Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Faculdade de Educação
Carla de Oliveira Romão
Identificações do feminino em materiais didáticos contemporâneos
Rio de Janeiro
2014
Carla de Oliveira Romão
Identificações do feminino em materiais didáticos contemporâneos
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Educação da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Educação. Área de concentração: Juventude e
Educação.
Orientadora: Profª Dra Miriam Soares Leite
Rio de Janeiro
2014
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
R761
Romão, Carla de Oliveira.
Identificações do feminino em materiais didáticos contemporâneos / Carla de
Oliveira Romão. – 2014.
122 f.
Orientadora: Miriam Soares Leite.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Faculdade de Educação.
1. Material didático – Ensino Fundamental – Teses. 2. Sexismo – Teses. 3.
Mulheres – Teses. 4. Educação – Estudo e Ensino – Teses. I. Leite, Miriam
Soares. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação.
III. Título.
es
CDU 371.671::141.72
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação.
___________________________________
Assinatura
_______________
Data
Carla de Oliveira Romão
Identificações do feminino em materiais didáticos contemporâneos
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Educação da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Educação. Área de concentração: Juventude e
Educação.
Aprovado em: 21 de agosto de 2014.
Banca examinadora:
_________________________________________
Profª Dra Miriam Soares Leite (Orientadora)
Faculdade de Educação da UERJ
_________________________________________
Profª Dra Daniela Auad
Universidade Federal de Juiz de Fora
_________________________________________
Profª Dra Maria da Conceição Silva Soares
Faculdade de Educação da UERJ
Rio de Janeiro
2014
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todas as mulheres, especialmente às mulheres negras e
empobrecidas, que, mesmo invizibilizadas no social, não deixam de acreditar em outro mundo
e colorem seus dias com as cores da esperança. E assim me ensinam o significado da luta e do
feminismo em que acredito.
AGRADECIMENTOS
Agradecer é sempre um processo complicado, pois se corre o risco de deixar alguém
de fora, mas, como é sempre um bom exercício para a memória, aqui me permito esse
exercício.
Primeiramente, quero agradecer à minha família, que sempre me incentivou a estudar,
de forma mais especial, à minha mãe.
Agradeço também a minhas amigas e amigos, que sempre me deram palavras de
conforto e incentivo, nos momentos mais desafiadores desse processo, e que souberam, ou
tentaram, entender a minha ausência.
Agradeço às mulheres feministas que me oportunizaram um novo modo de entender a
sociedade e de me entender também: Julia, Iara, Daiana, Alaiane, Eleutéria, Vírginia, Kênia,
Rhuana, Taisa, Letícia, Lidiane, Natana, entre outras que com seus exemplos e falas serviram
de inspiração para minha construção feminista.
Agradeço às pessoas que fazem parte do Grupo de Estudos sobre Diferença e
Desigualdade na Educação Escolar da Juventude/DDEEJ, sempre foi muito bom poder
conversar com vocês: Larissa Ribeiro, Larissa Rios, Leandro, Kelsiane, Monica, Raquel,
Vanini, Verônica, Viviane. E também a Carla Rodrigues e Priscila Ribeiro. Obrigada pelas
conversas, risadas e trocas!
Agradeço também às professoras que trabalham comigo e com as quais eu pude
dividir muitos dos meus questionamentos durante esse tempo: Magna, Luciana, Sara,
Geórgia, Marina, Marluce.
Agradeço às minhas alunas e alunos, com os quais tive o prazer de compartilhar
conhecimento, pois me permitiram questionar os seus e os meus padrões e por sempre terem
sido tão receptivos na construção de nossos diálogos.
Agradeço, de forma especial, à professora Miriam S. Leite, orientadora desta
dissertação, que sempre foi um ótimo exemplo na forma como conduz o seu fazer pedagógico
e por isso se torna inspiração. Obrigada!
Quem não se movimenta não sente as correntes que o aprisionam.
Rosa Luxemburgo
Se não posso dançar, não é minha revolução.
Emma Goldman
RESUMO
ROMÃO, C. O. Identificações do feminino em materiais didáticos contemporâneos. 2014.
122 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2014.
Dada a persistente restrição da presença feminina em diferentes espaços-tempos das
sociedades contemporâneas, desenvolvemos esta pesquisa com o objetivo de discutir os
significados atribuídos ao feminino em materiais didáticos da atualidade. Partindo da hipótese
de que a educação escolar, embora não determine, participa dos processos sociais que
resultam em tal quadro de subalternização da mulher, focalizamos as apostilas utilizadas pelos
anos finais do ensino fundamental das escolas públicas da rede da Secretaria Municipal de
Educação da Cidade do Rio de Janeiro, durante o ano de 2013. Foram selecionadas as
apostilas das disciplinas Ciência, História e Matemática. Desenvolvemos também estudo
sobre a apropriação da noção de gênero na produção acadêmica recente da pesquisa em
Educação, de modo a mapear e discutir sobre esta outra importante instância de atribuição de
sentido ao ser mulher. Em diálogo com o filósofo Jacques Derrida e suas teorizações sobre os
processos sociais de construção de sentidos, nossas análises se basearam no entendimento de
que as palavras possuem significados instáveis, provisórios e precários, instituídos de modo
relacional e diferencial. Com as teorizações de Joan Scott e Judith Butler, trazemos as
proposições de Derrida para pensar os mecanismos de produção do feminino no social,
através do conceito de gênero e da noção de identidade performativa. Entre os resultados
construídos, está a invisibilidade que a história das mulheres apresenta no material de
História, a naturalização de funções apresentadas como femininas nas apostilas de Ciência e a
reprodução de concepções tradicionais sobre o lugar de meninas e meninos no corpus de
Matemática. Mas concluímos também que os materiais didáticos pesquisados já possuem
concepções menos sexistas na forma de significar o feminino, observando-se deslocamentos
que sugerem certa hibridação. Porém, esses deslocamentos são inseridos nos textos de forma
tímida, fazendo com que os postulados com maior poder de iteração sejam aqueles que ainda
reproduzem velhas formas de ser mulher e de ser homem, podendo reforçar os estereótipos de
gênero, caso não haja acesso a informações que se contraponham às encontradas.
Palavras-chave: Educação Escolar. Feminino. Materias Didáticos. Mulheres. Gênero.
Sexismo.
ABSTRACT
ROMÃO, C. O. Identifications of the feminine in contemporary textbooks. 2014. 122 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2014.
Given the persistent restriction of female presence in different space-times of
contemporary societies, we developed this research with the aim of discussing the meanings
attributed to the female in textbooks today. Assuming the hypothesis that school education,
though not determine, takes part in the social process that result in the subordination of
women, we focused in the handouts used by the final years of primary education in public
schools of the City Department of Education of the city of Rio de Janeiro network, during the
year of 2013. The handouts of Science, History and Mathematics were selected. We also
developed study on the appropriation of the concept of gender in recent academic literature in
Educational research, in order to map and discuss this another important instance of assigning
meaning to a woman. In dialogue with philosopher Jacques Derrida and his theorizing about
the social processes of meaning construction, our analysis were based on the understanding
that words have unstable, provisional and precarious meanings, established in a relational and
differential mode. With the theories of Joan Scott and Judith Butler, we bring Derrida’s
propositions to think about the mechanisms of female production in the social, through the
concept of gender and the notion of performative identity. Among the results produced is the
invisibility that women’s history presents in the History material, the naturalization of
functions presented as female in Science handouts and the reproduction of traditional
conceptions about the place of boys and girls in the corpus of Mathematics. But we also found
that the textbooks surveyed already have less sexist conceptions in the way to mean feminine,
observing shifts that suggest some hybridization. However, these shifts are inserted into the
textbooks timidly, causing the postulates with greater iteration power to be those who still
reproduce old ways of being woman and man, which may reinforce gender stereotypes, if
there is no access to information that counter those found.
Key-words: School Education. Female. Textbooks. Women. Gender. Sexism.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Número de artigos que consideram as práticas escolares..............................40
Tabela 2 – Educação em Números...................................................................................74
Tabela 3 – Ocorrências no Corpus de Ciências...............................................................84
Tabela 4 – Ocorrências no Corpus de História................................................................92
Tabela 5 – Ocorrências no Corpus de Matemática........................................................104
LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS
ANPEd
Associação Nacional de Pós-Gaduação e Pesquisa em Educação
COLTED
Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático
CONAE
Conferência Nacional de Educação
ENDIPE
Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino
FAE
Fundação de Apoio ao Estudante
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísitca
INL
Instituto Nacional do Livro
LDB
Lei de Diretrizes e Bases da Educação
MEC
Ministério da Educação
PCNEF
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental
PNE
Plano Nacional de Educação
PNLD
Programa Nacional do Livro Didático
PNPM
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
SECADI
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
SEPE/RJ
Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação – Núcleo da cidade do Rio de
Janeiro
SME/RJ
Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de Janeiro
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, OU: COMO SER MULHER NA ATUALIDADE.............
11
1
SIGNIFICAÇÕES CONSTRUÍDAS: PRODUZINDO O GÊNERO............
22
1.1
O gênero construído: primeiras construções...................................................
23
1.2
Problematizando o gênero, para além do binarismo feminino/masculino....
27
1.3
Gênero nos artigos acadêmicos..........................................................................
37
1.4
O uso do conceito de gênero contemporaneamente: ainda há fôlego?..........
42
2
SOBRE A EDUCAÇÃO FEMININA NO BRASIL........................................
47
2.1
A educação de mulheres no Brasil....................................................................
49
2.1.1
Rompendo com os estereótipos: mobilizações por uma educação não- sexista...
58
2.2
Sobre os materiais escolares: o que o livro didático tem a ver com práticas
sexistas?................................................................................................................
63
2.2.1
O livro didático no Brasil......................................................................................
63
2.2.2
O livro didático e as questões do sexismo............................................................
66
3
O FEMININO NAS APOSTILAS DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL
DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO...............................................................
72
3.1
Os Cadernos Pedagógicos..................................................................................
73
3.2
Questões de método: como olhar para os corpora da pesquisa? ...................
76
3.2.1
Leitura dos Corpora..............................................................................................
83
3.2.1.1 “Diferentes, mas não desiguais”: as mulheres e as Ciências................................
83
3.2.1.2 “Inconformado com a traição de sua primeira esposa”: como as mulheres
aparecem na História............................................................................................
92
3.2.1.3 “Fabio estava planejando sua festa de aniversário”: a Matemática e as
construções de gênero...........................................................................................
103
CONSIDERAÇÕES............................................................................................ 110
REFERÊNCIAS..................................................................................................
116
11
INTRODUÇÃO, OU: COMO SER MULHER NA ATUALIDADE
O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de
mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe a
filosofar, dizia que todo homem é uma ilha, eu, como aquilo não era
comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância 1.
José Saramago
A frase acima me permite lembrar muito da minha trajetória desde menina, onde
nunca me senti incluída nas falas em que o masculino era citado para se referir também a
mim. Ler os livros da escola sempre me remeteu a apagamentos e a sentimentos que nunca
soube bem explicar. Sabia que havia algo errado, mas, sendo tão pequena e com recursos tão
limitados, deixava passar. Viver em um mundo onde raras vezes somos nomeadas significava
vivenciar as diferenciações típicas de ser menina nos anos 1990: por que ser menina me
limitava tanto? Nos anos 2000, começo a frequentar a escola normal, onde não havia rapazes
em minha turma, mas, de novo, os homens se faziam presentes nas falas, nos livros. “Vocês
são os futuros professores” - ao ouvir isso, olhava ao redor e pensava: “Não, somos as
professoras”. Incomodava como muitas de nós lidavam com esse tipo de construção; de fato,
algumas regras podem ser introjetadas sem questionamento e acabam tendo mais eficácia,
pelo seu poder de naturalização.
Ao travar contato com o feminismo, pude ir entendendo as formas como nós
construímos essas desigualdades, e como elas estão presentes em todos os aspectos da nossa
vida. É claro que, desde a minha infância, tenho acumulado diálogos e leituras que me
fizeram chegar até aqui, diálogos e leituras que me permitem cada vez mais entender os meios
com os quais o nosso chamado mundo ocidental lida com a diferença e como, em repetidas
vezes e através de mecanismos muito eficientes, a transforma em desigualdade.
Chego a esta dissertação dando seguimento aos estudos que venho desenvolvendo
desde a graduação. Estes, por sua vez, têm como tema as mulheres e a tentativa de
compreensão do porquê de uma persistente visão social em que as mulheres não são tidas
como diferentes, mas, sim, como desiguais. Durante o mestrado, pude ter contato com
1
SARAMAGO, J. O conto da Ilha Desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
12
professoras e autoras que me levaram a pensar e a problematizar essa condição de forma mais
profícua: pensar a situação das mulheres em articulação com as questões da diferença;
entender melhor como o conceito de gênero é construído e problematizado; ter contato com
autoras como Scott, Butler e Derrida, que me permitiram compreender o social de uma forma
diferente.
Sabemos que, na contemporaneidade, as chamadas questões da diferença ganham
destaque. É um tempo em que as vozes de movimentos identitários ganham certa visibilidade
em nível nacional e suas pautas começam a ser consideradas nas chamadas políticas públicas.
Quando olhamos especificamente para as mulheres, vemos que sua percepção no social vem
mudando ao longo dos séculos, sendo que, no Brasil, de forma mais intensa durante o século
XX. Ou seja, é nesse período que temos uma série de medidas para que as mulheres estejam
mais inseridas na vida social e política do país, em uma tentativa de construir uma igualdade
assegurada pela Constituição Federal de 1988, mas reivindicada há muito tempo.
Mas podemos afirmar que, além do crescimento dos movimentos identitários, dadas as
configurações sociais atuais – intensa e veloz circulação de informações, acesso a internet e a
redes sociais – vivemos em um tempo em que muitas questões sociais estão mais visíveis,
questões estas que ou não eram consideradas em outros tempos ou eram postas à margem do
debate político. Desse modo, as mais diferentes questões saíram de vez do âmbito do privado
para a arena pública: tomando de empréstimo um slogan da segunda onda feminista, podemos
dizer que generalizou-se a noção de que “o pessoal é político” (VARELA, 2008).
Temos os mais diferentes grupos reivindicando para si uma existência plena no social,
como cidadãs e cidadãos que querem usufruir de todos os seus direitos e reivindicar outros.
Temos acompanhado, por exemplo, a luta que o movimento negro fez e faz em nível nacional,
que culmina, entre outras conquistas, com a adoção de cotas raciais e a promulgação da lei
10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura Afro-brasileira na educação
escolar. Acompanhamos, também, a luta que o movimento LGBT tem feito pela aprovação no
Senado da PL122, que torna crime a homofobia no país, mas que, em votação, acabou sendo
anexada à reforma do Código Penal, significando que a PL fica adiada por tempo
indeterminado. Recentemente também vivenciamos em nossa cidade todo o movimento que
os grupos indígenas fizeram na tentativa de preservar sua história no antigo Museu do Índio.
Os chamados movimentos sociais, que se constituem como as bases de muitas ações
coletivas no Brasil, estão presentes no cenário nacional de forma mais contundente desde o
final dos anos de 1970 e de 1980, quando se tem movimentos populares reivindicando
melhorias nas cidades e se opondo ao regime militar implantado no país desde 1964. Nesse
13
período, as reivindicações dos movimentos eram de cunho universalista, lutando para ter
“direito a ter direitos”, mas, nos anos de 1990, muitos grupos começam a se organizar em
torno de bandeiras identitárias e se tornam mais institucionalizados. Essa institucionalização
dá-se pelo trabalho que estes movimentos desenvolverão em torno de projetos mais pontuais,
financiados por fundos públicos ou por parcerias internacionais e que desorganizam as antigas
formas de estruturação destes movimentos (GOHN, 2010).
Podemos ver que na história recente do Brasil a questão social sempre foi uma
preocupação, seja de forma universalista, como nos anos de 1980, seja com lutas específicas
nos anos de 1990. Mas é preciso explicitar que alguns desses grupos estão no cenário político
há muito tempo, como, por exemplo, as mulheres.
No Brasil, os movimentos feministas e de mulheres se organizam, de forma mais
sistemática, desde o século XIX, quando houve uma intensa publicação de jornais e revistas
produzidos para e por mulheres. Por exemplo, Nísia Floresta escrevia para periódicos, artigos,
contos, ensaios e poemas onde pautava a transformação das relações entre mulheres e
homens. Aqui também podemos destacar a figura de Bertha Lutz, importante ativista
feminista que, no início do século XX, lutava pelo sufrágio universal para as brasileiras,
criando, em 1919, a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher (DUARTE, 2007;
SCHUMAHER, 2003; SCHUMAHER; BRAZIL, 2000).
Como no feminismo em nível mundial, no Brasil, muitas mulheres também
queriam/querem construir para si uma outra imagem social não atrelada à visão tradicional do
ser mulher, ou seja, a mulher que cuida, exclusivamente, dos afazeres do lar, das filhas e
filhos, do marido ou companheiro, e isso independente de estar empregada ou não - uma
mulher nomeada diversas vezes como passiva, submissa e frágil. Essa imagem foi e é um
referencial para diferentes gerações de mulheres e homens que crescem bombardeadas pelos
estereótipos de gênero.
Querendo construir uma outra imagem para si, muitas mulheres estiveram presentes
nas mais diferentes lutas, principalmente, contra a desigualdade que assola o nosso país.
Estivemos presentes nos bairros, creches, escolas e igrejas, onde reivindicamos acesso a
saúde, saneamento básico, educação e habitação (MATOS, 2002). As mulheres também são,
muitas vezes, as mais numerosas quando falamos em luta social, como argumenta SouzaLobo (apud GONH, 2010, p. 94): “frequentemente as análises ignoram que os principais
atores nos movimentos populares eram, de fato, atrizes”.
Como exemplo, cabe destacar que a atuação das mulheres na Constituinte de 1988 foi
ímpar no processo democrático do Brasil, pois foram um dos maiores grupos da sociedade
14
civil organizados na Constituinte, tendo 85% das suas propostas incorporadas no texto final,
entre as quais: licença-maternidade de 120 dias, licença paternidade de 08 dias; direito a
creche para crianças de 0 a 6 anos; direito a posse de terra ao homem e à mulher; direitos
trabalhistas e previdenciários à empregada doméstica; garantia de mecanismos que coíbam a
discriminação étnico/racial (SCHUMAHER, 2008).
Podemos ver que os movimentos feministas e de mulheres não lutam por bandeiras só
para seu grupo, lutam pelo que pode fazer com que todas as pessoas possam viver de forma
mais plena, livre de preconceitos e discriminações. Por isso, os movimentos feministas são
tidos como “um dos segmentos que mais se destacam na luta pela universalização dos direitos
sociais, civis e políticos” (MORAES, 2008, p. 495). Porém, apesar do fato de as mulheres
constituírem-se como atrizes de grande visibilidade pública, muitas das suas lutas não são
incorporadas nas visões cotidianas que temos delas.
Escrevo isso porque as mulheres ainda carregam muitos dos estereótipos tradicionais
com os quais costumávamos identificá-las. Apesar da igualdade entre mulheres e homens ser
um princípio da carta magna brasileira, quando olhamos nossa sociedade e suas relações, não
vemos este princípio sendo aplicado. Um caso emblemático dessa situação é no mundo do
trabalho, onde as mulheres têm uma maior inserção depois dos anos de 1970, quando ocorre,
no Brasil, a chamada flexibilização do trabalho. Trata-se de significativa reestruturação da
produção, onde os empregadores optam, por exemplo, pelo trabalho terceirizado e, assim, não
têm que pagar certos benefícios sociais. Essas transformações atingiram toda a população
trabalhadora, mas afetaram de forma especial as mulheres, dada sua histórica subalternização
no social (NOGUEIRA, 2005).
No momento em que há um maior número de mulheres entrando no mercado de
trabalho este sofre transformações que diminuem a seguridade desta trabalhadora. Assim,
mulheres que atuam em um mercado de trabalho onde se tem condições precárias e sem
carteira assinada são uma realidade ainda hoje, favorecida pela imagem da mulher
trabalhadora como aquela que complementa a renda da sua família com o seu salário. Tal
perspectiva, no entanto, contrasta com os dados do censo brasileiro realizado em 2010 2, que
afirma que 37,3% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres.
Segundo dados publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
em 2012, as mulheres que trabalham com carteira assinada constituíam 40,4% da população;
já os homens na mesma condição representavam 59,6%, sendo que o estudo destaca que o
2
Disponível em http://censo2010.ibge.gov.br/resultados, último acesso em 01 de agosto de 2014.
15
maior crescimento de participação feminina foi observado no emprego sem carteira assinada
no setor privado3, ou seja, a realidade de empregos precários persiste para a maioria das
mulheres.
Quando olhamos a situação das mulheres negras, esses dados são mais alarmantes,
dado que são reféns da dupla discriminação, aquela que combina raça/etnia e gênero. De fato,
as mulheres negras são o grupo que possui a maior taxa de desemprego em comparação aos
outros grupos: por exemplo, em São Paulo, a taxa de desemprego das mulheres negras é de
14,1%, enquanto a de mulheres não-negras é de 11,6% e de homens negros é de 10,9%. E as
mulheres negras estão inseridas majoritariamente nos serviços com menores exigências de
qualificação profissional, menores rendimentos, relações de trabalho mais precárias e menos
valorizadas, como, por exemplo, nos serviços domésticos, onde existe um percentual de
19,2% de mulheres negras e de 10,6% das mulheres não negras4, na região metropolitana.
Além de ocupar posições precárias no mercado do trabalho, muitas mulheres têm que
lidar com a dupla jornada de trabalho, ou seja, além de trabalharem fora de suas casas, elas
precisam, também, trabalhar dentro de suas casas, no chamado trabalho reprodutivo, aquele
que mantém a vida de todas as pessoas que convivem no núcleo familiar. Tarefas como
arrumação da casa, fazer comida, lavar roupa, fazer compras, entre outras, são primordiais na
manutenção da vida. E como as mulheres são identificadas como as cuidadoras de suas
famílias, além de serem provedoras, ficam responsáveis, também, pelo trabalho doméstico e
gastam em média 29 horas e 21 minutos por semana realizando estes afazeres, dado retirado
da pesquisa A mulher brasileira nos espaços público e privado, realizada pela Fundação
Perseu Abramo e Sesc, em 2010. A mesma pesquisa nos dá o tempo médio semanal gasto por
homens em atividades domésticas: 8 horas e 46 minutos, cerca de três vezes menor do que o
das mulheres.
Outro estereótipo que sobrevive nos dias de hoje se refere à forma de ver a mulher,
sobressaindo certa permissividade que temos quanto aos tipos de violência que as mulheres
sofrem. Ditados como “em briga de marido e mulher não se mete a colher” ou “ele pode não
3
4
Dados extraídos do sítio
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/Mulher_Mercado_Trabal
ho_Perg_Resp_2012.pdf, último acesso em 27 de janeiro de 2014.
Os dados sobre as mulheres negras e o mundo do trabalho foram retirados do Sistema PED-Pesquisa emprego e
desemprego (Os negros nos mercados de trabalho metropolitano), realizado em convênio entre o DIEESE, a
Fundação Seade, o Ministério do Trabalho (MTE/FAT) e parceiros regionais, no Distrito Federal e nas regiões
metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. Encontram-se
disponíveis no sítio http://www.dieese.org.br/analiseped/2013/2013pednegrosmet.pdf, último acesso em 27 de
janeiro de 2014.
16
saber por que bate, mas ela sabe por que apanha” e, ainda, “mulher gosta de apanhar”,
mostram um aceite da sociedade brasileira com a chamada violência doméstica e familiar, que
possui como alvo, na grande maioria das vezes, as mulheres. Segundo dados da pesquisa
Violência contra a mulher: femicídio no Brasil, realizada pelo IPEA, de 2001 a 2011,
ocorreram no Brasil cerca de 50 mil femicídios, com aproximadamente 5.000 mortes ao ano5.
Essas mortes são decorrentes de conflitos de gênero, ou seja, as mulheres são mortas
pelo fato de serem mulheres e podem ser mortas pelos companheiros, pais ou irmãos. As
violências praticadas por pessoas do convívio da mulher se originam pelo entendimento deste
ser como um ser que não possui o mesmo status que seu agressor, ou seja, as mulheres são
coisificadas, objetificadas, e, como coisas e objetos, os homens poderiam/podem fazer delas o
que arbitram. O rótulo da mulher como objeto/coisa é produto de uma construção histórica
que afirmou a visão das mulheres como submissa aos homens, como não sendo donas de seu
corpo e de suas vontades. O crime que culmina na morte das mulheres é a expressão máxima
do ciclo da violência doméstica e familiar, já que, antes de a morte acontecer, é comum que a
mulher tenha sofrido outras formas de violência. Este ciclo tende a se repetir muitas vezes por
algumas razões, entre elas a crença na promessa de mudança de seus parceiros ou parceiras e,
também, a falta de redes de apoio onde esta mulher possa ter um abrigo e referências para
refazer sua vida (VÁRIOS, 2006).
As intensas denúncias feitas pelos movimentos feministas e de mulheres sobre os
números da violência contra a mulher culminaram na aprovação, em 2006, da lei 11.340 ou a
chamada Lei Maria da Penha, que tipifica e coíbe as formas de violência contra a mulher,
tornando as penas mais severas contra esse crime. Ainda não houve uma efetivação plena
dessa lei, mas ela é um marco importante no combate e na erradicação da violência contra a
mulher em nosso país.
Além das questões referentes ao mundo do trabalho e da esfera doméstica, as mulheres
ainda convivem com uma intensa cobrança no social de diferentes maneiras. Algumas vezes
sofremos a chamada violência moral, onde temos nossa conduta sexual comparada à de
animais; em outras, temos nossos corpos objetificados e vendidos em campanhas
publicitárias, como as de cervejas ou mesmo na promoção de eventos turísticos, como o
carnaval ou a copa no Brasil. Além disso, muitas vezes, ainda somos alvo do chamado padrão
5
Extraído de http://monitoramentocedaw.com.br/wpcontent/uploads/2013/09/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf, último acesso em 27 de janeiro de
2014.
17
de beleza, que cria certos padrões estéticos que se impõem às mulheres através de um
bombardeio de propagandas e ofertas de serviços e produtos.
Uma representação do exposto acima pode ser retirada de duas matérias que têm como
protagonista a presidenta do Brasil, Dilma Roussef: na primeira, extraída da Folha de São
Paulo, Gregorio Duvivier faz uma análise sobre os xingamentos a que as mulheres são
submetidas por nós mesmas e pelos homens:
Outro dia um amigo, revoltado com o aumento do IOF, proferiu: "Brother, essa
Dilma é uma piranha". Não sou fã da Dilma. Mas fiquei mal. Brother: a Dilma não é
uma piranha. A Dilma tem muitos defeitos. Mas certamente nenhum deles diz
respeito à sua intensa vida sexual. Não que eu saiba. E mesmo que ela fosse uma
piranha. Isso é defeito? O fato dela ter dado pra meio Planalto faria dela uma pessoa
pior? (Folha de São Paulo, 06 de janeiro de 2014)6.
Gregorio Duvivier nos alerta para algo que é bastante comum no cenário brasileiro:
nossos xingamentos em geral depreciam as mulheres, mesmo quando não são elas o alvo do
xingamento. Ou seja, os nossos xingamentos são sempre para ofender o público feminino e
muitos não possuem equivalência no masculino. Assim vamos cotidianamente criando a
imagem de uma mulher que pode ser rotulada segundo visões sobre seu corpo ou sobre sua
conduta sexual. A outra matéria é sobre uma foto em que a presidenta aparece na praia de
maiô, em que a autora da matéria, Nina Lemos, diz:
A presidente Dilma Roussef também foi à praia. Como uma senhora de 67 anos,
presidente, ela usou um maiô. Foi fotografada por paparazzi. Normal. Já aconteceu
com o Lula e com o FHC. Só que eles não foram xingados como a presidenta, não,
não foram. “Volta para o mar, oferenda”, disseram por aí. A presidenta foi chamada,
entre outras coisas de: Monstro do Lago Ness, Gordzilla etc etc. Ela é presidenta.
Ela não precisa mostrar um corpo impecável, não. Aliás, ninguém precisa (Yahoo
blogs, 06 de janeiro de 2014)7.
Mais uma vez, nesse exemplo, ao corpo da mulher é cobrado um encaixe em um
padrão inalcançável para muitas de nós, o que não é problema recente. Já no final do século
XIX, temos as mulheres tentando se encaixar nos costumes da época, mesmo que isso
prejudicasse sua saúde. Era então comum o uso de espartilho, que deformava a caixa torácica
e facilitava a infecção por tuberculose. Temos também o exemplo da China e os pés
deformados das mulheres em nome de um padrão de beleza. Atualmente, convivemos com os
6
Extraído do sítio http://www1.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2014/01/1393513-xingamento.shtml,
último acesso em 27 de janeiro de 2014.
7
Extraído do sítio http://br.omg.yahoo.com/blogs/nina-lemos/demi-moore-e-dilma-na-praia-e-o-123420872.html,
último acesso em 27 de janeiro de 2014.
18
chamados distúrbios alimentares, como a bulimia e a anorexia, principalmente entre as
mulheres – a relação é de 9 mulheres para cada 1 homem que sofre destes distúrbios –, em
mais um tentativa de encaixe em modelos corporais (VARELA, 2008).
Outra visão que persiste no meio social diz, mais uma vez, respeito ao corpo feminino,
que nos leva a considerar o quanto as mulheres possuem de fato seus corpos. De um lado,
muitas de nós acabamos seduzidas pela chamada indústria da beleza; por outro, ainda temos a
posse de nosso corpo negada, nosso desejo subtraído. Durante muito tempo a sexualidade
feminina foi um tabu. Muitas de nós crescemos com mães e avós falando do perigo de se
perder, porém, como afirma Moraes (2008, p. 499): “só as mulheres se perdem”. Tivemos
nossa sexualidade negada e limitada à esfera da reprodução, e o discurso reprodutivo se faz
tão presente que até hoje nós somos obrigadas a procriar, indiferentemente ao nosso desejo,
vontade e planos, já que a interrupção voluntária da gravidez, o aborto, é proibida em nosso
país. Trata-se de proibição defendida, na maioria das vezes, pelas instituições religiosas que
esquecem que o Estado brasileiro é laico. Assim, sem uma política de direitos sexuais e
reprodutivos, onde a interrupção da gravidez seja uma possibilidade, temos hoje, no Brasil,
para cada mil mulheres adolescentes entre 15-19 anos, 77 mães. Com dificuldades de acesso a
informação, educação sexual e apoio nas estruturas estatais, como creche em período integral,
muitas dessas jovens mães perderam oportunidades educacionais e profissionais 8, ficando
privadas de uma participação mais integral na sociedade.
Esta visão de uma participação integral da mulher na sociedade é recente para a
população brasileira e também algo pouco exercitado, pois apesar de às mulheres ter sido
permitido o acesso aos estabelecimentos de ensino nacional em 1827, e, às faculdades, em
1879, poucas enfrentavam os preconceitos e rompiam com as normas sociais da época
(MORAES, 2008). Essa situação mudou, mas nem tanto. Um exemplo é que, apesar de
sermos maioria no território nacional, as mulheres ainda são poucas no Congresso Nacional:
do total de cadeiras de deputadas, as mulheres ocupam 8,77%, e, no senado, elas são 12 em
um total de 81 lugares. Esses dados se tornam alarmantes quando temos acesso à lei 9504/97,
que estabelece, em seu artigo 10, a cota eleitoral por gênero, que diz que, em cada partido ou
coligação, deve-se manter o percentual mínimo de 30% e máximo de 70% de candidaturas
8
Dados retirados do endereço: http://anistia.org.br/direitos-humanos/blog/brasil-avan%C3%A7os-econtradi%C3%A7%C3%B5es-nos-direitos-sexuais-e-reprodutivos-2013-08-15, último acesso em 11 de
fevereiro de 2014.
19
para cada sexo9. Ou seja, apesar de haver uma lei que garante a candidatura das mulheres, elas
não chegam nem a 30% das representações eleitas, mesmo sem considerar que, muitas vezes,
suas candidaturas nos partidos e coligações servem de fachada para candidatos homens.
À ausência das mulheres em diferentes espaços é somada a sua frequente
invisibilização: entre os personagens históricos que conhecemos, quais são homens? Quais
são mulheres? Para grande parte das mulheres, a presença e feitos das personagens mulheres
na história brasileira e do mundo são pouco conhecidos. Os esforços na tentativa de
reconstruir essa história vêm do movimento feminista e dos chamados Estudos da Mulher,
que, desde os anos de 1960 procuram resgatar a história das mulheres, reconhecendo-as como
objeto de estudo, sujeitos da história e agentes sociais (LOURO, 2008; MATOS, 2002).
Entendo que, se as mulheres são invisibilizadas na sua contribuição com o mundo
social em que vivemos, há uma grande chance de não se construir uma imagem ativa para sua
inserção social, favorecendo a perpetuação de uma menor atuação política, social e cultural
das mulheres na sociedade. O presente trabalho pretende contribuir para a discussão dessas
questões, ao interrogar livros e materiais didáticos usados por estudantes dos anos finais do
ensino fundamental sobre as significações ali repetidas sobre o ser mulher.
Ao interrogar a escola no uso de seus materiais, entendo-a como um espaço muito rico
de aprendizagens e um local que é reforçado em nossa sociedade como uma das mais
importantes instituições socializadoras. De fato, a grande maioria de nós passa por essa
instituição. A forma como a escola considera e trata a diferença se torna muito importante,
pois, apesar de haver entendimentos de que a escola tende a reproduzir as desigualdades
sociais (LOURO, 2002), muitos grupos, tais como os movimentos sociais de mulheres,
negros, indígenas, ainda acreditam que ela também pode ser uma aliada na desconstrução e na
desnaturalização de preconceitos e discriminações.
Entretanto, as ações do Estado, na forma de leis para a promoção de uma educação
não-sexista, uma educação que valorize ambos os sexos e procure, ao longo da trajetória
escolar de meninas e meninos, visibilizar os feitos de mulheres e homens em nossa sociedade,
ainda são incipientes. Foca-se mais em regulamentos como o que avalia os livros didáticos em
nível nacional e determina que os livros indicados para uso não devem conter preconceitos de
raça, cor e sexo. Ou em indicativos do Plano Nacional da Educação Básica ou o Plano de
Políticas Públicas para as Mulheres, ambos contendo eixos onde se afirma a construção de
9
Dados retirados do endereço:
http://www.presp.mpf.mp.br/index.php?option=com_content&view=article&id=589&Itemid=72, útlimo
acesso em 10 de fevereiro de 2014.
20
uma educação não-sexista como possibilidade de superar as desigualdades de gênero. Porém,
poucas de suas propostas são incorporadas nas políticas educacionais federais, estaduais ou
municipais (PNLD, 2011; CONAE, 2010, 2014; PNPM, 2013).
Ao olhar o documento do Plano Nacional de Política para as Mulheres (PNPM) de
2013, temos, no eixo “Educação e cidadania”, um resumo de muitas questões consideradas
aqui:
Até este momento, em que o atual Plano Nacional de Políticas para Mulheres para o
período de 2013-2015 está sendo entregue à sociedade brasileira, a educação
brasileira ainda não incorporou totalmente o princípio da igualdade de gênero. Há
paridade nas matrículas em quase todos os níveis de ensino. A desigualdade de
gênero foi reduzida no acesso e no processo educacional, mas permanecem
diferenças nos conteúdos educacionais e nos cursos e nas carreiras acessados por
mulheres e homens. Se, por um lado, grande parte dos indicadores educacionais
mostra que as mulheres se sobressaem em relação aos homens; esses indicadores
também comprovam a persistência de graves desigualdades associadas à
discriminação sexista, étnica e racial, à concentração de renda, à distribuição
desigual de riqueza entre campo e cidade (PNPM, 2013).
Sendo assim, por mais que a igualdade de gênero tenha sido um ponto frequente nesse
e em outros documentos federais e tenha sido também ponto de ações do governo - como, por
exemplo, a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (SECADI) em 2004 que tem em sua proposta o objetivo de implementar “políticas
educacionais nas áreas de alfabetização e educação de jovens e adultos, educação ambiental,
educação em direitos humanos, educação especial, do campo, escolar indígena, quilombola e
educação para as relações étnico-raciais10” - como nos aponta o texto extraído do Plano
Nacional para as Mulheres, a sociedade brasileira ainda não vive de fato a igualdade de
gênero.
Levando em consideração tais questões, a pesquisa que aqui se apresenta pretendeu
problematizar como o ser feminino está sendo significado nos materiais didáticos, ou seja, se,
com toda mudança social que as mulheres vivenciaram nos últimos séculos no ocidente, elas
são pautadas como sujeitos nos livros e materiais, dotadas de uma forma de estar no mundo
que não submissa ao homem. Busquei investigar se os livros e materiais já reproduzem seus
feitos históricos, se consideram que as mulheres podem estar em diferentes espaços,
exercendo múltiplas atividades.
10
Extraído do endereço:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=290&Itemid=816, último acesso
em 13 de fevereiro de 2014.
21
O relato da pesquisa que desenvolvi se organiza da seguinte forma: no primeiro
capítulo procuro problematizar o conceito de gênero, apresentando, também, estudo sobre a
produção acadêmica recente em torno deste conceito, na pesquisa em Educação; no segundo
capítulo, exponho o que considero como marcos históricos do processo de escolarização das
mulheres no Brasil, além de trazer reflexões sobre o livro didático e suas interseções com o
sexismo; no terceiro capítulo, apresento uma análise do material empírico desta pesquisa, ou
seja, os cadernos pedagógicos utilizados pela secretaria de educação da cidade do Rio de
Janeiro nos anos finais do ensino fundamental durante o ano letivo de 2013; a última parte foi
reservada para as considerações sobre a pesquisa desenvolvida.
22
1 SIGNIFICAÇÕES CONSTRUÍDAS: PRODUZINDO O GÊNERO
Toda rosa é rosa, porque assim é chamada
Los hermanos
São notórios os avanços que as mulheres conquistaram no decorrer dos séculos: de
seres considerados passivos para seu reconhecimento como pessoas, potencialmente, atuantes
e tendo a mesma equivalência de direitos que os homens, em diferentes culturas e legislações.
Mas, como apontado na introdução, essa equivalência contrasta com a imagem da mulher
associada a visões estereotipadas do seu lugar social.
Para tentar entender fenômenos deste tipo, muitas feministas procuraram explicações
para além do senso comum, buscando formular teorizações para explicar o que se passava
socialmente. O conceito de gênero é oriundo desta tentativa e é objetivo deste capítulo
entender a sua produção no passado e na atualidade, compreendendo as críticas feitas, seus
limites e possíveis potencialidades na contemporaneidade.
As teorizações atuais deste conceito se articulam em torno de uma concepção de
linguagem entendida em perspectiva pós-estruturalista. Nesta perspectiva, afirma-se que as
estruturas não explicam como o mundo é formado, sendo necessário entender como nós, seres
humanos, damos significado a estas estruturas, que, por sua vez, são instáveis, porque
descentradas. Por exemplo, na epígrafe acima, afirma-se que a rosa só é rosa, porque assim é
chamada: poderíamos ter-lhe atribuído não apenas outro nome, como também outro sentido,
posto que as nomeações e concepções que temos sobre flores também são construções
culturais. Em complexo processo de interação social, aconteceu a construção do termo rosa e,
com essa nomeação, podemos construir toda uma significação acerca desse referente. O
mesmo processo de interação social, que é complexo e nem sempre óbvio, além de construir o
significado para rosa – tanto a própria palavra, como o objeto que refere –, constrói também a
forma como significamos diferentes sujeitos no social. Podíamos usar aqui também a celebre
frase de Beauvoir, em que a filósofa afirma que não se nasce mulher e complementa dizendo
que é o conjunto da civilização que forma esse sujeito. Tanto a epígrafe acima como a frase
de Simone de Beauvoir (1967) servem para nos dizer que não existem significações
23
descoladas dos seus contextos sociais, nem tampouco da ordem da natureza, posto que esta
também é mais uma construção cultural.
Durante muito tempo, ao identificar mulheres e homens, o mundo social atribuiu-lhes
certas características que se afirmavam como imutáveis, ou seja, eram característiicas
essenciais do ser mulher e do ser homem. Essas características eram entendidas como do
mundo da natureza e, por isso não poderiam mudar. Com as produções das perspectivas
estruturalistas e pós-estruturalistas, ganha força o entendimento de que não há um mundo
natural a priori, pois o ser humano, em seu contato com o mundo natural, já o transforma e o
significa, criando, inclusive o próprio conceito de natural.
1.1 Gênero: primeiras construções
O conceito de gênero foi desenvolvido no decorrer da chamada segunda onda
feminista, que tem seu início no Ocidente, nos anos de 1960, e se constitui por meio de uma
intensa produção realizada por teóricas e militantes em diferentes setores. Com conquistas
asseguradas em muitos países do mundo, as feministas, nesse momento, começavam a se
debruçar sobre áreas da vida que eram consideradas privadas, que não eram debatidas em
público – relação marido e mulher, violência doméstica, prazer feminino –, mas que, em seu
interior, perpetuavam práticas machistas. Nesse momento, o pessoal torna-se político e os
estudos e ações feministas começam a discutir o que acontece nas casas e nas relações
familiares (VARELA, 2008).
Entretanto, é importante considerar que o desenvolvimento deste conceito está ligado a
toda uma construção que foi feita no decorrer dos anos que antecedem os de 1960 e que
continuam após esse marco. De início, podemos destacar que a possibilidade de estudar as
mulheres é vinculada a uma ruptura com um modo tradicional de fazer ciência, ruptura que
está atrelada à noção de que o homem não é a medida de todas as coisas.
Nas sociedades ocidentais, durante um grande período da história, foi valorizada
exclusivamente a visão do homem enquanto sujeito universal, ou seja, portador da qualidade
da natureza humana, de uma razão que lhe possibilita sair do estado da natureza e formar uma
sociedade (ORTIZ, 2007). Essa visão de universalidade, desde seu princípio, esteve ancorada
na imagem de um ser que é homem, branco e heterossexual, deixando à margem todas as
outras possibilidades de manifestação do ser humano, entre elas, as mulheres. Esse sujeito
24
universal foi o modelo que as diferentes ciências usaram na formação dos seus saberes,
portanto, muito do que foi construído teve como princípio formador e objeto de estudo o
masculino. Um exemplo disso é o homem vitruviano de Da Vinci, que representa o modelo
ideal para o corpo de um ser humano, que afirma um modelo ideal para a humanidade: o
masculino. Ou, ainda, mais proximamente à temática desta dissertação, o fato de que, nas
disciplinas escolares, em geral, só costumamos ter acesso a uma versão da história
protagonizada pelos homens brancos e europeus.
Entre as explicações que pode haver para que esse modelo de sujeito universal esteja
sendo contestado, concordo com Hall (2006), quando afirma que a crise de identidade na
modernidade tardia deslocou as antigas maneiras sociais de pensar e abalou as ancoragens que
se tinha no mundo social. Assim, novos elementos são vistos, possibilitando outros debates,
que não eram considerados pelos velhos quadros de referência. Referências representadas, por
exemplo, por Descartes, francês conhecido como pai da filosofia moderna que, ao formular a
proposição “Penso, logo, existo”, sintetizou a concepção de sujeito racional, pensante e
consciente que predominou na modernidade ocidental (HALL, 2006).
Nessa mesma publicação, Hall sintetiza em cinco as grandes rupturas dos discursos da
modernidade que possibilitaram o descentramento do sujeito: o marxismo, a ideia do
inconsciente proposta por Freud, os trabalhos linguísticos de Saussure, a noção de poder
disciplinar de Foucault e o feminismo.
A primeira ruptura considerada por Hall é relacionada à tradição do pensamento
marxista, mais precisamente à reinterpretação da constituição do social feita a partir de seus
escritos, onde argumenta que os homens fazem a história a partir de condições dadas. Com
isso entende-se que os seres humanos agem no mundo sobre uma superfície já imposta por
gerações anteriores, deslocando-se a noção de agência individual, que implicava a existência
de uma essência universal do homem e que este sozinho tinha o poder de comandar suas
ações.
Já a segunda ruptura abordada pelo autor diz respeito à proposição do inconsciente por
Freud, pois esta perspectiva desmitifica a visão de que temos uma identidade fixa, unificada e
sob controle racional, já que o autor considera que “nossas identidades, nossa sexualidade e a
estrutura de nossos desejos são formados com base em processos psíquicos e simbólicos do
inconsciente, que funcionam de acordo com uma ‘lógica’ muito diferente daquela da razão”
(HALL, 2006, p. 36). Os sujeitos, portanto, são afetados pelos acontecimentos externos que,
por sua vez, são interpretados pelo inconsciente de uma maneira não racionalizada.
25
A terceira é o desenvolvimento da linguística por Saussure, com seu postulado de que
a linguagem é um sistema social. Para o linguista, o sentido da linguagem é produzido nas
relações de similaridade e de diferença das palavras relativamente às outras palavras, sem que
exista um fundamento positivo que lhes garanta estabilidade. Com essa assertiva, afirma-se
que a linguagem não é uma superfície estável, portanto, as palavras não possuem um sentido
fixo, dependendo de sua relação com outras palavras e com os contextos em que são repetidas
para que seu significado seja estabelecido.
Outro descentramento é oportunizado pelos trabalhos de Foucault, com o destaque
para a noção de poder disciplinar, com que o autor procura discutir a regulação e a vigilância
dos indivíduos e seus corpos. Através da noção de poder disciplinar, Foucault nos apresenta
como as instituições utilizam-se da disciplinarização para nos governar e como essa prática se
constitui ao longo do século XIX, seja nas escolas, nas famílias, no trabalho, nas cidades.
Segundo Hall (2006, p. 42):
O objetivo do “poder disciplinar” consiste em manter “as vidas, as atividades, o
trabalho, as infelicidades e os prazeres do indivíduo”, assim como sua saúde física e
moral, suas práticas sexuais e sua vida familiar, sob estrito controle e disciplina, com
base no poder dos regimes administrativos, do conhecimento fornecido pelas
“disciplinas” das Ciências Sociais.
Com essa noção, em conjunto com as demais, podemos entender que as concepções
que temos sobre o mundo não são dadas por um mundo natural, mas são produtos das ações
humanas.
E a ruptura mais atual, que, segundo Hall, faz parte dos chamados novos movimentos
sociais, surgindo a partir de 1968, é o feminismo, entendido como uma crítica teórica e um
movimento social que descentra o sujeito quando questiona postulados tradicionais, tais como
a posição da mulher na sociedade, o valor do casamento, a dicotomia privado e público. Ao
problematizar a forma como a sociedade ocidental historicamente se constituiu em relação a
mulheres e homens, o feminismo contribui com a formação de uma nova episteme,
possibilitando a desconstrução das naturalizações com que estávamos acostumadas a operar,
e, para tal, enfatiza:
como uma questão política e social, o tema da forma como somos formados e
produzidos como sujeitos genereficados. Isto é, ele politizou a subjetividade, a
identidade e o processo de identificação (como homens/mulheres, mães/pais,
filhos/filhas) (HALL, 2006, p. 45).
26
Estas rupturas nos informam sobre uma nova forma de conceber os sujeitos sociais já
que trazem e implicam a abertura para um aspecto do social que durante muito tempo não foi
devidamente considerado nas pesquisas acadêmicas: a cultura. Hall pondera que tais rupturas
nos permitem “ver a cultura como uma condição constitutiva da vida social, ao invés de uma
variável dependente, provocando, assim, nos últimos anos, uma mudança de paradigma nas
ciências sociais e nas humanidades [...]” (HALL, 1997, p. 9).
É neste cenário, onde há uma efervescência tanto de questões políticas quanto
culturais, onde eclodem, em diversas partes do mundo, revoltas estudantis, movimentos
contraculturais e antibelicistas, lutas por direitos civis e movimentos revolucionários, que a
produção do conceito de gênero se dá.
Um dos primeiros usos do conceito foi feito por Robert J. Stoller, psiquiatra, em 1968,
e tinha como pretensão diferenciar os aspectos biológicos dos chamados aspectos
psicológicos: “Utilizaremos el término género para designar algunos de tales fenómenos
psicológicos: así como cabe hablar del sexo masculino o feminino, también se puede aludir a
la masculinidad y la feminidad sin hacer referencia alguna a la anatomía o a la fisiología”
(STOLLER apud VARELA, 2008, p. 181-182). Stoller realizava uma pesquisa que culminou
na publicação do livro Sex and Gender, que tinha como um de seus objetivos argumentar que
não existe dependência entre sexo e gênero.
Segundo Varella (2008), a apropriação e desenvolvimento deste conceito pelo
feminismo se dará pelo grupo conhecido como feministas radicais. Gênero começa a ser
entendido como uma construção cultural produzida ao longo da história, que, nas sociedades
ocidentais colonizadas por países europeus, afirma uma dominação masculina e uma sujeição
feminina, ou seja, denominaria os aparatos culturais que fazem com que nós cresçamos
influenciados por essa hierarquização.
As feministas procuravam denunciar os prejuízos que a biologia, supostamente,
determinava ao feminino, já que o mundo cultural que estava significando este ser era uma
criação masculina, que tendia a afirmar a subordinação do feminino. Os chamados estudos de
gênero surgem, então, nas universidades estadunidenses, nos anos de 1970, e, em um período
de vinte anos, foram incorporados às ciências sociais. Esses estudos denunciam a opressão a
que as mulheres estão submetidas, uma vez que tudo que está atrelado ao universo feminino é
tido como subordinado; os homens, para serem assim reconhecidos,devem se diferenciar do
que é nomeado como pertencente ao universo feminino, já que qualquer identificação com
esse universo é motivo de insultos e deboches (BEDIA, 1995; VARELA, 2008).
27
O uso do conceito de gênero possibilitou uma revolução política, pois deslocou a
dominação das mulheres de algo dado pelo mundo da natureza, tido até então como imutável,
para algo que é construído pelo mundo social, cultural, e que, portanto, pode ser
transformado. Desse modo, ganha força a compreensão de que, mesmo antes de nascermos,
somos educadas a partir de nosso gênero – na escolha de roupa, de nomes, a cor de nossos
brinquedos, que atividades poderemos fazer – e isso não é algo natural, como Millet, que foi
uma das primeiras a usar o termo gênero, explicava:
O desarollo de la identidad genérica depende, en el transcurso de la infancia, de la
suma de todo aquello que los padres, los compañeros y la cultura e general
consideram próprio de cada género en lo concerniente al temperamento, al carácter,
a los interesses, a la posición, a los méritos, a los gestos y a las expresiones. Cada
momento de la vida del niño implica una serie de pautas acerca de cómo tiene que
pensar o comportaser para satisfacer las exigencias inherentes al género (MILLET
apud VARELA, 2008, p. 182).
Com este conceito, as teóricas feministas abriam um leque de possibilidades para os
estudos acadêmicos, questionando as desigualdades em diversos campos de saber. Este
conceito é o marco da segunda onda feminista, momento das lutas feministas caracterizado
pela preocupação com a diferença (MATOS, 2008). Grandes avanços são realizados, porém o
conceito de gênero também foi alvo de críticas dentro do próprio feminismo.
1.2 Problematizando o gênero, para além do binarismo feminino/masculino
As problematizações em torno do conceito de gênero começam tão logo sua utilização
pelas teóricas feministas se inicia. Gênero se constitui, naquele momento, como uma forma de
tentar outra inserção da temática das mulheres nas pesquisas acadêmicas, já que possibilitava
uma nova visão sobre o social que rompia com o biológico, além de possibilitar um outro tipo
de visibilidade aos estudos que tematizavam esse grupo social (SCOTT, 1989). Dentre os
textos produzidos nesse tempo destaco aqui, inicialmente, dois, pelo significado que
adquiriram ao longo do tempo: o primeiro texto foi escrito por Rubin, antropóloga, e é tido
como o primeiro texto que propõe uma metodologia para o estudo de gênero, e o segundo,
escrito por Scott, historiadora, em que a autora propõe o uso de gênero como uma categoria
de análise na pesquisa em História.
28
O texto de Rubin, cujo título é O tráfico de mulheres: notas sobre a economia política
do sexo, foi publicado originalmente em 1975. Segundo Rubin, “Traffic in Women tem sua
origem nos primórdios da segunda onda do feminismo, quando muitas de nós que tínhamos
atuado no final da década de 1960 estávamos tentando fazer uma ideia de como pensar e
entender a opressão das mulheres” (BUTLER; RUBIN, 2003, p. 2).
O texto tem como objetivo apresentar uma descrição mais desenvolvida do sistema
sexo/gênero, com base em Levi-Strauss e Freud, mas também realizar uma crítica ao
marxismo, tal como vinha sendo formulado, já que não dava resposta, por exemplo, para a
questão da opressão das mulheres (RUBIN, 1993).
Querendo entender como se dá essa opressão, Rubin escreverá sobre Marx, Engels,
Levi-Strauss, Freud e Lacan. Ao estabelecer uma relação entre estes autores, Rubin pretende
investigar nas suas obras contribuições para a problemática feminista, reconhecendo que tais
escritos tendem a ser sexistas, uma vez que a opressão feminina não era ponto de interesse. A
autora postula que toda sociedade possui o que chama de “sistema de sexo/gênero”, entendido
como a moldagem, pela intervenção social, da matéria biológica humana. Para Rubin, o
sistema sexo/gênero é um “termo neutro que diz respeito a um domínio específico, indicando
simultaneamente que a opressão não é inevitável neste domínio, mas sim produto das relações
sociais que a organizam” (RUBIN, 1993, p. 6). Propõe, ainda, os sistemas de parentesco como
formas observáveis do sistema sexo/gênero, aproximando-se, nesse argumento, de LéviStrauss, que foi um dos primeiros a propor a observação das relações de parentesco como uma
forma de entendermos o social, sob o argumento de que estas relações formam um sistema de
categorias e status que muitas vezes contradizem as relações genéticas, o que desmonta o
apelo excessivo a crenças divinas ou imposições da natureza. Através da observação desses
sistemas, poder-se-ia entender as relações calcadas no poder e na política que organizam a
vida em sociedade e que legitimam e impõem a subordinação feminina.
Para Rubin, gênero faz parte desse sistema, sendo entendido como a denominação das
múltiplas divisões com base no sexo impostas pelo social. Afirma que o gênero tenderia a
afastar mulheres e homens, uma vez que os faz se entenderem como sujeitos diferentes, ou
seja, retira suas similaridades. Mulheres e homens estariam muito mais próximos do que
imaginam, porém seriam reprimidos nos traços que possuem em identificação um com o
outro. Ainda segundo a autora, a fabricação de mulheres e homens imposta pela divisão
sexual atende a uma heterossexualidade compulsória, uma vez que somos educadas para que
nosso desejo sexual seja direcionado ao sexo oposto. Essa seria uma estratégia para que se
garantisse o casamento e se reafirmassem as mulheres como moedas de troca, já que, em
29
diferentes sociedades no passado e mesmo ainda hoje, é a mulher que é dada – pede-se a mão
da mulher –, para aumentar a riqueza da família ou para estabelecer relações sociais mais
vantajosas. Esses arranjos são feitos através de casamentos, que só recentemente começam a
serem pautados, também, na vontade feminina. Porém, como afirmado acima, existem ainda
muitas sociedades em que “elas não estão em posição de dispor de si mesmas para se dar”
(RUBIN, 1993, p. 9).
O tráfico de mulheres é considerado um dos primeiros trabalhos que propõem uma
metodologia de pesquisa com base na teoria feminista, para os estudos lésbicos e gays
(BUTLER; RUBIN, 2003). Seu diálogo com autoras marxistas, estruturalistas e pósestruturalistas, na compreensão da opressão das mulheres, contribui para a construção do
conceito de gênero, ao entendê-lo dentro de uma matriz histórica e social e dar-lhe
visibilidade, pelo diálogo com outras autoras e teorias. Sendo assim, gênero é utilizado por
Rubin como um conceito que possibilita entender as estruturas sociais a partir da ótica
feminista, uma vez que permite visibilizar as opressões e as desigualdades da sociedade. Uma
das intenções de Rubin era, através da visibilização das estruturas que formam o “sistema
sexo/gênero”, denunciar a heterossexualidade compulsória, mas também ir além das questões
de gênero, já que, a partir dos estudos dessas estruturas, tinha-se em mãos a possibilidade de
discutir sobre a forma como a sociedade estava sendo significada como um todo. No entanto,
essas formulações se baseavam em uma visão utópica da sociedade, como afirma Rubin:
“Bem, éramos todas bastante utópicas naquela época. Isso foi entre 1969 e 1974. Eu era
jovem e otimista quanto à mudança social. Naquela época havia uma expectativa comum de
que a utopia estava bem próxima” (BUTLER; RUBIN, 2003, p. 6). O texto da autora se insere
em uma perspectiva militante dos estudos com gênero, estudos esses que afirmavam que o
uso deste termo traria mudanças significativas para a forma como as mulheres são
identificadas socialmente, o que acabaria por promover uma total emancipação feminina no
social. O artigo focalizado a seguir já se distancia desta visão utópica, trazendo contribuições
para o estudo de gênero enquanto categoria de análise na pesquisa historiográfica.
O segundo texto que destaco aqui foi publicado pela primeira vez em 1986 e escrito
pela historiadora Joan Scott: Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Esse texto
parece ser entendido até hoje como muito atual, o que se evidencia pelo seu uso frequente
para a conceituação do termo, como verifiquei em levantamento que realizei em 2012
(ROMÃO, 2012), onde pesquiso as produções em torno do conceito de gênero apresentadas
em dois encontros educacionais – Associação Nacional de Pós-Gaduação e Pesquisa em
Educação (ANPEd) e Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE) – no
30
período de 2004 até 2011. Nesse estudo, constato que a grande parte das produções que
utilizam gênero parte de Scott para defini-lo, referindo o texto Gênero: uma categoria útil
para análise histórica. Scott, nesse texto, realiza uma crítica à forma como o conceito de
gênero é usado na pesquisa histórica e propõe uma abordagem mais radical para o seu uso, já
que concebe gênero a partir da interface com outras categorias, tais como raça e classe,
argumentando que é preciso entender as relações de poder em conjunto com estas categorias.
Scott é uma das primeiras a propor essa abordagem.
Ao escrever seu texto, a autora explicita que o conceito de gênero era ainda muito
recente, sem muitas referências em dicionários ou nas enciclopédias, e aponta que seu uso
pelas feministas era referido à organização social da relação entre os sexos, em geral,
desconsiderando-se as outras dimensões das questões femininas. Mas indicava, também, a
clara rejeição ao determinismo biológico, conforme explicita Saffioti (2004, p. 110, grifos da
autora): “Uma das razões, porém, do recurso ao termo gênero foi, sem dúvida, a recusa do
essencialismo biológico, a repulsa pela imutabilidade implícita em ‘a anatomia é o destino’,
assunto candente naquele momento histórico”. Com o uso do conceito, as feministas
pretendiam mudar paradigmas, incluir a experiência pessoal e subjetiva, assim como
atividades públicas e políticas nos estudos acadêmicos sobre as mulheres.
Mas gênero acaba por se tornar sinônimo de mulheres, ou seja, nas pesquisas que se
valiam desse conceito, a categoria mulheres tende a tornar-se invisível, e gênero foi se
constituindo como uma categoria mais neutra do que mulheres. Isso pode ser entendido como
uma estratégia na busca por legitimação acadêmica pelos estudos feministas que aspiravam à
neutralidade científica, ainda tentando fazer ciência no molde das chamadas ciências da
natureza. O termo acaba se dissociando da política feminista, pois, como afirma Scott (1989,
p. 6), desse modo, “o termo gênero não implica necessariamente na tomada de posições sobre
desigualdade ou poder, nem designa a parte lesada (e até agora invisível)”. Outro fato
importante é que este conceito passa a ser usado para se referir às mulheres e aos homens,
havendo teóricas que insistem em argumentar que informações sobre as mulheres é
informação sobre os homens, aqui mais uma vez levando a parte lesada a se tornar invisível,
uma vez que estas pesquisas acabam não explicando a forma como a opressão das mulheres
foi e é dada no social e como estas se naturalizam. Scott (1989) faz uma crítica a tomada de
decisões que algumas teóricas fizeram ao utilizar gênero sem demarcar as desigualdades
impostas historicamente sobre a forma como mulheres e homens são significadas no social,
uma vez que sendo o mundo social projetado com um vetor de força maior pelo modelo
31
masculino as trajetórias das mulheres ficam subalternizadas e essas questões precisariam ser
demarcadas.
Outra crítica feita por Scott diz respeito à forma como gênero é usado pelas
historiadoras, uma vez que o conceito só é utilizado para temas como mulheres, crianças,
famílias e não para guerra, diplomacia e alta política. Com o conceito desenvolvem-se
análises do social, mas geralmente ele não é usado para saber por que as coisas são do jeito
que são ou como podem ser mudadas.
Assim, na segunda parte de seu texto, Scott propõe outra abordagem para gênero,
entendendo-o enquanto “um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças
percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”
(SCOTT, 1989, p. 21). Scott propõe uma significação de gênero que seja relacional,
entendendo que sua formação e reprodução está contida nos símbolos culturais, nos conceitos
normativos, nas instituições e organizações sociais e na nossa identidade. O conceito pode,
então, ser utilizado como “um meio de decodificar o sentido e compreender as relações
complexas entre diversas formas de interação humana” (SCOTT, 1989, p. 23).
Ao utilizar o conceito de gênero como categoria de análise, Scott rompe com o caráter
fixo e permanente das significações produzidas em torno do ser mulher e ser homem,
problematizando sua oposição binária e argumentando em favor de uma desconstrução da
diferença sexual. Tal desconstrução se aproxima da proposta por Derrida, no sentido da busca
por compreensão e crítica do funcionamento de alguma construção social, por meio da
reversão e deslocamento dos pressupostos de tal construção. Ao realizar esse exercício, temos
condições de romper com os binarismos e transformar os lugares atribuídos a mulheres e
homens. Para Scott (1989, p. 28),
Só podemos escrever a história desse processo se reconhecermos que ‘homem’ e
‘mulher’ são ao mesmo tempo categorias vazias e transbordantes; vazias porque elas
não têm nenhum significado definitivo e transcendente; transbordantes porque
mesmo quando parecem fixadas, elas contém ainda dentro delas definições
alternativas negadas ou reprimidas.
Scott contribui com uma visão de gênero mais politizada, em que seu uso, na análise
histórica, pode favorecer a construção de uma história onde as mulheres sejam visíveis, ativas
e com uma visão de igualdade política e social atenta também para as questões de raça/etnia e
classe.
Entendo o texto de Scott como bastante radical ao propor uma outra forma de
significar o termo gênero, vendo-o a partir de sua articulação com questões de poder mais
32
amplas, antes invisibilizadas. E formulando-o como uma categoria de análise, fato que
impulsionará seu uso nas ciências sociais, seu rechaço às construções binárias também mostra
seu radicalismo, pois essa era, e ainda é, uma concepção que temos dificuldade em superar.
Temos dificuldade em pensar o mundo para além do par mulher-homem, masculino-feminino,
e Scott já sinaliza a necessidade dessa superação. Juntamente com o uso de gênero como uma
categoria de análise, a autora propõe uma nova abordagem metodológica, atenta para as
histórias marginalizadas, além de contestar a noção de fixidez das estruturas e dos sentidos em
geral. Incluem-se, nas pesquisas, a noção de política e também a história das instituições e
organizações sociais. Com isso tem-se uma visão mais ampla de como funciona o social,
visão esta que inclui o parentesco, mas também o mercado de trabalho, a educação, o sistema
político: “gênero é construído através do parentesco, mas não exclusivamente; ele é
construído igualmente na economia, na organização política e, pelo menos na nossa
sociedade, opera atualmente de forma amplamente independente do parentesco” (SCOTT,
1989, p. 22).
Trago, para se somar a essa discussão, uma outra autora que publica importantes
reflexões para o estudo do conceito de gênero: a filósofa Judith Butler. A autora tem
publicações onde procura problematizar o feminismo e o gênero, construindo consistentes
críticas às concepções binárias, com base na proposta da desconstrução, de Derrida. Para a
autora (BUTLER, 2012), gênero não é mais usado somente para pensar as mulheres, pois,
hoje, o uso deste conceito está também incluído em uma nova política de gênero, que é um
movimento que engloba transgêneros, transexuais e intersexuais, em diálogo com as teorias
feministas e queer.
Butler entende gênero como uma norma reguladora, que escapa às regras
convencionais e constitui seu próprio e distinto regime disciplinador, já que se distancia, na
forma como disciplinariza nossos corpos, de outras normas. Uma forma como se distancia é o
fato de que o aparato que regularia gênero já está adaptado ao gênero, ou seja, gênero está tão
misturado ao modo como nos entendemos umas as outras, fazendo parte de nossa
integibilidade cultural, que se torna complicado socialmente não significar os seres dentro das
produções de gênero. Aqueles que tentam romper com essas naturalizações acabam
classificados pelos poderes reguladores – médicas, psiquiatras, por exemplo – como
aberrações, continuando assim a regulação imposta pelo gênero. Desta maneira, gênero
seguiria sendo um dos componentes da coesão social defendido pelos poderes reguladores
como a única forma possível de existência, fazendo com que o aparato que produz o gênero
esteja já dentro das formas como vemos o gênero, nos impossibilitando uma dissociação entre
33
gênero e sua produção. Um bom exemplo disto é a forma como gênero se constitui como um
mecanismo que naturaliza e produz as noções de feminino e de masculino, permitindo, na
maioria das sociedades, somente essas duas formas de existência. Ou seja, ou você se
identifica com o masculino ou com o feminino, não havendo a possibilidade de outros
posicionamentos. Desse modo, gênero será entendido como uma norma elaborada, se
diferenciando de uma regra e de uma lei, nas palavras da autora:
La ideia de que el género es una norma requiere uma mayor elaboración. Una norma
no es lo mismo que una regla, y tampoco es lo mismo que una ley. Una norma opera
dentro de las prácticas sociales como el estándar implícito de la normalización.
Aunque una norma pueda separarse analíticamente de las prácticas de las que está
impregnada, también puede que demuestre ser recalcitrante a cualquier esfuerzo para
descontextualizar su operación. Las normas pueden ser explícitas; sin embargo,
cuando funcionan como el principio normalizador de la práctica social a menudo
permanecen implícitas, son difíciles de leer; los efectos que producen son la forma
más clara y dramática mediante la cual se pueden discernir (BUTLER, 2012, p. 69,
grifos da autora).
Ao pensar as normas de gênero com uma maior elaboração, não podemos nos deter
apenas em entender gênero como a produção do feminino e do masculino, pois o gênero não
se constitui somente como algo que alguém é ou tem: ele se configura por todo um aparato
social que tenta estabilizar os gêneros em forma binária e nos fazer crer que essas são as
únicas formas possíveis que os grupos humanos podem se manifestar e organizar o social.
Mas, para Butler, o gênero também poderia se constituir como o aparato que desconstrói e
desnaturaliza termos como o feminino e o masculino, se pensado como performativo. Butler
(2008) investe na possibilidade de romper com esquemas binários, pois amplia nossa forma
de ver e entender o gênero, já que questiona as relações de poder, o essencialismo e o
universalismo presentes em muitos escritos contemporâneos.
A autora, também, realiza uma crítica às práticas feministas (2008), propondo que as
feministas questionem o sujeito para o qual suas práticas são direcionadas, argumentando que
ser mulher não é algo seguro e permanente e, assim, desestabiliza conceitos como mulher,
gênero, sexo, desejo. Dialoga com toda uma teorização que problematiza as práticas
identitárias, tal como Hall (2006), quando discute as identidades na pós-modernidade.
Um de seus objetivos é construir uma genealogia da categoria gênero em diferentes
campos discursivos. Sua argumentação começa com o questionamento do sujeito feminista,
que, para a autora, é “uma formação discursiva e efeito de uma dada versão da política
representacional” (BUTLER, 2008, p. 19). Sendo assim, as feministas estariam afirmando e
defendendo uma identidade – ser mulher – que é produzida dentro da lógica política da qual
34
elas querem se emancipar. É possível o sujeito do feminismo ser de fato livre das opressões
desta sociedade se tenta a liberdade na lógica da sua subordinação? É possível ser livre sendo
mulher? Questões complicadas, mas, como Butler afirma: “problemas são inevitáveis e nossa
incumbência é descobrir a melhor maneira de criá-los, a melhor maneira de tê-los” (BUTLER,
2008, p. 7).
Historicamente, há uma diferenciação social que rotula os sujeitos em mulher e
homem a partir de seu sexo, que é usado como prescrição do comportamento das pessoas: se
você nasce mulher deve agir de uma maneira e, se nasce homem, de outra. A noção de gênero
foi, em geral, entendida como possibilidade de explicar as desigualdades entre mulheres e
homens, para além do aparato dito sexual, mas, para Butler, tanto sexo quanto gênero são
discursivamente construídos:
o sexo é tomado como um ‘dado imediato’, um ‘dado sensível’, como
‘características físicas’ pertencentes a uma ordem natural. Mas o que acreditamos
ser uma percepção física e direta é somente uma construção sofisticada e mítica,
uma formação ‘imaginária’(WITTIG apud BUTLER, 2008, p. 49).
Não haveria nada de natural no sexo. O essencialismo biológico e a anatomia como
destino seriam entendimentos que não se justificariam, uma vez que as interpretações que
damos a nossos corpos estão inseridas na lógica de uma construção cultural muito sofisticada,
que nos faz crer em significações que antecedem à nossa existência: os mecanismos que
produziriam tanto sexo quanto o gênero já estariam incorporados na forma como nomeamos
nossos corpos e nossa sexualidade.
Para Butler (2008), gênero vai além da inscrição cultural em um corpo sexuado, pois
se caracteriza por uma produção discursiva que, além de fabricar o gênero, produz também o
sexo. A autora argumenta que se deve entender o processo de configuração do gênero como
uma complexidade que não pode ser totalizada e está inserida em uma construção que tende a
afirmar a lógica na qual vivemos, lógica essa criada através de uma série de tabus que
legitimam a matriz heterossexual, como Rubin também sinalizava. Cria-se, desse modo, uma
obrigatoriedade de nossas relações sexuais e afetivas serem com o sexo oposto, o que,
também, cria uma falsa estabilização para as identidades binárias: ou você é homem ou você é
mulher, marginalizando-se outras possibilidades de expressão humana.
Uma das inovações de sua obra é trazer gênero como enunciado performativo, para
entender o aparato que o produz:
35
Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou
substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo de
ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio organizador
da identidade como causa. Esses atos, gestos, atuações, entendidos em termos gerais,
são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado
pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos
corpóreos e outros meios discursivos. O fato de o corpo gênero ser marcado pelo
performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos vários atos que
constituem sua realidade (BUTLER, 2008, p. 194, grifos da autora).
Conceber o gênero como enunciado performativo nos permite entender os efeitos de
verdade que são atribuídos às visões idealizadas de mulheres e homens, que, por sua vez, são
estabilizadas socialmente por meio dos estereótipos. Essas visões, como afirma Butler (2008),
não possuem um status ontológico, mas produzem essa sensação através de sua repetição
estilizada, que acaba por criar uma coerência que oculta suas descontinuidades. Um bom
exemplo disso é que nem toda menina/mulher gosta da cor rosa, mas essa cor foi atribuída ao
feminino, sendo a mesma lógica usada para homens/meninos e futebol: quem assume que não
gosta do que foi atribuído ao seu sexo pode ter sua feminilidade ou masculinidade
questionada, gerando opressões específicas para cada grupo.
O conceito de performativo vem da Teoria dos Atos de Fala, pensada inicialmente
pelo linguista John L. Austin. Para Austin, a linguagem não seria apenas descritiva, podendo
também gerar os efeitos que enuncia (OTTONI, 2002). Os enunciados entendidos como
performativos são os que não são nem verdadeiros, nem falsos, e que realizam a ação a que se
referem, ou seja, quando falamos também podemos estar realizando uma ação que produz as
marcas que enuncia (CULLER, 1997). Na síntese proposta por Leite (2014, p. 8): “Austin
propõe que enunciados linguísticos podem não apenas descrever como também gerar efeitos
no que em geral entendemos como realidade social”.
As teorizações desenvolvidas por Derrida e Butler sobre o performativo interessam
não apenas pelas construções que oportunizam para a conceituação de gênero, como foram
centrais na definição do desenho desta pesquisa, como se verá no capítulo 3. A partir da
leitura desconstrutora do livro How to do things with words, de Austin, Derrida problematiza
alguns aspectos da noção de performativo: concorda com Austin, quando o autor deixa de
considerar os enunciados como verdadeiros ou falsos, mas também radicaliza entendimentos
desta teorização, sobretudo acerca do significado de contexto. Austin considera o contexto
como total, onde estariam presentes a consciência e a intenção do sujeito falante e a
estabilidade das convenções sociais, responsáveis pela efetivação do performativo. Já Derrida
duvida de uma noção de contexto que capture todas as possibilidades inscritas em uma ação:
para o autor, o contexto nunca está determinado ou saturado, pois haverá sempre uma nova
36
faceta do contexto para ser vista, citada, lembrada. Mas Derrida concorda com Austin sobre a
necessidade da convenção para a realização do performativo, ou seja, para que o performativo
possa gerar os efeitos que nomeia, precisa estar amparado por convenções. Só que, para
Derrida, essas convenções possuem a possibilidade de mudança e transformação, pois
carregam em si a iterabilidade, que é a possibilidade que todo signo possui de ser repetido,
mas também de ser transformado (DERRIDA, 1991; LEITE, 2014). Segundo Derrida (1991,
p. 76-77, grifos do autor):
A iterabilidade supõe uma restância mínima (como uma idealização mínima, embora
limitada), para que a identidade do mesmo seja repetível e identificável em, através
e até em vista da alteração. Porque a estrutura da iteração, outro traço decisivo,
implica ao mesmo tempo identidade e diferença. A iteração mais ‘pura’ – mas ela
nunca é pura – comporta em si mesma o afastamento de uma diferença que a
constitui como iteração. A iterabilidade de um elemento divide a priori sua própria
identidade, sem contar que esta identidade só pode delimitar-se numa relação
diferencial com outros elementos, e traz a marca dessa diferença. É porque essa
iterabilidade é diferencial, no interior de cada ‘elemento’ e entre os ‘elementos’,
porque ela fratura cada elemento constituindo-o, porque ela o marca com uma
ruptura articulatória, que a restância, indispensável, apesar de tudo, nunca é de uma
presença plena: é uma estrutura diferencial que escapa à presença ou à oposição
(simples ou dialética) entre a presença e a ausência, oposição de que a ideia de
permanência é tributária.
A citação acima é longa, porém traz elementos importantes para a compreensão da
noção de iterabilidade: de acordo com Derrida, todo signo possui como traço característico a
iterabilidade, podendo ser o mesmo ou o outro – identidade e diferença – já que carrega em si
uma restância miníma que justifica a sua identificação, mas que, também, possui as
potencialidades do deslocamento de sentido. Assim, uma das características fundamentais do
performativo será a iterabilidade, pois o performativo entendido como atos, gestos e atuações
não necessariamente constituem sempre o mesmo, pois trazem também a possibilidade da
mudança.
O entendimento de Butler sobre a teorização de Austin desconstruída por Derrida “é
uma certa prática de citação que reproduz e altera Austin e Derrida”, como afirma Pinto
(2009, p. 128). Butler introduz a questão do corpo às suas produções, o que suplementa o
performativo. Esse corpo, segundo Pinto (2009), é atravessado por um problema teórico, que
se constitui com a iterabilidade do ato de fala, onde não há a possibilidade de um controle
total, mas também por um problema político, onde esse mesmo corpo precisa criar condições
de sobrevivência, uma vez que ele é interpelado violentamente pelas estruturas já existentes.
Butler continua sua produção na linha que Scott defende: que não é possível pensar gênero
sem questionar as estruturas de poder nas quais ele é produzido. Ao pensar gênero como
37
performativo, estamos querendo entender como as significações feitas em torno dos gêneros
podem produzir efeitos nos corpos dos estudantes, efeitos estes que estão sendo criados no
decorrer do processo de socialização destes sujeitos, não só na escola, mas também em todos
os espaços que compõem sua vivência. Esta pesquisa se debruça sobre um dos elementos que
compõem o espaço de formação escolar, o material didático, e procura entender como as
produções textuais podem repetir certas normatizações sobre o feminino e se elas já
demonstram possibilidades de transformação ou, ainda, se estão mais vinculadas a formas
tradicionais de ser mulher.
1.3 A noção de gênero nos artigos acadêmicos
Como podemos observar, o conceito de gênero faz parte de uma teorização, que,
inicialmente, tinha como objetivo promover a emancipação das mulheres, mas que, com o
passar do tempo, passou pelos usos mais diversos, até mesmo excluindo a temática das
mulheres. Gênero é, então, usado pela pesquisa acadêmica como uma possibilidade de romper
com esquemas biologizantes e pensar os corpos, femininos e masculinos, e as sexualidades
como construções culturais. Entendido, inicialmente, como de uso feminista, o conceito foi se
desligando de seus vínculos iniciais e se constituiu como uma categoria de análise profícua
para o campo acadêmico. Observa-se que, no Brasil, após a Constituição de 1988, as
temáticas de gênero e sexualidade ganham força no debate nacional, tanto na área de direitos
sociais, quanto na produção acadêmica. Nos últimos 20 anos, há uma crescente produção em
torno deste conceito, crescimento este dado, em parte, pela expansão da pós-graduação em
áreas como a Educação, mas também pela demanda dos movimentos sociais e a assunção,
pelos governos, de compromissos internacionais destinados a eliminar a discriminação contra
as mulheres (VIANNA et al., 2011; ROSEMBERG, 2002).
As observações acima sinalizam a expansão que temas como mulher, gênero,
sexualidade e orientação sexual possuem na contemporaneidade, mas, por outro lado,
levantam a questão acerca dos significados e os entendimentos que o conceito de gênero pode
assumir nessa disseminação. Como argumenta Scott (2012, p. 331), existem “ainda, com
certeza, feministas que usam a palavra, mas agora é um termo de referência que atravessa o
espectro político, com efeitos às vezes muito diferentes daqueles que as feministas
originalmente intencionaram”.
38
Outra autora que argumenta na mesma linha que Scott é Carvalho (2011), em artigo
escrito por encomenda do GT Sociologia da Educação da ANPEd, a partir da constatação de
que diferentes artigos que trabalhavam com o conceito de gênero não conseguiam explicar o
conceito. Afirma que o termo gênero apresenta diferentes entendimentos, sem a devida
conceituação, sinalizando a necessidade de explicitar as concepções que temos de gênero nos
estudos que desenvolvemos. Vemos, portanto, que uma maior disseminação do termo pode
gerar diferentes entendimentos, que em muitos momentos se contrapõem ao original como
Scott afirma, o que em si pode não ser problemático, os problemas surgem quando o trabalho
com o conceito não sinalizam os entendimentos que as autoras estão tendo deste conceito.
Dadas essas questões, torna-se importante para o estudo que desenvolvo, em que
procuro entender os sentidos atribuídos ao feminino em materiais didáticos contemporâneos,
buscar compreender como o conceito de gênero está sendo mobilizado pelas pesquisas
acadêmicas do campo educacional. Que interlocuções teóricas são usadas para definir gênero?
Em torno de que temas a noção de gênero tem sido referida? Estas produções consideram a
prática escolar? Para tal empreendimento, opto por considerar as publicações em revistas do
campo educacional no período de 2009 até 2013, de modo a focalizar uma produção mais
contemporânea, além de ter acesso aos acervos diretamente nos sítios eletrônicos.
Foram pesquisadas 11 revistas, que foram escolhidas por apresentarem conceito A1 no
sistema Qualis da CAPES, o que demonstra que as mesmas estão inseridas em um circuito de
maior notoriedade. A escolha de revistas classificadas como A1 no sistema Qualis não está
vinculada a critérios de qualidade, mas observamos que, dadas as cobranças do mundo
acadêmico, as revistas A1 tendem a atrair autoras que estejam efetivamente atuando em
pesquisas e na academia. Além do destaque no sistema Qualis, foram critérios de seleção das
revistas: terem seus acervos disponíveis na internet; serem de língua portuguesa; e terem
como objetivo a divulgação de pesquisas e artigos que reflitam sobre os fenômenos
educacionais do Brasil, mas também de outros países; não terem foco especializado em outras
questões da Educação, como educação especial ou didáticas específicas. Duas das revistas
selecionadas não estão inseridas nesse último critério, já que são revistas do campo de estudos
feministas e foram selecionadas pela possibilidade de constituírem um contraponto às
publicações do campo educacional - em outras palavras, quis também indagar: será que o
conteúdo dessas duas revistas divergem das publicações do campo educacional quando a
temática abordada gira em torno do conceito de gênero?
Partindo desses critérios, as revistas selecionadas foram: Cadernos de Pesquisa,
Educação em Revista, Educação e Pesquisa, Educação e Realidade, Educação e Sociedade,
39
Educar em Revista, Ensaio, Proposições, Revista Brasileira de Educação, Estudos Feministas
e Pagu.
O recorte temporal foi de 2009 a 2013, o que se justifica pela fato de, desde o início
dos anos 2000, vivenciarmos, de modo geral, em nosso país uma série de processos que
deram maior visibilidade para as temáticas das mulheres e feministas. Destaco aqui as três
conferências nacionais de políticas públicas para as mulheres – 2004, 2007 e 2011 – que,
apesar das críticas que podemos tecer a estes processos, demonstraram alguma abertura do
governo no sentido de pautar questões das mulheres e feministas como políticas públicas; a
criação da Secretaria de Política Pública para as Mulheres em 2003; e a entrada em vigor da
lei 11.340/2006, conhecida como lei Maria da Penha. Também podemos lembrar a criação do
SECADI que, instituída em 2004, nos seus primeiros anos, incentivou a formação continuada
nas temáticas de gênero, sexualidade e orientação sexual. Após uma década e sendo gênero
um conceito chave para muitas das construções que fazemos em torno da criação de uma
política igualitária entre mulheres e homens, proponho averiguar como gênero está sendo
considerado nos artigos acadêmicos, quais as temáticas em que ele está sendo mobilizado e se
estas produções estão preocupadas com questões do universo da educação formal, de modo a
criar um panorama sobre a produção em torno desta categoria e entender as formas como a
noção de gênero é mobilizada pelas pesquisas acadêmicas no campo educacional.
Como mencionado acima, a busca pelos textos foi feita via internet, onde foram
analisados, em ordem crescente: os títulos, os resumos e os textos na íntegra. Ao todo, tive
acesso a 2374 artigos, a partir dos sumários das revistas, excetuando-se desta contagem as
resenhas, entrevistas e notas de leitura. Deste universo, destaquei 118 artigos que citavam o
conceito de gênero, em seus títulos ou resumos, mas também nas palavras-chave utilizadas. A
partir da finalização da leitura das revistas e busca dos textos, procurou-se entender como
gênero estava sendo significado em cada artigo selecionado, a partir do recurso de localização
de palavras.
Do total de 118 artigos, temos 43 que definem gênero, procurando conceituar o termo,
usando interlocuções teóricas ou não. Uma das autoras que mais aparecem para essa definição
é Joan Scott e o seu texto mais citado é Gênero: uma categoria útil de análise histórica, nas
traduções de 1989 e 1995, além de haver o uso de versão em francês, de 1988. Trago aqui, a
título de exemplificação, citação de três artigos que a utilizam na definição de gênero:
Entendo gênero, de acordo com Scott, como uma categoria de análise que permite
mapear os significados da masculinidade e da feminilidade em um determinado
contexto sócio-histórico (ROSISTOLATO, 2009, p. 14).
40
por meio dessa definição de Scott, podemos afirmar que a produção de
generificações as quais, de forma rígida e absolutamente binária, separam os
mundos de meninos e meninas já é uma forma de poder, pois, enquanto retira e torna
passíveis algumas, acabam por empoderar outros (KNIJNIK, 2011, p. 778).
a categoria gênero passou a ser compreendida como socialmente construída e
produto de relações e ações sociais (SIMÃO, 2013, p. 179).
Como podemos observar nesses trechos e em leituras mais extensas dos artigos que
faziam de Scott sua interlocutora teórica, muitas vezes, somente uma pequena parte da
teorização de Scott é considerada para definir gênero. Nos artigos analisados, as referências
mais usuais eram as que definiam gênero como construção social, categoria de análise, caráter
relacional do conceito e que dá significado às relações de poder – definições pertinentes,
porém limitadas. Muitos destes artigos acabam não considerando importantes questões que
Scott relaciona ao conceito de gênero, tais como o questionamento aos binarismos, à noção de
fixidez, a importância de incluir na análise a noção do político, considerando para isso as
instituições e organizações sociais, além de ser importante articular gênero com questões de
classe e raça (SCOTT, 1989).
Além de Scott, as autoras mais recorrentes na conceituação de gênero são: Butler,
Rubin, Louro, De Lauretis, Nicholson e Connell, em argumentações em consonância com o
proposto por Scott.
Dos 118 artigos, 21 se situam na interface entre gênero e práticas escolares, o que é de
particular interesse para esta pesquisa. Considero neste grupo aqueles artigos que constroem
sua empiria no universo da escola, seja considerando as docentes como foco da pesquisa, seja
o corpo discente. Não foram localizadas pesquisas/artigos com outras atrizes do cotidiano
escolar, tais como funcionárias administrativas ou de merenda, inspeção de alunas etc. Os
artigos que consideram as práticas escolares estão bem distribuídos entre as revistas, como
demonstrado no gráfico abaixo:
Tabela 1 – Números de artigos que consideram as práticas escolares
41
Vemos que não há grandes discrepâncias entre as revistas do campo educacional e as
revistas feministas, pois ambas apresentam um número similar de artigos que consideram a
prática escolar: Educar em Revista e Estudos Feministas concentram os maiores números de
artigos nessa área, ambas com 4; já as revistas Educação em Revista e Ensaio são as únicas
publicações que não tiveram nem um artigo relacionando práticas escolares e gênero. Aliás,
não foi encontrado nessas duas publicações nenhum artigo que abordasse o conceito de
gênero. Quanto às temáticas focalizadas quando o conceito de gênero é considerado na
problematização das práticas escolares, identifiquei: orientação sexual entre adolescentes;
gênero e práticas de educação física; representações de gênero na educação infantil;
comportamento de meninas e meninos no espaço escolar; desempenho escolar comparativo
entre os sexos; ensino de arte articulado com gênero e matemática; gênero e sexualidade nas
práticas escolares; representações de docentes quanto à feminização da docência, as práticas
docentes e a docência masculina.
Gênero, quando não relacionado com práticas escolares, é usado para pensar as mais
diversas questões, como exemplifico nos trechos abaixo:
analisa o sucesso da boneca Barbie, os modos de educar meninas e os mecanismos
publicitários que configuram sua personalidade versátil e produzem certos modos de
pensar, agir e relacionar-se com o mundo (ROVERI; SOARES, 2011, p. 147).
Este trabalho propõe uma reflexão antropológica sobre os discursos e imagens do
corpo e da sexualidade na sociedade brasileira com base em um fenômeno social
particular: o surgimento do Viagra na esfera pública nacional (BRIGEIRO;
MAKSUD, 2009, p. 71).
O estudo apresenta os resultados de uma investigação etnográfica realizada entre os
participantes do Programa Bolsa Família no município de Campinas, Estado de São
Paulo. A análise parte de percepção, presente na fala dos entrevistados, de que o
‘Bolsa Família ajuda’ (PIRES, 2012, p. 130).
Nos exemplos acima vemos três usos diferentes para gênero: articulado com o
questionamento dos padrões de beleza; pensando a sexualidade a partir do uso de
medicamentos; e em um estudo sobre uma política governamental. Além destas temáticas,
temos o conceito de gênero sendo citado para pensar: imagens sobre corpo e sexualidade;
migração de mulheres; construção do masculino e feminino nos jornais; novos arranjos
familiares; comportamento de jovens; construção da identidade; história de vida; condições de
trabalho de professoras e qualidade de vida; trabalho doméstico; políticas públicas;
orçamentos municipais. Ao contrário do encontrado em levantamento que realizei
anteriormente, onde procuro entender como o conceito de gênero está sendo significado nos
42
trabalhos apresentados em dois encontros educacionais, não encontrei muitos artigos que
tratassem de temas como orientação sexual, lésbicas, gays ou homocultura, o que pode indicar
a invisibilidade das questões relacionadas a sexualidade e orientação sexual em círculos
acadêmicos educacionais de maior notoriedade, uma vez que a maior participação nos
encontros analisados são de estudantes de graduação, mestrado e doutorado, e este público
costuma não ser maioritário na autoria dos artigos das revistas analisadas (ROMÃO, 2012).
Ao pesquisar nos artigos acadêmicos como a noção de gênero estava sendo
considerada, deparei-me com artigos bem diversos: os que procuram conceituar gênero,
levando em conta toda a historicidade deste conceito; os que usavam o termo sem conceituálo; outros, ainda, que citavam a palavra gênero no título e/ou nas palavras-chave, porém não
retornavam ao termo ao longo do texto. Vemos que gênero, em muitos artigos, assume um
sentido naturalizado, como se o termo fosse autoexplicativo, quando, como apontado por
Scott (2012), o termo gênero faz parte, também, de uma disputa política por significação.
Gênero, quando conceituado, tem como referência preferencial Scott (1989). Também
constatei que não foram encontrados artigos que fizessem interseções entre a noção de gênero
e material didático, o que seria interessante para a pesquisa aqui desenvolvida.
Destaco ainda que, apesar de o termo ter se inserido no campo das Ciências Sociais,
suas contribuições para o campo educacional ainda são limitadas, principalmente, nos artigos
que consideram a prática escolar. Talvez isso se dê, como argumenta Rosemberg (2002), pelo
fato de que a área de Educação agrega diferentes temas de estudo, nem sempre articulados
com a educação escolar. O importante a considerar é que se quisermos construir uma
sociedade verdadeiramente igualitária, não só nas relações entre mulheres e homens,
precisamos, continuamente, interrogar os espaços formativos, para quem sabe, alterar algumas
práticas, formando cidadãs mais conscientes da necessidade do respeito e da preservação da
diferença.
1.4 O uso do conceito de gênero contemporaneamente: ainda há fôlego?
Durante minha trajetória na graduação e, agora, no mestrado, quando me questionava
a partir de leituras ou de professoras sobre se era válido o uso do conceito de gênero,
enquanto categoria que me permitiria discutir os processos sociais entre mulheres e homens,
em uma perspectiva de superação das desigualdades e que não invisibilizasse as mulheres e
43
suas trajetórias políticas, sempre ficava receosa, mas, por acreditar no potencial que o
conceito pode ter, venho tentando trabalhar com esse conceito, colocando muitos dos
questionamentos e problematizações que sua trajetória lhe impõe.
Afirmo isso, pois, conforme argumentado na seção anterior, o conceito de gênero
atualmente se dissocia de uma crítica feminista para estar incluído nos mais diferentes
estudos, sendo reconhecido enquanto uma categoria de análise. Desse modo, seus usos nem
sempre se desdobram em críticas que podemos tecer às formas como significamos o social,
assim corre-se o risco de que as, possíveis, desigualdades geradas, também, por meio de
estereótipos de gênero não recebam os questionamentos necessários para a sua evidenciação
como mecanismos que impedem a construção mais plena de mulheres e homens. Portanto,
torna-se importante que o trabalho com o conceito seja mais cuidadoso, atentando para os
diversos sentidos que o termo pode afirmar.
Por esses motivos, chego a esta sessão indagando se ainda há fôlego para o trabalho
com o conceito de gênero. No Brasil, por exemplo, documentos de políticas de promoção da
igualdade entre mulheres e homens muitas vezes recorrem ao termo gênero, para nomear suas
ações e público alvo das suas propostas. Isso em parte se dá pelo receio do uso de termos que
poderiam remeter ao feminismo:
Neste contexto, a categoria gênero, introduzida a rigor pelos órgãos municipais, é, às
vezes, empregada como contraponto ao feminismo, como revela uma entrevistada
ex-secretária da mulher: “a gente sempre lutou muito para não parecer feminista,
mas preocupada com a questão de gênero, homens e mulheres” (MARIANO;
GALVÃO, 2013, p. 4).
Ao usar gênero em uma deliberada fuga das lutas feministas, o termo acaba não
fazendo a crítica que julgo necessária, pois não desafia os padrões de gênero e não promove a
emancipação do feminino. Como apontado no levantamento das revistas acadêmicas, o uso
naturalizado do termo gênero leva a não interrogar os modelos estereotipados de condutas
para o feminino e para o masculino. Desse modo, gênero não é mais um conceito feminista,
dado que é usado por diferentes campos, podendo ter significados diferentes a depender do
contexto. Posso citar aqui como exemplo a votação na Câmara dos Deputados do texto do
Plano Nacional de Educação, em que o termo igualdade de gênero foi retirado, sob a alegação
de incitar a homossexualidade, demonstrando um entendimento raso do que gênero significa e
um retrocesso enorme para aquelas que lutam contra as discriminações.
Scott, em um texto de 2012, sinaliza uma situação equivalente, mas que ocorre na
França, onde o uso do termo gênero em um manual de ciências biológicas é questionado por
44
grupos católicos franceses que alegam uma promoção da homossexualidade no uso deste
termo. Para a autora, esse tipo de cena evidencia que “os significados do termo gênero estão
longe de serem resolvidos” (SCOTT, 2012, p.331). O seu uso acaba por criar uma definição
imprecisa e as tentativas de conceitualização se tornam lugar de um debate intenso. Podemos,
contudo, entender gênero tal como Scott (2012) propõe: como um suporte crítico, usado para
conter a discriminação contra as mulheres, que nos permite entender os significados do
feminino e do masculino no campo cultural, definidos pelas sociedades em que se inserem e,
portanto, passíveis de transformação. Sendo assim, defendo que o uso do conceito de gênero
como uma construção social, nos termos propostos por Butler e Scott, favorece a análise da
relação de mulheres e homens em termos de desigualdade e poder.
No início dos anos 2000, vivenciamos uma maior notoriedade das questões de gênero
na sociedade brasileira. Porém, essa notoriedade foi mais propositiva do que uma realidade
vivenciada pela sociedade como um todo, acabaram sendo construções pontuais de pouca
durabilidade ou distorcidas no seu encaminhamento. Elas são pontuais, por exemplo, nas
ações da SECADI que já ofereceu cursos de educação continuada na área de gênero e
diversidade sexual, mas agora esses cursos não estão mais disponíveis. E são distorcidos em
seu encaminhamento, quando não rompem com os estereótipos dominantes nas configurações
de gênero - exemplo disso são os projetos do governo que geram renda para as mulheres,
incentivando-as ao desenvolvimento da produção artesanal, mas deixando de questionar a sua
subordinação familiar e social, já que a produção artesanal não chega a proporcionar grandes
faturamentos e as mulheres acabam ficando subordinadas aos companheiros ou dependente de
outras fontes de renda (MARIANO; GALVÃO, 2013).
Deste modo, apesar de testemunharmos certo uso generalizado deste conceito, a
mobilização – no sentido da efetivação de uma igualdade entre mulheres e homens – da noção
de gênero ainda é um desafio teórico-político e empírico. Teórico-político, porque esse é um
termo em disputa, uma disputa pelo significado do que é ser mulher/homem,
feminino/masculino. E empírico, porque a igualdade que se busca promover na relação
menina-menino, mulher-homem, não está em geral presente no cotidiano da população. Ainda
encontramos dificuldade de ver mulheres e homens como equivalentes.
Encontramos, em nossa sociedade, números alarmantes que nos revelam altamente
machistas e sexistas, reafirmando em nossos comportamentos as desigualdades historicamente
construídas entre mulheres e homens. Temos como exemplo desta situação uma pesquisa
realizada pelo IPEA, cujo título é Tolerância social à violência contra as mulheres, publicada
no último dia 27 de março, com errata publicada em 04 de abril, onde se afirma que 26% das
45
pessoas entrevistadas acreditam que as mulheres que usam roupas que mostram o corpo
merecem ser atacadas e 58,5% concordam com a frase “se as mulheres soubessem se
comportar haveria menos estupros”11. Esses dados demonstram uma realidade onde as
mulheres permanecem como as culpadas pela violência que sofrem - culpadas, muitas vezes,
pelo simples fato de serem mulheres.
É por causa de dados dessa magnitude que precisamos avançar no entendimento social
sobre como se constitui as visões sobre feminino e masculino. Afirmamos ao longo do texto
que a linguagem se constitui como um sistema que nos ajuda a entender a forma como nós
seres humanos estamos construindo o mundo ao nosso redor. Esses significados da linguagem
em geral precisam do seu contexto sociocultural para ser compreendido, considerando as
incorporações políticas, as escolhas morais e éticas, gênero ao fazer parte deste processo de
significação, também irá constitui-se, como um lugar de lutas, onde se disputa sobre o que é
do campo da natureza e o que é do campo do social, não sendo redutível a polarizações
conservadoras ou revolucionárias (SCOTT, 2005; 2012). Assim, precisamos entender os
processos de produção do gênero na sociedade para que possamos ter a oportunidade de
questionar essas construções.
Ao entender como gênero é produzido na atualidade podemos nos interrogar sobre os
possíveis efeitos na forma como meninas e meninos se veem e como esse tipo de visão pode
impedir que mulheres e homens sejam tratados de forma igualitária, uma vez que o social os
ensinaria a se verem desiguais desde pequenos. Impedindo a promoção de uma sociedade
construída em padrões mais democrático. A tentativa de construção da noção de que os
sujeitos são iguais pode ser problemática em um primeiro momento para algumas pessoas,
mas afirmo uma visão de igualdade tal como formulada por Scott (2005, p. 15): “A igualdade
é um princípio absoluto e uma prática historicamente contingente. Não é a ausência ou a
eliminação da diferença, mas sim o reconhecimento da diferença e a decisão de ignorá-la ou
de levá-la em consideração”.
Sendo assim ao vermos mulheres e homens como iguais não negamos as diferenças
próprias que podem constituir esses grupos, mas estamos defendendo que ambos deveriam
possuir as mesmas possibilidades de atuar no social e que deveriam desenvolver suas
potencialidades sem reducionismos próprios de estereótipos. Ser mulher ou ser homem não
deveria, portanto, se constituir como uma prisão que engessa os seres lhes impondo maneiras
11
Pesquisa Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) – IPEA. Endereço eletrônico
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres_novo.pdf, último
acesso em 24 de junho de 2014.
46
de agir e formas de ser, mas sim possibilidades que deveriam se somar a outras, rompendo
dessa maneira com padrões de gênero fixos e binários. Com isso questionar continuamente as
formas que socialmente são estabilizadas para pensar não só o feminino, mas também o
masculino, se torna importante para em primeiro lugar reconhecermos os mecanismos de
produção, e em segundo poder promover esforços na tentativa de romper com esses
mecanismos. Ao realizar esses processos poderemos contribuir com a construção de
sociedades plurais, onde as pessoas poderão se expressar de diferentes maneiras sem se
preocupar com os estereótipos.
Ao utilizar o conceito de gênero como referência para a pesquisa aqui desenvolvida o
vejo como possibilidade de realizar uma crítica onde resgato as formas como o feminino foi
historicamente significado na figura das mulheres, para tentar entender se com todas as
transformações que esse feminino sofreu ao longo do tempo podemos encontrar nos materiais
didáticos da contemporaneidade um feminino que não se remeta a condutas em consonância
com os modelos tradicionais, que seja composto por personagens femininas que atuam em
diversos espaços e que suas contribuições sejam lembradas nas disciplinas que compõem o
currículo das escolas.
No próximo capítulo trago alguns marcos do processo de escolarização das mulheres
para que possamos entender como o acesso a escola para elas foi secundarizado e durante
muito tempo reforçava seus papéis tradicionalmente instituídos: o do ser esposa e o de ser
mãe. Ainda neste capítulo trago a história do livro didático, querendo pontuar como surge o
livro no cenário nacional e como passa de material escolar para objeto de pesquisa, para enfim
tecer questões acerca da interseção deste material com práticas sexistas.
47
2 SOBRE A EDUCAÇÃO FEMININA NO BRASIL
[...] há uma incômoda ambiguidade inerente ao projeto da história das
mulheres, pois ela é ao mesmo tempo um suplemento inócuo à história
estabilizada e um deslocamento radical dessa história 12.
J. Scott
A problematização dos sentidos de feminino afirmados em materiais didáticos
destinados, na contemporaneidade, à educação de jovens adolescentes, além do estudo sobre a
situação atual da mulher na sociedade brasileira, exposto em síntese na introdução desta
dissertação, e da discussão do conceito de gênero, que mobilizamos para desenvolver a
problemática proposta, demandou também o resgate da trajetória histórica da educação das
mulheres no Brasil, com destaque para a questão do livro didático. Não é tarefa simples para
se desenvolver no tempo de um mestrado, posto que implica a leitura crítica das diferentes
versões historiográficas existentes.
Ainda que não se tenha feito o panorama com a amplitude que poderia se desejar,
julgamos importante dialogar com estudos desenvolvidos em contraposição a perspectivas
historiográficas tradicionais, que não se ocupam da história dos grupos sociais
subalternizados, ao menos não considerando a visão desses grupos. Desse modo, trazemos a
leitura de Louro (1997), Gouvêa (2003), Schumaher & Vital (2000), Saffioti (2013) que
abordam especificamente as mulheres e suas trajetórias, problematizando, inclusive as
invisibilizações que as mulheres sofreram na nossa História mais conhecida. Refiro Freyre
(2003) e Ribeiro (1995), autores consagrados nas Ciências Sociais, para trazer aspectos gerais
de períodos históricos considerados. Já nas seções referentes à questão da educação nãosexista, temos como referência documentos destinados à educação no território nacional, e as
autoras Vianna & Unbehaum (2004), Carvalho (2009) e Auad (2006). Para traçar um histórico
sobre o livro didático no Brasil, trazemos Freitag, Motta & Costa (1989), Hofling (2000) e
Choppin (2004), e, para pensar sobre o sexismo nos materiais didáticos, lemos também
Rosemberg (2009), Negrão & Amado (1989).
12
SCOTT, J. História das mulheres. In: BURKE, P. A escrita da história. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
48
Ao ressaltar os limites deste estudo quanto à construção de um panorama
historiográfico, queremos destacar que entendemos sim que o campo da História é um campo
também em disputa, e estamos fazendo a opção deliberada de contar uma história baseada em
algumas versões historiográficas. Reafirmamos que os acontecimentos aqui narrados foram a
narrativa escolhida para estar aqui, e que outras histórias poderiam ser contadas. Mas as que
são aqui mencionadas fazem parte da tentativa de construção de uma historiografia das
mulheres, onde se procura colocar em cena um público que durante muito tempo foi posto à
margem da história. Privilegio, portanto, as autoras que contam a história da escolarização
feminina com um viés crítico, analisando as especificidades históricas dos períodos
considerados.
De uma maneira geral, a historiografia que sobrevive em nosso cotidiano é aquela
contada pelos homens brancos, nomeados, por eles mesmos, como os conquistadores. Digo
isso, pois, até hoje as histórias mais contadas a nós, seja em livros ou mesmo em filmes são
aquelas que possuem os países do norte como salvadores, descobridores e como modelos a
serem seguidos. No último século, de uma forma mais intensa, houve uma série de
resistências a essa versão única da historiografia, não só do Brasil, mas também do mundo,
em geral, porém as tentativas de reconstrução de outras histórias encontram uma série de
barreiras.
Apesar desses entraves, estamos avançando na visibilidade de personagens históricos
antes esquecidos, muitas vezes, mulheres, negras e negros, indígenas que contribuíram com a
formação do que podemos denominar povo brasileiro, exemplos de resistência contra o
domínio e ansiosos pela construção de uma nação que respeite suas origens e que contribua
com sua formação cidadã. Essa visibilidade, entendida como a possibilidade destes
personagens serem mencionados e reconhecidos como atuantes na construção do nosso país,
se torna muito importante para que aprendamos a respeitar a diversidade formada nesse
grande território e a valorizar nossa formação.
Este capítulo possui como objetivo apresentar versões historiográficas desenvolvidas
em contraposição às perspectivas tradicionais, acerca do processo de escolarização das
mulheres no Brasil. Destacam-se momentos e aspectos cujos rastros julgo ainda presentes e
influentes na contemporaneidade. Pontua, também, a construção de uma educação nãosexista, que procura romper com os estereótipos sobre mulheres e homens dentro do espaço
escolar. Terminamos trazendo para a cena o livro didático, marcos da sua história e como
pode ou não contribuir para a valorização da diferença na formação de estudantes e
professoras.
49
2.1 A educação de mulheres no Brasil
Ao escrever sobre os marcos históricos da educação das mulheres, inicio pontuando
processos educacionais que se dão antes da sua entrada formal na instituição escolar. Segundo
Louro (1997), o acesso mais amplo e formal à escola para todas e todos começará a ocorrer no
Brasil em 1827. Tendo nossa terra, oficialmente, recebido europeus desde 1500, vemos que
foram trezentos anos com graves restrições ao acesso formal à educação. Mas como era a
educação das mulheres fora da escola, no Brasil colônia?
Como pontua Ribeiro (1995), a sociedade brasileira, nesse momento, era formada por
três tipos distintos de mulheres: as senhoras reclusas portuguesas – que só chegariam aqui por
pedido dos padres, preocupados com a rapidez com que os portugueses se relacionaram com
as mulheres nativas –, as indígenas e as negras escravizadas. Mulheres diferentes entre si, mas
todas subalternizadas e subservientes aos mandos e desmandos dos homens brancos. Nesse
momento, o corpo feminino servia ao português, europeu em maior número na nova terra, em
servidão que frequentemente não era amigável - de fato, muitos foram os estupros cometidos.
E no caso das indígenas, além da satisfação sexual, os portugueses tinham outros interesses, já
que, ao engravidar as indígenas, tornavam-se parentes das demais pessoas da tribo, fato
conhecido como “cunhadismo”. Desse modo, conseguiam ajuda na extração, por exemplo, de
pau-brasil.
Uma passagem de Darcy Ribeiro (1995, p. 82) expressa bem essa situação:
Há amplo registro dessa prática entre os cronistas e também avaliações de sua
importância devidas a Efraim Cardoso (1959), do Paraguai, e Jaime Cortesão
(1964), para o Brasil. A documentação espanhola, mais rica nisso, revela que em
Assunção havia europeus com mais de oitenta temericó. A importância era enorme e
decorna de que aquele adventício passava a contar com uma multidão de parentes,
que podia pôr a seu serviço, seja para seu conforto pessoal, seja para a produção de
mercadorias.
Vemos aqui que as mulheres indígenas eram usadas pelos portugueses em distintos
âmbitos, uma vez que, além da satisfação sexual, eles também tinham recompensas
econômicas ao manterem relações com essas mulheres. E pouco se sabe sobre como elas se
sentiam tendo que servir a homens não pertencentes à sua cultura. Mas para as mulheres
portuguesas a situação não era tão discrepante, divergindo basicamente em um ponto: elas
tinham que casar com os portugueses. Quando começaram a chegar em terras brasileiras, a
pedido de padres jesuítas, essas mulheres tinham como função casar e procriar, já que
50
Portugal se preocupava com a falta de portugueses legítimos na nova colônia. Nesses
casamentos as mulheres chegavam a ter quinze ou vinte filhos (RIBEIRO, 1995).
É praticamente consensual o entendimento historiográfico de que a presença inicial
dos portugueses em terras brasileiras tinha como objetivo a extração das riquezas naturais que
pudessem encontrar, sendo o Brasil nesse momento, uma colônia de exploração. Desse modo,
em geral, os portugueses não pretendiam construir residência no Brasil, o que os levava a não
se preocuparem e a não quererem construir escolas, organizar cidades etc. Registra-se que o
modelo de educação formal mais usual era aquele advindo dos padres jesuítas que
catequizavam, ensinavam as primeiras letras e queriam pacificar os indígenas, educação essa
restrita aos homens indígenas, uma vez que era considerado heresia ensinar as mulheres
(RIBEIRO, 1995).
A educação das mulheres nesse momento era aquela voltada para aprendizagem de
atributos que pudessem contribuir com a formação de uma boa esposa, tais como costurar,
cozinhar, bordar, como se portar.
A educação das meninas era muito diferente da dos
meninos, pois a estes eram permitidas todas as liberdades, enquanto o ideal de menina era
aquela quieta, casta, tímida. Mesmo Gilberto Freyre (2006, p. 510), autor que não costuma se
identificar com a causa feminista, afirma: “À menina, a esta negou-se tudo que de leve
parecesse independência. Até levantar a voz na presença dos mais velhos. Tinha-se horror e
castigava-se a beliscão a menina respondona ou saliente; adoravam-se as acanhadas, de ar
humilde”. Ambos, meninas e meninos, eram alvo da opressão gerada pelos estereótipos de
gênero, pois, se à menina era cobrado um ar humilde e casto, aos meninos era cobrado, a
partir dos dez anos de idade, que fossem homens, tendo já que se impor no trato com as
mulheres e com os negros escravizados. A educação formal das mulheres, ou seja, o ensino
das letras, matemática e outras disciplinas, era considerada uma heresia social, tanto em
Portugal, quanto no Brasil. As mulheres só tinham acesso à instrução formal se frequentassem
conventos.
É importante destacar que este panorama – educar para o casamento – não era a
realidade de todas as mulheres, aliás, não era realidade para a maioria das mulheres. As
mulheres pobres e escravizadas lidavam com o trabalho duro desde pequenas. Essas mulheres
eram, muitas vezes, forçadas, pelas condições adversas, a desempenharem os papéis ditos
masculinos e trabalhavam para prover seu sustento e o de sua família. Em muitos casos, as
mulheres constituíam a chefia da família, sendo o seu salário o único das residências, como
pontua o censo de 1833 de uma província mineira, que afirma “as mulheres constituíam a
maioria das chefias dos fogos (domicílios) da província” (GOUVÊA, 2003, p. 3).
51
Para Faria (apud GOUVÊA, 2003), o governo das casas e das famílias sendo feito por
mulheres teria implicado em certa permissividade sexual, que fugia do que era considerado
normal, ou seja, o modelo europeu. O certo é que, provavelmente, por terem outras
possibilidades de vida, essas mulheres acabavam por circular em espaços sociais variados, de
certo modo, integrando-se à vida social, política e econômica do Brasil de então. Elas eram
numerosas no comércio ambulante, nas vendas de alimentos e bebidas e também da indústria
têxtil. Tendo outras experiências de vida, não condizentes com o modelo padrão, essas
mulheres eram muitas vezes nomeadas como desvirtuosas, promíscuas. Porém, além de serem
exemplos de resistência aos estereótipos que a sociedade tenta nos impor, mostram-nos a
heterogeneidade das vivências femininas em espaços-tempos muitas vezes narrados de forma
metonímica.
A figura de Francisca da Silva de Oliveira, Chica da Silva, exemplifica bem essa
situação. Negra escravizada que, segundo Schumaher & Brazil (2000), foi alforriada pelo
desembargador João Fernandes de Oliveira, com quem teve 13 filhos, Francisca da Silva
procurou se colocar na sociedade branca e excludente de Minas Gerais, fato esse possível pelo
concubinato com o desembargador, mas também por suas escolhas políticas e econômicas.
Ela procurou adquirir bens e se inseriu nas principais irmandades do arraial do Tijuco, onde
residia, mesmo sem a presença do desembargador, que teve que voltar ao Reino, Chica
manteve-se como uma senhora respeitada no arraial. Também educou as filhas de acordo com
os costumes da época, tendo como principal objetivo arranjar bons casamentos para elas. Mas,
como afirma Schumaher & Brazil (2000, p. 149):
A imagem de Chica da Silva que se popularizou em nossos dias foi a de uma mulher
imoral que abusava da sensualidade para conseguir o que queria. Este é, entretanto,
um dos estereótipos do papel que a mulher negra ocupou na sociedade colonial,
construído pelos historiadores a partir do século XIX.
Mais do que resistência a estereótipos, essas mulheres mostram que o modelo ideal do
ser mulher não poderia ser o mesmo para todas, o que acaba por desconstruir as narrativas
lineares tão presentes na historiografia oficial.
Vemos até aqui que a educação das mulheres, quando acontecia, era pensada
exclusivamente para sua atuação enquanto esposa, que não era uma aprendizagem de leitura,
escrita, matemática, essa reservada para as mulheres que prestassem serviços religiosos.
Portanto, até o final do século XIX, o Brasil era um país majoritariamente analfabeto e a
instrução não se constituía como um valor social (LOURO, 1997; SAFFIOTI, 2013).
52
Algumas iniciativas de escolarização formal da população começaram ainda durante o
Império. A Constituição de 1823, reconhecida como de cunho liberal, trouxe para a arena
política a discussão sobre a educação nacional. Desse modo, a lei assinada em 15 de outubro
de 1827 estabelece as escolas de primeiras letras, definindo que:
Haverão [sic] escolas de primeiras letras, que se chamarão pedagogias, em todas as
cidades, vilas e lugarejos mais populosos do Império. [...] Serão nomeadas mestras
de meninas e admitidas a exame, na forma já indicada, para cidades, vilas e
lugarejos mais populosos, em que o presidente da província, em conselho, julgar
necessário este estabelecimento, aquelas senhoras que por sua honestidade,
prudência e conhecimentos mostrarem dignas de tal ensino, compreendendo também
o de coser e bordar (ANAIS DO PARLAMENTO BRASILEIRO apud SAFFIOTI,
2013, p. 273-274).
Podemos observar, por esta citação, que o currículo das escolas femininas reforçava o
estereótipo dominante de dona de casa, dado que se pautava mais na “educação da agulha do
que a instrução”, como afirma Saffioti (2013, p. 276). Além de estar focado na aprendizagem
de afazeres domésticos, o currículo das mulheres só tinha as quatro operações de matemática,
ficando a geometria para o currículo masculino. Interessante é saber que, naquele momento,
ao ensinar geometria, o salário da pessoa que regesse a turma subia em dois níveis: como as
mulheres não poderiam lecionar essa disciplina, ficavam com a pior remuneração da época.
Como definido acima, as “pedagogias” seriam instauradas em lugares mais populosos,
mas a força da lei não sustentou sua aplicabilidade plena. Um dos obstáculo foi o fato de não
haver professorado para assumir, conforme exigido na lei, as turmas abertas. As mulheres só
poderiam lecionar nas chamadas pedagogias, ou seja, nos anos iniciais da escolarização,
ficando o ginásio, liceus e academias para a população masculina, tanto como mestres quanto
como estudantes, já que nesse momento uma mulher não poderia lecionar em uma turma de
meninos e vice-versa.
As mulheres mestras que formavam resistência a tal organização curricular sofriam
duras críticas, podendo inclusive perder o ordenado. Temos o exemplo de Benedita Trindade,
que dispensava as meninas dos trabalhos manuais para ensinar a leitura, a escrita e o cálculo.
E também Maria da Glória do Sacramento, que perdeu seu ordenado, acusada de não ter
ensinado as prendas domésticas (LOURO, 1997; SAFIOTTI, 2013).
Nesse momento, a educação não era universal, sendo ofertada apenas em lugares
populosos e não para toda a população, fazendo com que os processos educacionais não
fossem únicos. As divisões de sexo, classe, etnia e raça eram explicitamente relevantes na
forma como meninas e meninos seriam educados para se tornarem mulheres e homens. Em
53
uma sociedade escravocrata, as crianças negras escravizadas eram obrigadas ao trabalho
forçado e a lutar pela sobrevivência desde cedo, assim como as crianças das camadas
populares que estavam envolvidas em trabalhos: as meninas, por exemplo, realizavam tarefas
domésticas, trabalhavam na roça, cuidavam dos irmãos menores (LOURO, 1997).
A escolarização não constituía um ideal para as famílias, que viam na obrigação da
matrícula uma intervenção do Estado na educação de suas filhas, uma vez que além de
suspeitarem da educação dada a suas filhas também perderiam a mão de obra durante uma
parte do dia. As escolas femininas, somando-se às dificuldades no encontro de mestras,
tinham também a baixa frequência feminina, já que os saberes ministrados na escola, mesmo
tão restritos, eram muitas vezes tidos como potencialmente perigosos - ou seja, a instrução
feminina, ainda que bastante conservadora, era entendida como contraposta aos valores
tradicionais que predominavam naquela sociedade. Porém, na época, em disputa com esta
perspectiva, vislumbrava-se a educação das mulheres se constituindo como primordial para a
formação de uma família mais sólida, já que as mulheres, dotadas da leitura e escrita,
poderiam educar suas filhas e filhos na privacidade do lar, condizente com o modelo europeu
de uma sociedade civilizada e ordeira (GOUVÊA, 2003).
Com a Proclamação da República, em 1889, podia se esperar uma transformação
radical em vários setores da sociedade brasileira, o que não ocorreu. Em muitos aspectos, a
primeira fase da República se constitui como uma continuação do que vinha sendo feito no
final do Império. Segundo Azevedo (apud SAFFIOTI, 2013) a República não promoveu uma
transformação radical no sistema de ensino brasileiro e, assim, não renovou intelectualmente
as elites culturais e políticas como seria necessário à instauração da democracia.
Na virada do século, as contribuições vindas de grupos de trabalhadores organizados
em torno de ideais políticos – anarquismo e socialismo – apresentavam propostas de educação
e criavam escolas, incluindo a educação feminina. Os jornais libertários apontavam a
instrução formal como possibilidade de as mulheres se libertarem. A educação da mulher
estava então vinculada à modernização da sociedade e à higienização da família. Novas
matérias eram introduzidas na formação feminina, matérias essas inspiradas em ideias
positivistas e cientificistas. Veríssimo, que escreve em 1890, após a Proclamação da
República, em favor de uma nova educação para as mulheres, afirma:
A mulher brasileira, como a de qualquer sociedade da mesma civilização, tem de ser
mãe, esposa, amiga e companheira do homem, sua lida na luta da vida, criadora e
primeira mestra de seus filhos, confidente e conselheira natural de seu marido, guia
de sua prole, dona e reguladora da economia da sua casa, com todos os mais deveres
correlativos a cada uma destas funções (apud LOURO, 1997, p. 448).
54
Ou seja, não há nenhuma novidade na concepção de educação feminina com o advento
da nova ordem social. As mulheres que tinham acesso à educação formal continuariam sendo
educadas segundo o ideal da função de esposa e mãe. Mas já começara a se afirmar, ainda no
século XIX, a possibilidade de as mulheres exercerem a profissão docente. São então criadas
as chamadas escolas normais, que pretendiam entre outros objetivos: suprir a demanda da
falta de professorado adequado; a criação de uma nova moral do trabalho, para que não fosse
visto como degradante; possibilidade de ocupação para as mulheres das camadas populares,
sem entrar em conflito com aquelas que seriam suas funções principais.
As escolas normais foram abertas para ambos os sexos, em classes separadas. Com o
passar dos anos, observou-se que elas formavam mais mulheres que homens, acontecendo,
assim, uma feminização do magistério, fato observado no país como um todo. Podemos
destacar algumas causas para esse fenômeno, tais como: abandono das salas de aulas pelos
homens, que tinham outras possibilidades de emprego, já que o processo de urbanização e
industrialização ampliava as oportunidades de trabalho; maior intervenção e controle do
Estado sobre a docência; baixa remuneração. Nesse processo, afirma-se que a profissão
docente tem características femininas e muitas vezes a função será atrelada a uma espécie de
sacerdócio. Desse modo, as professoras se constituem segundo um modelo de trabalhadoras
pacientes, afetuosas, dedicadas e dóceis. É claro que esse discurso teve oposição, mas essa
versão da história foi secundarizada, prevalecendo a visão das professoras como
heroínas/missionárias que dão a vida pelo trabalho (LOURO, 1997).
Em termos educacionais mais amplos, podemos afirmar, segundo Saffioti (2013), que
a educação, nesta primeira fase da República, ainda era formada por polos distintos: as
escolas que forneciam instruções para as classes populares e aquelas que formavam as elites
dirigentes, em que podemos destacar o Colégio Pedro II, que só irá permitir o acesso das
mulheres no século XX. Até 1930, eram poucas as mulheres que davam continuidade aos
estudos, acessando o segundo sistema de ensino e diplomando-se. Ainda segundo Saffioti
(2013), é somente a partir da movimentação política de 1930 que a educação sofrerá uma
remodelação. Já em 1931, o ensino secundário se transforma e as escolas normais são
reformadas, sendo a coeducação uma possibilidade. O curso normal passa a oferecer
formação profissional que habilita para o magistério primário e exige das candidatas o
certificado de conclusão do curso ginasial de cinco anos. Um marco deste período é a
assinatura da lei que garante o sufrágio feminino, em 1932, possibilitando que as mulheres
alfabetizadas possam exercer uma faceta tão cara à cidadania e, também, incentivando,
indiretamente, a alfabetização feminina.
55
Em 1939, é possibilitado o ingresso das normalistas em alguns cursos da Faculdade
Nacional de Filosofia, porém as mulheres ainda teriam um longo caminho para que, além de
se matricularem nos cursos superiores, pudessem concluí-lo. Esse caminho passa pela
reformulação dos seus papéis, rompendo com o valor social do casamento como único
horizonte de realização feminina e estabelecendo a possibilidade de as mulheres terem uma
carreira profissional. Em 1942, por exemplo, há um retrocesso, com a Reforma Gustavo
Capanema, que estabelece a criação de classes exclusivamente femininas.
Com o pacto populista, de 1945 até 1964, a educação não se expande muito, mantendo
seu caráter aristocrático. Em 1961, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, todos os
cursos de nível médio se tornam equivalentes e, assim, as mulheres que cursam o ensino
normal passaram a poder concorrer a vagas em todas as faculdades, sem distinções
(BELTRÃO; ALVES, 2009).
No período da última ditadura militar do país, houve aumento no número de vagas,
principalmente as de cunho profissionalizante. Observou-se, também, um incremento na pósgraduação. Essa tendência continua no período da redemocratização e, já nos anos de 1990,
temos no país a formulação de políticas públicas, de forma mais intensa, para a manutenção
de crianças na escola e um esforço explícito no sentido de universalizar a educação básica.
A universalização da educação básica e a reversão das barreiras educacionais para as
mulheres são demandas de políticas internacionais, que o Brasil assinou, entre elas: IV
Conferência de Mulheres (1995); Fórum Mundial de Educação (2000) e as Metas do Milênio
(2000). A adesão a tais iniciativas gerou uma pressão interna ao país, para que o Estado se
mobilizasse na concretização dos acordos assinados. Mas, também, não podemos deixar de
ressaltar que os movimentos sociais no próprio país reivindicavam uma realidade diferente
para a população como um todo. Posso destacar aqui toda a movimentação feita pelas
mulheres durante a Constituinte, que ficou conhecida como lobby do batom. Um dos slogans
desse processo era “Constituinte pra valer tem que ter direitos de mulher”. Assim, com toda
campanha que foi feita, 85% das suas propostas foram incorporadas ao texto final, e
mostraram, mais uma vez, que o papel da mulher na sociedade brasileira estava redefinido.
A ampliação do acesso feminino à escola, acima sintetizada pela referência a marcos
históricos dessa trajetória, levou à superação, na atualidade, do chamado hiato de gênero.
Segundo Beltrão e Alves (2009), essa expressão é usada quando há diferenças sistemáticas
nos níveis de escolaridade entre mulheres e homens, evidenciando as desigualdades do acesso
à escola entre os sexos. Hoje, as mulheres possuem, em média, mais anos de estudo do que os
homens. No entanto, esse suposto triunfo na educação não se concretiza em outras áreas,
56
como pudemos ver em outra seção. Ainda persiste o sexismo nas carreiras acadêmicas, onde
há uma predominância feminina em carreiras relacionadas ao cuidado, como pedagogia e
enfermagem e que, por sua vez, são em geral de menor remuneração e prestígio social. Por
que isso ainda acontece?
A falta de opção para as meninas pode ser uma resposta para essa questão, uma vez
que, desde crianças, muitas vezes só temos acesso a uma possibilidade de mundo, aquele do
cuidado, do comportamento recatado, o que pode restringir nossa maneira de nos inserirmos
em outras atividades sociais. É objetivo da próxima seção desenvolver a temática do sexismo
na educação, de modo a melhor localizar este estudo.
2.1.1 Rompendo com os estereótipos: mobilizações por uma educação não-sexista
Se na colonização brasileira as mulheres eram vistas como sem voz e sem vez, não
participavam da vida político-social do país e seu lugar era o lar, como vimos com Louro
(1997) e Saffioti (2013), por exemplo, atualmente, já temos outros modos de ser mulher
disseminados no social, como já afirmado. Foi, principalmente, através do movimento de
mulheres e feministas que as mulheres redefiniram seus papéis sociais e políticos, podendo
contribuir em igualdade aos homens nos vários setores que formam a sociedade: um dos
marcos desse processo é a possibilidade de instrução formal em todos os níveis de ensino
(PINSKY; PEDRO, 2008; MORAES, 2008).
Na contemporaneidade, insistimos em ter uma visão da mulher como sujeito de
direitos, idênticos aos que os homens possuem. Porém, quando olhamos os indicadores
sociais, os dados destoam, ou seja, há um princípio de igualdade de direitos entre homens e
mulheres, mas que muitas vezes não se concretiza. Um dos vetores que participa deste
processo é a educação escolar. Quando as teorizações sobre gênero se iniciaram, na segunda
metade do século XX, muitas feministas postularam que uma forma de combater as
desigualdades de gênero seria investir em uma educação não-sexista, em que não houvesse a
afirmação da superioridade de um sexo sobre o outro. Mas, sendo nossa sociedade construída
a partir da visão do homem branco europeu, heterossexual e machista, introduzir questões
vistas como feministas na escola tem sido uma tarefa muito difícil.
Assim, sobrevivem as naturalizações com as quais estereotipamos mulheres e homens.
Exemplo disso é o fato de meninas e meninos ingressarem na escola com o mesmo número de
57
matrículas, mas terem trajetórias escolares distintas, que culminam, entre outras coisas, com o
registro de evasão escolar maior entre os meninos e com uma tendência em que as e os jovens
optem por escolhas profissionais em consonância com papéis de gêneros tradicionais. Esses se
constituem, geralmente, como os de cuidado para as mulheres, como pedagogia, enfermagem,
e os de notoriedade e salários mais altos para os homens, como engenharia, medicina. Em
matéria publicada no jornal O Globo13, sobre a presença de mulheres na Ciência, afirma-se
que só há 22 mulheres cientistas com menos de 40 anos no topo de carreira, contra 136
homens, o que resulta em uma média de presença de 6 homens para cada mulher.
Se em parte a masculinização da Ciência é um fenômeno mundial, como afirma a
matéria, acredito que a pouca visibilidade que as questões de gênero possuem no campo
educacional brasileiro tendem a perpetuar localmente fenômenos tais como descritos acima.
Assim, um dos objetivos desta parte da dissertação é tentar entender a atenção que é dada às
questões de gênero nas políticas educacionais brasileiras, olhando primeiramente paras as leis
que regem o processo educativo na atualidade do país e, em seguida, para dois documentos:
CONAE (Conferência Nacional de Educação) e do PNPM (Plano Nacional de Políticas para
as Mulheres). São documentos atuais, onde se articulam demandas da sociedade civil e dos
governos.
Ao realizar uma pesquisa sobre como gênero aparece nas políticas educacionais
brasileiras, Vianna e Unbehaum (2004) consideraram a Constituição Federal de 1988, a lei
9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o Plano Nacional de Educação (PNE),
em vigor na época, e os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (PCNEF).
A partir da análise destes documentos, as autoras constataram que, na Constituição, na LDB e
no PNE, a forma como as questões de gênero são tratadas tem características distintas em
relação ao modo como são abordadas no PCNEF. A primeira diz respeito à forma como a
linguagem é utilizada, pois opta-se pelo genérico masculino:
Se, por um lado, o masculino genérico por elas empregado expressa uma forma
comum de se manifestar, por outro, seu uso – especialmente em textos que tratam de
direitos – não é impune, pois a adoção exclusiva do masculino pode expressar
discriminação sexista e reforçar o modelo linguístico androcêntrico (VIANNA;
UNBEHAUM, 2004, p.34).
Muitas vezes a utilização do masculino é referida como uma norma da gramática,
porém, a gramática também é uma construção sociocultural e pode repetir desigualdades de
gênero afirmadas no social em geral, acabando por também trabalhar performativamente pela
13
Matéria publicado no jornal do dia 29 de Abril de 2014.
58
invisibilização das mulheres. A forma como a linguagem escrita é tratada se torna muito
importante para nossas análises, já que nosso suporte teórico – Derrida, Butler e Scott –
partem, também, da ideia de que a língua, ao significar, também está construindo o social. Ou
seja, ao se privilegiar o masculino na escrita também temos que estar atentas ao que nos
dizem as ausências que dessa forma se criam.
A segunda característica apontada pelas autoras na análise desses documentos diz
respeito à questão dos direitos, que não são abordadas diretamente. No entanto, as ações e
diretrizes dos documentos acabariam por promover a igualdade de gênero. Vianna e
Unbehaum (2004) afirmam que é preciso ler nas entrelinhas para ver pequenos avanços
quanto às questões de gênero, como, por exemplo, na defesa da educação de crianças
pequenas, para além do cuidado e da assistência. Esse fato faz com que a educação dessas
crianças deixe de ser só responsabilidade materna e passe a ser, também, do Estado, que deve
oferecer atendimento em creches e pré-escolas, liberando as mães e ou responsáveis para o
trabalho, estudo etc. Essa demanda é antiga do movimento de mulheres e feministas que, após
campanha durante a constituinte, conseguiram incorporá-la na lei, embora a educação infantil
ainda não tenha uma grande cobertura no território nacional. Segundo dados dos Indicadores
Sociais do ano de 2012 disponibilizados pelo IBGE somente 21,2% das crianças brasileiras de
0 a 3 anos frequentam algum estabelecimento de ensino (IBGE, 2013). Portanto, apesar dos
documentos terem como meta a expansão da cobertura para crianças pequenas, o que,
concordando com as autoras, pode ser visto como benéfico para as mulheres, vemos aqui que
a força da lei não conseguiu se fazer presente na construção de estabelecimentos públicos que
atendam à demanda da educação infantil.
A terceira forma destacada pelas autoras para problematizar como as questões do
gênero são tratadas nesses documentos diz respeito especificamente ao Plano Nacional de
Educação, onde está presente em poucos tópicos, mas que as autoras avaliam como um
avanço em relação ao plano anterior e à própria LDB. A preocupação com o gênero aparece
na avaliação do livro didático, que deve abordar as questões de gênero e etnia, sem
discriminação; no tópico referente ao ensino superior, sugere-se que nos cursos de formação
docente haja diretrizes curriculares que incluam a abordagem das questões de gênero em ótica
contrária à subalternização feminina, em consonância com um ideal de igualdade. As críticas
de Vianna e Unbehaum (2004) focalizam a forma como gênero é tratado quando se fala do
acesso de meninas e meninos ao ensino fundamental: com matrículas equilibradas no início da
vida escolar, o plano não considera as trajetórias escolares desses grupos após esse marco
inicial.
59
Ao considerar os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental
(PCNEF), as autoras afirmam que: “É nesses documentos que as questões de gênero
aparecem, evidenciando zelo e cuidado com muitos dos aspectos relativos aos significados e
às implicações de gênero nas relações e nos conteúdos escolares” (VIANNA; UNBEHAUM,
2004, p. 39). As formas como gênero é tratado ou onde está localizado estão longe de serem
ideais, mas demonstram avanços que as outras leis e documentos não tiveram. Gênero aparece
nos PCNEF nos volumes dedicados aos Temas Transversais, que são temáticas que deveriam
atravessar as disciplinas curriculares, não tendo um lugar exclusivo: Ética, Meio Ambiente,
Saúde, Pluralidade Cultural e Orientação Sexual. Na análise de Vianna e Unbehaum (2004),
gênero só seria explorado de forma mais enfática neste último tema, onde haveria um
interesse em questionar as formas tradicionais com que vemos mulheres e homens. Mas, ao
mesmo tempo, a forma como gênero, neste documento, é discutido acaba referindo-se,
exclusivamente, às questões de saúde, especificamente no trato das doenças sexualmente
transmissíveis e sua prevenção, limitando as possíveis críticas que poderiam ser feitas
relativamente aos padrões de condutas estabelecidos culturalmente, ficando, assim, no
trinômio corpo/saúde/doença.
Ao finalizar as análises dos documentos, as autoras concluem que há um saldo
positivo na referência aos direitos humanos e na abertura de demandas nas políticas públicas
nas leis e documentos analisados, mas, por outro lado, há também, uma falta de radicalidade
quanto às demandas de gênero, principalmente no PNE, que foi feito em um contexto onde as
questões de gênero estavam no centro de debate e onde havia um maior conhecimento destas
questões. Esta última conclusão nos remete ao cenário atual, onde o PNE 2011-2020 foi
aprovado, mas a parte que se referia a gênero foi suprimida. Essa supressão fez parte de uma
campanha, em que fundamentalistas religiosos combatem o que chamam de ideologia de
gênero, argumentando que o uso do termo poderia corromper a família tradicional. O impacto
desta retirada ainda é algo a ser avaliado, assim como a consolidação do plano como um todo,
que já é aprovado com um atraso de três anos. Podemos afirmar que um dos possíveis
impactos é a invisibilidade que desigualdades que perpassam por questões de gênero podem
ter, impedindo que a sociedade de forma ampla as debata e impedindo, também, que o campo
educacional possa mobilizar esforços na construção de práticas não-sexistas. Mas a retirada
do termo me faz temer pela viabilidade da construção de práticas democráticas em um país
onde a religião ainda impera na condução das leis que nos regem.
Ao olhar para documentos mais atuais, como o documento final da Conferência
Nacional de Educação (CONAE), de 2010, e o documento referência de 2014, vemos que as
60
chamadas questões da diferença, que incluem a temática de gênero, são entendidas como
fundamentais para a efetivação de uma educação pública, democrática, laica e com qualidade
social. Desse modo, a formação inicial e continuada nessas discussões se tornam objetivos
nos seus textos, somando-se a isso a demanda pela inclusão nos currículos de licenciatura de
matérias que contenham os estudos de gênero, como apontado em um das estratégias do
documento referência da CONAE (2014, p. 32):
Inserir e implementar na política de valorização e formação dos/as profissionais da
educação, a discussão de raça, etnia, gênero e diversidade sexual, na perspectiva dos
direitos humanos, adotando práticas de superação do racismo, machismo, sexismo,
homofobia, lesbofobia, transfobia e contribuindo para a efetivação de uma educação
antirracista, e não homo/lesbo/transfóbica.
A referência a gênero nesse documento aparece em outros seis objetivos/estratégias,
muitos deles em acordo com o proposto no documento de 2010. Também podemos ver
semelhanças com as proposições feitas no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(2013, p. 23), que afirma como um de seus propósitos:
Promover a formação continuada de gestores/as e servidores/as públicos/as de
gestão direta, sociedades de economia mista e autarquias, profissionais da educação,
como também a formação de estudantes de todos os níveis, etapas e modalidades
dos sistemas de ensino público de todos os níveis nos temas da igualdade de gênero
e valorização das diversidades.
Porém, muitas dessas propostas não se efetivam no cotidiano da educação brasileira,
até porque temos um território muito extenso e realidades muito distintas. Soma-se a isso a
resistência que alguns grupos políticos têm em relação às temáticas da diferença, o que acaba
gerando interesse em não efetivá-las. Assim, concordando com Vianna e Unbehaum (2004),
falta uma radicalidade no trato destas questões, pois nenhuma das leis conseguiu ser aplicada
em nível nacional, apesar da urgência do combate às violências motivadas tanto por gênero
como por outros marcadores sociais. Podemos entender, portanto, que temos muito o que
construir quando falamos sobre as chamadas questões da diferença.
A necessidade da formação inicial e continuada nas temáticas de gênero se coloca para
que possamos combater e minimizar os efeitos que os estereótipos de gênero causam tanto na
formação das alunas, como na das professoras e das demais funcionárias das escolas.
Sabemos que os estereótipos têm impactos negativos na formação de meninas e meninos que
não conseguem ser condizentes com o esperado para o que se entende como seu sexo/gênero,
mas também podemos constatar impactos naquelas pessoas que correspondem aos
61
estereótipos de gênero, uma vez que acabam se aprisionando em uma única forma de se
expressar. A seguir, exponho relatos de duas pesquisadoras, onde podemos observar como os
estereótipos de gênero podem causar impactos no cotidiano escolar.
Em uma pesquisa em que analisa aspectos históricos, sociais e políticos na relação
entre o masculino e o feminino, e descreve a convivência de meninos e meninas em uma
determinada escola, Auad (2006) observa que o fato de os meninos falarem em sala
correspondia a uma tomada de poder. Observa, ainda, que este falar está relacionado tanto a
responder às questões da professora quanto a falar para promover brincadeiras em sala.
Segundo a autora: “A dominação dos meninos era recorrente em ambos os casos, embora
encenando diferentes lugares de destaque. Na Escola do Caminho, tomar a palavra, ou seja,
falar na sala de aula, para a maioria dos meninos corespondia também à tomada de poder”
(AUAD, 2006, p. 38). Não que as meninas não falassem, elas falavam entre si, mas de forma
menos expressiva do que os meninos.
Auad (2006) também destaca, nessa pesquisa, que as professoras da Escola do
Caminho tendiam a falar mais com os meninos, mesmo que fosse para repreender quanto à
disciplina, enquanto as meninas eram vistas como auxiliares da professora na manutenção da
ordem em sala. Esperava-se que as meninas fossem quietas, registrando-se falas do tipo “Até
as meninas estão matracas hoje!” (AUAD, 2006, p. 31). Concordo com Auad quando afirma
que: “Esse retrato da tradicional socialização feminina é um modo de reforçar e perpetuar
uma determinada divisão sexual do trabalho. Nessa divisão, as meninas e mulheres são
obedientes, cuidadosas, trabalham duro e asseguram a ordem, sem jamais subvertê-la”
(AUAD, 2006, p. 35). Então, vemos que na Escola do Caminho há uma aceitação de uma
agitação maior para os meninos, expresso nas situações em que eles podem falar em
diferentes contextos e não para as meninas que são repreendidas quando não condizentes com
a expectativa das professoras.
Em outra pesquisa, Carvalho (2009) investiga como se produzem trajetórias escolares
de fracasso com maior frequência em crianças do sexo masculino e nos dá outros exemplos de
como as professoras podem estereotipar meninas e meninos. Ao serem questionadas em
entrevista sobre o que seria um bom aluno, as professoras dessa pesquisa afirmaram que bom
aluno é “quem participa; quem consegue ter um elo legal com o grupo; quem se envolve com
a escola” (CARVALHO, 2009, p. 37). Porém, as meninas tidas como boas alunas não
possuíam essas características, geralmente eram caladas e não questionadoras.
Tanto na pesquisa desenvolvida por Auad (2006), quanto na de Caravalho (2009),
vemos que predominam formas tradicionais de identificação de meninas e meninos, por parte
62
das professoras, que tendem a considerar os meninos falantes, espertos e ativos por natureza,
enquanto as meninas precisam ser quietas e, para serem consideradas inteligentes precisam se
esforçar. Desse modo, legitimam-se certos comportamentos no âmbito escolar, onde com
frequência se espera que os meninos sejam agitados, indisciplinados, mas não se permite isso
às meninas.
Os estereótipos de gênero também oprimem os meninos, pois se lhe são reconhecidas
características consideradas femininas, eles acabam sendo rotulados com adjetivações do
universo feminino, que tendem a serem consideradas depreciativas. Exemplo disso se
encontra, ainda, em Carvalho (2009, p.46), que ouve uma professora relatando um episódio
sobre o caderno de um aluno:
Eu tenho um aluno, o Frederico, um excelente aluno, que eu olhando o caderno um
dia na minha casa, eu abri o caderno e mostrei para minha irmã e falei assim: “olha o
caderno dessa menina, como é caprichado...”. “Nossa! Caprichosa sua aluna”, ela
falou. Até brinquei com eles [os alunos], contei essa história, que parecia caderno de
menina, brinquei com ele.
Assim, podemos observar que conciliar os ideais de masculinidade com o esperado
para um bom aluno – ter um caderno organizado – se torna algo difícil. Em ambos os
exemplos, há reforços negativos para a atuação de meninas e meninos que fogem aos
estereótipos de gênero. Mas são visões que podem ser mudadas, se houver profissionais mais
sensíveis a essa temática, podendo assim se criar um espaço educativo onde meninas e
meninos, mulheres e homens, possam se expressar de variadas formas sem correr o risco de
serem discriminados.
Pelo exposto acima, em consonância com as experiências que possuo como regente de
turma, posso concluir que, apesar de uma relativa atenção dada às questões de gênero em
nível legal e de documentos direcionados para a educação, não temos na realidade a
incorporação do princípio da igualdade de gênero na educação (PNPM, 2014). Apesar de não
haver diferenças no número de matrículas como apontado por autoras (VIANNA;
UNBEHAUM, 2004; BELTRÃO; ALVES, 2009) as desigualdades de gênero persistem nas
trajetórias escolares de meninas e meninos, causando o fracasso escolar de maior número de
meninos, mas também direcionando as meninas/mulheres para ocupações de menor prestígio
social e menor remuneração. Com isso, observo que é preciso, ainda, implantar de forma
satisfatória uma educação que considere os pressupostos feministas, onde se possam
questionar não só os papéis de gênero, mas, também, os étnicos/raciais, os de orientação
sexual promovendo uma educação que seja não-sexista, não-racista e não-homofóbica.
63
2.2 Sobre os materiais escolares: o que o livro didático tem a ver com práticas sexistas?
Na seção sobre a escolarização das mulheres no Brasil, vimos que a proposição de
uma educação pública que abrangesse toda a população, principalmente, aquelas que
universalizam o acesso para as crianças é algo recente no cenário brasileiro. No entanto, não
tão recente assim é a proposta de um material didático nacional. O que conhecemos hoje
como livro didático tem uma história significativa no cenário nacional: se por um lado ele é
tido como aliado, sendo muitas vezes o único suporte para as aulas, por outro lado seu
conteúdo vem sendo alvo de críticas, uma vez que pode reproduzir preconceitos de raça/etnia,
sexo, religião etc.
Levando em consideração o exposto acima, pretendo, na próxima seção, localizar a
reflexão acadêmica sobre o livro didático, considerando sua história no Brasil e as principais
críticas que já recebeu, no campo educacional, além de discutir sobre os conteúdos vinculados
nestes materiais.
2.2.1 O livro didático no Brasil
Como exposto na discussão sobre a educação das mulheres no Brasil, no ano de 1930,
a educação brasileira é remodelada. Nesse ano, o país vivencia a chamada Revolução de 1930,
em que começa um novo período político brasileiro. Os fatos políticos que se sucedem após
esse marco culminam com o golpe de 1937, inaugurando tanto o chamado Estado Novo
quanto a ditadura Vargas (PANDOLFI, 1999). Esse período é caracterizado por medidas
centralizadoras, com o surgimento, por exemplo, da polícia política que procurava reprimir
todas as ações entendidas como ameaças ao novo regime. A educação é remodelada nesse
período, pois é entendida como central para a formação da nova sociedade que se iniciava, na
medida em que ajudaria a conceber o homem novo aos moldes do que o governo desejava,
segundo Bomeny (1999, p. 139):
Formar um “homem novo” para um Estado Novo, conformar mentalidades e criar o
sentimento de brasilidade, fortalecer a identidade do trabalhador, ou por outra, forjar
uma identidade positiva no trabalhador brasileiro, tudo isso fazia parte de um grande
empreendimento cultural e político para o sucesso do qual contava-se
estrategicamente com a educação por sua capacidade universalmente reconhecida de
64
socializar os indivíduos nos valores que as sociedades, através de seus segmentos
organizados, querem ver internalizados.
Temos nos anos de 1930 uma produção educacional mais sistemática, com o governo
investindo fortemente em educação e cultura, atraindo muitos intelectuais que queriam
colaborar com a formação de um novo ideal de nação. Assim, em sintonia com as medidas
centralizadoras do novo governo, tenta-se controlar o que a população lê, por meio do
Instituto Nacional do Livro (INL), criado em 1937, para “assegurar a divulgação e
distribuição de obras de interesse educacional e cultural” (FREITAG et al., 1989, p. 12,
grifos das autoras). O INL é a forma que o governo tem de definir o que poderia ou não ser
lido nas escolas brasileiras. Depois da criação deste instituto são publicados outros decretos
que regulamentam tanto o material didático quanto as formas do seu controle sistemático. Em
1938, é definido, através do Decreto-lei 1006, de 30 de dezembro de 1938, o que o governo
entendia como livro didático:
Art. 2º, S 1º - Compêndios são livros que exponham total ou parcialmente a matéria
das disciplinas constantes dos programas escolares; 2º - Livros de leitura de classe
são os livros usados para leitura dos alunos em aula; tais livros também são
chamados de livros texto, livro-texto, compêndio escolar, livro escolar, livro de
classe, manual, livro didático (OLIVEIRA apud FREITAG et al., 1989, p. 13).
Neste decreto, também é criada uma comissão de avaliação do livro didático, mas que,
na prática, ao invés de avaliar o conteúdo do livro, propunha censuras políticas e ideológicas,
ficando de lado a questão didática. Essa comissão começa a ser questionada com o fim da
gestão Capanema, em 1945, e, em 1947, é solicitado um parecer jurídico a respeito da
legalidade da comissão. Mas a comissão permanece, em plenos poderes, “sem que sejam
resolvidos os vários impasses decorrentes da centralização do poder, do risco de censura, das
acusações de especulação comercial e da manipulação política, relacionada com o livro
didático” (BOMÉNY apud FREITAG et. al., 1989, p. 14).
Na década de 1960, durante o regime militar, é feito um convênio entre o Ministério
da Educação (MEC) e o governo dos Estados Unidos, para disponibilização de 51 milhões de
livros para estudantes brasileiros em um período de três anos, além da instalação de
bibliotecas e formação de instrutoras e professoras. Segundo Freitag, Motta e Costa (1989)
haviam diferentes entendimentos sobre esse convênio dentro do cenário brasileiro, pois se o
MEC descrevia essa relação enquanto uma ajuda, pensadoras críticas da educação brasileira
viam essa associação como um controle americano do mercado livreiro e, também, supunham
uma tentativa de controle político. A Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático
65
(COLTED), criada nesse convênio, foi extinta em 1971 e foi criado o Programa do Livro
Didático.
A partir dos anos de 1980, ganha força a visão de que o livro didático subsidiado pelo
governo seria a oportunidade para as chamadas crianças carentes terem acesso a esse
material. São lançadas então as diretrizes do Programa do Livro Didático, em que possibilitar
o acesso ao livro se torna uma das diretrizes principais. Aliado a esse programa, é instituída
também a Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), que, subordinada ao MEC, apoiava
as secretarias de ensino do 1º e 2º graus, sendo o Programa incorporado à FAE ainda em
1983. Para Freitag, Motta e Costa (1989), havia nesse momento muitas críticas à forma como
o governo estava encaminhando o Programa do Livro Didático, geralmente, assentadas na
discordância em relação à centralização da política e à perspectiva assistencialista do governo,
o que se traduzia na dificuldade de distribuição do livro dentro dos prazos previstos, lobbies
das empresas e editoras junto aos órgãos estatais responsáveis, autoritarismo das delegacias
regionais e secretarias estaduais. Em 1985, é criado o Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD), que regulamenta a aquisição do livro e toma outras medidas, tais como:
descentralização da escolha do livro, sugerindo que isso seja atribuído às docentes que o
utilizam em sala; determinação da aquisição de livros reutilizáveis; e fim da participação
financeira dos estados. Mudanças nesta concepção inicial aconteceram em 2001, com a
resolução nº 603, que passa a ser um mecanismo regulador e organizador do PNLD
(FREITAG et al., 1989; HOFLING, 2000; VERCEZE; SILVINO, 2008).
Nos anos de 1990, com a assinatura da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação de
1996, além das reformas curriculares do Ensino fundamental, começou um movimento em
nível governamental para avaliar a qualidade do livro didático. Na sociedade civil, esse tipo
de demanda já existia desde os anos de 1970. Em 1993, é criada uma comissão de avaliação
do livro didático e, desde então, é oferecido às professoras um guia para ajudá-las a escolher
os livros que serão usados por sua unidade (VERCEZE; SILVINO, 2008).
As questões que circundam a escolha, produção, distribuição e utilização do livro
didático estão longe de serem pacíficas – ao contrário, são objetos de denúncias desde a sua
origem, como pelo fato de não haver, fora do aparelho estatal, organismos capazes de
influenciar, formular e redirecionar o processo decisório sobre o livro didático.
É importante lembrar ainda que o PNLD é o maior programa de livro didático do
mundo, fazendo com que seja uma fonte de renda considerável para as editoras, que acabam
adequando suas coleções as exigências do Governo Federal. Desse modo, as editoras seguem
as propostas do governo, seus pareceres e decretos, deixando de fora de seus livros os
66
conteúdos considerados polêmicos, formando assim o chamado currículo mínimo, que será
único para todo o território nacional.
Para autoras como Hofling (2000), a presença de grupos privados compromete o viés
democrático a que se pretende o PNLD apontando-se estranheza ao fato de que um grupo de
editoras dominar a venda dos livros no cenário nacional. De fato, em matéria publicada em
2012 por um sítio de notícias do mercado editorial que divulgou a lista das editoras
selecionadas para constarem no Guia do Livro Didático de 2013, entre as editoras com mais
títulos aprovados estão FTD, Moderna, Saraiva e Scipione 14, o que parece nos indicar uma
manutenção da realidade apontada por Hofling, que cita as mesmas editoras absorvendo 90%
do total de recursos públicos da FAE, em 1994 (2000).
A maneira como se usa o livro didático também é polêmica. O livro pode ser
concebido como um suporte às aulas, mas a escassez de recursos que muitas escolas
vivenciam, somada a problemas na formação inicial e continuada das regentes de turmas,
assim como os efeitos dos desgastes da profissão, uma das mais desvalorizadas do mercado
de trabalho nacional, os livros passam, com frequência, de apoio a ator principal. Com isso, os
conteúdos expostos nos livros muitas vezes direcionam a ação docente, não sendo
questionados, o que se torna problemático quando vê-se que muitos deles reproduzem
preconceitos e discriminações de raça/cor, sexo e religião (FERREIRA; SELLES, 2004).
Nesta seção procurei trazer alguns marcos da história do livro didático no Brasil e
algumas questões que se colocam na reflexão sobre seu uso na educação. Pretendi destacar
que a trajetória desse material no país se inicia em um contexto de repressão e controle
político, chegando a 1985 com a criação do PNLD. Na próxima seção, trago pesquisas
acadêmicas que tomaram o livro didático como seu objeto de estudo, assim como fiz no
estudo que apresento no capítulo que se segue.
2.2.2 O livro didático e as questões do sexismo
O livro didático se tornou ao longo dos anos uma presença importante no contexto
educacional brasileiro e a forma como ele expõe seu conteúdo tem se tornado tema de
pesquisa, nos últimos trinta anos. Segundo Choppin (2004, p. 557):
14
Informações extraídas do sítio http://www.publishnews.com.br/telas/noticias/detalhes.aspx?id=67712, último
acesso em 15 de julho de 2014.
67
Conclui-se que a imagem da sociedade apresentada pelos livros didáticos
corresponde a uma reconstrução que obedece a motivações diversas, segundo época
e local, e possui como característica comum apresentar a sociedade mais do modo
como aqueles que, em seu sentido amplo, conceberam o livro didático gostariam de
que ela fosse, do que como ela realmente é.
O livro é, portanto, um material complexo, pois muitas vezes o exposto em seu interior
pode divergir de iterações sociais que tentem construir a igualdade e a defesa da pluralidade
cultural, já que apresentam a sociedade parcialmente, como exposto acima. Choppin (2004)
argumenta, ainda, que toda controvérsia é retirada do livro didático, o que pode levar à
repetição, por docentes e estudantes que utilizem esse artefato, do entendimento de que a
sociedade brasileira, e outras sociedades, possuem uma formação homogênea, onde não há
controvérsias de classe, gênero, cor/raça.
Desse modo, a tentativa de compreender o quanto o livro didático pode ou não
contribuir com a formação de padrões mais democráticos se tornou tema de interesse de
pesquisadoras. As primeiras iniciativas, em nível mundial, se deram após a Primeira Guerra,
com a proposta de retirada de preconceitos xenofóbicos e a assinatura, em 1937, de uma
Declaração sobre Ensino da História e Revisão dos Livros Didáticos (ROSEMBERG et al.,
2009).
As pesquisas que procuram entender as representações das mulheres nos livros
didáticos se deram a partir das acadêmicas e ativistas feministas que buscam demarcar um
problema social: a educação diferenciada de meninas e meninos. Desse modo, muitas
pesquisadoras dessa época, segundo Negrão e Amado (1989), entendem o livro didático como
informante ou construtor de identidades, já que muitas vezes o livro se constitui como único
suporte para as aulas, não tendo os sentidos afirmados em seu interior contestados por outras
fontes. Este tipo de pesquisa se insere em uma agenda maior de denúncia da subrepresentação feminina em diversos espaços, que ganha força na Década da Mulher, que se
inicia em 1975 e é marcada por uma série de ações em todo mundo que procuram dar
visibilidade às questões das mulheres e feministas (NEGRÃO; AMADO, 1989;
ROSEMBERG et al., 2009).
Para Negrão e Amado (1989), as pesquisas dessa época se baseavam na metodologia
de análise de conteúdo e viam a escola como um aparelho ideológico. Portanto, muitas
priorizavam a denúncia das práticas discriminatórias que as escolas reproduziam, tanto no seu
fazer cotidiano quanto em seus materiais didáticos. Queriam denunciar o fato de que, mesmo
as mulheres conseguindo acesso às escolas de forma ampla, o currículo continuava a ser um
68
artefato de gênero, ou seja, perpetuavam as visões que se tinha no social sobre meninas e
meninos, mulheres e homens. Segundo U´Ren (apud ROSEMBERG et al., 2009, p. 492):
Sua educação reflete os papéis que a sociedade espera que desempenhem. Nossa
sociedade ensina ao homem, e não à mulher, que deve realizar, progredir, criar. Esta
deferência dirigida ao homem é particularmente evidente nos livros escolares usados
por crianças na escola primária.
Com isso não se conseguiria romper com os chamados estereótipos de gênero e a
escola continuaria sexista. Uma das críticas a esses estudos é que, por terem sido feitos por
feministas, acabaram se fechando em guetos, ou seja, não dialogaram com os estudos sobre
livros didáticos ou mesmo da educação, fazendo com que, esgotada a fase de denúncia, não
houvesse mais tantos estudos que dialogassem com os temas livro didático e sexismo.
No Brasil, assim como no restante do mundo, durante os anos de 1970 e 1980, esses
estudos ganharam destaque. Não responsabilizavam a escola pelos estereótipos, porém, viamna como uma agência socializadora que favorecia seu fortalecimento. Desse modo, o sexismo
nos livros didáticos foi registrado como presente, sendo tema de pesquisas e de denúncias, na
agenda feminista e acadêmica. Fez-se presente também, a partir dos anos de 1990, na pauta
nos governos federais, estaduais e municipais, uma vez que, com o PNLD distribuindo
milhões de exemplares de livros em todo Brasil, tornava-se muito pertinente a discussão sobre
a qualidade desse material didático, o que se somava aos acordos internacionais em que o
Brasil se comprometia a diminuir as desigualdades entre mulheres e homens (NEGRÃO;
AMADO, 1989; ROSEMBERG et al., 2009).
Destacamos aqui o levantamento bibliográfico feito por Negrão e Amado (1989) sobre
o estado da arte da imagem da mulher no livro didático, encomendado pelo Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher. Foram levantadas 44 referências de artigos, comunicações,
teses e livros, entre 1973 e 1986. Segundo as autoras, o material levantado revelava uma
reflexão esparsa sobre livro didático, com diversas teorias, metodologias e políticas. Parte dos
textos preocupa-se com o sexismo quando aparecem temas como família e escola, usualmente
reconhecidas como femininas, mas os tipos femininos mais frequentes eram mãe, professora,
avó e empregada. As pesquisas levantadas nesse estudo anunciam o objetivo de denunciar o
sexismo então presente nos materiais didáticos, considerando que a discriminação sexual não
estava mais no impedimento à entrada das mulheres na escola, mas sim em seu interior, como
pontua Rosemberg (apud NEGRÃO; AMADO, 1989, p. 47):
69
No Brasil, como em outros países do mundo, mesmo subdesenvolvido, a
discriminação sexual no plano educacional mudou de rumo; ela não se efetua mais
através do impedimento das mulheres ascenderem ao sistema educativo, mas se
transferiu para seu interior. Isto é, apesar do avanço notável de acesso à
escolaridade, persistem diferenças fundamentais nas trajetórias educacionais de
homens e mulheres, caracterizando verdadeiros guetos sexuais, a despeito do
princípio da co-educação entre os sexos. Persiste, também, um aproveitamento
diferenciado do nível de instrução de homens e de mulheres no mercado de trabalho,
seja quanto à sua adequação, às oportunidades ocupacionais ou ao rendimento
recebido pelo trabalho remunerado. E, finalmente, a escola brasileira continua a
reforçar estereótipos sexuais, não tendo assumido, no seu interior, uma proposta
anti-sexista.
Sendo assim, já nos anos finais de 1980, alertava-se para a necessidade de se pensarem
os estereótipos sexuais com os quais as escolas trabalhavam, pois esses estereótipos tendiam a
se expandir para além dos muros das escolas, deixando marcas nas vidas profissionais de
mulheres e homens – ou, nos termos desta pesquisa, gerando efeitos performativos
indesejáveis nas possibilidades profissionais e sociais de mulheres e homens.
Em outro levantamento, feito por Moura (2007 apud ROSEMBERG et. al., 2009), que
compreende o período de 1980 até 2000, a autora observa permanências e transformações nos
estudos em torno do sexismo nos livros didáticos. Podemos destacar aqui que: o tema
permanece na agenda do movimento feminista, sendo a avaliação do livro didático tema do
Plano Nacional de Política para as Mulheres; a substituição do termo sexo pelo termo gênero;
a difusão privilegiada de trabalhos em congressos acadêmicos feministas, ressaltando que há
mais trabalhos sobre o tema apresentados no congresso bienal Fazendo Gênero do que nas
reuniões da ANPEd. Sendo assim, podemos ver que há pouca difusão desta temática na área
de educação, criando dessa maneira lacunas na compreensão do sexismo, tanto nos livros
didáticos quanto na escola como um todo. Rosemberg et al. (2009, p. 506) pontuam algumas
dessas lacunas:
Pouco se trata do uso que fazem deste material professores (as) e alunos (as), das
dificuldades de criação de material alternativo e o que isso significa na sociedade
brasileira; das formas de utilização contra-corrente desses materiais, das implicações
do fato de o Estado ser hoje, no Brasil, o maior comprador de LD e do perfil do
mercado de trabalho do LD do ponto de vista das relações de gênero.
As conclusões que ficam dessas pesquisas é que, ainda, permanecem padrões
tradicionais convivendo com atenuações, ou seja, atualmente, os livros didáticos continuariam
sexistas, observando-se a repetição de concepções mais igualitárias, tais como a referência à
mulher que trabalha fora. Apesar de o PNLD manter como um de seus objetivos a eliminação
de materiais que expressem qualquer tipo de preconceito, incluindo os de sexo/gênero, trata-
70
se de objetivo difícil de atender, já que as pessoas que avaliam os livros não possuiriam
formação adequada para a discussão do sexismo que pudesse dar suporte à sua avaliação.
Observa-se também a falta de sistematicidade desses estudos, sendo as interseções entre
gênero e educação pouco exploradas ou mesmo não consideradas em pesquisas que tenham
como foco os processos educacionais (ROSEMBERG et al., 2009).
As discussões em torno do sexismo do livro didático podem parecer conflitantes com
os números da educação, já que os estudos mostram uma parcela significativa de mulheres
tendo sucesso em suas trajetórias escolares. No entanto, apesar do sucesso na escola, as
mulheres parecem não manter essa condição na vida profissional, sendo também importante
tentar entender também as formas como as meninas constroem esse chamado sucesso escolar,
pois, como vimos com Auad (2006) e Carvalho (2009), muito dele resulta de comportamento
condizente com o seu sexo/gênero.
Entendo que, de fato, a manutenção de materiais sexistas na educação escolar pode
impactar negativamente a formação de meninas e mulheres, que acabam crescendo
desconhecendo a potencialidade feminina nas diferentes áreas profissionais. Por exemplo,
segundo Madeleine Lackso (2013), em matéria publicada na Revista Fórum15, 89% das
pessoas formadas em engenharia no mundo são homens. A autora da matéria argumenta:
“Uma das razões pode ser facilmente comprovada com uma visita a qualquer loja de
brinquedos, as meninas não são inspiradas a fazer parte desse universo”. Desde pequenas, a
sociedade está nos ensinando qual o nosso lugar. É óbvio que há subversões: a própria matéria
cita uma companhia nova de brinquedos que fez uma coleção para meninas engenheiras e
uma das frases da música de campanha diz: “Todos nossos brinquedos parecem iguais!
Queremos usar nossos cérebros. Somos mais que princesas donas de casa”. O vídeo virou um
viral na internet, o que serve para suscitar o debate, muitas vezes apagado, sobre o que ainda
precisamos desconstruir para ocupar um lugar onde nos seja permitido fazer todas as coisas
que queremos, sem preconceitos de sexo/gênero.
Ainda hoje não vemos o princípio da igualdade de gênero sendo aplicado de uma
maneira que nos permita ser livre tanto na escola como em outros setores da sociedade. Na
escola, ainda parece persistir a visão de meninos indisciplinados e meninas quietas, meninos
sendo criados para o público e meninas sendo criadas para o privado. Mas, na pesquisa aqui
relatada, averiguei se em materiais didáticos atuais podemos ter presentes outras formas do
15
Revista Fórum edição de 26 de novembro de 2013. Endereço eletrônico
http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/11/falta-de-opcao-de-vida-e-doenca-mortal-para-meninas/, último
acesso em 20 de maio de 2014.
71
feminino, que rompam com os modelos tradicionais. Queremos saber se esses materiais
apontam subversões ou mantêm-se sexistas, para contribuir com o debate sobre o sexismo nos
materiais didáticos da contemporaneidade.
72
3 O FEMININO NAS APOSTILAS DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DA CIDADE
DO RIO DE JANEIRO
Artigo I: A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em
direitos. As distinções sociais não podem ser fundadas a não ser no
bem comum16.
Olympia de Gouges
Os processos descritos nos capítulos 1 e 2 estão sendo problematizados no mundo
ocidental desde os anos de 1970. No Brasil, as questões que tematizam gênero ganham força
no final dos anos de 1980 e, de forma mais enfática, crescem nos anos de 1990, mas as
denúncias em torno do sexismo nos livros didáticos estão postas em cenário nacional desde os
anos de 1970. Com isso, temos três décadas de problematizações sobre as formas como as
mulheres são vistas socialmente, ora de forma mais intensa e explícita, ora de forma mais
velada.
Iniciamos esta proposta de pesquisa pensando se, com toda essa movimentação e
possível difusão e sedimentação de novos sentidos para o feminino, as questões de gênero
conseguiram fazer eco nas produções dos materiais didáticos contemporâneos. Nossas
questões de pesquisas são formuladas a partir dos seguintes pontos: quais discursos sobre o
feminino estão sendo repetidos e/ou deslocados nos materiais didáticos? A linguagem no
genérico masculino é usada pra se referir a mulheres e a homens? As mulheres estão
visibilizadas nos livros das diferentes disciplinas? De que modo? Quem são os personagens
dos livros? Ou seja, quem protagoniza os enunciados dos textos ou dos problemas, quem são
os heróis, os cientistas etc.? Que papéis são afirmados para o feminino?
Ao querer discutir sobre os materiais didáticos contemporâneos, tivemos que fazer um
recorte no nosso olhar e, para tal, debruçamo-nos sobre um material específico. A seguir
descrevo o material analisado, assim como o contexto político em que ele foi criado e
aplicado. Apresento ainda as opções metodológicas da pesquisa e, em seguida, sintetizo as
análises desenvolvidas.
16
GOUGES, O. Declaração de direitos da mulher e da cidadã. In VARELA, N. Feminismo para principiantes.
Barcelona: Ediciones B, 2008.
73
3.1 Os Cadernos Pedagógicos
Os materiais didáticos pesquisados nesta dissertação são os chamados Cadernos
Pedagógicos, que foram distribuídos e utilizados, durante o ano de 2013, pela Secretaria
Municipal de Educação da cidade do Rio de Janeiro (SME/RJ), conhecido também por
professoras e alunas da rede como apostilas. O contexto de produção desse material se remete
à SME/RJ, a partir do ano de 2009.
Em 2009, temos, na cidade do Rio de Janeiro, uma nova gestão, tanto do governo da
cidade, como na Secretaria de Educação. A nova secretária é Claudia Costin, que passa a
administrar a maior rede da América Latina, no período de 2009 até 2013. Costin, desde seu
início, foi um nome controverso para a pasta de educação, uma vez que sua formação não era
dessa área, mas, sim, em administração pública, como podemos ver em seu perfil:
Especialista em Gestão Pública, políticas públicas e combate à pobreza, tem larga
experiência acadêmica, de assessoramento técnico e de gestão em governos e no
Terceiro Setor, no Brasil e em outros países. Foi Ministra de Estado da
Administração Federal e Reforma do Estado, Secretária de Planejamento e
Avaliação do Ministério da Economia; Secretária-Adjunta de Previdência
Complementar no Ministério da Previdência. No governo do Estado de São Paulo
foi secretária da Cultura e coordenadora de diversos projetos na FUNDAP Fundação do Desenvolvimento Administrativo -, entidade voltada à modernização
da Administração Pública17.
Costin, portanto, tem amplo trabalho na administração pública e muito do que tinha
feito até assumir a rede possui conexões com a chamada perspectiva da eficiência no setor
público, princípio que foi aplicado em sua gestão como secretária de educação da cidade do
Rio de Janeiro. Desse modo, uma de suas primeiras medidas foi organizar uma proposta
intitulada “Salto de Qualidade na Educação”, apresentando propostas instrucionais para as
professoras a fim de unificar a proposta de trabalho de todas as escolas que compõem a
SME/RJ (OLIVEIRA, 2012).
As ações coordenadas pela gestão de Cláudia Costin na rede tem muitas proximidades
com a chamada cartilha neoliberal18 para a educação, como trazer atores privados para a
administração pública, abrir o setor da educação a regras de mercado globais, aplicações de
testes padronizados em larga escala, fornecer premiações de acordo com metas previamente
17
18
Extraído do sítio http://ebape.fgv.br/corpo-docente/claudia-costin, último acesso em 08 de julho de 2014.
Entendida como uma série de medidas que tenta impor uma lógica no processo educacional centrada na
competição atestada por meio de avaliações de larga escala e premiações.
74
definidas. Até o fim de sua gestão (2009-2013), a rede tinha duas avaliações bimestrais –
AfabetizaRio e Prova Rio – além da Prova Brasil (OLIVEIRA, 2012).
É juntamente com essa proposta política para a educação que surgem os cadernos
pedagógicos, distribuídos para as escolas da rede a partir de 2009. De início, havia apenas
cadernos de português, matemática e ciências, mas, posteriormente, amplia-se para os de
história e geografia. Os cadernos são enviados bimestralmente para as unidades, mas
podermos acessá-los no sítio da SME/RJ. A proposta inicial deste material era contribuir com
a prática pedagógica em sala, tanto para tarefas em casa, quanto para o reforço escolar.
Segundo Costin (apud OLIVEIRA, 2012):
Espera-se que os cadernos possam contribuir como um recurso metodológico para a
ação pedagógica cotidiana. Constitui-se em mais um apoio à disposição do professor
que, em interação com os já disponíveis (livros, internet, projetos da escola e outras
escolhas do professor), amplie as possibilidades de discussão de conceitos e de
formação de habilidades.
Assim, temos em discussão um material que é usado cotidianamente por um grupo
significativo de pessoas, já que a rede pública de educação da cidade do Rio de Janeiro se
constitui, ainda hoje, como a maior rede da América Latina, como podemos observar na
tabela que se segue:
Tabela 2 – Educação em Números19
Unidades do Ensino Fundamental
1.004
Creches
Espaços de Desenvolvimento
Infantil
247
Alunas Matriculadas
664.384
Professoras
42.529
190
Fonte: SME/RJ, 2014.
A oferta dos cadernos pedagógicos pela rede poderia não implicar o uso desse material
por parte de professoras e alunas, uma vez que, a depender da proposta da regente, outros
caminhos de atividades poderiam ser traçados. Mas o que aconteceu nessa rede durante a
gestão de 2009-2013 foi a imposição do uso desses materiais, uma vez que seus conteúdos
19
Informações extraídas dos seguintes sítios http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/educacao-em-numeros e
http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4463799/4112236/GUIA_matriculageral_201414.11.pdf, último acesso
em 08 de julho de 2014.
75
referem as avaliações da rede. A depender do resultado que a unidade conquista nas
avaliações da rede, as profissionais que atuam ali podem receber, por exemplo, o décimo
quarto salário, sob o nome Prêmio Anual de Desempenho, instituído também em 2009. Desse
modo, podemos afirmar que a SME/RJ possui maneiras institucionalizadas de pressionar pela
utilização efetiva desse material. Com isso, pareceu ser pertinente questionar o conteúdo
desse material, que demonstra ser uma instância de iteração de sentidos com força no cenário
educacional municipal, sendo usado na rede em substituição ao livro didático.
Análises sobre a qualidade dos cadernos pedagógicos começaram a vir a público no
ano de 2013, quando foram denunciados erros encontrados no material de Geografia. Segundo
Susana Gutierrez, professora e diretora do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação
do Rio (SEPE- RJ), erros nessas apostilas são comuns. Em matéria publicada no jornal O
Globo, Susana afirma: “Eles já me orientaram a rasgar ou arrancar as páginas que
contivessem erros20”. Além dos problemas relacionados a erros nesses materiais, outra
questão em destaque é sobre a autonomia pedagógica da professora e da escola, já que as
apostilas tendem a limitar o fazer pedagógico da regente de turma. Essa questão se constituiu
como um dos pontos da greve da educação municipal em 2013, quando as profissionais
reivindicavam o direito de escolher o livro didático e as formas de ensinar em cada disciplina.
Nesse cenário, busquei sobre como o feminino é representado nas apostilas usadas nos
4 bimestres que compõem o ano letivo de 2013, pelos últimos anos do ensino fundamental, a
saber, 7º, 8º e 9º ano. Os últimos anos do ensino fundamental foram selecionados para essa
pesquisa, pois, como sabemos, no Brasil, a obrigatoriedade do ensino é dada, ainda, somente
ao ensino fundamental, do primeiro ao nono ano, com início aos seis anos de idade. Tem-se
como um dos objetivos da escolaridade a formação para a cidadania mediante, entre outras
coisas: a “compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das
artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade” (BRASIL, 2006). Ou seja, espera-se,
do grupo que conclui o ensino fundamental, que tenha um conhecimento de mundo operando
com os valores que fundamentam a nossa sociedade.
Sendo assim, propus-me a investigar, nos anos finais do ensino fundamental – quando
se espera que esses saberes e valores estejam mais consolidados – que visões de gênero os
cadernos pedagógicos estão oferecendo a esse grupo na conclusão do ciclo de ensino
obrigatório, com especial ênfase para os sentidos sobre o feminino presentes nesses materiais.
20
Extraído do sítio http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/apostila-da-prefeitura-do-rio-diz-que-capital-depernambuco-belem-8424254#ixzz36srwu0d2, último acesso em 08 de julho de 2014.
76
Os cadernos pedagógicos foram compilados do sítio da Secretaria Municipal de Educação 21,
no período de março a dezembro de 2013. Não estão mais disponíveis no sítio para a
visualização, uma vez que agora constam os materiais referentes ao novo período letivo.
Sendo 3 anos de escolaridade, com 5 disciplinas por bimestre – Geografia, História, Ciências,
Português e Matemática – em um total de 4 bimestres ao ano, o que resulta em 60 arquivos.
Em seguida exponho as opções metodológicas feitas para lidar com esse material.
3.2 Questões de método: como olhar para os corpora 22 da pesquisa?
Ao desenvolver uma pesquisa, certamente precisamos definir os caminhos a serem
trilhados. Os campos de conhecimentos a que as pesquisas se remetem podem nos dar
indícios de quais metodologias utilizar, a partir também da definição dos objetivos da
pesquisa desenvolvida. Mas, tratando-se do campo educacional, as possibilidades de pesquisa
se multiplicam, uma vez que a pesquisa em Educação tem se constituído pela apropriação de
saberes referentes a outros domínios.
Como afirma Gatti (2012, p. 7): “Estudos que revelam a diversidade disciplinar no
campo da educação nos fazem apontar a multiplicidade de abordagens, mas, também, a
especificidade associada ao campo e sua circunscrição no domínio das ciências humanas e
sociais”. Com isso a autora enfatiza o caráter interdisciplinar da Educação, mas também
chama a atenção para a importância de uma unidade de propósitos e de estruturas conceituais,
permitindo, assim, que a Educação se constitua enquanto um campo acadêmico e
investigativo com identidade própria, mas que opera com metodologias muito diversificadas.
Nesta pesquisa, opta-se por abordagens que também demandam justificativas,
sobretudo porque remetem a algumas polêmicas do campo. Uma delas diz respeito à histórica
dicotomização entre os estudos quantitativos e os estudos qualitativos. As pesquisas de cunho
quantitativo se constituíram, até o século XX, como representantes do saber científico,
priorizando a busca das regularidades dos fenômenos estudados, por meio de dados numéricos
e pesquisas realizadas em larga escala. Na primeira metade de século XX, consolidam-se
novos campos de investigação científica que se contrapunham às chamadas ciências duras,
21
http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/material-pedagogico, último acesso em 31 de dezembro de 2013.
22
Corpora é o plural de Corpus, entendido como uma compilação de textos para a análise.
77
como a História, Antropologia, a Sociologia e a Educação. Nos anos de 1970 e 1980, são
reelaborados os conceitos de objetividade, validade e fidedignidade, assim, procurava-se criar
uma metodologia que pudesse atender aos estudos que foram chamados de qualitativos. Para
autores como Chizzotti (2003, p. 9):
O debate qualitativo versus quantitativo revigora, de um lado, a contestação de um
modelo único de pesquisa, à crítica a hegemonia dos pressupostos experimentais, ao
absolutismo da mensuração e à cristalização das pesquisas sociais em um modelo
determinista, casual e hipotético dedutivo: adensam-se as críticas aos pressupostos
ontológicos, epistemológicos e metodológicos do modelo convencional,
reconhecendo-se a relevância do sujeito, dos valores dos significados e intenções da
pesquisa, afirmando a interdependência entre teoria e prática, a importância da
invenção criadora, do contexto dos dados e da inclusão da voz dos atores sociais.
Com esse breve histórico podemos ver que, até o início do século XX, não havia
contestações à forma como as pesquisas eram feitas com base em estudos quantitativos, pois
os objetos de estudo destas pesquisas correspondiam aos pressupostos das ciências a que se
remetiam, o que não acontece quando lidamos com fenômenos humanos, que, por exemplo,
nem sempre podem ser repetidos. Assim, afirmou-se, na perspectiva de muitas pesquisadoras,
o entendimento de que a utilização de abordagens quantitativas não se aplicava às Ciências
Humanas e Sociais. No entanto, com o desenvolvimento destas áreas de pesquisas, viu-se que
tanto uma quanto a outra abordagem poderiam ser benéficas no desenvolvimento de
pesquisas, aceitando-se, hoje, estudos que utilizem e combinem diferentes metodologias. De
fato, na contemporaneidade, essa questão parece estar resolvida, uma vez que várias teóricas
defendem que a dicotomização dos estudos qualitativos e quantitativos é simplista e tende a
reduzir as possibilidades de compreensão do fenômeno que se estuda (ANDRÉ, 1995;
GATTI, 2012; LEITE; FREITAS, 2014). Como afirma Brandão: “informações e dados
objetivos, assim como depoimentos e entrevistas em profundidade podem ser produzidos em
perspectiva positivista; sem uma conceituação prévia e uma reconstrução a posteriori,
nenhum material de pesquisa escapa à superficialidade do mau jornalismo” (2002 apud
LEITE; FREITAS, 2014, p. 2). Concordo ainda com Gatti (2012, p. 17), quando afirma que:
Conforme o problema, pode-se necessitar, para a sua compreensão, de vários tipos
de aproximação, quando combinamos vários procedimentos de busca para conseguir
elementos relevantes ao estudo. Nessa perspectiva é que se busca a superação da
dicotomização irreconciliável entre abordagens qualitativas X quantitativas, por um
olhar mais amplo, que implica a conjugação de fontes variadas de informação sob
uma determinada perspectiva epistêmica.
78
É na tentativa de construção desse olhar mais amplo, onde procuramos entender nosso
foco de pesquisa que reducionismos do tipo ou qualitativo ou quantitativo não beneficiam.
Prefiro, concordando também com André (1995), reservar os termos qualitativos e
quantitativos para a definição das técnicas de coleta ou mesmo dos dados obtidos. Sendo
assim, trazemos para este ponto da dissertação contribuições metodológicas dos Estudos da
Linguagem e da Linguística Computacional.
Desde o início da pesquisa, alguns entendimentos sobre a linguagem se mostraram
interessantes para as análises desenvolvidas, em especial as contribuições de Jacques Derrida,
quanto aos seus entendimentos sobre os processos de construção do significado das palavras.
Nesta perspectiva, os sentidos são entendidos como iteráveis, em que cada palavra carrega em
si o mesmo e o outro, rastros de significação que lhe permitem ser compreensível, mas que
não são determinantes. Em uma mesma palavra sedimenta-se uma significação que a localiza
em relação a outros significados. Ela contém rastros de sentido que permitem a sua
identificação, possibilitando que seja compreensível em diferentes leituras, ou seja, contém
uma presença que a identifica em relação às demais, mas essa presença nunca é plena, sofre
fissuras ao ser enunciada em nova contingência. Essa fissura da presença permite a remissão a
algo diverso, fazendo com que essa palavra possa sinalizar outros significados que diferem do
mais usual. Segundo Derrida, “É a própria iterabilidade, o notável da marca, passando entre o
re do repetido e o re do repetente, atravessando e transformando a repetição” (1991, p. 77,
grifos do autor). Ao pesquisar hoje os sentidos do feminino nos materiais didáticos
contemporâneos, entendo que esse feminino já passou muitas vezes por processos de iteração,
onde o novo e o velho se contrapuseram, favorecendo mudanças na forma como hoje o
feminino é significado.
Uma outra noção de Derrida que me ajuda na análise proposta é a noção de texto. Para
o autor, todas as estruturas sociais são entendidas como texto, já que somente as acessamos
por meio de uma experiência interpretativa. A frase de Derrida (1991, p. 187), que se tornou
alvo de muitas críticas, “não existe extra-texto” faz referência, também, ao fato de que as
significações produzidas sobre o social são frutos das experiências humanas, não existindo
construções para além dessas experiências e interpretações. Tanto a noção de iterabilidade,
quanto a concepção de texto proposta por Derrida autorizam a crítica ao que se convencionou
chamar de conhecimento, quando entendido como a verdade objetiva. Com essas teorizações,
podemos conceber que as leituras de mundo que fazemos são estabilizações momentâneas do
social, estabilizações essas que criam efeitos de verdade e, por isso, uma sensação de
79
imutabilidade. Mas, ao entender que essas estabilizações são construções, podemos, portanto,
questioná-las e trabalhar pela sua desconstrução.
Além das noções de iterabilidade e de texto, outro indecidível, termo que Derrida
prefere usar para nomear suas construções, que nos ajuda a entender os materiais didáticos
contemporâneos é a noção de performativo. Como discutido no capítulo 1, Derrida, a partir da
leitura desconstrutora de Austin nos dá uma outra noção de performativo, que é suplementada
pela teorização de Butler (2008), quando se propõe a pensar o gênero enquanto performativo.
Ao utilizar essa noção para a análise dos materiais didáticos, afirma-se que as construções
feitas nesses materiais contribuem para gerar efeitos na forma como meninas e meninos,
mulheres e homens veem a si e aos outros.
Outra opção que se mostrou interessante para a análise dos cadernos pedagógicos foi a
da pesquisa com processamento digital, já que se tinha em mãos um volume considerável de
textos. Com isso optou-se pela organização do material em corpora digitais: “grandes
coleções de documentos textuais, coletados com algum objetivo de estudo relacionado à
linguagem e processadas por programa(s) de computador” (FREITAS, no prelo, p.1). Este
tipo de abordagem foi usada inicialmente na Linguística e vem se mostrando interessante para
as Ciências Humanas, uma vez que cada vez mais temos acesso a grandes volumes textuais,
sobretudo pela internet, o que facilita a produção e a compilação de textos por meio eletrônico
– blogs e redes sociais, por exemplo (FREITAS, no prelo; LEITE; FREITAS, 2014).
As pesquisas com corpora extensos possuem como marco o projeto SEU (Survey of
English Use), iniciado em 1959. Mas é na década de 1990 que temos uma maior disseminação
dessas pesquisas, com a popularização do acesso à internet. Nesse período, observa-se
também o aumento da extensão dos corpora em estudos linguísticos, fazendo com que
análises manuais não fossem mais possíveis (FREITAS, no prelo; GONZALEZ, 2007). A
utilização de métodos da Linguística Computacional para o trato dos textos desta pesquisa
poderia ser considerada como quantitativa, mas, como apresentamos acima, não temos
afinidades com perspectivas que dicotomizam essas abordagens, e podemos afirmar que, nesta
etapa da pesquisa, essa abordagem se mostrou mais produtivo para a análise dos elementos
que compõem o material empírico desta pesquisa.
Freitas (no prelo, p. 5) nos adverte quanto a alguns cuidados na abordagem digital de
corpus:
é importante estar ciente de que (i) os dados obtidos referem-se sempre ao conteúdo
do corpus, e o corpus, em geral, é uma parcela de algo; (ii) para todo dado é
fundamental uma interpretação humana; (iii) essa interpretação deve ser capaz de
80
confrontar mesmo os dados do próprio corpus – ou seja, os dados não devem ser
aceitos de maneira acrítica.
Ao tentar construir a análise dos corpora tendo por base as ponderações apresentadas
por Freitas, podemos evitar construções positivistas em que se entende que os dados obtidos
podem atestar algum tipo de verdade - pelo contrário, destacamos que trata-se de
interpretações que são feitas, também, com a ajuda das teorizações debatidas ao longo da
dissertação.
Torna-se, então, necessário pensar as formas como os corpora serão trabalhados, ou
seja, que ferramentas podem ser úteis na análise dos corpora produzidos. Para o trabalho aqui
desenvolvido optei pela utilização do programa AntConc, que me oferece a oportunidade de
ter informações relativas à frequência e aos contextos de uso de palavras ou combinações que
possam ser relevantes para a pesquisa. O AntConc é uma ferramenta para a abordagem semiautomática de corpora de grande extensão, desenvolvido por Laurence Anthony 23. O
programa possui sete ferramentas que podem ser acessadas através das guias disponíveis
quando o programa, que é gratuito, é instalado. Essas ferramentas possibilitam que se tenha
acesso ao quantitativo de todas as palavras que compõem o corpus, ao contexto de ocorrência
dessas palavras, aos arquivos de texto individuais, entre outras. Para a pesquisa desenvolvida
nesta dissertação, fiz usos de duas ferramentas do AntConc: n- grams e concordância tool. A
Primeira me deu acesso à lista de palavras de cada corpus pesquisado e a segunda me
possibilitou o acesso à lista de concordância das palavras que selecionei para estudo, onde
pude visualizar seu contexto de ocorrência.
Para usar os arquivos neste programa foi preciso realizar a conversão do formato .pdf
para o .txt. Portanto, após compilar os textos do sítio da SME/RJ, utilizei o programa Free
PDF to text convert24, que é gratuito e faz conversões limpas dos arquivos de formato .pdf
para o formato .txt. Não tive problemas, por exemplo, com as imagens que o programa
suprimiu ao invés de gerar ícones que as representasse, como costuma acontecer, o que
demonstrou ser bastante útil, uma vez que economizei tempo por não precisar corrigir os
arquivos convertidos - daí a expressão conversões limpas.
Após a conversão dos 60 arquivos e da organização por pastas a partir das disciplinas
– em um total de 5 pastas com 12 arquivos cada – o passo seguinte foi formar o corpus no
23
Disponível para acesso gratuito através do endereço eletrônico:
http://www.antlab.sci.waseda.ac.jp/software.html, último acesso em 08 de julho de 2014.
24
Disponível para acesso gratuito por meio do endereço eletrônico http://www.lotapps.com/ , último acesso em
08 de julho de 2014.
81
programa AntConc, com os textos de cada uma das disciplinas. Com esse programa acessei as
palavras que aparecem em cada corpus, através do estudo de n-gramas de comprimento 1, ou
seja, o programa realiza a contagem das palavras de comprimento 1, que corresponde a uma
única palavra e gera a lista de acordo com a frequência.
Em seguida, realizei a leitura e identifiquei as palavras que me ajudariam a entender
como o feminino estava sendo representado em cada uma das disciplinas oferecidas aos anos
finais do ensino fundamental. Como o tempo de pesquisa acabou se revelando curto para a
pesquisa de todas as disciplinas que compõem o currículo comum dessas séries, optou-se por
reduzir essa lista inicial e analisar as disciplinas Ciências, História e Matemática.
A seleção da disciplina de História se deu, porque, com as narrativas históricas,
podemos ratificar para as alunas e professoras quem tem importância e quem não tem. Essa
disciplina possui um peso simbólico muito grande ao afirmar que personagens do passado são
relevantes para nos serem apresentados. Constitui-se, portanto, como uma apresentação dos
fatos históricos que se coloca como universal, desenhando uma concepção de social no
imaginário de quem lê o material. Temos na sociedade brasileira uma antiga disputa para que
os personagens vinculados nos livros de história sejam mais plurais, dada a tendência a se
invisibilizar os feitos de mulheres, negros e indígenas na formação nacional (GRUPIONI,
1996; SILVA; MARTINS, 2011).
Já a discussão da apostila de Ciências nos permitiria abordar importantes aspectos da
construção do feminino nessa contingência, uma vez que a identificação do feminino com
determinada anatomia é uma construção bastante consolidada na nossa cultura, pois durante
muito tempo a biologia foi usada para justificar uma suposta inferioridade natural feminina,
conforme discutido no capítulo 1. Em seu Dictionnaire philosophique, Voltaire define
Femmes:
Quanto ao físico, a mulher é, pela sua fisiologia, mais fraca que o homem, as perdas
periódicas de sangue enfraquecem as mulheres e as doenças que aparecem com sua
supressão, os tempos de gravidez, a necessidade de amamentarem os filhos e de
velarem constantemente por eles, e a delicadeza dos seus membros tornam-nas
pouco propícias para todos os trabalhos e para todas as profissões que exigem força
e resistência (VOLTAIRE apud CRAMPE-CASNABET, 1991, p. 382).
De fato, o apelo a características biológicas foi, através dos tempos, predominante na
marcação de uma diferença, que acaba sendo convertida em desigualdade. Desse modo, a
disciplina de Ciências pode ser espaço-tempo interessante para verificarmos se houve
mudanças na forma como o biológico define o feminino, ou seja, queremos entender se as
82
características do corpo feminino e o corpo masculino ainda são usadas para demarcar
diferenciações que os tornam desiguais e portadores de um tipo de essência objetiva.
E por último, mas não por menor importância, a apostila de Matemática, uma
disciplina onde as questões de gênero, a princípio, não teriam destaque, o que a torna
particularmente interessante. As iterações relativas aos sentidos de gênero aqui não são
explícitas: em outras palavras, avaliamos que poderia ser interessante questionar o que se fala
sobre o feminino quando não se fala nele. Tanto nas disciplinas de História quanto na de
Ciências, a temática da mulher e do gênero já se encontram estabelecidas. Com frequência,
são abordadas de forma explícita, o que mobiliza toda uma rede de sentidos, por parte da
leitora, quando tratadas nos materiais didáticos escolares. Ou seja, a leitora é alertada para o
tema em discussão e aciona os muitos rastros que já colecionou a esse respeito: não entra
desprevenido na argumentação. Porém quando lidamos com as chamadas ciências exatas,
essas mobilizações se perdem, já que são colocadas em contextos onde ocupam lugar
periférico. Entendemos, portanto, que a Matemática acaba tendo um poder de naturalização
talvez até mais forte do que as outras disciplinas, na medida em que as afirmações ali contidas
sobre o feminino não são contestadas, sobretudo, porque não são percebidas, como quando
fazem parte do enunciado de um problema.
Antes de rodar os corpora no AntConc, realizamos a leitura das apostilas para
visualização de aspectos mais gerais do material, que informaram a leitura das listagens
geradas pelo programa. Visto que o total de palavras selecionadas nos corpora não seria um
universo viável para análise, definimos critérios para uma focalização mais seletiva desse
material:
a)
Palavras que aparecem nos dois gêneros, que permitiriam entender
como cada grupo foi significado.
b)
Expressões que dizem respeito ao universo feminino, reunindo termos
que o uso histórico já sedimentou em relação direta com o feminino.
c)
Referências a formas diversas de atuação pública e profissional.
Com esses critérios, chegamos a 47 palavras a serem discutidas no corpus de História,
43 no corpus de Ciências, e 41 para o Corpus de Matemática. Para uma melhor visualização
das palavras nas tabelas optou-se por agrupar as palavras com flexão de número, já que o
programa as separa. Também optou-se por colocar o número de ocorrências das palavras de
acordo com os dados disponibilizados pelo programa de análise de corpus, mas é preciso
destacar que a ocorrência em si não é o mais importante, mas, sim, os usos que estão sendo
feito das palavras de acordo com seu contexto. Entendemos que uma mesma palavra pode
83
estar inscrita na superfície analisada de acordo com os critérios formulados e não demonstrar
iterações de relevo para a pesquisa aqui desenvolvida.
O passo seguinte após essa segunda seleção foi entender o contexto em que as palavras
estavam inscritas. Para tal, fizemos o estudo das concordâncias de frase, disponível no
AntConc, por meio do qual pudemos analisar as frases de ocorrência das palavras
selecionadas. Em diversos momentos, contudo, retornamos às apostilas, para visualizar o
contexto mais amplo das palavras ou para suprimir dúvidas.
3.2.1 Leitura dos Corpora
Neste tópico, exponho as análises textuais do corpus de cada disciplina. Pontuo que
entendo aqui que as noções de análise e de texto em sentido alternativo ao tradicional. Na
análise, queremos compreender o que está sendo exposto, buscando identificar a lógica do
texto, sem a pretensão da objetividade, ou da procura por uma verdade pré-existente às
interpretações que realizo (RODRIGUES, 2013). Quando me refiro a texto, compreendo,
junto com Derrida (1991), como um sistema de significação que produz realidade que pode
aparentar apenas descrever.
Organizei a apresentação da síntese das análises desenvolvidas na seguinte ordenação:
descrição do corpus; visualização das palavras selecionadas em tabelas; discussão, em
tópicos, das palavras selecionadas, além da citação dos contextos em que ocorrem (mantive os
termos pesquisados em negrito, conforme aparecem nas listagens de ocorrência, para uma
melhor visualização dos mesmos). Finalizo com comentários gerais a respeito de cada corpus.
3.2.1.1 “Diferentes, mas não desiguais”: as mulheres e as Ciências
O corpus de Ciências é composto por 12 arquivos. Após a leitura inicial das palavras
geradas pelo estudo de n-gramas, selecionaram-se 43, onde realizamos uma investigação
acerca das concordâncias dessas palavras. As palavras selecionadas aparecem na tabela a
seguir:
84
Tabela 3 – Ocorrências Corpus de Ciências
N- GRAMA
OCORRÊNCIAS
adolescência
13
adolescente
5
adulto
36
amor
7
bebê
11
brasileira+brasileiras
10+2
brasileiro+brasileiros
9+4
32+11
cientista+cientistas
corpo+corpos
344+37
criança+crianças
9+6
domésticas
2
domésticos
2
engenheiro
1
família
12
feminina
4
feminino+femininos
10+7
gênero
8
gravidez
9
homem+homens
13+7
humana
18
humano+humanos
58+15
mãe+mães
8+3
masculino+masculinos
7+6
médica
1
médico
17
menina+meninas
1+8
menino+meninos
3+9
mulher+mulheres
5+9
natureza
31
papai
3
pesquisador+pesquisadores
4+3
pessoa+pessoas
50+45
sexuais
29
sexualidade
8
trabalhador+trabalhadores
1+1
Ao ter acesso às concordâncias, isto é, às frases em que as palavras estavam
localizadas, algumas foram eliminadas por não representarem iteração de relevo para a
pesquisa. Por exemplo, inicialmente supus que o termo corpo pudesse trazer informações
sobre a forma como o feminino é significado, mas, ao pedir a concordância, pude ver que a
85
utilização da palavra corpo se referia as partes do nosso corpo ou a objetos da Física, como
nos exemplos que se seguem:
O corpo humano adulto é formado por trilhões de células (Ciências, 8º ano, 1º
bimestre, 2013).
E como se comporta um corpo que está sob a ação de uma força resultante?
(Ciências, 9º ano, 3º bimestre, 2013).
Outro termo que se pensou como interessante para a pesquisa foi sexuais, mas as
concordâncias revelaram que a palavra estava sendo usada para descrever a maturidade sexual
de meninas e meninos, como a seguir:
FALANDO UM POUCO SOBRE OS HORMÔNIOS SEXUAIS (Ciências, 8º ano,
1º bimestre, 2013, grifos conforme o original).
Alguns órgãos sexuais são externos, formando o que chamamos de genitália
(Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013).
Passo agora a apresentar destaques da discussão das iterações do feminino nesse
material:
bebê: com 11 ocorrências, está, na maioria dos casos, sendo referido ao
organismo que está no corpo da gestante. Essa nomeação pode ser problemática, uma
vez que torna o feto um indivíduo, o que pode levar ao entendimento de “portador de
direitos” que ultrapassam as vontades do corpo que o leva. Assim, a apostila estaria
afirmando uma significação que tem fundamento religioso e não científico:
No útero, o feto se desenvolve dentro de uma bolsa cheia de líquido que protege o
bebê (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013).
Assim, você pode comparar as várias fases do crescimento do bebê dentro do útero
materno (Ibid.).
A genitália está plenamente formada a partir da 14.ª semana de vida fetal, tornando
possível saber o sexo do bebê antes do nascimento, através do ultrassom (Ibid.).
Esses exemplos evidenciam que há uma tendência nas apostilas à naturalização
de uma discussão que, na sociedade brasileira, encontra divergências, que é a
concepção de vida e sobre o direito da mulher de decidir sobre a interrupção da
gravidez. Ao nomear o feto como bebê, já se aciona todo um mecanismo de
individualização e personificação do feto, onde são suprimidas as questões relativas às
86
vontades e desejos de quem o leva. Essas construções são afirmadas, em sua grande
maioria, por entidades religiosas, tal como a igreja católica, que proíbe o aborto em
todas as situações, inclusive quando a vítima sofre violência sexual. Ao nomear aquela
formação como bebê e não como feto, os cadernos pedagógicos de Ciências
promovem uma imagem do processo de gravidez que não está em consonância com a
laicidade do Estado brasileiro e se coloca como obstáculo à efetivação plena do direito
da mulher ao controle do seu próprio corpo.
gravidez: tem 9 ocorrências. Encontram-se referências ao período
gestacional e a medidas preventivas para se evitar a gravidez no período da
adolescência. Percebe-se uma negativação da ocorrência da gravidez quando acontece
na adolescência pressupondo-se que não seja desejada, embora saiba-se que o desejo
de engravidar pode ser uma escolha do casal, independente da idade. Há uma tentativa
de controle ao advertir os jovens (como a apostila rotula) sobre esses riscos:
Um dos principais cuidados na vida sexual do adolescente refere-se ao risco da
gravidez. A gravidez precoce leva os jovens a modificarem sua vida escolar, social
e familiar, enfrentando situações para as quais não estão ainda preparados (Ciências,
8º ano, 2º bimestre, 2013).
A gravidez na adolescência pode se tornar um transtorno para toda a família, pois
pode levar o adolescente ao abandono da escola, à exclusão do mercado de trabalho
e ao empobrecimento do núcleo familiar (Ciências, 8º ano, 2º bimestre, 2013).
Desse modo, as apostilas tendem a reafirmar essa idade como um período em
que você não pode tomar decisões sérias e, caso as tome, você não poderá vivenciar
essa fase de forma normal e em conformidade com o esperado socialmente.
Constroem-se dessa maneira juízos de valor sobre a gravidez nesse período, que são
apresentados como informações objetivas. O acesso a informações desta natureza
passa pela possibilidade deste público poder se posicionar sobre o assunto e a forma
prescritiva com que as apostilas abordam a questão não possibilita que esse tipo de
discussão aconteça. Não estamos ignorando os prejuízos que uma gravidez não
planejada pode gerar na vida de jovens, entre eles a evasão escolar, mas queremos
apontar que um material que não favoreça o debate e não reconheça o direito da
juventude à autonomia pouco contribui para que esse grupo possa construir sua
sexualidade de modo responsável.
87
Ao usar o genérico masculino para abordar esta temática, o material pode ter
dois efeitos performativos distintos: na primeira, invisibiliza as maneiras com que a
gravidez atinge as adolescentes, uma vez que quem fica com a responsabilidade de
cuidar e ter um bebê precocemente é, muitas vezes, a adolescente e ela sofrerá todas as
mudanças em sua vida; por outro lado, ao usar o genérico no masculino, o material
pode estar afirmando que uma gravidez na adolescência é um trabalho do casal e, por
isso, utilizaria o genérico masculino, como costuma se fazer na língua portuguesa. As
informações contidas na apostila não possibilitam a confirmação de uma ou outra
interpretação.
brasileira+brasileiras: com 12 ocorrências, essas expressões estão
relacionadas à população residente no país, espécies nativas, práticas culinárias, essas
duas últimas sendo as com mais ocorrências (encontramos 2 ocorrências para espécies
nativas - plantas e animais) -e 4 para culinária):
A culinária brasileira é bem original e diversificada (Ciências, 8º ano, 2º bimestre,
2014).
Faça uma pesquisa sobre a variedade de aves brasileiras e seus cantos distintos
(Ciências, 9º ano, 4º bimestre, 2013).
E somente em um único caso, refere-se à contribuição de uma cientista, ou
seja, das 12 ocorrências dos termos brasileira/brasileiras temos somente um pequeno
texto para falar da contribuição de uma profissional brasileira da Ciência, a Dra
Graziela, botânica:
Foi a primeira mulher a fazer o concurso para ser naturalista do Jardim Botânico e
foi aprovada em 2º lugar. Durante anos ela orientou estagiários e estudantes, sem ter
curso superior. Aos 47 anos, decidiu estudar e ingressou no curso de biologia da
Universidade do Estado da Guanabara, atual UERJ (Ciências, 7º ano, 3º bimestre,
2013).
brasileiro+brasileiros: com 13 ocorrências, em que 6 constituem
referências a hábitos alimentares, situação de vida e regiões do Brasil:
O hábito alimentar dos brasileiros é muito variado. Nossa alimentação sofreu
influência dos africanos, dos portugueses, dos franceses e dos italianos,
prioritariamente (Ciências, 8º ano, 2º bimestre, 2013).
88
Pela Constituição, os portadores do HIV, assim como todo e qualquer cidadão
brasileiro, têm obrigações e direitos garantidos (Ibid.).
O sal da região abasteceu o sul e o sudeste brasileiro, desde o início da colonização
europeia no Brasil (Ciências, 9º ano, 2º bimestre, 2013).
As outras 7 ocorrências informam sobre feitos de cientistas brasileiros, como se
exemplifica abaixo:
MIGUEL NICOLELIS (1961) Médico, esse brasileiro é considerado um dos 20
maiores cientistas mundiais da atualidade (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013, grifos
conforme o original).
O brasileiro Santos Dumont realizou o primeiro voo com o 14 BIS (1906)
(Ciências, 9º ano, 1º bimestre, 2013).
A doença de Chagas afeta órgãos como o coração e os intestinos e foi descoberta
pelo médico brasileiro em abril de 1909 (Ciências, 7ºano, 2º bimestre, 2013).
cientista+cientistas: com 43 ocorrências, 32 delas fazem referência a
cientistas homens, de dois modos: nomeando esses sujeitos ou se utilizando do
genérico masculino:
Nicolelis é o primeiro cientista brasileiro a ter um artigo publicado na capa da
revista Science (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013).
A maneira como isso acontece permaneceu misteriosa até 1860, quando o cientista
francês Louis Pasteur demonstrou que não era os deuses e, sim, a levedura que
estava por trás da transformação do suco de uva em vinho (Ciências, 9º ano, 2º
bimestre, 2013).
Antoine-Laurent de Lavoisier (Paris, 26 de agosto de 1743 — Paris, 8 de maio de
1794) foi um químico francês, considerado o criador da Química Moderna. Primeiro
cientista a enunciar o princípio da conservação da matéria (Ciências, 9º ano, 2º
bimestre, 2013).
Os cientistas acreditam que os primeiros vertebrados devem ter sido aquáticos e
que, com algumas adaptações, evoluíram para a vida terrestre (Ciências, 7º ano, 4º
bimestre, 2013).
Há somente uma ocorrência relativa a uma cientista mulher:
Mayana Zatz nasceu em Tel Aviv, Israel, em 1947 e se mudou para o Brasil em
1955. É uma grande cientista que trabalha com material genético das células
humanas (Ciências, 7º ano, 1º bimestre, 2013).
Nas
ocorrências
relacionados
às
expressões
brasileiras+brasileira,
brasileiros+brasileiro e cientistas+cientistas, podemos observar a sub-representação
89
feminina no mundo da ciência, uma vez que os trabalhos de cientistas homens são
mais difundidos e exaltados do que o das cientistas mulheres. Encontramos nessas
ocorrências a prevalência de feitos masculinos, com a nomeação de cientistas e de suas
contribuições, o que não é feito com a mesma frequência quando as personagens são
mulheres. Ambas as seções que falam dos feitos dessas duas personagens do mundo da
Ciência estão em uma parte separada do texto, um quadro cujo título é
“Homenageando...” e que se localiza na última folha de cada apostila. Ao mesmo
tempo, podemos considerar que a presença de duas mulheres já indica alguma
tentativa de desconstrução dessa invisibilidade, trazendo para as alunas os feitos de
mulheres no mundo científico.
gênero: com 8 ocorrências. Ao pedir as concordâncias dessa palavra,
apareceu a expressão “relações de gênero”, o que despertou o interesse de ir à apostila
verificar como essa palavra estava sendo abordada. Encontrou-se, então,uma página
onde o material didático propõe uma reflexão sobre as relações de gênero socialmente
construídas. O título da atividade já chama a atenção: “Diferentes, mas não desiguais”
(Ciências, 8º ano, 2º bimestre, 2013), e afirma que:
As RELAÇÕES DE GÊNERO são as construções culturais do que significa ser
feminino ou ser masculino dentro de uma sociedade (Ciências, 8º ano, 2º bimestre,
2013, grifos conforme o original).
Em seguida, sugere uma atividade para discussão em sala, com intermédio da
docente. A atividade proposta consiste em duas colunas onde a turma deverá marcar o
que pertence ao universo feminino e o que pertence ao universo masculino, sendo as
opções:
Usa roupa cor-de-rosa. Ajuda nas tarefas domésticas. Costura suas roupas. Cuida de
um bebê. Joga bola. Trabalha como garçom. Trabalha como marceneiro. Varre a sua
casa. Joga futebol. Faz serviço de pedreiro (Ciências, 8º ano, 2º bimestre, 2013).
A proposta desta atividade aponta para uma possibilidade de deslocamento
relativamente à identificação mais tradicional do feminino, pois, ao interrogar a turma
sobre as relações de gênero socialmente construídas, possibilita que se questionem os
preconceitos que possam existir em relação às atividades de mulheres e homens.
Entretanto, a condução deste tipo de dinâmica depende da sensibilidade e informação
90
da profissional que atua como regente para essas temáticas, uma vez que ela deverá
conduzir as discussões entre a turma. Mas, de forma geral, percebe-se alguma
preocupação com o sexismo, quando se traz esse tipo de questão, sinalizando a
possibilidade de alguma ruptura com concepções tradicionais e de formação de um
novo ideário para as imagens sociais de mulheres e homens.
homem+homens: com 20 ocorrências, aparece relacionado ao total da
população humana:
É um verme parasita do homem que faz parte do filo platelminto (Ciências, 7º ano,
4º bimestre, 2013).
Nos primeiros tempos, o homem realizava invenções que o ajudavam a sobreviver
(Ciências, 9º ano, 1º bimestre, 2013).
O homem está revendo seus conceitos a respeito da natureza (Ciências, 9º ano, 3º
bimestre, 2013).
Quando inclui as mulheres, abordam-se aspectos biológicos:
A reprodução é a ÚNICA FUNÇÃO REALIZADA POR SISTEMAS
DIFERENTES em homens e mulheres (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013, grifos
conforme o original).
Nas mulheres, há também o desenvolvimento dos seios, os quadris ficam mais
largos e ocorre a menstruação. Nos homens, há a presença de barba, de bigode, e a
voz fica mais grave (Ibid.).
costuma-se dizer que a voz das mulheres é mais fina que a dos homens (Ciências, 9º
ano, 4º bimestre, 2013).
No material analisado como um todo, temos a predominância do uso do
português no genérico masculino. As mulheres são explicitamente nomeadas quando
se contrapõem ao corpo masculino, como nos exemplos acima. Entendemos que, desse
modo, o material didático aqui analisado afirma que os homens são a humanidade, e as
mulheres são uma parcela dessa humanidade. Configuram-se a partir da diferenciação
com o homem, tendo como critério para essa diferenciação aspectos biológicos do
corpo, aspectos que servem para identificar o feminino. Mas, apesar desta crítica,
deve-se considerar que há algumas iterações nesse material que podem nos indicar a
possibilidade de deslocamentos nas formas de significar o feminino e o masculino,
como, por exemplo, quando afirmam que a única diferença entre mulheres e homens
está em como acontece a reprodução e também que as mudanças corporais costumam
91
ser de tal maneira, o que quer dizer que não sempre é assim. Ou seja, há sinais de
algumas subversões nas maneiras de identificarmos mulheres e homens, meninas e
meninos, trazendo possibilidades de importantes deslocamentos de sentido.
médico: com 17 ocorrências, há várias passagens onde se ressaltam
feitos de homens médicos, mas não há ocorrência para a expressão no feminino,
médica ou médicas.
Um jovem médico chega à pequena cidade mineira de Lassance. Seu nome: Carlos
Chagas (Ciências, 7º ano, 2º bimestre, 2013).
Existe um antibiótico chamado PENICILINA que foi descoberto, por acaso, por um
médico pesquisador chamado Alexander Fleming (Ciências, 7º ano, 3º bimestre,
2013).
Considerando o prestígio social da profissão médica, a ausência de referências a
mulheres nesse ofício trabalha pelo efeito performativo de afastamento das estudantes de mais
esta possibilidade de inserção valorizada no mercado profissional.
menina+meninas: com 9 ocorrências, estão relacionadas a mudanças
que o corpo feminino sofre durante a puberdade:
Por volta de 12 a 14 anos, a hipófise libera, nas meninas, o estrogênio e a
progesterona que preparam o organismo para a gravidez (Ciências, 8º ano, 1º
bimestre, 2013).
a voz dos meninos sofre alterações de tom e, nas meninas crescem as mamas (Ibid.).
menino+meninos com 12 ocorrências estão relacionadas a mudanças
que o corpo dos meninos sofre durante a puberdade:
Nos meninos, nesta mesma época, a hipófise libera a testosterona (Ciências, 8º ano,
1º bimestre, 2013).
Já nos meninos ela se manifesta mais tarde, no período entre 11 e 15 anos (Ciências,
8º ano, 2º bimestre, 2013).
Nessas ocorrências podemos observar uma prevalência da descrição dos corpos
de meninas e meninos por aspectos biológicos, naturalizando-se a função reprodutiva
para a mulher, mas o mesmo não acontece na descrição do corpo masculino, ou seja,
esse corpo não tem como função naturalizada a reprodução. Ao procurar a palavra pai
92
e papai, não temos ocorrências relacionadas à função paterna, mas sim a Lavoisier,
como “pai da Química” e também ao “Papai Noel”. Já ao procurar a palavra mãe,
encontramos uma referência a essa função naturalizada socialmente para as mulheres:
Você sabia que o bebê não respira na barriga da mãe? (Ciências, 8º ano, 1º bimestre,
2013).
Como podemos observar na discussão das iterações de destaque no corpus de
Ciências: há sinais de repetições sexistas do feminino, mas também de importantes
deslocamentos relativamente a sentidos tradicionais do ser mulher.
Ao problematizar as relações de gênero, o material nos apresenta uma tentativa de
desconstrução, desconstrução esta que fica limitada a poucas páginas, mas que já indica um
movimento de questionar, com algum nível de crítica, as concepções sociais sobre as
mulheres e os homens e o sexismo decorrente dessas concepções. Os reflexos sobre a citação
do conceito de gênero parecem não se refletir na construção do material como um todo,
porém, percebe-se que os questionamentos feitos socialmente sobre os papéis de mulheres e
homens já se fazem presentes em materiais didáticos contemporâneos.
3.2.1.2 “Inconformado com a traição de sua primeira esposa”: como as mulheres aparecem na
História
O corpus de História é composto por 12 arquivos que representam cada bimestre dos
anos finais do ensino fundamental. Selecionamos, para análise, as palavras apresentadas na
tabela abaixo:
Tabela 4 – Ocorrências corpus de História
N-GRAMA
advogados
agricultores
banqueiros
brasileiras+brasileira
brasileiros+brasileiro
cidadãos+cidadão
cientistas+cientista
OCORRÊNCIAS
3
3
4
4+55
30+36
27+14
5+2
93
deputados
eleitores
empresários+empresário
escravos+escravo
família
fazendeiros
filhos+filho
guerreira
herói
heroína
historiador
historiadora
homens+homem
mães+mãe
médicos+médico
mulheres+mulher
negócios
negras+negra
pesquisadores+pesquisador
políticos+político
primeira
primeiro
proprietários
trabalhadora
trabalhadores+trabalhador
19
10
3+3
113+28
39
19
25+18
2
4
1
10
9
65+45
2+17
3+6
31+8
11
5+11
6+4
62+79
91
71
30
3
55+20
Definida esta seleção, procuramos entender o contexto em que as palavras estavam
inscritas, com o estudo das concordâncias de frase. Analisando as concordâncias, concluí que
alguns sentidos repetidos por parte destas 47 palavras não interessavam à pesquisa, tais como
guerreira, que pensei que pudesse trazer alguma informação sobre mulheres consideradas
guerreiras, mas estava sendo usada em outro sentido:
numa época de muitas disputas por terra, cabia aos homens da nobreza a função
guerreira (História, 7º ano, 1º bimestre, 2013).
Feudalismo: uma sociedade religiosa, guerreira e camponesa (Ibid.).
E também agricultores, que traz a generalização dessa profissão no masculino, fato
que será abordado em outras ocorrências:
94
No dia 26 de abril de 1937, numa segunda-feira, os agricultores da pequena cidade
de GUERNICA vendiam os frutos de seu trabalho na feira livre na praça principal
(História, 9º ano, 3º bimestre, 2013, grifos conforme o original).
Assim, concluímos que algumas palavras selecionadas não me possibilitavam
problematizar o feminino. As que foram de interesse para a pesquisa são discutidas a seguir.
brasileiras+brasileira: com um total de 59 ocorrências, os termos
pesquisados se referem ao território e à sociedade brasileira:
Será que essa questão influenciou na COMPOSIÇÃO ATUAL DA POPULAÇÃO
BRASILEIRA? (História, 7º ano, 4º bimestre, 2013, grifos conforme o original).
Nessa ocasião, foi criada a Confederação Operária Brasileira (História, 8º ano, 2º
bimestre).
como a Guerra da Cisplatina, acentuaram a fragilidade das finanças brasileiras
(História, 8º ano, 3º bimestre).
Excetuando-se uma referência:
no Piauí , Jovita Feitosa foi chamada de a Joana D´Arc brasileira ao cortar o cabelo,
vestir-se de homem e se apresentar para o recrutamento, dizendo que ‘queria lutar
contra os monstros paraguaios que tantas ofensas tinham feito a suas irmãs
brasileiras durante a invasão de Mato Grosso (História, 8ºano, 4ºbimestre, 2013).
Esta menção aparece em um contexto de discussão sobre voluntários de guerra.
Menciona-se o exemplo de Jovita, mas não se diz como essa situação acabou. Segundo
Schumaher & Vital (2000), a jovem pode ter se suicidado depois de voltar da guerra,
pois foi rejeitada por seu pai, devido à audácia de se alistar e, também, ao fato de não
receber nenhum tipo de assistência do Estado.
brasileiros+brasileiro: teve 66 ocorrências. Nessas ocorrências
encontramos: uso do genérico masculino para falar da totalidade de quem vive no
Brasil, onde se concentra a maioria das ocorrências, totalizando 25; referência a locais
e espaços dentro do território nacional, que totalizam 14; e menção de personagens
masculinos brasileiros, onde aparecem 3:
No Brasil existe uma religião oficial que deve ser seguida por todos os brasileiros?
(História, 7º ano, 3º bimestre, 2013).
95
Assim, o Estado brasileiro, durante o período de 1956 a 1960, iniciou uma política
econômica de importação de tecnologias para produtos farmacêuticos, automóveis,
máquinas, produtos químicos (História, 9º ano, 4º bimestre, 2013).
Jadel Gregório - atleta brasileiro do salto triplo convertido ao islamismo (História,
7ºano, 1ºbimestre, 2013).
Há duas formas de conhecer essa obra do escritor brasileiro Euclides da Cunha: por
meio da adaptação em quadrinhos, realizada pelos autores Carlos Ferreira (roteiro) e
Rodrigo Rosa (desenhos) e por meio da leitura da obra do próprio autor (História,
9ºano, 1ºbimestre, 2013).
O primeiro brasileiro a pisar na pista de atletismo foi o cavaleiro Rodrigo Pessoa
(História, 9ºano, 1ºbimestre, 2013).
Podemos ver nas repetições das palavras brasileira e brasileiro uma
invisibilidade dos feitos das mulheres, pois há um maior destaque para os feitos de
homens. Desse modo, tanto o grupo de meninas como o de meninos podem não ter
acesso a história dos feitos femininos, repetindo-se que as mulheres não se
constituíram como personagens históricos relevantes para comporem as histórias
contadas nos cadernos pedagógicos de História.
cidadãos+cidadão: com 41 ocorrências, encontramos o uso do
genérico masculino para denominar os cidadãos e as cidadãs:
Aproveite esses momentos significativos para a sua formação enquanto cidadão
(História, 7º ano, 2º bimestre, 2013).
A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos
direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir
livremente (História, 8º ano, 2º bimestre, 2013).
Não cita mulheres ou homens, sequer para fazer a marcação de um privilégio
masculino, a possibilidade de votar:
A Constituição de 1891 estabelecia: eleições diretas para os cargos do Poder
Legislativo e do Poder Executivo; o direito dos cidadãos maiores de 21 anos, do
sexo masculino, alfabetizados, ou seja, somente para uma pequena parcela da
população brasileira (História, 9ºano, 1ºbimenstre, 2013).
políticos+político: com 125 ocorrências, esse termo é usado para
definir questões da política:
96
Os cartistas reivindicavam direitos políticos, como o sufrágio universal (direito de
voto), o voto secreto, melhoria das condições e da jornada de trabalho (História, 8º
ano, 2º bimestre, 2013).
A agitação do cenário político no Brasil fez surgir grupos políticos com interesses
conflitantes no Rio de Janeiro (História, 8º ano, 3º bimestre, 2013).
Mas referem também a personagens históricos homens que tiveram atuação
política:
Na qualidade de chefe religioso, político e militar, Muhammad levou o Islam às
cidades de Medina e Meca e aos beduínos da Península Arábica (História, 7º ano, 1º
bimestre, 2013).
Simón Bolívar (1783-1830) destacou-se como líder militar e político nas lutas pela
independência, travadas mais ao norte da América do Sul (História, 8º ano, 2º
bimestre, 2013).
A partir do observado nestas ocorrências (cidadãos+cidadão; eleitores e
políticos+político), fizemos uma busca com outras palavras para saber se a temática
das mulheres estava sendo considerada em algum momento em relação à cidadania,
direito ao voto e vida política. Buscamos as palavras cidadã, cidadania, sufragismo,
eleição, mas não encontramos nenhuma menção às mulheres e suas possíveis atuações
políticas com esses marcadores, o que reforça o apagamento da construção da
cidadania feminina e as lutas nacionais pelo direito ao voto, além de reforçar a
invisibilidade feminina na construção histórica de nossa sociedade.
empresários+empresário: com 6 ocorrências, está relacionado as
ações comerciais, mas também nomeia os sujeitos que são empresários. A ausência de
referência a empresárias é mais uma iteração que repete a identificação tradicional do
feminino, que não se remete ao mundo dos negócios e das decisões:
Sinopse do filme: Durante a Segunda Guerra Mundial, Oskar Schindler, empresário
alemão, refugia os judeus em sua fábrica, salvando cerca de 1.100 pessoas do campo
de concentração de Auschwitz (História, 9ºano, 3ºbimestre, 2013).
Por que podemos afirmar que o Barão de Mauá foi um importante empresário de
sua época? (História, 8ºano, 4ºbimeste, 2013).
Os empresários, porém, preferiam dar emprego aos imigrantes europeus. Diante
disso, os libertos foram obrigados a aceitar os piores serviços, os mais baixos
salários e conviver com um racismo silencioso, violento e sempre presente (História,
9º ano, 1º bimestre).
97
escravos+escravo: teve 141 ocorrências e estão relacionadas a relações
de trabalho e à condição a que negros e indígenas foram submetidos. Nomeia, de
forma genérica, mulheres e homens:
Os escravos desempenhavam praticamente as mesmas funções que os membros da
linhagem dominante: trabalho cooperativo, expedições de caça, defesa das cidades e
participação em cerimônias religiosas (História, 7º ano, 2º bimestre, 2013).
Escravos negros africanos aprisionados, que foram utilizados, principalmente, na
produção agrícola no Caribe e na atual Colômbia (antigo vice-reinado de Nova
Granada) (História, 7º ano, 4º bimestre).
Distingue mulheres e homens em duas situações:
[...] com os negros de ganho - homens e mulheres que vendiam de tudo nas ruas da
cidade, dividindo com seus senhores o fruto de seu trabalho (História, 8ºano,
4ºbimestre, 2013).
Que fatos levaram muitos homens e mulheres a acreditarem que o trabalho escravo
terminaria no continente americano? (História, 8ºano, 4ºbimestre, 2013).
Essas duas construções apresentam iterações menos sexistas, que não trazem
um apagamento total da mulher, como acontece na maior parte desse material.
família: com um total de 39 ocorrências. Família aparece como uma
instituição tradicional, sendo mencionadas como funções da família, a manutenção da
linhagem e o auxílio no trabalho, no caso das famílias mais pobres:
Tratava-se de uma sociedade organizada na relação familiar, também chamada de
linhagem porque se baseava no parentesco e se apoiava nas diferenciações de idade
e sexo. Cabia a cada linhagem, ou seja, a cada família extensa, responder por uma
atividade econômica (História, 7º ano, 2º bimestre, 2013).
E pelos baixos salários oferecidos, era fundamental que todos os integrantes de uma
família trabalhassem, para garantir a sobrevivência de todos (História, 8º ano, 2º
bimestre, 2013).
filhos+filho: com 43 ocorrências, denotam o uso no genérico masculino
na maioria das situações:
Assim se impedia que os filhos requeressem os bens da Igreja como herança
(História, 7º ano, 1º bimestre, 2013).
Os filhos das famílias mais abastadas eram educados, em suas casas, por preceptores
(professores particulares) (História, 8º ano, 3º bimestre, 2013).
98
Cita as mulheres/meninas em duas passagens:
Geralmente, as mulheres plantam e colhem, preparam os alimentos, cuidam dos
filhos (História, 7ºano, 2ºbimestre, 2013).
As meninas eram estimuladas a terem muitos filhos por conta das guerras (Ibid.).
Essas frases despertaram interesse em saber como esse texto estava composto
na apostila, se era um fragmento de citação ou se era a narrativa das pessoas que
produziram o material. Era de fato citação de outra fonte, mas o que surpreendeu foi o
exercício proposto a partir do texto, onde era sugerido que as estudantes enumerassem
as tarefas feitas nas sociedades indígenas de acordo com uma “divisão sexual ou
natural do trabalho”, colocando F para trabalho feminino e M para o masculino:
Coleta que exija maior destreza e força física como derrubar pinhões e castanhas,
cortar palmitos, coletar mel e cortar folhas de palmeira (História, 7ºano, 2ºbimestre,
2013).
Produzir enfeites delicados para o corpo (Ibid.).
A forma como a apostila polariza força e delicadeza nos faz constatar uma falta
de atenção ao que se repete no texto didático. Sabemos que perdura uma divisão
sexual do trabalho em muitas organizações sociais, mas expressões a essas situações
sem qualquer reflexão crítica podem reforçar a visão de mulheres como frágeis, que
fazem trabalhos delicados e de homens como fortes, que precisam sempre fazer uso da
força física.
herói: com 4 ocorrências, faz alusão aos feitos de homens tidos como
heróis. Exponho abaixo exemplos dessa iteração:
Chegando a Paris como herói, Napoleão instalou-se no poder, obrigando a família
real a fugir (História, 8ºano, 2ºbimestre, 2013).
O índio era idealizado, romantizado, imbuído de valores cultivados na Europa,
enfim, um herói mítico (História, 8ºano, 4ºbimestre, 2013).
O cavaleiro era, geralmente, representado como o grande herói, aquele que destruía
monstros e pessoas malvadas, em nome da honra cristã (História, 7º ano, 1º
bimestre).
heroína: com 1 ocorrência em 1 ficheiro: faz referência a um samba-
enredo que afirma que a princesa Isabel foi uma heroína ao assinar a lei Áurea:
99
E da princesa Pra Isabel a heroína, que assinou a lei divina Negro dançou,
comemorou, o fim da sina (História, 8º ano, 4º bimestre, 2013).
Entre os marcadores herói e heroína podemos constatar mais uma vez que há
uma predominância nos cadernos de História no relato de feitos de homens, as
mulheres ficando à margem. A única heroína que aparece é a Princesa Isabel, figura
essa que é muito contestada na história brasileira, assim como todo o contexto sobre o
dia 13 de maio, uma vez que há vertentes que acreditam que a assinatura da lei Áurea
foi mais uma imposição do que uma disposição de nossos antigos monarcas.
Domingues (2011, p. 1, grifos do autor) argumenta:
Desde a década de 1970, o movimento negro organizado passou a mover uma
campanha implacável contra o Treze de Maio. Suas lideranças argumentavam que a
Abolição foi uma 'mentira' e uma 'farsa' – duas palavras usadas repetidas vezes –,
pois não garantiu a inclusão do negro na sociedade brasileira, sobretudo no mercado
de trabalho. Em vez de 'redentora', a princesa Isabel devia ser vista como uma
'impostora'.
O material analisado formula críticas à forma como a lei Áurea foi assinada,
mas considero como repetição sexista que a única visão de uma heroína fornecida
nestes materiais seja justamente de uma pessoa cuja atuação pública é muito
contestada no cenário historiográfico nacional.
historiador: com 10 ocorrências, cita diferentes historiadores usados
como referências nos cadernos pedagógicos de História, entre eles estão: José Murilo
de Carvalho, Alfredo Boulos Júnior e Ilmar de Matos.
historiadora: com 9 ocorrências, segue a lógica acima e cita, entre
outras, historiadoras: Maria Odila Silva Dias e Angela de Castro Gomes.
Interessantes nesses marcadores é perceber que há quase uma equivalência
entre a citação de historiadoras e historiadores, demonstrando que já temos mulheres
como referências na construção do saber em História. Mas também coloca-se uma
questão: com tanta presença feminina na construção do saber em história, surpreende
que as mulheres sejam ainda tão invisibilizadas nas narrativas historiográficas que
chegam às escolas.
100
homens+homem: com 110 ocorrências. Temos alguns aspectos
distintos nas ocorrências dessas palavras:
a- Apresenta-se, muitas vezes, como sinônimo de humanidade, ou seja,
como o coletivo de todos os seres humanos:
O cristianismo se tornou a religião do homem feudal (História, 7ºano, 1ºbimestre,
2013).
O humanismo produziu transformações na maneira como o mundo era
compreendido pelos homens, e, acima de tudo, mudou a forma como os homens
viam a si próprios (História, 7ºano, 3ºbimestre, 2013).
Na sociedade atual , você acha que todos os homens têm os mesmos direitos?
(História, 8ºano, 1ºbimestre, 2013).
b- Em outros momentos, esse sentido desliza, pois distingue-se
explicitamente, no corpo do texto, homens e mulheres, não pressupondo que a
nomenclatura homens represente todos os seres humanos:
Toda essa insatisfação dos homens e mulheres que viviam na Europa, naquela
época, encontrou resposta nas ideias iluministas (História, 8ºano, 1ºbimestre, 2013).
Mulheres e crianças trabalhavam da mesma maneira que os homens, nas mesmas
condições, mas o salário era bem menor (História, 8ºano, 2ºbimestre, 2013).
Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, a guerra da Tríplice Aliança contra
o Paraguai teve papel importante na construção da identidade brasileira, uma vez
que despertou, tanto em ricos quanto em pobres, livres e escravizados, homens e
mulheres, o sentimento de `amor à pátria´ e o desejo de lutar por essa pátria, mesmo
que somente no início da guerra (História, 8ºano, 4ºbimestre, 2013).
mulheres+mulher: com um total de 39 ocorrências encontramos os
seguintes sentidos:
a.
Quando fala de aspectos socioeconômicos colocam-se mulheres,
homens e crianças juntos:
Homens, mulheres e crianças trabalhavam arduamente (História, 7º ano, 1º
bimestre, 2013).
A vida cotidiana de homens e mulheres da Europa medieval (Ibid.).
Que fatos levaram muitos homens e mulheres a acreditarem que o trabalho escravo
terminaria no continente americano? (História, 8º ano, 4º bimestre, 2013).
101
Podemos ver que, nesses exemplos, as mulheres não são invisibilizadas e são
consideradas como constituintes das sociedades mencionadas, o que faz um contraste
direto com o uso da palavra homens-homem mencionados, muitas vezes, como
referência a humanidade em geral. Aqui há um reconhecimento das mulheres como
sujeitos sociais.
b.
Outras ocorrências descrevem a vida das mulheres no Islam:
Na verdade, quando elas têm contato com a religião, de uma forma adequada,
percebem que é tudo bem diferente, que o Islam, muitos séculos atrás, já garantia às
mulheres o direito ao voto, ao estudo (esse, na verdade, uma obrigação), ao uso
livre de seus bens, ao trabalho, à escolha do marido, ao divórcio etc. (História, 7º
ano, 1º bimestre, 2013).
c.
As apostilas procuram trazer, também, exemplificações da vida
das mulheres no Brasil, em diferentes momentos históricos:
As mulheres, até então reclusas, passaram a frequentar os espaços públicos, como
as ruas e os teatros e, também, vez por outra passaram a se dedicar à leitura de livros
e ao estudo de outros idiomas, especialmente o francês (História, 8º ano, 3º bimestre,
2013).
Principais aspectos da Constituição de 1934 direito de voto direto e secreto a todo
brasileiro maior de 21 anos (incluindo as mulheres), com exceção dos analfabetos,
padres e soldados; criação da Justiça Eleitoral, com o objetivo de combater a fraude
eleitoral (História, 9º ano, 3º bimestre, 2013).
d.
E, em algumas passagens, procuram não generalizar o lugar da
mulher nas culturas de diferentes sociedades:
Para vários povos, a casa é das mulheres (História, 7º ano, 2º bimestre, 2013).
Geralmente, as mulheres plantam e colhem, preparam os alimentos, cuidam dos
filhos (Ibid.).
Pontuo aqui que o uso das expressões para vários e geralmente já indica
alguma subversão, ao propor que essas atividades não são constituintes de todas as
populações, criando a possibilidade de refletir sobre os diferentes papéis que mulheres
e homens podem assumir no interior das sociedades. Também podemos destacar que, a
descrição da forma como as mulheres são vistas no Islam pode indicar um esforço de
tentar desconstruir no imaginário de quem tem acesso a esse material os preconceitos
que temos em relação a culturas diferentes da nossa.
102
primeira: com um total de 91 ocorrências, ressalta aspectos políticos
inaugurais, tais como alusão à Primeira Guerra, primeira potência política. A
referência às mulheres aparece quando relata que determinada mulher foi a primeira
esposa:
Inconformado com a traição de sua primeira esposa, o rei Xeriar se casa com uma
nova noiva a cada dia, matando todas elas, sempre, na manhã seguinte ao casamento
(História, 7º ano, 1º bimestre, 2013).
Ou seja, do total de 91 ocorrências, apenas uma faz referência a uma mulher,
porém não como sujeito da História, com um nome e uma identidade, mas sim para
designar sua condição, a de esposa.
primeiro: com um total de 67 ocorrências, faz referência a aspectos
políticos, porém destaca neles os atores, nomeando quem fez o quê:
Em 1894, o paulista Prudente de Morais foi eleito o primeiro presidente civil da
República (História, 9º ano, 1º bimestre, 2013).
O primeiro brasileiro a pisar na pista de atletismo foi o cavaleiro Rodrigo Pessoa,
campeão olímpico em Atenas-2004 e porta-bandeira da delegação (Ibid.).
Yuri Gagarin, primeiro homem no espaço (História, 9º ano, 3º bimestre, 2013).
Com os termos primeira e primeiro, vemos que os feitos masculinos, nestas
condições, acabam sendo mais valorizados que os femininos. As mulheres não têm
acesso as histórias em que foram destaques na História, com isso quero dizer que
muitas vezes acabamos não tendo acesso nos materiais escolares as mulheres que
foram pioneiras em diferentes campos. O que é muito importante para a construção
das imagens dos indivíduos no social. Enquanto as Histórias das mulheres são
marginalizadas, percebe-se um amplo interesse do material didático em difundir as
ações de homens, colocando, para tal seus nomes próprios.
trabalhadores+trabalhador: com 63 ocorrências, esses termos
aparecem, em sua maioria, para designar quem realiza o trabalho, usado no genérico
masculino:
103
Muitos desses trabalhadores eram mestres especializados nos mais diversos ofícios
e artes: carpinteiros, marceneiros, serralheiros, ferreiros, pedreiros etc. (História, 8º
ano, 4º bimestre, 2013).
Manso comunal - recebeu esse nome porque correspondia às partes do feudo que
podiam ser usadas tanto pelos servos (camponeses, pastores e trabalhadores
domésticos) quanto pelos nobres, clérigos (senhores) (História, 7º ano, 1º bimestre,
2013).
trabalhadoras: com 3 ocorrências, aparece com relação a grupo e
classe. A referência às trabalhadoras mulheres acontece somente uma vez, na fala
citada de um historiador:
Como nos diz o historiador Ilmar de Mattos, esses trabalhadores e trabalhadoras
escravizados viviam ‘Num mundo onde qualquer trabalho manual era visto com
desprezo pelos homens livres’ (História, 8º ano, 4º bimestre, 2013).
A tentativa de visibilizar as mulheres enquanto trabalhadoras não é, portanto,
uma prática comum do material analisado, ficando restrita a uma fala, enquanto há
63 ocorrências para discorrer sobre questões dos trabalhadores. Trazendo mais uma
vez apagamentos as construções que abordam as questões femininas.
As construções descritas nesse material sinalizam uma permanência da invisibilidade e
do apagamento das mulheres, já que muitas das contribuições históricas deste grupo não
aparecem no material didático. Não há registro aqui das histórias de mulheres indígenas,
mulheres negras e mulheres brancas, assim como o material didático não expõem as lutas das
trabalhadoras pelo direito de trabalhar e de votar. Impedindo que tais se vejam como sujeitos
políticos e, em contrapartida há grande destaque para a história onde os homens se constituem
como personagens, havendo inclusive a trajetória do voto masculino no Brasil, assim como
questões trabalhistas onde os homens atuam no Brasil e no mundo.
3.2.1.3 “Fabio estava planejando sua festa de aniversário”: a Matemática e as construções de
gênero
O corpus de Matemática é composto por 12 arquivos, com as apostilas de acordo com
a escolaridade e os bimestres que compõem o ano letivo de 2013. A análise dos cadernos
pedagógicos dessa disciplina teve uma expectativa diferenciada da dos demais, uma vez que,
104
como já mencionado, a Matemática pode apresentar um poder de naturalização diferenciado,
dado que o objetivo dessa disciplina não é trabalhar questões de gênero explicitamente, mas,
por isso mesmo, torna-se interessante saber como o material didático de Matemática significa
o feminino.
Propõe-se aqui um primeiro movimento que irá se constituir pela análise das palavras
previamente selecionadas na lista de ocorrências, tal como feito nos demais corpora. O
segundo movimento traz a análise dos nomes próprios que também constam na lista de
ocorrência. Optou-se por esses dois movimentos, porque na leitura inicial das apostilas de
Matemática, observou-se que os nomes próprios, nesse contexto, sinalizavam ocorrências de
interesse para a pesquisa.
Abaixo exponho as palavras selecionadas das ocorrências dados pelo estudo de ngramas.
Tabela 5 – Ocorrências Corpus de Matemática
N-GRAMA
alunas
alunos
brasileira
brasileiros+brasileiro
campeonato
cidadania
científica
criança+crianças
eleitores
esportes+esporte
femininos+feminino
filho+filhos
futebol
homens+homem
irmã
irmãos
jogadores+jogador
jogar
mãe
masculino+masculinos
meninas+menina
meninos
moças
mulheres+mulher
primeira
primeiro
OCORRÊNCIAS
2
63
5
4
8
1
16
6+5
6
15+13
2+3
4+6
23
13+8
1
1
29
6
2
3+7
10
9
2
12
20
43
105
professor
professora
sexo
vendedor
vendedora
22
5
6
2
2
Como nos outros corpora, parte das palavras selecionadas não demonstraram
significações de interesse para a pesquisa, tais como científica, já que sua referência fazia
menção a um conceito da Matemática, a notação científica:
Notação científica? O que significa? Notação científica, também conhecida como
padrão ou como notação em forma (Matemática, 9º ano, 1º bimestre, 2013).
E também a palavra alunos, que é usada como genérico masculino para designar as
pessoas que estudam:
Dos alunos de uma escola, 58% são do sexo feminino (Matemática, 7º ano, 1º
bimestre, 2013).
Nessa escola, os alunos com conceito MB são aqueles que apresentaram rendimento
excelente (Matemática, 7º ano, 3º bimestre, 2013).
As palavras que me possibilitam uma análise mais produtiva dos sentidos do feminino
estão apresentadas a seguir:
esportes+esporte: com 28 ocorrências, fazem menções a
diversos esportes, mas utiliza a forma masculina para se referir aos praticantes:
Os alunos de uma turma registraram, em uma tabela, suas preferências em relação
aos esportes (Matemática, 7º ano, 1º bimestre, 2013).
Sérgio quer saber, no final da pesquisa, o perfil de sua turma em relação aos
esportes (Matemática, 8º ano, 2º bimestre, 2013).
Quando menciona o nome de esportista é um homem:
Um dos maiores nomes da história do skate, Bob Burnquist foi o primeiro atleta do
esporte a fazer um giro de 900 graus em uma “megarrampa” de forma documentada
(Matemática, 7º ano, 2º bimestre, 2013).
futebol: com 23 ocorrências, quando fazem referências a
pessoas só aparecem homens:
106
Dos 11 jogadores de um time de futebol, apenas 5 têm menos de 25 anos de idade
(Matemática, 7º ano, 3º bimestre, 2013).
O artilheiro do campeonato estadual de futebol fez 20 gols em 9 jogos (Matemática,
8º ano, 1º bimestre, 2013).
Sou treinador de um time de futebol da minha comunidade (Matemática, 9º ano, 2º
bimestre, 2013).
jogadores+jogador: com 32 ocorrências, a referência em sua
totalidade é a homens praticando esportes, com predominância para o futebol:
Dos 11 jogadores de um time de futebol, apenas 5 têm menos de 25 anos de idade
(Matemática, 7º ano, 3º bimestre, 2013).
Qual a diferença entre a altura do jogador mais alto e a do jogador mais baixo?
(Matemática, 7º ano, 2º bimestre, 2013).
A média de gols feitos por esse jogador é obtida através da divisão do número de
gols feitos pelo número de partidas (Matemática, 8º ano, 1º bimestre, 2013).
jogar: com 6 ocorrências, aqui mais um vez é reforçada a
identificação dos meninos e homens como jogadores:
Jorge e Anderson adoram jogar videogame (Matemática, 8º ano, 3º bimestre, 2013).
Para jogar futebol, João pode escolher uma entre duas camisas (Ibid.).
Marcos e seus amigos adoram brincadeiras antigas. Sabe, a minha concentração
melhorou depois que comecei a jogar com vocês! (Matemática, 9º ano, 2º bimestre,
2013).
Podemos ver que os termos esporte+esportes, futebol, jogadores+jogador e
jogar não apresentam referências femininas, o que pode reforçar a naturalização de
que o lugar das meninas e mulheres não é praticando esporte. Em todos os arquivos de
apostilas de Matemática somente foi encontrado uma única referência a meninas que
praticam um esporte, mas, como podemos ver, a prática dessas meninas não é nem
nomeada como esporte, marcando mais uma vez o não pertencimento feminino a esse
mundo:
A turma 1 803 participará de um torneio de Vôlei de Praia. Há, na turma, quatro
alunas que praticam esse desporto: Rita, Paula, Leila e Joana (Matemática, 8º ano, 4º
bimestre, 2013).
107
homens+homem: com 21 ocorrências, aparece também neste
contexto como sinônimo de humanidade:
Olhando à nossa volta, facilmente percebemos que há diferentes formas geométricas
por toda parte. Tanto na natureza, como nos objetos construídos pelo homem
(Matemática, 7º ano, 2º bimestre, 2013).
Na vida cotidiana, as novas tecnologias criam novas necessidades, fazendo com que
o homem de hoje se adapte a uma nova realidade (Matemática, 9º ano, 1º bimestre,
2013).
A tecnologia trouxe também um grande aliado, o computador, que permite exercer,
inclusive, atividades profissionais de dentro de casa, possibilitando ao homem
dividir melhor o seu tempo, com todos os recursos de um moderno escritório (Ibid.).
professor com 22 ocorrências, é referido como aquele que é
responsável pelo aprendizado, o regente da turma, aquele que guiará a turma:
Seu professor, como sempre, irá auxiliá-lo (7º ano, 1º bimestre, 2013).
Pergunte a seu professor como proceder com expoentes maiores (8º ano, 3º
bimestre, 2013).
professora com 5 ocorrências, aparece em exemplos de
atividades, tais como:
A professora Rita trouxe uma atividade para os alunos. Vamos ajudá-los? (7º ano,
2º bimestre, 2013).
Este gráfico mostra os conceitos dados pela professora de Matemática, para os
alunos da turma 1 704, no 1º bimestre deste ano (7º ano, 3º bimestre, 2013).
É interessante notar nessas ocorrências que o material didático de Matemática
reconhece a existência da professora como regente de turma, mas não privilegia sua
referência para ministrar o conteúdo proposto pela apostila. Essa observação é bastante
significativa, pois não se trata do não reconhecimento das professoras como regentes
de turma, mas, sim, da opção de não nomeá-las no corpo da apostila como um todo. A
recorrente utilização no genérico masculino acaba por induzir também ao apagamento
das mulheres como possíveis responsáveis pelo cumprimento das atividades dos
cadernos pedagógicos, privando quem ler este material da oportunidade do
reconhecimento e da valorização das professoras.
108
Ao solicitar a ocorrência dos nomes próprios, totalizamos 82 nomes, mas, ao procurar
as concordâncias desses nomes foi visto que, na maioria das vezes, as atividades de
personagens femininos e masculinos seguem padrões sexistas:
Rafae la e Giovanna fizeram uma pausa nos estudos e aproveitaram para colocar a
conversa em dia (Matemática, 7º ano, 1º bimestre, 2013).
Hugo é mergulhador (Matemática, 7º ano, 2º bimestre, 2013).
Caroline comprou laranjas e registrou os valores pagos na tabela abaixo
(Matemática, 7º ano, 3º bimestre, 2013).
Miriam quer fazer um bolo grande, aumentando, proporcionalmente, a quantidade
de ingredientes (Matemática, 7º ano, 4º bimestre, 2013).
O artilheiro do campeonato estadual de futebol fez 20 gols em 9 jogos (Matemática,
8º ano, 1º bimestre, 2013).
Em uma partida de videogame, Aurélio conseguiu 160 pontos em três rodadas
(Matemática, 8º ano, 2º bimestre, 2013).
Nesses exemplos, as meninas compram, fazem bolo, conversam. Já os personagens
masculinos são mergulhadores, artilheiros e jogam videogame. Na leitura das apostilas de
Matemática, pude perceber a presença de personagens femininos, mas que, em relação aos
personagens masculinos, demonstram uma dicotomização, ou seja, esse material parece
indicar o reforço da aprendizagem de que meninas e meninos, mulheres e homens possuem
lugares definidos no social, lugares esses ainda em vínculo com concepções tradicionais. Um
dos exemplos mais emblemáticos é sobre uma situação-problema onde o enunciado diz:
Fabio estava planejando sua festa de aniversário e fez algumas anotações em tabelas
[...] Com 3 latas de leite condensado, a mãe de Fabio faz 75 brigadeiros [...] A tia de
Fabio utiliza 200 g de queijo ralado para fazer 20 pães de queijo (Matemática, 7º
ano, 3º bimestre, 2013).
Aqui podemos observar mais uma vez uma polarização sobre espaços sociais
ocupados por mulheres e homens, pois, enquanto o personagem Fabio planeja, sua mãe e tia
executam, cozinham, para sua festa de aniversário. Desse modo, só o personagem de Fábio
pode pensar e se utiliza de duas pessoas do sexo feminino para executar seu plano. Elas não
pensam, só fazem o que Fábio definiu previamente. O que esse tipo de construção reforça no
imaginário de meninas e meninos e de mulheres e homens?
Quando vemos as ocorrências do corpus de Matemática, percebemos que, em muitos
exemplos onde existem atividades esportivas, só representações masculinas são exploradas,
reforçando a invisibilização da atuação feminina nessas práticas e reforçando o sexismo, uma
109
vez que, tradicionalmente, em nossa sociedade os praticantes de esportes são os meninos e
homens. O material poderia trabalhar pelo deslocamento desses sentidos, trazendo referências
de esportistas mulheres para suas atividades ou fazendo referências a jogadoras, porém
permaneceu no viés tradicional ao selecionar praticantes masculinos para as atividades
esportivas que referiu.
110
CONSIDERAÇÕES
Não se pode mudar a sociedade a partir da escola, mas pode-se lançar
alternativas, desenhar novas possibilidades, ensinar a abrir caminhos e
mostrar que nós, os seres humanos, podemos escolher 25.
Montserrat Moreno
As discussões desenvolvidas neste trabalho procuram problematizar as construções do
feminino e, de forma mais específica, como o feminino é construído nos materiais didáticos
contemporâneos. Escolhemos para essa análise, as apostilas oferecidas pela SME/RJ que
substituem nessa rede o livro didático. Ponderávamos se, com todos os deslocamentos que as
mulheres provocaram na sua identificação no social, haveria mudanças nas formas com que
elas são representadas em materiais didáticos na atualidade. Queríamos saber se, com todo o
acúmulo que tivemos em relação à temática das lutas das mulheres, gênero e livros didáticos,
ocorre alguma mudança na forma como o texto didático escolar aborda essas questões, que
poderiam fazer contraste ao encontrado, por exemplo, em Negrão e Amado (1989).
Afirmamos aqui que, entre as construções que problematizam as formas como
mulheres e homens são vistos socialmente, gênero se constitui como um conceito que ganhou
grande destaque, oportunizando significar o feminino como uma construção cultural, no lugar
de uma concepção de natureza, que em outras épocas se julgava imutável. As contribuições de
autoras como Scott (1989; 2005; 2012), Derrida (1991) e Butler (2008; 2012) permitem
questionar a própria noção de natureza, levando-nos a entender que tudo que cerca as
sociedades humanas é produzido por experiências interpretativas. Assim, a forma como
significamos diferentes sujeitos no social são decorrentes de visões construídas pelas próprias
sociedades. E mais do que eleger culpadas, essa assertiva nos permite concluir que tal como
certas formulações foram construídas e naturalizadas no meio social, também podem ser
desconstruídas, transformadas.
Scott (1989; 2005; 2012) nos convida a pensar como podemos usar o gênero como
uma categoria de análise, fornecendo subsídios para entender o social e as relações entre
25
MORENO, M. Como se ensina a ser menina – O sexismo na escola. São Paulo: Moderna; Campinas-SP: Ed.
Unicamp, 1999.
111
mulheres e homens e entre o feminino e o masculino, de uma forma mais ampliada,
incorporando assim as diversas interações humanas, já que gênero perpassaria por todas essas.
Sugere que ainda é uma categoria válida e uma lente ainda necessária para compreender as
trajetórias de distintos sujeitos no social, uma vez que nossos corpos ainda são generificados
de forma binária. Pontua que devemos, também, estudar as instituições políticas e a forma
como as questões de gênero são concebidas, legitimadas e criticadas, não as entendendo como
dadas, mas sim as problematizando para que se possa romper com os sentidos naturalizados.
As contribuições de Scott se fazem importantes para essa pesquisa, pois além das
considerações acima sintetizadas elas nos ajudam a afirmar que as diferenças que constituem
mulheres e homens não devem ser impeditivas das lutas pela igualdade.
O processo de produção desse corpo através também do gênero nos permite entender,
juntamente com Butler (2008; 2012), o caráter performativo dessas produções que se realizam
através da repetição de atos e gestos, que podem ser encenados tanto nas nossas falas, como
também nas nossas produções escritas e até nas nossas expressões corporais. Ao entendermos
que as significações produzidas ao nosso redor são frutos de interpretações, algumas destas
com um maior peso no social e em decorrência disso naturalizadas, podemos afirmar que as
concepções formuladas no social sobre mulheres e homens são performativas, uma vez que
são continuamente repetidas para que se crie um efeito de verdade, não possuindo desta
maneira uma fundamentação ontológica.
Com essas discussões chegamos ao capítulo 2, onde tentamos discutir sobre a
trajetória histórica da educação formal das mulheres e pudemos ver que, desde o início, as
visões educativas para as mulheres as subalternizavam. A educação para elas tendia a reforçar
os estereótipos de gênero, que valorizavam a formação da mulher para ser boa mãe e boa
esposa. Apenas nos anos de 1960, as mulheres passam a ter acesso sem restrições às
universidades, independendo do curso médio que realizavam. Hoje, já temos uma equiparação
no número de matrículas entre meninas e meninos e uma educação onde ambos convivem no
mesmo ambiente. Mas trouxemos, com Carvalho (2009) e Auad (2006), algumas formas
como os estereótipos de gênero podem se fazer presentes no cotidiano escolar, apesar da
escola mista. Vemos assim que a escola atual muitas vezes ainda tende a reproduzir padrões
de gênero que constroem meninas e meninos como desiguais.
Ao pesquisar como os materiais didáticos podem vincular preconceitos, incluindo os
relacionados a gênero, vimos que durante os anos de 70 e 80, em nível mundial, e, também,
nacional, temos uma série de pesquisas sobre a qualidade dos livros didáticos. Essas pesquisas
se tornam importantes uma vez que materiais como os livros didáticos são, com frequência, os
112
principais personagens do cotidiano educacional brasileiro, e seu conteúdo muitas vezes acaba
sendo lecionado sem alguma forma de crítica. Com a leitura de Negrão & Amado (1989) e de
Rosemberg et. al. (2009), entendemos que as pesquisas que articulam sexismo e livros
didáticos não são recentes e possuem uma trajetória nacional de mais de 30 anos. Em geral,
concluem pela permanência de visões sexistas nos materiais didáticos.
O capítulo 3 apresenta a síntese da análise do material empírico, principal foco desta
pesquisa. Como já anunciado, a intenção da pesquisa foi identificar os significados atribuídos
ao feminino nestes materiais, a partir do conceito de gênero e admitindo que esse feminino é
recorrentemente chamado de mulher. Portanto, queríamos saber como o feminino/o ser
mulher é repetido nesses materiais.
Pudemos ainda ver, através da discussão bibliográfica realizada no capítulo 1, que o
conceito de gênero foi disseminado por diferentes áreas, atravessando, também, a esfera do
político. Entendido, na maioria das vezes, como uma forma de romper com a identificação por
aspectos biológicos, aceita-se o sentido de gênero em que se afirma que os papéis socialmente
atribuídos a mulheres e homens são frutos de construções culturais. Temos na academia,
apesar dos diferentes usos, um entendimento de que mulheres e homens não são desiguais,
mas sim diferentes. Mas será que esse entendimento chega no universo escolar? Como as
apostilas lidam com essa informação? Será que já incorporam essa construção sobre gênero?
Foram essas as questões que nos levaram a analisar esses materiais didáticos.
Ao investigar os sentidos sobre o feminino, olhamos para três disciplinas que
compõem o currículo comum dos anos finais do ensino fundamental: Ciências, História e
Matemática. Utilizamos para o acesso aos textos ferramentas usadas na Linguística
Computacional, que nos permitiram ter acesso às ocorrências e contextos das repetições que
compunham as apostilas.
Sinalizamos, que nessa análise, encontramos, em todos os cadernos pedagógicos, a
predominância da escrita no genérico masculino. Concordo com Vianna e Unbehaum (2004),
quando argumentam que esse tipo de linguagem pode expressar discriminação sexista, além
de comprometer a construção de novos significados para a prática social e com Moreno
(1999), quando afirma que este tipo de construção tende a fazer com que as meninas
renunciem à sua identidade sexolinguística. Aprendemos também, com esse tipo de
construção, que o masculino vem sempre primeiro, ele é o primeiro a ser citado, o primeiro a
ser lembrado e na grande maioria das vezes o masculino é o único que é apresentado. Essa
forma de falar e de escrever reforça um modelo androcêntrico.
113
No corpus de Ciências, encontramos a naturalização de temas que envolvem questões
que, historicamente, são tidos como responsabilidade feminina: uma repetida afirmação do
corpo das meninas e jovens como o corpo que pode reproduzir, que pode ser mãe, sendo que o
mesmo não foi encontrado na descrição dos corpos masculinos. Também encontramos a
repetida nomeação do feto como bebê, o que, à primeira vista, pode não ser problemático, mas
este tipo de linguagem tende a disseminar de forma mais feliz a ideia de que o corpo feminino
deve ser subserviente a reprodução, criando no imaginário de quem lê a apostila a imagem de
que este feto é já um indivíduo, portador de direitos. Neste tipo de disseminação, o corpo e as
vontades da mulher deixam de existir para dar lugar a outro ser, objetificando, mais uma vez,
este corpo e projetando visões estereotipadas sobre a maternidade e o amor de mãe. A
repetida afirmação deste tipo de construção exclui, ainda, a possibilidade do diálogo e debate
sobre os direitos sexuais e reprodutivos.
No corpus de História, encontramos uma narrativa onde as mulheres não são
visibilizadas, seus feitos e suas conquistas não são, em geral, considerados. Encontramos um
material em que muitos personagens históricos homens são nomeados como os primeiros, os
brasileiros, e seus feitos são descritos. Porém, não vemos o mesmo acontecer com as
mulheres: pouco foram encontrados nomes de mulheres, tal como encontramos nomes de
homens, que foram pioneiras em suas áreas ou que contribuíram para a História do Brasil e do
mundo. A ausência de trajetórias políticas e sociais que incluíssem as mulheres neste material
acaba limitando o sentido que jovens mulheres atribuem à sua cidadania, disseminando com
este tipo de construção, mais uma vez, que o lugar nas mulheres não é na política. Esse tipo de
construção possui uma eficácia singular que pode ser vista, ainda, atualmente, na pouca
presença das mulheres em cargos políticos.
Observamos, nesse corpus, uma quase equiparação entre o número de historiadoras e
historiadores, porém sabemos que estamos inseridas em um mundo machista e sexista,
fazendo com que as experiências de todos os seres – mulheres e homens – estejam limitadas
pela visão deste mundo e ambos, mulheres e homens, acabam afetados por essas visões.
Portanto, a equiparação de historiadoras e historiadores não faz com que o material seja mais
ou menos crítico, o que confirma a perspectiva não essencialista da identidade que afirmamos
neste trabalho.
No corpus de Matemática, encontramos um cenário onde as meninas e os meninos
possuem espaços bem demarcados. Na maior parte das ocorrências analisadas, encontramos
os personagens masculinos praticando esportes, principalmente o futebol e as meninas
fazendo outras atividades como comprar, conversar, cozinhar. Podemos ver nessas apostilas
114
uma disseminação bastante eficaz no seu efeito performativo de construção de lugares que
meninas e meninos devem ocupar. Houve uma consonância quase total entre as visões
tradicionais que temos para mulheres e homens e o que foi encontrado nos cadernos
pedagógicos de matemática.
Mas também foram encontrados nestes corpora deslocamentos que sinalizavam uma
visão híbrida para a forma como identificamos as mulheres. Trago o conceito de híbrido tal
como proposto por Canclini (2006, p. XIX, grifos do autor) para pensar os processos culturais
da atualidade: “entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou
práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas
estruturas, objetos e práticas”. Com isso quero dizer que na análise dos corpora de pesquisa
encontramos iterações que deslocam as maneiras tradicionais de vermos o feminino - por
exemplo, no corpus de História há uma preocupação de levar as leitoras a entenderem as
concepções sobre as mulheres que seguem o Islam, o que coloca a questão da mulher e
trabalha pela tolerância a outras culturas. No corpus de Ciências, temos a utilização do
conceito de gênero para descrever as construções culturais sobre o feminino e o masculino, o
que podemos entender como mais uma evidência de que, ainda que de forma restrita, estes
materiais incorporam as construções que questionam as visões tradicionais sobre mulheres e
homens. Também vemos que a utilização do homem como representante da humanidade não
se sustenta em todas as repetições das apostilas de História e nas de Ciências, pois em
algumas construções ao nomear a humanidade colocavam mulheres e homens na descrição.
Assim, podemos dizer que a análise sobre os materiais didáticos utilizados pelas séries
finais das escolas públicas da SME/RJ desenvolvida para esta dissertação aponta que há
repetições e deslocamentos nestes materiais, porém as repetições prevalecem, pela insistência
em nomear o corpo feminino como reprodutivo, na invisibilidade das mulheres e seus feitos,
na iteração do espaço público como masculino. Os deslocamentos estão presentes, mas ainda
incipientes para a construção de visões igualitárias entre as mulheres e os homens.
Como mencionado na epígrafe deste capítulo, o espaço-tempo escolar pode permitir
desenhar novas possibilidades. A escola pode constituir vetor de força significativa na
consolidação de sentidos mais democráticos para o social, uma vez que é um espaço
privilegiado de informação, formação e reflexão. Essa pesquisa pretendeu contribuir com o
debate sobre sexismo nos materiais didáticos, mas também com as questões relacionadas a
diferença, por meio do qual pretende-se valorizar diferentes sujeitos no social. Entendemos
que as visões sociais estereotipadas que temos de mulheres e homens, quando inscritas na
superfície do texto didático e significadas como conhecimento verdadeiro podem de fato
115
contribuir com a perpetuação de sentidos de gênero ainda em consonância com visões
tradicionais de mulheres e homens. Essas visões repetidas nesses materiais identificam as
mulheres, muitas vezes, como pouco atuantes, com visibilidade reduzida no social e os
homens, como atuantes e tendo muita visibilidade no social, perpetuando uma imagem de
espaço privado para as mulheres e espaço público para os homens. Visões essas que se não
forem confrontadas podem criar no nosso imaginário que mulheres e homens são desiguais,
dificultando o alcance de padrões mais democráticos para nossa sociedade.
116
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