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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Educação Carla de Oliveira Romão Identificações do feminino em materiais didáticos contemporâneos Rio de Janeiro 2014 Carla de Oliveira Romão Identificações do feminino em materiais didáticos contemporâneos Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Juventude e Educação. Orientadora: Profª Dra Miriam Soares Leite Rio de Janeiro 2014 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A R761 Romão, Carla de Oliveira. Identificações do feminino em materiais didáticos contemporâneos / Carla de Oliveira Romão. – 2014. 122 f. Orientadora: Miriam Soares Leite. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação. 1. Material didático – Ensino Fundamental – Teses. 2. Sexismo – Teses. 3. Mulheres – Teses. 4. Educação – Estudo e Ensino – Teses. I. Leite, Miriam Soares. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação. III. Título. es CDU 371.671::141.72 Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. ___________________________________ Assinatura _______________ Data Carla de Oliveira Romão Identificações do feminino em materiais didáticos contemporâneos Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Juventude e Educação. Aprovado em: 21 de agosto de 2014. Banca examinadora: _________________________________________ Profª Dra Miriam Soares Leite (Orientadora) Faculdade de Educação da UERJ _________________________________________ Profª Dra Daniela Auad Universidade Federal de Juiz de Fora _________________________________________ Profª Dra Maria da Conceição Silva Soares Faculdade de Educação da UERJ Rio de Janeiro 2014 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a todas as mulheres, especialmente às mulheres negras e empobrecidas, que, mesmo invizibilizadas no social, não deixam de acreditar em outro mundo e colorem seus dias com as cores da esperança. E assim me ensinam o significado da luta e do feminismo em que acredito. AGRADECIMENTOS Agradecer é sempre um processo complicado, pois se corre o risco de deixar alguém de fora, mas, como é sempre um bom exercício para a memória, aqui me permito esse exercício. Primeiramente, quero agradecer à minha família, que sempre me incentivou a estudar, de forma mais especial, à minha mãe. Agradeço também a minhas amigas e amigos, que sempre me deram palavras de conforto e incentivo, nos momentos mais desafiadores desse processo, e que souberam, ou tentaram, entender a minha ausência. Agradeço às mulheres feministas que me oportunizaram um novo modo de entender a sociedade e de me entender também: Julia, Iara, Daiana, Alaiane, Eleutéria, Vírginia, Kênia, Rhuana, Taisa, Letícia, Lidiane, Natana, entre outras que com seus exemplos e falas serviram de inspiração para minha construção feminista. Agradeço às pessoas que fazem parte do Grupo de Estudos sobre Diferença e Desigualdade na Educação Escolar da Juventude/DDEEJ, sempre foi muito bom poder conversar com vocês: Larissa Ribeiro, Larissa Rios, Leandro, Kelsiane, Monica, Raquel, Vanini, Verônica, Viviane. E também a Carla Rodrigues e Priscila Ribeiro. Obrigada pelas conversas, risadas e trocas! Agradeço também às professoras que trabalham comigo e com as quais eu pude dividir muitos dos meus questionamentos durante esse tempo: Magna, Luciana, Sara, Geórgia, Marina, Marluce. Agradeço às minhas alunas e alunos, com os quais tive o prazer de compartilhar conhecimento, pois me permitiram questionar os seus e os meus padrões e por sempre terem sido tão receptivos na construção de nossos diálogos. Agradeço, de forma especial, à professora Miriam S. Leite, orientadora desta dissertação, que sempre foi um ótimo exemplo na forma como conduz o seu fazer pedagógico e por isso se torna inspiração. Obrigada! Quem não se movimenta não sente as correntes que o aprisionam. Rosa Luxemburgo Se não posso dançar, não é minha revolução. Emma Goldman RESUMO ROMÃO, C. O. Identificações do feminino em materiais didáticos contemporâneos. 2014. 122 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2014. Dada a persistente restrição da presença feminina em diferentes espaços-tempos das sociedades contemporâneas, desenvolvemos esta pesquisa com o objetivo de discutir os significados atribuídos ao feminino em materiais didáticos da atualidade. Partindo da hipótese de que a educação escolar, embora não determine, participa dos processos sociais que resultam em tal quadro de subalternização da mulher, focalizamos as apostilas utilizadas pelos anos finais do ensino fundamental das escolas públicas da rede da Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro, durante o ano de 2013. Foram selecionadas as apostilas das disciplinas Ciência, História e Matemática. Desenvolvemos também estudo sobre a apropriação da noção de gênero na produção acadêmica recente da pesquisa em Educação, de modo a mapear e discutir sobre esta outra importante instância de atribuição de sentido ao ser mulher. Em diálogo com o filósofo Jacques Derrida e suas teorizações sobre os processos sociais de construção de sentidos, nossas análises se basearam no entendimento de que as palavras possuem significados instáveis, provisórios e precários, instituídos de modo relacional e diferencial. Com as teorizações de Joan Scott e Judith Butler, trazemos as proposições de Derrida para pensar os mecanismos de produção do feminino no social, através do conceito de gênero e da noção de identidade performativa. Entre os resultados construídos, está a invisibilidade que a história das mulheres apresenta no material de História, a naturalização de funções apresentadas como femininas nas apostilas de Ciência e a reprodução de concepções tradicionais sobre o lugar de meninas e meninos no corpus de Matemática. Mas concluímos também que os materiais didáticos pesquisados já possuem concepções menos sexistas na forma de significar o feminino, observando-se deslocamentos que sugerem certa hibridação. Porém, esses deslocamentos são inseridos nos textos de forma tímida, fazendo com que os postulados com maior poder de iteração sejam aqueles que ainda reproduzem velhas formas de ser mulher e de ser homem, podendo reforçar os estereótipos de gênero, caso não haja acesso a informações que se contraponham às encontradas. Palavras-chave: Educação Escolar. Feminino. Materias Didáticos. Mulheres. Gênero. Sexismo. ABSTRACT ROMÃO, C. O. Identifications of the feminine in contemporary textbooks. 2014. 122 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2014. Given the persistent restriction of female presence in different space-times of contemporary societies, we developed this research with the aim of discussing the meanings attributed to the female in textbooks today. Assuming the hypothesis that school education, though not determine, takes part in the social process that result in the subordination of women, we focused in the handouts used by the final years of primary education in public schools of the City Department of Education of the city of Rio de Janeiro network, during the year of 2013. The handouts of Science, History and Mathematics were selected. We also developed study on the appropriation of the concept of gender in recent academic literature in Educational research, in order to map and discuss this another important instance of assigning meaning to a woman. In dialogue with philosopher Jacques Derrida and his theorizing about the social processes of meaning construction, our analysis were based on the understanding that words have unstable, provisional and precarious meanings, established in a relational and differential mode. With the theories of Joan Scott and Judith Butler, we bring Derrida’s propositions to think about the mechanisms of female production in the social, through the concept of gender and the notion of performative identity. Among the results produced is the invisibility that women’s history presents in the History material, the naturalization of functions presented as female in Science handouts and the reproduction of traditional conceptions about the place of boys and girls in the corpus of Mathematics. But we also found that the textbooks surveyed already have less sexist conceptions in the way to mean feminine, observing shifts that suggest some hybridization. However, these shifts are inserted into the textbooks timidly, causing the postulates with greater iteration power to be those who still reproduce old ways of being woman and man, which may reinforce gender stereotypes, if there is no access to information that counter those found. Key-words: School Education. Female. Textbooks. Women. Gender. Sexism. LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Número de artigos que consideram as práticas escolares..............................40 Tabela 2 – Educação em Números...................................................................................74 Tabela 3 – Ocorrências no Corpus de Ciências...............................................................84 Tabela 4 – Ocorrências no Corpus de História................................................................92 Tabela 5 – Ocorrências no Corpus de Matemática........................................................104 LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS ANPEd Associação Nacional de Pós-Gaduação e Pesquisa em Educação COLTED Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático CONAE Conferência Nacional de Educação ENDIPE Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino FAE Fundação de Apoio ao Estudante IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísitca INL Instituto Nacional do Livro LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação MEC Ministério da Educação PCNEF Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental PNE Plano Nacional de Educação PNLD Programa Nacional do Livro Didático PNPM Plano Nacional de Políticas para as Mulheres SECADI Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão SEPE/RJ Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação – Núcleo da cidade do Rio de Janeiro SME/RJ Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de Janeiro SUMÁRIO INTRODUÇÃO, OU: COMO SER MULHER NA ATUALIDADE............. 11 1 SIGNIFICAÇÕES CONSTRUÍDAS: PRODUZINDO O GÊNERO............ 22 1.1 O gênero construído: primeiras construções................................................... 23 1.2 Problematizando o gênero, para além do binarismo feminino/masculino.... 27 1.3 Gênero nos artigos acadêmicos.......................................................................... 37 1.4 O uso do conceito de gênero contemporaneamente: ainda há fôlego?.......... 42 2 SOBRE A EDUCAÇÃO FEMININA NO BRASIL........................................ 47 2.1 A educação de mulheres no Brasil.................................................................... 49 2.1.1 Rompendo com os estereótipos: mobilizações por uma educação não- sexista... 58 2.2 Sobre os materiais escolares: o que o livro didático tem a ver com práticas sexistas?................................................................................................................ 63 2.2.1 O livro didático no Brasil...................................................................................... 63 2.2.2 O livro didático e as questões do sexismo............................................................ 66 3 O FEMININO NAS APOSTILAS DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO............................................................... 72 3.1 Os Cadernos Pedagógicos.................................................................................. 73 3.2 Questões de método: como olhar para os corpora da pesquisa? ................... 76 3.2.1 Leitura dos Corpora.............................................................................................. 83 3.2.1.1 “Diferentes, mas não desiguais”: as mulheres e as Ciências................................ 83 3.2.1.2 “Inconformado com a traição de sua primeira esposa”: como as mulheres aparecem na História............................................................................................ 92 3.2.1.3 “Fabio estava planejando sua festa de aniversário”: a Matemática e as construções de gênero........................................................................................... 103 CONSIDERAÇÕES............................................................................................ 110 REFERÊNCIAS.................................................................................................. 116 11 INTRODUÇÃO, OU: COMO SER MULHER NA ATUALIDADE O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe a filosofar, dizia que todo homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância 1. José Saramago A frase acima me permite lembrar muito da minha trajetória desde menina, onde nunca me senti incluída nas falas em que o masculino era citado para se referir também a mim. Ler os livros da escola sempre me remeteu a apagamentos e a sentimentos que nunca soube bem explicar. Sabia que havia algo errado, mas, sendo tão pequena e com recursos tão limitados, deixava passar. Viver em um mundo onde raras vezes somos nomeadas significava vivenciar as diferenciações típicas de ser menina nos anos 1990: por que ser menina me limitava tanto? Nos anos 2000, começo a frequentar a escola normal, onde não havia rapazes em minha turma, mas, de novo, os homens se faziam presentes nas falas, nos livros. “Vocês são os futuros professores” - ao ouvir isso, olhava ao redor e pensava: “Não, somos as professoras”. Incomodava como muitas de nós lidavam com esse tipo de construção; de fato, algumas regras podem ser introjetadas sem questionamento e acabam tendo mais eficácia, pelo seu poder de naturalização. Ao travar contato com o feminismo, pude ir entendendo as formas como nós construímos essas desigualdades, e como elas estão presentes em todos os aspectos da nossa vida. É claro que, desde a minha infância, tenho acumulado diálogos e leituras que me fizeram chegar até aqui, diálogos e leituras que me permitem cada vez mais entender os meios com os quais o nosso chamado mundo ocidental lida com a diferença e como, em repetidas vezes e através de mecanismos muito eficientes, a transforma em desigualdade. Chego a esta dissertação dando seguimento aos estudos que venho desenvolvendo desde a graduação. Estes, por sua vez, têm como tema as mulheres e a tentativa de compreensão do porquê de uma persistente visão social em que as mulheres não são tidas como diferentes, mas, sim, como desiguais. Durante o mestrado, pude ter contato com 1 SARAMAGO, J. O conto da Ilha Desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 12 professoras e autoras que me levaram a pensar e a problematizar essa condição de forma mais profícua: pensar a situação das mulheres em articulação com as questões da diferença; entender melhor como o conceito de gênero é construído e problematizado; ter contato com autoras como Scott, Butler e Derrida, que me permitiram compreender o social de uma forma diferente. Sabemos que, na contemporaneidade, as chamadas questões da diferença ganham destaque. É um tempo em que as vozes de movimentos identitários ganham certa visibilidade em nível nacional e suas pautas começam a ser consideradas nas chamadas políticas públicas. Quando olhamos especificamente para as mulheres, vemos que sua percepção no social vem mudando ao longo dos séculos, sendo que, no Brasil, de forma mais intensa durante o século XX. Ou seja, é nesse período que temos uma série de medidas para que as mulheres estejam mais inseridas na vida social e política do país, em uma tentativa de construir uma igualdade assegurada pela Constituição Federal de 1988, mas reivindicada há muito tempo. Mas podemos afirmar que, além do crescimento dos movimentos identitários, dadas as configurações sociais atuais – intensa e veloz circulação de informações, acesso a internet e a redes sociais – vivemos em um tempo em que muitas questões sociais estão mais visíveis, questões estas que ou não eram consideradas em outros tempos ou eram postas à margem do debate político. Desse modo, as mais diferentes questões saíram de vez do âmbito do privado para a arena pública: tomando de empréstimo um slogan da segunda onda feminista, podemos dizer que generalizou-se a noção de que “o pessoal é político” (VARELA, 2008). Temos os mais diferentes grupos reivindicando para si uma existência plena no social, como cidadãs e cidadãos que querem usufruir de todos os seus direitos e reivindicar outros. Temos acompanhado, por exemplo, a luta que o movimento negro fez e faz em nível nacional, que culmina, entre outras conquistas, com a adoção de cotas raciais e a promulgação da lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura Afro-brasileira na educação escolar. Acompanhamos, também, a luta que o movimento LGBT tem feito pela aprovação no Senado da PL122, que torna crime a homofobia no país, mas que, em votação, acabou sendo anexada à reforma do Código Penal, significando que a PL fica adiada por tempo indeterminado. Recentemente também vivenciamos em nossa cidade todo o movimento que os grupos indígenas fizeram na tentativa de preservar sua história no antigo Museu do Índio. Os chamados movimentos sociais, que se constituem como as bases de muitas ações coletivas no Brasil, estão presentes no cenário nacional de forma mais contundente desde o final dos anos de 1970 e de 1980, quando se tem movimentos populares reivindicando melhorias nas cidades e se opondo ao regime militar implantado no país desde 1964. Nesse 13 período, as reivindicações dos movimentos eram de cunho universalista, lutando para ter “direito a ter direitos”, mas, nos anos de 1990, muitos grupos começam a se organizar em torno de bandeiras identitárias e se tornam mais institucionalizados. Essa institucionalização dá-se pelo trabalho que estes movimentos desenvolverão em torno de projetos mais pontuais, financiados por fundos públicos ou por parcerias internacionais e que desorganizam as antigas formas de estruturação destes movimentos (GOHN, 2010). Podemos ver que na história recente do Brasil a questão social sempre foi uma preocupação, seja de forma universalista, como nos anos de 1980, seja com lutas específicas nos anos de 1990. Mas é preciso explicitar que alguns desses grupos estão no cenário político há muito tempo, como, por exemplo, as mulheres. No Brasil, os movimentos feministas e de mulheres se organizam, de forma mais sistemática, desde o século XIX, quando houve uma intensa publicação de jornais e revistas produzidos para e por mulheres. Por exemplo, Nísia Floresta escrevia para periódicos, artigos, contos, ensaios e poemas onde pautava a transformação das relações entre mulheres e homens. Aqui também podemos destacar a figura de Bertha Lutz, importante ativista feminista que, no início do século XX, lutava pelo sufrágio universal para as brasileiras, criando, em 1919, a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher (DUARTE, 2007; SCHUMAHER, 2003; SCHUMAHER; BRAZIL, 2000). Como no feminismo em nível mundial, no Brasil, muitas mulheres também queriam/querem construir para si uma outra imagem social não atrelada à visão tradicional do ser mulher, ou seja, a mulher que cuida, exclusivamente, dos afazeres do lar, das filhas e filhos, do marido ou companheiro, e isso independente de estar empregada ou não - uma mulher nomeada diversas vezes como passiva, submissa e frágil. Essa imagem foi e é um referencial para diferentes gerações de mulheres e homens que crescem bombardeadas pelos estereótipos de gênero. Querendo construir uma outra imagem para si, muitas mulheres estiveram presentes nas mais diferentes lutas, principalmente, contra a desigualdade que assola o nosso país. Estivemos presentes nos bairros, creches, escolas e igrejas, onde reivindicamos acesso a saúde, saneamento básico, educação e habitação (MATOS, 2002). As mulheres também são, muitas vezes, as mais numerosas quando falamos em luta social, como argumenta SouzaLobo (apud GONH, 2010, p. 94): “frequentemente as análises ignoram que os principais atores nos movimentos populares eram, de fato, atrizes”. Como exemplo, cabe destacar que a atuação das mulheres na Constituinte de 1988 foi ímpar no processo democrático do Brasil, pois foram um dos maiores grupos da sociedade 14 civil organizados na Constituinte, tendo 85% das suas propostas incorporadas no texto final, entre as quais: licença-maternidade de 120 dias, licença paternidade de 08 dias; direito a creche para crianças de 0 a 6 anos; direito a posse de terra ao homem e à mulher; direitos trabalhistas e previdenciários à empregada doméstica; garantia de mecanismos que coíbam a discriminação étnico/racial (SCHUMAHER, 2008). Podemos ver que os movimentos feministas e de mulheres não lutam por bandeiras só para seu grupo, lutam pelo que pode fazer com que todas as pessoas possam viver de forma mais plena, livre de preconceitos e discriminações. Por isso, os movimentos feministas são tidos como “um dos segmentos que mais se destacam na luta pela universalização dos direitos sociais, civis e políticos” (MORAES, 2008, p. 495). Porém, apesar do fato de as mulheres constituírem-se como atrizes de grande visibilidade pública, muitas das suas lutas não são incorporadas nas visões cotidianas que temos delas. Escrevo isso porque as mulheres ainda carregam muitos dos estereótipos tradicionais com os quais costumávamos identificá-las. Apesar da igualdade entre mulheres e homens ser um princípio da carta magna brasileira, quando olhamos nossa sociedade e suas relações, não vemos este princípio sendo aplicado. Um caso emblemático dessa situação é no mundo do trabalho, onde as mulheres têm uma maior inserção depois dos anos de 1970, quando ocorre, no Brasil, a chamada flexibilização do trabalho. Trata-se de significativa reestruturação da produção, onde os empregadores optam, por exemplo, pelo trabalho terceirizado e, assim, não têm que pagar certos benefícios sociais. Essas transformações atingiram toda a população trabalhadora, mas afetaram de forma especial as mulheres, dada sua histórica subalternização no social (NOGUEIRA, 2005). No momento em que há um maior número de mulheres entrando no mercado de trabalho este sofre transformações que diminuem a seguridade desta trabalhadora. Assim, mulheres que atuam em um mercado de trabalho onde se tem condições precárias e sem carteira assinada são uma realidade ainda hoje, favorecida pela imagem da mulher trabalhadora como aquela que complementa a renda da sua família com o seu salário. Tal perspectiva, no entanto, contrasta com os dados do censo brasileiro realizado em 2010 2, que afirma que 37,3% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres. Segundo dados publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2012, as mulheres que trabalham com carteira assinada constituíam 40,4% da população; já os homens na mesma condição representavam 59,6%, sendo que o estudo destaca que o 2 Disponível em http://censo2010.ibge.gov.br/resultados, último acesso em 01 de agosto de 2014. 15 maior crescimento de participação feminina foi observado no emprego sem carteira assinada no setor privado3, ou seja, a realidade de empregos precários persiste para a maioria das mulheres. Quando olhamos a situação das mulheres negras, esses dados são mais alarmantes, dado que são reféns da dupla discriminação, aquela que combina raça/etnia e gênero. De fato, as mulheres negras são o grupo que possui a maior taxa de desemprego em comparação aos outros grupos: por exemplo, em São Paulo, a taxa de desemprego das mulheres negras é de 14,1%, enquanto a de mulheres não-negras é de 11,6% e de homens negros é de 10,9%. E as mulheres negras estão inseridas majoritariamente nos serviços com menores exigências de qualificação profissional, menores rendimentos, relações de trabalho mais precárias e menos valorizadas, como, por exemplo, nos serviços domésticos, onde existe um percentual de 19,2% de mulheres negras e de 10,6% das mulheres não negras4, na região metropolitana. Além de ocupar posições precárias no mercado do trabalho, muitas mulheres têm que lidar com a dupla jornada de trabalho, ou seja, além de trabalharem fora de suas casas, elas precisam, também, trabalhar dentro de suas casas, no chamado trabalho reprodutivo, aquele que mantém a vida de todas as pessoas que convivem no núcleo familiar. Tarefas como arrumação da casa, fazer comida, lavar roupa, fazer compras, entre outras, são primordiais na manutenção da vida. E como as mulheres são identificadas como as cuidadoras de suas famílias, além de serem provedoras, ficam responsáveis, também, pelo trabalho doméstico e gastam em média 29 horas e 21 minutos por semana realizando estes afazeres, dado retirado da pesquisa A mulher brasileira nos espaços público e privado, realizada pela Fundação Perseu Abramo e Sesc, em 2010. A mesma pesquisa nos dá o tempo médio semanal gasto por homens em atividades domésticas: 8 horas e 46 minutos, cerca de três vezes menor do que o das mulheres. Outro estereótipo que sobrevive nos dias de hoje se refere à forma de ver a mulher, sobressaindo certa permissividade que temos quanto aos tipos de violência que as mulheres sofrem. Ditados como “em briga de marido e mulher não se mete a colher” ou “ele pode não 3 4 Dados extraídos do sítio http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/Mulher_Mercado_Trabal ho_Perg_Resp_2012.pdf, último acesso em 27 de janeiro de 2014. Os dados sobre as mulheres negras e o mundo do trabalho foram retirados do Sistema PED-Pesquisa emprego e desemprego (Os negros nos mercados de trabalho metropolitano), realizado em convênio entre o DIEESE, a Fundação Seade, o Ministério do Trabalho (MTE/FAT) e parceiros regionais, no Distrito Federal e nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. Encontram-se disponíveis no sítio http://www.dieese.org.br/analiseped/2013/2013pednegrosmet.pdf, último acesso em 27 de janeiro de 2014. 16 saber por que bate, mas ela sabe por que apanha” e, ainda, “mulher gosta de apanhar”, mostram um aceite da sociedade brasileira com a chamada violência doméstica e familiar, que possui como alvo, na grande maioria das vezes, as mulheres. Segundo dados da pesquisa Violência contra a mulher: femicídio no Brasil, realizada pelo IPEA, de 2001 a 2011, ocorreram no Brasil cerca de 50 mil femicídios, com aproximadamente 5.000 mortes ao ano5. Essas mortes são decorrentes de conflitos de gênero, ou seja, as mulheres são mortas pelo fato de serem mulheres e podem ser mortas pelos companheiros, pais ou irmãos. As violências praticadas por pessoas do convívio da mulher se originam pelo entendimento deste ser como um ser que não possui o mesmo status que seu agressor, ou seja, as mulheres são coisificadas, objetificadas, e, como coisas e objetos, os homens poderiam/podem fazer delas o que arbitram. O rótulo da mulher como objeto/coisa é produto de uma construção histórica que afirmou a visão das mulheres como submissa aos homens, como não sendo donas de seu corpo e de suas vontades. O crime que culmina na morte das mulheres é a expressão máxima do ciclo da violência doméstica e familiar, já que, antes de a morte acontecer, é comum que a mulher tenha sofrido outras formas de violência. Este ciclo tende a se repetir muitas vezes por algumas razões, entre elas a crença na promessa de mudança de seus parceiros ou parceiras e, também, a falta de redes de apoio onde esta mulher possa ter um abrigo e referências para refazer sua vida (VÁRIOS, 2006). As intensas denúncias feitas pelos movimentos feministas e de mulheres sobre os números da violência contra a mulher culminaram na aprovação, em 2006, da lei 11.340 ou a chamada Lei Maria da Penha, que tipifica e coíbe as formas de violência contra a mulher, tornando as penas mais severas contra esse crime. Ainda não houve uma efetivação plena dessa lei, mas ela é um marco importante no combate e na erradicação da violência contra a mulher em nosso país. Além das questões referentes ao mundo do trabalho e da esfera doméstica, as mulheres ainda convivem com uma intensa cobrança no social de diferentes maneiras. Algumas vezes sofremos a chamada violência moral, onde temos nossa conduta sexual comparada à de animais; em outras, temos nossos corpos objetificados e vendidos em campanhas publicitárias, como as de cervejas ou mesmo na promoção de eventos turísticos, como o carnaval ou a copa no Brasil. Além disso, muitas vezes, ainda somos alvo do chamado padrão 5 Extraído de http://monitoramentocedaw.com.br/wpcontent/uploads/2013/09/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf, último acesso em 27 de janeiro de 2014. 17 de beleza, que cria certos padrões estéticos que se impõem às mulheres através de um bombardeio de propagandas e ofertas de serviços e produtos. Uma representação do exposto acima pode ser retirada de duas matérias que têm como protagonista a presidenta do Brasil, Dilma Roussef: na primeira, extraída da Folha de São Paulo, Gregorio Duvivier faz uma análise sobre os xingamentos a que as mulheres são submetidas por nós mesmas e pelos homens: Outro dia um amigo, revoltado com o aumento do IOF, proferiu: "Brother, essa Dilma é uma piranha". Não sou fã da Dilma. Mas fiquei mal. Brother: a Dilma não é uma piranha. A Dilma tem muitos defeitos. Mas certamente nenhum deles diz respeito à sua intensa vida sexual. Não que eu saiba. E mesmo que ela fosse uma piranha. Isso é defeito? O fato dela ter dado pra meio Planalto faria dela uma pessoa pior? (Folha de São Paulo, 06 de janeiro de 2014)6. Gregorio Duvivier nos alerta para algo que é bastante comum no cenário brasileiro: nossos xingamentos em geral depreciam as mulheres, mesmo quando não são elas o alvo do xingamento. Ou seja, os nossos xingamentos são sempre para ofender o público feminino e muitos não possuem equivalência no masculino. Assim vamos cotidianamente criando a imagem de uma mulher que pode ser rotulada segundo visões sobre seu corpo ou sobre sua conduta sexual. A outra matéria é sobre uma foto em que a presidenta aparece na praia de maiô, em que a autora da matéria, Nina Lemos, diz: A presidente Dilma Roussef também foi à praia. Como uma senhora de 67 anos, presidente, ela usou um maiô. Foi fotografada por paparazzi. Normal. Já aconteceu com o Lula e com o FHC. Só que eles não foram xingados como a presidenta, não, não foram. “Volta para o mar, oferenda”, disseram por aí. A presidenta foi chamada, entre outras coisas de: Monstro do Lago Ness, Gordzilla etc etc. Ela é presidenta. Ela não precisa mostrar um corpo impecável, não. Aliás, ninguém precisa (Yahoo blogs, 06 de janeiro de 2014)7. Mais uma vez, nesse exemplo, ao corpo da mulher é cobrado um encaixe em um padrão inalcançável para muitas de nós, o que não é problema recente. Já no final do século XIX, temos as mulheres tentando se encaixar nos costumes da época, mesmo que isso prejudicasse sua saúde. Era então comum o uso de espartilho, que deformava a caixa torácica e facilitava a infecção por tuberculose. Temos também o exemplo da China e os pés deformados das mulheres em nome de um padrão de beleza. Atualmente, convivemos com os 6 Extraído do sítio http://www1.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2014/01/1393513-xingamento.shtml, último acesso em 27 de janeiro de 2014. 7 Extraído do sítio http://br.omg.yahoo.com/blogs/nina-lemos/demi-moore-e-dilma-na-praia-e-o-123420872.html, último acesso em 27 de janeiro de 2014. 18 chamados distúrbios alimentares, como a bulimia e a anorexia, principalmente entre as mulheres – a relação é de 9 mulheres para cada 1 homem que sofre destes distúrbios –, em mais um tentativa de encaixe em modelos corporais (VARELA, 2008). Outra visão que persiste no meio social diz, mais uma vez, respeito ao corpo feminino, que nos leva a considerar o quanto as mulheres possuem de fato seus corpos. De um lado, muitas de nós acabamos seduzidas pela chamada indústria da beleza; por outro, ainda temos a posse de nosso corpo negada, nosso desejo subtraído. Durante muito tempo a sexualidade feminina foi um tabu. Muitas de nós crescemos com mães e avós falando do perigo de se perder, porém, como afirma Moraes (2008, p. 499): “só as mulheres se perdem”. Tivemos nossa sexualidade negada e limitada à esfera da reprodução, e o discurso reprodutivo se faz tão presente que até hoje nós somos obrigadas a procriar, indiferentemente ao nosso desejo, vontade e planos, já que a interrupção voluntária da gravidez, o aborto, é proibida em nosso país. Trata-se de proibição defendida, na maioria das vezes, pelas instituições religiosas que esquecem que o Estado brasileiro é laico. Assim, sem uma política de direitos sexuais e reprodutivos, onde a interrupção da gravidez seja uma possibilidade, temos hoje, no Brasil, para cada mil mulheres adolescentes entre 15-19 anos, 77 mães. Com dificuldades de acesso a informação, educação sexual e apoio nas estruturas estatais, como creche em período integral, muitas dessas jovens mães perderam oportunidades educacionais e profissionais 8, ficando privadas de uma participação mais integral na sociedade. Esta visão de uma participação integral da mulher na sociedade é recente para a população brasileira e também algo pouco exercitado, pois apesar de às mulheres ter sido permitido o acesso aos estabelecimentos de ensino nacional em 1827, e, às faculdades, em 1879, poucas enfrentavam os preconceitos e rompiam com as normas sociais da época (MORAES, 2008). Essa situação mudou, mas nem tanto. Um exemplo é que, apesar de sermos maioria no território nacional, as mulheres ainda são poucas no Congresso Nacional: do total de cadeiras de deputadas, as mulheres ocupam 8,77%, e, no senado, elas são 12 em um total de 81 lugares. Esses dados se tornam alarmantes quando temos acesso à lei 9504/97, que estabelece, em seu artigo 10, a cota eleitoral por gênero, que diz que, em cada partido ou coligação, deve-se manter o percentual mínimo de 30% e máximo de 70% de candidaturas 8 Dados retirados do endereço: http://anistia.org.br/direitos-humanos/blog/brasil-avan%C3%A7os-econtradi%C3%A7%C3%B5es-nos-direitos-sexuais-e-reprodutivos-2013-08-15, último acesso em 11 de fevereiro de 2014. 19 para cada sexo9. Ou seja, apesar de haver uma lei que garante a candidatura das mulheres, elas não chegam nem a 30% das representações eleitas, mesmo sem considerar que, muitas vezes, suas candidaturas nos partidos e coligações servem de fachada para candidatos homens. À ausência das mulheres em diferentes espaços é somada a sua frequente invisibilização: entre os personagens históricos que conhecemos, quais são homens? Quais são mulheres? Para grande parte das mulheres, a presença e feitos das personagens mulheres na história brasileira e do mundo são pouco conhecidos. Os esforços na tentativa de reconstruir essa história vêm do movimento feminista e dos chamados Estudos da Mulher, que, desde os anos de 1960 procuram resgatar a história das mulheres, reconhecendo-as como objeto de estudo, sujeitos da história e agentes sociais (LOURO, 2008; MATOS, 2002). Entendo que, se as mulheres são invisibilizadas na sua contribuição com o mundo social em que vivemos, há uma grande chance de não se construir uma imagem ativa para sua inserção social, favorecendo a perpetuação de uma menor atuação política, social e cultural das mulheres na sociedade. O presente trabalho pretende contribuir para a discussão dessas questões, ao interrogar livros e materiais didáticos usados por estudantes dos anos finais do ensino fundamental sobre as significações ali repetidas sobre o ser mulher. Ao interrogar a escola no uso de seus materiais, entendo-a como um espaço muito rico de aprendizagens e um local que é reforçado em nossa sociedade como uma das mais importantes instituições socializadoras. De fato, a grande maioria de nós passa por essa instituição. A forma como a escola considera e trata a diferença se torna muito importante, pois, apesar de haver entendimentos de que a escola tende a reproduzir as desigualdades sociais (LOURO, 2002), muitos grupos, tais como os movimentos sociais de mulheres, negros, indígenas, ainda acreditam que ela também pode ser uma aliada na desconstrução e na desnaturalização de preconceitos e discriminações. Entretanto, as ações do Estado, na forma de leis para a promoção de uma educação não-sexista, uma educação que valorize ambos os sexos e procure, ao longo da trajetória escolar de meninas e meninos, visibilizar os feitos de mulheres e homens em nossa sociedade, ainda são incipientes. Foca-se mais em regulamentos como o que avalia os livros didáticos em nível nacional e determina que os livros indicados para uso não devem conter preconceitos de raça, cor e sexo. Ou em indicativos do Plano Nacional da Educação Básica ou o Plano de Políticas Públicas para as Mulheres, ambos contendo eixos onde se afirma a construção de 9 Dados retirados do endereço: http://www.presp.mpf.mp.br/index.php?option=com_content&view=article&id=589&Itemid=72, útlimo acesso em 10 de fevereiro de 2014. 20 uma educação não-sexista como possibilidade de superar as desigualdades de gênero. Porém, poucas de suas propostas são incorporadas nas políticas educacionais federais, estaduais ou municipais (PNLD, 2011; CONAE, 2010, 2014; PNPM, 2013). Ao olhar o documento do Plano Nacional de Política para as Mulheres (PNPM) de 2013, temos, no eixo “Educação e cidadania”, um resumo de muitas questões consideradas aqui: Até este momento, em que o atual Plano Nacional de Políticas para Mulheres para o período de 2013-2015 está sendo entregue à sociedade brasileira, a educação brasileira ainda não incorporou totalmente o princípio da igualdade de gênero. Há paridade nas matrículas em quase todos os níveis de ensino. A desigualdade de gênero foi reduzida no acesso e no processo educacional, mas permanecem diferenças nos conteúdos educacionais e nos cursos e nas carreiras acessados por mulheres e homens. Se, por um lado, grande parte dos indicadores educacionais mostra que as mulheres se sobressaem em relação aos homens; esses indicadores também comprovam a persistência de graves desigualdades associadas à discriminação sexista, étnica e racial, à concentração de renda, à distribuição desigual de riqueza entre campo e cidade (PNPM, 2013). Sendo assim, por mais que a igualdade de gênero tenha sido um ponto frequente nesse e em outros documentos federais e tenha sido também ponto de ações do governo - como, por exemplo, a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) em 2004 que tem em sua proposta o objetivo de implementar “políticas educacionais nas áreas de alfabetização e educação de jovens e adultos, educação ambiental, educação em direitos humanos, educação especial, do campo, escolar indígena, quilombola e educação para as relações étnico-raciais10” - como nos aponta o texto extraído do Plano Nacional para as Mulheres, a sociedade brasileira ainda não vive de fato a igualdade de gênero. Levando em consideração tais questões, a pesquisa que aqui se apresenta pretendeu problematizar como o ser feminino está sendo significado nos materiais didáticos, ou seja, se, com toda mudança social que as mulheres vivenciaram nos últimos séculos no ocidente, elas são pautadas como sujeitos nos livros e materiais, dotadas de uma forma de estar no mundo que não submissa ao homem. Busquei investigar se os livros e materiais já reproduzem seus feitos históricos, se consideram que as mulheres podem estar em diferentes espaços, exercendo múltiplas atividades. 10 Extraído do endereço: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=290&Itemid=816, último acesso em 13 de fevereiro de 2014. 21 O relato da pesquisa que desenvolvi se organiza da seguinte forma: no primeiro capítulo procuro problematizar o conceito de gênero, apresentando, também, estudo sobre a produção acadêmica recente em torno deste conceito, na pesquisa em Educação; no segundo capítulo, exponho o que considero como marcos históricos do processo de escolarização das mulheres no Brasil, além de trazer reflexões sobre o livro didático e suas interseções com o sexismo; no terceiro capítulo, apresento uma análise do material empírico desta pesquisa, ou seja, os cadernos pedagógicos utilizados pela secretaria de educação da cidade do Rio de Janeiro nos anos finais do ensino fundamental durante o ano letivo de 2013; a última parte foi reservada para as considerações sobre a pesquisa desenvolvida. 22 1 SIGNIFICAÇÕES CONSTRUÍDAS: PRODUZINDO O GÊNERO Toda rosa é rosa, porque assim é chamada Los hermanos São notórios os avanços que as mulheres conquistaram no decorrer dos séculos: de seres considerados passivos para seu reconhecimento como pessoas, potencialmente, atuantes e tendo a mesma equivalência de direitos que os homens, em diferentes culturas e legislações. Mas, como apontado na introdução, essa equivalência contrasta com a imagem da mulher associada a visões estereotipadas do seu lugar social. Para tentar entender fenômenos deste tipo, muitas feministas procuraram explicações para além do senso comum, buscando formular teorizações para explicar o que se passava socialmente. O conceito de gênero é oriundo desta tentativa e é objetivo deste capítulo entender a sua produção no passado e na atualidade, compreendendo as críticas feitas, seus limites e possíveis potencialidades na contemporaneidade. As teorizações atuais deste conceito se articulam em torno de uma concepção de linguagem entendida em perspectiva pós-estruturalista. Nesta perspectiva, afirma-se que as estruturas não explicam como o mundo é formado, sendo necessário entender como nós, seres humanos, damos significado a estas estruturas, que, por sua vez, são instáveis, porque descentradas. Por exemplo, na epígrafe acima, afirma-se que a rosa só é rosa, porque assim é chamada: poderíamos ter-lhe atribuído não apenas outro nome, como também outro sentido, posto que as nomeações e concepções que temos sobre flores também são construções culturais. Em complexo processo de interação social, aconteceu a construção do termo rosa e, com essa nomeação, podemos construir toda uma significação acerca desse referente. O mesmo processo de interação social, que é complexo e nem sempre óbvio, além de construir o significado para rosa – tanto a própria palavra, como o objeto que refere –, constrói também a forma como significamos diferentes sujeitos no social. Podíamos usar aqui também a celebre frase de Beauvoir, em que a filósofa afirma que não se nasce mulher e complementa dizendo que é o conjunto da civilização que forma esse sujeito. Tanto a epígrafe acima como a frase de Simone de Beauvoir (1967) servem para nos dizer que não existem significações 23 descoladas dos seus contextos sociais, nem tampouco da ordem da natureza, posto que esta também é mais uma construção cultural. Durante muito tempo, ao identificar mulheres e homens, o mundo social atribuiu-lhes certas características que se afirmavam como imutáveis, ou seja, eram característiicas essenciais do ser mulher e do ser homem. Essas características eram entendidas como do mundo da natureza e, por isso não poderiam mudar. Com as produções das perspectivas estruturalistas e pós-estruturalistas, ganha força o entendimento de que não há um mundo natural a priori, pois o ser humano, em seu contato com o mundo natural, já o transforma e o significa, criando, inclusive o próprio conceito de natural. 1.1 Gênero: primeiras construções O conceito de gênero foi desenvolvido no decorrer da chamada segunda onda feminista, que tem seu início no Ocidente, nos anos de 1960, e se constitui por meio de uma intensa produção realizada por teóricas e militantes em diferentes setores. Com conquistas asseguradas em muitos países do mundo, as feministas, nesse momento, começavam a se debruçar sobre áreas da vida que eram consideradas privadas, que não eram debatidas em público – relação marido e mulher, violência doméstica, prazer feminino –, mas que, em seu interior, perpetuavam práticas machistas. Nesse momento, o pessoal torna-se político e os estudos e ações feministas começam a discutir o que acontece nas casas e nas relações familiares (VARELA, 2008). Entretanto, é importante considerar que o desenvolvimento deste conceito está ligado a toda uma construção que foi feita no decorrer dos anos que antecedem os de 1960 e que continuam após esse marco. De início, podemos destacar que a possibilidade de estudar as mulheres é vinculada a uma ruptura com um modo tradicional de fazer ciência, ruptura que está atrelada à noção de que o homem não é a medida de todas as coisas. Nas sociedades ocidentais, durante um grande período da história, foi valorizada exclusivamente a visão do homem enquanto sujeito universal, ou seja, portador da qualidade da natureza humana, de uma razão que lhe possibilita sair do estado da natureza e formar uma sociedade (ORTIZ, 2007). Essa visão de universalidade, desde seu princípio, esteve ancorada na imagem de um ser que é homem, branco e heterossexual, deixando à margem todas as outras possibilidades de manifestação do ser humano, entre elas, as mulheres. Esse sujeito 24 universal foi o modelo que as diferentes ciências usaram na formação dos seus saberes, portanto, muito do que foi construído teve como princípio formador e objeto de estudo o masculino. Um exemplo disso é o homem vitruviano de Da Vinci, que representa o modelo ideal para o corpo de um ser humano, que afirma um modelo ideal para a humanidade: o masculino. Ou, ainda, mais proximamente à temática desta dissertação, o fato de que, nas disciplinas escolares, em geral, só costumamos ter acesso a uma versão da história protagonizada pelos homens brancos e europeus. Entre as explicações que pode haver para que esse modelo de sujeito universal esteja sendo contestado, concordo com Hall (2006), quando afirma que a crise de identidade na modernidade tardia deslocou as antigas maneiras sociais de pensar e abalou as ancoragens que se tinha no mundo social. Assim, novos elementos são vistos, possibilitando outros debates, que não eram considerados pelos velhos quadros de referência. Referências representadas, por exemplo, por Descartes, francês conhecido como pai da filosofia moderna que, ao formular a proposição “Penso, logo, existo”, sintetizou a concepção de sujeito racional, pensante e consciente que predominou na modernidade ocidental (HALL, 2006). Nessa mesma publicação, Hall sintetiza em cinco as grandes rupturas dos discursos da modernidade que possibilitaram o descentramento do sujeito: o marxismo, a ideia do inconsciente proposta por Freud, os trabalhos linguísticos de Saussure, a noção de poder disciplinar de Foucault e o feminismo. A primeira ruptura considerada por Hall é relacionada à tradição do pensamento marxista, mais precisamente à reinterpretação da constituição do social feita a partir de seus escritos, onde argumenta que os homens fazem a história a partir de condições dadas. Com isso entende-se que os seres humanos agem no mundo sobre uma superfície já imposta por gerações anteriores, deslocando-se a noção de agência individual, que implicava a existência de uma essência universal do homem e que este sozinho tinha o poder de comandar suas ações. Já a segunda ruptura abordada pelo autor diz respeito à proposição do inconsciente por Freud, pois esta perspectiva desmitifica a visão de que temos uma identidade fixa, unificada e sob controle racional, já que o autor considera que “nossas identidades, nossa sexualidade e a estrutura de nossos desejos são formados com base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funcionam de acordo com uma ‘lógica’ muito diferente daquela da razão” (HALL, 2006, p. 36). Os sujeitos, portanto, são afetados pelos acontecimentos externos que, por sua vez, são interpretados pelo inconsciente de uma maneira não racionalizada. 25 A terceira é o desenvolvimento da linguística por Saussure, com seu postulado de que a linguagem é um sistema social. Para o linguista, o sentido da linguagem é produzido nas relações de similaridade e de diferença das palavras relativamente às outras palavras, sem que exista um fundamento positivo que lhes garanta estabilidade. Com essa assertiva, afirma-se que a linguagem não é uma superfície estável, portanto, as palavras não possuem um sentido fixo, dependendo de sua relação com outras palavras e com os contextos em que são repetidas para que seu significado seja estabelecido. Outro descentramento é oportunizado pelos trabalhos de Foucault, com o destaque para a noção de poder disciplinar, com que o autor procura discutir a regulação e a vigilância dos indivíduos e seus corpos. Através da noção de poder disciplinar, Foucault nos apresenta como as instituições utilizam-se da disciplinarização para nos governar e como essa prática se constitui ao longo do século XIX, seja nas escolas, nas famílias, no trabalho, nas cidades. Segundo Hall (2006, p. 42): O objetivo do “poder disciplinar” consiste em manter “as vidas, as atividades, o trabalho, as infelicidades e os prazeres do indivíduo”, assim como sua saúde física e moral, suas práticas sexuais e sua vida familiar, sob estrito controle e disciplina, com base no poder dos regimes administrativos, do conhecimento fornecido pelas “disciplinas” das Ciências Sociais. Com essa noção, em conjunto com as demais, podemos entender que as concepções que temos sobre o mundo não são dadas por um mundo natural, mas são produtos das ações humanas. E a ruptura mais atual, que, segundo Hall, faz parte dos chamados novos movimentos sociais, surgindo a partir de 1968, é o feminismo, entendido como uma crítica teórica e um movimento social que descentra o sujeito quando questiona postulados tradicionais, tais como a posição da mulher na sociedade, o valor do casamento, a dicotomia privado e público. Ao problematizar a forma como a sociedade ocidental historicamente se constituiu em relação a mulheres e homens, o feminismo contribui com a formação de uma nova episteme, possibilitando a desconstrução das naturalizações com que estávamos acostumadas a operar, e, para tal, enfatiza: como uma questão política e social, o tema da forma como somos formados e produzidos como sujeitos genereficados. Isto é, ele politizou a subjetividade, a identidade e o processo de identificação (como homens/mulheres, mães/pais, filhos/filhas) (HALL, 2006, p. 45). 26 Estas rupturas nos informam sobre uma nova forma de conceber os sujeitos sociais já que trazem e implicam a abertura para um aspecto do social que durante muito tempo não foi devidamente considerado nas pesquisas acadêmicas: a cultura. Hall pondera que tais rupturas nos permitem “ver a cultura como uma condição constitutiva da vida social, ao invés de uma variável dependente, provocando, assim, nos últimos anos, uma mudança de paradigma nas ciências sociais e nas humanidades [...]” (HALL, 1997, p. 9). É neste cenário, onde há uma efervescência tanto de questões políticas quanto culturais, onde eclodem, em diversas partes do mundo, revoltas estudantis, movimentos contraculturais e antibelicistas, lutas por direitos civis e movimentos revolucionários, que a produção do conceito de gênero se dá. Um dos primeiros usos do conceito foi feito por Robert J. Stoller, psiquiatra, em 1968, e tinha como pretensão diferenciar os aspectos biológicos dos chamados aspectos psicológicos: “Utilizaremos el término género para designar algunos de tales fenómenos psicológicos: así como cabe hablar del sexo masculino o feminino, también se puede aludir a la masculinidad y la feminidad sin hacer referencia alguna a la anatomía o a la fisiología” (STOLLER apud VARELA, 2008, p. 181-182). Stoller realizava uma pesquisa que culminou na publicação do livro Sex and Gender, que tinha como um de seus objetivos argumentar que não existe dependência entre sexo e gênero. Segundo Varella (2008), a apropriação e desenvolvimento deste conceito pelo feminismo se dará pelo grupo conhecido como feministas radicais. Gênero começa a ser entendido como uma construção cultural produzida ao longo da história, que, nas sociedades ocidentais colonizadas por países europeus, afirma uma dominação masculina e uma sujeição feminina, ou seja, denominaria os aparatos culturais que fazem com que nós cresçamos influenciados por essa hierarquização. As feministas procuravam denunciar os prejuízos que a biologia, supostamente, determinava ao feminino, já que o mundo cultural que estava significando este ser era uma criação masculina, que tendia a afirmar a subordinação do feminino. Os chamados estudos de gênero surgem, então, nas universidades estadunidenses, nos anos de 1970, e, em um período de vinte anos, foram incorporados às ciências sociais. Esses estudos denunciam a opressão a que as mulheres estão submetidas, uma vez que tudo que está atrelado ao universo feminino é tido como subordinado; os homens, para serem assim reconhecidos,devem se diferenciar do que é nomeado como pertencente ao universo feminino, já que qualquer identificação com esse universo é motivo de insultos e deboches (BEDIA, 1995; VARELA, 2008). 27 O uso do conceito de gênero possibilitou uma revolução política, pois deslocou a dominação das mulheres de algo dado pelo mundo da natureza, tido até então como imutável, para algo que é construído pelo mundo social, cultural, e que, portanto, pode ser transformado. Desse modo, ganha força a compreensão de que, mesmo antes de nascermos, somos educadas a partir de nosso gênero – na escolha de roupa, de nomes, a cor de nossos brinquedos, que atividades poderemos fazer – e isso não é algo natural, como Millet, que foi uma das primeiras a usar o termo gênero, explicava: O desarollo de la identidad genérica depende, en el transcurso de la infancia, de la suma de todo aquello que los padres, los compañeros y la cultura e general consideram próprio de cada género en lo concerniente al temperamento, al carácter, a los interesses, a la posición, a los méritos, a los gestos y a las expresiones. Cada momento de la vida del niño implica una serie de pautas acerca de cómo tiene que pensar o comportaser para satisfacer las exigencias inherentes al género (MILLET apud VARELA, 2008, p. 182). Com este conceito, as teóricas feministas abriam um leque de possibilidades para os estudos acadêmicos, questionando as desigualdades em diversos campos de saber. Este conceito é o marco da segunda onda feminista, momento das lutas feministas caracterizado pela preocupação com a diferença (MATOS, 2008). Grandes avanços são realizados, porém o conceito de gênero também foi alvo de críticas dentro do próprio feminismo. 1.2 Problematizando o gênero, para além do binarismo feminino/masculino As problematizações em torno do conceito de gênero começam tão logo sua utilização pelas teóricas feministas se inicia. Gênero se constitui, naquele momento, como uma forma de tentar outra inserção da temática das mulheres nas pesquisas acadêmicas, já que possibilitava uma nova visão sobre o social que rompia com o biológico, além de possibilitar um outro tipo de visibilidade aos estudos que tematizavam esse grupo social (SCOTT, 1989). Dentre os textos produzidos nesse tempo destaco aqui, inicialmente, dois, pelo significado que adquiriram ao longo do tempo: o primeiro texto foi escrito por Rubin, antropóloga, e é tido como o primeiro texto que propõe uma metodologia para o estudo de gênero, e o segundo, escrito por Scott, historiadora, em que a autora propõe o uso de gênero como uma categoria de análise na pesquisa em História. 28 O texto de Rubin, cujo título é O tráfico de mulheres: notas sobre a economia política do sexo, foi publicado originalmente em 1975. Segundo Rubin, “Traffic in Women tem sua origem nos primórdios da segunda onda do feminismo, quando muitas de nós que tínhamos atuado no final da década de 1960 estávamos tentando fazer uma ideia de como pensar e entender a opressão das mulheres” (BUTLER; RUBIN, 2003, p. 2). O texto tem como objetivo apresentar uma descrição mais desenvolvida do sistema sexo/gênero, com base em Levi-Strauss e Freud, mas também realizar uma crítica ao marxismo, tal como vinha sendo formulado, já que não dava resposta, por exemplo, para a questão da opressão das mulheres (RUBIN, 1993). Querendo entender como se dá essa opressão, Rubin escreverá sobre Marx, Engels, Levi-Strauss, Freud e Lacan. Ao estabelecer uma relação entre estes autores, Rubin pretende investigar nas suas obras contribuições para a problemática feminista, reconhecendo que tais escritos tendem a ser sexistas, uma vez que a opressão feminina não era ponto de interesse. A autora postula que toda sociedade possui o que chama de “sistema de sexo/gênero”, entendido como a moldagem, pela intervenção social, da matéria biológica humana. Para Rubin, o sistema sexo/gênero é um “termo neutro que diz respeito a um domínio específico, indicando simultaneamente que a opressão não é inevitável neste domínio, mas sim produto das relações sociais que a organizam” (RUBIN, 1993, p. 6). Propõe, ainda, os sistemas de parentesco como formas observáveis do sistema sexo/gênero, aproximando-se, nesse argumento, de LéviStrauss, que foi um dos primeiros a propor a observação das relações de parentesco como uma forma de entendermos o social, sob o argumento de que estas relações formam um sistema de categorias e status que muitas vezes contradizem as relações genéticas, o que desmonta o apelo excessivo a crenças divinas ou imposições da natureza. Através da observação desses sistemas, poder-se-ia entender as relações calcadas no poder e na política que organizam a vida em sociedade e que legitimam e impõem a subordinação feminina. Para Rubin, gênero faz parte desse sistema, sendo entendido como a denominação das múltiplas divisões com base no sexo impostas pelo social. Afirma que o gênero tenderia a afastar mulheres e homens, uma vez que os faz se entenderem como sujeitos diferentes, ou seja, retira suas similaridades. Mulheres e homens estariam muito mais próximos do que imaginam, porém seriam reprimidos nos traços que possuem em identificação um com o outro. Ainda segundo a autora, a fabricação de mulheres e homens imposta pela divisão sexual atende a uma heterossexualidade compulsória, uma vez que somos educadas para que nosso desejo sexual seja direcionado ao sexo oposto. Essa seria uma estratégia para que se garantisse o casamento e se reafirmassem as mulheres como moedas de troca, já que, em 29 diferentes sociedades no passado e mesmo ainda hoje, é a mulher que é dada – pede-se a mão da mulher –, para aumentar a riqueza da família ou para estabelecer relações sociais mais vantajosas. Esses arranjos são feitos através de casamentos, que só recentemente começam a serem pautados, também, na vontade feminina. Porém, como afirmado acima, existem ainda muitas sociedades em que “elas não estão em posição de dispor de si mesmas para se dar” (RUBIN, 1993, p. 9). O tráfico de mulheres é considerado um dos primeiros trabalhos que propõem uma metodologia de pesquisa com base na teoria feminista, para os estudos lésbicos e gays (BUTLER; RUBIN, 2003). Seu diálogo com autoras marxistas, estruturalistas e pósestruturalistas, na compreensão da opressão das mulheres, contribui para a construção do conceito de gênero, ao entendê-lo dentro de uma matriz histórica e social e dar-lhe visibilidade, pelo diálogo com outras autoras e teorias. Sendo assim, gênero é utilizado por Rubin como um conceito que possibilita entender as estruturas sociais a partir da ótica feminista, uma vez que permite visibilizar as opressões e as desigualdades da sociedade. Uma das intenções de Rubin era, através da visibilização das estruturas que formam o “sistema sexo/gênero”, denunciar a heterossexualidade compulsória, mas também ir além das questões de gênero, já que, a partir dos estudos dessas estruturas, tinha-se em mãos a possibilidade de discutir sobre a forma como a sociedade estava sendo significada como um todo. No entanto, essas formulações se baseavam em uma visão utópica da sociedade, como afirma Rubin: “Bem, éramos todas bastante utópicas naquela época. Isso foi entre 1969 e 1974. Eu era jovem e otimista quanto à mudança social. Naquela época havia uma expectativa comum de que a utopia estava bem próxima” (BUTLER; RUBIN, 2003, p. 6). O texto da autora se insere em uma perspectiva militante dos estudos com gênero, estudos esses que afirmavam que o uso deste termo traria mudanças significativas para a forma como as mulheres são identificadas socialmente, o que acabaria por promover uma total emancipação feminina no social. O artigo focalizado a seguir já se distancia desta visão utópica, trazendo contribuições para o estudo de gênero enquanto categoria de análise na pesquisa historiográfica. O segundo texto que destaco aqui foi publicado pela primeira vez em 1986 e escrito pela historiadora Joan Scott: Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Esse texto parece ser entendido até hoje como muito atual, o que se evidencia pelo seu uso frequente para a conceituação do termo, como verifiquei em levantamento que realizei em 2012 (ROMÃO, 2012), onde pesquiso as produções em torno do conceito de gênero apresentadas em dois encontros educacionais – Associação Nacional de Pós-Gaduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE) – no 30 período de 2004 até 2011. Nesse estudo, constato que a grande parte das produções que utilizam gênero parte de Scott para defini-lo, referindo o texto Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Scott, nesse texto, realiza uma crítica à forma como o conceito de gênero é usado na pesquisa histórica e propõe uma abordagem mais radical para o seu uso, já que concebe gênero a partir da interface com outras categorias, tais como raça e classe, argumentando que é preciso entender as relações de poder em conjunto com estas categorias. Scott é uma das primeiras a propor essa abordagem. Ao escrever seu texto, a autora explicita que o conceito de gênero era ainda muito recente, sem muitas referências em dicionários ou nas enciclopédias, e aponta que seu uso pelas feministas era referido à organização social da relação entre os sexos, em geral, desconsiderando-se as outras dimensões das questões femininas. Mas indicava, também, a clara rejeição ao determinismo biológico, conforme explicita Saffioti (2004, p. 110, grifos da autora): “Uma das razões, porém, do recurso ao termo gênero foi, sem dúvida, a recusa do essencialismo biológico, a repulsa pela imutabilidade implícita em ‘a anatomia é o destino’, assunto candente naquele momento histórico”. Com o uso do conceito, as feministas pretendiam mudar paradigmas, incluir a experiência pessoal e subjetiva, assim como atividades públicas e políticas nos estudos acadêmicos sobre as mulheres. Mas gênero acaba por se tornar sinônimo de mulheres, ou seja, nas pesquisas que se valiam desse conceito, a categoria mulheres tende a tornar-se invisível, e gênero foi se constituindo como uma categoria mais neutra do que mulheres. Isso pode ser entendido como uma estratégia na busca por legitimação acadêmica pelos estudos feministas que aspiravam à neutralidade científica, ainda tentando fazer ciência no molde das chamadas ciências da natureza. O termo acaba se dissociando da política feminista, pois, como afirma Scott (1989, p. 6), desse modo, “o termo gênero não implica necessariamente na tomada de posições sobre desigualdade ou poder, nem designa a parte lesada (e até agora invisível)”. Outro fato importante é que este conceito passa a ser usado para se referir às mulheres e aos homens, havendo teóricas que insistem em argumentar que informações sobre as mulheres é informação sobre os homens, aqui mais uma vez levando a parte lesada a se tornar invisível, uma vez que estas pesquisas acabam não explicando a forma como a opressão das mulheres foi e é dada no social e como estas se naturalizam. Scott (1989) faz uma crítica a tomada de decisões que algumas teóricas fizeram ao utilizar gênero sem demarcar as desigualdades impostas historicamente sobre a forma como mulheres e homens são significadas no social, uma vez que sendo o mundo social projetado com um vetor de força maior pelo modelo 31 masculino as trajetórias das mulheres ficam subalternizadas e essas questões precisariam ser demarcadas. Outra crítica feita por Scott diz respeito à forma como gênero é usado pelas historiadoras, uma vez que o conceito só é utilizado para temas como mulheres, crianças, famílias e não para guerra, diplomacia e alta política. Com o conceito desenvolvem-se análises do social, mas geralmente ele não é usado para saber por que as coisas são do jeito que são ou como podem ser mudadas. Assim, na segunda parte de seu texto, Scott propõe outra abordagem para gênero, entendendo-o enquanto “um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1989, p. 21). Scott propõe uma significação de gênero que seja relacional, entendendo que sua formação e reprodução está contida nos símbolos culturais, nos conceitos normativos, nas instituições e organizações sociais e na nossa identidade. O conceito pode, então, ser utilizado como “um meio de decodificar o sentido e compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana” (SCOTT, 1989, p. 23). Ao utilizar o conceito de gênero como categoria de análise, Scott rompe com o caráter fixo e permanente das significações produzidas em torno do ser mulher e ser homem, problematizando sua oposição binária e argumentando em favor de uma desconstrução da diferença sexual. Tal desconstrução se aproxima da proposta por Derrida, no sentido da busca por compreensão e crítica do funcionamento de alguma construção social, por meio da reversão e deslocamento dos pressupostos de tal construção. Ao realizar esse exercício, temos condições de romper com os binarismos e transformar os lugares atribuídos a mulheres e homens. Para Scott (1989, p. 28), Só podemos escrever a história desse processo se reconhecermos que ‘homem’ e ‘mulher’ são ao mesmo tempo categorias vazias e transbordantes; vazias porque elas não têm nenhum significado definitivo e transcendente; transbordantes porque mesmo quando parecem fixadas, elas contém ainda dentro delas definições alternativas negadas ou reprimidas. Scott contribui com uma visão de gênero mais politizada, em que seu uso, na análise histórica, pode favorecer a construção de uma história onde as mulheres sejam visíveis, ativas e com uma visão de igualdade política e social atenta também para as questões de raça/etnia e classe. Entendo o texto de Scott como bastante radical ao propor uma outra forma de significar o termo gênero, vendo-o a partir de sua articulação com questões de poder mais 32 amplas, antes invisibilizadas. E formulando-o como uma categoria de análise, fato que impulsionará seu uso nas ciências sociais, seu rechaço às construções binárias também mostra seu radicalismo, pois essa era, e ainda é, uma concepção que temos dificuldade em superar. Temos dificuldade em pensar o mundo para além do par mulher-homem, masculino-feminino, e Scott já sinaliza a necessidade dessa superação. Juntamente com o uso de gênero como uma categoria de análise, a autora propõe uma nova abordagem metodológica, atenta para as histórias marginalizadas, além de contestar a noção de fixidez das estruturas e dos sentidos em geral. Incluem-se, nas pesquisas, a noção de política e também a história das instituições e organizações sociais. Com isso tem-se uma visão mais ampla de como funciona o social, visão esta que inclui o parentesco, mas também o mercado de trabalho, a educação, o sistema político: “gênero é construído através do parentesco, mas não exclusivamente; ele é construído igualmente na economia, na organização política e, pelo menos na nossa sociedade, opera atualmente de forma amplamente independente do parentesco” (SCOTT, 1989, p. 22). Trago, para se somar a essa discussão, uma outra autora que publica importantes reflexões para o estudo do conceito de gênero: a filósofa Judith Butler. A autora tem publicações onde procura problematizar o feminismo e o gênero, construindo consistentes críticas às concepções binárias, com base na proposta da desconstrução, de Derrida. Para a autora (BUTLER, 2012), gênero não é mais usado somente para pensar as mulheres, pois, hoje, o uso deste conceito está também incluído em uma nova política de gênero, que é um movimento que engloba transgêneros, transexuais e intersexuais, em diálogo com as teorias feministas e queer. Butler entende gênero como uma norma reguladora, que escapa às regras convencionais e constitui seu próprio e distinto regime disciplinador, já que se distancia, na forma como disciplinariza nossos corpos, de outras normas. Uma forma como se distancia é o fato de que o aparato que regularia gênero já está adaptado ao gênero, ou seja, gênero está tão misturado ao modo como nos entendemos umas as outras, fazendo parte de nossa integibilidade cultural, que se torna complicado socialmente não significar os seres dentro das produções de gênero. Aqueles que tentam romper com essas naturalizações acabam classificados pelos poderes reguladores – médicas, psiquiatras, por exemplo – como aberrações, continuando assim a regulação imposta pelo gênero. Desta maneira, gênero seguiria sendo um dos componentes da coesão social defendido pelos poderes reguladores como a única forma possível de existência, fazendo com que o aparato que produz o gênero esteja já dentro das formas como vemos o gênero, nos impossibilitando uma dissociação entre 33 gênero e sua produção. Um bom exemplo disto é a forma como gênero se constitui como um mecanismo que naturaliza e produz as noções de feminino e de masculino, permitindo, na maioria das sociedades, somente essas duas formas de existência. Ou seja, ou você se identifica com o masculino ou com o feminino, não havendo a possibilidade de outros posicionamentos. Desse modo, gênero será entendido como uma norma elaborada, se diferenciando de uma regra e de uma lei, nas palavras da autora: La ideia de que el género es una norma requiere uma mayor elaboración. Una norma no es lo mismo que una regla, y tampoco es lo mismo que una ley. Una norma opera dentro de las prácticas sociales como el estándar implícito de la normalización. Aunque una norma pueda separarse analíticamente de las prácticas de las que está impregnada, también puede que demuestre ser recalcitrante a cualquier esfuerzo para descontextualizar su operación. Las normas pueden ser explícitas; sin embargo, cuando funcionan como el principio normalizador de la práctica social a menudo permanecen implícitas, son difíciles de leer; los efectos que producen son la forma más clara y dramática mediante la cual se pueden discernir (BUTLER, 2012, p. 69, grifos da autora). Ao pensar as normas de gênero com uma maior elaboração, não podemos nos deter apenas em entender gênero como a produção do feminino e do masculino, pois o gênero não se constitui somente como algo que alguém é ou tem: ele se configura por todo um aparato social que tenta estabilizar os gêneros em forma binária e nos fazer crer que essas são as únicas formas possíveis que os grupos humanos podem se manifestar e organizar o social. Mas, para Butler, o gênero também poderia se constituir como o aparato que desconstrói e desnaturaliza termos como o feminino e o masculino, se pensado como performativo. Butler (2008) investe na possibilidade de romper com esquemas binários, pois amplia nossa forma de ver e entender o gênero, já que questiona as relações de poder, o essencialismo e o universalismo presentes em muitos escritos contemporâneos. A autora, também, realiza uma crítica às práticas feministas (2008), propondo que as feministas questionem o sujeito para o qual suas práticas são direcionadas, argumentando que ser mulher não é algo seguro e permanente e, assim, desestabiliza conceitos como mulher, gênero, sexo, desejo. Dialoga com toda uma teorização que problematiza as práticas identitárias, tal como Hall (2006), quando discute as identidades na pós-modernidade. Um de seus objetivos é construir uma genealogia da categoria gênero em diferentes campos discursivos. Sua argumentação começa com o questionamento do sujeito feminista, que, para a autora, é “uma formação discursiva e efeito de uma dada versão da política representacional” (BUTLER, 2008, p. 19). Sendo assim, as feministas estariam afirmando e defendendo uma identidade – ser mulher – que é produzida dentro da lógica política da qual 34 elas querem se emancipar. É possível o sujeito do feminismo ser de fato livre das opressões desta sociedade se tenta a liberdade na lógica da sua subordinação? É possível ser livre sendo mulher? Questões complicadas, mas, como Butler afirma: “problemas são inevitáveis e nossa incumbência é descobrir a melhor maneira de criá-los, a melhor maneira de tê-los” (BUTLER, 2008, p. 7). Historicamente, há uma diferenciação social que rotula os sujeitos em mulher e homem a partir de seu sexo, que é usado como prescrição do comportamento das pessoas: se você nasce mulher deve agir de uma maneira e, se nasce homem, de outra. A noção de gênero foi, em geral, entendida como possibilidade de explicar as desigualdades entre mulheres e homens, para além do aparato dito sexual, mas, para Butler, tanto sexo quanto gênero são discursivamente construídos: o sexo é tomado como um ‘dado imediato’, um ‘dado sensível’, como ‘características físicas’ pertencentes a uma ordem natural. Mas o que acreditamos ser uma percepção física e direta é somente uma construção sofisticada e mítica, uma formação ‘imaginária’(WITTIG apud BUTLER, 2008, p. 49). Não haveria nada de natural no sexo. O essencialismo biológico e a anatomia como destino seriam entendimentos que não se justificariam, uma vez que as interpretações que damos a nossos corpos estão inseridas na lógica de uma construção cultural muito sofisticada, que nos faz crer em significações que antecedem à nossa existência: os mecanismos que produziriam tanto sexo quanto o gênero já estariam incorporados na forma como nomeamos nossos corpos e nossa sexualidade. Para Butler (2008), gênero vai além da inscrição cultural em um corpo sexuado, pois se caracteriza por uma produção discursiva que, além de fabricar o gênero, produz também o sexo. A autora argumenta que se deve entender o processo de configuração do gênero como uma complexidade que não pode ser totalizada e está inserida em uma construção que tende a afirmar a lógica na qual vivemos, lógica essa criada através de uma série de tabus que legitimam a matriz heterossexual, como Rubin também sinalizava. Cria-se, desse modo, uma obrigatoriedade de nossas relações sexuais e afetivas serem com o sexo oposto, o que, também, cria uma falsa estabilização para as identidades binárias: ou você é homem ou você é mulher, marginalizando-se outras possibilidades de expressão humana. Uma das inovações de sua obra é trazer gênero como enunciado performativo, para entender o aparato que o produz: 35 Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo de ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio organizador da identidade como causa. Esses atos, gestos, atuações, entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos. O fato de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos vários atos que constituem sua realidade (BUTLER, 2008, p. 194, grifos da autora). Conceber o gênero como enunciado performativo nos permite entender os efeitos de verdade que são atribuídos às visões idealizadas de mulheres e homens, que, por sua vez, são estabilizadas socialmente por meio dos estereótipos. Essas visões, como afirma Butler (2008), não possuem um status ontológico, mas produzem essa sensação através de sua repetição estilizada, que acaba por criar uma coerência que oculta suas descontinuidades. Um bom exemplo disso é que nem toda menina/mulher gosta da cor rosa, mas essa cor foi atribuída ao feminino, sendo a mesma lógica usada para homens/meninos e futebol: quem assume que não gosta do que foi atribuído ao seu sexo pode ter sua feminilidade ou masculinidade questionada, gerando opressões específicas para cada grupo. O conceito de performativo vem da Teoria dos Atos de Fala, pensada inicialmente pelo linguista John L. Austin. Para Austin, a linguagem não seria apenas descritiva, podendo também gerar os efeitos que enuncia (OTTONI, 2002). Os enunciados entendidos como performativos são os que não são nem verdadeiros, nem falsos, e que realizam a ação a que se referem, ou seja, quando falamos também podemos estar realizando uma ação que produz as marcas que enuncia (CULLER, 1997). Na síntese proposta por Leite (2014, p. 8): “Austin propõe que enunciados linguísticos podem não apenas descrever como também gerar efeitos no que em geral entendemos como realidade social”. As teorizações desenvolvidas por Derrida e Butler sobre o performativo interessam não apenas pelas construções que oportunizam para a conceituação de gênero, como foram centrais na definição do desenho desta pesquisa, como se verá no capítulo 3. A partir da leitura desconstrutora do livro How to do things with words, de Austin, Derrida problematiza alguns aspectos da noção de performativo: concorda com Austin, quando o autor deixa de considerar os enunciados como verdadeiros ou falsos, mas também radicaliza entendimentos desta teorização, sobretudo acerca do significado de contexto. Austin considera o contexto como total, onde estariam presentes a consciência e a intenção do sujeito falante e a estabilidade das convenções sociais, responsáveis pela efetivação do performativo. Já Derrida duvida de uma noção de contexto que capture todas as possibilidades inscritas em uma ação: para o autor, o contexto nunca está determinado ou saturado, pois haverá sempre uma nova 36 faceta do contexto para ser vista, citada, lembrada. Mas Derrida concorda com Austin sobre a necessidade da convenção para a realização do performativo, ou seja, para que o performativo possa gerar os efeitos que nomeia, precisa estar amparado por convenções. Só que, para Derrida, essas convenções possuem a possibilidade de mudança e transformação, pois carregam em si a iterabilidade, que é a possibilidade que todo signo possui de ser repetido, mas também de ser transformado (DERRIDA, 1991; LEITE, 2014). Segundo Derrida (1991, p. 76-77, grifos do autor): A iterabilidade supõe uma restância mínima (como uma idealização mínima, embora limitada), para que a identidade do mesmo seja repetível e identificável em, através e até em vista da alteração. Porque a estrutura da iteração, outro traço decisivo, implica ao mesmo tempo identidade e diferença. A iteração mais ‘pura’ – mas ela nunca é pura – comporta em si mesma o afastamento de uma diferença que a constitui como iteração. A iterabilidade de um elemento divide a priori sua própria identidade, sem contar que esta identidade só pode delimitar-se numa relação diferencial com outros elementos, e traz a marca dessa diferença. É porque essa iterabilidade é diferencial, no interior de cada ‘elemento’ e entre os ‘elementos’, porque ela fratura cada elemento constituindo-o, porque ela o marca com uma ruptura articulatória, que a restância, indispensável, apesar de tudo, nunca é de uma presença plena: é uma estrutura diferencial que escapa à presença ou à oposição (simples ou dialética) entre a presença e a ausência, oposição de que a ideia de permanência é tributária. A citação acima é longa, porém traz elementos importantes para a compreensão da noção de iterabilidade: de acordo com Derrida, todo signo possui como traço característico a iterabilidade, podendo ser o mesmo ou o outro – identidade e diferença – já que carrega em si uma restância miníma que justifica a sua identificação, mas que, também, possui as potencialidades do deslocamento de sentido. Assim, uma das características fundamentais do performativo será a iterabilidade, pois o performativo entendido como atos, gestos e atuações não necessariamente constituem sempre o mesmo, pois trazem também a possibilidade da mudança. O entendimento de Butler sobre a teorização de Austin desconstruída por Derrida “é uma certa prática de citação que reproduz e altera Austin e Derrida”, como afirma Pinto (2009, p. 128). Butler introduz a questão do corpo às suas produções, o que suplementa o performativo. Esse corpo, segundo Pinto (2009), é atravessado por um problema teórico, que se constitui com a iterabilidade do ato de fala, onde não há a possibilidade de um controle total, mas também por um problema político, onde esse mesmo corpo precisa criar condições de sobrevivência, uma vez que ele é interpelado violentamente pelas estruturas já existentes. Butler continua sua produção na linha que Scott defende: que não é possível pensar gênero sem questionar as estruturas de poder nas quais ele é produzido. Ao pensar gênero como 37 performativo, estamos querendo entender como as significações feitas em torno dos gêneros podem produzir efeitos nos corpos dos estudantes, efeitos estes que estão sendo criados no decorrer do processo de socialização destes sujeitos, não só na escola, mas também em todos os espaços que compõem sua vivência. Esta pesquisa se debruça sobre um dos elementos que compõem o espaço de formação escolar, o material didático, e procura entender como as produções textuais podem repetir certas normatizações sobre o feminino e se elas já demonstram possibilidades de transformação ou, ainda, se estão mais vinculadas a formas tradicionais de ser mulher. 1.3 A noção de gênero nos artigos acadêmicos Como podemos observar, o conceito de gênero faz parte de uma teorização, que, inicialmente, tinha como objetivo promover a emancipação das mulheres, mas que, com o passar do tempo, passou pelos usos mais diversos, até mesmo excluindo a temática das mulheres. Gênero é, então, usado pela pesquisa acadêmica como uma possibilidade de romper com esquemas biologizantes e pensar os corpos, femininos e masculinos, e as sexualidades como construções culturais. Entendido, inicialmente, como de uso feminista, o conceito foi se desligando de seus vínculos iniciais e se constituiu como uma categoria de análise profícua para o campo acadêmico. Observa-se que, no Brasil, após a Constituição de 1988, as temáticas de gênero e sexualidade ganham força no debate nacional, tanto na área de direitos sociais, quanto na produção acadêmica. Nos últimos 20 anos, há uma crescente produção em torno deste conceito, crescimento este dado, em parte, pela expansão da pós-graduação em áreas como a Educação, mas também pela demanda dos movimentos sociais e a assunção, pelos governos, de compromissos internacionais destinados a eliminar a discriminação contra as mulheres (VIANNA et al., 2011; ROSEMBERG, 2002). As observações acima sinalizam a expansão que temas como mulher, gênero, sexualidade e orientação sexual possuem na contemporaneidade, mas, por outro lado, levantam a questão acerca dos significados e os entendimentos que o conceito de gênero pode assumir nessa disseminação. Como argumenta Scott (2012, p. 331), existem “ainda, com certeza, feministas que usam a palavra, mas agora é um termo de referência que atravessa o espectro político, com efeitos às vezes muito diferentes daqueles que as feministas originalmente intencionaram”. 38 Outra autora que argumenta na mesma linha que Scott é Carvalho (2011), em artigo escrito por encomenda do GT Sociologia da Educação da ANPEd, a partir da constatação de que diferentes artigos que trabalhavam com o conceito de gênero não conseguiam explicar o conceito. Afirma que o termo gênero apresenta diferentes entendimentos, sem a devida conceituação, sinalizando a necessidade de explicitar as concepções que temos de gênero nos estudos que desenvolvemos. Vemos, portanto, que uma maior disseminação do termo pode gerar diferentes entendimentos, que em muitos momentos se contrapõem ao original como Scott afirma, o que em si pode não ser problemático, os problemas surgem quando o trabalho com o conceito não sinalizam os entendimentos que as autoras estão tendo deste conceito. Dadas essas questões, torna-se importante para o estudo que desenvolvo, em que procuro entender os sentidos atribuídos ao feminino em materiais didáticos contemporâneos, buscar compreender como o conceito de gênero está sendo mobilizado pelas pesquisas acadêmicas do campo educacional. Que interlocuções teóricas são usadas para definir gênero? Em torno de que temas a noção de gênero tem sido referida? Estas produções consideram a prática escolar? Para tal empreendimento, opto por considerar as publicações em revistas do campo educacional no período de 2009 até 2013, de modo a focalizar uma produção mais contemporânea, além de ter acesso aos acervos diretamente nos sítios eletrônicos. Foram pesquisadas 11 revistas, que foram escolhidas por apresentarem conceito A1 no sistema Qualis da CAPES, o que demonstra que as mesmas estão inseridas em um circuito de maior notoriedade. A escolha de revistas classificadas como A1 no sistema Qualis não está vinculada a critérios de qualidade, mas observamos que, dadas as cobranças do mundo acadêmico, as revistas A1 tendem a atrair autoras que estejam efetivamente atuando em pesquisas e na academia. Além do destaque no sistema Qualis, foram critérios de seleção das revistas: terem seus acervos disponíveis na internet; serem de língua portuguesa; e terem como objetivo a divulgação de pesquisas e artigos que reflitam sobre os fenômenos educacionais do Brasil, mas também de outros países; não terem foco especializado em outras questões da Educação, como educação especial ou didáticas específicas. Duas das revistas selecionadas não estão inseridas nesse último critério, já que são revistas do campo de estudos feministas e foram selecionadas pela possibilidade de constituírem um contraponto às publicações do campo educacional - em outras palavras, quis também indagar: será que o conteúdo dessas duas revistas divergem das publicações do campo educacional quando a temática abordada gira em torno do conceito de gênero? Partindo desses critérios, as revistas selecionadas foram: Cadernos de Pesquisa, Educação em Revista, Educação e Pesquisa, Educação e Realidade, Educação e Sociedade, 39 Educar em Revista, Ensaio, Proposições, Revista Brasileira de Educação, Estudos Feministas e Pagu. O recorte temporal foi de 2009 a 2013, o que se justifica pela fato de, desde o início dos anos 2000, vivenciarmos, de modo geral, em nosso país uma série de processos que deram maior visibilidade para as temáticas das mulheres e feministas. Destaco aqui as três conferências nacionais de políticas públicas para as mulheres – 2004, 2007 e 2011 – que, apesar das críticas que podemos tecer a estes processos, demonstraram alguma abertura do governo no sentido de pautar questões das mulheres e feministas como políticas públicas; a criação da Secretaria de Política Pública para as Mulheres em 2003; e a entrada em vigor da lei 11.340/2006, conhecida como lei Maria da Penha. Também podemos lembrar a criação do SECADI que, instituída em 2004, nos seus primeiros anos, incentivou a formação continuada nas temáticas de gênero, sexualidade e orientação sexual. Após uma década e sendo gênero um conceito chave para muitas das construções que fazemos em torno da criação de uma política igualitária entre mulheres e homens, proponho averiguar como gênero está sendo considerado nos artigos acadêmicos, quais as temáticas em que ele está sendo mobilizado e se estas produções estão preocupadas com questões do universo da educação formal, de modo a criar um panorama sobre a produção em torno desta categoria e entender as formas como a noção de gênero é mobilizada pelas pesquisas acadêmicas no campo educacional. Como mencionado acima, a busca pelos textos foi feita via internet, onde foram analisados, em ordem crescente: os títulos, os resumos e os textos na íntegra. Ao todo, tive acesso a 2374 artigos, a partir dos sumários das revistas, excetuando-se desta contagem as resenhas, entrevistas e notas de leitura. Deste universo, destaquei 118 artigos que citavam o conceito de gênero, em seus títulos ou resumos, mas também nas palavras-chave utilizadas. A partir da finalização da leitura das revistas e busca dos textos, procurou-se entender como gênero estava sendo significado em cada artigo selecionado, a partir do recurso de localização de palavras. Do total de 118 artigos, temos 43 que definem gênero, procurando conceituar o termo, usando interlocuções teóricas ou não. Uma das autoras que mais aparecem para essa definição é Joan Scott e o seu texto mais citado é Gênero: uma categoria útil de análise histórica, nas traduções de 1989 e 1995, além de haver o uso de versão em francês, de 1988. Trago aqui, a título de exemplificação, citação de três artigos que a utilizam na definição de gênero: Entendo gênero, de acordo com Scott, como uma categoria de análise que permite mapear os significados da masculinidade e da feminilidade em um determinado contexto sócio-histórico (ROSISTOLATO, 2009, p. 14). 40 por meio dessa definição de Scott, podemos afirmar que a produção de generificações as quais, de forma rígida e absolutamente binária, separam os mundos de meninos e meninas já é uma forma de poder, pois, enquanto retira e torna passíveis algumas, acabam por empoderar outros (KNIJNIK, 2011, p. 778). a categoria gênero passou a ser compreendida como socialmente construída e produto de relações e ações sociais (SIMÃO, 2013, p. 179). Como podemos observar nesses trechos e em leituras mais extensas dos artigos que faziam de Scott sua interlocutora teórica, muitas vezes, somente uma pequena parte da teorização de Scott é considerada para definir gênero. Nos artigos analisados, as referências mais usuais eram as que definiam gênero como construção social, categoria de análise, caráter relacional do conceito e que dá significado às relações de poder – definições pertinentes, porém limitadas. Muitos destes artigos acabam não considerando importantes questões que Scott relaciona ao conceito de gênero, tais como o questionamento aos binarismos, à noção de fixidez, a importância de incluir na análise a noção do político, considerando para isso as instituições e organizações sociais, além de ser importante articular gênero com questões de classe e raça (SCOTT, 1989). Além de Scott, as autoras mais recorrentes na conceituação de gênero são: Butler, Rubin, Louro, De Lauretis, Nicholson e Connell, em argumentações em consonância com o proposto por Scott. Dos 118 artigos, 21 se situam na interface entre gênero e práticas escolares, o que é de particular interesse para esta pesquisa. Considero neste grupo aqueles artigos que constroem sua empiria no universo da escola, seja considerando as docentes como foco da pesquisa, seja o corpo discente. Não foram localizadas pesquisas/artigos com outras atrizes do cotidiano escolar, tais como funcionárias administrativas ou de merenda, inspeção de alunas etc. Os artigos que consideram as práticas escolares estão bem distribuídos entre as revistas, como demonstrado no gráfico abaixo: Tabela 1 – Números de artigos que consideram as práticas escolares 41 Vemos que não há grandes discrepâncias entre as revistas do campo educacional e as revistas feministas, pois ambas apresentam um número similar de artigos que consideram a prática escolar: Educar em Revista e Estudos Feministas concentram os maiores números de artigos nessa área, ambas com 4; já as revistas Educação em Revista e Ensaio são as únicas publicações que não tiveram nem um artigo relacionando práticas escolares e gênero. Aliás, não foi encontrado nessas duas publicações nenhum artigo que abordasse o conceito de gênero. Quanto às temáticas focalizadas quando o conceito de gênero é considerado na problematização das práticas escolares, identifiquei: orientação sexual entre adolescentes; gênero e práticas de educação física; representações de gênero na educação infantil; comportamento de meninas e meninos no espaço escolar; desempenho escolar comparativo entre os sexos; ensino de arte articulado com gênero e matemática; gênero e sexualidade nas práticas escolares; representações de docentes quanto à feminização da docência, as práticas docentes e a docência masculina. Gênero, quando não relacionado com práticas escolares, é usado para pensar as mais diversas questões, como exemplifico nos trechos abaixo: analisa o sucesso da boneca Barbie, os modos de educar meninas e os mecanismos publicitários que configuram sua personalidade versátil e produzem certos modos de pensar, agir e relacionar-se com o mundo (ROVERI; SOARES, 2011, p. 147). Este trabalho propõe uma reflexão antropológica sobre os discursos e imagens do corpo e da sexualidade na sociedade brasileira com base em um fenômeno social particular: o surgimento do Viagra na esfera pública nacional (BRIGEIRO; MAKSUD, 2009, p. 71). O estudo apresenta os resultados de uma investigação etnográfica realizada entre os participantes do Programa Bolsa Família no município de Campinas, Estado de São Paulo. A análise parte de percepção, presente na fala dos entrevistados, de que o ‘Bolsa Família ajuda’ (PIRES, 2012, p. 130). Nos exemplos acima vemos três usos diferentes para gênero: articulado com o questionamento dos padrões de beleza; pensando a sexualidade a partir do uso de medicamentos; e em um estudo sobre uma política governamental. Além destas temáticas, temos o conceito de gênero sendo citado para pensar: imagens sobre corpo e sexualidade; migração de mulheres; construção do masculino e feminino nos jornais; novos arranjos familiares; comportamento de jovens; construção da identidade; história de vida; condições de trabalho de professoras e qualidade de vida; trabalho doméstico; políticas públicas; orçamentos municipais. Ao contrário do encontrado em levantamento que realizei anteriormente, onde procuro entender como o conceito de gênero está sendo significado nos 42 trabalhos apresentados em dois encontros educacionais, não encontrei muitos artigos que tratassem de temas como orientação sexual, lésbicas, gays ou homocultura, o que pode indicar a invisibilidade das questões relacionadas a sexualidade e orientação sexual em círculos acadêmicos educacionais de maior notoriedade, uma vez que a maior participação nos encontros analisados são de estudantes de graduação, mestrado e doutorado, e este público costuma não ser maioritário na autoria dos artigos das revistas analisadas (ROMÃO, 2012). Ao pesquisar nos artigos acadêmicos como a noção de gênero estava sendo considerada, deparei-me com artigos bem diversos: os que procuram conceituar gênero, levando em conta toda a historicidade deste conceito; os que usavam o termo sem conceituálo; outros, ainda, que citavam a palavra gênero no título e/ou nas palavras-chave, porém não retornavam ao termo ao longo do texto. Vemos que gênero, em muitos artigos, assume um sentido naturalizado, como se o termo fosse autoexplicativo, quando, como apontado por Scott (2012), o termo gênero faz parte, também, de uma disputa política por significação. Gênero, quando conceituado, tem como referência preferencial Scott (1989). Também constatei que não foram encontrados artigos que fizessem interseções entre a noção de gênero e material didático, o que seria interessante para a pesquisa aqui desenvolvida. Destaco ainda que, apesar de o termo ter se inserido no campo das Ciências Sociais, suas contribuições para o campo educacional ainda são limitadas, principalmente, nos artigos que consideram a prática escolar. Talvez isso se dê, como argumenta Rosemberg (2002), pelo fato de que a área de Educação agrega diferentes temas de estudo, nem sempre articulados com a educação escolar. O importante a considerar é que se quisermos construir uma sociedade verdadeiramente igualitária, não só nas relações entre mulheres e homens, precisamos, continuamente, interrogar os espaços formativos, para quem sabe, alterar algumas práticas, formando cidadãs mais conscientes da necessidade do respeito e da preservação da diferença. 1.4 O uso do conceito de gênero contemporaneamente: ainda há fôlego? Durante minha trajetória na graduação e, agora, no mestrado, quando me questionava a partir de leituras ou de professoras sobre se era válido o uso do conceito de gênero, enquanto categoria que me permitiria discutir os processos sociais entre mulheres e homens, em uma perspectiva de superação das desigualdades e que não invisibilizasse as mulheres e 43 suas trajetórias políticas, sempre ficava receosa, mas, por acreditar no potencial que o conceito pode ter, venho tentando trabalhar com esse conceito, colocando muitos dos questionamentos e problematizações que sua trajetória lhe impõe. Afirmo isso, pois, conforme argumentado na seção anterior, o conceito de gênero atualmente se dissocia de uma crítica feminista para estar incluído nos mais diferentes estudos, sendo reconhecido enquanto uma categoria de análise. Desse modo, seus usos nem sempre se desdobram em críticas que podemos tecer às formas como significamos o social, assim corre-se o risco de que as, possíveis, desigualdades geradas, também, por meio de estereótipos de gênero não recebam os questionamentos necessários para a sua evidenciação como mecanismos que impedem a construção mais plena de mulheres e homens. Portanto, torna-se importante que o trabalho com o conceito seja mais cuidadoso, atentando para os diversos sentidos que o termo pode afirmar. Por esses motivos, chego a esta sessão indagando se ainda há fôlego para o trabalho com o conceito de gênero. No Brasil, por exemplo, documentos de políticas de promoção da igualdade entre mulheres e homens muitas vezes recorrem ao termo gênero, para nomear suas ações e público alvo das suas propostas. Isso em parte se dá pelo receio do uso de termos que poderiam remeter ao feminismo: Neste contexto, a categoria gênero, introduzida a rigor pelos órgãos municipais, é, às vezes, empregada como contraponto ao feminismo, como revela uma entrevistada ex-secretária da mulher: “a gente sempre lutou muito para não parecer feminista, mas preocupada com a questão de gênero, homens e mulheres” (MARIANO; GALVÃO, 2013, p. 4). Ao usar gênero em uma deliberada fuga das lutas feministas, o termo acaba não fazendo a crítica que julgo necessária, pois não desafia os padrões de gênero e não promove a emancipação do feminino. Como apontado no levantamento das revistas acadêmicas, o uso naturalizado do termo gênero leva a não interrogar os modelos estereotipados de condutas para o feminino e para o masculino. Desse modo, gênero não é mais um conceito feminista, dado que é usado por diferentes campos, podendo ter significados diferentes a depender do contexto. Posso citar aqui como exemplo a votação na Câmara dos Deputados do texto do Plano Nacional de Educação, em que o termo igualdade de gênero foi retirado, sob a alegação de incitar a homossexualidade, demonstrando um entendimento raso do que gênero significa e um retrocesso enorme para aquelas que lutam contra as discriminações. Scott, em um texto de 2012, sinaliza uma situação equivalente, mas que ocorre na França, onde o uso do termo gênero em um manual de ciências biológicas é questionado por 44 grupos católicos franceses que alegam uma promoção da homossexualidade no uso deste termo. Para a autora, esse tipo de cena evidencia que “os significados do termo gênero estão longe de serem resolvidos” (SCOTT, 2012, p.331). O seu uso acaba por criar uma definição imprecisa e as tentativas de conceitualização se tornam lugar de um debate intenso. Podemos, contudo, entender gênero tal como Scott (2012) propõe: como um suporte crítico, usado para conter a discriminação contra as mulheres, que nos permite entender os significados do feminino e do masculino no campo cultural, definidos pelas sociedades em que se inserem e, portanto, passíveis de transformação. Sendo assim, defendo que o uso do conceito de gênero como uma construção social, nos termos propostos por Butler e Scott, favorece a análise da relação de mulheres e homens em termos de desigualdade e poder. No início dos anos 2000, vivenciamos uma maior notoriedade das questões de gênero na sociedade brasileira. Porém, essa notoriedade foi mais propositiva do que uma realidade vivenciada pela sociedade como um todo, acabaram sendo construções pontuais de pouca durabilidade ou distorcidas no seu encaminhamento. Elas são pontuais, por exemplo, nas ações da SECADI que já ofereceu cursos de educação continuada na área de gênero e diversidade sexual, mas agora esses cursos não estão mais disponíveis. E são distorcidos em seu encaminhamento, quando não rompem com os estereótipos dominantes nas configurações de gênero - exemplo disso são os projetos do governo que geram renda para as mulheres, incentivando-as ao desenvolvimento da produção artesanal, mas deixando de questionar a sua subordinação familiar e social, já que a produção artesanal não chega a proporcionar grandes faturamentos e as mulheres acabam ficando subordinadas aos companheiros ou dependente de outras fontes de renda (MARIANO; GALVÃO, 2013). Deste modo, apesar de testemunharmos certo uso generalizado deste conceito, a mobilização – no sentido da efetivação de uma igualdade entre mulheres e homens – da noção de gênero ainda é um desafio teórico-político e empírico. Teórico-político, porque esse é um termo em disputa, uma disputa pelo significado do que é ser mulher/homem, feminino/masculino. E empírico, porque a igualdade que se busca promover na relação menina-menino, mulher-homem, não está em geral presente no cotidiano da população. Ainda encontramos dificuldade de ver mulheres e homens como equivalentes. Encontramos, em nossa sociedade, números alarmantes que nos revelam altamente machistas e sexistas, reafirmando em nossos comportamentos as desigualdades historicamente construídas entre mulheres e homens. Temos como exemplo desta situação uma pesquisa realizada pelo IPEA, cujo título é Tolerância social à violência contra as mulheres, publicada no último dia 27 de março, com errata publicada em 04 de abril, onde se afirma que 26% das 45 pessoas entrevistadas acreditam que as mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas e 58,5% concordam com a frase “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”11. Esses dados demonstram uma realidade onde as mulheres permanecem como as culpadas pela violência que sofrem - culpadas, muitas vezes, pelo simples fato de serem mulheres. É por causa de dados dessa magnitude que precisamos avançar no entendimento social sobre como se constitui as visões sobre feminino e masculino. Afirmamos ao longo do texto que a linguagem se constitui como um sistema que nos ajuda a entender a forma como nós seres humanos estamos construindo o mundo ao nosso redor. Esses significados da linguagem em geral precisam do seu contexto sociocultural para ser compreendido, considerando as incorporações políticas, as escolhas morais e éticas, gênero ao fazer parte deste processo de significação, também irá constitui-se, como um lugar de lutas, onde se disputa sobre o que é do campo da natureza e o que é do campo do social, não sendo redutível a polarizações conservadoras ou revolucionárias (SCOTT, 2005; 2012). Assim, precisamos entender os processos de produção do gênero na sociedade para que possamos ter a oportunidade de questionar essas construções. Ao entender como gênero é produzido na atualidade podemos nos interrogar sobre os possíveis efeitos na forma como meninas e meninos se veem e como esse tipo de visão pode impedir que mulheres e homens sejam tratados de forma igualitária, uma vez que o social os ensinaria a se verem desiguais desde pequenos. Impedindo a promoção de uma sociedade construída em padrões mais democrático. A tentativa de construção da noção de que os sujeitos são iguais pode ser problemática em um primeiro momento para algumas pessoas, mas afirmo uma visão de igualdade tal como formulada por Scott (2005, p. 15): “A igualdade é um princípio absoluto e uma prática historicamente contingente. Não é a ausência ou a eliminação da diferença, mas sim o reconhecimento da diferença e a decisão de ignorá-la ou de levá-la em consideração”. Sendo assim ao vermos mulheres e homens como iguais não negamos as diferenças próprias que podem constituir esses grupos, mas estamos defendendo que ambos deveriam possuir as mesmas possibilidades de atuar no social e que deveriam desenvolver suas potencialidades sem reducionismos próprios de estereótipos. Ser mulher ou ser homem não deveria, portanto, se constituir como uma prisão que engessa os seres lhes impondo maneiras 11 Pesquisa Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) – IPEA. Endereço eletrônico http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres_novo.pdf, último acesso em 24 de junho de 2014. 46 de agir e formas de ser, mas sim possibilidades que deveriam se somar a outras, rompendo dessa maneira com padrões de gênero fixos e binários. Com isso questionar continuamente as formas que socialmente são estabilizadas para pensar não só o feminino, mas também o masculino, se torna importante para em primeiro lugar reconhecermos os mecanismos de produção, e em segundo poder promover esforços na tentativa de romper com esses mecanismos. Ao realizar esses processos poderemos contribuir com a construção de sociedades plurais, onde as pessoas poderão se expressar de diferentes maneiras sem se preocupar com os estereótipos. Ao utilizar o conceito de gênero como referência para a pesquisa aqui desenvolvida o vejo como possibilidade de realizar uma crítica onde resgato as formas como o feminino foi historicamente significado na figura das mulheres, para tentar entender se com todas as transformações que esse feminino sofreu ao longo do tempo podemos encontrar nos materiais didáticos da contemporaneidade um feminino que não se remeta a condutas em consonância com os modelos tradicionais, que seja composto por personagens femininas que atuam em diversos espaços e que suas contribuições sejam lembradas nas disciplinas que compõem o currículo das escolas. No próximo capítulo trago alguns marcos do processo de escolarização das mulheres para que possamos entender como o acesso a escola para elas foi secundarizado e durante muito tempo reforçava seus papéis tradicionalmente instituídos: o do ser esposa e o de ser mãe. Ainda neste capítulo trago a história do livro didático, querendo pontuar como surge o livro no cenário nacional e como passa de material escolar para objeto de pesquisa, para enfim tecer questões acerca da interseção deste material com práticas sexistas. 47 2 SOBRE A EDUCAÇÃO FEMININA NO BRASIL [...] há uma incômoda ambiguidade inerente ao projeto da história das mulheres, pois ela é ao mesmo tempo um suplemento inócuo à história estabilizada e um deslocamento radical dessa história 12. J. Scott A problematização dos sentidos de feminino afirmados em materiais didáticos destinados, na contemporaneidade, à educação de jovens adolescentes, além do estudo sobre a situação atual da mulher na sociedade brasileira, exposto em síntese na introdução desta dissertação, e da discussão do conceito de gênero, que mobilizamos para desenvolver a problemática proposta, demandou também o resgate da trajetória histórica da educação das mulheres no Brasil, com destaque para a questão do livro didático. Não é tarefa simples para se desenvolver no tempo de um mestrado, posto que implica a leitura crítica das diferentes versões historiográficas existentes. Ainda que não se tenha feito o panorama com a amplitude que poderia se desejar, julgamos importante dialogar com estudos desenvolvidos em contraposição a perspectivas historiográficas tradicionais, que não se ocupam da história dos grupos sociais subalternizados, ao menos não considerando a visão desses grupos. Desse modo, trazemos a leitura de Louro (1997), Gouvêa (2003), Schumaher & Vital (2000), Saffioti (2013) que abordam especificamente as mulheres e suas trajetórias, problematizando, inclusive as invisibilizações que as mulheres sofreram na nossa História mais conhecida. Refiro Freyre (2003) e Ribeiro (1995), autores consagrados nas Ciências Sociais, para trazer aspectos gerais de períodos históricos considerados. Já nas seções referentes à questão da educação nãosexista, temos como referência documentos destinados à educação no território nacional, e as autoras Vianna & Unbehaum (2004), Carvalho (2009) e Auad (2006). Para traçar um histórico sobre o livro didático no Brasil, trazemos Freitag, Motta & Costa (1989), Hofling (2000) e Choppin (2004), e, para pensar sobre o sexismo nos materiais didáticos, lemos também Rosemberg (2009), Negrão & Amado (1989). 12 SCOTT, J. História das mulheres. In: BURKE, P. A escrita da história. São Paulo: Editora UNESP, 1992. 48 Ao ressaltar os limites deste estudo quanto à construção de um panorama historiográfico, queremos destacar que entendemos sim que o campo da História é um campo também em disputa, e estamos fazendo a opção deliberada de contar uma história baseada em algumas versões historiográficas. Reafirmamos que os acontecimentos aqui narrados foram a narrativa escolhida para estar aqui, e que outras histórias poderiam ser contadas. Mas as que são aqui mencionadas fazem parte da tentativa de construção de uma historiografia das mulheres, onde se procura colocar em cena um público que durante muito tempo foi posto à margem da história. Privilegio, portanto, as autoras que contam a história da escolarização feminina com um viés crítico, analisando as especificidades históricas dos períodos considerados. De uma maneira geral, a historiografia que sobrevive em nosso cotidiano é aquela contada pelos homens brancos, nomeados, por eles mesmos, como os conquistadores. Digo isso, pois, até hoje as histórias mais contadas a nós, seja em livros ou mesmo em filmes são aquelas que possuem os países do norte como salvadores, descobridores e como modelos a serem seguidos. No último século, de uma forma mais intensa, houve uma série de resistências a essa versão única da historiografia, não só do Brasil, mas também do mundo, em geral, porém as tentativas de reconstrução de outras histórias encontram uma série de barreiras. Apesar desses entraves, estamos avançando na visibilidade de personagens históricos antes esquecidos, muitas vezes, mulheres, negras e negros, indígenas que contribuíram com a formação do que podemos denominar povo brasileiro, exemplos de resistência contra o domínio e ansiosos pela construção de uma nação que respeite suas origens e que contribua com sua formação cidadã. Essa visibilidade, entendida como a possibilidade destes personagens serem mencionados e reconhecidos como atuantes na construção do nosso país, se torna muito importante para que aprendamos a respeitar a diversidade formada nesse grande território e a valorizar nossa formação. Este capítulo possui como objetivo apresentar versões historiográficas desenvolvidas em contraposição às perspectivas tradicionais, acerca do processo de escolarização das mulheres no Brasil. Destacam-se momentos e aspectos cujos rastros julgo ainda presentes e influentes na contemporaneidade. Pontua, também, a construção de uma educação nãosexista, que procura romper com os estereótipos sobre mulheres e homens dentro do espaço escolar. Terminamos trazendo para a cena o livro didático, marcos da sua história e como pode ou não contribuir para a valorização da diferença na formação de estudantes e professoras. 49 2.1 A educação de mulheres no Brasil Ao escrever sobre os marcos históricos da educação das mulheres, inicio pontuando processos educacionais que se dão antes da sua entrada formal na instituição escolar. Segundo Louro (1997), o acesso mais amplo e formal à escola para todas e todos começará a ocorrer no Brasil em 1827. Tendo nossa terra, oficialmente, recebido europeus desde 1500, vemos que foram trezentos anos com graves restrições ao acesso formal à educação. Mas como era a educação das mulheres fora da escola, no Brasil colônia? Como pontua Ribeiro (1995), a sociedade brasileira, nesse momento, era formada por três tipos distintos de mulheres: as senhoras reclusas portuguesas – que só chegariam aqui por pedido dos padres, preocupados com a rapidez com que os portugueses se relacionaram com as mulheres nativas –, as indígenas e as negras escravizadas. Mulheres diferentes entre si, mas todas subalternizadas e subservientes aos mandos e desmandos dos homens brancos. Nesse momento, o corpo feminino servia ao português, europeu em maior número na nova terra, em servidão que frequentemente não era amigável - de fato, muitos foram os estupros cometidos. E no caso das indígenas, além da satisfação sexual, os portugueses tinham outros interesses, já que, ao engravidar as indígenas, tornavam-se parentes das demais pessoas da tribo, fato conhecido como “cunhadismo”. Desse modo, conseguiam ajuda na extração, por exemplo, de pau-brasil. Uma passagem de Darcy Ribeiro (1995, p. 82) expressa bem essa situação: Há amplo registro dessa prática entre os cronistas e também avaliações de sua importância devidas a Efraim Cardoso (1959), do Paraguai, e Jaime Cortesão (1964), para o Brasil. A documentação espanhola, mais rica nisso, revela que em Assunção havia europeus com mais de oitenta temericó. A importância era enorme e decorna de que aquele adventício passava a contar com uma multidão de parentes, que podia pôr a seu serviço, seja para seu conforto pessoal, seja para a produção de mercadorias. Vemos aqui que as mulheres indígenas eram usadas pelos portugueses em distintos âmbitos, uma vez que, além da satisfação sexual, eles também tinham recompensas econômicas ao manterem relações com essas mulheres. E pouco se sabe sobre como elas se sentiam tendo que servir a homens não pertencentes à sua cultura. Mas para as mulheres portuguesas a situação não era tão discrepante, divergindo basicamente em um ponto: elas tinham que casar com os portugueses. Quando começaram a chegar em terras brasileiras, a pedido de padres jesuítas, essas mulheres tinham como função casar e procriar, já que 50 Portugal se preocupava com a falta de portugueses legítimos na nova colônia. Nesses casamentos as mulheres chegavam a ter quinze ou vinte filhos (RIBEIRO, 1995). É praticamente consensual o entendimento historiográfico de que a presença inicial dos portugueses em terras brasileiras tinha como objetivo a extração das riquezas naturais que pudessem encontrar, sendo o Brasil nesse momento, uma colônia de exploração. Desse modo, em geral, os portugueses não pretendiam construir residência no Brasil, o que os levava a não se preocuparem e a não quererem construir escolas, organizar cidades etc. Registra-se que o modelo de educação formal mais usual era aquele advindo dos padres jesuítas que catequizavam, ensinavam as primeiras letras e queriam pacificar os indígenas, educação essa restrita aos homens indígenas, uma vez que era considerado heresia ensinar as mulheres (RIBEIRO, 1995). A educação das mulheres nesse momento era aquela voltada para aprendizagem de atributos que pudessem contribuir com a formação de uma boa esposa, tais como costurar, cozinhar, bordar, como se portar. A educação das meninas era muito diferente da dos meninos, pois a estes eram permitidas todas as liberdades, enquanto o ideal de menina era aquela quieta, casta, tímida. Mesmo Gilberto Freyre (2006, p. 510), autor que não costuma se identificar com a causa feminista, afirma: “À menina, a esta negou-se tudo que de leve parecesse independência. Até levantar a voz na presença dos mais velhos. Tinha-se horror e castigava-se a beliscão a menina respondona ou saliente; adoravam-se as acanhadas, de ar humilde”. Ambos, meninas e meninos, eram alvo da opressão gerada pelos estereótipos de gênero, pois, se à menina era cobrado um ar humilde e casto, aos meninos era cobrado, a partir dos dez anos de idade, que fossem homens, tendo já que se impor no trato com as mulheres e com os negros escravizados. A educação formal das mulheres, ou seja, o ensino das letras, matemática e outras disciplinas, era considerada uma heresia social, tanto em Portugal, quanto no Brasil. As mulheres só tinham acesso à instrução formal se frequentassem conventos. É importante destacar que este panorama – educar para o casamento – não era a realidade de todas as mulheres, aliás, não era realidade para a maioria das mulheres. As mulheres pobres e escravizadas lidavam com o trabalho duro desde pequenas. Essas mulheres eram, muitas vezes, forçadas, pelas condições adversas, a desempenharem os papéis ditos masculinos e trabalhavam para prover seu sustento e o de sua família. Em muitos casos, as mulheres constituíam a chefia da família, sendo o seu salário o único das residências, como pontua o censo de 1833 de uma província mineira, que afirma “as mulheres constituíam a maioria das chefias dos fogos (domicílios) da província” (GOUVÊA, 2003, p. 3). 51 Para Faria (apud GOUVÊA, 2003), o governo das casas e das famílias sendo feito por mulheres teria implicado em certa permissividade sexual, que fugia do que era considerado normal, ou seja, o modelo europeu. O certo é que, provavelmente, por terem outras possibilidades de vida, essas mulheres acabavam por circular em espaços sociais variados, de certo modo, integrando-se à vida social, política e econômica do Brasil de então. Elas eram numerosas no comércio ambulante, nas vendas de alimentos e bebidas e também da indústria têxtil. Tendo outras experiências de vida, não condizentes com o modelo padrão, essas mulheres eram muitas vezes nomeadas como desvirtuosas, promíscuas. Porém, além de serem exemplos de resistência aos estereótipos que a sociedade tenta nos impor, mostram-nos a heterogeneidade das vivências femininas em espaços-tempos muitas vezes narrados de forma metonímica. A figura de Francisca da Silva de Oliveira, Chica da Silva, exemplifica bem essa situação. Negra escravizada que, segundo Schumaher & Brazil (2000), foi alforriada pelo desembargador João Fernandes de Oliveira, com quem teve 13 filhos, Francisca da Silva procurou se colocar na sociedade branca e excludente de Minas Gerais, fato esse possível pelo concubinato com o desembargador, mas também por suas escolhas políticas e econômicas. Ela procurou adquirir bens e se inseriu nas principais irmandades do arraial do Tijuco, onde residia, mesmo sem a presença do desembargador, que teve que voltar ao Reino, Chica manteve-se como uma senhora respeitada no arraial. Também educou as filhas de acordo com os costumes da época, tendo como principal objetivo arranjar bons casamentos para elas. Mas, como afirma Schumaher & Brazil (2000, p. 149): A imagem de Chica da Silva que se popularizou em nossos dias foi a de uma mulher imoral que abusava da sensualidade para conseguir o que queria. Este é, entretanto, um dos estereótipos do papel que a mulher negra ocupou na sociedade colonial, construído pelos historiadores a partir do século XIX. Mais do que resistência a estereótipos, essas mulheres mostram que o modelo ideal do ser mulher não poderia ser o mesmo para todas, o que acaba por desconstruir as narrativas lineares tão presentes na historiografia oficial. Vemos até aqui que a educação das mulheres, quando acontecia, era pensada exclusivamente para sua atuação enquanto esposa, que não era uma aprendizagem de leitura, escrita, matemática, essa reservada para as mulheres que prestassem serviços religiosos. Portanto, até o final do século XIX, o Brasil era um país majoritariamente analfabeto e a instrução não se constituía como um valor social (LOURO, 1997; SAFFIOTI, 2013). 52 Algumas iniciativas de escolarização formal da população começaram ainda durante o Império. A Constituição de 1823, reconhecida como de cunho liberal, trouxe para a arena política a discussão sobre a educação nacional. Desse modo, a lei assinada em 15 de outubro de 1827 estabelece as escolas de primeiras letras, definindo que: Haverão [sic] escolas de primeiras letras, que se chamarão pedagogias, em todas as cidades, vilas e lugarejos mais populosos do Império. [...] Serão nomeadas mestras de meninas e admitidas a exame, na forma já indicada, para cidades, vilas e lugarejos mais populosos, em que o presidente da província, em conselho, julgar necessário este estabelecimento, aquelas senhoras que por sua honestidade, prudência e conhecimentos mostrarem dignas de tal ensino, compreendendo também o de coser e bordar (ANAIS DO PARLAMENTO BRASILEIRO apud SAFFIOTI, 2013, p. 273-274). Podemos observar, por esta citação, que o currículo das escolas femininas reforçava o estereótipo dominante de dona de casa, dado que se pautava mais na “educação da agulha do que a instrução”, como afirma Saffioti (2013, p. 276). Além de estar focado na aprendizagem de afazeres domésticos, o currículo das mulheres só tinha as quatro operações de matemática, ficando a geometria para o currículo masculino. Interessante é saber que, naquele momento, ao ensinar geometria, o salário da pessoa que regesse a turma subia em dois níveis: como as mulheres não poderiam lecionar essa disciplina, ficavam com a pior remuneração da época. Como definido acima, as “pedagogias” seriam instauradas em lugares mais populosos, mas a força da lei não sustentou sua aplicabilidade plena. Um dos obstáculo foi o fato de não haver professorado para assumir, conforme exigido na lei, as turmas abertas. As mulheres só poderiam lecionar nas chamadas pedagogias, ou seja, nos anos iniciais da escolarização, ficando o ginásio, liceus e academias para a população masculina, tanto como mestres quanto como estudantes, já que nesse momento uma mulher não poderia lecionar em uma turma de meninos e vice-versa. As mulheres mestras que formavam resistência a tal organização curricular sofriam duras críticas, podendo inclusive perder o ordenado. Temos o exemplo de Benedita Trindade, que dispensava as meninas dos trabalhos manuais para ensinar a leitura, a escrita e o cálculo. E também Maria da Glória do Sacramento, que perdeu seu ordenado, acusada de não ter ensinado as prendas domésticas (LOURO, 1997; SAFIOTTI, 2013). Nesse momento, a educação não era universal, sendo ofertada apenas em lugares populosos e não para toda a população, fazendo com que os processos educacionais não fossem únicos. As divisões de sexo, classe, etnia e raça eram explicitamente relevantes na forma como meninas e meninos seriam educados para se tornarem mulheres e homens. Em 53 uma sociedade escravocrata, as crianças negras escravizadas eram obrigadas ao trabalho forçado e a lutar pela sobrevivência desde cedo, assim como as crianças das camadas populares que estavam envolvidas em trabalhos: as meninas, por exemplo, realizavam tarefas domésticas, trabalhavam na roça, cuidavam dos irmãos menores (LOURO, 1997). A escolarização não constituía um ideal para as famílias, que viam na obrigação da matrícula uma intervenção do Estado na educação de suas filhas, uma vez que além de suspeitarem da educação dada a suas filhas também perderiam a mão de obra durante uma parte do dia. As escolas femininas, somando-se às dificuldades no encontro de mestras, tinham também a baixa frequência feminina, já que os saberes ministrados na escola, mesmo tão restritos, eram muitas vezes tidos como potencialmente perigosos - ou seja, a instrução feminina, ainda que bastante conservadora, era entendida como contraposta aos valores tradicionais que predominavam naquela sociedade. Porém, na época, em disputa com esta perspectiva, vislumbrava-se a educação das mulheres se constituindo como primordial para a formação de uma família mais sólida, já que as mulheres, dotadas da leitura e escrita, poderiam educar suas filhas e filhos na privacidade do lar, condizente com o modelo europeu de uma sociedade civilizada e ordeira (GOUVÊA, 2003). Com a Proclamação da República, em 1889, podia se esperar uma transformação radical em vários setores da sociedade brasileira, o que não ocorreu. Em muitos aspectos, a primeira fase da República se constitui como uma continuação do que vinha sendo feito no final do Império. Segundo Azevedo (apud SAFFIOTI, 2013) a República não promoveu uma transformação radical no sistema de ensino brasileiro e, assim, não renovou intelectualmente as elites culturais e políticas como seria necessário à instauração da democracia. Na virada do século, as contribuições vindas de grupos de trabalhadores organizados em torno de ideais políticos – anarquismo e socialismo – apresentavam propostas de educação e criavam escolas, incluindo a educação feminina. Os jornais libertários apontavam a instrução formal como possibilidade de as mulheres se libertarem. A educação da mulher estava então vinculada à modernização da sociedade e à higienização da família. Novas matérias eram introduzidas na formação feminina, matérias essas inspiradas em ideias positivistas e cientificistas. Veríssimo, que escreve em 1890, após a Proclamação da República, em favor de uma nova educação para as mulheres, afirma: A mulher brasileira, como a de qualquer sociedade da mesma civilização, tem de ser mãe, esposa, amiga e companheira do homem, sua lida na luta da vida, criadora e primeira mestra de seus filhos, confidente e conselheira natural de seu marido, guia de sua prole, dona e reguladora da economia da sua casa, com todos os mais deveres correlativos a cada uma destas funções (apud LOURO, 1997, p. 448). 54 Ou seja, não há nenhuma novidade na concepção de educação feminina com o advento da nova ordem social. As mulheres que tinham acesso à educação formal continuariam sendo educadas segundo o ideal da função de esposa e mãe. Mas já começara a se afirmar, ainda no século XIX, a possibilidade de as mulheres exercerem a profissão docente. São então criadas as chamadas escolas normais, que pretendiam entre outros objetivos: suprir a demanda da falta de professorado adequado; a criação de uma nova moral do trabalho, para que não fosse visto como degradante; possibilidade de ocupação para as mulheres das camadas populares, sem entrar em conflito com aquelas que seriam suas funções principais. As escolas normais foram abertas para ambos os sexos, em classes separadas. Com o passar dos anos, observou-se que elas formavam mais mulheres que homens, acontecendo, assim, uma feminização do magistério, fato observado no país como um todo. Podemos destacar algumas causas para esse fenômeno, tais como: abandono das salas de aulas pelos homens, que tinham outras possibilidades de emprego, já que o processo de urbanização e industrialização ampliava as oportunidades de trabalho; maior intervenção e controle do Estado sobre a docência; baixa remuneração. Nesse processo, afirma-se que a profissão docente tem características femininas e muitas vezes a função será atrelada a uma espécie de sacerdócio. Desse modo, as professoras se constituem segundo um modelo de trabalhadoras pacientes, afetuosas, dedicadas e dóceis. É claro que esse discurso teve oposição, mas essa versão da história foi secundarizada, prevalecendo a visão das professoras como heroínas/missionárias que dão a vida pelo trabalho (LOURO, 1997). Em termos educacionais mais amplos, podemos afirmar, segundo Saffioti (2013), que a educação, nesta primeira fase da República, ainda era formada por polos distintos: as escolas que forneciam instruções para as classes populares e aquelas que formavam as elites dirigentes, em que podemos destacar o Colégio Pedro II, que só irá permitir o acesso das mulheres no século XX. Até 1930, eram poucas as mulheres que davam continuidade aos estudos, acessando o segundo sistema de ensino e diplomando-se. Ainda segundo Saffioti (2013), é somente a partir da movimentação política de 1930 que a educação sofrerá uma remodelação. Já em 1931, o ensino secundário se transforma e as escolas normais são reformadas, sendo a coeducação uma possibilidade. O curso normal passa a oferecer formação profissional que habilita para o magistério primário e exige das candidatas o certificado de conclusão do curso ginasial de cinco anos. Um marco deste período é a assinatura da lei que garante o sufrágio feminino, em 1932, possibilitando que as mulheres alfabetizadas possam exercer uma faceta tão cara à cidadania e, também, incentivando, indiretamente, a alfabetização feminina. 55 Em 1939, é possibilitado o ingresso das normalistas em alguns cursos da Faculdade Nacional de Filosofia, porém as mulheres ainda teriam um longo caminho para que, além de se matricularem nos cursos superiores, pudessem concluí-lo. Esse caminho passa pela reformulação dos seus papéis, rompendo com o valor social do casamento como único horizonte de realização feminina e estabelecendo a possibilidade de as mulheres terem uma carreira profissional. Em 1942, por exemplo, há um retrocesso, com a Reforma Gustavo Capanema, que estabelece a criação de classes exclusivamente femininas. Com o pacto populista, de 1945 até 1964, a educação não se expande muito, mantendo seu caráter aristocrático. Em 1961, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, todos os cursos de nível médio se tornam equivalentes e, assim, as mulheres que cursam o ensino normal passaram a poder concorrer a vagas em todas as faculdades, sem distinções (BELTRÃO; ALVES, 2009). No período da última ditadura militar do país, houve aumento no número de vagas, principalmente as de cunho profissionalizante. Observou-se, também, um incremento na pósgraduação. Essa tendência continua no período da redemocratização e, já nos anos de 1990, temos no país a formulação de políticas públicas, de forma mais intensa, para a manutenção de crianças na escola e um esforço explícito no sentido de universalizar a educação básica. A universalização da educação básica e a reversão das barreiras educacionais para as mulheres são demandas de políticas internacionais, que o Brasil assinou, entre elas: IV Conferência de Mulheres (1995); Fórum Mundial de Educação (2000) e as Metas do Milênio (2000). A adesão a tais iniciativas gerou uma pressão interna ao país, para que o Estado se mobilizasse na concretização dos acordos assinados. Mas, também, não podemos deixar de ressaltar que os movimentos sociais no próprio país reivindicavam uma realidade diferente para a população como um todo. Posso destacar aqui toda a movimentação feita pelas mulheres durante a Constituinte, que ficou conhecida como lobby do batom. Um dos slogans desse processo era “Constituinte pra valer tem que ter direitos de mulher”. Assim, com toda campanha que foi feita, 85% das suas propostas foram incorporadas ao texto final, e mostraram, mais uma vez, que o papel da mulher na sociedade brasileira estava redefinido. A ampliação do acesso feminino à escola, acima sintetizada pela referência a marcos históricos dessa trajetória, levou à superação, na atualidade, do chamado hiato de gênero. Segundo Beltrão e Alves (2009), essa expressão é usada quando há diferenças sistemáticas nos níveis de escolaridade entre mulheres e homens, evidenciando as desigualdades do acesso à escola entre os sexos. Hoje, as mulheres possuem, em média, mais anos de estudo do que os homens. No entanto, esse suposto triunfo na educação não se concretiza em outras áreas, 56 como pudemos ver em outra seção. Ainda persiste o sexismo nas carreiras acadêmicas, onde há uma predominância feminina em carreiras relacionadas ao cuidado, como pedagogia e enfermagem e que, por sua vez, são em geral de menor remuneração e prestígio social. Por que isso ainda acontece? A falta de opção para as meninas pode ser uma resposta para essa questão, uma vez que, desde crianças, muitas vezes só temos acesso a uma possibilidade de mundo, aquele do cuidado, do comportamento recatado, o que pode restringir nossa maneira de nos inserirmos em outras atividades sociais. É objetivo da próxima seção desenvolver a temática do sexismo na educação, de modo a melhor localizar este estudo. 2.1.1 Rompendo com os estereótipos: mobilizações por uma educação não-sexista Se na colonização brasileira as mulheres eram vistas como sem voz e sem vez, não participavam da vida político-social do país e seu lugar era o lar, como vimos com Louro (1997) e Saffioti (2013), por exemplo, atualmente, já temos outros modos de ser mulher disseminados no social, como já afirmado. Foi, principalmente, através do movimento de mulheres e feministas que as mulheres redefiniram seus papéis sociais e políticos, podendo contribuir em igualdade aos homens nos vários setores que formam a sociedade: um dos marcos desse processo é a possibilidade de instrução formal em todos os níveis de ensino (PINSKY; PEDRO, 2008; MORAES, 2008). Na contemporaneidade, insistimos em ter uma visão da mulher como sujeito de direitos, idênticos aos que os homens possuem. Porém, quando olhamos os indicadores sociais, os dados destoam, ou seja, há um princípio de igualdade de direitos entre homens e mulheres, mas que muitas vezes não se concretiza. Um dos vetores que participa deste processo é a educação escolar. Quando as teorizações sobre gênero se iniciaram, na segunda metade do século XX, muitas feministas postularam que uma forma de combater as desigualdades de gênero seria investir em uma educação não-sexista, em que não houvesse a afirmação da superioridade de um sexo sobre o outro. Mas, sendo nossa sociedade construída a partir da visão do homem branco europeu, heterossexual e machista, introduzir questões vistas como feministas na escola tem sido uma tarefa muito difícil. Assim, sobrevivem as naturalizações com as quais estereotipamos mulheres e homens. Exemplo disso é o fato de meninas e meninos ingressarem na escola com o mesmo número de 57 matrículas, mas terem trajetórias escolares distintas, que culminam, entre outras coisas, com o registro de evasão escolar maior entre os meninos e com uma tendência em que as e os jovens optem por escolhas profissionais em consonância com papéis de gêneros tradicionais. Esses se constituem, geralmente, como os de cuidado para as mulheres, como pedagogia, enfermagem, e os de notoriedade e salários mais altos para os homens, como engenharia, medicina. Em matéria publicada no jornal O Globo13, sobre a presença de mulheres na Ciência, afirma-se que só há 22 mulheres cientistas com menos de 40 anos no topo de carreira, contra 136 homens, o que resulta em uma média de presença de 6 homens para cada mulher. Se em parte a masculinização da Ciência é um fenômeno mundial, como afirma a matéria, acredito que a pouca visibilidade que as questões de gênero possuem no campo educacional brasileiro tendem a perpetuar localmente fenômenos tais como descritos acima. Assim, um dos objetivos desta parte da dissertação é tentar entender a atenção que é dada às questões de gênero nas políticas educacionais brasileiras, olhando primeiramente paras as leis que regem o processo educativo na atualidade do país e, em seguida, para dois documentos: CONAE (Conferência Nacional de Educação) e do PNPM (Plano Nacional de Políticas para as Mulheres). São documentos atuais, onde se articulam demandas da sociedade civil e dos governos. Ao realizar uma pesquisa sobre como gênero aparece nas políticas educacionais brasileiras, Vianna e Unbehaum (2004) consideraram a Constituição Federal de 1988, a lei 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o Plano Nacional de Educação (PNE), em vigor na época, e os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (PCNEF). A partir da análise destes documentos, as autoras constataram que, na Constituição, na LDB e no PNE, a forma como as questões de gênero são tratadas tem características distintas em relação ao modo como são abordadas no PCNEF. A primeira diz respeito à forma como a linguagem é utilizada, pois opta-se pelo genérico masculino: Se, por um lado, o masculino genérico por elas empregado expressa uma forma comum de se manifestar, por outro, seu uso – especialmente em textos que tratam de direitos – não é impune, pois a adoção exclusiva do masculino pode expressar discriminação sexista e reforçar o modelo linguístico androcêntrico (VIANNA; UNBEHAUM, 2004, p.34). Muitas vezes a utilização do masculino é referida como uma norma da gramática, porém, a gramática também é uma construção sociocultural e pode repetir desigualdades de gênero afirmadas no social em geral, acabando por também trabalhar performativamente pela 13 Matéria publicado no jornal do dia 29 de Abril de 2014. 58 invisibilização das mulheres. A forma como a linguagem escrita é tratada se torna muito importante para nossas análises, já que nosso suporte teórico – Derrida, Butler e Scott – partem, também, da ideia de que a língua, ao significar, também está construindo o social. Ou seja, ao se privilegiar o masculino na escrita também temos que estar atentas ao que nos dizem as ausências que dessa forma se criam. A segunda característica apontada pelas autoras na análise desses documentos diz respeito à questão dos direitos, que não são abordadas diretamente. No entanto, as ações e diretrizes dos documentos acabariam por promover a igualdade de gênero. Vianna e Unbehaum (2004) afirmam que é preciso ler nas entrelinhas para ver pequenos avanços quanto às questões de gênero, como, por exemplo, na defesa da educação de crianças pequenas, para além do cuidado e da assistência. Esse fato faz com que a educação dessas crianças deixe de ser só responsabilidade materna e passe a ser, também, do Estado, que deve oferecer atendimento em creches e pré-escolas, liberando as mães e ou responsáveis para o trabalho, estudo etc. Essa demanda é antiga do movimento de mulheres e feministas que, após campanha durante a constituinte, conseguiram incorporá-la na lei, embora a educação infantil ainda não tenha uma grande cobertura no território nacional. Segundo dados dos Indicadores Sociais do ano de 2012 disponibilizados pelo IBGE somente 21,2% das crianças brasileiras de 0 a 3 anos frequentam algum estabelecimento de ensino (IBGE, 2013). Portanto, apesar dos documentos terem como meta a expansão da cobertura para crianças pequenas, o que, concordando com as autoras, pode ser visto como benéfico para as mulheres, vemos aqui que a força da lei não conseguiu se fazer presente na construção de estabelecimentos públicos que atendam à demanda da educação infantil. A terceira forma destacada pelas autoras para problematizar como as questões do gênero são tratadas nesses documentos diz respeito especificamente ao Plano Nacional de Educação, onde está presente em poucos tópicos, mas que as autoras avaliam como um avanço em relação ao plano anterior e à própria LDB. A preocupação com o gênero aparece na avaliação do livro didático, que deve abordar as questões de gênero e etnia, sem discriminação; no tópico referente ao ensino superior, sugere-se que nos cursos de formação docente haja diretrizes curriculares que incluam a abordagem das questões de gênero em ótica contrária à subalternização feminina, em consonância com um ideal de igualdade. As críticas de Vianna e Unbehaum (2004) focalizam a forma como gênero é tratado quando se fala do acesso de meninas e meninos ao ensino fundamental: com matrículas equilibradas no início da vida escolar, o plano não considera as trajetórias escolares desses grupos após esse marco inicial. 59 Ao considerar os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (PCNEF), as autoras afirmam que: “É nesses documentos que as questões de gênero aparecem, evidenciando zelo e cuidado com muitos dos aspectos relativos aos significados e às implicações de gênero nas relações e nos conteúdos escolares” (VIANNA; UNBEHAUM, 2004, p. 39). As formas como gênero é tratado ou onde está localizado estão longe de serem ideais, mas demonstram avanços que as outras leis e documentos não tiveram. Gênero aparece nos PCNEF nos volumes dedicados aos Temas Transversais, que são temáticas que deveriam atravessar as disciplinas curriculares, não tendo um lugar exclusivo: Ética, Meio Ambiente, Saúde, Pluralidade Cultural e Orientação Sexual. Na análise de Vianna e Unbehaum (2004), gênero só seria explorado de forma mais enfática neste último tema, onde haveria um interesse em questionar as formas tradicionais com que vemos mulheres e homens. Mas, ao mesmo tempo, a forma como gênero, neste documento, é discutido acaba referindo-se, exclusivamente, às questões de saúde, especificamente no trato das doenças sexualmente transmissíveis e sua prevenção, limitando as possíveis críticas que poderiam ser feitas relativamente aos padrões de condutas estabelecidos culturalmente, ficando, assim, no trinômio corpo/saúde/doença. Ao finalizar as análises dos documentos, as autoras concluem que há um saldo positivo na referência aos direitos humanos e na abertura de demandas nas políticas públicas nas leis e documentos analisados, mas, por outro lado, há também, uma falta de radicalidade quanto às demandas de gênero, principalmente no PNE, que foi feito em um contexto onde as questões de gênero estavam no centro de debate e onde havia um maior conhecimento destas questões. Esta última conclusão nos remete ao cenário atual, onde o PNE 2011-2020 foi aprovado, mas a parte que se referia a gênero foi suprimida. Essa supressão fez parte de uma campanha, em que fundamentalistas religiosos combatem o que chamam de ideologia de gênero, argumentando que o uso do termo poderia corromper a família tradicional. O impacto desta retirada ainda é algo a ser avaliado, assim como a consolidação do plano como um todo, que já é aprovado com um atraso de três anos. Podemos afirmar que um dos possíveis impactos é a invisibilidade que desigualdades que perpassam por questões de gênero podem ter, impedindo que a sociedade de forma ampla as debata e impedindo, também, que o campo educacional possa mobilizar esforços na construção de práticas não-sexistas. Mas a retirada do termo me faz temer pela viabilidade da construção de práticas democráticas em um país onde a religião ainda impera na condução das leis que nos regem. Ao olhar para documentos mais atuais, como o documento final da Conferência Nacional de Educação (CONAE), de 2010, e o documento referência de 2014, vemos que as 60 chamadas questões da diferença, que incluem a temática de gênero, são entendidas como fundamentais para a efetivação de uma educação pública, democrática, laica e com qualidade social. Desse modo, a formação inicial e continuada nessas discussões se tornam objetivos nos seus textos, somando-se a isso a demanda pela inclusão nos currículos de licenciatura de matérias que contenham os estudos de gênero, como apontado em um das estratégias do documento referência da CONAE (2014, p. 32): Inserir e implementar na política de valorização e formação dos/as profissionais da educação, a discussão de raça, etnia, gênero e diversidade sexual, na perspectiva dos direitos humanos, adotando práticas de superação do racismo, machismo, sexismo, homofobia, lesbofobia, transfobia e contribuindo para a efetivação de uma educação antirracista, e não homo/lesbo/transfóbica. A referência a gênero nesse documento aparece em outros seis objetivos/estratégias, muitos deles em acordo com o proposto no documento de 2010. Também podemos ver semelhanças com as proposições feitas no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2013, p. 23), que afirma como um de seus propósitos: Promover a formação continuada de gestores/as e servidores/as públicos/as de gestão direta, sociedades de economia mista e autarquias, profissionais da educação, como também a formação de estudantes de todos os níveis, etapas e modalidades dos sistemas de ensino público de todos os níveis nos temas da igualdade de gênero e valorização das diversidades. Porém, muitas dessas propostas não se efetivam no cotidiano da educação brasileira, até porque temos um território muito extenso e realidades muito distintas. Soma-se a isso a resistência que alguns grupos políticos têm em relação às temáticas da diferença, o que acaba gerando interesse em não efetivá-las. Assim, concordando com Vianna e Unbehaum (2004), falta uma radicalidade no trato destas questões, pois nenhuma das leis conseguiu ser aplicada em nível nacional, apesar da urgência do combate às violências motivadas tanto por gênero como por outros marcadores sociais. Podemos entender, portanto, que temos muito o que construir quando falamos sobre as chamadas questões da diferença. A necessidade da formação inicial e continuada nas temáticas de gênero se coloca para que possamos combater e minimizar os efeitos que os estereótipos de gênero causam tanto na formação das alunas, como na das professoras e das demais funcionárias das escolas. Sabemos que os estereótipos têm impactos negativos na formação de meninas e meninos que não conseguem ser condizentes com o esperado para o que se entende como seu sexo/gênero, mas também podemos constatar impactos naquelas pessoas que correspondem aos 61 estereótipos de gênero, uma vez que acabam se aprisionando em uma única forma de se expressar. A seguir, exponho relatos de duas pesquisadoras, onde podemos observar como os estereótipos de gênero podem causar impactos no cotidiano escolar. Em uma pesquisa em que analisa aspectos históricos, sociais e políticos na relação entre o masculino e o feminino, e descreve a convivência de meninos e meninas em uma determinada escola, Auad (2006) observa que o fato de os meninos falarem em sala correspondia a uma tomada de poder. Observa, ainda, que este falar está relacionado tanto a responder às questões da professora quanto a falar para promover brincadeiras em sala. Segundo a autora: “A dominação dos meninos era recorrente em ambos os casos, embora encenando diferentes lugares de destaque. Na Escola do Caminho, tomar a palavra, ou seja, falar na sala de aula, para a maioria dos meninos corespondia também à tomada de poder” (AUAD, 2006, p. 38). Não que as meninas não falassem, elas falavam entre si, mas de forma menos expressiva do que os meninos. Auad (2006) também destaca, nessa pesquisa, que as professoras da Escola do Caminho tendiam a falar mais com os meninos, mesmo que fosse para repreender quanto à disciplina, enquanto as meninas eram vistas como auxiliares da professora na manutenção da ordem em sala. Esperava-se que as meninas fossem quietas, registrando-se falas do tipo “Até as meninas estão matracas hoje!” (AUAD, 2006, p. 31). Concordo com Auad quando afirma que: “Esse retrato da tradicional socialização feminina é um modo de reforçar e perpetuar uma determinada divisão sexual do trabalho. Nessa divisão, as meninas e mulheres são obedientes, cuidadosas, trabalham duro e asseguram a ordem, sem jamais subvertê-la” (AUAD, 2006, p. 35). Então, vemos que na Escola do Caminho há uma aceitação de uma agitação maior para os meninos, expresso nas situações em que eles podem falar em diferentes contextos e não para as meninas que são repreendidas quando não condizentes com a expectativa das professoras. Em outra pesquisa, Carvalho (2009) investiga como se produzem trajetórias escolares de fracasso com maior frequência em crianças do sexo masculino e nos dá outros exemplos de como as professoras podem estereotipar meninas e meninos. Ao serem questionadas em entrevista sobre o que seria um bom aluno, as professoras dessa pesquisa afirmaram que bom aluno é “quem participa; quem consegue ter um elo legal com o grupo; quem se envolve com a escola” (CARVALHO, 2009, p. 37). Porém, as meninas tidas como boas alunas não possuíam essas características, geralmente eram caladas e não questionadoras. Tanto na pesquisa desenvolvida por Auad (2006), quanto na de Caravalho (2009), vemos que predominam formas tradicionais de identificação de meninas e meninos, por parte 62 das professoras, que tendem a considerar os meninos falantes, espertos e ativos por natureza, enquanto as meninas precisam ser quietas e, para serem consideradas inteligentes precisam se esforçar. Desse modo, legitimam-se certos comportamentos no âmbito escolar, onde com frequência se espera que os meninos sejam agitados, indisciplinados, mas não se permite isso às meninas. Os estereótipos de gênero também oprimem os meninos, pois se lhe são reconhecidas características consideradas femininas, eles acabam sendo rotulados com adjetivações do universo feminino, que tendem a serem consideradas depreciativas. Exemplo disso se encontra, ainda, em Carvalho (2009, p.46), que ouve uma professora relatando um episódio sobre o caderno de um aluno: Eu tenho um aluno, o Frederico, um excelente aluno, que eu olhando o caderno um dia na minha casa, eu abri o caderno e mostrei para minha irmã e falei assim: “olha o caderno dessa menina, como é caprichado...”. “Nossa! Caprichosa sua aluna”, ela falou. Até brinquei com eles [os alunos], contei essa história, que parecia caderno de menina, brinquei com ele. Assim, podemos observar que conciliar os ideais de masculinidade com o esperado para um bom aluno – ter um caderno organizado – se torna algo difícil. Em ambos os exemplos, há reforços negativos para a atuação de meninas e meninos que fogem aos estereótipos de gênero. Mas são visões que podem ser mudadas, se houver profissionais mais sensíveis a essa temática, podendo assim se criar um espaço educativo onde meninas e meninos, mulheres e homens, possam se expressar de variadas formas sem correr o risco de serem discriminados. Pelo exposto acima, em consonância com as experiências que possuo como regente de turma, posso concluir que, apesar de uma relativa atenção dada às questões de gênero em nível legal e de documentos direcionados para a educação, não temos na realidade a incorporação do princípio da igualdade de gênero na educação (PNPM, 2014). Apesar de não haver diferenças no número de matrículas como apontado por autoras (VIANNA; UNBEHAUM, 2004; BELTRÃO; ALVES, 2009) as desigualdades de gênero persistem nas trajetórias escolares de meninas e meninos, causando o fracasso escolar de maior número de meninos, mas também direcionando as meninas/mulheres para ocupações de menor prestígio social e menor remuneração. Com isso, observo que é preciso, ainda, implantar de forma satisfatória uma educação que considere os pressupostos feministas, onde se possam questionar não só os papéis de gênero, mas, também, os étnicos/raciais, os de orientação sexual promovendo uma educação que seja não-sexista, não-racista e não-homofóbica. 63 2.2 Sobre os materiais escolares: o que o livro didático tem a ver com práticas sexistas? Na seção sobre a escolarização das mulheres no Brasil, vimos que a proposição de uma educação pública que abrangesse toda a população, principalmente, aquelas que universalizam o acesso para as crianças é algo recente no cenário brasileiro. No entanto, não tão recente assim é a proposta de um material didático nacional. O que conhecemos hoje como livro didático tem uma história significativa no cenário nacional: se por um lado ele é tido como aliado, sendo muitas vezes o único suporte para as aulas, por outro lado seu conteúdo vem sendo alvo de críticas, uma vez que pode reproduzir preconceitos de raça/etnia, sexo, religião etc. Levando em consideração o exposto acima, pretendo, na próxima seção, localizar a reflexão acadêmica sobre o livro didático, considerando sua história no Brasil e as principais críticas que já recebeu, no campo educacional, além de discutir sobre os conteúdos vinculados nestes materiais. 2.2.1 O livro didático no Brasil Como exposto na discussão sobre a educação das mulheres no Brasil, no ano de 1930, a educação brasileira é remodelada. Nesse ano, o país vivencia a chamada Revolução de 1930, em que começa um novo período político brasileiro. Os fatos políticos que se sucedem após esse marco culminam com o golpe de 1937, inaugurando tanto o chamado Estado Novo quanto a ditadura Vargas (PANDOLFI, 1999). Esse período é caracterizado por medidas centralizadoras, com o surgimento, por exemplo, da polícia política que procurava reprimir todas as ações entendidas como ameaças ao novo regime. A educação é remodelada nesse período, pois é entendida como central para a formação da nova sociedade que se iniciava, na medida em que ajudaria a conceber o homem novo aos moldes do que o governo desejava, segundo Bomeny (1999, p. 139): Formar um “homem novo” para um Estado Novo, conformar mentalidades e criar o sentimento de brasilidade, fortalecer a identidade do trabalhador, ou por outra, forjar uma identidade positiva no trabalhador brasileiro, tudo isso fazia parte de um grande empreendimento cultural e político para o sucesso do qual contava-se estrategicamente com a educação por sua capacidade universalmente reconhecida de 64 socializar os indivíduos nos valores que as sociedades, através de seus segmentos organizados, querem ver internalizados. Temos nos anos de 1930 uma produção educacional mais sistemática, com o governo investindo fortemente em educação e cultura, atraindo muitos intelectuais que queriam colaborar com a formação de um novo ideal de nação. Assim, em sintonia com as medidas centralizadoras do novo governo, tenta-se controlar o que a população lê, por meio do Instituto Nacional do Livro (INL), criado em 1937, para “assegurar a divulgação e distribuição de obras de interesse educacional e cultural” (FREITAG et al., 1989, p. 12, grifos das autoras). O INL é a forma que o governo tem de definir o que poderia ou não ser lido nas escolas brasileiras. Depois da criação deste instituto são publicados outros decretos que regulamentam tanto o material didático quanto as formas do seu controle sistemático. Em 1938, é definido, através do Decreto-lei 1006, de 30 de dezembro de 1938, o que o governo entendia como livro didático: Art. 2º, S 1º - Compêndios são livros que exponham total ou parcialmente a matéria das disciplinas constantes dos programas escolares; 2º - Livros de leitura de classe são os livros usados para leitura dos alunos em aula; tais livros também são chamados de livros texto, livro-texto, compêndio escolar, livro escolar, livro de classe, manual, livro didático (OLIVEIRA apud FREITAG et al., 1989, p. 13). Neste decreto, também é criada uma comissão de avaliação do livro didático, mas que, na prática, ao invés de avaliar o conteúdo do livro, propunha censuras políticas e ideológicas, ficando de lado a questão didática. Essa comissão começa a ser questionada com o fim da gestão Capanema, em 1945, e, em 1947, é solicitado um parecer jurídico a respeito da legalidade da comissão. Mas a comissão permanece, em plenos poderes, “sem que sejam resolvidos os vários impasses decorrentes da centralização do poder, do risco de censura, das acusações de especulação comercial e da manipulação política, relacionada com o livro didático” (BOMÉNY apud FREITAG et. al., 1989, p. 14). Na década de 1960, durante o regime militar, é feito um convênio entre o Ministério da Educação (MEC) e o governo dos Estados Unidos, para disponibilização de 51 milhões de livros para estudantes brasileiros em um período de três anos, além da instalação de bibliotecas e formação de instrutoras e professoras. Segundo Freitag, Motta e Costa (1989) haviam diferentes entendimentos sobre esse convênio dentro do cenário brasileiro, pois se o MEC descrevia essa relação enquanto uma ajuda, pensadoras críticas da educação brasileira viam essa associação como um controle americano do mercado livreiro e, também, supunham uma tentativa de controle político. A Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático 65 (COLTED), criada nesse convênio, foi extinta em 1971 e foi criado o Programa do Livro Didático. A partir dos anos de 1980, ganha força a visão de que o livro didático subsidiado pelo governo seria a oportunidade para as chamadas crianças carentes terem acesso a esse material. São lançadas então as diretrizes do Programa do Livro Didático, em que possibilitar o acesso ao livro se torna uma das diretrizes principais. Aliado a esse programa, é instituída também a Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), que, subordinada ao MEC, apoiava as secretarias de ensino do 1º e 2º graus, sendo o Programa incorporado à FAE ainda em 1983. Para Freitag, Motta e Costa (1989), havia nesse momento muitas críticas à forma como o governo estava encaminhando o Programa do Livro Didático, geralmente, assentadas na discordância em relação à centralização da política e à perspectiva assistencialista do governo, o que se traduzia na dificuldade de distribuição do livro dentro dos prazos previstos, lobbies das empresas e editoras junto aos órgãos estatais responsáveis, autoritarismo das delegacias regionais e secretarias estaduais. Em 1985, é criado o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que regulamenta a aquisição do livro e toma outras medidas, tais como: descentralização da escolha do livro, sugerindo que isso seja atribuído às docentes que o utilizam em sala; determinação da aquisição de livros reutilizáveis; e fim da participação financeira dos estados. Mudanças nesta concepção inicial aconteceram em 2001, com a resolução nº 603, que passa a ser um mecanismo regulador e organizador do PNLD (FREITAG et al., 1989; HOFLING, 2000; VERCEZE; SILVINO, 2008). Nos anos de 1990, com a assinatura da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, além das reformas curriculares do Ensino fundamental, começou um movimento em nível governamental para avaliar a qualidade do livro didático. Na sociedade civil, esse tipo de demanda já existia desde os anos de 1970. Em 1993, é criada uma comissão de avaliação do livro didático e, desde então, é oferecido às professoras um guia para ajudá-las a escolher os livros que serão usados por sua unidade (VERCEZE; SILVINO, 2008). As questões que circundam a escolha, produção, distribuição e utilização do livro didático estão longe de serem pacíficas – ao contrário, são objetos de denúncias desde a sua origem, como pelo fato de não haver, fora do aparelho estatal, organismos capazes de influenciar, formular e redirecionar o processo decisório sobre o livro didático. É importante lembrar ainda que o PNLD é o maior programa de livro didático do mundo, fazendo com que seja uma fonte de renda considerável para as editoras, que acabam adequando suas coleções as exigências do Governo Federal. Desse modo, as editoras seguem as propostas do governo, seus pareceres e decretos, deixando de fora de seus livros os 66 conteúdos considerados polêmicos, formando assim o chamado currículo mínimo, que será único para todo o território nacional. Para autoras como Hofling (2000), a presença de grupos privados compromete o viés democrático a que se pretende o PNLD apontando-se estranheza ao fato de que um grupo de editoras dominar a venda dos livros no cenário nacional. De fato, em matéria publicada em 2012 por um sítio de notícias do mercado editorial que divulgou a lista das editoras selecionadas para constarem no Guia do Livro Didático de 2013, entre as editoras com mais títulos aprovados estão FTD, Moderna, Saraiva e Scipione 14, o que parece nos indicar uma manutenção da realidade apontada por Hofling, que cita as mesmas editoras absorvendo 90% do total de recursos públicos da FAE, em 1994 (2000). A maneira como se usa o livro didático também é polêmica. O livro pode ser concebido como um suporte às aulas, mas a escassez de recursos que muitas escolas vivenciam, somada a problemas na formação inicial e continuada das regentes de turmas, assim como os efeitos dos desgastes da profissão, uma das mais desvalorizadas do mercado de trabalho nacional, os livros passam, com frequência, de apoio a ator principal. Com isso, os conteúdos expostos nos livros muitas vezes direcionam a ação docente, não sendo questionados, o que se torna problemático quando vê-se que muitos deles reproduzem preconceitos e discriminações de raça/cor, sexo e religião (FERREIRA; SELLES, 2004). Nesta seção procurei trazer alguns marcos da história do livro didático no Brasil e algumas questões que se colocam na reflexão sobre seu uso na educação. Pretendi destacar que a trajetória desse material no país se inicia em um contexto de repressão e controle político, chegando a 1985 com a criação do PNLD. Na próxima seção, trago pesquisas acadêmicas que tomaram o livro didático como seu objeto de estudo, assim como fiz no estudo que apresento no capítulo que se segue. 2.2.2 O livro didático e as questões do sexismo O livro didático se tornou ao longo dos anos uma presença importante no contexto educacional brasileiro e a forma como ele expõe seu conteúdo tem se tornado tema de pesquisa, nos últimos trinta anos. Segundo Choppin (2004, p. 557): 14 Informações extraídas do sítio http://www.publishnews.com.br/telas/noticias/detalhes.aspx?id=67712, último acesso em 15 de julho de 2014. 67 Conclui-se que a imagem da sociedade apresentada pelos livros didáticos corresponde a uma reconstrução que obedece a motivações diversas, segundo época e local, e possui como característica comum apresentar a sociedade mais do modo como aqueles que, em seu sentido amplo, conceberam o livro didático gostariam de que ela fosse, do que como ela realmente é. O livro é, portanto, um material complexo, pois muitas vezes o exposto em seu interior pode divergir de iterações sociais que tentem construir a igualdade e a defesa da pluralidade cultural, já que apresentam a sociedade parcialmente, como exposto acima. Choppin (2004) argumenta, ainda, que toda controvérsia é retirada do livro didático, o que pode levar à repetição, por docentes e estudantes que utilizem esse artefato, do entendimento de que a sociedade brasileira, e outras sociedades, possuem uma formação homogênea, onde não há controvérsias de classe, gênero, cor/raça. Desse modo, a tentativa de compreender o quanto o livro didático pode ou não contribuir com a formação de padrões mais democráticos se tornou tema de interesse de pesquisadoras. As primeiras iniciativas, em nível mundial, se deram após a Primeira Guerra, com a proposta de retirada de preconceitos xenofóbicos e a assinatura, em 1937, de uma Declaração sobre Ensino da História e Revisão dos Livros Didáticos (ROSEMBERG et al., 2009). As pesquisas que procuram entender as representações das mulheres nos livros didáticos se deram a partir das acadêmicas e ativistas feministas que buscam demarcar um problema social: a educação diferenciada de meninas e meninos. Desse modo, muitas pesquisadoras dessa época, segundo Negrão e Amado (1989), entendem o livro didático como informante ou construtor de identidades, já que muitas vezes o livro se constitui como único suporte para as aulas, não tendo os sentidos afirmados em seu interior contestados por outras fontes. Este tipo de pesquisa se insere em uma agenda maior de denúncia da subrepresentação feminina em diversos espaços, que ganha força na Década da Mulher, que se inicia em 1975 e é marcada por uma série de ações em todo mundo que procuram dar visibilidade às questões das mulheres e feministas (NEGRÃO; AMADO, 1989; ROSEMBERG et al., 2009). Para Negrão e Amado (1989), as pesquisas dessa época se baseavam na metodologia de análise de conteúdo e viam a escola como um aparelho ideológico. Portanto, muitas priorizavam a denúncia das práticas discriminatórias que as escolas reproduziam, tanto no seu fazer cotidiano quanto em seus materiais didáticos. Queriam denunciar o fato de que, mesmo as mulheres conseguindo acesso às escolas de forma ampla, o currículo continuava a ser um 68 artefato de gênero, ou seja, perpetuavam as visões que se tinha no social sobre meninas e meninos, mulheres e homens. Segundo U´Ren (apud ROSEMBERG et al., 2009, p. 492): Sua educação reflete os papéis que a sociedade espera que desempenhem. Nossa sociedade ensina ao homem, e não à mulher, que deve realizar, progredir, criar. Esta deferência dirigida ao homem é particularmente evidente nos livros escolares usados por crianças na escola primária. Com isso não se conseguiria romper com os chamados estereótipos de gênero e a escola continuaria sexista. Uma das críticas a esses estudos é que, por terem sido feitos por feministas, acabaram se fechando em guetos, ou seja, não dialogaram com os estudos sobre livros didáticos ou mesmo da educação, fazendo com que, esgotada a fase de denúncia, não houvesse mais tantos estudos que dialogassem com os temas livro didático e sexismo. No Brasil, assim como no restante do mundo, durante os anos de 1970 e 1980, esses estudos ganharam destaque. Não responsabilizavam a escola pelos estereótipos, porém, viamna como uma agência socializadora que favorecia seu fortalecimento. Desse modo, o sexismo nos livros didáticos foi registrado como presente, sendo tema de pesquisas e de denúncias, na agenda feminista e acadêmica. Fez-se presente também, a partir dos anos de 1990, na pauta nos governos federais, estaduais e municipais, uma vez que, com o PNLD distribuindo milhões de exemplares de livros em todo Brasil, tornava-se muito pertinente a discussão sobre a qualidade desse material didático, o que se somava aos acordos internacionais em que o Brasil se comprometia a diminuir as desigualdades entre mulheres e homens (NEGRÃO; AMADO, 1989; ROSEMBERG et al., 2009). Destacamos aqui o levantamento bibliográfico feito por Negrão e Amado (1989) sobre o estado da arte da imagem da mulher no livro didático, encomendado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Foram levantadas 44 referências de artigos, comunicações, teses e livros, entre 1973 e 1986. Segundo as autoras, o material levantado revelava uma reflexão esparsa sobre livro didático, com diversas teorias, metodologias e políticas. Parte dos textos preocupa-se com o sexismo quando aparecem temas como família e escola, usualmente reconhecidas como femininas, mas os tipos femininos mais frequentes eram mãe, professora, avó e empregada. As pesquisas levantadas nesse estudo anunciam o objetivo de denunciar o sexismo então presente nos materiais didáticos, considerando que a discriminação sexual não estava mais no impedimento à entrada das mulheres na escola, mas sim em seu interior, como pontua Rosemberg (apud NEGRÃO; AMADO, 1989, p. 47): 69 No Brasil, como em outros países do mundo, mesmo subdesenvolvido, a discriminação sexual no plano educacional mudou de rumo; ela não se efetua mais através do impedimento das mulheres ascenderem ao sistema educativo, mas se transferiu para seu interior. Isto é, apesar do avanço notável de acesso à escolaridade, persistem diferenças fundamentais nas trajetórias educacionais de homens e mulheres, caracterizando verdadeiros guetos sexuais, a despeito do princípio da co-educação entre os sexos. Persiste, também, um aproveitamento diferenciado do nível de instrução de homens e de mulheres no mercado de trabalho, seja quanto à sua adequação, às oportunidades ocupacionais ou ao rendimento recebido pelo trabalho remunerado. E, finalmente, a escola brasileira continua a reforçar estereótipos sexuais, não tendo assumido, no seu interior, uma proposta anti-sexista. Sendo assim, já nos anos finais de 1980, alertava-se para a necessidade de se pensarem os estereótipos sexuais com os quais as escolas trabalhavam, pois esses estereótipos tendiam a se expandir para além dos muros das escolas, deixando marcas nas vidas profissionais de mulheres e homens – ou, nos termos desta pesquisa, gerando efeitos performativos indesejáveis nas possibilidades profissionais e sociais de mulheres e homens. Em outro levantamento, feito por Moura (2007 apud ROSEMBERG et. al., 2009), que compreende o período de 1980 até 2000, a autora observa permanências e transformações nos estudos em torno do sexismo nos livros didáticos. Podemos destacar aqui que: o tema permanece na agenda do movimento feminista, sendo a avaliação do livro didático tema do Plano Nacional de Política para as Mulheres; a substituição do termo sexo pelo termo gênero; a difusão privilegiada de trabalhos em congressos acadêmicos feministas, ressaltando que há mais trabalhos sobre o tema apresentados no congresso bienal Fazendo Gênero do que nas reuniões da ANPEd. Sendo assim, podemos ver que há pouca difusão desta temática na área de educação, criando dessa maneira lacunas na compreensão do sexismo, tanto nos livros didáticos quanto na escola como um todo. Rosemberg et al. (2009, p. 506) pontuam algumas dessas lacunas: Pouco se trata do uso que fazem deste material professores (as) e alunos (as), das dificuldades de criação de material alternativo e o que isso significa na sociedade brasileira; das formas de utilização contra-corrente desses materiais, das implicações do fato de o Estado ser hoje, no Brasil, o maior comprador de LD e do perfil do mercado de trabalho do LD do ponto de vista das relações de gênero. As conclusões que ficam dessas pesquisas é que, ainda, permanecem padrões tradicionais convivendo com atenuações, ou seja, atualmente, os livros didáticos continuariam sexistas, observando-se a repetição de concepções mais igualitárias, tais como a referência à mulher que trabalha fora. Apesar de o PNLD manter como um de seus objetivos a eliminação de materiais que expressem qualquer tipo de preconceito, incluindo os de sexo/gênero, trata- 70 se de objetivo difícil de atender, já que as pessoas que avaliam os livros não possuiriam formação adequada para a discussão do sexismo que pudesse dar suporte à sua avaliação. Observa-se também a falta de sistematicidade desses estudos, sendo as interseções entre gênero e educação pouco exploradas ou mesmo não consideradas em pesquisas que tenham como foco os processos educacionais (ROSEMBERG et al., 2009). As discussões em torno do sexismo do livro didático podem parecer conflitantes com os números da educação, já que os estudos mostram uma parcela significativa de mulheres tendo sucesso em suas trajetórias escolares. No entanto, apesar do sucesso na escola, as mulheres parecem não manter essa condição na vida profissional, sendo também importante tentar entender também as formas como as meninas constroem esse chamado sucesso escolar, pois, como vimos com Auad (2006) e Carvalho (2009), muito dele resulta de comportamento condizente com o seu sexo/gênero. Entendo que, de fato, a manutenção de materiais sexistas na educação escolar pode impactar negativamente a formação de meninas e mulheres, que acabam crescendo desconhecendo a potencialidade feminina nas diferentes áreas profissionais. Por exemplo, segundo Madeleine Lackso (2013), em matéria publicada na Revista Fórum15, 89% das pessoas formadas em engenharia no mundo são homens. A autora da matéria argumenta: “Uma das razões pode ser facilmente comprovada com uma visita a qualquer loja de brinquedos, as meninas não são inspiradas a fazer parte desse universo”. Desde pequenas, a sociedade está nos ensinando qual o nosso lugar. É óbvio que há subversões: a própria matéria cita uma companhia nova de brinquedos que fez uma coleção para meninas engenheiras e uma das frases da música de campanha diz: “Todos nossos brinquedos parecem iguais! Queremos usar nossos cérebros. Somos mais que princesas donas de casa”. O vídeo virou um viral na internet, o que serve para suscitar o debate, muitas vezes apagado, sobre o que ainda precisamos desconstruir para ocupar um lugar onde nos seja permitido fazer todas as coisas que queremos, sem preconceitos de sexo/gênero. Ainda hoje não vemos o princípio da igualdade de gênero sendo aplicado de uma maneira que nos permita ser livre tanto na escola como em outros setores da sociedade. Na escola, ainda parece persistir a visão de meninos indisciplinados e meninas quietas, meninos sendo criados para o público e meninas sendo criadas para o privado. Mas, na pesquisa aqui relatada, averiguei se em materiais didáticos atuais podemos ter presentes outras formas do 15 Revista Fórum edição de 26 de novembro de 2013. Endereço eletrônico http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/11/falta-de-opcao-de-vida-e-doenca-mortal-para-meninas/, último acesso em 20 de maio de 2014. 71 feminino, que rompam com os modelos tradicionais. Queremos saber se esses materiais apontam subversões ou mantêm-se sexistas, para contribuir com o debate sobre o sexismo nos materiais didáticos da contemporaneidade. 72 3 O FEMININO NAS APOSTILAS DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO Artigo I: A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. As distinções sociais não podem ser fundadas a não ser no bem comum16. Olympia de Gouges Os processos descritos nos capítulos 1 e 2 estão sendo problematizados no mundo ocidental desde os anos de 1970. No Brasil, as questões que tematizam gênero ganham força no final dos anos de 1980 e, de forma mais enfática, crescem nos anos de 1990, mas as denúncias em torno do sexismo nos livros didáticos estão postas em cenário nacional desde os anos de 1970. Com isso, temos três décadas de problematizações sobre as formas como as mulheres são vistas socialmente, ora de forma mais intensa e explícita, ora de forma mais velada. Iniciamos esta proposta de pesquisa pensando se, com toda essa movimentação e possível difusão e sedimentação de novos sentidos para o feminino, as questões de gênero conseguiram fazer eco nas produções dos materiais didáticos contemporâneos. Nossas questões de pesquisas são formuladas a partir dos seguintes pontos: quais discursos sobre o feminino estão sendo repetidos e/ou deslocados nos materiais didáticos? A linguagem no genérico masculino é usada pra se referir a mulheres e a homens? As mulheres estão visibilizadas nos livros das diferentes disciplinas? De que modo? Quem são os personagens dos livros? Ou seja, quem protagoniza os enunciados dos textos ou dos problemas, quem são os heróis, os cientistas etc.? Que papéis são afirmados para o feminino? Ao querer discutir sobre os materiais didáticos contemporâneos, tivemos que fazer um recorte no nosso olhar e, para tal, debruçamo-nos sobre um material específico. A seguir descrevo o material analisado, assim como o contexto político em que ele foi criado e aplicado. Apresento ainda as opções metodológicas da pesquisa e, em seguida, sintetizo as análises desenvolvidas. 16 GOUGES, O. Declaração de direitos da mulher e da cidadã. In VARELA, N. Feminismo para principiantes. Barcelona: Ediciones B, 2008. 73 3.1 Os Cadernos Pedagógicos Os materiais didáticos pesquisados nesta dissertação são os chamados Cadernos Pedagógicos, que foram distribuídos e utilizados, durante o ano de 2013, pela Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de Janeiro (SME/RJ), conhecido também por professoras e alunas da rede como apostilas. O contexto de produção desse material se remete à SME/RJ, a partir do ano de 2009. Em 2009, temos, na cidade do Rio de Janeiro, uma nova gestão, tanto do governo da cidade, como na Secretaria de Educação. A nova secretária é Claudia Costin, que passa a administrar a maior rede da América Latina, no período de 2009 até 2013. Costin, desde seu início, foi um nome controverso para a pasta de educação, uma vez que sua formação não era dessa área, mas, sim, em administração pública, como podemos ver em seu perfil: Especialista em Gestão Pública, políticas públicas e combate à pobreza, tem larga experiência acadêmica, de assessoramento técnico e de gestão em governos e no Terceiro Setor, no Brasil e em outros países. Foi Ministra de Estado da Administração Federal e Reforma do Estado, Secretária de Planejamento e Avaliação do Ministério da Economia; Secretária-Adjunta de Previdência Complementar no Ministério da Previdência. No governo do Estado de São Paulo foi secretária da Cultura e coordenadora de diversos projetos na FUNDAP Fundação do Desenvolvimento Administrativo -, entidade voltada à modernização da Administração Pública17. Costin, portanto, tem amplo trabalho na administração pública e muito do que tinha feito até assumir a rede possui conexões com a chamada perspectiva da eficiência no setor público, princípio que foi aplicado em sua gestão como secretária de educação da cidade do Rio de Janeiro. Desse modo, uma de suas primeiras medidas foi organizar uma proposta intitulada “Salto de Qualidade na Educação”, apresentando propostas instrucionais para as professoras a fim de unificar a proposta de trabalho de todas as escolas que compõem a SME/RJ (OLIVEIRA, 2012). As ações coordenadas pela gestão de Cláudia Costin na rede tem muitas proximidades com a chamada cartilha neoliberal18 para a educação, como trazer atores privados para a administração pública, abrir o setor da educação a regras de mercado globais, aplicações de testes padronizados em larga escala, fornecer premiações de acordo com metas previamente 17 18 Extraído do sítio http://ebape.fgv.br/corpo-docente/claudia-costin, último acesso em 08 de julho de 2014. Entendida como uma série de medidas que tenta impor uma lógica no processo educacional centrada na competição atestada por meio de avaliações de larga escala e premiações. 74 definidas. Até o fim de sua gestão (2009-2013), a rede tinha duas avaliações bimestrais – AfabetizaRio e Prova Rio – além da Prova Brasil (OLIVEIRA, 2012). É juntamente com essa proposta política para a educação que surgem os cadernos pedagógicos, distribuídos para as escolas da rede a partir de 2009. De início, havia apenas cadernos de português, matemática e ciências, mas, posteriormente, amplia-se para os de história e geografia. Os cadernos são enviados bimestralmente para as unidades, mas podermos acessá-los no sítio da SME/RJ. A proposta inicial deste material era contribuir com a prática pedagógica em sala, tanto para tarefas em casa, quanto para o reforço escolar. Segundo Costin (apud OLIVEIRA, 2012): Espera-se que os cadernos possam contribuir como um recurso metodológico para a ação pedagógica cotidiana. Constitui-se em mais um apoio à disposição do professor que, em interação com os já disponíveis (livros, internet, projetos da escola e outras escolhas do professor), amplie as possibilidades de discussão de conceitos e de formação de habilidades. Assim, temos em discussão um material que é usado cotidianamente por um grupo significativo de pessoas, já que a rede pública de educação da cidade do Rio de Janeiro se constitui, ainda hoje, como a maior rede da América Latina, como podemos observar na tabela que se segue: Tabela 2 – Educação em Números19 Unidades do Ensino Fundamental 1.004 Creches Espaços de Desenvolvimento Infantil 247 Alunas Matriculadas 664.384 Professoras 42.529 190 Fonte: SME/RJ, 2014. A oferta dos cadernos pedagógicos pela rede poderia não implicar o uso desse material por parte de professoras e alunas, uma vez que, a depender da proposta da regente, outros caminhos de atividades poderiam ser traçados. Mas o que aconteceu nessa rede durante a gestão de 2009-2013 foi a imposição do uso desses materiais, uma vez que seus conteúdos 19 Informações extraídas dos seguintes sítios http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/educacao-em-numeros e http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4463799/4112236/GUIA_matriculageral_201414.11.pdf, último acesso em 08 de julho de 2014. 75 referem as avaliações da rede. A depender do resultado que a unidade conquista nas avaliações da rede, as profissionais que atuam ali podem receber, por exemplo, o décimo quarto salário, sob o nome Prêmio Anual de Desempenho, instituído também em 2009. Desse modo, podemos afirmar que a SME/RJ possui maneiras institucionalizadas de pressionar pela utilização efetiva desse material. Com isso, pareceu ser pertinente questionar o conteúdo desse material, que demonstra ser uma instância de iteração de sentidos com força no cenário educacional municipal, sendo usado na rede em substituição ao livro didático. Análises sobre a qualidade dos cadernos pedagógicos começaram a vir a público no ano de 2013, quando foram denunciados erros encontrados no material de Geografia. Segundo Susana Gutierrez, professora e diretora do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio (SEPE- RJ), erros nessas apostilas são comuns. Em matéria publicada no jornal O Globo, Susana afirma: “Eles já me orientaram a rasgar ou arrancar as páginas que contivessem erros20”. Além dos problemas relacionados a erros nesses materiais, outra questão em destaque é sobre a autonomia pedagógica da professora e da escola, já que as apostilas tendem a limitar o fazer pedagógico da regente de turma. Essa questão se constituiu como um dos pontos da greve da educação municipal em 2013, quando as profissionais reivindicavam o direito de escolher o livro didático e as formas de ensinar em cada disciplina. Nesse cenário, busquei sobre como o feminino é representado nas apostilas usadas nos 4 bimestres que compõem o ano letivo de 2013, pelos últimos anos do ensino fundamental, a saber, 7º, 8º e 9º ano. Os últimos anos do ensino fundamental foram selecionados para essa pesquisa, pois, como sabemos, no Brasil, a obrigatoriedade do ensino é dada, ainda, somente ao ensino fundamental, do primeiro ao nono ano, com início aos seis anos de idade. Tem-se como um dos objetivos da escolaridade a formação para a cidadania mediante, entre outras coisas: a “compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade” (BRASIL, 2006). Ou seja, espera-se, do grupo que conclui o ensino fundamental, que tenha um conhecimento de mundo operando com os valores que fundamentam a nossa sociedade. Sendo assim, propus-me a investigar, nos anos finais do ensino fundamental – quando se espera que esses saberes e valores estejam mais consolidados – que visões de gênero os cadernos pedagógicos estão oferecendo a esse grupo na conclusão do ciclo de ensino obrigatório, com especial ênfase para os sentidos sobre o feminino presentes nesses materiais. 20 Extraído do sítio http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/apostila-da-prefeitura-do-rio-diz-que-capital-depernambuco-belem-8424254#ixzz36srwu0d2, último acesso em 08 de julho de 2014. 76 Os cadernos pedagógicos foram compilados do sítio da Secretaria Municipal de Educação 21, no período de março a dezembro de 2013. Não estão mais disponíveis no sítio para a visualização, uma vez que agora constam os materiais referentes ao novo período letivo. Sendo 3 anos de escolaridade, com 5 disciplinas por bimestre – Geografia, História, Ciências, Português e Matemática – em um total de 4 bimestres ao ano, o que resulta em 60 arquivos. Em seguida exponho as opções metodológicas feitas para lidar com esse material. 3.2 Questões de método: como olhar para os corpora 22 da pesquisa? Ao desenvolver uma pesquisa, certamente precisamos definir os caminhos a serem trilhados. Os campos de conhecimentos a que as pesquisas se remetem podem nos dar indícios de quais metodologias utilizar, a partir também da definição dos objetivos da pesquisa desenvolvida. Mas, tratando-se do campo educacional, as possibilidades de pesquisa se multiplicam, uma vez que a pesquisa em Educação tem se constituído pela apropriação de saberes referentes a outros domínios. Como afirma Gatti (2012, p. 7): “Estudos que revelam a diversidade disciplinar no campo da educação nos fazem apontar a multiplicidade de abordagens, mas, também, a especificidade associada ao campo e sua circunscrição no domínio das ciências humanas e sociais”. Com isso a autora enfatiza o caráter interdisciplinar da Educação, mas também chama a atenção para a importância de uma unidade de propósitos e de estruturas conceituais, permitindo, assim, que a Educação se constitua enquanto um campo acadêmico e investigativo com identidade própria, mas que opera com metodologias muito diversificadas. Nesta pesquisa, opta-se por abordagens que também demandam justificativas, sobretudo porque remetem a algumas polêmicas do campo. Uma delas diz respeito à histórica dicotomização entre os estudos quantitativos e os estudos qualitativos. As pesquisas de cunho quantitativo se constituíram, até o século XX, como representantes do saber científico, priorizando a busca das regularidades dos fenômenos estudados, por meio de dados numéricos e pesquisas realizadas em larga escala. Na primeira metade de século XX, consolidam-se novos campos de investigação científica que se contrapunham às chamadas ciências duras, 21 http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/material-pedagogico, último acesso em 31 de dezembro de 2013. 22 Corpora é o plural de Corpus, entendido como uma compilação de textos para a análise. 77 como a História, Antropologia, a Sociologia e a Educação. Nos anos de 1970 e 1980, são reelaborados os conceitos de objetividade, validade e fidedignidade, assim, procurava-se criar uma metodologia que pudesse atender aos estudos que foram chamados de qualitativos. Para autores como Chizzotti (2003, p. 9): O debate qualitativo versus quantitativo revigora, de um lado, a contestação de um modelo único de pesquisa, à crítica a hegemonia dos pressupostos experimentais, ao absolutismo da mensuração e à cristalização das pesquisas sociais em um modelo determinista, casual e hipotético dedutivo: adensam-se as críticas aos pressupostos ontológicos, epistemológicos e metodológicos do modelo convencional, reconhecendo-se a relevância do sujeito, dos valores dos significados e intenções da pesquisa, afirmando a interdependência entre teoria e prática, a importância da invenção criadora, do contexto dos dados e da inclusão da voz dos atores sociais. Com esse breve histórico podemos ver que, até o início do século XX, não havia contestações à forma como as pesquisas eram feitas com base em estudos quantitativos, pois os objetos de estudo destas pesquisas correspondiam aos pressupostos das ciências a que se remetiam, o que não acontece quando lidamos com fenômenos humanos, que, por exemplo, nem sempre podem ser repetidos. Assim, afirmou-se, na perspectiva de muitas pesquisadoras, o entendimento de que a utilização de abordagens quantitativas não se aplicava às Ciências Humanas e Sociais. No entanto, com o desenvolvimento destas áreas de pesquisas, viu-se que tanto uma quanto a outra abordagem poderiam ser benéficas no desenvolvimento de pesquisas, aceitando-se, hoje, estudos que utilizem e combinem diferentes metodologias. De fato, na contemporaneidade, essa questão parece estar resolvida, uma vez que várias teóricas defendem que a dicotomização dos estudos qualitativos e quantitativos é simplista e tende a reduzir as possibilidades de compreensão do fenômeno que se estuda (ANDRÉ, 1995; GATTI, 2012; LEITE; FREITAS, 2014). Como afirma Brandão: “informações e dados objetivos, assim como depoimentos e entrevistas em profundidade podem ser produzidos em perspectiva positivista; sem uma conceituação prévia e uma reconstrução a posteriori, nenhum material de pesquisa escapa à superficialidade do mau jornalismo” (2002 apud LEITE; FREITAS, 2014, p. 2). Concordo ainda com Gatti (2012, p. 17), quando afirma que: Conforme o problema, pode-se necessitar, para a sua compreensão, de vários tipos de aproximação, quando combinamos vários procedimentos de busca para conseguir elementos relevantes ao estudo. Nessa perspectiva é que se busca a superação da dicotomização irreconciliável entre abordagens qualitativas X quantitativas, por um olhar mais amplo, que implica a conjugação de fontes variadas de informação sob uma determinada perspectiva epistêmica. 78 É na tentativa de construção desse olhar mais amplo, onde procuramos entender nosso foco de pesquisa que reducionismos do tipo ou qualitativo ou quantitativo não beneficiam. Prefiro, concordando também com André (1995), reservar os termos qualitativos e quantitativos para a definição das técnicas de coleta ou mesmo dos dados obtidos. Sendo assim, trazemos para este ponto da dissertação contribuições metodológicas dos Estudos da Linguagem e da Linguística Computacional. Desde o início da pesquisa, alguns entendimentos sobre a linguagem se mostraram interessantes para as análises desenvolvidas, em especial as contribuições de Jacques Derrida, quanto aos seus entendimentos sobre os processos de construção do significado das palavras. Nesta perspectiva, os sentidos são entendidos como iteráveis, em que cada palavra carrega em si o mesmo e o outro, rastros de significação que lhe permitem ser compreensível, mas que não são determinantes. Em uma mesma palavra sedimenta-se uma significação que a localiza em relação a outros significados. Ela contém rastros de sentido que permitem a sua identificação, possibilitando que seja compreensível em diferentes leituras, ou seja, contém uma presença que a identifica em relação às demais, mas essa presença nunca é plena, sofre fissuras ao ser enunciada em nova contingência. Essa fissura da presença permite a remissão a algo diverso, fazendo com que essa palavra possa sinalizar outros significados que diferem do mais usual. Segundo Derrida, “É a própria iterabilidade, o notável da marca, passando entre o re do repetido e o re do repetente, atravessando e transformando a repetição” (1991, p. 77, grifos do autor). Ao pesquisar hoje os sentidos do feminino nos materiais didáticos contemporâneos, entendo que esse feminino já passou muitas vezes por processos de iteração, onde o novo e o velho se contrapuseram, favorecendo mudanças na forma como hoje o feminino é significado. Uma outra noção de Derrida que me ajuda na análise proposta é a noção de texto. Para o autor, todas as estruturas sociais são entendidas como texto, já que somente as acessamos por meio de uma experiência interpretativa. A frase de Derrida (1991, p. 187), que se tornou alvo de muitas críticas, “não existe extra-texto” faz referência, também, ao fato de que as significações produzidas sobre o social são frutos das experiências humanas, não existindo construções para além dessas experiências e interpretações. Tanto a noção de iterabilidade, quanto a concepção de texto proposta por Derrida autorizam a crítica ao que se convencionou chamar de conhecimento, quando entendido como a verdade objetiva. Com essas teorizações, podemos conceber que as leituras de mundo que fazemos são estabilizações momentâneas do social, estabilizações essas que criam efeitos de verdade e, por isso, uma sensação de 79 imutabilidade. Mas, ao entender que essas estabilizações são construções, podemos, portanto, questioná-las e trabalhar pela sua desconstrução. Além das noções de iterabilidade e de texto, outro indecidível, termo que Derrida prefere usar para nomear suas construções, que nos ajuda a entender os materiais didáticos contemporâneos é a noção de performativo. Como discutido no capítulo 1, Derrida, a partir da leitura desconstrutora de Austin nos dá uma outra noção de performativo, que é suplementada pela teorização de Butler (2008), quando se propõe a pensar o gênero enquanto performativo. Ao utilizar essa noção para a análise dos materiais didáticos, afirma-se que as construções feitas nesses materiais contribuem para gerar efeitos na forma como meninas e meninos, mulheres e homens veem a si e aos outros. Outra opção que se mostrou interessante para a análise dos cadernos pedagógicos foi a da pesquisa com processamento digital, já que se tinha em mãos um volume considerável de textos. Com isso optou-se pela organização do material em corpora digitais: “grandes coleções de documentos textuais, coletados com algum objetivo de estudo relacionado à linguagem e processadas por programa(s) de computador” (FREITAS, no prelo, p.1). Este tipo de abordagem foi usada inicialmente na Linguística e vem se mostrando interessante para as Ciências Humanas, uma vez que cada vez mais temos acesso a grandes volumes textuais, sobretudo pela internet, o que facilita a produção e a compilação de textos por meio eletrônico – blogs e redes sociais, por exemplo (FREITAS, no prelo; LEITE; FREITAS, 2014). As pesquisas com corpora extensos possuem como marco o projeto SEU (Survey of English Use), iniciado em 1959. Mas é na década de 1990 que temos uma maior disseminação dessas pesquisas, com a popularização do acesso à internet. Nesse período, observa-se também o aumento da extensão dos corpora em estudos linguísticos, fazendo com que análises manuais não fossem mais possíveis (FREITAS, no prelo; GONZALEZ, 2007). A utilização de métodos da Linguística Computacional para o trato dos textos desta pesquisa poderia ser considerada como quantitativa, mas, como apresentamos acima, não temos afinidades com perspectivas que dicotomizam essas abordagens, e podemos afirmar que, nesta etapa da pesquisa, essa abordagem se mostrou mais produtivo para a análise dos elementos que compõem o material empírico desta pesquisa. Freitas (no prelo, p. 5) nos adverte quanto a alguns cuidados na abordagem digital de corpus: é importante estar ciente de que (i) os dados obtidos referem-se sempre ao conteúdo do corpus, e o corpus, em geral, é uma parcela de algo; (ii) para todo dado é fundamental uma interpretação humana; (iii) essa interpretação deve ser capaz de 80 confrontar mesmo os dados do próprio corpus – ou seja, os dados não devem ser aceitos de maneira acrítica. Ao tentar construir a análise dos corpora tendo por base as ponderações apresentadas por Freitas, podemos evitar construções positivistas em que se entende que os dados obtidos podem atestar algum tipo de verdade - pelo contrário, destacamos que trata-se de interpretações que são feitas, também, com a ajuda das teorizações debatidas ao longo da dissertação. Torna-se, então, necessário pensar as formas como os corpora serão trabalhados, ou seja, que ferramentas podem ser úteis na análise dos corpora produzidos. Para o trabalho aqui desenvolvido optei pela utilização do programa AntConc, que me oferece a oportunidade de ter informações relativas à frequência e aos contextos de uso de palavras ou combinações que possam ser relevantes para a pesquisa. O AntConc é uma ferramenta para a abordagem semiautomática de corpora de grande extensão, desenvolvido por Laurence Anthony 23. O programa possui sete ferramentas que podem ser acessadas através das guias disponíveis quando o programa, que é gratuito, é instalado. Essas ferramentas possibilitam que se tenha acesso ao quantitativo de todas as palavras que compõem o corpus, ao contexto de ocorrência dessas palavras, aos arquivos de texto individuais, entre outras. Para a pesquisa desenvolvida nesta dissertação, fiz usos de duas ferramentas do AntConc: n- grams e concordância tool. A Primeira me deu acesso à lista de palavras de cada corpus pesquisado e a segunda me possibilitou o acesso à lista de concordância das palavras que selecionei para estudo, onde pude visualizar seu contexto de ocorrência. Para usar os arquivos neste programa foi preciso realizar a conversão do formato .pdf para o .txt. Portanto, após compilar os textos do sítio da SME/RJ, utilizei o programa Free PDF to text convert24, que é gratuito e faz conversões limpas dos arquivos de formato .pdf para o formato .txt. Não tive problemas, por exemplo, com as imagens que o programa suprimiu ao invés de gerar ícones que as representasse, como costuma acontecer, o que demonstrou ser bastante útil, uma vez que economizei tempo por não precisar corrigir os arquivos convertidos - daí a expressão conversões limpas. Após a conversão dos 60 arquivos e da organização por pastas a partir das disciplinas – em um total de 5 pastas com 12 arquivos cada – o passo seguinte foi formar o corpus no 23 Disponível para acesso gratuito através do endereço eletrônico: http://www.antlab.sci.waseda.ac.jp/software.html, último acesso em 08 de julho de 2014. 24 Disponível para acesso gratuito por meio do endereço eletrônico http://www.lotapps.com/ , último acesso em 08 de julho de 2014. 81 programa AntConc, com os textos de cada uma das disciplinas. Com esse programa acessei as palavras que aparecem em cada corpus, através do estudo de n-gramas de comprimento 1, ou seja, o programa realiza a contagem das palavras de comprimento 1, que corresponde a uma única palavra e gera a lista de acordo com a frequência. Em seguida, realizei a leitura e identifiquei as palavras que me ajudariam a entender como o feminino estava sendo representado em cada uma das disciplinas oferecidas aos anos finais do ensino fundamental. Como o tempo de pesquisa acabou se revelando curto para a pesquisa de todas as disciplinas que compõem o currículo comum dessas séries, optou-se por reduzir essa lista inicial e analisar as disciplinas Ciências, História e Matemática. A seleção da disciplina de História se deu, porque, com as narrativas históricas, podemos ratificar para as alunas e professoras quem tem importância e quem não tem. Essa disciplina possui um peso simbólico muito grande ao afirmar que personagens do passado são relevantes para nos serem apresentados. Constitui-se, portanto, como uma apresentação dos fatos históricos que se coloca como universal, desenhando uma concepção de social no imaginário de quem lê o material. Temos na sociedade brasileira uma antiga disputa para que os personagens vinculados nos livros de história sejam mais plurais, dada a tendência a se invisibilizar os feitos de mulheres, negros e indígenas na formação nacional (GRUPIONI, 1996; SILVA; MARTINS, 2011). Já a discussão da apostila de Ciências nos permitiria abordar importantes aspectos da construção do feminino nessa contingência, uma vez que a identificação do feminino com determinada anatomia é uma construção bastante consolidada na nossa cultura, pois durante muito tempo a biologia foi usada para justificar uma suposta inferioridade natural feminina, conforme discutido no capítulo 1. Em seu Dictionnaire philosophique, Voltaire define Femmes: Quanto ao físico, a mulher é, pela sua fisiologia, mais fraca que o homem, as perdas periódicas de sangue enfraquecem as mulheres e as doenças que aparecem com sua supressão, os tempos de gravidez, a necessidade de amamentarem os filhos e de velarem constantemente por eles, e a delicadeza dos seus membros tornam-nas pouco propícias para todos os trabalhos e para todas as profissões que exigem força e resistência (VOLTAIRE apud CRAMPE-CASNABET, 1991, p. 382). De fato, o apelo a características biológicas foi, através dos tempos, predominante na marcação de uma diferença, que acaba sendo convertida em desigualdade. Desse modo, a disciplina de Ciências pode ser espaço-tempo interessante para verificarmos se houve mudanças na forma como o biológico define o feminino, ou seja, queremos entender se as 82 características do corpo feminino e o corpo masculino ainda são usadas para demarcar diferenciações que os tornam desiguais e portadores de um tipo de essência objetiva. E por último, mas não por menor importância, a apostila de Matemática, uma disciplina onde as questões de gênero, a princípio, não teriam destaque, o que a torna particularmente interessante. As iterações relativas aos sentidos de gênero aqui não são explícitas: em outras palavras, avaliamos que poderia ser interessante questionar o que se fala sobre o feminino quando não se fala nele. Tanto nas disciplinas de História quanto na de Ciências, a temática da mulher e do gênero já se encontram estabelecidas. Com frequência, são abordadas de forma explícita, o que mobiliza toda uma rede de sentidos, por parte da leitora, quando tratadas nos materiais didáticos escolares. Ou seja, a leitora é alertada para o tema em discussão e aciona os muitos rastros que já colecionou a esse respeito: não entra desprevenido na argumentação. Porém quando lidamos com as chamadas ciências exatas, essas mobilizações se perdem, já que são colocadas em contextos onde ocupam lugar periférico. Entendemos, portanto, que a Matemática acaba tendo um poder de naturalização talvez até mais forte do que as outras disciplinas, na medida em que as afirmações ali contidas sobre o feminino não são contestadas, sobretudo, porque não são percebidas, como quando fazem parte do enunciado de um problema. Antes de rodar os corpora no AntConc, realizamos a leitura das apostilas para visualização de aspectos mais gerais do material, que informaram a leitura das listagens geradas pelo programa. Visto que o total de palavras selecionadas nos corpora não seria um universo viável para análise, definimos critérios para uma focalização mais seletiva desse material: a) Palavras que aparecem nos dois gêneros, que permitiriam entender como cada grupo foi significado. b) Expressões que dizem respeito ao universo feminino, reunindo termos que o uso histórico já sedimentou em relação direta com o feminino. c) Referências a formas diversas de atuação pública e profissional. Com esses critérios, chegamos a 47 palavras a serem discutidas no corpus de História, 43 no corpus de Ciências, e 41 para o Corpus de Matemática. Para uma melhor visualização das palavras nas tabelas optou-se por agrupar as palavras com flexão de número, já que o programa as separa. Também optou-se por colocar o número de ocorrências das palavras de acordo com os dados disponibilizados pelo programa de análise de corpus, mas é preciso destacar que a ocorrência em si não é o mais importante, mas, sim, os usos que estão sendo feito das palavras de acordo com seu contexto. Entendemos que uma mesma palavra pode 83 estar inscrita na superfície analisada de acordo com os critérios formulados e não demonstrar iterações de relevo para a pesquisa aqui desenvolvida. O passo seguinte após essa segunda seleção foi entender o contexto em que as palavras estavam inscritas. Para tal, fizemos o estudo das concordâncias de frase, disponível no AntConc, por meio do qual pudemos analisar as frases de ocorrência das palavras selecionadas. Em diversos momentos, contudo, retornamos às apostilas, para visualizar o contexto mais amplo das palavras ou para suprimir dúvidas. 3.2.1 Leitura dos Corpora Neste tópico, exponho as análises textuais do corpus de cada disciplina. Pontuo que entendo aqui que as noções de análise e de texto em sentido alternativo ao tradicional. Na análise, queremos compreender o que está sendo exposto, buscando identificar a lógica do texto, sem a pretensão da objetividade, ou da procura por uma verdade pré-existente às interpretações que realizo (RODRIGUES, 2013). Quando me refiro a texto, compreendo, junto com Derrida (1991), como um sistema de significação que produz realidade que pode aparentar apenas descrever. Organizei a apresentação da síntese das análises desenvolvidas na seguinte ordenação: descrição do corpus; visualização das palavras selecionadas em tabelas; discussão, em tópicos, das palavras selecionadas, além da citação dos contextos em que ocorrem (mantive os termos pesquisados em negrito, conforme aparecem nas listagens de ocorrência, para uma melhor visualização dos mesmos). Finalizo com comentários gerais a respeito de cada corpus. 3.2.1.1 “Diferentes, mas não desiguais”: as mulheres e as Ciências O corpus de Ciências é composto por 12 arquivos. Após a leitura inicial das palavras geradas pelo estudo de n-gramas, selecionaram-se 43, onde realizamos uma investigação acerca das concordâncias dessas palavras. As palavras selecionadas aparecem na tabela a seguir: 84 Tabela 3 – Ocorrências Corpus de Ciências N- GRAMA OCORRÊNCIAS adolescência 13 adolescente 5 adulto 36 amor 7 bebê 11 brasileira+brasileiras 10+2 brasileiro+brasileiros 9+4 32+11 cientista+cientistas corpo+corpos 344+37 criança+crianças 9+6 domésticas 2 domésticos 2 engenheiro 1 família 12 feminina 4 feminino+femininos 10+7 gênero 8 gravidez 9 homem+homens 13+7 humana 18 humano+humanos 58+15 mãe+mães 8+3 masculino+masculinos 7+6 médica 1 médico 17 menina+meninas 1+8 menino+meninos 3+9 mulher+mulheres 5+9 natureza 31 papai 3 pesquisador+pesquisadores 4+3 pessoa+pessoas 50+45 sexuais 29 sexualidade 8 trabalhador+trabalhadores 1+1 Ao ter acesso às concordâncias, isto é, às frases em que as palavras estavam localizadas, algumas foram eliminadas por não representarem iteração de relevo para a pesquisa. Por exemplo, inicialmente supus que o termo corpo pudesse trazer informações sobre a forma como o feminino é significado, mas, ao pedir a concordância, pude ver que a 85 utilização da palavra corpo se referia as partes do nosso corpo ou a objetos da Física, como nos exemplos que se seguem: O corpo humano adulto é formado por trilhões de células (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013). E como se comporta um corpo que está sob a ação de uma força resultante? (Ciências, 9º ano, 3º bimestre, 2013). Outro termo que se pensou como interessante para a pesquisa foi sexuais, mas as concordâncias revelaram que a palavra estava sendo usada para descrever a maturidade sexual de meninas e meninos, como a seguir: FALANDO UM POUCO SOBRE OS HORMÔNIOS SEXUAIS (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013, grifos conforme o original). Alguns órgãos sexuais são externos, formando o que chamamos de genitália (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013). Passo agora a apresentar destaques da discussão das iterações do feminino nesse material:  bebê: com 11 ocorrências, está, na maioria dos casos, sendo referido ao organismo que está no corpo da gestante. Essa nomeação pode ser problemática, uma vez que torna o feto um indivíduo, o que pode levar ao entendimento de “portador de direitos” que ultrapassam as vontades do corpo que o leva. Assim, a apostila estaria afirmando uma significação que tem fundamento religioso e não científico: No útero, o feto se desenvolve dentro de uma bolsa cheia de líquido que protege o bebê (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013). Assim, você pode comparar as várias fases do crescimento do bebê dentro do útero materno (Ibid.). A genitália está plenamente formada a partir da 14.ª semana de vida fetal, tornando possível saber o sexo do bebê antes do nascimento, através do ultrassom (Ibid.). Esses exemplos evidenciam que há uma tendência nas apostilas à naturalização de uma discussão que, na sociedade brasileira, encontra divergências, que é a concepção de vida e sobre o direito da mulher de decidir sobre a interrupção da gravidez. Ao nomear o feto como bebê, já se aciona todo um mecanismo de individualização e personificação do feto, onde são suprimidas as questões relativas às 86 vontades e desejos de quem o leva. Essas construções são afirmadas, em sua grande maioria, por entidades religiosas, tal como a igreja católica, que proíbe o aborto em todas as situações, inclusive quando a vítima sofre violência sexual. Ao nomear aquela formação como bebê e não como feto, os cadernos pedagógicos de Ciências promovem uma imagem do processo de gravidez que não está em consonância com a laicidade do Estado brasileiro e se coloca como obstáculo à efetivação plena do direito da mulher ao controle do seu próprio corpo.  gravidez: tem 9 ocorrências. Encontram-se referências ao período gestacional e a medidas preventivas para se evitar a gravidez no período da adolescência. Percebe-se uma negativação da ocorrência da gravidez quando acontece na adolescência pressupondo-se que não seja desejada, embora saiba-se que o desejo de engravidar pode ser uma escolha do casal, independente da idade. Há uma tentativa de controle ao advertir os jovens (como a apostila rotula) sobre esses riscos: Um dos principais cuidados na vida sexual do adolescente refere-se ao risco da gravidez. A gravidez precoce leva os jovens a modificarem sua vida escolar, social e familiar, enfrentando situações para as quais não estão ainda preparados (Ciências, 8º ano, 2º bimestre, 2013). A gravidez na adolescência pode se tornar um transtorno para toda a família, pois pode levar o adolescente ao abandono da escola, à exclusão do mercado de trabalho e ao empobrecimento do núcleo familiar (Ciências, 8º ano, 2º bimestre, 2013). Desse modo, as apostilas tendem a reafirmar essa idade como um período em que você não pode tomar decisões sérias e, caso as tome, você não poderá vivenciar essa fase de forma normal e em conformidade com o esperado socialmente. Constroem-se dessa maneira juízos de valor sobre a gravidez nesse período, que são apresentados como informações objetivas. O acesso a informações desta natureza passa pela possibilidade deste público poder se posicionar sobre o assunto e a forma prescritiva com que as apostilas abordam a questão não possibilita que esse tipo de discussão aconteça. Não estamos ignorando os prejuízos que uma gravidez não planejada pode gerar na vida de jovens, entre eles a evasão escolar, mas queremos apontar que um material que não favoreça o debate e não reconheça o direito da juventude à autonomia pouco contribui para que esse grupo possa construir sua sexualidade de modo responsável. 87 Ao usar o genérico masculino para abordar esta temática, o material pode ter dois efeitos performativos distintos: na primeira, invisibiliza as maneiras com que a gravidez atinge as adolescentes, uma vez que quem fica com a responsabilidade de cuidar e ter um bebê precocemente é, muitas vezes, a adolescente e ela sofrerá todas as mudanças em sua vida; por outro lado, ao usar o genérico no masculino, o material pode estar afirmando que uma gravidez na adolescência é um trabalho do casal e, por isso, utilizaria o genérico masculino, como costuma se fazer na língua portuguesa. As informações contidas na apostila não possibilitam a confirmação de uma ou outra interpretação.  brasileira+brasileiras: com 12 ocorrências, essas expressões estão relacionadas à população residente no país, espécies nativas, práticas culinárias, essas duas últimas sendo as com mais ocorrências (encontramos 2 ocorrências para espécies nativas - plantas e animais) -e 4 para culinária): A culinária brasileira é bem original e diversificada (Ciências, 8º ano, 2º bimestre, 2014). Faça uma pesquisa sobre a variedade de aves brasileiras e seus cantos distintos (Ciências, 9º ano, 4º bimestre, 2013). E somente em um único caso, refere-se à contribuição de uma cientista, ou seja, das 12 ocorrências dos termos brasileira/brasileiras temos somente um pequeno texto para falar da contribuição de uma profissional brasileira da Ciência, a Dra Graziela, botânica: Foi a primeira mulher a fazer o concurso para ser naturalista do Jardim Botânico e foi aprovada em 2º lugar. Durante anos ela orientou estagiários e estudantes, sem ter curso superior. Aos 47 anos, decidiu estudar e ingressou no curso de biologia da Universidade do Estado da Guanabara, atual UERJ (Ciências, 7º ano, 3º bimestre, 2013).  brasileiro+brasileiros: com 13 ocorrências, em que 6 constituem referências a hábitos alimentares, situação de vida e regiões do Brasil: O hábito alimentar dos brasileiros é muito variado. Nossa alimentação sofreu influência dos africanos, dos portugueses, dos franceses e dos italianos, prioritariamente (Ciências, 8º ano, 2º bimestre, 2013). 88 Pela Constituição, os portadores do HIV, assim como todo e qualquer cidadão brasileiro, têm obrigações e direitos garantidos (Ibid.). O sal da região abasteceu o sul e o sudeste brasileiro, desde o início da colonização europeia no Brasil (Ciências, 9º ano, 2º bimestre, 2013). As outras 7 ocorrências informam sobre feitos de cientistas brasileiros, como se exemplifica abaixo: MIGUEL NICOLELIS (1961) Médico, esse brasileiro é considerado um dos 20 maiores cientistas mundiais da atualidade (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013, grifos conforme o original). O brasileiro Santos Dumont realizou o primeiro voo com o 14 BIS (1906) (Ciências, 9º ano, 1º bimestre, 2013). A doença de Chagas afeta órgãos como o coração e os intestinos e foi descoberta pelo médico brasileiro em abril de 1909 (Ciências, 7ºano, 2º bimestre, 2013).  cientista+cientistas: com 43 ocorrências, 32 delas fazem referência a cientistas homens, de dois modos: nomeando esses sujeitos ou se utilizando do genérico masculino: Nicolelis é o primeiro cientista brasileiro a ter um artigo publicado na capa da revista Science (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013). A maneira como isso acontece permaneceu misteriosa até 1860, quando o cientista francês Louis Pasteur demonstrou que não era os deuses e, sim, a levedura que estava por trás da transformação do suco de uva em vinho (Ciências, 9º ano, 2º bimestre, 2013). Antoine-Laurent de Lavoisier (Paris, 26 de agosto de 1743 — Paris, 8 de maio de 1794) foi um químico francês, considerado o criador da Química Moderna. Primeiro cientista a enunciar o princípio da conservação da matéria (Ciências, 9º ano, 2º bimestre, 2013). Os cientistas acreditam que os primeiros vertebrados devem ter sido aquáticos e que, com algumas adaptações, evoluíram para a vida terrestre (Ciências, 7º ano, 4º bimestre, 2013). Há somente uma ocorrência relativa a uma cientista mulher: Mayana Zatz nasceu em Tel Aviv, Israel, em 1947 e se mudou para o Brasil em 1955. É uma grande cientista que trabalha com material genético das células humanas (Ciências, 7º ano, 1º bimestre, 2013). Nas ocorrências relacionados às expressões brasileiras+brasileira, brasileiros+brasileiro e cientistas+cientistas, podemos observar a sub-representação 89 feminina no mundo da ciência, uma vez que os trabalhos de cientistas homens são mais difundidos e exaltados do que o das cientistas mulheres. Encontramos nessas ocorrências a prevalência de feitos masculinos, com a nomeação de cientistas e de suas contribuições, o que não é feito com a mesma frequência quando as personagens são mulheres. Ambas as seções que falam dos feitos dessas duas personagens do mundo da Ciência estão em uma parte separada do texto, um quadro cujo título é “Homenageando...” e que se localiza na última folha de cada apostila. Ao mesmo tempo, podemos considerar que a presença de duas mulheres já indica alguma tentativa de desconstrução dessa invisibilidade, trazendo para as alunas os feitos de mulheres no mundo científico.  gênero: com 8 ocorrências. Ao pedir as concordâncias dessa palavra, apareceu a expressão “relações de gênero”, o que despertou o interesse de ir à apostila verificar como essa palavra estava sendo abordada. Encontrou-se, então,uma página onde o material didático propõe uma reflexão sobre as relações de gênero socialmente construídas. O título da atividade já chama a atenção: “Diferentes, mas não desiguais” (Ciências, 8º ano, 2º bimestre, 2013), e afirma que: As RELAÇÕES DE GÊNERO são as construções culturais do que significa ser feminino ou ser masculino dentro de uma sociedade (Ciências, 8º ano, 2º bimestre, 2013, grifos conforme o original). Em seguida, sugere uma atividade para discussão em sala, com intermédio da docente. A atividade proposta consiste em duas colunas onde a turma deverá marcar o que pertence ao universo feminino e o que pertence ao universo masculino, sendo as opções: Usa roupa cor-de-rosa. Ajuda nas tarefas domésticas. Costura suas roupas. Cuida de um bebê. Joga bola. Trabalha como garçom. Trabalha como marceneiro. Varre a sua casa. Joga futebol. Faz serviço de pedreiro (Ciências, 8º ano, 2º bimestre, 2013). A proposta desta atividade aponta para uma possibilidade de deslocamento relativamente à identificação mais tradicional do feminino, pois, ao interrogar a turma sobre as relações de gênero socialmente construídas, possibilita que se questionem os preconceitos que possam existir em relação às atividades de mulheres e homens. Entretanto, a condução deste tipo de dinâmica depende da sensibilidade e informação 90 da profissional que atua como regente para essas temáticas, uma vez que ela deverá conduzir as discussões entre a turma. Mas, de forma geral, percebe-se alguma preocupação com o sexismo, quando se traz esse tipo de questão, sinalizando a possibilidade de alguma ruptura com concepções tradicionais e de formação de um novo ideário para as imagens sociais de mulheres e homens.  homem+homens: com 20 ocorrências, aparece relacionado ao total da população humana: É um verme parasita do homem que faz parte do filo platelminto (Ciências, 7º ano, 4º bimestre, 2013). Nos primeiros tempos, o homem realizava invenções que o ajudavam a sobreviver (Ciências, 9º ano, 1º bimestre, 2013). O homem está revendo seus conceitos a respeito da natureza (Ciências, 9º ano, 3º bimestre, 2013). Quando inclui as mulheres, abordam-se aspectos biológicos: A reprodução é a ÚNICA FUNÇÃO REALIZADA POR SISTEMAS DIFERENTES em homens e mulheres (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013, grifos conforme o original). Nas mulheres, há também o desenvolvimento dos seios, os quadris ficam mais largos e ocorre a menstruação. Nos homens, há a presença de barba, de bigode, e a voz fica mais grave (Ibid.). costuma-se dizer que a voz das mulheres é mais fina que a dos homens (Ciências, 9º ano, 4º bimestre, 2013). No material analisado como um todo, temos a predominância do uso do português no genérico masculino. As mulheres são explicitamente nomeadas quando se contrapõem ao corpo masculino, como nos exemplos acima. Entendemos que, desse modo, o material didático aqui analisado afirma que os homens são a humanidade, e as mulheres são uma parcela dessa humanidade. Configuram-se a partir da diferenciação com o homem, tendo como critério para essa diferenciação aspectos biológicos do corpo, aspectos que servem para identificar o feminino. Mas, apesar desta crítica, deve-se considerar que há algumas iterações nesse material que podem nos indicar a possibilidade de deslocamentos nas formas de significar o feminino e o masculino, como, por exemplo, quando afirmam que a única diferença entre mulheres e homens está em como acontece a reprodução e também que as mudanças corporais costumam 91 ser de tal maneira, o que quer dizer que não sempre é assim. Ou seja, há sinais de algumas subversões nas maneiras de identificarmos mulheres e homens, meninas e meninos, trazendo possibilidades de importantes deslocamentos de sentido.  médico: com 17 ocorrências, há várias passagens onde se ressaltam feitos de homens médicos, mas não há ocorrência para a expressão no feminino, médica ou médicas. Um jovem médico chega à pequena cidade mineira de Lassance. Seu nome: Carlos Chagas (Ciências, 7º ano, 2º bimestre, 2013). Existe um antibiótico chamado PENICILINA que foi descoberto, por acaso, por um médico pesquisador chamado Alexander Fleming (Ciências, 7º ano, 3º bimestre, 2013). Considerando o prestígio social da profissão médica, a ausência de referências a mulheres nesse ofício trabalha pelo efeito performativo de afastamento das estudantes de mais esta possibilidade de inserção valorizada no mercado profissional.  menina+meninas: com 9 ocorrências, estão relacionadas a mudanças que o corpo feminino sofre durante a puberdade: Por volta de 12 a 14 anos, a hipófise libera, nas meninas, o estrogênio e a progesterona que preparam o organismo para a gravidez (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013). a voz dos meninos sofre alterações de tom e, nas meninas crescem as mamas (Ibid.).  menino+meninos com 12 ocorrências estão relacionadas a mudanças que o corpo dos meninos sofre durante a puberdade: Nos meninos, nesta mesma época, a hipófise libera a testosterona (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013). Já nos meninos ela se manifesta mais tarde, no período entre 11 e 15 anos (Ciências, 8º ano, 2º bimestre, 2013). Nessas ocorrências podemos observar uma prevalência da descrição dos corpos de meninas e meninos por aspectos biológicos, naturalizando-se a função reprodutiva para a mulher, mas o mesmo não acontece na descrição do corpo masculino, ou seja, esse corpo não tem como função naturalizada a reprodução. Ao procurar a palavra pai 92 e papai, não temos ocorrências relacionadas à função paterna, mas sim a Lavoisier, como “pai da Química” e também ao “Papai Noel”. Já ao procurar a palavra mãe, encontramos uma referência a essa função naturalizada socialmente para as mulheres: Você sabia que o bebê não respira na barriga da mãe? (Ciências, 8º ano, 1º bimestre, 2013). Como podemos observar na discussão das iterações de destaque no corpus de Ciências: há sinais de repetições sexistas do feminino, mas também de importantes deslocamentos relativamente a sentidos tradicionais do ser mulher. Ao problematizar as relações de gênero, o material nos apresenta uma tentativa de desconstrução, desconstrução esta que fica limitada a poucas páginas, mas que já indica um movimento de questionar, com algum nível de crítica, as concepções sociais sobre as mulheres e os homens e o sexismo decorrente dessas concepções. Os reflexos sobre a citação do conceito de gênero parecem não se refletir na construção do material como um todo, porém, percebe-se que os questionamentos feitos socialmente sobre os papéis de mulheres e homens já se fazem presentes em materiais didáticos contemporâneos. 3.2.1.2 “Inconformado com a traição de sua primeira esposa”: como as mulheres aparecem na História O corpus de História é composto por 12 arquivos que representam cada bimestre dos anos finais do ensino fundamental. Selecionamos, para análise, as palavras apresentadas na tabela abaixo: Tabela 4 – Ocorrências corpus de História N-GRAMA advogados agricultores banqueiros brasileiras+brasileira brasileiros+brasileiro cidadãos+cidadão cientistas+cientista OCORRÊNCIAS 3 3 4 4+55 30+36 27+14 5+2 93 deputados eleitores empresários+empresário escravos+escravo família fazendeiros filhos+filho guerreira herói heroína historiador historiadora homens+homem mães+mãe médicos+médico mulheres+mulher negócios negras+negra pesquisadores+pesquisador políticos+político primeira primeiro proprietários trabalhadora trabalhadores+trabalhador 19 10 3+3 113+28 39 19 25+18 2 4 1 10 9 65+45 2+17 3+6 31+8 11 5+11 6+4 62+79 91 71 30 3 55+20 Definida esta seleção, procuramos entender o contexto em que as palavras estavam inscritas, com o estudo das concordâncias de frase. Analisando as concordâncias, concluí que alguns sentidos repetidos por parte destas 47 palavras não interessavam à pesquisa, tais como guerreira, que pensei que pudesse trazer alguma informação sobre mulheres consideradas guerreiras, mas estava sendo usada em outro sentido: numa época de muitas disputas por terra, cabia aos homens da nobreza a função guerreira (História, 7º ano, 1º bimestre, 2013). Feudalismo: uma sociedade religiosa, guerreira e camponesa (Ibid.). E também agricultores, que traz a generalização dessa profissão no masculino, fato que será abordado em outras ocorrências: 94 No dia 26 de abril de 1937, numa segunda-feira, os agricultores da pequena cidade de GUERNICA vendiam os frutos de seu trabalho na feira livre na praça principal (História, 9º ano, 3º bimestre, 2013, grifos conforme o original). Assim, concluímos que algumas palavras selecionadas não me possibilitavam problematizar o feminino. As que foram de interesse para a pesquisa são discutidas a seguir.  brasileiras+brasileira: com um total de 59 ocorrências, os termos pesquisados se referem ao território e à sociedade brasileira: Será que essa questão influenciou na COMPOSIÇÃO ATUAL DA POPULAÇÃO BRASILEIRA? (História, 7º ano, 4º bimestre, 2013, grifos conforme o original). Nessa ocasião, foi criada a Confederação Operária Brasileira (História, 8º ano, 2º bimestre). como a Guerra da Cisplatina, acentuaram a fragilidade das finanças brasileiras (História, 8º ano, 3º bimestre). Excetuando-se uma referência: no Piauí , Jovita Feitosa foi chamada de a Joana D´Arc brasileira ao cortar o cabelo, vestir-se de homem e se apresentar para o recrutamento, dizendo que ‘queria lutar contra os monstros paraguaios que tantas ofensas tinham feito a suas irmãs brasileiras durante a invasão de Mato Grosso (História, 8ºano, 4ºbimestre, 2013). Esta menção aparece em um contexto de discussão sobre voluntários de guerra. Menciona-se o exemplo de Jovita, mas não se diz como essa situação acabou. Segundo Schumaher & Vital (2000), a jovem pode ter se suicidado depois de voltar da guerra, pois foi rejeitada por seu pai, devido à audácia de se alistar e, também, ao fato de não receber nenhum tipo de assistência do Estado.  brasileiros+brasileiro: teve 66 ocorrências. Nessas ocorrências encontramos: uso do genérico masculino para falar da totalidade de quem vive no Brasil, onde se concentra a maioria das ocorrências, totalizando 25; referência a locais e espaços dentro do território nacional, que totalizam 14; e menção de personagens masculinos brasileiros, onde aparecem 3: No Brasil existe uma religião oficial que deve ser seguida por todos os brasileiros? (História, 7º ano, 3º bimestre, 2013). 95 Assim, o Estado brasileiro, durante o período de 1956 a 1960, iniciou uma política econômica de importação de tecnologias para produtos farmacêuticos, automóveis, máquinas, produtos químicos (História, 9º ano, 4º bimestre, 2013). Jadel Gregório - atleta brasileiro do salto triplo convertido ao islamismo (História, 7ºano, 1ºbimestre, 2013). Há duas formas de conhecer essa obra do escritor brasileiro Euclides da Cunha: por meio da adaptação em quadrinhos, realizada pelos autores Carlos Ferreira (roteiro) e Rodrigo Rosa (desenhos) e por meio da leitura da obra do próprio autor (História, 9ºano, 1ºbimestre, 2013). O primeiro brasileiro a pisar na pista de atletismo foi o cavaleiro Rodrigo Pessoa (História, 9ºano, 1ºbimestre, 2013). Podemos ver nas repetições das palavras brasileira e brasileiro uma invisibilidade dos feitos das mulheres, pois há um maior destaque para os feitos de homens. Desse modo, tanto o grupo de meninas como o de meninos podem não ter acesso a história dos feitos femininos, repetindo-se que as mulheres não se constituíram como personagens históricos relevantes para comporem as histórias contadas nos cadernos pedagógicos de História.  cidadãos+cidadão: com 41 ocorrências, encontramos o uso do genérico masculino para denominar os cidadãos e as cidadãs: Aproveite esses momentos significativos para a sua formação enquanto cidadão (História, 7º ano, 2º bimestre, 2013). A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente (História, 8º ano, 2º bimestre, 2013). Não cita mulheres ou homens, sequer para fazer a marcação de um privilégio masculino, a possibilidade de votar: A Constituição de 1891 estabelecia: eleições diretas para os cargos do Poder Legislativo e do Poder Executivo; o direito dos cidadãos maiores de 21 anos, do sexo masculino, alfabetizados, ou seja, somente para uma pequena parcela da população brasileira (História, 9ºano, 1ºbimenstre, 2013).  políticos+político: com 125 ocorrências, esse termo é usado para definir questões da política: 96 Os cartistas reivindicavam direitos políticos, como o sufrágio universal (direito de voto), o voto secreto, melhoria das condições e da jornada de trabalho (História, 8º ano, 2º bimestre, 2013). A agitação do cenário político no Brasil fez surgir grupos políticos com interesses conflitantes no Rio de Janeiro (História, 8º ano, 3º bimestre, 2013). Mas referem também a personagens históricos homens que tiveram atuação política: Na qualidade de chefe religioso, político e militar, Muhammad levou o Islam às cidades de Medina e Meca e aos beduínos da Península Arábica (História, 7º ano, 1º bimestre, 2013). Simón Bolívar (1783-1830) destacou-se como líder militar e político nas lutas pela independência, travadas mais ao norte da América do Sul (História, 8º ano, 2º bimestre, 2013). A partir do observado nestas ocorrências (cidadãos+cidadão; eleitores e políticos+político), fizemos uma busca com outras palavras para saber se a temática das mulheres estava sendo considerada em algum momento em relação à cidadania, direito ao voto e vida política. Buscamos as palavras cidadã, cidadania, sufragismo, eleição, mas não encontramos nenhuma menção às mulheres e suas possíveis atuações políticas com esses marcadores, o que reforça o apagamento da construção da cidadania feminina e as lutas nacionais pelo direito ao voto, além de reforçar a invisibilidade feminina na construção histórica de nossa sociedade.  empresários+empresário: com 6 ocorrências, está relacionado as ações comerciais, mas também nomeia os sujeitos que são empresários. A ausência de referência a empresárias é mais uma iteração que repete a identificação tradicional do feminino, que não se remete ao mundo dos negócios e das decisões: Sinopse do filme: Durante a Segunda Guerra Mundial, Oskar Schindler, empresário alemão, refugia os judeus em sua fábrica, salvando cerca de 1.100 pessoas do campo de concentração de Auschwitz (História, 9ºano, 3ºbimestre, 2013). Por que podemos afirmar que o Barão de Mauá foi um importante empresário de sua época? (História, 8ºano, 4ºbimeste, 2013). Os empresários, porém, preferiam dar emprego aos imigrantes europeus. Diante disso, os libertos foram obrigados a aceitar os piores serviços, os mais baixos salários e conviver com um racismo silencioso, violento e sempre presente (História, 9º ano, 1º bimestre). 97  escravos+escravo: teve 141 ocorrências e estão relacionadas a relações de trabalho e à condição a que negros e indígenas foram submetidos. Nomeia, de forma genérica, mulheres e homens: Os escravos desempenhavam praticamente as mesmas funções que os membros da linhagem dominante: trabalho cooperativo, expedições de caça, defesa das cidades e participação em cerimônias religiosas (História, 7º ano, 2º bimestre, 2013). Escravos negros africanos aprisionados, que foram utilizados, principalmente, na produção agrícola no Caribe e na atual Colômbia (antigo vice-reinado de Nova Granada) (História, 7º ano, 4º bimestre). Distingue mulheres e homens em duas situações: [...] com os negros de ganho - homens e mulheres que vendiam de tudo nas ruas da cidade, dividindo com seus senhores o fruto de seu trabalho (História, 8ºano, 4ºbimestre, 2013). Que fatos levaram muitos homens e mulheres a acreditarem que o trabalho escravo terminaria no continente americano? (História, 8ºano, 4ºbimestre, 2013). Essas duas construções apresentam iterações menos sexistas, que não trazem um apagamento total da mulher, como acontece na maior parte desse material.  família: com um total de 39 ocorrências. Família aparece como uma instituição tradicional, sendo mencionadas como funções da família, a manutenção da linhagem e o auxílio no trabalho, no caso das famílias mais pobres: Tratava-se de uma sociedade organizada na relação familiar, também chamada de linhagem porque se baseava no parentesco e se apoiava nas diferenciações de idade e sexo. Cabia a cada linhagem, ou seja, a cada família extensa, responder por uma atividade econômica (História, 7º ano, 2º bimestre, 2013). E pelos baixos salários oferecidos, era fundamental que todos os integrantes de uma família trabalhassem, para garantir a sobrevivência de todos (História, 8º ano, 2º bimestre, 2013).  filhos+filho: com 43 ocorrências, denotam o uso no genérico masculino na maioria das situações: Assim se impedia que os filhos requeressem os bens da Igreja como herança (História, 7º ano, 1º bimestre, 2013). Os filhos das famílias mais abastadas eram educados, em suas casas, por preceptores (professores particulares) (História, 8º ano, 3º bimestre, 2013). 98 Cita as mulheres/meninas em duas passagens: Geralmente, as mulheres plantam e colhem, preparam os alimentos, cuidam dos filhos (História, 7ºano, 2ºbimestre, 2013). As meninas eram estimuladas a terem muitos filhos por conta das guerras (Ibid.). Essas frases despertaram interesse em saber como esse texto estava composto na apostila, se era um fragmento de citação ou se era a narrativa das pessoas que produziram o material. Era de fato citação de outra fonte, mas o que surpreendeu foi o exercício proposto a partir do texto, onde era sugerido que as estudantes enumerassem as tarefas feitas nas sociedades indígenas de acordo com uma “divisão sexual ou natural do trabalho”, colocando F para trabalho feminino e M para o masculino: Coleta que exija maior destreza e força física como derrubar pinhões e castanhas, cortar palmitos, coletar mel e cortar folhas de palmeira (História, 7ºano, 2ºbimestre, 2013). Produzir enfeites delicados para o corpo (Ibid.). A forma como a apostila polariza força e delicadeza nos faz constatar uma falta de atenção ao que se repete no texto didático. Sabemos que perdura uma divisão sexual do trabalho em muitas organizações sociais, mas expressões a essas situações sem qualquer reflexão crítica podem reforçar a visão de mulheres como frágeis, que fazem trabalhos delicados e de homens como fortes, que precisam sempre fazer uso da força física.  herói: com 4 ocorrências, faz alusão aos feitos de homens tidos como heróis. Exponho abaixo exemplos dessa iteração:  Chegando a Paris como herói, Napoleão instalou-se no poder, obrigando a família real a fugir (História, 8ºano, 2ºbimestre, 2013). O índio era idealizado, romantizado, imbuído de valores cultivados na Europa, enfim, um herói mítico (História, 8ºano, 4ºbimestre, 2013). O cavaleiro era, geralmente, representado como o grande herói, aquele que destruía monstros e pessoas malvadas, em nome da honra cristã (História, 7º ano, 1º bimestre).  heroína: com 1 ocorrência em 1 ficheiro: faz referência a um samba- enredo que afirma que a princesa Isabel foi uma heroína ao assinar a lei Áurea: 99 E da princesa Pra Isabel a heroína, que assinou a lei divina Negro dançou, comemorou, o fim da sina (História, 8º ano, 4º bimestre, 2013). Entre os marcadores herói e heroína podemos constatar mais uma vez que há uma predominância nos cadernos de História no relato de feitos de homens, as mulheres ficando à margem. A única heroína que aparece é a Princesa Isabel, figura essa que é muito contestada na história brasileira, assim como todo o contexto sobre o dia 13 de maio, uma vez que há vertentes que acreditam que a assinatura da lei Áurea foi mais uma imposição do que uma disposição de nossos antigos monarcas. Domingues (2011, p. 1, grifos do autor) argumenta: Desde a década de 1970, o movimento negro organizado passou a mover uma campanha implacável contra o Treze de Maio. Suas lideranças argumentavam que a Abolição foi uma 'mentira' e uma 'farsa' – duas palavras usadas repetidas vezes –, pois não garantiu a inclusão do negro na sociedade brasileira, sobretudo no mercado de trabalho. Em vez de 'redentora', a princesa Isabel devia ser vista como uma 'impostora'. O material analisado formula críticas à forma como a lei Áurea foi assinada, mas considero como repetição sexista que a única visão de uma heroína fornecida nestes materiais seja justamente de uma pessoa cuja atuação pública é muito contestada no cenário historiográfico nacional.  historiador: com 10 ocorrências, cita diferentes historiadores usados como referências nos cadernos pedagógicos de História, entre eles estão: José Murilo de Carvalho, Alfredo Boulos Júnior e Ilmar de Matos.  historiadora: com 9 ocorrências, segue a lógica acima e cita, entre outras, historiadoras: Maria Odila Silva Dias e Angela de Castro Gomes. Interessantes nesses marcadores é perceber que há quase uma equivalência entre a citação de historiadoras e historiadores, demonstrando que já temos mulheres como referências na construção do saber em História. Mas também coloca-se uma questão: com tanta presença feminina na construção do saber em história, surpreende que as mulheres sejam ainda tão invisibilizadas nas narrativas historiográficas que chegam às escolas. 100  homens+homem: com 110 ocorrências. Temos alguns aspectos distintos nas ocorrências dessas palavras: a- Apresenta-se, muitas vezes, como sinônimo de humanidade, ou seja, como o coletivo de todos os seres humanos: O cristianismo se tornou a religião do homem feudal (História, 7ºano, 1ºbimestre, 2013). O humanismo produziu transformações na maneira como o mundo era compreendido pelos homens, e, acima de tudo, mudou a forma como os homens viam a si próprios (História, 7ºano, 3ºbimestre, 2013). Na sociedade atual , você acha que todos os homens têm os mesmos direitos? (História, 8ºano, 1ºbimestre, 2013). b- Em outros momentos, esse sentido desliza, pois distingue-se explicitamente, no corpo do texto, homens e mulheres, não pressupondo que a nomenclatura homens represente todos os seres humanos: Toda essa insatisfação dos homens e mulheres que viviam na Europa, naquela época, encontrou resposta nas ideias iluministas (História, 8ºano, 1ºbimestre, 2013). Mulheres e crianças trabalhavam da mesma maneira que os homens, nas mesmas condições, mas o salário era bem menor (História, 8ºano, 2ºbimestre, 2013). Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai teve papel importante na construção da identidade brasileira, uma vez que despertou, tanto em ricos quanto em pobres, livres e escravizados, homens e mulheres, o sentimento de `amor à pátria´ e o desejo de lutar por essa pátria, mesmo que somente no início da guerra (História, 8ºano, 4ºbimestre, 2013).  mulheres+mulher: com um total de 39 ocorrências encontramos os seguintes sentidos: a. Quando fala de aspectos socioeconômicos colocam-se mulheres, homens e crianças juntos: Homens, mulheres e crianças trabalhavam arduamente (História, 7º ano, 1º bimestre, 2013). A vida cotidiana de homens e mulheres da Europa medieval (Ibid.). Que fatos levaram muitos homens e mulheres a acreditarem que o trabalho escravo terminaria no continente americano? (História, 8º ano, 4º bimestre, 2013). 101 Podemos ver que, nesses exemplos, as mulheres não são invisibilizadas e são consideradas como constituintes das sociedades mencionadas, o que faz um contraste direto com o uso da palavra homens-homem mencionados, muitas vezes, como referência a humanidade em geral. Aqui há um reconhecimento das mulheres como sujeitos sociais. b. Outras ocorrências descrevem a vida das mulheres no Islam: Na verdade, quando elas têm contato com a religião, de uma forma adequada, percebem que é tudo bem diferente, que o Islam, muitos séculos atrás, já garantia às mulheres o direito ao voto, ao estudo (esse, na verdade, uma obrigação), ao uso livre de seus bens, ao trabalho, à escolha do marido, ao divórcio etc. (História, 7º ano, 1º bimestre, 2013). c. As apostilas procuram trazer, também, exemplificações da vida das mulheres no Brasil, em diferentes momentos históricos: As mulheres, até então reclusas, passaram a frequentar os espaços públicos, como as ruas e os teatros e, também, vez por outra passaram a se dedicar à leitura de livros e ao estudo de outros idiomas, especialmente o francês (História, 8º ano, 3º bimestre, 2013). Principais aspectos da Constituição de 1934 direito de voto direto e secreto a todo brasileiro maior de 21 anos (incluindo as mulheres), com exceção dos analfabetos, padres e soldados; criação da Justiça Eleitoral, com o objetivo de combater a fraude eleitoral (História, 9º ano, 3º bimestre, 2013). d. E, em algumas passagens, procuram não generalizar o lugar da mulher nas culturas de diferentes sociedades: Para vários povos, a casa é das mulheres (História, 7º ano, 2º bimestre, 2013). Geralmente, as mulheres plantam e colhem, preparam os alimentos, cuidam dos filhos (Ibid.). Pontuo aqui que o uso das expressões para vários e geralmente já indica alguma subversão, ao propor que essas atividades não são constituintes de todas as populações, criando a possibilidade de refletir sobre os diferentes papéis que mulheres e homens podem assumir no interior das sociedades. Também podemos destacar que, a descrição da forma como as mulheres são vistas no Islam pode indicar um esforço de tentar desconstruir no imaginário de quem tem acesso a esse material os preconceitos que temos em relação a culturas diferentes da nossa. 102  primeira: com um total de 91 ocorrências, ressalta aspectos políticos inaugurais, tais como alusão à Primeira Guerra, primeira potência política. A referência às mulheres aparece quando relata que determinada mulher foi a primeira esposa: Inconformado com a traição de sua primeira esposa, o rei Xeriar se casa com uma nova noiva a cada dia, matando todas elas, sempre, na manhã seguinte ao casamento (História, 7º ano, 1º bimestre, 2013). Ou seja, do total de 91 ocorrências, apenas uma faz referência a uma mulher, porém não como sujeito da História, com um nome e uma identidade, mas sim para designar sua condição, a de esposa.  primeiro: com um total de 67 ocorrências, faz referência a aspectos políticos, porém destaca neles os atores, nomeando quem fez o quê:  Em 1894, o paulista Prudente de Morais foi eleito o primeiro presidente civil da República (História, 9º ano, 1º bimestre, 2013). O primeiro brasileiro a pisar na pista de atletismo foi o cavaleiro Rodrigo Pessoa, campeão olímpico em Atenas-2004 e porta-bandeira da delegação (Ibid.). Yuri Gagarin, primeiro homem no espaço (História, 9º ano, 3º bimestre, 2013). Com os termos primeira e primeiro, vemos que os feitos masculinos, nestas condições, acabam sendo mais valorizados que os femininos. As mulheres não têm acesso as histórias em que foram destaques na História, com isso quero dizer que muitas vezes acabamos não tendo acesso nos materiais escolares as mulheres que foram pioneiras em diferentes campos. O que é muito importante para a construção das imagens dos indivíduos no social. Enquanto as Histórias das mulheres são marginalizadas, percebe-se um amplo interesse do material didático em difundir as ações de homens, colocando, para tal seus nomes próprios.  trabalhadores+trabalhador: com 63 ocorrências, esses termos aparecem, em sua maioria, para designar quem realiza o trabalho, usado no genérico masculino: 103 Muitos desses trabalhadores eram mestres especializados nos mais diversos ofícios e artes: carpinteiros, marceneiros, serralheiros, ferreiros, pedreiros etc. (História, 8º ano, 4º bimestre, 2013). Manso comunal - recebeu esse nome porque correspondia às partes do feudo que podiam ser usadas tanto pelos servos (camponeses, pastores e trabalhadores domésticos) quanto pelos nobres, clérigos (senhores) (História, 7º ano, 1º bimestre, 2013).  trabalhadoras: com 3 ocorrências, aparece com relação a grupo e classe. A referência às trabalhadoras mulheres acontece somente uma vez, na fala citada de um historiador: Como nos diz o historiador Ilmar de Mattos, esses trabalhadores e trabalhadoras escravizados viviam ‘Num mundo onde qualquer trabalho manual era visto com desprezo pelos homens livres’ (História, 8º ano, 4º bimestre, 2013). A tentativa de visibilizar as mulheres enquanto trabalhadoras não é, portanto, uma prática comum do material analisado, ficando restrita a uma fala, enquanto há 63 ocorrências para discorrer sobre questões dos trabalhadores. Trazendo mais uma vez apagamentos as construções que abordam as questões femininas. As construções descritas nesse material sinalizam uma permanência da invisibilidade e do apagamento das mulheres, já que muitas das contribuições históricas deste grupo não aparecem no material didático. Não há registro aqui das histórias de mulheres indígenas, mulheres negras e mulheres brancas, assim como o material didático não expõem as lutas das trabalhadoras pelo direito de trabalhar e de votar. Impedindo que tais se vejam como sujeitos políticos e, em contrapartida há grande destaque para a história onde os homens se constituem como personagens, havendo inclusive a trajetória do voto masculino no Brasil, assim como questões trabalhistas onde os homens atuam no Brasil e no mundo. 3.2.1.3 “Fabio estava planejando sua festa de aniversário”: a Matemática e as construções de gênero O corpus de Matemática é composto por 12 arquivos, com as apostilas de acordo com a escolaridade e os bimestres que compõem o ano letivo de 2013. A análise dos cadernos pedagógicos dessa disciplina teve uma expectativa diferenciada da dos demais, uma vez que, 104 como já mencionado, a Matemática pode apresentar um poder de naturalização diferenciado, dado que o objetivo dessa disciplina não é trabalhar questões de gênero explicitamente, mas, por isso mesmo, torna-se interessante saber como o material didático de Matemática significa o feminino. Propõe-se aqui um primeiro movimento que irá se constituir pela análise das palavras previamente selecionadas na lista de ocorrências, tal como feito nos demais corpora. O segundo movimento traz a análise dos nomes próprios que também constam na lista de ocorrência. Optou-se por esses dois movimentos, porque na leitura inicial das apostilas de Matemática, observou-se que os nomes próprios, nesse contexto, sinalizavam ocorrências de interesse para a pesquisa. Abaixo exponho as palavras selecionadas das ocorrências dados pelo estudo de ngramas. Tabela 5 – Ocorrências Corpus de Matemática N-GRAMA alunas alunos brasileira brasileiros+brasileiro campeonato cidadania científica criança+crianças eleitores esportes+esporte femininos+feminino filho+filhos futebol homens+homem irmã irmãos jogadores+jogador jogar mãe masculino+masculinos meninas+menina meninos moças mulheres+mulher primeira primeiro OCORRÊNCIAS 2 63 5 4 8 1 16 6+5 6 15+13 2+3 4+6 23 13+8 1 1 29 6 2 3+7 10 9 2 12 20 43 105 professor professora sexo vendedor vendedora 22 5 6 2 2 Como nos outros corpora, parte das palavras selecionadas não demonstraram significações de interesse para a pesquisa, tais como científica, já que sua referência fazia menção a um conceito da Matemática, a notação científica: Notação científica? O que significa? Notação científica, também conhecida como padrão ou como notação em forma (Matemática, 9º ano, 1º bimestre, 2013). E também a palavra alunos, que é usada como genérico masculino para designar as pessoas que estudam: Dos alunos de uma escola, 58% são do sexo feminino (Matemática, 7º ano, 1º bimestre, 2013). Nessa escola, os alunos com conceito MB são aqueles que apresentaram rendimento excelente (Matemática, 7º ano, 3º bimestre, 2013). As palavras que me possibilitam uma análise mais produtiva dos sentidos do feminino estão apresentadas a seguir:  esportes+esporte: com 28 ocorrências, fazem menções a diversos esportes, mas utiliza a forma masculina para se referir aos praticantes: Os alunos de uma turma registraram, em uma tabela, suas preferências em relação aos esportes (Matemática, 7º ano, 1º bimestre, 2013). Sérgio quer saber, no final da pesquisa, o perfil de sua turma em relação aos esportes (Matemática, 8º ano, 2º bimestre, 2013). Quando menciona o nome de esportista é um homem: Um dos maiores nomes da história do skate, Bob Burnquist foi o primeiro atleta do esporte a fazer um giro de 900 graus em uma “megarrampa” de forma documentada (Matemática, 7º ano, 2º bimestre, 2013).  futebol: com 23 ocorrências, quando fazem referências a pessoas só aparecem homens: 106 Dos 11 jogadores de um time de futebol, apenas 5 têm menos de 25 anos de idade (Matemática, 7º ano, 3º bimestre, 2013). O artilheiro do campeonato estadual de futebol fez 20 gols em 9 jogos (Matemática, 8º ano, 1º bimestre, 2013). Sou treinador de um time de futebol da minha comunidade (Matemática, 9º ano, 2º bimestre, 2013).  jogadores+jogador: com 32 ocorrências, a referência em sua totalidade é a homens praticando esportes, com predominância para o futebol: Dos 11 jogadores de um time de futebol, apenas 5 têm menos de 25 anos de idade (Matemática, 7º ano, 3º bimestre, 2013). Qual a diferença entre a altura do jogador mais alto e a do jogador mais baixo? (Matemática, 7º ano, 2º bimestre, 2013). A média de gols feitos por esse jogador é obtida através da divisão do número de gols feitos pelo número de partidas (Matemática, 8º ano, 1º bimestre, 2013).  jogar: com 6 ocorrências, aqui mais um vez é reforçada a identificação dos meninos e homens como jogadores: Jorge e Anderson adoram jogar videogame (Matemática, 8º ano, 3º bimestre, 2013). Para jogar futebol, João pode escolher uma entre duas camisas (Ibid.). Marcos e seus amigos adoram brincadeiras antigas. Sabe, a minha concentração melhorou depois que comecei a jogar com vocês! (Matemática, 9º ano, 2º bimestre, 2013). Podemos ver que os termos esporte+esportes, futebol, jogadores+jogador e jogar não apresentam referências femininas, o que pode reforçar a naturalização de que o lugar das meninas e mulheres não é praticando esporte. Em todos os arquivos de apostilas de Matemática somente foi encontrado uma única referência a meninas que praticam um esporte, mas, como podemos ver, a prática dessas meninas não é nem nomeada como esporte, marcando mais uma vez o não pertencimento feminino a esse mundo: A turma 1 803 participará de um torneio de Vôlei de Praia. Há, na turma, quatro alunas que praticam esse desporto: Rita, Paula, Leila e Joana (Matemática, 8º ano, 4º bimestre, 2013). 107  homens+homem: com 21 ocorrências, aparece também neste contexto como sinônimo de humanidade: Olhando à nossa volta, facilmente percebemos que há diferentes formas geométricas por toda parte. Tanto na natureza, como nos objetos construídos pelo homem (Matemática, 7º ano, 2º bimestre, 2013). Na vida cotidiana, as novas tecnologias criam novas necessidades, fazendo com que o homem de hoje se adapte a uma nova realidade (Matemática, 9º ano, 1º bimestre, 2013). A tecnologia trouxe também um grande aliado, o computador, que permite exercer, inclusive, atividades profissionais de dentro de casa, possibilitando ao homem dividir melhor o seu tempo, com todos os recursos de um moderno escritório (Ibid.).  professor com 22 ocorrências, é referido como aquele que é responsável pelo aprendizado, o regente da turma, aquele que guiará a turma: Seu professor, como sempre, irá auxiliá-lo (7º ano, 1º bimestre, 2013).  Pergunte a seu professor como proceder com expoentes maiores (8º ano, 3º bimestre, 2013). professora com 5 ocorrências, aparece em exemplos de atividades, tais como: A professora Rita trouxe uma atividade para os alunos. Vamos ajudá-los? (7º ano, 2º bimestre, 2013). Este gráfico mostra os conceitos dados pela professora de Matemática, para os alunos da turma 1 704, no 1º bimestre deste ano (7º ano, 3º bimestre, 2013). É interessante notar nessas ocorrências que o material didático de Matemática reconhece a existência da professora como regente de turma, mas não privilegia sua referência para ministrar o conteúdo proposto pela apostila. Essa observação é bastante significativa, pois não se trata do não reconhecimento das professoras como regentes de turma, mas, sim, da opção de não nomeá-las no corpo da apostila como um todo. A recorrente utilização no genérico masculino acaba por induzir também ao apagamento das mulheres como possíveis responsáveis pelo cumprimento das atividades dos cadernos pedagógicos, privando quem ler este material da oportunidade do reconhecimento e da valorização das professoras. 108 Ao solicitar a ocorrência dos nomes próprios, totalizamos 82 nomes, mas, ao procurar as concordâncias desses nomes foi visto que, na maioria das vezes, as atividades de personagens femininos e masculinos seguem padrões sexistas: Rafae la e Giovanna fizeram uma pausa nos estudos e aproveitaram para colocar a conversa em dia (Matemática, 7º ano, 1º bimestre, 2013). Hugo é mergulhador (Matemática, 7º ano, 2º bimestre, 2013). Caroline comprou laranjas e registrou os valores pagos na tabela abaixo (Matemática, 7º ano, 3º bimestre, 2013). Miriam quer fazer um bolo grande, aumentando, proporcionalmente, a quantidade de ingredientes (Matemática, 7º ano, 4º bimestre, 2013). O artilheiro do campeonato estadual de futebol fez 20 gols em 9 jogos (Matemática, 8º ano, 1º bimestre, 2013). Em uma partida de videogame, Aurélio conseguiu 160 pontos em três rodadas (Matemática, 8º ano, 2º bimestre, 2013). Nesses exemplos, as meninas compram, fazem bolo, conversam. Já os personagens masculinos são mergulhadores, artilheiros e jogam videogame. Na leitura das apostilas de Matemática, pude perceber a presença de personagens femininos, mas que, em relação aos personagens masculinos, demonstram uma dicotomização, ou seja, esse material parece indicar o reforço da aprendizagem de que meninas e meninos, mulheres e homens possuem lugares definidos no social, lugares esses ainda em vínculo com concepções tradicionais. Um dos exemplos mais emblemáticos é sobre uma situação-problema onde o enunciado diz: Fabio estava planejando sua festa de aniversário e fez algumas anotações em tabelas [...] Com 3 latas de leite condensado, a mãe de Fabio faz 75 brigadeiros [...] A tia de Fabio utiliza 200 g de queijo ralado para fazer 20 pães de queijo (Matemática, 7º ano, 3º bimestre, 2013). Aqui podemos observar mais uma vez uma polarização sobre espaços sociais ocupados por mulheres e homens, pois, enquanto o personagem Fabio planeja, sua mãe e tia executam, cozinham, para sua festa de aniversário. Desse modo, só o personagem de Fábio pode pensar e se utiliza de duas pessoas do sexo feminino para executar seu plano. Elas não pensam, só fazem o que Fábio definiu previamente. O que esse tipo de construção reforça no imaginário de meninas e meninos e de mulheres e homens? Quando vemos as ocorrências do corpus de Matemática, percebemos que, em muitos exemplos onde existem atividades esportivas, só representações masculinas são exploradas, reforçando a invisibilização da atuação feminina nessas práticas e reforçando o sexismo, uma 109 vez que, tradicionalmente, em nossa sociedade os praticantes de esportes são os meninos e homens. O material poderia trabalhar pelo deslocamento desses sentidos, trazendo referências de esportistas mulheres para suas atividades ou fazendo referências a jogadoras, porém permaneceu no viés tradicional ao selecionar praticantes masculinos para as atividades esportivas que referiu. 110 CONSIDERAÇÕES Não se pode mudar a sociedade a partir da escola, mas pode-se lançar alternativas, desenhar novas possibilidades, ensinar a abrir caminhos e mostrar que nós, os seres humanos, podemos escolher 25. Montserrat Moreno As discussões desenvolvidas neste trabalho procuram problematizar as construções do feminino e, de forma mais específica, como o feminino é construído nos materiais didáticos contemporâneos. Escolhemos para essa análise, as apostilas oferecidas pela SME/RJ que substituem nessa rede o livro didático. Ponderávamos se, com todos os deslocamentos que as mulheres provocaram na sua identificação no social, haveria mudanças nas formas com que elas são representadas em materiais didáticos na atualidade. Queríamos saber se, com todo o acúmulo que tivemos em relação à temática das lutas das mulheres, gênero e livros didáticos, ocorre alguma mudança na forma como o texto didático escolar aborda essas questões, que poderiam fazer contraste ao encontrado, por exemplo, em Negrão e Amado (1989). Afirmamos aqui que, entre as construções que problematizam as formas como mulheres e homens são vistos socialmente, gênero se constitui como um conceito que ganhou grande destaque, oportunizando significar o feminino como uma construção cultural, no lugar de uma concepção de natureza, que em outras épocas se julgava imutável. As contribuições de autoras como Scott (1989; 2005; 2012), Derrida (1991) e Butler (2008; 2012) permitem questionar a própria noção de natureza, levando-nos a entender que tudo que cerca as sociedades humanas é produzido por experiências interpretativas. Assim, a forma como significamos diferentes sujeitos no social são decorrentes de visões construídas pelas próprias sociedades. E mais do que eleger culpadas, essa assertiva nos permite concluir que tal como certas formulações foram construídas e naturalizadas no meio social, também podem ser desconstruídas, transformadas. Scott (1989; 2005; 2012) nos convida a pensar como podemos usar o gênero como uma categoria de análise, fornecendo subsídios para entender o social e as relações entre 25 MORENO, M. Como se ensina a ser menina – O sexismo na escola. São Paulo: Moderna; Campinas-SP: Ed. Unicamp, 1999. 111 mulheres e homens e entre o feminino e o masculino, de uma forma mais ampliada, incorporando assim as diversas interações humanas, já que gênero perpassaria por todas essas. Sugere que ainda é uma categoria válida e uma lente ainda necessária para compreender as trajetórias de distintos sujeitos no social, uma vez que nossos corpos ainda são generificados de forma binária. Pontua que devemos, também, estudar as instituições políticas e a forma como as questões de gênero são concebidas, legitimadas e criticadas, não as entendendo como dadas, mas sim as problematizando para que se possa romper com os sentidos naturalizados. As contribuições de Scott se fazem importantes para essa pesquisa, pois além das considerações acima sintetizadas elas nos ajudam a afirmar que as diferenças que constituem mulheres e homens não devem ser impeditivas das lutas pela igualdade. O processo de produção desse corpo através também do gênero nos permite entender, juntamente com Butler (2008; 2012), o caráter performativo dessas produções que se realizam através da repetição de atos e gestos, que podem ser encenados tanto nas nossas falas, como também nas nossas produções escritas e até nas nossas expressões corporais. Ao entendermos que as significações produzidas ao nosso redor são frutos de interpretações, algumas destas com um maior peso no social e em decorrência disso naturalizadas, podemos afirmar que as concepções formuladas no social sobre mulheres e homens são performativas, uma vez que são continuamente repetidas para que se crie um efeito de verdade, não possuindo desta maneira uma fundamentação ontológica. Com essas discussões chegamos ao capítulo 2, onde tentamos discutir sobre a trajetória histórica da educação formal das mulheres e pudemos ver que, desde o início, as visões educativas para as mulheres as subalternizavam. A educação para elas tendia a reforçar os estereótipos de gênero, que valorizavam a formação da mulher para ser boa mãe e boa esposa. Apenas nos anos de 1960, as mulheres passam a ter acesso sem restrições às universidades, independendo do curso médio que realizavam. Hoje, já temos uma equiparação no número de matrículas entre meninas e meninos e uma educação onde ambos convivem no mesmo ambiente. Mas trouxemos, com Carvalho (2009) e Auad (2006), algumas formas como os estereótipos de gênero podem se fazer presentes no cotidiano escolar, apesar da escola mista. Vemos assim que a escola atual muitas vezes ainda tende a reproduzir padrões de gênero que constroem meninas e meninos como desiguais. Ao pesquisar como os materiais didáticos podem vincular preconceitos, incluindo os relacionados a gênero, vimos que durante os anos de 70 e 80, em nível mundial, e, também, nacional, temos uma série de pesquisas sobre a qualidade dos livros didáticos. Essas pesquisas se tornam importantes uma vez que materiais como os livros didáticos são, com frequência, os 112 principais personagens do cotidiano educacional brasileiro, e seu conteúdo muitas vezes acaba sendo lecionado sem alguma forma de crítica. Com a leitura de Negrão & Amado (1989) e de Rosemberg et. al. (2009), entendemos que as pesquisas que articulam sexismo e livros didáticos não são recentes e possuem uma trajetória nacional de mais de 30 anos. Em geral, concluem pela permanência de visões sexistas nos materiais didáticos. O capítulo 3 apresenta a síntese da análise do material empírico, principal foco desta pesquisa. Como já anunciado, a intenção da pesquisa foi identificar os significados atribuídos ao feminino nestes materiais, a partir do conceito de gênero e admitindo que esse feminino é recorrentemente chamado de mulher. Portanto, queríamos saber como o feminino/o ser mulher é repetido nesses materiais. Pudemos ainda ver, através da discussão bibliográfica realizada no capítulo 1, que o conceito de gênero foi disseminado por diferentes áreas, atravessando, também, a esfera do político. Entendido, na maioria das vezes, como uma forma de romper com a identificação por aspectos biológicos, aceita-se o sentido de gênero em que se afirma que os papéis socialmente atribuídos a mulheres e homens são frutos de construções culturais. Temos na academia, apesar dos diferentes usos, um entendimento de que mulheres e homens não são desiguais, mas sim diferentes. Mas será que esse entendimento chega no universo escolar? Como as apostilas lidam com essa informação? Será que já incorporam essa construção sobre gênero? Foram essas as questões que nos levaram a analisar esses materiais didáticos. Ao investigar os sentidos sobre o feminino, olhamos para três disciplinas que compõem o currículo comum dos anos finais do ensino fundamental: Ciências, História e Matemática. Utilizamos para o acesso aos textos ferramentas usadas na Linguística Computacional, que nos permitiram ter acesso às ocorrências e contextos das repetições que compunham as apostilas. Sinalizamos, que nessa análise, encontramos, em todos os cadernos pedagógicos, a predominância da escrita no genérico masculino. Concordo com Vianna e Unbehaum (2004), quando argumentam que esse tipo de linguagem pode expressar discriminação sexista, além de comprometer a construção de novos significados para a prática social e com Moreno (1999), quando afirma que este tipo de construção tende a fazer com que as meninas renunciem à sua identidade sexolinguística. Aprendemos também, com esse tipo de construção, que o masculino vem sempre primeiro, ele é o primeiro a ser citado, o primeiro a ser lembrado e na grande maioria das vezes o masculino é o único que é apresentado. Essa forma de falar e de escrever reforça um modelo androcêntrico. 113 No corpus de Ciências, encontramos a naturalização de temas que envolvem questões que, historicamente, são tidos como responsabilidade feminina: uma repetida afirmação do corpo das meninas e jovens como o corpo que pode reproduzir, que pode ser mãe, sendo que o mesmo não foi encontrado na descrição dos corpos masculinos. Também encontramos a repetida nomeação do feto como bebê, o que, à primeira vista, pode não ser problemático, mas este tipo de linguagem tende a disseminar de forma mais feliz a ideia de que o corpo feminino deve ser subserviente a reprodução, criando no imaginário de quem lê a apostila a imagem de que este feto é já um indivíduo, portador de direitos. Neste tipo de disseminação, o corpo e as vontades da mulher deixam de existir para dar lugar a outro ser, objetificando, mais uma vez, este corpo e projetando visões estereotipadas sobre a maternidade e o amor de mãe. A repetida afirmação deste tipo de construção exclui, ainda, a possibilidade do diálogo e debate sobre os direitos sexuais e reprodutivos. No corpus de História, encontramos uma narrativa onde as mulheres não são visibilizadas, seus feitos e suas conquistas não são, em geral, considerados. Encontramos um material em que muitos personagens históricos homens são nomeados como os primeiros, os brasileiros, e seus feitos são descritos. Porém, não vemos o mesmo acontecer com as mulheres: pouco foram encontrados nomes de mulheres, tal como encontramos nomes de homens, que foram pioneiras em suas áreas ou que contribuíram para a História do Brasil e do mundo. A ausência de trajetórias políticas e sociais que incluíssem as mulheres neste material acaba limitando o sentido que jovens mulheres atribuem à sua cidadania, disseminando com este tipo de construção, mais uma vez, que o lugar nas mulheres não é na política. Esse tipo de construção possui uma eficácia singular que pode ser vista, ainda, atualmente, na pouca presença das mulheres em cargos políticos. Observamos, nesse corpus, uma quase equiparação entre o número de historiadoras e historiadores, porém sabemos que estamos inseridas em um mundo machista e sexista, fazendo com que as experiências de todos os seres – mulheres e homens – estejam limitadas pela visão deste mundo e ambos, mulheres e homens, acabam afetados por essas visões. Portanto, a equiparação de historiadoras e historiadores não faz com que o material seja mais ou menos crítico, o que confirma a perspectiva não essencialista da identidade que afirmamos neste trabalho. No corpus de Matemática, encontramos um cenário onde as meninas e os meninos possuem espaços bem demarcados. Na maior parte das ocorrências analisadas, encontramos os personagens masculinos praticando esportes, principalmente o futebol e as meninas fazendo outras atividades como comprar, conversar, cozinhar. Podemos ver nessas apostilas 114 uma disseminação bastante eficaz no seu efeito performativo de construção de lugares que meninas e meninos devem ocupar. Houve uma consonância quase total entre as visões tradicionais que temos para mulheres e homens e o que foi encontrado nos cadernos pedagógicos de matemática. Mas também foram encontrados nestes corpora deslocamentos que sinalizavam uma visão híbrida para a forma como identificamos as mulheres. Trago o conceito de híbrido tal como proposto por Canclini (2006, p. XIX, grifos do autor) para pensar os processos culturais da atualidade: “entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. Com isso quero dizer que na análise dos corpora de pesquisa encontramos iterações que deslocam as maneiras tradicionais de vermos o feminino - por exemplo, no corpus de História há uma preocupação de levar as leitoras a entenderem as concepções sobre as mulheres que seguem o Islam, o que coloca a questão da mulher e trabalha pela tolerância a outras culturas. No corpus de Ciências, temos a utilização do conceito de gênero para descrever as construções culturais sobre o feminino e o masculino, o que podemos entender como mais uma evidência de que, ainda que de forma restrita, estes materiais incorporam as construções que questionam as visões tradicionais sobre mulheres e homens. Também vemos que a utilização do homem como representante da humanidade não se sustenta em todas as repetições das apostilas de História e nas de Ciências, pois em algumas construções ao nomear a humanidade colocavam mulheres e homens na descrição. Assim, podemos dizer que a análise sobre os materiais didáticos utilizados pelas séries finais das escolas públicas da SME/RJ desenvolvida para esta dissertação aponta que há repetições e deslocamentos nestes materiais, porém as repetições prevalecem, pela insistência em nomear o corpo feminino como reprodutivo, na invisibilidade das mulheres e seus feitos, na iteração do espaço público como masculino. Os deslocamentos estão presentes, mas ainda incipientes para a construção de visões igualitárias entre as mulheres e os homens. Como mencionado na epígrafe deste capítulo, o espaço-tempo escolar pode permitir desenhar novas possibilidades. A escola pode constituir vetor de força significativa na consolidação de sentidos mais democráticos para o social, uma vez que é um espaço privilegiado de informação, formação e reflexão. Essa pesquisa pretendeu contribuir com o debate sobre sexismo nos materiais didáticos, mas também com as questões relacionadas a diferença, por meio do qual pretende-se valorizar diferentes sujeitos no social. Entendemos que as visões sociais estereotipadas que temos de mulheres e homens, quando inscritas na superfície do texto didático e significadas como conhecimento verdadeiro podem de fato 115 contribuir com a perpetuação de sentidos de gênero ainda em consonância com visões tradicionais de mulheres e homens. Essas visões repetidas nesses materiais identificam as mulheres, muitas vezes, como pouco atuantes, com visibilidade reduzida no social e os homens, como atuantes e tendo muita visibilidade no social, perpetuando uma imagem de espaço privado para as mulheres e espaço público para os homens. Visões essas que se não forem confrontadas podem criar no nosso imaginário que mulheres e homens são desiguais, dificultando o alcance de padrões mais democráticos para nossa sociedade. 116 REFERÊNCIAS ANDRÉ, M. E. D. A. Etnografia da Prática. São Paulo: Papirus, 1995. AUAD, D. Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola. São Paulo: Contexto, 2006. BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. São Paulo. Difusão Européia do livro, 1967. BEDIA, R. C. Género. In: AMORÓS, Celia (org.). 10 Palabras Clave obre Mujer. [S. l.]: Verbo Divino: Estella Navarra, 1995. BELTRÃO, K. I.; ALVES, J. E. D. A reversão do hiato de gênero na educação brasileira no século XX. Cadernos de Pesquisa, v.39, n.136, p.125-156, jan./abr. 2009. BOMENY, H. Três decretos e um ministério: a propósito da educação no Estado Novo. In: PANDOLFI, D. (Org.) Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. 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