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MEIOS VIAS E TRAJETOS ... ENTRAR E SAIR DE LISBOA TÍTULO MEIOS VIAS E TRAJETOS… ENTRAR E SAIR DE LISBOA Fragmentos de Arqueologia de Lisboa 2 COORDENAÇÃO EDITORIAL João Carlos Senna Martinez Ana Cristina Martins Ana Caessa António Marques Isabel Cameira EDIÇÃO Câmara Municipal de Lisboa/ Direção Municipal de Cultura/ Departamento de Património Cultural/ Centro de arqueologia de Lisboa Sociedade de Geografia de Lisboa / Secção de Arqueologia REVISÃO EDITORIAL Ana Caessa DESIGN GRÁFICO Rute Figueira IMPRESSÃO E ACABAMENTOS TIRAGEM ISBN DEPÓSITO LEGAL LISBOA, 2018 ADVERTÊNCIA Nesta publicação, o cumprimento, ou não, do Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa de 1990, em vigor desde 2009, é da responsabilidade dos autores de cada texto, assim como as versões em língua inglesa. O conteúdo dos artigos é da inteira responsabilidade dos autores. O Centro de Arqueologia de Lisboa (CAL) e a Secção de Arqueologia da Sociedade de Geografia de Lisboa (SA-SGL) declina qualquer responsabilidade por equívocos ou questões de ordem ética e legal. 2 MEIOS VIAS E TRAJETOS ... ENTRAR E SAIR DE LISBOA João Carlos Senna Martinez Ana Cristina Martins Ana Caessa António Marques Isabel Cameira Câmara Municipal de Lisboa/ Direção Municipal de Cultura/ Departamento de Património Cultural/ Centro de arqueologia de Lisboa Sociedade de Geografia de Lisboa / Secção de Arqueologia 3 MEIOS VIAS E TRAJETOS… ENTRAR E SAIR DE LISBOA UMA RAMPA ENTRE LISBOA E O MUNDO Mónica Ponce1 Alexandre Sarrazola2 RESUMO No decorrer dos trabalhos de acompanhamento arqueológico do MAAT - Museu de Arquitectura Artes e Tecnologia da Fundação EDP (Belém, Portugal) foi detectado um contexto arqueológico integrando elementos em madeira. Uma primeira análise da cartografia permitiu avançar com a hipótese da estrutura corresponder à Rampa “dos Escaleres Reais” da Cordoaria Nacional mandada construir pelo Marquês de Pombal e concluída no início do reinado de D. Maria I (anos 70 do século XVIII). Uma nova acção de minimização de impacte/ salvaguarda pelo registo permitiu a detecção de um paredão portuário em silharia calcária. Ambas as estruturas se associam ao complexo portuário da Junqueira/Cordoaria, na transição da época moderna para a contemporaneidade. Palavras-chave: rampa; função portuária; praia da Junqueira; Lisboa ribeirinha; período Moderno/Contemporâneo. ABSTRACT During the archaeological monitoring works at MAAT - Museu de Arquitectura Artes e Tecnologia da Fundação EDP (Belém, Portugal) an archaeological context was detected that included wood elements A first analysis of the available cartography allowed to proceed with the hypothesis of the structure corresponding to the “ royal longboats” ramp connected with the National Cordage built by the Marquis of Pombal and completed early in the reign of Queen Mary I (the last quarter of the eighteenth century). A new archaeological survey action by the registry allowed the detection of a port wall in limestone. Both structures are associated to the major landscape of the Lisbon riverside in the east part of Belem. Key-words: ramp; dockyard function; Junqueira; Lisbon riverside; Modern/Contemporary period. 1. ÂMBITO DA DESCOBERTA Em 2016 a Fundação EDP expandiu os seus equipamentos culturais na margem do Tejo, inaugurando o Museu de Arquitectura Arte e Tecnologia (MAAT). No âmbito da sua construção foi registada a presença da Rampa dos Escaleres Reais (Cordoaria Nacional, séculos XVIII/XIX). Dá-se agora a conhecer a descoberta do paredão associado a este complexo portuário. A função da rampa consistia em servir de apoio aos escaleres que faziam o trânsito de pessoas e bens entre os navios fundeados ao largo da Praia da Junqueira e a Cordoaria. Esta estrutura tem vindo a ser amplamente noticiada e divulgada para públicos especialistas e para a comunidade em geral por parte dos signatários. Por ora, resta esperar que a Fundação EDP integre esta parte da sua história na sua estratégia sociocultural. 2. A JUNQUEIRA PORTUÁRIA DA ÉPOCA CONTEMPORÂNEA Na frente fluvial da Junqueira edificava-se a Real Cordoaria para a indústria nacional de aprestos marítimos, mandada construir pelo Marquês de Pombal e concluída no início do reinado de D. Maria I. A leitura de elementos que junto à orla fluvial de Lisboa quer materializados em vestígios ainda visíveis, quer registados em documentos históricos e iconográficos, permite identificar locais onde existiram no passado espaços portuários e reconstituir a intensa vida portuária antiga que se articula na actual malha urbana marginal de Lisboa. Uma listagem do século XVIII permite reconhecer alguns portos dos arredores de Lisboa, hoje cobertos pela expansão urbana: entre eles encontram-se o porto Fluvial de Pedrouços e o da Junqueira. (Blot, 2003, p,. 245). 1 2 190 alexandresarrazola@era-arqueologia.pt; Era Arqueologia S.A. geral@era-arqueologia.pt, Era arqueologia S.A. MEIOS VIAS E TRAJETOS… ENTRAR E SAIR DE LISBOA É entre finais do século XVIII e inícios do XIX que a frente ribeirinha de Lisboa regista, “numa extensão razoável, mais de duas dezenas de estaleiros e muitos armazéns” e, a partir de meados/finais do século XIX, as várias propostas de melhoramento do porto de Lisboa incluem as duas margens como um todo portuário desde a Torre de Belém até ao Beato e desde a Trafaria até Cacilhas (Blot, 2003, p. 245; Kong, 2013). Na Junqueira, a microtoponímia remete para a histórica dimensão portuária desta zona da cidade. Eloquente exemplo é a Travessa dos Escaleres Reais. Esta longa praia é ocupada por uma série de Fortalezas (defesa da barra de Lisboa). Tal é o caso da Torre de Belém, a que se segue Forte da Estrela (ou de S. Pedro) e o Forte de S. João da Junqueira (a leste da Cordoaria Nacional). A praia fluvial era igualmente servida de um conjunto de embarcadouros, como é o caso do emblemático Cais de Belém (Antunes, 2016). Como já se afirmou noutro lugar, um local de acostagem não existe sem movimento de embarcações e de gente a manobrá-los; uma vez mais encontramo-los nos nomes dos arruamentos que do edifício da Cordoaria, a partir do troço do troço sul da Rua da Junqueira, convergem para o rio (nomeadamente os fronteiros à área em análise). Tal é o caso da “Travessa das Galeotas”, “Travessa dos Escaleres” e a Rua e “Travessa dos Algarves”. Esta última designaria o caminho, sob um arco, para as casas “de malta que abrigavam os algarvios tripulantes das galeotas e escaleres de d’el- Rei, as quais se recolhiam na praia, em barracas” (Cortez, 1994, p. 44), podendo também designar o desembarque da carga proveniente do Algarve (Bártolo,2005, p. 51). Tal movimentação de embarcações, gente e mercadoria implica a utilização de aprestos marítimos e conduz à instalação de fábricas para a sua produção. Assim, na segunda metade do século XVIII, instala-se aqui o vasto edifício da Cordoaria Nacional, como oficina de cordame, mas também de velas, tecidos e bandeiras (Reis, 1994, p. 309). 3. O COMPLEXO PORTUÁRIO DA CORDOARIA No caso específico da estrutura em madeira, a mesma apresenta per se características que permitem constatar estarmos face a uma parcela da Rampa dos Escaleres Reais da Cordoaria mandada construir pelo Marquês de Pombal e concluída no início do reinado de D. Maria I no último quartel do século XVIII. Uma abordagem às evidências materiais de carácter arqueológico associadas à rampa não autorizava o estabelecimento de datações relativas inequívocas. Porém, a estrutura apresentava a chancela da própria da Real Cordoaria Nacional, não deixando dúvidas quanto ao seu enquadramento histórico e institucional. O seu prolongamento pétreo em silharia de calcário incorpora o mesmo contexto arqueológico, constituindo o paredão da praia do cais da Junqueira. Desta maneira, integrava o conjunto de equipamentos portuários que se estendia da Cordoaria à Torre de Belém. Figura 1 Chancela da Real Cordoaria gravada num dos seus elementos estruturais 191 MEIOS VIAS E TRAJETOS… ENTRAR E SAIR DE LISBOA Figuras 2 Cartografia de Filipe Folque, 1858 Figura 3 Silva Pinto, 1911 No que concerne às suas especificidades, refira-se que o paramento externo está parcialmente visível e preservado, ocupando em extensão cerca de 6 metros. Esta estrutura é composta por blocos/silhares calcários de grandes dimensões (cerca de 0,70x0,35x0,31m) sobrepostos em linha, ligados por argamassa de coloração bege esbranquiçada, friável e pouco compacta. No topo, verifica-se a irregularidade altimétrica resultante do sucessivo desmantelamento parcial desta parede em profundidade, com a provável remoção dos silhares aquando da remodelação do palácio Marquês de Angeja e respectiva envolvente. A julgar pelas evidências estratigráficas resultantes dos trabalhos de escavação constata-se a presença de uma fina camada resultante da estagnação de água numa determinada área por tempo prolongado (embalse), potenciando o desenvolvimento de microfauna associada a esse ambiente aquífero específico. Nesse sentido, julga-se que este deverá ter sido o nível de preia-mar anterior à passagem do comboio entre a Rua da Junqueira e a actual zona ribeirinha, que se estenderia até à face desta estrutura. À semelhança do que se registara na rampa, e a que já fizemos menção, os depósitos associados ao paredão são manifestamente pouco expressivos no que concerne a espólio cerâmico datante. Porém, a análise estrutural desta realidade, associada à estratigrafia preservada supra descrita, permite pensar no paredão, em articulação com a rampa, como parte da Cordoaria e do Forte da Estrela. I.e. o complexo portuário da praia da Junqueira, em toda a sua dimensão histórica, económica e política na ampla paisagem da transição da época moderna para os alvores da contemporaneidade. 192 MEIOS VIAS E TRAJETOS… ENTRAR E SAIR DE LISBOA Figura 4 Rampa Figura 5 Paredão 4. A POLÍTICA, O ESPAÇO E O TEMPO A descoberta de rampa e paredão entroncam numa dinâmica local integrada em que Tejo funcionava como aglutinador de duas funções, quer ancoradouro de grandes embarcações, quer transporte fluvial. Ambas as características se reflectiam na utilização de embarcações de menores dimensões, como galeotas e escaleres. A Rampa dos Escaleres Reais e o Paredão da Junqueira enquadram-se neste cenário. Tendo em conta o recorte da linha de costa entre o séc. XVIII e XIX, a praia da Junqueira seria desenhada numa angra que, morfologicamente, ofereceria condições ideais enquanto ancoradouro para embarcações de menores dimensões que, neste caso, prestavam apoio logístico à Cordoaria Nacional, à semelhança de um limen, isto é, “(...) ambientes proporcionados pela situação geográfica de bom abrigo onde se torna possível ancorar, atracar e contactar demoradamente a terra”(Blot, 2003, p. 57). Numa pequena intervenção de salvaguarda, os dados devolvem-nos, em toda a sua expressividade, a imagem do Tejo enquanto, Meio, Via e Trajecto. 193 MEIOS VIAS E TRAJETOS… ENTRAR E SAIR DE LISBOA Eis o contributo da arqueologia de minimização de impacte na ampla construção da paisagem histórica de Lisboa: um processo em permanente crescimento, convocando a cada passo novas descobertas, contributos e problemáticas. Se o enquadramento jurídico da designada arqueologia de salvaguarda, e respectivos resultados, se reveste de uma importância que só os menos informados não reconhecem, não é menos verdade que a sua divulgação alargada não acompanha tal evolução. Para colmatar esta lacuna, é um imperativo de Cidadania promover a articulação entre Promotores, Tutela e Arqueólogos na tarefa obrigatória de devolver à cidade a sua História. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, A. C. (2016) – Cais da Pedra e Cais Real. Planos Joaninos para a Marinha de Lisboa. Lisboa: Editora Canto Redondo. ARAÚJO, Norberto (1992, 2ª ed.) – Peregrinações em Lisboa, Livro IX, Lisboa: Ed. Vega. ALVES, J. F. (1994) - Belém (Sítio de). In SANTANA, F e SUCENA, E. (dir), Dicionário da História de Lisboa. Lisboa: Carlos Quintas e associados – Consultores, Lda. pp. 153-157. BLOT, Maria Luísa (2003): Os portos na origem dos centros urbanos. 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