[go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu

APRENDENDO HISTÓRIA: GÊNERO

ANDRÉ BUENO – DULCELI ESTACHESKI EVERTON CREMA – JOSÉ MARIA SOUSA NETO [ORGS.] Aprendendo História: GÊNERO Página | 1 APRENDENDO HISTÓRIA: GÊNERO PRODUÇÃO: LAPHIS – Laboratório de Aprendizagem Histórica da UNESPAR Leitorado Antiguo – UPE Projeto Orientalismo Aprendendo História: GÊNERO Página | 2 EDIÇÃO: Edições Especiais Sobre Ontens FICHA BIBLIOGRÁFICA BUENO, André; CREMA, Everton; ESTACHESKI, Dulceli;NETO, José Maria de Sousa. Aprendendo História: Gênero. União da Vitória: Edições Especiais Sobre Ontens, 2019. ISBN: 978-85-65996-67-9 Disponível em www.revistasobreontes.site SUMÁRIO CONVIDAD@S POTENCIALIDADES DO USO DO CINEMA NO ENSINO DE HISTÓRIA: FICÇÃO, REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E CULTURA HISTÓRICA Maristela Carneiro, 7 ESTRATÉGIAS TESTAMENTÁRIAS E PODERES FEMININOS NO MARANHÃO SETECENTISTA Marize Helena de Campos, 17 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO GÊNERO E DAS SEXUALIDADES ENTRE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO DA BAIXADA CUIABANA. ALGUMAS REGULARIDADES Moisés Lopes, 24 AUTOR@S EDUCANDO PARA A DIVERSIDADE DE GÊNERO E SEXUALIDADE: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS DESAFIOS ENFRENTADOS PELOS PROFESSORES DE HISTÓRIA, DA REDE PÚBLICA DE ENSINO Alexandra Sablina do Nascimento Veras, 35 AS REPRESENTAÇÕES DE MULHERES NO LIVRO DIDÁTICO Ana Carolina Santos Prohmann, 42 SAFO: O PAPEL SOCIAL FEMININO NA GRÉCIA ANTIGA Ana Maria Lúcia do Nascimento e Cláudia Marcella Oliveira da Silva, 48 AS RELAÇÕES DE GÊNERO NA PERSPECTIVA DE VIDA: RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA EM SALA DE AULA Ana Paula Bührer Gonçalves e Vanessa Cristina Chucailo, 56 ENSINO DE HISTÓRIA E MULHERES NEGRAS: UMA PERSPECTIVA INTERSECCIONAL SOBRE AS PERCEPÇÕES DE ESTUDANTES DE UMA ESCOLA PÚBLICA Andreia Costa Souza, 63 “PELO QUE NÃO ME SURPREENDE QUE TANTAS BRUXAS SEJAM DESSE SEXO”: DESCONSTRUINDO A FIGURA DA BRUXA EM SALA DE AULA Anna Luiza Pereira, 71 EM DEFESA DA EDUCAÇÃO DA MULHER NO BRASIL IMPÉRIO: ELEMENTOS DE UM DEBATE NA ASSEMBLEIA PROVINCIAL DE PERNAMBUCO Aruanã Antonio dos Passos e Carolina Rodrigues da Silva, 77 EDUCAÇÃO DAS MÃES E CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO NOS DISCURSOS DO JORNAL “A MÃE DE FAMÍLIA” Cássia Regina da S. Rodrigues de Souza, 85 Aprendendo História: GÊNERO Página | 3 O CORPO FEMININO E O DISCURSO RELIGIOSO NA IDADE MÉDIA Clarice da Luz e Flávia Schena Rotta, 93 Aprendendo História: GÊNERO Página | 4 GÊNERO E ENSINO DE HISTÓRIA: COMO E O PORQUÊ DE ABORDAR QUESTÕES DE GÊNERO NAS AULAS DE HISTÓRIA Cleni Lopes da Silva, 98 GÊNERO E ENSINO DE HISTÓRIA: UM DEBATE SOBRE A QUESTÃO DA MULHER ATRAVÉS DE CARTAZES SOVIÉTICOS Fellipe Castanheira Soares e Shayane Martins Rodrigues Gomes, 105 CHRISTINE DE PIZAN (1363-1430) E OS ESPAÇOS DE ATUAÇÃO FEMININA NA OBRA A CIDADE DAS DAMAS (1405) Gizelle Ribeiro da Silva, 115 GÊNERO ESTIGMATIZADO: CONTROLE SOCIAL E MARGINALIZAÇÃO DAS PROSTITUTAS NO SÉC. XIX Heloísa Raquel da Silva e Christian Fausto Moraes dos Santos, 122 AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NOS CORDÉIS DA EDITORA GUAJARINA EM BELÉM DO PARÁ DURANTE A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX Hyago Lopes Farias e Nayrianne Rodrigues Alcântara Lopes, 127 AS MULHERES NA CAMPANHA ELEITORAL DE 1911 PARA O GOVERNO DE PERNAMBUCO Jônatas Lins Duarte e Cynthia Maria de Barros Soares, 137 MULHERES, IMPRESSOS E HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE Jorge Luiz Zaluski, 143 A REPRESENTAÇÃO FEMININA DURANTE A DITADURA MILITAR: DA LUTA À CONSTRUÇÃO DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA NO SÉCULO XXI Letícia Veitas Novelli, 151 TRABAJO EN SALA DE AULA CON PUBLICIDAD: CONSTRUCCIONES DEL IDEAL E IMAGINARIOS DE MUJERES EN LA PUBLICIDAD DE CERVEZAS EN MEDELLÍN- COLOMBIA Maria Isabel Giraldo Vásquez, 158 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM “DOM CASMURRO” DE MACHADO DE ASSIS Milena Calikoski, 165 A DESIGUALDADE DE GÊNERO: A CONVENÇÃO DE BELÉM E A LEI MARIA DA PENHA Mirela Ibiapino M. Cunha e Victor Gabriel de Jesus Santos David Costa, 172 HOMOSSEXUALIDADE NAS NOTÍCIAS POLICIAIS DA IMPRENSA PARAENSE NA PRIMEIRA METADE DA DÉCADA DE 1980 Pedro Antonio de Brito Neto, 177 TRABALHANDO COM “GÊNERO” NAS AULAS DE HISTÓRIA: UMA POSSIBILIDADE DE REELABORAR POSTURAS E VISÕES ACERCA DAS MULHERES NO MERCADO DE TRABALHO Raimundo Nonato Santos de Sousa, 185 AS IMAGENS DAS MULHERES NOS LIVROS ESCOLARES DA SÉRIE “INFÂNCIA” DE HENRIQUE RICCHETTI Samara Elisana Nicareta, 193 O CORPO FEMININO SOB OLHAR DAS PARTEIRAS, O OFÍCIO DO PARTO E OS CUIDADOS ESPECÍFICOS DE GÊNERO Sara Fernanda Zan e Christian Fausto Moraes dos Santos, 204 PADRÕES: UM OLHAR EM TORNO DA HOMOGENEIZAÇÃO DA PESSOA HOMOSSEXUAL Suelem Cristina de Abreu, 208 PARTEIRAS E BENZEDEIRAS DO VALE DO IVAÍ PARANAENSE: A HISTÓRIA QUE NÃO CONSTA NOS LIVROS DE HISTÓRIA Vânia Inácio Costa Gomes, 219 A HISTÓRIA DAS MULHERES E DO MOVIMENTO FEMINISTA E SUA ABORDAGEM NO ENSINO DE HISTÓRIA Vitória Diniz de Souza, 227 A FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO PRIMÁRIO Wanessa Carla Rodrigues Cardoso, 234 Aprendendo História: GÊNERO Página | 5 Aprendendo História: GÊNERO Página | 6 CONVI DAD@S POTENCIALIDADES DO USO DO CINEMA NO ENSINO DE HISTÓRIA: FICÇÃO, REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E CULTURA HISTÓRICA Maristela Carneiro A produção cultural resultante da relação entre história e cinema é rica, extensa e problemática. Inúmeras produções fílmicas situam suas narrativas no passado, como mera ambientação romantizada, de maneira a explorar aspectos biográficos de personagens célebres e/ou engendrar enredos de eventos considerados relevantes; construindo, assim, percepções históricas a partir da concatenação de recursos audiovisuais. Não é por acaso que filmes são comumente usados como recurso didático no processo de ensino e aprendizagem histórica e para fins de contextualização e/ou problematização em outras áreas de conhecimento. Por outro lado, como são essencialmente expressões de um grupo de desenvolvedores – diretores, roteiristas, produtores, estúdios, etc.; convém salientar que as narrativas fílmicas podem priorizar outros aspectos a qualquer compromisso acadêmico de investigação histórica, dentre os quais a composição estética, o valor de entretenimento e as aplicações simbólicas ou líricas. Assim, tratar da história no cinema pode ser controverso, embora seja um esforço necessário, uma vez que estes filmes repercutem no imaginário do público e contribuem para a composição da cultura histórica de uma sociedade. Pela força de seus recursos técnicos e sua capacidade de perpetuar imagens icônicas dos temas filmados, é válido observar que a linguagem cinematográfica se revela capaz de construir e perpetuar percepções sobre determinados períodos históricos. Além disso, a partir das escolhas do que se exibe ou se oculta em cada cena; do que é explícito ou invisível em cada narrativa; do que é incluído ou excluído de cada enquadramento; o filme produz um recorte, construindo uma memória visual demarcada por intencionalidades, nem sempre deliberadas. Essa memória visual, por conseguinte, torna-se referência para a cultura histórica. Em conformidade com o que defende Rosenstone (2015, p. 18), ainda que saibamos que uma trama gira em torno de protagonistas fictícios ou apenas parcialmente baseados em indivíduos reais, filmes históricos afetam significativamente a visão da tessitura de nossa realidade. O cinema é, afinal, como outros espaços simbólicos, um exercício de reflexão, um pensar-se estético e narrativo. Isto posto, é válido ponderar sobre o lugar ocupado pelo cinema em nossa cultura e na constituição de nossos parâmetros. Por conseguinte, também é pertinente refletir sobre as potencialidades do uso dos filmes históricos no âmbito do ensino de história – propósito do presente texto. Filme histórico é aqui compreendido enquanto modalidade narrativa. A rigor, todo filme é histórico e representacional, na medida em que pode ser tomado enquanto uma fonte documental sobre o período e/ou circunstâncias em que foi produzido (NAPOLITANO, 2011, p. 67). Mas aqui Aprendendo História: GÊNERO Página | 7 o propósito é pensar em filmes que são históricos no sentido que representam eventos e personagens históricos, ou seja, filmes que possuem temática histórica, colocando indivíduos – “reais” ou ficcionais – no centro do processo histórico. Nas palavras de Rosenstone: Aprendendo História: GÊNERO Página | 8 “Concentrando-se em pessoas documentadas ou criando personagens ficcionais que são colocados no meio de um importante acontecimento ou movimento (a maioria dos filmes contém tanto personagens reais quanto inventados), o pensamento histórico envolvido nos dramas comerciais é, em grande parte, o mesmo: indivíduos (um, dois ou um pequeno grupo) estão no centro do processo histórico.” (ROSENSTONE, 2015, p. 33) Peter Burke assinala que o poder de um filme, de temática histórica ou não, é proporcionar ao espectador a sensação de testemunhar os eventos, ainda que tal sensação seja ilusória. “O diretor molda a experiência embora permanecendo invisível. E o diretor está preocupado não somente com o que aconteceu realmente, mas também em contar uma história que tenha forma artística e que possa mobilizar os sentidos de muitos espectadores.” (BURKE, 2004, p. 200) Tal premissa é fundamental para discutir as possibilidades e tensionamentos entre cinema e discurso histórico. Para Burke, tal como uma história escrita ou pintada, a história filmada também constitui um ato de interpretação; indo além, no caso específico dos filmes históricos, trata-se de um ato de “interpretação histórica”. “[...] a história filmada oferece uma solução atraente para o problema de transformar as imagens em palavras [...]. Aquilo que o crítico americano Hayden White chama “historiophoty”, definida como “a representação da história e nosso pensamento sobre ela em imagens visuais e discurso filmado”, é complementar à “historiografia”.” (BURKE, 2004, p. 201) Portanto, tomado enquanto ato de interpretação histórica e complementar à historiografia, não resta dúvida sobre o potencial dos usos do cinema como ferramenta histórica e analítica. Para Ferro: “Entre cinema e história, as interferências são múltiplas, por exemplo: na confluência entre a História que se faz e a História compreendida como relação de nosso tempo, como explicação do devir das sociedades.” (FERRO, 2010, p. 15) É nesta perspectiva que a ficção histórica possibilidade a abordagem de múltiplas facetas da vivência humana, incluindo as representações das diferenças sexuais e de cultura histórica, as quais podem ser discutidas e pensadas à luz dos estudos de gênero. Gênero, cultura histórica e cinema O conceito de gênero tem sido uma categoria utilizada e difundida de forma crescente, sobretudo a partir da década de 1960. Matos destaca que a proposta relacional deste conceito ressalta que “a construção do feminino e masculino define-se um em função do outro, uma vez que se constituíram social, cultural e historicamente em um tempo, espaço e cultura determinados.” (MATOS, 2005, p. 21-22) Essa perspectiva remete às reflexões tecidas mais largamente pela historiadora e feminista estadunidense Joan Scott ainda em meados da década fundamentais para os estudos feministas e de gênero no Brasil. de 1980, Em seu texto Gênero: uma categoria útil para análise histórica, Scott pontua que a categoria gênero deve abarcar não apenas as definições biológicas e/ou as relações de parentesco, mas também o mercado de trabalho e os sistemas educacional e político, esferas estas sexualmente segregadas e socialmente masculinas. Para a autora, as relações entre os sexos são construídas socialmente e correspondem às mudanças nas representações de poder – nos chamados “campos de força sociais”. Em suas palavras: “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder.” (SCOTT, 1995, p. 86) Diante do pressuposto de que as relações de gênero são um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças hierárquicas que distinguem os sexos, devem ser observadas como uma forma primária de relações significantes de poder, ainda segundo Matos e Scott, evitando-se as oposições binárias fixas e naturalizadas. Este viés rompe com uma leitura determinista e/ou biologizante: ser homem e ser mulher vai além da existência de um corpo masculino e feminino. Segundo Nicholson: “Defendo que a população humana difere, dentro de si mesma, não só em termos das expectativas sociais sobre como pensamos, sentimos e agimos; há também diferenças nos modos como entendemos o corpo. Consequentemente, precisamos entender as variações sociais na distinção masculino/feminino como relacionadas a [...] diferenças ligadas não só aos fenômenos limitados que muitas associamos ao “gênero” (isto é, a estereótipos culturais de personalidade e comportamento), mas também a formas culturalmente variadas de se entender o corpo.” (NICHOLSON, 2000, p. 14) Compreender as políticas e demarcações relacionadas ao corpo é essencial para os estudos de gênero, também no âmbito imagético, porque os usos e papéis relacionados aos corpos imaginados remetem à estereótipos culturais pertencentes aos corpos reais. Nesse viés, Lauretis propõe pensar o cinema enquanto uma das várias “tecnologias de gênero”: “[...] com o poder de controlar o campo do significado social e assim produzir, promover e ‘implantar’ representações de gênero” (LAURETIS, 1994, p. 228). Não por acaso Ferro (1975, p. 13) observa que o cinema abre um caminho régio em direção das zonas psico-sócio-históricas nunca alcançadas pela análise dos documentos convencionais. Com efeito, ao escolher filmes que se utilizam de referências históricas para a sustentação dos seus enredos, no uso público dessas diversas balizas, entendemos que se encontram, entrecruzados, tensionamentos entre os parâmetros culturais dos grupos envolvidos e os padrões de produção e consumo midiático, próprios a um objeto da indústria cultural contemporânea – nesse caso, o cinema, aqui tomado especificamente enquanto veículo tecnológico de gênero. Aprendendo História: GÊNERO Página | 9 Aprendendo História: GÊNERO Página | 10 De forma alguma isento, um filme dissemina suas predileções e valores, reificando-as, o que justifica a relevância de se discutir como o cinema nacional representa as relações de gênero e as diferenças sexuais e como define os papéis de homens e mulheres – tanto para a caracterização de época, quanto como padrão de comportamento para a contemporaneidade. A exemplo de Rossi (2017, p. 231), podemos questionar quais construções de gênero são frequentemente suscitadas, remarcadas e repetidas nas relações que se estabelecem socialmente no cinema. “É de suma importância dar visibilidade a construções alternativas, romper a hegemonia das construções que já se tornaram naturalizadas e que, frequentemente, são confundidas com retratos, senão da realidade do que um gênero supostamente “é”, mas, de forma mais contundente, do que um gênero “deveria ser” para que tenha sua existência legitimada e reconhecida. [...] as implicações das imagens e produções cinematográficas enquanto “tecnologias de gênero” são concretas à medida que promovem e reforçam discursos que são recebidos, reconhecidos e internalizados na formação de comportamentos e na construção de noções identitárias do público, sendo ainda empregadas como indicadores da própria subjetividade.” (ROSSI, 2017, p. 231) Há que se pontuar que tais imagens são múltiplas e exploram diferentes discursos e práticas de gênero. Não obstante seu potencial de reificação, as alternativas representacionais são diversas e exploram variadas possibilidades estéticas e narrativas para a composição de seus enredos, seus personagens, suas vivências e suas disputas – mesmo quando se trata de recompor o passado. Isto posto, faz-se necessário explorar tanto a composição das mulheres quanto a dos homens nas ficções históricas, sem desprezar suas nuances e relações com outros eixos, como sexualidade, raça e classe, numa perspectiva interseccional. Como observam Shohat e Stam (2006, p. 313), muito embora questões de raça e etnicidade sejam culturalmente onipresentes, as mesmas estão muitas vezes ocultas em termos cinematográficos. Esses fatores, assim como as representações de gênero, classe ou raça, por exemplo, acabam funcionando como elementos que dão a conhecer tanto a experiência de um passado, quanto acabam estruturando uma narrativa que dá sentido – em maior ou menor grau – às experiências de vida na contemporaneidade. Cada interpretação possível, em cada filme, coloca-se como um veículo informativo de gênero – enfoque deste texto – mas não apenas. O caso da colonização brasileira no cinema Embora o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes (1996, p. 7) atribua ao Brasil um interesse limitado pelo seu próprio passado, há uma produção relativamente ampla em torno do tema. O exemplo mais antigo é o filme O descobrimento do Brasil (Humberto Mauro, 1937), que busca traduzir as palavras da carta de Pero Vaz de Caminha em imagens épicas, embaladas pela trilha sonora de Heitor Villa-Lobos, já sinalizando um interesse pelo gênero da ficção histórica. O romance histórico A Muralha (Diná Silveira de Queirós, 1954), por exemplo, recebeu cinco adaptações televisivas, em 1954 (Record), 1958 (TV Tupi), 1961 (TV Cultura), 1968 (TV Excelsior) e 2000 (Rede Globo). Dentre as narrativas fílmicas do cinema ficcional histórico brasileiro, tomemos como recorte as produções que fazem referência ao período da colonização da América Portuguesa (1500-1815), ou seja, as narrativas fílmicas ambientadas no passado colonial, fundamentadas nesse recorte temporal ou que reportem ao mesmo; mais especificamente, ao passado da colonização da América Portuguesa, desde a chegada dos portugueses à América, em 1500, até a elevação do Brasil a reino par de Portugal, em 1815, fim oficial do período colonial – ainda que o período imperial tenha iniciado oficialmente em 1822, com a Proclamação da Independência. Portanto, os filmes históricos selecionados são narrativas históricas referentes tematicamente ao período da colonização da América Portuguesa, entre 1500-1815, contando com personagens documentados ou fictícios. Desse recorte, resultam 22 longas-metragens, produzidos entre 1937 e 2014. Enredos biográficos, como Xica da Silva (Cacá Diegues, 1976) e Aleijadinho: paixão, glória e suplício (Geraldo Santos Pereira, 2003), misturam-se a comédias dramáticas, a exemplo de Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (Carla Camurati, 1995). Narrativas de eventos pontuais como Batalha dos Guararapes (Paulo Thiago,1978) dividem espaço com a adaptação literária Desmundo (Alain Fresnot, 2003), por exemplo. O conjunto de filmes selecionados foi produzido a partir de diferentes intencionalidades e denota variadas perspectivas de narratividade e de enfoque histórico. A narrativa estruturada em cada um dos filmes eleitos, de O descobrimento do Brasil (Humberto Mauro, 1937) até Vermelho Brasil (Sylvain Archambault, 2014) é uma teia formada pelos diferentes significados construídos pelos desenvolvedores, de forma dinâmica e aberta a diferentes tecnologias, conceitos e fenômenos – dentro dos limites da produção e difusão cinematográfica. Isso significa que a prática de construir narrativas históricas (no caso, os filmes históricos) se configura num espaço central da própria experiência de vida humana, uma vez que esta necessidade e este sentido possível de orientação temporal constrói uma espécie de conexão com os diferentes entendimentos do passado e nossas identidades atuais. Desta maneira, ao se pensar historicamente ou produzir uma narrativa histórica, ainda que sob a forma de um filme que não possua a pretensão de desvelar o real, como é o caso das narrativas ficcionais; constrói-se um sentido para a vivência humana no mundo e o entendimento que se extrai dela – efetivamente, uma das principais potencialidades para seu uso no ensino de história. É nessa ótica que é possível explorar os tensionamentos das relações de gênero no cinema ficcional brasileiro, especificamente no que diz respeito às narrativas que têm como horizonte orientador o contexto colonizador português, conforme pontuado. Enxergamos neste suporte narrativo um espaço de produção de sentido histórico, um espaço em que o olhar histórico de uma sociedade pode ser Aprendendo História: GÊNERO Página | 11 Aprendendo História: GÊNERO Página | 12 observado de maneira mais ampla. Trata-se de um espaço de cultura histórica que, para Rüsen, pode ser definido como: “formalmente, a estrutura de uma história; materialmente, a experiência do passado; funcionalmente, a orientação da vida humana prática mediante representações do passar do tempo” (RÜSEN, 2001, p. 160-161). Em particular, observamos que o cinema se destaca como forma artística e comunicacional de grande alcance em termos de público. Voltados ao entretenimento e produzidos para o consumo em massa, os filmes dispõem de linguagens caracterizadas justamente pela capacidade de absorver novos conceitos e reformularem-se continuamente, sendo privilegiados para a elaboração de narrativas históricas. Isso pode ser notado na ampliação, relativamente recente, da produção de ficções históricas não apenas cinematográficas, mas também em séries televisivas, na literatura, nos quadrinhos e nos jogos eletrônicos. Os filmes aqui abordados estão inseridos neste fenômeno, altamente prolífico. Existe uma relação direta entre os espaços de produção do conhecimento histórico e a constituição de uma racionalidade histórica. É ponto pacífico, pela própria fluidez de nossa relação com o tempo e com o “estudo dos homens no tempo”, para usar uma expressão de Marc Bloch (2001, p. 55), que o conhecimento e a racionalidade histórica não têm uma natureza linear e única, mas antes têm como base uma multiplicidade de possibilidades e alternativas. Isso porque, a relação que cada pessoa estabelece com o conhecimento histórico é fundada na proximidade constante de experiências e na compreensão que são as questões do presente que se convertem em referencial para o passado, enquanto um suporte gerador de sentido para as diferentes vivências. O saber histórico é dinâmico e traz consigo múltiplas narrativas e construções. Os filmes históricos nacionais em questão refletem esse caráter diverso e multifacetado, porque também são espaços de conhecimento histórico, não apenas pela temática histórica em seus enredos e narrativas (enquanto ambientação, fundamentação ou reportação), mas pela própria natureza do cinema, conforme já observado. Faz parte da reflexão sobre o conhecimento histórico, sua natureza e o espaço que ocupa em sociedade o espaço de “auto-reflexão, como retorno ao processo cognitivo de um sujeito cognoscente que se reconhece reflexivamente nos objetos de seu conhecimento, é por certo um assunto que pertence ao trabalho quotidiano de qualquer historiador” (RÜSEN, 2001, p. 25). Isto posto, diante das intertextualidades entre conhecimento histórico e cinema, faz-se possível examinar as peculiaridades das estruturas estéticas e diegéticas dos filmes e suas potencialidades e limites em relação à cultura histórica, a fim de discutir o lugar destas narrativas em seu contexto de produção, bem como as possíveis contribuições no que diz respeito à discussão e possível desconstrução das representações de gênero que são apresentadas e que reificam variadas práticas sociais e culturais na contemporaneidade. Ainda que pareça haver uma única representação possível do masculino e do feminino, legitimada pelas relações de poder, o gênero, enquanto categoria analítica, “fornece um meio de decodificar o significado e de compreender as complexas conexões entre várias formas de interação humana” (SCOTT, 1995, p. 89). Todavia, essa significação não deve ser lida como algo inscrito de forma unilateral em um sexo previamente dado, entendido como um simples suporte, conforme pontua Butler (2013, p. 25). Gênero deve designar também, no entender desta autora, o aparato de produção e estabelecimento dos próprios sexos – tão construídos e históricos quanto as relações de gênero e os conceitos de masculinidade e feminilidade. As representações de gênero presentes nos filmes em questão, por exemplo, Como Era Gostoso o Meu Francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971) ou Caramuru, A Invenção do Brasil (Guel Arraes, 2001), decorrem dessa complexa relação de força e de poder, produtora de sentido. Para observar como se fazem presentes tais representações, há que se eleger uma perspectiva interdisciplinar, sem desconsiderar as especificidades dos conhecimentos históricos, da arte, da cultura visual e da produção cinematográfica. O estilo de um filme pode desvelar com razoável nitidez as tendências históricas da visualidade cinematográfica. Um estudo estilístico problematiza as escolhas feitas pelos cineastas em “circunstâncias históricas particulares” (BORDWELL, 1997, p. 4), revelando muito sobre como se configura uma identidade visual dentro de uma conjuntura maior: escolhas da esfera do micro (o filme enquanto obra individual), que repercutem na esfera do macro (tendências históricas do cinema). Dentre os aspectos que compõem essa segunda esfera, está a questão do gênero, no caso, a ficção histórica, responsável por muitas das decisões criativas que caracterizam uma produção. Xica da Silva (Carlos Diegues, 1976) é uma cinebiografia altamente estilizada de Francisca da Silva, mulher nascida entre 1731 e 1735, filha da escrava Maria da Costa (escrava negra) e concubina do contratador de João Fernandes de Oliveira (ANDRÉ, 2007, p. 163). Xica da Silva, na visão de Gordon (2009, p. 2-3), opera pela lógica da alegoria, utilizando a imagem de Xica como figura simbólica do próprio Brasil, pois se envolve em uma relação com um ilustre português, o contratador, valendo-se desta relação para promover sua condição social e obter sua medida de autonomia e poder. Nesse caso, a narrativa cinematográfica trata da ascensão e queda da personagem, utilizando uma estética marcada pela hipérbole, por visualidades extravagantes, uso frequente da musicalidade e humor irreverente. O filme é uma “celebração carnavalesca” e uma produção evidentemente política, embora não no sentido tradicional, principalmente por contrapor à solenidade europeia uma espécie de brasilidade espontânea e autêntica. Aprendendo História: GÊNERO Página | 13 Aprendendo História: GÊNERO Página | 14 Esta brasilidade carnavalesca celebra o humor da protagonista, cujas demandas por extravagância e vingança são justificadas pelo tratamento que recebeu enquanto escrava. Seu riso e sua sexualidade são representados como libertadores, em oposição à hipocrisia de um meio social que há muito vivia a partir do trabalho forçado dos escravos. Ao final do filme, quando o contratador é convocado de volta a Portugal para responder por crimes de corrupção, deixando Xica desamparada e à mercê da intolerância e da hipocrisia do povo da região do Tijuco, a protagonista se mantém altiva e não se mostra disposta a abrir mão do riso e do exercício de sua sexualidade. Por sua vez, Desmundo (Alain Fresnot, 2003) não se trata de uma abordagem carnavalesca, mas de um esforço naturalista. Também não se trata da biografia de um indivíduo histórico e mitificado, mas de uma personagem fictícia e que está situada em um posto de autoridade. Desmundo adapta o romance homônimo de Ana Miranda (1996), e concerne à narrativa de Oribela, uma órfã enviada à América Portuguesa, como muitas outras, a fim de casar-se com um colono. Embora o envio das órfãs se imponha como uma ação caridosa do estado português e da igreja, ou ao menos se justifique dessa forma, a prática só é possível na medida em que as mulheres não são compreendidas como possuidoras da mesma autonomia que os homens. Para Dona Brites, personagem da narrativa, às órfãs lhes cabe ser submissas, e que casar é fácil, conquanto sejam obedientes. Sua função é fiar, tecer, gerar filhos, não abandonando o espaço da casa. Com tais casos, buscamos pontuar que o cinema é tomado nesse texto como um agente social que influencia e é influenciado pela estrutura dinâmica do social, com suas disputas e tensionamentos. Enquanto canal midiático, constrói suas narrativas tendo como horizonte orientador os referentes sociais e culturais do meio no qual se insere. Considerações ou provocações Embora muitas das narrativas fílmicas em questão apresentem personagens femininas relevantes para a história, sua caracterização é frequentemente reduzida ou caricata, quando não apenas sexualizada e objetificada, como se vê em Caramuru, na construção de Paraguaçu e de Moema. Muitas dessas mulheres acabam por meio das lentes cinematográficas se tornando menos complexas, objetificadas, definidas por sua sexualidade e ambição. Dos filmes selecionados apenas um foi dirigido por uma mulher: Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, de Carla Camurati. Segundo o Boletim Raça e gênero no cinema brasileiro (1970-2016), produzido pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o cinema brasileiro está longe de ser um meio artístico-comercial diverso. Segundo os dados oferecidos pelo boletim, 98% dos filmes com mais de 500 mil espectadores produzidos foram dirigidos por homens. Tal proporção é indicativa de quão ínfima ainda é a presença feminina no meio audiovisual brasileiro. Certamente, uma presença tão majoritariamente masculina no campo da produção cinematográfica nacional impacta no modo como as mulheres são apresentadas na tela. Qualquer análise futura sobre o tema das representações de gênero no cinema nacional deve contemplar esta questão. É com este debate que as presentes reflexões esperam contribuir, não somente no espaço acadêmico, mas também no âmbito do ensino de história. Ainda na década de 1970, a feminista Laura Mulvey (1983) constatou a forte presença masculina na produção cinematográfica dominante, que levava à criação de filmes inclinados para a satisfação de um público também masculino. O cenário derivado dessa dinâmica é um cinema falocêntrico, no qual a mulher ocupa principalmente o posto de objeto de desejo, assumindo a função de satisfazer o espectador masculino desinteressado na valorização da mulher. Infelizmente, tal cenário não mudou tanto assim. Rüsen argumenta que “o narrar passou a ser práxis cultural elementar e universal da constituição de sentido expressa pela linguagem” (2001, p. 154). Diante disso, sugere que se investigue como diferentes linguagens se apropriam deste processo de constituição de sentido, que é próprio da história e sua narratividade, promovendo a ampliação dos suportes de cultura histórica. Nesse processo, também são significadas as construções de gênero, que passam a orientar ou estimular, por consequência, novos discursos e práticas no âmbito social. Referências Maristela Carneiro é bolsista PNPD pela UNICENTRO, junto ao Programa de Pós-Graduação em História. Doutora em História pela UFG. BLOCH, M. Apologia da História ou o ofício de historiador. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BORDWELL, David. On the history of film style. Massachusetts: Harvard University Press, 1997. BURKE, P. Testemunha Ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. e subversão da FERRO, M. Analyse de film, analyse de societés. Une source nouvelle pour I’histoire. Paris: Hachette, 1975. FERRO, M. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. GOMES, P. E. S. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, 1996. Aprendendo História: GÊNERO Página | 15 LAURETIS, T. Tecnologia do Gênero. In: HOLLANDA, H. B. (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. Aprendendo História: GÊNERO Página | 16 MATOS, M. I. S. de. Âncora de emoções: corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru: Edusc, 2005. MULVEY, L. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, I. (org.). A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. NAPOLITANO, M. A escrita fílmica da história e a monumentalização do passado: uma análise comparada de Amistad e Danton. In: CAPELATO, M. H.; MORETTIN, E.; NAPOLITANO, M.; SALIBA, E. T. (orgs.). História e cinema: duas dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2011. NICHOLSON, L. Interpretando o gênero. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 8, n.2, p. 9-41, 2000, p. 14. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/11917>. Acesso: 12/09/2016. ROSENSTONE, R. A. A história nos filmes, os filmes na história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. ROSSI, T. “Representações” de gênero em imagens: contribuições metodológicas de uma sociologia do cinema. Repocs. V.14, n.28, jul/dez. 2017. RÜSEN, J. Razão histórica. Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. SCOTT, J. Gênero: uma Categoria Útil de Análise Histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, p.71-99, 1995. Disponível em <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1210/scott_gend er2.pdf>. Acesso: 10/09/2017. SHOHAT, E.; STAM, R. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006. ESTRATÉGIAS TESTAMENTÁRIAS E PODERES FEMININOS NO MARANHÃO SETECENTISTA Marize Helena de Campos Maranhão, primeira metade do século XVIII Muitos são os historiadores que ao escrever sobre o local afirmam que a paisagem de então era caracterizada pela pobreza, onde grande parte dos colonos, concentrados maciçamente na chamada Ilha do Maranhão, nas Vilas de Santo Antônio de Alcântara, Santa Maria do Icatu ou em pequenas povoações localizadas as margens dos rios Itapecuru, Mearim, Pindaré e Munim, dedicavam-se a engenhos, fazendas de gado e a uma agricultura que sequer supria a demanda local. Segundo os estudiosos, a precariedade das atividades econômicas naquele recorte territorial e temporal podia ser observada também na ausência de moedas para intermediar as transações comerciais, que não raras vezes eram estabelecidas por varas de pano, novelos de fio de algodão ou outros produtos da terra. Esse estado de letargia viria a modificar-se com paulatinas e decisivas alterações na política mercantil durante o Governo de D. José I, onde sob a atuação de Sebastião José Carvalho de Melo, Marques de Pombal uma série de expedientes foram postos em prática no sentido de superar a crise econômica. Se, até aquele momento, os olhos da metrópole portuguesa reluziam pelas pepitas de ouro e pedras preciosas extraídas dos solos das Geraese o açúcar continuava a adoçar os paladares e lucros europeus, a partir de 1755, outros produtos entrariam na pauta das exportações coloniais estimulados pela criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, dentre os quais: o algodão, o arroz e o gado. Criada e materializada sob a égide do “absolutismo da razão”, a Companhia fora anunciada como um dos caminhos para solucionar o abandono, atraso e dificuldades econômicas daquela região que, desde o século anterior, assim figurava nas palavras do Padre Antônio Vieira quando se referia aos protestos vindos do Senado da Câmara de São Luís, bem como aos argumentos do motim dos irmãos Beckman. A Companhia operou regularmente por dois decênios, até ser extinta em 25 de fevereiro de 1778. Sob sua ação, estado e grandes comerciantes aliaram-se para desenvolver uma agricultura voltada aos interesses do mercado externo, e os resultados dessa política apareceram rapidamente com o crescimento das exportações de algodão e de arroz. Em 1760, os primeiros sintomas decorrentes da instalação da Companhia já se faziam sentir. Naquele ano registrou-se a exportação de 130 sacas de algodão, num total de 651 arrobas, e em 1767 das primeiras 225 arrobas de arroz. Apesar das oscilações, o algodão, seguiu durante toda a primeira metade do século XIX como o eixo da economia maranhense. Assim, a economia exportadora maranhense, regida por uma demanda externa em Aprendendo História: GÊNERO Página | 17 franca expansão, cresceu consideravelmente ao longo dos últimos decênios do século XVIII e dos dois primeiros do século seguinte. Foi a idade de ouro da lavoura maranhense. Aprendendo História: GÊNERO Página | 18 Riqueza e pobreza no Maranhão parecem ter caminhado lado a lado desde o início do processo colonial, mas a bradada pobreza em tempos anteriores à criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão não parece ter sido a realidade de muitos jesuítas que ali viveram. O mesmo se deu após 1755, pois se verificamos testamentos de mulheres que pouco tinham, além de um catre e umas poucas roupas, também houve as que apresentaram uma impressionante relação de bens. Não houve, portanto, um contexto homogêneo e coagulado num antes infortúnio e um subsequente áureo. É nesse cenário que se desenrolam algumas das histórias de mulheres que agora rompem o cerco de uma historiografia que por tanto tempo as manteve invisibilizadas. Senhoras de posses, de estratégias, de vontades, aguerridas, destemidas, batalhadoras, que longe de passar os dias em sonolentas redes, ao grosso e morno ar do Maranhão, estavam cuidando de suas lavouras, garantindo a posse de suas terras, contabilizando suas cabeças de gado, enfim... atuando na dinâmica econômica e social em que estavam inseridas. Regências Matriarcais no Maranhão setecentista Em nosso estudo das últimas vontades das testantes no Maranhão ficou claro que a decisão sobre o destino do patrimônio foi o privilegiamento de outras mulheres, contrariando declaradamente o sistema de sucessão igualitário. A explicação dessa atitude pode residir em uma estratégica rede de proteção e solidariedade que extrapolava os laços familiares, uma vez que nem todas tinham herdeiros forçados e podiam dispor livremente de seu patrimônio. Observou-se que grande parte das legatárias eram filhas, sobrinhas, netas ou afilhadas, e os legados preferencialmente escravos, joias, casas, ou parte delas, utensílios domésticos, roupas pessoais e de cama, louças e dinheiro. Nesse sentido, os arquétipos femininos franzinos, entregues à reclusão e ao silêncio, metidas em quartos, cobertas pela vergonha de estranhos ou em histéricos gritos de vontades mostram-se destoantes dos perfis emergidos naqueles documentos. De acordo com a legislação portuguesa, consolidada nas Ordenações Filipinas de 1603, a mulher poderia assumir o papel de cabeça do casal caso o marido falecesse, e todos deveriam estar sujeitos ao seu poder. No caso de pessoas solteiras ou viúvas, o patrimônio arrolado, após descontadas as dívidas, seria dividido em três partes iguais, sendo duas destinadas aos herdeiros e uma à terça, que corresponderia à fração que o indivíduo poderia ter destinado livremente em testamento. Isso as fazia “donas” suas vontades e determinações, donas de bens, mas acima de tudo, donas de estratégias legatárias pois, como já foi assinalado, no estudo do qual derivam estas páginas, ficou claro que ao escolher mulheres da família ou do círculo afectivo para o legado dos bens principais atestavam seus poderes decisórios. Os testamentos nos permitiram também, vislumbrar cenas, modos de vida, comportamentos e preocupações de mulheres que explodiam uma energia social, e não simplesmente doméstica, maior que a do comum dos homens. Energia para administrar fazendas (...); energia para dirigir a política partidária da família (...); energia guerreira, como aponta Freyre em Sobrados e Mocambos. Nesse sentido, os arquétipos femininos franzinos, entregues à reclusão e ao silêncio, metidas em quartos, cobertas pela vergonha de estranhos ou em histéricos gritos de vontades mostram-se destoantes dos perfis emergidos naqueles documentos. É o caso de Maria Isabel Freire, natural de São Luís do Maranhão, filha legítima de Joaquim da Serra Freire e de dona Maria Magdalena Belfort, jáfalecidos. Casada por carta de ametade com o Tenente Coronel João Paulo Carneiro Lourenço, nunca teve filhos, motivo pelo qual não tinha herdeiro necessário dispondo da ametade dos bens do casal a seu livre-arbítrio. Ao fazer seu testamento, declarou encontrar-se em perfeito juízo e entendimento. No mesmo documento elencou os seguintes bens e herdeiros: Seiscentos mil réis para a sobrinha Joanna, filha de sua irmã Luiza; Seiscentos mil réis para a sobrinha e afilhada Maria Raimunda, filha da dita irmã Luiza; Cem mil réis para o sobrinho Joaquim, também filho da dita irmã; Quatrocentos centos mil réis para seu sobrinho Joze Lima Nunes Berlfort, filho do Capitão Thomas; Legoa e meia de terra que tem no Rio Preto para todos os filhos e filhas da sua irmã Luiza; Seiscentos mil réis para sua sobrinha e afilhada Maria Magdalena, filha de sua falecida irmã Izabel; Duzentos mil réis para cada sobrinha, filha de sua irmã Izabel, a saber: Luiza, Francisca, Izabel, Jozefa e Izidora; Humcento e duzento mil réis para sua sobrinha Cândida, filha de sua falecida irmã Joanna; Trezentos mil réis, para Amélia, filha da dita irmã Joanna; Quatrocentos mil réis para seu sobrinho Raimundo, filho da dita irmã Joanna; Trezentos mil réis para seu sobrinho Cezar, filho da dita irmã Joanna; Oitocentos mil réis para seu sobrinho Joze Joaquim Henrique, também filho da dita irmã Izabel; Seis escravos, tres machos e tres femias para sua sobrinha Maria Magdalena da Serra Freire e a seu marido Raimundo Nunes; Hum escravo ou escrava para sua irmã Ignácia; Um tabuleiro de chá de prata, uma bacia e uma jarra de prata para seu sobrinho Sebastião Gomes, filho de sua irmã Ignácia; Um bule, uma cafeteira, uma leiteira e um açucareiro de prata para sua sobrinha Olímpia, filha de sua falecida irmã Francisca; Cinqüenta braços de terras de frente com uma légua de fundo em paraje da nomeada Santa Anna no Rio Itapecurú para a sua irmã Lourença; Cinqüenta mil réis para o filho de sua prima Maria Magdalena; Cento e cinqüenta mil réis para sua afilhada Julianna, filha de seu primo João Carlos da Serra; Cento e cinqüenta mil réis para a afilhada Raimunda, filha de sua prima (sic!); Cem mil réis para Marcio, filho de seu primo Francisco da Serra; Seiscentos mil réis para a afilhada Maria Izabel,filha de sua sobrinha e afilhada Donna Maria Joaquina Henriques; Cinqüenta mil réis para a Capela de Nossa Aprendendo História: GÊNERO Página | 19 Senhora do Desterro; Cinqüenta mil réis para a Igreja de Nossa Senhora da Conceição; Cinqüenta mil réis para (sic!) de Santo Antonio; Duzentos mil réis para (sic!); Cem mil réis para ser repartido entre os pobres. Declarou mais que deixava libertas as escravas Andreza e a mulata Antonia Pernambucana. Aprendendo História: GÊNERO Página | 20 Outra mulher da família Belfort a demonstrar, pelo seu testamento, ter passado ao largo da letargia apregoada durante tantos anos pela historiografia é Francisca Maria Berfort, viúva de Leonel Fernandes Vieira, do qual teve os filhos Joze Joaquim Vieira Belfort, Joaquim Antonio Vieira Belfort, Dona Maria Joaquina Vieira Belfort e Dona Rita Joaquina Vieira Belfort, todos nomeados seus legítimos herdeiros. Quando fez seu testamento, declarou estar doente de cama, porém em seu perfeito juízo e entendimento. No documento, ditado um dia antes de sua morte, fez o seguinte elenco de suas posses e legatários: A casa e o sítio da fazenda na ribeira do Itapecurú para o seu filho Joze Joaquim Vieira Belfort; Dois contos de réis para a sua neta Maria Rita Belfort, filha do dito seu filho Joze Joaquim; Oito contos de réis, vallor das cazas em que morava na Rua das Mercês, para a sua filha Dona Maria Joaquina Vieira Belfort; Os aluguéis, que a sua filha Maria Joaquina lhe devia, deveriam ser repartidos em duas partes iguais; uma para a neta Dona Carlota Joaquina Bandeira e a outra para a neta Dona Líbia Bandeira; Seis contos de réis para as netas filhas de sua filha Dona Rita Joaquina Vieira Belfort, a saber: dous contos de reis para Roza Antonia Joaquina Leal, dous contos de reis para Dona Anna Leal e dous contos de reis para Dona Maria Leal; Dois contos de réis para seu neto Augusto César Bandeira e hum negro que já o havia prometido e ratificava; Um par de brincos de brilhantes para sua neta Roza Maria Joaquina Bandeira Belfort,casada com o Doutor Bandeira; Um anel de brilhantes de seu uso para sua neta Dona Carlota; Uma medalha e um anel de brilhantes do seu uso para sua filha Dona Rita Joaquina Belfort; Duzentos mil réis para o Recolhimento desta cidade; Quatrocentos mil réis para sua sobrinha e afilhada Dona Arcelindaque se achava no dito Recolhimento; Cem mil réis para as despesas da Igreja dos padres do Convento de Santo Antônio; Cinqüenta mil réis, para Nossa Senhora do Monte do Carmo; Cinqüenta mil réis de esmolla para Nossa Senhora das Mercês; Cem mil réis para o seu testamenteiro; Duzentos mil réis para o seu afilhado Leonel Filho de Joaquim Freire; Suas roupas para as filhas Dona Maria Joaquina Belfort Bandeira, e Dona Rita Joaquina Vieira Belfort; Huma molata por nome Camilla e huma preta por nome Justina, a dita minha neta, a quem tenho dado (sic!); Huma preta crioulla por nome Ignacia, a sua neta Dona Carlota Bandeira; Huma crioulla também preta por nome Maria dos Reys, a sua neta Dona Líbia; Seis varas de pano grosso de roupa a cada hum de todos os seus escravos e escravas, sem excepçao. Declarou mais que seu filho, o Doutor Joaquim Antonio Vieira Belfort, seu genro, o Doutor João Francisco Leal e Manoel Antonio Leitão Bandeira, eram seus devedores e elles bem sabem o que devem, os quaes justarao contas com o meu testamenteiro, para serem inteirados do saldo liquido das legitimas. Também pediu que voltasse a escrava emprestada para o dito Manoel Antonio Leitão Bandeira, a fim de que fosse incorporada ao monte do casal. Por fim, Roza Francisca determinou que fossem libertos sua escrava Vitória do Rozario e o escravo Mathias de sua fazenda no Itapecuru, pelos bons serviços que lhe haviam feito. O testamento da Preta Anna Maria também apresenta a história de uma mulher que, ao morrer, havia acumulado significativos bens e dinheiro, todavia essa mulher era uma ex-escrava que em seu perfeito juízo e entendimento, mas, temendo a incerteza da morte a que estam sujeitos todos os viventes, fez “ordenar” seu testamento. Natural da Costa da Mina e batizada como verdadeira cristã, Anna Maria foi escrava do Reverendo Frei Florêncio Jozé de Brito, mercenário. Declarou, no documento, haver conseguido sua liberdade por cinqüenta mil réis (com licencaz de seus Prellados maiorez) e que vinha gozando “pacificamente” de tal liberdade desde três de julho de 1778. Também esclareceu não ter erdeiro algum azcendentes ou dezcendentes para seus limitados beinz, que eram: Huma escrava chamada Felícia, com huma cria de peito chamada Urbano (os quais já havia vendido ao seu primeiro testamenteiro, o senhor Jozé da Rocha Luiz, por presso certo de duzentos mil réis).Três varas de cordão de ouro divididas em três partes iguais, uma volta de contaz de pezcosso com suas chapinhas, um lasso de ouro, três pares de brincos, Huma cruz de ouro, dous pentinhos cobertos de ouro, hum par de botões do peito da camiza de ouro, huma Senhora da Conceiçam de ouro, hum Rozarinho misturado com contas de ouro e sua cruzinha de ouro, dous pares de botões de ouro de punhos, hum taxinho de cobre, huma bacia de arame, hum anel de pedra amarella e outro de ouro, os quais deixou à preta Roza, pela boa companhia e servisso, douz pares de botoenz de ouro dos punhos mais pequenos, os quais deixou ao rapazinho Peregrino, seu ex – escravo, a quem havia concedido alforria. Os mais móveis que se achassem em sua casa, deveriam, por sua vontade, ser divididos entre o testamenteiro (que aceitasse seu testamento) e a dita preta Roza. Declarou como seus devedores José Gonçalves, natural do Reino e morador em Cabello de Velha, da quantia de cinqüenta mil réis; Antonio Jozé, pardo, morador em Oeiras, trinta e oito mil e quatrocentos réis; Hum pretinho chamado Domingos das Chagas, duas pessas de seis mil e quatrocentos réis; Joam da Cruz, a quem havia emprestado trinta e dois mil réis para um negócio. Anna Maria determinou que seu testamenteiro fizesse as “diligências” necessárias para cobrar as tais dívidas, a fim de que suas últimas vontades fossem satisfeitas, dentre as quais que dissessem por sua alma cinco capellas de missas, mais huma a seu anjo de guarda, por sua tenção e outra para a santa de seu nome, pelas almas do Purgatório, outra pelas pessoas com quem tinha contratos ou fosse responsável. Por fim, nomeou por universal erdeiro do restante de seus bens seu primeiro testamenteiro, o Reverendo Jozé da Rocha Luz, pelos muitos obzequios e favores que lhe era tributária. A reflexão sobre estas questões nos parece importante, não só pela necessidade de um entendimento mais aprofundado sobre quem estamos tratando, mas também para uma melhor compreensão sobre seus comportamentos e condutas no período proposto neste trabalho. Aprendendo História: GÊNERO Página | 21 Aprendendo História: GÊNERO Página | 22 Conclusões Durante toda a História as mulheres sempre estiveram presentes em diversas atividades, fossem elas domésticas ou públicas. No universo doméstico sempre estiveram na gerência do plantio e feitura de alimentos, costura das roupas, criação dos animais, enfim, de todos os detalhes estruturais para o funcionamento da casa e o atendimento das necessidades das pessoas que ali viviam, que muitas vezes não eram poucas. Tudo isso era um exaustivo (e invisibilizado) trabalho. No caso do Maranhão colonial não foi diferente e embora as mulheres estivessem lidando em suas casas, hortas, plantações e criações, a historiografia pouco tratou de suas trajetórias. Nos conteúdos documentais percebemos que, longe de estarem ociosas, estavam na dinâmica de trabalhos em diversos setores. Os dados ali contidos mostram que eram sim senhoras de suas vontades, pois nos testamentos a grande maioria delas deixou para outras mulheres a grande parte dos bens que possuíam. Além disso, as disposições determinadas por aquelas mulheres apontam um detalhado repertório de objetos, que como já foi dito, foram deixados em grande parte a outras mulheres propiciando um empoderamento econômico de filhas, netas, sobrinhas e afilhadas. Tencionou-se sobretudo mostrar como no Maranhão colonial as mulheres atuaram, tomaram decisões, participaram do povoamento, chefiaram famílias e gerenciaram bens próprios. Foram muitas histórias onde o poder, mínimo que fosse, traduziu-se em patrimônio e ou determinações, fazendo entrecruzar a História Econômica e a História das Mulheres. Assim, o artigo que ora se conclui visa contribuir não apenas com o aprofundamento das reflexões acerca da História do Maranhão, mas sim para o entendimento mais amplo da sociedade colonial americana. Referências Marize Helena de Campos é Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500 – 1800. 1907. BACELLAR. Carlos de Almeida Prado. Família, herança e poder em São Paulo: 1765-1855. Estudos CEDHAL n. 7. São Paulo: FFLCH/USP, 1991. FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial.RJ: Ed. Nova Fronteira, 1998. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 9ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1961. FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. SP: Global, 2004. GAYOSO, Raymundo Jozé de Souza. Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do Maranhão: suas producçoens e progressos que tem tido até ao presente. RJ: Editora Livros do Mundo Inteiro. Reedição Facsimilar sob patrocínio da SUDEMA, 1970. HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. A Época Colonial. Tomo I, 2° volume: Administração, Economia, Sociedade. 4ª edição. RJ/SP: Difel, 1977. MEIRELES, Mário Martins. História do Maranhão. 3 ª edição. SP: Siciliano. 2001. PERROT, Michelle. Minha História das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. SP: Brasiliense, 20ª edição, 1987. SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII. Bauru, SP: EDUSC, 2003. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Donas e Plebéias na Sociedade Colonial. Coleção Histórias de Portugal. Lisboa. Editorial Estampa. 2002. SOBRAL, Maria da Luz Lopes.Colonização e Desenvolvimento da Amazônia na 2ª metade do século XVIII. A intervenção da Companhia Geral do GrãoPará e Maranhão (1755-1778). ZANATTA, Aline Antunes. Justiça e representações femininas: O divórcio entre a elite paulista (1765-1822). Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2003. Aprendendo História: GÊNERO Página | 23 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO GÊNERO E DAS SEXUALIDADES ENTRE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO DA BAIXADA CUIABANA. ALGUMAS REGULARIDADES Moisés Lopes Aprendendo História: GÊNERO Página | 24 Introduzindo o tema A despeito do crescente fortalecimento dos movimentos sociais que lutam pela igualdade de gênero e pelo respeito às distintas sexualidades, infelizmente ainda hoje persistem no Brasil convenções, representações e imagens sociais que estão fundadas na exclusão, na hierarquia, na “patologização” de diferentes identidades, na expressão do preconceito, das discriminações sociais e violências contra estes sujeitos. A violência de gênero e a violência LGBTfóbica são as expressões mais destacadas e evidentes deste fenômeno, mas estão longe de serem as únicas, outras formas mais insidiosas e menos visíveis comprometem de forma significativa a qualidade de vida das mulheres e da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (os LGBTs). Entre estas outras formas mais insidiosas de expressão do preconceito e discriminação sociais a que estes grupos estão sujeitos podemos citar especialmente o acesso desigual à educação, ao trabalho e a saúde, só para citar alguns exemplos da infinidade de comportamentos produzidos e reproduzidos em todos os espaços da vida social e que contribuem para o quadro de profunda desigualdade social que ainda persiste no país. Como já discuti em trabalhos anteriores (Lopes, 2005, 2006; Lopes e Jeolás, 2008), estes fatos não se constituem em fenômenos de fácil análise e diagnóstico pel@s pesquisador@s visto que estão ancorados em um conjunto distinto de convenções, representações e imagens sociais construídos historicamente em nossa sociedade – não apenas nela diga-se de passagem – que associam a heterossexualidade como a única expressão “natural” da sexualidade e as demais sexualidades como manifestações do “pecado”, da “perversão”, da “doença”, da “anormalidade” e, por conta disso, fenômenos “problemáticos” que colocariam em xeque seus pilares fundamentais e que deveriam passar por processos de “recuperação”, de “correção”, ou de “cura”. Particularmente, acredito que a mudança dessa realidade não se dará apenas com a formulação de leis antidiscriminatórias – apesar destas representarem uma grande e importante transformação social na realidade brasileira contemporânea – mas, igualmente, é fundamental a produção de conhecimento consistente baseado em pesquisas muito bem desenhadas e conduzidas que possam nos levar a compreender a forma como estes discursos dão respaldo a discriminação, ao preconceito e a violências baseadas no gênero e nas diferentes sexualidades, bem como a forma na qual estes se expressam cotidianamente. A meu ver, esta é uma das principais funções sociais da universidade – além de formar quadros profissionais competentes para atuar em um mundo competitivo – qual seja, compreender a realidade cotidiana na qual estamos inseridos e dar ferramentas para que as iniquidades, sejam elas quais forem possam ser superadas “produzindo” simultaneamente cidadãos críticos e preocupados com as desigualdades que assolam nossa realidade. Para alcançarmos essa função social, temos ao nosso alcance a possibilidade de lançarmos mão de uma série de ferramentas, a principal delas é o estímulo ao desenvolvimento do espírito crítico especialmente entre noss@s alun@s, mas não exclusivamente entre el@s. Este espírito crítico têm de estar fortemente assentado na transformação das mentalidades, valores e práticas sociais que dão suporte a desigualdades e ao desrespeito pelos direitos de pessoas e grupos considerados “estranhos”, “diferentes”, “diversos” do que o senso-comum considera como a “normalidade social” vigente. E, neste ponto, vejo a educação – não importa a que grau estejamos nos referindo, se formal ou informal, se de ensino fundamental, médio ou superior – como instrumento essencial de mudança social e de luta contra as desigualdades sociais. No que tange especificamente a nossa sociedade, ainda hoje permanece como um grande desafio construir na educação uma abordagem das desigualdades sociais que prime pela sensibilização das diferentes pessoas acerca da realidade social a que diferentes grupos estão sujeitos cotidianamente e, não apenas, pelo diagnóstico destas situações, e aqui cabe um parêntesis. Não me refiro exclusivamente às desigualdades que envolvem questões como as calcadas nas sexualidades e no gênero, meu objeto de investigação, mas, também, às desigualdades raciais, de classe, de etnia, religiosas, entre muitas outras. A Antropologia, entre outras humanidades, tem muito a acrescentar nesta discussão visto ser uma ciência que surgiu tendo como objeto de estudo específico a questão da alteridade e a compreensão das distintas lógicas que organizam e dão sentido às diferentes visões de mundo. No entanto, seguidamente, seus conhecimentos historicamente produzidos têm sido objeto de desvalorização e depreciação muitas vezes sendo alçados a categoria de saberes militantes ou comprometidos com a visão de mundo do subjugados. Por esta premissa, joga-se fora literalmente a criança junto com a água de banho, pois tal como nos mostram Judith Butler (1998), Donna Haraway (1995) e Sandra Harding (1996), entre outras autoras, no debate acerca da construção de uma epistemologia feminista é problemático acreditar que a Ciência seja absolutamente neutra, imparcial e baseada em uma noção de razão tomada como instrumento de percepção privilegiada da realidade. Esta concepção iluminista de Ciência Moderna, fundada na visão de que a racionalidade é capaz de oferecer fundamentos concretos, objetivos e imparciais para se construir um conhecimento “seguro” e “correto” da realidade “verdadeira” trata-se apenas de um “discurso de poder” construído para dar suporte ao discurso da ciência. Ao contrário disto, temos de pensar, tal como defende Haraway (1995), que todos os conhecimentos produzidos são “situados” (social, cultural e historicamente) e, deste modo, é inevitável que sejam parciais. Isto não implica que tenhamos de abandonar toda e qualquer possibilidade de construção do Aprendendo História: GÊNERO Página | 25 conhecimento, apenas temos de ter consciência que estes nunca são neutros e imparciais. Aprendendo História: GÊNERO Página | 26 De modo contrário, também não podemos cair na tentação do relativismo ingênuo ou inocente descartando os conhecimentos produzidos historicamente pelas ciências, visto serem eles “implicados” tais como os outros saberes. Na visão de Haraway (idem, p. 26), analisar a partir do ângulo dos subjugados não implica a busca por uma “posição de identidade com o objeto, mas de objetividade, isto é, de conexão parcial”, visto que os posicionamentos dos subjugados não estão isentos de uma reavaliação crítica, de desconstrução e de interpretação. Por esta perspectiva, a construção de conhecimentos e saberes acerca da realidade não pode, nem deve ser tomada como instrumento “neutro” e “imparcial” de apreensão de uma “realidade natural”, mas como um saber contextual, histórica e culturalmente implicado. E, a Antropologia, como uma abordagem preocupada com a construção de um saber baseado na compreensão e na tradução intercultural das distintas lógicas assume um papel essencial. Partindo desta perspectiva, construo minha análise acerca da “maneira pela qual” o gênero e as sexualidades vêm sendo tratadas como temáticas na formação dos profissionais de educação na baixada cuiabana, para isso partirei de experiências concretas de pesquisa e extensão já finalizadas. Três experiências concretas A primeira destas experiências foi o projeto de extensão intitulado “Sexualidade na Escola: atividades educativas com adolescentes” desenvolvido e coordenado pela Professora Neuza Cristina Gomes da Costa do Departamento de Saúde Coletiva (UFMT) e com minha participação no ano de 2012 em uma escola do ensino fundamental de Cuiabá, Mato Grosso. Esse projeto, que teve como público-alvo adolescentes entre 11 a 14 anos de idade que cursavam a sétima série do ensino fundamental, objetivava analisar as representações sociais destes adolescentes acerca das sexualidades por meio de diversas atividades e debates sobre a temática. Nesse contexto de atividades estabelecemos contato com diretores, coordenadores pedagógicos e docentes que nos traziam uma série de imagens e representações das sexualidades como questões problemáticas de serem trabalhadas na escola. A segunda experiência é resultante do “I Ciclo de Oficinas de Capacitação do Gesex”, evento inserido nas atividades do projeto de extensão intitulado “Hierarquias, preconceitos e diversidades. A construção sociocultural do gênero” que teve como finalidade ampliar e fortalecer o diálogo entre comunidade acadêmica e sociedade – representada aqui por profissionais da educação, representantes e ativistas de movimentos sociais e estudantes universitári@s – no que tange à discussão da construção das hierarquias, dos preconceitos e discriminações que envolvem a temática de Gênero e Sexualidade, com o fim de se pensar em práticas educativas que primem pelo respeito às diferenças na sociedade contemporânea. As atividades do I Ciclo de Capacitação foram finalizadas em 2013 sendo desenvolvidas pelos integrantes do grupo de pesquisas (integravam na época o GESEX @s professor@s Flávio Luiz Tarnovski e Moisés Lopes, Ana Maria Marques, Neuza Cristina Gomes da Costa, Silvana Maria Bitencourt e Sônia Regina Lourenço pesquisador@s permanentes) e por mim, coordenador da atividade com o apoio da UFMT/PROCEV/CODEX e do Departamento de Antropologia/UFMT. A terceira experiência foi o projeto de pesquisa coordenado por mim e intitulado “As imagens e representações sociais acerca do gênero e das sexualidades entre docentes do Ensino Médio de Cuiabá – MT” que teve como objetivo analisar as representações sociais e o imaginário acerca do gênero e das sexualidades “veiculadas” pel@s professor@s das disciplinas de Sociologia, Biologia, Ciências e Ensino Religioso de Escolas Públicas estaduais do ensino médio da cidade de Cuiabá com o fim de compreender como os mecanismos de construção da diversidade podem engendrar diferenças, hierarquias e preconceitos. Tratava-se de um projeto de pesquisa que foi desenvolvido com atividades de investigação e um financiamento do CNPq via CHAMADA UNIVERSAL – MCTI/CNPq Nº 14/2013. Estas três experiências concretas de investigação e extensão nos colocou em contato com o cotidiano docente e de outros profissionais da educação que nos trouxeram um sem-número de representações e imagens acerca das questões de gênero e sexualidades, bem como a maneira pela qual estas são “tratadas” ou invisibilizadas no dia-a-dia das instituições de ensino em Cuiabá e que relatarei abaixo. Alguns pontos de convergência Antes de desenvolver tal análise é importante destacar que tais convergências foram expressas nas falas e conversas resultantes das atividades desenvolvidas por estes projetos, neste sentido, não tenho a intenção de identificar os sujeitos que emitiram tais falas ou em qual destas atividades estas foram expressas, visto que o objetivo é trabalhar com regularidades e não com especificidades. Deste modo, trata-se aqui de uma análise destas falas e conversas com o fim de problematizar algumas questões. A principal recorrência expressa nas falas d@s profissionais da educação é a profunda necessidade de se discutir a temática do gênero e das sexualidades em espaço escolar. Tod@s acreditam e defendem que a escola tem um papel extremamente importante a ser cumprido no debate acerca destas temáticas trazendo informações e dados “acertados” que possam resultar no “esclarecimento” e na “educação” das futuras gerações. Assim, defendem que a temática seja “tratada” pelas diferentes disciplinas em espaço escolar tal como preconizado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) desde 1998. Segundo os PCNs, o tema da orientação sexual constitui-se em questão transversal a ser abordada pelas diversas áreas do conhecimento que deve impregnar toda a área educativa desde o ensino fundamental – mas, especialmente, a partir da quinta série – ocorrendo seja dentro da programação das disciplinas ou, ainda, como Aprendendo História: GÊNERO Página | 27 atividades extraprogramação quando surgirem demandas relacionadas ao tema. Aprendendo História: GÊNERO Página | 28 A grande maioria d@s professor@s com os quais tivemos contato no decorrer destas atividades ressaltam o surgimento de inúmeras demandas ou “eventos problemáticos” ocorridos nas escolas que envolviam questões de gênero ou sexualidades que requereram sua atenção ou intervenção. Uma das situações relatadas resultou na expulsão de dois alunos que durante uma atividade extra-programada na escola foram pegos em uma sala de aula vazia mantendo relações sexuais. Fato similar ocorreu em outra escola com duas meninas surpreendidas em um ato sexual em um dos banheiros da escola. Um outro fato relatado pel@s professor@s dizia respeito a “proibição” por parte d@s alun@s de uso dos banheiros masculinos e femininos por parte de sujeitos homossexuais assumidos. Estes tiveram de passar a usar o banheiro d@s professor@s até que se encontrasse uma solução, fato que até o momento do relato não havia ocorrido. Foi relatado ainda, outro “evento problemático” ocorrido em uma das salas de aula, reiteradas conversas por um telefone que nunca tocava de um aluno com seu “suposto” namorado durante as aulas que geravam distúrbios, provocações, xingamentos e o rótulo de “aluno problema”. Sempre após estes relatos, havia o questionamento por parte d@s professor@s sobre a partir de que momento tais alun@s estariam pront@s para manter relações sexuais? Proibir expressões de carinho e de afetividade entre alun@s? E, como lidar com a homossexualidade e a travestilidade na escola? Como corrigir estes “problemas”? Como agir diante de casos tais como estes? Relatar aos pais? Expulsar? Obrigar o uso de roupas, maquiagens e acessórios condizentes com seu “sexo biológico”? Proibir o uso de elementos não condizentes com seu corpo? Todas estas questões são válidas e demonstram o cenário atual no qual a “sexualização dos corpos” vem avançando para idades cada vez mais jovens, momento no qual a expressão de uma identidade sexual ou performance de gênero não condizente com a heterossexualidade adentrou o espaço da escola. Muitas vezes perplex@s, @s professor@s se deparam com estes eventos e apesar de perceberem a necessidade de adotar uma maior abertura para o tratamento das questões relativas à sexualidade e ao gênero na escola as transformam em “situações-problemas”, estigmatizando alun@s, identidades e, com isso, reproduzindo um discurso hierárquico que pode dar origem a preconceitos, discriminações e violências (simbólicas ou concretas) no espaço escolar e fora dele. É claro que a escola e @s professor@s não são seres etéreos que pairam acima da sociedade, pelo contrário, são pessoas e instituições que inseridas na sociedade e na cultura acabam por reproduzir os discursos socialmente hegemônicos. Nesse sentido, é extremamente necessário que as questões de gênero e sexualidades sejam discutidas e apresentadas no espaço escolar, mas para isso é necessário uma formação prévia d@s profissionais da educação, fato que tal como constatado em diversas conversas informais estabelecidas durante a realização das atividades de pesquisa e extensão supracitadas não ocorreram. Mais, que isso, tal como apontam Lopes e Oliveira (2014), no que tange a formação d@s profissionais de pedagogia verificou-se por meio da análise das grades curriculares das graduações dos cursos de Pedagogia existentes na cidade de Cuiabá (UNIVAG, UNIC, UNIRONDON, ICEE e UFMT), excetuando-se a UFMT que possuía a disciplina optativa “Educação e Sexualidade” que não é ministrada desde 2004, nenhuma das outras instituições possuía uma disciplina específica voltada para a discussão de gênero e sexualidade. E, ainda, por meio de entrevistas pessoalmente ou por telefone @s coordenador@s destes cursos relataram a efetiva inexistência de disciplinas atinentes às temáticas de gênero e sexualidades que, quando muito, tornam-se assuntos tratados superficialmente por disciplinas relacionadas, como por exemplo a disciplina de “Psicologia e Educação”. Tal fenômeno já havia sido constatado anteriormente em pesquisa desenvolvida por Carvalho (1996) que 16 anos antes relatou o simultâneo despreparo e interesse d@s professor@s pelas temáticas. Para além da escassa preparação dos profissionais da educação para lidarem com as temáticas do gênero e das sexualidades, outra questão importante verificada durante a realização destes projetos foi a constante referência a discursos, imagens e representações respaldadas em uma perspectiva biologizante acerca do gênero e das sexualidades com a função de apresentar a discussão de maneira “objetiva”, “naturalizada” e “distanciada” na tentativa de resguardar @ profissional da educação frente a comunidade escolar e suas ansiedades. Nesse sentido, de acordo com Louro (1998, 41), “[...] a sexualidade que é geralmente apresentada na escola está em estreita articulação com a família e a reprodução. O casamento constitui a moldura social adequada para seu ‘pleno exercício’ e os filhos, a consequência ou a benção desse ato. Dentro desse quadro, as práticas sexuais não reprodutivas ou não são consideradas, deixando de ser observadas, ou são cercadas de receios e medos. A associação da sexualidade ao prazer e ao desejo é deslocada em favor da prevenção dos perigos e das doenças. Nesse contexto que centraliza a reprodução, os/as homossexuais ficam fora da discussão [...] A homossexualidade é virtualmente negada, mas é, ao mesmo tempo, profundamente vigiada.” Além disso, tal perspectiva “naturalizante” do gênero e das sexualidades está calcada na visão de uma heterossexualidade compulsória (Rich, 2010) que se constitui em uma exigência (cultural e social) de que todos os sujeitos sejam heterossexuais sendo que qualquer outra forma de vivência da sexualidade é tomada como desvio, anormalidade ou pecado. Institui-se, desse modo, a heterossexualidade como padrão, norma, princípio universal que não deve ser questionado quanto as causas enquanto as demais sexualidades podem e devem ser questionadas quanto a seu fundamento e origem. É o que se constata em diversas falas de profissionais da educação que constroem, muitas vezes sem se dar conta, as manifestações das Aprendendo História: GÊNERO Página | 29 sexualidades não-heterossexuais como “situações-problemas” que devem ser “corrigidas”, “punidas” ou “invisibilizadas”, por não terem lugar no espaço escolar. Algumas considerações finais Aprendendo História: GÊNERO Página | 30 “Foi, sem dúvida, Carmen da Silva quem melhor sintetizou a história da Educação Sexual no país: ‘pela enésima vez o Brasil redescobre a educação sexual’ (Revista Cláudia, outubro de 1978). E assim foi, e assim está sendo, pois afora algumas experiências piloto, perfeitamente circunscritas no tempo e no espaço, os educadores brasileiros ainda não ultrapassaram o debate se a escola deve ou não incluir a educação sexual em seu currículo. E mais: debates e experiências têm se circunscrito quase que exclusivamente à escola de 1º e 2º graus, deixando de considerar carências e demandas universitárias. É claro que a discussão através dos anos foi envolta por um discurso mais ou menos sofisticado, mais ou menos “progressista”, usando argumentos variados, de acordo com o momento político” (Rosemberg, 1985: 12). Novamente o Brasil vem redescobrindo, e agora proibindo, o tema da educação sexual, trata-se de um processo de redescoberta que nunca foi “efetivado totalmente” e que atingiu sua expressão máxima nos PCNs de 1998 sendo alçado a categoria de “questão transversal” que deve impregnar toda a área educativa desde o ensino fundamental. No entanto, apesar da transversalidade da temática trata-se de uma questão que vem sendo relegada de uma maneira geral as disciplinas de biologia, ciências e educação física com o foco nas questões do funcionamento do corpo, na prevenção da gravidez e das doenças sexualmente transmissíveis o que relega a temática a uma abordagem médica, “[...] pautada na díade saúde-doença (com ênfase na ação terapêutica para tratamento de ‘desajustes sexuais’, ansiedades ou angústias relativas à sexualidade); valoriza o fornecimento de informações em contexto de relação terapêutica ou de programas preventivos de saúde pública, para assegurar a saúde sexual do indivíduo e da coletividade” (Figueiró, 1996: 52). Ou ainda, em uma abordagem pedagógica, “[...] o processo ensino/aprendizagem é a característica fundamental. É dada ênfase ao aspecto informativo, no qual pode-se incluir também o aspecto formativo (discussão de valores, atitude e sentimentos)”. (idem) Ambas abordagens vistas como meio de “levar o indivíduo a viver bem sua sexualidade”, mas desconsidera-se a abordagem política que “[...] embora considere a relevância da vivência pessoal (saudável) da sua sexualidade, sua característica essencial consiste em perceber na Educação Sexual um compromisso com a transformação social, conduzindo as discussões para as questões que envolvem relações de poder, aceitação das diferenças e respeito pelas minorias. Há também uma preocupação em resgatar o erotismo (o prazer e a visão positiva da sexualidade) e as questões de gênero, em que os papéis sexuais são pensados à luz de um enfoque social, histórico e cultural”. (ibidem) Nesse aspecto, a abordagem política da educação sexual, tão pouco difundida e aplicada na prática docente (e, mais recentemente repudiada e perseguida por uma abordagem conteudista e pelo movimento “escola sem partido” e da “ideologia de gênero), tal como definida acima por Mary Neide Damico Figueiró, se aproxima sobremaneira do documento da UNESCO lançado em junho de 2010 intitulado “Orientação Técnica Internacional sobre Educação em Sexualidade” que ao utilizar o conceito de Educação em Sexualidade, tem como objetivo trabalhar a saúde sexual e reprodutiva em termos mais abrangentes, com o fim de propiciar um aprendizado não só baseado na aquisição de conteúdos, mas também, incluir o questionamento de atitudes e habilidades para redução dos riscos de infecção à HIV e outras DSTs, bem como uso de álcool, drogas e situações de violência. Além disso, parte dos seguintes princípios: “- A sexualidade é um aspecto fundamental da vida humana, tem dimensões físicas, psicológicas, espirituais, sociais, econômicas, políticas e culturais. - A sexualidade não pode ser compreendida sem referência ao gênero. - Diversidade é uma característica fundamental da sexualidade. - As regras que governam a conduta sexual divergem amplamente em torno de e dentro de culturas. Certos comportamentos são vistos como aceitáveis e desejáveis, enquanto outros são considerados inaceitáveis. Isto não significa que estes comportamentos não aconteçam, ou que devem ser excluídos de discussão dentro do contexto da educação da sexualidade.” Apesar deste artigo ser resultado de atividades de pesquisa e extensão desenvolvidas há alguns anos sobre a situação da educação em sexualidade podemos perceber que ainda há muito a ser debatido e construído no que refere a esse campo, seja com a inserção de disciplinas com essa temática na formação básica e permanente de profissionais de educação, seja no debate sobre as maneiras nas quais as representações sociais acerca das sexualidades dest@s profissionais influenciam nas discussões e na implantação da temática da orientação sexual como temas transversais na escola, ou ainda, na maneira como @s alun@s trazem, vivenciam e “sofrem” discriminações, preconceitos e violências no que tange as expressões de gênero e das sexualidades no cotidiano da escola. Trazer estas questões para discussão no espaço escolar é algo urgente, necessário e que não deve ser tratado como um “problema” apenas para determinadas áreas de saber, mas para toda a comunidade escolar. Referências Moisés Lopes é graduado e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (UnB) e Pós-Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Aprendendo História: GÊNERO Página | 31 Aprendendo História: GÊNERO Página | 32 Universidade Federal de Mato Grosso. Atualmente coordenador do curso de graduação em Ciências Sociais modalidade Bacharelado, Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso e Primeiro Secretario Executivo da Associação Brasileira de Estudos de Homocultura (ABEH). Tratava-se de um artigo desenvolvido em parte com dados do projeto de pesquisa intitulado “As imagens e representações sociais acerca do gênero e das sexualidades entre docentes do Ensino Médio de Cuiabá – MT” que foi desenvolvido com financiamento do CNPq via CHAMADA UNIVERSAL – MCTI/CNPq Nº 14/2013. BUTLER, Judith. “Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pós-modernismo”. Cadernos Pagu, (11), 1998:11-42. CARVALHO, Sumaya Persona de. Sexualidade, educação e cultura: instantâneos de escolas de Cuiabá e Várzea Grande. Dissertação de mestrado em Educação. Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 1996. FIGUEIRÓ, Mary Neide Damico. “A produção teórica no Brasil sobre Educação Sexual”, Cadernos de Pesquisas, São Paulo, (98), 1996: 50-63. HARAWAY, Donna, “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”, Cadernos Pagu, (5), 1995:07-42. HARDING, Sandra. Ciencia y feminismo. Madrid: Ediciones Morata, S.L., 1996. LOPES, Moisés. Debates, diálogos e confrontos: Representações sociais das homossexualidades nas discussões sobre a Parceria Civil Registrada. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Universidade Estadual de Londrina. Londrina, Brasil, 2005. __________. “Debates, Diálogos e Confrontos: Representações sociais das homossexualidades nas falas dos deputados nas discussões acerca do projeto de Parceria Civil Registrada”. Revista Ártemis, Paraíba, v. 4, 2006. LOPES, Moisés; JEOLAS, Leila Sollberger. “Do permanente e da mudança: representações sociais das homossexualidades no debate da Parceria Civil Registrada”. Revista de Psicologia da UNESP, v. 7, 2008. LOPES, Moisés; OLIVEIRA, Josiane M. F. S.. “A invisibilidade da temática da sexualidade na formação de pedagog@s e licenciad@s: Algumas considerações”. Anais do III Simpósio de Gênero e Políticas Públicas. Londrina, 2014. LOURO, Guacira Lopes “Segredos e mentiras do currículo.Sexualidade e gênero nas práticas escolares”. In: SILVA, L. H. A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 33-47. RICH, Adrienne.“Heterossexualidade compulsória e existência lésbica”. Bagoas, n. 05, 2010, p. 17-44. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v04n05art01_rich.pdf ROSEMBERG, Fúlvia. “Educação sexual na escola”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, (53), 1985: 11-19. UNESCO. Orientação técnica internacional sobre educação em sexualidade: uma abordagem baseada em evidências para escolas, professores e educadores em saúde. v.1. Razões a favor da educação em sexualidade. UNESCO, 2010. Consultado em 20 de julho de 2013, http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001832/183281por.pdf Aprendendo História: GÊNERO Página | 33 Aprendendo História: GÊNERO Página | 34 AUTOR@S EDUCANDO PARA A DIVERSIDADE DE GÊNERO E SEXUALIDADE: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS DESAFIOS ENFRENTADOS PELOS PROFESSORES DE HISTÓRIA, DA REDE PÚBLICA DE ENSINO Alexandra Sablina do Nascimento Veras Em tempos de incertezas, intolerâncias e desesperança, falar de gênero e de diversidade sexual na escola tem se tornado um desafio cada vez maior, principalmente para os professores de História, da rede pública de ensino. Se essas questões têm crescido e assumido certo espaço em nossa sociedade, ao mesmo tempo ainda permanecem problemáticas, caracterizadas por uma sociedade que ainda se constitui em um processo de transformações e contradições. Discussões em torno dos conceitos de família, homem, mulher, gênero e sexualidade, como construções históricas e sociais, tem repercutido nas mais variadas situações de conflito dentro do espaço escolar. De um lado, deparamo-nos com discursos, tanto por parte de pais e alunos como também de professores, que defendem que tais assuntos não devem ser discutidos em sala de aula, por compreender que não é papel do professor, nem da escola tratar sobre essas questões; E, de outro, com a emergência de discursos que associam tais discussões a uma forma de doutrinação e tentativa de deslegitimação dos valores da família, da religião e da vida em sociedade. Dessa forma, ao passo em que nos encontramos em um momento histórico do qual o lema é educar para a diferença, ao mesmo tempo nos deparamos com um cenário paradoxal, onde a intolerância e o preconceito emergem como forma de manutenção da ordem e da moralidade. Nota-se, portanto, que as questões relacionadas ao gênero e a diversidade sexual vem sendo tratadas de maneira um tanto contraditória. Se por um lado tornaram-se questões cada vez mais presentes no cotidiano das sociedades contemporâneas, por outro, deparam-se com um panorama que oscila entre visões progressistas e conservadoras. A primeira que se basearia na tentativa de reconhecimento e valorização de novos padrões de comportamento e sociabilidade, e a segunda na manutenção de suas representações em condições imutáveis. A partir disso, o objetivo desse trabalho é apresentar algumas reflexões relacionadas aos desafios enfrentados pelos professores de História, da rede pública de ensino, em educar para a diversidade de gênero e sexualidade. O interesse por esse estudo de caso surgiu a partir da experiência como Bolsista de Iniciação a Docência, do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência – PIBID, na escola técnica de nível médio Ministro Petrônio Portella – CEEP, localizada no município de Parnaíba, no Piauí. Em Abril de 2014, enquanto permanecia na sala dos professores, esperando meu horário para entrar em sala e realizar a atividade programada para aquele dia, deparei-me com os comentários de uma professora. A profissional se referia por meio da frase “que coisa ridícula” a duas garotas que estavam se abraçando e acariciando os cabelos uma da outra no pátio da escola. Tal ocorrência, principalmente pelo fato de tê-lo presenciado, Aprendendo História: GÊNERO Página | 35 instigou-me a buscar compreender as implicações trazidas por essas manifestações de preconceito no ambiente escolar. Aprendendo História: GÊNERO Página | 36 Metodologia Para desenvolvermos o presente trabalho, além das atividades realizadas semanalmente como parte das ações do PIBID, em que discutimos conceitos como gênero, sexualidade, diversidade sexual e preconceito, realizando oficinas com alunos do 1º ao 3º anos do ensino médio, também nos empenhamos em observar a rotina dos alunos dentro da sala de aula e, principalmente, fora dela, nos pátios e corredores da escola. Em conjunto com essas ações, aplicamos um questionário com alunos de turmas distintas, com perguntas objetivas e subjetivas relacionadas às questões de gênero e diversidade sexual, preservando o anonimato dos alunos, para que assim pudessem se sentir mais a vontade para falar sobre o assunto. O questionário, elaborado de forma simples e sucinta, versava sobre as seguintes questões: Você já presenciou alguma manifestação de homossexualidade aqui na escola? Como você se sentiu? Qual o seu posicionamento sobre isso? Dado o forte preconceito que muitas pessoas ainda hoje enfrentam devido a sua sexualidade e identidade de gênero, você acha que é importante que a escola discuta sobre essas questões? Ao todo, duzentos e onze alunos responderam o questionário. Importante observar que a realização dessa atividade não foi uma tarefa fácil. Alguns alunos recusaram-se a responder o questionário e outros até fizeram brincadeiras. Percebemos também o desinteresse por parte de alguns professores em relação à atividade. Á análise dos questionários também chegou a ser constrangedora. Alguns alunos escreveram frases como: “eu acho isso nojento”; “eu vejo isso é todo dia”; “só o que tem nessa porra é sapatão” (sic). Por meio da observação participante e da análise dos questionários, identificamos que à diversidade sexual na escola ainda é objeto de preconceitos, vergonha e estigmatização. Nota-se que a aceitação e convívio com representações homoafetivas encontram maior resistência entre os garotos, sendo um pouco mais tolerável e comum entre as garotas. No entanto, apesar de serem práticas conhecidas, em ambos foi possível identificar ainda o predomínio de certa vergonha em tratar do assunto. Mesmo entre aqueles alunos que consideraram a questão da diversidade sexual como algo normal, no entanto, admitiram “tirar onda” quando ficavam sabendo de um (a) colega que era gay, bi ou lésbica. Alguns disseram sentir vergonha ou “achar graça” quando viam ou ficavam sabendo dessas coisas (sic). Também, notamos que esse sentimento de vergonha não se restringia àqueles alunos considerados “normais”, mas também atingia parte dos próprios alunos identificados, pelos outros alunos, como homoafetivos. Nesse contexto, apesar da diversidade sexual ser comum no dia - a - dia dos alunos da escola aqui estudada, principalmente o lesbianismo, tais representações dificilmente podem ser identificadas, visto que os alunos sentem vergonha de falar ou realizar alguma ação que possa ser vista pelos professores ou demais alunos. Entretanto, a diversidade sexual é algo presente no cotidiano dos alunos, e apesar de serem silenciadas, são práticas conhecidas e apontadas, tanto por outros alunos como também por professores, o que contribui ainda mais para a estigmatização desses indivíduos, identificados como indecentes. Sobre as relações de gênero, uma parte dos alunos afirmou não ter nada a colocar sobre essas questões, e que hoje tanto os homens como as mulheres possuem os mesmos direitos, como votar, trabalhar fora, sair e beber (sic). Além disso, mesmo tendo sido um assunto discutido e trabalhado em sala de aula, alguns alunos afirmaram não saber o que significava gênero ou relações de gênero. Discussão Compreendendo a educação como um processo de identificações historicamente e socialmente construídas que vai contribuindo na construção e legitimação da identidade social dos indivíduos, a escola como um espaço social que está em constante interação com fatores que são internos e externos a ela, atua como vetor das capacidades dos indivíduos que a compõe pensarem e se relacionarem. Nesse contexto, a escola constitui-se em um espaço complexo, heterogêneo, plural, através da qual a aquisição e desenvolvimento de conhecimento e cidadania, desigualdades e preconceitos coexistem. Dessa forma, representa, também, um espaço onde se cria e se expande as desigualdades, constituindo-se em um meio propício para que se propaguem as relações de poder (BOURDIEU, 1998). A partir desse embasamento teórico, a questão da diversidade sexual dentro da escola tornou-se mais complexa e inquietante quando notamos que a intolerância em relação às representações homoafetivas não está, de forma explícita, apenas entre os alunos, mas também entre alguns educadores, culminando, em casos específicos, no conflito entre aluno/professor. Tal circunstância estrutura-se na busca de ocultar determinadas manifestações, seja por meio da repressão, seja através do silenciamento da própria escola em relação a esses sujeitos, deixando-os em posições relegadas. Nesse sentido, Louro compreende que: “O processo de ocultamento de determinados sujeitos pode ser flagrantemente ilustrado pelo silenciamento da escola em relação aos/as homossexuais. No entanto, a pretensa invisibilidade dos/das homossexuais no espaço institucional pode se constituir, contraditoriamente, numa das mais terríveis evidências da implicação da escola no processo de construção das diferenças. De certa forma, o silenciamento parece ter por fim “eliminar” esses sujeitos, ou, pelo menos, evitar que os/as alunos/alunas “normais” os/as conheçam e possam desejá-los. A negação e a ausência aparecem, nesse caso, como uma espécie de garantia da norma”. (LOURO, 2001, p. 89). Conseguinte, a própria escola contribui de modo a produzir e a reproduzir, através de uma ordem dominante, desigualdade de gênero, raça, etnia, que vai contribuindo na distinção e separação dos indivíduos em categorias, Aprendendo História: GÊNERO Página | 37 Aprendendo História: GÊNERO Página | 38 proporcionando um espaço privilegiado para uns e desigual para outros. Segundo Louro, os distintos procedimentos e estratégias disciplinares atuam todos em campos de poder, através de um exercício desigual. “Currículos, regulamentos, instrumentos de avaliação e ordenamento dividem, hierarquizam, subordinam, legitimam ou desqualificam os sujeitos” (LOURO, 2004, p. 84-85). Nesse sentido, tais imposições, como em qualquer instituição que visa manter suas regras determinadas e consolidadas através de um padrão de organização interpretado como moral e correto, estão muito atuantes no cotidiano da escola, contribuindo na implementação de uma política educacional que investe em estratégias e mecanismos que visam à homogeneização dos indivíduos que a constituem. Na busca por essa homogeneidade, a escola acaba que por se transformar em um espaço onde se cria e se propaga as diferenças, onde aqueles alunos que fogem às regras constituem uma espécie de problema a ser solucionado. Através de uma ordem dominante que vai se auto-sustentando por meio de técnicas previamente calculadas, a disciplina toma seus indivíduos como se os fabricassem, tomando-os, ao mesmo tempo, como objetos e instrumentos de seu exercício (FOUCAULT, 2011). Nesse contexto, esperam-se dos alunos determinados comportamentos interpretados como naturais. Segundo Foucault (2011, p. 170) “A disciplina faz “funcionar” um poder relacional que se autossustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados”. É no jogo desses olhares calculados, hierarquizados, que a escola acaba que impondo de forma aparentemente silenciosa, por vezes constrangedora, diferentes formas de exercer e manter o poder, buscando legitimar e pregar a ordem, caracterizando esta como detentora da determinação do certo e do errado, do moral e o não moral. Assim, por meio de nossas observações e atividades realizadas na escola aqui analisada, foi possível identificar que a relação professor/aluno, em casos específicos, é um tanto conflituosa, estabelecida a partir de regras de convivência que determinam padrões de comportamento a serem seguidos, tanto dentro, como fora da sala de aula. Abraçar, acariciar e até beijar são, dentro de certos limites, tolerados dentro do ambiente escolar. No entanto, quando se tratam de relações homoafetivas, não há a mesma tolerância. Nesse caso, além das advertências, a consulta aos pais é um recurso utilizado pela escola, pois a um consenso de que os pais ou responsáveis possuem o direito de serem informados de tais acontecimentos. É em meio a esse embate de duas camadas que se chocam, uma que diz respeito a um modelo padrão de educação que constantemente está à procura de legitimar-se, e outra que representa uma minoria repreendida, plural e heterogênea, que começam a se estabelecer às relações de poder, de disputas que vão servindo de baliza na construção e legitimação de identidades forjadas, que tomam como base comportamentos regulamentadores estereotipados. Tal fato exerce importância significativa no desenvolvimento das capacidades dos alunos pensarem e se relacionem com os outros e, principalmente, consigo mesmo. E, é nesse contexto, que às questões relacionadas à diversidade sexual tornam-se mais complexas, pois os alunos tendem a reproduzir tais posturais em seu cotidiano, assumindo uma relação de preconceito e até de agressividade verbal em relação a tais manifestações dentro da escola. Tal fato, em parte, é desencadeado pelo fato de que os alunos, enquanto sujeitos historicamente situados, esforçam-se para integrar-se em sociedade. Em meio a essa busca em atender as normas e padrões sociais, o aluno coagido acaba que, de forma inconsciente ou não, tomando atitudes de não aceitação ao diferente. Destarte, a determinação do que é ou não normal encontra-se arraigada à atribuição de identidades gestadas no coletivo, em que haveria uma preocupação do indivíduo quanto à imagem que lhe será atribuída pelo seu grupo de referência em seu contato com o “estranho” (COSTA, 1996). Diante desse cenário, compreendemos que o estranhamento à homoafetividade deriva de uma necessidade de não confundir-se com o outro, em nome de uma masculinidade compreendida como legítima e normal, da qual é legitimada por padrões culturais que cultivam simbólica e explicitamente hierarquias e moralismos em nome da virilidade (ABRAMOVAY, CASTRO & SILVA, 2004). Segundo Louro (1997): “A homofobia, o medo voltado contra os (as) homossexuais, pode-se expressar ainda numa espécie de “terror em relação à perda do gênero”, ou seja, no terror de não ser mais considerado como um homem ou uma mulher “reais” ou “autênticos (as).” (LOURO, 1997, p. 29). Consentida, e em grande medida “ensinada” na própria escola, a homofobia se expressa assim pelo desprezo, pelo afastamento e pela imposição do outro ao ridículo (LOURO, 2000). Os comportamentos sexuais seguem assim um padrão de ordenação, e aqueles que fogem a essas regras são os reprovados, transgressores, os anormais (FREIRE, 1992). De acordo com Pierre Bourdieu (1983), a juventude se organiza enquanto estrutura social. Os jovens se organizam a partir de características culturais e sociológicas próprias. Nesse sentido, as construções de identidades vão sendo materializadas no cotidiano, na interação com o outro. Por sua vez, quando esse contato é frustrado diante de uma realidade alheia, em que o aluno não se sente integrante do grupo por ser “diferente”, há um choque de identidade onde esse aluno se esforça na tentativa de buscar atender as normas e padrões sociais, e o faz ocultando suas representações ou excluindo-se e criando seu próprio grupo. Considerações finais A partir de nossa experiência na escola Ministro Petrônio Portella, identificamos que as questões relacionadas ao gênero e a diversidade sexual ainda não fazem parte das discussões realizadas em sala de aula. Os próprios professores de História dificilmente discutem sobre tais assuntos. Uma das razões apontadas é o fato de que a disciplina de História já possui uma carga horária reduzida em comparação com outras disciplinas como português, matemática e física. Além disso, não há material adequado, nem incentivo aos professores. Diante desses desafios, o PIBID representou uma Aprendendo História: GÊNERO Página | 39 das poucas oportunidades para que temas como gênero e diversidade sexual fossem trabalhados em sala de aula, ainda que não tenha sido tão bem recebido pela comunidade escolar quanto gostaríamos. Aprendendo História: GÊNERO Página | 40 Portanto, é urgente e fundamental que gênero e diversidade sexual sejam debatidos em sala de aula. Tais questões, mesmo em parte silenciadas, encontram grande repercussão, principalmente na vida dos adolescentes que se encontram numa fase de descobrimento de suas próprias ideias, desejos e do seu próprio corpo. A sociedade em si já trata de produzir e reproduzir estigmas e preconceitos relacionados às questões de gênero e sexualidade, a escola, por sua vez, não deveria posicionar-se de maneira a também reproduzir e consolidar tais posturas. As diferenças e semelhanças não devem ser critérios para a atribuição de privilégios, de inclusão ou exclusão. A educação, responsável por inserir os indivíduos dentro de uma dada sociedade, é um dos principais meios para a transformação social. É essa educação que desde cedo cuida de transfigurar radicalmente as condições naturais dos indivíduos que fornecerá subsídios para que esses sobrevivam em seu meio social. Nesse contexto, ideias e conceitos culturalmente determinados encontram possibilidades de mudanças. No entanto, para que haja tais mudanças é necessário motivar, sensibilizar e estimular novas posturas visando à compreensão da alteridade. Faz-se necessário um formato de escola e de políticas educacionais que objetivem a concretização dessas conjecturas, tendo como pressuposto a equidade de direitos a diversidade. Compreendemos, assim, que é a partir da identificação e compreensão desses fatos que será possível o desenvolvimento de uma educação mais democrática, que possa dar visibilidade e maior participação ao outro. Referências Alexandra Sablina do Nascimento Veras. Licenciada em História pela UESPI, e mestranda em História Social, pela UFC. ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M. G.; SILVA, L. B. Juventude e sexualidade. Brasília: UNESCO, 2004. BOURDIEU, Pierre. A “juventude” é apenas uma palavra. In: ______. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 112121. BOURDIEU, Pierre. A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI. Afrânio (orgs). Escritos de educação. Petrópolis, Vozes, 1998. COSTA, Jurandir Freire. O referente da identidade homossexual. In: PARKER, Richard; BARBOSA, Regina Maria (Orgs.). Sexualidades brasileiras. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, Abia, Uerj, 1996. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. LOURO, G. L. Teoria Queer: Uma Política Pós-Identitária para a Educação. In: Revista Estudos Feministas. V.9 n.2 Florianópolis, 2001. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. Aprendendo História: GÊNERO Página | 41 AS REPRESENTAÇÕES DE MULHERES NO LIVRO DIDÁTICO Ana Carolina Santos Prohmann Aprendendo História: GÊNERO Página | 42 Quando pensamos nas mulheres pelo viés da história, elas estão geralmente no espaço doméstico, a situação começou a mudar no século XX, e começaram a aparecer como heroínas, com a apresentação de algumas mulheres ilustres. “Tratava-se inicialmente de tornar visível o que estava escondido, de reencontrar traços e de se questionar sobre as razões do silêncio que envolvia as mulheres enquanto sujeitos da história” (PERROT, 1995, p. 20), essa conquista fez com que estudos antes não realizados, começassem a ganhar forma, passando a construir um saber histórico. As Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Paraná (2008) apresentam os sujeitos da Educação Básica, enaltecendo que as escolas passaram a atender um número cada vez maior de estudantes de classes populares, assim a importância da inserção de diferentes sujeitos históricos. O diálogo sobre gênero e diversidade sexual deve estar presente para a construção de uma sociedade mais igualitária. Ao analisar o livro didático de História “Ser Protagonista” do primeiro ano do ensino médio, percebe-se que as mulheres não aparecem de uma forma ativa. Esta constatação contraria o próprio título da obra que sugere a motivação para a percepção do protagonismo histórico ou, em uma visão mais pessimista, salienta que ainda se compreende o protagonismo como masculino. Se olharmos apenas para os personagens históricos, já percebemos que os nomes de homens aparecem inúmeras vezes e com ênfase, já as mulheres, apenas duas personagens aparecem no livro todo, Joana d’Arc e rainha Nzinga, e apenas na página 177 é que uma das duas mulheres que estão no livro é trabalhada, ou seja, os alunos e alunas lerão o nome de uma mulher no livro didático provavelmente na metade do ano escolar. Nas primeiras páginas do livro, os textos apresentam apenas um vocabulário com termos masculinos: “os historiadores”, “o historiador”, essa linguagem passa a ideia de que um grande historiador, pesquisador, será sempre um homem. “Um livro didático que sistematicamente apresentasse as mulheres apenas como enfermeiras e os homens como médicos, por exemplo, estava claramente contribuindo para reforçar esse estereótipo e consequentemente, dificultando que as mulheres chegassem às faculdades de medicina”. (SILVA, 2010, p. 82) A edição do texto de 2013, recente, deveria conter mais aspectos igualitários. Não se pode dizer que o livro tem uma escrita igualitária pois apenas na página 12 foi utilizado o termo “homens e mulheres”, ao trabalhar com o tempo na história. Ao se direcionar aos homens e mulheres, a percepção dos educandos e educandas é que a história foi feita pelos diferentes sujeitos, e não apenas os homens como estão habituados a ler. O primeiro personagem apresentado pelo livro é Júlio Cesar, um personagem homem está no texto já na página 14, enquanto uma mulher só aparece na página 177, a falta de representação para as alunas do primeiro ano do ensino médio é grande, essa identidade que falta no livro é uma questão de saber e poder. É por isso que o conceito de gênero foi criado, para enfatizar que as identidades femininas e masculinas são historicamente produzidas, e isso reflete na sociedade e por vezes nas escolhas das mulheres. A linguagem do material didático trabalhado é marcada pelo gênero masculino. Na página 18 temos o primeiro material que envolve as mulheres. O texto explica sobre as diversas fontes, e exemplifica uma fonte iconográfica com um cartaz contra a violência que as mulheres sofrem, mas não existe nenhuma reflexão maior sobre o tema. O cartaz é apresentado apenas como um exemplo ilustrativo. Ao entrar no tema do Egito Antigo, as mulheres só aparecem de forma generalizada no final do conteúdo. Sem citar nome algum de mulher, nem mesmo nas atividades. Cleópatra que governou o Egito e com sua importância não é apresentada e nem citada pelo livro, lembrando que Júlio Cesar por exemplo, já é trabalhado no início do livro. Sobre a Mesopotâmia, em apenas uma parte do texto ao relatar sobre a agricultura e pecuária, é trabalhado os termos “homens e mulheres” na página 64. A segunda vez apenas no livro que essa expressão surge, mas nas atividades não existe relação alguma com as mulheres. Ao analisar o livro didático em todas as vezes que foi trabalhado sobre as mulheres, são apenas pequenos parágrafos ao lado da página, um anexo ao texto, mas não pertencendo ao conteúdo principal. Podemos pensar o caso da Grécia Antiga, um pequeno parágrafo explicando sobre algumas peças teatrais que as mulheres faziam, retratando reuniões na assembleia, o que não era possível na época, mas essas peças podem ser vistas como manifestações. Outro pequeno parágrafo sobre as mulheres é sobre o Islã, apenas explicando o uso das burcas, mas sem relação com as atividades. A primeira personagem representada no livro é Joana d’Arc, na página 177 o texto a apresenta “não apenas como uma pessoa do povo, mas uma mulher” “vestida como um homem - um escândalo na época” “foi julgada e condenada por bruxaria e heresia”, além de estar presente no texto, três atividades são realizadas e é trabalhada a visão que a sociedade tinha na época em relação às mulheres e contextualizando com a atualidade. A outra mulher apresentada no texto, não teve o mesmo destaque que Joana d’Arc, apenas um parágrafo sobre a rainha Nzinga africana, trabalhando com a expansão marítima europeia. Nzinga é apresentada como uma curiosidade, Aprendendo História: GÊNERO Página | 43 aparecendo na frente das negociações em Luanda no século XVII. Tal constatação nos leva a pensar em outra realidade, quando raramente a história das mulheres é trabalhada isso ocorre por um viés branco, europeu. As mulheres negras são ainda menos visíveis. Aprendendo História: GÊNERO Página | 44 É perceptível que o homem está sempre em posição de destaque, seja pelos personagens históricos, pela forma de escrita, pela falta de atividades sobre as mulheres. Dessa forma, esse livro não inclui de maneira concreta todos os sujeitos históricos, e a formação social e política acaba sendo falha, pela falta de representação para uma sociedade mais igualitária. O outro livro analisado será a sequência do primeiro, “Ser Protagonista História” do segundo ano do ensino médio, da mesma edição que o primeiro. O livro do segundo ano, apresentou uma maior abordagem sobre as mulheres, mas mesmo havendo esse pequeno avanço, ainda sim, em muitos conteúdos faltou relevância e conteúdo observando esse aspecto. A linguagem, continua sendo apenas masculina, e com o uso de imagens aleatórias. A primeira referência a uma mulher acontece na página 10, com a imagem de uma mulher nua representando o conteúdo “A conquista europeia da América”, mas a mesma não apresenta explicações sobre a escolha, o que aparenta ser apenas uma ilustração sem uso para os alunos e alunas, assim perdendo o seu sentido. O livro deveria fazer uma abordagem sobre as mulheres muito maior. Em vários capítulos os conteúdos abordados trabalham com a sociedade, mas as mulheres nela são esquecidas, como por exemplo nas civilizações maias, astecas e incas, não foram trabalhadas, dando destaque apenas aos homens e suas atividades. Com os povos indígenas a situação é a mesma. É apresentado sobre a linguística, família, a história, mas não a participação das mulheres. O livro só vai apresentar debates que envolvam as mulheres na página 74, unidade 2, capítulo 6. Há uma comparação entre as famílias patriarcais do Nordeste açucareiro durante o século XVI e XVII, com a família brasileira hoje. Assuntos relacionados à quantidade de membros em cada família e sua formação. “A quantidade de residência habitadas por pessoas morando sozinhas, mulheres constituindo família sem conjugue e casais sem filhos tem aumentado consideravelmente nas últimas décadas. Diminuindo proporcionalmente o número de famílias consideradas tradicionais”. (REIS, et. al. 2013, p.74) Também é abordado sobre as famílias homoafetivas, e junto com esse tema são propostas atividades sobre as diferenças familiares do modelo colonial e os dias atuais. A proposta é muito boa, e deveria estar presente nos demais conteúdos, e não apenas em casos isolados. Trabalhar dessa forma, é interessante não só para o conhecimento do (a) aluno (a), referente ao conteúdo, mas possibilita desenvolver a consciência social, e evitar problemas dentro e fora da escola, como a discriminação e o bulling escolar. As mulheres voltam a aparecer, no capítulo 8, o tópico “livres e pobres” possui um parágrafo que retrata a prostituição do período do ouro em Minas Gerais e da “intercepção de piratas de ouro” pelas negras de tabuleiros. “Esse grupo heterogêneo é chamado pela historiadora Laura de Mello e Souza de “desclassificados do ouro”. (REIS, et. al. 2013, p. 91) As negras de tabuleiro foram representadas por uma pintura e uma explicação sobre a identidade das escravizadas africanas. O primeiro nome de uma mulher no livro didático do segundo ano do ensino médio, só aparece na página 112, Elizabeth I, na unidade 3 - O Antigo Regime, capítulo 9 – “absolutismo e mercantilismo”. Já o primeiro nome de um homem parece na página 33, Francisco Pizarro, no capítulo 3. “A invasão na América”. É impossível que durante todo esse processo histórico, as mulheres não estivessem fazendo nada. É claro que a participação delas é indiscutível, mas onde estão no material didático? Porque é tão difícil aparecer seus nomes, comparado com os homens? É difícil encontrar conteúdos que as mulheres estão presentes, mas, é muito mais quando elas estão em posições de destaque. É apenas no capítulo 12, que será iniciado o estudo das mulheres na História, o capítulo sobre a Revolução industrial, apresenta o texto “mulheres no mundo do trabalho”, o debate é interessante, mas poderia apresentar mais atividades já que o texto trabalha com a desigualdade no mercado de trabalho, que ainda na nossa sociedade persiste. Assim incentivar a reflexão e a consciência histórica, desse problema presente no nosso cotidiano. É evidente que não há espaço para muita ampliação de conteúdo no livro didático, e o/a docente precisa ampliar a reflexão durante a aula, mas se o livro não apresentar elementos significativos para o debate, muitos/as docentes que não se interessam pela temática não irão abordá-la efetivamente. O texto apresenta o seguinte texto: “Desempenhar funções masculinas vestindo roupas de homem foi considerado uma ofensa. Houve movimentos para proibir o trabalho feminino em locais como minas de carvão. Os homens aprovavam a iniciativa, não porque concordavam tratar-se de uma ofensa moral as mulheres, mas com medo do desemprego. A presença de operarias nas fábricas representava uma ameaça ao emprego dos homens, que, almejavam postos de trabalho e bons salários”. (REIS, et. al. 2013, p. 146) A parte mais completa do livro, pensando pelo estudo das mulheres, está presente na página 170 e 171, uma abordagem sobre História e Sociologia. O título desse estudo é “Questões de Gênero”. São apresentados dois textos sobre as condições sociais das mulheres em momentos distintos, um sobre a participação feminina na Revolução francesa, junto com trechos do livro de Itamar de Souza “A mulher na Revolução Francesa”. O texto reflete sobre a condição social das mulheres nesse período e como foi a sua participação na Revolução Francesa. O outro texto apresentado é sobre Maria da Penha, com relatos da violência sofrida causada pelo seu ex- Aprendendo História: GÊNERO Página | 45 cônjuge e toda sua luta até a aprovação da Lei Maria da Penha em 2006, que combate a violência doméstica. Aprendendo História: GÊNERO Página | 46 Além desses textos, há atividades relacionadas, desenvolvendo o debate sobre as lutas que as mulheres já enfrentaram e ainda enfrentam, conquistas e a violência. Esse conteúdo é muito importante e foi bem apresentado com esses textos. Nos próximos capítulos do material didático as mulheres não são mais trabalhadas. E apenas duas mulheres no livro todo tem seu nome citado, Elizabeth I e Maria da Penha. São 17 capítulos no livro Ser Protagonista História do segundo ano do ensino médio que não trabalham sobre as mulheres. O último livro a ser analisado é o da mesma coleção, do terceiro ano do ensino médio. Esse, apresenta, as mesmas faltas que os outros, a representação histórica feminina ainda é muito falha, com poucos textos e em muitos conteúdos o tema mulheres passa em branco. Na primeira unidade ao estudar sobre a Semana de Arte Moderna de São Paulo e o Modernismo no Brasil, Tarsila do Amaral, aparece apenas como referência de um quadro. Como uma das principais representantes do movimento, ela deveria ser estudada com maior profundidade, e não apenas de forma superficial como o livro apresenta. As poucas vezes que as mulheres aparecem, não são trabalhadas de forma relevante como deveria para uma maior aprendizagem, diferente dos personagens históricos que estão em todos os textos, homens ricos e brancos. No terceiro capítulo “A Primeira Guerra Mundial”, um conteúdo que poderia abordar muito sobre as mulheres assumindo diferentes funções durante a guerra, só é apresentado um cartaz envolvendo as mulheres, fora do contexto, pois só existe a imagem, sem texto explicativo ou atividades relacionadas. O conteúdo é voltado para a função dos homens na guerra, e a mulher fica em segundo plano. A única mulher que aparece nesse conteúdo e a primeira do livro, na página 46, é Mata Hari, a espiã. Contendo um texto sobre sua vida e morte. Esses textos são bons e importantes para inserir as mulheres como personagens históricas, é claro que devem estar mais presentes, e não apenas uma curiosidade em alguns conteúdos, como se as mulheres não fizessem parte da História e de vez em quando elas aparecem. Essas biografias são necessárias para reforçar a participação política das mulheres, por isso a necessidade de estarem mais presentes no ensino. Temos que sempre tomar cuidado para não integrar nos conteúdos apenas curiosidades sobre as mulheres, e sim as apresentar como sujeitos históricos, participativas como um todo. Na página 138 outra mulher está presente no livro, Evita Perón, na descrição de uma foto apresentada como esposa do presidente. Na página 139 volta a ser citada ainda como esposa, apenas como a parte social do governo. Toda a importância é dada para o presidente. Em alguns poucos conteúdos o livro trabalha no final dos textos didáticos, como “Ontem e Hoje”, uma analogia com a História e o tempo presente, muito interessante para o aprendizado dos educandos e educandas, na página 156 o texto aborda o trabalho feminino e as condições de trabalho. Importante, pois, apesar do tempo, as mulheres ainda hoje enfrentam muitas dificuldades no mercado de trabalho, desigualdades de salário e os assédios que passam diariamente nas diversas situações. Além de muitas que trabalham fora de casa, ainda acreditam ter a responsabilidade sozinhas de cuidarem do lar. Além do texto, o livro propõe atividades, fazer entrevistas com familiares, sobre as mulheres e atividades profissionais, a colaboração dos homens no ambiente doméstico, e o respeito no ambiente de trabalho. Essas atividades são importantíssimas, e essas relações de passado e presente, envolvendo o ambiente conhecido dos alunos e alunas estimulam a leitura de mundo e deviam ser mais exploradas ao longo do livro. A terceira mulher apresentada no livro é a então presidenta Dilma, sobre a sua trajetória política e seu programa de governo, na página 270. Trabalhar com as relações de gênero, sobre as mulheres e suas representações em livros didáticos, é uma forma de incluir e recontar a história. Dessa forma, mais igualitária, retirando aos poucos o domínio dos homens, pois sabemos que é muito difícil, em uma sociedade ainda machista, inserir por completo, mas cabe a nós, professoras, alunas, acadêmicas, sempre estar investigando e questionando a inserção das mulheres e de todos os grupos que por séculos foram excluídos da história. Mesmo percebendo que ainda falta muito para a inserção em todos os conteúdos, é muito bom ver que mesmo aos poucos, o livro apresenta textos para a reflexão sobre o assunto aqui tratado, esses textos podem ser lidos por diferentes lentes, gerando uma consciência histórica social. Pensado que em anos atrás, a falta das mulheres ainda era muito maior, esses textos podem ser considerados um avanço, mas não por completo. Estudar os diferentes grupos é perceber as relações de poder e interesses do processo histórico, e quando sentimos falta de qualquer grupo na escrita histórica, percebemos os interesses do processo educacional, ou a falta dele. A falta de diversidade nos textos nos permite também refletir sobre as diferenças e desigualdades sociais de quem escreve e consequentemente de quem lê esses materiais, os alunos e alunas da escola pública. Ao analisar os livros, temos que ter em mente, pois isso não fica claro em seus textos e atividades, que quando falamos em um grupo, no caso em questão as mulheres, é necessário a escrita não ser homogênea, pois, dentro da perspectiva das mulheres, existe uma série de diversidades, diferenças e desigualdade. E esse é um dos motivos para que elas se vejam como sujeitos históricos, como agentes sociais. Os livros didáticos ainda possuem várias interferências sociais e culturais, a invisibilidade ou visibilidade de uma identidade de gênero, classe social, raça, etnia, movimentos sociais, é o resultado desse fato, e a educação precisa e deve Aprendendo História: GÊNERO Página | 47 ser o meio pelo qual podemos problematizar e valorizar as relações de diversidade. Aprendendo História: GÊNERO Página | 48 “Um professor de História, mais do que ensinar datas e fatos (que são importantes, mas não devem constituir-se na razão única do ensino de História na escola, é alguém que coloca o aluno em contato com os processos de construção/reconstrução do passado, ou, em outras palavras, abre um diálogo acerca do presente valendo-se das reinterpretações a que é submetida a produção do conhecimento histórico”. (SEFFNER, 2000, p. 260) Seguindo o pensamento de Seffner, o ensino de História deve possibilitar que o (a) aluno (a) interrogue sobre a sua própria historicidade, inserindo a sua estrutura familiar, a sociedade a qual pertence, ou seja, fazendo preocupar-se com a construção de sua identidade social, e perceber os discursos do meio que está inserido. Referências Ana Carolina Santos Prohmann é licenciada em história pela Unespar e pósgraduada em História, Arte e Cultura pela UEPG. PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Educação Básica. Curitiba: Secretaria de Estado da Educação, 2008. PERROT, Michele. Escrever uma história das mulheres: relato de uma experiência. Dossiê História das Mulheres no Ocidente. Cadernos Pagu. N. 4. Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, 1995. REIS, Anderson Roberti dos; et.al. Ser protagonista: História. 1ª Ed. São Paulo: Edições SM, 2013. REIS, Anderson Roberti dos; et.al. Ser protagonista: História. 2ª Ed. São Paulo: Edições SM, 2013. REIS, Anderson Roberti dos; et.al. Ser protagonista: História. 3ª Ed. São Paulo: Edições SM, 2013. SEFFNER, Fernando. Teoria, metodologia e ensino de História. In: GUAZZELLI, César A. B. et al. Questões de teoria e metodologia da Historia. Porto Alegre: Ed. Da Universidade, 2000, p. 257-288. SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: Uma introdução às teorias do currículo. 3ª Ed. Belo Horizonte: Aut SAFO: O PAPEL SOCIAL FEMININO NA GRÉCIA ANTIGA Ana Maria Lúcia do Nascimento Cláudia Marcella Oliveira da Silva O que a Antiguidade ainda pode nos fazer refletir? Qual a importância de falar sobre mulheres que na antiguidade possuíam um papel de destaque? Trabalhar História Antiga, e especificamente a mulher através deste prisma revivendo personagens e lições que moldam as posições de poder é um trabalho árduo, principalmente em sala de aula, onde ao indagar aos alunos “Como viviam as mulheres na Grécia Antiga?” respondem, em sua maioria, que viviam reclusas em suas casas, cozinhando, longe do público, apenas no tear - máquina destinada ao fabrico de tecidos. Vai além disso, entretanto, as ramificações do papel feminino na Grécia Antiga não ficando apenas no lar suas ações efetivas. É essencial, em meio a tantas discursões a respeito da posição da mulher na sociedade, que os professores de História debatam com seus alunos que o ideal feminino na Grécia não passava de um ideal e que existiram personagens marcantes que comprovam isso. Dessa maneira, ao dirigirmos nossos olhares para o passado buscamos trazer uma nova consciência histórica baseada em Safo e toda a análise que sua figura provoca. Buscando também uma nova narrativa histórica que mostre a figura feminina como agente no seu cotidiano, afinal, não existiu nos textos da Antiguidade Clássica, indícios de mulheres que leem? “Ou será esta “lacuna” apenas uma parte da história que os homens se esqueceram de contar?” (PERROT, 1993) É por isso que partimos desses questionamentos para entendermos qual a intensidade das imposições sociais sobre essas mulheres, por isso supomos que muitas mulheres fugiram do molde ideal. Sendo indispensável, ao final da análise e da apresentação das respostas sobre nossos questionamentos, observamos na figura de Safo uma fuga das regras. Além disso, faz-se necessária uma análise mais pormenorizada acerca dessa sociedade em que Safo habitou entre os séculos VII e V a.c., atentando as instituições sociais e o que formava esse paradigma sáfico. Oikos e o casamento Na Grécia Antiga escravos, criança, velhos, prisioneiros e mulheres que não fossem casadas com cidadãos, não tinham sua cidadania reconhecida. Isso nos faz transitar por caminhos que revelam os pilares ausentes numa sociedade que é considerada o berço da democracia ocidental, mas que desconheceu aqueles que não se adequavam ao seu padrão de cidadania (CABALLERO, 1999, p. 125). Por isso, a história da vida privada vem para sanar essa disparidade entre os polos que representam os elementos particulares da casa. Além disso, tentará tapar as lacunas de uma historiografia que por muito tempo excluiu as mulheres, subjugando-as muitas vezes ao âmbito privado. Dessa forma “a palavra privado tinha o sentido, de ser privado de, daquele âmbito em que o homem, submetido às necessidades da natureza, buscava a sua Aprendendo História: GÊNERO Página | 49 utilidade no sentido de meios de sobrevivência.” (FERRAZ JÚNIOR, 1993, p. 27). Por isso, analisaremos as condições peculiares ao âmbito privado que tem como seu maior expoente a casa (oikos) e sua organização interna. Um ambiente que possui pontos fundamentais para esse debate sobre a posição feminina. Aprendendo História: GÊNERO Página | 50 Para Caballero (1999, p.126) nesse ambiente o homem desenvolvia o papel hierárquico no controle dos escravos, dos filhos e da mulher. E por isso, sem poder desvincular-se do âmbito familiar, e ascender ao público, a mulher esteve limitada a casa. A casa é então, de acordo a análise deste autor, um importante sustentáculo dessa hierarquizada constituição familiar onde a mulher possuía um papel desigual. Já para Ferraz Júnior (1993, p. 58), casa era a sede da família e as relações familiares eram baseadas na diferença: relação de comando e de obediência, onde surge a ideia do pai da família, do senhor de sua mulher, seus filhos e seus escravos (FERRAZ JÚNIOR, 1993, p.27). Os autores citados acima só salientam um discurso que foi por muitos propagado. Muito embora esse ideal não fuja a realidade, alguns estudiosos fazem relação ao espaço do oikos como um espaço em que a mulher coordenava. Para Ragusa (2005, p. 58), ao falar sobre a condição social da mulher grega, afirma que a casa foi o espaço onde a mulher regeu, afinal cumpria a ela inspecionar os serviços domésticos, a confecção de roupas e ornamentos e o manejo do tear. Sem dúvida, é fundamental uma análise pormenorizada, onde essas duas visões possam ser ponderadas em um mesmo percentual. Principalmente quando esse assunto for tratado em sala de aula. Pois neste caso, muito embora o papel doméstico da mulher fosse sem dúvida proeminente, ele era baseado na liderança patriarcal e no controle dessa mulher. “Isso por que os gregos consideravam a mulher, dentre outras coisas, um ser volúvel, sem capacidade de controlar seus impulsos, vulnerável aos ataques do desejo, da paixão.” (CARSON, 1990, P. 137) Desta forma, mesmo que a gama dos discursos atuais acerca do papel desempenhado pelas mulheres se fixem majoritariamente no lar e nas tarefas ligadas a ele, isso não foi uma regra geral, era apenas um ideal grego. É necessário que os professores possam discutir com seus alunos que a liderança masculina foi algo que regeu o lar e o comportamento da mulher mesmo em situações consideradas “para mulheres” – como o tear e a cozinha. Entretanto, sendo esse um ideal, pode não ter sido uma situação abraçada por todos, existindo por isso mulheres que fugiram desse molde. Assim, em conjunto com o pensamento de que as mulheres não possuíam poder no lar, em atividades consideradas femininas, existe a concepção referente a esfera religiosa e a participação de mulheres nos postos de sacerdócio e na liderança de cerimônias. O ambiente sagrado é um pilar fundamental para entendermos a participação feminina dentro da instituição sacerdotal e, posteriormente, nas manifestações públicas na sociedade. A mulher então era subalterna, assim como no oikos, na vida religiosa, mas possuidora de uma “liberdade” a partir da benção que o pai ou marido concedia. Por isso, elas participavam dos cultos, nessa sociedade grega, apenas por intervenção de seu pai e futuramente, por intervenção de seu marido. É daqui que resultam, ainda, outras consequências muito alarmantes, no direito privado e na constituição da família que seguia uma ordem social. Afinal, a religião criava para cada grupo familiar um patrimônio exclusivo que, assim como o lar, o patriarca deveria reger tendo como objetivo a ascensão econômica e social (COULANGES,1998, p.34). Em contrapartida: “As mulheres cidadãs figuravam especialmente em cultos religiosos ligados a Deméter e a Coré (Perséfones) deusas cuja benevolência protegia as colheitas de grãos da cidade. O mais destacado desses rituais, as Tesmoforias, era um festival exclusivamente feminino celebrado em toda a Grécia, tanto em cidades-estados quanto em níveis locais, aberto apenas às esposas dos cidadãos.” (KATZ, 2009, P. 169) Devido a esses dados, a religião torna-se como uma ponte de debate para uma abordagem sobre a participação feminina em ações, nesse caso os cultos, que eram feitos fora de casa. Convém citar que foi através da religião que houve a legitimação de outra instituição que moldou o comportamento da mulher na antiguidade - o casamento. O matrimônio surge como uma aliança fundamental para a vida masculina, no que concerne a questão da escalada ao posto de cidadão, e na vida feminina, por que ele era a ferramenta que agirá como forma de controlar o eros, que é tão trabalhado nos poemas de Homero com a personagem Helena e todas as ramificações dos problemas decorridos da sua falta de controle ocasionando a guerra. Por isso, a partir do casamento a mulher sofre um tipo de “nova vida” onde se torna propriedade do marido. “Através do casamento o pai deixa de ser “senhor e juiz” de sua filha e passa ao genro essa responsabilidade, daquele que vai exercer o pater familias sobre sua mulher. Pelas regras nupciais, ela sempre é dada de um homem para outro homem, acompanhada de alguns bens materiais para compensar o prejuízo que traz. Pela religião primitiva, todos os atos que simbolizam o casamento legítimo, apontam para o fato de que esta troca de lugar por parte da mulher se realiza efetivamente sem o consentimento dela.” (CABALLERO, 1999, p. 127) Nesse quesito não temos a mulher como autónoma na negociação matrimonial. O casamento é em si uma transação, feita pelo homem para outro homem. Mas essas instituições (casa, religião e casamento), mesmo que populares na historiografia e na visão de vários alunos, não representavam a supremacia dominante no modo de vida das mulheres. Era apenas um ideal. Aprendendo História: GÊNERO Página | 51 “Um Ideal que destinava os homens à esfera pública e as mulheres ao mundo privado. Porém, quando se examina mais de perto alguns detalhes das práticas sociais e culturais dos antigos gregos, a realidade parece muito diferente” (KATZ, 2009, P. 165). Aprendendo História: GÊNERO Página | 52 Ainda que esse fosse o imaginário, uma vida marcada pelo casamento e a submissão a família, a religião, servindo a casa, sem contato com a educação, existiram outras perspectivas que precisam ser citadas para que haja a compreensão do aspecto que proponho nessa discussão. Por isso, seguiremos o debate enfatizando o processo educacional que algumas mulheres passaram, tendo como exemplo a poetisa Safo de Lesbos. A educação feminina e Safo Joana A. Portela, faz uma análise de vasos áticos, que nos traz como resultado um destaque acerca das fontes iconográficas que representam mulheres a ler rolos de papiro, o que ela sugere ser uma representação de leitura. Em um dos vasos (Figs. 1 e 2), a poetisa foi representada sentada em uma cadeira, em suas mãos estava um rolo e ela estava lendo diante de três mulheres, uma dessas mulheres segura uma coroa sobre sua cabeça e outra levanta uma lira. Essas imagens que retratam Safo de Lesbos, mostram a mesma lendo um papiro e se olharmos atentamente perceberemos que ele possui letras. O que Portela traz como uma possibilidade da existência de mulheres que tinham contado com a educação e com a leitura. Muito embora deva existir sempre um alerta acerca da educação feminina, levando em consideração que os níveis de literacia na sociedade grega como um todo deveriam, com uma pequena exceção dos aristocratas, ser bem baixos (ROCHA PEREIRA, 2006, p. 19-20), não se pode negligenciar também que os estudos do papel feminino foi subjugado por muito tempo pelo homem e pela historiografia, principalmente no quesito educação e leitura dessas mulheres. A iconografia, todavia, nos mostra representações que serviram de base para entendermos o passado e proponho que nós, como profissionais de História, ensinemos os alunos acerca dessa personagem importantíssima, que foi Safo de Lesbos. Safo, nas biografias, é retratada sempre com os mesmos traços. Nasceu na ilha de Lesbos, viveu no final do século VII e no começo do século VI a.C. Era de família aristocrática, foi exilada vivendo por algum tempo na Sicília. Fato referido por todos é que sua casa, dedicada às musas, era frequentada por mulheres que desejavam aprender música e poesia. Graças a esse fato e ao sentimento ardente de amor na sua poesia – muitos de seus textos foram dedicados a mulheres (NUNES, 2012, p. 3). Essa poetisa serve perfeitamente como exemplo para demonstrar que a invisibilidade e a ausência de mulheres no panorama intelectual foi apenas o inevitável resultado de uma exclusão que as colocavam em um papel de inferioridade, em uma condição de silêncio (PORTELA, 2012, 132). O tamanho intelecto da poetisa traz uma tese bem difundida de que Safo era como uma espécie de mestra rodeada das suas discípulas, baseando-se exclusivamente nas palavras da própria poetisa, extraído do frg. 150 LP, que denomina o seu lar de “casa das servidoras das Musas”, onde educaria as moças nobres de Lesbos e da Jónia. (PORTELA, 2012, 134) Toda essa inteligência criativa é explicada também pelo contexto geográfico. Safo vem de uma ilha que é geograficamente influenciada por “especulações filosóficas”, sendo provável por isso ser uma das pessoas inspiradas pelo mundo oriental, como comprovou Ragusa ao analisar alguns poemas de sua autoria que trazem traços orientais. “as cidades da costa ocidental da Ásia menor e das ilhas, em contato com o mundo oriental, eram, se não as mais ricas, ao menos as mais brilhantes. Foi nesses locais que se desenvolveram as primeiras especulações filosóficas, lá que foram elaborados os diferentes gêneros poéticos. E não é surpreendente lá encontrar espíritos esclarecidos não apenas entre os homens, mas mesmo em certas mulheres, como a muita famosa Safo, originária de Mitilene, na ilha de Lesbos, e poeta de grande renome.” (MOSSÉ, 1991, p. 42) Partindo desse ponto levantado por Mossé, sobre as influências que a população da ilha acabou sofrendo, juntamente com a liberdade que as mulheres pareciam desfrutar tanto em Lesbos como em Esparta, no quesito sistema educacional, ao menos para as jovens aristocráticas, percebemos um pequeno espaço de preparação educacional feminina destinada, provavelmente, para o casamento (BURN, 1960, p. 98-99). O grande expoente que é fundamental para o estudo dessa face feminina que foge os paradigmas propostos pela sociedade grega é, justamente, Safo de Lesbos. A lírica eólica de Safo é pura expressão do sentimento, inspirada na vida circundante e direcionada a um determinado círculo de pessoas. (NUNES, 2012, p.5) O que restou desses escritos são poucos fragmentos que mostram sentimentos romântico, principalmente em canções amorosas e nupciais. É comum nos seus versos a descrição de uma profunda devoção a deusa Afrodite. É comum em seus escritos versos que retratam com realismo experiencias íntimas: “Basta-me ver-te e ficam mudos os meus lábios, ata-se a minha língua, um fogo sutil corre sob a minha pele, tudo escurece ante o meu olhar, zunemme os ouvidos, escorre por mim o suor, acometem-me tremores e fico mais pálida que a palha; dir-se-ia que estou morta.” (ALVIM, 1992) Safo, carrega em sua escrita sentimento profundo aos versos. Ademais, sua lírica traz outras informações: ela é carregada de erotismo e dirige-se com frequência a mulheres, o que muitos estudiosos usam para comprovar a existência de “praticas homossexuais” entre mulheres em seu tempo. (DOVER, 1989, p. 172) Por isso, safo representa, no universo grego, uma quebra do padrão comportamental feminino conhecido, sobretudo, a partir do modelo ateniense (FOLEY, 1992, P. 140). A posição de safo, como intelectual e escritora, deve ser pincelada com a afirmação de que sua família possuía uma alta posição social que possibilitou essa sua participação na lírica grega. Isso por que as mulheres Aprendendo História: GÊNERO Página | 53 Aprendendo História: GÊNERO Página | 54 eram marginalizadas e esquecidas e, nesse caso especial, safo é um expoente significativo por conta de sua intelectualidade. (RAGUSA, 2005, p. 63). Soma-se a isso suas características que fogem ao molde da “mulher ideal” descrito por muitos historiadores. Além disto, de acordo com Ragusa, sobre a educação tradicional de jovens, “nada se sabe até a era helenística (323-31 a.C.), quando surgem evidências de que as moças nobres se reuniam em escolas a fim de aprender a ler e escrever e de estudar poesia.” (2005, p. 65) Por fim, a antiguidade, quando questionada sobre a omissão do papel feminino, contribui para a reformulação do que foi a participação feminina na sociedade grega. Ponderando acerca da historiografia atual e de como ela representa essas mulheres, podemos levar para a sala de aula a desmistificação do ideal feminino, usando sempre esse contraste entre as análises já existentes. Além disso, falar sobre as ações da poetisa Safo em sala de aula contribuirá para preencher essa lacuna na historiografia, e acima disso, para salientar que o ideal grego propagado por muitos historiadores precisa ser questionado pelo fato de não representar uma totalidade generalizada. Ademais, vale salientar a importância da educação, afinal, foi através dela que Safo é conhecida hoje. Referências Ana Maria Lúcia do Nascimento é graduanda em História pela Universidade de Pernambuco, participante do grupo de pesquisa Leitorado Antigo, orientado pelo professor José Maria Gomes da Silva Neto. O presente trabalho é uma pesquisa inicial independente. E-mail: anamarialuciadonascimento@gmail.com. Cláudia Marcella Oliveira da Silva é graduanda em História pela Universidade de Pernambuco, participante do Laboratório de Estudo História das Religiões, orientado pelo professor Carlos André Moura. E-mail: claudia.marcella.tjf@gmail.com CABALLERO, C. A Gênese da Exclusão: O Lugar da Mulher na Grécia Antiga, n.38, 1999. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15515 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. São Paulo: Atlas, 1993. CARSON, A. “Putting her in her place: woman, dirt, and desire”, in D. M. Halperin et al. (eds.), Before sexuality: the construction of erotic experiense in the ancient Greek world. Princeton: Princeton University, 1990, p. 137. FUSTEL DE COULANGES. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 1998. kATZ, M. A. “As mulheres, as crianças e os homens.” In. CARTLEDGE, Paul. (org.) História ilustrada Grécia Antiga, São Paulo, Ediouro, 2009, p. 164213. POMEROY, S.B. Women in Hellenistic Egyt, New York, 1984, p. 59-82. ROCHA PEREIRA, M. H. Estudos de História da Cultura Clássica 1 – Cultura Grega, Lisboa, 2006, p. 19-20. NUNES, Zilmar Gesser. As Mulheres de Lesbos nas Mãos de Catulo, n.06, 2012. Disponível: http://latim.paginas.ufsc.br/files/2012/06/As-mulheresde-Lesbos-nas-ma%CC%83os-de-Catulo.pdf MOSSÉ, C. La femme dans la Gréce antique. Paris: Éditions Complexe, 1991. BURN, A. R. The lyric age of Greece. Londres: Edward Arnold, 1960. DOVER, K. J. Greek homosexuality. Cambridge: Harvard University Press, 1989, p. 171-184. FOLEY, H. P. “The conception of womem in Athenian drama”, in H. P. Foley (ed.), Reflections of womem in Antiquity. Filadélfia: Gordon and Breach, 1992, p. 127-184. PINHEIRO, Joaquim. A mulher e a educação na Grécia Antiga. In: Mulheres: Feminino, Plural. Editora Delphi, Portugal, 2013, p. 48-61. ALVIM, P. SAFO: Safo de Lesbos, São Paulo, Poética, 1992. PORTELA, Joana A., Os rolos das mulheres na Antiguidade Clássica: adereços de cultura ou livros de leitura?. Ágora. Estudos Clássicos em Debate, n. 14, 2012. Disponível em: http://www2.dlc.ua.pt/classicos/7.%20JPortela.pdf DUBY, Georges; PERROT Michelle, “Escrever a história das mulheres”: História das Mulheres no Ocidente, Vol. I: A Antiguidade, Porto 1993. Aprendendo História: GÊNERO Página | 55 AS RELAÇÕES DE GÊNERO NA PERSPECTIVA DE VIDA: RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA EM SALA DE AULA Ana Paula Bührer Gonçalves Vanessa Cristina Chucailo Aprendendo História: GÊNERO Página | 56 Entendemos que o estudo de gênero é uma categoria de análise interdisciplinar que busca compreender as relações entre feminino, masculino e transgeneridade nas culturas e sociedades humanas. Baseado nessas relações sociais, culturais e de poder entre os sujeitos, mulheres e homens estabelecem funções sociais e perspectivas de vida diferentes. Pensando nisso propomos no presente relato uma discussão sobre questões referentes às impressões sobre identidades de gênero, na tentativa de compreender as diferentes expectativas da sociedade em relação à homens e mulheres, além das possibilidades de romper com alguns estereótipos de gênero, a partir de uma oficina realizada em outubro de 2018, por ocasião do IV Encontro de Gênero, Feminismos e Políticas Públicas, na cidade de União da Vitória, Paraná. Ressaltamos que não existe um modelo correto ou definitivo para os sujeitos levando em conta as constantes transformações humanas em seus desejos, projetos, funções práticas do cotidiano e as formas como se compreendem e como compreendem as outras pessoas. Homens e mulheres são educados em função de suas naturezas distintas, conduzidas pelas mais diversas motivações que fazem parte ou não de papéis predefinidos a partir de seus sexos biológicos. Os argumentos que se utilizam das características biológicas distintas entre os corpos para justificar determinada função ou papel de cada pessoa na sociedade acaba por ter um caráter quase determinante nas relações sociais, além de servir muitas vezes para explicar ou justificar a desigualdade social entre os gêneros (Louro, 2003). É fundamental contrapor essas argumentações características biológicas e sexuais para determinar as uma vez que entendemos que a forma como essas representadas ou apreendidas enquanto pertencentes corpo são historicamente e socialmente construídas. que utilizam as relações humanas, características são a um determinado Propor essa oficina foi uma experiência fundamental para identificar elementos que possibilitam a reflexão e estimulam o debate sobre as construções sociais e culturais de gênero, especialmente no que se refere ao contexto das masculinidades e feminilidades possíveis, questionando as diferenças e reafirmando a relevância do tema que está longe de ser um assunto esgotado. Proposta e desenvolvimento das atividades A proposta da oficina foi promover a reflexão e levantar debates sobre as diferentes expectativas sobre pessoas do sexo feminino e do sexo masculino, reconhecendo assim as distintas manifestações dos gêneros presentes na sociedade, bem como identificar possíveis estereótipos de gênero que tendem a acentuar as desigualdades entre homens e mulheres. A ideia dessa oficina foi uma adaptação de algumas atividades propostas no livro ‘Coolkit – Jogos para a Não-Violência e Igualdade de Género’ (Rojão et al, 2011). A oficina foi proposta por ocasião do IV Encontro de Gênero, Feminismos e Políticas Públicas, que ocorreu na cidade de União da Vitória, Paraná, entre os dias 01 e 03 de outubro de 2018. A atividade ocorreu na tarde do dia 03 de outubro de 2018, em uma das salas da Universidade Estadual do Paraná, campus de União da Vitória, com um grupo de aproximadamente trinta estudantes, em sua maioria mulheres. As atividades foram conduzidas da seguinte maneira: inicialmente dividimos os participantes em cinco grupos, de quatro a seis pessoas, e entregamos para cada grupo uma cartolina, cola e canetas coloridas. Cada grupo também recebeu duas palavras/tema sorteadas, entre elas: Amizade, Relações Íntimas, Família, Escola e Sociedade. Convidamos então para que eles discutissem entre o grupo sobre aquilo que a sociedade espera dos homens e das mulheres dentro daquela determinada palavra/tema que receberam. Quando chegassem a um consenso, que montassem um cartaz com as principais conclusões do grupo sobre o assunto. Foi uma atividade bastante livre e desafiadora para os grupos, pois deixamos em aberto as discussões sobre questões de gênero. A ideia da oficina foi justamente partir das possíveis concepções da turma sobre o tema para promover o debate. Depois que os cartazes estavam prontos, cada grupo era convidado para apresentar para os demais participantes o resultado final. Então o debate era aberto para a turma, pensando em algumas questões que conduziram a discussão, tais como: Quais as diferenças identificadas entre as expectativas relacionadas aos homens e as relacionadas às mulheres? O que gostariam que fosse diferente nessas relações? Como é possível mudar esses aspectos? Essa primeira atividade teve duração de aproximadamente uma hora e meia. A segunda atividade buscou promover a reflexão sobre como alguns estereótipos de gênero que tendem a acentuar as desigualdades entre homens e mulheres, e até mesmo a violência de gênero. Objetivou também descontruir alguns estereótipos presentes em falas, frases cotidianas, provérbios, etc. Mantivemos a turma dividida nos mesmos grupos da atividade anterior, e sorteamos para cada grupo três ou quatro frases sexistas, provérbios, ditos populares, ou qualquer outra fala que pudesse suscitar a reflexão e a discussão. Sugerimos as seguintes frases: 1) Em briga de marido e mulher, Aprendendo História: GÊNERO Página | 57 Aprendendo História: GÊNERO Página | 58 não se mete a colher. 2) Mulher ao volante, perigo constante. 3) Homens são o sexo forte. Mulheres são o sexo frágil. 4) Homem não chora. 5) Amarre suas cabritas, que meu bode está solto. 6) Um tapinha não dói. 7) Azul é para meninos, rosa para meninas. 8) Lugar de mulher é na cozinha. 9) Uma mulher só se torna completa quando tem filho. 10) Mulher que diz não só está fazendo charme. 11) Toda mulher gosta de um cafajeste. 12) Mulher que vai para a cama no primeiro encontro não serve para casar. 13) Futebol é esporte para homens. 14) Não tem problema a mulher trabalhar fora, desde que não atrapalhe nas tarefas domésticas. 15) Nem todas as mulheres se realizam no fogão. Muitas só encontram a felicidade no tanque. 16) Mulher é como pernilongo, só sossega com um tapa. 17) Isso é coisa de mulherzinha. A partir dessas frases cada grupo deveria refletir sobre como elas afetam o indivíduo no que corresponde aos estereótipos de gênero, desigualdades ou violências. Após um período de discussão nos grupos, caso discordassem da frase, propomos o desafio de desconstruir e/ou reformular a ideia, ou então que justificassem a posição favorável a ela. Essa segunda atividade teve duração de aproximadamente trinta minutos. Para finalizar, propomos uma dinâmica em que os participantes avaliaram as atividades realizadas, o impacto dos debates levantados, o aprendizado que pudemos compartilhar etc. Em uma cartolina desenhamos uma mala de viagem, e fixamos no quadro para que todos pudessem ver. Dessa vez a atividade foi individual, e cada participante recebeu alguns post-it. Pedimos que cada um refletisse sobre as atividades daquela tarde como um todo, e escrevesse no post-it aquilo que consideraram a “bagagem” mais importante que estavam levando para si a partir da oficina. Deixamos em aberto para que a “bagagem” fosse relacionada aos conteúdos, relacionamentos, ideias, sentimentos, posicionamentos, etc. Cada participante então colou o/os post-it dentro do desenho da mala, finalizando assim a oficina de forma bem descontraída. Vejamos no tópico a seguir alguns resultados dos debates e dos materiais produzido durante a oficina. Resultados “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (Beauvoir, 1980, p. 9). Assim como dito por Simone de Beauvoir notamos que socialmente as diferenças entre os sexos são estabelecidas de uma maneira aparentemente natural, inerentes de homens e mulheres, mas acabamos percebendo que essas diferenças são na verdade construções sociais enraizadas e manipuladas, para que assim, uns se sobreponham aos demais. Quando Simone de Beauvoir diz que nos tornamos mulheres fala justamente dessa naturalização de atividades e comportamentos que não são, necessariamente, natos. O mesmo vale para as construções acerca dos homens. Com isso, debatermos gênero nos espaços escolares e acadêmicos geram uma compreensão das construções sociais e como afetam a vida dos sujeitos. Sendo assim analisamos, a partir daqui os trabalhos e debates gerados durante as oficinas. Com a análise dos cartazes notamos os estereótipos de gênero em todos grupos sociais. Começando pelo tópico amizade, os grupos concluíram que não existe amizade sincera entre homens e mulheres e que se existir sofrerão preconceito e julgamento. Outro ponto abordado é a ideia de que se as mulheres possuírem amizade com vários homens, ela será “vagabunda”, enquanto que os homens se possuírem amizade com várias mulheres serão “garanhões”, pois a concepção de manter a amizade entre os gêneros opostos é justamente uma futura relação romântica e/ou sexual. Sabemos que a vida sexual da mulher durante toda a vida social torna-se muito mais regrada e controlada, mesmo que mulheres busquem relações sexuais momentâneas, elas são malvistas pela sociedade, o oposto das relações acometidas aos homens, que são incentivados a possuírem inúmeros relacionamentos, sejam eles momentâneos ou não. Entrando no próximo tópico que seriam as relações íntimas, notamos que essa questão da sexualidade aparece novamente. Quando uma mulher está em um relacionamento afetivo estável ela será cobrada para ser mãe e se não, será responsabilizada totalmente aos cuidados com preservativos; quanto que aos homens, não é exigido nem a paternidade e nem o cuidado com os contraceptivos. Quando falamos de maternidade retornamos na romantização e naturalização. “Mulher só se completa quando tem filho pois assim tem mais sentido para lutar” é o que diz um dos post-it deixado na “bagagem” no final das oficinas. A ideia de mulheres não serem completas sem a construção de um casamento e da maternidade é estrutural e marcada por inúmeras regras de controle do corpo e da sexualidade feminina. Para Lucila Scavone (2001) a maternidade explicaria a dominação de um sexo sobre o outro, já que a maternidade “determinava a ausência das mulheres nos espações públicos, confinando-as ao espaço privado e à dominação masculina” (p.139). Dessa forma, compreendemos porque esse espaço é tão feminino e é retirada toda a responsabilidade dos homens, para que assim exista um controle das ações femininas nos espaços públicos, e quando a saída do lar acontece, ela continua sobrecarregada com várias atividades, dentro e fora do lar. Vale ressaltar que um dos contraceptivos mais usados é a camisinha, sendo que a mais vendida é a camisinha masculina e não a feminina, mesmo assim, os cuidados com contraceptivos e preservativos acaba recaindo quase sempre para as mulheres. Outro tema importante citado nas relações íntimas são as exigências da sociedade com a boa aparência feminina, sendo ela responsável por Aprendendo História: GÊNERO Página | 59 Aprendendo História: GÊNERO Página | 60 manter-se sempre bela para o parceiro romântico. Nessa questão podemos entrar em inúmeros exemplos como: depilação, magreza, cabelos (longos ou curtos, cacheados ou lisos, sempre dependendo do gosto dos homens e não da própria mulher), vestimentas e comportamento. Notamos com isso que as mulheres sofrem com a insatisfação com sua própria aparência na busca por um padrão imposto socialmente e reproduzido no privado. Ao trabalharmos com a ideia de gênero e suas construções sociais, permanências e reproduções, notamos que esses padrões estão enraizados em nossa sociedade, pois mesmo na tentativa de desatar, distanciar ou mudar essas construções, percebemos que retornamos no mesmo ponto anterior. Podemos analisar esse enraizamento quando debatemos sobre família. Um dos grupos, na tentativa de sair dos padrões retornou ao mesmo de maneira desproposital. O grupo, assim como os demais, escreveu os padrões e as visões opostas entre homens e mulheres na família, como: mulheres são frágeis, inferiores, regradas e sofrem com a dupla jornada de trabalho, enquanto os homens são livres e não possuem obrigações domésticas, tidos como os chefes da família. Ao tentarem escapar deste discurso, escreveram sobre como os gêneros deveriam em suas concepções, ser, porém observamos dois pontos com mais atenção, sendo eles: mulheres são multifuncionais e homens são pai de família. Quando pensamos em mulheres multifuncionais encontramos uma justificativa para a dupla jornada de trabalho, pois as mulheres são supostamente capazes de realizar diversas atividades ao mesmo tempo, sendo assim, não teriam problemas em trabalhar, cuidar da casa e filhos. Já o pai de família é uma maneira de substituir o chefe de família, pois na prática tanto o pai quando o chefe, são, em muitos casos, responsáveis apenas pela estabilidade financeira e controle de todos os sujeitos inseridos na família. Já no âmbito escolar notamos que as meninas são, de acordo com os grupos, mais exigidas e tender a ser mais caprichosas e organizadas, enquanto que os meninos são mais desleixados e livres. Quando os meninos que possuem uma letra bonita, são caprichosos ou organizados a ideia inicial é de que ele tem traços mais femininos. Outro detalhe exposto em um cartaz é a distinção entre os esportes praticados por meninos e meninas: na maioria das escolas, as meninas são incentivadas ao vôlei ou à dança, enquanto que os meninos são incentivados ao futebol e basquete. Devemos lembrar que isso não precisa necessariamente estar relacionado as práticas esportivas, as oficinas citadas tinham como participantes alunas e alunos do curso de pedagogia. As brincadeiras que ofertadas na educação infantil, muitas vezes já se inicia distinguindo funções e papéis sociais para as crianças. Meninas brincam de boneca e vestem rosa, meninos brincam com carrinho, bola e vestem azul. Acaba-se muitas vezes por incentivar a agressividade e a liberdade para os homens, já que esportes como futebol e basquete demandam mais contato do que vôlei e dança, e o comportamento de zelo e cuidado para as mulheres já que brincar de boneca remete aos aspectos mais domésticos e familiares, muito mais do que brincar de carrinho, por exemplo. Assim como somos influenciados pela nossa sociedade, nós também a moldamos de acordo com as necessidades e as vigências daqueles que possuem mais espaço e visibilidade, sendo assim, muito do que já foi citado nos pequenos núcleos vemos expostos no item sociedade, como os padrões de beleza, o controle, a força e a proteção masculina. Mas algo chama a atenção quando notamos que nos cartazes são afirmados que mulheres sente medo e que precisam provar que são capazes. Do que mulheres sentem medo? Da não aceitação social por não se encaixarem em um padrão, com o caminho de volta para casa, dos homens, da violência, da invisibilidade e do silenciamento. Quando dito que mulheres precisam provar que são capazes, a afirmação nos faz lembrar de alguns discursos machistas que enfatizam que uma mulher só alcança um bom emprego por serem bonitas, por terem algum tipo de relacionamento sexual ou afetivo com seus chefes e assim por diante. Mas como dito anteriormente, os estereótipos, o machismo e o patriarcado são enraizados na nossa sociedade e quando começamos a debater sobre os provérbios as discussões se acentuaram quando o assunto foi “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Três post-it foram deixados com as seguintes frases “sobre brigas: acho que não tem o que intrometer em brigas, só se houver agressão”, “em briga de marido e mulher, dependendo do caso acho que não deve se meter a colher” e “não me oponho em briga dos outros”. Quando educamos meninas para a submissão e homens para o domínio e controle temos dois opostos, o primeiro que se submete à violência e o outro que aplica. Mas, qual é a agressão que está sendo citada? Apenas a física? Sabemos que a Lei Maria da Penha ampara cinco formas de violências: patrimonial, física, sexual, moral e psicológica. Não podemos nos silenciar diante de uma ação violenta, mascarada como discussão. Discussões nas relações acontecem, mas quando o vizinho ouve não é mais uma discussão. Considerações Finais O que podemos concluir é que os padrões, os estereótipos, os papéis sociais, a naturalização da maternidade e da violência são enraizadas de tal modo que mesmo quando tentamos nos descontruir retornamos as mesmas falas. Sendo assim a desconstrução é constante e demanda tempo. Quando debatemos gênero, seja na academia ou na escola proporcionamos uma nova forma de percepção da cultura, da política e da sociedade e percebemos que tudo o que somos e fazemos é político. Na “bagagem” citada algumas vezes ao longo do texto, algumas pessoas enfatizaram a importância da aprendizagem para romper esse sistema. Notamos também que a perspectiva de pessoas regradas e controladas geram modelos de submissão e controle, quando meninas brincam de ser mãe, naturalizamos a maternidade e esperamos dela o anseio pela gestação. Quando meninos brincam na rua, de carrinho, ou futebol, naturalizamos a liberdade e retiramos dele a responsabilidade perante seus atos. Aprendendo História: GÊNERO Página | 61 Aprendendo História: GÊNERO Página | 62 Nós como sociedade geramos perspectivas de vida que são violentas e controladoras de forma imperceptível que acabam se mesclando com algo seria natural e inerente à humanidade. Homens comandam e mulheres se silenciam perante as agressões. Não podemos mais naturalizar e compactuar com essas formas de se relacionar em sociedade, e por isso o debate é tão importante. Referências Ana Paula Bührer Gonçalves é licenciada em História pela Unespar e bolsista pelo projeto “Integrar: ressocialização, formação e capacitação de jovens em situação de risco e sob medidas socioeducativas”. Vanessa Cristina Chucailo é doutoranda em História Social pela Unirio e bolsista CAPES. BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pósestruturalista. 6º ed. Petrópolis: Vozes, 2003. ROJÃO, G. et. al. Coolkit – Jogos para a Não-Violência e Igualdade de Género. Covilhã, Portugal: Coolabora, 2011. SCAVONE, Lucila. A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais. Cad. Pagu, Campinas, n. 16, p. 137-150, 2001. ENSINO DE HISTÓRIA E MULHERES NEGRAS: UMA PERSPECTIVA INTERSECCIONAL SOBRE AS PERCEPÇÕES DE ESTUDANTES DE UMA ESCOLA PÚBLICA Andreia Costa Souza O presente texto objetiva expor as considerações iniciais de uma pesquisa que trata das vivências e identidades de estudantes negras quanto às manifestações articuladas do racismo e do sexismo, através de reflexões inseridas no Ensino de História. Buscando partir da perspectiva da interseccionalidade entre questões de raça e gênero, o foco das análises estará nas desigualdades vividas pelas mulheres negras nos dias atuais. Kimberlé Crenshaw (2002, 2012), propõe a interseccionalidade como uma perspectiva analítica, que através da integração dos diversos eixos ou marcadores da diferença – sexo/gênero, raça, etnicidade, classe, orientação sexual, idade, etc. – seria uma ferramenta eficiente não apenas para identificar os sistemas de opressão, mas também para compreender como estes articulam-se e reproduzem-se nas interações sociais. A pesquisa vem sendo realizada entre alunos/as de uma turma de oitavo ano da Escola pública municipal Maria Aparecida Rosa, localizada no município de Conceição do Araguaia (PA). Através de reflexões sobre a equidade racial e de gênero e o protagonismo de personagens historicamente silenciadas pela produção historiográfica e ensino de história tradicionais, os/as estudantes serão instigados a desenvolver relatos e visões críticas sobre os temas abordados. Pretende-se que os participantes da pesquisa desenvolvam o entendimento de que estas mesmas desigualdades foram construídas historicamente, através de narrativas excludentes e eurocêntricas replicadas através do Ensino de História. Os princípios teóricos e metodológicos da pesquisa têm como propósito dar visibilidade e espaço para as narrativas dos/as estudantes negros/as, através da pesquisa-ação, e de modo particular, através da técnica de grupos focais, considerar as falas das meninas negras da turma. No decorrer das oficinas, os/as discentes serão incentivados/as a elaborar uma percepção crítica das raízes históricas e políticas do racismo e do sexismo, suas formas de manutenção e reinvenção nas relações de poder. Diante dos preconceitos, das ideias intolerantes e violentas materializadas nos eventos da atualidade, o intuito é promover conscientização e novas posturas através do Ensino de História. As ações pedagógicas propostas serão pensadas com o intuito de “inverter” os mecanismos que fundamentam a abordagem tradicional do ensino de história, que ainda hoje apresenta heranças das narrativas eurocêntricas, centradas na figura do homem branco e colonizador. Diante deste quadro hegemônico ainda presente nos currículos, livros didáticos e narrativas sacralizadas do ensino de história, a perspectiva teórica adotada nesta pesquisa, assim como as estratégias pedagógicas e metodológicas serão direcionadas em busca das possibilidades de valorização da identidade negra feminina. Aprendendo História: GÊNERO Página | 63 Aprendendo História: GÊNERO Página | 64 De tal maneira, é possível definir alguns dos problemas de pesquisa que se buscará investigar e responder: como criar estratégias e caminhos que permitam subverter e diversificar os lugares de fala e a perspectiva tradicional do ensino de história? Como atuam as desigualdades múltiplas de gênero e raça nas vivências das mulheres negras? Como promover o reconhecimento das mulheres no Ensino de História, particularmente das mulheres negras, historicamente apagadas e silenciadas pelas narrativas eurocêntricas? A coleção de livro didático adotada há quatro anos pelos/as professores/as e gestão escolar, aborda a temática racial de modo peculiar no volume do oitavo ano do Ensino Fundamental, através do primeiro capítulo do livro, intitulado Africanos no Brasil: dominação e resistência. Contudo, as discussões se mostram insuficientes diante da complexidade das manifestações do racismo que estrutura as relações cotidianas, o que gera situações de conflito recorrentes. Os recursos didáticos disponíveis ainda apresentam os personagens negros e femininos de modo pontual e figurativo, as formações destinadas aos docentes não abordam tais temáticas, vistas por alguns como menos relevantes ou “polêmicas” demais para o ambiente escolar. Através de uma pesquisa prévia com a turma escolhida para a aplicação do projeto, observei algumas peculiaridades. Em um total de 31 alunos/as, 20 meninos e 11 meninas, elas narraram mais situações de discriminação racial no questionário aplicado. Do total de meninas (11), 3 autodeclaramse “pardas”, 6 autodeclaram-se “pretas” e apenas 2 autodeclaram-se “brancas”. Do total de meninos (20), 12 autodeclaram-se “pardos”, 6 autodeclaram-se “pretos” e apenas 2 autodeclaram-se “brancos”. Quando questionados/as sobre o papel da escola no “combate ao racismo”, boa parte manifestou a opinião de que os “racistas devem ir pra secretaria e serem expulsos” da escola. Em uma das respostas, uma observação interessante de uma das meninas da turma: “conversas com os alunos e ficar de olho porque o racismo acontece em todo lugar”. Contudo, percebi que para a maioria deles/as, o racismo se manifesta necessariamente com atitudes e falas agressivas, que envolvam xingamentos e apelidos ofensivos. Alguns/as, que se autodeclaram pardos/as ou pretos/as afirmam nunca terem vivenciado uma situação de discriminação racial. Contudo, tanto nas conversas em sala quanto nos questionários, os relatos das meninas apresentaram mais detalhes, indignação e tristeza diante de situações de discriminação racial já vividas. Uma aluna relatou que: “um dia eu ia passando na rua e uns garoto começaram me tacar bola de papel e dizer que eu não devia tá na terra porque eu era um urubu, sai da frente carvão. E eu chorei muito”. Em outro questionário: “já fizeram piadas da minha cor eles me chamavam de nega do cabelo duro, de neguinha eu chorava e chegava em casa triste e minha mãe falava (...) vc tem que ter orgulho da sua cor vc é linda minha princesa...”. A pesquisa prévia feita na turma possibilitou uma visão mais ampla dos problemas a serem levantados, uma noção de como racismo e sexismo estão implícita, ou explicitamente, presentes nos relatos de alunos e alunas, e como estes temas poderão ser abordados e problematizados através do Ensino de História. A filósofa Sueli Carneiro (2011, p.17) aponta que, além do mito da democracia racial, que “se presta historicamente a ocultar as desigualdades raciais”, diferentes formas de interpretação da questão racial também são utilizadas na negação do racismo. De acordo com a filósofa, “existem ainda visões que consideram a questão racial como reminiscência da escravidão, fadada ao desaparecimento, tanto mais se distancie no tempo daquela experiência histórica, ou como subproduto de contradições sociais maiores” (CARNEIRO, 2011, p.16). No momento político em que nos encontramos, essas visões tem ganhado adeptos em diferentes espaços. O lócus da pesquisa será a ser realizada com uma turma de oitavo ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Maria Aparecida Rosa, situada no município de Conceição do Araguaia (PA). A cidade está situada na região Sul do Estado do Pará e faz divisa com o Estado do Tocantins, marcada pela imigração de goianos, tocantinenses e nordestinos. Dentre as escolas municipais, a Escola Maria Aparecida Rosa é a maior, com mais de 800 alunos/as matriculados/as no ano de 2018. Os procedimentos básicos da metodologia e as técnicas para a produção de dados, tomados de acordo com Barbier (2007) e Gatti (2005), serão: observação participante no campo de pesquisa (escola e sala de aula), através da pesquisa-ação; aplicação de questionário com perguntas abertas em torno da temática racial; gravação de entrevistas em grupos focais, direcionados pela pesquisadora com roteiro de perguntas focadas na temática racial; proposição de atividades educativas que gerem relatos escritos e debates. Interseccionalidade e feminismo negro Na pesquisa bibliográfica, observa-se que alguns dos principais trabalhos que apropriam-se do conceito de interseccionalidade ou do uso das categorias raça e gênero pensadas simultaneamente, não referiam-se no Ensino de História ou mesmo no campo historiográfico. São produções recentes das mais diversas áreas do conhecimento, o que atribui ao conceito de interseccionalidade uma abordagem diversificada e interdisciplinar. Contudo, foi observada uma lacuna bibliográfica relativa ao enfoque proposto por esta pesquisa: o Ensino de História e as intersecções entre as identidades raciais e de gênero. A jurista afro-estadunidense Kimberlé Crenshaw propôs o conceito de interseccionalidade em fins da década de 80, mas a partir da produção de um documento que integra o Dossiê da III Conferência Mundial contra o Racismo (Durban, 2001), o conceito popularizou-se no meio acadêmico, o que também tem levado a sua distorção e esvaziamento (AKOTIRENE, 2018). Aprendendo História: GÊNERO Página | 65 Aprendendo História: GÊNERO Página | 66 A reflexão de Crenshaw (2012) parte de sua preocupação com as leis antidiscriminação e com políticas públicas voltadas à solução das discriminações de gênero e raça. Ao perceber o modo como os movimentos feminista, hegemonicamente branco, e o movimento negro, hegemonicamente masculino, invisibilizava as mulheres negras, a jurista afro-estadunidense, assim como feministas negras brasileiras, desde fins da década de 70, alertam para a necessidade de atenção às duplas ou triplas discriminações. Crenshaw (2012, p. 9-10) explica a questão ao confrontar uma perspectiva hegemônica recorrente: “A visão tradicional afirma: a discriminação de gênero diz respeito às mulheres e a racial diz respeito à raça e à etnicidade. Assim como a discriminação de classe diz respeito apenas a pessoas pobres. Há também outras categorias de discriminação: em função de uma deficiência, da idade, etc. A interseccionalidade sugere que, na verdade, nem sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos”. Com esta compreensão da perspectiva interseccional como uma lente analítica e sensível atenta ao cruzamento de estruturas de dominação e opressão, a pesquisa foi pensada e conduzida teórica e metodologicamente pela busca de um olhar interseccional capaz de melhor decodificar as construções identitárias das estudantes entrevistadas, assim como considerar as contribuições desta abordagem para a formação proposta. O cruzamento das categorias gênero e raça foram, inicialmente, as bases para a formulação dos questionários de pesquisa e das observações. A partir da produção dos dados no decorrer da formação, assim como no diálogo com as entrevistadas – como era imaginado – e na própria sala de aula, outros eixos de diferenciação surgiram. Ao refletir sobre o proposto nas legislações vigentes sobre o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, sobre os trabalhos já produzidos no âmbito do Ensino de História, considero que há uma lacuna que demanda complexificar as abordagens. Crenshaw (2012, p. 15) sugere que “precisamos reconfigurar nossas práticas que contribuem para a invisibilidade interseccional”. Aponta que é preciso pensar medidas e métodos que desestabilize “a tendência de pensarmos sobre raça e gênero como problemas mutuamente exclusivos. Precisamos adotar uma abordagem de baixo para cima na nossa coleta de informações. Parar de pensar em termos de categorias, em termos de gênero e raça, de cima para baixo” (CRENSHAW, 2012, p. 16). São inúmeros os desafios para se construir essa “abordagem de baixo para cima” em uma pesquisa no campo do Ensino de História. As narrativas escolares e historiográficas tradicionais que insistem em perdurar e se renovar nos materiais didáticos e no imaginário escolar, a quantidade de estudantes em uma só turma, o vício aprendido com o colonizador em universalizar/generalizar e não particularizar sujeitos, em “separar por caixinhas” o pensamento como se esse caminho fosse sempre a garantia da aprendizagem, de uma didática aprimorada. Tudo isso em um contexto de crescente desconfiança e vigilância sobre as/os professoras/es, particularmente os de História. Muitos destes fizeram parte da trajetória da formação proposta na pesquisa, tanto dos/as estudantes como da minha própria formação como professora-pesquisadora. No artigo Gênero, currículo e pedagogia decolonial: anotações para pensarmos as mulheres no ensino de História, Larissa Costard (2017, p.159) propõe repensar o currículo, tido como narrativa que simboliza determinada concepção histórica, além de “questionar que histórias e que mulheres estão presentes na construção do saber histórico escolar, e especialmente que aportes podemos mobilizar para pensar currículos que rompam com uma história única das mulheres”. Em seu artigo, Atualidade do Conceito de Interseccionalidade para a pesquisa e prática feminista no Brasil, apresentado no Congresso Internacional Fazendo Gênero 10, Rodrigues (2013) traça um paralelo das concepções teóricas entre os movimentos de mulheres negras no contexto saxão e no Brasil. Aponta que, em nosso país, o conceito de interseccionalidade havia sido pouco discutido pela militância e academia. Rodrigues (2013, p. 2) aponta que tanto o movimento feminista e o movimento negro brasileiros, “acabaram produzindo formas de opressão internas, na medida em que silenciaram diante de formas de opressão que articulassem racismo e sexismo (...)”. No artigo citado acima, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Edna Roland, Luiza Bairros, Jurema Werneck, são algumas das mulheres negras lembradas como referências teóricas para o feminismo negro, permitindo que a cena política pensasse a condição das mulheres atrelada ao pertencimento racial, o que foi relevante nas primeiras iniciativas organizadas de combate às discriminações e apagamento impostos às mulheres negras historicamente. De acordo com a filósofa Djamila Ribeiro (2015), em artigo publicado na página do Instituto da Mulher Negra – Geledés, A perspectiva do feminismo negro sobre violências históricas e simbólicas, o conceito da interseccionalidade “vem sendo desenvolvido por mulheres negras ativistas há mais de um século e recebeu maior atenção quando a crítica e teórica estadunidense Kimberlé Crenshaw o utilizou como centro de uma tese, em 1989, para analisar como raça, gênero e classe se interseccionam e geram diferentes formas de opressão”. O levantamento bibliográfico desta pesquisa permitiu identificar uma lacuna no campo do Ensino de História, visto que raros estudos abordam, concomitantemente, as categorias de raça e gênero inseridas no Ensino de História, suas intersecções na expressão das identidades e relações sociais. Considerações finais O objeto de estudo da pesquisa encontra-se inserido em um cenário marcado por “esquecimentos” e apagamentos produzidos pela historiografia brasileira – centrada até poucas décadas atrás na perspectiva eurocêntrica e colonial. De tal forma, é preciso atentar-se ao modo como o Ensino de História tem tratado, ou mesmo silenciado, as múltiplas formas de discriminação racial e de gênero, assim como repensado as matrizes epistemológicas que constituíram a disciplina. Aprendendo História: GÊNERO Página | 67 Aprendendo História: GÊNERO Página | 68 O ensino de história, assim como a produção do conhecimento histórico, nas últimas décadas tem passado por uma profunda revisão, marcada pela disputa política e ideológica entre diversos campos do saber e atores sociais. Os métodos, o currículo, a representação da diversidade reivindicada pelos movimentos sociais tem definido temáticas e problemas constantemente revisitados. Um dos desafios seria proporcionar uma aprendizagem “considerada pelos jovens como significativa em termos pessoais, de modo a lhes proporcionar uma compreensão mais profunda da vida humana” (SCHMIDT et. al, 2011, p. 11). As reivindicações históricas do movimento negro caminham neste sentido, visando a concretização de um aprendizado significativo para a população afrodescendente do Brasil, que promova representação e consciência racial. A Lei n° 10.639/03, de 9 de janeiro de 2003, que complementa a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (n° 9.394/96) instituiu no currículo oficial da Rede Pública de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. No contexto escolar, observa-se um tratamento superficial dado às temáticas raciais, ao próprio debate sobre o racismo ou sobre a condição da mulher, especialmente a mulher negra. De tal forma, reflexões sobre a atuação da ideologia racial descrita acima se apresenta como uma das finalidades deste estudo, além de endossar a “extrema, inegável e absoluta importância que a educação contemple no currículo, nos projetos, nos rituais e no material escolar a diversidade da qual é composta a sociedade brasileira, e que o faça de maneira crítica” (PEREIRA, 2010, p. 14). Contudo, a “aplicação” das demandas raciais, tanto na esfera estatal quanto na dos movimentos sociais, tem colocado educadores/as, militantes e acadêmicos diante de um debate mais profundo, que envolve a possibilidade de construção de novos caminhos epistemológicos, da validação e do reconhecimento de saberes não-sacralizados. De acordo com Oliveira & Candau (2010, p.37), é preciso levantar questões capazes de operar mudanças de paradigmas: “Outro aspecto que pôde ser evidenciado é o fato de pôr em discussão, nos sistemas de ensino e no espaço acadêmico, a questão do racismo epistêmico, ou seja, a operação teórica que privilegiou a afirmação dos conhecimentos produzidos pelo ocidente como os únicos legítimos e com capacidade de acesso à universalidade e à verdade”. É possível à uma nova proposta teórico-metodológica, evidenciar e expor o racismo como componente estrutural da sociedade brasileira, presente nas relações e práticas sociais, no imaginário, na linguagem, na subjetividade dos/as personagens históricos marcados pelas heranças violentas do período colonial. As mulheres e meninas negras, ao encabeçar o topo dos indicadores de desigualdade de gênero, vulneráveis a formas de agressão simbólica e física, encontram-se numa evidente condição de desumanização e subalternidade. Cabe indagar como essas violências tem sido pautadas no ensino de história, desconstruídas ou mantidas, desnaturalizadas ou naturalizadas. A história ensinada tem abordado ou silenciado as mulheres negras? Este “ponto de partida” adotado busca não perder de vista a abordagem da temática de forma não estanque à atualidade do país e à materialidade das experiências vividas pelas adolescentes/alunas negras cotidianamente. Acredita-se, que esta pesquisa poderá proporcionar contribuições e subsídios consistentes à efetivação do proposto na lei 10.639/03, assim como nas demais legislações sobre educação etnicorracial. O cenário apresentado, em um contexto de violência, ódio e desrespeito aos direitos das mulheres e meninas negras em nosso país, o objeto desta pesquisa fundamenta-se, primordialmente, na tentativa de desestabilizar práticas arraigadas que promovem o apagamento de sujeitos e injustiças sociais. Entende-se que o papel do ensino de história encontra-se, também, nesta tarefa de desconstrução. A despeito dos avanços democráticos observados nas últimas décadas, inseridos no processo de redemocratização e na Constituição de 1988, da atuação dos movimentos negros e feministas, da legislação educacional vigente, observa-se uma conjuntura no país que reifica a violência racista e coloca as mulheres negras nos topo dos índices de desigualdade social. Diante do que foi exposto em termos de relevância, viabilidade e pertinência da pesquisa, entende-se que novas abordagens no Ensino de História, capazes de contribuir para uma educação antirracista e antissexista, serão construídas na medida em que a voz das mulheres e meninas negras sejam tomadas como ponto de partida para a elaboração de uma nova perspectiva pedagógica, mais inclusiva e igualitária. Referências Mestranda do Programa de Pós-Graduação Profissional em Ensino de História da Universidade Federal do Tocantins (ProfHistória-UFT), Campus Araguaína. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Endereço eletrônico: andreiacostasouza@gmail.com Orientador: Prof. Drº Dernival Venâncio Ramos Junior. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei no 10.639. Brasília: 09 de janeiro de 2003. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer 3/2004 - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2005. BARBIER, R. A pesquisa-ação. Trad. Lucie Didio. Brasília: Liber Livro, 2007. Aprendendo História: GÊNERO Página | 69 CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Coleção Consciência em debate. São Paulo: Selo Negro, 2011. Aprendendo História: GÊNERO Página | 70 CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Estudos Feministas, Ano 10, 1º Semestre, p.171-189, 2002. CRENSHAW, Kimberlé. A Interseccionalidade na Discriminação de Raça e Gênero. In Painel 1. 2012 - Cruzamento Raça e Classe - Disponível em <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wpcontent/uploads/2012/09/Kimber le-Crenshaw.pdf> Acessado em 05 de Abril de 2016. GATTI, B. A. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília: Liber Editora, 2005. OLIVEIRA, Luiz Fernandes de; CANDAU, Vera Maria Ferrão. Pedagogia decolonial e educação antirracista e intercultural no Brasil. Educ. rev., Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 15-40, abr. 2010 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010246982010000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em 05 abr. 2018. PEREIRA, Rosa Vani. Aprendendo Valores Étnicos na Escola. Coleção Formação Humana na Escola. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2009. RIBEIRO, Djamila. A perspectiva do feminismo negro sobre violências históricas e simbólicas. Brasil - Categoria: Mulher e LGBT Publicado: 05 Agosto 2015. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/a-perspectivado-feminismo-negro-sobre-violencias-historicas-e-simbolicas/>. Acesso em: 10 maio 2018. RODRIGUES, Cristiano. Atualidade do conceito de interseccionalidade para a pesquisa e prática feminista no Brasil, em SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Centro de Comunicação da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 16 a 20 de setembro de 2013. Anais. Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1384446117_A RQUIVO_CristianoRodrigues.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2018. SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; GARCI, Tânia B.. Significados do pensamento de Jörn Rüsen para investigações na área da educação histórica. In: BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de R.; SCHMIDT, Maria A. (Orgs). Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011. “PELO QUE NÃO ME SURPREENDE QUE TANTAS BRUXAS SEJAM DESSE SEXO”: DESCONSTRUINDO A FIGURA DA BRUXA EM SALA DE AULA Anna Luiza Pereira A atuação da Santa Inquisição na história é uma temática polêmica, que envolve diferentes perspectivas de pesquisa. Neste breve texto, pretendese refletir sobre a figura da bruxa ligada ao feminino, pensando as relações de gênero no medievo e início da Idade Moderna. Em sala de aula, o assunto pode ser problematizado com o uso e análise de fontes, buscando a desconstrução de estereótipos ligados a bruxa, enriquecendo a aprendizagem histórica. As bruxas e os bruxos são personagens temidos há séculos, principalmente entre as crianças que ainda ouvem contos assustadores sobre essas figuras canibais, homicidas e horrendas; basta lembrar, por exemplo, da história de João e Maria. Nesse conto, as crianças precisam se livrar da inimiga que tem como objetivo final devorar os dois irmãos, mas que acaba sendo derrotada por eles ao morrer queimada em um forno. Em meio ao mundo contemporâneo, há também referências que desconstroem a essência de crueldade dessas mulheres e homens ligados a prática mágica, como a famosa trama fílmica de Harry Potter, conhecida entre os adolescentes e cuja qual tem como protagonista o bom jovem bruxo. Entretanto, é inegável que a maioria dos exemplos de bruxaria que ouvimos desde a infância, é significativamente maior de mulheres, e que são principalmente ligados à maldade. Com isso, essa temática provoca a atenção dos estudantes, incitando-os a trazer consigo diversos saberes prévios sobre a figura da bruxa, através de filmes, séries, músicas, livros, jogos, entre outros, que apresentam personagens distintas. Esse tipo de conhecimento é muito importante para aproximar os estudantes da aula e para fazer uma reflexão sobre como as representações da figura mudam de acordo com o interesse e acompanham a mudança do imaginário através da história. “Paulo Freire, desde seus primeiros escritos dos anos 70, já considerava como ponto fundamental no processo de alfabetização de adultos o conhecimento que o sujeito cognoscitivo possui, a “leitura de mundo” imersa no pensamento de cada um. Cabe ao professor, na perspectiva freiriana, reconhecer e estabelecer um diálogo com esse conhecimento, porque os alunos estão sempre em um processo de aprender mais e não são absolutamente sujeitos acomodados; ademais, adverte-nos o grande educador, o conhecimento não é um dado imobilizado apenas transferido de um especialista para outra pessoa que ainda não o possui.” [BITTENCOURT, 2009, p.190] Para explorar esse saber prévio, é interessante pedir aos estudantes que desenhem em uma folha uma representação da ideia de bruxaria. Pode-se Aprendendo História: GÊNERO Página | 71 Aprendendo História: GÊNERO Página | 72 notar, na maioria das vezes, diferentes desenhos mesclando os mesmos elementos: uma mulher idosa com um longo chapéu, vestimentas pretas, com uma verruga no nariz, voando em uma vassoura, solitária ou com seu fiel companheiro (o gato preto), o caldeirão em alguma parte do cenário e geralmente fazendo algo perverso, que tornam uma “bruxa reconhecível” por qualquer um, mesmo uma criança. Após uma breve comparação dos desenhos feitos pelos alunos, pode-se anotar no quadro as principais características definidas para se pensar como esse modelo estereotipado foi pensado e popularizado, articulando diferentes contextos históricos e imaginários, principalmente buscando refletir porque a bruxaria foi tão ligada ao feminino. Para problematizar a temática, é preciso remontar séculos atrás. A crença em práticas mágicas permeia a vida humana desde a Antiguidade. E, como afirma Laura de Mello e Souza [1987, p.11 -12], deste período em diante já é possível ligar a feitiçaria às mulheres. Exemplos como Hécate, Diana, Dama Habonda, entre outras tantas entidades, são famosos. Do louvor à perseguição, a feitiçaria foi considerada crime apenas a partir da baixa Idade Média, “onde a magia pagã se atrelou a práticas demonológicas, surgindo o Príncipe das Trevas como a divindade máxima a ser cultuada”. [MELLO E SOUZA, 1987, p.12]. Desde então, a Igreja não mais negaria sua existência, e seguiria seu rastro para poder puni-la, na qual a maioria das acusadas eram mulheres. “Mal magnífico, prazer funesto, venenosa e enganadora, a mulher foi acusada pelo outro sexo de ter introduzido na terra o pecado, a desgraça e a morte. Pandora grega ou Eva judaica, ela cometeu a falta original ao abrir a urna que continha todos os males ou ao comer o fruto proibido. O homem procurou um responsável para o sofrimento, para o malogro, para o desaparecimento dado paraíso terrestre, e encontrou a mulher”. [DELUMEAU, 2009, p. 468] O fim da Idade Média e o início da Idade Moderna foi acompanhado por diferentes crises, como aponta Jacques Le Goff (2007), abalando a segurança e as estruturas: houve problemas na agricultura e no sistema feudal, ascendeu a monarquia, estouraram guerras, a peste negra, a violência, a fome se disseminaram, houve o Grande Cisma, surgiram revoltas camponesas e urbanas, entre muitos outros eventos. Com tantas provações ocorrendo, foi sustentada a crença na cólera divina e na ação demoníaca de novos inimigos, como feiticeiras, judeus, protestantes (Reforma Protestante), entre outros. Assim, com vários agentes maléficos à solta, haviam ainda outros temores que assolavam a população, como a temida crença na vinda do Anticristo, o Apocalipse, o horror religioso ao pecado, entre outros, como afirma Delumeau [1989, p.61]. Dessa forma, havia um crescente medo das feiticeiras que, compactuadas com o demônio, poderiam causar grandes males, espalhando o medo e a morte na comunidade. Com essa situação, “o medo do Diabo gerou o medo das feiticeiras. O medo de ambos gerou a perseguição e o extermínio do inimigo visível: as bruxas”. [MACEDO, 2002, p.54] “A obra que orquestraria essa perseguição das bruxas foi o Malleus Maleficarum, isto é, O Martelo das Feiticeiras, de dois dominicanos do vale do Reno e Alsácia, Jacó Sprenger e Henrique Istitoris. A obra apareceu reimpressa em 1486. Os dois autores situam o combate contra as feiticeiras numa visão dramática e apaixonada de sua época. Eles as vêem tomadas de desordens de todo tipo, em particular de desordens sexuais, e em posse de um diabo desacorrentado. O martelo das bruxas é um produto e um instrumento do que Jean Delumeau chamou de “cristianismo do medo”. No interior dessa nova intolerância, a crença aterrorizada numa alucinante prática de bruxarias, o Sabat, introduziu uma nota tão mais espetacular porque inspirava facilmente a iconografia. Uma Europa da perseguição às bruxas, uma Europa do Sabat tinha nascido.” [LE GOFF, 2007, p.235] Segundo a historiadora Laura de Mello e Souza [1987, p.13], “foram os caçadores de bruxas que lhes desenharam o perfil aterrorizador, estereotipado nas denúncias e no corpo de processos laicos e eclesiásticos, nos manuais de inquisidores, nos tratados demonológicos”. A Inquisição medieval, embora já punisse os considerados heréticos, expande sua caça na Idade Moderna com extrema violência, principalmente em busca daqueles ligados à bruxaria. Outro ponto importante sobre a época em questão, era a mistura cotidiana entre o sagrado e o profano que assolava a população, mesmo membros das igrejas. Eram comuns por parte das pessoas as simpatias, crença em poderes mágicos, fantasmas, e em divindades além da fé cristã. Como afirma Francisco Bethencourt (2004, p.69), em seu livro “O imaginário da Magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI”: “esses procedimentos nem sempre se desligavam da ortodoxia católica, verificando-se algumas práticas “supersticiosas” que aproveitavam elementos do sagrado cristão para efetuar seus ritos considerados ilegítimos pela hierarquia da Igreja”. Esses ritos aos que autor se refere possuem diferentes finalidades, da cura à morte. Na época ainda, a regularização da medicina enquanto profissão rivalizava com as pessoas responsáveis pela cura nas comunidades através de produtos naturais, entre outros. Nesse sentido, com a magia sendo algo tão próximo, suspeitava-se mesmo dos vizinhos quando algo de ruim acontecia na região. A morte de crianças, tempestades, pestes, entre outros, poderiam ser fenômenos atribuídos a “bruxaria”, causada pelos mais diferentes motivos. Assim, a inquisição era atuante nesses casos e precisava se fazer necessária. A seguir, um trecho encontrado no manual dos inquisidores Malleus Maleficarum (1476). “Algum tempo atrás, uma cidade vinha sendo quase que totalmente despovoada pela morte de seus cidadãos; e corria um rumor entre os moradores: uma certa mulher, que fora queimada, vinha comendo Aprendendo História: GÊNERO Página | 73 Aprendendo História: GÊNERO Página | 74 gradualmente o manto com o qual fora queimada, e a peste não cessaria enquanto ela não comesse todo o manto e o absorvesse em seu estômago. Reuniu-se o conselho. O potestade e o governador da cidade decidiram abrir o túmulo. E verificaram que a bruxa morta engolia o manto, o qual, passando pela boca e pela garganta, descia até o estômago, onde era absorvido. Diante do quadro pavoroso, o potestade sacou de sua espada e decapitou o cadáver, retirando a cabeça do túmulo. Pois que de imediato a peste foi debelada. Os males provocados por aquela mulher, por permissão divina, haviam se abatido sobre os inocentes do lugar em virtude da dissimulação do que antes se sucedia. Pois por ocasião da Inquisição descobriu-se que há muito tempo a mulher já vinha praticando bruxaria.” [KRAMER, SPRENGER, 2009, p.185) O que chama a atenção se tratando do período em questão, é número significativo de mulheres acusadas nos processos bruxaria, que segundo Peter Burke (1989, p. 189), era reforçado pelas tradições populares misóginas no qual frequentemente as mulheres eram retratadas como vilãs ardilosas. O livro Malleus Maleficarum, é repleto de passagens nas quais as mulheres são hostilizadas. “E, com efeito, assim como, em virtude da deficiência original em sua inteligência, são mais propensas a abjurarem a fé, por causa da falha secundária em seus afetos e paixões desordenados também almejam, fomentam e infligem vinganças várias, seja por bruxaria, seja por outros meios. Pelo que não surpreende que tantas bruxas sejam desse sexo.” [KRAMER, SPRENGER, 2009, p.126] Em outro trecho, “[...] possuidoras da língua traiçoeira, não se abstêm de contar às suas amigas tudo o que aprendem através das artes do mal; e por serem fracas, encontram modo fácil e secreto de se justificarem através da bruxaria. Ver a passagem do Eclesiástico, já mencionada: “É melhor viver com um leão ou um dragão que morar com uma mulher maldosa”. “Toda a malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher”. E podemos aí editar que agem em conformidade com o fato de serem muitíssimo impressionáveis”. [KRAMER, SPRENGER, 2009, p.123] Caso não fosse considerada virtuosa aos moldes religiosos, acreditava-se que “a mulher, inspiradora do desejo, é por excelência agente do mal, causa do desespero, da morte e da danação eterna” [MACEDO, 2002, p.69]. Sendo os homens apontados como vítimas da perfídia feminina muitas vezes. “Boa parte do arsenal antifeminino dos teólogos e moralistas baseava-se na regra segundo a qual as mulheres levavam o homem à danação. Eram consideradas perigosas, frágeis, astuciosas, encrenqueiras, inconstantes, infiéis, e fúteis; sensuais, representavam obstáculo à retidão.” [MACEDO, 2002, p.68]. Em uma sociedade patriarcal, várias mulheres acusadas por crime de bruxaria, muitas vezes não se submetiam ao comportamento esperado, como é o caso daquelas que escapavam da tutela masculina, seja de algum membro da família ou mesmo do marido. Haviam vários estereótipos que cercavam a “bruxa”, como a velhice, tantas vezes representada na iconografia do período até os dias de hoje. A velhice juntada a outras características poderia agravar consideravelmente a situação da mulher acusada. “Essa figura estereotipada da bruxa já se encontrava definida no início da Época Moderna. Mulheres sozinhas, solteironas ou viúvas constituíam a maioria das acusadas nos processos que se desenrolaram na Europa de então. Se fossem feias e velhas, a suspeita ficava ainda mais forte. Essa tendência em desprezar e condenar mulheres decrépitas constitui, segundo Delumeau, a vertente negativa do apreço renascentista pelas carnes duras das belas ninfas e das Vênus nuas. Não são poucas as representações pictóricas do período que retratam mulheres velhas desdentadas, descabeladas, de seios caídos e coxas flácidas voando em direção ao sabbat ou assessorando algum demônio nos suplícios infernais”. [MELLO E SOUZA, 1987, p.15] É importante saber que a discussão historiográfica em torno da caça às bruxas é bastante vasta e variada, sendo fundamental apresentar diferentes perspectivas aos estudantes, principalmente porque muitas vezes o tema é entendido de maneira anacrônica. Assim, em relação aos estereótipos da bruxaria da idade moderna, no qual o feminino e o mau são frequentemente representados juntos, é interessante ressaltar que as fontes provêm, na maioria, da ótica masculina, que não era nem um pouco neutra. Entretanto, para agregar a aprendizagem histórica, a análise de fontes é muito importante para que os alunos sejam produtores de conhecimento. Pode-se usar por exemplo, trechos da obra Malleus Maleficarum para refletir sobre o medo historicamente construído em torno do feminino, buscando captar as intenções da fonte. Pode-se perguntar aos alunos questões relativas ao contexto histórico, e outras como: “a quem se refere a passagem e quais são suas características? Por que e para quem se escreveu?”, com o objetivo de desenvolver a capacidade de análise e interpretação. Da mesma forma, deve-se juntamente com uma historiografia escolhida, mostrar diferentes posições ocupadas pelas mulheres e seus diferentes papéis, buscando afastar os estereótipos. Em relação à bruxa, como medo historicamente construído, pode-se analisar suas características percebendo como se articulam com o imaginário da época, problematizando a figura da mesma ao longo do tempo. É significativo discutir as relações de gênero na época em questão, com foco nas mulheres que se encontravam à margem do modelo tradicional vigente e como isto impactava nas denúncias por bruxaria no contexto em questão. Aprendendo História: GÊNERO Página | 75 Em tempos em que se discute muito a respeito das lutas feministas em busca de justiça social, é muito importante problematizar a construção de papeis sociais em sala, espaço de pluralidade de ideias e de diferentes realidades. Aprendendo História: GÊNERO Página | 76 Finalmente, nesse brevíssimo texto, buscou-se refletir sobre como o imaginário do contexto era hostil as mulheres em certos aspectos, colocando-as como vulneráveis principalmente diante da ideia de pecado em uma sociedade patriarcal, sendo fundamental desconstruir vários dos estereótipos ligados ao feminino. Para isso, e não somente a respeito das mulheres, entende-se que a principal forma de alcançar este objetivo é por meio da educação, como um espaço de debate, produção de conhecimento e transformação da realidade. Referências Anna Luiza Pereira é acadêmica do curso de História da Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR. BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da Magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2009. BURKE, Peter. A cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500 – 1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. _____________. Nascimento e Afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2015. LE GOFF, Jacques. Outono da Idade Média ou primavera de tempos novos? In: As raízes medievais da Europa. Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p.220 – 274. MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 2002. MELLO E SOUZA, Laura de. A feitiçaria na Europa Moderna. São Paulo: Ática, 1987. EM DEFESA DA EDUCAÇÃO DA MULHER NO BRASIL IMPÉRIO: ELEMENTOS DE UM DEBATE NA ASSEMBLEIA PROVINCIAL DE PERNAMBUCO Aruanã Antonio dos Passos Carolina Rodrigues da Silva De maneira recorrente a Escola do Recife é definida como o ethos pioneiro de recepção e circulação das ideias evolucionistas no Brasil (Cf: SKIDMORE, 2012; ALONSO, 2002; RABELLO, 1967; SCHWARCZ, 1993). Definida como um movimento intelectual com sede na Faculdade de Direito do Recife, foi um dos centros de contestação do status quo do Império e de recepção das ideias estrangeiras, especialmente europeias no fim do século XIX. Seu “pai” fundador ou mestre referenciado frequentemente é o filósofo e jurista sergipano Tobias Barreto (1839-1889). Pretendemos, neste breve trabalho, apresentar o debate sobre a educação feminina, o qual Tobias participou quando da sua atuação como deputado da província de Pernambuco a partir de 1879. Inicialmente destacamos nesse contexto de recepção de ideias estrangeiras a profusão de citações de ideias e obras dos expoentes das variadas vertentes evolucionistas, do lamarckismo ao darwinismo social, se dá, no interior do movimento e de modo geral, em grande medida pelas possibilidades que essas ideias forneceram de diferenciação desses intelectuais num campo cada vez mais dominado pela doutrina positivista. O próprio Romero realça a interpretação que se consolidará, a posteriori do pioneirismo do nordeste, na propagação dos ideários da evolução. Nas suas palavras: “Mas eis que no Rio de Janeiro só de 1874 em diante é que pela primeira vez os nomes de Darwin e Comte foram conscientemente pronunciados em público em conferências e escritos, quando em Pernambuco eram de vulgar notícia entre os moços de talento desde 1869”(ROMERO, 1980, p. 1189). Assim, no Recife se organizava um front de combate ao positivismo, no qual: “Martins Júnior, Clóvis Bevilaqua e Clodoaldo Freitas fundam o jornal Idéia Nova em 1880” (CARELLI,1994, p. 152), com o intuito de rebater a doutrina de Comte. Sílvio Romero conjecturou um lenitivo de diversidade racial e cultural como chave explicativa para os desdobramentos sociais que a nação sofreria. Esse raciocínio se fundamentava na origem de nossa constituição social, já que desde o nascimento o país foi forjado pela convivência entre raças distintas. Da perspectiva de Tobias Barreto, a questão pode ser tangenciada pela sua defesa veemente da educação enquanto elemento fundamental de civilização, independente de condição racial ou sexual. É um outro olhar que transcende um determinismo de “choque” de culturas. Um dos momentos mais importantes de afirmação dessa sua convicção no poder da educação no processo civilizatório não se deu de forma puramente “teórica”, mas se fez ação nas arenas políticas através de dois momentos bastante marcantes da trajetória do Tobias, deputado provincial. Os dois momentos se revelam Aprendendo História: GÊNERO Página | 77 nas seções da Assembleia de Pernambuco. O primeiro no debate sobre o pedido de uma jovem que solicitara uma bolsa para estudar medicina na Rússia e o segundo na defesa de seu projeto para criação de uma escola voltada à instrução feminina. Acompanhemos os dois momentos. Aprendendo História: GÊNERO Página | 78 O primeiro momento se inicia na sessão da Assembleia de 22 de março de 1879. Tobias sucede seu colega, Dr. Malaquias, que fizera um discurso com uso de argumentação da ciência da época defendendo a inferioridade biológica da mulher, o que impossibilitaria seu desenvolvimento cognitivo. Para isso, a base de sua argumentação eram os trabalhos de medição de crânios e cérebros, bastante em voga nesse momento. Ao assumir a tribuna, Tobias já contesta o colega ao afirmar que “cada cousa tem suas nove faces, diz o proverbio”(BARRETO, 1926, p. 42). Tobias então ataca e questiona a teoria defendida pelo Dr. Malaquias, segundo a qual a inferioridade da mulher estaria assentada em base científica e não num puro conservadorismo das estruturais sociais que relegavam à mulher um papel que não permitia a ela realizar atividades consideradas masculinas, como estudar. Segundo Tobias (reproduzimos a linguagem da época): “(…) já de muito retirou-se do combate, envergonhada de si mesma, theoria decrepita, sem razão de ser, pretendida physiologica, da mulher condemnada por natureza á incapacidade e ao atraso mental, theoria que já hoje, no mundo da sciencia, representa o mesmo papel, que representa, no mundo poetico, a insulta maldição classica dos vates indignados contra as Marilias sempre ingratas, as Marcias sempre crueis, as Jonias sempre traidoras” (BARRETO, 1926, p. 43). E prossegue na sua argumentação: “Neste caso está o dogma impertinente, o artigo da fé tradicional, que se quer impor como baseado em provas physiologicas, relativo a não sei que incompetência natural da mulher para o cultivo completo de suas faculdades mentaes” (BARRETO, 1926, p. 45). Sua linha argumentativa se baseia em homens notáveis e renomados da ciência da época defendiam o fato de que a mulher teria totais condições para exercer qualquer forma de ciência, sem qualquer prejuízo ou condicionante para o exercício desses saberes: “Os factos ahi estão e com elles o testemunho de homens notabilissimos. Não é possível mais insistir de encontro ao que já é verdade reconhecida; salvo, se se pretende qualificar todos esses homens de incompetentes, ou animados de paixões inconfesaveis, o que não é admissível. São homens sérios, que estudaram a materia com seriedade da sciencia” (BARRETO, 1926, p. 52). Tobias cita casos da Universidade de Zurich em que mulheres obtiveram títulos de doutorado em medicina, notadamente o caso mais famoso da russa Nadeschda Suslowa (1843-1918). A tese defendida pelo Dr. Malaquias, ao qual Tobias rebate em cada detalhe, é a de que a medição do cérebro realizada era vetor de equivalência e como critério de determinação do nível de inteligência de um ser humano, porque seguia um postulado que entendia que quanto mais desenvolvido o órgão, mais desenvolvida seria a sua especialidade. Mas, Tobias relativiza sua defesa da emancipação da mulher. Afirma ele, que do ponto de vista politico, pessoalmente não tem certeza de que a mulher possa participar da vida política e volta então sua defesa ao que chama de aspecto civil da questão: “Pelo que me toca, porém, ao ponto de vista civil, não ha duvida que se faz necessario emancipar a mulher do jugo de velhos prejuizos, legalmente consagrados. Entre nós, nas relações da família, ainda prevalece o principio biblico da sujeição feminina. A mulher ainda vive sob o poder absoluto do homem. Ella não tem, como devera ter, um direito igual ao do marido, por exemplo, na educação dos filhos; curva-se, como escrava, á soberana vontade marital. Essas relações, digo eu, deveriam ser reguladas por um modo mais suave, mais adequado á civilisação” (BARRETO, 1926, p. 56). Após contestar duramente a tese do seu colega, Tobias passa a desvelar as motivações que estariam ocultas no discurso do Dr. Malaquias, notadamente a sua dimensão moral ancorada na ideia do pecado original (BARRETO, 1926, p. 57). Tobias contrapõe o oponente e pondera: “Com effeito Sr. presidente, dizer que a mulher não tem competencia para os altos estudos scientificos é, além do mais, um erro historico, um attentado contra a verdade dos factos”. Então, passa a construir uma digressão histórica para corroborar seu ponto de vista, recurso de erudição para reforçar sua argumentação, donde remonta aos filósofos gregos e a presença das mulheres na tradição de pensamento clássico: “Assim vemos apresentarem-se na Grecia, além de Sapho, Myrtis e Corinna, tambem poetisas, a quem cabe a gloria de terem sido mestras do maior lyrico daquella nação, mestras de Pindaro. E não somente a poesia, a philosophia teve igualmente suas dignas representantes. Dest'arte nomeiase como primeira philosopha Clobulina, filha de Cleobulo, que floresceu na época dos sete sabios. Pythagoras contou, entre os seus discipulos, grande numero de mulheres. Diz-se mesmo que elle aprendeu a philosophia com sua irmã Themistocléa, e que a sua mais applicada discipula foi Theano, sua mulher. Nomeia-se ainda a Thargelia, de Mileto, mestra de Aspasia, a mulher de Pericles, a mestra de Socrates…”(BARRETO, 1926, p. 61). O filósofo sergipano passa então à defesa da educação como forma de emancipação, tal qual seu contemporâneo Tavares Bastos também a compreendia e que Romero também compactuava, especialmente em relação à abolição dos escravos. Romero defende que aos escravos: “a instrução popular tornando efficaz a obrigatoriedade do ensino primario e a liberdade plena do secundario e superior” (ROMERO, 1883, p. 15). Segundo ele: “É possível que, precedendo-se a uma analyse das qualidades masculinas e femininas, descubra-se realmente ao homem maior gráo de desenvolvimento; mas, este phenomeno se explica pela razão que acabei Aprendendo História: GÊNERO Página | 79 Aprendendo História: GÊNERO Página | 80 de indicar e que é incontestavel: a educação incompleta, a cultura escassa da mulher. Até hoje educada só e só para a vida intima, para a vida da família, ella chegou ao estado de parecer que é esta a sua única missão, que nasceu exclusivamente para isto. E tal é a illusão, em que laboramos: tomando por effeito da natureza o que é simplesmente um effeito da sociedade, negamos ao bello sexo a posse de predicados que aliás elle tem de commum com o sexo masculino” (BARRETO, 1926, p. 62). Tobias ataca ainda a noção corrente naquele momento do sentimento como expressão de fraqueza, fato esse que determinaria uma suposta fragilidade no caráter feminino, tendo em vista, que supostamente a expressão dos sentimentos e da emotividade seria mais propenso às mulheres: “Ora, se para uma continua applicação e estudos profundos, é mister uma vida sedentaria, de solidão e recolhimento, não ha duvida que a mulher, por este lado sobrepuja o homem em disposição naturaes para o cultivo das sciencias. Pouco importa o facto que eu não nego, de haver no mundo feminino um certo predominio da sentimentalidade. Effeito da educação, é não da natureza, esse phenomeno cessará, desde que cesse a sua causa. Como não se chegar a similhante resultado, como não dar-se na mulher essa preponderancia do sentimento sobre a razão, se até hoje a sua educação tem sido preponderantemente sentimental? Começa pela educação religiosa, que é toda de sentimento; vem em seguida a educação moral, que ainda é de preferencia dirigida á sensibilidade, e afinal completase a obra com o dispertar do sentimento esthetico, - é o piano, é o canto, é a musica em geral. Isto por annos, atravez de muitas gerações, não podia deixar de produzir as consequancias que ahi vemos” (BARRETO, 1926, p. 63). Conclui então que: “Todo homem tem sua mania; e é infeliz aquelle que não a tem: a minha mania, senhores, é pensar que grande parte, senão a maior parte dos nossos males vem exactamente da falta de cultura intellectual do sexo feminino”(BARRETO, 1926, p. 67). E, em resposta ao Dr. Malaquias, que realiza sua tréplica, sucedendo novamente Tobias na tribuna nessa mesma sessão do dia 22 de março, uma vez mais o sergipano retomará o movimento de defesa da educação como fundamento de emencipação, já que para Tobias era inconteste a opinião de que a educação era o mecanismo de esclarecimento do povo, preceito posteriormente basilar para o projeto republicano. Nas suas palavras: “eduque-se o povo, e teremos então uma opinião pública illustrada”(BARRETO, 1926, p. 88-9). A educação enquanto manifestação da cultura, como no posicionamento de Tobias sobre a educação da mulher, era a chave para resolução dos nossos profundos problemas sociais. Ele inicia sua argumentação relativizando a inferioridade natural da mulher, defendida por seu opositor neste debate, recorrendo a um postulado historicista: “Eu sei que ha ainda um certo prejuizo arraigado, e difficil de extirpar, a respeito da inferioridade da mulher. Ha quem diga infelizmente… para vergonha da época, que a mulher nasceu sómente para a agulha ou para o tear!… Esta theoria é do tempo, em que o homem tambem só tinha nascido para a enxada. Houve um tempo, com effeito, em que o homem, no espirito de muita gente somente nascera para esse mister; e tanto assim é que a reminiscencia existe na linguagem; ainda hoje se diz: a banca do advogado é sua enxada; a enxada do actor é o palco, etc., etc. Isto, que é uma especie de psychologia do povo estudada na língua, autorisa-nos a affirmar que já houve realmente uma época, em que o supremo ideal da actividade varonil, aquillo que o homem de mais nobre podia aspirar, era… a enxada. Desse tempo é gracioso dito: que a mulher se deve limitar á agulha ou ao tear” (BARRETO, 1926, p. 74). Poética e razão se embrincam na construção da retórica no debate. E se, “a mulher é a melhor metade do gênero humano”, não haveria base de sustentação da superioridade masculina, as diferenças entre os sexos são de ordem da evolução da espécie, logo histórica e provisória. “Ora, o homem physicamente, dista pouco de um gorilla. Não exagero, é a verdade. Abstrai-se da roupa, dos appendices artificiaes e diga-se então se, considerado em sua forma natural, o homem não se approxima somente do macaco? Mas agora vejamos tambem: póde-se imaginar formas mais bellas do que as de uma bella mulher?… Parece que a natureza, realisando a mulher, fez o que de mais completo cabia nas suas forças. Se pelo morphologico, foi ella tão poeta, podia ser tão prosaica pelo lado physiologico?” (BARRETO, 1926, p. 75). Dessa maneira, nessa harmonia entre fisiologia e o desenvolvimento biológico, não faria sentido constatar um suposto erro da natureza na definição das características entre os gêneros: “A natureza não faz distinção: ella é toda harmonica. A desharmonia é creação nossa, é obra da sociedade. A natureza, que harmonisa tudo, não póde ter querido que a bonitas formas deixem de corresponder funcções perfeitas” (BARRETO, 1926, p. 75-6). Ainda que Tobias declare sua ojeriza à retórica performativa e vazia: “Eu não gosto de rhetorica, se bem que todas as vezes que aqui me levanto, rhetorise um pouco; sou inimigo da rhetorica, não gosto de palavreado, em que gastamos um tempo enorme, e o que mais admira, inutilmente!” (BARRETO, 1926, p. 89), é inegável que seu poder de argumentação reside na harmonia entre uma dimensão estética do discurso e sua defesa de uma razão científica. O segundo movimento de Tobias, de defesa da educação como força motriz do desenvolvimento social, é seu “Projecto de um Parthenogogio” apresentado à Assemblea de Pernambuco em 1879. De início, Tobias já assume que o projeto de criação de uma instituição para instrução feminina já nascera morto: “(…) o projeto que apresentei e que se discute, é um daquelles que parecem de antemão condemnados a morte prematura, porque elle tem por fim a realisação de uma novidade e nós não estamos muito habituados a acceitar de bom grado, sobre tudo nos dominios da vida publica, os Aprendendo História: GÊNERO Página | 81 tentamens de caracter novo, que involvem sempre uma ousadia, que importam sempre uma invasão arriscada no terreno desconhecido” (BARRETO, 1926, p. 91). Eis a definição do projeto: Aprendendo História: GÊNERO Página | 82 “(…) o projecto encerra no seu fundo a satisfação de uma das mais urgentes necessidades da provincia, qual é sem duvida a necessidade de instrução, em geral e particularmente, feminina, instrucção em mais alto gráu e melhores meios, do que presentemente existe. O projecto não tem em vista inaugurar na provincia o dominio das blue stocking ou das précieuses ridicules, mas simplesmente abrir caminho, entre nós, á solução lenta e fradual de uma das mais graves questões da actualidade: a elevação do nível intellectual da mulher ou, se assim posso dizer, a purificação, pela luz, da atmosphera em que ella gira” (BARRETO, 1926, p. 92). Mais uma vez, ele recorre e sustenta sua argumentação no pensamento alemão, o qual teve contato, para reafirmar a instrução para todos os gêneros sexuais. “Se eu tivesse que filiar minha ideia num principio mais elevado, não filiala-hia por certo neste ou naquelle arroubo sonhador, mas numa verdade pratica, bellamente expressa por um homem pratico. Frederico Diesterweg, um notavel espirito allemão, o qual, com Pestalozzi e Froebel, é o terceiro na série dos grandes pedagogos da idade moderna, se exprime deste modo: A liberdade do povo e a felicidade do povo, pela cultura do povo não pódem ser conseguidas por meio da instrução parcial, ministrada a um só sexo” (BARRETO, 1926, p. 93). E novamente, defesa do argumento de que a educação que serve à civilização reaparece de forma incisiva, nos seguintes termos: “Se as mulheres são seres humanos, que têm uma missão na sociedade e deveres a cumprir para com ella, se, como seres humanos, as mulheres trazem comsigo thesouros espirituaes que devem ser aproveitados e desenvolvidos, é preciso todo o escrupulo de uma freira, ou toda a logica de um frade, para entender que estabelecimentos da ordem do que se acha indicado do projecto, não passam de appendices ou excrescencias inuteis, quando elles são, pelo contrario, complementos indispensaveis da educação total de um povo civilisado, ou mesmo civilisavel, se não é que nós outros brasileiros pertencentes áquella classe de povos crepusculares, de que fala H. Klencke, povos que vivem no lusco e fusco perpetuo de uma semicultural banal, sem saber o que são nem o que devem ser, atacados da mais grave das psychoses, a photophobia intellectual, o medo da luz, o horror da claridade” (BARRETO, 1926, p. 94). Certamente, nas projeções de futuro construídas nos projetos políticos e debates que os integrantes da Escola do Recife estiveram envolvidos, e no espírito geral do Brasil Império, a defesa da educação como meio de emancipação não era precisamente uma novidade. Essa ideia tem raízes antigas reatualizadas pelos filósofos e cientistas iluministas – materializada na célebre referência atribuída a Francis Bacon, “scientia potentia est”. O que não podemos negar é o frescor que a proposta de extensão e inclusão da instrução às mulheres possuía nesse momento e naquele contexto de debates (fins do século XIX) numa sociedade patriarcal e escravista. Nesse quesito, Tobias particularmente, se antecipava décadas aos movimentos de luta política e as conquistas das mulheres no espaço público, ainda que seu projeto apresentado à Assembleia não tenha sido aprovado. Negligenciar seu pioneirismo é ocultar esse fato, ainda que se acuse seu pioneirismo de ser demasiado incidental e pontual para formular um capítulo singular nessa longa história (Cf: NASCIMENTO, 1999, p. 203 e ss). No entanto, há uma tensão latente entre passado, presente e futuro nessa equação. Nas palavras de Alfredo Bosi, ela pode se expressar nos seguintes termos: “às vezes o presente busca ou precisa livrar-se do peso do passado; outras, e talvez sejam as mais numerosas, é a força da tradição que exige o ritornello de signos e valores sem os quais o sistema se desfaria” (BOSI, 1992, p. 377). O peso de Tobias e da Escola do Recife residiria de forma contundente de suas próprias posições, ou nas posições que assumiram para posteridade? Além da educação da mulher, defendida pelo sergipano, onde se revela um lugar de emancipação através da educação, outro horizonte para se enfrentar a questão é analisar o lugar da raça, ou ainda, do evolucionismo que chegava ao Brasil. Mas essa já outra face da história da recepção e circulação das ideias no Brasil oitocentista. Referências Aruanã Antonio dos Passos é doutor em História e docente do Departamento de Ciências Humanas da UTFPR, campus Pato Branco. Carolina Rodrigues da Silva é graduada em História e Pedagogia. Mestranda em Desenvolvimento Regional pela UTFPR, campus Pato Branco. Bolsista CAPES. ALONSO, Angela. Idéias em Movimento. A geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. BARRETO, T. Discursos. (Obras Completas IV). Sergipe: Edição do Estado do Sergipe, 1926. BOSI, A. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CARELLI, M. Culturas Cruzadas: intercâmbios culturais entre França e Brasil. Campinas: Papirus, 1994. MORAES FILHO, E. As ideias fundamentais de Tavares Bastos. 2. Ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. NASCIMENTO, J. A Cultura Ocultada ou a Influência alemã na Cultura Brasileira durante a segunda metade do século XIX. Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 1999. Aprendendo História: GÊNERO Página | 83 RABELLO, Sylvio. Itinerário de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. ROMERO, S. Lucros e perdas: chronica dos acontecimentos mensais. Rio de Janeiro: Livraria Contemporanea de Faro & Lino, 1883. Aprendendo História: GÊNERO Página | 84 ____. História da Literatura Brasileira. Contribuições e Estudos Gerais para o Exato Conhecimento da Literatura Brasileira. (4º Volume). 7.ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1980 SCHWARCZ, L. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade pensamento brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. no EDUCAÇÃO DAS MÃES E CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO NOS DISCURSOS DO JORNAL “A MÃE DE FAMÍLIA” Cássia Regina da S. Rodrigues de Souza A presente análise busca investigar os discursos higiênicos relacionados à maternidade difundidos pela comunidade médica no século XIX. Em um momento de esboço de uma sociedade burguesa em ascensão, à mulher foi atribuída a missão de ser a principal responsável pelo sucesso da família. A maternidade, tida como um ato de redenção, elevou a figura feminina, colocando-a como destaque e uma das principais destinatárias dos tratados médicos de então. Abaixo, podemos verificar o papel assumido pela mulher na sociedade brasileira desse período: ”Da esposa do rico comerciante ou do profissional liberal, do grande proprietário investidor ou do alto funcionário do governo, das mulheres passa a depender também o sucesso da família, quer em manter seu elevado nível e prestígio social já existente, quer em empurrar o status do grupo familiar mais e mais para cima” (D’INCAO, 2008, p.229). Tais tratados tinham o objetivo de preparar a mulher tanto para a vida privada quanto pública e se propunham a redefinir o seu papel pois, de acordo com a medicina oitocentista, o quadro familiar brasileiro não era adequado aos princípios higiênicos: “ as casas insalubres, os hábitos alimentares e de asseio corporal deploráveis, a educação física e intelectual abandonada (...)” (MARTINS, 2004,p.226), portanto, se dispunham a formar um determinado modelo de mãe, orientada e domesticada pela ciência, abençoada pela religião e idealizada pela Estado. O jornal A Mãi de Família constitui uma amostra dos discursos médicos de finais dos Oitocentos. O periódico, fundado pelo médico Carlos Costa, tinha como mote a “educação da infância e a higiene da família” e representa o reflexo das teorias higiênicas vigentes que permearam o ensino médico no Brasil, onde a maternidade, estabelecida como função primordial da mulher, foi constituída como um campo de constantes debates. Através de sua análise foi possível perceber o lugar ocupado pela figura feminina e sua função de acordo com o pensamento médico do período examinado, onde ela é definida pelo seu útero, órgão considerado como parte central do corpo da mulher, e que exigia toda a atenção da classe médica, especialmente em ocasião de uma gestação. No discurso médico iluminista, a centralidade do útero constituiu um tema recorrente nas teses e compêndios de medicina. A mortalidade infantil constituiu uma das grandes preocupações da classe médica desse período e traduziu-se por meio do cuidado com o bem-estar das populações que tomou forma a partir dos setecentos (PITA, 2006). Esse cuidado foi apontado como sendo fruto do sentimento de maternidade que, segundo o Philippe Àries (1981) e Elisabeth Badinter (1985) trata-se de uma construção relativamente recente da sociedade ocidental, desenvolvida Aprendendo História: GÊNERO Página | 85 Aprendendo História: GÊNERO Página | 86 gradativamente a partir do discurso médico e filosófico do século XVIII. Àries afirma que as crianças eram consideradas seres à parte das outras pessoas e que mal possuíam alma. Segundo ele, a sociedade tradicional pouco via a criança. A infância era reduzida ao seu período mais frágil. Logo que o “filhote do homem” adquirisse algum desembaraço físico, era logo misturado aos adultos. A passagem da criança pela família era muito breve para que a sensibilidade fosse despertada conforme atestado por Willian Buchan ao discorrer sobre o sentimento de indiferença em relação aos infantes no século XVIII: ”!Quanto trabajo y gasto se emplea para sustentar um viejo trémulo que vivirá pocos años!Y mil de aquellos que pueden ser útiles em la vida han de perecer sin ser mirados?”(BUCHAN, 1785, p.8). A marcação do período histórico onde verifica-se uma mudança no sentimento de cuidado da infância ainda é incerta. No entanto, Àries aponta que já no final do século XVI, na alta burguesia e nos nobres, grupos os quais analisa, observa-se uma alteração no estado das coisas. Já Edward Shorter afirma que, entre a gente vulgar, de quem se ocupa a sua pesquisa, a despreocupação tradicional em relação às crianças persistiu até pelo menos ao último quartel do século XVIII (SHORTER, 1975). A fragilidade da vida infantil provocada pelas condições higiênicas da época justificaria a ausência de um sentimento de cuidado por parte das mães, defende Àries. Já Badinter questiona essa afirmação, sugerindo que era justamente a falta de apego das mães, o causador do alto índice de mortalidade. A autora assinala ainda, que algumas preocupações surgidas nos setecentos contribuíram juntamente para uma mudança nos cuidados com a infância: discurso econômico, baseado em dados demográficos que sugeria um declínio populacional na Europa, provocado dentre outros fatores, pela mortalidade infantil e um discurso liberal que defendia ideais de liberdade, igualdade e felicidade individual. No entanto, de acordo com ela, foi no século XIX que essa preocupação atinge seu ápice, alterando de forma significativa a imagem da mãe, seu papel e sua importância (BADINTER, 1985:145). A atenção aos infantes tornou-se pauta da Higiene, e as mães como responsáveis diretas por seu cuidado tornaram-se personagens centrais dos debates médicos nos Dezenove, perdurando até primeiras décadas do século XX. Os médicos acreditavam que o amor da mãe não era suficiente para uma boa formação dos filhos. Assim, como portadores da verdade científica propunham-se a ensinar os princípios higiênicos a fim de garantir crianças saudáveis, dirimindo dessa forma, os efeitos da mortalidade. Ana Paula Vosne Martins salienta que a partir do século XIX, o tom de alerta se eleva com a queda da natalidade entre as classes altas europeias; criar filhos não poderia ser deixado à boa vontade dos pais. Os médicos deveriam servir de guia (MARTINS, 2008). Na América Espanhola, os higienistas viam essa mortalidade não somente como uma ameaça biológica, mas como, uma negligência desumana para com “os seres mais desvalidos da sociedade” (LAVRIN, 1994). As ideias de higiene ultrapassaram os muros da academia e da administração pública e chegaram a intimidade do lar espalhando-se pouco a pouco entre as famílias das classes altas. Foucault em ‘Microfísica do Poder’ (1979, p.3) disserta sobre este fato: “O corpo sadio, limpo, válido, o espaço purificado, límpido, arejado, a distribuição medicamente perfeita dos indivíduos nos lugares, dos leitos, dos utensílios, o jogo do ‘cuidadoso’ e do ‘cuidado’, constituem algumas das leis morais essenciais da família’”. Além do contexto social brasileiro, a mulher torna-se peça importante no processo de higienização e modernização da sociedade e da família. Michelle Perrot a nomeia de “potência civilizadora”. Ela afirma ainda que a pesquisa em torno dos temas feministas contribuiu para a reavaliação do poder das mulheres como podemos verificar a seguir: “Em sua vontade de superar o discurso miserabilista da opressão, de subverter o ponto de vista da dominação, ela procurou mostrar a presença, a ação das mulheres, a plenitude de seus papéis, e mesmo a coerência de sua ‘cultura’ e a existência de seus poderes” (PERROT, 1988, p.170). A mulher-mãe, particularmente, torna-se uma figura que tende a superar todas as outras. A mãe burguesa passou nesse processo, de ouvinte a cúmplice da classe médica desenvolvendo dentro da intimidade do lar uma verdadeira medicina doméstica. A maternidade constituiu-se então a função principal dessa mulher assumindo o papel de depositária do futuro da nação. Sua condição foi elevada e sua figura enaltecida. Representava também a causa e a cura para as mães que possuíam algum desvio mental (ENGEL, 2008). Como vimos, a mortalidade infantil era vista como decorrência do descaso na criação dos filhos. Dessa forma, era parte dos objetivos dos médicos transformar a famílias em células física e moralmente saudáveis. As crianças, futuros cidadãos da sociedade em construção, tornaram-se a principal preocupação dos higienistas. As mães como responsáveis diretas no seu cuidado e formação passaram a ser o alvo das políticas públicas de saúde que tem na imprensa uma grande aliada na propagação de valores e conhecimento junto às classes urbanas mais elevadas. Cynthia Greive Veiga afirma que no século XIX desenvolveu-se uma cultura escrita como parte de um projeto de nação em curso que “pretendeu legitimar a nação como local de pertencimento social, envolvendo sujeitos (cidadãos), territórios e instituições” (VEIGA, 2007, p.39). Segundo ela, os discursos que estruturam a sociedade são componentes de representações de poder e pretendem dar visibilidade igualmente aos lugares de poder. Consolida-se então, um discurso voltado para a gestão das populações, que nesse momento, constituía um problema de governo. Nesse discurso, prossegue a autora, “foi elaborada uma autoimagem de elite civilizada cujas estratégias de convencimento aos destinatários de sua escrita dependiam da eficácia como desqualificavam a população em geral, aquela ‘condenada’ a ser civilizada” (Ibidem, p.42). Nesse contexto, a formação da criança, via Aprendendo História: GÊNERO Página | 87 educação das mães, tornava-se um alvo privilegiado nas ações governamentais. Elabora-se um modelo de família, mas propriamente de mulher que deveria ser civilizada, dedicada ao lar e à educação dos filhos. Aprendendo História: GÊNERO Página | 88 A criança, sobretudo na América Latina se configurou como um depositário de diversos ideários sejam eles políticos, ideológicos ou sociais, envolvida continuamente na tensão entre família e Estado. Para Sosenski e Albarrán, a criança emergiu da retórica do Estado como ponto de partida de um novo regime, sobretudo em momentos de revolução e mudança cultural. As autoras afirmam ainda, que em muitos momentos, a figura da criançacidadã encarnou a utopia de uma sociedade futura (SOSENSKI; ALBARRÁN, 2013, p.16,17). Maria Martha de Luna Freire em ‘Mulheres, Mães e Médicos’ relaciona a questão da maternidade com um projeto republicano de modernização e civilização do país, na qual pretendia-se construir uma nova nação brasileira baseada em ideais tidos como avançados. Apoiados no crescente número da mortalidade infantil, os higienistas decidiram combatê-la com medidas higienizadoras de assistência materno-infantil associado à educação das mulheres com vistas à formação física e moral dos filhos que representavam o futuro do país. “Ser mãe não significaria apenas garantir filhos ao marido, mas cidadãos à pátria” (FREIRE, 2009, p.21). O desenvolvimento de uma maternidade saudável segundo os preceitos médicos partia do consenso de que as mulheres, tanto das classes mais altas quanto das mais pobres não estavam preparadas para desempenhar os papéis de esposa, sobretudo a de mãe (FREIRE, 2009; CARULA, 2011). A situação da mulher no Brasil não era adequada aos princípios higiênicos afirma Ana Paula Vosne Martins (2000), por este motivo os médicos insistiam na urgência de uma educação feminina. Educação essa que já desde os fins do XIX assumiu a função de reformadora moral de uma sociedade que ainda sofria os resquícios da escravidão, tornando-se estatuto de condição para o progresso social. André Botelho (2002) aponta que o tema da reforma moral desviou o debate da formação do povo do âmbito dos determinismos naturalistas para o plano histórico-social. A maternidade constitui-se um tema recorrente em alguns jornais dedicados ao público feminino que já nesse período era grande consumidor desse gênero. Eram as mulheres as grandes responsáveis pela educação da família. Cabiam a elas, as leitoras, salvaguardar o costume e a tradição familiar, afirma Martin Lyons (1999). Os jornais constituíam instrumentos de doutrinação, tendo em vista a inadequação da mulher em relação à criação dos filhos perante o parecer da classe médica. Era preciso educar as mães para construir a nação nos moldes civilizados. Como um “agente histórico que intervém nos processos e episódios, não mero ‘reflexo’”(BARBOSA; MOREL,2006, p.1), o jornal A Mãi de Família atuou como um instrumento no desenvolvimento de um modelo de mãe pautado e tutelado pela ciência médica, capaz de gerar e cuidar do dos futuros cidadãos de uma nação em construção. O jornal, constitui um importante ponto de partida para o entendimento do discurso higiênico voltado para a mulher. A Mãi de Família: jornal scientífico, literário e ilustrado objetivava educar a mulher segundo os preceitos da ciência médica. Foi fundado no Rio de Janeiro e tinha como mote a “educação da infância e a higiene da família”. Carlos Costa, médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi seu fundador. Se identificava como especialista em moléstias das crianças e atendia regularmente em seu consultório na cidade. Era o médico quem assinava a única seção permanente no jornal, a “Palestra do Médico” e também a maioria dos artigos. O periódico também contava com a colaboração de outros médicos e utilizava traduções de textos e pareceres médicos. O A Mãi de Família inspirou-se no jornal francês La Jeune-Mère que possuía a mesma finalidade e era editado pelo também médico André Théodore Brochard. Possuía tiragens quinzenais e suas principais seções eram além da “Palestra do Médico”, a “Moléstia das Crianças”, “Farmácia Doméstica”, “Variedade”, “Máximas e Pensamentos”, “Revista dos Jornais Científicos”, “Máximas e Pensamentos”. Além da Corte, o jornal também circulou em São Paulo e Minas Gerais. A publicação ainda contava com figurinos coloridos e seu preço podia variar de 6$000 a 10$000, e contava apenas com homens em sua redação. A edição número 9 nos oferece uma prévia do que seria tratado nas suas páginas: “A nova publicação que oferecemos às mães brasileiras tem seu fim idêntico ao do jornal do Dr Brochard que tanta aceitação tem tido em França (...) preenche importante lacuna na educação da mulher, (...) achar-se-ão ordenados todos os conselhos ditados pela experiência e pela ciência” (A Mãi de Família, ano 1, n.9, jan.1879, p.7) . Seus objetivos eram os mesmos do francês La Jeune-Mère produzido pelo Dr. Brochard: Orientar as mulheres como se comportar e os conhecimentos que deveriam possuir em sua tarefa como mãe, pois segundo o seu parecer as mães não sabiam como criar os filhos devidamente. De acordo com o periódico: ” As mulheres em nosso país não cumprem tanto quanto deveriam os sagrados deveres de mãe (...). Umas por vaidade, outras por pobreza e finalmente outras por desculpada ignorância não cumprem a sua missão sublime, a única que lhes foi confiada” (A Mãi de Família, anno 1, n.9, jan.1879, p.2). Nesse contexto, a figura do médico higienista assume um papel capital, não apenas como aquele que cuida do corpo, mas, como um educador, exercendo seu poder de influência sobre outros setores da sociedade, respaldados num discurso médico científico que conferiria confiabilidade aos seus preceitos (CARULA, 2011). O doutor Carlos Costa ressaltava que um país tão novo e tão adiantado materialmente como o Brasil estava envolvido numa caminhada evolutiva de decadência física dos homens na qual esses estariam também quase aniquilados na sua moral. A razão apontada por ele para esse mal seria: Aprendendo História: GÊNERO Página | 89 Aprendendo História: GÊNERO Página | 90 “(...) o mal de onde vem? Desde o berço, minhas senhoras. É esquecida, abandonada ou melhor ignorada a maneira de formar-se o homem, não cuidando-se seriamente da criança” (A Mãi de Família, anno 1, n.1, jan.1879, p.2). A Medicina seria então a tutora nesse processo educativo que tinha na mulher a sua principal discípula. A fim de” desenvolver o país era fundamental que se educasse primeiramente a mãe, pois ao educar sua prole ela promoveria a formação do cidadão que faria o país progredir (...)” (CARULA, 2011, p.10). Segundo Sonia Giacomini, a centralidade aparente da criança no discurso de A Mãi De Família não é senão mecanismo explicitação dos deveres de mãe, mas que só poderia ser realizado dentro de um lócus onde é possível realizar a maternidade: a família. Para a autora, “ser mãe de família aparece enquanto condição de ser mãe, assim como ser mãe é a condição e a natureza de ser mulher” (GIACOMINI, 1985, p.88). A má criação dos filhos era o grande problema nacional e que comprometeria todo o futuro da nação, caso não fosse solucionado. A criança representava, portanto, uma preocupação, mas, também o vislumbre de um futuro próspero. Num momento histórico em que a construção da nacionalidade começava a despontar, os periódicos constituíram uma importante ferramenta para a difusão do ideário nacionalista. Tania Maria Bessone Ferreira (2007) destaca o caráter “civilizador” da imprensa e aponta que a partir dos meados do século XIX se configuraria o estabelecimento de uma imprensa periódica de opinião com a divulgação de conceitos que tinham objetivos políticos e pedagógicos. De acordo com esse modelo, os jornais destinados ao público feminino em especial, apresentavam colunas que continham regras de conduta maternal e recomendações acerca da criança com o objetivo de assegurar-lhe a sobrevivência biológica, temas tão frequentes neste gênero literário. Esses funcionaram como um veículo de transmissão dos saberes médicos que aliados ao poder público e como instrumentos desse, tinham na função maternal uma preocupação de ordem nacional. A construção de uma maternidade saudável segundo os princípios da higiene constituía o ponto de partida para a formação de uma nação moderna. “Ensinar a mães a serem mães” cuidando de forma científica de seus filhos, garantindo indivíduos saudáveis à nação era a chave que abriria as portas para o tão sonhado progresso. O A Mãi de Família havia sido fundado com objetivos claros, sob o tripé nação, ciência e família, elementos constituintes do progresso de uma nação (VEIGA, 2007). Sua função principal era pedagógica, sendo o seu objeto de intervenção, a mulher. Através da construção de um modelo feminino, que tinha na mãe seu grau mais sublime, edificou-se um ideário que assegurava a criação de uma infância saudável física e moralmente, consolidando assim um projeto de nação que se pretendia civilizada. Referências Cássia Regina da S. Rodrigues de Souza é mestre em História da Ciências e da Saúde pela COC/FIOCRUZ. A Mãi de Família. Jornal Scientífico, Litterário e Illustrado-Educação da Infância e Higiene da Família, Anos 1879-1889. Disponível em: http://www.bndigital.bn.br; ÀRIES, Philippe. História social da infância e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1985; BOTELHO, André. Aprendizado do Brasil: a nação em busca de seus portadores sociais. Campinas: Editora da Unicamp, 2002; BUCHAN, William. Medicina doméstica. Tomo I. Madrid: Imprensa Real, 1785; CARULA, Karoline. Carlos Costa e a Mãi de Família. Anais do XXVI Simpósio Nacional de HistóriaANPUH. São Paulo, julho, 2011 in http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300803313_ARQUIVO _karolinecarulaANPUH2011.pdf; ________. Perigosas Amas de Leite: aleitamento materno, ciência e escravidão em A Mãi de Família. História, Ciências, Saúde- Manguinhos. v.19, supl., Rio de Janeiro, dez.2012, pp.197-214; D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In PRIORE, Mary Del(org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2008. ENGEL, Magali. Psiquiatria e feminilidade. in PRIORE, Mary Del. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2008; FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1979; FERREIRA, Tania Maria Tavares Bessone da Cruz. Os livros na imprensa: as resenhas e a divulgação do conhecimento no Brasil na segunda metade do século XIX. in CARVALHO, José Murilo de (org.). Nação e cidadania no império: Novos Horizontes. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007; FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e médicos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009; GIACOMINI, Sonia Maria. A conversão da mulher em mãe: uma leitura do “A Mãi de Família”. Revista Brasileira de Estudos da População. v.2, Campinas, jul/dez, 1985, pp.71-98; LAVRIN, Asuncíon. La niñez em México e hispanoamérica: rutas de exploración. in La famíllia en el Mundo iberoamricano. Pilar Gonzalbo Aizpuru y Cecilia Rabell (comps). México: Instituto de Investigaciones Sociales UNAM, 1994. Aprendendo História: GÊNERO Página | 91 LYONS, Martyn. Os novos leitores do século XIX: mulheres, crianças, operários. in CHARTIER, R.; CARVALHO, G. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1999; Aprendendo História: GÊNERO Página | 92 MARTINS, Ana Paula Vosne. A Medicina da Mulher: visões do corpo feminino na constituição da obstetrícia e da ginecologia no século XIX. Tese de Doutorado. UNICAMP. São Paulo, 2000; _________, Ana Paula Vosne. Visões do feminino: a medicina da mulher no século XIX e XX. Rio de janeiro: Editora Fiocruz, 2004. Disponível em: http://books.scielo.org; _________, Ana Paula Vosne. Vamos criar seu filho: os médicos puericultores e a pedagogia materna no século XX. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v.15, n.1, Rio de Janeiro, jan-mar, 2008, pp.135-134; MOREL, Marcos; BARBOSA, Marialva. História da imprensa no Brasil: Metodologia. Rede Alfredo de Carvalho. Cátedra Unesco/Metodista de Comunicação para o Desenvolvimento Regional, 2006. in http://www2.metodista.br/unesco/redealcar_inventario.htm acesso em 25/05/18; PERROT, Michelle. Os excluídos da história: mulheres, prisioneiros. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1988; operários e PITA, João Rui. Práticas científicas à volta de 1900: Química, microbiologia e saúde pública em Portugal. in PEREIRA, Ana Leonor; DOMINGUES, Heloísa B.; PITA, João Rui; SALAVERRY, Oswaldo(orgs.) A Natureza, as suas histórias e seus caminhos. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006; SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Coleção Pequena História. Lisboa: Terramar, 1975; SOSENSKI, Susana; AlBARRÁN, Elena Jackson. Introducción. In Nuevas miradas a la história de la infância en América Latina. Entre prácticas y representaciones. México: Instituto de Investigaciones Históricas, 2013 VEIGA, Cynthia Greive. Cultura escrita e educação: representações da criança e imaginário da infância- Brasil, século XIX. In Lopes, A. (Org). Para a compreensão histórica da infância. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. O CORPO FEMININO E O DISCURSO RELIGIOSO NA IDADE MÉDIA Clarice da Luz Flávia Schena Rotta Com este ensaio pretendemos entender de que maneira o discurso religioso influenciou o comportamento feminino, com relação à sexualidade e ao corpo feminino. Olhar para a história com este foco só é possível graças à História Cultural que possibilitou a construção de uma História das Mulheres e também com ajuda da História da Sexualidade. Ao olharmos para um discurso temos que tentar imaginar o que se passava na mente do autor e em que contexto ele vivia (BASTOS, 2011). Por isso, se pensarmos na Bíblia, podemos compreender que ela é um discurso que originou outro discurso, que se reproduz de algumas maneiras no Malleus Maleficarum (KRAMES; SPRENGER, 2015). Desta maneira a História da Sexualidade se torna um meio fundamental para buscar a compreensão entre as relações humanas ao longo do tempo e seus variados sentidos. Há anos a história da humanidade em relação à sexualidade demonstra ser algo complexo, pois envolve questões sociais, culturais, psicológicas, construídas historicamente por determinado grupo e determinada época. Segundo Magali Engel (1997), a sexualidade, em seu principal conceito, manifesta o impulso sexual, como o desejo, a busca de um objeto sexual que podem ser influenciados pela cultura da sociedade e família em que o sujeito vive como também a moral, os valores e a religião em que está inserido, cercado por normas, padrões que o mesmo deve seguir e tomar como exemplo para toda a sua vida. O tema da sexualidade vem tendo uma abordagem por muitos historiadores, em que remodelam alguns conceitos tradicionais, buscando uma parte essencial do passado que pode ter sido omitida e esquecida, muitas vezes pela questão moral. Preocupamo-nos em falar sobre o corpo feminino e o discurso que o restringe. No mundo medieval o homem era considerado um sexo superior, então era a voz dele que definia as possibilidades para o corpo feminino. Desta maneira pretendemos entender como os discursos religiosos sobre a sexualidade, difundidos pela igreja que influenciaram o pensamento sobre o corpo feminino como produto da ideia de pecado na Idade Média. O período medieval foi de domínio da Igreja Católica e os discursos proferidos por ela determinaram todos os comportamentos e restrições relacionados à sexualidade. A mulher era uma figura de tentação constante, acreditavam que era ela quem levava os homens a pecar, por isso o seu corpo deveria ser restringido e vigiado. A mulher também carregava a culpa por ter trazido o pecado ao mundo ao comer o fruto proibido. Aprendendo História: GÊNERO Página | 93 Aprendendo História: GÊNERO Página | 94 A igreja, notoriamente nascida do judaísmo, utilizava algumas tradições judaicas que diziam que as mulheres eram culpadas pela existência dos demônios, pelo fato de terem seduzido os anjos e terem tido relações carnais com eles. Além disso, utilizavam-se muito do conceito de que o “invólucro carnal era prisão para a alma”. De acordo com João Davi Avelar Pires (2015) em seu estudo sobre o corpo feminino do período aqui referenciado, o espírito seria prisioneiro do corpo e, por serem mais sujeitas a sedução e aos artifícios do demônio, as mulheres eram entendidas como inferiores. Tudo que fosse relacionado ao corpo era tratado com desconfiança. O corpo era um objeto de poder, através do corpo a igreja se permitia controlar a vida privada das pessoas. O corpo e o ato sexual eram vistos como pecaminosos, o ato sexual era aceito somente dentro do casamento e apenas para a procriação, desta maneira o domínio da igreja não era apenas religioso, mas também moral, já que conseguia ter domínio sobre as pessoas. Para ampliar o seu controle a Igreja criou a Inquisição, com ela muitas mulheres foram julgadas como bruxas. Para se julgar e reconhecer quais eram as bruxas foi criado o Malleus Maleficarum, escrito no ano de 1487 por Heinrich Kramer e James Sprenger dois inquisidores. Essa obra se tornou uma das principais fontes quando se trata de estudar a condição feminina na inquisição ou na bruxaria no período medieval. Eis aqui algumas das razões porque as mulheres eram propensas às fraquezas da carne, ao pecado e, claro, à bruxaria, dispostas na obra: “Outros têm ainda proposto muitas outras razões para explicar o maior número de mulheres supersticiosas do que de homens. E a primeira está em sua maior credulidade; e, já que o principal objetivo do Diabo é corromper a fé, prefere então atacá-las. Ver Eclesiástico, 19: “Aquele que é crédulo demais tem um coração leviano e sofrerá prejuízo. A segunda razão é que as mulheres são, por natureza, mais impressionáveis e mais propensas a receber a influência do espírito descorporificado; e quando se utilizam com correção dessa qualidade, tornam-se virtuosíssimas, mas quando a utilizam para o mal, tornam-se absolutamente malignas. A terceira razão é que, possuidoras de língua traiçoeira, não se abstêm de contar às suas amigas tudo o que aprendem através das artes do mal; e por serem fracas, encontram modo fácil e secreto de se justificarem através da bruxaria. Ver a passagem do Eclesiástico, já mencionada: “É melhor viver com um leão ou um dragão que morar com uma mulher maldosa.” “Toda a malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher.” E podemos aí aditar que agem em conformidade com o fato de serem muitíssimo impressionáveis.” [KRAMER; SPRENGER, 2015, p. 695-698] O Malleus foi o responsável por orientar os autos da inquisição, dando orientações, descrevendo como eram as bruxas e orientando como realizar uma denúncia. A importância do estudo sobre as mulheres Ao analisarmos hoje, os estudos sobre as mulheres vem alcançando grande avanço, é importante olhar para os discursos sobre o corpo feminino a partir de uma outra ótica, já que estes discursos foram construídos primeiramente por homens. Durante muito tempo as mulheres estiveram fora das páginas da história e o seu lugar era apenas o de coadjuvantes, hoje elas podem ser entendidas como protagonistas, e sua história pode de fato ser investigada. Segundo a historiadora Joan Scott (1992), a história das mulheres começou a aparecer como um campo definível principalmente nas décadas de 60 e 70. Na década de 60 as ativistas feministas reivindicavam uma história que estabelecesse heroínas, prova da atuação das mulheres, e também explicações sobre a opressão e inspiração para a ação. No início houve uma conexão direta entre política e intelectualidade. No entanto na década de 70 a história das mulheres afastou-se da política. Ela ampliou seu campo de questionamentos e documentando todos os aspectos da vida das mulheres no passado adquiriu uma energia própria para seguir. Para Joan Scott (1992), foi na década de 80 que a história das mulheres passou a ser vista como campo de estudos e envolveu, nesta interpretação, uma evolução do feminismo para as mulheres e daí para o gênero; ou seja, da política para a história especializada e a partir daí para a análise. Scott (1992) afirma que embora a história das mulheres esteja certamente associada à emergência do feminismo, este não desapareceu, seja como uma presença na academia ou na sociedade em geral, ainda que os termos de sua organização e de sua existência tenham mudado. A história das mulheres, sugerindo que ela faz uma modificação da “história”, investiga o modo como o significado de um termo geral foi estabelecido. Questiona a prioridade relativa dada à “história do homem”, em oposição à “história da mulher”, expondo a hierarquia implícita em muitos relatos históricos. Segundo Ronaldo Vainfas (1997), a História Cultural ou Nova História Cultural deixou para trás uma preocupação de estudar manifestações culturais que consideraríamos de elite, também dedica um apreço a uma cultura desenvolvida pelas massas, o que chamaríamos de cultura popular. Preocupa-se também com o estudo dos conflitos e classes sociais. A História Cultural apresenta novos caminhos, caminhos plurais, permite que novos sujeitos possam ser vistos. Sobretudo, ao contrário da História das Mentalidades, a História Cultural preocupou-se em estudar as mentalidades, mas sem abandonar o rigor dos métodos da história como ciência. A História das Mulheres surge com o Movimento Feminista, principalmente nos Estados Unidos, demonstrando um desejo de romper com a subordinação das mulheres perante os homens. Esse movimento foi impulsionado por uma série de mudanças nos direitos civis, o feminismo Aprendendo História: GÊNERO Página | 95 torna-se um movimento político, em contrapartida a História das Mulheres vai distanciar-se da História Política. Segundo Joan Scott (1992) a História da Mulheres “é ao mesmo tempo um suplemento inócuo a história estabelecida e um deslocamento radical dessa história.” Aprendendo História: GÊNERO Página | 96 Referindo-se à sexualidade, a Idade Média foi um período em que ela sofreu repressão da Igreja Católica, as práticas sexuais que excediam os limites impostos pela igreja eram consideradas práticas diabólicas. Segundo os autores André Silva e Márcia Medeiros (2013), a sexualidade masculina alcançava maior liberdade, enquanto que as mulheres deveriam ficar restritas a um ato sexual única e exclusivamente voltado para a procriação os homens tinham liberdade de exceder o leito conjugal e buscar outras mulheres. É assim que se tem um aumento da prostituição, a maior parte das prostitutas eram viúvas ou moças que foram estupradas e perderam sua dignidade, muitas jovens buscavam na prostituição um meio de superar a pobreza e obter lucros para ajudar a família. A mulher ideal era a mulher virgem, não apenas por esta condição, mas a mulher que respeitava a castidade, existiam as moças virgens e puras, capazes de resistir as tentações; as viúvas virgens, que estavam libertas do sexo e as casadas virgens, que viviam o sexo no matrimônio e em função dele. É desta maneira que podemos dizer que os discursos utilizados pela Igreja Católica normatizaram uma sociedade que relegava à mulher o papel de coadjuvante, subordinada, corruptora e de fácil corrupção. A mulher era um ser repleto de pecados, como os homens, só que os pecados dos homens eram tolerados, enquanto que os das mulheres duramente julgados. Referências Clarice Luz, acadêmica do 3º ano de História da Unespar – Campus União da Vitória. Flávia Schena Rotta, acadêmica do 3º ano de História da Unespar – Campus União da Vitória. BASTOS, Mário Jorge da Motta. História e Discurso: Perspectivas e Controvérsias. Universidade Federal Fluminense – UFF/NIEPPrék/TansladioStudi. Imagens da Educação, v. 1, n. 2, p. 1-11, 2011. ENGEL, Magali. História e Sexualidade. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras. Rio de Janeiro Bestbolso, 2015. PIRES, João Davi Avelar. Visões Sobre O Feminino E O Corpo Na Idade Média. Revista Feminismos. V. 3. N.2/3. Disponível em: < http://www.feminismos.neim.ufba.br/index.php/revista. RIBEIRO, Paulo Rennes Marçal. A sexualidade também tem história: comportamentos e atitudes. sexuais através dos tempos. In: BORTOLOZZI, Ana Cláudia; MAIA, Ari Fernando (Org). Sexualidade e infância. Bauru: FC/CECEMCA; Brasília: MEC/SEF, 2005. SCOTT, Joan. História Das Mulheres. In: BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. SEVERIANO, Erika Cristina de Campos; CANEIRO, Matheus Maximiliano. Carnalis Peccatum: Um estudo da sexualidade na Idade Média. Disponível em http://www.inicepg.univap.br/cd/INIC_2011/anais/arquivos/RE_0492_0398 _03.pdf, acesso em 05/11/2018. SILVA, André Candido da; MEDEIROS, Márcia Maria de. Sexualidade e a História da Mulher na Idade Média: a Representação do Corpo Feminino no Período Medieval nos Séculos X a XII. Revista Eletrônica História em Reflexão. Vol. 7 n. 14 – Dourados, jul/dez – 2013. SOUZA, M.; SILVA, F.; OLIVEIRA, V. O Corpo na Idade Média: entre representações e sexualidade. IV Congresso Sergipano de História e IV Encontro Estadual de História da ANPUH/SE. 21 a 24 de outubro de 2014. VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Aprendendo História: GÊNERO Página | 97 GÊNERO E ENSINO DE HISTÓRIA: COMO E O PORQUÊ DE ABORDAR QUESTÕES DE GÊNERO NAS AULAS DE HISTÓRIA Cleni Lopes da Silva Aprendendo História: GÊNERO Página | 98 Análises da produção, na área do ensino e da aprendizagem de História, têm evidenciado preocupações com questões referentes ao estudo de gênero na sala de aula. Um dos principais questionamentos acerca desse assunto é em relação ao modo de abordagem e aos motivos pelos quais se deve tratar de gênero na disciplina de história. Ensinar história é mais do que decorar datas e enfatizar personagens e feitos históricos Ensinar história diz respeito à relação de percepção e ressignificação dos conteúdos curriculares com a realidade para que o aluno possa problematizar o presente e buscar no passado, dados para analisar o meio social em que vive e, assim, construir o próprio conhecimento e visão de mundo. Seguindo essa linha, o documento da área de História dos Parâmetros Curriculares Nacionais discorre que os objetivos do ensino de História são: o desenvolvimento de capacidades cognitivas como estabelecer relações históricas entre passado/presente; situar conhecimentos históricos em distintas temporalidades; reconhecer semelhanças, diferenças e permanências e conflitos sociais em contextos históricos, dominar técnicas de pesquisa com diversas fontes, valorizar o patrimônio sociocultural e à cidadania, respeitar a diferença social, étnica e cultural dos povos, dentre outros. Portanto, se a História como disciplina tem a preocupação quanto à formação de cidadãos no sentido de que os sujeitos não saibam apenas interpretar historicamente o mundo, mas que sejam capazes de buscar soluções para os problemas sociais, transformando e construindo a história, então é pertinente que assuntos relacionados a gênero sejam debatidos nas aulas de história. Falar em gênero é complexo. Vivemos em uma sociedade que persiste em reproduzir os estereótipos de gênero e os ideais de uma cultura machista, reforçando-os na mídia, por intermédio de comerciais, telenovelas, filmes e canções que representam a mulher como mãe, esposa, dona de casa, sempre dependente do homem. Estas representações são fruto de uma cultura social em constante transformação, pois falar de gênero é falar da estrutura organizacional hierárquica da sociedade, do papel exercido pela mulher dentro de um grupo de indivíduos. A diferença de gênero é construída ao longo das nossas vidas e do convívio social, uma vez que as transformações sofridas pela sociedade ditam o que é certo e o que é errado, qual o papel do homem e qual é o papel da mulher na sociedade, como discorre Molina (2011) “Os papéis sexuais e seus estereótipos foram e são construídos e impostos em diferentes culturas e sociedades ao longo do tempo”. Gênero e História Hoje, as mulheres têm acesso à escola e ao trabalho formal devido às lutas e aos movimentos feministas que exigem a igualdade de direitos a ambos os gêneros. Mas durante muito tempo, desde o surgimento das escolas na época do império, o direto à aprendizagem de habilidades intelectuais, motoras e a formação moral, era concedido apenas aos homens, às mulheres restava o direito de aprender a costurar, cozinhar, cuidar da casa, dos filhos, do marido, enfim, a própria existência explicada pelo fato de já nascer predestinada à reprodução humana a fim de dar continuidade à linhagem masculina de um grupo familiar. Portanto, a luta precisa ser continua, pois mesmo com a conquista de direitos as discriminações ainda permanecem como, por exemplo, a desvalorização do trabalho, mesmo ocupando os mesmos cargos dos homens, as mulheres recebem proventos menores. A constituição do feminino e do masculino é formada a partir dos ditames da sociedade que defini as práticas apropriadas a homens e mulheres. Como as sociedades são construídas por culturas e ideologias diversificadas, existe uma visão distinta em relação a gênero, mas como se pode perceber com base nos movimentos sociais feministas, ao redor do mundo, que buscam o empoderamento da mulher, de modo geral, a figura feminina ainda é estereotipada como um ser submisso, menos capaz do que o homem, continuando a ser vista como um ser frágil e ocupando um lugar menor da hierarquia social, econômica e política diante do egocentrismo da figura machista. A antropóloga Galey Rubin (1993) busca mostrar que diversos estudos discorrem a respeito da opressão sofrida pelas mulheres dentro da sociedade, mas não identificam as razões da existência dessas opressões, as quais são fundamentais para a construção de novo um meio social sem hierarquia de gênero. Assim, de acordo com algumas teorias da psicanálise, em ‘O tráfico de mulheres: notas sobre a “Economia Política” do sexo’, a autora discuti a questão de gênero na tentativa de construir conceitos para pensar-se na opressão e na sexualidade das mulheres com base em um sistema de sexo/gênero definido como “um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais são satisfeitas.” (RUBIN, p. 3, 1993). O gênero é construído ao longo da trajetória do individuo, sendo resultante da relação das diferenças sexuais que organizam o social e que definem a sexualidade. Portanto, o discurso de Rubin converge para a ideia de que gênero é relação de poder, é uma forma hierárquica de organização social, uma vez que a divisão entre feminino e masculino é uma invenção humana baseada na ordem social e política de um povo e não biológica e sexual. A sociedade impõe regras comportamentais que constroem o estereótipo feminino e masculino. O homem que se mostra sensível ou que realize, por exemplo, alguma atividade doméstica, é mal visto diante aos demais homens, os quais de forma preconceituosa o excluem dos círculos de relação de negócios e de amizade, pois ao homem cabe a imagem do ser forte, viril, intelecto, já a mulher resta à imagem de um ser sensível, amável, reprodutora, hábil para atividades manuais como a costura, a pintura, o cuidado com a casa e com os filhos, sem a necessidade de Aprendendo História: GÊNERO Página | 99 aprender atividades mais cognitivas e sem o direito de exercer o papel de cidadã dentro da sociedade em que vive. Visão que se repercuti no tempo como uma marca de poder do homem sob a mulher. Aprendendo História: GÊNERO Página | 100 Dessa forma, a mulher se manteve a margem da história durante muito tempo. A história centrada no positivismo ressaltava os feitos dos homens, as guerras e batalhas, nas quais as mulheres não tinham representatividade, e essa é a história que ainda continua a ser repassada em escolas onde prevalece o ensino tradicional. Muitas lutas e movimentos sociais foram necessários para que a mulher começasse a ganhar visibilidade dentro da história e conquistasse o próprio espaço na sociedade. O homem/ a mulher tem a educação sexual desenvolvida ao longo da sua própria formação quanto sujeito, sendo a escola um ambiente propício à aprendizagem e a construção de vivências, de relações interpessoais. Assim, a escola torna-se um espaço cujos alunos e professores constituem uma parcela ativa da sociedade e onde, segundo Colling e Tedeschi (2015), as desigualdades de gênero são plantadas ou reafirmadas, pois as instituições de ensino desempenham um papel social de mantenedoras, produtoras e reprodutoras de uma cultura dominante que determina o espaço que a mulher ocupa na sociedade a partir de uma ideologia sexista. Para Grassi (2012) a escola contribui para permanência da divisão de gêneros de modo que a mulher permanece ocupando papeis menos importantes na sociedade, por meio da construção dos currículos escolares e do uso de livros didáticos que apresentam conteúdos centrados em feitos e exaltação de personagens masculinos, sem tratar das representações femininas na História. Ainda, de acordo com a autora, a própria linguagem utilizada pelo educador em sala de aula já revela a hierarquia masculina à medida que o professor se dirige a uma turma de meninos e meninas referindo-se, de acordo com as regras gramaticais, sempre com palavras masculinas como “alunos”. A escola é um ambiente de construção de conhecimento. Portanto, faz parte da responsabilidade da escola proporcionar aos alunos discussões a respeito de questões sociais que contribuem para a construção do cidadão e para formação de uma identidade local/regional/nacional. A mesma, com base em leis e políticas educativas, representa o espaço onde formamos cidadãos que anseiam por liberdade, tolerância e igualdade de direitos a todos. Está na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional): “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Vivemos centrados em uma ideologia patriarcal que faz com que a distinção entre os gêneros seja concebida de forma natural. A sociedade desacreditada da possibilidade de mudanças cai no conformismo e a mulher aceita a condição imposta pelo restante do grupo social permanecendo submissa, ocupando cargos menores e salários mais baixos, responsabilizando-se pelo cuidado da casa, dos filhos e do marido, enfim, tendo que comportar-se de acordo com o estereótipo dos padrões tidos como normais e aceitáveis para a conduta da mulher. Pela influência dos pais, desde o nascimento as crianças começam a enquadrar-se em um determinado comportamento, dividindo-as em categorias de gêneros meninas/meninos, sendo as meninas vestidas com roupas cor de rosa e os meninos de cor azul, às meninas são ofertados brinquedos como as bonecas e os ursos de pelúcia enquanto aos meninos são oferecidos os carrinhos e a bola. A mulher, desde criança, é preparada para o casamento. É imposta a mulher a obrigatoriedade de casar-se e de reproduzir-se. Os casamentos funcionam como uma espécie de troca, o homem assume a mulher como esposa dando-lhe o sustento e em contra partida a mulher serve ao marido, cozinhando, limpando a casa, dando-lhe filhos para a continuidade da linhagem, perdendo sua identidade, pois passa a ser identificada como a mãe do “fulano”, a esposa do “cicrano”. Em alguns países ainda há os pagamentos de dotes e os interesses comerciais em unir as famílias influentes, bem abastadas financeiramente. O sujeito, não nasce homem ou mulher, não há uma condição prédeterminada para a definição sexual da criança, pois o gênero é uma construção social. A não aceitação desse estereótipo faz com que a sociedade a classifique como anormal, a qual sofrerá com preconceitos, como por exemplo, a mulher que chega aos quarenta anos de idade e decide não casar e nem ter filhos é tachada como “solteirona”, “A sexualidade que é geralmente apresentada na escola está em estreita articulação com a família e a reprodução. O casamento constitui a moldura social adequada para seu ‘pleno exercício’ e os filhos, a consequência ou a benção desse ato. Dentro desse quadro, as práticas sexuais não reprodutivas ou não são consideradas, deixando de ser observadas, ou são cercadas de receios e medos”. (LOURO, 1998, p.41). Hoje, existem discussões, manifestações e até projetos de lei, que objetivam proibir a temática de gênero na sala de aula sob o argumento de que a escola estaria impondo uma ideologia de gênero aos jovens, desconstruindo e desrespeitando a imagem da família, construída por pai (homem), mãe (mulher) e filhos, sendo o pai no centro familiar, o “chefe da casa”. De acordo Silvino e Henrique (2017) o Ministério da Educação por meio de pressões, precisou refazer o texto do “PNE” (Plano Nacional de Ensino) retirando do discurso às questões de gênero e repassando para os municípios a responsabilidade de adotar ou não a abordagem de gênero nas escolas para que pudesse ser aprovado. Esse tipo de opressão para excluir o debate sobre a questão de gênero nas escolas permite que as mesmas continuem a promoção do caráter preconceituoso da sociedade que é repleto de desigualdades, de preconceitos e de violência contra a mulher e os homossexuais. Aprendendo História: GÊNERO Página | 101 Aprendendo História: GÊNERO Página | 102 É importante discutir gênero na disciplina de História para que os alunos desenvolvam uma consciência histórica de que gênero não é uma questão de sexo, mas da forma de organização estrutural e hierárquica da sociedade que se transforma continuamente. A mídia é um veículo de discursos verdadeiros, que apena transmite as informações na intenção de que essas sejam absorvidas como a realidade dos fatos, sem espaços que oportunizem a reflexão e a oposição de pensamentos, o que ressalta a necessidade da escola abordar questões transversais e produzir novos conhecimentos. Gênero na sala de aula As questões de gênero devem ser problematizadas em sala de aula a partir das experiências vividas pelos discentes. A investigação é feita com base nas atividades do cotidiano fazendo com que o aluno reflita a respeito da organização do próprio núcleo familiar, da relação com os amigos e com a escola, da cultura e dos espaços sociais em que vive, perpassando pelos conhecimentos já adquiridos e buscando na História dados que possam explicar o processo de formação da sociedade atual. Nessa perspectiva, é papel da escola tornar-se um lugar democrático, onde opiniões são formadas, visando o combate à discriminação e ao preconceito, possibilitando a reflexão e a construção de conceitos para que alunos cheguem a um entendimento de que não existe um “modelo ou padrão” de ser e de viver em sociedade, mas concepções e comportamentos distintos. Molina (2013) revela em sua obra ‘gênero, sexualidade e ensino de história nas vozes de adolescentes’ uma pesquisa de campo no Colégio Estadual Antônio Raminelli, em Cambé, no Paraná, onde foram feitos questionários acerca de temas relativos a gênero, sexualidade e ao perfil de alunos. Segundo a autora, os resultados da pesquisa evidenciaram que 84% dos alunos participantes (87 questionários respondidos) não souberam responder o que é gênero e que 41% obtém informações a respeito de sexualidade com amigos, tendo a escola apenas 16% de participação na contribuição desse conhecimento. Ainda foi registrado, de acordo com 70% dos respondentes, que ainda há discriminação da imagem da mulher no âmbito social. Esta pesquisa revela a falta de conhecimento dos alunos em relação a gênero e sexualidade, e a falta de participação da escola no processo de desenvolvimento desses conhecimentos. A escola ao não criar um ambiente de reflexão e discussão sobre temas como estes, está dando continuidade ao ensino tradicional com conteúdos fragmentados que não fazem sentido para os estudantes, pois não dialogam com a realidade dos mesmos, pois "tudo que é próximo, que é real para o aluno tem significado maior" (CUNHA, 1989, p.110). A escola precisa elaborar estratégias para abordar as questões de gênero de forma prática e significativa elaborando debates e fazendo questionamentos como: O que é gênero? O que é sexualidade? Onde os pais trabalham? Meninos podem gostar da cor rosa? Garotas podem jogar futebol? Boneca é brinquedo só de menina? Para que a partir das respostas sejam introduzidos os conceitos e reflexões acerca da constituição do meio social. A aula oficina é uma metodologia bastante interessante para o ensino e aprendizagem de gênero. De acordo com Barca (2013) em uma aula oficina o professor seleciona o conteúdo, questionando aos alunos a respeito do conhecimento prévio sobre o tema que será abordado, após são selecionadas as fontes históricas pertinentes para a referida aula. Em seguida, o docente orienta os estudantes para que analisem os materiais e façam inferências. Dessa forma, há um envolvimento de todos os alunos, os quais produzem as próprias conclusões que, com o auxilio do educador, serão avaliadas e (re)conceitualizadas. Por meio da adoção do gênero como temática na aula-oficina o aluno usa as experiências vivenciadas para dialogar com o tema tomando a consciência do próprio conhecimento: o que aprenderam e o que querem aprender. O conteúdo dos livros didáticos deve ser confrontado com outras fontes de conhecimento para que os alunos percebam que não existem certezas, que os fatos e acontecimentos históricos são representações do passado com base na concepção ética, moral e religiosa, e da habilidade cognitiva do historiador que observa e analisa as fontes influenciadas pelas próprias impressões, experiências e escolhas. Assim, a distinção de gênero pode ser entendida como uma representação histórica, construída a partir de influências das concepções políticas, econômicas e religiosas de um grupo de indivíduos, e, portanto, é passível de mudanças. Considerações finais Hoje, não há mais espaço para o ensino tradicional onde os professores são transmissores de conhecimento e os alunos meros receptores. No ensino de história não pode prevalecer o estudo dos fatos do passado de forma linear e progressiva, baseado no factual e documental com o objetivo de retratar a “verdade” dos fatos Os currículos escolares, por mais conservadores que parecem ser, são passíveis de pequenas alterações e adaptações feitas pelos professores. Com base em temas transversais como o gênero é possível que o aluno perceba e ressignifique os conteúdos com os conhecimentos já adquiridos no ambiente extraescolar contribuindo no ensino e na aprendizagem significativa, ou seja, na produção de saberes centrada no diálogo, em uma postura indagadora e curiosa, para que o discente possa construir seu próprio conhecimento e visão de mundo, tornando-se sujeito crítico capaz de compreender e transformar o mundo em que vive. O importante em discutir gênero nas aulas de história é fazer o aluno compreender o processo de construção do conceito de gênero e levar essa discussão para outros espaços extraescolares no ensejo de transformar o pensamento dos indivíduos e diminuir o preconceito e as desigualdades entre homens e mulheres, valorizando as singularidades de cada um e não as usando para classificá-los de forma hierárquica. Portanto, os educadores precisam a partir da temática de gênero desconstruir preconceitos, mostrar Aprendendo História: GÊNERO Página | 103 Aprendendo História: GÊNERO Página | 104 aos alunos que meninas podem jogar futebol na aula de educação física, assim, como os meninos podem participar da disciplina de técnicas domésticas que as meninas podem ser tão hábeis em informática quanto os meninos, do mesmo modo que os meninos podem ter o mesmo desempenho das meninas nas aulas de educação artística, ou seja, que não existem atividades especificas para meninos e meninas, visando converter esses conflitos em aprendizado. A igualdade de gêneros pode ser aceita ou negada pelos indivíduos. Os sujeitos podem integrar lutas, movimentos e apoiar as escolas contra a imposição de estereótipos desnaturalizando a divisão de gênero, ou ignorar os sinais de necessidade de mudança que estão ao próprio redor, como os atos de violência contra a mulher e os LGBTs, o crescimento dos movimentos feministas, entre outros, apoiando a disseminação dos preconceitos e das discriminações enfrentados por aqueles que não se encaixam nos padrões ditos “normais” pela sociedade. Referências Cleni Lopes da Silva é aluna do mestrado em História da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) BARCA, Isabel. Aula oficina: do projeto à avaliação. In: Jornada de Educação Histórica, 2004, Braga. Anais. Braga: Centro de Investigação em Educação (CIED), Universidade do Minho 2004a, p. 131-144. COLLING, A, M.; TEDESCHI, L, A. O ensino da história e os estudos de gênero na história brasileira. História e perspectivas, Uberlândia, 2015. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/historiaperspectivas/article/view/32777. CUNHA, Maria Isabel Da. O bom professor e sua prática. Campinas, SP: Papirus, 1989. GRASSI, P, C. Gênero e juventude(s): emergências educativas. Aedos n11, vol. 04, set, 2012. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/30747. Acesso em 13 de novembro de 2018. MOLINA, L, P. Gênero, sexualidade e ensino de história nas vozes de adolescentes. Revista Antíteses, V. 6, n 12, p 489-525, jul.- dez 2013. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/12639/135 60. LOURO, Guacira Lopes; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre (Org.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Editora Vozes: Petrópolis/RJ, 2008. RUBIN, G. O tráfico de mulheres: notas sobre a “Economia Política” do sexo. Tradução de Christine Rufino Dabat. Recife: SOS Corpo, 1993. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1919. GÊNERO E ENSINO DE HISTÓRIA: UM DEBATE SOBRE A QUESTÃO DA MULHER ATRAVÉS DE CARTAZES SOVIÉTICOS Fellipe Castanheira Soares Shayane Martins Rodrigues Gomes Introdução: As mulheres e a História “Evidentemente, a irrupção de uma presença e de uma fala femininas em locais que lhes eram até então proibidos, ou pouco familiares, é uma inovação do século XIX que muda o horizonte sonoro. Subsistem, no entanto, muitas zonas mudas e, no que se refere ao passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual dos traços, da memória e, ainda mais, da História, este relato que, por muito tempo, “esqueceu” as mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, inenarrável, elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento” (PERROT, 2005, p. 9). Este texto tem como objetivo refletir sobre o protagonismo de questões relacionadas à mulher nos conteúdos do Ensino de História, e consequentemente, oferecer caminhos e possibilidades que proporcionem o debate em sala de aula sobre o lugar do gênero feminino na sociedade, visando desconstruir estereótipos e opressões historicamente construídas. Conforme afirmam Colling e Tedeschi (2015, p.296), desde que a História passou a existir como disciplina científica, por volta do século XIX, o lugar da mulher dependeu das representações formuladas pelos homens, que foram por muito tempo os únicos historiadores oficiais, escrevendo a história do ponto de vista masculino como universal. Neste sentido, o papel da mulher acabou relegado ao silêncio e invisibilizado, como apontado por Michelle Perrot, autora de “As mulheres ou os silêncios da história”. A historiadora francesa, tida como uma das fundadoras do campo historiográfico denominado “história das mulheres”, empreendeu em seu trabalho o esforço de trazer para o lugar central das narrativas históricas grupos e sujeitos historicamente excluídos, como o caso das mulheres, em um contexto de profundas mudanças nos paradigmas históricos, com o advento da terceira geração dos Annales, que ampliou o olhar para novos objetos e temas de estudos, e também, em uma década de ascensão do movimento feminista no mundo ocidental. No entanto, apesar dos avanços conquistados neste âmbito nas últimas décadas do século XX, consideramos a presença e o protagonismo feminino no campo da História ainda muito aquém do necessário para a construção e o alcance de uma sociedade com igualdade de gênero. Se nos voltarmos para pensar a História enquanto disciplina escolar, podemos também perceber tal insuficiência, apesar das recentes orientações curriculares que buscam estimular a introdução da questão de gênero no ensino. O trabalho de Mistura e Caimi (2015) ao analisar a presença/ausência das mulheres nos livros didáticos constata que “a representação do gênero feminino é parca na maioria dos livros”, e também que “as mulheres são apresentadas de forma homogênea em várias obras e são ignoradas por completo em Aprendendo História: GÊNERO Página | 105 Aprendendo História: GÊNERO Página | 106 muitas outras” (p.243). As autoras acrescentam ainda que mesmo incorporando mais figuras femininas aos conteúdos, especialmente em espaços públicos, estas ficam restritas a um grupo generalizado – nas questões de inclusão de seu direito de voto – ou em um grupo muito específico e representativo – nas mulheres ícones de movimentos artísticos, por exemplo. Quando de fato são incluídas nas discussões, as mulheres ainda figuram nas bordas e margens das produções didáticas, em quadros específicos e em situações pontuais, sem evidentes impactos sobre os processos históricos. Sendo assim, concordamos com Colling e Tedeschi (2015), ao destacarem a importância da abordagem da questão de gênero no âmbito escolar: “Pensar, discutir, escrever, falar sobre as relações de gênero junto com o ensino da história é uma tarefa urgentíssima. Se entendermos que é necessário modificar a cultura em relação ao que pensamos sobre os papéis sociais dos homens e das mulheres, dois lugares de mudança de mentalidades são fundamentais: o lar, no qual meninos e meninas recebem as primeiras noções do que é ser homem/ser mulher e o papel que cabe a cada um(a) na sociedade; e a escola, onde as desigualdades de gênero são plantadas ou reafirmadas.” (COLLING;TEDESCHI, 2015, p.299) A partir desta problemática exposta, propomos discutir aqui caminhos e possibilidades que contribuam para sua superação, inserindo o debate sobre gênero nas aulas de História. No entanto, chamamos atenção, como aponta Tedeschi (2003, p.2) que a introdução da questão de gênero no ensino de história não deve “acoplar a questão feminina como questão exótica à parte”. O que é interessante, segundo o autor, é enxergar a mulher na história integrada aos processos históricos, pois a mesma não esteve a parte deles, mas foi sim excluída da historiografia oficial durante muito tempo. Neste sentido, nossa opção neste trabalho será de apresentar a temática da Revolução Russa, que aparece como conteúdo curricular no 9º ano do ensino fundamental e também no 3º ano do ensino médio, como um item com enorme potencialidade para promover discussões sobre igualdade de gênero, direitos das mulheres e protagonismo feminino na História. A mulher na Rússia revolucionária O processo revolucionário russo de 1917 que culminou com a vitória dos bolcheviques e a construção da URSS, o primeiro Estado Socialista de toda história, foi marcado, dentre outras coisas, por uma intensa participação feminina no movimento, em uma época que a condição de opressão sobre as mulheres por todo mundo era ainda mais acentuada que nos dias de hoje. A proposta de uma sociedade revolucionária, derrubando o capitalismo e construindo o socialismo, passava também pela busca de uma nova posição social da mulher, que a colocasse em condições de igualdade perante aos homens, participando da política, do trabalho e da vida pública. A importante participação feminina na Revolução Russa é perceptível desde a sua primeira etapa, em março de 1917, momento que resultou na queda do czar e na formação de um governo provisório. Foi no dia 8 de março Dia Internacional da Mulher - que uma greve de mulheres operárias, seguida de manifestações por diversas partes do país, alastrou o movimento que iria derrubar a monarquia czarista (HOBSBAWN, 1995, p.67). Assim, após a revolução, o dia 8 de março passava a ser comemorado na Rússia e em outras partes do mundo, como Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras, sempre buscando lembrar a importância das mulheres no processo revolucionário russo e também sobre a necessidade de se lutar pela igualdade de gênero. (GONZÁLES, 2010) Neste sentido, os primeiros anos após o triunfo revolucionário de 1917 marcam um momento de intensa organização das mulheres russas. Em 1919 foi criado o “Jenotdel”, o departamento de mulheres do Partido Comunista, tendo como uma de suas lideranças mais proeminentes Alexandra Kollontai, uma das figuras mais importantes do processo revolucionário. O objetivo de Kollontai e das revolucionárias russas seria construir a Nova Mulher, entendida como a mulher emancipada, livre das amarras opressoras do patriarcado, dos serviços domésticos, do analfabetismo, da religião e da despolitização. E, nestes aspectos, a revolução comunista abriria o horizonte para que se alcançasse tais objetivos. (SENNA, 2017, p.105) A demanda da luta pela igualdade de gênero e da emancipação feminina no contexto pós revolucionário se estendia também a outros membros do partido bolchevique, inclusive seu principal dirigente, Lenin, que afirmava que “enquanto as mulheres não forem chamadas a participar livremente da vida pública em geral, cumprindo também as obrigações de um serviço cívico permanente e universal, não pode haver socialismo, nem sequer democracia integral e durável” (LENIN apud SENNA, 2017, p.105). Sendo assim, sair do ambiente doméstico e participar dos espaços públicos, discutindo ideias e questões políticas era um fator determinante para a emancipação feminina, e que deveria se tornar uma pauta do partido. A participação feminina na Revolução Russa de 1917 abriu espaço para um crescente número de direitos e liberdades que foram conquistados, e que expandiram-se pelo menos durante as duas primeiras décadas da União Soviética, conforme mostra a obra de Wendy Goldman “Mulher, Estado e Revolução”. Neste período foram tomadas diversas medidas que buscavam proporcionar a igualdade entre os homens e as mulheres, como por exemplo, o direito das mulheres ao divórcio, ao casamento civil, ao aborto e a votarem e serem votadas, além do acesso à educação de forma igualitária e a equiparação dos salários entre os gêneros. No entanto, era preciso avançar para além do âmbito formal, mais do que leis e decretos que propusessem a igualdade jurídica, fazia-se necessário convencer e propiciar às mulheres que participassem da vida pública. Assim, o partido bolchevique buscou solucionar tal questão com a criação de instituições públicas e gratuitas, como restaurantes e creches, que permitissem a mulher poder se desprender de suas obrigações domésticas historicamente Aprendendo História: GÊNERO Página | 107 construídas, tendo mais liberdade para ocupar os mesmos espaços que os homens ocupavam nas esferas políticas, econômicas e culturais. Aprendendo História: GÊNERO Página | 108 Os cartazes soviéticos e a questão da mulher: possibilidades na aula de História A propaganda foi uma das estratégias mais claras do convencimento da população quanto a revolução que estava sendo estabelecida na Rússia após 1917 e a nova sociedade que se buscava construir. Por se propor como algo totalmente inédito, o Estado Soviético precisava apresentar as novas ideias para o povo, e assim buscar convencê-los, visando transformar a consciência e a prática das pessoas. Devido ao fato da Rússia ser uma nação majoritariamente analfabeta no início do século XX, sobretudo a população feminina, parte da estratégia de propaganda do discurso político dos revolucionários e revolucionárias bolcheviques se dava através do uso de imagens. Desta forma, “cartazes vivazes com formas simplificadas e com pouco ou nenhum conteúdo escrito conseguiam dialogar de maneira impactante e generalizada com a população” (SENNA, 2017, p.110). Parte significativa destes cartazes de propaganda soviética relacionava-se com as questões aqui discutidas, sobre a emancipação feminina, e buscavam transformar a mulher russa, ao mesmo tempo, em público e representação, a fim de convencê-la a ocupar novos espaços na sociedade e participar ativamente da vida pública e da política. No campo da História, desde os Annales, quando se ampliou a noção de documento, as imagens assumiram papel preponderante enquanto fonte histórica. No âmbito do ensino, devemos destacar que o uso de imagens é uma realidade cada vez mais presente nas salas de aula nas últimas décadas. Conforme aponta Fonseca (2003, p.163), esta opção metodológica é fruto do processo de crítica ao uso excessivo de fontes unicamente textuais e tradicionais, e da exclusividade do livro didático como ferramenta da prática de ensino de História. Porém, de acordo com Bittencourt (2005, p.353), o uso de imagens nas aulas de História deve vir acompanhado de certo rigor metodológico, para que não sejam usadas apenas como recurso atrativo ou ilustrativo, como aparecem em muitos livros didáticos. Segundo Peter Burke (2004), as imagens não são apenas simples reflexos de suas épocas, mas também extensões dos contextos sociais em que foram produzidas, logo, devemos submetê-las a uma cuidadosa análise, principalmente de seus conteúdos mais subjetivos. Por isso é necessário que se tenha o máximo possível de informações sobre o objeto iconográfico, realizando uma leitura crítica, buscando perceber quais as intenções contidas, como e quando foi produzido, sua finalidade, seus significados e valores para a sociedade que o produziu, etc. Sendo assim, para finalizar o objetivo deste trabalho, apresentaremos a seguir sugestões de atividades envolvendo alguns cartazes soviéticos produzidos nas duas primeiras décadas após a Revolução de 1917, e que tiveram como foco a questão da emancipação da mulher e a discussão sobre seu lugar na sociedade, possibilitando assim, a inserção do debate sobre gênero nas aulas de História. Após a apresentação das imagens, proporemos um possível roteiro de análise e apontamentos a serem feitos no diálogo com os estudantes, a fim de obter um melhor desenvolvimento na aula. Imagem 1 Abaixo a escravidão da cozinha! Dê-nos uma nova existência!, Gregory Shegal, 1931 Fonte: http://exhibitions.globalfundforwomen.org/community/viewImage?id=3233 O cartaz acima pode começar a ser questionado através de parte de seu título “Abaixo a escravidão na cozinha!”. Propomos indagar aos alunos e alunas os motivos que acreditam justificarem este título, a partir do que vêem na imagem. O objetivo deve ser perceber e discutir os fatores Aprendendo História: GÊNERO Página | 109 limitantes a mulher em uma sociedade que deposita apenas nelas as “obrigações do lar”, como por exemplo, as tarefas da cozinha. Aprendendo História: GÊNERO Página | 110 Em seguida, olhando para a imagem e mediante a parte complementar do título do cartaz “Dê-nos uma nova existência!”, buscaremos responder a seguinte questão: o que é apresentado para a mulher de vestimenta azul, que realiza as tarefas domésticas, por meio da porta que é aberta pela mulher de roupa vermelha? Na imagem podemos observar prédios, que caracterizam um ambiente urbano, contendo placas que indicam “clube”, “cafeteria” e “berçário”. Desta forma, o cartaz visava estimular a mulher a abandonar suas tarefas domésticas e adentrar o espaço público. Imagem 2 Isto é o que a Revolução de Outubro deu às mulheres trabalhadoras e camponesas, autor desconhecido, 1920 Fonte: http://exhibitions.globalfundforwomen.org/community/viewImage?id=3232 O título deste cartaz deixa bem claro que se trata das conquistas obtidas pelas mulheres após a Revolução de 1917. A mulher retratada aponta em direção a uma biblioteca, uma cafeteria, um clube de trabalhadores e uma escola. A partir desta fonte, é possível debater os direitos legais que a primeira constituição soviética permitiu às mulheres, como por exemplo, a liberdade para estudar e trabalhar. Aprendendo História: GÊNERO Página | 111 Aprendendo História: GÊNERO Página | 112 Imagem 3 8 de março - dia de insurreição das trabalhadoras contra a escravidão na cozinha, B. Deykin, 1932 Fonte: https://www.sovietposters.com/showposter.php?poster=449 Este cartaz comemorativo do Dia Internacional da Mulher Trabalhadora, expõe mais uma vez o termo “escravidão na cozinha”. Na imagem, é possível ler “8 de março - dia de insurreição das trabalhadoras contra a escravidão na cozinha”. O primeiro ponto a ser destacado deve ser o da data, que se consolidou como um dia comemorativo das mulheres do movimento operário em princípios do século XX. A partir desta informação, é possível promover um debate com os estudantes sobre o significado do dia 8 de março no Brasil e no mundo atual, relacionando-o com seu significado no passado, sobretudo na sociedade soviética, onde era tratado como pontapé inicial da revolução e responsável pelo início da luta pela emancipação feminina das tarefas domésticas. Posteriormente, observando a imagem, podemos questionar qual a representação da mulher empunhando uma bandeira vermelha ao estender a mão para ajudar a que está caída? A mensagem é uma explícita propaganda do partido, de que a emancipação da mulher apenas seria alcançada com o engajamento na construção do comunismo. Chama atenção também, o estímulo a coletividade entre as mulheres, convocandoas a estarem unidas na construção de um futuro melhor. Considerações Finais Nosso objetivo aqui não foi o de realizar uma profunda análise sobre nenhum dos assuntos expostos, mas sim de refletir sobre a necessidade de se abordar questões relacionadas ao gênero nas aulas de História, tendo em vista que este debate se faz extremamente necessário atualmente. Desta forma, buscamos propor, a partir de uma temática que compõe o currículo de História no ensino básico, algumas atividades possíveis a serem desenvolvidas em sala de aula relacionadas à questão de gênero. A escolha do tema foi motivada por um trabalho desenvolvido no estágio supervisionado de prática de ensino, que envolveu os conteúdos aqui expostos, sobre a questão da mulher no contexto da Revolução Russa, e também, de discussões particulares dos autores sobre o assunto, motivados por leituras diversas e a busca incessante da superação das desigualdades de gênero. Por fim, devemos ressaltar, a fim de esclarecimento e para se evitar confusões, que o debate sobre emancipação feminina na Rússia soviética, apesar de ter apresentado avanços e conquistas, como os já citados, não significou o fim das condições de opressão sobre a mulher e tão pouco o alcance da igualdade perante aos homens. Este foi um desafio que se fez presente ao longo de toda existência do primeiro Estado Socialista da História, e ainda se faz, em nossas sociedades contemporâneas. Referências Fellipe Castanheira Soares, bacharel e licenciado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Shayane Martins Rodrigues Gomes, bacharel em Ciências Biológicas e licencianda do mesmo curso pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Aprendendo História: GÊNERO Página | 113 BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo; Cortez Editora, 2005. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Florianópolis: Edusc, 2004. Aprendendo História: GÊNERO Página | 114 COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro Antonio. O ensino de história e os estudos de gênero na historiografia brasileira. História e Perspectivas, Uberlândia n.53, p. 295‐314 , jan./jun. 2015. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/historiaperspectivas/article/viewFile/3277 7/17719 FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino: experiências, reflexões e aprendizados. Campinas: Papirus, 2003. GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e Revolução: política familiar e vida social soviéticas, 1917-1936. – 1. Ed. – São Paulo: Boitempo : Iskra Edições, 2014. GONZÁLES, Ana Isabel Álvarez. As Origens e a Comemoração do Dia Internacional das Mulheres. Editora: Expressão Popular e SOF – Sempreviva Organização Feminista, 2010. HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. MISTURA, Letícia; CAIMI, Flávia Eloisa. “O (não) lugar da mulher no livro didático de história: um estudo longitudinal sobre relações de gênero e livros escolares (1910-2010)”. Aedos, PortoAlegre, v. 7, n. 16, p. 229-246, Jul. 2015. Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/aedos/article/viewFile/57019/34356 PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: Edusc, 2005. SENNA, Thaiz Carvalho. A questão da representação feminina nos cartazes soviéticos - algumas questões. História e Cultura, Franca n.6, p.103-125, mar.2017. Disponível em: https://ojs.franca.unesp.br/index.php/historiaecultura/article/view/1977/19 20 TEDESCHI, Losandro Antonio. A invisibilidade da Mulher no ensino de História. In: IX Jornada de ensino de História, Ijuí, 2003. CHRISTINE DE PIZAN (1363-1430) E OS ESPAÇOS DE ATUAÇÃO FEMININA NA OBRA A CIDADE DAS DAMAS (1405) Gizelle Ribeiro da Silva Christine de Pizan Christine de Pizan foi filha de Thomas de Pizan (c. 1310-1387), médico, astrólogo e intelectual que trabalhou na corte francesa de Carlos V (13641380). Christine nasceu em Veneza no ano de 1364. Mudou-se para o Reino da França aos 4 anos, onde manteve contato com obras de literatura, mitologia, entre outros. Assim, Pizan cresceu em um ambiente propício à educação e teve acesso a mesma educação direcionada a membros da corte real, pois foi Carlos V que determinou que a filha de seu médico pessoal tivesse este acesso educacional. (Souza, 2013, p. 20). Como afirma Macedo: “Cristina teve clara consciência de si própria e de sua condição de poetisa e escritora. Interessava-se pela organização de seus livros, pela direção dos copistas envolvidos na preparação dos manuscritos, pela ilustração de cada um deles. Era reconhecida como autora brilhante já em vida, a ponto de seu amigo João Gerson tê-la qualificado de insignis femina, virilis femina (mulher insigne, mulher viril) (...). A atuação de Cristina pode ser notada também no plano político. Sua brilhante carreira literária permitiu que frequentasse, juntamente com os filhos, as cortes da alta nobreza” (Macedo, 2002, p. 93-94, 96). Como era costume nas famílias deste contexto, aos 15 anos Christine casou-se com Etienne du Castel, um jovem nobre que, após alguns anos de casado, assumiu a função de secretário do rei Carlos V. Com ele, Christine teve três filhos, e os pesquisadores da sua vida supõem que o seu casamento era harmonioso e seu marido a encorajou a continuar com os estudos. Porém, ficou viúva aos 25 anos (Neri, 2013, p. 70). Diante das perdas que tivera e tendo que assumir a administração da casa, Christine viu no domínio da escrita a solução para providenciar o sustento de sua família. Segundo Luciana Calado, Pizan foi a primeira “mulher a exercer o ofício de escritora, como profissão e fonte de renda” (Calado, 2006, p. 15). Assim, Christine conseguiu se movimentar no meio literário masculino por ser bem relacionada e viver na corte real francesa. Primeiro, quando lutou por seus direitos quando ficou viúva; e depois quando decidiu atuar em um espaço exclusivamente masculino e trabalhar, levando, com isso, a refletir sobre a situação de inferioridade da mulher na sociedade na qual vivia, fazendo, assim, vários questionamentos sobre os motivos dos seguidos ataques que sofria no meio literário, como os realizados por João de Meung, o qual ela admirava, porém, questionava (Souza, 2013, p. 29). Nesta trajetória, uma de suas principais obras foi “A cidade das damas”. A obra “A cidade das damas” A obra “A cidade das damas” utiliza em sua narrativa os chamados exempla, ou seja, pequenas histórias de cunho moral, fictícias ou não, as quais eram utilizadas para fazer com que seus leitores seguissem bons Aprendendo História: GÊNERO Página | 115 Aprendendo História: GÊNERO Página | 116 exemplos, sendo um tipo de texto que foi muito utilizado no período medieval. Esse tipo de texto servia para que os ouvintes tivessem exemplos morais a seguir, para, por exemplo, se afastarem do pecado e de pensamentos e atitudes imorais. Alguns autores durante o período medieval fizeram obras voltadas para essa temática abordando os pecados e as virtudes, entre eles Christine (Calado, 2006, p. 58). A ideia de recuperar do passado e ressignificar a memória de mulheres virtuosas e com vidas exemplares, na visão de Christine, seria fundamental para construção da cidade “A cidade das damas”, ou seja, uma cidade imaginária, pois as suas qualidades seriam como as pedras que moldariam a cidade. Neste sentido, recordamos o significado do conceito de memória social de Patrick Geary, o qual demonstra uma intensa relação entre o presente e o passado no contexto medieval (Geary, 2002, p. 167-181). Por exemplo, mulheres guerreiras, como as amazonas, foram recuperadas do passado por Christine para fazer parte das fundações, já que as mesmas teriam que lutar para ter seu lugar no campo masculino, o qual, na visão de Christine, era o campo das letras, pois as mulheres sábias poderiam assegurar o conhecimento: “Na ‘cidade das Damas’ podemos contar mais de 100 exemplos de mulheres que figuram ali para ser imitados, desta maneira a autora forneceu meios para que as mulheres pudessem desarmar seus adversários e conseguissem triunfar sobre eles. O texto de Cristina foi todo permeado por argumentos e exemplos capazes de mostrar o quanto as mulheres poderiam deixar de ser sujeitos passivos em suas vidas (...)”. (Souza, 2013, p. 61). Os estudos sobre “A cidade das damas” estão inseridos em uma perspectiva de mudança historiográfica ocorrida a partir da década de 60 do século passado, e que obteve o seu auge em termos de reflexão intelectual na década de 80, com o surgimento da categoria gênero. O desenvolvimento da categoria gênero apresenta como principal característica uma abordagem voltada para o âmbito da natureza e da cultura, possibilitando uma crítica ao sexismo e afirmando que, na natureza, as desigualdades entre homens e mulheres são estabelecidas com base nas diferenças físicas entre os corpos. Assim, compreendemos que a categoria gênero é importante não apenas para compreender o papel histórico imposto às mulheres, mas também para fazer história da masculinidade e, portanto, compreender melhor as relações de poder existente entre homens e mulheres (Soihet, 2011, p. 406). Neste sentido, segundo Scott: (...) o desvio para o gênero na década de 80 foi um rompimento definitivo com a política e propiciou a este campo conseguir o seu próprio espaço, pois gênero é um termo aparentemente neutro, desprovido de propósito ideológico imediato. A emergência da história das mulheres como um campo de estudo envolve, nesta interpretação, uma evolução do feminismo para as mulheres e daí para o gênero; ou seja, da política para a história especializada e daí para a análise (Scott, 1992, p. 64-65). Em cada capítulo da obra, a autora elabora argumentos através do diálogo entre as damas alegóricas (Razão, Retidão e Justiça) acerca de temas que eram apenas discutidos por homens e, com isso, ela defende o direito da mulher para trabalhar com a palavra (Calado, 2006, p. 45). Em sua obra, Christine de Pizan idealiza uma cidade na qual as mulheres serão apreciadas e defendidas contra a misoginia. Pizan realiza isso recuperando a memória de várias personalidades femininas e mitológicas do passado que mantiveram, de acordo com ela, uma atuação destacada no campo das letras e das ciências, ressaltando suas qualificações e engrandecendo suas virtudes (Souza, 2013, p. 49). A obra apresenta três figuras alegóricas que são as damas Razão, Justiça e Retidão, com as quais Pizan realiza um diálogo tendo como objetivo estabelecer a verdade acerca das mulheres e desconstruir estereótipos negativos observados em seu contexto, ou seja, provenientes de um mundo dominado pelo sexo masculino. Segundo Calado: “(...) a autora, num primeiro momento, revida os ataques misóginos difundidos nas obras da época, justificando com a citação de uma série de homens da história que dão prova de covardia, fraqueza, ao mesmo tempo em que resgata as mulheres de força, coragem, inteligência. Em seguida ela abre espaço para um outro discurso, a questão do feminino/masculino como condição do ser humano. Nesse caminho, são levantados vários exemplos de falha e virtudes recíprocas, prova da complexidade e imperfeição da própria condição humana” (Calado, 2006, p. 105). A estrutura textual da obra A cidade das damas Fazendo várias lamentações acerca da mulher e se questionando sobre o motivo de existirem diversos ataques à conduta das mulheres, Christine adormece e então é despertada pelas três damas. Na primeira parte do livro, as damas debatem com Christine a respeito das suas lamentações e cada dama se apresenta informando o nome e a sua função. Em seguida, é apresentada a cidade que foi destinada a Christine para ser construída, e então cada dama se aproxima e informa a Christine de que forma cada uma irá colaborar para a construção da cidade (Souza, 2013, p. 61). Na segunda parte de “A cidade das damas”, Christine é chamada pela dama Retidão para dar andamento à construção da cidade: “Pegue as tuas ferramentas e venha comigo. Não hesite; misture a tinta no cartucho e, com a tua pluma, comece a construção, pois fornecerei o material suficiente para, em poucas horas, e com ajuda divina, termos edificado altos palácios reais e nobres mansões de excelentes e ilustres damas gloriosas (...)” (Pizan, 2006, p. 209). Na terceira e última parte da obra, a dama Justiça surge na narrativa com a função de fortificar a cidade. Neste sentido, Maria, que no contexto de Christine já tinha o seu culto estabelecido e consolidado na Cristandade, é coroada como a rainha da cidade. Nessa última parte, Christine apresenta as santas mulheres que só se casaram com Deus, rejeitando serem submissas aos homens. Entretanto, ela também apresenta vários exemplos Aprendendo História: GÊNERO Página | 117 de mulheres que amavam seus maridos, porém, sendo apegadas a fé (Souza, 2013, p. 80). Aprendendo História: GÊNERO Página | 118 Os espaços de atuação feminina destacados por Pizan Nesse ponto, vamos analisar, de acordo com Pizan, algumas afirmações masculinas sobre alguns espaços de atuação feminina. Tais espaços referem-se, por exemplo, ao espaço intelectual, ao espaço dos saberes relacionados à adivinhação, ao espaço da atividade tecelã e ao espaço da administração. Para isso, é necessário resgatar o conceito de memória social que apresentamos no começo deste trabalho, o qual demonstra uma intensa relação entre o presente e o passado no contexto medieval (Geary, 2002, p. 167-181). Ou seja, a memória social serve como um repositório no qual podem ser encontrados exemplos do passado, os quais podem ser utilizados e reinterpretados a partir do contexto contemporâneo do autor, que realiza modificações no mesmo a partir do seu presente. Primeiramente, vamos analisar o seguinte fragmento: “Boccaccio fala ainda, confirmando a tese que expus, daquelas mulheres que não acreditam em si nem em suas capacidades, como se tivessem nascido nas montanhas longínquas, ignorando o que é o bem e o prestígio, e que se desencorajam e dizem que não servem a outra coisa além de atrair os homens, e de pôr no mundo e educar os filhos” (Pizan, 2006, p. 178). A autora engradece algumas mulheres que se afastaram dos deveres femininos para se empenharem no estudo de grandes autores. Christine aborda essa temática na obra para exemplificar para aquelas mulheres que não acreditam na sua capacidade em relação à aprendizagem de filosofia e das ciências, assim como em confiar em si mesmas e se debruçarem em tal atividade. Além disso, Christine comenta que por conta da educação que as mulheres tinham passaram a não acreditar em si mesmas no que diz respeito ao estudo das letras e das ciências, isso porque a educação feminina era voltada para os cuidados da casa e dos filhos, e poucas tinham a oportunidade de acesso à educação. Além disso, no pensamento masculino, a mulher deveria desempenhar atividades do lar destinados a mulher. Outra acusação masculina em relação às mulheres era a fama de sempre estarem atraindo a atenção dos homens. Em sua obra, Pizan, a todo momento, resgata personagens do passado para fortalecer os seus argumentos. Segundo Pizan: “Muito ilustre também foi Proba, de Roma, esposa de Adelfo. Era cristã e de grande inteligência. Amava tanto os estudos e se dedicou com tanto ardor que conseguiu aprender as setes artes liberais, tornando uma grande poetisa. Voltou-se particularmente ao estudo dos textos em versos, em especial, os poemas de Virgílio, que tinha sempre em mente. Uma vez lido com grande empenho, e procurado entender bem o significado, resolveu colocar em versos harmoniosos e densos os dez livros da Sagrada Escritura e as histórias do Velho e Novo Testamento. Certamente, disse Boccaccio, é de causar espanto que uma tal ideia nasça de um cérebro de uma mulher” (Pizan, 2006, p. 178). Christine aborda o assunto da educação feminina trazendo o exemplo de Proba. Segundo Pizan, Proba dedicou-se ao estudo das obras de Virgílio procurando entender como o mesmo escrevia, dessa forma ela resolveu fazer seus versos e colocá-los em livros e, com esse desempenho, Boccaccio afirmou que era de se admirar que tais versos saíssem da cabeça de uma mulher. Em sua narrativa, Christine evidencia as mulheres voltadas para as letras, e algumas que se destacaram. Entretanto, na obra “A cidade das damas”, as mulheres que desempenharam um importante papel na prática de adivinhações tiveram seu espaço social destacado e assim ela cita algumas que se tornaram grandes mestras em tal atividade. Outra personagem do passado resgatada por Pizan foi Mantoa. Segundo Pizan: “Esta mulher, chamada Mantoa, vivia na época de Édipo, rei de Tebas. Ela tinha uma inteligência tão grande e tão nobre que dominava a piromancia, quer dizer a arte de ler o futuro através do fogo. Dizem que os Caldeus, que praticavam essa arte na Antiguidade, a descobriram; já outros dizem que foi o gigante Nemrod. Não havia na época nenhum homem que soubesse mais do que aquela virgem o movimento das chamas, as cores ou o barulho do fogo” (Pizan, 2006, p. 181). A autora inseriu na narrativa a história de Montoa para exemplificar as mulheres que desempenharam com sucesso a atividade de adivinhação. Ela a descreve como uma virgem inteligente que viveu no período de Édipo que e dominava a piromancia, ou seja, a arte de ler o futuro através do fogo. Observamos até o momento a recuperação de mulheres que desempenharam muito bem as atividades que tiveram acesso, tanto nas letras como nas artes de adivinhações. Christine resgata o exemplo dessas mulheres para mostrar aos homens que duvidavam da capacidade das mesmas e que as caluniavam, onde ela comprova através desses exemplos que muitas mulheres tinham a mesma inteligência e desenvoltura que eles para realizarem diversas atividades. Podemos observar outro espaço de atuação feminina proposto por Pizan neste fragmento, ou seja, o educacional, utilizando o exemplo da nobre Carmenta: “Que se calem! Que se calem a partir de agora, os clérigos que maldizem as mulheres, e todos aqueles aliados e cúmplices as criticam em seus livros e poemas! Que baixem os olhos de vergonha de ter ousado mentir em seus escritos, quando vemos que a verdade contraria o que eles dizem, uma vez que a nobre Carmenta foi para eles uma professora – isso eles não podem negar-, e que eles receberam de sua alta inteligência o conhecimento da escrita latina de que eles se orgulham tanto e se sentem honrados” (Pizan, 2006, p. 192). Christine colocou na sua obra mulheres com feitos exemplares para desconstruir as críticas masculinas existentes em livros e poemas, Aprendendo História: GÊNERO Página | 119 Aprendendo História: GÊNERO Página | 120 mostrando, dessa forma, as virtudes e fazendo eles se envergonharem das calúnias lançadas às mulheres. Por exemplo, provando ao contrário do que os homens diziam, principalmente em áreas voltadas para as letras, como o exemplo dado da jovem Carmenta que demonstrou seu desempenho na língua e na escrita latina, da qual os homens se orgulhavam por serem os únicos a saberem. Assim, a autora demonstrou que não eram apenas eles que tinham a sabedoria para ter conhecimento sobre a língua latina. Assim, como a autora mostra na obra mulheres que tiveram destaque nas ciências, ela dá ênfase também para aquelas que tiveram bom desempenho no artesanato, trazendo com suas peças de arte uma melhor qualidade de vida para a comunidade que as cercava. Para isso, ela cita o exemplo de Aracne: “Foi ela [Aracne] quem primeiro descobriu como cultivar o linho e o cânhamo, como ordenar, e isolar as fibras têxteis por maceração e depois fiar e tecer no fuso. Ouso afirmar que esta atividade foi bastante necessária para a humanidade, mesmo se muitos homens reprovam às mulheres de praticá-la. Foi também Aracne quem descobriu a arte de fabricar redes, laços e esteiras para pegar pássaros e peixes” (Pizan, 2006, p. 194). Com relação à atividade têxtil, os homens não estavam de acordo que as mulheres a praticassem. Entretanto, Christine relata a história de uma jovem Aracne, que aprendeu a trabalhar com redes, esteiras e foi ela quem primeiro soube como fabricar o linho, e que essa prática trouxe benefícios a sua comunidade. As mulheres citadas na obra de Christine de Pizan trouxeram benefícios para a sociedade ao longo da história, e mesmo que algumas sejam mitológicas elas contribuíram para conscientizar as mulheres da sua aptidão. Considerações finais O objetivo deste trabalho foi analisar a obra de Christine de Pizan, “A cidade das damas”, destacando os espaços nos quais, para a autora, a mulher, no contexto do começo do século XV, tinha uma atuação ativa. Neste sentido, podemos observar que a autora faz uma reflexão, através da recuperação de diversas personagens do passado, sobre a presença feminina na educação e nas letras. Nesse ponto observamos as injúrias masculinas e destacamos, a partir da visão de Christine, as mulheres que se sobressaíram nos estudos, tais como filósofas e poetisas, onde mostramos vários exemplos apresentados por Christine, a qual, ao contrário da visão misógina da época, demonstrou o local de atuação das mulheres do seu período, contrariando as injúrias lançadas pelos homens. Com isso, analisamos neste trabalho como as mulheres eram vistas no Medievo tanto a partir da visão masculina, uma visão misógina, quanto a partir da visão feminina, especificamente de Christine de Pizan. Neste sentido, desenvolvemos questões sobre como eram imaginadas naquele período, o contexto social no qual viviam, assim como podemos compreender os espaços em que eram impedidas de atuar e principalmente as críticas que foram tecidas em relação a este grupo social. Também podemos observar, através da narrativa da obra “A cidade das damas”, como Christine de Pizan desconstruiu o discurso misógino com o qual convivia, utilizando argumentos fundamentados nos exemplos de várias mulheres que tiveram destaque na história e outras que foram resgatadas do campo mitológico para compor sua cidade imaginada e, com isso, desconstruir as críticas laçadas pelos homens. Ao longo da leitura e análise da obra, Pizan deixa claro que as mulheres assumiram posições e desenvolveram atividades que eram restritas aos homens e, com isso, observamos uma desconstrução da visão masculina quanto às habilidades da mulher no Medievo, assim como nas próprias mulheres, ao tomarem consciência de sua habilidade e colocá-la em prática. Referências Gizelle Ribeiro da Silva é graduanda em Licenciatura Plena em História na Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Petrolina). Orientador: Prof. Dr. Luciano José Vianna (UPE – Campus Petrolina). É integrante do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisas em Medievalística da UPE/Petrolina. Fonte PIZAN, Christine de. A cidade das damas. In: CALADO, Luciana Eleonora de Freitas. A cidade das damas: a construção do imaginário utópico de Christine de Pizan. Recife, 2006. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, 2006. CALADO, Luciana Eleonora de Freitas. Introdução. In: CALADO, Luciana Eleonora de Freitas. A cidade das damas: a construção do imaginário utópico de Christine de Pizan. Recife, 2006. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, 2006. GEARY, Patrick. Memória. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (eds.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Vol. II. São Paulo: EDUSC, 2002, p. 167-181. MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 2002. NERI, Christiane. Feminismo na Idade Média: conhecendo a cidade das damas. Revista Gênero & Direito, v. 2, n. 1, p. 68-85, 2013. SCOTT, Joan. História das mulheres. In: A escrita da história. Novas perspectivas. Peter Burke (Org.). São Paulo: Editora UNESP,1992, p. 63-95. SOIHET, Raquel. História das mulheres. In: Domínios da história. Ensaios de Teoria e Metodologia. Ciro Flammarion Cardoso; Ronaldo Vainfas (Orgs.). Rio de Janeiro: Elservier Editora Ltda., 2011, p. 263-283. SOUZA, Daniele Shone de. A cidade das damas e seu tesouro: o ideal de feminilidade para Cristiane de Pizan na frança do início do século XV. Curitiba, 2013. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná, 2013. Aprendendo História: GÊNERO Página | 121 GÊNERO ESTIGMATIZADO: CONTROLE SOCIAL E MARGINALIZAÇÃO DAS PROSTITUTAS NO SÉC. XIX Heloísa Raquel da Silva Christian Fausto Moraes dos Santos Aprendendo História: GÊNERO Página | 122 Introdução Desde o surgimento da sífilis (Treponema pallidum) e apesar de todas as teorias formuladas sobre suas formas de contágio, a responsabilidade acerca de sua propagação sempre recaiu sobre as mulheres, em especial as trabalhadoras do sexo. A medicina, a partir do século XIX, enquanto agente normatizador e fiscalizador dos corpos, agiu de forma categórica. Através de processos de higienização, estabeleceu duras regulamentações que se consolidavam na forma de leis, regulamentos ou manuais. Construção do Gênero “inferior” através da medicina Até o século XVII, a visão sobre o corpo e a sexualidade era resultado da conciliação dos preceitos de ordem social, o respeito pela religião e o crescimento demográfico. A cultura do período era categórica em tachar os indivíduos e principalmente seu comportamento como “lícito” ou “ilícito”, a partir de critérios que variavam de acordo com a classe social, idade, normas médicas e, principalmente, o sexo. O corpo é o agente dos atos sexuais proibidos, ele protagoniza as dificuldades das imposições culturais e legislativas. Havia uma grande complexidade entre o que era imposto e as experiências cotidianas, relacionadas a sexualidade (Matthews-Grieco In Vigarello, 2008: 219). A partir do século XVIII, uma crescente sociedade burguesa, munida de um grande senso de pudor, faz do corpo e da sexualidade assuntos evitados e até mesmo proibidos (id. ibid.). A ascensão dessa burguesia vem acompanhada de uma nova ferramenta de poder baseada na disciplina. Esse poder disciplinar se caracteriza por uma intervenção positiva, que gera transformação social. O projeto normativo burguês se baseia na norma como um critério de qualificação e de correção ao mesmo tempo (Miskolci, 2002/2003: 110). Simultaneamente, através do fenômeno da medicalização dos hospitais, a medicina passa a exercer um papel fundamental no controle e administração dos corpos, interferindo no cotidiano. É ela quem vai definir as regras que vão orientar a vida moderna, não apenas no que diz respeito a doenças, mas também em vários aspectos da vida dos indivíduos, como a sexualidade, a fertilidade e outros. (Foucault, 1996). Sob a influência de estudos como o de Isaac Newton, o estudo médico baseia-se, cada vez mais, na observação e experimentação ao longo do século XVIII. Diante da possibilidade de aprimorar a espécie humana, os valores higiênicos e valorização da força física eram primordiais (Nunes, 2011: 138). De um lado há a imposição da figura do médico como um ser socialmente superior, ele adquire poder cultural e moral. E de outro, todo o imaginário que convence a mulher da necessidade de ir ao médico com frequência. (Vieira, 2002). É no final do século XVIII e início do XIX que a apropriação da medicina sobre o corpo feminino se legitima. O papel da mulher era decisivo para a supremacia burguesa. Seguindo as normas sociais, a medicina determinava que uma mulher saudável era a que vivia em matrimonio, tendo relações sexuais com finalidade reprodutiva. Sua Aprendendo subjugação garantiria a dominação patriarcal e, consequentemente, a História: unificação familiar, o que seria legitimado pela negação da sexualidade GÊNERO feminina (Silva, 2007: 794). Em sua discussão sobre saber, poder e sexo, Página | 123 Michel Foucault descreve uma histerização do corpo da mulher como um dos dispositivos estratégicos de controle, processo pelo qual seu corpo foi analisado e tido como portador de uma sexualidade inata e incontrolável e, por isso, essencialmente doente. (Foucault, 1988). A falta de poder quando se trata de sexualidade, coloca as mulheres em posição de submissão aos pais, maridos e médicos, ao corpo da mulher associa-se uma missão passiva e materna (Rohden, 2001). A prostituta, ao subverter esta ordem e, de certo modo, retomar o controle de sua sexualidade, é vista como doente. Uma das funções dos médicos era evidenciar as consequências terríveis da prostituição. Consequências que afetariam a sociedade em geral, uma vez que esta prática desestimulava o trabalho e estimulava o vício e outros problemas morais. (Nossa, 2010). Sífilis como agente enfraquecedor A sífilis aparece como doença que causa o enfraquecimento da força de trabalho. E é enquanto fonte e agente da propagação da sífilis que recai a ênfase maior do discurso sobre a prostituta (Engel, 1989: 75). Neste contexto, alegando a necessidade de impedir escândalos e a degeneração da família e da moral, as prostitutas eram obrigadas a viverem em áreas específicas. Junto a isso, havia no meio acadêmico do período, a visão da prostituição como ameaça à saúde física. Na tentativa de promover um crescimento populacional, visando aumentar seu poder militar e econômico, os soberanos absolutos se interessam pela saúde de seu povo (Faure In Corbin, 2008: 19). De agora em diante, o vocabulário e a forma de pensar médicos passavam a ser utilizados como forma de poder. O discurso médico se impunha de forma tão dominante e inquestionável, não apenas pelos esforços da medicina e do Estado em regular a população, mas pela própria sociedade, que estava obcecada, encantada e inquieta com o corpo e suas implicações (ibidem). O caráter histórico das normas sexuais nos mostra como as ideias de sexualidade são fruto de uma construção social, evidenciando os pressupostos ideológicos que não se manifestavam claramente à afirmação do caráter pleno das mesmas (Almeida, 1995). É através da medicina que o Estado passa a reger o comportamento adequado e aceito socialmente, a figura do médico ganha autoridade. Em meados do século XIX, os médicos eram descritos como os primeiros disseminadores do projeto de normalização do espaço social urbano (Engel, 1989: 39). A relação entre o visível e o invisível se altera. É o início da racionalidade cientifica que se impõe através da higiene pública, controle de nascimentos e demografia. A preocupação com a questão demográfica e a busca por um controle populacional são fatores estritamente ligados à medicalização do corpo feminino (Vieira, 2002). Aprendendo História: GÊNERO Página | 124 A prostituição se configura então, como uma fatalidade e como uma válvula de escape. Fatalidade, porque é um mal necessário, que não deve ser eliminado, mas controlado. Válvula de escape, porque atende as exigências dos instintos masculinos e é, portanto, um escudo de proteção aos valores e padrões de comportamentos (Engel, 1989: 110). Alguns aspectos históricos da sífilis Simultâneo ao regresso de Colombo de sua primeira viagem ao Novo Mundo surge, em Barcelona, uma nova e aterradora epidemia. Ela transpassa as classes sociais, atingindo tanto pobres quanto nobres e até mesmo autoridades religiosas. Expande-se rapidamente e muitas pessoas padecem e morrem. Toma grande proporção entre os homens do exército francês que sitiava Nápoles, em 1494. A disseminação foi tão grave que os soldados são dispensados. Consequentemente, espalham a doença pelos países que passam e ela fica conhecida como “mal francês” (Papavero, Llorente-Bousquets, Espinosa-Organista, 1995: 57). Em meados do século XVI são feitas as primeiras associações entre o retorno de Colombo das ‘Indias’ e esta doença. Sua origem passa a ser atribuída aos nativos americanos. Outros acreditavam que a doença já existia na Europa antes do descobrimento do novo continente. Foi Gerolamo Fracastoro que ao estudar a origem da doença, batizou-a de syphilis, por causa de um mito sobre o primeiro homem que foi acometido dela, Sífilo. (Ibidem: 60). Nesse período, a sífilis era descrita como uma “sarna” que tomava o rosto e o corpo, causando verrugas que eclodiam com cheiro fétido e acompanhadas de dores terríveis. Alguns dos soldados pareciam bem, marcados apenas com pequenas lesões no corpo e na língua, eram esses que frequentavam os banhos públicos, iam aos cirurgiões-barbeiros para fazer sangrias e se relacionavam com as prostitutas, disseminando a doença (Souza, 1996: 184). Em Portugal há a ocorrência dos primeiros casos logo após o retorno de Colombo do Novo Mundo. No Hospital Real de Todos os Santos é criada a “casa das boubas” para tratamento dos doentes afetados pelo novo mal. “Boubas” era o nome utilizado para designar uma grande variedade de lesões sifilíticas, tais como feridas, abscessos, úlceras e verrugas (Veloso, 2001). Na Europa, Portugal foi o país que mais tratou os doentes acometidos pela sífilis. Se o excesso sexual originava a doença e o sexo fora do casamento era pecado, a sífilis seria então um castigo divino (Souza, 1996). Apesar de todas as medidas contra as prostitutas e o fechamento dos bordeis, a sífilis continuava se propagando, então, conclui-se que os banhos públicos também eram fonte de contaminação. Consequentemente, eles se tornaram cada vez mais vazios, até serem extintos. E as pessoas passaram a utilizar perfumes visando evitar o contágio através dos ares e dos lugares. Fontes enciclopédicas do início do século XIX indicam que o contato com água era difícil e o banho era sempre associado a fins médicos (Vigarello in Corbin, 2008: 376). Propomos, portanto, a leitura, transcrição e análise da fonte documental manuscrita inédita Methodo de atalhar a propagação da Syphilis nas casas publicas de prostituição, de autor desconhecido, escrita em Portugal, no ano de 1839. Bem como o estudo sistemático das regras e métodos propostos para conter a sífilis nas casas de meretrício e sua significação de acordo com a conjuntura médico/social do período. Objetivamos não somente contribuir com Aprendendo a investigação no campo da História da Medicina na era moderna, mas, História: também, fornecer um ensaio preliminar sobre o modo como as prostitutas GÊNERO eram vistas e, consequentemente, submetidas a diversos tipos de Página | 125 regulamentações em Portugal no século XIX. Conclusão Em meados do século XVII, por causa da perda gradual da virulência da sífilis e a diminuição dos sintomas, o pânico que a doença causava foi diminuindo, os homens habituaram-se a conviver com a doença e oscilavam entre despreocupação e medo. A necessidade de esconder as feridas e as úlceras do pescoço, mãos e rosto, fez nascer a moda das cabeleiras postiças, luvas e camadas de pó. (Souza, 1996). As formas de prevenção foram negligenciadas, mesmo porque o paradigma sanitário vigente não privilegiava o modelo preventivo. Consequentemente, a taxa de portadores da doença aumentou; o resultado foi uma grave epidemia no século XVIII. Coube à medicina alertar a gravidade da doença que, no século XIX, também dissemina o pânico, bem como as medidas repressivas contra as prostitutas. A crença de que a sífilis era transmitida por elas era sempre a mais aceita e difundida, independente das outras teorias sobre o contágio. A prostituição foi perseguida e ilegalizada, e as prostitutas sifilíticas eram enclausuradas, enquanto durasse o tratamento, em enfermarias isoladas e sem condições higiênicas ou humanitárias. A sífilis foi uma doença pandêmica que acometeu toda a Europa, possuía índices de mortalidade altíssimos. Por conta disso, a medicina se dedicava intensamente a buscar as classes responsáveis por sua disseminação e a estabelecer normas e regras que pudessem contê-la. Justificamos a pesquisa aqui apresentada, sob a necessidade de esquadrinhar como se deu este importante processo. Referências Graduanda do curso de História na Universidade Estadual de Maringá, bolsista PIBIC com financiamento CNPq ALMEIDA, M. V. Senhores de Si: Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade. Lisboa: Fim de Século, 1995. CORBIN, Alain. Historia do Corpo: Da Revolução à Grande Guerra – Vol. II. Petrópolis: Editora Vozes, 2008. ENGEL, Magali. Meretrizes e Doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). 1ª edição, São Paulo: Editora Brasiliense, São Paulo, 1989. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 13ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 12ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1996. Aprendendo História: GÊNERO Página | 126 MISKOLCI, Richard. Reflexões Sobre Normalidade e Desvio Social. Estudos de Sociologia, Araraquara, Vol. 13, N.14, 109-126, 2002/2003. NOSSA, Paulo. O discurso biomédico da defesa da saúde e a prática da prostituição: do movimento higienista à era pós-sida. In SILVA, Manual C.; RIBEIRO, Fernando B. Mulheres da Vida, Mulheres com Vida: Prostituição, Estado e Políticas. Porto: Ed. Húmus, 2010. NUNES, Rossana. Nas Sombras da Libertinagem: Francisco de Mello Franco (1757-1822) entre luzes e censura no mundo luso-brasileiro. 2011. 160f. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. PAPAVERO, Nelson; LLORENTE-BOUSQUETS, Jorge; ESPINOSA-ORGANISTA, David. Historia de la biologia comparada: Volumen III. De Nicolás de Cusa a Francis Bacon. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1995. ROHDEN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001. SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. SILVA, Susana. Classificar e silenciar: vigilância e controlo institucionais sobre a prostituição feminina em Portugal. Análise Social, Portugal, vol. XLII (184), 789-810, 2007. SOUZA, J. Germano de. Impacte social da sífilis: alguns aspectos históricos. Medicina Interna, Portugal, Vol. 3, N. 3, 184-192, julho/setembro 1996. VELOSO, Barros. Da sífilis à sida. Medicina Interna, Lisboa, Vol. 8, N. 1, 56-61, Janeiro/março 2001. VIEIRA, Elisabeth Meloni. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002. VIGARELLO, Georges. Historia do Corpo: Da Renascença às Luzes – Vol I. Petrópolis: Editora Vozes, 2008. AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NOS CORDÉIS DA EDITORA GUAJARINA EM BELÉM DO PARÁ DURANTE A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX Hyago Lopes Farias Nayrianne Rodrigues Alcântara Lopes Introdução O presente trabalho tem por objetivo compreender como as representações femininas são descritas nos cordéis nordestinos, distribuídos em Belém pela Editora Guajarina durante a primeira metade do século XX. Propõe-se a partir da temática de gênero, compreender a construção da representação das mulheres nos folhetos, analisando as críticas feitas pelos poetas às transformações vivenciadas por elas no período. A principal fonte é a literatura de cordel, por permitir captar as mudanças do período estudado e como elas são percebidas pelos poetas. Para isso, foram utilizados os cordéis da Editora Guajarina que estão localizados no Acervo Vicente Salles do Museu da Universidade Federal do Pará. Os folhetos são decorrentes das pesquisas do Vicente Salles, coletados durante os seus anos de trabalho na área. Segundo Menezes Neto (2012), a Editora Guajarina tem o início de suas atividades em 1914, e em 1949 ocorre o fim dos seus serviços editoriais. Diante disso, o parâmetro cronológico adotado para este artigo é baseado nos cordéis que são indicados como fonte durante a pesquisa e no período de funcionamento da editora em Belém, uma vez que todos os cordéis analisados, foram publicados por ela. Embora, apenas quatro (4) dos nove (9) cordéis selecionados estejam datados, é possível compreender pela escrita dos poetas o contexto no qual estão inseridos. A literatura de cordel como fonte de análise No Brasil, a poesia de cordel tem a sua origem apresentada, de acordo com Curran (1973), em duas maneiras: a ação espontânea dos poetas populares de escrever e vender as poesias que anteriormente eram reproduzidas de forma oral e a adaptação à poesia das histórias em prosa trazidas por portugueses e espanhóis na segunda metade do século XIX. A literatura de cordel é escrita por poetas semianalfabetos, sabendo ler e escrever, mas com pouca escolaridade, é impressa nas pequenas lojas ou nas casas dos autores, vendida em feiras, barracas de livros, predominantemente no Nordeste, e posteriormente no Norte do Brasil. Conforme Santos (1987), é necessário que seja considerado o perfil social dos autores da literatura de cordel e os seus consumidores, quase sempre, homens, podendo ser identificados nas camadas mais populares da sociedade, com talento para contar histórias, que direcionam as suas narrativas à comunidade da qual eles fazem parte e reconhecem nas histórias retratadas as suas próprias experiências de vida. Aprendendo História: GÊNERO Página | 127 Aprendendo História: GÊNERO Página | 128 A poesia de cordel não se restringe apenas a romances ou histórias do cotidiano, além disso, os poemas são considerados por pesquisadores da área: memória, documento e registro de acontecimentos nacionais. Curran (2001) discorre sobre o assunto e afirma que, são encontrados nos folhetos circunstâncias do dia a dia, nos quais os poetas narram episódios da sua comunidade, região e, até mesmo, mundiais, opinando sobre eles e transmitindo ao consumidor local as mensagens referentes a uma cultura nacional. Assim, Pesavento (2006) considera que a verdade da ficção literária não está na revelação da existência real dos personagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura das questões levantadas em suas respectivas temporalidades. Para o historiador, que utiliza a literatura como fonte, o que conta não é a autenticidade do fato, e, sim, os relatos que neles estão presentes. Ou seja, o texto literário não se apresenta apenas como algo próximo realidade que aconteceu, mas significa possibilidades, posturas de comportamentos e sensibilidades sobre os períodos históricos nos quais foram produzidos. Diante disso, de acordo com Ferreira (2009) os cordéis, como produções literárias, tornam-se consideráveis fontes para a pesquisa histórica por expressarem valores, posicionamentos e circunstâncias, sendo vias de acesso para a compreensão de contextos sociais e culturais. É nessa direção que a análise dos cordéis, como fonte deste trabalho, é conduzida propondo uma discussão atrelada aos estudos sobre o tema, destacando as representações das mulheres pelos cordelistas da Guajarina nas primeiras décadas do século XX. Os impactos dos ideais de modernidade sobre o comportamento feminino Segundo Sarges (2010), a transição do século XIX para o XX, é marcada pelo processo de modernidade, vivenciada em diversas partes do mundo, sendo caracterizada pela industrialização da produção, pelo surgimento de novas formas de tecnologia e, ainda se observa a troca de antigos hábitos e ambientes por novos padrões de moderno. A sociedade brasileira passa por intensas transformações no espaço público e privado. Nesse período, se sucede a legitimação da medicina através dos novos conhecimentos científicos que caracterizavam a profissão como essencial para resolver problemas encontrados no dia a dia. Santos (2009) destaca que, durante o século XIX, é iniciado o processo de institucionalização da medicina como criadora de um saber capaz de ordenar e orientar toda a sociedade, como na urbanização das cidades, no trabalho, nas ligações familiares e sobretudo nos corpos masculinos e femininos. Belém, conforme Sarges (2010), desde a segunda metade do século XIX, vivenciou diversas transformações econômicas e sociais. Na virada para o século XX, a administração da cidade se moderniza, passando a ser preparada para funcionar como porto de escoamento da produção da borracha, o qual, nesse especifico momento, é um dos principais produtos da exportação nacional. O enriquecimento econômico proporciona a capital paraense investimentos que são encaminhados para área urbana, como na construção de prédios públicos, casarões de azulejos, praças. Para Vieira (2015, p. 4) a higienização do espaço urbano em Belém foi preocupação de autoridades e intelectuais do período, para eles a ciência teria poder de reabilitar os ambientes e preparar o homem e a mulher para viver com “honestidade” e “sem vícios”. Em face dessas transformações, torna-se essencial reformular a família brasileira para adequá-la aos moldes modernos. Às mulheres são definidas funções que priorizavam o seu papel de mãe, tornando-a indispensável para a educação e higienização dos filhos. Historicamente, o papel da mulher esteve ligado a esfera privada, baseado em crenças biológicas que determinavam a elas funções como, casar, gerar filhos, educa-los para serem bons cidadãos e zelar pelo cuidado do lar. Maluf e Mott (1998) compreendem que o papel primordial a ser exercido pela mulher, na transição do século XIX para o XX, era o de esposa, mãe e dona de casa. Essa idealização correspondia ao que era disseminado pela Igreja, orientado pelos médicos e legitimado pelo Estado. Nas primeiras décadas do século XX, segundo Rocha (2011), os ideais de modernidade vindos da Europa e incorporados pelo Brasil promoveram, a urbanização dos ambientes, a modificação dos costumes e a disseminação da educação formal. Esse cenário propiciou mudanças no comportamento feminino, as mulheres começam a circular no meio urbano, passam a ir aos passeios, teatros, chás e bailes. A imagem feminina é construída em uma conjuntura de mudanças, tais como no vestuário, no penteado, na maquiagem e, principalmente, na forma em que se apresentam para a sociedade. Diante disso, há a reafirmação dos modelos ideais de feminino, obtendo destaque a educação formal para as mulheres e a promulgação dos códigos de condutas. Conforme Rocha (2011, p. 4) os “livres-pensadores”, nome dado aos intelectuais e filósofos do período, defendiam a educação formal feminina, em que privilegiasse a preparação para a vida doméstica, estabelecendo a modelo de esposa e mãe apta para conduzir o lar, dedicando-se a saúde dos filhos e dos membros da família. A educação formal das mulheres, nesse período, é compreendida como forma de frear as mudanças do comportamento disseminadas pelas ideias modernas. Podendo ser observado no Código Civil de 1916: “Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: I. A representação legal da família. II. A administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adaptado, ou do pacto antenupcial. Aprendendo História: GÊNERO Página | 129 (...) IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do tecto conjugal. V. Prover à manutenção da família, guardada a disposição do art. 277. Aprendendo História: GÊNERO Página | 130 Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251): I. Praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher. II. Alienar, ou gravar de onus real, os imóveis de seu domínio particular, qualquer que seja o regime dos bens. III. Alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outra. IV. Aceitar ou repudiar herança ou legado. V. Aceitar tutela, curatela ou outro munus público. VI. Litigiar em juízo civil ou comercial, anão ser nos casos indicados nos arts. 248 e 251. VII. Exercer profissão . VIII. Contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do casal. IX. Acceitar mandato. (BRASIL, 1916)” O Código Civil estabelece regras a serem seguidas por homens e mulheres. Assim, segundo Maluf e Mott (1998, p. 375) ao homem é dada a função de “chefe da sociedade conjugal”, e a ele compete, por exemplo, a administração dos bens comuns dos cônjuges e dos particulares da esposa, evidenciando a dependência e subordinação da mulher ao chefe da família; já a esposa foi apresentada como incapaz de exercer “determinados atos civis”, sendo comparada as suas limitações com as dos índios, pródigos e menores de idade. Para as autoras, o Código definiu o papel de cada um dos cônjuges, e como eles deveriam ser apresentados socialmente, caracterizando um conjunto de normas com deveres e obrigações que deveriam ser seguidas afim de garantir a composição familiar. Desse modo, a cada integrante do matrimônio deu-se tarefas distintas, sendo notória a preocupação do Estado em manter cada integrante da sociedade matrimonial em seus devidos papéis, sendo uma forma de controle no ambiente civil. “De uma moça seminúa andar mostrando na rua, o sováco, a perna e o seio”: a mulher melindrosa “Depois de tanta mudança, A mulher perde a esperança da cabelleira, da trança, que a tornava mais bonita; Hoje não tem mais desvelo, (...) manda cortar o cabello para ficar mais catita. Uma fita cor de rosa, salto alto, melindrosa, parece ficar formosa a moça que quer beleza ! Está vestida decente admira toda gente, ficam vergadas p’ra frente” (AMARAL, s/d. p. 4) Firmino Amaral, no cordel Bataclã, demonstra a sua aversão aos novos comportamentos femininos. O discurso do poeta é recorrente entre os setores mais conservadores da sociedade no início do século XX. As mudanças das mulheres, principalmente na aparência, incomodaram àqueles que defendiam o dever das posturas femininas serem recatadas e discretas. O termo melindrosa está associado as mudanças na imagem feminina durante o início do século XX, que com base nas mulheres europeias, principalmente francesas, mudam os cabelos, as roupas e a forma de se mostrar na sociedade. Segundo Vaquinhas (2016) a origem da expressão melindrosa está na personagem criada pelo caricaturista brasileiro J. Carlos, em 1920. O termo se torna mais conhecido após a publicação do romance Mademoiselle Cinema, do autor Benjamim Costallat, em 1922. Conforme Cunha (2009, p. 6), as melindrosas de J. Carlos são apresentadas como joviais, frequentemente fumando, com os cabelos e vestidos curtos, quando o vestido não é “exageradamente” curto, é feito com tecidos de material leve e solto. A nova postura visual das mulheres é importante para o rompimento com os antigos padrões de feminilidade, as melindrosas são muitas vezes vistas como masculinas por usarem cabelos “rente ao pescoço”, fumarem, dirigirem automóvel, muitas vezes usavam calças, aparecem no espaço público. Além da imagem, outra característica das melindrosas era a sua presença no espaço público. Nesse momento, é possível perceber que as mulheres passam a frequentar, cafés, teatros, bales, ambientes esses que antes não poderiam ser ocupados por elas, visto a sua obrigação com os afazeres e responsabilidades do lar. Sobre a presença das mulheres no meio urbano, o cordelista João Martins Athayde versa: “No tempo que nos estamos Ninguem faz mais distineção, Entre a mulher meretriz Ou a que é do salão, Se todas andam iguaes Escandalosas demais, Veja que devassidão. Esta escandalizado As mulheres pelas ruas, Nos bailes pelos theatros, Mal vestidas, quase núas Não tem mangas no casaco, Aprendendo História: GÊNERO Página | 131 Aprendendo História: GÊNERO Página | 132 (...) Devia haver uma lei Que puzesse um paradeiro A tanta imoralidade Que se vê no mundo inteiro (ATHAYDE, 1927. p. 8) Embora a presença das mulheres no espaço urbano causasse espanto nos anos 20, é preciso atentar que as mulheres das classes mais pobres já estavam inseridas nesse ambiente desde as últimas décadas do século anterior. Matos e Borelli (2013, p. 127) destacam que desde a última década do século XIX, quando se acentua no Brasil os processos de “modernização”, a presença das mulheres nos trabalhos, nas cidades e nas fabricas, é identificada. A participação das mulheres nesses ambientes foi determinante, haja vista que alguns estabelecimentos levavam o nome das proprietárias. É perceptível também, a presença feminina no comércio de rua, vendendo verduras, frutas, flores, legumes, batatas, cebolas, pão entre outros produtos. Cancela (1997, p. 29) ressalta que na transição do século XIX para o XX, Belém passou por transformações no cenário urbano. Nesse momento, as mulheres passam a ser mais vistas nas ruas, andando sozinhas ou não, “brancas, mamelucas ou negras, filhas de famílias pobres ou sem família alguma”, viviam no espaço urbano, trabalhando e se divertindo. As mulheres da elite brasileira, inspiradas, principalmente, nas francesas, começam a frequentar novos ambientes e a ter posturas que surpreendem os mais conservadores, Rocha (2011, p. 7) afirma que a “fragilidade moral” das mulheres era observada como o motivo delas aderirem aos novos comportamentos, tornando-se uma melindrosa. As novas posturas femininas nos ambientes públicos, como exemplo dançar, cantar, fumar e se maquiar tal como a moda ilustrava, eram vistas como formas contrárias ao que se esperava de uma mulher ideal. Dessa forma, Trindade (1995, p. 42) compreende que em Belém, ocorre a busca pela cultura “europeizada”, estimulando as novas formas de se pensar a urbanização nas aéreas mais centrais da cidade, assim surgem os Boulevards, as praças e os cafés, como espaços de sociabilidade mais frequentados pela elite. O projeto de modernização determinou a “adequação” dos lugares para os diferentes indivíduos, ou seja, a área central da cidade deveria estar reservada para as famílias ricas tradicionais. A presença das mulheres floristas, domésticas e meretrizes nesses espaços causava repulsa as damas da sociedade, as quais acreditavam que elas “feriam os ouvidos da humanidade com termos impróprios para a bela cidade”. “A mulher quando é boa é uma santa verdadeira”: a mulher ideal “Mulher é um objeto que nasce por excellencia, é o coração do homem e a flor da existencia, também quem a possuir tenha santa paciencia. Se não houvesse a mulher era preciso fazel-a, uma casa sem mulher não há quem deseje vel-a, é como um dia sem sol uma noite sem estrela Da mulher veiu a belleza, da belleza a sympathia, da sympathia o amor, do amor a cobardia ; a mulher faz tudo isso para ter mais poesia.” (BARROS, 1932. op. cit. p. 1, 2 e 3) No trecho do cordel acima de 1932, Leandro Gomes de Barros versa sobre a função social da mulher e suas caraterísticas idealizadas de beleza e recato. O cordelista é um dos principais nomes da poesia de cordel. Segundo Mendes (2009, p. 63), Leandro Gomes de Barros é considerado “patrono” da literatura popular em verso no Brasil. Desde o início do século XX, segundo Nascimento (2006), o cientificismohigianismo propiciou o controle médico sobre a família com o intuito de disciplinar a sociedade, orientando e ordenando a vida na cidade, no domicilio, no trabalho, na família e nos corpos. O discurso médico fiscalizava os lares e as suas formas de higienização, sendo responsabilidade da mulher a saúde da família. Portanto, foi necessário construir a imagem feminina nos parâmetros desse discurso. Nascimento (2006, p. 84) afirma que serão colocadas como virtudes para as mulheres, nesse momento, a sua inferioridade em relação ao homem com base nas suas “faculdades afetivas”, a fraqueza, a sensibilidade, a doçura, a castidade, o recato e a submissão. Para Pinsky (2012, p. 472), não há dúvidas de que a mulher estava destinada a se casar e a ter filhos, considerando a família o seu alvo principal de vida. Na virada para o século XX, houve um amplo esforço para enquadrar, por meio de normas, o comportamento feminino, “demarcando o lugar da mulher” e, assim estabelecer que “tipo de mulher” seria digna de respeito social, desse modo, a imprensa se dedicou em traçar o perfil da “mulher ideal do novo século”. A autora também ressalta que embora as mulheres circulem pelas ruas, por causa das suas obrigações sociais, o lar é representado como espaço de maior satisfação e razão de viver, elas deveriam ser submissas as suas condições, não buscando mudá-las, mesmo porque sabiam que os espaços Aprendendo História: GÊNERO Página | 133 públicos e o universo da política eram destinados aos homens. A mulher ideal é a filha obediente, esposa submissa, mãe dedicada, temente a Deus, virtuosa, recatada e não faz nada que manche a sua reputação. Aprendendo História: GÊNERO Página | 134 Em Belém, nos finais da década de 1920, segundo Martins Junior (2010, p. 39) as mulheres da elite e das classes médias também são vistas pelos mais conservadores da cidade como frágeis, devendo cultivar as suas características de “boas senhorinhas”, serem delicadas e alheias as temáticas que não lhes eram pertinentes. Esses valores eram disseminados por todo país de Norte a Sul. Considerações Finais Ao assumirem papéis e posturas, antes inimagináveis, as mulheres passam a ser duramente criticadas pelos meios de comunicação e a pela literatura de cordel. Nesse contexto, os cordelistas nordestinos criticam os novos comportamentos femininos de forma dura, não aceitando que as mulheres ocupem outro espaço que não sejam o familiar. Diante disso, observa-se através da análise das críticas contidas nos cordéis da Editora Guajarina, que há nelas a reprodução dos valores tradicionais específicos de uma classe mais favorecida, no qual grande parte dos autores não pertenciam a essa realidade social, o que causa a circularidade cultural. Portanto, embora não haja como medir os impactos das críticas feitas pelos poetas na cidade de Belém, é possível concluir que os valores tradicionais da elite estão de tal maneira enraizados na sociedade que passam a ser reproduzidos pela literatura a fim de controlar essas transformações e definir lugar da mulher como inferior ao homem. Referências Hyago Lopes Farias é graduado em Direito pela Faculdade de Castanhal e pós-graduando em Direito Público, Constitucional, Administrativo e Tributário. Nayrianne Rodrigues Alcantara Lopes é graduada em História pela Faculdade de Castanhal e pós-graduanda em História e Cultura Afrobrasileira. CURRAN, Mark. História do Brasil em Cordel. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2001. ____________. A Literatura de Cordel. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1973. BRASIL. LEI Nº 3.071, DE 01 DE JANEIRO DE 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ, jan. 1916. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-3071-1-janeiro1916-397989-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 20 fev. 2019. CANCELA, Cristina “Adoráveis e dissimuladas: as relações amorosas das mulheres das camadas populares na Belém do final do século XIX e início do XX”. 1997. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Departamento de Antropoogia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. CUNHA, Getúlio Nascentes da. Melindrosas e Almofadinhas: feminilidades e masculinidades no Rio de Janeiro da década de 1920. In: XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 25., 2009, Fortaleza. Anais... Fortaleza: ANPUH, 2009. p. 1-9. Disponível em: <http://anais.anpuh.org/wpcontent/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.0728.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2019. FERREIRA, Antonio. A Fonte Fecunda. In: PINSKY, Carla; DE LUCA, Tania. et. al. (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. p. 61-91. MALUF, Maria; MOTT, Maria. "Recônditos do mundo feminino". In: SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil. v. 3, São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 368-421. MARTINS JÚNIOR, Rui. Visto, logo existo: moda, sociabilidade feminina e consumo em Belém no limiar do século XX. 2010. Dissertação (Mestrado em História Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará, Belém. MATOS, Maria; BORELLI, Andrea. Espaço feminino no mercado produtivo. In: PINSKY, Carla; PEDRO, Joana. Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 128-130. MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Por uma história do livro e da leitura no Pará: o caso da Guajarina, editora de folhetos de cordel (1922-1949). 2012. 165 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Belém, 2012. Programa de PósGraduação em História Social da Amazônia. NASCIMENTO, Kelly. Entre a mulher ideal e a mulher moderna: representações femininas na imprensa mineira (1873-1932). 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Curso de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. PESAVENTO, Sandra. História & literatura: uma velha-nova história. Revista Nuevo Mundo Mundos Nuevos, jan. 2006. Disponível em: <https://journals.openedition.org/nuevomundo/1560?lang=pt>. Acesso em: 20 fev. 2019. PINSKY, Carla. A era dos modelos rígidos. In: ____________; PEDRO, Joana. Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 449-472. ROCHA, Olivia. Discursos e imagens sobre mulheres nas primeiras décadas do século XX na cidade de Teresina. In: XXVI Simpósio Nacional de História, 14., 2011, São Paulo. Anais... São Paulo: ANPUH, 2011. p. 1-14. Disponível em:<http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300669106_ARQ UIVO_TEXTOOLIVIAANPUH.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2019. Aprendendo História: GÊNERO Página | 135 SANTOS, Aline. A construção do papel social da mulher na Primeira República. Em Debate, Rio de Janeiro, n. 8, p. 1-18, 2009. Disponível em: <https://www.maxwell.vrac.pucrio.br/rev_emdebate.php?strSecao=input0>. Acesso em: 21 fev. 2019. Aprendendo História: GÊNERO Página | 136 SANTOS, Olga. O povo conta a sua História. In: O Cordel: Testemunha da História do Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1987. p. 6-12 SARGES, Maria. Belém: riquezas produzindo 1912). 3. ed. Belém: Paka-tatu, 2010. a Belle Époque (1870- TRINDADE, José. Mulheres de má vida: meretrizes, infiéis e desordeiras em Belém (1890-1905). In: ALVARÉS, Maria. D’INCAO, Maria. A mulher existe? Uma contribuição ao estudo da mulher e gênero na Amazônia. Belém: GEPEM, 1995. p. 41-43. VAQUINHAS, Irene. Cabelos à Joãozinho e melindrosas: uma nova imagem das mulheres nos anos 1920. In: JESUS, Isabel; MIRA, Paula; CASTRO, Zília. (Coords.). Falar de mulheres: 10 anos depois. Ribeirão: Edições Húmus, 2016. p. 353-360. VIEIRA, Elis. “Instruir, sanear e povoar”: o higienismo e as representações do urbano e do rural no Pará (1917-1920). Revista Estudos Amazônicos, Belém, v. 11, n. 2, p. 34-55. 2015. Disponível em: <http://www.ufpa.br/historia/Estudos%20Amazonicos/2015/Elis%20Vieira. pdf>. Acesso em: 21 fev. 2019. AS MULHERES NA CAMPANHA ELEITORAL DE 1911 PARA O GOVERNO DE PERNAMBUCO Jônatas Lins Duarte Cynthia Maria de Barros Soares Este trabalho foi pensado a partir das pesquisas que tinha como tema a reforma do bairro e do porto do Recife no início do século XX. Visto que o período pesquisado foi marcado por uma grande disputa eleitoral no estado, as eleições para governador de Pernambuco de 1911. Ao estudar um pouco das eleições de 1911 nos deparamos com o inusitado caso para a sua época, diversos grupos de mulheres se envolvendo com a política, na campanha de Dantas Barreto, não sendo elas meras coadjuvantes que apoiavam os seus maridos. Tal situação tão inabitual, nós instigou a aprofundar um pouco mais na pesquisa sobre o ocorrido, sendo que foi um pouco difícil, por não encontrarmos outros trabalhos sobre essas mulheres, mesmo assim esperamos que este trabalho possa ser de ajuda e de interesse para os diversos leitores e interessados sobre a temática. O ano de 1911 foi um ano bastante conturbado no estado de Pernambuco. Os principais motivos foram as obras que ocorriam no porto e no bairro do Recife e as eleições para governador do estado, que foram disputadas por Rosa e Silva e Dantas Barreto. Essa eleição, podemos dizer, que foi a mais tensa, sangrenta de toda a história pernambucana e que se diferenciou de todas eleições já ocorrida no país. A eleição para govenador do estado de Pernambuco foi marcada pelo desejo de uma grande parcela da população para quebrar um ciclo que se instaurava no estado desde o início da república, sob o domínio dos candidatos de Francisco de Assis Rosa e Silva. Como podemos tirar, por exemplo, Herculano Bandeira ficou à frente do estado entre os anos de 1908 a 1911, no entanto ele era intolerante às críticas e oposições ao seu governo que perseguiu o jornalista Milet, e que segundo Anjo (2009, p. 140), o governo “em fevereiro de 1911, mandou empastelar o seu matutino, cuja sede ficava na rua 15 de novembro (hoje rua do Imperador). Os seus redatores tiveram que deixar o Estado e o jornal Pernambuco ficou oito meses sem circular”. Atitudes como essa faziam com que os opositores de Herculano e das políticas rosistas ganhassem fôlego contra a gestão. O que fez surgir o nome para a candidatura do general Dantas Barreto, este que vinha ganhando a graça do povo pernambucano pelo seu posicionamento político. O único problema era que o mesmo não tinha residência fixa no estado. Mesmo com esse problema ela foi lançada por João Ribeiro de Brito, “impetuoso político que, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, em 19 de maio de 1911, proclamando o general Emídio Dantas Barreto, candidato da próxima eleição ao governo pernambucano” (Zacarias, 2017, p. 158). O lançamento de sua candidatura para o governo do estado de Pernambuco foi sabida depois pelo general Dantas Barreto, quando Ribeiro de Brito Aprendendo História: GÊNERO Página | 137 mandou uma carta ressaltando o apoio do povo de Jaboatão à sua candidatura. E para resolver a elegibilidade dela para o governo: Aprendendo História: GÊNERO Página | 138 “A elegibilidade constitucional em Pernambuco, para os cargos de governador e vice, era condicionada a ter o candidato ‘residência no estado pelo menos oito anos antes da eleição’. Chama-nos atenção em ver que fora ao judiciário que os grupos políticos tiveram de correr para resolução desta questão crucial. Na definição dos magistrados, o general Danas Barreto é declarado totalmente apto a participar do referido pleito, pois, como militar federal, ‘todo o país é seu domicílio’. Esta interpretação jurídica extensiva do domicilio eleitoral ao militares, em detrimento das delimitações da Carta Estadual, passou a ser abertamente defendida em Pernambuco por deputados como Sérgio de Magalhães em favor das corporações. Foi como governador estadual, em 1913, que Dantas Barreto se deu ao trabalho de transferir seu título para a 5ª Seção eleitoral do Recife”. (ZACARIAS, 2017, p. 159). Com a confirmação da legalidade da candidatura ao governo do estado de Pernambuco, Dantas Barreto “tornou-se a esperança da nova política pernambucana. Dizia-se ser a força da espada contra a violência do absolutismo oligárquico...” (GUERRA, 1979, p. 154). Houve um apoio completamente diferente do que já se viu na história política do estado de Pernambuco que de acordo com Duarte (2018, p. 143/144), “havia um apoio não apenas de uma elite, esta que ditava suas regras ou privilégios para se manter no poder, mas era um impulso renovador”. Com esse apoio “popular” de Dantas Barreto, ficou claro que os seus opositores não eram bem quistos, mas que também precisariam de um nome forte para enfrentar nas urnas este candidato. Esse forte apoio “popular” ao general Dantas Barreto mostrava que o partido conservador não tinha nome forte para a sua candidatura a enfrentá-lo nas urnas. Desta forma o próprio conselheiro Rosa e Silva se candidatou ao governo de Pernambuco. O interesse pela candidatura deu-se pelo querer do “próprio Rosa e Silva ‘atendendo os anseios de seus partidários’, era o nome do PR (Partido Republicano) para concorrer ao governo estadual, em seguida, os governistas operaram um movimento de ainda maior envergadura” (Zacarias, 2017, p. 167). A partir da confirmação da candidatura desses dois políticos inicia-se uma batalha entre os dantistas, apoiadores de Dantas Barreto e os rosistas apoiadores de Rosa e Silva. Os embates eram bastante violentos dentro da capital pernambucana, entre a força policial, armada, que defendia Rosa e Silva e a população, dantista. Os conflitos eram sangrentos, o que provocavam muitos feridos e mortos, principalmente do lado dos populares. Segundo Guerra (1979, p. 155) “a cidade do Recife ficou praticamente paralisada. Comércio e indústria fecharam as suas portas. Faltou o transporte urbano. Era o caos total”. Esses confrontes aconteciam tanto nos meetings, quanto no dia a dia, quando se identificava de alguma forma um rival político por conta de um bottom, ou outro adereço. Por conta da violência houve o afastamento de muitos jovens dos comícios. Mas o medo da represália de seus pais e dos amigos ligados a determinado partido era muito maior. Podemos ter como exemplo dessa situação matérias de jornais como exemplo: “É a seguinte declaração do acadêmico Boa ventura: ‘Tendo diversos colegas me apresentando um abaixo assinado pedindo para que apoiasse um manifesto que fazia e não declarando qual o partido que deverá eu acompanhar, por uma dessas facilidade assinei o dito manifesto. Chegando hoje em nossa casa, a meu pai eu relatei o ocorrido, estranhando-me ele minha atitude, não podemos ir de encontro as ideias de meu pai, peço retirar meu nome da lista pró-Dantas. Meus colegas da junto pró-Rosa considerem-me ligado ao partido dirigido pelo eminente chefe dr. Rosa e Silva, 22 de setembro de 1911. – Acadêmico Boaventura Tavares de Lima’”. (DIARIO DE PERNAMBUCO, 11 de outubro de 1911. p. 1.) Casos como esse são encontrados facilmente nas páginas dos jornais, principalmente no do Diario de Pernambuco, pois era um jornal do partido republicano, que apoiava Rosa e Silva. Além de casos como esse, o acovardamento de muitos jovens por conta da violência era bastante grande, já que muitos não queriam arriscar a sua integridade física. Enquanto uma parcela dos jovens do sexo masculino tinham medo de se expor, um grupo que não tinha direito de voto e nem direito fala quando se tratava política se erguia no meio dessa conturbada eleição: eram as mulheres que estavam impondo e mostrando a sua intenção de voto. Tais mulheres apoiavam o partido liberal, o qual o candidato era Dantas Barreto. Essas mulheres, que em muitos dos jornais da capital pernambucana eram chamadas de sexo belo, tiveram essa denominação dada pela forma que eram vistas, a mulher que tinha que se cuidar para o seu marido, ou futuro marido, como também a ideia de fragilidade. As mulheres deixaram de lado o medo e iam aos comícios para dar apoio ao candidato Dantas Barretos, sem medo das possíveis represálias que os dantistas estavam sofrendo da política. Mesmo assim, diversos clubes feitos por mulheres, de apoio ao general Dantas Barreto começam a surgir em diversas partes do estado, como a que o jornal A Província do dia 24 de setembro de 1911 relata que, na cidade de Bom Conselho, cem senhoras fundaram o clube Dantas Barreto. Tal atitude mostrava que o apoio não era pelos seus maridos, e sim por suas próprias vozes que pediam por mudança dentro da política do estado. Elas não se intimidavam pelo machismo existente dentro do meio político, elas queriam fazer com que suas vozes fossem escutadas e representadas. O apoio das mulheres a Dantas Barreto continuava crescendo e outras cidades começavam a criar os seus clubes de apoio à candidatura do general. Em alguns casos havia a unificação dos clubes florianistas, de apoio ao presidente Floriano Peixoto, militar, ao de Dantas, como ocorreu na Vila Nathn (na atual cidade de Moreno). Diversas mulheres, muitas da mesma família, fizeram apoio à candidatura, além de demostrar que não eram Aprendendo História: GÊNERO Página | 139 apenas espectadoras dentro da política, aram agentes atuantes. Para consolidar o apoio à candidatura, houve a assinatura de um oficio, que teve as assinaturas das seguintes mulheres: Aprendendo História: GÊNERO Página | 140 “Zenaide de Passos Cabral, Laura da Silva Freitas, Maria Magalhães Vasconcelos, Nazinha Magalhães, Francisca de Assis do Amaral, Diva Pereira da Cunha, Joanna Maria da Conceição, Maria Eleutheria do C. Guanabara, Maria do Carmo Oliveira, Maria Cândida Oliveira, Maria Joaquina da Conceição, Noêmia de Carvalho Silva, Clara de Carvalho Silva, Maria José Silva, Rachel do Carmo, Joanna do Carmo, Maria Modesta da Silva, Edila Gonçalves, Aleina Gonçalves, Lili Uchôa da Rocha, Elvira Maria do Nascimento, Francisca Carneiro Lins, Emília Barretto dos Santos, Maria Gomes de Freitas, Celestina Gomes de Freitas, Maria Emília de S. Rodrigues, Amélia Maria Ribeiro, Claudina Maria de Jesus, Paulina Dantas, Severina Alves de Mello, Virgínea da Silva R. Figueiredo, Analia Amélia de Lyra, Benedicta Maria da silva, Manoela Madalena da Silva, Laura Thereza de Jesus, Maria dos Santos Araújo, Edelvina Guiomar Cordeiro, Henriqueta Maria de Sant’Anna, Anna Candida de Sant’Anna, Severina Maria de Santana, Antônia Maria de Sant’Anna, Maria Martins de Sant’Anna, Maria do Carmo de Sant’Anna, Joanna Pacheco da Silva, Julia Francisca da Conceição, Laura Miranda Fragoso, Justina Marques Ramos, Davina dos Passos Cabral, Joanna Minervina Gouveia, Minervina Almeida Gouveia, Antônia Balbina, Alexandrina Maria Conceição, Cândida Carneiro P. Almeida, Anncarneiro P. Almeida, Maria Cândida P Almeida, Severina Cândida P. Almeida, Josepha Cândida P. Almeida, Noemia Candida P. Almeida, Maria José de Vasconçellos, Maria Cavalcante da Costa, Amélia Cavalcante da Costa, Maria Marques Ramos, Maria Marques Conceição, Etelvina de Oliveira, Rosa Emília da Conceição, Maria Olindina da Silva, Anna Vieira do Carmo, Felismina Vieira do Carmo, Maria Vieira do Carmo, Rita Daniel da Silva, Angélica Daniel da Silva”. (A província, 16 de outubro de 1911). Como podemos ver pelos diversos nomes acima, houve apoio forte das mulheres. Foi escolhido colocar os nomes ao invés de dados, para mostrar que existiam rostos desse movimento, que elas estavam à frente e participativas na campanha, participando dos comícios e da dinâmica das eleições. Além dos clubes, segundo Duarte (2018, p. 146), as mulheres produziam e mandavam “inúmeras cartas de apoio escritas e enviadas aos jornais da capital, proclamando-se ‘apoiadoras do candidato Dantas Barretos em nome da moralidade do glorioso estado de Pernambuco’”. A participação das mulheres sempre era ressaltada por dantistas em discursos e debates, como o que foi feito no dia 09 de outubro do ano da eleição, onde o orador, Pacifico dos Santos, que era sempre interrompido por aplausos, fez uma entusiasmante fala sobre a importância da participação das mulheres nas eleições. “O orador estrepitosa e entusiasmadamente correspondido, quando, depois de mostrar a importância da mulher pernambucana, nessa campanha, onde ela, embora sem ir às urnas, já tem elegido o grande general, pelo seu voto, pelo seu aplauso, pela sua incontestável preponderância, ergueu vibrantes vivas a república, ao marechal Hermes da Fonseca, ao general Dantas Barreto” (A província, 09 de outubro de 1911). A importância da participação das mulheres era notada pelos homens, que mesmo orgulhosos, assumiam que era de grande importância a participação das mulheres dantistas em tão importante eleição para o estado de Pernambuco. Além de sua importância, a sua coragem também chamava a atenção de muitos, pois enfrentavam o que fosse nos comícios que sempre estavam presentes, no entanto, cada vez que as eleições se aproximavam, os comícios ficavam mais perigosos por conta dos embates entre rosistas e dantistas, mas nem isso afastavam as mulheres de tais locais. Como no do dia 04 de novembro, um dia antes das eleições, que José Bezerra, apoiador de Rosa e Silva, pode presenciar e depois escrever nas páginas do Diario de Pernambuco o seguinte: “As moças do Recife (lá está no seu discurso), entusiasmadas a uma tempo pelo garbo marcial do candidato e impulsionadas pelo santo ódio aos liberticidas, não tiveram meias medidas: tomaram de assalto o carro, treparam no estribo e polvilharam de beijos, que estalavam como estampidos de metralhadoras, as faces rosadas do intemerato salvador de Pernambuco” (Diario de Pernambuco, 04 de novembro de 1911). Essas mulheres não tinham medo de nada, nem dos atropelos dos marmanjos que formavam a guarda de honra. Tal atitude mostrou a valentia das mulheres dantistas e foi dessa forma, com a afronta dessas moças pelo que a sociedade vinha impondo há séculos, que o general recebeu o “point rose”, uma espécie de ponto final, um marco do final das campanhas eleitorais. Para o dia da eleição, as mulheres montaram, segundo Duarte (2018, p. 146), “um mecanismo para fiscalizar o processo eleitoral e ter adentrado nas funções institucionais eleitorais, nas que para elas pareciam ser falhas”. Entretanto, no dia da eleição, o que mais chamou a atenção nos atos das mulheres dantistas foi o fato de que elas tiveram de pegar em armas para defender os seus lares contra os cangaceiros a serviço das oligarquias de Rosa e Silva. Durante esse acontecimento a oposição chamava os apoiadores de Dantas Barreto de Milícias Urbanas, e os acusavam de estar saindo às ruas armados e impondo medo aos eleitores rosistas. A polícia estava nas ruas, trocando tiros, em intensos tiroteios para manter a ordem. Sendo que as mulheres que pegaram em armas para proteger os seus lares eram também classificadas como arruaceiras, já que eram apoiadoras de Dantas Barreto. Tal atitude teve repercussão nacional e mostrou a coragem dessas mulheres para defender o seu lar e seus princípios políticos. A revista O Malho, do Rio de janeiro, fez a seguinte matéria: “Mirem-se neste espelho! A verdadeira intervenção! Senhoras e senhoritas pernambucanas que no Recife, pegaram em armas para defenderem os seus lares domésticos do ataque dos cangaceiros ao serviço da política da ex oligarquia de Rosa e Silva. Aprendendo História: GÊNERO Página | 141 Como este, havia outros grupos em todos os bairros da capital de Pernambuco. Esta sim, é que foi a verdadeira intervenção contra a oligarquia!” Aprendendo História: GÊNERO Página | 142 É possível notar pelo título da matéria, “Mirem-se neste espelho! A verdadeira intervenção!”, feita pela revista mostra que tal atitude transformou-se em um exemplo para as mulheres de todo o país daquela época. Mostrou também que a força das mulheres e a sua vontade por mudanças e na defesa do que elas acreditavam, fez-se valer a pena. De acordo com Zacarias (2017, p. 175), “tal postura destemida fez os repórteres cariocas transcenderem a cobertura de uma eleição estadual”. E podemos levar em conta o que a própria revista dizia, que não existia apenas um grupo dentro da cidade do Recife, haviam vários que lutavam contra a oligarquia, contra Rosa e Silva. O que deixa bastante claro que uma grande parcela das mulheres que apoiavam Dantas Barreto foi à luta sem medo. Toda a luta e força demonstrada pelas mulheres dantistas foi recompensado após a apuração das urnas, quando foi dada a vitória para o candidato Dantas Barretos, mesmo havendo uma grande repercussão sobre quem realmente venceu. Essa vitória foi também a vitória das mulheres, pois em uma época que elas não tinham voz e nem direitos, levantaram-se e lutaram pelo que elas acreditavam, exerceram um papel importante dentro dessas eleições e ganharam o reconhecimento não só do povo pernambucano, mas de todo o país, que foi conhecido pelas páginas da revista O Malho e outras. Referências Jônatas Lins Duarte é licenciado e mestre em história pela Universidade Federal de Pernambuco. Cynthia Maria de Barros Soares, graduanda em Letras Português/Inglês e graduanda em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Pernambuco. Fontes Jornal – A província de 1911 Jornal – Diario de Pernambuco de 1911 Revista - O Malho. Rio de Janeiro, 05 de Outubro de 1912. ANJOS, João Alfredo dos. A revolução pernambucana de 1911: movimento popular liderado pelo general Dantas Barreto contra a oligarquia do conselheiro Rosa e Silva. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2009. DUARTE, Jônatas Lins. Modernização do porto e do bairro do Recife: Impactos causados pelas obras na população da freguesia (1909-1914). 2018. Dissertação (Mestrado em história) Departamento de história, Universidade Federal de Pernambuco. Recife. GUERRA, Flávio. História de Pernambuco. 2.ed. -. Recife: Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, 1979. MULHERES, IMPRESSOS E HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE Jorge Luiz Zaluski Propõe-se neste texto valer-se das noções conceituais da História do Tempo Presente (HTP) e de culturas políticas, junto a utilização de periódicos como fonte de análise, pretende-se estabelecer uma breve reflexão para perceber parte das tensões sociais, tais como, feminismo e divórcio, vivenciadas no estado do Paraná entre os anos de 1979-1984, e de como esses temas foram anunciados pelos impressos “Esquema Oeste” (Guarapuava) e “Diário da Tarde” (Curitiba). Ao longo do tempo diferentes métodos foram utilizados para a investigação histórica. Por vezes, muitas abordagens contribuíram para estabelecer limitações temporais que compreendiam o passado como encerrado e possível de ser dominado pelo/a historiador/a. Por outro lado, as investigações que buscam refletir sob uma perspectiva metodológica da História do Tempo Presente (HTP) possui posicionamento bastante diverso. Dentre as análises realizadas, François Dosse, por exemplo, nos informa a necessidade de estamos atentos/as múltiplas transformações possíveis geradoras e resultantes do(s) acontecimento(s). Para o autor, o acontecimento deve ser compreendido, “[...] como resultado e como começo, como desfecho e como abertura de possíveis” (DOSSE, 2013, p. 06). Ou seja, a pesquisa histórica deve ater-se ao desenvolvimento, realização e os efeitos do acontecimento. Como destaca Dosse, “[...] poucos são os acontecimentos sobre os quais podemos afirmar que terminaram porque estão ainda suscetíveis de novas atuações.” (DOSSE, 2013, p. 07) Logo, o acontecimento não deve ser interpretado como um fim, mas uma abertura de possíveis. Correspondem a atos e ações dos sujeitos, e propicia configurações inéditas que reestruturam o tempo. Desta maneira, ao investigar sobre o passado o/a historiador/a deve compreendê-lo como um passado em movimento onde seus efeitos estão propícios a novas manifestações e interpretações. Tal como nos informa Dosse, “[...] o historiador deve, desse modo, renunciar a uma postura de domínio que era muitas vezes a sua e o que permitia acreditar que ele podia definitivamente “fechar” os registros históricos” (DOSSE, 2012, p. 11). Conforme o historiador Henry Rousso, a percepção da movimentação histórica no tempo e na historiografia é um fator contribuinte para perceber diferentes temporalidades, onde as provocações do/a historiador/a sobre o tempo inacabado tornam possíveis a investigação histórica e permite que os acontecimentos sejam inteligíveis. Para Rousso, “o historiador do tempo presente “faz como se” ele pudesse agarrar na sua marcha o tempo que passa, dar uma pausa na imagem para observar a passagem entre o presente e o passado, desacelerar o afastamento e o esquecimento que espreitam toda experiência humana” (ROUSSO, 2016, p. 17). Em relação as culturas políticas, essas reflexões aproximam-se das considerações de Réne Rémond, sobre o político, ao afirmar que, “o campo do político não tem fronteiras fixas, e as tentativas de fechá-lo dentro de Aprendendo História: GÊNERO Página | 143 Aprendendo História: GÊNERO Página | 144 limites traçados para todo o sempre são inúteis”(RÉMOND, 2003, p. 442). Rémond, demostra a necessidade de ampliar as investigações que se utilizam da cultura política como categoria. Para ale, o político vai além da política institucionalizada, o político é mutável e impossível de ser definido. Segundo o autor, “o político toca a muitas outras coisas. Não é um fato isolado. Ele está evidentemente em relação, também, com os grupos sociais e as tradições de pensamento” (RÉMOND, 1999, p. 58). Desta maneira, o político e o social são indissolúveis, e a definição de um campo aberto sobre a(s) cultura(s) política(s) torna capaz de perceber a movimentação no que parece já estar definido e impossível de ser alterado. Permite tornar inteligível a ação dos sujeitos nos mais diversos grupos sociais, e no que consistem as relações de poder, essa que se estende para além da força do Estado, contribui para que sejam compreendidas as manifestações de força hierárquicas, excludentes, dentre outras que se manifestam em meio às relações sociais. Nesse movimento, os sujeitos ao longo do tempo agem conforme as necessidades e interesses que permeiam o cotidiano. Como destaca Pierre Rosanvallon, através da inteligibilidade dessas ações é possível, “entender como uma época, um país ou um grupo social tenta construir respostas para aquilo que, com maior ou menor precisão, elas percebem como um problema” (ROSANVALLON, 2010, p. 44). Por meio da investigação dos periódicos: “Diário da Tarde” (Curitiba); “Esquema Oeste” (Guarapuava) é possível identificar e compreender parte das tensões sociais da época e de como o rompimento com normas, definições e intencionalidades rígidas de gênero foram interpretadas e anunciadas nesses impressos. Junto às noções conceituais de jogos de escala apresentadas por Jacques Revel, o deslocamento de análise torna possível perceber as relações de força entre e o micro e o macro e vice versa, as continuidades, rupturas, semelhanças ou não e as múltiplas temporalidades existentes em um mesmo contexto. Assim as manifestações dos diferentes grupos estão conexas, conforme o autor, ““não apenas por causa dos efeitos que produzem, mas porque não podem ser compreendidos a não ser que os consideremos, de forma não linear, como a resultante de uma multiplicidade de determinações, de projetos, de obrigações, de estratégias e de táticas individuais e coletivas” (REVEL, 2010, 443).” Tal observação é importante de modo a contribuir no entendimento de como os efeitos do acontecimento agem de forma múltipla onde nas ações dos sujeitos que dão sentido a esses efeitos. Essas observações são pertinentes por permitirem compreender parte das tensões sociais do período investigado, em que as respostas dadas aos problemas a serem resolvidos correspondem aos acontecimentos que antecederam o ano de 1979, mas que ainda fazem sentido ao presente investigado. Em 1977, por exemplo, a aprovação da “Lei do Divórcio”, como ficou conhecida, corresponde a parte das tensões sociais existentes no período próximo ao investigado. Compreende-se que parte dos efeitos desse acontecimento provocaram novas tensões que atingiram diferentes setores da sociedade. Claudia Regina Nichning, Marlene de Fáveri e Teresa Adami Tanaka, ao investigarem sobre algumas das conquistas das mulheres adquiridas durante a década de 1970, as autoras afirmam que existiu uma forte pressão por parte da sociedade contrária a aquisição de direitos para as mulheres em relação à separação. (NICHINING, 2013; FÁVERI; TANAKA, 2010) A lei que possibilitou que as mulheres tivessem o mesmo direito na separação em relação aos homens foi aprovada em 26 de dezembro de 1977, isso contribuiu para romper com parte de situações em que muitas mulheres eram ridicularizadas, oprimidas e violentadas principalmente no espaço doméstico. Contudo, como destacam Favéri e Tanaka, a “[...] a Lei do Divórcio foi aprovada sob um clima de moralismo que permeava a sociedade brasileira a pregar que o divórcio seria o fim da família.” (FAVÉRI, TANAKA, 2010, p. 364) Vista como uma afronta às inquietações sobre a possível desintegração da família, as tensões geradas contrárias a tal aprovação contribuíram para que fossem tomadas algumas medidas para evitar novas separações. Como efeitos do acontecimento e uma resposta aos problemas da época, a elaboração do Decreto-Lei nº. 6.660 de 18 de junho de 1979, anexado junto à obrigatoriedade do ensino de Moral e Cívica, reafirmava como uma das funções da escola e da educação seria: “[...] o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à comunidade e à família, buscando-se o fortalecimento desta como núcleo natural e fundamental da sociedade, a preparação para o casamento e a preservação do vínculo que o constitui” (BRASIL, 1979). Diante desse decreto, as escolas de todo o país tiveram que ofertar em seu currículo uma educação que atendesse aos interesses desejados no documento. Nesse período vigorava a da Lei de Diretrizes e Bases da Educação n.º 5.692 de 1971, que tornou obrigatório o ensino técnico em todo o país, e, ao menos na letra da lei, proporcionava uma educação igualitária para meninos e meninas. Um avanço frente às distinções de gênero existentes principalmente até o início da década de 1960, quando a educação até então foi organizada de modo a fortalecer e naturalizar as diferenças e desigualdades de gênero construídas socialmente. No que compete a este texto, um exercício em fomentar as discussões junto a HTP e as culturas políticas, e com o objetivo de perceber parte das tensões sociais existentes no período, a análise das publicações dos jornais Esquema Oeste, de Guarapuava, e Diário da Tarde de Curitiba, referentes ao ano de 1983 é uma das formas possíveis de compreender parte das tensões sociais existentes no estado do Paraná que correspondiam principalmente a modificações advindas do movimento femisnista. Conforme Marcia Silva, o semanário jornal Esquema Oeste circulou por aproximadamente trinta anos, com oscilação de tiragem, ao longo do tempo, coincidindo justamente com as alianças políticas realizadas entre seu proprietário e os políticos do poder executivo local. Foi fundado por Aprendendo História: GÊNERO Página | 145 Leonel Júlio Farah, ex-vice-presidente do Partido da Frente Liberal (PFL) local e diretor do jornal até a sua extinção (SILVA, 2005. p. 28). Em Guarapuava, por exemplo, em 1983, Luiz Antonio Bernardo, publicou um texto extenso no jornal Esquema Oeste. Parte dele informa que: Aprendendo História: GÊNERO Página | 146 “Causam-nos certa preocupação esses ventos libertinos que, cheirando a comidinha caseira, às nossas narinas masculinas tentam se impor. [...] As mais diversas atividades humanas estão, em nossos dias, sofrendo a ação feminina. É imperdoável a calma que tivemos, permitindo que a tal ponto essa grave situação chegasse. Nas cidades médias e grandes, os homens já se acostumaram a ver mulheres trabalhando nos mais diversos ramos de atividade. Entre eles, notadamente, estão a construção civil, a limpeza pública, os transportes (coletivos ou não), a prestação de serviços, o comércio em geral, as profissões liberais e, surpreendentemente a política. Preocupante é a situação, pois estando as mulheres a exercer essas diversas atividades, competindo conosco, lado a lado, tentando se impor; por outro lado abandonam (ou não dão mais importância) aos seus sonhos, crochês, receitas e, inclusive, ao “mais nobre , alto e único destino” que nossas antepassadas tinham: o casamento. [...] Necessitamos conseguir o dia, ao menos nacional, do homem. [...] (JORNAL ESQUEMA OESTE, 26 de março a 01 de abril de 1983. p. 05) Sem grifos no original.” Importante destacar que nesse período as manifestações feministas contribuíram para significativas conquistas. Lutavam por uma sociedade mais justa de modo em que tivessem igualdade de gênero, direito ao próprio corpo, dentre outras pautas que como destaca Carla Bassanezi Pinsky, “[...] eram projetos verdadeiramente revolucionários que, se não obtiveram naquele momento o sucesso desejado, ajudaram a abalar os tradicionais modelos da mulher.” (PINSKY, 2013, p, 520) Contudo, em meio à movimentação que por um lado contribuiu para conquista de direitos, de outro, muitas ações buscaram limitar e/ou impedir que novas garantias fossem adquiridas. O trecho do texto selecionado permite perceber que em uma leitura sobre o passado, muitas das conquistas obtidas pelas mulheres contrapuseram-se a diferenças e desigualdades de gênero que passaram a ser rompidas, e que por meio do impresso foi uma das formas buscadas de atingir o protagonismo das mulheres e exigir uma ação conjunta para reconstruir espaços e relações sociais “bem definidas”. Ou seja, um prolongamento do passado que entra em choque com um presente que não é seu. Logo, tanto as propostas de educar para o casamento, existente desde 1979, e o texto publicado no jornal Esquema Oeste, expressam uma idealização de futuro pensadas sobre o presente, mas que demostram relações intensas com um passado que ainda não foi rompido. Passado esse que as diferenças/desigualdades de gênero, principalmente no que correspondem as relações público x privado eram mais nítidas e a educação escolar contribuía de forma mais intensa para isso. Junto ao reforço das distinções de gênero, até a década de 1960 as meninas eram educadas estritamente para ser mãe, esposa e dona de casa. Com a extensão do passado, essa reflexão torna possível perceber como o presente do passado foi constituído. Questão essa fundamental para a HTP, pois como destaca Dosse, “a história do tempo presente está na intersecção do presente e da longa duração. Esta coloca o problema de se saber como o presente é constituído no tempo.” (DOSSE, 2012, p. 06) Importante destacar que o jornal informa a seus leitores homens que as mulheres conquistaram a política. Luiz Antonio Bernardo, articulista do jornal, compreende a política apenas como o espaço institucionalizado onde são exercidas as relações de força por meio do Estado. Contudo, tanto os combatentes ao modelo já instituído com base nas diferenças de gênero, como a própria articulação apresentada no texto do jornal, correspondem a diferentes manifestações das culturas políticas. Como já mencionado faz-se necessário compreender cultura política em suas formas múltiplas formas. Serge Berstein nos informa que as tensões sociais manifestam-se de diferentes formas e provocam disputas onde os valores são partilhados em grupos distintos e que possuem interesses próximos. Com base no periódico, romper como os valores ditos naturais, como o casamento, ou a participação dos homens nas atividades domésticas, por exemplo, correspondem a confrontação a antigos valores onde existe uma tentativa em fixar o passado sexista, excludente e demais desigualdades de gênero em um presente que insiste por mudanças. Comportamento de uma determinada cultua política que ao refletirmos conforme as colocações de Berstein, nota-se que “se inscreve no quadro das normas e dos valores eu determinam a representação que uma sociedade faz de si mesma, do seu passado e de seu futuro” (BERSTEIN, 1988, p. 353). No Jornal “Diário da Tarde”, de Curitiba, é possível encontrar diferentes posicionamentos sobre as mudanças sociais do período. Conforme Vanessa Raianna Gelbcke (2011), e Elza Aparecida de Oliveira Filha (2006), esse periódico teve sua primeira publicação em 18 de março de 1899, e desde então se apresentou como um impresso em favor da conquista de direitos, principalmente para a população trabalhadora, onde muitos dos direitos foram conquistados ao longo do século XX. No que corresponde a este texto, com diferentes notícias sobre e/ou para as mulheres, o jornal Diário da Tarde, buscou informar seus/as leitores/as sobre diferentes conquistas e reinvindicações do movimento feminista. Quando se tratava de política, por exemplo, o periódico em coluna especifica intitula a notícia como “Feminismo”, por corresponder e compreender ao exercício de mulheres na política. Notícias essas que correspondem aos posicionamentos do texto publicado por Bernardo em Guarapuava, onde em cidades maiores supostamente existiu a aceitação mais rápida de que as mulheres exerçam atividades fora de casa. Já em relação ao divórcio, parte dos sentidos atribuídos a lei que permite a dissolução do casamento, além das constantes notícias que informam a separação de casais da alta sociedade de Curitiba e região, podem ser identificadas breves linhas que tecem reflexões sobre a lei em comparação com outros países, entre elas: ““Na França aumentou o número de divórcios e diminuiu o número de casamentos. Também por lá parece que o casamento virou uma instituição falida, como em outros lugares, ninguém quer saber mais de Aprendendo História: GÊNERO Página | 147 levar a coisa a sério. “Amontoamento” é o que a maioria está preferindo.” (DIÁRIO DA TARDE, 17 de janeiro de 1983, p. 02) sem grifos no original.” Aprendendo História: GÊNERO Página | 148 O modo que o periódico expõe muito tem a dizer sobre parte das concepções sobre família na sociedade da época. Ao comparar com o exterior e compreender o casamento como instituição, afirma que em ambos os lugares o casamento está falido. Contudo, diferente do jornal publicado em Guarapuava, existe maior atenção e visibilidade das mulheres em diferentes espaços, como os da política como mencionados. Conforme o texto e as inquietações de Bernardo, essa conquista parece ainda não ter sido realizada em Guarapuava até o ano de 1983. Importante destacar também que o “Diário da Tarde” de forma a questionar principalmente o governo, o impresso posicionou-se em favor da conquista de direitos. Contudo, nota-se que parte da equipe do periódico como dos manifestantes eram contrários a algumas conquistas, principalmente das mulheres, em que o casamento rígido e o trabalho doméstico também eram defendidos por parte desses grupos. Conforme Benjamin Cowan, (2016) existiu durante a ditadura militar uma forte atuação da do Estado e civis em combater o comunismo, onde o amor livre e separação foram vistos como subversivos e associados ao comunismo. Contudo, diante análise do autor, para além do conservadorismo por parte dos grupos de direita, muitas das pessoas que integravam a esquerda brasileira também eram contrários a algumas conquistas e reinvindicações das mulheres existentes no período. (COWAN, 2016) Mediante a intencionalidade deste texto, a breve exposição sobre esses periódicos permite perceber diferentes horizontes de expectativas construídos conforme as experiências compartilhadas por pessoas que integram os mesmos grupos. Conforme Berstein, as crises na história ocasionam respostas que atravessam em gerações. Logo, as conquistas das meninas em direito a uma educação igualitária e os demais avanços frente aos direitos das mulheres obtidas até aquele momento aparecem como um desafio a uma cultura política que compartilha da necessidade em educar para o casamento, assim como quanto às inquietações expressas no jornal de Guarapuava. Deste modo, a investigação que busca utilizar-se das culturas políticas busca perceber como as relações sociais estão imersas a relações de gênero sustentadas por relações de poder. Logo, tanto a resistência as mudanças sociais, as redes de sociabilidades, assim como as próprias conquistas das mulheres correspondem a diferentes manifestações onde a cultura política pode ser empregada para tornar inteligível os acontecimentos históricos. Logo, no que compete a proposta de trabalho, essa investigação permite perceber as representações que parte da sociedade fez dela mesmo, do passado e do que pretende ao futuro. O ensino para meninas/mulheres, e a necessidade de instruir as estudantes para o casamento demostra o fortalecimento de marcações de gênero já instituídas socialmente, e, de como a sociedade da época expressou-se mediante a confrontação de valores como os atribuídos a família. No que corresponde diretamente aos enunciados do impresso, percebe-se que no que corresponde aos direitos das mulheres, avanços e mudanças sociais, ambos os periódicos demostraram aproximações em serem contra ao rompimento de modelos rígidos de gênero e as mais diversas conquistas que vinham sendo obtidas pelas mulheres. Para tanto, através da observação histórica é possível perceber como parte das desigualdades de gênero atravessam o passado e presente, e ainda, mesmo diante a tantos avanços, essas disparidades ainda fazem sentido no tempo presente. Referências Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC, na linha de pesquisa Culturas Políticas e Sociabilidades. Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina, FAPESC. Vinculado ao Laboratório de Relações de Gênero e Família (LABGEF). Mestre em História PPGH-UNICENTRO, graduado em História (2008) pela Unicentro, Ciências Sociais (2015) Faculdade Guarapuava. Possui especialização em Ensino e História da América (2010), Gestão Escolar (2010) Mídias na educação (2013) e Ensino de Sociologia (2016) pela Unicentro. Fontes BERNARDO, Luiz Antonio. Rugas antifeministas ou preocupação homista. In: Jornal Esquema Oeste, 26 de março a 01 de abril de 1983. BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases da Educação 5.692 de 11 de agosto de 1971. _____________. Lei nº 6.660, de 18 de junho de 1979. Educação para o casamento e manutenção do vínculo. Diário da Tarde, Curitiba 17 de janeiro de 1983. BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean Pierre; SIRINELLI, Jean-François (Org.). Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1988, p. 349-363 COWAN, A. Benjamin. Securing Sex: Morality and Repression in the Making of Cold War Brazil. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2016. DOSSE, François. O renascimento do acontecimento: Um desafio para o historiador: entre Esfinge e fênix. São Paulo, Editora UNESP, 2013. _____________. História do Tempo Presente e Historiografia. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.4, n.1, p.5-22, jan./jun. 2012. Disponível em: http://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/21751803040120120 05 Acesso em 01 de fevereiro de 2018. DUTRA, Eliane R. de Freitas. História e culturas políticas. Definições, usos e genealogias. Varia História. n. 28, dezembro, 2002. p. 13-28. Disponível em: Aprendendo História: GÊNERO Página | 149 FÁVERI, Marlene; TANAKA, Teresa Adami. Divorciados, na forma da lei: discursos jurídicos nas ações judiciais de divórcio em Florianópolis (1977 a 1985). Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 18(2): 352, maio-agosto, 2010. Aprendendo História: GÊNERO Página | 150 GELBCKE, Vanessa Raianna. A educação, imprensa e intelectuais: um estudo dos periódicos Gazeta do Povo e Diário da Tarde (1910-1930). X Congresso Nacional de Educação- EDUCERE. I Seminário Internacional de Representações Sociais, Subjetividade e Educação- SIRSSE. PUC-PR, Curitiba, 07 a 10 de novembro, 2011. Disponível em: dehttp://educere.bruc.com.br/CD2011/pdf/4691_2639.pdf Acesso em 07 de março de 2019. NICHNIG, Claudia Regina. Mulher, Mulheres, Mulherio: discursos, resistências e reinvindicações por direitos. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2013. OLIVEIRA FILHA, Elza A. Olhares sobre uma cobertura: a eleição de 2002 para o governo do Paraná em três jornais locais. Curitiba: Pós-escrito, 2007. PINSKY, Carla Bassanezi. A era dos modelos flexíveis. In: PINSKY, Carla Bassanezi. PEDRO, Joana Maria. (Orgs) Nova História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012. p. 513-543 PIRES, Maria da Conceiçao Francisca.; SILVA, Sergio Luiz Pereira da. Cultura Politica e Cultura Visual: aplicações para a historia Cultural. In: Rosangela Patriota; Alcides Freire Ramos. (Org.). Historia Cultural narrativa s e pluralidades. 1ed. Sao Paulo: Hucitec, 2014. p. 62-71. REMÒND, René. O retorno do político. CHAUVEAU, Agnès; TÉTART, Philippe. Questões para a história do presente. Bauru: EDUSC, 1999. p. 51-60. _________________. Por uma História Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. REVEL, Jacques. Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 45, 2010 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010. ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2016. o presente, o SILVA, Márcia da. Territórios conservadores de poder no centro-sul do Paraná. Tese (263 fls) Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente: [s.n.], 2005. A REPRESENTAÇÃO FEMININA DURANTE A DITADURA MILITAR: DA LUTA À CONSTRUÇÃO DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA NO SÉCULO XXI Letícia Veitas Novelli A Ditadura Militar no Brasil abarca um período conturbado, dotado de opiniões e estudos diversos, possuindo grande riqueza documental. Cabe, portanto explorar de maneira significante todas as facetas do período. Para isto, este artigo tem como objetivo dialogar sobre a construção de consciência histórica no presente sobre o período ditatorial brasileiro problematizando como as mulheres eram representadas em interrogatórios oficiais disponíveis no acervo Brasil Nunca Mais. Contudo, como resultado espera-se demonstrar que havia resistência feita por mulheres e que as mesmas tinham lutas próprias de sua categoria, demonstrando que a resistência também era feita por mulheres e que as mesmas tinham lutas próprias de sua categoria, embora os veículos oficiais de comunicação não registrassem sua causa. Além de arrematar explanando sobre a importância da globalização inicial neste período, bem como demonstrar a importância desse tipo de estudo na atualidade com a finalidade de construção de consciência histórica nas escolas. Introdução A Ditadura Militar do Brasil tem estado em evidência na atual conjectura política do Brasil e durante muitos anos nas pesquisas acadêmicas de diversas áreas, História, Geografia, música, jornalismo, entre outras. Este período é detentor de uma infinidade de documentos, muito embora grande parte tenha se perdido. Porém, há organizações que buscam legitimar e proporcionar ao cientista ferramentas documentais necessárias, como a comissão da verdade, e o projeto Brasil: nunca mais. Assim, do mesmo modo que a Ditadura militar está em evidência a problemática de gênero e feminismo também estão. Encontram-se discussões legislativas e educacionais sobre estes dois temas o que torna a pesquisa sobre a temática relevante. De um lado se tem uma sociedade que busca através do projeto “Escola Sem Partido” trazer legitimação a seus ideais e de outro pessoas que buscam através do respaldo de direitos humanos e de liberdade de cátedra defender seu direito a educar conforme as diretrizes propunham. Por estes dois temas estarem em pauta a pesquisa visa trazer a possibilidade de abrir o horizonte da história da mulher. Compondo suas lutas no período da Ditadura Militar no Brasil, bem como contextualizar o movimento feminista em sua origem referente à “Primeira Onda” que diz respeito à luta pelo direito ao voto feminino na França iniciado no final do século XIX e como este episódio deflagrou outras duas ondas e chegou ao Brasil, como será abordado nos capítulos seguintes. Para tanto, como fundamentação teórica da pesquisa serão utilizadas a autora Mary Del Priore (2017), que estuda a história da mulher no Brasil, as autoras Schwarcz e Starling (2015), que fazem uma biografia sobre a Aprendendo História: GÊNERO Página | 151 história do Brasil, desde a colônia até a contemporaneidade brasileira, e a autora Michelle Perrot (2017) que, embora não estude a mulher brasileira, traz em sua obra uma riqueza sobre a história de gênero e os excluídos da história tradicional como um todo. Aprendendo História: GÊNERO Página | 152 Contexto histórico do período ditatorial brasileiro O Brasil dos anos 1960 insere-se em um contexto amotinado, tanto em parâmetro nacional quanto internacional. No contexto nacional o presidente Jânio Quadros renuncia devido às pressões internas que sofria alegando perseguição política. Desta forma é empossado em setembro de 1961 o vice-presidente João Goulart, o qual era associado desde o governo de Getúlio Vargas (1954) ao comunismo por suas medidas como ministro do trabalho. Fato este que não agradou o setor conservador e militar da sociedade. Devido a fatores internos e externos Jango em 1964 sofre um golpe e quem assume é o general Humberto de Alencar Castello Branco, candidato único e que garantia defender a Constituição de 1946, além de prometer entregar o cargo ao próximo eleito em 1965. Contudo, após sua posse, observa-se uma mudança de discurso. Castello Branco é, portanto, considerado o executor de uma mudança no sistema político, realizada através da colaboração de militares e setores civis interessados nesta reforma (SCHWARCZ; STARLING, 2015). O poder executivo foi alternado entre cinco generais: “Castello Branco (1964-1967), Costa e Silva (1967-69), Garrastazu Médici (1969-74), Ernesto Geisel (1974-79) e João Figueiredo (1979-85)” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 449). Castello Branco iniciou a ditadura e sua gestão foi marcada por seu caráter minimamente moderado e pela institucionalização das restrições que limitaram os outros poderes, de modo a estruturar as bases da repressão o que fez com que o regime ditatorial durasse anos, mesmo após sua saída do poder. As características de seu governo são peculiares e tomam como ponto de partida a crise financeira que o país estava. Assim, numa tentativa de sair do fracasso econômico Castello Branco priorizou investimento estrangeiro, o que agradava os EUA, pois tornaria o Brasil seu dependente auxiliando no combate a ameaça comunista da América Latina. Castello Branco por um período consegue controlar as finanças do país e trazer estabilidade por meio do controle de salários, redução da idade mínima para acesso ao mercado de trabalho e término da estabilidade empregatícia. Se no âmbito econômico o Brasil era fortalecido a partir de 1967 com a posse de Costa e Silva, no âmbito social passa a sofrer com leis mais duras a partir da promulgação do Ato inconstitucional de número cinco (AI – 5) em dezembro de 1968. Diante do AI – 5 houve o fechamento do Congresso Nacional por tempo indeterminado, a limitação e/ou perda de direitos de liberdade de expressão e reunião, cassação de direitos dos cidadãos e os crimes políticos passaram a ser julgados em tribunais militares. Com o AI-5, o regime tornou-se muito mais violento e repressor, pois era amparado legalmente. Assim, de um lado da sociedade estavam os policiais militares com a pretensão de continuar no poder. Do outro, havia uma sociedade que teria que respeitar os padrões impostos pela ditadura ou correr risco ao se rebelar. Mediante este cenário, surgem diversas manifestações contra o regime militar e contra o AI-5. Contudo, como descrito anteriormente, a partir de 1967 o Brasil começa a ter alívio econômico. Neste clima de satisfação financeira houve a queda da inflação o que culminou em um “milagre econômico”, jamais visto em nenhum governo anterior. Este “milagre econômico” vedou os olhos de alguns setores da população, fez com que os ânimos fossem acalmados e a sociedade civil começasse a respirar, mesmo que em troca de sua liberdade. Já que nos anos que o “milagre econômico” estava consolidado a máquina de tortura do Estado também estava. Assim, por um lado havia o fortalecimento econômico, mas por outro tinhase a repressão e a tortura a todo vapor. Contudo, a classe média da sociedade, aproveitou do “milagre econômico” para o consumo próprio, o que ajudava ainda mais a alavancar uma economia já estável. Segundo Schwarcz e Starling (2015), o “milagre econômico” ocorreu entre os anos de 1970 a 1972. Este “milagre econômico” foi responsável direto pela popularidade alta do general Médici, mesmo sendo ele o mais repressor e violento ditador do período, não sendo tão criticado pela sociedade. A legitimidade do governo militar se deu através da criação de políticas sociais voltadas às camadas sociais mais pobres, como programas de alfabetização, de assistência médica e de habitação. Além de obras faraônicas para mostrar a sociedade que a economia estava aquecida e numa tentativa de aumentar a taxa de empregos. Isto ocorre numa tentativa de solucionar a impopularidade do governo dado os altos índices de desigualdade social do período pela concentração de renda aos mais ricos e pela falta de confiança que setor industrial tinha na economia. As mulheres durante a ditadura militar no Brasil Com o cenário brasileiro extremamente violento e com os grupos sociais unindo-se cada vez mais, algumas mulheres começaram a reivindicar direitos que antes só os eram pedidos no ambiente doméstico e que quase nunca eram acatados pelo chefe de família. Há de considerar que às vezes as mulheres nem pediam determinados direitos, mesmo que em suas casas, pelo receio de como seu marido receberia a informação. Claro que nem todos os homens eram violentos e destinavam apenas ao lar a fala de suas mulheres, mas em sua grande parte o eram. Isto decorre pela maneira que foram criados e ao machismo velado na sociedade patriarcal dos anos de chumbo. Quando alguns grupos começam a reivindicar direitos, uma parcela de mulheres, de classes sociais e propósitos distintos, passaram a lutar por direitos e pela redemocratização do país. Contudo, estas mulheres devido Aprendendo História: GÊNERO Página | 153 ao preconceito sexual da época, no início, passavam despercebidas, podendo transitar com mais facilidade sem despertar desconfiança ou interesse por parte dos militares, por não considerarem as mulheres aptas à luta politica do país. Aprendendo História: GÊNERO Página | 154 Diante disto, estas mulheres organizavam-se nas ruas, nas praças, nas universidades, igrejas, sindicatos e fábricas. O interesse destas mulheres por mais que partissem de ideais divergentes acabava sendo um só – o término da ditadura militar – Houve, neste momento, relatos de discriminação e segregação sexuais, tornando, muitas mulheres, fontes diretas de denúncias e de reivindicação de direitos, questionando espaços coletivos, como: “o local de trabalho, a prática sindical e a própria família” (GIULANI, 2017, p. 645). Desta forma, as mulheres conseguem obter voz e adentrar espaços que antes eram ocupados apenas por homens como nas: “diretorias das organizações sindicais, partidos políticos, associações, comitês etc.” (GIULANI, 2017, p. 645). Portanto, como dito anteriormente, as lutas femininas eram diversificadas, algumas mulheres lutavam por direitos trabalhistas, outras possuíam reivindicações sociais, como direito à saúde, maternidade e mortalidades infantil e materna. Para obter mais vozes, era comum a aliança com grupos religiosos ou não. Como exemplo se tem o Grupo de mulheres trabalhadoras e Clubes de Mães que denunciam, portanto, a precariedade nos serviços destinados à mulher. Assim, com o auxílio do pensamento feminista, as dimensões da vida individual, social e coletiva, podem ser articuladas, mesmo que antes fosse impensável às mulheres. (GIULANI, 2017). Outro tipo de grupo de mulheres que possui tamanha importância na história de luta da mulher no Brasil é o movimento de ocupação de terras, principalmente a partir de 1980, dada a redemocratização do país. As atividades destas mulheres no interior da ocupação variavam do trabalho doméstico até a resistência contra a violência dos policiais e proprietários. Evidencia-se, ademais, a capacidade de organização e capacidade de manter estruturado o ambiente familiar e os espaços comunitários (GIULANI, 2017). Já, na camada urbana da sociedade, várias mulheres reivindicaram direitos, já nos fins dos anos de 1960, através do Movimento Nacional contra a Carestia, Movimento por Luta de Creches, Movimento Brasileiro pela Anistia, além da criação dos Grupos Feministas e Centros de Mulheres. A intenção, todavia, destes grupos, era o debate sobre os papéis da mulher na sociedade brasileira e como estes papéis são construtos sociais, ou seja, estão aptos a mudanças. Devendo, assim, perceber a importância da luta feminina nos processos de redemocratização do país através de suas reivindicações que foram promulgadas leis mais coerentes com a atuação social e econômica da mulher, através da crítica aos salários promovidos pelo Estado e às demandas de serviços públicos (GIULANI, 2017). Entre estes movimentos citados, a luta pela anistia se sobressai como uma decisão política organizada contra os militares no poder. O Movimento Feminino pela Anistia é marcado pela indignação da sociedade pelas atrocidades da ditadura e pedia pela libertação dos presos políticos, retorno dos exilados, reintegração política e social e especialmente o término das ações de tortura e de repressão. Nos anos sequentes a 1970 a liberdade da mulher começa a entrar em cogitação. A mulher passa a querer saber e ter poder sobre sua sexualidade e seu próprio corpo. Deste modo, com a aceitação da pílula anticoncepcional, as mulheres se tornaram mais independentes devido à sua eficácia. Já na Música, literatura e cinema era exibida a intimidade dos casais, mas tudo ainda de maneira bem sublime e delicada, sendo que esta liberdade sexual que vinha sendo propagada não seria possível se não fossem os meios de propaganda e comunicação de massa, pois ao mesmo tempo que estes meios ditavam padrões, eram responsáveis pela modernização do pensamento (PRIORE, 2014). Seja na luta armada, seja colocando sua vida em risco para proteger sua família, não há dúvida da participação e do poder da mulher durante os anos da ditadura, como demostrado no capítulo a seguir. A fonte na pesquisa histórica A pesquisa histórica pautada em uma metodologia empírica trouxe riqueza ao campo por permitir ao historiador investigar fontes diversificadas, indo desde uma fonte escrita até uma fonte sonora. Assim, cabe a recuperação do passado de forma reguladora, dotada de credibilidade e veracidade conforme a narrativa do historiador. Desta maneira, o historiador retorna ao passado para obter respostas com orientação no presente (ALVES, 2011). Para Alves (2011) a narrativa histórica construída pelo historiador, concebida cientificamente, e chamada historiográfica se apresenta de formas diversas na sociedade, de modo a facilitar sua compreensão. Tem-se livros historiográficos, revistas, jornais, filmes, blogs, novelas, entre outros, que constituem o espaço que comporá junto à existência do adulto, criança e jovem, a satisfação de seus interesses junto à experiência no tempo, levando em consideração sua tomada de decisão política, socioeconômica e cultural, sendo que apenas através das fontes que pode haver uma experiência completa de estudo sobre o passado e constituir conhecimento histórico. Um dos exemplos desta riqueza documental de fontes é a possibilidade de utilizar interrogatórios como fontes de análise do processo ditatorial brasileiro. Como interrogatórios feitos com mulheres participantes da oposição da ditadura militar no Brasil. Estes interrogatórios partem de um projeto inicial que visa compreender e explorar mais documentos de mesma natureza num trabalho futuro, bem como auxiliar a construção de consciência histórica no aprendizado sobre o tema. Partindo de uma história pontual, de modo a trazer a realidade presente e projetar um futuro. Aprendendo História: GÊNERO Página | 155 Aprendendo História: GÊNERO Página | 156 Estes interrogatórios estão disponíveis no projeto "Brasil: Nunca Mais" desenvolvido pelo: "Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo nos anos oitenta, sob a coordenação do Rev. Jaime Wright e de Dom Paulo Evaristo Arns," (2016). Neste projeto consta todo o processo criminal de alguns indivíduos presos durante o período ditatorial. O projeto "Brasil: Nunca Mais" teve três objetivos centrais: primeiramente evitar que os processos judiciais por crimes políticos fossem destruídos com o fim da ditadura militar, de mesmo modo como ocorreu ao final do Estado Novo; em segundo, obter e divulgar informações sobre torturas praticadas pela repressão política; e por último estimular a educação em direitos humanos constituídos e dotados de consciência histórica. Pensando justamente em uma educação que privilegie e estimule os direitos humanos. Estes tipos de fontes são exemplos claros do caráter cientifico que a história pode ter, quando trabalhado de modo metodológico, com objetivo de despertar interesse na humanidade para questões sociais, sem que haja apenas a transposição do conhecimento. Atendo-se não a ideologização do aluno, mas sim ao raciocínio lógico, pois a partir do momento que é dado ao aluno à capacidade de interpretar um documento como fonte histórica este perceberá sua real importância e tirará suas próprias opiniões em ajuda com manuais de estudos sobre o tema. Bem como, trará as mulheres explicação e análise de sua história, demonstrando sua participação ativa no passado, promovendo-se assim um diálogo de representatividade. O que é de suma importância dada a ausência de fontes sobre e das mulheres até o século XX, quando finalmente as mulheres começam a ter acesso à universidade e a alfabetização mais facilmente no cenário posterior as duas guerras mundiais, quando foram lançadas ao mercado de trabalho (PERROT, 2017). Considerações finais Observou-se, portanto, um campo vasto, que requer continuidade com estudos aprofundados, que possam preencher a lacuna existente, mas, também, contar a história a partir de um olhar diferente. O olhar dos excluídos da história e dos marginalizados. Atendo-se a riqueza documental que o período ditatorial possui, para compreender e explorar interrogatórios feitos através de denúncias. Tendo como finalidade auxiliar a construção de consciência histórica no aprendizado sobre a participação feminina e o movimento feminista no período ditatorial brasileiro. Partindo de uma história pontual, de modo a trazer a realidade presente e projetar um futuro. Referências Letícia Veitas Novelli é graduada em História pela Universidade Estadual de Londrina (2014). Especialista em Filosofia moderna e contemporânea (UEL2017). Mestranda do Programa de Ensino de Ciências Humanas, Sociais e da Natureza – PPGEN na UTFPR – Câmpus Londrina. ALVES. Ronaldo Cardoso. Aprender História com Sentido para a Vida: consciência histórica em estudantes brasileiros e portugueses. São Paulo, 2011, 322 p. Tese de doutorado. FEUSP. GIULANI, Paola Cappellin. Os movimentos de trabalhadoras e a sociedade brasileira In: PRIORE, Mary Del (org). História das mulheres no Brasil. 7ª ed. São Paulo: Contexto, 2017. P. 640-658. PERROT, Michelle. Os excluídos da história: Operários, mulheres prisioneiros. 7ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017. e PRIORE, Mary Del. Histórias íntimas. 2ª ed. São Paulo: Planeta do Brasil, 2014. SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: Uma biografia. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Aprendendo História: GÊNERO Página | 157 TRABAJO EN SALA DE AULA CON PUBLICIDAD: CONSTRUCCIONES DEL IDEAL E IMAGINARIOS DE MUJERES EN LA PUBLICIDAD DE CERVEZAS EN MEDELLÍN- COLOMBIA Maria Isabel Giraldo Vásquez Aprendendo História: GÊNERO Página | 158 Los procesos de industrialización en la ciudad de Medellín Colombia durante las primeras décadas del siglo XX y el desarrollo publicitario que llevó consigo dicha industria, son el eje central de este ejercicio en sala de aula y permiten analizar las ideas y constructos sociales que se comenzaron a tejer en relación a la identidad femenina en dicha ciudad. Se expone en este trabajo, un ejercicio realizado con estudiantes de historia del diseño, en donde mediante el análisis iconográfico e iconológico de las narrativas que se encuentran inmersas en el discurso publicitario de cervezas y bebidas a base de malta de la época, se trabajan dichos constructos. Mediante este estudio, se hace evidente la importancia de la publicidad y el diseño gráfico en la construcción y refuerzo de discursos, que desde la política y la religión se venían implementando en la ciudad de Medellín, sobre todo durante las primeras décadas del siglo XX, como parte de un proyecto modernizador de ciudad y país. Durante las décadas de 1930 a 1950 la ciudad de Medellín- Colombia se caracterizó por permitir las condiciones para el desarrollo industrial y material del país; términos como “progreso”, “tradición familiar” y “pujanza” comenzaron a hacerse visibles como parte de las políticas públicas para el desarrollo industrial, en donde la industria de bebidas y cervezas tuvo especial apogeo. Es por esto entonces, que este trabajo se centra en estudiar las piezas publicitarias de bebidas a base malta y cervezas,publicadas en el periódico local de carácter conservador “El Colombiano”. La publicidad y su papel en la construcción de un ideal de mujer. El trabajo de aula, consistió en utilizar piezas publicitarias de bebidas gaseosas, como fuente primaria para realizar un análisis iconográfico e iconológicos de dichas piezas. Durante las clases de historia del diseño, temas como la identidad y los constructos sociales son discutidos a través del diseño, entendiendo el origen etimológico de dicho termino como:“designare” o sea, nombrar, o asignar una función / intensión a las cosas. En este caso particular, se trata el tema de lo femenino, sus representaciones del cuerpo y los modos de ser en dicha categoría, mediante los códigos gráficos y entrelazamiento de información que tienen que ver con asuntos relacionados a políticas públicas, asuntos médicos y religiosos durante la época establecida. Mediante este ejercicio, se encuentre la publicidad como un agente que refuerza y construye patrones identitariosen una comunidad específica, del mismo modo en que permite elaborar una distribución de roles y funciones entre las personas que conforman una comunidad, regulando así la vida social. Esta postura la complementa la filósofa italiana ChiaraGiaccardi, docente de la Universidad Católica de Milán [Citada en Codeluppi, 2007:152] cuando afirma que la publicidad es un poderoso instrumento que construye la realidad social. Igualmente, sostienePollay, profesor emérito de marketing en la Universidad de British Columbia [ibid]que la publicidad tiene la posibilidad de reforzar o modifica los valores culturales que utiliza; él mismo, señala que la publicad es una de las instituciones culturales más importantes de la contemporaneidad debido a su presencia en los espacios sociales; finalmente resulta siendo una parte esencial en el ejercicio de las relaciones de poder, en donde a través de un conjunto de ideas-imágenes se edificauna identidad, se legitiman poderes y establecen posiciones sobre la realidad. Luego de una visita al archivo histórico de la Biblioteca de la Universidad Antioquia, se recolectaron algunas imágenes publicadas durante los años 1930 a 1945 en el periódico Conservador El Colombiano. La elección dicho periódico radica en su importancia en el día a día de la región y influencia en la vida cotidiana de sus habitantes. de de de su A través pues de estas imágenes, se realizó un análisis tanto textual como gráfico en relación a asuntos concernientes al ideal e imaginarios de una mujer en la ciudad de Medellín durante las décadas mencionadas. Figura 1 Pieza publicitaria de Malta. Cervecería Unión. Año de 1930 [in Periódico El colombiano, Cien Años de Publicidad Antioqueña, pág. 39] En esta primera pieza, publicada en el año de 1930 se percibe una ilustración de un bebé; un texto alusivo a la imagen y al producto, así como un texto menor informando el producto promocionado y la marca.El texto narra lo siguiente: Aprendendo História: GÊNERO Página | 159 Aprendendo História: GÊNERO Página | 160 “Su tesoro. Qué satisfacción y alegría cuando está sanito y aumenta de peso mes por mes. Pero qué de sacrificios, desvelos, angustias y temores cuando esta enfermito! Madres, vosotras que sabéis de esos desvelos, fatigas y temores, que habéis de sufrir para tener el tesoro de un hijo, podréis apreciar la necesidad de alimentaros bien. Uno o dos vasos de “Malta” al día, os rejuvenecerá y os dará el vigor necesario para no enfermaros. Recordad que vuestra vida es otro tesoro para vuestro hijito”. [in Periódico El colombiano, Cien Años de Publicidad Antioqueña, 2001:39] Se hace referencia aquí a la tradición familiar en su aspecto más conservador y tradicional. La pieza está enfocada las madres y amas de casa, quienes son las directamente implicadas en el cuidado y la crianza de los hijos. Se menciona a los niños como el “tesoro” que representan y en el amor que las madres tienen para con ellos, y en su calidad de guardianas de la familia el aviso remite a la importancia de una madre saludable y enérgica para sobrellevar los deberes del hogar. Al hablar de los imaginarios y de un “ideal de mujer” es necesario pensar la configuración familiar que le caracteriza, y en ese sentido, junto con valores como el amor y la dedicación, se encuentra un espacio para el aprendizaje y la enseñanza: la casa y el hogar. La categoría de hogar es de suma importancia para el desenvolvimiento de la familia tradicional de la región: familia trabajadora, conservadora, religiosa y fiel a sus principios. Es entonces en este espacio donde se aprenden las habilidades para la vida, se forja un carácter desde el cariño amoroso de la madre y la firmeza radical del padre. Así, en esta pieza publicitaria, se percibe ese imaginario de cuidado y preocupación que se le designaa las madres, cuando hace alusión al cuidado de los hijos por parte de ellas, así como el cuidado de ellas mismas para evitar el cansancio y la necesidad de tener fuerza suficiente para la labor de crianza de los hijos. El siguiente ejemplo, de carácter vertical y a una sola tinta, está constituida por un breve texto introductorio en letras mayúsculas que llama la atención del lector, una imagen inmediatamente al lado de dicho texto en la parte superior derecha y un cuerpo textual descriptivo enmarcado en un fondo blanco que se resalta el centro del aviso. En la parte inferior el texto correspondiente al nombre de la bebida y una pequeña frase complementar. Aprendendo História: GÊNERO Página | 161 Figura 2 Aviso publicitario de Cerveza Malta. Año de 1935. [in Periódico El Colombiano, Julio 9 de 1935. p. 2] La imagen la compone el perfil de una madre elegantemente peinada, que mira a su pequeño hijo dormir en lo que parece ser una cama mientras abraza un muñeco con su brazo izquierdo. El texto introductorio en subrayado dice: “PARA CRIAR NIÑOS SANOS Y ROBUSTOS”. Y en la parte central, el texto informativo narra lo siguiente: “No tenga Ud. Envidia, señora, de los hermosos bebes de sus amigas. Si su nene está paliducho y débil, busque la causa en usted misma. Aliméntese bien. La cerveza MALTA es un excelente alimento para madres que crían. Pídala en sus comidas”. Culmina la pieza con el nombre del producto Cerveza Malta, y una frase final: “Para madres previsoras”. En este caso, además de tratar los valores familiares mencionados el punto anterior, se hace una alusión de manera indirecta a la fuerza y al vigor, características de los pobladores modernos de la región, evidenciándose esta en la importancia que se le debe dar a la correcta alimentación en este caso, en madres que están criando (o amamantando): “Toda la vida del hombre está íntimamente relacionada con la alimentación y su influencia ejerce una acción directa sobre el crecimiento y desarrollo del individuo; también influye sobre la salud y actividad física y mental, sobre la reproducción, sobre el carácter y sobre todas las funciones que el individuo […] está destinado a cumplir”.[La alimentación- Periódico el Colombiano] Aprendendo História: GÊNERO Página | 162 Palabras como “paliducho” y “débil” hacen una referencia negativa a aspectos que una madre en calidad de cuidadora y responsable por los hijos no se puede permitir, así, la pieza se permite cuestionar a las madres preguntándoles si sus hijos están lo suficientemente “rozagantes” y “enérgicos” al compararlos con los bebés de las amigas. En el texto, es posible vislumbrar también un asunto que tiene que ver con la culpabilidad (más que con la responsabilidad) que se les impone a las madres al ser las posibles causantes de dicha debilidad y palidez en sus bebés: “Busque la causa en usted misma” y al sentir envidia de los “hermosos bebes” de las amigas. En adición, se vislumbra nuevamente un asunto de género (que para asuntos de este trabajo es tratado bajo a definición de Joan Scott [Scott, 1999. p.37-75]) que tiene que ver con la delimitación de las labores femeninas en la crianza y cuidado de las familias. Para finalizar, la pieza recalca la importancia de ser una madre precavida (“para madres previsoras”), que piensa con antelación y “prepara” unas condiciones apropiadas para que sus pequeños sean fuertes y vigorosos. Estos ejemplos, además de otros tratados durante las clases, se soportan bajo discursos médicos y religiosos, en donde es posible ratificar esos ideales de lo femenino que se pretendían construir y elaborar, así como mantener para las décadas mencionadas. Desde lo religioso, por ejemplo, surge una tendencia llamada “marianismo” en donde los mensajes construidos por la iglesia católica relacionaban y reforzaban constantemente el ideal de mujer con María madre de Dios, e insistían en la misión de la mujer dentro de los asuntos relacionados al hogar; “(El marianismo) representa el culto a la superioridad espiritual femenina y enseña que las mujeres son semi-divinas, moralmente superiores y espiritualmente más fuertes que los hombres” [Stevens, 1974.p.17], pero desde una subordinación a lo masculino, es decir, se alaba a la mujer, pero bajo cualidades como el sacrificio, la abnegación, y la subordinación. De igual manera, desde discurso médicos como el citado a continuación, se evidencian en los manuales de puericultura de la época las divisiones binarias de género , en donde se hace explicita la noción de ciudadanía que se pretendía para las décadas mencionadas: “(…) De modo que usted, señora, debe dedicarle cuidado, tiempo y cariño a llenar esta misión importantísima de nutrir al hijo que la naturaleza le ha impuesto y que usted debe conservar y apreciar como un galardón” [Vasco, 1934.p.40]. Estas ideas, tienen su origen también en el proyecto modernizador y de construcción de un sujeto moderno del gobierno liberal colombiano de la época: “(..) era importante realizar una serie de cambios en la mentalidad, la cultura, los modos de ser y las prácticas de los colombianos para poder alcanzar el objetivo de tener una nación moderna”.[in Reyes, 2016, p.39] En este proyecto, la mujer ejerció un papel fundamental, sobre todo en asuntos relacionados a la educación moral y física. En los textos de las dos piezas publicitarias anteriores se evidencia este énfasis: alimentarse bien, cuidar la salud, tomar las bebidas promocionadas para tener más energía y por consiguiente cumplir a cabalidad la función a la cual las mujeres estabas destinadas dentro de ese proyecto modernizador; las mujeres tendrían un papel indispensable en dicho proyecto, pero contradictoriamente, con un enfoque conservador que las vinculaba como madres, protectoras, vigilantes y modelos, y se refería a ellas como las “salvadoras del alma masculina”, las “musas de inspiración” y los “ángel(es) de la casa” , además de ser seres diferenciados, “inagotables en abnegación y energía como esposas y como madres”[in Vasco, op.cit]. Las construcciones de imaginarios y de un “ideal de mujer”en la ciudad de Medellín, durante las décadas mencionadas con anterioridad, se ve pues evidenciada en estas dos piezas publicitarias, en donde se posibilitó la construcción de un “modo de ser femenino” que estuviera alineado a los discursos políticos, religiosos y médicos: la mujer cumpliría un papel fundamental dentro de las ideas modernizadoras de principios de siglo, pero desde una óptica conservadora y masculina. A modo de conclusión, se ratifica el ejercicio académico utilizando las imágenes, para permitir un acercamiento y reflexión de temas relacionados a las construcciones sociales del género, en particular y en este caso, a los asuntos relacionados a lo femenino. Se aprovechan las posibilidades de la imagen en el proceso de rescate histórico del pasado, tal como lo menciona Peter Burke[2004], y agregándole a esta afirmación el valor que las imágenes tienen para la reconstrucción de las formas de vida de las personas del común, de su cotidianidad, sus formas de entablar relaciones, de comprender su entorno. Este trabajo permitió realizar un ejercicio en donde se posibilitó el análisis de imaginarios e “ideales” femeninos en la ciudad de Medellín, durante las décadas de 1930 a 1950, en donde la publicidad y el diseño gráfico desde sus lenguajes (tanto gráficos como textuales) tienen la capacidad de mantener, construir, y hasta de-construir sujetos y dar forma a los mismos según los discursos vigentes. De esta manera se puede afirmar que las imágenes son artefactos sociales y culturales, pero más allá de esto, se convierten en artefactos políticos y económicos que modifican, transforman o mantiene las formas de ser de una colectividad. Mediante la publicidad de las bebidas gaseosas y cervezas más representativas de las décadas estudiadas fue posible hacer un ejercicio de análisis de los elementos y las imágenes contenidas en ellas , permitiendo con esto entender procesos complejos como la construcción identitaria de una región, o la caracterización del ethoscultural de la misma: a través del análisis de las narrativas visuales se pueden dibujar los contornos de la historia social de una determinada comunidad y así evidenciar las transformaciones de ese ente vivo que constituye su identidad. Referencias Maria Isabel Giraldo Vasquez es profesora ocasional del departamento de Diseño Industrial del Instituto Tecnológico Metropolitano ITM de Medellín. Diseñadora Industrial y Magister en Historia. Coordina el semillero de investigación en Cultura Material. Aprendendo História: GÊNERO Página | 163 BURKE, P.Testemunha Ocular: história e imagem. São Paulo: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2004 CODELUPPI, Vanni. El papel social de la Publicidad. In: Pensar la publicidad. 1,(1). Universidad Complutense de Madrid. 2007 Aprendendo História: GÊNERO Página | 164 EL COLOMBIANO, Diario de Medellín (corp.) Cien Años de Publicidad Antioqueña. Medellín: El Colombiano, 2012 ______. La alimentación.6 de febrero 1950. p. 9. REYES, Claudia Angélica. BELTRÁN Felipe, BERMUDEZ, Diego, GALLARDO Jesús. StarSystem y la mujer: Representaciones de lo femenino en Colombia. 1930 a 1940. Bogotá: Universidad de Bogotá Jorge Tadeo Lozano, 2016, p 39 SCOTT, Joan. El género: unacategoríaútil para el análisishistórico. In Navarro, M. y Stimpson, C. (comp.): Sexualidad, género y roles sexuales, FCE, pp.37-75. 1999. STEVENS, Evelyn P., SOLER, Martí. Diálogos: Artes, Letras, CienciashumanasVol. 10, No. 1 (55) (enero-febrero 1974), pp. 17-24. Editorial: El Colegio de Mexico: http://www.jstor.org/stable/27933189. 1974.p. 17. VASCO, Eduardo. El breviario de la Madre. Medellín: Universidad de Antioquia. 1934, p.40. A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM “DOM CASMURRO” DE MACHADO DE ASSIS Milena Calikoski A Literatura como fonte para a História é um objeto de estudo relativamente, recente, pois surge com o advento de uma Nova História Cultural, a partir de uma quebra, do que Chartier vai chamar de “paradigmas dominantes” (1991, p. 173), existentes na História até então. Os Annales terão grande importância nesse processo de reformulação da História. Com a História Cultural abrem-se novos horizontes, novas possibilidades, para o estudo e pesquisa da História. Desta maneira a História se renova, sem abandonar o rigor do seu método de pesquisa e é por isso que a Literatura, assim como o cinema e outras produções mais populares, podem ser exploradas como fontes. Para utilizar a Literatura como fonte é necessário entender as semelhanças e diferenças entre a História e a Literatura. Ambas, História e Literatura, são narrativas, a História é uma narrativa sobre o passado, o que irá liga-la aos conceitos de representação e imaginário, ligando-a mais uma vez a Literatura, por isso ambas tem o real como ponto de partida: “para negá-lo, ultrapassá-lo ou transfigurá-lo” (PESAVENTO, 2003, p. 33). O imaginário, a que Pesavento se refere, é a maneira pela qual os homens constroem a sua visão de mundo. Esta diferença é a que a história explora os fatos baseando-se numa realidade, enquanto que a preocupação da Literatura é construir uma narrativa coerente, dito isto ambas partem de um imaginário, já que o historiador preenche as lacunas com o seu imaginário, enquanto que o mundo literário vem da mente do escritor e ele pode moldá-lo da maneira que desejar. O historiador irá basear-se em fontes e em fatos que aconteceram, mas ao traçar trajetórias acerca destes fatos ele terá que fazer uma investigação e escrever um caminho que, de certa forma, será ficcional, pois a História não pode ser comprovada e nem verificada, ela é escrita através de investigações, com a construção de uma trajetória, considerada a mais provável devido às pesquisas realizadas. Essa trajetória estará encharcada de ficção, pois o historiador fara conjecturas prováveis, mas não é uma ficção, pois parte de documentos e fontes e principalmente de um evento que aconteceu. Entender o contexto histórico da fonte literária é fundamental para que se entenda o conteúdo de uma obra. O pensamento e a linguagem comuns à um tempo devem ser problematizados pelo historiador. Assim como que a Literatura só vai ser útil para pesquisar a época em que foi escrita. Ainda, importante ressaltar, que a Literatura, usada como fonte, tem algumas limitações, ela vai ser útil quando o objetivo envolve compreender os sentimentos, os valores e para entender como o ser humano era representado e como o mundo era representado. Aprendendo História: GÊNERO Página | 165 Aprendendo História: GÊNERO Página | 166 Com estas novas possibilidades para pesquisa, os objetivos da História mudam. Se antes se tinha como princípio fazer um História Global o que se pretende agora trata-se de explorar “uma pluralidade de abordagens e compreensões” (CHARTIER, 1991, p. 176). A História passa a preocupar-se com as particularidades e a entrar nas sociedades através de um fato histórico, é aí que Chartier introduz o tema das representações, considerando que não há nenhuma estrutura que não seja formada pelas representações. Através do texto encontram-se as representações e é através dele que as representações são continuadas. Para entender como o texto atinge os leitores, seria importante entender a história do livro e dos efeitos e repercussões para que se compreendam as apropriações da História. Estas apropriações são realizadas por pequenos grupos, sendo fundamentais dentro de determinadas lógicas, dentro disso é importante atentar-se para as mudanças e os processos, a descontinuidade histórica, que afetam estes grupos. Chartier utiliza o exemplo da literatura, o texto não deve ser entendido apenas como reconstrutor de relações sociais, é importante entender como esse texto era lido. É importante lembrar que o texto não existe em si mesmo, ele precisa de todo um suporte, que lhe vai permitir ser lido, e também depende da maneira que vai atingir o leitor. O autor se preocupa em escrever textos, estes textos serão transformados em objetos, estes objetos irão além daquilo que o autor imaginou, ao alcançar novos públicos e usos não imaginados. As representações coletivas vão tentar romper com uma visão homogênea dos comportamentos sociais. As representações vão “comandar atos” (CHARTIER, 1991, p. 183), elas são diretamente responsáveis pela construção do mundo social e de comportamentos da sociedade. Com o retorno às representações coletivas tem-se a percepção de que a realidade é contraditória, e também de uma necessidade de afirmação de uma identidade social, por fim é a visão institucional que vai marcar ou o indivíduo ou o grupo social. Desta maneira as representações de poder sempre vão ter uma influência na construção das representações que o grupo tem de si, a partir de uma demonstração de união. A primeira é referente a uma visão imposta de fora para dentro e a segunda é uma visão construída de dentro para fora. A representação, por um lado, faz uma ausência ser vista o que coloca uma diferença “entre o que representa e o que é representado” (CHARTIER, 1991, p. 184), e do outro é a apresentação de um indivíduo. As representações são feitas através de símbolos visíveis que vão ser postos no local do objeto de significância e passarão a ter o significado do objeto que representam. Para que esta relação seja possível de se entender é necessário que o signo também seja investigado para que não assuma um caráter aleatório como significado. A literatura será questão importante no que concerne a representação, isso pode ser lido também em Ricouer – como a crítica externa e interna do texto. Outra questão presente em Ricouer é a questão de que a representação é usada como signo, menciona também que o signo é entendido como homogêneo e, que o significante-significado migrou para várias regiões da linguagem. Aliás a linguagem e suas mudanças também serão importantes para entender a representação. As representações existem a partir de imagens consideradas reais. E existem três tipos de discurso de representações: representação como cerne da prática social; como louvor ao poder; e o poder como representação, e a representação como poder. A representação como poder representa uma ausência (no ato de representar algo/alguém que detém o poder), e uma presença (o detentor do poder se faz presente através de algo/alguém legitimando-o). Ao falar sobre representação irá desenvolver o conceito de representância que reúne todos os conceitos citados por Ricoeur. É através dela também que se faz uma relação com memória e representação. Por fim diz: “as coisas do passado são abolidas, mas ninguém pode fazer com que não tenham sido.” (RICOEUR, 2007, p. 294). Para ele esta é a condição histórica do passado, já foi, não é mais, mas continua sendo através das representações. Dentro das novas perspectivas para a História entra, também, a História das Mulheres. É a partir da abertura dessas novas possibilidades que podese pesquisar uma História feita por mulheres e para mulheres. Scott dirá: “é ao mesmo tempo um suplemento inócuo a história estabelecida e um deslocamento radical dessa história.” (SCOTT, 1992, p. 35) Isso quer dizer que a História é algo, mesmo semelhante a História, complemente diferente à ela. A História das Mulheres surge a partir dos Movimentos Feministas, na década de 60, principalmente nos Estados Unidos. Surge muito ligada à questão política, tanto que Joan Scott utiliza o termo movimento para diferenciar o que nasce como História das Mulheres, neste período, que estava muito ligada a política. Na década de 80 a História das Mulheres começou a desligar-se da política e adquirir um campo de pesquisa próprio e mais consolidado, já que gênero é um termo neutro e sem caráter ideológico. Muitos assuntos, antes da História Cultural, eram vistos como desnecessários, por isso não eram estudados. Um destes assuntos é a história das mulheres. É bem verdade que, recentemente, as mulheres vêm ganhando cada vez mais espaço na historiografia, mas ainda há muito para se estudar, há muito tempo de negligência para ser superado. Durante um longo tempo a história foi feita pelos homens e para os homens, as mulheres não eram consideradas como agentes da história e, muitas vezes, nem como leitoras dela. Por isso olhar e tentar lançar um Aprendendo História: GÊNERO Página | 167 pouco de luz sobre como era o cotidiano e o comportamento das mulheres é tão importante. Principalmente porque os trabalhos de pesquisa sobre as mulheres começaram a ganhar notoriedade no fim do século XX, sendo um movimento recente, é de demasiada importância que as mulheres possam se enxergar nas linhas da história, como agentes da mesma. Aprendendo História: GÊNERO Página | 168 A História das Mulheres é uma maneira de investigar o passado e olhar para o que foi dito como “verdadeiro”, procurando novas perspectivas. A “História do Homem” teve um destaque muito maior do que o dado para a História das Mulheres. Com a História das Mulheres se propões que estude a “cultura das mulheres”, não se abre a perspectiva de uma História das Mulheres para que sejam tratadas como vítimas de uma História não contada. O objetivo é, que agora, esta História seja contada e investigada, para que possamos conhecer este outro lado – dos muitos – da História, o lado das mulheres. A Mulher em “Dom Casmurro” Tenho como proposta entender de que maneira a mulher era representada na obra de Dom Casmurro de Machado de Assis. Diante disso tenho como base a literatura como crítica social feita por Machado, para entender qual eram as imagens, ou imagem, de mulher em fins do século XIX, período em que o livro é escrito. Ao se dispor a estudar a história tendo como fonte uma obra literária, tenho em mente as diferenças entre as narrativas histórica e literária. A literatura retrata alguns aspectos da sociedade, mas ela não pode ser interpretada como real de fato, a literatura é uma ficção, sem qualquer compromisso com a realidade, e que tem o privilégio de fundar-se numa realidade, num tempo e com características destes. Enquanto que a história tem um compromisso com o método de pesquisa específico da história, deve ser lida com a ajuda da imaginação mas, jamais como ficção. Tendo isso como parâmetro, busco construir esta breve pesquisa sobre a busca por se fazer uma história das mulheres e entender de que maneira elas eram compreendidas pela sociedade. Não me atenho a um fato específico para tratar deste assunto, mas sim ao modo como as mulheres foram escritas por Machado, que me é particularmente interessante. A literatura vai retratar fatos subconscientes que as sociedades não demonstram claramente ou, que não querem demonstram. Ela é uma maneira de interpretar a sociedade de seu tempo, turva, mas ainda assim legítima. Para que a literatura seja utilizada como fonte é necessário que se faça um mapeamento do contexto histórico e de quem era o autor, com isso será possível delimitar quais intenções do autor ao produzir a obra. Como diz Piza “Machado, como todo grande criador, foi ao mesmo tempo expressão de sua época e exceção a ela”. (2008, p. 11). Ao escolher Machado de Assis tenho em mente que este autor, principalmente nesta sua segunda fase – chamada realista, apesar de o próprio Machado não se achar um realista, é a definição que utilizaremos - preocupa-se em fazer uma crítica social. Pois Machado conviveu constantemente com o preconceito social por ser pobre; racial, por ser mulato; intelectual, por ter sua escrita considerada simplória. Foi isso que contribuiu para que escrevesse as suas obras com uma crítica social, que, ao mesmo tempo é latente e discreta. Hoje existe a alternativa de utilizar a literatura como fonte graças à história cultural. Com a História Cultural a literatura tornou-se muito próxima da história. Podemos colocar aí o papel que ambas tem de narrar fatos, a literatura pode ter como meta a ficção, ou não, enquanto que a história precisa que a sua narrativa tenha ocorrido, para que possa ser considerada história. A preocupação de que a literatura poderia fazer com que a história se tornasse ficção deve ser levado a sério. Para tentar entender como a mulher era representada é necessário entender também como funcionavam as estruturas de poder, regulando o pensamento e o comportamento das pessoas. Para isso utilizo um trecho de Chartier: “As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. (...) As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. (...) As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor a sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio.” (CHARTIER, p. 17, apud PACHECO, 2005 p, 3). Desta maneira as representações tem importância histórica ao analisarmos as características de uma sociedade, são modelos forjados pelos grupos dominantes, o discurso literário não é um discurso neutro, por isso para entendermos uma representação é necessário que entendamos os meios que a forjaram. Como bem sabemos o viver em sociedade e os costumes reverberam pelas pessoas, assim como as representações, sejam elas críticas ou não, estão fundadas nesse modelo que é o objetivo da sociedade ou num que se propõe ser a sua sátira, a nós resta saber discerni-los. Para tanto é preciso entender o autor, conhecer a sua vida e as suas motivações. Machado de Assis é um autor que faz críticas em um tom ácido, revestidas com um pouco de humor e outro pouco de insanidade. Diante disto o livro Dom Casmurro é narrado por Bentinho, no ato da transcrição de suas memórias. Conta a História dele e de Capitu e a suposta traição desta com Escobar, que era muito amigo de Bentinho. Neste aspecto as descrições serão sempre turvas e muitas vezes ambíguas, já que Bentinho é o narrador, o ofendido e único ao qual pode ser extraída uma versão para história, em alguns momentos Bentinho demonstra uma insanidade, como Aprendendo História: GÊNERO Página | 169 neste momento da narrativa: “catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles” (ASSIS, 2004, p. 33). Aprendendo História: GÊNERO Página | 170 Em Dom Casmurro diferentes mulheres têm diferentes personalidades, podemos notar a devoção que a mãe de Bentinho nutria pela família e pelo seu marido, mesmo após a morte deste: “Minha mãe era uma boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado” (ASSIS, 2004, p. 18). Referindo-se a Capitu: “A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação.”(ASSIS, 2004 p, 44). Este trecho é uma fala do agregado Pádua. Os olhos de Capitu são uma das suas principais características na proposta de rotulá-la como uma mulher sedutora com o “cigana oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 2004 p. 57), muitas vezes utilizado como uma contraposição entre a Capitu menina, a da infância, e a Capitu adulta. Estas representações podem ser caracterizadas pela constituição de família burguesa que se formava no século XIX. Numa família patriarcal a mulher deveria se dedicar, exclusivamente, ao marido e aos filhos. A descrição de Capitu, pode ter como justificativa, o fato de ser realizada ao fim da vida de Bentinho, depois deste já ter construído todo o cenário de sua suposta traição. Era comum que existisse um padrão duplo de moralidade, as mulheres boas, para casar, eram aquelas da mesma classe social, de família, bem educadas e, principalmente, puras. As mesmas regras não valiam para os homens. Bem como o casamento religioso era como que obrigatório, mas quando pesquisamos um pouco mais percebemos que os concubinatos eram muito comuns, assim também como as uniões informais. Os limites da estratificação social eram mais definidos nas camadas sociais mais altas, enquanto que nas camadas mais pobres as pessoas tinham mais liberdade, sendo que as constituições familiares eram mais complexas. A defesa da família estava muito ligada a preservação da honra, pela qual o chefe da família (homem: pai, irmão, avô) deveria zelar. No período da Belle Époque o homem continuou sendo a cabeça da família, sendo que surgiram muitas propagandas, do governo e em revistas femininas, incentivando as mulheres a cuidarem da casa, do marido e dos filhos e, a não trabalharem, tornando-as extremamente dependentes. O poder, de fabricar uma opinião sobre o livro está todo nas mãos do narrador, Bentinho, e é através dele que permanecem as dúvidas sobre a honestidade de Capitu, mas essa não é a questão. A questão é, como o texto retrata uma mulher cheia de artimanhas e sedutora como a mulher a imperfeita e, a mulher perfeita como a mãe bondosa e obediente. Desta maneiras representações estarão ligadas a estruturas de poder e, esta estrutura em que os homens são dominantes, vai impor as mulheres um lugar de docilidade. Referências Milena Calikoski, acadêmica do 3° ano de História UNESPAR. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Barcelona. Espanha: Gold Editora Ltda. 2004. BORGES, Valdeci Rezende. História e Literatura: Algumas Considerações. Revista de Teoria da História. Ano 1, Número 3, junho/2010. CHARTIER. Roger. O Mundo como Representação. In: Estudos Avançados 11, (5), 1991. D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e Família Burguesa. In: PRIORE, Mary (org.) História das Mulheres no Brasil. S.P: Contexto, 1997. PACHECO, Alexandre. As Implicações do Conceito de Representação em Roger Chartier com as Noções de Habitus e Campo em Pierre Bordieu. ANPUH – XXIII Simpósio Nacional de História, Londrina, 2005. PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Mundo como Texto: Leituras da História e da Literatura. História da Educação, ASPHE/FaE/ EFPel, Pelotas, n. 14 p. 31 – 45, set. 2003. PIZA, Daniel. Machado de Assis um Gênio Brasileiro. 3° ed. São Paulo. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. RICOEUR, Paul. A Representação Historiadora. In: A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. Aprendendo História: GÊNERO Página | 171 A DESIGUALDADE DE GÊNERO: A CONVENÇÃO DE BELÉM E A LEI MARIA DA PENHA Mirela Ibiapino Marques Cunha Victor Gabriel de Jesus Santos David Costa Aprendendo História: GÊNERO Página | 172 Muito é falado sobre as conquistas das mulheres, como se essas tivessem seus direitos plenamente reconhecidos e respeitados no contexto social, político e econômico hodierno. Contudo, é claro que a classe feminina obteve diversas mudanças em seus direitos e que muitos foram alcançados. No entanto, a mulher, desde o século XVIII até os dias atuais, ainda é rodeada por uma realidade opressiva e submissa em uma sociedade patriarcal e machista. Desse modo, este artigo possui como propósito contribuir para reflexões sobre a importância do atendimento em rede para atingir resultados mais satisfatórios da Lei Maria da Penha e visa analisar o Movimento Feminista realçando a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), que possui um gigantesco significado para a luta pela igualdade de gênero, a qual serviu como base para a Lei n° 11.340 (Lei Maria da Penha). Os movimentos sociais, no decorrer da história, se mostraram imprescindíveis para as mudanças nas relações sociais humanas, logo, são instrumentos capazes de alcançar conquistas para grupos desfavorecidos da sociedade. Desse modo, o movimento feminista surge, com influências iluministas, a fim de aumentar a autonomia feminina, que sempre teve seu papel ligado e subordinado aos homens e eram, e continuam sendo, alvos incessantes de violências psicológicas, físicas, sexuais e econômicas. A Convenção de Belém, em seu primeiro artigo, expõe o que deve ser compreendido por violência contra a mulher, e muitas das hipóteses nele previstas são habitualmente desrespeitadas pela sociedade. A Lei Maria da Penha, oriunda dessa convenção, possui tal nome em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de várias tentativas de assassinato pelo seu marido, sendo que uma delas a deixou paraplégica. Mesmo com esse acontecimento, ela ainda precisou lutar por vinte anos para que seu agressor fosse preso. Em setembro de 2006 a lei em fim entrou em vigor, fazendo com que a violência contra a mulher não fosse mais tratada como um crime de menor potencial ofensivo. Tal lei elaborou um mecanismo responsável pela coibição de agressões domésticas e familiares, nos termos da Convenção de Belém e do art. 226 da Constituição Federal. A lei ainda pois fim às penas pagas multas ou cestas básicas, além de abarcar também as violências psicológicas, patrimonial e o assédio moral, não só a física e sexual. Destarte, a Lei Maria da Penha representa uma verdadeira vitória sobre a impunidade, por meio dela vidas foram preservadas e muitas mulheres em situações de violência ganharam o direito à proteção, fortalecendo, assim, a autonomia das mulheres. Ela reconhece a obrigação pertencente ao Estado em garantir a segurança das mulheres, sejam em espaços públicos ou privados, a fim de dotá-las de poder para que exerçam plenamente sua cidadania. Entretanto, infelizmente, tal lei ainda é detentora de uma certa ineficácia, visto que ainda é exorbitante o número de mulheres que mesmo após a procura por ajuda policial e judicial e obterem medida protetiva, ainda são vítimas de violência, que muitas vezes resultam em suas mortes, principalmente por ex companheiros. A Lei da Maria da Penha, porém, não abrange todas as mulheres que sofrem outros tipos de violência de gênero, desta forma, não atende a todos os anseios do movimento feminista para garantir a tão sonhada igualdade de gênero. Pontos indispensáveis ambicionados pelo movimento, continuam sendo descartados pelo poder público, como a luta pela igualdade salarial e maior espaço no âmbito político. Ainda que o mundo esteja globalizado, o sexo feminino continua sendo alvo constante do machismo dos homens e das próprias mulheres. Muitos ainda possuem o pensamento que “lugar de mulher é apenas na vida doméstica, enquanto o papel masculino é o de levar o sustento para casa. Os avanços do movimento feminista no ordenamento jurídico brasileiro A Constituição de 1988 foi a primeira no Estado brasileiro a positivar diversos direitos que tangem a proteção do sexo feminino a favor do Movimento Feminista. Ainda assim, existem dificuldades em criar e manter políticas públicas eficientes que façam tais direitos serem concretizados. Como defende Marcela Cristina de Souza Alvim, a maior luta travada atualmente pelas mulheres é a efetivação de seus direitos salvaguardados pela Constituição. Como já anteriormente falado, a Lei n° 11.340 foi um insuspeito marco na história legislativa brasileira, devido a sua busca por punir de modo mais célere e severo a violência ocorrida no âmbito familiar contra a mulher. Uma de suas inovações foi a detenção de seu caráter preventivo, e não só punitivo, que incluem a proibição de aproximação ou qualquer tentativa de contato com a vítima; a prestação de alimentos provisionais e a prestação de caução provisório, mediante depósito judicial, por danos ou perdas matérias decorrentes de práticas de violência doméstica e familiar. Embora com todas as medidas tomadas para a erradicação da violência contra a mulher os números continuam alarmantes, e isso resultou na instauração, em 2012, de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para tratar sobre a tal violência. Uma de suas principais pautas foi a articulação para a elaboração de uma lei responsável por combater de modo mais eficaz a violência. A CPMI constatou a existência de dados assustadores de violências intrafamiliar no Brasil resultantes em óbitos, que sucedeu, após inúmeros debates e discussões, na Lei n° 3.104/2015, que tipificou o feminicídio – expressão utilizada pela primeira vez pela então presidenta Dilma Rousseff para tratar de mulheres mortas por homens somente pelo fato de pertencerem ao sexo feminino – como homicídio qualificado, colocando-o no rol de crimes hediondos. Apesar disso, é necessário que seja destacado que somente medidas legais não solucionarão um problema tão enraizado em nossa sociedade e não serão suficientes para que sejam salvaguardados os direitos femininos Aprendendo História: GÊNERO Página | 173 contidos na Constituição e na legislação infraconstitucional. Além das leis e normas, são necessários investimentos, por parte do Executivo, em políticas públicas explicativas e educacionais que visem a proteção à mulher, algo que é extremamente pedido pelo Movimento Feminista. Aprendendo História: GÊNERO Página | 174 A Lei Maria da Penha e a necessidade de formulação de novas normas para o fim da desigualdade A elaboração da Lei Maria da Penha foi decorrente de uma ação coletiva ordenada por Organizações Não Governamental (ONG’s) feministas, baseando-se na existência de altas taxas de violência contra a mulher praticadas nas relações afetivas, além da quase que total impunidade dada aos agressores. Pela primeira vez, a Convenção de Belém estabeleceu o direito de toda mulher viver uma vida livre que qualquer violência, além de trata-la como uma violação aos Direitos Humanos Internacionais. Nesse sentido, passou a ser adotado um novo paradigma na concepção dos direitos humanos, considerando o privado público, tornando o Estado responsável por erradicar e sancionar as situações de violência contra as mulheres. “A fim de proteger o direito de toda mulher a uma vida livre de violência, os Estados-Partes deverão incluir nos relatórios nacionais à Comissão Interamericana de Mulheres informações sobre as medidas adotadas para prevenir e erradicar a violência contra a mulher, para prestar assistência à mulher afetada pela violência, bem como sobre as dificuldades que observarem na aplicação das mesmas e os fatores que contribuem para a violência contra a mulher. ” (CONVENÇÃO INTERAMERICANA para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, 1994) Com a Lei Maria da Penha houve uma alteração expressiva da estrutura e das práticas do Poder Judiciário brasileiro. A partir de 2006 ocorreram mudanças positivas ocorreram no país, como a criação e instalação de varas e juizados de competência exclusiva ao tratamento de ações referentes aos crimes previstos na norma praticados contra mulheres; a garantia de assistência social e maior disponibilidade de profissionais responsáveis pelo atendimento de vítimas. Estas, que por vezes sofriam agressões há anos, foram encorajadas a denunciarem seus agressores. As denúncias apresentaram um crescimento de cerca de 40%, visto que antes as vítimas não denunciavam seus agressores por medo de represarias ainda mais graves que as denunciadas. As mulheres passaram a se sentirem mais autônomas e seguras diante de opressões, já que com a existência da lei era certo que haveria uma punição a seus agressores. Contudo, o Estado ainda é negligente por falta de ações tomadas para coibir e prevenir atos violentos contra a mulher, focando apenas na punição a quem infringe a lei. Falta ao poder público agir com responsabilidade, possibilitando, assim, ações que visem a criação de projetos para resolver o problema supracitado. Como defende o Ministro do STF, Gilmar Mendes: “O juiz tem que entender esse lado e evitar que a mulher seja assassinada. Uma mulher, quando chega à delegacia, é vítima de violência há muito tempo e já chegou ao limite. A falha não é da lei, é na estrutura, disse, ao se lembrar que muitos municípios brasileiros não têm delegacias especializadas, centros de referência ou mesmo casas de abrigo. ” (MENDES, 2016) É dever da administração pública criar mecanismos para realizar a proteção das vítimas de violência. Enquanto a lei é responsável para garantir os direitos das mulheres violentadas, o papel do governo é de proporcionar condições favoráveis na proteção da vítima, construindo abrigos dignos com profissionais competentes para a ressocialização de um ser humano que sofreu traumas psicológicos, físicos e moral. A Lei Maria da Penha, todavia, abrange violências ocorridas no âmbito doméstico, familiar e de relações afetiva, não tratando, desse modo, dos abusos ocorridos no espaço público e da desigualdade no mercado de trabalho. Em média, no Brasil, as mulheres recebem um salário 27% inferior ao dos homens. Para a represente do Escritório da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, tal fato tem a ver com o preconceito com a contratação feminina por conta de gravidez e por ser visto como um sexo “frágil”. Nessa perspectiva, a violência contra a mulher, seja qual segmento se fizer presente, tem fundamentos estruturais e tem sido um dos mecanismos que funcionam como impedimento ao acesso a posições de igualdade em todas as esferas da vida social, incluindo a vida privada. Nessa perspectiva, a violência contra a mulher, seja qual segmento se fizer presente, tem fundamentos estruturais e tem sido um dos mecanismos que funcionam como impedimento ao acesso a posições de igualdade em todas as esferas da vida social, incluindo a vida privada. Apesar dos avanços gerados pela Convenção de Belém, ainda está muito longe de assegurar total autonomia e a plenitude de direito às mulheres. Diariamente milhares de mulheres ainda enfrentam situações que chegam à barbárie resultado de uma cultura e sociedade machista, onde a mulher é vista como propriedade, com a qual o homem pode fazer o que bem entender. Considerações finais Atualmente, a Lei Maria da Penha possui importante papel no avanço dos direitos das mulheres, uma vez que até o 2006 não havia uma lei específica para tais casos, sendo estes tratados como situações corriqueiras, e julgados como crimes de menor potencial ofensivo, possuindo punições brandas. Devido a mudança desta realidade, algumas mulheres sentem-se seguras para denunciar seus agressores, pois a elas são oferecidas medidas protetivas. No entanto, uma parcela delas ainda encontra-se amedrontas e envergonhadas por conta do julgamento social ainda ser ofensivo contra a vítima, muitas vezes sendo feitos comentários maldosos quando a agressão é recorrente. O cenário piora quando a violência é sexual, levando em Aprendendo História: GÊNERO Página | 175 consideração a ainda existente “cultura do estupro” que insistir em achar meios de culpar a vítima pelo crime sofrido. Aprendendo História: GÊNERO Página | 176 As violências domésticas praticadas contra a mulher ocorrem devido a uma relação de poder que vai além, transformando-se em um costume, existindo ainda hoje a visão de que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Neste sentindo, a violência sexual cometida pelo companheiro, dentro do âmbito doméstico é facilmente velada, pois se encontra imersa em uma sociedade de valores e tabus que identificam o ato sexual como um dever das mulheres dentro de relacionamentos amorosos, uma vez que, historicamente, à elas cabia a função social de reprodução biológica. Por fim, para que ocorra uma real diminuição da violência contra a mulher é necessário a ver uma superação da condição desigual da mulher na sociedade brasileira, sendo, para isso, fundamental, políticas públicas de conscientização da pluralidade cultural existente no país, para um maior entendimento que nessa realidade não existe superior nem inferior, e sim uma linha horizontal. Ainda, é primordial que haja um controle para que as leis que tangem sobre a questão de igualdade salarial entre homens e mulheres sejam respeitadas. Referências Mirela Ibiapino Marques Cunha é estudante da graduação do curso de Licenciatura em História pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Victor Gabriel de Jesus Santos David Costa é estudante da graduação do curso de Licenciatura em História pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), e membro do Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea (NUPEHIC). ALVIM, Marcia Cristina de Souza. O direito da mulher e a cidadania na Constituição Brasileira de 1988. In: BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; ANDREUCCI, Ana Claudia Pompeu Torezan. Mulher, Sociedade e Direitos Humanos. São Paulo: Rideel, 2010. CONVENÇÃO INTERAMERICANA para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, 1994. O GLOBO. Para aplicar Lei Maria da Penha, Justiça tem que 'calçar sandálias da humildade', diz Gilmar. Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/brasil/para-aplicar-lei-maria-da-penhajustica-tem-que-calcar-sandalias-da-humildade-diz-gilmar-259307.html. HOMOSSEXUALIDADE NAS NOTÍCIAS POLICIAIS DA IMPRENSA PARAENSE NA PRIMEIRA METADE DA DÉCADA DE 1980 Pedro Antonio de Brito Neto Este breve ensaio tem por intuito apresentar a interpretação que a imprensa paraense refletia em suas páginas de jornal sobre a comunidade LGBTQ+, em principal, as identidades que derivam do gênero masculino, na primeira metade da década de 1980. Para expor essa representação recorri ao periódico Diário do Pará, e seu caderno policial, principal exponente de características negativas, atribuindo à comunidade o estigma de marginais ou seres desviantes. A editoria policial adotava uma linguagem com uso de termos indecentes referentes aos envolvidos no acontecimento, demonstrando notícias com imagens que expunha pessoas mortas, machucadas, ou em situações degradantes. Tal praxe concordaria com uma espécie de jornalismo que se disseminou no período de sua produção: o popular. Compreende-se que a abordagem desta imagem negativa é resultado de um processo de construção social em torno das orientações sexuais e identidades de gênero, e também de uma técnica do jornalismo que aproximava a sua linguagem à realidade do seu leitor. Neste processo em que o jornalismo adotava uma linguagem mais popularesca para se referir à comunidade LGBTQ+, a mesma estava em processo de conquistas e lutas sociais em um período marcado pelo fim da Ditadura Civil-militar e início da redemocratização do Estado brasileiro. Os estudos e Movimento Homossexual no Brasil e Pará Aponta-se que os principais estudos e movimentos a respeito da homossexualidade no Brasil tenham se iniciado em meados da década de 1970. A partir dos trabalhos primordiais de Peter Fry, antropólogo e pesquisador da homossexualidade no Brasil, observa-se o crescimento de pesquisas sobre a homossexualidade, particularmente a masculina, pois este “é um tema de pesquisa significativo dentro das ciências sociais brasileiras desde o final dos anos 1970, ao passo que estudos sobre lésbicas, travestis e transexuais são mais recentes” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p.16). No Pará, diferentemente do restante do país, a pesquisa em torno da história da homossexualidade neste período, seja ela feminina ou masculina, é escassa. Franco (2015) revela a falta de escritos sobre a temática, declarando-a como falha. No entanto, sobre o movimento, e se um dia houve a organização ou origem do movimento homossexual no Pará, ele se propagou na sua capital, Belém, com as manifestações artísticas e culturais que tomariam forma a partir da década de 1970, quando ocorreu o surgimento de um grupo de artistas, jornalistas e intelectuais, que foram às ruas fazer-se perceptíveis à sociedade (FRANCO, 2015). Aprendendo História: GÊNERO Página | 177 Estas manifestações, que hoje em dia é vigente durante o período que antecede o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, se caracterizaria pela Festa da Maria Chiquita, ou Festa da Chiquita Bacana. Aprendendo História: GÊNERO Página | 178 O final da década de 1970 caracteriza-se também como um marco na história da homossexualidade no país, em específico o ano de 1978, pois corresponde à fundação do primeiro grupo homossexual, o Somos – Grupo de Afirmação Homossexual, em São Paulo, e ao lançamento da primeira edição do jornal alternativo O Lampião da Esquina, no Rio de Janeiro, escrito e produzido por homossexuais para o público da comunidade. Tanto o jornal, quanto o grupo tinha por objetivo reivindicar seu espaço na sociedade, combatendo o preconceito e o machismo. Ainda no final da década de 1970, ocorreu a “primeira manifestação pública através de uma carta aberta ao Sindicato dos Jornalistas, protestando contra a forma difamatória com que a “imprensa marrom” apresentava a homossexualidade” (FRY; MACRAE, 1985, p. 22). Nesse período, a cor atribuída a qualquer jornal que use de uma linguagem “escandalosa” é o marrom. Esse uso possui diversas origens, mas Amaral (2006) também considera que o jornalista Alberto Dines diz que foi dado por Calazans Fernandes, que mudou a expressão em uma notícia do jornal Diário da Noite, no Rio de Janeiro, em 1960. O marrom, então, estaria estabelecendo relação com a “cor de merda”. Sensacionalismo e Linguagem popular O termo “imprensa marrom” ganhou bastante dimensão, vindo se afirmar na década de 1980, pois, de acordo com Ferreira Júnior e Costa (2016), esse tipo de cobertura jornalística sensacionalista era abundante. O conceito de sensacionalismo era utilizado para designar a produção jornalística que evocasse a violência. No entanto, Amaral (2006) classifica que o sensacionalismo acontece de várias formas, afirmando que todo jornal pode ser sensacionalista, pois utiliza de técnicas para prender o leitor, e, portanto, conquistar boas vendas. A disseminação do desrespeito, injustiça, desigualdade e violência, devido à orientação sexual nos impressos, traria à tona uma inconformada massa de homossexuais. O jornal Notícias Populares, de São Paulo, era um dos meios que disseminavam uma escrita difamatória a respeito dos homossexuais. Agrimani Sobrinho afirma que, “quando se refere ao homossexual, “Notícias Populares” procura tornar nítida uma posição de preconceito, de exclusão e marginalidade. O homossexual aparece como culpado, mesmo que seja ele a vítima do crime” (1995, p. 122). A profusão desses impressos se apoiava justamente nestas atribuições, um jornalismo que propagava notícias “extraordinárias”, “excepcionais” e “escandalosas”. Na década de 1980, além de denominados de “imprensa marrom”, os periódicos teriam o cognome que Agrimani Sobrinho (1995) atribui como espreme que sai sangue, alcunha que serviu de título para uma de suas principais obras. Portanto, a história comum e cotidiana da realidade social do leitor faria se presente nos cadernos e/ou editorias policiais, pois eram esses segmentos dos jornais que retratavam a violência e os acontecimentos mais comuns enfrentados pelas populações periféricas. O jornalismo popular policial, exemplificado pelo próprio Diário do Pará possuiu as características objetivadas a atingir as classes mais populares. Logo, vão desde uma linguagem coloquial, caracterizada como “exagerada, podendo usar gírias e palavrões” (LIMA; ARAÚJO, 2011, p. 7). O Diário do Pará, nomenclaturas e as notícias policiais O jornal Diário do Pará, ou como se intitulava Diário do Pará: um jornal da Planície teve sua primeira edição lançada no ano de 1982, ainda no período de restabelecimento da democracia no Estado brasileiro. O jornal que fora fundado por Laércio Barbalho, sendo dirigido por seu filho Jáder Barbalho Filho, teria a editoria Caderno Polícia como um dos maiores destaques do periódico. Este gênero de notícia ganhou espaço no Pará a partir da década de 1980, pois; “o gênero caiu no gosto popular em programas de rádio e televisão, como “A Patrulha da Cidade”, “TV Cidade” e “Barra Pesada”, nos quais repórteres de rádio que não tinham formação profissional migraram para as telas e se tornaram repórteres de televisão” (MELÉM, 2011, p. 31). Como a pesquisa se ateve em captar notícias do caderno policial sobre a homossexualidade, a metodologia para a busca destas fontes foi seguindo a nomenclatura que a notícia expunha nos títulos de suas manchetes. Assim, as categorizações encontradas para as identidades e orientações com origem no gênero masculino foram: gay, homossexual, travesti, e a boneca. O termo gay é o que mais aparece nas manchetes. Proveniente dos Estados Unidos seria uma denominação que surgiria a partir dos anos de 1950. A partir dos estudos do historiador George Chauncey vê-se que o termo faz referência “a qualquer homem que tivesse experiências sexuais com outros homens, independentemente da afeminação ou do papel desempenhado no ato sexual” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 44). Antes as denominações estavam relacionadas ao comportamento sexual, ou seja, quem tivesse o papel de ativo na relação sexual seria chamado de trade, enquanto que os que exerciam no ato sexual o papel de passivos eram chamados de fairy/fairies ou queers. Aqui no Brasil as denominações seriam variadas e mudariam com o passar dos anos, variando de região para região, sendo revisadas e ganhando novos significados, principalmente no período de evolução do movimento homossexual. Neste período o gay aparece no Brasil com o mesmo intuito de determinar o homossexual, sem fazer distinção sobre o seu comportamento sexual. Abaixo podemos ser observar uma notícia extraída do caderno policial: “Gay mete faca. Francisco de Castro Martins de Souza esfaqueou por motivos de ciúmes, o comerciário José Maria de tal e sua namorada Liana Aprendendo História: GÊNERO Página | 179 Aprendendo História: GÊNERO Página | 180 Moreira Cardias [...]. Francisco de Castro é homossexual e gosta de ser chamado de “Francesa”, nutrindo um ciúme doentio pelo comerciário Zé Maria, por quem é apaixonado. Ontem, ele encontrou o “seu amor” de braços dados com a namorada e ficou desesperado. Como todo “gay” “Francesa” não descuida de sua “proteção” e sempre anda com um canivete, para as suas emergências. Foi com essa arma que ele feriu o comerciário e Liana. Cada vítima recebeu duas canivetadas. Zé Maria foi ferido no braço direito e nas costas, enquanto sua namorada recebeu ferimento nos dois braços. Enquanto o casal era levado ao Pronto Socorro Municipal, “Francesa” aproveitava a confusão causada e dava no pé para longe da ação policial” (GAY..., 1982, p. 8). Esta primeira notícia de 1982, aborda o caso do homossexual chamado Francisco de Castro, que usa um nome social considerado socialmente feminino: Francesa. Nota-se no texto a construção da imagem de um ser “doente”, ao afirmar que ele possui “um ciúme doentio” por um homem comprometido, a quem o jornal declara que ele seja apaixonado. Outra percepção que se cria é o da “ridicularização”, Francisco, por ser homossexual, é retratado como um “louco”, que age por impulso, e a notícia busca dar ênfase em algumas palavras para desmerecer a sua imagem, observa-se no próprio destaque que dão ao seu nome social, e a referência de Zé Maria como o “seu amor”. O segundo termo noticiado seria o homossexual. Sendo utilizado no texto de várias notícias, faz referência aos que se envolvem com pessoas do mesmo sexo. A palavra seria criada no século XIX, com o intuito de identificar a orientação sexual que estava sendo analisada pela sexologia. Este termo, como diz Fry, tem associação “ao modelo médico-legal e tem conotação de patologia e de crime” (1982, p. 104). O autor afirma que, durante a década de 1960, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, o termo homossexual seria substituído pelo gay, pois este evocava um sentido mais alegre. Analisemos a notícia abaixo: “Homossexuais querem o fim da repressão. A entidade Comunidade Homossexual Argentina exigiu ontem a revogação das leis de repressão aos homossexuais. Em declaração oficial, a associação afirmou que os homossexuais dos dois sexos são 5 por cento da população argentina – 1,5 milhão de pessoas – e advertiu: “Não haverá democracia verdadeira se a sociedade permitir a subsistência dos setores marginalizados e dos diversos métodos de repressão vigentes”. O documento recorda que a Organização Mundial de Saúde, integrada pela Argentina, cortou a homossexualidade de sua lista oficial de doenças e manifesta que os homossexuais são “pessoas que trabalhamos, estudamos, sentimos, amamos, nos preocupamos com a realidade nacional e passamos junto com vocês os duros anos da ditadura.” (HOMOSSEXUAIS..., 1984, p. 7). Nesta notícia se observa a luta do movimento contra a repressão e o preconceito que os homossexuais sofrem na Argentina, sendo que isso foi trabalhado na primeira parte do artigo, porém no Brasil. Alguns pontos devem ser levados em conta: não é visível a linguagem, ou o uso de termos depreciativos para com os homossexuais, pelo contrário, está apresentado outro lado, a exposição do seu protesto no âmbito político e social, no qual os homossexuais são pessoas iguais as outras, humanos que possuem sentimentos, realizam trabalhos, e passam ou passaram pela mesma situação que outros. Atenta-se para a citação que diz que a Organização Mundial da Saúde (OMS), já havia retirado a homossexualidade do rol de doenças na Argentina. E, no Brasil, isto aconteceu em 1985, a partir da campanha promovida pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). A travesti é o quinto termo. Na notícia geralmente é abordada como o homem que se traveste de mulher. Em 1910, o alemão Magnus Hirschfield, que ficaria conhecido pela campanha pela descriminalização da homossexualidade na Alemanha, classificaria o tipo sexual como “pessoas cujas identidades cruzavam as fronteiras de gênero, que usavam roupas do sexo oposto e que desejavam mudar de sexo” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 42). Para Butler (2008), o gênero é constituído a partir de uma construção social, é algo fluido, e sua definição não se vincula ao sexo biológico. Podemos considerar que hoje, partindo da citação de Simões e Facchini que as pessoas que almejam a mudança de sexo estão construindo a sua identidade de gênero, enquanto que a identidade da travesti pode se caracterizar em “[...] apresentar-se socialmente como mulher em tempo integral [...]. E nessa representação não basta somente vestir-se com roupas do universo feminino. A passagem de um indivíduo para o que se poderia chamar de um ethos travesti envolve cuidados constantes, tais como depilação, ingestão e/ou aplicação de hormônios sintéticos femininos ou até mesmo intervenções mais agressivas, como o uso de silicone para modelar seios, nádegas e quadris” (FERREIRA, 2009, p. 38). “Travesti espancado pelo homem-sombra. Reginaldo Miranda Ferreira, homossexual mais conhecido pelo apelido de Regina Tarada, “roda bolsinha”, na Praça da República, foi parar ontem no Pronto Socorro Municipal, com a cara praticamente desmontada na base de pancadas, e desmaiado. Estava todo “paramentado” como uma mulher, lábios pintados que sobressaíam a cor do sangue no resto de seu rosto. Ela estava (ou talvez devesse dizer ele estava) todo travestido, usando um vestido colorido, peruca espalhafatosa, batom e rouge. De repente, um elemento misterioso saiu das sombras da Praça, segundo ele disse no PSM, e passou a agredir Reginaldo, a pauladas, produzindo-lhe os ferimentos pelo corpo.” (TRAVESTI..., 1985, p. 7). A travesti Regina, ou como é conhecida “Regina Tarada”, é vítima de violência homofóbica, porém, é colocada como culpada do seu próprio estado. Um indivíduo que não foi identificado violentou-a e, pelo que ficou subentendido pelo jornal, saiu impune do crime. Ressalta-se a vestimenta de Regina, que por ser travesti, é considerada “espalhafatosa”, “exagerada”, acentuando a “cor do seu batom como mais forte que a cor do seu sangue”. O olhar preconceituoso, de condenação, e a ridicularização do Aprendendo História: GÊNERO Página | 181 homossexual são praxes na notícia, que marcam o estranhamento diante da identidade da travesti. Aprendendo História: GÊNERO Página | 182 Fechando com a sexta e última designação em suas manchetes: a boneca. O termo fora usado antes no jornal O Snob, no Rio de Janeiro, na década de 1960. A boneca seria um homossexual caracterizado por ter “estilo, graça, personalidade, consciência da moda e um bom gosto, que as situariam acima do resto da sociedade” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 69). Ou, de acordo com Silva (2005), em trabalho realizado em São Paulo no mesmo período, ela seria um homossexual passivo e atraente, geralmente jovem, ou uma denominação afetuosa dada à mesma categoria. Porém, por variar os significados de região para região, a boneca no Diário, seria geralmente o homossexual travestido de mulher, ou efeminado. Como podemos ver abaixo: “Mandou chumbo grosso na boneca atrevidinha. Sujeito descarado é o gay Antonio Pereira da Silva, [...]. Ele mesmo diz que não gosta de fazer ponto na Praça da República, pois a concorrência é descarada e desenfreada, porém como reside numa área onde constantemente os homens estão pelas esquinas com as mulheres da vida fácil, que proliferam na área, o Antonio (Antonieta, como é conhecido na roda) fica da porta ou da janela da sua casa bicorar os marmanjos que passam pela calçada da Riachuelo, e em muitas das vezes chega a abordá-los na maior cara de pau, convidando-os para entrar. Perseguição. O Raimundo Bolão, que tem como certo sua passagem todos os dias pela Riachuelo, já que trabalha na área, há tempo vem sendo abordado pelo Antonio Pereira, e como o Bolão não lhe dá bola, o gay, como já sabendo a hora que o Raimundo Bolão passa todos os dias, fica na janela a perturbar a paciência daquele que era sua paixão. Como tudo na vida enjoa, o Bolão ontem resolveu acabar com a perseguição da “Antonieta”: ao passar pela janela da dita cuja, quando retornava do serviço, lá estava o gay, e como já sabia que iria receber galanteios, o que aconteceu, ao se aproximar, sacou o revólver e deu dois tiros à queima roupa no corpo do Antonio Pereira da Silva, que caiu no chão gritando por socorro, com o Bolão fugindo deixando em estado lastimável o gay Antonio, que foi para uma clínica particular, mas antes esteve recebendo atendimento no PSM.” (MANDOU..., 1985, p. 7). O homossexual e também “boneca” Antônio é representado como “assediador” e culpado pelo ato de Raimundo. O fato de estar perseguindoo todas as vezes que passa para ir ao trabalho, a notícia é transformada, de modo que aquele que cometeu o ato criminoso sai impune, e o homossexual por ser estigmatizado torna-se o intransigente da situação. Podemos atestar como nesta e em outras notícias o homossexual está sofrendo diversos tipos de violência, seja física, psicológica ou verbal. Aqui vemos dois tipos de homofobia, a que foi praticada por Raimundo ao atirar contra Antônio, e a estabelecida pela notícia de jornal, no qual Agrimani Sobrinho (1995) diz ter origem no preconceito jornalístico, e na negação humana em assumir a sua própria sexualidade, tendo o jornal e o próprio leitor como reprodutor desta homofobia, que infere na rejeição ou aversão ao homossexual na notícia, caracterizada também por uma atitude derivada do heterossexismo. Logo, a partir das notícias expostas podemos observar as atribuições que ridicularizam os membros da comunidade LGBTQ+. Estigmatizam seu comportamento, minimizam a gravidade da violência homofóbica, sendo o homossexual sempre culpado, e utilizam suas orientações e identidades de gênero para atrair o leitor avido pela notícia. Ser incivil nas noticias era comum para o período, pois não existiam códigos de conduta que os fiscalizassem. Isso aconteceria somente no final de 1986. E, por mais que sejam observados intensos casos de violência, não só em Belém, mas no Brasil como um todo. Os membros do Movimento Homossexual não deixaram se sobrepujar. A década de 1980 foi período de fortalecimento e de grandes conquistas sociais para todo o movimento. Referências Pedro Antonio de Brito Neto – Graduado em Licenciatura em História pela Faculdade Estácio de Castanhal, professor do Projeto de Extensão Alternativa Vestibulares da Universidade do Estado do Pará (UEPA), atualmente é pós-graduando do curso Amazônia: História, Espaço e Cultura da Faculdade Integrada Brasil e Amazônia (FIBRA). AGRIMANI SOBRINHO, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa. 1. ed. São Paulo: Summus, 1995. AMARAL, Márcia. Jornalismo Popular. São Paulo: Contexto, 2006. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. FERREIRA, Rubens. A informação social no corpo travesti (Belém, Pará): uma análise sob a perspectiva de Erving Goffman. Ciência da Informação, Brasília, v. 38, n. 2, p. 35-45, mai./ago. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ci/v38n2/03.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2018. FERREIRA JUNIOR, Sérgio.; COSTA, Alda. Dissidentes, violentos e violentáveis: LGBTs nas narrativas de violência da Amazônia Paraense. Revista Rua, Campinas, v. 2, n. 22, p. 525-551, nov. 2016. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rua/article/view/8647948 /14716>. Acesso em: 30 nov. 2018. FRANCO, José. Memórias do Movimento LGBT: da Sociedade Mattachine ao Estado do Pará, a conquista de direitos e suas demandas sociais. Disponível em: <http://eventos.livera.com.br/trabalho/98-1020836_30_06_2015_1630-56_1695.PDF>. Acesso em: 12 dez. 2018. FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: _______. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. p. 87115. Aprendendo História: GÊNERO Página | 183 _______; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Abril Cultural, Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, v. 26, 1985. Aprendendo História: GÊNERO Página | 184 LIMA, Sérgio.; ARAÚJO, Rosangela. O Jornalismo Popular no Caderno de Polícia da Folha de Pernambuco. In: XXXIV CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 34., 2011, Recife. Anais... Recife: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2011. p. 1-15. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2011/resumos/R6-02171.pdf>. Acesso em: 08 dez. 2018. MELÉM, Viviane. Jornalismo Policial: uma análise dos critérios de noticiabilidade do caderno Polícia, do jornal Diário do Pará. Puçá: Revista de Comunicação e Cultura da Amazônia. Belém, v. 1, n. 1, p. 26-50, jan./jun. 2011. Disponível em: <http://revistaadmmade.estacio.br/index.php/puca/article/view/94/91>. Acesso em: 10 dez. 2018. SILVA, José. Homossexualismo em São Paulo: estudo de um grupo minoritário. In: GREEN, James; TRINDADE, Ronaldo. (Orgs.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 41-212. SIMÕES, Júlio.; FACCHINI, Regina. Na Trilha do Arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009. Fontes GAY mete faca. Diário do Pará: um Jornal da Planície. Belém, ano I, n. 8, 31 ago. 1982. p. 8. HOMOSSEXUAIS querem o fim da repressão. Diário do Pará: um Jornal da Planície. Belém, ano II, n. 480, 29 mai. 1984. p. 7. MANDOU chumbo grosso na boneca atrevidinha. Diário do Pará: um Jornal da Planície. Belém, ano III, n. 783, 24 mai. 1985. p. 7. TRAVESTI espancado pelo homem sombra. Diário do Pará: um Jornal da Planície. Belém, ano III, n. 742, 05 abr. 1985. p. 7. TRABALHANDO COM “GÊNERO” NAS AULAS DE HISTÓRIA: UMA POSSIBILIDADE DE REELABORAR POSTURAS E VISÕES ACERCA DAS MULHERES NO MERCADO DE TRABALHO Raimundo Nonato Santos de Sousa Considerações iniciais É sabido que o eficaz ensino de História exerce uma notória contribuição na formação de cidadãos cônscios dos seus direitos e deveres na sociedade, uma vez que por meio do conhecimento adquirido com essa disciplina, o indivíduo em formação aprende a desnaturalizar o que lhe é apresentado como natural, reconhecendo com isso que tudo ao seu redor se trata de construções assentadas em intencionalidades. Além disso, é também com a História que os alunos apuraram a sua criticidade frente às situações, com as quais se deparam no cotidiano. Com isso, percebe-se que não existem dúvidas a respeito do valor prático do estudo da História. Não obstante, é igualmente perceptível que esse valor somente é descortinado mediante um trabalho substancialmente proveitoso com essa disciplina escolar. A respeito disso, o emprego nas aulas de História de metodologias, ferramentas pedagógicas e propostas diversificadas, que permitem aos estudantes exercitarem sua faculdade de raciocínio e seu senso crítico são fundamentais, não somente para a compreensão dos assuntos estudados, mas também para ajudar aos discentes a encarar a disciplina História como um recurso que estimula, antes de tudo, o ato de pensar e de problematizar a realidade. Nesse sentido, cabe destacar que indubitavelmente uma das grandes dificuldades enfrentadas pelos professores de História é dirimir o caráter pejorativo que paira sobre essa disciplina, e consequentemente mostrar aos estudantes que a História não é somente o estudo do passado, mas que ela faz parte do presente e também o engloba no seu estudo, dialogando, em função disso, com essas duas temporalidades. Promover essa reversão de ótica acerca do ensino dessa disciplina, sem nenhuma duvida, é essencial, porque quando a História é vista pelos alunos como necessária, ela não só propicia a eles aprenderem sobre o passado, mas também os ajudam a fazer reflexões sobre seu cotidiano. Reflexões estas, que são essenciais para sua vida em sociedade. Nessa perspectiva, o objetivo primordial desse texto é promover o incentivo à transposição do conhecimento de cunho histórico do campo das ideias para o campo prático a fim de favorecer com isso não apenas a eficácia do processo de ensino- aprendizagem nessa disciplina, como também o reconhecimento, por parte dos alunos, a respeito da importância da História em nossas vidas. Para tanto, optou-se por sugerir a reflexão sobre gênero e trabalho, sob um viés histórico. Como indicação, os professores poderão propor para a turma a realização de uma análise sobre a participação da Aprendendo História: GÊNERO Página | 185 mulher na esfera produtiva, a partir de uma perspectiva comparada, que poderá contemplar dois contextos históricos e geográficos distintos, como por exemplo: a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), na Europa, e o século XXI, no Brasil. Aprendendo História: GÊNERO Página | 186 Falando sobre gênero nas aulas de História “Gênero” se refere a um tema transversal, que pode facilmente ser trabalhado pelos professores de História em sala de aula, desde que, evidentemente, haja a preocupação de articulá-lo com os eixos temáticos próprios desta disciplina. Nesse sentido, as possibilidades de trabalho, de fato, são inúmeras. Dentre elas, pode-se falar, por exemplo, da atuação das mulheres no mercado de trabalho e das implicações sociais e culturais geradas por essa atuação, relacionando esse fato a um episódio similar ocorrido em algum momento do passado, buscando com isso, apreender semelhanças e permanências, bem como desconstruir estigmas e conceitos pré-elaborados. Sobre a questão apontada, não há dúvidas de que o ingresso das mulheres no mercado de trabalho se configura, sobretudo na atualidade, em um tema, verdadeiramente, dotado de grande importância social e histórica, que, em consequência, o torna merecedor de profícuas investigações, análises e debates, especialmente no âmbito escolar. Isso pode ser afirmado por pelo menos dois motivos. O primeiro está umbilicalmente relacionado às consequências produzidas por esse ocorrido. Quando as mulheres começaram a adentrar no espaço público de trabalho, as relações sociais, as moralidades femininas, assim como o paradigma familiar sofreram fortes impactos e significativas alterações (CASTELO BRANCO, 2005). A partir daí, as mulheres adquiriram independência financeira em relação ao seu progenitor ou marido; começaram a questionar as normativas que, desde há muito, disciplinavam seus corpos, comportamentos e desejos; como também, passaram a decidir espontaneamente quando iriam se casar, quando teriam filhos e quantos filhos teriam. Já o segundo motivo se refere à discriminação de gênero ainda existente em nossa sociedade, corporificada não somente nas desigualdades salariais, como também nos cargos ocupados por homens e mulheres na esfera produtiva (PROBST, 2003). Por que falar de gênero na escola? No que concerne à necessidade de falar de “gênero” na sala de aula, é oportuno destacar que nos últimos anos tem-se percebido um esforço cada vez mais crescente da sociedade em discutir questões que gravitam entorno desse tema, por intermédio das suas instituições sociais, como por exemplo, a escola. Inegavelmente, a atuação desta instituição na efetivação dessa tarefa é fundamental, já que a escola é o local, em que se inicia a socialização dos indivíduos no ambiente exterior ao contexto doméstico, bem como a construção da sua cidadania. Além disso, não se pode perder de vista o fato de que se trata de uma responsabilidade da escola, enquanto instituição preparadora para a vida em sociedade, combater e dirimir os preconceitos e as discriminações, independentemente da sua natureza, que ainda perduram. Assim, guiada por esse princípio, esta instituição precisa falar sobre questões como as desigualdades entre os gêneros na esfera do trabalho, porque caso contrário, ela poderá está contribuindo, mesmo que indiretamente, para a preservação de ideais preconceituosos, por está formando futuros reprodutores deles. Desse modo, reconhece-se que a escola na contemporaneidade precisa se preocupar também com a educação social dos alunos, além da instrução formal, buscando propiciar aos discentes a assimilação de valores muito necessários para a boa vivência em sociedade. Assim sendo, nota-se que se tivermos uma escola preocupada verdadeiramente com a boa formação social dos alunos, seguramente alcançaremos uma sociedade mais humana, na qual o respeito se mostrará imperante e prioritário nas relações sociais estabelecidas pelas pessoas. Nesse sentido, é constatável que o empenho audaz de professores em elaborar e aplicar propostas curriculares ou atividades pedagógicas que possam fermentar a reflexão sobre temas como este, é realmente muito vantajoso, porque permite aos docentes atuarem de maneira mais significativa na formação social dos educandos, o que por sua vez, ajudará a estes desenvolver respeito para com a alteridade do outro (SILVINO, HENRIQUE, 2017). Apontamentos sobre a condição da mulher Para tornar compreensível a relação entre “gênero e trabalho” ora proposta, é preciso, de inicio, dissertar sobre os espaços que foram ocupados pelas mulheres ao longo da história do mundo ocidental, a fim de que possamos perceber os papéis sociais atribuídos a elas nas ditas sociedades ocidentalizadas. Vasconcellos (2005, p. 23) nos diz que as mulheres durante muito tempo viveram “reclusas no mundo doméstico, circunscritas ao silêncio do mundo privado“. Assim, sujeitas à dominação masculina às mulheres eram destinadas apenas as tarefas domésticas, de forma que a participação delas na sociedade adquiria expressividade somente nos limites do lar. Inclusive, costumava ser apregoado que as responsabilidades de cuidar do marido, da casa e dos filhos, eram delegações dadas por Deus às mulheres. Por este motivo, elas precisavam ser zelosas, trabalhadoras e cônscias da sua condição subjugada em relação à autoridade do homem, já que era algo predeterminado (FREIRE, 2009). Aprendendo História: GÊNERO Página | 187 Aprendendo História: GÊNERO Página | 188 Logo, as mulheres eram impedidas de trabalhar fora das fronteiras, quase intransponíveis, do espaço privado-doméstico. E se porventura, elas transgredissem tal normativa, impiedosamente a sociedade, defensora dos “bons costumes”, se encarregava de castigá-las com denominações desdenhosas e acusações moralistas, já que a transgressão feita era encarada como uma conduta socialmente reprovada (PRIORE, 1997). Contudo, as mulheres não desistiram. Por esse motivo, contrariando a lógica tradicional, que impunha aos homens a responsabilidade de atuar como provedores e mantenedores do lar, as mulheres deslocaram sua atuação do âmbito doméstico para o espaço público (PRIORE, 1997). Apesar disso, infelizmente, elas ainda hoje, em pleno limiar do terceiro milênio, continuam sendo vitimadas por tratamento discriminatório referente à qualidade das suas ocupações e por desigualdades salariais, mesmo quando ocupam o mesmo posto ocupacional que os homens na esfera pública do trabalho (MAIA, LIRA, 2004). Cabe destacar ainda nesse aspecto, que geralmente usa-se, para tentar inibir a inserção da mulher no mercado de trabalho, o argumento de que uma mulher empregada representa um pai de família desempregado. E como o trabalho desempenhado por ela é visto como menos importante, ele é o mais desprezado. Além disso, advoga-se também, que as mulheres podem ganhar um salário menor em relação aos seus colegas, já que a sua renda visa apenas complementar o orçamento da família, que tem nos proventos do marido sua maior fonte. Tal situação desfavorável está sustentada na sobrevivência da concepção de que a mulher é naturalmente encaminhada para os serviços do lar e não para os setores produtivos do mercado. Isso explica porque elas são desde muito cedo levadas a acreditar que sua função maior seja cuidar e não prover. A mão- de-obra feminina no contexto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) Costuma-se dizer, com razão, que a Primeira Grande Guerra (1914-1918) foi um conflito mundial e total. Mundial, porque envolveu muitos países ao redor do globo. E total, porque os participes dela não foram apenas os militares, mas também a população civil, que na sua grande maioria não tinha nenhum preparo físico, psicológico e nem tampouco estratégico para atuar na guerra (CÁCERES, 1996). No desenrolar desse conflito armado, muitos homens foram enviados para os campos de batalhas para lutarem nas trincheiras, com a finalidade de deter os avanços das potências inimigas. Eles receberam convocações acompanhadas de garantias, que os fizeram se disponibilizar a participar. Na fase inicial do ocorrido, acreditava-se que após o término da I Grande Guerra, o mundo se tornaria um lugar seguro e melhor, no qual a ameaça de outro conflito, de grandeza similar, não seria uma ameaça real. Desse modo, impelidos por essa crença, pelo patriotismo e também pelo desejo de proteger seus familiares, esses homens, muitos dos quais eram chefes de família, optaram por deixar a segurança dos seus lares e foram para a guerra, lutar em nome da sua nação e do seu povo. Uma das principais consequências da Primeira Guerra Mundial foi o envio de mulheres, geralmente das classes média e baixa, para trabalhar nas fábricas, em substituição dos seus maridos que se encontravam nas trincheiras. Nas fábricas, elas se encarregam da produção de conchas de artilharia, máscaras de gás, tanques, navios, aviões e munições, que seriam usados pelos combatentes (MALUF; MOTT, 1998). Já as mulheres residentes no campo ficaram responsáveis pela produção agrícola e pela criação de animais. Enquanto que aquelas que moravam nas cidades foram trabalhar com transportes dirigindo ônibus e caminhões, além de ocuparem as indústrias, inclusive as do ramo bélico (MALUF; MOTT, 1998). Assim, ocupando os espaços que antes eram de seus maridos, as mulheres assumiram diversos papéis na esfera produtiva dos países envolvidos na Guerra, muito embora elas ainda ganhassem salários menores do que seus colegas homens que exerciam funções equivalentes. Após 1918, com o fim do conflito, muitas destas mulheres foram demitidas das suas profissões, em função do retorno dos sobreviventes da guerra às suas antigas funções. Em contrapartida, devido à violência do episódio, muitos dos combatentes nem voltaram porque morreram, e aqueles que conseguiram retornar, se encontravam mutilados, e por isso, eles estavam impossibilitados de dar prosseguimento às suas atividades laborais. Isso ampliou ainda mais a margem para a manutenção das mulheres na esfera produtiva (MALUF; MOTT, 1998). Desse modo, apesar das angústias e sofrimentos, a Primeira Guerra Mundial trouxe às mulheres a possibilidade de alcançar conquistas que muito contribuíram para a emancipação feminina no mundo do trabalho. Mulheres trabalhadoras no Brasil No Brasil, as mulheres começaram a protagonizar uma atuação expressiva no mercado de trabalho a partir dos anos 70 do século XX. Seguramente, tal fato se configurou em uma das mais significativas características desta década, haja vista que o ocorrido sinalizava a necessidade de se redefinir os sentidos da imagem social da mulher mantidos até então, como também o crescimento no índice de participação feminina na esfera produtiva (MAIA, LIRA, 2004). Dentre as razões existentes que nos ajudam a compreender este fenômeno, pode-se mencionar aquela que possivelmente é a mais explicativa: a carência econômica que pairava sobre muitos dos lares brasileiros na época. Isso é apoiado por Leone, que reconhece que as condições econômicas Aprendendo História: GÊNERO Página | 189 podem exercer uma importante contribuição na intensificação da participação da mão-de-obra feminina no mercado, como uma espécie de estratégia para burlar a ameaça do empobrecimento (LEONE, 1997). Aprendendo História: GÊNERO Página | 190 Partindo desse postulado, de fato, não é difícil demais entender que a exiguidade dos salários pagos, e consequentemente, a dificuldade de custear as despesas domésticas, podem ter feito com que as mulheres se sentissem impulsionadas a atuar, de maneira extensiva, no mercado de trabalho, com o intento de complementar a renda da família com os proventos oriundos do seu emprego. Sugestão endereçada ao professor de História Após a apresentação do que se definiu como objeto central desse texto, segue-se a proposição que tem por finalidade apresentar alguns possíveis meios de como executar a articulação entre os temas: gênero, trabalho e ensino de História. Após apresentar a proposta de trabalho para os alunos, junto com uma contextualização histórica acerca do tema, os professores de História poderão iniciar um debate com a turma a partir das seguintes questões: a. Será que as mulheres, durante a I Guerra Mundial, queriam realmente adentrar no mercado de trabalho para serem independentes do ponto de vista financeiro? Ou elas foram levadas pelas circunstâncias a trabalhar fora do espaço privado-doméstico? b. Será que no Brasil as mulheres trabalham por que querem ou por que precisam? c. É realmente justo a mulher ganhar um salário inferior ao do homem, apesar dos dois ocuparem o mesmo posto de trabalho, como acontecia na época da Primeira Guerra Mundial? d. As mulheres tem potencial para assumir espontaneamente cargos de alta responsabilidade no mercado de trabalho? Ou elas podem fazer isso apenas na ausência de homens capacitados? e. Por que durante muito tempo, as mulheres foram desencorajadas a trabalhar fora de casa? f. As mulheres realmente são “sexo frágil”? g. O trabalho da mulher é, na realidade, importante para as famílias e para a sociedade? h. Por que as mulheres foram descriminadas porque queriam ter seu dinheiro através do seu próprio trabalho? i. Será que hoje as mulheres podem ter um emprego formal? j. As mulheres podem ser consideradas inferiores aos homens? k. Quais são os lugares que as mulheres podem ocupar na sociedade? l. O trabalho da mulher é valorizado nos dias de hoje? m. Quais são as dificuldades que as mulheres enfrentam na atualidade por trabalharem fora de casa? n. No mercado de trabalho, as mulheres podem subordinar os homens? o. Será que hoje a sociedade está mais afeita a disposição das mulheres em trabalhar fora do espaço privado-doméstico? p. Será que o desejo das mulheres em ingressar no mercado de trabalho significa que elas querem necessariamente se opor aos homens ou se mostrar superiores a eles? Isso feito, os professores poderão ainda propor para os alunos fazerem um levantamento, em sua família e na sua vizinhança, a respeito das mulheres que trabalharam fora de casa. Eles poderão levantar informações sobre: a) O nome; b) A idade; c) A escolaridade; d) A profissão; e) A duração da atuação profissional; f) E os desafios enfrentados por essas mulheres no mercado de trabalho. Assim, esse exercício de investigação terá por finalidade fazer com que o debate teórico seja refletido pelos alunos a partir de exemplos do cotidiano deles. Considerações finais Dessa maneira, a proposta deste texto é a de evidenciar que o trabalho com a temática “desigualdades entre homens e mulheres nos postos de trabalho” durante as aulas de História, é não só possível, mas também muito pertinente, a fim de que tais desigualdades possam ser historicizadas, compreendidas e consequentemente desnaturalizadas (CISNE, 2015, p. 8586). Ressalta-se, ainda, que a preocupação de propor uma análise histórica sobre a relação “gênero e trabalho”, repousa sobre o fato de que, notadamente a compreensão histórica dos fenômenos, nos ajuda a enxergá-los não como fatos de causalidade natural, mas sim como construções culturais derivadas de um contexto histórico especifico. Por fim, acredita-se que a proposta ora apresentada seguramente ajudará evidenciar o valor prático do estudo da História, assim como promoverá a Aprendendo História: GÊNERO Página | 191 Aprendendo História: GÊNERO Página | 192 problematização de estigmas e pré-conceitos em sala de aula, e ainda incentivará o respeito nas relações sociais, ajudando consequentemente os alunos a internalizar com mais facilidade o dever de respeitar as mulheres que buscam sua independência na sociedade através do seu emprego. E por certo, o respeito é um dos alicerces fundantes de uma sociedade igualitária de direitos, que desde há muito buscamos alcançar através da educação. Referências Raimundo Nonato Santos de Sousa é Acadêmico do 6∘ período do curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, pesquisador-bolsista PIBIC/FAPEMA e pesquisador-colaborador UNIVERSAL/FAPEMA. CISNE, Miria. Gênero, divisão sexual do trabalho e Serviço Social. 2. ed. São Paulo: Outras expressões, 2015. CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. Mulheres Plurais. Teresina: Edições Bagaço, 2005. CÁCERES, Florival. História Geral. 4 ed. São Paulo: Moderna, 1996. FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. LEONE, E. O perfil dos trabalhadores e trabalhadoras na economia informal. Campinas, IE-Cesit, 2007 (Texto encaminhado para a OIT – Brasil). MAIA, Katy; LIRA, Sachiko Araki. A mulher no mercado de trabalho. IPEA <www.ipea.gov.br/seminários/artigo11>. Data de acesso: 22/01/2019. MALUF, Mariana; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando A; SEVCENKO, Nicolau (orgs). História da vida privada no Brasil: República: da Bélle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. PRIORE, Mary Del e BASSANEZI, Carla. História das mulheres no Brasil. 2. ed.São Paulo : Contexto, 1997. PROBST, E. R. A evolução da mulher no mercado de trabalho. Disponível em: <http://www.icpg.com.br/artigos/rev02-05.pdf>. Acesso em 28 abr. 2018. SILVINO, Dariana Maria; HENRIQUE, Tázia Renata Peixoto. A importância do ensino de história local dentro da disciplina de história para a formação da identidade dos alunos; XIII Jornada de Ensino, Pesquisa e Extensão – JEPEX 2013 – UFRPE: Recife, 2013. VASCONCELOS, Vania Nara Pereira. A perspectiva de gênero redimensionando a disciplina histórica. Reviata Ártenis, n. 03, dez. 2005. P.02. AS IMAGENS DAS MULHERES NOS LIVROS ESCOLARES DA SÉRIE “INFÂNCIA” DE HENRIQUE RICCHETTI Samara Elisana Nicareta Pensamos que, além de dar contornos à discussão sobre gênero, podemos promover a visibilidade de algumas relações que se configuram neste contexto. Nas diferentes sociedades e culturas, a condição da mulher está sempre relacionada às condicionantes socioculturais dadas. Existem pontos comuns a todas as mulheres nas diversas culturas: de certa forma sofrem algum tipo de injustiça ou social, econômica, política e sexual. (ROSALDO, 1979, p. 17) É importante reconhecermos, ainda, que existe um aprendizado em torno do ser mulher; este papel atribuído ao sexo feminino foi construído ao longo dos tempos e aceito como forma natural para as mulheres, como os preceitos de que a condição feminina faz parte de uma dada natureza, como o ser mãe ou gerar uma nova vida. Diante deste mesmo “poder” que foi dado às mulheres, surgem admiração, medo e espanto, o que chegou a auxiliar a atribuir-lhes rótulos de bruxas ou deusas (Ibidem, p. 18). Foram séculos de humilhações, perseguições, incompreensões – visões que permaneceram até serem quebradas por mulheres que decidiram enfrentar a ideologia que as subjugava, uma ideologia de cunho machista. Contudo, viam-se (e ainda permanecem) formas de organização social gerenciadas por homens que determinam seus valores como superiores, apregoam sua posição como sendo a suprema e a ser respeitada principalmente pelas mulheres, uma vez que estas foram consideradas inferiores. Em todos os países, evidenciando um maior ou menor grau de exploração da condição feminina. Segundo Rosaldo (1979 p. 19): “Em todos os lugares vemos a mulher ser excluída de certas atividades econômicas e políticas decisivas; seus papéis como esposas e mães são associados a poderes e prerrogativas inferiores aos dos homens. Pode-se dizer, então, que em todas as sociedades contemporâneas, de alguma forma, há o domínio masculino, e embora em grau e expressão a subordinação feminina varie muito, a desigualdade dos sexos, hoje em dia, é fato universal na vida social.” Ao ser relegada aos afazeres domésticos a mulher é excluída da participação numa lida pública, que implica tomar decisões, ter poder de decidir sobre sua própria vida, acessar a uma espécie de autoridade, nutrir valores culturais. Ou seja, ao sair dos limites do restritivo papel doméstico, altera-se a função social da mulher na sociedade. Rosaldo (1979, p. 25) fala de uma oposição universal entre os papeis doméstico e público, os quais são necessariamente diferentes. Quando a mulher encontra-se numa área de domínio público ela sofre retaliações, é vista como desviada, manipuladora, vista como exceção. A posição da mulher não é biologicamente determinada e sim culturalmente construída. Aprendendo História: GÊNERO Página | 193 Este novo fazer histórico permite, portanto, verificar significados que podem ou não estar aparentes. Investiga a intencionalidade de se abordar fatos, acontecimentos e do contar a história de uma maneira singular apoiada nas relações de forças de quem detinha o poder. Aprendendo História: GÊNERO Página | 194 O que contam os livros didáticos configura algo que vai além de palavras, orientações, prescrições ou métodos de ensino; desvela condutas socialmente construídas, modos de visualizar as pessoas, os costumes; sob nossa perspectiva, auxilia a revelar os pensamentos de uma dada cultura. Os livros didáticos analisados expressam aspectos que estão no passado, mas que continuam, com maior ou menor intensidade, manifestos e atuantes no presente. E quem sabe, no futuro ainda permanecerão. É nesta relação temporal entre passado e presente que podemos delinear elementos importantes para nosso futuro. A pesquisa que se utiliza da análise de documentos vinculados às instituições escolares, como é o caso dos livros didáticos, supõe uma série de percalços. O primeiro deles é justamente encontrá-los. Material consumível, descartável e até bem pouco tempo considerado de pouco valor acadêmico, os livros escolares não são fáceis de serem localizados, sendo raros os espaços destinados à preservação e à memória do livro didático (Choppin, 2002). E, mesmo nos exemplares localizados faltam referências quanto ao número e à data das edições, das tiragens, sem falar naqueles que estão parcialmente danificados, sem capa, sem folha de rosto. Para fins de uma análise dos livros didáticos elaboramos uma classificação preliminar, de modo a agrupá-los conforme dois critérios: a série ou ano da escola elementar (primária) a que se destinavam e a disciplina ou matéria que veiculavam ou a qual se prestavam. Tal classificação tem apenas um caráter didático. Trata-se, muito mais, como diz Choppin (2002, p.14), de enquanto pesquisador, analisá-los pela “riqueza e pela multiplicidade de olhares”. Pretendemos que os livros didáticos localizados permitam traçar um panorama sobre os hábitos, valores, comportamentos e identidades sociais, descortinando elementos para uma perspectiva de construção ideológica que se vincula ao gênero. Analisamos agora um bloco de livros de leitura, denominados como série graduada, numa seleção composta por um total de 3 livros: o Segundo, Terceiro e Quarto livros da coleção “Infância” – Série Olavo Bilac, escritos por Henrique Ricchetti. A análise recai agora sobre apenas estes exemplares localizados em “sebos”, livreiros de livros usados, da coleção “Infância”, de Henrique Ricchetti, unidos da chamada Série Olavo Bilac. Segundo Abbeg (2018, p.91): “Henrique Ricchetti nasceu em 17 de abril de 1901 em Bauru, formado na Escola Normal Caetano de Campos, ocupou o cargo de Diretor do Grupo Escolar de Lençóis Paulista, inspetor de ensino na região de Bauru, posteriormente à 1930 assume o cargo de delegado de ensino na Capital.” Iniciou sua atividade no magistério estadual paulista como professor de modesta escola isolada em uma vila em São Manuel, conhecida como Aparecida da Água da Rosa. Aprendendo História: GÊNERO Página | 195 Figura 1 – Infância – 2º. Livro – Capa Fonte: acervo particular da autora. A capa colorida da série graduada “Olavo Bilac” faz menção a aprovação pela Diretoria de Ensino do Estado de São Paulo. O livro sendo aprovado pelo Estado, mesmo não garantindo sua aquisição pelo mesmo, serviu como uma espécie de selo de garantia sobre a obra, que seria comercializada nos diferentes Estados brasileiros aos quais a Companhia Editora Nacional possuía sucursais. Figura 2 – Infância – p.22 Fonte: acervo particular da autora. A presença feminina aparece na figura de uma professora defronte um quadro negro com um pedaço de giz explicando o calendário. Aprendendo História: GÊNERO Página | 196 Figura 3 – Infância – p. 24 Fonte: acervo particular da autora. Figura 4 – Infância – p. 41 Fonte: acervo particular da autora. Por sua vez, o conteúdo formativo infantil que é traduzido pelas figuras 3 e 4, que dizem respeito à formação de hábitos e conformação moral. Na capa dos três livros “Infância” a imagem representada é a mesma, alteram-se apenas as cores (fig. 1, 5 e 13). Encontramos uma menina que segura a mão de um menino, como se a irmã mais velha estivesse conduzindo ou zelando pelo irmão mais novo. Estão possivelmente uniformizados e este lembra a farda de um oficial da marinha. Os dois seguram livros no braço e estão andando, sugerindo a idéia que as crianças ao estudarem também estão em movimento, trabalhando para o crescimento do país, uma vez que nelas se depositam esperanças. No prefácio do 2º Livro encontramos o seguinte apontamento: “Este volume destina-se às classes de 2 º ano. É um livro escrito em linguagem singela, dentro dos moldes mais aconselháveis ao seu fim: a consecução da leitura corrente. Desenvolvendo, através da narrativa, do conto ou do folclore, cenas familiares e comuns à vida infantil, procuramos, sempre que possível, dar a cada entrecho uma forma leve e atraente e um fundo instrutivo, sem, entretanto, fugir à finalidade em vista. Não será difícil ao professor transformar cada assunto em um centro de interesse, desenvolvendo-o de acordo com as modernas tendências da didática. Para auxiliá-lo nessa tarefa organizamos, ao fim de cada capítulo, uma série de exercícios que, habilmente explorados, darão margem ao desdobramento de um sem número de motivos novos sobre história, geografia, lições comuns, educação moral e cívica.” (RICCHETTI, 1947, p. 13). Apesar da preocupação em informar o professor sobre o motivo de organizar este livro, não fica clara a função social da escola, ou seja, ela serve apenas para ensinar a leitura? Os tais exercícios que são propostos, nada mais são que algumas perguntas diretas, que não levam a reflexão, formar frases a partir de palavras dadas, exercícios para completar sentenças sem sentido, ordenar frases, separar sílabas, transformar palavras para o diminutivo, e uma série de outros exercícios que a princípio não tem significado algum, mesmo que a professora diga o que é para fazer. Figura 5 – Infância - 3º. Livro - Capa Fonte: acervo particular da autora. Podemos verificar que no conteúdo desta obra, as representações da professora, do aluno e da aluna mantêm o mesmo padrão já detectado noutros livros didáticos. Aprendendo História: GÊNERO Página | 197 Aprendendo História: GÊNERO Página | 198 Figura 6 – Infância – p.19 Fonte: acervo particular da autora. A figura materna presente e constante no livro de Ricchetti era responsável por lhe fornecer “maternais conselhos”; sendo o menino tratado como “herói”. Figura 7 – Infância – p.34 Fonte: acervo particular da autora. A figura 7 demonstra a repreensão de um senhor idoso a uma jovem, que teria lhe perguntado sua idade. Aprendendo História: GÊNERO Página | 199 Figura 8 – Infância – p.54 Fonte: acervo particular da autora. Figura 9 – Infância – p.76 Fonte: acervo particular da autora. Figura 10 – Infância – p.79 Fonte: acervo particular da autora. Aprendendo História: GÊNERO Página | 200 A profissionalização da mulher, digo, do magistério primário (dos anos iniciais do ensino fundamental, já aparece nas imagens e discursos de Ricchetti. Encontramos a professora “Dona Geni” tomando café, quando lhe adentram a sala de aula. As salas de aula de escolas isoladas, denominação para escolas rurais afastadas dos grandes centros urbanos os quais ensinava-se as primeiras letras (no ensino paulista a Reforma Sampaio Dória propunha que as escolas isoladas fossem ensinados apenas primeiro e segundo anos do ensino primário). Estas escolas isoladas eram regidas por um(a) professor(a), em ambientes precários, quando não, em suas próprias casas. A figura 9, na página 76, alude a “paciência e habilidade” da professora “D.Júlia” para resolver de forma “harmoniosa os desavindos”. Na figura 10, temos a professora “D. Júlia” ensinando sobre grandeza das duas cidades mais populosas do Brasil: São Paulo e Rio de Janeiro. Figura 11 – Infância – p. 107 Fonte: acervo particular da autora. As cenas familiares são uma constante nos livros de Ricchetti, todavia a mulher e a menina sempre em ambiente reservado, privado, doméstico, enquanto o homem e o menino aparecem em ambientes públicas, pátios, rios, campos. Um reflexo do que se concebe como permitido para os diferentes gêneros. Uma das poucas exceções está na figura 11, quando “Zélia” corre até a esquina para esperar seu pai. Aprendendo História: GÊNERO Página | 201 Figura 12 – Infância – p. 122 Fonte: acervo particular da autora. Os afazeres domésticos, do ambiente privado são lugar privilegiado para atuação feminina. Na figura 12, observa-se a menina que procura a mãe para costurar seu vestido rasgado. Figura 13 – Infância – 4º. Livro - Capa Fonte: acervo particular da autora. Aprendendo História: GÊNERO Página | 202 Figura 14 – Infância – p.11 Fonte: acervo particular da autora. A última imagem que ora analisamos corresponde à figura 14. Aqui vemos o mapa do Brasil sendo apontado por um senhor de óculos. O mapa representando os limites e a divisão política dos estados brasileiros. As mensagens ideológicas que se pretende veicular traduzem sentimentos de inspiração nacionalizadora, com fim integrador: “O sentimento de que a Pátria está aí, pronta, acabada em suas características, para ser amada, também é transmitido pelos textos. A mais freqüente forma de participação do povo brasileiro, na construção da Pátria, em conformidade com os textos, não vai além da ambígua expressão: ‘união entre irmãos’.” (NOSELLA, 1981, p. 100). Figura 15 – Infância – p.69 Fonte: acervo particular da autora. A figura 15, retoma a imagem da menina, agora de fronte o rádio. A menina denominada de “Cimar”, entra na sala para ouvir seu programa de rádio, notadamente uma novela; mas, não pode pois seu pai está ouvindo um noticiário que é “útil”. Desta forma, o divertimento da jovem é seu oposto. Novamente os temas a serem trabalhados se repetem: a escola, a família, o trabalho, a Pátria, Nossa Bandeira, temas relacionados ao cotidiano da cidade ou do campo, a questão da higiene corporal e dos ambientes, a alimentação, as fábulas, contos, texto sobre as virtudes, personagens da história e preceitos religiosos. Nas representações familiares, há como que dois sujeitos unidades distantes e divididos quanto a seus papeis: não se percebe uma unidade familiar, mas sim o pai ocupando um lugar definido e que não se conecta com os papéis da mãe/mulher, o mesmo acontecendo em relação ao lugar feminino que não se “comunica” com o universo masculino. Assim, nas imagens há uma separação proposta: o pai aparece em ambientes que lhes são característicos, porém só, ou em alguns casos acompanhado do filho e para a mulher o lar. Há considerações e desdobramentos oriundos dessa trajetória investigativa, das quais não foi possível tratar com profundidade, mas que, mesmo assim, pedem para ser pensadas. Por exemplo, como mais um “retalho” a ser “costurado” nesta “colcha” que trata da imagem de menina e mulher historicamente elaborada, desvendaríamos as relações entre trabalho e educação, relacionadas com as principais profissões agregadas ao sexo feminino e masculino, buscando compreender nuances culturais e ideológicas presentes na carga imagética vinculada nesse importante suporte da cultura material da escola, o livro didático. Referências Samara Elisana Nicareta - Doutora em Educação (UFSC) ABBEG, V. A. J. O.. Pro Brasília Fiant Eximia: nacionalismo e paulistanidade em livros didáticos aprovados no Estado de São Paulo (1911-1937). 189 fls. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2018. CHOPPIN, A. O historiador e o livro didático. História da Educação / ASPHE, Pelotas, Upel – Semestral, v. 06, n. 11, abril, 2002, p. 5-24. RICCHETTI, H. Infância. Segundo grau. 179 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1949. RICCHETTI, H. Infância. Terceiro grau. 19 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1951. RICCHETTI, H. Infância. Quarto grau. 17 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1951. ROSALDO, M. Z. In: LAMPHERE, L.(org). A Mulher, a Cultura a Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Aprendendo História: GÊNERO Página | 203 O CORPO FEMININO SOB OLHAR DAS PARTEIRAS, O OFÍCIO DO PARTO E OS CUIDADOS ESPECÍFICOS DE GÊNERO Sara Fernanda Zan Christian Fausto Moraes dos Santos Aprendendo História: GÊNERO Página | 204 Compreendendo que a ciência médica foi adaptando-se no decorrer da história, o presente trabalho intenciona adentrar na área da medicina popular, que auxiliava nos atendimentos e tratamentos de patologias de determinadas camadas da sociedade. Especificamente as conhecidas como “madames do parto”, essas comadres dedicavam-se aos cuidado, não somente no momento do parto, mas também no acompanhamento de mulheres no desenvolvimento e após a gestação, e nos cuidados das patologias do gênero. Isto posto, será abordado o conhecimento que estas comadres tinham a respeito do corpo feminino, e suas influências tanto da medicina européia quanto da medicina popular. O papel das parteiras nos ofícios de cura Ao longo do século XIX os ofícios da cura, ou a também conhecida como medicina popular, foi influenciada por uma onda de mudanças que começaram a emergir a partir de 1808, com a vinda da família Real Portuguesa para o Brasil. As artes médicas não permaneceram constantes durante o decorrer do século ou após esse, tendo alterações quanto aos saberes e conhecimentos que eram difundidos e conjuntamente com uma mudança no contexto social e profissional com a regulamentação desses ofícios. O que já era conhecido e transmitido na Europa começou a ser também no país, principalmente no Rio de Janeiro. Os novos conhecimentos científicos, o desenvolvimento de áreas como biologia, química, física e o maior estudo da anatomia humana tiveram impacto nos saberes da época. Nesse desenvolvimento científico, houve uma maior abertura para o estudo do corpo feminino, possibilitando a ruptura de concepções então consideradas ultrapassadas, a manutenção daquelas bem-sucedidas e a adoção de novas visões com influência da área médica, biológica e química. Os ofícios de cura incorporaram novas perspectivas em saúde, com influências da medicina acadêmica europeia. No caso específico das parteiras, e aqui em foco as parteiras diplomadas, estas foram se adaptando para o novo meio, com formação em cursos e acompanhando os novos saberes médicos. Dessa forma, métodos e conhecimentos principalmente europeus, instalaram-se no antigo modo de cuidados, ampliando as práticas terapêuticas para além do já conhecido. O trabalho das “comadres”, outra denominação para as parteiras, ia além de auxiliar no parto, ao contrário do que se pensa. Este ofício, não era somente buscado em casos de gestação. Obviamente, para essas funções havia maior procura. Entretanto, as comadres também incluíam, em sua lista de serviços prestados, o cuidado da mulher, seu acompanhamento durante e após a gestação, tratamento das patologias que acometiam exclusivamente mulheres, o cuidado do feto e até mesmo registros das que auxiliavam em abortos. As parteiras, tinham ampla atuação junto à sociedade. Por pertencerem a um grupo de traços heterogêneos, estas foram diversificando-se cada vez mais. Algumas dessas madames do parto eram formadas em cursos acadêmicos e tinham o diploma validado pela Faculdade de medicina do Rio de Janeiro, formavam o novo perfil das madames do parto. Essa nova subclasse, incluía tanto as parteiras recém-formadas quanto as estrangeiras que praticavam o ofício no país de origem, mas que haviam acabado de chegar ao Brasil. Essas comadres divulgavam seus trabalhos por meio de periódicos e manuais. Tais fontes nos dão uma base de distinção desse amplo grupo, sendo citados em anúncios as especificidades do trabalhos de cada uma, bem como suas qualificações; além de métodos comumente utilizados, estabelecendo o que pode ser visto como um padrão de cuidados dentro desse campo. Essas técnicas do ofício da parturição são fundamentais para a compreensão do contexto médico em que existiram, apresentando por meio dessas, a prática das parteiras e suas responsabilidades no cuidado das mulheres e seus filhos. Segundo a autora Maria Lúcia Mott (2005), a relação de parteira e parturiente era importante e afetiva pois causava maior segurança e confiança na profissional, e tinha grande valor atribuído. Entre instruções presentes na fonte, descreve-se a importância do cuidado com a mulher, e é evidente que mesmo para aquelas parteiras que não eram letradas ou não tinham instrução médica, a saúde da mulher era prioridade no ofício da parturição. As áreas de obstetrícia tiveram maior desenvolvimento a partir da metade do século XIX, e o ofício da parturição foi o palco de rivalidades quanto ao campo de trabalho. Tendo clara a especificidade de que, mesmo sendo áreas semelhantes, a instrução recebida pelas parteiras e os conhecimentos ensinados para os médicos em meios acadêmicos além de distintos, tinham intuitos diferentes. Em consequência, a profissão de parteira começou a ser marginalizada no decorrer do século para, posteriormente, ser substituída pela obstetrícia. Esta desvalorização das parteiras e ao mesmo tempo a valorização do médico na sociedade foi sendo feita a partir de um discurso cientificista e a consequente construção de limites para o domínio do saber e da prática. Deste modo, as parteiras continuaram a exercer seu ofício, auxiliando os partos, acompanhando as mulheres durante e após a gestação, mas contando com a presença de médicos regularizados no mesmo ambiente. Passaram então a realizar seu trabalho dentro de restrições e subordinadas à autoridade de médicos acadêmicos. O papel das madames do parto foi marcante, pois iniciou a prática de cura específica para as mulheres, antes mesmo do corpo feminino ser alvo de estudo de uma área médica específica. Os médicos buscaram monopolizar o ofício que era exercido por essas mulheres há tempos, todavia não deve-se pensar que não existiram apoio entre as duas áreas. A medicina obstetrícia e a arte da parturição auxiliaram no estudo do corpo por meio de novas abordagens, ressaltando as diferenciações de gênero. O estudo do corpo feminino foi modificando-se para identificar e tratar as patologias advindas do próprio gênero, tendo como principal motivador dessas mudanças a visão da mulher como a responsável no que acreditava ser sua função, a reprodução. Apesar de Aprendendo História: GÊNERO Página | 205 diferenças entre as profissões, a partir da construção de alas de Maternidade em Hospitais, os atendimentos prestados não eram compostos somente por médicos. Por vezes, ao achar que a experiência de parteiras diplomadas era necessária, estas eram requisitadas para o trabalho. Aprendendo História: GÊNERO Página | 206 A visão do corpo feminino Pretende-se analisar, como prenuncia o título desta pesquisa, o trabalho das parteiras, ou comadres, e seu papel no estudo do corpo da mulher. Por esse meio será brevemente descrito como era tido o funcionamento do corpo feminino, bem como as visões mantidas da teoria hipocrático-galênica no meio médico e da saúde, além da adição de novos conhecimentos. Não obstante, contextualizando como, no decorrer do século XIX, diversas mudanças no meio da saúde influenciaram diretamente nessa prática, levando a mesma a ser desvalorizada. Utilizando-se da fonte documental analisada, um manual de parto escrito em 1830 no Rio de Janeiro. O funcionamento do corpo da mulher dependia essencialmente da madre. O útero é visto como o relógio da saúde das mulheres. Segundo o que, a saúde da mulher dependia do ciclo menstrual. Assim a sua boa saúde era determinada pela regulação desses menstruos. O que é visto na fonte documental estudada, um manual de parto, é que a madre possui suas especificidades, desde antes de seu período de puberdade, após este, durante a gravidez, e após a mesma. Em diversos momentos a fisiologia feminina poderia ser alterada em caso de irregularidades, como em gestação, infertilidade, ou durante o período dos menstruos; estas eram acompanhadas pelas parteiras para que depois do parto voltassem à normalidade. Assim como, em casos de patologias, exames pelo tato eram feitos. Dependendo do diagnóstico, as indicações pretendiam tratar e auxiliar no que fosse possível para um retorno da saúde da mulher. Preconizava-se que as mulheres eram afetadas não somente pelas patologias que acometiam os homens, mas ainda tinham as patologias específicas determinadas pelo seu gênero. Considerações finais Em vista do que foi exposto, a constituição dessa área ginecológica no século XIX não restringiu-se apenas ao ambiente médico, integrando também outras classes, como a das parteiras. Analisando o contexto em que a fonte está inserida, o Brasil no século XIX, percebemos a transição e o desenvolvimento de novas práticas de cura. As inovações da medicina tornaram-se mais evidente na segunda metade do século, mas suas influências atingiram não só o meio médico legal, como as práticas que permeavam as medicinas populares. As comadres, que estavam inseridas como atuantes no cuidado da saúde feminina, foram a vanguarda em um campo de atuação que só depois especializou-se e tornou-se parte da área médica. Posto isto, vê-se as especificações do estudo e visão do corpo feminino através do saber das chamadas madames do parto e dos ofícios da parturição, que englobava saberes médicos da medicina europeia e, também, da medicina popular. E assim, observando o que era tido como saber das patologias associadas ao gênero, e como a chamada madre – o órgão reprodutor da mulher – era pela ciência da época. Referências Sara Fernanda Zan é graduanda de História na Universidade Estadual de Maringá (UEM), e desenvolve um Projeto de Iniciação Científica (PIC). Email: zansaraf@gmail.com Christian Fausto Moraes dos Santos tem graduação em História pela Universidade estadual de Maringá (UEM), mestrado em Geografia pela UEM, doutorado em Ciências da Saúde pela FIOCRUZ e pós-doutorado pela CSIC, Espanha. Atualmente é professor associado e pesquisador da Universidade Estadual de Maringá (UEM). ANDRADE LIMA, T. Humores e Odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, II (3): 44-96, Nov. 1995-Fev. 1996. CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Org.). História do Corpo: Da revolução à Grande Guerra. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro/São Paulo, Paz e Terra, 2017. MOTT, Maria Lucia. Parteiras: o outro lado da profissão. Gênero, Niterói, RJ, v.6, n.1, p. 117-140, 2 sem. 2005, p.126. SHORTER, Edward. A History of Women’s Bodies. U.S.A: Basic Books, 1982. VIEIRA, Elisabeth Meloni. A Medicalização do Corpo feminino. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002. Aprendendo História: GÊNERO Página | 207 PADRÕES: UM OLHAR EM TORNO DA HOMOGENEIZAÇÃO DA PESSOA HOMOSSEXUAL Suelem Cristina de Abreu Aprendendo História: GÊNERO Página | 208 Introdução Muito se discute sobre os padrões presentes na sociedade, um dos debates mais fomentados se refere ao padrão de comportamento heteronormativo. No entanto, o que podemos perceber é que há um padrão estipulado aos LGBTs, que é pouco menos discutido, mas que merece toda a atenção. O presente artigo pretende apresentar um panorama amplo da figura do homossexual reproduzido tanto em propagandas, quanto em novelas. A educação é uma forma de superar preconceitos e estereótipos, a proposta aqui é levar esse debate para o campo educacional para que se possa superar esse estereótipo do meio LGBT também. Feminino e masculino A diferença biológica entre macho e fêmea já caracteriza para ambos posicionamentos desde o nascimento, homens e mulheres já são direcionados a vestir, usar, ser, viver, falar, agir, de determinada forma que diz respeito a seu ‘gênero’. A partir disso as diferenças sociais e culturais já estão postas. Temos assim funções separadas para homens e para mulheres. Historicamente o homem ocupa um espaço diferente e mais amplo do que o da mulher, ele carrega a obrigação de provedor da sua família, é ele quem trabalha fora de casa para o sustento da sua família, ocupando esse espaço da rua, enquanto a mulher exerce funções no lar, o casamento e a maternidade “eram consequências naturais da vida - sendo o primeiro a sua única forma de relacionamento sexual legítimo perante a comunidade.” (JORGE, 2013/4, p. 2) Sexo biológico não diz respeito exatamente ao gênero, se diferem entre si, gênero é, propriamente, uma construção e o sexo biológico é determinante de lugar que os indivíduos ocuparão na sociedade. “Gênero (sexual): Diferenciação cultural entre fêmea e macho [...] uma estrutura cultural raquítica, mas grandemente constituída por diferenças usadas para classificar e tornar significativas as relações sociais da espécie humana... assim, os argumentos sobre o que é “essencialmente” macho ou fêmea [...] justificam muitas vezes as diferenças de gênero como “apenas naturais”, mas essa justificativa é apenas ideológica.” (A ênfase é original). (O´Sullivan, 2001, p. 117). Além de determinante do lugar que os sujeitos irão ocupar na sociedade, o gênero determina a forma de agir desses sujeitos, o comportamento é estipulado a partir de tal, o “aceitável” ou não aceitável a cada sexo é colocado para ser exigido e seguido socialmente. Como já fora citado anteriormente, gênero e as identidades sociais construídas impactam desde antes do nascimento, um exemplo disso é que um dos primeiros questionamentos feitos a uma gestante é se é menino ou menina, a partir disso desde a cor do quarto, até os brinquedos, roupinhas, e demais itens são escolhidos. Além disso, a família já cria um universo de expectativas em torno das possibilidades dispostas à criança, sendo ela menino ou menina. Segundo Iara Beleli (2007) a distinção, já na infância, entre meninas e meninos é centrada na liberdade, diz isso a partir da análise de um comercial de O.B. “Sua suposta fragilidade ou virilidade já está construída no imaginário social familiar e será levado consigo por toda vida, tendo peso imponderável em suas escolhas pessoais.” (SANTOS, 2010, p. 8) Mas com relação mais propriamente ao comportamento esperado, ele se diferencia de sociedade para sociedade e é relativamente mutável com o tempo. O contexto social afeta diretamente o comportamento esperado pelas identidades socialmente construídas. Ainda, os papeis intitulados como de masculinidade ou feminilidade variam dependendo de diferentes culturas e/ou tempo histórico. O padrão presente na publicidade A heteronormatividade é facilmente encontrada na publicidade, ela reforça a ideia de papéis socialmente definidos para homens e mulheres, além de ser um reflexo da sociedade em que está inserida é também um meio de idealização da sociedade. Os espaços de atuação e diferenciação estão nitidamente representados nas propagandas. Alguns exemplos disso: Aprendendo História: GÊNERO Página | 209 Aprendendo História: GÊNERO Página | 210 Imagem 1. Propaganda de panela feita por uma criança, do sexo feminino. Fonte: http://2.bp.blogspot.com/Vf80PwCMy2U/VRiW_w1TP1I/AAAAAAAADWM/zGVipwryqyQ/s1600/propaga nda1.jpg Imagem 2. Propaganda de cerveja que traz a figura feminina para apresentação do objeto. Fonte: https://serveja.files.wordpress.com/2008/04/bar-da-boa1.jpg Aprendendo História: GÊNERO Página | 211 Imagem 3: Sabão Omo, ontem e hoje: a representação da mulher/ mãe como a responsável direta pela limpeza/ cuidados infantis atravessa os anos no imaginário social e é reproduzida nas peças publicitárias. Fonte: Pin up, online, 2012 Podemos perceber que com relação às mulheres a ligação a tarefas domésticas é imediata, desde a infância (como podemos notar na primeira imagem) o lugar socialmente imposto a mulheres é de um futuro ligado a esses afazeres domésticos. Na segunda imagem temos a utilização das mulheres em propagandas de cerveja, que é basicamente a ligação com o consumo por parte do público masculino e a atratividade que as mulheres trazem ao produto. Na terceira e quarta imagem temos propagandas de uma marca de sabão em pó com uma diferença relativa de tempo, mas com a mesma mensagem. Aprendendo História: GÊNERO Página | 212 “O advento dos movimentos de direitos civis nas últimas décadas (...) possibilitou, entre outras coisas, o questionamento ao padrão de gênero tradicionalmente estabelecido (Canton, 2009).” (JORGE, 2013/4, p. 5) Apesar da ascensão desses movimentos os estereótipos preconceituosos de “família tradicional” continuaram a ser disseminados na mídia, o público LGBT não se sente representado nos veículos midiáticos. ‘No Brasil, um estudo da Market Analysis apontou que os homossexuais respondem por uma fatia de 15% do consumo e em sua maioria, pertencem às classes A e B.” (JORGE, 2013/4, p. 6) Podemos perceber que a inserção da pessoa homossexual é um longo processo que perpassa por inúmeras etapas até alcançar a TV aberta, as mídias alternativas (internet, redes sociais) são inicialmente o meio de colocação desses sujeitos. No entanto, vemos que inicialmente o homossexual que aparecia em programas era satirizado e utilizado para disseminar o estereótipo de homossexual afeminado unicamente, criando esse imaginário de que todo gay era incluso nesse padrão, ser gay era ser afeminado. Quem é que não se recorda de Crô, personagem de Marcelo Serrado que no ano (2018) protagonizou o filme que segue a mesma linhagem da novela, mas o personagem serve exatamente a esse padrão de homossexual reproduzido durante anos e anos na mídia. Aprendendo História: GÊNERO Página | 213 Imagem 4: (Cartaz de divulgação da comédia “Crô em família” (2018)). Fonte: https://culturaalternativa.com.br/wp-content/uploads/2018/09/croem-familia.jpg Mas em contraponto temos também o programa humorístico “Zorra Total” em sua nova versão, programa que segundo o diretor Mauricio Farias não busca se alinhar ao teor sexista, se distanciando de piadas com teor homofóbico. Em entrevista a Folha de S. Paulo ele diz “Dá pra fazer rir sacaneando o homofóbico, e não o gay. A sociedade avançou em muitas inclusões e acho covarde bater no oprimido.” Como exemplo temos no programa o personagem Hércules: Imagem 5. Hercules, personagem humorístico do programa Zorra Total, que aborda a temática heterossexual de forma irônica. Fonte: https://tse2.mm.bing.net/th?id=OIP.VGhYT5KrjXqu71ccxMBbgHaEK&pid=15.1&P=0&w=295&h=167 “[...] é impossível encontrar algum [programa humorístico] que não se baseie em escarnecer os pobres, os analfabetos, os negros, os homossexuais etc. O mecanismo parece ser o mesmo dos melhores filmes Aprendendo História: GÊNERO Página | 214 cômicos: o espectador é chamado a rir daquilo que o envergonha e que o machuca. A questão é que, nos programas da nossa TV, o espectador não ri para redimir o personagem que se debate em seu ridículo, mas para reiterar a opressão que pesa contra esse mesmo personagem. [...] É por isso que, diante da TV, ri dos negros quem não é negro, ri dos gays quem não é gay, ri dos pobres quem não é pobre (ou pensa que não é). Ri deles quem quer proclamar, às gargalhadas, que jamais será como eles. É o riso como recusa e chibatada (BUCCI, 2002).” (BAGGIO, 2009, p. 6) A reprodução problemática feita pela mídia referente aos homossexuais, por vezes, acaba por contribuir ainda mais para a construção e disseminação de estereótipos, que culminam na homofobia. A Indústria Cultural contribui para a afirmação desse preconceito já vigente na sociedade, “a alta disseminação de piadas sobre ‘bichas’, ‘veados’ ou ‘sapatonas’ (sic) por exemplo, e sua aceitação social, como atesta a presença cotidiana de personagens caricaturais em novelas e programas na TV, considerados humorísticos (VENTURI, 2008).” (BAGGIO, 2009, p. 3) Homossexualidade condicionada: Aceitação X (In) visibilidade Não é pouco comum ouvirmos frases de reprovação e de repressão direcionadas a casais homoafetivos, muito são os exemplos que poderíamos citar aqui. Alguns dos mais comuns são: “porque fazer isso publicamente?”, “Por que não deixam para se beijarem dentro de casa?”, “eu não tenho nada contra, mas precisa ficar se agarrando na rua?”, “pra que andar de mãos dadas? Ninguém precisa saber das suas preferências sexuais”. Enfim, inúmeras são as situações as quais o padrão heteronormativo quer impor aos que nele não se enquadram. Aparentemente o problema passa a ser a visualidade que se sobrepõe ao preconceito referente a orientação. Com o público masculino o que ocorre é uma reprovação que se apresenta de forma mais imediatista, passa por um repudio total se ver duas pessoas do sexo masculino se beijando. Mas se pararmos para analisar com as mulheres ocorre esse mesmo processo? De certa forma não! O que ocorre com as mulheres é uma questão de muitas vezes serem reduzidas a um fetichismo masculino, mesmo assim desde que essas atendam ao padrão esperado para ambas. “as lésbicas são permitidas como fantasia distante, em função do homem heterossexual, aquele que “pega todas”. A partir do momento em que são sujeitos de seu próprio desejo, elas são tão submetidas à discriminação social quanto os outros LGBTs , olhares de reprovação, discursos sobre como as preferências devem estar confinadas a quatro paredes e longe dos olhares das crianças.” (JORGE, 2013/4, p. 8) A indústria cultural durante anos acabou silenciando a presença dos LGBT’s da participação em propagandas, e quando o fez, fez de forma equivocada e preconceituosa. Como o mercado cultural cresce gradativamente acaba cedendo às demandas sociais (pois assim como a sociedade muda o mercado se obra a mudar), isso acaba acarretando no advento dos marginalizados nas mídias, o que aconteceu com os LGBT’s. No Brasil o que ocorre é que “A maior parte das iniciativas se concentra em veículos específicos ao público homossexual, notadamente revistas e sites na internet, que têm maior facilidade de segmentação.” (BAGGIO, 2009, p. 7) O que ocorre nas novelas é um processo de entrada de LGBT’s nesse meio, mas ainda seguindo a linha de homossexualidade condicionada, pois os casais apresentados correspondem ao padrão heteronormativo de feminilidade. Tomemos como exemplo inicial a novela “Em Família”, de Manoel Carlos, a novela foi apresentada pela rede Globo e trouxe para composição da trama um casal homossexual de duas mulheres que começam vivendo um romance proibido, pois uma das personagens era casada com um homem. Clara (Giovanna Antonelli) e Marina (Tainá Muller), protagonizaram um casal homoafetivo na novela Em família. Imagem 6. Fonte: http://3.bp.blogspot.com/RvQVVrQ_FBw/U4UbwZBv2nI/AAAAAAAAHEA/lqBM_o6vigM/s1600/emfamilia-clara-se-sente-atraida-por-marina-60554.jpg Este é um casal que certamente atende ao padrão esperado, duas mulheres que atendem ao padrão de beleza, são femininas como o padrão heteronormativo impõe e agradam protagonizando um papel de casal Aprendendo História: GÊNERO Página | 215 lésbico. E se uma delas não fosse esse padrão? Ou se ambas não fossem? Bom, certamente não teriam sido incorporadas ao elenco. Aprendendo História: GÊNERO Página | 216 Outro exemplo disso, mas um pouco mais recente é o da novela adolescente “Malhação”, que em sua edição passada teve em sua construção um casal adolescente homoafetivo. As duas jovens viveram um romance bem no estilo adolescente, mas o que não surpreende novamente é ambas estarem enquadradas nesse padrão. Vejamos: Lica (Manoela Aliperti) e Samantha (Giovanna Grigio), casal adolescente da novela Malhação. Imagem 7. Fonte: https://p2.trrsf.com/image/fget/cf/940/0/images.terra.com/2018/01/03/25 8826-beijo-de-lica-manoela-aliperti-e-saman-650x488-2.jpg Aparentemente o que nos é apresentado são tipos de casais que são socialmente aceitos, a aceitação condicionada chega a este âmbito de nos impor visualmente um padrão de aceitação construído nos moldes do padrão heterossexual de feminilidade e masculinidade. Enquanto para o casal heterossexual devem ser o oposto um do outro, nos casais homossexuais espera-se que sejam ambos iguais, se lésbicas que sejam femininas, se gays que sejam masculinos. No campo da propaganda não é diferente, apesar da inserção dos LGBT’s nas propagandas a representação feita é basicamente o que se tenta passar nas novelas, já não mais o uso do gay enquanto sujeito afeminado e propenso a chacota, mas a construção do que se espera ou do que é desejável. Na propaganda de dia dos namorados de 2015 da marca de cosmético “O Boticário” diferentes casais foram apresentados, e os casais homossexuais foram os seguintes: Imagem 8. Propaganda de O Boticário sobre o dia dos namorados. Fonte: https://i0.wp.com/www.jornalopcao.com.br/wpcontent/uploads/2015/05/gayas-ok.jpg Tanto os homens, quanto as mulheres, estão nitidamente enquadrados no padrão de aceitação apresentado aos LGBT’s. Podemos perceber que ocorre um processo de homogeneização da homossexualidade, que é o que se busca alcançar. O “padrão” aceitável para casais do mesmo sexo é que ambos continuem seguindo com o padrão imposto ao seu gênero. O distanciamento disso gera a rejeição e consequentemente o silenciamento. Não se vê diversidade dentro dos casais homossexuais apresentados midiaticamente. Os meios de veiculação servem tanto para o processo de “espelho” da sociedade, refletindo o que nela se vê, quanto para construção do que se espera ver na sociedade. Desconstruir essa homogeneização é um papel da educação A educação é o melhor meio para a desconstrução desses estereótipos, tanto com relação ao padrão heteronormativo, quanto ao padrão em torno do LGBT. Quando nos referirmos ao homossexual do sexo masculino automaticamente se liga a ideia de um homem com traços mais femininos, no entanto isso não é regra e essa é a questão que deve ser trabalhada. Aprendendo História: GÊNERO Página | 217 Aprendendo História: GÊNERO Página | 218 Conclusão Como podemos observar, os padrões são reproduzidos constantemente, não somente na esfera social cotidiana, mas nos veículos midiáticos. Não dificilmente vemos exemplos disso na TV, nas redes sociais, nos jornais. O acesso a informação esta cada vez mais fácil, no entanto muitas vezes isso se faz de forma falha e equivocada, a educação é o meio mais viável de romper com esses preconceitos, é o meio que pode levar a reflexão e ao pensamento crítico das coisas. Temáticas do cotidiano sendo introduzidas na educação podem resultar em mudanças significativas, ponderam as reproduções automáticas de estereótipos. Referências Suelem Cristina de Abreu graduanda do 4° ano do curso do História da Unespar, campus União da Vitória. BAGGIO, Adriana Tulio. A temática homossexual na publicidade: representação e estereótipos. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba, PR – 4 a 7 de setembro de 2009. BELELI, Iara. Corpo e identidade na propaganda. Estudos Feministas, Florianópolis, 15(1): 280, janeiro-abril/2007. Pg. 193 – 215. BUCCI, Eugênio. Um humor casseta, sem dúvida. Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 set. 2002. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/tvfolha/tv29092002.htm>. Acesso em: mai. 2003. JORGE, Sheila Costa. A Publicidade das Imagens Cristalizadas: Uma análise das representações imagéticas do gênero. Revista Anagrama: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação Ano 7 - Edição 2 – Dezembro de 2013 - Fevereiro de 2014 O´SULLIVAN, Tim, et al. Conceitos-chave em estudos de comunicação e cultura. Piracicaba: UNIMEP, 2001. SANTOS, Juliana Anacleto dos. GÊNERO NA TEORIA SOCIAL: Papéis, interações e instituições. Disponível em: www.ufjf.br/virtu/files/2010/05/artigo4a5.pdf VENTURI, Gustavo. Intolerância à diversidade sexual. Revista Teoria e Debate, São Paulo, n. 78, julho/agosto 2008. Disponível em: <http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=4017>. Acesso em: junho 2009. PARTEIRAS E BENZEDEIRAS DO VALE DO IVAÍ PARANAENSE: A HISTÓRIA QUE NÃO CONSTA NOS LIVROS DE HISTÓRIA Vânia Inácio Costa Gomes O Paraná, conta com uma historiografia de regiões colonizadas por companhias de terras, grupos de imigrantes, tropeiros, bandeirantes paulistas e mineradores. Grupos e pessoas que vieram para a região em busca de riquezas e de terras produtivas. Boa parte dessas histórias está registrada em livros, pesquisas, dados geopolíticos e sites oficiais de cidades e regiões diversas do estado. Ocorre que a região conhecida como Vale do Ivaí, espaço que abrange as cidades que se formaram na bacia hidrográfica do rio Ivaí, delimitada entre os rios Corumbataí e Ivaí, oficialmente colonizada pela Companhia Territorial Ubá, sofreu uma lacuna documental que por muitos anos deixou a região esquecida na história do estado. Há relatos de muitas pesquisas e investigações, porém com poucos registros documentados que possam confirmar a história dos povos que viviam no local antes, durante e após a colonização pela então conhecida Companhia Ubá. Segundo Mota e Novak (2008), essa região já vem sendo habitada por pelo menos 8.000 anos, contando com a presença de povos caçadores e coletores ceramistas que habitavam as terras da região e que deram as primeiras contribuições para o povoamento e construção da história do local. Para os autores, ao longo dos tempos, a região foi sendo povoada por grupos indígenas que passaram a desenvolver uma prática de vida baseada na produção agrícola de subsistência e na produção artesanal. Entre os grupos indígenas que habitaram a região, estão presentes os Kaingang, os Xokleng, os Guarani e os Xetá. “Assim, podemos afirmar que os territórios, hoje denominados Paraná, e mais precisamente a bacia do Vale do Ivaí, vêm sendo continuamente habitados por diferentes populações humanas há cerca de 8.000 AP de acordo com os vestígios materiais mais antigos encontrados pelos arqueólogos. Entretanto, se considerarmos a cronologia dos territórios vizinhos que foram ocupados em épocas anteriores, é provável que ainda possam ser obtidas datas que poderão atestar a presença humana em períodos mais recuados, podendo alcançar até 11 a 12.000 mil AP. As populações que viveram no Paraná entre 12.000 e 3.000 anos AP são denominadas pela arqueologia de caçadores e coletores pré-cerâmicos. Eles foram substituídos pelas populações indígenas agricultoras ceramistas – Kaingang, Xokleng, Guarani e Xetá” [MOTA E NOVAK, 2008]. Tempos depois, a região contou ainda com a presença dos jesuítas que acabaram formando reduções ao longo do rio Ivaí com o intuito de catequizar os indígenas e expandir o cristianismo, e em seguida, contou-se com a presença dos bandeirantes, que vieram para a região com a intenção de capturar indígenas para serem escravizados e em busca de terras para exploração de suas riquezas. Aprendendo História: GÊNERO Página | 219 Aprendendo História: GÊNERO Página | 220 Apesar das pesquisas comprovarem a existência de pessoas no local já há milhares de anos, historicamente construiu-se uma teoria de que a região se apresentasse como um vazio demográfico até o início do século XX. Essa teoria é contestada por Mota (1994), que apresenta informações da existência de um grande índice populacional na região. Para o autor, a existência do rio Ivaí contribuiu com o povoamento da região, já que tanto os caçadores e coletores, quanto os indígenas Xetá e Kaingang, se fixaram na região, provavelmente porque o rio Ivaí fornecia água para a sobrevivência dos grupos, derrubando a tese de vazio demográfico. “Na maioria dos discursos oficiais, em livros didáticos, nas obras sobre o pioneirismo no norte do Estado, nos trabalhos acadêmicos que tratam da ocupação da região a partir da década de 30 deste século, é comum encontrar-se a afirmação de que essas terras eram “devolutas”, “selvagens”, “desabitadas”, “estavam abandonadas”, “virgens”, “selváticas”, “sertão bravio”. As terras do setentrião, do oeste e sudeste paranaense, para o colonizador dos anos 20 aos anos 50 deste século são desabitadas, vazias, prontas para serem ocupadas e colonizadas. É o mito do vazio demográfico. Ao lado dessa falácia, a classe dominante apaga um dos sujeitos da história: os povos indígenas”. [MOTA, 1994, p.04] Segundo Quiezi (2016), a partir de 1940, muitos posseiros, que obtinham junto ao Estado um protocolo de posse, chegavam, demarcavam uma área e se declaravam donos de tal área. Mas em 1946, os irmãos Barbosa, ganharam a questão judicial e imediatamente se mobilizaram para evitar novas invasões, coibindo a entrada de novos posseiros através da ação de jagunços e soldados. Os posseiros, reprimidos, fugiam, outros eram deportados para o outro lado do rio, enquanto que os jagunços, após quatro ou cinco anos de serviço, tendo legalizado a situação das terras, foram beneficiados pela Companhia com um grande lote de terras cada um. Em pouco tempo, a Sociedade Territorial Ubá, concluiu a demarcação das terras, loteando o território, o qual foi sendo vendido ou doado, de acordo com os interesses da Companhia. Após conflitos e muitas demandas, as terras foram sendo divididas e as cidades desenvolvendo-se de acordo com a chegada de grupos de pessoas de várias partes do país e imigrantes, de diferentes regiões do mundo, em busca de terra e trabalho. Com a chegada do café na região, o povoamento pela população branca foi mais intenso, pois esse tipo de cultura exige uma grande demanda de mão de obra. Algumas famílias que possuíam condições financeiras para adquirir um pedaço de terra, compravam pequenos ou grandes lotes e se instalavam aos redores das cidades e vilarejos, desbravando as matas e iniciando o cultivo agrícola. Outros grupos, que não possuíam condições de adquirir um pedaço de terra, deslocaram-se para a região com o intuito de trabalhar de empregados nas propriedades. Assim, a mão de obra necessitada nas propriedades cafeeiras trouxe para a região diferentes grupos de pessoas, que ao se instalarem nas fazendas, foram formando colônias, e com o passar dos anos, deram origem às comunidades rurais e urbanas das cidades que se desenvolviam na região. De acordo com Boing (2007), a região, hoje reconhecida geograficamente como Vale do Ivaí, localizada na parte central do Paraná, tornou-se ponto de encontro das frentes de colonização do estado, fazendo com que o local fosse habitado por povos de diferentes regiões do país ou de outras nações, formando uma cultura bastante heterogênea e, ao mesmo tempo, construindo uma população com ausência de uma identidade específica. É justamente a partir do período de encontro de diferentes grupos e da busca pela terra com o objetivo de produzir café, que homens e mulheres se deslocaram para a região formando as cidades de Ivaiporã, Jardim Alegre, Lunardelli e Lidianópolis. Por muito tempo, Ivaiporã foi a sede desses vilarejos, mas com o passar dos anos foram conquistando independência econômica, social e posteriormente política, tornando-se municípios. O Vale do Ivaí, que abrigou tantos homens e mulheres durante a segunda metade do século XX, tornou-se um lugar de memória, com alguns registros fixados pela história oral, mas com poucos registros escritos dos grupos populacionais no referido período. A região, que se expandiu economicamente após 1950, não conta com muitas fontes historiográficas que possam afirmar a história das pessoas que viveram e produziram nos espaços ocupados. Nesse espaço de memória é que se encontram muitas mulheres, reconhecidas pelos habitantes da região como parteiras e benzedeiras, que durante o período entre 1960 a 1990, prestaram uma imensa contribuição para a região, por seu conhecimento empírico da medicina natural, já que o acesso a hospitais e médicos era algo ainda muito distante da realidade daquelas famílias. Estudar a história do Vale do Ivaí, sem considerar a importância e o papel desempenhado por essas mulheres pode ser entendido como uma falta de reconhecimento, já que muitas ainda vivem nas cidades que compõem o território referido e, são na prática, respeitadas pelos seus moradores. O que se encontra na região no período, em grande parte, são memórias, que segundo Le Goff (1984), é algo muito importante, pois elas registram o fato acontecido no momento vivido. A lembrança por sua vez, recorda o fato, ou a interpretação dele. Nesse contexto, existe o que o autor apresenta como o espaço da memória, que precisa ser pensada na temporalidade em construção. A presente pesquisa se pauta na narrativa oral, buscando o reconhecimento para a história de mulheres – parteiras e benzedeira - que viveram na região do Vale do Ivaí, no período compreendido entre 1960 a 1990, ou que ainda residem em alguns dos municípios da região e que não têm suas histórias registradas nos documentos oficiais, apesar de até os dias atuais, Aprendendo História: GÊNERO Página | 221 muitas ainda prestarem serviços de conforto espiritual para muitas pessoas e famílias das cidades envolvidas. Aprendendo História: GÊNERO Página | 222 Ainda de acordo com Le Goff (1984), a História Oral traz consigo a subjetividade, uma questão muito importante, por considerar a expressão de sentimentos, de informações não ditas e as relações entre os seres humanos. No caso das parteiras e benzedeiras do Vale do Ivaí, a subjetividade e a expressão de sentimentos são marcas muito fortes nos relatos das memórias, bem como para expressar alguns esquecimentos, causados pelo tempo ou pelas marcas da vida. Durante a década de 1960, devido ao fluxo migratório nas fazendas de café, o Vale do Ivaí foi sendo povoado intensamente, tendo todos os seus espaços ocupados, com inúmeras famílias desprovidas de bens econômicos, sem posses. A maioria delas vinha em busca de trabalho com pouca estrutura para sobreviver em um meio que não contava com hospitais, médicos, escolas e outras prestações de serviços necessárias ao desenvolvimento de uma vida digna e saudável. Na falta de estrutura política, econômica e social desse espaço é que surgem as parteiras e benzedeiras. Mulheres comuns, geralmente muito pobres e de pouca instrução, mas que conseguiram pela dedicação, considerada uma missão, salvar vidas de muitas outras mulheres e crianças. Apesar de se ter uma narrativa das mulheres benzedeiras e parteiras muito ligadas ao cristianismo, ao ouvir seus relatos sobre os benzimentos, é possível perceber a influência das mulheres indígenas com suas práticas naturais de cura, já que é comum o uso de ervas e garrafadas pelas benzedeiras da região. O ato de benzer na região do Vale do Ivaí está diretamente ligado à história de vida das pessoas que habitaram a região no período em que a pesquisa se desenvolve. Esse fato pode ser compreendido pela ausência de médicos e hospitais e pela falta de condições financeiras das famílias, fazendo com que se buscasse na prática empírica das benzeduras a cura para as doenças surgidas no dia-a-dia. A necessidade, porém, esteve sempre ligada à crença das pessoas, que embora, a maioria da população fosse católica e a Igreja, regra geral, condenasse a prática de benzer, a fé nas benzeduras e nas benzedeiras sempre foi muito forte. As mulheres que desenvolveram o dom de benzer, em grande parte, também acabaram por se tornarem parteiras e, devido a tal fato, passaram a exercer um papel muito importante nas famílias e nos vilarejos em geral. Segundo relatos orais, as parteiras tinham a função de cuidar das mulheres, durante toda a gravidez, acompanhando a gestante, após o parto, ainda por um período de quarenta dias, denominado quarentena, em que as mulheres recebiam atendimento especial das parteiras, por meio de banhos com ervas, chás e alguns cuidados específicos com a nova mãe e sua criança. É possível perceber ainda, pelos relatos orais, que além das mulheres, os recém-nascidos também eram acompanhados pelas parteiras, que com a prática da benzedura como dom, cuidavam dos bebês até que tivessem condições de serem atendidos apenas pelas mães. Apesar da importância do trabalho das parteiras e benzedeiras na região do Vale do Ivaí, em um período de saúde pública precária para atendimento da mulher e da primeira infância, as benzedeiras eram muito perseguidas pela Igreja Católica, por serem ligadas a práticas religiosas condenas por essa instituição, como as práticas indígenas e africanas. Assim, muitas mulheres que tinham o dom de benzer e curar através de sua prática de rezar ou utilizar ervas, acabavam por praticar de forma discreta ou camuflada o exercício a que se destinava como missão recebida por Deus. De acordo com as narrativas das mulheres benzedeiras, a própria medicina condenava o trabalho por elas praticado, por não encontrar em seus feitos, qualquer ligação com a ciência. Assim, com medo de serem perseguidas por charlatanismo, muitas optavam pela discrição na prática diária de benzer e curar pessoas. Ocorre que, de acordo com as estatísticas do Ministério da Saúde (2019), a maioria dos partos realizados na região nas décadas de 1960 a 1990 era chamado de partos naturais, realizado em casa e de forma menos intensa nos hospitais, o que comprova que as mulheres não tinham a prática de buscar por médicos ou hospitais durante a gestação. Parte desse distanciamento com a medicina científica ocorria devido à falta de condições financeiras da família, porém é possível perceber, através dos relatos orais, que a cultura das mulheres da época não era de participar a gravidez a médicos. E as parteiras que, mesmo sendo mulheres muito simples e sem instrução, apresentavam muita experiência com os cuidados com a saúde da mulher, substituindo os médicos e hospitais. Portanto, não se pode deixar de compreender as consequências da ausência de políticas públicas voltadas para a saúde da mulher e dos recém-nascidos durante as últimas décadas do século XX na região onde a pesquisa se desenvolve. Por mais experiência e cuidados que as parteiras tivessem com a gravidez e nascimento das crianças, o índice de crianças e mulheres que morriam no parto era muito grande, pela falta de estrutura para atendimento de casos mais complicados e que exigiam maior atenção. Segundo dados do Ministério da Saúde (2019), era grande o índice de crianças nascidas mortas na região no período compreendido entre 1979 e 1990. Aprendendo História: GÊNERO Página | 223 ANO Aprendendo História: GÊNERO Página | 224 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 IVAIPORÃ – OBITÓS DE JARDIM ALEGRE - OBITÓS DE RECÉM- NASCIDOS RECÉM- NASCIDOS Parto Natural Parto por ÓBITOS CESÁRIO Cesária 70 12 33 03 96 21 44 08 68 17 46 05 72 14 31 6 75 05 26 04 48 13 19 08 34 17 15 11 40 08 15 07 34 08 12 08 37 09 05 04 20 08 16 07 25 06 04 05 Tabela 1– Dados estatísticos sobre a mortalidade de recém-nascidos no Vale do Ivaí – período: 1979 -1990. Fonte: Ministério da Saúde (2019). Organizado por: GOMES, Vânia I. C. (Pesquisa em andamento). Entende-se ainda que os serviços prestados pelas benzedeiras não eram apenas voltados para mulheres e crianças. As pessoas tinham como prática buscar nas benzedeiras soluções para os problemas diários, relacionados à saúde e questões de ordem familiar e financeira. Assim, as mulheres que tinham como dom a prática de benzer, exerceram neste período um papel muito importante na organização das comunidades e estiveram presentes na vida das famílias, que até os dias atuais ainda procuram as rezas e benzimentos para garantir uma vida segura. Atualmente, as cidades de Lidianópolis, Jardim Alegre, Lunardelli e Ivaiporã contam com serviço de atendimento à saúde pública, através de postos de saúde e hospitais conveniados ao SUS (Sistema Único de Saúde), que dão assistência aos habitantes da região. Essa estrutura acabou por fazer com que as mulheres gestantes passassem a buscar os hospitais e a medicina científica para o acompanhamento na gravidez e no parto, o que fez com que os serviços das parteiras deixassem de ser requisitados, porém, de acordo com os relatos orais, as benzedeiras ainda continuam exercendo um papel muito importante na vida das pessoas, que por uma questão de sincretismo religioso e fé nas práticas comuns, ainda cultivam o hábito de benzer-se para ter uma vida mais tranquila e curar-se dos males físicos e espirituais. As benzedeiras são mulheres que permanecem à margem da historiografia, não são reconhecidas pela ciência, não exercem funções de destaque nas comunidades e cidades do Vale do Ivaí, mas estão presentes na vida das pessoas através das rezas e benzimentos; dos chás e das ervas que oferecem para as pessoas; e das chamadas “garrafadas”, que ainda são muito comuns entre as benzedeiras. Segundo Pollak (1989), o depoimento das mulheres pertence a outra temporalidade, a outra realidade. Esta é mais uma marca que chama a atenção para a pesquisa em desenvolvimento sobre as mulheres do Vale do Ivaí, no Paraná. É preciso, atenção para os relatos dessas mulheres, para compreender em que eles diferem dos registros feitos pelos homens da época e que ficaram registados na história. De acordo com as narrativas orais é possível perceber nas parteiras e benzedeiras a representatividade de mulheres fortes, espiritualizadas, seguras de suas missões, enquanto pessoas de dom recebido de Deus, para curar e fazer o bem acima de tudo. São figuras importantes na construção da sociedade do Vale do Ivaí, pois foram elas as responsáveis pela garantia da cura e da sobrevivência das pessoas mais comuns e necessitadas da região e seus feitos estão presentes na vida prática das pessoas que vivem nas cidades e municípios da região, ou simplesmente fazem parte das memórias que elas próprias trazem consigo, ou nas memórias das pessoas que por elas foram atendidas ao longo de todos os anos corridos. Para Le Goff (1984), é muito importante compreender as circunstâncias em que vive o depoente e os acessos que ele tem hoje para fazer a leitura do passado. Com base em Le Goff, é possível fazer uma reflexão sobre a vida das mulheres envolvidas na pesquisa, os acessos que elas têm hoje aos meios de informações, compreendendo o quanto isso influencia na reflexão que elas próprias fazem, no presente, da vida que levaram e das relações que desenvolveram no espaço em que viveram. Referências Vânia Inácio Costa Gomes é Professora de História da rede Estadual do Paraná e aluna regular do Programa de Pós-graduação Mestranda em História (UEM/PR). Graduada em Geografia (UEPG/PR), Filosofia (UEL/PR), Orientada no Mestrado (UEM) pela Professora Drª. Ivana Guilherme Simili (UEM/PR). BOING, Lucio. Vale do Ivaí: conflitos e ocupação das terras regionais. Produção Didática – Projeto de Desenvolvimento da Educação – PDE. UEL, Londrina, 2007 LE GOOF. Jacques. Memória-História. Enciclopédia Nacional, Rio de Janeiro, vol.1,1984, p. 11-47. Enaudi. Imprensa MINISTÉRIO DA SAÚDE. Óbitos Infantis do Paraná – 1979-1990. Disponível em http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/inf09pr.def. Acessado em 11/02/2019. Acessado em 12/02/2019. MOTA, Lucio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a histórias épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924). Maringá: EDUEM, 1994, 275 p. Aprendendo História: GÊNERO Página | 225 MOTA, Lucio Tadeu. Os Kaingang do Vale do Ivaí: histórias e relações interculturais/ Lucio Tadeu Mota, Éder da Silva Novak. –Maringá: EDUEM, 2008, 190 p. Aprendendo História: GÊNERO Página | 226 POLLAK. Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n.3, 1989, p. 3-15. QUIEZI, Simone Aparecida. A Luta no Bendengó do Ubá. Marcas e Memórias do Movimento de (RE) Ocupação do Território do Século XX. Projeto de Intervenção Pedagógica na Escola – Projeto de Desenvolvimento da Educação – PDE. UEL, Londrina, 2016. A HISTÓRIA DAS MULHERES E DO MOVIMENTO FEMINISTA E SUA ABORDAGEM NO ENSINO DE HISTÓRIA Vitória Diniz de Souza Introdução Para aqueles que acreditavam na morte do feminismo no início dos anos 2000, não esperavam pela sua popularidade em 2019. A discussão sobre o seu fim, pois as mulheres já tinham conquistado sua sonhada “igualdade” se fazia presente nas revistas e programas de televisão da época. Porém, quase vinte anos se passaram e o movimento feminista está cada vez mais inserido em diferentes mídias, gerando discussões e polêmicas na internet, o meio de comunicação mais utilizado atualmente. Já que essa temática se faz tão presente no dia a dia dos jovens, é interessante traze-la para a escola e nela discutir de maneira crítica com os alunos. Nas aulas de História é possível problematiza-la e historicizá-la de diferentes maneiras e construir um conhecimento sobre o assunto com a turma. As mudanças epistemológicas ocorridas na historiografia no século passado, nos desafia a conceber o conhecimento histórico de outras formas que aquela produzida pela historiografia tradicional. A emergência do movimento da Escola dos Annales e da Nova História nos proporcionaram novas reflexões, que contribuíram definitivamente para o surgimento de novas temáticas e aportes teórico-metodológicos. Com a História Social e a história vista de baixo, as temáticas sobre mulheres, operários, prisioneiros e camponeses ganharam seu espaço. A história das mulheres é uma área de pesquisa já consolidada no meio acadêmico, entretanto, pouco explorada em sala de aula nas escolas do país, apesar da ação de educadoras(es) em prol do ensino dessa temática nas aulas de história. Sua trajetória se entrelaça com a do feminismo, que no auge dos anos 1960 suas militantes defendiam a necessidade de se combater a exclusão das mulheres na história, promovendo novos olhares sobre a historiografia e sua epistemologia. Docentes mobilizaram-se propondo a instauração de cursos, nas universidades, dedicados aos estudos das mulheres. Multiplicaram-se as pesquisas, tornando-se a história das mulheres, dessa forma, um campo relativamente reconhecido no âmbito institucional e internacional, como afirmam as historiadoras Rachel Soihet e Joana Maria Pedro [2007]. Com as redes sociais, a militância feminista e suas pautas estão se disseminando com mais agilidade. Seu ativismo vem ganhando adeptas em todo o mundo e levando várias mulheres as ruas em diferentes partes do mundo. Assédio sexual, feminicídio, machismo e desigualdade de gênero são termos que estão nas rodas de conversas, nos grupos do facebook e whatsapp, incentivando as mulheres a denunciarem a violência que sofrem diariamente na sociedade. Por isso, a relevância do tema e a sua importância em ser discutido com as(os) alunas(os) nas escolas. As possibilidades para a abordagem da história das mulheres e do movimento Aprendendo História: GÊNERO Página | 227 feminista no ensino de história são muitas, nesse texto, iremos abordar algumas delas. Aprendendo História: GÊNERO Página | 228 A História das Mulheres e sua relação com os Estudos de Gênero Gênero é uma categoria de análise desenvolvida por pesquisadoras feministas para desnaturalizar as diferenças sexuais atribuídas entre homens e mulheres. Para as historiadoras Rachel Soihet e Joana Maria Pedro [2007], o artigo da historiadora Joan Scott é um marco desses estudos no Brasil, quando foi publicado em 1990 na ‘Revista Educação e Realidade’, intitulado: ‘Gênero: uma categoria útil de análise histórica’, e que tem sido, certamente, um dos mais citados, nas discussões que pretendem abordar a categoria “gênero” nas análises da pesquisa histórica. Desde então, historiadoras(es) brasileiras(os) têm desenvolvido pesquisas com esse enfoque, abrangendo a discussão para questões de identidade, raça, sexualidade, etnia, regionalidade, entre outros. Resumindo: “”gênero” dá ênfase ao caráter fundamentalmente social, cultural, das distinções baseadas no sexo, afastando o fantasma da naturalização; dá precisão à ideia de assimetria e de hierarquia nas relações entre homens e mulheres, incorporando a dimensão das relações de poder [SOIHET; PEDRO, 2007, p. 288] ”. A propósito, é importante percebemos que ao longo do tempo foram estabelecidos espaços sociais diferenciados para homens e mulheres, por isso, o conceito de gênero é fundamental para compreendermos o caráter cultural dessas distinções, entre ideias sobre o feminino e o masculino. Tendo as discriminações de gênero assumido diferentes formas, variando com o momento histórico e o lugar, sendo historicamente justificada mediante a atribuição de qualidades e traços de temperamento diferentes a homens e mulheres, que são utilizados para delimitar seus espaços de atuação. Dessa maneira, a categoria gênero nos fornece uma gama de possíveis análises sobre as diferentes experiências dos sujeitos, que variam de acordo com as classificações sobre o que é feminino e o que é masculino. A antropóloga Adriana Piscitelli [2009, p. 143] defende que é preciso pensar “como as construções de masculinidade e feminilidade são criadas na articulação com outras diferenças [...] e como essas noções se embaralham e misturam no corpo de todas as pessoas”. Gênero é uma categoria de análise e também de transformação, permitindo o diálogo para outras possibilidades e questionamentos, a pedagoga Guacira Lopes Louro defende que: “é preciso recolocar o debate no campo do social, pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos. As justificativas para as desigualdades precisariam ser buscadas não nas diferenças biológicas (se é que mesmo essas podem ser compreendidas fora de sua constituição social), mas sim nos arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representação [LOURO, 2003, p. 22] “. Em diversas pesquisas sobre a história das mulheres se utiliza a categoria de gênero para desnaturalizar e desconstruir as representações criadas sobre as mulheres e as relações de poder que as permeiam. Como o processo de invisibilidade sofrido pelas mulheres na construção da memória coletiva e os poucos vestígios materiais deixados por elas ao longo do tempo. Michelle Perrot, em seu livro ‘Excluídos da História’ [2006], afirma que inicialmente as historiadoras feministas procuravam visibilizar as mulheres na história, produzindo pesquisas com intuito de preencher essas lacunas, sendo que, em pesquisas mais recentes contribui também para a reavaliação do poder das mulheres, buscando superar o discurso miserabilista da opressão, de subverter o ponto de vista da dominação. A história das mulheres e das relações de gênero possibilita desconstruir essa aparente naturalidade da diferença sexual e da submissão das mulheres à soberania masculina. Sendo, dessa maneira, possível romper com a dicotomia homem/mulher, forte/fraco, emoção/razão que permeiam o senso comum. Rachel Soihet e Joana Maria Pedro [2007, p. 290-291] ao fazerem considerações sobre o artigo de Joan Scott: “Finaliza argumentando que um conceito relativizado de gênero, como um saber historicamente específico sobre a diferença sexual, permite, às feministas, forjar um instrumento analítico que possibilita gerar um conhecimento novo sobre as mulheres e sobre a diferença sexual, e inspirar desafios críticos às políticas da história ou de qualquer outra disciplina. A história feminista deixa, então, de ser apenas uma tentativa de corrigir ou suplementar um registro incompleto do passado, e se torna um modo de compreender criticamente como a história opera enquanto lugar de produção do saber de gênero “. Como abordar a história do movimento feminista em sala de aula Primeiramente, antes de planejar uma aula sobre o tema, é preciso definir o que é o feminismo, levando em consideração que não existe um grupo feminista, mas grupos feministas. Pensar o feminismo como objeto de análise requer defini-lo como um movimento político diversificado e nada homogêneo. Por isso, se utiliza o termo “feminismos” para denominar correntes de pensamento diversificadas que, no geral, procuram construir uma sociedade mais justa para as mulheres, rompendo com essa estrutura de poder desigual entre as pessoas. Buscar origens para o feminismo talvez não seja a melhor abordagem nas aulas de história, porque não é possível datar com precisão o início do feminismo, tendo em vista que é um movimento, além de que, a história do feminismo não é linear, com começo, meio e fim. O que percebemos é que existem diferentes correntes de pensamento feministas desde o século XIX quando o termo passa a ser utilizado para designar essas mulheres, e que a partir desse período mudanças significativas ocorreram na sociedade ocidental relacionadas as práticas feministas. Portanto, ao analisar o feminismo é preciso aborda-lo em consonância com o período histórico em que está inserido, o espaço e as relações de poder Aprendendo História: GÊNERO Página | 229 então instituídas. Levando em consideração os sujeitos envolvidos, quais eram as seus ideais e suas práticas, seu lugar social e quais eram as suas estratégias para subverter a ordem estabelecida. Procurando conhecer também as dificuldades então enfrentadas, provocando os alunos a problematizarem sobre. Aprendendo História: GÊNERO Página | 230 Na História do Brasil é possível encontrarmos a formação de um pensamento feminista ainda no século XIX. Muitas vezes de maneira isolada algumas mulheres reivindicavam alguns direitos, como é o exemplo, da escritora e educadora abolicionista Nísia Floresta do estado do Rio Grande do Norte, que em 1832 publica o livro ‘Direito das mulheres e injustiça dos homens’, uma adaptação da obra da inglesa Mary Wollstonecraft de 1792. A partir da década de 1870 encontramos um aumento significativo de periódicos dirigidos por mulheres e defendendo o direito das mulheres, fazendo críticas a sua situação na sociedade. É muito importante que essas discussões sejam feitas nas aulas de história e que ao estudarmos o século XIX tratemos de discutir sobre os movimentos sociais e políticos, como o feminista e o abolicionista. O final do século XIX e início do século XX é um período da efervescência de diferentes correntes de pensamento que precisam ser abordadas. No que tange ao feminismo há um livro muito bom que pode auxiliar professoras(es) em sala de aula, por tratar de um vasto acervo de fontes que podem ser trabalhadas, intitulado ‘Imprensa feminina e feminista no Brasil. Século XIX’ da pesquisadora Constância Lima Duarte. Ele é um dicionário ilustrado que organiza em ordem alfabética e cronológica os diferentes periódicos dedicados ao público feminino da época. Ele pode ajudar as(os) educadoras(es) a escolher fontes e aborda-las em sala de aula. Em sua maioria, são periódicos digitalizados, possíveis de serem encontrados em sites, como na ‘Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional’ que possui um acervo de vários periódicos que circularam em diferentes lugares do país. Ao que se sabe hoje, foi apenas no início do século XX que começaram a se formar grupos e associações feministas no Brasil, como é o caso da “Federação Brasileira para o Progresso Feminino” (FBPF) criada por Betha Lutz, um dos nomes mais expressivos do movimento nesse período. Ela deixou um acervo de fontes para pesquisadores, além de ter escrito em diversos periódicos da época. Outro nome bem expressivo é o de Maria Lacerda de Moura que divergia constantemente com Bertha Lutz sobre como o feminismo deveria agir na luta por direitos. Ela também publicou na imprensa da época, tendo se filiado ao movimento anarquista e, posteriormente, ao Partido Comunista. Entre as vantagens de se estudar sobre essas duas mulheres é que há um número expressivo de trabalhos e livros sobre a sua atuação. O direito ao voto é considerado um marco das conquistas feministas nesse período, porém, suas reivindicações não se reduzirão a ele. Muitas lutavam pelo direito a educação de qualidade para a população feminina, para trabalharem sem que precisassem da autorização do marido, por direitos civis e jurídicos, condições dignas de trabalho, licença do trabalho após o parto e creches, para citar algumas delas. Diversas associações de espalharam pelo Brasil, muitas dessas mulheres publicavam na imprensa e eram professoras. Além disso, algumas se candidataram a cargos políticos e conseguiram se eleger em seus estados. Infelizmente, após o golpe de Getúlio Vargas em 1937 e a instauração de uma ditadura, o movimento perdeu fôlego. Desde então, o movimento feminista só iria gerar grande repercussão novamente nas décadas de 1960 e 1970, em plena Ditadura Civil-Militar. Entretanto, bem diferente do que vimos nas décadas de 1920 e 1930. Questões acerca da sexualidade e controle reprodutivo ganharam destaque. Muitas dessas mulheres questionaram o status quo e as relações de gênero estabelecidas no período. Atualmente é possível encontrar nos livros didáticos menções ao movimento feminista, em capítulos acerca da Primeira República e da Ditadura CivilMilitar, porém, seria interessante aprofundar essas discussões e não apenas fazer um apanhado geral sobre o que foi o período. Por exemplo, é preciso instigar os alunos, provocando-os a questionar a realidade e fazer uma “ponte” entre passado e presente. Principalmente, refletirem sobre a pertinências das questões levantadas pelo movimento feminista, suas contradições e as mudanças ocorridas por sua causa. Por essa razão, o trabalho com fontes históricas em sala de aula possibilita uma interação e autonomia dos estudantes na construção do conhecimento histórico escolar, intermediado pelo professor. Como, por exemplo, cartas, diários, jornais, revistas e livros. Alguns são possíveis de serem encontrados em acervos digitalizados na internet, outros em arquivos e instituições públicas. Há menções e reproduções desses documentos em artigos, monografias, dissertações e teses, a partir de pesquisas sobre o tema que podem ser encontrados em acervos das bibliotecas das universidades e no seu repositório digital. Dessa maneira, podemos também trazer parte da produção acadêmica para as escolas e instigar os estudantes acerca deles. Não é preciso trabalhar textos completos, mas trechos e discutir com os alunos em sala. Além disso, há livros de historiadoras que tratam desse assunto, acessíveis ao público geral, como, por exemplo, ‘Uma História do Feminismo no Brasil’ de Celí Regina Pinto [2003], ‘Feminismos e antifeminismos’ da Rachel Soihet [2013] e a coleção ‘Nova História das Mulheres no Brasil’ organizada por Carla Bassanezi Pinsky e Joana Maria Pedro [2012]. As possibilidades para a abordagem desse assunto são variadas, podendo o(a) professor(a) aproveitar para introduzir essas discussões em temas tradicionais do ensino de história: Segundo Reinado, Primeira República, Ditadura Civil-Militar, Nova República. Outra alternativa é quebrar com essa ideia de linearidade, fazendo uma aula temática. Além disso, utilizar as próprias dúvidas dos alunos em relação ao feminismo para elaborar uma aula pode ser um caminho interessante, a partir de desafios e dúvidas do presente e ponderando sobre as relações passado-presente. Em meio a Aprendendo História: GÊNERO Página | 231 isso, por que não pesquisar sobre mulheres feministas e organizações locais, sejam as mais antigas, como as atuais. Pode-se então formar grupos e coordenar os alunos em pesquisas sobre o feminismo a partir de diferentes recortes e depois eles apresentarem os resultados para a turma. Aprendendo História: GÊNERO Página | 232 As discussões sobre as relações de gênero podem fornecer alguns aportes metodológicos de análise interessantes para trazer a sala de aula. Assim, refletir sobre o caráter cultural e social das distinções sexuais e como elas foram representadas ao longo do tempo, aparentando uma ideia de naturalidade. Sendo que, elas foram utilizadas por muito tempo para deslegitimar o movimento feminista, acusando as mulheres de estarem agindo contra a sua natureza ao enfrentar as injustiças sofridas e reclamarem direitos. Conclusão O objetivo desse texto é fazer algumas ponderações sobre as possibilidades de se abordar a história do feminismo nas aulas de história. Sem dúvida, os movimentos feministas estão em evidência atualmente, porém, ainda perduram muitos estigmas e preconceitos acerca deles. Infelizmente, vivemos em uma sociedade que a taxa de feminicídios é muito alta, mulheres são violentadas por seus companheiros e mortas diariamente. Casos de assédio sexual e estupros estão sendo denunciados, revelando a situação de medo e acuamento sofridos por muitas mulheres subjugadas por homens poderosos. Ao tratar da história do feminismo é preciso considerar a relação dessas mulheres com o seu contexto histórico, tendo elas assumido diferentes perspectivas. Esse movimento não é homogêneo, sendo muitas vezes contraditório. Como é o caso das mulheres negras que tiveram suas reivindicações negligenciadas por mulheres brancas. Sendo que, existem relações de poder também entre mulheres, gerando conflitos entre elas. O feminismo atualmente se expandiu em diferentes correntes de pensamento, a mais aceita é a do feminismo interseccional, que propõe estabelecer as relações do machismo com outras formas de opressão. É importante também discutir sobre o antifeminismo e como ele dificulta que muitas reivindicações feministas sejam compreendidas pelas pessoas. Ele se expressa por meio de piadas, chacotas e ameaças para caracterizar as feministas enquanto mulheres desequilibradas e loucas, gerando mais preconceitos. Muitas mulheres são constrangidas ao se nomearem enquanto feministas, provocando o receio também de outras mulheres que desconhecem o movimento. O antifeminismo esteve presente de diversas maneiras ao longo do tempo, sendo importante estuda-lo também. Para finalizar, é importante salientar a dificuldade enfrentada por educadores para discutir assuntos relacionadas ao feminismo, sexualidade e gênero, pois estão sendo acusados de doutrinação de gênero, marxista, esquerdista, inimigo da família. Vivemos um período de fortalecimento da extrema direita no mundo e no Brasil, movimentos como o “Escola SemPartido” têm buscado silenciar professores. Por isso, é preciso ter cuidado e cautela ao abordar esses assuntos em sala de aula, apesar disso, toda essa situação só demonstra a importância de se discutir essas questões na escola e resistir a essa onda conservadora que tem se espalhado. Referências Vitória Diniz de Souza formada em História pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) DUARTE, C. L. Imprensa feminina e feminista no Brasil: Século XIX: Dicionário Ilustrado. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. LOURO, G. L. Gênero, Sexualidade e Educação: Uma perspectiva pósestruturalista. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2003. PEDRO, J. M.; SOIHET, R. A emergência da pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, nº 54, 2007, p. 281-300. PERROT, M. Os Excluídos da História: Operários, mulheres e prisioneiros. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. PINSKY, C. B.; PEDRO, J. M. (Orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2012. PINTO, C. R. J. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003. PISCITELLI, A. Gênero: a história de um conceito. In: ALMEIDA, H. B. de; SZWAKO, J. (orgs.). Diferenças, Igualdade. São Paulo: Berlendis e Vertecchia, 2009, pp. 116-148. SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. 20(2), Jul./Dez., 1990, pp. 71-99. SOIHET, R. Feminismos e antifeminismos: mulheres e suas lutas pela conquista da cidadania plena. Rio de Janeiro: 7letras, 2013. Aprendendo História: GÊNERO Página | 233 A FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO PRIMÁRIO Wanessa Carla Rodrigues Cardoso Aprendendo História: GÊNERO Página | 234 A vinda da Família Real em 1908, inicia o processo de institucionalização e da profissionalização do trabalho docente no Brasil: cria-se a Lei Geral do Ensino 1827, que permite a mulher o direito de instrução com conteúdo diferenciado dos homens, intensifica-se a laicização e a normatização do ensino e estipula-se a criação de Escolas Normais, décadas de 30 e 40 do XIX, voltadas a formação adequada de professores para atuação no ensino primário nas províncias. Segundo Vilela (2010), a primeira Escola Normal foi criada em Niterói em 1830 tinha como critério de admissão ter “boa morigeração” (idoneidade moral), ter idade superior a 18 anos, saber ler escrever. A idoneidade moral era o requisito de maior importância pois esse professor seria um agente da manutenção da ordem e da moralidade. As Escolas Normais tinham como missão “elevar o nível intelectual e moral da população, unificando padrões culturais e de convivência social”. (VILELA. 2010, p.104). Averiguar sobre a conduta moral dos candidatos ao magistério, continuou sendo um requisito que permaneceu desde as primeiras regulações de 1827, até meados do XIX. Segundo Schueler (2005) esse quesito permanece, pois, “a moralidade indispensável, ao exercício da docência, e à consolidação de determinadas representações sobre o professor, que se esperava engendrar”. (SCHUELER, 2005). As Escolas Normais pensadas inicialmente por homens e para homens, não previam a presença de alunas. Somente a da Bahia (1836) e São Paulo (1846) mencionava-se um curso para mulheres que na verdade não chegou a ser implementado. Apenas nas décadas de 60 e 70 com sua recriação ou refundação dessas instituições as mulheres começaram a ganhar espaço no magistério. Com resistência inúmeras restrições o público feminino passou a ser atendido em prédios separados ou em dias e horários diferenciados dos homens. Com a necessidade de tutores e professores do mesmo sexo que seus alunos, a formação de professores do sexo feminino passa a ser uma necessidade. O currículo de estudo e formação feminina era diferenciado do masculino, elas teriam que se dedicar à costura, ao bordado e à cozinha, enquanto eles dedicavam-se a estudos específicos como o de geometria. As professoras eram isentas de ensinar geometria, mas essa matéria era critério para estabelecer níveis de salário, portanto, reforçava-se com isso a diferença salarial entre professores e professoras. As mulheres, desta forma, passam a ter o direito à instrução, porém essa mesma instrução visibilizava ainda mais as diferenciações e discriminaçao de gênero. Para além dessas questões expostas anteriormente, no processo de ingresso ao curso, as mulheres eram ainda obrigadas, mais que os homens, a atestarem sua ética e bons costumes.Tratava-se de uma supervalorização da moral, que possuía o objetivo de tornar o ensino das mulheres voltado não à instrução, entendida como formação intelectual, mas como uma tentativa adicional de disciplinar sua conduta. Neste sentido, segundo Catani: “A ênfase do ensino feminino [era] nas boas maneiras, nas técnicas, na aceitação da vigilância, na aparência, na formação moralista. Coisa adequada quando o ensino fundamental se destinava às classes populares, pois o que estava em jogo não era difundir as perigosas luzes do saber, mas disciplinar as condutas e refrear a curiosidade.” (CANTANI, 1997, p. 28). Os discursos que predominavam eram de que, pela inferioridade feminina, uma instituição para mulheres seria um desperdício de verbas públicas desnecessária, manter uma instituição de mulheres não tinha sentido e nem utilidade e permitir que as mulheres tivessem acesso as mesmas escolas que os homens era algo que atemorizava a sociedade, pois iam contra os princípios de moralidade. Somente em 1880, quando os alunos em sua grande maioria eram do sexo feminino, houve a fusão das duas escolas, ressaltando-se com saídas diferenciadas para homens e mulheres e vigilância atenta. Responsável em transmitir esses ensinamentos morais aos seus alunos, a professora, deveria provar a todo momento que estava em condições de assumir esse papel, assim sendo, o menor desvio de conduta colocava sua credibilidade e seu papel de missionária da pátria em xeque. Lúcia Muller nos aponta os ensinamentos que deveriam ser direcionados pela professora primária, como “vestal da pátria”, e transmitidos ao alunado e futuro cidadão desse país. “O bom comportamento na casa e na rua, respeito e consideração aos outros, principalmente aos mais graduados; amor ao trabalho; amor ao dever, o amor aos pais; o sentimento de caridade; a aversão a mentira; a aversão aos jogos; a aversão aos vícios e da bebida e do fumo etc.” (MULLER, 1999, p.111). Portanto, o controle sobre seus hábitos, possíveis vícios, sexualidade, forma de vestir, sobre pratica docente, as dificuldades de ascender na profissão, os homens normalmente conseguiam mais prestígio na careira docente, especialmente por serem considerados melhores lideres, exercendo cargos de direção e mando, são consequências desse processo, e da construção de uma concepção inferiorizada do feminino. Segundo Villela (2010) o discurso da moralidade vai assumindo significado mais complexo ao se cruzar com os discursos higienistas e positivistas, além disso passa a constituir-se uma opção ante a profissões menos prestigiadas como costureiras e parteiras ou mesmo ante um casamento forçado, proporcionava uma certa liberdade e a possibilidade de instrução, neste sentido uma alternativa possível em um determinado contexto histórico. Aprendendo História: GÊNERO Página | 235 Aprendendo História: GÊNERO Página | 236 A feminização precoce do magistério tem sido responsabilizada pelo desprestígio social e pelos baixos salários da profissão, o que fez com que os homens abandonassem o magistério se deslocando para profissões de melhor prestigio e status social (TANURI, 2000). Entretanto é necessário considerar, a ampliação do espaço urbano e o aumento populacional nas primeiras décadas do século XX, que ampliou as diversas formas de atuação no mundo do trabalho; A necessidade imperiosa da república em afirmação e ampliação do ensino primário e em consequência aumentar a quantidade de professoras aptas atuar por um baixo salário; A construção de uma concepção da profissão docente associada a características femininas e a consequente relação entre as funções maternas de gerar e cuidar das crianças e a inata tarefa de educar; O magistério passa a ser o único caminho possível as mulheres, sendo uma extensão das tarefas do lar; E que a precarização e os baixos salários sempre estiveram presentes desde o início da constituição da profissão docente no Brasil. Mesmo com as modificações operadas e a feminização do magistério sendo um fato já no final do XIX, a condução da educação não era exercida pelas mulheres, a estrutura da mesma, os cargos administrativos e de liderança, de regulação e controle, como de inspetor, eram geridos por homens estando ainda a mulher relegada a um plano secundário, perpetuando velhas práticas de submissão próprios de uma sociedade patriarcal, assim continuavam a regulação e o controle sobre a prática profissional das professoras e de sua conduta moral. Referências Wanessa Cardoso é Professora Ad4- SEDUC/PA; Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPA (PPGED) ; Doutoranda no programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Pará (PPHIST). CATANI, D. et al. História, Memória e Autobiografia da Pesquisa Educacional e na Formação. In: CATANI, D. et al. (org.) Docência, memória e gênero: estudos sobre formação. São Paulo: Escrituras Editora, 1997 MULLER, Lúcia. As construtoras da nação: professoras primárias na Primeira República. Niterói, Intertexto, 1999. SCHUELER, Alessandra Frota De. De mestres-escolas a professores públicos: histórias de formação de professores na Corte Imperial. Educação Porto Alegre – RS, ano XXVIII, n. 2 (56), p. 333 – 351, Maio/Ago. 2005. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/421 TANURI, L. M. História da formação de professores.Revista Brasileira de Educação. Mai/Jun/Jul/Ago, 2000, nº 14. Disponível em: www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE14/RBDE14_06_LEONOR_MARIA_TA NURI.pdf. VILLELA.Heloisa de O.S. O Mestre Escola e a Professora. In: 500 Anos de Educação no Brasil/org: Eliane Teixeira, Luciano Filho, Cynthia Veiga-4 edBelo Horizonte: Autêntica, 2010. Aprendendo História: GÊNERO Página | 237 Aprendendo História: GÊNERO Página | 238