que percebam que não há um “mundo dos negócios”, mas um mundo vivo e complexo do qual os negócios fazem parte. Essa demanda exige uma visão holística e interdisciplinar que engloba diversos atores e disciplinas em torno de um modelo de gestão chamado de responsabilidade social empresarial (ELKINGTON, 2001; SARDINHA, 2009). 3 | METODOLOGIA Adotou-se a perspectiva teórica do interpretativismo e utilizou procedimentos do método Análise de Conteúdo descrito por Bardin (2016). Essa abordagem foi adequada para atingir o objetivo de compreender como a cultura, no que tange aos princípios da responsabilidade social empresarial (RSE), está refletida na comunicação de uma empresa. Não se busca confrontar o discurso expresso no Relatório de Sustentabilidade com a prática noticiada no cotidiano no sentido de monitorar o que se comunica, mas identificar os aspectos da cultura de RSE que são (ou não) absorvidos e disseminados por meio do trabalho do profissional de comunicação, considerado aqui como sujeito da comunicação ou emissor (GRAY, 2012; YIN, 2016; BARDIN, 2016). O método Análise de Conteúdo é um instrumento polimorfo e polifuncional, que oscila entre o rigor da objetividade e a natureza flexível da subjetividade. As inferências podem responder sobre as causas ou antecedentes da mensagem ou os possíveis efeitos, como um procedimento intermediário entre a etapa descritiva e a etapa de interpretação. Ao analisar o conteúdo, o pesquisador não faz uma leitura unicamente da “letra”, mas ele busca um sentido presente num segundo plano, o que está por trás das mensagens e fala sobre a realidade (BARDIN, 2016). Na etapa de pré-análise, buscou-se no Relatório de Sustentabilidade 2016 informações que revelassem o que a empresa destaca sobre sua forma de pensar e agir na atividade produtiva, expressas nas suas escolhas, decisões e processos. O documento, publicado no site oficial, adota as diretrizes para o relato da sustentabilidade da Global Reporting Initiative (GRI), que traz indicadores econômicos, sociais e ambientais. Ainda nesta etapa, foram escolhidos os meios que dão suporte às mensagens e constituem o corpus da pesquisa. Selecionamos para coleta de dados dois veículos de autocomunicação de massa por meio dos quais a empresa divulga suas informações de maneira sistemática e direta. A empresa estudada possui um site oficial, que ancora canais de comunicação dedicados a investidores, público interno, clientes, fornecedores e imprensa, sendo esses quatro últimos com acesso mediante cadastro. Nas redes sociais, a empresa está presente no Twitter, Facebook, Youtube, LinkedIn, Google Mais e Instagram. A coleta de dados foi concentrada na página da empresa no Twitter e no blog de notícias também ancorado no site oficial. O levantamento de informações, seguindo a regra de pertinência do método, foi delimitado ao período de 1º de março a 30 de agosto de 2017, que abarca 3 meses Ciências da Comunicação Capítulo 27 327 antes e 3 meses depois da publicação do Relatório de Sustentabilidade. A escolha dessas duas redes sociais, atendendo à regra de homogeneidade na escolha do corpus, se deve ao fato de elas serem convergentes. Do total de 163 notícias, 52% são conteúdos do Twitter que remetem o leitor para texto complementar no blog de notícias e 21% das publicações do blog não tem conexão com o Twitter. No período estudado, registrou-se ainda que 7% das mensagens direcionam a leitura complementar para hotsites, outros 7% para o site oficial da empresa e 11% são conteúdos sem links, embora abordem assuntos contidos no blog de notícias. O Relatório apresenta cinco valores culturais e o seu o conteúdo é direcionado para 20 temas materiais, isto é, conteúdos que podem sofrer ou gerar impactos econômicos, sociais ou ambientais relevantes para suas atividades pois podem afetar a capacidade de criação de valor. Utilizamos critérios semânticos de classificação, selecionando os valores como categorias temáticas e os temas materiais como subcategorias. Relacionamos os temas com os valores declarados com as dimensões econômica, social e ambiental, que representam o tripé da sustentabilidade, conforme Quadro 1 (ELKINGTON, 2001). Essa correlação se baseou no conteúdo do Relatório de Sustentabilidade, durante a pré-análise. A correlação entre as categorias e subcategorias temáticas foi confirmada durante a exploração do material. O agrupamento dos conteúdos em torno dessas categorias e subcategorias contribuiu para a organização do material. A leitura dos textos em blocos temáticos favoreceu o surgimento de inferências que possibilitaram a interpretação e a identificação dos achados da pesquisa. Além disso, o cruzamento de valores com os quais a empresa conduz seus negócios e temas materiais que impactam suas atividades nos trouxe uma leitura sobre contexto no qual a comunicação está sendo produzida. Na pesquisa qualitativa, essas condições contextuais podem influenciar na análise sobre o conteúdo e a forma como a comunicação é conduzida (BARDIN, 2016; YIN, 2016). O quadro mostrou que 13 dos 20 temas materiais estão relacionados à variável econômica, concentrados nos valores “orientação para o mercado”, “superação e confiança” e “resultados”. Oito temas materiais são relacionados a impactos na sociedade, sendo que “conformidade, ética e combate a corrupção” e “comunicação e relacionamento com públicos de interesse” são subcategorias que coexistem tanto no valor “Ética e Transparência” como em “Superação e Confiança”. Isso evidencia os aspectos em que a empresa busca superar-se. Apenas dois são relacionados à dimensão ambiental, sendo um deles, “pesquisa, desenvolvimento e inovação”, o único que coexiste nas três dimensões da sustentabilidade, sempre ligado à “superação e confiança”. Ciências da Comunicação Capítulo 27 328 Valores Variável Econômica Respeito à vida, às pessoas e ao meio ambiente Variável Social Variável Ambiental Segurança operacional e saúde do trabalhador Emissões Atmosféricas e Estratégia Climática Conformidade, ética, prevenção e combate à corrupção Ética e transparência Comunicação e Relacionamento com públicos de interesse Estratégia de negócios Eficiência de investimentos Governança Gestão de Fornecedores Política de preços Parcerias e desinvestimentos Orientação para o mercado Reposição de recursos minerais Impacto do preço da commodity e taxa de cambio Renegociação com acionista Perda do grau de investimento Superação e confiança Pesquisa, desenvolvimento e inovação Pesquisa, Pesquisa, desenvolvimento e desenvolvimento e inovação inovação Gestão de recursos críticos Investigação pública Comunicação e Relacionamento com públicos de interesse Conformidade, ética, prevenção e combate à corrupção Resultados Desalavancagem Financeira Eficiência Operacional e gestão de custos Gestão de riscos Quadro 1 - Correlação categorias e subcategorias temáticas Os 20 temas materiais selecionados pela alta administração, gerentes da empresa e especialistas de mercado também estão conectados às escolhas e decisões da empresa. Isso porque a desalavancagem financeira, a eficiência de investimentos, a política de preços, a parceria e venda de ativos, a eficiência operacional e redução de custos são os princípios da estratégia de negócios, confirmando forte viés econômico. A partir da revisão de literatura e da pré-análise, identificamos algumas questões que foram exploradas na etapa de interpretação. Essas questões integram o delineamento da pesquisa e contribuem para o direcionamento da análise dos dados. A intenção em explicitá-las nesse protocolo de pesquisa foi identificar pontos Ciências da Comunicação Capítulo 27 329 de atenção na exploração do corpus, aproximando a pergunta da pesquisa e os dados coletados. O protocolo apresentado no Quadro 2 não pretende, contudo, esgotar as possibilidades de observação no processo de análise (BARDIN, 2016; YIN, 2016). Questões: Conteúdo ditto Conteúdo não ditto Forma De que forma os valores da empresa são reafirmados? Quais são as notícias que refletem os impactos e compromissos assumidos pela empresa? Como o diálogo com as partes interessadas e a empresa se materializa na comunicação através dessas redes sociais? De que forma a comunicação cotidiana incorpora os princípios da responsabilidade social? Existem notícias relacionadas a valores não declarados? Quais? Existem conteúdos relacionados a temas que não são explicitamente associados à RSE? As mensagens são completas, claras, responsivas, exatas, equilibradas, tempestivas e acessíveis? Quadro 2: Protocolo de pesquisa 4 | ANÁLISE DOS DADOS A organização estudada é uma empresa de engenharia de sociedade anônima e capital aberto, com mais de 50 mil empregados distribuídos em 56 profissões de nível superior e 22 profissões de nível médio. Atua no Brasil, principalmente na região sudeste, e em quatro países da América Latina, Estados Unidos e Nigéria. No que tange ao contexto externo, o mercado de atuação se caracteriza por forte regulamentação legal, impacto geopolítico e influência do mercado internacional no preço da commodity. O contexto da comunicação é retratado na sessão Mensagem do Presidente no Relatório de Sustentabilidade, que enfatiza a necessidade de superar a maior crise de sua história, razão pela qual o plano de negócios reforça o compromisso com a segurança operacional e a redução da dívida da empresa. Ao longo do relatório, observase a declaração de outros compromissos, sendo esses dois os únicos que apresentam metas que são acompanhadas pela diretoria executiva. O presidente também anuncia a Política de Responsabilidade Social, na qual a empresa se compromete a respeitar direitos humanos e o meio ambiente, o que significa relacionar-se de forma responsável com as comunidades locais e superar desafios de sustentabilidade. Pesquisa e inovação, gestão transparente e entrega de resultados também estão na mensagem assinada pelo líder formal, um dos responsáveis por dar direção à cultura da empresa (SCHEIN, 2010; FREITAS, 2007; BAUMGARTNER, 2009). Entre 1º de março e 30 de agosto de 2017, foram registradas 163 publicações na página da empresa no Twitter e no blog de notícias (BARDIN, 2016). Identificamos que 89% das mensagens do microblog, que conta com 507.883 seguidores, divulga links para outros veículos com informações complementares, o que denota a intenção Ciências da Comunicação Capítulo 27 330 de utilizar essa rede social para potencializar a repercussão dos conteúdos publicados por meio da convergência de mídias (JENKINS, 2008). Além da linguagem textual, utilizam-se imagens (fotos, gravuras e vídeos) para captar a atenção do leitor. Outro recurso utilizado é o “Leia Mais” ao final dos textos do blog de notícias convidando o leitor a conhecer notícias correlatas. Durante etapa de classificação das publicações, identificamos que 10 textos não se enquadravam nas cinco classificações temáticas (valores), e por isso, foi criada uma unidade de registro denominada “Outros”. Os conteúdos também foram classificados com subcategorias correspondentes aos temas materiais, conforme Quadro 1 (BARDIN, 2016). A classificação “Orientações para o mercado” reúne 36% das notícias, maior volume se comparado a outros valores. As pautas abordam a melhoria da avaliação de agências de risco; pagamentos de dívidas; parcerias para desenvolvimento de operações, pesquisa e tecnologia; fortalecimento da governança; política de preços e venda de ativos, todas relacionadas ao plano estratégico da empresa. Ademais de reforçar o sentido de segurança financeira e operacional, os textos reafirmam a importância da tecnologia como garantia da sustentabilidade: “[...] a combinação de competência humana e a capacidade computacional de elevado desempenho será fator decisivo para a superação dos desafios atuais da indústria”, nas palavras do redator. Nas notícias de revisão mensal da política de preços existe uma estrutura textual que traz informações sobre a decisão tomada, o contexto que balizou a decisão, a relação com a estratégia, os custos que impactam na formação de preços e o aspecto legal de garantia da liberdade de preços no mercado. Por trás desse roteiro existe a intenção de conferir transparência nas decisões e expor o limite da responsabilidade da empresa no que tange ao repasse de preços na cadeia produtiva. Os textos sobre a venda de ativos e ações em bolsa de valores falam em oportunidade. Esse impacto positivo do ponto de vista estratégico contrasta com comentários que citam o impacto negativo da perda de empregos (KUNSCH, 2014). O plano de vendas requereu revisão da sistemática de desinvestimentos por orientação de órgão público e envolve conflitos judiciais. A divulgação tempestiva é uma exigência legal cumprida especialmente por meio do blog de notícias, que remete o leitor para o site oficial dedicado aos investidores e não é repercutida no Twitter. A linguagem bastante técnica nem sempre favorece a clareza da mensagem (ABNT, 2010). O conteúdo classificado como “Respeito à vida, às pessoas e ao meio ambiente” está associado à prevenção a acidentes. De forma educativa, a mensagem cita as ações que podem impactar a segurança das operações e a importância da colaboração das comunidades. No período, foi publicada uma única notícia de simulado de emergência em torno de um dos riscos. A pauta de segurança operacional também está associada à produção de tecnologias, ressaltando os valores de inovação e pioneirismo além de confiabilidade Ciências da Comunicação Capítulo 27 331 das operações. Ainda que o tema esteja associado à mitigação de vazamento de produtos, há notícia não conectada ao valor de “Respeito à vida e ao meio ambiente” e com “Leia Mais” conduzindo o leitor a outras reportagens sobre inovação (JENKINS, 2008; BERGER; LUCKMANN, 2014). A única notícia com impacto negativo, e sem foto, fala sobre a ocorrência de um acidente que gerou ferimentos leves em quatro profissionais, que receberam atendimento médico, mas não paralisou a operação. Essa notícia, assim como a do simulado, não foi repercutida no Twitter. O tempo de relacionamento com um projeto de preservação marinha e recuperação de espécie em extinção foi uma notícia. Apesar de o conteúdo trazer ações e resultados do projeto, com maior peso noticioso, o tempo de patrocínio mereceu o destaque no título. A excelência do projeto é retratada como um valor em trechos como: “O projeto é o responsável pelo início da recuperação – comprovada cientificamente – das populações de três espécies” e “Reconhecido internacionalmente como uma das mais bem-sucedidas experiências de conservação marinha”. A reportagem não traz informações sobre programa de patrocínios a projetos socioambientais. O “Leia Mais” conecta o leitor a uma notícia sobre uma das unidades operacionais conhecida por sua excelência em gestão ambiental, que traz exemplos de ações de mitigação dos impactos ambientais. Destacamos ainda uma notícia que traz a imagem de uma profissional sorrindo em ambiente de trabalho. O texto ganha uma linguagem humanizada (pouco comum no corpus) ao colocar essa personagem para representar as empregadas que receberam o benefício destinado a mães que amamentam. A matéria mostra o compromisso da empresa com a valorização da mulher e os compromissos em combater a discriminação e promover os direitos humanos (RUGGIE, 2014). Esse foi o único conteúdo no período estudado que pode ser recuperado colocando a expressão “responsabilidade social” na ferramenta de busca do blog de notícias e também o único que direciona o leitor para conhecer a Política de Responsabilidade Social da empresa. Três dos compromissos assumidos no Relatório de Sustentabilidade se referem a práticas éticas e de transparência, seja na governança corporativa, nas ações de combate à fraude e à corrupção, seja na conformidade com requisitos legais, regulatórios ou melhores práticas do mercado (ELKINGTON, 2001). Essas escolhas estão referenciadas nas notícias classificadas como “Ética e transparência”, cujos temas abordam mudanças em procedimentos na gestão. Requisitos de transparência são anunciados nos novos critérios de indicação para administradores e na carta anual de políticas públicas e de governança corporativa, por exemplo. A política de governança e os conceitos de due diligence e de compliance são pauta de três matérias, que mesclam linguagem textual e em vídeo, no blog de notícias. Com foco educativo e argumento de especialistas e líderes da empresa, enfatiza-se a importância da criação de uma cultura ética por meio de práticas éticas (RUGGIE, 2014). O mote da comunicação são as mudanças para seguir em frente, em alusão à superação da crise mencionada na Mensagem do Presidente. Ciências da Comunicação Capítulo 27 332 Esses conceitos estão refletidos ainda em pautas que tratam do desbloqueio de dois fornecedores que estavam com relações comerciais suspensas em razão de corrupção (ABNT, 2010). Numa das reportagens é ressaltada uma frase atribuída a um ente público na qual a empresa é elogiada pela colaboração nas investigações, “criando ambiente desfavorável à continuidade de práticas ilícitas em seu interior e ampliando as possibilidades do ressarcimento em prol dos cofres da empresa e dos acionistas”. O trecho denota que a crise trouxe o aprendizado sobre brechas existentes na gestão ao mesmo tempo em que reforça a preocupação apenas com o aspecto econômico do conceito de sustentabilidade e somente um público de interesse (CHOO, 2006; CESAR, 2008). A visão funcionalista (linear-instrumental) oriunda da formação acadêmica de comunicadores apresenta-se como um filtro no reconhecimento do que é notícia na empresa (KUNSCH, 2014). Isso porque os pressupostos filosóficos e ações em torno da governança e das demonstrações financeiras, por exemplo, se tornam pauta à medida que as ações recebam premiações. Ou seja, tais ações que refletem esforço de mudança cultural não seriam notícia se não houvesse esses reconhecimentos externos. A lógica de noticiar informações em razão de prêmios ou eventos e datas comemorativas é recorrente. Entre as notícias classificadas no valor “Superação e confiança”, duas reportagens trazem o diretor de governança falando sobre ações de melhorias em sua pasta. Ele comenta as ações e avanços nos dois anos de sua gestão e, no segundo texto, anuncia o pedido de certificação do modelo de governança para a bolsa de valores. A boa-nova sobre a conquista da certificação foi anunciada três meses depois, de forma tempestiva (ABNT, 2010). Nos textos está explicitada a proposta de restaurar a confiança na relação com os investidores e reforçar normas e processos (ou artefatos culturais) que favoreçam a cultura ética e a confiança. Os textos são entremeados por vídeos nos quais o diretor empresta sua autoridade de líder e especialista para reforçar a superação da empresa e a confiança nas ações de due diligence, criação do canal denúncia e treinamento da alta direção e empregados (SCHEIN, 2010). Em se tratando de “Superação e confiança”, é recorrente a pauta acerca do tema material “Pesquisa, desenvolvimento e inovação”. A tecnologia está a serviço do cumprimento de metas de produção e segurança operacional e representa “desafios”, palavra bastante usada pelos comunicadores para denotar o esforço empreendido. Embora o Relatório de Sustentabilidade informe sobre a contribuição da empresa para o desenvolvimento de pesquisa nas universidades e pesquisas que visam à redução de impactos ambientais, esses aspectos não foram notícia no período estudado (BARDIN, 2016). Informações sobre monitoramento de qualidade de produtos, tempo de relacionamento com a empresa, recebimento de prêmios são enfatizados para conferir sentido de credibilidade e confiança (MOSCOVICI, 2015). Uma empregada foi primeira brasileira a receber prêmio de uma associação internacional de sua área de atuação. Na reportagem ela comenta sobre a condição Ciências da Comunicação Capítulo 27 333 feminina no mercado das geociências e recorda que a empresa não estava preparada para receber mulheres em atividades de campo nos anos 1970. Esses dados parecem pitorescos na história dela, já que as ações de RSE no que concerne a questões de gênero não são mencionadas no texto ou no “Leia Mais”. Em vez disso, um link direciona o leitor para saber mais sobre um reconhecimento como empresa inovadora (KUNSCH, 2014). Um grupo de 10 reportagens foi classificado como “Outros” porque as postagens não pareciam dialogar com os valores declarados no Relatório de Sustentabilidade 2016, mas com dois valores declarados até 2014: “Empreendedorismo e inovação” e “Diversidade humana e cultural”. Em comum, elas divulgam realizações ou eventos dos projetos culturais e esportivos patrocinados com o propósito de dar retorno à marca. Uma afirmação do gerente executivo de comunicação evidencia a associação dos projetos com esses valores, vigentes nos critérios de patrocínio: “Esse projeto valoriza as nossas raízes, a riqueza cultural do Brasil, e traz para a dança a pesquisa de nova linguagem e a inovação. Tudo isso guarda sinergia muito grande com a empresa”. A inovação, excelência técnica, potencial de retorno e alinhamento à estratégia de marca são reafirmados em outras matérias, inclusive em uma sobre uma mostra de cinema e direitos humanos e outra sobre um espetáculo de dança inspirado num poema sobre a degradação da natureza. O conteúdo desses projetos não é associado aos compromissos assumidos na atual Política de Responsabilidade Social (MOSCOVICI, 2015). Entre as notícias classificadas com o valor “Resultados”, as pautas estão vinculadas ao compromisso de realizar investimentos e reduzir endividamento. Mensalmente a empresa publica os principais resultados operacionais associando-os ao contexto da empresa e aos fatores externos a ela, bem como a relação dos números com as metas. Esse contexto citado traz relação apenas com os aspectos econômicos da produção, sem um diálogo interdisciplinar. Um exemplo são as paralisações para manutenção que impactam a produção, numa visão linear. Os textos não mencionam o aspecto de segurança para as pessoas e o meio ambiente (visão crítica), um dos compromissos da empresa associado ao valor “Respeito à vida, às pessoas e ao meio ambiente” e a dois temas materiais (KUNSCH, 2014). A possibilidade de interação e diálogo com os leitores do Twitter e do blog de notícias não é um recurso muito utilizado (CASTELLS, 2015). No microblog, observou- se que os comentários são bastante críticos e, muitas vezes, hostis. Há muitas referências negativas a episódios de corrupção e críticas à estratégia de venda de ativos, que dividem espaço com elogios, presentes com menor frequência, em geral nas pautas de tecnologia. Não é muito comum encontrar respostas da empresa.. No blog de notícias, que tem 78,5% dos textos sem comentários, a dinâmica de diálogos não é diferente. A exceção fica por conta de três reportagens sobre o programa de estágios e seleção de profissionais, nas quais todas as dúvidas tiveram algum tipo de resposta. Uma reportagem relativa ao valor “Ética e transparência” chamou a atenção Ciências da Comunicação Capítulo 27 334 pelo fato de ter 14 comentários da mesma pessoa. Eram críticas com base em argumentos técnicos. No quarto trecho, contudo, o leitor reclamou da não publicação dos comentários anteriores, chamando a atenção para a mediação do blog: “nem só de bons comentários sobrevive uma instituição do porte desta empresa” (BERGER; LUCKMANN, 2014; KUNSCH, 2014). Quanto à forma, as mensagens são acessíveis na internet em diferentes níveis de profundidade a depender da necessidade de informação do público, haja vista numerosos veículos produzidos. Especificamente quanto ao equilíbrio, as publicações são majoritariamente positivas, sendo evitadas as repercussões polêmicas ou aspectos de impacto negativo, o que prejudica também a avaliação quanto à completude. Não foi possível analisar as características de exatidão da comunicação (ABNT, 2010). 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Identificamos que a empresa faz uma convergência de mídias digitais, compreendendo website, blog de notícias e redes sociais, de forma a complementar conteúdos e ampliar o alcance aos públicos. Essa estratégia, associada ao valor transparência, traz para os comunicadores a responsabilidade de traduzir a voz da organização. As mensagens reforçam fortemente o posicionamento estratégico, com foco em aspectos econômicos. Os compromissos e valores de responsabilidade social empresarial (RSE) ficam em segundo plano no que concerne à comunicação realizada via Twitter e blog de notícias. As pautas que abordaram as ações socialmente responsáveis no período estudado são pontuais ou não são diretamente associadas às atividades da empresa, o que limita a contribuição da comunicação para o incremento de uma cultura de responsabilidade social. Também não é muito explorada a ferramenta de diálogo, própria das redes sociais. A análise sugere que os valores da RSE estão parcialmente refletidos na mente dos comunicadores da organização. O método utilizado contribuiu para os achados da pesquisa especialmente por permitir analisar o dito e o não dito no corpus. Comparando os temas abordados do Relatório de Sustentabilidade com a comunicação cotidiana, pode-se inferir que a agenda de RSE não é plenamente explorada no Twitter e no blog de notícias. Algumas das possíveis pautas não exploradas são: ações de diálogo contínuo com comunidades do entorno das unidades operacionais; desenvolvimento das comunidades locais em decorrência dos empreendimentos; correlação de investimentos sociais aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS); contribuição para recuperação de áreas degradadas e conservação de florestas,, entre outros. Por outro lado, os impactos negativos das atividades da empresa não estão na pauta. Apesar de os temas materiais serem apresentados no Relatório como assuntos relevantes para a gestão, a empresa não informa com clareza quais são os impactos positivos e negativos reais e potenciais relacionados. Essa falta de clareza e completude Ciências da Comunicação Capítulo 27 335 compromete, de acordo com a ABNT (2010), o conceito de transparência, que é um dos princípios da RSE e também um dos valores da empresa. Nas redes sociais, por exemplo, a pauta sobre venda ou fechamento de ativos, uma das iniciativas do plano estratégico para a redução da alavancagem financeira, não aborda os impactos dessa ação para os empregados, fornecedores, clientes e comunidade local. Isso contribui, ao menos em parte, para reações negativas dos consumidores da informação e tem o potencial de impactar negativamente a credibilidade e a imagem da empresa e não reafirma a cultura de RSE na empresa. REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. 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Porto Alegre: Penso, 2016. Ciências da Comunicação Capítulo 27 337 CAPÍTULO 28 A COMUNICAÇÃO PÚBLICA NA ASSISTÊNCIA TÉCNICA RURAL PARA O DESENVOLVIMENTO REGIONAL DO ESTADO DE RONDÔNIA Edna Mendes dos Reis Okabayashi Universidade Taubaté Taubaté, SP. Moacir José dos Santos Universidade Taubaté Taubaté, SP. Monica Franchi Carniello Universidade Taubaté Taubaté, SP. RESUMO: Esta pesquisa objetiva discutir a comunicação pública no âmbito da Assistência Técnica Rural em Rondônia. A metodologia da pesquisa é configurada como de caráter exploratória e descritiva, composta por análise e diagnóstico das estratégias de comunicação pública no âmbito da EMATER-RO, com vistas ao desenvolvimento regional do estado de Rondônia. O corpus de análise foi composto pelos canais de comunicação pública da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Rondônia (EMATER-RO). Concluiuse, por ora, que os canais de comunicação existem e são regularmente atualizados com conteúdo informativo, predominando uma visão difusionista, sem promoção do diálogo entre assistentes e assistidos. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação Pública. Assistência e Extensão Rural. Desenvolvimento Ciências da Comunicação Regional. ABSTRACT: This research aims to discuss public communication in the field of Rural technical assistance in Rondônia. The research methodology is configured as an exploratory and descriptive character, consisting of analysis and diagnosis of public communication strategies within the scope of Emater-RO, with a view to the regional development of the state of Rondônia. The corpus of analysis fell on the public communication channels of the company of technical assistance and Rural extension of the state of Rondônia (Emater-RO). It was concluded, for now, that the communication channels exist and are regularly updated with informative content, predominating a diffusionist view, without promoting the dialogue between assistants and assisted. KEYWORDS: Public communication. Assistance and Rural extension. Regional development. 1 | INTRODUÇÃO Ao considerar a comunicação pública como fator primordial para o desenvolvimento regional, esta pesquisa tem como objetivo analisar os modos pelos quais a comunicação pública acontece no âmbito da Empresa de Capítulo 28 338 Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Rondônia (EMATER-RO). As análises sob os modos como é realizada a comunicação pública são necessárias, haja vista que é preciso conhecimento sobre as estruturas estabelecidas a partir da relação entre governo e cidadãos, considerando o fato de que é por meio dos órgãos de comunicação pública que são desencadeados os processos de desenvolvimento da região. A importância desse estudo consiste no fato de que os debates aqui contidos tratam sobre as funções da comunicação pública para o desenvolvimento regional do Estado de Rondônia, por meio de análises dos processos comunicacionais planejados e executados no âmbito da EMATER – RO, autarquia estadual que mantem relacionamento próximo à população, principalmente ao público da zona rural. Esta pesquisa situa-se no escopo da relação entre comunicação rural e desenvolvimento, preconizada por José Marques de Melo em seus estudos sobre as perspectivas dos meios de comunicação coletiva utilizados para a informação rural, já nas décadas de 1960 e 1970 (KUNSCH, 2000). Inicialmente, discutiu-se sobre comunicação pública, a relação entre comunicação pública e informação e também acerca da assistência técnica e extensão rural. Num segundo momento, elucidam-se os caminhos metodológicos percorridos para a realização dessa pesquisa, detalhando os métodos utilizados para o alcance dos objetivos propostos. Em seguida, aparecem os resultados e discussões obtidos com a execução da metodologia. Nessa seção constam os dados colhidos a partir da análise dos canais de comunicação pública da EMATER. Por fim, estão as considerações finais desta pesquisa, apontando as principais observações e sugerindo novas possibilidades de posturas frente à importância da comunicação pública para o desenvolvimento do campo da agricultura e, consequentemente, do desenvolvimento regional do estado. Há, ainda, as referencias bibliográficas das produções que subsidiaram essa pesquisa. 2 | EMBASAMENTO TEÓRICO 2.1 A Comunicação Pública O conceito de ‘Comunicação Pública’ está diretamente relacionado à necessidade de legitimação de um processo de comunicação acerca da responsabilidade do Estado e/ou Governo. A comunicação pública é constituída por um processo instaurado na esfera pública entre agentes de um tripé composto por Governo-Estado-Sociedade. Assim, ela funciona como um espaço privilegiado de negociações entre os interesses das diversas instâncias de poder constitutivas da vida pública no país (BRANDÃO E GUIMARÃES, 2000). Nessa perspectiva, é possível a consideração de três pontos principais na formação da comunicação pública: objetivos dos emissários; interesse público X Ciências da Comunicação Capítulo 28 339 interesse do público e direcionamento ideológico (DUARTE, 2007). Esses aspectos não possuem dependência entre si, havendo, ainda, outros aspectos como as questões de financiamento, controle social, qualidade do conteúdo, autonomia da gestão e etc. Apesar de o termo ‘Comunicação Pública’ estar empiricamente ligado aos veículos de comunicação do Poder Executivo, ela se refere, também, à esfera da atuação coletiva dos cidadãos em sociedade. Os meios de comunicação pública devem a promoção de diferentes visões informativas e comunicacionais à sociedade, pois, ao atravessarem o véu criado, no imaginário, por uma espécie de ‘visibilidade padrão’, definida pela indústria do entretenimento, ela estimula inovações de linguagem relacionadas às linguagens empregadas pela comunicação comercial. Ao fazer isso, põe em xeque a ideia de que o produto multimídia seja destinado única e tão somente ao consumo individual, à fruição imediata (BUCCI, 2012, p. 13). Dessa forma, enquanto a comunicação comercial promove o seu próprio lucro, a comunicação pública promove o bem comum e os interesses da sociedade por meio de informações que são pertinentes a ela. Essa diferenciação não é suficiente para a conceituação de comunicação pública, pois existem diversas aspectos para tal. É necessário saber, a priori, que há diversos tipos de comunicação pública, haja vista a existência de diversas emissoras que vão do campo comunitário até o legislativo com base em identidades não-comerciais (INTERVOZES, 2017). Numa outra definição, a comunicação pública pode ser conceituada também como aquela que recebe recursos públicos para o desenvolvimento e manutenção de suas atividades. A comunicação, nesse caso, é pública, porque todos os serviços geridos pelo Estado são públicos. Nesse sentido, por ser financiada pelo estado, a comunicação pública não pode sofrer influências dos interesses de grupos aliados à administração pública. As empresas que constituem a comunicação pública são públicas porque defendem os interesses do povo e são impessoais. Dessa forma, a comunicação pública é configurada como uma garantia legal, funcionando como um instrumento de acompanhamento das mudanças de comportamento da sociedade, nos dias atuais ainda mais potencializada pelas mídias digitais. Além da diferenciação entre comunicação pública e comunicação comercial, é necessário o desvelamento acerca da diferenciação entre comunicação pública e comunicação política. A primeira é garantida legalmente, funcionando como instrumento de acompanhamento das mudanças de comportamento da sociedade, potencializada, na atualidade pelas facilidades da era digital (CARNIELLO, et al., 2016). Ela é configurada como um ‘refinamento’ da comunicação governamental, acarretando uma relação participativa que envolve Estado, Governo e Sociedade e que é mantida por um fluxo intenso de intercâmbio de informações. Assim, a comunicação pública exerce função singular no campo da democracia, meio pelo qual divulga e assegura o conhecimento das ações da administração pública (MATOS, 2006, p. 37). Já a segunda é definida como instrumento de influência e convencimento do público acerca dos aspectos específicos de suas decisões direcionadas aos temas Ciências da Comunicação Capítulo 28 340 políticos, por intermédio de estratégias de marketing e com objetivos alcançáveis a curto prazo (MATOS, 1998). Nos últimos anos, acompanhando a evolução tecnológica pela qual a administração pública passa, a comunicação pública em nosso país tornou-se um mecanismo de comunicação entre o governo e a sociedade, dando repercussão às mudanças políticas, sociais e econômicas do país (MATOS, 2006, p. 29). Exemplo disso, é a constante atividade das instituições públicas em redes sociais, informando, por meio de uma linguagem leve e descontraída, os fatos, as mudanças e campanhas instituições desses órgãos. Em outros casos de comunicação para o desenvolvimento, há a Lei Nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, intitulada de Acesso à Informação e a Lei Nº 12.741, de 08 de dezembro de 2012, batizada de Lei da Transparência Fiscal, que ratificam o papel da comunicação pública e dão as condições fundamentais para o exercício da democracia e, consequentemente, do desenvolvimento da sociedade, haja vista oportunizarem a participação de diversos atores da sociedade, na elaboração, execução e fiscalização das ações da administração pública, realizando, assim, a participação singular da sociedade. 2.2 Assistência Técnica e Extensão Rural em Rondônia As características da agricultura brasileira relacionam-se ao perfil da colonização da América portuguesa quando a grande propriedade, a monocultura e o trabalho escravo constituíram a base para a produção da riqueza. As transformações históricas que alteraram a sociedade brasileira não ensejaram a redução do predomínio da concentração da posse da terra e a relação estrutural da produção com o mercado externo. Desde o século XVI a exploração do território configurou-se para atender a demanda metropolitana, dinâmica mantida com a emancipação em relação à Portugal, quando o país se manteve integrado ao circuito econômico internacional como fornecedor de produtos primários, com destaque para o café. Neste cenário, o desenvolvimento da agricultura no Brasil foi permeado por conflitos relacionados ao acesso e à posse da terra decorrentes do modelo produtivo, com o desafio de incrementar a produtividade à medida em que ocorria a integração à economia mundial e a expansão para as regiões com ocupação escassa, como o Centro-Oeste e o Norte. Ainda que seja possível identificar, ao longo da história nacional, conflitos associados à luta por acesso e posse da terra, a explicitação política dessa situação ocorreu entre as décadas de 1950 e 1960, quando emergiram as Ligas Camponesas, com a proposta de organizar os trabalhadores quanto a reivindicação da posse da terra (MARTINS, 1984). O golpe militar e civil de 1964 teve entre suas pretensões se contrapor à reforma agrária almejada pelas Ligas Camponesas, daí a perseguição às suas principais lideranças e a efetivação de um modelo de colonização das regiões com Ciências da Comunicação Capítulo 28 341 reduzida densidade demográfica. Embora denominada como reforma agrária, a ação dos governos do período situado entre 1964 e 1985 relacionava-se à política de segurança nacional mediante a elevação da presença nacional em áreas de fronteira, e simultaneamente, esvaziava os conflitos explicitados com as Ligas Camponesas ao direcionar os trabalhadores sem-terra para as regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil (MARTINS, 1984). Nota-se que, no período da Ditadura Militar, implementaram-se incentivos para associar a atividade agrícola e pecuária ao capital industrial, o que constitui as bases do setor denominado como agronegócio. Entre as consequências desse tipo de política pública para a agricultura é possível identificar a elevação da concentração da propriedade de terra, associada à intenção de modernizar a agricultura mediante o fortalecimento dos complexos agroindustriais (IANNI, 1986). Entre as consequências das ações da Ditadura Militar para agricultura está o aprofundamento dos conflitos no campo, pois as políticas para o setor no período não enfrentaram a concentração da propriedade da terra, com consequências para os conflitos presentes nas cidades do país mediante o êxodo rural e o crescimento desordenado nas principais áreas urbanas brasileiras. Esse processo contou inclusive com a formação de um contingente de trabalhadores temporários residentes nas áreas urbanas, mas ocupados nas atividades agrícolas, os boias-frias (FERNANDES, 2005). O desenvolvimento rural brasileiro tem como desafio enfrentar a histórica concentração da propriedade da terra relacionada à preferência consolidada para a exportação da produção, o que implica em condicionar a estrutura produtiva à demanda internacional. Neste cenário, a agricultura familiar e os pequenos produtores constituem alternativa para a produção voltada para o abastecimento do mercado interno. Para cumprir essa função, faz-se necessária a articulação de políticas públicas para o aperfeiçoamento da produção e dos mecanismos de inserção no mercado. Daí a necessidade de políticas públicas voltadas para o campo para atender os produtores com perfil distinto daqueles com acesso à capital e recursos técnicos relacionados aos grandes empreendimentos, historicamente favorecidos por suas vantagens econômicas e políticas, notadamente o acesso à terra e financiamento da produção e respectiva circulação. A Assistência Técnica e Extensão Rural surgiu da necessidade de produção de matérias-primas em maiores escalas, a partir da Revolução Industrial que concentrou maior contingente humano nas cidades e demandou mais insumos para a indústria de alimentos. Nesse cenário, surgiram, na Europa, pessoas que visitavam as fazendas para disseminar conhecimentos sobre as práticas agrícolas, iniciando a assistência técnica e a extensão rural, instruindo e assistindo os agricultores (FREITAS, 1990). Em 08 de junho de 1990 foi fundada a Associação Brasileira das Entidades de Assistência Técnica e Extensão Rural (ASBRAER), a partir da reorganização das instituições de extensão rural brasileiras, defendendo os interesses da área com a força de uma instituição governamental constituída e sustentada por seus seguimentos Ciências da Comunicação Capítulo 28 342 interessados (ASBRAER, 2011). Após esse período, a assistência e a extensão tornou-se pauta forte na agenda do desenvolvimento. O sistema de extensão agrícola é um dos mais importantes veículos para a disseminação de conhecimentos e tecnologias, e, portanto, possui claramente um papel importante a desempenhar no setor agrícola e seu desenvolvimento (UMALI, 1997, KIDD et al., 2000, ALLAHYARI, 2009). As mudanças mundiais que acarretaram modificações no ambiente rural obrigando uma profissionalização do setor impulsionaram uma visão mais atualizada, contemplada no documento que fundou as Políticas Nacionais de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER). Nesse sentido, o Governo Federal, compreendendo a importância da extensão rural e buscando a retomada da credibilidade ao produtor, criou o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em 2003, órgão responsável pelas atividades de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), objetivando a mudança das práticas de extensão rural convencional, para a adoção de metodologias que colaborem para a democratização da relação entre profissionais e produtores. No estado de Rondônia, a Empresa Estadual de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Rondônia (EMATER-RO), com autonomia jurídica, administrativa, orçamentária e financeira, integrante da Administração Indireta do Estado de Rondônia, transformada por meio da Emenda Constitucional 084, datada de 24 de abril de 2013 e regularizada por meio da Lei 3.138, de 05 de julho de 2013 e pela Lei 3.308, de 19 de dezembro de 2013, é instituição vinculada à Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária, Desenvolvimento e Regularização Fundiária de Rondônia. No que se refere à natureza jurídica, a EMATER-RO é uma empresa pública, de prestação de serviços públicos, dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e autonomia jurídica, administrativa, orçamentária e financeira, vinculada à Secretaria de Estado da Agricultura, Pecuária e Regularização Fundiária (SEAGRI) ou a quem suceder como dispõe as Leis 3.138 de 05 de julho de 2013 e Lei 3.308, de 19 de dezembro de 2013. É administrada pelo Conselho de Administração e pela Diretoria Executiva. A EMATER-RO tem como papel na sociedade, a prestação de serviços de ATER com excelência, em que as ações são desenvolvidas de modo educativo, participativo, para e com os agricultores familiares (atores do desenvolvimento) e suas organizações, com uma visão holística da propriedade; buscando a integração e complementaridade dos fatores de produção, valendo-se, para isso, das novas metodologias, técnicas e ferramentas participativas, objetivando o desenvolvimento humano, social e econômico sustentável (EMATER, 2018). Criado em 31 de agosto de 1971, com o nome de Associação de Crédito e Assistência Rural do Território Federal de Rondônia (ACAR-RO), integrante da Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural (ABCAR), com personalidade jurídica de sociedade civil, com fins educativos e sem finalidade lucrativa, surgindo para a promoção da extensão rural no Território Federal de Rondônia. Ciências da Comunicação Capítulo 28 343 Nesse mesmo ano, 240 famílias de agricultores de produtos extrativistas, como borracha, castanha e ipecacuanha, de produtos agrícolas, como arroz, milho, feijão e mandioca, produtores na área de avicultura, bovinocultura, produtos florestais entre outros, foram atendidos, de acordo com o Site da EMATER (2018). Ainda com base no sítio eletrônico, o primeiro produtor assistido pela EMATER Rondônia foi o Sr. José Alves Pereira, em 1971, no município de Porto Velho, acerca da cultura da mandioca, produto cultivado pelo agricultor. Atualmente, a EMATER-RO atua nos 52 municípios e distritos rondonienses, por meio de 84 unidades operacionais conforme pode ser visto na figura abaixo. 3 | METODOLOGIA A presente pesquisa é configurada como de caráter exploratória e descritiva, composta por análise e diagnóstico das estratégias de comunicação pública no âmbito da EMATER-RO, com vistas ao desenvolvimento regional do estado de Rondônia. A identificação da participação da comunicação pública no desenvolvimento do estado é fundamental para ajustes nas práticas comunicativas e/ou criação de novas estratégias de comunicação pública. Para a pesquisa do problema, foi considerada a hipótese de que a comunicação pública é instrumento ímpar no processo de desenvolvimento regional do estado de Rondônia (RONDÔNIA, 2013). O método científico é a forma encontrada pela sociedade para a legitimação de um conhecimento adquirido empiricamente, isto é, quando um conhecimento é obtido pelo método científico, qualquer pesquisador que repita a investigação, nas mesmas circunstâncias, obterá um resultado semelhante. O processo de investigação teve base no pressuposto teórico e do referencial básico que fundamentou os resultados encontrados durante a pesquisa. Foram realizadas etapas como o levantamento de possíveis fontes teóricas (como artigos, dissertações, teses, publicações em periódicos e revistas eletrônicas), bem como a leitura, reflexão e elaboração do presente trabalho. A pesquisa possibilitou a leitura de textos e análise bibliográfica que resultou em uma retomada dos registros históricos da colonização do estado e ofereceu uma reflexão sobre os ensinamentos dos teóricos e uma reflexão da prática da comunicação pública no governo do estado de Rondônia. A metodologia é uma preocupação instrumental, que representa o caminho para a ciência tratar a realidade teórica e prática e centra-se, geralmente, no esforço de transmitir uma iniciação aos procedimentos lógicos voltados para questões da causalidade, dos princípios formais da identidade, da dedução e da indução, da objetividade, etc. (DEMO, 1987, p. 45). A pesquisa tem como objetivo analisar as estratégias de comunicação pública realizadas pela Empresa Estadual de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Rondônia (EMATER-RO), para a verificação dos modos pelos quais a comunicação Ciências da Comunicação Capítulo 28 344 pública colabora para o desenvolvimento das práticas agrícolas e, consequentemente, das condições necessárias para o desenvolvimento da região. Foram analisados todos os meios de comunicação da Instituição, tais como site eletrônico, portal institucional e demais possibilidades de comunicação pública entre a EMATER-RO e seus assistidos. 4 | RESULTADOS E DISCUSSÕES 4.1 A Comunicação Pública na Assistência Técnica Rural em Rondônia O ambiente democrático não é uma alternativa para o problema da representação, mas sim o cenário que elucida as ações de comunicação necessárias entre os representantes e representados (BOURDIN, 2001). Nesse sentido, os meios de comunicação são mecanismos ímpares de aproximação entre esses sujeitos tão importantes para o desenvolvimento da sociedade. As tecnologias da atualidade possibilitam que o cidadão mostre ao mundo todo o local em que vive, realizando a inserção de sua vivência ao contexto mundial (MÉGARD, 2002). A problemática que fomentou as discussões dessa pesquisa surgiu a partir do questionamento: “em que, precisamente, o uso da comunicação contribui para a mudança no desenvolvimento econômico e social?” É comum que sejam encontradas respostas teorizando que a comunicação pública cria ou estabelece o clima para que o desenvolvimento ocorra (SCHRAMM; LERNER, 1973, p. 31). Por isso, não pode ser diminuída ao mero convencimento estratégico ou ao envio constante de mensagens institucionais das esferas mais altas do governo, para os cidadãos do meio rural. Assim, a comunicação pública deve ser pensada e desenvolvida como o início de um processo de diálogo, negociação e tomada de decisões que envolve Estado, Governo e Sociedade (MATOS, 2006, p. 31). A criação dos serviços de extensão rural incentivou o desenvolvimento de uma área de comunicação direcionada à formação e informação da população agrícola, conhecida como comunicação rural (BRANDÃO, 2000, p. 13). O crescimento da extensão e o êxito de seus resultados ocorreram devido às metodologias extensionistas, métodos de comunicação executadas a partir das pesquisas e dos estudos produzidos no âmbito do desenvolvimentismo. Esse modelo de comunicação adotado pela extensão rural ficou popularmente conhecido como difusionismo e seu maior nome é Everett M. Rogers, da Universidade de Stanford, que construiu um grupo de agricultores para a descrição dos modos pelos quais a população rural lidava e reagia às mudanças introduzidas em seu meio (BRANDÃO, 2000, p. 14). Contrário a esse modelo difusionista de comunicação oral, surgem propostas de uma comunicação mais participativa, que tem como pressuposto básico o fato de considerar, em seus processos comunicacionais, o fato de o público rural possuir características diferentes, de acordo com o grau de escolaridade, região do país Ciências da Comunicação Capítulo 28 345 e etnia. No Brasil, esse modelo de comunicação teve como apoiadores Juan Dias Bordenave, que pensava numa educação mais regionalizada e que considerasse a diversidade cultural, de costumes e hábitos das populações, e o educador Paulo Freire, que aplicou seus princípios da “pedagogia do oprimido” à questão extensionista (DUARTE, 2000, p. 24). A adoção dessa concepção de comunicação participativa oportuniza as iniciativas para a contribuição da autoemancipação dos cidadãos envolvidos. Essa participação se caracteriza como uma estratégia para a ampliação da cidadania, não sendo apenas a mera difusão das mensagens ou facilitação do acesso à informação, mas sim a criação das condições para a efetivação dos processos horizontais de comunicação, partindo das comunidades das pequenas e distantes localidades, até as estruturas municipais, estaduais e nacionais de comunicação (DUARTE, 2000, p. 81). A relação existente entre comunicação pública e desenvolvimento regional está descrita na história da humanidade. Historicamente, o homem percebeu o poder da comunicação para todos os propósitos, a responsabilidade pela transmissão de uma informação e os canais de comunicação, se apropriando desses para a execução de seus propósitos (DUARTE, 2000, p. 108). No que se refere à comunicação pública na assistência técnica no estado de Rondônia, estão analisados, a seguir, os canais de comunicação da EMATER-RO junto aos seus produtores. O site eletrônico da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Rondônia, a EMATER – RO, foi criado em 2010, podendo ser acessado por meio do endereço eletrônico: http://www.emater.ro.gov.br/ematerro/. Figura 02 – Site da EMATER - RO Fonte: Site oficial. O site oficial da EMATER - RO possui abas de conteúdo com informações sobre a história, a constituição e a estrutura da instituição. Há outras abas que mostram informações sobre os projetos prioritários, os relatórios anuais, os serviços prestados e o campo da comunicação institucional desenvolvida aos assistidos. Na aba ‘Comunicação’ há quatro seções que tratam sobre a comunicação da instituição: 1) Programa de Rádio; 2) TV Emater; 3) Publicações e 4) Notícias Anteriores. O programa de rádio ‘EMATER e o Campo’ é uma produção da Assessoria de Comunicação da EMATER – RO e está no ar há 17 anos, sendo transmitido semanalmente, às 06 horas da manhã pela Rádio Caiari 1430 AM. Com duração Ciências da Comunicação Capítulo 28 346 de 01 hora, esse programa tem caráter instrutivo e dissemina noticias relacionadas à agricultura e ao âmbito rural, com execução de músicas sertanejas, participação de autoridades e produtores da região. Há ainda, blocos com pesquisa semanal de preços, previsão do tempo e notícias do campo. O programa EMATER e o Campo fica disponível no site oficial da EMATER, sendo possível ouvir edições atuais e anteriores. Figura 03 – Programa de Rádio EMATER e o Campo. Fonte: Site oficial. A segunda seção, denominada TV EMATER, consiste no Canal de Vídeos no serviço de vídeos YouTube disponível desde 10 de fevereiro de 2015, em que estão hospedados vídeos de divulgação produzidos pela Assessoria de Comunicação da Secretaria de Agricultura (SEAGRI) acerca das ações desenvolvidas pela EMATER, como pode ser visto a seguir. Figura 04 – TV EMATER. Fonte: Disponível em https://www.youtube.com/channel/UCL1qyY_nNxGVemDvwEPs2jA. Ciências da Comunicação Capítulo 28 347 As seções 3) Publicações e 4) Notícias, trazem, como dito, publicações e notícias sobre as temáticas abordadas pela EMATER, visando a informar os seus assistidos. No cenário comunicacional da atualidade, as redes sociais e os instrumentos digitais, se configuram como mecanismos de incentivo à comunicação pública, pois ampliam a eficiência e a eficácia dos serviços de informação, permitindo o acesso às informações até então mais lentas na divulgação e estabelecendo um novo modo de comunicação com os cidadãos (SCHRAMM, 1970). Nesse sentido, a EMATER – Rondônia também possui redes sociais, como a exemplo da página na rede social Facebook (facebook.com/emater.ro.oficial), em que também são publicadas notícias, vídeos e publicações com relevância para a população do campo. Cabe tecer considerações sobre a questão das condições de recepção do conteúdo no âmbito da comunicação rural. Segundo a pesquisa TIC domicílios 2017, conduzida pelo Comitê Gestor de Internet no Brasil (GGI), há uma discrepância no percentual de internautas entre as áreas geográficas do país, pois 95% dos usuários de Internet residem em regiões urbanas, enquanto apenas 5% estão situados em zonas rurais (CGI, 2017). Apesar de a comunicação pública ter como premissa atender a todos os segmentos da sociedade, e não apenas a maiorias (nas concepções tanto quantitativa quanto qualitativa do termo), faz-se necessário fazer um contraponto a tal discrepância suportado pelas considerações de Veiga (2007). O autor afirma que “o entendimento do processo de urbanização do Brasil é atrapalhado por uma regra que é única no mundo. O país considera urbana toda sede de município (cidade) e de distrito (vila), sejam quais forem suas características estruturais ou funcionais” (VEIGA, 2007, p. 6). Tal informação permite inferir que entre os 95% dos internautas que habitam em ambiente oficialmente categorizado como urbano, grande parcela deve morar em pequenos municípios cuja economia e estilo de vida se aproximam mais das características da ruralidade. Tal leitura permite inferir que há um alcance significativo do conteúdo da comunicação rural por meio das mídias digitais. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Após os debates e as reflexões aqui realizadas, é possível concluir, por ora, que a comunicação pública é um campo rico e cheio de oportunidades para a promoção do desenvolvimento regional do estado. Os canais de comunicação pública da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Rondônia, a EMATER – RO são instrumentos para a efetivação da comunicação entre o público do meio rural e os governantes, seja por meio do site, das redes sociais, da TV EMATER e até mesmo do programa de rádio EMATER e o Campo. Apesar da existência desses canais de comunicação, foi possível analisar que tais informações disponíveis nesses canais de comunicação têm caráter prioritariamente Ciências da Comunicação Capítulo 28 348 informativo, em que o Governo informa ao agricultor, sem a existência de um feedback do agricultor por meio de ferramentas de comunicação mão dupla em ambiente digital, caracterizando uma comunicação de caráter prioritariamente difusionista, apesar do potencial dos meios. É possível que as interações ocorram por meio de outros canais formais de comunicação da instituição que não foram foco deste estudo. A comunicação pública insere a centralidade dos processos de comunicação no cidadão, não apenas pela garantia do direito constitucional à informação, mas também pelo direito ao diálogo, do respeito às características e necessidades, de estímulo à participação ativa, racional e responsável. Dessa forma, em uma perspectiva participativa, a comunicação pública é realizada por profissionais e sujeitos participantes, que se comunicam, de igual para igual, sem que alguém transmita o conhecimento a outro, mas sim, que possam compartilhar conhecimentos técnicos e práticos, para o alcance de produções fortes e rentáveis. Nesse sentido, a identificação da participação da comunicação pública no desenvolvimento regional é fundamental para os ajustes das práticas comunicativas e/ ou criação de novas estratégias de comunicação pública. Por ora, é possível concluir que os canais de comunicação existem e são constantemente utilizados pela EMATER para informar a seus assistidos acerca de temas do interesse. Mas, apesar da existência desses caminhos de comunicação, essa é realizada somente com base numa comunicação difusionista no âmbito das mídias analisadas, em que o estado, por meio da EMATER é o difusor de informações e instruções. Conclui-se que há potencialidade para a adoção de uma comunicação participativa fazendo uso das mídias digitais, dadas suas características que favorecem instrumentos de interação, em que os agricultores, produtores e demais sujeitos envolvidos nesses processos sejam ouvidos e tratados como fontes de informações práticas por meio das mídias digitais. Dessa forma, serão exploradas as condicionantes para que todos os agentes envolvidos colaborem igualmente para a construção de uma comunicação pública que contribua para o desenvolvimento regional do Estado de Rondônia. REFERÊNCIAS ASBRAER. Associação Brasileira das Entidades de Assistência Técnica e Extensão Rural. Disponível em: <http://www.asbraer.org.br>. Acesso em: 05 jan. 2018. BOURDIN, A. A questão local. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. BRANDÃO, E. P. Conceito de comunicação pública. In: DUARTE, Jorge (Org). Comunicação Pública: Estado, mercado, sociedade e interesse público. São Paulo: Atlas, 2000. p. 1-33. BRANDÃO, H. 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Atualmente é proprietária de agência de publicidade que presta serviços na área de marketing e comunicação empresarial. Ciências da Comunicação Sobre a organizadora 352