Do ceticismo aos extremos:
Cultura intelectual brasileira nos escritos de Tristão de Athayde
(1916-1928)
Tese apresentada ao programa de
Pós-Graduação em História da
Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal
de Minas Gerais, como requisito
parcial para a obtenção do título
de Doutor em História.
Linha de pesquisa: História e Culturas
Políticas
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Eliana Regina
de Freitas Dutra.
Thiago Lenine Tito Tolentino
Novembro 2016
1
À minha Mãe em silêncio a encarar o extremo.
2
907.2
T649d
2016
Tolentino, Thiago Lenine Tito
Do ceticismo aos extremos [manuscrito] : cultura
intelectual brasileira nos escritos de Tristão de Athayde
(1916-1928) / Thiago Lenine Tito Tolentino. - 2016.
671 f.
Orientadora: Eliana Regina de Freitas Dutra.
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Inclui bibliografia
1.História – Teses. 2. Cultura – Teses. 3. Intelectuais –
Brasil – Teses. 4.Modernismo - Teses. I.Dutra, Eliana Regina
de Freitas . II.Universidade Federal de Minas Gerais.
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.
3
4
AGRADECIMENTOS
A muitos sou grato pela feitura deste trabalho. Minha orientadora, Eliana Regina de
Freitas Dutra, que há anos me convidou para participar do grupo Coleção Brasiliana: Escritos
e Leituras da Nação quando eu ainda estava na graduação. Sem dúvida, a Brasiliana foi
fundamental na minha formação como pesquisador e historiador. Sou grato a todos os
professores, pesquisadores, alunos, convidados e colegas com os quais convivi por tanto tempo.
Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG)
pela bolsa de doutorado que financiou este trabalho. Também agradeço à CAPES pela bolsa
sanduíche que me permitiu ampliar significativamente os horizontes teóricos e documentais
desta pesquisa. Na França, fui recebido pelo professor historiador Jean-Yves Mollier da
Université de Versailles Saint - Quentin - En - Yvelines (UVSQ) a quem sou muito grato pelos
debates e orientações em torno da história intelectual francesa e da história dos impressos.
Agradeço aos Departamentos de História, Letras e Filosofia da UFMG, docentes,
discentes e funcionários, pelos anos de aprendizado constante e pela experiência única em
vivenciar um momento áureo da Universidade brasileira pública, gratuita e de alto rendimento
que parece agora entrar num período obscuro e decadente.
Agradeço aos membros do Projeto República: Núcleo de Documentação, Pesquisa e
Memória coordenado pela professora Dr.ª Heloísa Maria Murgel Starling. No República
aprendi muito sobre pesquisa e, principalmente, acerca da articulação entre conhecimento
historiográfico e sua tradução para linguagens que ultrapassam e muito o texto escrito. Aí fiz
amigos e criei laços que estão para além da Academia.
Sou especialmente grato a uma série de pessoas que viveram comigo o longo processo
que foi a feitura dessa tese que, mesmo em seus momentos finais, teve de lidar com as tragédias
que o destino guarda em cada esquina. À Raissa Brescia dos Reis, agradeço os debates, o apoio
e compreensão irrestritos. À Aline Magalhães Pinto, amiga de longa data que muito contribuiu
com esse trabalho. Aos amigos Raul Lanari, Rafael Cruz, Wilkie Buzatti, Pauliane Braga,
Marcela Lima, Bruno Viveiros, Alda Batista, Augusto Borges, Valdeci Cunha, Rafael e Gabriel
Amato, Igor Barbosa, Guilherme Melo, Taciana Garrido, Gabriel Nascimento, Carol Rossetti,
Thiago Prates, Ana Toledo, Cléber Cabral, Ramon Ramalho, Paulo Rocha, Lucas Matozinhos,
Douglas de Freitas, Mariana Silveira, Juliana Rezende, Suelen Maria, Flora Cândido, Filipe
Serra, Márcio Rodrigues, Leonardo Miranda, Cristiane Viana, Valéria Augusti...
Agradeço muito à minha família, especialmente à minha mãe, Laraene Alves
Tolentino, certamente a pessoa que mais encareceu o valor desta tese. Agradeço ao meu pai,
Eclison Tito Silva, e aos meus irmãos Marcos e Eclison Júnior.
5
Resumo
Esta tese aponta para um processo geral pelo qual a cultura
intelectual brasileira teria passado entre as décadas de 1910 e 1930.
Especialmente, ressalta-se a ascensão de perspectivas contrárias aos
princípios da Constituição republicana de 1891 que passa a ser vista
como ultrapassada e decadente, notadamente após a Primeira Guerra
Mundial, a Revolução Russa e o advento do fascismo italiano. Neste
sentido, a trajetória intelectual e biográfica do crítico literário Tristão
de Athayde (Alceu Amoroso Lima) é bastante expressiva. Nele
revela-se tal processo geral em variadas esferas que compõem a
complexidade da cultura intelectual brasileira: os debates culturais,
as avaliações acerca do noticiário internacional, as análises políticas,
as reflexões críticas sobre identidade nacional e a cisão de um país
dividido entre sertão e litoral, as disputas em torno da arte moderna
brasileira, as discussões sobre o papel da religião no interior da
sociedade, os embates sobre os direitos e as questões de gênero, as
reflexões acerca do melhor regime político para o Brasil etc. “Do
ceticismo aos extremos” revela como muitos desses tópicos
deixaram de ser tomados segundo perspectivas plurais e
relativamente democráticas em função de visadas totalizantes em
que o horizonte revolucionário e a utilização da violência para a
consecução dos objetivos políticos tornaram-se uma verdade quase
banal.
Abstract
The purpose of this study is to reveal a general process by which the
“Brazilian intellectual culture” have passed between the 1910s and
1930s. In particular, it highlights the rising prospects against the
principles of the Republican Constitution of 1891 that is seen as
outdated after the First World War, the Russian Revolution and the rise
of Italian fascism. In this sense, the intellectual and biographical
trajectory of the literary critic Tristão de Athayde (Alceu Amoroso
Lima) is quite significant. Through his periodical work, it’s possible to
see the different aspects of this major process: cultural debates,
evaluations about international news, political analysis, critical
reflection on national identity and about the peculiar condition of a
country divided between hinterland and coast, disputes around the
Brazilian modern art, discussions about the role of religion in society,
conflicts about gender issues and women rights, the discussions about
the best political system for Brazil etc. "From skepticism to extremes"
reveals how each one of these topics stopped to embrace plurals views
and relatively democratic prospects, making the turning point to a
revolutionary horizon in which the use of violence to achieve political
goals became an almost banal truth.
6
Algumas Especificações
Optou-se na citação dos artigos de Tristão de Athayde em utilizar as referências originais e
completas.
As referências bibliográficas serão feitas de forma completa na primeira aparição e depois
em forma resumida.
Referências idênticas (quase a totalidade do caso dos artigos de jornal) serão notificadas uma
vez por lauda, salvo quando intercaladas por outras referências.
As passagens de textos em língua estrangeira foram traduzidas pelo autor desta tese, salvo
quando expressa menção contrária.
7
Sumário
Introdução .............................................................................................................................. 9
Primeira Parte - PRELIMINARES DE UM TRAJETO
De Alceu a Tristão e Vice-Versa............................................................................................ 15
A crítica, a crítica literária e a cultura intelectual brasileira ................................................... 31
Uma República Cética? ........................................................................................................ 48
Três tempos em três contos ................................................................................................... 85
Segunda Parte - O CRÍTICO E OS SUPORTES DA CRÍTICA
A “invenção” de São Paulo ................................................................................................... 99
O Lançamento de O Jornal ................................................................................................. 109
O crítico expressionista ...................................................................................................... 119
Terceira Parte - DÚVIDA
Contra a “literatura”: Sertão ............................................................................................... 158
Contra a “literatura”: Litoral ............................................................................................... 195
Clássicos, românticos: modernos ........................................................................................ 249
Intermezzo: O Espetáculo da coluna da angústia e da esperança ......................................... 333
Quarta Parte - ANGÚSTIA
Política e Letras I ............................................................................................................... 354
Política e Letras II .............................................................................................................. 411
Entre civilizações: América, Europa e África
na cultura intelectual brasileira dos anos 1920. ................................................................... 510
Quinta Parte - DECISÃO
A criança, o louco e o santo ................................................................................................ 580
Conclusão .......................................................................................................................... 622
Referências bibliográficas. ................................................................................................. 628
8
Introdução
A cultura intelectual brasileira vivenciou, ao longo da década de 1920, uma transição
caracterizada pelo abandono de perspectivas liberais e democráticas em função de
posicionamentos simpáticos a radicalismos políticos à direita e à esquerda. A produção do
crítico literário Tristão de Athayde constitui-se como um rico referencial a partir do qual tornase possível contemplar tal processo, mapeando-se as diversas questões, angústias, dilemas e
decisões que o constituíram. Tristão de Athayde foi uma das figuras mais expressivas da
dinâmica cultural brasileira neste período histórico. Tocando questões estéticas, notadamente
em torno do modernismo brasileiro, e políticas, especialmente acerca das crises do sistema
republicano brasileiro no período, o crítico pode ser visto como um ponto nodal no interior da
cultura intelectual brasileira, sobretudo por ter associado a tais perspectivas intelectuais a sua
própria trajetória pessoal e pública. No decorrer da década de 1920, ele viveu um conflito
intenso acerca de sua independência, ceticismo e liberalismo, confrontados aos movimentos
que, à época, cada vez mais, reclamavam o engajamento, o dogmatismo e soluções autoritárias
para as questões sociais e políticas. Esta passagem do ceticismo - representado por figuras como
Anatole France, Eça de Queirós e Machado de Assis - às posições extremas identificadas com
o fascismo, o comunismo e o catolicismo ultramontano - será uma experiência compartilhada
por vários intelectuais brasileiros neste período1.
Alceu Amoroso Lima, que neste trabalho é abordado quando era mais conhecido como
Tristão de Athayde, possui uma presença marcante e longa no cenário intelectual, cultural e
político brasileiro. Tendo vivido quase noventa anos, ele viu desde a eclosão da Primeira Guerra
Mundial, quando estava na França, até os movimentos contra a ditadura civil-militar brasileira
instaurada em 1964. Sua produção intelectual, iniciada “oficialmente” aos vinte e três anos, em
1916, soma dezenas de volumes, além de centenas de artigos publicados em jornais e revistas.
Uma produção que nunca se ateve a apenas um campo disciplinar. Em livro, publicou estudos
nas áreas de literatura, política, filosofia, religião, psicologia e sociologia, tendo, ainda, lançado
volumes de entrevistas e memórias2.
A abordagem de sua obra completa, assim como de toda a sua trajetória intelectual,
conforma-se como um desafio ao historiador da cultura e do pensamento político brasileiro. Tal
1
Sobre este aspecto, ver: CÂNDIDO, Antônio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 33-88; BUENO,
Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: EdUSP; Campinas: Editora Unicamp, 2006, p. 103-159.
2
A enumeração de suas obras completas pode ser consultada em: RODRIGUES, Leandro Garcia. Alceu Amoroso
Lima. Cultura, Religião e Vida Literária. São Paulo: EdUSP, 2012, p. 212-216.
9
desafio é, aliás, comumente reiterado pelos estudiosos de sua produção3. Nós compartilhamos
dessa perspectiva ao mesmo tempo em que nos distanciamos dela, pois não é nossa intenção
contemplar toda a trajetória intelectual de Tristão de Athayde, seja numa tentativa de abordar o
conjunto de sua produção bibliográfica, seja no interesse de confeccionar a sua biografia. A
questão que norteia nossa pesquisa procura compreender algumas das características e dos
processos vividos pela cultura intelectual brasileira na década de 1920 seguindo a trajetória de
um personagem específico sem se limitar a ele.
No interior da historiografia, a figura de Tristão de Athayde é tema de pesquisas que
abordam mais detidamente a década de 1930. Quando, aliás, ele é muito mais Alceu Amoroso
Lima, isto é, o líder católico proeminente, diretor do Centro Dom Vital, da revista A Ordem,
coordenador da Liga Eleitoral Católica, simpatizante do integralismo e contundente adversário
dos intelectuais de esquerda e dos comunistas. Sobre este período, a bibliografia historiográfica
é bem mais significativa4. A distinção entre as duas figuras, Tristão e Alceu, não é meramente
uma questão de assinatura. Ela marca disposições intelectuais distintas observáveis nas palavras
de Jackson de Figueiredo:
Tudo o mais não quero propriamente discutir. Já lhe disse que não me interessa. O
que quis reafirmar é meu horror à literatura neste como em outros casos, reafirmar
que só a amizade me leva a discutir-lhe o papel, a ação de crítico. É porque Tristão
é Alceu que Tristão me interessa5.
Na transição de Tristão a Alceu, mais do que uma conversão, trata-se da formação do herdeiro
político e ideológico de Jackson. Trata-se, para o criador da revista A Ordem (1921) e fundador
do Centro Dom Vital (1922), de se abandonar a “vaidade” acerca de uma “liberdade de pensar”
preocupada em atingir o “pensado por mim mesmo”, em nome de uma “desliteralização” que
realce o valor na “ordem e a beleza do passado”6. O próprio Alceu dirá, trinta anos após sua
conversão, que, ao abraçar o catolicismo, pensara em abandonar o pseudônimo de vez7.
3
Cf. RODRIGUES, L G. Alceu Amoroso Lima. Cultura, Religião e Vida Literária. São Paulo: EdUSP, 2012, p. 19.
ARDUINI, Guilherme Ramalho. Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de
organização social. (1928-1945). Campinas, SP: [s. n.], 2009. Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de
Campinas; BEIRED, José Luís Bendicho. Sob o signo da nova ordem: intelectuais autoritários no Brasil e na
Argentina. São Paulo: Loyola, 1999; BRANDÃO, Berenice Cavalcante. O movimento católico leigo no Brasil (as
relações entre Igreja e Estado: 1930-1937). [Dissertação de Mestrado]. UFF: Niterói, 1975; FARIAS, Damião
Duque. Em defesa da Ordem: aspectos da práxis conservadora católica no meio operário em São Paulo (19301945). São Paulo: USP/Hucitec, 1998. MONTEIRO, Norma Gouveia. Alceu Amoroso Lima: ideia, vontade, ação
da intelectualidade católica no Brasil. [dissertação de mestrado] Rio de Janeiro: PUC-RJ, 1991; RODRIGUES,
Cândido Moreira. Alceu Amoroso Lima: matrizes e posições de um intelectual católico militante em perspectiva
histórica (1928-1946). [Tese de Doutoramento] Assis: UNESP, 2006. RODRIGUES, Cândido Moreira. A Ordem:
Uma revista de intelectuais católicos 1934-1945. Belo Horizonte: Autêntica/FAPESP, 2005. ROMANO, Roberto.
Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979. SILVA, Valéria Jacó Da. Sociabilidade intelectual católica
na correspondência de Alceu Amoroso Lima (1928-1945). [Dissertação de Mestrado] Assis: UNESP, 2004.
5
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência: Harmonia dos Contrastes. Tomo I. Rio de Janeiro: ABL,
1991, p. 56.
6
Cf. FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 56-61.
7
LIMA, Alceu Amoroso Lima. Meio século de presença literária: 1919-1969. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969,
p. XV.
4
10
O interesse pela figura de Alceu, portanto, obteve maior destaque na produção
historiográfica. A única obra produzida por um historiador que se assemelha, mas não se
confunde, a uma biografia, pois procura acompanhar “a trajetória do intelectual católico”8,
ignora, de modo até surpreendente, os anos que vão de 1893, nascimento de Alceu, a 1928, ano
de sua conversão. O autor visa abordar Alceu Amoroso Lima como uma “figura referencial do
laicato brasileiro do século XX” e destaca que o “catolicismo de Alceu confere um colorido
especial à sua vida e obra – da conversão em fins dos anos 1920, até sua morte, no limiar dos
noventa anos, da década de 1980”9. Não há dúvida, portanto, que é o Alceu converso o que mais
interessou à historiografia. Afinal, ele torna-se então uma importante liderança política,
militando pelo catolicismo nas instituições acima citadas, tendo sido, além disso, desde 1935,
membro do Conselho Nacional de Educação, cargo que ocupou por décadas, e, em 1937, Reitor
da Universidade do Distrito Federal. No ano de 1933, recusou a candidatura ao Senado pela
Legião do Trabalho do Estado do Ceará. Recusara também o convite para ocupar a Chefia da
Casa Civil em 1935 para substituir o amigo Ronald de Carvalho que falecera naquele ano. Em
1938, recusara a pasta de Ministro do Trabalho10.
O conceito de cultura intelectual brasileira cumpre papel essencial na teorização que
caracteriza o empreendimento historiográfico por nós levado a cabo. Visto como uma categoria
de entendimento histórico fundamentalmente agregadora, o conceito opera no sentido de tornar
mais clara ao leitor a dinâmica dos significados, valores, ideias, interpretações, imagens etc.
que circulavam num campo simbólico em que os jornais ocupavam um lugar central. Pensado
a partir do período descrito, ou seja, os anos 1920 no Brasil, o conceito de cultura intelectual
pretende afastar-se de noções como a de “pensamento social brasileiro”, história das ideias,
história da literatura brasileira etc. Busca-se, também, distanciar-se de termos e conceitos mais
ou menos definidos segundo perspectivas por demais disciplinarizadas e, não raro, infensa às
“contaminações” de produções alheias a tais campos de saber, não obstante tais produções
poderem manter entre si relações diretas (sociais, simbólicas, políticas, culturais) com os eixos
privilegiados. Trata-se, portanto, de um conceito que opera como uma ferramenta
historiográfica, que toma a reflexão histórica como marco indagador e que visa contemplar tal
especificidade mobilizando diversas temáticas e produções que compõem a cultura intelectual.
Para tanto, levamos a cabo a formação de uma gama variada de fontes que nos
municiaram na feitura da tese. Primeiramente, fez-se um levantamento exaustivo dos artigos
8
COSTA, Marcelo Thimóteo. Um itinerário no Século. Mudança, disciplina e ação em Alceu Amoroso Lima. Rio
de Janeiro: PucRio; São Paulo: Loyola, 2006, p. 19.
9
COSTA, M T. Um itinerário no Século, p. 19.
10
Cf. REIS, Vera Lúcia dos. O perfeito escriba. Política e Letras na obra de Alceu Amoroso Lima. São Paulo:
Annablume, 1998, p. 94.
11
lançados originalmente pelo autor nas páginas da imprensa periódica à época. Ao mesmo
tempo, procurou-se organizar uma série de manifestações simbólicas da imprensa e das edições
nacionais e internacionais, que, em alguma medida, ajudavam a inserir os trabalhos e a trajetória
de Tristão de Athayde no interior da dinâmica dos debates levados a cabo na cultura intelectual
brasileira. Tal preparação à análise é fundamental à compreensão dos processos pelos quais o
crítico agiu, participou e interagiu no contexto político e cultural do período.
A tese é dividida em cinco partes, cada uma com seus tópicos internos. A primeira parte
pode ser vista como a estrutura que sustenta as principais teses que irão se desenvolver ao longo
do trabalho. Propõe-se uma revisão bibliográfica acerca da trajetória de Alceu Amoroso Lima
a partir de seu pseudônimo Tristão de Athayde. Além disso, reflete-se sobre a crítica literária e
sua relação com a formulação do conceito de cultura intelectual brasileira. A partir de tais
reflexões, uma abordagem da Primeira República brasileira sob o horizonte do ceticismo é
apresentada e, na verdade, será retomada recorrentemente. Por fim, esboça-se uma síntese da
trajetória de Tristão de Athayde entre 1916 e 1928 segundo os contos por ele publicados e nunca
analisados por nenhum de seus estudiosos.
A segunda parte trata do início da trajetória como escritor público do personagem por
nós abordado situando-a no interior de contextos específicos da cultura intelectual brasileira no
fim dos anos 1910. Primeiramente, quando ele se lança na Revista do Brasil e, posteriormente,
quando torna-se o crítico literário do periódico O Jornal que teve grande importância no cenário
da imprensa nacional, mas cujos trabalhos a seu respeito são praticamente inexistentes. Assim,
ao tratarmos do O Jornal que, aliás, foi o pedra fundamental do império midiático que viria a
ser os Diários Associados de Assis Chateaubriand, inserimos a crítica literária em seu contexto
de edição, qual seja, seguindo a dinâmica de um periódico de grande circulação que reunia
grande parte da produção da cultura intelectual. Neste contexto é que abordamos a
especificidade teórica da crítica literária desenvolvida por Tristão de Athayde em torno da por
ele nomeada “crítica expressionista”.
A terceira parte dá início as três disposições que verificamos na abordagem dos
processos que marcaram a cultura intelectual brasileira na década de 1920: dúvida, angústia e
decisão. Inscrita sob o signo da dúvida, esta parte relata as questões que marcaram o indeciso
nacionalismo brasileiro do período posterior à Grande Guerra. Mobiliza-se a divisão entre
sertão e litoral, com o bovarismo dos agentes culturais denunciado pelo nacionalismo
heterogêneo do pós-guerra, mas também com a emergência dos movimentos que pretendiam
“modernizar” a cultura intelectual. É um tempo em que a verificação da velhice da República
segundo sua Constituição de 1891 começa a ser denunciada sem que, porém, desponte ainda na
hegemonia da cultura intelectual soluções que a contestem de maneira estrutural e radical. O
12
ceticismo permanece como disposição geral, mas apresenta já suas insuficiências frente às
demandas políticas e culturais. A “Coluna Prestes” e, mais ainda, a figura de Luís Carlos Prestes
aparece como um ícone sintético de tal transição geral que será desenvolvida por toda a década
de 1920.
A quarta parte traz consigo o sentimento da angústia. Trata-se do período em que os
“futuristas” do modernismo entram na disputa pelo nacionalismo corrente na cultura intelectual.
Angústia de uma República que, além das críticas radicais ao seu descompasso com a realidade
nacional, começa a ser vista como ultrapassada frente aos avanços do fascismo e do comunismo
que parecem irresistíveis e implacáveis, implicando numa decisão que, apesar de necessária,
não parece clara. A democracia liberal é apreciada segundo suas limitações de representação e
incapacidade de contenção da questão social, que era como se chamava os conflitos entre capital
e trabalho. A República federativa torna-se incompatível com as demandas de sínteses nacionais
que compreendam o país segundo um caráter nacional que determine sua identidade. Os
programas de reformas e reestruturação constitucionais reproduzem-se incessantemente. Tais
sínteses entram em conflito entre si segundo perspectivas díspares, não raro, apoiadas em
retratos, ícones, símbolos e mitos ressignificados. O debate estético torna-se disputa pela síntese
a ser aplicada, os conflitos políticos reconhecem como legítimo e/ou inevitável o horizonte
revolucionário. Tempo angustiante de inquietude. O vitalismo parece superar o racionalismo.
Valoriza-se a vontade, o ímpeto, a ação que comprometem a racionalidade de um ceticismo frio
e reticente.
A quinta parte vista sob o signo da decisão é a menor de todas, justamente por significar
o começo de um novo processo. Tristão de Athayde teria se relacionado com cada um desses
tempos-sensíveis. Cético, angustiado e, ao fim, decidido pelo catolicismo ultramontano radical
e atuante, ele assume, tanto em sua trajetória quanto em seus escritos, um caráter exemplar de
um processo complexo por que passara a cultura intelectual brasileira na década de 1920. O
tempo da decisão marca a saída da angústia, ou seja, quando agentes dos espectros mais
variados da cultura intelectual abrem mão dos valores que vigoraram até então e abraçam
posicionamentos radicais, em geral, à esquerda com o comunismo, e à direita com o fascismo
e o catolicismo, sempre segundo apropriações específicas à realidade brasileira. A ruína da
democracia em sua vertente liberal e burguesa torna-se uma certeza recorrente.
Se os engajamentos variam em sua intensidade no decorrer dos anos seguintes, basta
notar, porém, que serão muito raras as defesas de um sistema político tal qual delineado pela
Constituição de 1891. Sequer as reformas acerca do voto feminino, da lei de imprensa, de
direitos trabalhistas, do voto secreto, da representação classista, da reforma da educação e do
judiciário parecem ser capazes de superar a crise do regime. Até aqueles que não se engajam e
13
não declaram explicitamente algum posicionamento mais radical, não deixam de, mesmo
através de uma análise “desinteressada”, transparecer certa sedução pelo extremo. Assim,
Sérgio Buarque de Holanda escrevendo da Alemanha à Folha da Manhã verificava, em 1935,
ou seja, em pleno Terceiro Reich, que, a partir dos escritos de Carl Schmitt11, jurista filiado ao
Partido Nazista qualificado pelo brasileiro como “sábio professor de Bonn”, encontrava a
“validez universal independentemente dos critérios relativos” que demonstraria a falência das
“ideias liberais”. Neste sentido, seria necessário reconhecer que “poucos duvidarão de que a
política em si representa uma atividade irracional, que tem sua raiz nas regiões obscuras,
inconscientes do homem. A associação que pretende fazer entre ela e os princípios morais e
jurídicos é, no fundo, ilegítima e precária”. Assim, em meio ao “Estado Totalitário” nazista, o
escritor considerava que a “distinção política por excelência é a distinção entre amigo e
inimigo”12. A passagem do ceticismo aos extremos traz em seu bojo essa sedução pelo
irracional, por uma tipologia que abra mão de critérios “precários” e por isso mesmo
relativizáveis e dialógicos, passíveis de discussão, em função de princípios unívocos e sintéticos
e, portanto, condizentes com as disposições autoritárias.
11
Sobre o tema cf. FERREIRA, Bernardo. O risco do político. Crítica ao liberalismo e teoria política no
pensamento de Carl Schmitt. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004.
12
Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Estado Totalitário. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro:
Rocco, 1989, p. 298-301.
14
Primeira Parte
PRELIMINARES DE UM TRAJETO
De Alceu a Tristão e Vice-Versa
“memória, velha cidade de traições”.
Machado de Assis, Um homem célebre, 1888.
Por várias vezes, Alceu Amoroso Lima retomou a origem do pseudônimo Tristão de
Athayde1. Em uma delas, dissera que, “em 1919, convidado a exercer a crítica literária no
Jornal, resolvi adotar um pseudônimo, a fim de separar inteiramente minha vida industrial da
literária, tal como se deu com Andre Maurois, por exemplo”2. Numa outra ocasião, conforme
nota um de seus biógrafos, ele recordaria ter se desentendido com o pai, Amoroso Lima, que
não queria ter os nomes confundidos3. Alceu já havia publicado, sob a assinatura A Amoroso
Lima, um necrológio de Afonso Arinos e quatro artigos na Revista do Brasil, sendo o último
deles nesse mesmo ano de 1919. Em suas memórias, ele conta que o pseudônimo lhe garantiria
uma independência, o protegeria contra o preconceito em relação a “industriais escritores” que
existiria tanto entre os empresários quanto entre os intelectuais e poderia, assim, mantê-lo longe
das “panelinhas” literárias4.
A ideia de que poderia ser confundido com o pai é algo possível, porém, desde a
adolescência, quando comparecia nas notas mundanas dos jornais cariocas5, seu nome vinha
como A Amoroso Lima, assim como nos artigos citados acima. Sobre a ocultação do verdadeiro
1
Alceu conta que seria um nome inventado vindo da modificação do pseudônimo com que assinara um soneto em
1918, Vasco de Ataíde. Ele explica, porém, que, em 1919, “ao tratar de escolher um pseudônimo, pensei naquele,
mas o soneto me parecia agora desagradável e eu receava que o pseudônimo do poeta comprometesse o crítico.
Então, ocorreu-me substituir o Vasco por Tristão; ficou assim resolvido o problema com Tristão de Ataíde. Mais
tarde, lendo as Décadas, de João de Barros, em que se descrevem as lutas dos portugueses na Ásia, vim a saber da
existência de um aventureiro, um pirata, famoso pelos saques e falcatruas, e que se chamava Tristão de Ataíde.
Fiquei desagradavelmente surpreendido e nada honrado com o meu pseudônimo, mas já não havia nada a fazer.
Tratava-se de uma curiosa coincidência...” LIMA, Alceu Amoroso. Alceu Amoroso Lima conta a origem do
pseudônimo. Estudos literários. Rio de Janeiro: Cia Aguilar Editora, 1966, p. 28.
2
LIMA, A A. Estudos literários. Rio de Janeiro: Cia Aguilar Editora, 1966, p. 28.
3
VILLAÇA, Antonio Carlos. O Desafio da liberdade. Rio de Janeiro: Agir, 1983, p. 43.
4
LIMA, Alceu Amoroso. Memorando dos 90. Entrevistas e depoimentos coligidos e apresentados por Francisco
de Assis Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 217.
5
Membro de família abastada do Rio de Janeiro, seu nome aparecia, invariavelmente, como A Amoroso Lima,
seja em notícias sobre provas e méritos na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, seja
em festas, eventos mundanos e celebrações religiosas registradas em colunas de jornal. Também assim lhe
gravaram o nome por ocasião do anúncio de seu casamento, em 1918, com Maria Tereza de Faria, filha do
acadêmico Alberto de Faria. Cf. Chá de Petrópolis, A Época, Rio de Janeiro, 30 jan. 1918, p. 4.
15
autor, o próprio Alceu lembra que fora “descoberto” por um colega de escritório no dia seguinte
em que publicara o primeiro artigo sob o pseudônimo6. Além disso, o fato é que tal recurso era
antigo e comum na história intelectual do século XIX e início do século XX, tanto no Brasil
quanto no exterior7. Sobre o pseudônimo em si, considera Philippe Lejeune:
Um pseudônimo é um nome diferente daquele do estado civil, que uma pessoa real
se serve para publicar total ou parcialmente seus escritos. O pseudônimo é um nome
de autor. Não é exatamente um falso nome, mas um nome de escrita [plume], um
segundo nome, exatamente como aquele que um religioso adota entrando em uma
ordem. Certamente, o emprego do pseudônimo pode, às vezes, cobrir fraudes ou se
impor por motivos de discrição: mas isto acontece mais frequentemente em
produções isoladas […]. Os pseudônimos literários não são em geral nem mistérios,
nem mistificações, eles assinalam simplesmente esse segundo nascimento que é a
escrita pública. Escrevendo a sua autobiografia, o autor contará sobre a origem do
pseudônimo: assim Raymond Abellio explica que ele se chama Georges Soulès e por
que ele escolheu seu pseudônimo. O pseudônimo é simplesmente uma diferenciação,
uma duplicação do nome, que não muda em nada a identidade8.
Estabelecer de forma rígida esta diferenciação entre Tristão e Alceu não é, porém, algo
tão simples. Afinal, grande parte da aceitação e força que o Alceu neoconverso angariou no
interior do cenário intelectual brasileiro foi devida ao reconhecimento público que Tristão
conquistara durante dez anos de crítica periódica. Em 1920, após um ano de crítica militante,
Monteiro Lobato escrevera a Manuel Gálvez que “[...] Tristão de Athayde, pseudônimo de
Alceu Amoroso Lima é, de fato, a melhor aptidão crítica dos novos. Escreve no ‘O Jornal’ do
Rio, e progride rapidamente. Será, se continuar, o nosso grande crítico de amanhã”9.
A distinção entre Tristão e Alceu, tradicionalmente, é vista como uma passagem de uma
disposição estético-artística a outra ético-política. Esta distinção é reproduzida em vários
trabalhos, quase sempre remetendo às recordações do autor, como as Memórias Improvisadas,
quando Alceu Amoroso Lima diz que em 1928, em uma carta a Sérgio Buarque de Holanda
publicada na revista A Ordem, sob o título de “Adeus à disponibilidade”, teria efetuado a
“passagem da primazia do literário ao ideológico”10. Para melhor compreender as
interpretações desta transição, construímos três vertentes para abordá-la.
A primeira vertente da transição de Tristão a Alceu pode ser exposta nos termos de
Wilson Martins:
6
Cf. LIMA, A A. Memorando dos 90. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 217–218.
Cf. GENS, Armando. Álbum de recortes: a literatura nos jornais. In: LUSTOSA, Isabel (Org). Imprensa, história
e literatura. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2008, p. 196; SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso. A
representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Cia
das Letras, 2002, p. 119; LUSTOSA, Isabel. Brasil pelo método confuso – humor e boemia em Mendes Fradique.
Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, p. 1993; DAGAN, Yaël. La nouvelle Revue française. Entre guerre et paix
1914-1925. Paris : Tallandier, 2008, p. 33.
8
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975, p. 24.
9
LOBATO Apud. ALBIERI, Thaís de Matos. São Paulo – Buenos Aires: a trajetória de Monteiro Lobato na
Argentina. Campinas, SP: [s.n.], 2009. Tese de Doutorado, p. 31.
10
LIMA, Alceu Amoroso; LIMA, Cláudio Medeiros. Alceu Amoroso Lima: Memórias Improvisadas. Diálogos
com Medeiros Lima. Petrópolis: Vozes, 1973.
7
16
Como crítico literário, Tristão de Ataíde sempre se conduziu por preocupações
estéticas; é eloquente que haja abandonado a crítica quando elas começaram a lhe
parecer, se não “supérfluas”, pelo menos secundárias em comparação com “tarefas
mais urgentes e mais importantes”11.
Martins, portanto, reconheceria uma transição clara e alertava o leitor para não se deixar
confundir pelas memórias de Alceu que, em 1945, sustentava “não haver crítica verdadeira sem
uma filosofia de vida”. Martins argumenta que:
[...] como não era essa a sua posição antes de 1929, o leitor que aceitar essa súmula
da maturidade como um documento único para a sua interpretação correrá o risco de
se enganar profundamente sobre a verdadeira natureza dos Estudos12.
Esta primeira tendência interpretativa em torno da passagem de Tristão a Alceu
reconhece duas disposições intelectuais claramente definidas e chama a atenção para algo que
iremos retomar reflexivamente por todo o trabalho: a relação crítica com a (enorme)
memorialística produzida pelo autor. Nesta mesma tendência, podemos incluir a produção de
João Luiz Lafetá, especialmente quando este reconhece que “a conversão de Alceu faz parte do
abandono geral das discussões predominantemente estéticas, trocadas pelo fascínio dos debates
ideológicos”13. Lafetá, porém, percebe que por volta de 1925, quando Tristão desenvolvera uma
longa reflexão cultural e política em torno do surrealismo, “o católico dos anos 1930 já estava
escondido nesse crítico literário da fase heroica”14. Wilson Martins e Lafetá têm o
“modernismo” como eixo de suas análises. O primeiro, abordando a década de 1920, considera
um “equívoco” conceder a Tristão de Athayde o epíteto de “crítico do modernismo”15, pois lhe
faltaria, dentre outras coisas, ser paulista16. Já o segundo, observando os anos 1930, nota que
Alceu Amoroso Lima, por excesso de engajamento, teria feito com que a “adoção do
catolicismo” levasse-o a “subordinar o estético ao ‘ético’”17. Note-se que, apesar de Alceu
parecer personificar, em sua trajetória, o próprio esquema clássico que vê na história do
modernismo uma fase heroica18 - estética - sucedida por uma fase ideológica - política-, seu
lugar no interior do movimento é questionado.
11
MARTINS, Wilson. A crítica modernista. In: COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. V. 5. Rio de Janeiro:
Editorial Sul Americana, 1970, p. 514.
12
MARTINS, Wilson. A crítica modernista. In: COUTINHO, A. A literatura no Brasil. V. 5, p. 514.
13
LAFETÁ, João Luiz. 1930: A crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 81.
14
LAFETÁ, João Luiz. 1930: A crítica e o modernismo, p. 142.
15
Cf. MARTINS, Wilson. A crítica modernista. In: COUTINHO, A. A literatura no Brasil. Vol. 5, p. 508; 493.
16
“É que ele [Tristão de Athayde] estava desligado não apenas espiritual, mas ainda geograficamente. Filho de
uma província por tantos motivos diferente de São Paulo, ele não poderia [...] assimilar integralmente o
Modernismo, nem por ele se deixar assimilar [...] o Modernismo (no período aqui abordado) é um movimento
especificamente paulista, e de um certo momento da vida de São Paulo”. MARTINS, Wilson. A crítica modernista.
In: COUTINHO, A. A literatura no Brasil. Vol, p. 514
17
LAFETÁ, João Luiz. 1930: A crítica e o modernismo, p. 124.
18
Tal concepção parece ter sido prefigurada em meados dos anos 1920, como revela a passagem de Prudente de
Moraes, Neto: “Foi por volta de 1925, passado o período heroico do modernista, este, que para muitos dos seus
próprios adeptos consistia apenas num debate em torno de questões gerais de estética e de questões particulares de
técnica, foi tomando a feição morosa das campanhas que parecem se eternizar”. MORAES NETO, Prudente de.
Cavaquinho solando, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set. 1927, p. 4.
17
Nosso trabalho, porém, não é uma história do modernismo ou não o é exclusivamente.
A segunda tendência interpretativa acerca da passagem de Tristão a Alceu é aquela que
reconhece neste trânsito uma realização da persona de Alceu Amoroso Lima e que se baseia
muito nas próprias memórias do autor. Esta tendência está presente em todos seus biógrafos.
Obras que são importantes para a compreensão da história de Alceu, mas, especialmente acerca
do período aqui abordado, ou seja, entre os anos 1916-1928, raramente vão além da colisão e
rearticulação das memórias produzidas pelo autor. São, além disso, tecidas em tom laudatório
por pessoas que foram amigas do biografado já em época posterior a sua conversão. De qualquer
forma, porém, devem ser mencionadas como trabalhos imprescindíveis à introdução à vida e
obra do crítico. Cândido Mendes, seu amigo e biógrafo, reconhece as limitações para a
contemplação e reconstituição, principalmente dos primeiros 30 anos, da vida de Alceu:
Alceu nunca se entregou à autobiografia. Mas permitiu que Medeiros Lima, em
entrevistas tão densas quanto nonchalantes, extraísse de nosso crítico a pertinácia
com que combateu as meninices-modelo e a construção das crianças prodígio, já no
pressentimento da futura persona. É só pelo narrador quase nonagenário que temos
acesso a esse conhecimento, vindo de uma inevitável reconstrução19.
No mesmo caso deve ser incluída a biografia de Alceu Amoroso Lima feita por seu neto, Xikito
Afonso Ferreira. Esta última, porém, trouxe à tona documentação inédita, especialmente
relacionada à correspondência de Alceu, além de depoimentos de familiares e entrevistas
variadas. Não obstante, trata-se de uma obra em que o aspecto sentimental e memorialístico
fala mais alto, conforme bem sintetizou o prefaciador a riqueza e a orientação do livro: “Esta
biografia é o reconhecimento mais inteligente e sensível do neto pela grandeza história e
humana do avô, líder espiritual de algumas gerações brasileiras, inclusive a minha”20.
Trabalhos acadêmicos também contribuem com essa segunda perspectiva acerca da
passagem de Tristão a Alceu. Assim, podemos citar a obra de Leandro Garcia Rodrigues que
observa neste processo uma passagem por um “deserto espiritual” e que:
[...] a busca por Deus teve início a partir de uma busca dentro de si próprio, onde ele
se (re)encontrou consigo mesmo, deparou-se com seus fantasmas metafísicos,
ultrapassando as grossas paredes do seu “castelo interior”, para usar uma expressão
cara a santa Teresa de Jesus, uma das maiores místicas do catolicismo. [...] Alceu
não resistiu mais, rendeu-se ao motivo da sua busca que há tantos anos o perseguia21.
As análises desta segunda perspectiva produzem uma espécie de ilusão biográfica, como se
mesmo a mais radical das mudanças de trajetória intelectual fossem diluídas em uma essência
em que “[...] a ‘vida’ constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser
apreendido como expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva, de um projeto”22.
19
MENDES, Cândido. Dr Alceu: da “persona” à pessoa. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 23.
KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Tristão sem galas nem galões. In: FERREIRA, Xikito Affonso. Histórias do
meu avô Tristão. A biografia de Alceu Amoroso Lima. São Paulo: AzulSol editora, 2015, p. 23.
21
RODRIGUES, L G. Alceu Amoroso Lima, p. 72.
22
BOURDIEU, P. L’illusion biographique. Actes de la recherche en sciences sociales, vol 62, no 1, 1986, p. 69.
20
18
O que caracterizaria esta segunda interpretação acerca da transição de Tristão a Alceu
seria uma excessiva concessão à memória, raramente confrontada com outras memórias, outros
depoimentos, fontes e demais materiais que poderiam problematizar a reconstituição dos
processos históricos. As relações entre história e memória são longevas23, complexas24 e, não
raro, polêmicas25. Para ilustrarmos esta relação entre memória e história notemos as passagens
de Paul Ricouer: “Acredito poder geralmente distinguir uma lembrança de uma ficção, embora
seja como imagem que a lembrança volte. Obviamente, desejaria ser sempre capaz de fazer essa
discriminação”26.
Assim, atesta-se a fragilidade da memória imagética e nem sempre confiável. Por outro
lado, ela possuiria uma força inacessível à história: o reconhecimento, o qual Ricouer chama de
pequeno milagre da memória, ou seja, uma presença vivenciada a partir da lembrança. Este
aspecto, entretanto, confirmaria o modo individual e restrito da memória, não obstante o seu
caráter social. A alteridade emerge na possibilidade de o discurso histórico não apenas:
[...] estender a memória coletiva além de toda lembrança efetiva, mas o de corrigir,
criticar, e até mesmo desmentir a memória de uma comunidade determinada, quando
ela se retrai e se fecha sobre seus sofrimentos próprios a ponto de se tornar cega e
surda aos sofrimentos de outras comunidades”27.
Ao seguir os passos das memórias de Alceu Amoroso Lima, a segunda tendência
interpretativa da transição de Tristão a Alceu perde de vista a contribuição que o passado
produzido por um olhar historiográfico, pela representância e não pelo reconhecimento, pode
realizar. Esta tendência pode ser apresentada a partir do trabalho de Leandro Garcia Rodrigues.
Ao estudar cultura, religião e vida literária na obra de Alceu Amoroso Lima, o autor produz
uma obra que se mantém sempre próxima das recordações do personagem analisado. É assim
que certo esquema de memória é reproduzido com poucas variáveis: crítico literário que se
inicia em 1919 em O Jornal; postura intelectual de discípulo de Sílvio Romero; relação
ponderada, equidistante e não conflituosa com os arautos do modernismo paulista, Mário e
Oswald de Andrade; simpatia, mas não filiação, em relação ao grupo espiritualista e católico
organizado em torno do periódico Festa; correspondência, determinante em sua trajetória, com
Jackson de Figueiredo; conversão ao catolicismo em 1928 exposta no artigo “Adeus à
23
Sobre conflitos entre história e memória na antiguidade Cf. BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico
da mitologia grega. Vol. 1. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 581; HARTOG, François. Temps et histoire – comment
écrire l'histoire de France?, Annales. Ano 1995, vol 50, no 6, p. 1228; LIMA, Luiz Costa. História, Ficção,
Literatura. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p. 46-60. SAMÓSATA, Luciano. Como se deve escrever a história.
Belo Horizonte: Tessitura, 2009, p. 75.
24
Sobre oposição entre memória e história na modernidade Cf. HARTOG, F. Temps et histoire – comment écrire
l'histoire de France ?, Annales, p. 1228-1230.
25
Cf. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia das Letras; Belo
Horizonte: UFMG, 2007, p. 47-56; DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA: COMISSÃO ESPECIAL SOBRE
MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007.
26
RICOUER, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2007, p. 503.
27
RICOUER, Paul. A memória, a história e o esquecimento, p. 507.
19
disponibilidade” e mais um ou outro dado que corrobora com estes marcos fundamentais.
Cada um destes tópicos que, parodiando Oswald de Andrade, poderíamos chamar de
“Esquema Tristão de Athayde”, podem ser problematizados e alguns, até mesmo, refutados.
Porém, é de fato a forma segundo a qual as memórias28 de Alceu Amoroso Lima tratam sua
trajetória intelectual até sua conversão ao catolicismo em 1928. A iniciação como escritor
público se deu, provavelmente, em março de 1916, quando fez um necrológio de Afonso Arinos
e, em setembro do mesmo ano, lançou artigo publicado na primeira página da Revista do
Brasil29. Ao dedicar todo um capítulo sobre Sílvio Romero, Rodrigues afirma: “A principal
razão desta escolha se deu pelo fato de que Alceu Amoroso Lima declarou, em inúmeros
momentos da sua obra, que Sílvio Romero exerceu considerável influência sobre a sua
formação pessoal e acadêmica”30. Observando, porém, os artigos publicados na década de 1920,
verificamos que o nome de Romero é citado poucas vezes e com significados diferenciados.
Primeiramente, Romero é visto como historiador da literatura, “aquele que lançou as
bases de estudos literários sistemáticos”31, mas que compartilharia de tal posição com José
Veríssimo. Além disso, outros intelectuais que se dedicaram ao tema são lembrados, como
Coelho Neto, João Ribeiro, Sotero dos Reis, Ferdinand Wolf, Fernandes Pinheiro, Melo Morais,
Varnhagen, Joaquim Norberto e Vale Cabral. Esta enumeração era, ainda, uma diferenciação
entre passado e presente, pois, o que interessava no artigo era analisar a então recém-lançada
Pequena história da literatura brasileira de Ronald de Carvalho.
É na segunda metade da década de 1920 que Tristão associa o nome de Romero a uma
atitude ligada ao “naturalismo cientificista do século XIX”, sendo um prefigurador do
“ceticismo agnóstico” que então grassaria na intelectualidade brasileira. A afirmação seguinte,
porém, é controversa: “Não que a ação de Sílvio Romero fosse profunda. Na fase em que nos
alcançou havia nele menos audácia renovadora do que sarcasmo senil”32. As diferentes
abordagens entre 1919 e 1926 são importantes, não a fim de esmiuçar a relação que Tristão de
Athayde teria com Sílvio Romero, mas para observarmos a modificação de sua disposição
intelectual, assim como quais questões começam a se tornar relevantes para reflexão e trabalho
intelectual no decorrer da década de 1920. Além disso, ao voltarmos às fontes da época
associadas tanto ao autor quanto a referências pertinentes, ampliamos significativamente o
leque de “referências” nos primeiros escritos de Tristão. Muitos outros eram os nomes que
28
Especialmente: LIMA, Alceu Amoroso. Memorando dos 90. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984; Memórias
improvisadas. Diálogos com Medeiros Lima. Petrópolis: Vozes, 1973.
29
Cf. LIMA, A. Amoroso, Afonso Arinos - Evocações, Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 3 mar. 1916, p. 3;
LIMA, A Amoroso. Pelo passado nacional, Revista do Brasil, n 9, ano 1, vol III, pp. 1-16, 16 set. 1916.
30
RODRIGUES, L G. Alceu Amoroso Lima, p. 90.
31
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 3 nov. 1919, p. 7.
32
ATHAYDE, Tristão de. Tobias Barreto, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 dez. 1926, p. 4.
20
povoavam seus escritos e lhe sustentavam os argumentos.
Assim, em torno dos problemas da segunda tendência interpretativa da passagem de
Tristão a Alceu, notamos a construção de uma persona marcada pela relação supostamente
equidistante e ponderada, segundo a qual ele “nunca comprou briga com ninguém por causa de
direcionamentos literários”33. Nada mais longe dos acontecimentos. Com Oswald de Andrade,
Alceu desencadeara uma polêmica em junho de 1925, ao lançar dois artigos sobre a poesia paubrasil, que durara, pelo menos segundo o nosso recorte, até o ano de 1928. Também com Sérgio
Buarque de Holanda, ele manteve por anos a fio polêmicas em torno de “direcionamentos
literários”. Não raro, tal tendência incorre em imprecisões bibliográficas, confundindo datas e
mesmo produções, criando uma compreensão amorfa do passado, indistinta, uma operação de
redução à memória, fazendo com que a análise siga um eixo fundamental e coerente, porém,
insensível à historicidade. Isso permite que Rodrigues, além das teses questionadas acima,
afirme, mais de uma vez, que Alceu Amoroso Lima e Mário de Andrade publicaram “muitos
textos de crítica literária”34 na revista Verde de Cataguases, quando, de fato, o primeiro nunca
ali lançara uma nota sequer. Seu nome aparece em artigos alheios e, apenas no número
derradeiro, de 1929, a revista reproduz um artigo de Tristão de Athayde publicado originalmente
no então recém-lançado Estudos - 2a série, como forma de divulgação35.
A própria lógica de lançamento dos primeiros livros de Tristão de Athayde é ignorada
pela tendência memorialista. Reiteradas vezes, Rodrigues afirma que o “livro Estudos:
Primeira Série” publicado em 1927 reuniria os “textos de crítica literária que Alceu tinha
publicado em O Jornal durante os anos de 1919-1920”36. Na verdade, tal publicação reunia os
artigos publicados no ano anterior, 1926. Mais que revelar a imprecisão no trato da obra
produzida pelo crítico, ao desconhecer a própria trajetória das publicações, da manifestação
pública do intelectual, a tendência memorialista perde de vista as estratégias utilizadas pelo
autor na conformação do debate público. Os Estudos - 1a Série, apesar de, pelo título, remeterem
a algo como os artigos de estreia em O Jornal nos anos 1919-1920, trazem, contudo, os textos
publicados mais recentemente porque o cenário cultural e a disposição intelectual de Tristão de
Athayde já guardavam diferenças claras em relação aos seus primeiros escritos. Com efeito,
artigos de 1919 e 1920 apenas serão publicados em 193937 com várias notas explicativas em
que o autor revisava as posições que tinha no início de sua carreira como crítico literário. Por
33
RODRIGUES, L G. Alceu Amoroso Lima, p. 136.
Cf. RODRIGUES, L G. Alceu Amoroso Lima, p. 96
35
A própria nota da redação esclarece: “Fica, com a transcrição que hoje oferecemos aos nossos leitores dos
capítulos ‘Poesia’ e ‘Pirandello’ extraídos dos ‘estudos’ (2a série) de Tristão de Athayde [...]”. N. da R. Verde.
Segunda fase, Cataguases, Ano 1, no 1, mai. 1929, p. 21.
36
RODRIGUES, L G. Alceu Amoroso Lima, p. 114.
37
Cf. LIMA, Alceu Amoroso. Primeiros estudos. Contribuição à história do modernismo literário. Rio de Janeiro:
Agir, 1948. 1a edição 1939.
34
21
fim, é importante lembrar que estas obras são frutos de processos de seleção por parte do autor,
deixando vários escritos de fora. A seleção de artigos lançados nos anos de 1921, 1922, 1923 e
1925 será publicada em livro apenas em 1966. Os artigos de 1924 nunca foram reunidos em
volume. Destaca-se, assim, que o trabalho de produção da memória configura-se desde a
formação de narrativas biográficas e autobiográficas até às escolhas sobre o que deverá ou não
ser selecionado para compor coletâneas, livros e textos essenciais associados ao autor.
Poderíamos continuar apontando as fragilidades da tendência memorialista
comprometem a análise historiográfica, seja pela imprecisão no tratamento de ocorrências
específicas, seja, o que é mais significativo, pela impertinência de interpretações que, não raro,
serão baseadas naquelas mesmas imprecisões38. Dessa forma, a segunda tendência
interpretativa da passagem de Tristão a Alceu opera como uma espécie de autenticação da
memória, sendo incapaz de apontar a historicidade dos processos vividos, muitas vezes
embaralhados e imprecisos nesses trabalhos de memória. Mais que se debruçar nas
especificidades dos percursos intelectuais na década de 1920, esta tendência reafirma os
posicionamentos do memorialista39, ratificando tanto suas interpretações como o modo de
abordagem dessa história. Assim, ela pode tratar indistintamente das décadas de 1920, 1930 e
mesmo as seguintes diluídas em um todo homogêneo e coerente garantido pelo reconhecimento
produzido pelo “milagre” da memória. Lembramos aqui que diferentemente do reconhecimento
inerente à memória, a relação com o passado na operação historiográfica é “antes de tudo um
meio de representar uma diferença”40.
A terceira tendência interpretativa, segundo nossa tipologia, da passagem de Tristão a
Alceu explora de forma sistemática este processo. Isto é, procura problematizar a oposição da
primeira tendência, da passagem do estético ao político, assim como submeter a memorialística,
da segunda tendência, a questionamentos que, não raro, a comprometem. Esta terceira tendência
38
Tal me parece ser o caso da opção de Rodrigues em pretender caracterizar toda produção de Alceu como “crítica
literária católica”. A própria opção do autor em tomar como referência para tal vertente o padre alemão Pedro
Sinzig que, em Petrópolis nos anos 1910 e 1920, publicara listas de livros proibidos, verdadeiros Índex, impede de
situar a obra de Alceu no interior da vertente. De fato, além de Tristão de Athayde, durante os anos 1920, nunca
ter analisado um livro sequer de Sinzig, a condenação que este fazia das obras de Zola, Eça de Queirós, Albertina
Bertha, Júlio Ribeiro, Julien Green - todos estes citados por Rodrigues como exemplos de condenações da crítica
católica – não encontrava correspondência alguma em toda a produção de Tristão de Athayde nos anos 1920. Um
livro de Julien Green, aliás, será utilizado por Tristão como metáfora para a figura de São Francisco de Assis que,
tal como a obra do autor francês, seria um “viajante sobre a terra”. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia
franciscana, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 out. 1926, p. 4; RODRIGUES, Leandro Garcia. Alceu Amoroso Lima.
São Paulo: EdUSP, 2012, p. 156-157.
39
Esta é a orientação explícita, que não é seguida por qualquer reparação teórico-metodológica, de opção pela
memória que produziria “[...] um excelente balanço histórico do modernismo com a autoridade de quem vira tudo
acontecer e, o mais importante, com uma larga distancia no tempo, pelo menos uns cinquenta anos em relação aos
momentos por ele aludidos, o que forneceu maior flexibilidade analítica e uma privilegiada visão de conjunto”.
RODRIGUES, L G. Alceu Amoroso Lima. Cultura. São Paulo: EdUSP, 2012, p. 122-123.
40
CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos problemas.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 40.
22
pode ser reconhecida nos trabalhos de Vera Lúcia dos Reis e Guilherme Simões Gomes Junior.
Apesar de compartilharem de uma mesma perspectiva geral e crítica em relação às duas
tendências esboçadas acima, estes trabalhos são distintos entre si, cada um com seu leque de
questões e hipóteses próprias. A tese de Vera Lúcia dos Reis, o trabalho mais completo em torno
da produção de Tristão de Athayde entre os anos de 1920 e 1930, tem como meta primeira,
justamente, questionar a diferença entre Alceu Amoroso Lima e Tristão de Athayde.
A autora é clara em seus propósitos:
O que esta análise vai procurar demonstrar é que, mesmo antes da conversão
religiosa, o pensamento de Alceu Amoroso Lima já continha as marcas do estilo de
pensamento conservador, não tendo, portanto, havido transformação quanto à
escolha de uma ideologia, entendida como parte da dimensão simbólica da vida
social41.
Um dos índices desta perspectiva será a indistinção entre as figuras de Tristão de Athayde e
Alceu Amoroso Lima, o que faz a pesquisadora sempre optar pela última. Não haveria razões
para considerar as duas personas uma vez que o conservadorismo caracterizaria ambas.
O trabalho de Vera Lúcia dos Reis articula perspectivas dos Estudos Literários com
abordagens tradicionalmente relacionadas às ciências sociais. A autora tomará como marco
teórico os trabalhos de Pierre Bourdieu e Karl Mannheim, dentre outros. Assim, é a partir da
caracterização do habitus de Alceu Amoroso Lima e de sua inserção no campo intelectual
brasileiro da época que seu estudo pretende reconstituir a trajetória do personagem pesquisado.
Neste sentido, seguindo as noções de habitus e campo intelectual, o conceito de estratégia
também é evocado a fim de “verificarem-se as práticas de inserção no jogo social que levam à
definição e à redefinição dos agentes no campo, às reconversões de estilo ou de grupo”42.
Ao questionar as duas fases tradicionalmente reconhecidas na produção intelectual de
Alceu Amoroso Lima, a passagem de Tristão a Alceu, a autora procura, principalmente,
submeter os trabalhos memorialísticos à crítica histórica e sociológica. Desse modo:
O que a memória propõe é matéria de informação e de debate, de construção do
sujeito em nova dimensão. Eis porque tomaremos como fonte principal para análise
e interpretação do projeto intelectual de Alceu os textos considerados
autobiográficos, ou seja, as memórias, as entrevistas e a correspondência, em
confronto com a obra crítica propriamente dita43.
Vera Lúcia dos Reis defende uma continuidade na postura intelectual de Alceu Amoroso Lima
desde sua estreia em 1916 até meados da década de 1940, quando deixa de escrever crítica
literária em O Jornal. Seria, ainda, o momento em que o próprio autor reconheceria o fim de
sua geração com a morte de Mário de Andrade, em 1945.
41
REIS, Vera Lúcia dos. O perfeito escriba. Política e Letras na obra de Alceu Amoroso Lima. São Paulo:
Annablume, 1998, p. 18.
42
REIS, V L dos. O perfeito escriba, p. 19.
43
REIS, V L dos. O perfeito escriba, p. 22.
23
Desse modo, a autora verifica já nos primeiros escritos de Alceu uma vocação
professoral e de orientação cultural, caracterizando, assim, uma disposição intelectual que não
seria compatível com certa condição apolítica que parece sugerir a oposição estético/ideológico
consagrada em suas memórias e em algumas análises. E o que seria marcante na atividade
intelectual de Alceu Amoroso Lima, desde a década de 1910 até a de 1940, seria o
conservantismo. Seguindo as definições de Karl Mannheim, a autora constata que “os
conservadores substituíram a Razão por outros conceitos; História, Vida e Nação. Contra a
‘inclinação dedutiva da escola do direito-natural, os conservadores opuseram a irracionalidade
da realidade’”44. Assim, Alceu se iniciaria na crítica literária como um nacionalista de tipo
maurrasiano e terminaria, no interior do recorte temporal abordado pela autora, como líder da
Ação Católica. Vera Lúcia dos Reis, em referência a Dantas Mota45, defenderá, então, que “as
pessoas não mudam. O que muda são as poses em que elas se apresentam”46.
Alceu Amoroso Lima sempre fora um conservador. Esta é a tese de Vera Lúcia dos
Reis. Se refutar a tese significa dizer e comprovar que o contrário é verdadeiro: que Alceu seria
um “progressista”, um “liberal”, um “revolucionário”, não seremos nós que iremos fazê-lo.
Porém, gostaríamos de explorar um pouco os limites de tal perspectiva, assim como sua
necessária exclusão de indícios comprometedores e, finalmente, certa concepção teleológica
que marca tal abordagem. No interesse em afirmar o conservadorismo inveterado de Alceu
Amoroso Lima, Lúcia dos Reis parece perder de vista o caráter relacional do conceito, sua
contingência e necessária ligação a um contexto determinado, como alerta o próprio Mannheim:
Quanto maior a classe que adquire um certo domínio sobre as condições concretas
de existência, e tanto maiores as possibilidades de uma vitória por meio de uma
evolução pacífica, tanto mais tenderá esta classe a seguir o caminho do
conservadorismo47.
A opção por parte da autora em fundamentar-se na verificação de um estilo de
pensamento conservador proposto a partir de uma tipologia geral e que, não raro, prescinde de
caracteres históricos, ignora esta situação “concreta” em que uma classe que, a princípio,
apresentava-se como “progressista”, “liberal” ou “revolucionária” poderia, posteriormente,
converter-se em marco do conservadorismo. Classicamente, o exemplo da burguesia é o mais
significativo. É assim que, mais do que meramente aludir àquela operação citada acima, de
“substituição” do conceito de “Razão” pelos de “Vida”, “História” e “Nação” e de uma
consequente consagração do “irracionalismo da realidade”, é preciso verificar de que forma e
em relação a quais visões de mundo e ideologias etc. estes conceitos são trabalhados.
44
REIS, V L dos. O perfeito escriba, p. 110.
Cf. ATHAYDE, Tristão de; MOTA, Lourenço Dantas. Diálogo. São Paulo: Brasiliense, 1983.
46
REIS, V L dos. O perfeito escriba. São Paulo: Annablume, 1998, p. 49.
47
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 272.
45
24
Para ilustrar tal questão, iremos nos debruçar sobre um artigo de Tristão de Athayde
publicado em 1926. Trata-se de um texto intitulado “Piratininga”, cujo objeto é a obra de
Alfredo Ellis Filho48. É a partir de uma reflexão em torno da emancipação da ciência moderna,
segundo a qual o “sonho libertador de Descartes ou de Lutero levara apenas a uma nova
servidão: as fórmulas científicas substituíram-se às fórmulas tomistas, a Universidade à
Escola”49, que o crítico analisará a obra. Assim, vários dos tópicos do pensamento conservador
povoam sua síntese acerca da história do pensamento moderno. Aí estão a condenação do século
das luzes e outras marcas deste tipo de visão de mundo. Ao realizar esta crítica à modernidade,
Tristão de Athayde pontua fundamentalmente que, a partir de então, “a civilização passou a ser
um resultado de índices mecânicos e impessoais” e que, desde o século XIX50, teria se alastrado
“o naturalismo em todos os sentidos e o indivíduo passou a depender da sociedade e de toda
uma motivação exterior que pretendia aniquilar a sua liberdade”.
Segundo o crítico, a obra de Ellis Filho revelaria um “discípulo fiel destas teorias” e
que, por isso, tornara-se um “obcecado por materialismo eugênico”, um “partidário extremado
da produção de homens por seleção” que:
[...] dana-se quando causas contrárias impediram a ação ideal dessa força [da
seleção] que levará o homem ao super-homem, seguindo o progressismo ilimitado
do sr Ellis, no dia em que o Estado puder convenientemente regularizar os
casamentos eugênicos para obtenção de uma raça pura.
Alfredo Ellis Filho produzia uma interpretação que pretendia articular passado, presente e
futuro da “civilização no planalto paulista”, observando que:
A raça, o meio físico e o meio social são os credores da nossa grandeza. Esses fatores
do passado secular, agindo sobre a raça no seu físico, no seu moral, na sua psicologia;
- esses fatores, moldando os moradores e orientando-lhes na sua evolução histórica
e social, predeterminaram que seríamos um agrupamento humano, superiormente
dotado, capaz de atingir o grau de prosperidade em que nos encontramos. Esta
consequência devemos exclusivamente a esses fatores apontados, tendo apenas o
elemento estrangeiro das correntes imigratórias avolumado nosso progresso e nos
auxiliado a conquistar a opulência51.
Tristão de Athayde se contrapõe contundentemente a esta abordagem apontando que a geografia
humana, representada pela figura de Jean Brunhes52 (1869-1930), provaria que “a população se
desenvolve, não em razão de forças cegas selecionadoras de raça ou meio, mas daquilo a que
48
ELLIS FILHO, Alfredo. Raça de gigantes. São Paulo: Ed Helios, 1926.
ATHAYDE, Tristão de. Piratininga, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 nov. 1926, p. 4.
50
O crítico situa na gênese desse processo negativo o escritor Louis de Bonald (1754-1840) e, posteriormente,
Alfred Epinas (1844-1922) e Émile Durkheim (1857-1917). Note-se que Bonald é tido como um ícone precursor
do pensamento conservador. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Piratininga, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 nov.1926, p. 4.
51
ELLIS FILHO Apud: ATHAYDE, Tristão de. Piratininga. O Jornal, Rio de Janeiro, 7 nov.1926, p. 4.
52
Geógrafo francês, um dos criadores da geografia humana. A exclusão de qualquer determinismo racial foi um
dos diferenciais destacados à época de lançamento de sua obra La géographie humaine. Essai de classification
positive. Principes et exemples (1910). Cf. ZIMMERMAN, Maurice. La géographie humaine d’après Jean
Brunhes. Annales de Géographie, t 20, no 110, 1911, p. 109; ROBIC, Marie-Claire. Les petits mondes de l’eau: le
fluide et le fixe dans la méthode de Jean Brunhes. Espace géographique, t 17, n 1, pp. 31-42, 1988.
49
25
chamou de ‘horizonte de trabalho’”53.
Alfredo Ellis Filho respondera à crítica de Tristão de Athayde que, por sua vez,
publicou o artigo “Tréplica”. Basicamente, os mesmos pontos são retomados, porém, destaco a
utilização da noção de “vida” para embasar a liberdade humana frente aos determinismos
“materiais” e/ou “científicos”, a partir de uma citação do filósofo Henri Bergson (1859-1941):
O mundo, entregue a si, obedece às leis fatais... Mas com a vida, aparece o
movimento imprevisível e livre. O ser vivo escolhe ou tende à escolha. Seu papel é
criar. Em um mundo onde todo o resto é determinado, uma zona de indeterminação
o ambienta [environne]... A matéria é necessidade, a consciência é liberdade; apesar
de elas poderem muito bem se oporem, a vida encontra meios de lhes reconciliar. É
que a vida é precisamente a liberdade se inserindo na necessidade tornando-a seu
benefício [grifos nossos]54.
Assim, Tristão utiliza a noção de vida como meio de afirmar ao autor de Raça de gigantes que
as críticas que fizera ao mesmo não eram ideias solitárias esposadas apenas pelo escritor do O
Jornal. Ao contrário, enumera-se uma série de autores que estariam a defender um saber
sociológico mais conectado aos fatores “espirituais”, tornando-se menos determinista e mais
aberto a diferentes aspectos do mundo social que não apenas aqueles do meio e da raça. Cita
Max Scheler55 (1874-1928):
Cada ato verdadeiro de um homem [...] é igualmente mental e instintivo (geistig und
triebhaft) e – para dizer mais agudamente – é segundo o objetivo final a que, em cada
caso, se dirige a intenção, quer seja para um fim ideal quer seja para um fim real,
que nós distinguimos uma sociologia de cultura (Kultursoziologie) e uma sociologia
real (Realsoziologie)... E por isso, toda Kultursoziologie pressupõe um estudo do
espírito e toda Realsoziologie um estudo dos instintos do homem. [...] Sem o
concurso de ambas não é possível uma solução [...]56.
O crítico observa que a sociologia estaria àquela época abrindo mão dos determinismos
do século XIX em função de causalidades ligadas ao mundo do espírito e da cultura. Cita Lucien
Febvre57: “A iniciativa e a mobilidade do homem, eis o que os geógrafos, hoje em dia, estão
procurando acentuar... É legítimo falar, em contraste [com o materialismo anterior], de uma
espécie de espiritualismo geográfico”58. E, para reforçar a preocupação sociológica com as
forças imateriais da sociedade, lembra que:
Essa foi, por exemplo, a obra capital do grande economista alemão Max Weber, há
pouco falecido, estudando em três volumes as influências especialmente religiosas,
e portanto aquelas em que o elemento espiritual se apresenta na forma mais pura
sobre a vida econômica dos povos. Ele procurou exaustivamente demonstrar, “a
53
54
ATHAYDE, Tristão de. Piratininga, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 nov.1926, p. 4.
Citado em francês. BERGSON apud ATHAYDE, Tristão de. Tréplica, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 dez. 1926, p.
4.
55
Filósofo alemão reconhecido como o fundador da Antropologia Filosófica, perspectiva que agrega, além de
Scheler, Helmuth Plessner e Arnold Gehlen. Trata-se de uma tentativa de superação do darwinismo sem recorrer
à religião e à teleologia biológica. Cf. FISCHER, Joachim. La compatibilité de la biologie et de la dignité humaine.
Stratégies théoriques de l’Anthropologie Philosophique. Revue germanique internationale, 10, pp. 147-162, 2009.
56
SCHELER Apud ATHAYDE, Tristão de. Tréplica, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 dez. 1926, p. 4. A obra citada por
Tristão é Die Wissensformen und die Gesellschaft. Leipzig, 1926
57
Trata-se da obra A geographical introduction to History. (1925).
58
FEBVRE Apud ATHAYDE, Tristão de. Tréplica, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 dez. 1926, p. 4.
26
trama que os motivos religiosos introduziram no tecido do desenvolvimento de nossa
cultura moderna, especificamente terrena (spezifisch “disseitig”), e provinda de
inumeráveis outros fatores históricos isolados”59.
Tristão de Athayde ainda elenca os nomes de Henri Berr60 (1863-1954), do sociólogo católico
Paul Bureau61 (1865-1923), do geógrafo-político alemão Arthur Dix62 (1875-1935), o etnólogo
especialista em cultura e civilização africanas Leo Frobenius63 (1873-1938), do antropólogo
suíço Eugène Pittard64 (1867-1962), o sociólogo e economista alemão Werner Sombart65 (186359
ATHAYDE, Tristão de. Tréplica, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 dez. 1926, p. 4. A obra de Max Weber citada é
Gesammelte Aufsaetze zur Religions-soziologie [Ensaios reunidos de sociologia da religião.] (1922).
60
Filósofo e professor francês, fundador da Revue de Synthèse Historique (1900), organizador da coleção
L’Évolution de l’humanité, que compreenderia mais de 100 volumes. Teria sido importante para o
desenvolvimento do conhecimento histórico na França, inclusive em relação aos Annales. O crítico cita a seguinte
passagem de Berr: “Mesmo sob o ponto de vista biológico, e mais ainda sob o psíquico, existe um meio interno
(internal environment) em que domina uma causalidade toda especial (sic). Graças a essa causalidade lógica, a
humanidade escapa, cada vez mais, ao determinismo cego, à causalidade mecânica do meio exterior”. BERR Apud.
ATHAYDE, Tristão de. Tréplica, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 dez. 1926, 4. Sobre Henri Berr: CHALUS, P. Henri
Berr (1863-1954). Revue d’histoire des sciences et de leur applications, T 8, n 1, pp. 73-77, 1955.
61
Em 1927, era visto como importante representante da “sociologia católica” caracterizada pelos seguintes eixos:
particularismo e a primazia do indivíduo; a restauração da moral familiar; reforma das relações entre patrões e
operários, entre a sociedade civil e o Estado pela reconciliação entre classes, através da organização corporativa;
reflexão sobre democracia política e social. Cf. WULF, M. de. Georges Legrand, Les grands courants de la
Sociologie catholique à l’heure présente. Revue néo-scolastique de philosophie, vol 29, no 16, pp. 487-487, 1927.
O crítico cita a seguinte passagem do livro Introduction à la méthode sociologique (1926): “As interpretações do
materialismo sociológico não conseguem mais dar conta das grandes crises da vida nacional ou internacional dos
povos, sobre os quase elas são insuficientes para explicar suas instituições e práticas da sua existência cotidiana”.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Tréplica, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 dez. 1926, 4.
62
Trata-se de um geógrafo que influenciou o pensamento expansionista do Império alemão, daí a geografia política
pensada sempre acerca dos contornos territoriais de um determinado Estado. Não por acaso, Dix teria servido de
base aos delírios imperiais do III Reich. Tristão de Athayde cita o seguinte trecho do livro Politische Geographie
(1923): “A época do materialismo desconheceu de forma estranha que a ideia de expansão (dos povos) não
significa por si mesma nenhum impulso material, porém, um impulso ideal”. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Tréplica,
O Jornal, Rio de Janeiro, 5 dez. 1926, p. 4. Sobre Arthur Dix: TELES, Pedro Francisco Cabral. Portugal
peninsular na evolução do pensamento geográfico português (1904-1939). Tese de doutorado. Universidade do
Minho, 2011.
63
Frobenius é figura complexa. Apesar de ser um alemão repleto das noções eurocêntricas típicas do imaginário
científico entre os séculos XIX-XX, mas também por teorias inusitadas, como a existência de Atlântida na África,
ele é reconhecido por vários ativistas, artistas e intelectuais como um legítimo pesquisador e valorizador das
culturas africanas. Nesta ocasião, o crítico cita a passagem do livro Paideuma (1921): “Entre os povos românicos,
especialmente os franceses, vem à cena cada vez mais o problema social (no trabalho de pesquisas sobre povos e
culturas primitivas), entre os germânicos a tendência à narração histórico-descritiva. Essa diferença deve despertar
atenção, porque corresponde à maneira de trabalhar e de pensar de um século materialista. E isso deveria ocuparnos tanto mais, quanto esse período materialista está próximo do fim e já agora começa, com a acentuação do
intuitivo, a estabelecer-se uma nova concepção filosófica geral”. FROBENIUS Apud. ATHAYDE, Tristão de.
Tréplica, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 dez. 1926, p. 4. Sobre Frobenius, Cf. STUCKEY, Sterling. Du Bois, Woodson
and the spell of Africa. Negro digest, vol XVI, n 4, pp. 60-74, 1967; 60-74; MARCHAND, Suzanne. Leo Frobenius
and the revolt against the west. Journal of contemporary history, vol 32, no 2, pp 153-170, April 1997; GRAHAM,
John T. The social thought of Ortega y Gasset. Columbia: University of Missouri Press, 2001.
64
O crítico destaca um trecho da obra Race and history (1926): “Com que segurança não procuraram convencernos de que o meio é tudo, e de que os homens são seres eminentemente plásticos, submetidos sem protesto a toda
espécie de influências!... O homem, mais do que qualquer outra espécie, é possuidor dos mais completos meios de
escapar, não ao seu meio – no qual é forçado a viver – mas às suas reações”. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Tréplica,
O Jornal, Rio de Janeiro, 5 dez. 1926, p. 4. Apesar da citação e do interesse de Tristão, Pittard era sim um racialista
como mostram os seus estudos sobre o câncer nas ilhas britânicas. Cf. PITTARD, Eugène. La répartition du cancer
dans les Iles Britaniques. Rapports possibles entre le cancer et la race, Bulletins et mémoires de la Societé
d’anthropologie de Paris, VII Série, t 10, 1929, p. 76.
65
Apesar de ter trabalhado ao lado de Max Weber, Sombart é pouco estudado no Brasil. Sobre Sombart:
NOGUEIRA, António de Vasconcelos. Werner Sombart (1863-1941): apontamento bibliográfico. Análise Social,
vol XXXVII, (169), pp 1125-1151, 2004; HERF, Jeffrey. O modernismo reacionário. São Paulo: Ensaio;
27
1941), o economista alemão Heinrisch Pesch66 (1854-1926) e do botânico e pensador alemão
Johannes Reinke (1849-1931)67.
Ao arrolar tantos nomes distintos, de perspectivas diversas e mesmo de
posicionamentos antagônicos, podemos notar como Tristão apropriara-se de um conjunto de
leituras ou desleituras68 como uma espécie de repertório69 a fim de questionar a tese central de
Alfredo Ellis Filho: a de que fatores “exteriores”, meio e raça principalmente, são determinantes
na história de uma nação. Portanto, para criticar as ideias de programas eugênicos no país, de
criação do “super homem” da “raça pura”, Tristão de Athayde lança mão de argumentos que
evocariam uma crítica à ciência em função de noções “espirituais” - entendido este termo em
sua ambiguidade epistemológica que varia desde as “ciências do espírito” (geisteswissenschaft),
que é como os alemães chamam as “ciências humanas”, até mesmo à ideia corrente de alma –,
como as de vida, liberdade e nação. Todos os eixos para a crítica ao pensamento eugênico no
país estariam presentes naquele esquema de entendimento sobre o “estilo conservador”
defendido por Vera Lúcia dos Reis: Vida, Nação e História contrapondo-se à Razão.
Assim, observamos que a mera denominação “conservador” é incapaz de contemplar
o conjunto de significados da produção de Tristão de Athayde além de deixar de lado uma série
de temas de interesse historiográfico que poderiam vir à tona. Voltando ao ponto central, ficaria
a questão: quem é o conservador? O racionalista que pretende transformar o país em um
laboratório de produção de super-homens de “raça pura” ou o crítico da razão que questiona a
eugenia, defende a indeterminação da vida, que necessidade e liberdade marcam a formação
das nações e advoga pela participação de forças “internas”, isto é, espirituais, na formação da
sociedade? Seja qual for a resposta, o primeiro, o segundo, os dois, nenhum, o que fica claro ao
olhar historiográfico é que a questão não é das melhores para se explorar a produção de Tristão
de Athayde. Caracterizar um tipo ideal de conservador segundo um estilo e obliterar sua
condição relacional e histórica pode provocar este tipo de impasse que faz com que tal
Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1993, p. 149-173.
66
Economista de orientação católica, cunhou o conceito de economia solidária. Cf. WISHLOFF, Jim. Solidarist
economics: the legacy of Heinrisch Pesch, Review of Business, Vol. 27, No. 2, pp 1125-1151, Spring 2006.
67
Autor crítico do darwinismo e de orientação vitalista e religiosa. O crítico cita trechos da obra Naturwissenchaft.
Weltanschauung. Religion. (1925): “seria um conceito excessivamente acanhado da natureza, se se quisesse pensar
apenas em fenômenos naturais materiais e leis naturais. Ao contrário, na natureza, o primário é o espiritual”. Cf.
ATHAYDE, Tristão de. Tréplica. O Jornal, Rio de Janeiro, 5 dez. 1926, p. 4. Sobre Reinke: WISSEMAN, Volker.
Johannes Reinke (1839-1931) and his “Dominanten” theory – an early concepto of gene regulation and
morphogenesis. Theory in biosciences, 124, pp. 397-400, 2006; M. A. G. Johannes Reinke’s Dynamische
Naturphilosophie und Weltanschauung, The journal of philosophy, vol 33, n 13, pp 358-359, jun. 1936.
68
Esta noção foi utilizada por Luiz Costa Lima a fim de caracterizar o modo como a apropriação do sociólogo
Ludwig Gumplowicz (1838-1909), “que teria sido o esteio inarredável para a interpretação ‘científica’ do país e,
involuntariamente, o amenizador da denúncia contra o que se perpetrara em Canudos”, por Euclides da Cunha,
fora uma desleitura, isto é, não seguira rigorosamente aquilo que o autor lido teorizara. Cf. LIMA, Luiz Costa.
Terra ignota – A construção de Os Sertões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 32.
69
Sobre noção de Repertório aplicado à história intelectual ver: ALONSO, Ângela. Ideias em movimento. A
geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
28
perspectiva torne-se infrutífera à pesquisa.
Vera Lúcia dos Reis buscando observar esta condição de conservador em Tristão de
Athayde desde os anos 1910 aos anos 1940 terá de desconsiderar alguns aspectos como: a
relação que o autor teve com o socialismo, a apreciação positiva, ainda que breve, e depois
radicalmente contrária em relação à Revolução Russa, a crítica ao pensamento católico como
norteador da inteligência brasileira, a oposição ao governo Arthur Bernardes, o posicionamento
crítico em relação à ABL, as restrições, apesar do elogio geral, à obra de Oliveira Vianna, enfim,
uma série de processos que poderiam ao menos nuançar esse conservadorismo inveterado e por
décadas idêntico a si mesmo.
Adiantando uma breve reflexão em torno desta temática, a figura de Tristão de Athayde
pode ser pensada como a de um antimoderno. Trata-se, segundo definição de Antoine
Compagnon, de intelectuais que mantiveram uma relação ambígua e, especialmente, crítica em
relação à modernidade. Tenderam a resistir ao positivismo e às filosofias do progresso, são
envolvidos pelos temas da contrarrevolução, do anti-iluminismo, do pessimismo, da
religião/teologia, do sublime e marcados por um estilo vituperado. Vários dos nomes elencados
por Compagnon compareceram nas críticas de Tristão de Athayde, como Joseph de Maistre,
Nietzsche, Pascal, Baudelaire e Proust. Autores como Edmund Burke, De Bonald e Lammenais,
por outro lado, não fariam parte desta tradição, pois, seriam antimodernos:
Nem todos os campeões do status quo, os conservadores e reacionários até o ultimo
fio de cabelo, nem todos os atrabiliários e os frustrados com seu tempo, os
imobilistas e os ultracistas, os resmungões e os ranzinzas, mas os modernos
melindrados pelos tempos modernos, pelo modernismo ou pela modernidade, ou os
modernos que o foram a contragosto, modernos atormentados ou modernos
intempestivos70.
Uma imagem que considero especialmente relevante para a compreensão da produção de
Tristão de Athayde seria aquela do antimoderno que se situa na retaguarda da vanguarda.
O outro representante dessa terceira tendência interpretativa acerca da passagem de
Tristão a Alceu é Guilherme Simões Gomes Júnior. Adotando uma postura crítica em relação à
produção memorialística, Gomes Júnior, diferentemente de Vera Lúcia dos Reis, reconhece, na
verdade, quatro grandes fases na vida de Alceu Amoroso Lima: 1914-1925/28 a do crítico
agnóstico; 1928-1938/45 a do católico ultramontano radical, de liderança reacionária segundo
um catolicismo de forte atuação pública no combate às tendências esquerdistas e/ou defensoras
da laicidade do Estado e da educação; entre 1938/1945-1964, começaria um aggionarmento, a
partir dos debates do Concílio Vaticano II (1961-1965), e inicia sua relação de defesa das
tendências humanistas e democráticas de Jacques Maritain; 1964-1983 seria o último período
de sua vida, pautado pela defesa da liberdade e da luta contra a ditadura civil-militar. Por se
70
COMPAGNON, Antoine. Os Antimodernos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 12.
29
tratar de um artigo, o trabalho de Gomes Júnior procura descrever estas fases compondo uma
espécie de síntese acerca de toda trajetória de Alceu Amoroso Lima. Note-se, porém, a
importância e a radicalidade que o autor confere a estas mudanças de Alceu, especialmente as
duas primeiras, valorizando uma abordagem de sua trajetória que reconhece esses processos de
descontinuidade como heuristicamente mais ricos do que a busca por permanências reiteradas71.
Além das três tendências interpretativas com as quais criamos uma sistematização da
passagem de Tristão a Alceu, devemos apontar as perspectivas que abordam a obra de Alceu
Amoroso Lima no interior dos estudos literários segundo os critérios de teoria estética, teoria
da literatura e orientação acerca da história da literatura. Neste sentido, salientamos o texto de
Antônio Candido que se atém apenas ao primeiro livro assinado por Tristão de Athayde, Afonso
Arinos (1922), o qual é considerado como “excepcional para o tempo e com certeza a melhor
monografia de escritor até então publicada no Brasil”72. Tratando da obra Estudos Literários
lançada em 1966, Nilce Rangel del Rio73 tentara mostrar as diversas facetas da crítica de Tristão,
registrando, de forma sintomática, a relação que a crítica literária manteria com princípios éticos
sem, porém, trabalhar o significado e as características destes princípios. Já Gilberto Mendonça
Teles74 e Afrânio Coutinho75 produziram obras que procuram dar conta de toda produção
literária de Alceu Amoroso Lima. Estes autores, porém, não tematizaram a transição entre
Tristão e Alceu, tomando sua obra como um todo unificado.
Nossa perspectiva visa desenvolver e aprimorar aquela terceira tendência
interpretativa da passagem de Tristão a Alceu, procurando afastar-nos um pouco da memória e
aproximarmo-nos mais da história que procuramos construir. De fato, trata-se de adentrarmos
a obra do crítico literário não apenas em função da caracterização de sua individualidade
específica, singular, pessoal, mas em razão da sua relação com a vivência coletiva, dos
processos culturais e políticos que podem ser analisados através de sua produção. Destacamos
algumas especificidades de interesse historiográfico que o lugar do crítico literário pode
despertar. Infelizmente, são poucas as teorizações sobre este tipo de intelectual: o crítico. Vejase bem, não a crítica, mas o crítico, o personagem, a figura de mediador cultural por excelência,
divulgador, julgador e atualizador da cultura.
Ao historiador da cultura, especialmente da cultura intelectual, a figura do crítico
literário dedicado a todo tipo de produção impressa pode se tornar um meio extremamente
71
Cf. GOMES JÚNIOR, Guilherme Simões. Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso
Lima. Tempo Social – revista de sociologia da USP, v. 23. N. 2, novembro, 2011, p. 103-104.
72
CÂNDIDO, Antônio. Mestre Alceu em estado nascente. Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004, p. 83.
73
RIO, Nilce Rangel del. As múltiplas vozes de Tristão de Athayde. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
74
TELES, Gilberto Mendonça. O pensamento literário de Tristão de Athayde. Contramargem. Estudos de
literatura. Rio de Janeiro: PucRio, 2002.
75
COUTINHO, Afrânio. Tristão de Athayde, o crítico. Rio de Janeiro: Agir, 1980.
30
profícuo para a compreensão dos processos de produção editorial, circulação de impressos,
produção e apropriação de significados culturais, formação de campos e climas intelectuais,
debates e conflitos em torno de questões de interesse público etc. Tristão de Athayde se dedicou
durante os doze anos que compreendem sua estreia na Revista do Brasil e sua conversão ao
catolicismo em 1928 quase que exclusivamente à crítica literária. Periódica, recorrente e
aguardada conforme carta de Mário de Andrade ao crítico: “[...] já é costume: no domingo de
noite dou uma chegada até a praça Verdi comprar O Jornal e ler Tristão o que diz”76.
Críticos literários podem ser decisivos no interior de uma determinada cultura, como
afirma Blaise Wilfert, em seu estudo sobre George Sainstbury (1845-1933):
[...] a Trajetória de Saintsbury mostra o quanto a prática crítica, quer ela seja
alimentar [alimentaire] ou culturalmente ambiciosa, limitada à existência de
jornalista ou suscetível de trajar as roupas novas da dignidade universitária, foi uma
fonte decisiva no contexto da nacionalização cultural77.
De forma mais geral, em uma perspectiva bourdieusiana, os críticos seriam marcados pelo
“gosto” adquirido por seu capital cultural e social e munidos de autoridade, “encontrando-se
dispostos a orientar o gosto dos contemporâneos depois de já terem sido relacionados pelos
grupos ou instâncias de legitimação, como, por exemplo, os cenáculos, os círculos de críticos,
os salões”78. No cenário brasileiro das primeiras décadas do século XX, deve-se notar que, no
campos dos impressos, é “na seção de crítica literária, espaço conceitual-filosófico por
excelência, que vão expressar as polêmicas sobre o moderno a brasilidade”79.
A crítica, a crítica literária e a cultura intelectual brasileira
“No jornal anda todo o presente”.
Oswald de Andrade, Manifesto da Poesia Pau Brasil, 1924
A moderna noção de crítica, se pudermos chamar assim80, emergira, segundo Reinhart
Koselleck, nos fins do século XVII e desenvolvera-se durante todo o século XVIII e seguintes.
Sua configuração se daria em meio ao Estado absolutista pacificado, com as guerras religiosas
controladas, abrindo-se um espaço, ainda que privado e sem efeitos legais, para a reflexão moral
e, posteriormente, crítica. O autor considera em sua recomposição tanto as produções de autores
reconhecidos como panfletos e textos anônimos. A obra de John Locke, Ensaio sobre o
76
Carta de Mário de Andrade a Alceu Amoroso Lima, 25/03/1928, acervo Centro Alceu Amoroso Lima para a
Liberdade. (CAAL).
77
BLAISE, M Wilfert. L’oblat qui voulait être roi. George Saintsbury critique, Romantisme, 2003, no 121, p. 69.
78
REIS, Vera Lúcia dos. O perfeito escriba. São Paulo: Annablume, 1998, p. 57.
79
VELLOSO, Mônica Pimenta. Sensibilidades modernas: as revistas literárias e de humor no Rio da Primeira
República. In: LUSTOSA, Isabel (Org). Imprensa, história e literatura, p. 214.
80
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro:
UERJ: Contraponto, 1999, p. 202-203; MOISÉS, Massaud. A crítica literária. A criação literária. Prosa. São Paulo:
Cultrix, 1983, p. 293-295.
31
entendimento humano (1690), apontaria para a nova configuração social e cultural ao indicar
três espécies de leis: a Divina (sobre o pecado e o dever), a Civil (sobre o crime e a inocência)
e a Moral (sobre a virtude e o vício). Esta última, apesar de não possuir efetividade legal e
penal, configurava-se como condição à constituição de um foro exterior ao Estado absoluto,
qual seja, a própria noção de sociedade:
Sem autorização estatal, as leis da moral civil só existem, como em Hobbes, de
maneira tácita e secreta, mas já não se restringem aos indivíduos enquanto tais:
adquirem caráter obrigatório geral mediante o consentimento secreto e tácito dos
cidadãos [...]. O portador da moral secreta não é mais o indivíduo, mas a sociedade,
a “society” que se forma nos “clubs”, onde os filósofos se dedicam a investigar as
leis morais. Os cidadãos não se submetem apenas ao poder estatal: juntos, formam
uma sociedade que desenvolve suas próprias leis morais, que se situam ao lado das
leis do Estado81.
Feita em segredo, a crítica terá, no século XVIII, como espaços privilegiados a República das
Letras e as Lojas Maçônicas. O fundamental para nós é verificar a emergência e consolidação
do princípio de subjetividade moderno e sua necessidade de autocertificação82 (“consentimento
secreto e tácito do cidadão”) e, neste processo, o crescente dualismo entre uma reflexão moral
que se pretende não política, sob pena de sofrer as sanções do Estado absoluto, mas que nessa
tensão se volverá crítica tornando a crise cada vez mais iminente. A reflexão moral, cada vez
mais consolidada e incisiva, fatalmente haveria de tornar-se política.
O conceito de crítica, desde o século XVII, passa por vários desdobramentos até fins
do século seguinte. Nos cabe aqui apresentar sua forma consolidada, especificamente moderna,
quando “a crítica não permaneceu restrita aos campos da filologia, da estética e da história;
tornou-se, de modo geral, a arte de alcançar, pelo pensamento racional, conhecimentos e
resultados justos e corretos”83. Arrogando-se, não raramente, poderes irrestritos garantidos pela
Razão, a crítica passaria a emitir “sem parar notas promissórias contra o futuro”. No afã de se
colocar acima dos partidos, desinteressado e racional, o crítico torna-se “promotor e advogado”
cujo objetivo seria “estabelecer a verdade”. Porém, a necessidade de evitar o confronto direto
com o político fez das filosofias da história as fiadoras da verdade racional:
O utopismo originou-se de um mal-entendido em relação à política, mal-entendido que
foi condicionado historicamente e, em seguida, fixado pela filosofia da história. No fogo
cruzado da crítica, não se desmantelou apenas a política de então. Neste mesmo
processo, reduziu-se a própria política, enquanto tarefa constante da existência humana,
a construções utópicas do futuro. A estrutura política do Estado absolutista e o
desenvolvimento do utopismo são um processo complexo, no qual se inicia a crise
política do presente84.
A filosofia da história era a garantia de que a moral, apesar de seu caráter político
81
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: UERJ: Contraponto, 1999, p. 51.
Cf. HABERMANS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
83
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: UERJ: Contraponto, 1999, p. 96.
84
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: UERJ: Contraponto, 1999, p. 17.
82
32
indireto, se realizaria por necessidade racional. A crise, portanto, irromperia a partir do
descompasso entre sociedade (crítica) e Estado absoluto. A filosofia da história, por seu turno,
avalizaria de antemão que a decisão inerente à crise lhe seria favorável, isto é, reconhecível,
pressuposta e irresistível. A guerra civil, que teria sido a força motriz para instalação de um
Estado Absoluto, torna-se agora meio de estabelecer a justiça moral. Afinal, a “ordem social
está sujeita a revoluções inevitáveis” e, a partir da Revolução Francesa, longe de se encerrar a
crise, o que se verificaria seria o início de um “estado de crise” contínuo até os dias atuais.
Alguns autores, como Jean-Jacques Rousseau, teriam apontado claramente a dinâmica que
marcava a reflexão política, assim como sua incoerência/hipocrisia, do século XVIII europeu:
“Os que querem tratar separadamente a política e a moral jamais compreenderão nada de
nenhuma das duas”85. Assim, Rousseau, após criticar a sociedade e o Estado, teria buscado
superar a dicotomia através da unidade moral e política da “vontade geral” dotada de soberania,
ou seja, a sociedade estatizada. A totalidade racional do coletivo pronta a corrigir os desviantes.
Desse modo, o século XVIII teria vivido a emergência da crítica como constituinte das
filosofias da história, por sua vez, precursoras das crises. Estas seriam não mais vistas como
guerras civis, mas revoluções, tendo em si a promessa de um fim moral garantido pela
racionalidade aplicada à história. Assim, “da crítica soberana nasce, de maneira aparentemente
desimpedida, a soberania da sociedade”, expressa na opinião pública, e, “na condição de autor,
o intelectual burguês acreditava ser também criador de autoridade”86. A instalação de um
sistema dinâmico de constante reenvio dialético entre a sociedade (crítica e utópica) e o Estado
permaneceria como uma das forças constituintes do mundo moderno. Koselleck conclui:
[...] a utopia – que, após a oposição secreta da sociedade ao soberano absoluto, veio
dialeticamente à luz -, transformou-se nas mãos do homem dos tempos modernos
em um capital sem provisão política. A conta foi apresentada pela primeira vez na
Revolução Francesa87.
Em finais do século XVIII, porém, a reflexão que submetia irrestritamente o Estado, a Igreja e
a História ao crivo da Razão conhecera a crítica à própria Razão, apontando-lhe os limites e
condições de possibilidade da emissão de juízos acerca da verdade, do belo e do justo. A
filosofia kantiana, neste sentido, teria dado “um fim ao processo do Iluminismo”88.
Os séculos XIX e XX irão desenvolver os mais amplos significados e caminhos
possíveis ao trabalho crítico e intelectual. Se, no século XVIII, Voltaire - sob o véu de uma
distinção apolítica entre a crítica, o panfleto e o libelo - “ao praticar crítica literária, estética ou
histórica, criticava indiretamente a Igreja e o Estado”, posteriormente, a crítica literária
85
ROUSSEAU apud KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: UERJ: Contraponto, 1999, p. 140.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: UERJ: Contraponto, 1999, p. 160.
87
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: UERJ: Contraponto, 1999, p. 161.
88
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: UERJ: Contraponto, 1999, p. 96.
86
33
constitui-se como lugar privilegiado para verificação da dinâmica cultural política moderna:
significações da sociedade e do Estado. Assim é que o século XIX conhecerá desdobramentos
complexos no interior dos sentidos da crítica, desde as enunciações panfletárias às resenhas
acadêmicas, cujo maior suporte corrente será o jornal, a imprensa periódica e, no crepúsculo
dos oitocentos, as revistas especializadas89. Esta periodização que marca a passagem do jornal
ao livro e à revista especializada, porém, é válida para França90 e, provavelmente, para outros
países ocidentais, mas, no Brasil, o jornal, com modificações estruturais, substanciais e
singulares, continuará atendendo a esta demanda crítica variadíssima, pelo menos, até o início
da segunda metade do século XX91.
Assim, a fim de compreender os enunciados emitidos no interior da crítica literária é
preciso reconhecer seu contexto social e linguístico associado, primeiramente, a este veículo
revolucionário que foi o jornal. Machado de Assis, em 1859, dizia:
O jornal, abalando o globo, fazendo uma revolução na ordem social, tem ainda a
vantagem de dar uma posição ao homem de letras; porque ele diz ao talento:
Trabalha! vive pela ideia e cumpres a lei da criação! Seria melhor a existência
parasita dos tempos passados, em que a consciência sangrava quando o talento
comprava uma refeição por um soneto?92
Além de fazer “revolução”, o jornal poderia render dividendos à subsistência, algo que Olavo
Bilac reconhecerá como factível apenas cinquenta anos depois das considerações de Machado
e que Monteiro Lobato viu com surpresa ainda posteriormente93. Segundo Sérgio Miceli:
O que fora para alguns escritores românticos (por exemplo, Alencar e Macedo) uma
atividade e uma prática “tolerada”, tornando-se depois para certos elementos da
geração de 1870 (por exemplo, Machado de Assis) uma atividade regular que lhe
propiciava uma renda suplementar cada vez mais indispensável, torna-se a atividade
[na imprensa] central do grupo dos “anatolianos”94.
Antes da declaração de Machado de Assis, a crítica literária há décadas era canal de debates,
polêmicas e reflexões acerca da sociedade e da cultura brasileiras. Afinal, “no espaço de tempo
que se movimenta entre os anos de 1835 a 1872, a crítica literária conformou-se no país e
89
“Na prática da crítica bibliográfica, a revista estava em ruptura com o modelo canônico da crítica literária. [...]
O objetivo da revista não era de maneira alguma pedagógico, a vulgarização não é a sua ambição. Concebida e
redigida por ‘especialistas’ [...]. Ela devia constituir o ponto de reunião dos ‘profissionais da erudição científica’”.
MÜLLER, Bertrand. Lucien Febvre, lecteur et critique. Paris : Albin Michel, 2003, p. 118; 120.
90
Cf. LYON-CAEN, Judith. Lecteurs et lectures : les usages de la presse au XIXe siècle. In : KALIFA, Dominique ;
RÉGNIER, Philippe ; THÉRENTY, Marie-Ève ; VAILLANT, Alain. La civilisation du journal. Histoire culturelle
et littéraire de la presse française au XIXe siècle. Paris : Nouveau Monde, 2011, p. 29.
91
Cf. SUSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios. A formação da crítica brasileira moderna. Papeis colados.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003, p. 10.
92
ASSIS, Machado de. O jornal e o livro. In: AZEVEDO, S M et al. Machado de Assis, p. 76.
93
“A minha geração, se não teve outro mérito, teve este, que não foi pequeno: desbravou o caminho, fez da
imprensa literária uma profissão remunerada, impôs o trabalho”. BILAC Apud SOUZA, R L de. Pensamento social
brasileiro: de Raul Pompeia a Caio Prado Júnior. Uberlândia: EdUFU, 2011, p. 35. Lobato dizia em carta a
Godofredo Rangel: “Estranho isso de ganhar dinheiro com o que nos sai da cabeça. Vender pensamentos [...]”. Cf.
LUCA, Tania Regina de. Imprensa e mundo letrado paulista no início do século XX: o caso de Monteiro Lobato.
In: LUSTOSA, I (Org). Imprensa, história e literatura, p. 181.
94
MICELI, Sérgio. Poder, sexo e letras na República Velha. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 72.
34
definiu os pressupostos teóricos que orientam a literatura brasileira, colaborando, também, para
a definição do espaço-nação”95.
Coluna indispensável às folhas periódicas, a crítica literária, em uma heterogeneidade
apenas encoberta sob o título genérico, se constituiu no jornalismo do século XIX e XX como
veículo primordial do debate público e da apresentação de ideias sociais, políticas e culturais.
Raramente, porém, esta relação da crítica literária com seu suporte material-simbólico que era
o jornal é levada em conta. O que se percebe, através da história do jornal, é a disseminação
dos sentidos do termo “literatura”. Assim, entre os anos 1830 e 1860, os jornais franceses
ostentavam regularmente o subtítulo “político e literário” aludindo à imbricação dos termos.
Daí definições como a da Mme de Stäel, em 1800, segundo a qual a literatura deveria ser
considerada “[…] em sua acepção a mais extensa; quer dizer, enfeixando em si os escritos
filosóficos a as obras de imaginação, tudo o que concerne enfim o exercício o pensamento nos
escritos, excetuadas as ciências físicas”96, cobrindo, em geral, a arte de pensar e de se exprimir.
Ao mesmo tempo, a crítica literária, mormente em épocas de recrudescimento da
censura, algo que sempre marcou a história dos jornais, utilizou-se do termo literatura como
escaramuça para falar de política. A relação entre ambas beira à confusão:
Mais seriamente, esta confusão reflete também a verdadeira convicção,
profundamente enraizada nos espíritos do século XIX, de que a literatura e a política
são intimamente ligadas, que elas representam as duas dimensões complementares
da ação coletiva, o escritor se endereça ao seu público como o político ao povo,
mesmo se o primeiro adota voluntariamente o mundo menor da crônica agradável ou
da pilhéria irônica97.
Desvincular-se deste marco político em nome da propalada “autonomização da arte” será o
esforço de vários intelectuais europeus durante todo o século XIX configurando-se, portanto,
uma disputa pela “literatura”. Ao fim dos oitocentos, tal autonomização teria se realizado, ao
menos no que toca à crítica literária que passa a ter menos espaço nos jornais e a consolidar-se
em revistas especializadas. Situando a reflexão estética em primeiro plano, coordenando criação
e criadores em uma só expressão, a revista literária teria destronado o jornal cotidiano de seu
reino sobre a literatura. A crítica caminharia, assim, para a especialização e se destinaria a um
público mais limitado, um público de revista98.
Notemos, porém, alguns gestos anteriores. Na década de 1820, o jornal parisiense La
Minerve Littéraire tematizava esta relação entre literatura e política:
[...] a sociedade hoje está palpitante de interesses políticos: a política chama em seu
95
SOUZA, Roberto Acízelo de. A crítica literária no Brasil oitocentista: um panorama. In: CORDEIRO, Rogério;
WERKEMA, Andréa Sirihal; SOARES, Claudia Campos; AMARAL, Sérgio Alcides Pereira do (ORG’s). A crítica
literária brasileira em perspectiva. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2013, p. 31.
96
Cf. VAILLANT, Alain. La presse littéraire. In: KALIFA, D et al. La civilisation du journal, p. 318-319.
97
VAILLANT, Alain. La presse littéraire. In : KALIFA, D et al. La civilisation du journal, p. 319.
98
Cf. MELMOUX-MONTAUBIN, Marie. La critique littéraire. In: KALIFA, D et al. La civilisation du journal,
p. 940.
35
socorro a literatura, que faz aliança com ela, mas como auxiliar e sem deixar de ser
distinta e de ser ela mesma, assim como ela não cessa, ainda uma vez, de ser
literatura. [...] a literatura hoje deve abraçar as relações novas, não para sair de sua
esfera, mas para não a percorrer de uma maneira incompleta e fútil99.
A literatura que não se relacionava com a política correria o risco de ser incompleta e fútil. Anos
depois, um outro jornal de nome Minerva, do outro lado do Atlântico, desenvolvia um debate
seminal na história da crítica literária brasileira em seu sentido amplo e indefinido. Trata-se dos
artigos de Santiago Nunes Ribeiro intitulados “Da nacionalidade da literatura brasileira”
publicados em Minerva Brasiliense – Jornal de sciencias, lettras e artes100 em 1843. A
discussão envolvia os nomes do General José Inácio de Abreu e Lima, autor de Bosquejo
histórico, político e literário do Brasil [1835], e José da Gama e Castro que em artigo
precedente defendera a não existência da literatura brasileira. Além disso, o debate compreendia
as concepções de Ferdinand Denis, Almeida Garrett e Gonçalves de Magalhães, especialmente
ligadas à produção brasileira e as ideias da filosofia romântica alemã de Goethe, Hegel e
Schlegel. Os temas fundamentais eram a especificidade do literário, sua relação com o nacional
e a possibilidade de uma literatura brasileira.
Enquanto o general Abreu Lima entendia a literatura como algo amplo, “um corpo de
doutrinas que professa uma nação”, Santiago Nunes Ribeiro defendia que:
Sem dúvida nenhuma a palavra literatura na sua mais lata acepção, significa a
totalidade dos escritos literários ou científicos; e é neste sentido que dizemos –
literatura teológica, médica, jurídica. – Mas daqui não se segue que devamos admitir
tal acepção quando se trata de literatura propriamente dita. Ninguém ainda procurou
a literatura italiana, inglesa, ou francesa nas Memórias da Academia del Cimento,
nas Transações filosóficas, ou no Journal des Savants ou de Physique. Não é de
Lancisi, Galileu, Volta ou Galvani que se nos fala na história literária, não é de Boyle,
Cavendish, Davy, etc. mas de Dante, Petrarca, Ariosto, Machiavelli, Shakespeare,
Milton e Bossuet, Corneille101.
Sem conceder uma definição rígida à literatura, algo que ainda hoje parece constranger os
teóricos102, Nunes Ribeiro tenta pela exemplaridade reconhecer o corpo literário. A inclusão de
nomes como Maquiavel e Bossuet, no entanto, revela a dificuldade de reconhecermos aí o
99
DARNIN apud VAILLANT, Alain. La presse littéraire. In: KALIFA, D et al. La civilisation du journal, p. 319.
Minerva Brasiliense (1843), Nitheroy (1836) e a Guanabara (1849) formariam, segundo Antonio Candido, a
tríade do romantismo brasileiro. Cf. MOREIRA, Maria Eunice. O Brasil em papel: ideal e propostas no
pensamento crítico do romantismo. In: CORDEIRO, R et al; A crítica literária brasileira em perspectiva, p. 36.
101
RIBEIRO, Santiago Nunes. Da nacionalidade da literatura brasileira. Minerva Brasiliense – Jornal de sciencias,
lettras e artes, Rio de Janeiro, n 1, 1 nov. 1843, Typographia de J e S Cabral, R do Hospício 66, p. 8.
102
Luiz Costa Lima considera que a literatura é “apenas uma convenção, impossível de caber em um conceito”. O
autor lembra posições atuais que mantêm horizontes largos, apesar de buscarem uma definição positiva segundo
um “formalismo” unificador, como a de Hans-Georg Gadamer: “Ao modo de ser da literatura compete toda
pesquisa seriamente pensada que esteja essencialmente ligada à forma da linguagem”. Cf. LIMA, L C. História,
ficção, literatura, p. 347; 326. Terry Eagleton afirma: “Minha opinião é que seria mais útil ver a ‘literatura’ como
um nome que as pessoas dão, de tempos em tempos e por diferentes razões, a certos tipos de escrita [...]”.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 281. Antoine
Compagnon, por sua vez, recorda Roland Barthes na frase tautológica, provocativa e expressiva do ponto a que
chegara a reflexão secular: “A literatura é aquilo que se ensina, e ponto final”. Cf. COMPAGNON, Antoine. O
demônio da teoria. Belo Horizonte: UFMG, 2001, p. 30.
100
36
critério delimitador. A filosofia romântica alemã era retomada não para definir as produções
rigorosamente literárias, mas para garantir que tais criações fossem a “voz da inteligência
humana, o complexo dos símbolos que representam o espírito de uma idade ou o caráter de uma
nação”103 e que “a literatura é a expressão da índole, do caráter, da inteligência de um povo ou
de uma época”104. Tentava-se verificar a identidade da literatura brasileira que, como expressão
de um povo geograficamente, temporalmente e nacionalmente constituído, não poderia ser
confundida com a literatura portuguesa, simplesmente por utilizar a língua lusitana.
O debate acerca do literário tinha, assim, marcada conotação política, mobilizando as
noções de povo e nação em um contexto pós-independente intelectualmente constrangido pela
necessidade de constituir sua identidade e de desvelar o caráter nacional, um dos temas de mais
longeva duração na tradição da inteligência brasileira. O que, quem, como é o Brasil? A palavra
literária, seja impulsionada pela “cor local”, seja procurando restringir-se a um “instinto de
nacionalidade”105, estará empenhada106 nesta problemática.
Assim, o horizonte literário romântico e pós-romântico brasileiro terá sempre que lidar
com a indeterminação do literário, qual seja, naquilo que ele tem em relação com a política, a
sociedade e a cultura. Desse modo, a crítica literária, além de fazer destes eixos uma constante
de sua reflexão, mesmo quando se esforçara pela constituição de uma definição do literário em
sua autonomia, via as questões de ordem política, histórica, cultural e social voltarem pela porta
dos fundos. Ao fim do século XIX, tais disputas em torno do literário permaneciam fortes e
sedimentadas. As reflexões de Sílvio Romero e José Veríssimo demonstram tal situação. Na
obra História da Literatura Brasileira (1888), Sílvio Romero afirmara que “em nossa divisão
não nos guiamos exclusivamente pelos fatos literários; porque para nós a expressão literatura
tem a amplitude que lhe dão os críticos e historiadores alemães. Compreende todas as
manifestações de um povo”107.
José Verissimo, por sua vez, demarcaria uma posição diametralmente oposta à de
Romero, atualizando uma história de polêmicas na crítica literária oitocentista brasileira - como
nas querelas que José de Alencar travara com Gonçalves de Magalhães, Joaquim Nabuco e
103
SCHLEGEL apud RIBEIRO, S N. Da nacionalidade da literatura brasileira, Minerva Brasiliense, p. 8.
RIBEIRO, Santiago Nunes. Da nacionalidade da literatura brasileira, Minerva Brasiliense, p. 10.
105
Expressão título do artigo de Machado publicado originalmente nos Estados Unidos no jornal Novo Mundo, em
24 de março de 1873. “Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente
alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a
empobreçam. O que se deve exigir de um escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do
seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. ASSIS, Machado de Assis.
Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade. In: AZEVEDO, S M et al. Machado de Assis, p.
432-433.
106
“[o nacionalismo artístico] (...) leva a requerer em todos os setores da vida mental e artística um esforço de
glorificação dos valores locais, que revitaliza a expressão, dando lastro e significado a formas polidas, mas
incaracterísticas”. CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). Vol 1, p. 10.
107
ROMERO, Sylvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Garnier, 1888, p. 13.
104
37
Franklin Távora. Se, por um lado, é a obra de Machado de Assis que se faz objeto de disputa,
atacada por Romero e defendida por Veríssimo, por outro lado, é a própria definição de literário
que se torna o ponto fulcral deste debate. Veríssimo dirige-se a Romero, sem nomeá-lo:
Literatura é arte literária. Somente o escrito com o propósito ou a intuição dessa arte,
isto é, com os artifícios de invenção e de composição que a constituem é, a meu ver,
literatura. [...] Nem se me dá a pseudonovidade germânica que no vocábulo literatura
compreende tudo o que se escreve um país, poesia lírica e economia política,
romance e direito público, teatro e artigos de jornal e até o que se não escreve,
discursos parlamentares, cantigas e históricas [sic] populares, enfim autores e obras
de todo o gênero108.
A citação seguinte, porém, que o autor faz de Gustave Lanson109 revela toda ambiguidade de
tais definições. A literatura destinada a causar prazeres intelectuais e pedagogicamente voltada
à produção do gosto pelo pensamento seria um instrumento de “cultura interior”. E, pela
“dificuldade” da filosofia e demais saberes especializados, caberia à literatura a obra de
“vulgarização da filosofia”, ferramenta ao desembrutecimento da massa, pois, “para muitos dos
nossos contemporâneos sumiu-se-lhes a religião, anda longe a ciência; da literatura somente
lhes advêm os estímulos que os arrancam ao egoísmo estreito ou ao mester embrutecedor”110.
Quando, em 1919, três anos após o último de livro de José Veríssimo, Tristão de
Athayde lançava-se à crítica literária periódica, os contornos do objeto aparecem em sua
ambivalência e generalidade. Segundo Tristão de Athayde:
Se me não prendem preconceitos de tempo, menos me tolhem os de escolas ou
tendências. Para autores nacionais e estrangeiros, revistas ou folhetos, artistas ou
técnicos, para todos os que trouxerem uma ideia nova, uma beleza, um pensamento
útil, está reservada a acolhida nesta coluna111.
Como se vê, à crítica literária caberia um objetivo amplo de contemplar personagens diversos
(nacionais ou estrangeiros), materiais distintos (revistas, folhetos, livros e panfletos), com
objetivos e características variadas (artísticos ou técnicos). Ao mesmo tempo, a função da crítica
era relacionada àquela do jornal: “ser um orientador de espíritos” e constituir-se em ferramenta
fundamental à formação da nacionalidade.
A partir das primeiras considerações de Tristão de Athayde, devemos expor alguns
questionamentos que nos tocam diretamente na feitura deste trabalho. Na recomposição
acadêmica da trajetória da crítica literária oitocentista brasileira, em geral, notamos uma
disposição à exposição de uma série de “momentos” da crítica constituídos em concretizações
autorais, como precursoras ou comprometedoras de uma visão atual. Não raro, a perspectiva
teleológica aparece, consequentemente o olhar para o passado converte-se em espécie de
108
VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira (1916). In: BARBOSA, João Alexandre. José Veríssimo.
Teoria, crítica e história literária. São Paulo: EdUSP, 1978, p. 98.
109
A crítica universitária se afirmara como ciência do texto, tendo em Gustave Lanson (1853-1953) uma figura
chave. Cf. MÜLLER, Bertrand. Lucien Febvre, lecteur et critique. Paris: Albin Michel, 2003, p. 210.
110
LANSON apud VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. In: BARBOSA, J A. José Veríssimo, p. 99.
111
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 jun. 1919, p. 9.
38
genealogia do presente, notando aquilo que faltara aos autores na conformação da ideia que o
presente/pesquisador faz do tema. Daí a falta de escritores universais, de originalidade literária,
de linguagens difíceis na realidade intelectual brasileira, como ilustra Antônio Cândido:
Correspondendo aos públicos pequenos e singelos a nossa literatura foi geralmente
acessível como poucas, pois até o Modernismo não houve aqui escritor realmente
difícil, a não ser a dificuldade fácil do rebuscamento verbal, que, justamente porque
se deixa vencer logo, tanto agrada aos falsos requintados. (...) Mesmo quando o
grande público permanece indiferente, e ele só conta com pequenos grupos, o
escritor brasileiro permanece fácil na maioria dos casos (...) ele sempre reivindicou
entre nós tarefas mais largas do que as comumente atribuídas à sua função específica.
Estas considerações mostram porque quase não há no Brasil literatura
verdadeiramente requintada no sentido favorável da palavra [...]112.
Podemos considerar que nosso ponto de partida é aquele a que parece ter chegado tais reflexões.
Menos que verificar o descompasso, a falta, a facilidade, a fraqueza, os limites da literatura e
do sistema literário nacionais, procuramos, justamente, explorar, especialmente, estas “tarefas
mais largas do que comumente atribuídas à sua função específica”. É aí que acreditamos residir
a riqueza para construção, não de uma história da literatura, mas de uma história intelectual e,
mais especificamente, daquilo que chamamos cultura intelectual brasileira.
É preciso considerar que os debates, as polêmicas e as discussões que apresentamos
acima se deram nas páginas de jornais. E, do mesmo modo que as reflexões teóricas, as
perspectivas metodológicas e os posicionamentos críticos modificaram-se sensivelmente,
também este veículo, o jornal, assumiu variadas formas, técnicas, qualidade e profusão na
passagem do século XIX ao XX. No Momento Literário (1907), João do Rio, numa tentativa
de síntese dos trinta e oito depoimentos coletados, considera que “os vencedores acham todos
os jornalismo animador, o jornalismo necessário; os que por inaptidão, trabalho lento ou
hostilidade dos plumitivos, ainda não se apossaram das folhas diárias, atacam o jornalismo,
achando essa ideia um elegância de primeira ordem”113. Vencedores eram os já acomodados na
ABL, que retiravam ganhos financeiros dos jornais e tinham seu nome no cartaz periódico.
Para o bem ou para o mal, expressão da miséria, do analfabetismo e da fragilidade do
sistema intelectual brasileiro, o jornal se impôs como meio de profissionalização, divulgação,
produção e circulação dos intelectuais. Assim, as relações entre literatura e mundo político,
cultural e social tornavam-se ainda mais indistintas. Como aponta Olavo Bilac:
A Arte de hoje é aberta e sujeita a todas as influências do meio e do tempo: para ser
a mais bela representação da vida, ela tem de ouvir e guardar todos os gritos, todas
as queixas, todas as lamentações do rebanho humano. Somente um louco – ou um
egoísta monstruoso -, poderia viver e trabalhar consigo mesmo, trancado a sete
chaves dentro do seu sonho, indiferente a quanto se passa, cá fora, no campo vasto
em que as paixões lutam e morrem, em que anseiam as ambições e choram os
112
113
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1980, p. 86.
RIO, João do. O momento literário (1907). Curitiba: Criar, 2006, p. 222.
39
desesperos, em que se decidem os destinos dos povos e das raças...114
No interior deste contexto, o jornal era visto, pela maioria dos escritores entrevistados por João
do Rio, como “o” meio e instrumento de ação social, cultural e pedagógica.
Quando Tristão de Athayde iniciou sua coluna Bibliografia, em 1919, o jornal estava
decididamente fixado como meio privilegiado do debate público, reunia a maior parte dos
escritores, dos artistas da palavra, do desenho, da crônica, do pensamento político, social e
cultural. Era o foro de lançamento, consagração e crítica dos intelectuais. As técnicas, processos
e meios de feitura, divulgação e circulação dos jornais, também conheciam no despontar dos
anos vinte alterações substanciais, consolidando-se como empresa capitalista.
Dissemos acima que a reflexão acerca do conceito de literatura e de crítica literária
seria um meio para a constituição de uma história da cultura intelectual brasileira dos anos 1920.
Em geral, procura-se considerar o intelectual como uma espécie moderna, um agente que
emerge no contexto do final do século XIX francês em meio a diversas modificações nos
campos cultural, social e político daquele país. Não haveria uma continuidade entre os
sacerdotes, os professores, os homens de letras, os sábios, os escritores e os intelectuais em um
percurso secular. Ao contrário, o neologismo “intelectual” nascendo às margens do vocabulário
social guardaria tanto um métier difuso quanto um dever ser normativo em construção. O
intelectual era expressão do divórcio entre as antigas representações do homem de letras, do
cientista, do artista, do universitário, ainda dominantes, e a situação nova criada pela expansão
do campo e pelas condições políticas democráticas da Terceira República. Em 1903, Joseph
Reinach considerava o termo como referente às pequenas revistas literárias, de jovens
derrogadores da política e que se aplicavam uma superioridade sobre o resto dos homens115.
Não raro, portanto, o termo intelectual diria respeito a uma comunidade ideológica
associada a algumas palavras de ordem ou princípios estéticos defendidos por um autor e
constituindo um público de vanguarda política e estética. A associação entre arte, política e
autonomização do campo intelectual irromperia de forma clara e reconhecível a partir do
contexto do affaire Dreyfus e do manifesto J’accuse de Émile Zola. Aí estaria consumada a
“invenção do intelectual”, o que não significa a conformação de um estado coisas homogêneo,
lógico e claro. Pelo contrário:
[...] paradoxalmente, é a autonomia do campo intelectual que torna possível o ato
inaugural de um escritor que, em nome das normas próprias do campo literário,
intervém no campo político, constituindo-se, assim, como intelectual. O “Eu acuso”
é o resultado e a consumação do processo coletivo de emancipação que
progressivamente se realizou no campo de produção cultural: enquanto ruptura
profética com a ordem estabelecida, reafirma, contra todas as razões de Estado, a
irredutibilidade dos valores de verdade e de justiça e, ao mesmo tempo, a
114
115
BILAC apud RIO, João do. O momento literário (1907). Curitiba: Criar, 2006, p. 18.
Cf. CHARLE, C. Naissance des “intellectuels”. 1880-1900. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990, p. 56.
40
independência dos guardiães desses valores com relação às normas da política (as do
patriotismo, por exemplo) e às sujeições da vida econômica116.
Assim, o intelectual surge em meio aos processos de autonomização, simbolizados em lemas
como os da “arte pela arte”, do mercado editorial, da política profissional, da consolidação das
universidades, da especialização dos saberes e fazeres. Ele é uma espécie de corte transversal
deste processo que, por seu turno, será marcado por várias representações acerca de seu ethos.
Há, neste sentido, uma tradição normativa em torno da história intelectual, que talvez
tenha ganhado maior visibilidade nas ultimamente décadas em função da crise acerca de tal
identidade. Émile Zola, Julien Benda, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Pierre Bourdieu, Michel
Foucault e Edward Said117, para citar apenas nomes de grande fortuna nesta tradição,
desenvolveram princípios, não raro antagônicos entre si, sobre o que é ou deva ser um
intelectual. Engajado, específico, autônomo, partidário ou clérigo, o intelectual conheceu
diversas caracterizações no decorrer do século XX, inclusive sendo depreciado por muitos
intelectuais que compuseram uma tradição anti-intelectual, como Maurice Barrès, Bertrand
Russel e Julien Benda, cujo patrimônio neste debate é contraditório. Chegaríamos, enfim, às
lamentações de uma destituição dos intelectuais e de uma perplexidade sobre seu papel118.
Assim, se partíssemos das indagações atuais sobre o que é um intelectual, poderíamos
utilizar a história dos intelectuais a fim de caracterizar agentes, lugares de atuação, debate,
produções de saberes, relações com governos e instituições, atualizações e refutações de
tradições políticas, sociais, culturais e artísticas, produtores de discursos, valores e significados
que configuram o regime de legitimidade político. Tanto operadores do poder simbólico, quanto
veiculadores de representações conflitantes acerca do mundo histórico. Aquilo que Mannheim
chamara de “todos pontos-de-vista contraditórios”. Chegaríamos a uma miríade de
possibilidades acerca de cada um destes temas. A história intelectual é variada e complexa.
A ideia de uma cultura intelectual surge-nos na medida em que verificamos a
experiência da crítica vinculada ao jornal em uma sociedade que não produzira os processos
radicais de autonomização das diferentes disciplinas intelectuais. Quer dizer, em função da
precariedade do sistema intelectual das primeiras décadas do século XX no Brasil, o jornal,
como já foi reiteradamente dito, constituiu-se como meio de expressão, profissionalização e
comunicação primordial da classe intelectual. Ao mesmo tempo, a noção de “literatura”
116
BOURDIEU, P. As regras da arte. São Paulo: Cia das Letras, 1996, p. 150.
Cf. ALTAMIRANO, Carlos. A tradição normativa. Intelectuales. Notas de investigación. Bogotá: Grupo
Editorial Norma, 2006.
118
“Hoje o intelectual é um histrião, um palhaço, sem obra e sem autoridade, assim mantém um lugar na mídia,
manter-se visível é seu imperativo categórico”. Cf. ZARKA, Yves Charles. La destitution des intellectuels. Paris:
Presses Universitaires de France, 2010, p. 7; “A figura do intelectual especializado, como a encarnaram Michel
Foucault e Pierre Bourdieu, já se tornou caduca. Hoje é ainda mais atomizada, especialistas que falam como
especialistas e não mais problematizam nada”. Cf. NOIRIEL, Gérard. Dire la vérité au pouvoir: les intellectuels
en question. Paris: Agone, 2010, p. 259.
117
41
abarcava, não raro, o conjunto das produções do espírito, não se restringindo a uma esfera de
atuação, como a prosa de ficção, a poesia etc. Ao contrário, a crítica literária também se
encarregava do tratado sociológico, dos livros de geografia, de história, de educação infantil,
das revistas de arte, educação e política, dos livros de humor, dos impressos dos mais variados
tipos e até de eventos correntes. Assim, ela centralizava os debates intelectuais, sendo um dos
focos fundamentais à compreensão da história intelectual do período.
Neste sentido, o conceito de cultura intelectual opera, fundamentalmente, na
configuração de uma perspectiva historiográfica que se distingue das histórias disciplinares:
história da literatura, história do pensamento social brasileiro, história do urbanismo, história
da charge e da ilustração, história da ciência etc. Isso porque este suporte fundamental ao campo
intelectual do início do século, o jornal, articulava as várias dimensões e atividades intelectuais.
Pode-se dizer que, enquanto a institucionalização dos saberes criou academicamente disciplinas
que contam a sua própria história, os objetos dessa história conheciam uma realidade histórica
marcadamente interdisciplinar. Ou seja, a história vivida é interdisciplinar, ao passo que a
escrita das histórias se configurou disciplinarmente, inclusive evitando, a todo preço, as
“contaminações” entre as áreas de saber.
Dessa forma, a análise de um crítico literário, como Tristão de Athayde, que, por
décadas, atuou regularmente na imprensa diária, mais do que nos revelar sua trajetória
individual, suas ideias, posicionamentos etc. nos reenvia a um conjunto de produções que
compunham essa cultura intelectual. Uma crítica reenvia a um livro, que reenvia a um autor,
que remete a uma outra crítica e, não raro, a um outro jornal. Um tema como o anarquismo, por
exemplo, perpassava as mais diversas produções, suportes, interpretações e personagens. O
anarquismo era construído nos movimentos operários, nos jornais anarquistas, mas também nos
livros de romance social, na crítica literária que “explicava” e hierarquizava ideias, nos
panfletos, nas charges dos grandes diários, nos fait divers dos jornais, nos editorais e artigos de
intelectuais e nas cartas de leitores.
Assim, a história de uma “ideia”, de uma tradição política, não se resume aos grandes
autores, às obras clássicas, aos textos fundamentais, à classe social, ao campo disciplinar, mas,
segundo o interesse historiográfico, à história da enunciação e recepção destas proposições que
passam a ser traduzidos em uma rede simbólica complexa, conflituosa e heterogênea. O mesmo
pode-se dizer de vários tópicos da história intelectual: as ideias políticas, literárias, sociológicas,
culturais. Menos que formar cânones, reconhecer tradições e reiterar interpretações
sistemáticas, é a observação da dinâmica dos discursos e representações em um determinado
presente/passado o que importa ao historiador da cultura.
A reflexão acerca do conceito de cultura intelectual só pode emergir mediante a
42
reivindicação de um lugar especifico acerca do olhar do historiador. Há na tradição
historiográfica a reiterada associação e, mais do que isso, a sua orientação segundo paradigmas
propostos pelas diversas ciências humanas: sociologia, economia, filosofia, teoria da literatura
etc. que parecem fornecer ao historiador as chaves de entendimento do passado histórico.
Haveria, porém, uma possibilidade contrária? Qual seja, um lugar em que, sem desprezar as
contribuições dos saberes das humanidades, pudesse propiciar algo como um olhar
historiográfico ou, ao menos, uma perspectiva que distinguisse um paradigma historiográfico?
“Ciência dos homens no tempo”, dizia Marc Bloch sobre o que é a história. Se a
palavra “ciência” causa certo desconforto após todas as viradas de paradigmas e de crítica
epistemológica por todo o século XX, os “homens no tempo” permanecem como o horizonte
historiográfico fundamental. A pergunta sobre o que é um homem nos reenviaria, na verdade, a
cada uma das disciplinas humanas119. Afinal, no fundo, está sempre a questão sobre o que é o
homem e o que o condiciona, o determina, o impulsiona, o significa e o constrói. O ser humano
como uma fera que não se deixa domar pela rédea de um sentido final unívoco. Uma vez, porém,
que não há hoje um paradigma científico que afiance totalmente o saber historiográfico, cabe a
este se construir de maneira específica no interior das visadas acerca do passado, neste caso,
não apenas das ciências, mas dos saberes em geral. Estes, conforme a dinâmica temporal que
cada vez mais alarga os âmbitos existenciais do presente e do passado em detrimento de
projeções futuras120, têm no passado uma referência constante na produção de filmes, novelas,
memórias, romances, séries, documentários, monumentos, efemérides etc. A reflexão sobre a
“não espontaneidade”121 da prática do historiador pode tornar mais clara a especificidade de sua
tarefa no interior deste concorrido e aguerrido mercado de bens simbólicos. Neste sentido, o
historiador não pode ser um sociólogo, economista, literato ou antropólogo dos tempos vividos.
Seja porque tais paradigmas não têm a sustentabilidade epistemológica que prometiam, seja
porque tais disciplinas têm questões que não contemplam as expectativas do historiador.
119
Para uma rápida descrição do tema, ver o verbete “Antropologia” em: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de
filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 68-69.
120
Cf. HARTOG, François. Temps et histoire – comment écrire l'histoire de France? Annales, pp. 1219-1236 ,1995;
KOSELLECK, Reinhart. O futuro passado dos tempos modernos. Futuro Passado – Contribuição à semântica
dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed Puc Rio, 2006.
121
O historiador e teórico Renán Silva reflete neste sentido, questionando a “banalidade” com que em geral é
tomada a atividade do historiador, como se esta se confundisse com o periodismo, com a crônica ou formas de
ciências sociais e políticas retrospectivas. Além disso, há políticas oficiais que veem no historiador apenas um
organizador de memórias. Daí a necessidade de afirmar que o historiador cumpre “[…] un oficio que supone, por
lo tanto, procesos de formación académica que no pueden ser suplantados por la actividad militante ni improvisada
y aficionada – la del amateur, la del erudito local -, actitud según la cual se piensa que basta querer hacer un
análisis histórico para que el milagro se produzca, lo que transmite la imagen de que cualquiera, por fuera de todo
esfuerzo de preparación, puede dedicarse a las tareas del análisis histórico, dejando además sembrada la idea que
todo relato relacionado con el pasado, bajo cualquier propósito y condición, es un análisis histórico”. SILVA,
Renán. Lugar de dudas. Sobre la práctica del análisis histórico. Breviario de inseguridades. Bogotá: Universidad
de los Nades, 2014, p. 142.
43
O conceito de cultura intelectual propõe uma visão da produção cultural em um
período determinado para além das matrizes disciplinares. Ou seja, não se trata de uma história
da literatura, das ideias, do pensamento social, da arte, do urbanismo, da publicidade, da charge,
econômica, social etc. Nem, muito menos, uma história de tudo isso ao mesmo tempo. Talvez,
tal conceito e, mais amplamente esta reflexão, procure retornar à frase de Marc Bloch e focar
nestes “homens no tempo”, mais precisamente, na vida destes homens no tempo. Não se trata
de recuperar um ardiloso campo conceitual e cultural que reivindicaria o romantismo e o pósromantismo oitocentistas. Mas de retomar algumas categorias precisas, como as estabelecidas
pelo teórico alemão Wilhelm Dilthey, em suas reflexões sobre as diferenças entre ciências
humanas e ciências da natureza e, precisamente, sobre a história:
A vida histórica é criadora. Age constantemente produzindo bens e valores, e todos
os conceitos desses bens e desses valores não são mais do que reflexos de sua
atividade. Os suportes dessa criação constante de valores e de bens no mundo
espiritual são indivíduos, comunidades, sistemas culturais em que os particulares
colaboram122.
Noções como as de “vivência” (Erlebnis) podem instigar o historiador a refletir sobre
o mundo histórico de maneira crítica e compreensiva e a não se contentar com sínteses e
esquemas de entendimento que parecem antes desviá-lo deste mesmo mundo histórico. Dessa
forma, refletir sobre o passado em torno da vivência em um determinado período, desde que se
tomando em conta todas as restrições epistemológicas envolvidas na necessária limitação
essencial de todo saber histórico, pode ser um bom ponto de partida para uma perspectiva
historiográfica menos dependente de esquemas teóricos alheios e insuficientes. Não se tem aí
nenhuma pretensão à construção de paradigmas totalizantes ou perspectivas objetivistas como,
estranhamente, parece acreditar Hans Ulrich Gumbrecht, ao afirmar que:
Sempre que recitamos os monólogos ou os diálogos da maneira que Corneille ou
Racine os imaginaram, convocamos esses textos para uma nova vida. Os sons e os
ritmos das palavras são atirados contra nossos corpos do mesmo modo que eram
atirados aos corpos dos espectadores naquele tempo. Aí reside um encontro – uma
imediatez, uma objetividade do passado-feito-presente – que não pode ser minado
por nenhum ceticismo [grifos nossos]123.
O historiador e teórico alemão parece ter perdido a dimensão essencial acerca do conceito de
anacronismo. No interior mesmo da tradição na qual Dilthey está inserido, a Hermenêutica, já
lhe foi feita a crítica sobre o alcance que poderia atingir os esforços compreensivos dos
historiadores, assim como a necessidade da reflexão histórica em propor categorias
extralinguísticas, como sugeriu Koselleck:
O historiador [...] se serve basicamente dos textos apenas como testemunhos para
averiguar a partir deles uma realidade existente além dos textos. Por conseguinte,
122
DILTHEY, Wilhelm. Apud LORIGA, Sabina. O pequeno x - da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica,
2011, p. 124.
123
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, stimmung. Sobre um potencial oculto da literatura. Rio de
Janeiro: Contraponto: PUC Rio, 2014, p. 24.
44
tematiza, mais que todos os outros exegetas de textos, um estado de coisas que em
qualquer caso é extratextual, ainda quando ele constitua sua realidade apenas com
meios linguísticos124.
A história aí aparece como condição de possibilidade para a existência dos registros linguísticos.
Mais do que procurar o sentido preciso de uma lei antiga, como um jurista, ou a forma real de
um poema do passado, como o exegeta, o historiador procura aquilo que provocou os
enunciados, pois “escrever a história de um período significa fazer enunciados que não puderam
ser feitos nunca nesse período”125.
Assim, o conceito de cultura intelectual não reivindica qualquer tipo de totalização,
objetivismo ou irracionalismo. Seguindo uma tradição acerca dos estudos das sensibilidades,
representações, práticas, trajetórias, debates, formações discursivas etc. ele pretende dar conta
de uma dinâmica histórica específica. Tal dinâmica refere-se à produção intelectual no Brasil
dos anos 1920. Esta era, invariavelmente, condicionada à produção em periódicos e, mormente,
jornais diários. E isso não se restringe aos ramos da escrita. Pintores, chargistas, peças de teatro,
projeções cinematográficas tinham suas produções anunciadas, comentadas e ilustradas na
imprensa cotidiana. O lado oposto da “miséria cultural” do período é este lugar de encontro,
debates, disputas e divulgação que se tornou o jornal. Monteiro Lobato, reconhecendo a força
do veículo, fazia graça sobre o leitor de jornais que assim falaria:
_ A peça de ontem? Não sei se é boa ou má. Inda não li o “jornal”...
Não dizem os jornais. Singularizam, porque opinião decisiva há uma só, a do seu
jornal. Os outros...
Daí jornais de toda a cor e feitio, amarelos, rubros, cinzentos; escritos com cordite
líquida ou mel rosado; vestidos à última moda ou capistranescamente; sisudos ou
brincalhões; honestos ou canalhas. Diz-me que jornal lês, dir-te-ei que bisca és126.
Desse modo, cultura intelectual poderia ser, no Brasil das primeiras décadas do século
XX, a “cultura do jornal”. Desse intercâmbio de conceitos nota-se a necessária reflexão sobre
outro termo: o intelectual. Como aludimos acima, o conceito de intelectual passou e passa por
variadas acepções não sendo hoje problema algum afirmar a imprecisão da palavra. Há dez
anos, no livro O papel do intelectual hoje, os autores ali reunidos formam um verdadeiro muro
das lamentações. Apesar de a maioria se constituir de professores universitários, há presenças
de personagens desvinculados do mundo acadêmico, como o cineasta Sílvio Tendler que, por
sua vez, lastima que o cinema nacional se tornara entretenimento127, abandonando-se os lemas
das vanguardas das décadas anteriores. Dentre os professores, é geral certo reconhecimento de
terem se fechado nas universidades, se afastado da mídia, escreverem apenas para os próprios
124
KOSELLECK, Reinhart. Historia y hermenéutica. Barcelona: Paidós, 1997, p. 91. .
KOSELLECK, Reinhart. Historia y hermenéutica. Barcelona: Paidós, 1997, p. 92. .
126
LOBATO, Monteiro. Introito, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 jun. 1920, p 1.
127
Cf. TENDLER, Sílvio. O cineasta enquanto intelectual. In: GOMES, Renato Cordeiro; MARGATO, Izabel. O
papel do intelectual hoje. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 173.
125
45
pares, reclamarem da falta de leitores e da debilidade cultural do contexto que os cerca128.
Ironicamente, todos parecem considerarem-se intelectuais.
O tema dos intelectuais sempre carregou ambiguidades. A emergência histórica como
conceito coletivo, apesar de conhecer formas anteriores, se deu no contexto do affaire Dreyfus,
em 1898, quando o escritor Émile Zola fez um protesto no jornal Aurore littéraire, artistique,
sociale contra a forma pela qual o julgamento do capitão judeu Alfred Dreyfus vinha sendo
feito. Assim, a figura do intelectual clássico, por assim dizer, envolvia um agente que se
utilizava de uma mídia de longo alcance (o jornal) procurando mobilizar a maior comunidade
possível (de leitores, nacional, da língua, de métier, simpatizantes etc.) em função de uma causa
que deveria ser tomada como pública. O protesto chamava-se “Carta ao senhor Félix Faure
presidente da República”, mas o editor do jornal, o estadista e jornalista Georges Clemenceau,
preferiu o título “Eu Acuso!” (J’accuse!)129. Com o tempo, de protesto que era, virou manifesto
e daí um marco quase mítico da história intelectual.
A lembrança da interferência do editor na produção desta peça fundamental chama a
atenção para o caráter midiático da ação do intelectual. Coincidentemente, é a partir da perda
de espaço midiático por parte de determinados agentes que se começa a falar em destituição e
desaparecimento dos intelectuais130. Aquela imagem de intelectuais nas capas de revistas,
heróis, universais, símbolos popularizados por grandes veículos de comunicação é a que parece
estar em vias de desaparecimento. Michel Foucault fora, talvez, um dos últimos e, ele mesmo,
defendia a ação intelectual dentro de campos específicos, convidando-os à modéstia e ao
trabalho junto às suas áreas profissionais131.
Em suas representações do intelectual, Edward Said prescrevia uma definição
normativa para caracterizar este agente. Said coloca-se como modelo de intelectual:
Já sugeri que, como forma de manter uma relativa independência intelectual, o
melhor caminho é ter uma atitude de amador, em vez de profissional. [...] Em
primeiro lugar, o amadorismo significa uma opção pelos riscos e pelos resultados
incertos da esfera pública — uma conferência, ou um livro, ou um artigo em
circulação ampla e irrestrita — em vez do espaço para iniciados, controlado por
especialistas e profissionais. Várias vezes nos últimos dois anos fui convidado pelos
meios de comunicação para ser um consultor remunerado. Recusei, simplesmente
porque isso significaria estar preso a uma estação de televisão ou a um único jornal,
e preso também à linguagem política em voga e a estrutura conceitual desses meios.
Do mesmo modo, nunca tive interesse em consultorias pagas pelo (ou para) o
governo, onde nunca se sabe como nossas ideias vão ser usadas depois. Em segundo
128
FIGUEIREDO, Vera Lúcia F. Exílios e diásporas. In: GOMES, R C et al. O papel do intelectual hoje, p. 147.
Cf. ORY, Pascal; SIRINELLI, Jean François. Les intellectuels en France. De l’affaire Dreyfus à nos jours.
Paris: Perrin, 2011, p. 7.
130
Cf. ZARKA, Y C. La destitution des intellectuels. Paris: Presses universitaires de France, 2010, p. 11-12.
131
“O papel do intelectual não é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco de lado’ para dizer a muda
verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e
o instrumento na ordem do saber, da ‘verdade’, ‘da consciência’ do discurso’”. In: GOMES, R C et al. O papel do
intelectual hoje, p. 9.
129
46
lugar, emitir conhecimento em troca de remuneração é muito diferente de receber
um convite de uma universidade para dar uma conferência pública ou para falar
apenas para uma pequena plateia de funcionários. Isso me parece muito obvio, tanto
que sempre aceitei dar palestras em universidades e sempre recusei as outras ofertas.
E, em terceiro lugar, para ser mais político, todas as vezes em que fui solicitado para
ajudar um grupo palestino ou convidado por uma universidade da África do Sul para
falar contra o apartheid e a favor da liberdade acadêmica, sempre aceitei. Enfim, sou
movido por ideias e causas que realmente posso apoiar por escolha, porque são
coerentes com os valores e princípios em que acredito. Portanto, não me considero
limitado pelo meu trabalho profissional em literatura, que me excluiria de assuntos
de política pública só porque estou autorizado apenas a ensinar literatura moderna
europeia e americana132.
Este modelo de intelectual liberal, favorecido por sua livre-iniciativa e recompensado por seus
méritos próprios dificilmente poderia ser generalizado, sob o custo de se reduzir
significativamente o número de intelectuais. O próprio Said retoma as definições, “muito mais
próximas da realidade”, de Antonio Gramsci, destacando o intelectual como “uma pessoa que
preenche um conjunto particular de funções na sociedade”133.
Dessa forma, o conceito de intelectual varia desde sua acepção mais ampla, como
produtor de bens simbólicos, até uma concepção precisa, normativa e “heroica”, como a exposta
por Said. Mas, seja ele “heroico” ou “orgânico”, esteja no lugar quixotesco de dizer a verdade
ao poder ou no de fazer o papel subserviente de Peixoto134, o intelectual não dispensa a atuação
midiática. Esta é mesmo sua condição de existência. E, nesse caso, o intelectual heroico, como
nos mostra o “J’accuse” de Zola, não deixa de ser um pouco um produto da mídia de massa.
Assim, falarmos que a cultura intelectual brasileira do início do século pode ser vista como
uma “cultura do jornal” significa que tanto os agentes mais próximos de alguma vocação
“clássica” do intelectual quanto os produtores de bens simbólicos, em geral, estão vinculados à
produção jornalística. Desse modo, o conceito de cultura intelectual compreende os sentidos
mais amplos do conceito de intelectual, favorecendo a possibilidade de apreciação mais
complexa da vivência histórica, não restringindo a história intelectual às produções da alta
cultura, dos cânones e das tradições consagradas neste tipo de análise. Ele traz à tona uma série
de produções intelectuais que, usualmente, são contempladas apenas em histórias disciplinares,
como a história da publicidade, do design, da moda, da charge etc.
A cultura intelectual acionando produções de tipos e qualidades diversas, mas sempre
verificando sua articulação em uma rede simbólica complexa, contribui para que o historiador
monte uma perspectiva que rompa com a excessiva compartimentação dos esquemas
132
SAID, Edward. Representações do intelectual. As conferências de Reith de 1995. São Paulo: Cia das Letras,
2005, p. 91.
133
SAID, E. Representações do intelectual. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p. 23.
134
Personagem fundamental da peça “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária” de Nelson Rodrigues.
Peixoto se orgulhava de ser canalha e mau caráter, fazer todos os gostos do patrão e de sua família, o que lhe
garantia uma vida de regalias e prazeres mundanos. Cf. GODOY, Alexandre Pianelli. Nelson Rodrigues: o fracasso
do moderno no Brasil. São Paulo: Alameda, 2012, p. 331-334.
47
disciplinares, a fim de encarar algo como uma vivência histórica que desconhece tais fronteiras.
Tal objetivo é, desde o início, visto de forma cética, mas pode ser uma busca que caracterize e
especifique o olhar do historiador. Neste trabalho, a crítica literária foi o meio escolhido para
observar alguns aspectos da cultura intelectual brasileira no início do século XX. Ela foi, na
verdade, o que despertou o olhar para tal possibilidade. Encarregada de tratar de produções as
mais diversas, ocupando colunas e colunas de jornal, ora aparentando-se a uma espécie de curso
superior, com suas notas de rodapé, citações em línguas estrangeiras e sequências de artigos
sob o mesmo tema; ora totalmente descompromissada em seu rigor e caráter pedagógico;
rodeada por textos de opinião, charges, polêmicas, cartas, críticas literárias, contos, poemas,
discursos, enquetes etc. Não foi difícil perceber que ela mesma fazia parte de um contexto
maior, a que chamamos de cultura intelectual.
É sabido que em história os conceitos não são “fortes” como em outras disciplinas
humanas. O tempo, as complexidades, diferenças e processos da vida humana comum não se
ajustam perfeitamente a nenhum deles. A história pode ser vista como uma escrutinadora ou,
até mesmo, uma aniquiladora de conceitos. Não seria diferente com este. Trata-se de uma noção
que emergiu de uma pesquisa específica acerca de um período determinado e que, portanto,
talvez se adeque apenas a tal época. De fato, falar em cultura intelectual após a expansão
editorial livresca dos anos 1930, da multiplicação das revistas, do rádio, da expansão das
universidades, da televisão e da crescente academização do intelectual é algo que demanda
pesquisas. Na década de 1920, porém, os processos culturais, políticos e artísticos revelam seu
caráter comum e compartilhado através da perspectiva da cultura intelectual.
Uma República Cética?
Na aurora dos anos 1920, a República brasileira estaria velha. A República Velha era
a imagem segundo a qual o caricaturista Sylvio, não sem certa perplexidade, interpretava o
aniversário da Proclamação. Afinal, como sugeria o título da charge, tratava-se ainda de uma
“Femme à trente ans”. Esta era observada por dois transeuntes. Ao passo que um comentava:
“_ Quê?! Trinta anos e assim tão acabada?!”, o outro sentenciava: “_ Desgostos meu caro. Ela
tem sido casada várias vezes e sempre tem se dado mal com os maridos...”135. A força expressiva
135
SYLVIO. “La femme à trente ans”, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 nov. 1919, p. 1. É importante lembrar que no
interior da tradição dos cartunistas brasileiros fora criada a imagem da República nacional como uma mulher, já
em 1888, na Revista Ilustrada de Ângelo Agostini. Desde então, reiteradas vezes, especialmente nos aniversários
da Proclamação, a figura feminina da República foi ganhando novas interpretações, notadamente pejorativas: de
figura greco-romana portentosa, honesta e guerreira passara à senhorita mundana, à dama faceira, à ama de leite
de funcionários e políticos, à prostituta em meio a orgias e, por fim, à mulher velha e decadente. A análise dessa
tradição é uma forma contundente de se perceber as avaliações do regime republicano, assim como as
representações de gênero no interior da cultura intelectual brasileira. Cf. CARVALHO, José Murilo de. A
Formação das Almas – O imaginário da república no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2008, p. 75-96.
48
do cartum, seu poder comunicativo para transmitir uma ideia a partir da síntese e simplificação
dos meios expressivos, revela-se sintomaticamente na peça de Sylvio. A República passa a ser
vista como algo decadente. E se, “para ser eficiente, a sátira não necessita apenas do talento do
artista, ela depende igualmente de um público que saiba apreciar as agressões maldosas e
perceber as alusões”136, pode-se afirmar que o cartunista acertou em cheio. Afinal, durante toda
a década de 1920, a República, nos moldes de sua Constituição de 1891, será questionada,
criticada, analisada e, por fim, refutada, em geral, pela cultura intelectual brasileira.
É importante notar que a República vista como algo velho e decadente não está
presente nas interpretações, visões e imagens à época da Proclamação. De fato, destacaram-se
ao longo de toda a memória e história acerca do advento republicano no Brasil duas perspectivas
antagônicas: a da República do bestializado e a da República que consolidava um movimento
social e histórico. São duas perspectivas matriz, por assim dizer. A primeira é criada,
praticamente, no momento do evento do 15 de novembro, quando Aristides Lobo, que era
republicano, relata, como testemunha ocular, que “o povo assistiu àquilo bestializado, atônito,
surpreso, sem conhecer o que significava”. Sua impressão saiu na coluna “Cartas do Rio” que
ele mantinha no jornal Diário Popular de São Paulo, sob o título de “Acontecimento único”,
no dia 18 de novembro de 1889. Apesar de se tratar de uma visão, se não otimista, ao menos
esperançosa, pois considerava o autor que “o que se fez é um degrau, talvez nem tanto, para o
advento da grande era”137, o que ficou, o que marcou e foi reiterado por mais de um século na
cultura brasileira, acadêmica ou não, foi a imagem simbólica de uma República apartada do
povo que a assiste bestializado, já não importando tanto o evento da Proclamação em si, mas a
própria experiência republicana no país138.
A outra versão do advento da República, muito menos imagética e simbólica, mas
consolidada139 por um dos nomes mais consagrados da história intelectual brasileira, é a que
consta no texto “Da independência à República”, presente no volume À margem da história
136
DELIGNE, Alain. De que maneira o riso pode ser considerado subversivo? In: LUSTOSA, Isabel (org.)
Imprensa, humor e caricatura. A questão dos estereótipos culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p. 36;
GOMBRICH, E. H. O Arsenal do Cartunista. In: Meditações sobre um cavalinho de pau outros ensaios sobre a
teoria da arte. São Paulo, Edusp, 2001, p. 130.
137
Cf. http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titulo=o-povo-assistiu-aquilo-bestializadoartigo-de-aristides-lobo-1889
138
“Embora as raízes da República devam ser buscadas mais longe e mais fundo, o ato de sua instauração possui
valor simbólico inegável”. CARVALHO, J M de. A Formação das Almas, p. 36. De fato, já em 1893 a força da
imagem do povo como bestializado era tão forte que já era transportada para outros contextos, como o narrado no
romance folhetim de Visconde de Taunay: “Papel bancário era a verdadeira carta de baralho. Não se o atirava fora,
porque o povo bestializado ali estava para pagar, dócil e inconsciente, 100 ou 200% nos direitos de alfândegas”.
TAUNAY, Affonso de E. O Encilhamento. Cenas contemporâneas da Bolsa do Rio de Janeiro em 1890, 1891 e
1892. Belo Horizonte: Itatiaia, 1971, p. 115.
139
Emília Viotti da Costa cita duas obras que já trariam esboçadas as teses consolidas por Euclides da Cunha:
Oscar Araújo. L’idée républicaine au Brésil. Paris, 1893; Suetônio. O Antigo Regime. Homens e cousas da Capital
Federal. Prefácio de Quintino Bocaiúva. Rio de Janeiro, 1896. Cf. COSTA, Emília Viotti da. Sobre as origens da
República. Da monarquia a república: momentos decisivos. São Paulo: EdUNESP, 1999, p. 385-446.
49
escrito por Euclides da Cunha e publicado postumamente em 1909. Tendo vindo a lume dez
anos após a Proclamação, esta interpretação da história republicana do Brasil via o advento do
regime como algo que já estaria imanente desde a Independência do país em 1822. Seria antes
uma questão de maturidade, evolução e desenvolvimento histórico do que qualquer outra coisa:
“Impertinente em 1822, inoportuna em 1831, abortícia em 1848, era-o a República, sobretudo
porque se não podia inverter a série natural da evolução humana”. Assim, seguindo uma
filosofia da história de desenvolvimento harmonioso dos regimes políticos, a ideia republicana
seria uma constante da vida política do país, considerando-se que a “sociedade não a repelia;
prorrogava-a” e desde “1875 começou a incorporá-la”140. Esta versão faz alusão à perspectiva
dos bestializados, mas para contraditá-la, ao afirmar que, “realmente, a República, que não
devemos confundir com a bela parada comemorativa de 15 de novembro de 1889, tinha,
lançados, os seus primeiros fundamentos”141.
Estas duas visões matriciais orientaram as perspectivas acerca da República no interior
da cultura intelectual brasileira. Acompanhando algumas análises, porém, verificamos que em
nenhuma das visões, até os anos 1920, a República aparece como algo velho, decadente e
ultrapassado. A questão não é anódina, pelo contrário. Uma das principais características do
republicanismo no Brasil foi sua associação com o novo, o moderno e atual. Um dos principais
críticos do sistema republicano no Brasil, desde a Proclamação, fora Eduardo Prado, autor do
“best-seller” proibido A Ilusão Americana (1893). Segundo Rui Barbosa, o livro teria sido
censurado uma hora após chegar às livrarias, proibido sem ter sido lido142. A tese principal de
Eduardo Prado é sobre o aspecto mimético da República brasileira em relação à norteamericana. Toda obra é construída a fim de mostrar que as ações dos norte-americanos sobre
seus vizinhos continentais foram antes prejudiciais do que favoráveis. Em temas sensíveis como
os da escravidão, empréstimos de capitais e apoios diplomáticos no continente americano, os
Estados Unidos, segundo Prado, não teriam se portado segundo um ideal fraterno. Assim:
Devemos concluir de tudo quanto escrevemos: Que não há razão para querer o Brasil
imitar os Estados Unidos, porque sairíamos da nossa índole, e, principalmente,
porque já estão patentes e lamentáveis, sob nossos olhos, os tristes resultados da
nossa imitação; Que os pretendidos laços que se diz existirem entre o Brasil e a
república americana são fictícios, pois não temos com aquele país afinidades de
natureza alguma real e duradoura; Que a história da política internacional dos
Estados Unidos não demonstra, por parte daquele país, benevolência alguma para
conosco ou para com qualquer república latino-americana; Que todas as vezes que
tem o Brasil estado em contato com os Estados Unidos tem tido outras tantas
ocasiões para se convencer de que a amizade americana (amizade unilateral e que,
140
CUNHA, Euclides da. Da Independência à República. À Margem da História. São Paulo: Martim Claret, 2006,
p. 210.
141
CUNHA, E da. Da Independência à República. À Margem da História, p. 192.
142
BARBOSA, Rui. Prefácio. PRADO, Eduardo. A Ilusão americana. Brasília: Edições do Senado Federal, 2003,
p. 8.
50
aliás, só nós apregoamos) é nula quando não é interesseira; Que a influência moral
daquele país, sobre o nosso, tem sido perniciosa143.
O tema da imitação no interior da conformação cultural, social, econômica e política
do país é uma questão de longa duração na história intelectual brasileira ao qual retomaremos
por todo este trabalho. Para Eduardo Prado, portanto, o problema da República no Brasil era o
de sua inadaptação às condições nacionais. Ao mesmo tempo, ela expressaria por aqui o que o
autor chama de “espírito moderno”144, fruto de um processo histórico secular:
A antiguidade tinha a escravidão, que é um modo de dar uma certa estabilidade e
organização ao proletariado coagindo-o a trabalhar e obedecer. O cristianismo
acalmou as revoltas da miséria humana quando exacerbada pela pobreza,
prometendo o céu e a felicidade futura e fazendo do próprio sofrimento um título
à ventura eterna. A sociedade pagã apelava para a força material dominando
materialmente o proletário; a sociedade cristã prendia-o pelas cadeias, ainda mais
fortes, da esperança e da fé. O espírito moderno suprimiu a escravidão e deixou
de falar no céu. O operário foi abandonado, e a ciência não encontrou ainda uma
fórmula que substituísse a escravidão da antiguidade ou a crença na outra vida
que o cristianismo infundia145.
Eduardo Prado conclui que a “forma republicana burguesa, como existe na França ou nos
Estados Unidos é a que mais protege os abusos do capitalismo”146. E esta era a forma que o
Brasil estaria a copiar. Assim, um dos mais ardorosos críticos do sistema republicano no Brasil
reconhecia o aspecto “moderno” do novo regime, mesmo que fosse para desprezá-lo.
As oposições entre novo e velho, antigo e moderno, marcam o vocabulário político e
intelectual nesse período. Como afirma o personagem republicano Paulo, do romance de
Machado de Assis, Esaú e Jacó, publicado em 1904, “o regime estava podre e caiu por si...”147.
Segundo Chaves de Mello, Machado de Assis não deveria constar entre os intérpretes que
associam a República ao bestializado. A autora lembra a reiterada passagem sobre a
“Confeitaria do Império”, cujo proprietário, após a Proclamação, se vê embaraçado e recorre
ao Conselheiro Aires na busca de uma solução sobre qual nome por nas tabuletas da casa.
Tradicionalmente, via-se aí uma passagem elucidativa sobre a indiferença e, mais que isso, a
insignificância do processo que não passaria de uma troca de tabuletas. É difícil definir em qual
das tendências esta obra de Machado deveria ser incluída.
Afinal, o romance gira em torno das figuras de dois irmãos gêmeos, Paulo e Pedro,
que, como os do título da obra, eram marcados pela disputa e, já antes de nascerem, eram
brigados. Paulo republicano, Pedro monarquista. De modo geral, para cada afirmação de Paulo,
haveria uma de Pedro. Enquanto Paulo dizia poder derrubar a monarquia com dez homens,
143
PRADO, E. A Ilusão americana. Brasília: Edições do Senado Federal, 2003, p. 106.
A expressão tem longa duração na história intelectual ocidental Cf. FEBVRE, Lucien. Aux origines de l’esprit
moderne: libertinisme, naturalisme, mécanisme, Mélanges d'histoire sociale, N°6, 1944, p. 22.
145
PRADO, Eduardo. A Ilusão americana. Brasília: Edições do Senado Federal, 2003, p. 78.
146
PRADO, Eduardo. A Ilusão americana. Brasília: Edições do Senado Federal, 2003, p. 80.
147
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Obras completas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, p. 83.
144
51
Pedro assegurava extirpar a República com um decreto. Após a Proclamação, Paulo está feliz,
mas não deixa de lamentar que “uma barricada não faria mal”148, ao passo que Pedro acreditava
que tudo podia ser como antes, “é só o imperador falar ao Deodoro”149. No caso do nome das
tabuletas, a questão não fica resolvida. Primeiro, o Conselheiro Aires sugere ao Custódio,
proprietário do estabelecimento, que este mude para “Confeitaria da República”, mas havia o
temor do retorno do antigo regime. Então se sugere “Confeitaria do Governo”, mas o que se
iria fazer no caso de afloramento das oposições? Talvez, então, mantinha-se o Império no nome,
mas colocava-se logo abaixo a sentença “fundada em 1860” ou, ao invés da data de origem, a
frase “das Leis”. Mas nenhuma dessas sugestões agradou ao Custódio, as letras das duas últimas
sugestões viriam pequenas e poderiam nem ser lidas, ainda mais no caso de algum movimento
exaltado. Poderia, então, ser “Confeitaria do Catete”, mas visto que existia outra na mesma
região, o concorrente poderia lucrar em cima do gasto da pintura que apenas um tivera. Por fim,
“Confeitaria do Custódio”, como era em geral conhecido o estabelecimento. Mas nem aí houve
decisão, apenas o fim da conversa. O proprietário sempre lamentara gastos excessivos com a
tabuleta nova, mas o Conselheiro lembrava que “as revoluções trazem sempre despesas”150.
Como se vê, o caso das tabuletas fica sem solução, não sendo simples tal troca, mas também
não se perdendo de vista a irrisória e anedótica metáfora para a mudança de um regime político.
O tratamento da Proclamação como uma revolução e não uma quartelada, parada
militar ou golpe de estado revela o reconhecimento da legitimidade da ação. Mas os contrastes,
exemplificados pelos gêmeos, são a marca maior deste romance. Assim, no pós-Proclamação,
o personagem Santos, pai de Paulo e Pedro, se, num primeiro momento, teme por sua condição
de banqueiro e por alguma restrição de sua atividade, rapidamente é tranquilizado pelo
Conselheiro Aires, afinal, comércio e banco seriam indispensáveis. Em seguida, quando a
família Santos estava reunida em casa com amigos a discutir os acontecimentos correntes,
surgira a ideia, corriqueira em tais ocasiões, de se jogar o voltarete. Apesar de Santos reconhecer
que “não era bonito que no próprio dia em que o regime caíra ou ia cair, entregasse o espírito a
recreações de sociedade”151, a jogatina ocorreu como de costume.
Um personagem marca, por seu turno, a continuidade das práticas e das figuras entre
os regimes: Batista. Por ter trajetória ligada ao Partido Conservador durante o Império, caíra
em curto ostracismo durante a ascensão do Partido Liberal. Porém, rapidamente se descobriu
liberal e arranjou uma presidência de província. Após a Proclamação, apesar de alguns receios,
não teve maiores problemas para conseguir servir ao novo regime. Também os irmãos gêmeos
148
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Obras completas, p. 81.
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Obras completas, p. 83.
150
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Obras completas, p. 78.
151
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Obras completas, p. 81.
149
52
entraram para a política, fizeram-se deputados na legislatura republicana. Ao passo que o
monarquista Pedro começara a reconhecer qualidades no sistema político novo, Paulo já estava
a afirmar que “não é esta a República dos meus sonhos”152. Se dermos ouvidos à cobiçada e
apaixonada Flora, filha do Batista e objeto de desejo dos irmãos e estes dela, notaremos que os
dois protagonistas seriam apenas um. Em seu leito de morte, quando a mãe de Paulo e Pedro,
Natividade, diz à moribunda Flora que ambos estão a entrar na alcova, a jovem responde:
“ambos quais?”153. Duas faces da mesma moeda, duas forças do mesmo processo, conservação
e mudança, inquietação e conformismo, como afirma o Conselheiro Aires: “não lhes importam
formas de governo, contanto que a sociedade fique firme ou se atire para diante”154.
A obra Esaú e Jacó, somando-se às demais citadas acima, é uma fonte riquíssima para
a apreciação dos sentidos conferidos à República nos momentos de sua instauração no Brasil,
no interior da cultura intelectual brasileira. Lançada em 1904, a obra já traz, porém, um índice
dos desencantamentos com a República. A república não era a dos sonhos, como afirmara o
republicano histórico. E esta é a chave que parece caracterizar o regime republicano brasileiro
logo após a Proclamação. Se a República continuava nova, o ceticismo começa a marcar sua
dinâmica. Ângela Alonso, ao analisar o repertório da política científica adotado pelo movimento
intelectual de 1870, afirma que tais ideias, representações, interpretações e visões de mundo
inseriam o Brasil no movimento mundial. O lugar que caberia ao Brasil neste movimento,
porém, não parecia ser favorável. Já em 1895, a República é representada, na revista D Quixote,
como uma mulher abatida sobre um burrico, enquanto as outras irmãs americanas galopavam
para o progresso155. A república é nova, mas o atraso continua e se agudiza, pois não há regime
político no horizonte capaz de redimir e solucionar a crise. A República liberal é o índice de
modernidade, cientificidade, civilização e progresso. Quanto ao regime político-institucional,
não há muito que fazer, o que se pode esboçar são reformas no âmbito financeiro, urbanístico,
sanitário, higiênico, demográfico, “eugênico”, educacional e, em certa medida, político. Cada
um destes itens terá o ceticismo em seu horizonte ou, mesmo, no seu ponto de partida.
Ceticismo: uma tese para a cultura intelectual da Primeira República?
A interpretação que nos anos 1920 ganhará força, especialmente na obra de Tristão de
Athayde, e fará da República uma experiência marcada pelo ceticismo é uma tese a comprovar.
Mas ela é fundamental para se compreender a emergência das representações, interpretações e
152
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Obras completas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, p. 128. A frase
é do republicano histórico Martinho Prado da Silva Jr e teria sido dita em 1891, segundo relato de Arthur de
Azevedo ao O Paiz, em 1902. Cf. CARVALHO, J M de. A Formação das Almas, p 52.
153
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Obras completas, p. 122.
154
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Obras completas, p. 129.
155
Cf. CARVALHO, J M de. A Formação das Almas, p. 87.
53
visões de mundo que propiciaram o arcabouço ideológico que levará, por exemplo, Rubens do
Amaral, às vésperas da criação do Partido Democrático, em 1926, desacreditar totalmente a
iniciativa. Segundo este autor, chegara o “fim da era do voto”. Citando exemplos que iam desde
os Estados Unidos até à China, Rubens do Amaral verifica que o próprio sistema representativo
havia atingido o seu limite e teria decretado falência. Dois casos, o russo e o italiano, saltariam
aos olhos como caminhos novos e eram descritos sob o tópico “para direita ou para a esquerda”:
“Numa [Itália], em doutrina, o Estado absorveu os cidadãos, que fora dela não têm existência
política. Noutra [Rússia], ainda em doutrina, dissolveu-se as massas, que se governam por si,
sem mandatos delegações”156. O redator do Diário da Noite de São Paulo não tinha certeza
sobre a “transplantação” dos regimes para outros países, nem se seriam soluções definitivas:
Responder a essa perguntas seria traçar, profeticamente, o futuro da Humanidade.
Não sonho fazê-lo. Observo os fatos. Nada mais. Só uma dedução parcial, me
permito, do que observo. Querer a regeneração da nacionalidade pela volta o regime
do parlamento, o mesmo é que intentar a regeneração da humanidade pelo regresso
ao culto de Júpiter. Mitologias. Fantasmas. Ilusões que se esfumaram e que não
retornam mais.
A inciativa da criação do Partido Democrático estaria fadada ao fracasso, não apenas
por representar uma espécie de regresso ao falido parlamentarismo imperial, mas por não fazer
parte da modernização política pela qual viria passando a “humanidade”. Diferentemente de
autores como Eduardo Prado, Alberto Torres e Oliveira Vianna que sustentavam
inaplicabilidade do regime republicano liberal no Brasil devido às idiossincrasias históricas e
culturais do país, Rubens do Amaral, ao atualizar o lugar do Brasil naquele movimento
internacional de ideias e processos políticos, revelava que tal regime já seria sinônimo de atraso,
estaria ultrapassado e precisaria ser modificado radicalmente, à direita ou à esquerda. Análises
como essa se tornarão cada vez mais recorrentes durante toda a década de 1920. A República
estava velha e a disposição da cultura intelectual frente ao regime não poderia mais ser a cética,
pois havia no horizonte político internacional ou no novo repertório da reflexão política, uma
possibilidade de redenção frente ao já então velho atraso brasileiro.
Em suas centenas de artigos publicados entre os anos de 1916 e 1928, Tristão de
Athayde reelaborou por várias vezes a questão do ceticismo nas primeiras décadas da república,
assim como uma reflexão acerca da noção de geração, a fim de determinar problemas,
disposições e horizontes que eram compartilhados coletivamente. Ambos os temas, o ceticismo
e o conceito de geração, sofrerão diferentes valorações no interior de sua obra. De fato, se, por
um lado, nos primeiros escritos, é o próprio conceito de geração que é visto de forma cética,
pois “quando um de nós fala em ‘nossa geração’, é quase certo que entende dizer ‘eu e meus
156
AMARAL, Rubens do. O fim da era do voto. O Jornal, Rio de Janeiro,12 jan. 1926, p. 1-4.
54
amigos’”157. Por outro lado, já no fim da década, o conceito de geração é que se torna o
organizador da experiência coletiva que passaria, agora, às afirmações, conforme se observa
em sua análise do livro de Luís Delgado, Os Inquietos:
É um livro interior. É a história de uma geração, de nossa geração, do drama das
perplexidades que vivemos ultimamente e em que vivem ainda tantos dos nossos
companheiros. [...] Essa passagem da inquietação à afirmação, que tantos de nós
sofreram em carne viva durante estes últimos anos, é que forma realmente o nervo
desse esquema romanceado, por vezes excessivamente esquemático, mas
profundamente impregnado de verdade, como qualquer coisa que vem realmente do
fundo de um espírito e de uma geração158.
A análise proposta por Tristão de Athayde e encampada por vários intelectuais
anteriores, contemporâneos e posteriores a ele, convida-nos a ensaiar uma abordagem de difícil
aplicação na reflexão historiográfica: uma história da República a partir do signo do ceticismo.
Uma história das sensibilidades da cultura intelectual brasileira. Como afirma Sandra J
Pesavento, trata-se de um desafio. Como mensurar sensibilidades, ou seja, como descrevê-las,
verifica-las, perceber sua ação ou sua eficácia numa coletividade? Segundo Pesavento:
As sensibilidades seriam, pois, as formas pelas quais indivíduos e grupos se dão a
perceber, comparecendo como um reduto de representação da realidade através das
emoções e dos sentidos. Nesta medida, as sensibilidades não só comparecem no
cerne do processo de representação do mundo, como correspondem, para o
historiador da cultura, àquele objeto a ser capturado no passado, ou seja, a própria
energia da vida, a enargheia, de que nos fala Carlo Ginzburg159.
Apesar do equívoco de Pesavento ao associar enargheia à energia160, trata-se, de fato, do
esforço em se transmitir pelo relato histórico, de forma clara, precisa e vivaz, o passado161.
Na historiografia acerca do período entre guerras (1918-1939), coube à história das
sensibilidades um lugar de destaque nas últimas décadas. Os trabalhos do historiador alemão
radicado nos Estados Unidos, Georges Lachmann Mosse, revelam a potencialidade da
perspectiva. Ao analisar a maneira como as sociedades europeias, notadamente o caso alemão,
teriam passado por um processo de “embrutecimento”162 desencadeado pela Primeira Guerra,
157
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro,12 nov. 1922, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Esquema de uma geração, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 mai. 1929, p. 4. A análise de
Luís Bueno acerca dessa mesma obra é semelhante à de Tristão de Athayde Cf. BUENO, Luís. Uma história do
romance de 30, p. 105-106.
159
PESAVENTO, Sandra. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades, Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En
ligne], Colloques, mis en ligne le 04 février 2005, Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/229.
160
É o próprio Ginzburg quem traça a diferença: “As duas palavras [...] não têm nada em comum: energheia
significa ‘ato, atividade, energia’; enargheia significa ‘clareza, nitidez vivacidade’”. O autor ainda lembra que ao
passo que a primeira sobrevivera nas línguas europeias (energy, énergie, energia e assim por diante), Enargheia
não é uma palavra ainda viva. Cf. GINZBURG, Carlo. Ekphrasis and quotation, Tijdschrift voor Filosofie, 50ste
Jaarg., Nr. 1 (MAART 1988), p. 6.
161
Cf. HANSEN, João Adolfo. Categorias epidíticas da ekphrasis, Revista USP, São Paulo, n. 71, p. 85-105,
set/nov. 2006.
162
Olivier Compagnon lembra que tal perspectiva se atém ao caso alemão, devendo-se evitar maiores
generalizações. Porém, Compagnon não se dá conta de outros relatos que verificam o mesmo processo de
embrutecimento associado não à Grande Guerra em si, mas ao imperialismo colonialista, conforme anotaremos
abaixo a partir das críticas de Aimée Césaire. Cf. COMPAGNON, Olivier. O adeus à Europa: América Latina e a
Grande Guerra. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 362.
158
55
Mosse trouxe uma contribuição inestimável à história cultural do fascismo e do nazismo. Tal
relevância pode ser percebida no número da revista dos Annales que abrira o ano de 2000 com
um dossiê sobre “O corpo na Primeira Guerra Mundial”163.
A noção de embrutecimento é entendida como uma “ruptura dos códigos de conduta
civil da vida em sociedade e como regressão dos indivíduos aos atos orientados pela violência
bruta”. Trata-se de um efeito da experiência da Guerra na qual os combatentes nas trincheiras
eram marcados pela irrupção de uma selvageria a qual não apenas eram submetidos como
também perpetravam164. Portanto, o embrutecimento é visto como processo histórico
desencadeado pela Guerra, quando teria sido “banalizada a violência extrema, seu mito
alimentou uma indiferença à vida individual – indiferença particularmente feroz quando se
tratava do inimigo designado pelo nacionalismo ardente”165. Este nacionalismo consumiu-se
em uma “fé viril temperada pela guerra”166.
Antes de Georges L Mosse, porém, a percepção acerca de um processo de
embrutecimento nas sociedades europeias havia sido descrito pelo intelectual martinicano Aimé
Césaire. Em 1955, ele publicara o Discurso sobre o colonialismo, uma obra que se tornou
verdadeira arma de combate em favor das lutas anticoloniais, especialmente na África167.
Segundo Césaire, seria preciso “estudar, primeiro, como a colonização se esmera em
descivilizar o colonizador, em embrutecê-lo, na verdadeira acepção da palavra, em degradá-lo
para os instintos ocultos, para cobiça, para a violência, para o ódio racial, o relativismo
moral”168. O membro fundador do movimento e do termo Négritude destacava que:
[...] cada vez que no Vietnam uma cabeça é degolada e um olho é estourado169 e que
na França se aceita, que uma menininha é violentada e que na França se aceita, que
um Malgaxe é torturado e que na França se aceita, há uma aquisição civilizacional
que suporta este peso morto, uma regressão universal que se opera, uma gangrena
que se instala, um foco de infecção que se expande e que ao cabo de todos estes
tratados violados, de todas essas mentiras propagadas, de todas essas expedições
punitivas toleradas, de todos estes prisioneiros atados e “interrogados”, de todos
163
Cf. Annales. Histoire, Sciences Sociales, 55e année, n 1, 2000.
Cf. LEFEBVRE, Frédéric; WINTER, Jay. De l’histoire intellectuelle à l’histoire culturelle : la contribution de
George L Mosse, Annales. Histoire, Sciences Sociales, 56e année, n 1, 2001, p. 177.
165
RAPHAËLLE, Branche. Mosse George L., De la grande guerre au totalitarisme. La brutalisation des sociétés
européennes, Vingtième Siècle. Revue d’histoire, Volume 66, Numéro 1, 2000, p. 185.
166
MOSSE Apud. RAPHAËLLE, B. Mosse George L., Vingtième Siècle, p. 185.
167
A primeira edição é de 1950, porém, foi a segunda, revista e aumentada, que ganhou notoriedade. Cf.
ANDRADE, Mário. Prefácio. In: CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, 1978, p. 10.
168
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre colonialismo, p. 17.
169
A expressão é “oeil crevé”, literalmente “olho perfurado”, “olho estourado”. Porém, o verbo “crever” pode
significar, ainda, morrer, especialmente em caso de esgotamento físico. “Oeil crevé” pode ser, então, um olho
cerrado, olho morto. Mas há mais. A expressão com o substantivo olho (oeil) no plural (yeux), “crever les yeux”
significa, correntemente, “saltar aos olhos”, ou seja, algo explícito, visto por todos, como deviam ser, por vezes,
as atrocidades cometidas pelo colonialismo. Porém, a mesma expressão “crever les yeux” faz referência direta ao
mito de Édipo que fura seus olhos para se punir ao perceber que esposara a própria mãe. Como se vê, Césaire, que
era poeta, dramaturgo e intelectual militante, produz uma obra rica para se pensar a relação entre sensibilidade e a
espessura da linguagem no discurso político.
164
56
estes patriotas torturados, ao cabo deste orgulho racial encorajado, desta arrogância
propagandeada, há o veneno instilado nas veias da Europa, e o progresso lento, mas
certo, do selvageamento [ensauvagement] do continente170.
Assim, o processo de embrutecimento europeu que Mosse atribuía à Primeira Guerra,
Césaire o reconhece como vindo da experiência colonialista. E, aprofundando o argumento, ele
vai além, e talvez por isso haja um silêncio sobre sua perspectiva acerca do embrutecimento
das sociedades europeias. Césaire, que estivera durante a década de 1930 na Europa, considera
que, após o processo descrito acima:
[...] um belo dia, a burguesia é despertada por um terrível ricochete: as gestapos
agitam-se, as prisões lotam-se, os torturadores criam, aprimoram, debatem em torno
dos cavaletes171. A gente se espanta, se indigna. Diz: “Como é curioso! Ora! É o
nazismo, isso passará!” E aguarda, e espera; e cala em si mesma a verdade, que se
trata de uma barbárie, mas a barbárie suprema, aquela que coroa, que resume a
quotidianidade das barbáries; que isso é o nazismo, sim, mas antes de ser vítima, fora
cúmplice; que este nazismo aí, a gente o apoiou antes de por ele ser submetida, a
gente o absolveu, fechou os olhos porque, até então, ele era aplicado apenas aos
povos não-europeus; que este nazismo aí, a gente o cultivou, a gente é responsável
que ele irrompa, que ele penetre, que ele goteje de todas as fissuras da civilização
ocidental e cristã, antes de a submergir nas suas águas vermelhas. Sim, valeria a pena
estudar, clinicamente, detalhadamente, os caminhos de Hitler e do hitlerismo e de
revelar ao tão distinto, tão humanista, cristão burguês do século XX que ele leva em
si um Hitler que se ignora, que Hitler o habita, que Hitler é seu demônio, que se ele
o vitupera é por falta de lógica, e que no fundo, o que ele não perdoa a Hitler, não é
o crime em si, o crime do homem contra o homem, não é a humilhação do homem
em si, é o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco, e de ter
aplicado à Europa os procedimentos colonialistas que subjugavam até então apenas
os árabes da Argélia, os “coolies” da Índia e os negros da África172.
O texto de Aimé Césaire é tanto uma referência teórica para se refletir sobre o processo de
embrutecimento nas sociedades europeias, quanto um rico documento que traz a carga sensível
de uma perspectiva marcada pela memória de quem vivera os anos trinta europeus e que nos
anos 1950 estava engajado nos processos de promoção e independência das nações africanas173.
O que nos importa, porém, é que a perspectiva de Aimé Césaire aponta a história do
embrutecimento das sociedades europeias segundo o olhar de quem faz parte da colônia,
revelando as diferentes sensibilidades provocadas pelos mesmos processos. Este olhar parece
ter escapado ao próprio Georges L Mosse. Não obstante, podemos encontrar um ponto de vista,
por assim dizer, conciliador em Hanna Arendt:
Três décadas – de 1884 a 1914 – separam o século XIX – que terminou com a corrida
dos países europeus para a África e com o surgimento dos movimentos de unificação
nacional na Europa – do século XX, que começou com a Primeira Guerra Mundial.
É o período do Imperialismo, da quietude estagnante na Europa e dos acontecimentos
empolgantes na Ásia e na África. Certos aspectos fundamentais dessa época
170
CÉSAIRE, Aimé. Discours sur le colonialisme. (Suivi du « Discours sur la négritude »). Paris : Présence
Africaine, 2004, p. 12.
171
Instrumento de tortura.
172
CÉSAIRE, A. Discours sur le colonialisme, p. 13-14.
173
Cf. REIS, Raissa Brescia dos. Négritude em dois tempos: emergência e instituição de um movimento (19311956). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais, 2014.
57
assemelham-se tanto aos fenômenos totalitários do século XX que se poderia
considerar esse período como estágio preparatório para as catástrofes vindouras174.
Assim, na visão de Arendt, o Imperialismo europeu é precursor, “estágio preparatório”,
da violência totalitária. Porém, haveria em tal período uma “quietude estagnante na Europa”,
de modo que a época é lembrada como uma espécie de “idade de ouro da segurança”. Arendt,
então, faz uma afirmação que parece ir ao encontro das considerações de Césaire, pois
subentendem um cinismo europeu: “mesmo os horrores eram ainda caracterizados por certa
moderação e controlados por certa respeitabilidade e podiam, portanto, conservar alguma
relação com a aparência geral de sanidade social”175. Ao analisar o embrutecimento da
sociedade europeia, Mosse nota a queda do “mundo civilizado europeu” de antes da guerra,
considerando assim as mudanças das sensibilidades do interior do continente europeu. Aimé
Césaire, por seu turno, destaca que o “mundo civilizado” do continente europeu cultivara a
barbárie em suas colônias, assim, do ponto de vista colonial, a civilização, fora da Europa,
poderia ser sentida como opressão, violência, tortura e repressão.
No que toca às sensibilidades, importa a possibilidade de elas serem compartilhadas,
construídas e fundamentais aos processos históricos. Estudando, principalmente, a forma como
o Estado utilizou-se da memória da Primeira Guerra Mundial, George Mosse fala em uma
“conquista das sensibilidades”176 levada a cabo pela política cultural do nacional-socialismo.
Historiador das liturgias políticas, da maneira como elas institucionalizariam os desejos da
massa fornecendo-lhe um ponto de reunião para ação coletiva, Mosse, em sua trajetória, passara
da história intelectual à história cultural. Para ele, a história intelectual, entendida especialmente
como história das ideias, não concederia os meios para se compreender a sedução do fascismo:
Se deve haver um lugar na história intelectual para este tipo de história das ideias,
chegara o tempo de se ir além do estudo destes grupos de elite e fazer uma verdadeira
pesquisa das práticas e sentimentos populares. Na era da cultura de massa, o
historiador do intelectual tem necessidades de novas abordagens que levem em conta
as noções populares que tiveram um papel essencial na história do homem e da
sociedade177.
Assim, a história das sensibilidades pode ser vista como um ramo da história social e cultural178.
Daí a afirmação de Pesavento segundo a qual, talvez, “a única forma de medir sensibilidades
se dê por uma avaliação de sua capacidade mobilizadora”, de forma que “podemos aproximar
as sensibilidades do campo do político, onde podem ser medidas ações e reações, mobilizações
174
ARENDT, Hanna. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 153.
ARENDT, Hanna. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 153.
176
Cf. MOSSE, George L. Souvenir de la guerre dans l’identité culturelle du national-socialisme, Vingtième siècle,
no 14, janvier-mars, 1994, p. 51.
177
MOSSE, Gorge. Apud. RAPHAËLLE, B. Mosse George L., Vingtième Siècle. Revue d’histoire, p, 179.
178
“A história das sensibilidades constitui, com efeito, uma outra história social com vocação global, que não
exclui nenhum tema ou objeto desta história, por mais ínfimo ou efêmero que ele possa parecer”. LANGUE,
Frédéric. Histoire des sensibilités et l’Amérique Latine : une autre manière d’écrire l’histoire au Venezuela… et
ailleurs, Caravelle, no 86, 2006, p. 13.
175
58
e tomadas de iniciativa”179. Ora, o tema do ceticismo no interior da cultura intelectual dos anos
1920 configura-se como um organizador das experiências de um passado recente, mas já visto
como algo que não faz parte do horizonte de ação do presente. Era preciso sair do ceticismo.
Entendido no interior da história das ideias, o ceticismo é doutrina filosófica do
período helenístico e sua definição rigorosa remete a duas vertentes primárias: a primeira,
chamada de acadêmica, afirmaria a impossibilidade de qualquer conhecimento. Viria da
Academia Platônica do século III a.C., fora desenvolvida a partir da afirmação de Sócrates, “só
sei que nada sei”, e sua formulação é atribuída a Arcesilao (315-241 a.C.) e a Carnéades (213129 a.C.). Tal vertente constituíra-se numa série de argumentações que visavam contrariar as
afirmações dos estoicos, demonstrando que não se podia conhecer nada. Tal tradição chegara
aos tempos modernos a partir dos escritos de Cícero, Diógenes de Laércio e Santo Agostinho.
O ceticismo acadêmico, através da dialética e da argumentação, visava mostrar aos dogmáticos
(aqueles que acreditavam ser possível conhecer alguma verdade sobre a natureza das coisas)
que estes não teriam como conhecer com absoluta certeza aquilo que diziam saber.
A segunda vertente do ceticismo antigo, a pirrônica, considera que não havendo
evidências que suportem as asserções de conhecimento, a atitude a se tomar é a suspensão do
juízo (époché), ou seja, a abster-se de uma decisão. A formulação do pirronismo é atribuída a
Enesidemo (100-40 a.C.) que trataria de se distinguir tanto dos dogmáticos quanto dos céticos
acadêmicos, afinal, ambos asseverariam demasiadamente ao considerarem que “algo poderia
ser conhecido” ou que “nada se pode conhecer”. Para os pirrônicos, devia-se então suspenderse o juízo em torno de questões em que diferentes proposições parecessem igualmente válidas,
inclusive a questão a respeito da possibilidade de algum conhecimento. Esta constatação levaria
o cético pirrônico a uma atitude de quietude e imperturbabilidade: a ataraxia. O cético pirrônico
adotaria, portanto, uma postura não dogmática, seguindo inclinações “naturais”, e vivendo de
acordo com os costumes e as leis da sociedade, sem se comprometer com juízos definitivos
sobre o mundo180. Em sentido comum, o cético é aquele que duvida, que é descrente e que
desconfia181.
Essa definição rápida é suficiente para mantermos no horizonte de nossa reflexão a
perspectiva cética como horizonte sensível da primeira experiência de um estado republicano
no Brasil. Com relação ao regime estabelecido em 1889, rapidamente, como notamos, a
esperança no progresso, na modernização e na redenção dos problemas nacionais, a partir do
regime político, foi se desfazendo. A primeira lei eleitoral da República, Lei Cesário Alvim de
179
PESAVENTO, S. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades, Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne].
Cf. POPKIN, Richard H. La historia del escepticismo desde Erasmo hasta Spinoza. Ciudad del México: FCE,
1983, p. 11-15.
181
Consultar verbete “cético”: Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Editora Objetiva: 2001.
180
59
19.11.1889, não trazia grandes inovações com relação às eleições do antigo regime, parecendo
antes uma continuação do que qualquer outra coisa, pois não garantia em suas disposições o
acesso ao voto a mais de 2% da população. Tal questão é premente, visto que o tema eleitoral
foi verdadeira celeuma que marcara toda a vida política no segundo Império. O tema era
retomado de forma reiterada, como o mostra o conto A Sereníssima República de Machado de
Assis publicado em livro em 1882, um ano após a Lei Saraiva que reduzira o eleitorado de
1.114.066 para 145.296 votantes182.
O conto é narrado pelo personagem Cônego Vargas que encontrara um tipo de aranha
que dispunha da faculdade da fala. Tal descoberta se dera em dezembro de 1876. Lembramos
que, coincidentemente, este foi o ano da aplicação da Lei do Terço, nome pelo qual ficou
conhecida a reforma eleitoral decretada em 1875183. O narrador retrata uma República composta
por aranhas que “desde que compreenderam que no ato eleitoral estava a base da vida pública,
trataram de o exercer com a maior atenção”184. Como o modelo era o sorteio, o olhar se
desdobrou acerca da feitura do saco e das bolinhas nas quais vinham escritos os nomes dos
candidatos. Após os primeiros pleitos, alguns legisladores começaram a apontar vícios no
processo eleitoral e várias reformas são feitas nos sacos, nas bolinhas e na lei eleitoral. No
entanto, os problemas nunca se resolviam e o narrador considera que “muitos abusos, descuidos
e lacunas tendem a desaparecer, e o restante terá igual destino, não inteiramente, decerto, pois
a perfeição não é deste mundo”. O desfecho do conto fica na palavra de certo Erasmus, cidadão
da Sereníssima República, que, ao se dirigir as dez damas incumbidas de tecer o saco eleitoral,
lembrava-lhes que “vós sois a Penélope da nossa república [...] tendes a mesma castidade,
paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de
dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência”185.
Tal como na Sereníssima República, as eleições no Brasil imperial eram marcadas pela
corrupção, por desvios e por falhas. Em 1842, Antônio Carlos de Andrada definira bem a
“lógica” que devia marcar os processos eleitorais. O velho Andrada considerara que, na
“verificação de poderes”, a comissão nomeada para tal fim teria dois caminhos: o da severidade
catoniana ou o da indulgência que se acomoda às circunstâncias de lugar, do tempo e da
civilização em que se encontram os comitentes. Assim, Andrada expõe, em discurso na Câmara,
uma verdadeira matemática dos votos:
[...] não considero o número exagerado de votos como fundamento para nulidade,
182
Cf. LESSA, Renato. A invenção republicana. Campos Sales, as bases e as decadências da Primeira República.
São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais; Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988, p. 24.
183
Cf. LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São
Paulo: Alfa-Ômega, 1975, p. 222.
184
ASSIS, Machado de. A sereníssima República (Conferência do cônego Vargas). Disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1947, p. 3.
185
ASSIS, Machado de. A sereníssima República, p. 5.
60
uma vez que o acréscimo é quase igualmente repartido pelos diferentes colégios,
porque então o resultado final é o mesmo que haveria, se o número de votos fosse
realmente o que devia ser; eu o mostro. V. Excia. que é matemático sabe muito bem
que em matemática erros se emendam com erros, quando um cálculo vai errado em
certo ponto, e que adiante se comete um erro diferente, o resultado sai exato: que
importa que se seja eleito pela maioria de 4000 ou pela de 2000 votos, se em todo
caso a maioria é conhecida?186
Como se vê, a apuração das eleições imperiais parecia constatar que de dois erros cometidos
poderia resultar um acerto. Publicado quarenta anos após essa “verificação de poder”, o conto
de Machado de Assis enfrenta os mesmos problemas, de modo que o ceticismo eleitoral
constituiu-se como uma marca na tradição política imperial187. Mas, como dizia o Erasmus da
Sereníssima República, haveria de chegar a Sapiência, a sabedoria divina. Poderia a República
encarnar esse retorno de Odisseu? A República, porém, não iria se caracterizar pelo
aperfeiçoamento dos processos eleitorais e nem pela ampliação da participação popular nas
eleições para o provimento dos cargos do regime, como antecipara a Lei Cesário Alvim. Ela
atualizara o medo do risco da competição aberta que o Império já vivera.
Assim, um debate secular em torno da questão eleitoral encontrava na nova República
a velha pragmática eleitoral. Como ministro da justiça do governo provisório de Deodoro da
Fonseca, Campos Sales prefigurara a sua visão sobre como se deveriam organizar os pleitos
eleitorais na república, ao afirmar sobre a eleição da Assembleia Constituinte: “É mister, pois,
que o partido republicano e o governo intervenham diretamente nas eleições”188. O
desenvolvimento da política republicana parece ter apenas corroborado esse “mal de origem”.
A realidade eleitoral republicana é a expressão institucional da consolidação da divisão legal
entre cidadãos ativos (com direitos políticos e civis) e os cidadãos inativos (apenas com direitos
civis)189. Não obstante o baixo número de cidadãos legalmente ativos, o que se tinha era uma
corrupção generalizada nas eleições:
[...] havia fraude no alistamento de eleitores, fraude na votação, fraude na apuração
dos votos, fraude no reconhecimento dos eleitos. Todas as fases do processo eleitoral
eram controladas por pessoas ligadas às chefias locais que se conectavam, por sua
vez, às chefias estaduais e essas à nacional. Havia eleições feitas exclusivamente
pelos chefes que se utilizavam de outras pessoas apenas para variar a caligrafia. Eram
as eleições ditas abico de pena. [...] Fica, assim, a conclusão, contrária ao ditado
bíblico, de que poucos eram os chamados a votar e menos ainda os que votavam. E
186
ANDRADA, Antônio Carlos Ribeiro de. Apud. PONTES, Carlos. Tavares Bastos (Aureliano Cândido) 18391875. São Paulo: Cia Editora Nacional, 19139, p. 38.
187
“Durante o Primeiro e o Segundo Impérios, não obstante várias reformas eleitorais (1846, 1855, 1862, 1876 e
1881), o sistema eleitoral foi controlado por uma minoria. Os eleitores, até a queda do Império, representavam
entre 1,5% e 2% da população total. Um grupo tão pequeno podia ser facilmente manipulado. A política era mais
um produto de alianças ou rivalidades familiares do que de ideologia. As eleições eram controladas pelos chefes
locais que, mediante o sistema de clientela e patronagem, podiam carrear votos para seus candidatos favoritos. O
apoio obrigava a reciprocidade”. COSTA, E V da. Da monarquia à república, p. 143
188
SALES, Campos. Apud. LESSA, R. A invenção republicana, p. 60.
189
Cf. CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 44.
61
o voto dos últimos era manipulado pelos chefes locais, estaduais e nacionais190.
Daí o baixo número de comparecimento às urnas, seja por medo, seja por descrença,
desinteresse, ceticismo191. Como afirmara Lima Barreto, na República dos Bruzundangas,
“tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador
– o voto”192. A fórmula de estabilização do poder consolidada na “política dos Estados”
desenvolvida por Campos Sales, entre 1898-1902, vinha antes resolver o problema da luta entre
os grandes poderes, notadamente das oligarquias, do que se referir a qualquer “verdade”
eleitoral. Esta já estava “garantida” pela própria legislação que excluía a grande maioria da
população. A Sapiência aí era consolidar a ordem. Como lembrara Gilberto Freyre, herança do
antigo regime, a República fez a ordem antecipar-se ao progresso193. Os primeiros quinze anos
da República foram bastante tumultuados. Vistos a partir de um olhar macro institucional, que
aborde os grandes poderes da República, tratou-se de uma difícil articulação entre o poder
central e o poder dos Estados. A experiência imperial, porém, também enfrentara tal
problema194 que, conforme mostra Sérgio Buarque de Holanda, está entre as razões da queda:
[...] é preciso notar como a estabilidade administrativa, que para muitos constitui a
grande virtude do regime monárquico [...] foi exceção na história do Império. E
também que os abalos causados insistentemente no país pela rotação caprichosa
dos Governos, com o cortejo necessário das demissões ou remoções em massa de
empregados públicos, tinham efeitos comparáveis aos dos motins políticos [...]. A
situação era mais grave ainda nas províncias, onde os Presidentes mandados da
Corte só ficavam geralmente o tempo preciso para garantir o predomínio da
orientação partidária do Ministério no poder. De estável, só mesmo, em todo esse
sistema, é a figura do Imperador, cuja ingerência ativa no governo ia ser, cada vez
mais, contestada195.
190
CARVALHO, J M de. Os três povos da República, Revista USP, São Paulo, n. 59, set/nov, 2003, p. 105.
“A Primeira República não conseguiu unificar seus três povos. Não pôde, ou não buscou, transformar em
cidadão o jeca de Lobato, o sertanejo de Euclides, o beato do Contestado, o bandido social do cangaço, o operário
anarquista das grandes cidades. Liberal pela Constituição, oligárquica pela prática, não foi fruto de opinião
democrática nem dispôs de instrumentos para promover essa opinião”. CARVALHO, J M de. Os três povos da
República, Revista USP, p. 113. Um modo de participação política que foi intensamente desenvolvido na
República e que ainda não obteve uma análise de conjunto em suas características foi a constituição das Ligas em
favor de causas específicas. Com efeito, dezenas, provavelmente centenas, de Ligas foram criadas no decorrer da
Primeira República, tratou-se de uma época das Ligas. Sendo constituídas por membros da sociedade civil,
intelectuais, políticos, profissionais liberais, militares, religiosos e escritores, as Ligas produziam demandas ao
poder público, constituíam redes de apoio mútuo e assistencialismo e faziam campanhas públicas. Desde a
Proclamação, o regime conhecera as ligas Republicana; Contra a Vacina Obrigatória; Anticlerical; Antimilitarista;
Dos Inquilinos; De Defesa Nacional; Nacionalista; Pró-Saneamento do Brasil; Pelos Aliados; Do Voto Secreto;
Católica; Brasileira Contra o Futebol; Pela Moralidade; Brasileira de Higiene Mental; Da Defesa Estética;
Metropolitana; Eugênica; Comunista; Pela Emancipação da Mulher Brasileira; Contra a Tuberculose; Nacional
Contra o Mocambo; Contra o Analfabetismo; Pedagógica; Jesus, Maria e José; Espírita do Brasil; Sul-Americana
de Luta Contra o Câncer e várias outras. Mário de Andrade, no poema “Klaxons Elétricos”, dizia “Aqui não se
conhece a Liga do Silêncio”, devia ser uma das poucas causas que não conhecera a sua liga. Será que não? Cf.
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole... São Paulo: Cia das Letras, 1992, 293.
192
BARRETO, Lima. Apud. CARVALHO, J M d. Os três povos da República, Revista USP, p. 105.
193
Cf. FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. Tomo I. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1974, p. 15.
194
“Francisco Iglesias contou, para um período de 65 anos, nada menos do que 122 períodos administrativos em
Minas Gerais, região apresentada pela mitologia política nacional como pátria da estabilidade”. LESSA, R. A
invenção republicana, p. 53.
195
HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Monárquico. Do Império
à República. Tomo II. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 15-16.
191
62
Para Renato Lessa, essa figura estável do Imperador era o verdadeiro Leviatã da política
nacional, de modo que, uma vez derrubada, retornava-se ao estado de natureza.
Esquematicamente, os primeiros anos do regime republicano vivenciaram “a baixa
institucionalização dos mecanismos de governo, a anarquia estadual decorrente dos impasses
da opção federalista e, por fim, a hiperpolitização das forças armadas”196. Quando observamos
os confrontos, revoltas, embates e disputas, notamos que, na verdade, algo que se tornará cada
vez mais claro durante a Primeira República, trata-se, nestes conflitos entre os grandes poderes
da República, na maioria das vezes, de lutas pelo poder em si e não por objetivos para além
do regime estabelecido. A sangrenta Revolução Federalista (1893-1895), que opunha
castilhistas a gasparistas, era uma radicalização da luta pelo poder na região sul do país e,
embora vitimasse milhares de pessoas, tratava-se de um conflito com finalidades locais e
provinciais, sua maior ideologia era o anticastilhismo197.
A Revolta da Armada (1893-1894), o conflito que mais colocou em xeque o poder
central em todo o primeiro período republicano, com exceção, é claro, da Revolução de 1930,
era uma luta pelo poder e não contra a República. É interessante notar como o desenrolar da
Armada, de uma forma inusitada, é retomado com mais dramaticidade pela historiografia do
que pela literatura. De fato, Lima Barreto, em 1911, assim narrava os acontecimentos:
A vida continuava a mesma. Havia grupos parados e moças a passeio; no Café do
Rio, uma multidão. Eram os avançados, os “jacobinos”, a guarda abnegada da
República, os intransigentes, a cujos olhos, a moderação, a tolerância e o respeito
pela liberdade e a vida alheias eram crimes de lesa pátria, sintomas de
monarquismo criminoso e abdicação desonesta diante do estrangeiro. O estrangeiro
era sobretudo o português, o que não impedia de haver jornais “jacobiníssimos”
redigidos por portugueses da mais bela água. A não ser esse grupo gesticulante e
apaixonado, a Rua do Ouvidor era a mesma. Os namoros se faziam e as moças iam
e vinham. Se uma bala zunia no alto do céu azul, luminoso, as moças davam
gritinhos de gata, corriam para dentro das lojas, esperavam sorridentes, o sangue a
subir às faces pouco e pouco, depois da palidez do medo. [...] Com o tempo, a
revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade... Quando se anunciava
um bombardeio, num segundo, o terraço do Passeio Público se enchia. Era como
se fosse uma noite de luar [...]. Alugavam-se binóculos e tantos os velhos como as
moças, os rapazes como as velhas, seguiam o bombardeio como uma representação
de teatro [...]. As balas ficaram na moda. Eram alfinetes de gravata, berloques de
relógio, lapiseiras feitas com as pequenas balas de fuzis [...].198
Na visão do escritor carioca, o fim da Revolta com os processos de prisões e perseguições aos
revoltosos é que provocara reação em massa nos moradores do Rio de Janeiro, que fugiam da
cidade aterrorizados199. Porém, uma vez controlada a insurreição, se, por um lado, o marechal
196
LESSA, R. A invenção republicana, p. 59.
CARONE, Edgar. A República Velha. Evolução Política. Rio de Janeiro: DIFEL, 1977, p. 105.
198
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Brasiliense, 1965, p. 222; 235.
199
“No dia da entrada, acreditando que houvesse canhoneio, uma grande parte da população abandonou a cidade,
refugiando-se nos subúrbios, por baixo das árvores, na casa de amigos ou nos galpões construídos adrede pelo
Estado”. BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma, p. 277.
197
63
ganhava “feições sobre-humanas”, por outro lado, ficaria claro que as pessoas que
participaram no confronto “tinham vindo ou com pueris pensamentos políticos, ou por
interesse; nada de superior os animava”200. A desilusão com o regime se fazia patente.
A vida do poder entre as grandes forças do regime fora consolidada na “Política dos
Estados” criada no governo Campos Sales. O arranjo entre as elites conseguira assegurar uma
rotinização da dinâmica política a partir da nova lei de verificação dos poderes201. Há
praticamente consenso sobre os resultados e as características da política dos governadores.
Como afirma José Murilo de Carvalho seguindo Renato Lessa, tratou-se de se “construir um
sistema de poder que pudesse reconstituir a estabilidade conferida pelo Poder Moderador
durante o Império”202. Como vimos, tal estabilidade era relativa, assim como relativa será a
ordem durante o regime republicano ao adotar um equivalente funcional ao Poder Moderador.
Assim, ficara, mais uma vez, o novo regime com a cara do velho. Ceticamente seguia-se, mais
do que as leis, os costumes políticos que ordenavam as elites políticas regionais.
A instabilidade existente no interior das disputas intra-elites, porém, não pode ser
desprezada. É possível verificá-la no fato de que todos os presidentes da primeira república
brasileira tiveram de proclamar o estado de sítio pelo menos uma vez, algo que passa
despercebido pela historiografia em geral. Da mesma forma que, no Império, o Poder
Moderador tinha de administrar os distúrbios oligárquicos, as elites políticas da República
tinham de construir, a cada eleição presidencial, novos arranjos que garantissem a manutenção
de seus interesses. Dessa forma, é preciso ter em mente que, no âmbito da política das elites:
O falseamento das instituições democrático-eleitorais, no contexto do regime
oligárquico, fazia com que a verdadeira disputa entre atores pela parcela de poder,
no restrito mercado político, se desse não durante as eleições, mas na fase que lhes
antecedia, qual seja a da indicação do nome para a disputa e de seu posterior
acatamento por parte das lideranças dos principais estados da federação203.
Assim, neste jogo de interesses em que a eleição se dava antes do pleito oficial, a estabilidade
do regime “derivava muito mais da ausência de alianças permanentes e monolíticas do que do
seu contrário”. Além disso, havia uma lógica em que “os vencidos iam sendo
progressivamente reincorporados ao poder, através de sua adesão ao novo situacionismo”204.
200
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma, p. 278.
O presidente interino da Câmara não seria, como antes, o mais velho dos diplomados, o qual, por sua vez,
escolhia a comissão de verificação dos poderes. “Ocupará a presidência o deputado que foi eleito e serviu como
presidente na última sessão legislativa se houver sido diplomado para a nova legislatura”. Isso acarretava a
consolidação dos situacionismos estaduais, pois o diploma era a “ata geral da apuração da eleição, assinada pela
maioria da Câmara Municipal competente por lei para apura-la”; “o êxito da eleição dependia agora quase
decisivamente de assegurar cada parcialidade à maioria das juntas apuradoras, para obter delas que rejeitassem as
contestações oferecidas e assinassem em maioria, como límpidos e cristalinos, os diplomas de seus
correligionários”. GUANABARA Apud. CARONE, E. A República Velha, p. 192.
202
CARVALHO, J M. Os três povos da República. Revista USP, p. 98.
203
VISCARDI, Cláudia. O teatro das oligarquias. Uma revisão da “política do café com leite”. Belo Horizonte:
Fino Traço, 2012, p. 60.
204
VISCARDI, C. O teatro das oligarquias, p. 318.
201
64
Na competição intra-elites que mobilizava oligarquias de diferentes regiões, notadamente, São
Paulo, Minas Gerais, Rio de Grande do Sul, Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco, tratava-se
sempre de busca pelo poder, sem maiores preocupações com a natureza do regime em si.
Nesse caso, a República recompensava e era-se cético quanto a qualquer mudança estrutural.
A Proclamação da República trouxe, ao menos no texto constitucional, inovações
importantes na vida cultural e social brasileira: separação de Igreja e Estado, laicização dos
cemitérios, casamento civil, reforma do ensino, liberdade de culto e fim das ordens
honoríficas. Uma das experiências que evocavam o tom de novidade se deu logo no início do
novo regime: a política financeira que ficou conhecida como Encilhamento. Estabelecida por
Rui Barbosa, ministro da Fazenda do Governo Provisório, a política de liberação da emissão
de moeda por bancos particulares e o incentivo à corrida por títulos de empreendimentos
supostamente magníficos na bolsa de valores deram um tom de modernização à nova situação.
A nova condição, segundo o roman à clef de 1893205 escrito pelo Visconde de Taunay, fazia
parecer que o “Império centralizara demais tudo, prendera com zelo exagerado as forças de
propulsão do Brasil”. O ministro seria um gênio, suas manobras meteriam inveja à Inglaterra,
punha todos no chinelo, criaria os alicerces para “assombrosa e inabalável prosperidade”206.
A República conseguira afirmar uma aceleração da experiência temporal, fazendo-se
com que “ao amanhã de todo sempre, substituíra-se o já e já”207. O neologismo
“encilhamento” expressa tal condição. Emprestado à corrida de cavalos, o Turf, esporte muito
em moda no período, o termo se refere ao momento em que os cavalos estão presos e neles
são colocados os arreios, as cilhas, preparando-os para a disputa. Apesar de curta, fora uma
época de entusiasmo e euforia, como notara Machado de Assis:
[...] epopeia de ouro da cidade e do mundo, porque a impressão total é que o mundo
inteiro era assim mesmo. Certo, não lhe esqueceste o nome, encilhamento, a grande
quadra das empresas e companhias de toda espécie. Quem não viu aquilo não viu
nada. Cascatas de ideias, de invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras
e vistosas para se fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de
milhares, milhares de milhares de milhares de contos de réis. Todos os papéis, aliás
ações, saíam frescos e eternos do prelo. Eram estradas de ferro, bancos, fábricas,
minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, importação, ensaques,
empréstimos, todas as uniões, todas as regiões, tudo o que esses nomes comportam
e mais o que esqueceram. Tudo andava nas ruas e praças, com estatutos,
organizadores e listas. Letras grandes enchiam as folhas públicas, os títulos
sucediam-se, sem que se repetissem, raro morria, e só morria o que era frouxo, mas
a princípio nada era frouxo. Cada ação trazia a vida intensa e liberal, alguma vez
imortal, que se multiplicava daquela outra vida com que a alma acolhe as religiões
novas. Nasciam as ações a preço alto, mais numerosas que as antigas crias da
205
Lançado em folhetins, sob o criptônimo de Heitor Malheiros, na Gazeta de Notícias, em janeiro de 1893, quando
reunido em livro no mesmo ano, recebeu o seguinte comentário: “Os tipos do romance O Encilhamento, se
romance se pode chamar à narração de fatos verídicos, viveram, vivem na realidade”. CARVALHO, Veridiano.
Prólogo. In: TAUNAY, A d E. O Encilhamento, p. 14.
206
TAUNAY, A de E. O Encilhamento. Belo Horizonte: Itatiaia, 1971, p. 52.
207
TAUNAY, Affonso de E. O Encilhamento, p. 21.
65
escravidão, e com dividendos infinitos. Pessoas do tempo, querendo exagerar a
riqueza, dizem que o dinheiro brotava do chão, mas não é verdade. Quando muito,
caía do céu208.
Com o tempo, porém, a política foi revelando suas insuficiências, os papeis mostraram-se sem
valor e os golpes eram descobertos a cada dia. Há de se lembrar os que caíram do cavalo,
perderam o pouco que tinham para as grandes raposas que sequer tiveram de enfrentar a justiça.
Uma das primeiras viradas sentidas já na primeira década republicana foi a dos
humoristas, que tanto ironizavam o velho imperador, chamando-o de Pedro Banana, e que,
rapidamente, formaram um humorismo da desilusão republicana perceptível nos versos de
Guimarães Passos: O século que aqui dorme / Não achará quem o pinte, / Foi em torpezas
enorme / E morreu tão desconforme / Que, morrendo, deu no... XX209. Culturalmente, o
encilhamento parecia anunciar as características que iriam marcar o início da República:
A República soltou de dentro de nossas almas toda uma grande pressão de apetites
de luxo, de fêmeas, de brilho social. O nosso Império decorativo tinha virtudes de
torneira. O encilhamento, com aquelas fortunas de mil e uma noites, deu-nos o gosto
pelo esplendor, pelo milhão, pela elegância nós atiramo-nos à indústria das
indenizações. Depois, esgotados, vieram os arranjos, as gordas negociatas sob todos
os disfarces, os desfalques, sobretudo a indústria política, a mais segura e a mais
honesta. Sem a grande indústria, sem a grande agricultura, com o grosso do comércio
nas mãos dos estrangeiros, cada um de nós sentindo-se solicitado por um ferver de
desejos caros e satisfações opulentas, começou a imaginar meios de fazer dinheiro à
margem do código e a detestar os detentores do poder que tinham a feérica vara legal
de fornecê-lo a rodo210.
Se a corrida do encilhamento chegara ao fim formalmente, com o retorno da ortodoxia
financeira, algo de seu espírito tinha maior longevidade: uma nova experiência com o tempo,
mais acelerado e antes próprio à dinâmica urbana do que à rural e o aumento do culto ao
cosmopolitismo. A novidade que era a marca da República, vista ela mesma como atualização
política segundo os parâmetros estrangeiros, é caracterizada pela emergência dos novos barões,
novos ricos, novos poderosos, novos cultos, art nouveau211. Emergia uma nova moralidade,
talvez um capitalismo sem a ética protestante, como caracterizara José Murilo de Carvalho. A
competitividade do encilhamento, tal como a as disputas do teatro das oligarquias, estabelecerase como espécie de regra geral das ações e, cada vez mais, o viver segundo os próprios
interesses, de forma cética e, até mesmo, cínica parecia ser a única possível.
A experiência do novo republicano prefigurada pelo encilhamento será consolidada
com as grandes reformas urbanas. Porém, uma vez vivida a desilusão com o novo regime,
rotinizada a experiência cética em relação à política, tanto pelo afastamento da maioria da
população da participação eleitoral quanto pelo pragmatismo dos oligarcas, pode-se dizer que
208
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Obras completas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, p. 88-89.
PASSOS, Guimarães. Apud. SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 74.
210
BARRETO, Lima. Apud. SEVCENKO, Nicolau. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão – Tensões
sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 27.
211
Cf. FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. Vol II. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962, p. 419.
209
66
o urbanismo que abre o século XX brasileiro praticamente monopoliza o cosmopolitismo
republicano e a aceleração temporal do encilhamento. Tal relação entre a política institucional
e as reformas nas cidades é descrita pela pena feroz de Sílvio Romero:
Como estamos cada vez mais a pensar que o Brasil se reduz todo ele a esta velha
carcaça do Rio de Janeiro, que, como as mulheres de Jerusalém acreditavam que se
salvavam só com o tomarem trajos garridos, imagina que só com a abertura de
avenidas tem atingido todas as grandezas, no mais triste abandono jaz cada vez mais
a educação política das massas, cujo caráter se tem, ao contrário, cada mais
inconvenientemente aviltado212.
Atingir “todas as grandezas” pelas reformas urbanas, tal foi o caráter que norteara as ações
urbanísticas em cidades como Belém, Recife, Belo Horizonte e, posteriormente, em São Paulo.
Mas o grande “exemplo” vinha da Capital, Rio de Janeiro. Época das “picaretas
regeneradoras”, na expressão de Olavo Bilac. O remodelamento da cidade era o real grito do
Ipiranga, na opinião do cronista Gil. A reforma das cidades cumpriria, assim, a verdadeira
independência e modernização da vida pública brasileira. Aquilo que a política republicana não
conseguira cumprir, qual seja, uma nova relação entre população e o poder institucional, as
cidades remodeladas produziam como uma inaudita experiência com a imagem do novo e
moderno que emergia da cenografia da nova cidade. Era o “Bota Abaixo”, o “Rio civiliza-se”213,
segundo os ditames reiterados do período. Esse era o progresso, a inserção compulsória na Belle
Époque incentivada pelo presidente Rodrigues Alves e levada a cabo pelo prefeito do Rio de
Janeiro, Pereira Passos. Mais uma vez, Sílvio Romero oferece interessante síntese do processo:
Toma-se, antes de mais nada, o ensinamento de Napoleão III, tipo de monarca
bizantino em pleno século XIX: a força, o progresso, o poder, a opulência de um
povo andam indissoluvelmente ligados a “boulevards” e “avenidas” na Capital.
Tem-se logo dupla vantagem: impossibilitam-se as barricadas e fascinam-se as
massas com as fachadas deslumbrantes. Inventam-se Haussmans; de pronto, as
“Palermos” e as “Centrais”, surgem como por encanto. Contraem-se empréstimos
sobre empréstimos, manipulam-se câmbios sobre câmbios, multiplicam-se impostos
e mais impostos [...]214.
A cultura compatível com a modernização da remodelação das cidades seria a projeção de um
sonho parisiense, a “capital do mundo”, “coração da civilização”, como se repetia
corriqueiramente. Tal sedução simboliza-se no sonho do jovem pintor boêmio Agrário de
Miranda, personagem do romance Mocidade Morta lançado em 1900 por Gonzaga Duque. Ele
desejava uma formação no exterior, a fim de superar os figurões da Escola de Belas Artes:
Ele, por si, julgava-se capaz de vencer, sem esforço, essa pequenina arte gafada e
trôpega... E se tivesse a ventura de estudar na Europa, durante cinco anos, que não
faria ele? ... Ah! bastar-lhe-iam quatro, três anos, nessa Paris desejada... Um sorriso
arregaçou-lhe a boca, untuosamente, numa pegajosa doçura de favos sorvidos; suas
pupilas clarearam em alvoradas, distendeu-se por seus músculos uma volúpia... Paris
212
ROMERO, Sílvio. Provocações e debates (Contribuições para o Estudo do Brasil Social). Porto: Livraria
Chardron, 1910, p. 108.
213
Cf. BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1975, p. 3.
214
ROMERO, Sílvio. Provocações e debates. Porto: Livraria Chardron, 1910, p. 177.
67
emergira nas distâncias nevosas de um sonho, desdobrara-se na sua visão, grande e
ofuscante com suas cúpulas, as suas torres, os seus palácios... Era bem a Paris dos
seus pensamentos, era bem essa Terra Prometida dos gozos, opulenta e risonha
quermesse de encantos, esta que lhe parecia!...215
Dessa forma, dois polos teoricamente opostos no interior da dinâmica cultural urbana, o dos
boêmios e o da “boa sociedade”, compartilhavam o ideal parisiense de vida na cidade. É assim
que no romance A Esfinge, de Afrânio Peixoto, publicado em 1911, o jovem escultor Paulo de
Andrade é alertado pelo Almirante Aguiar, pai da cobiçada Lúcia, sobre a necessidade de que:
Evitasse a dispersão nas companhias levianas da maior parte dos nossos quase
artistas, literatos, jornalistas, que desperdiçam talento nos cafés e nas esquinas,
desanimam no trabalho, criam vaidade que impedem a produção e dão em críticos
de epigramas e trocadilhos, demolindo e difamando os que aparecem, os que
vencem, os que não tomam absinto na Colombo ou na Pasqual, na companhia de
cocotes e de outros ratés como eles... Evitasse igualmente a boa sociedade dos
jantares e espetáculos, dos clubes e dos salões, em que a gente vive num esforço
contínuo de aparentar riqueza, inteligência, espírito, trocando sorrisos e
maledicências, inventando namoros e adultérios, habituando-se a desdenhar tudo, a
aborrecer o trabalho e as preocupações úteis... vida fútil em que apenas se divertem
os desocupados, porque matam o tempo e de que os homens de merecimento devem
fugir porque têm mais que fazer, do que divertir os outros216.
Afrânio Peixoto, autor da controversa frase segundo a qual a literatura é o “sorriso da
sociedade”217, tivera grande sucesso com esse romance e com todos os outros que lançara desde
215
DUQUE, Gonzaga. Mocidade Morta. Disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=38020, p. 33.
216
PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1976, p. 60.
217
Apesar de a frase estar em uma obra de 1940, Panorama da Literatura Brasileira, ela serviu para caracterizar
uma vivência literária do início do século XX. À época do lançamento da obra, as críticas a tal definição foram
severas. Álvaro Lins condenara tal expressão que faria parte de um livro “que nada significa”. Outro crítico, Álvaro
Gonçalves, considerava que talvez se tratasse de um “enfeite de franjinhas” da visão de Ferdinand Brunetière que
dissera ser a literatura “uma expressão da sociedade”. Afrânio Coutinho afirmara que se tratava de glosa da
expressão de Eugene Vall: “A literatura é o perfume de uma nação”. A associação de uma literatura “sorriso da
sociedade” com a produção da Belle Époque carioca já aparece na recepção dessa obra de Afrânio Peixoto. De
fato, o crítico literário Dalcídio Jurandir, analisando um livro de Osório Borba, fala de Lima Barreto, que nos anos
1940 andaria meio esquecido, como o autor que se opusera a uma “certa literatura sorriso da sociedade”. A
repercussão negativa foi tão grande que, em 1945, o próprio Afrânio Peixoto se pronuncia: “Já disse uma vez que
a literatura é o sorriso da sociedade. Fui então muito criticado. Tolice... Que é mesmo literatura, num mundo
convulsionado, senão um sorriso? Escrever, é sorrir. Fazer frases, sorrir. Posso agora acrescentar que há sorrisos
que valem uma literatura... Sorrisos jovens que são mais preciosos que velhas literaturas... Sorrisos maduros, que
às vezes nos despertam maior apetite que certas literaturas novas... Há que fazer um tratado de psicologia dos
sorrisos... Não foi feito. Mas eu farei, ainda. E será num domingo destes. Existem sorrisos típicos do Teatro
Municipal... Sorrisos de Jóquei Clube... Sorrisos de cinema, de passeio público, de mercadinho da Coordenação,
de Academia Brasileira... Sorrisos de restaurantes da ABI, de conversa de namorados, de pracinha da FEB, de bate
papo na Cinelândia... Sorrisos... Não esquecer os sorrisos temperamentais, os sorrisos Betti Davis ou Ingrid
Bergman... Sorrisos que levam ao laço matrimonial ou ao suicídio... Sorrisos que pagam contas e que conservam
o crédito... Que aumentam os pecados... Que salvam almas...”. Sem dúvida, ao associar a frase à vida literária dos
anos 1900, a obra de Brito Broca foi fundamental em tal caracterização, assim como, a História da Literatura
Brasileira de Lúcia Miguel Pereira, ambas publicadas na década de 1950. No fim das contas, a frase de Afrânio
serviu para caracterizar o espírito de uma época da qual a sua própria obra ficcional acabou por se tornar referência.
O próprio Afrânio, convém destacar, fora um cético e dessa forma foi visto durante todo os anos 1920. Cf. LINS,
Álvaro. Crítica Literária. Panoramas, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12 out. 1940, p. 2; GONÇALVES,
Álvaro. Fundamentos da Arte, A Manhã, Rio de Janeiro, 13 jun. 1946, p. 4; COUTINHO, Afrânio. Correntes
Cruzadas, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 18 mar. 1949, p. 26; JURANDIR, Dalcídio. Sobre “A comédia
literária”, Dom Casmurro, Rio de Janeiro, 13 set. 1941, p. 6; PEIXOTO, Afrânio. O sorriso da sociedade, A Manhã,
Rio de Janeiro, 25 jul. 1945, p. 9; BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro: José Olímpio,
1975; MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da Literatura Brasileira. Prosa de Ficção – 1870-1920. Rio de Janeiro:
68
então. Sucesso vindo, talvez, do fato de ele descrever esse mundo de sonho das elites cariocas,
especialmente nas figuras de rapazes e garotas que iam passar temporadas em Petrópolis, que
cuidavam de jogar tênis, fazer flertes, cantar em francês e em inglês, promover bailes, chás,
recepções, comentar sobre as últimas modas de Paris, passear de automóvel etc. Era uma boa
sociedade e não, necessariamente, uma sociedade que visasse algum bem maior.
Tal sensibilidade moldada no interior da cidade experimentava as novidades e a
modernização segundo o ritmo do dernier bateau, da última moda francesa, do automóvel. João
do Rio fala em “Era do automóvel”, não mais do carro de José do Patrocínio que ia a “três
quilômetros por hora”, mas do triunfal automóvel, por quem as ruas foram arrasadas e as
avenidas apareceram. Seria capaz de provocar a língua do futuro, que seria estenografada, como
o FIAT com 60 HP. Mais que a linguagem, o automóvel simplificaria os negócios, a vida, o
amor. Ele, o automóvel, seria o impulsionador que torna milionários os jovens que nem sequer
fizeram trinta anos, que faz os meninos nascerem banqueiros, deputados, ministros, diretores
de jornal, reformadores de religião e da estética, ele o verdadeiro elemento do progresso:
Se não fossem os 120 quilômetros por hora dos Dietrich de course não se andaria
moralmente tão depressa. O automóvel é o grande sugestionador. Todos os ministros
têm automóveis, os presidentes de todas as coisas têm automóveis, os industriais e
os financeiros correm de automóvel no desespero de acabar depressa, e andar de
automóvel é, sem discussão, o ideal de toda a gente218.
A imagem da cidade remodelada é a produzida pelas fotografias expostas em revistas ilustradas,
como a Fon Fon, a Selecta e a Para Todos, que revelavam:
[...] uma compreensão sobre o moderno, cuja característica principal foi a construção
de uma representação que articulou a “nova” capital modernizada à sua história e
tradições, em imagens fotográficas que se combinavam para conformar uma
concepção de tempo e de história na qual a modernidade, ao mesmo tempo que
posiciona a sociedade brasileira no compasso das sociedades “civilizadas”, trazia,
em contrapartida, uma perda da memória e do passado coletivo nacional219.
Os instantâneos expunham o prazer ostentatório, o verdadeiro desfile nas áreas renovadas, onde
circulavam os grupos sociais agora celebrados. Assim, na “cidade moderna o erotismo parecia
se tornar sinônimo de fruição, de prazer de sedução e de fetiche”220. Como dizia o cronista de
Fon Fon: “francamente, eu acho que a gente deve levar a vida a rir e a divertir-se”221.
A centralização da cidade como espaço promotor da modernização nacional guardava
características mais sérias. Retirava-se, cada vez mais, o espaço para a legítima ação política,
como Sílvio Romero notara ao associar, acertadamente, as reformas de Pereira Passos no Rio
José Olímpio, 1950.
218
RIO, João do. A era do automóvel. In: MARTINS, Luís. João do Rio. Uma antologia. Rio de Janeiro: Editora
Sabiá, 1971, p. 50.
219
OLIVEIRA, Cláudia de. Fotografia e a representação do Rio de Janeiro moderno em Fon-Fon!, Selecta e Para
Todos... (1930-1930). In: LUSTOSA, I (Org). Imprensa, história e literatura, p. 320.
220
OLIVEIRA, C d. Fotografia e a representação... In: LUSTOSA, I (Org). Imprensa, história e literatura, p. 325.
221
Cf. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão, p. 37.
69
àquelas feitas pelo Barão Haussmann em Paris. Condicionava-se o desenvolvimento humano
aos saberes que orientariam a remodelação urbana: a medicina, o higienismo, a segurança. Não
por acaso, um dos primeiros diagnósticos de repercussão nacional no interior da cultura
intelectual brasileira será uma metáfora emprestada à medicina: o Brasil é um grande hospital.
Mas esta constatação, cara ao higienismo dos anos 1910, já era uma perspectiva minimamente
otimista acerca do “homem brasileiro”. De fato, na virada do século XIX para o XX, a reflexão
racialista que caracterizava os principais intelectuais preocupados em definir o caráter nacional
criara na cultura intelectual brasileira uma visão cética e pessimista quanto à possibilidade, ao
menos no curto prazo, de uma civilização nos trópicos.
Se a República atualizava um repertório moderno em torno da noção de “política
científica”, se a remodelação das cidades era a inserção compulsória na civilização ocidental,
restava uma questão que vinha junto, mais ou menos explicitamente, com todas essas ideias: a
condição racial dos povos. E neste quesito não havia “troca de tabuletas” ou “bota abaixo” que
pudesse, mesmo que cenograficamente222, mudar a condição nacional da noite para o dia. De
um modo geral, a voga das teorias racialistas pelo mundo afora pode ser vista “como doutrinas
utilizadas pelos ideólogos do imperialismo, justificando o domínio europeu sobre os demais
povos”223. Tal perspectiva deve sempre ser lembrada, afinal, nos tempos modernos, “a reflexão
sobre o contato cultural envolve também uma reflexão sobre a dominação e a apropriação pela
força: alguém perde, alguém ganha”224. Porém, a mera verificação sobre como as doutrinas
racialistas, especialmente as eugênicas, tiveram recepção distinta em países da América do Sul,
como Brasil e Argentina, revela que as afirmações categóricas sobre o trânsito dessas ideias em
sua “pureza” perdem muito de seu valor interpretativo. Assim, um país como o Brasil, que havia
desenvolvido uma autoimagem de mestiço, analfabeto e pobre, teria uma relação diferenciada
com as teorias racialistas se comparado à Argentina, que produzira uma identidade de país
branco e civilizado à Europeia. Ambos, se contrapostos ao México, que vivera um cenário
revolucionário nos anos 1910, seriam ainda mais distintos entre si225, apesar de compartilharem
o lugar de periferia econômica e política do mundo ocidental.
As visitas ao Brasil de naturalistas europeus como Louis Agassiz, que aqui estivera em
1865, e de figuras renomadas como Arthur de Gobineau, recebido pelo próprio Imperador em
222
Neste sentido, as tentativas de Rio Branco, Ministro das Relações Internacionais durante os primeiros governos
da República, em empregar apenas homens de “cor branca” como representantes do Brasil no exterior é uma
situação tragicômica da inserção do Brasil no concerto das Nações, sintomática da condição “racial” e racista do
país. Cf. FREYRE, G. Ordem e progresso. Tomo I, p. XLIX.
223
LEITE, Dante Moreira. Apud. SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 15-16.
224
SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 307.
225
Cf. STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz,
2005, p. 20-21.
70
1869, faziam da “questão racial” o centro dos questionamentos acerca da condição brasileira
no cenário internacional e de sua capacidade racial para atingir à “Civilização”. Para Agassiz:
[...] qualquer um que duvida dos males dessa mistura de raças, se inclina, por malentendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as separam –venha ao
Brasil. Nada poderá negar a deterioração decorrente do amálgama de raças, mais
geral aqui do que em qualquer país do mundo226.
Já o diplomata francês, Arthur de Gobineau, que vinha como o autor de um clássico do
racialismo do século XIX, Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas (1853), afirmava:
[...] nem um só brasileiro tem sangue puro porque os exemplos de casamentos entre
brancos, índios e negros são tão disseminados que as nuanças de cor são infinitas,
causando uma degeneração do tipo mais deprimente tanto entre as classes baixas
como nas superiores (...)227.
Eram diagnósticos decisivos marcados pela “objetividade científica”, da mesma
ciência que validava a República como necessária ao progresso dos povos. Um dos eventos que
mais explicitaram este “dilema” nacional foi a Guerra de Canudos. Se, ao fim do conflito,
ocorrera uma “explosão de alegria”, como se o país tivesse “saído de um pesadelo”, em 9 de
outubro de 1897, um dia após de anunciar-se o término da luta, Afonso Arinos dizia no artigo
“Epílogo da Guerra de Canudos”:
A luta da Bahia indica um estado de alma que em parte alguma da superfície da terra,
em época alguma da história, poderia ser produzida pela ação de um ou mais homens
inteligentes, com fito político [...]. Essa luta deveria merecer a atenção dos
publicistas, para ser estudada, não simplesmente na trágica irrupção e no
desenvolvimento, mas em suas origens profundas, como um fenômeno social
importantíssimo para a investigação psicológica e conhecimento do caráter do
brasileiro [...]. Venceu, como devia vencer, a força que representa a civilização; [...]
Até aqui, só eram brasileiros os habitantes das grandes cidades cosmopolitas do
litoral; até aqui a atenção dos governos e grande parte dos recursos dos cofres
públicos eram empregados na imigração ou no tolo intuito de querer arremedar
instituições ou costumes exóticos. [...] Eis um elemento com que não contaram os
arquitetadores de nossas leis e de nossa organização e que surgiu agora, avocando
seu direito à vida. Essa força, que assim apareceu, há de ser incorporada à nossa
nacionalidade e há de entrar nesta como perpétua afirmação da mesma nacionalidade
[...]. Esses que foram mortos ou subjugados pelas armas nacionais fazem parte do
grande conjunto de homens espalhados pelos 8.300.000km2 de superfície do nosso
território, que vivem ignorados e esquecidos [...] Eles receberam o esplêndido e
misterioso batismo do sangue e cintos dessa púrpura, abriram as portas da
nacionalidade brasileira para seus irmãos sertanejos228.
Revelou-se a fragilidade do regime republicano. Este se mostrou ignorante acerca das questões
prementes que existiam nos interiores do país, revelou-se, ainda, frágil militarmente, ao
necessitar de seguidas expedições para extirpar o foco inimigo e, o pior, é que aquilo que seria
226
AGASSSIZ, Louis. Apud MAIO, Marcos Chor; RAMOS, Jair de Souza. Entre a Riqueza Natural, a Pobreza
Humana e os Imperativos da Civilização. Inventa-se a Investigação do Povo Brasileiro. MAIO, Marcos Chor;
SANTOS, Ricardo Ventura. Raça como questão – História, Ciência e Identidades no Brasil. Rio de Janeiro:
FAPERJ, 2010, p. 32.
227
GOBINEAU, Arthur de. Apud. MAIO, M C et al. Entre a Riqueza Natural..., Raça como questão, p. 32.
228
ARINOS, Afonso. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos [1922]. In: LIMA, Alceu Amoroso. Estudos
literários. Rio de Janeiro: Cia Aguilar Editora, 1966, p. 565-66.
71
“a nossa Vendeia”, na expressão de Euclides da Cunha, tornou-se, ainda segundo Euclides, o
exemplo de um genocídio, de um crime que devia ser denunciado, provocado por uma
República dividida entre litoral e sertão. Se Euclides incorpora a demanda solicitada por Afonso
Arinos229, não era exatamente uma “abertura de portas” o que afirmaria a sua obra. O paradoxo
de Os Sertões (1902) é que, enveredado num paradigma mesológico, racialista e historicista230,
Euclides da Cunha reconhecera no sertanejo uma “subcategoria étnica já constituída”, uma
“sub-raça”, que, apesar de forte, estaria fadada ao desaparecimento: “A civilização avançará
nos sertões impelida por essa ‘força motriz da História’ que Gumplowicz, maior do que Hobbes,
lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas fortes”231.
O único tipo racial que teria se constituído no Brasil seria uma sub-raça que não era
degenerada, mas seria retrógrada, um tipo como o do jagunço, “tão inapto para apreender a
forma republicana como a monárquico-constitucional”232. As conclusões só poderiam ser, mais
do que céticas, pessimistas. Não existia unidade racial no Brasil, talvez nunca houvesse:
Estamos destinados à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir
dilatado tempo de vida nacional autônoma. Invertemos sob esse aspecto, a ordem
natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social.
Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos ou desaparecemos.
A afirmativa é segura233.
A promoção da “evolução social”, se mantida a “vida nacional autônoma”, ou seja, caso não
ocorra com o país o que acontecera com a população de Canudos, não poderia ser consumada
“apenas” pela forma republicana ou por reformas urbanas, coisas de “cultura litorânea”, era
preciso que ela garantisse a “evolução biológica”.
O romance de Graça Aranha, Canaã (1902) contribuía com tal perspectiva. A obra fez
sucesso à época, daí merecer breve comentário por nossa parte. José Veríssimo considerava que
o livro era “novo (...) pela concepção e pela forma” e que o romance “não discute uma tese,
mas representa (...) um momento trágico da vida nacional”234. Tal questão sobre ser ou não um
“romance de tese” deve-se ao fato de o livro centrar-se nos debates reiterados e enormes entre
os jovens alemães Milkau e Lentz acerca da condição natural e humana do Brasil. Segundo o
229
O próprio Arinos lançara, em 1898, o volume Os Jagunços que aborda Canudos como tema central. Cf.
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 579.
230
Trata-se de um esquema explicativo triádico – meio, raça e momento histórico, descrito por Hippolyte Taine
em obras como História da Literatura Inglesa (1864) e Filosofia da Arte (1865). O esquema é parcialmente
seguido em Os Sertões que contém um capítulo sobre “A Terra”, outro sobre “O Homem” e os seguintes acerca
dos eventos da “Campanha de Canudos”. Cf. NUNES, Benedito. Crítica literária no Brasil, ontem e hoje. A Clave
do Poético. São Paulo: Cia. Das Letras, 2009, p. 55; CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Campanha de Canudos.
Rio de Janeiro: Laemmert, 1905.
231
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Campanha de Canudos, p. VI.
232
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Campanha de Canudos, p. 205.
233
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Campanha de Canudos, p. 70.
234
VERÍSSIMO, José. Apud. AZEVEDO, Maria Helena Castro. Um senhor modernista. Biografia de Graça
Aranha. Rio de Janeiro: ABL, 2002, p. 52-53.
72
próprio Graça Aranha, tratava-se de um “romance de ideias”. Talvez por ser Graça Aranha
amigo de Joaquim Nabuco, José Veríssimo e Machado de Assis235, poucas foram as vozes
dissonantes na recepção de seu livro, como a de Pedro Couto que, em 1907, dizia a João do Rio
que a obra era uma apologia “bem escrita” ao germanismo236.
Graça Aranha foi Juiz Municipal na cidade capixaba de Porto do Cachoeiro, onde
chegara em 1890, mas a deixou pouco tempo depois para ir morar na Europa. A obra se passa
numa pequena cidade no Espírito Santo que então vivia um processo de colonização alemã.
Praticamente todos os diálogos do livro são “falados” em alemão, mas descritos em português
pelo narrador. Já na chegada de Milkau, a criança que lhe servia de guia é descrita como membro
de uma raça “que se ia extinguindo na dor surda e inconsciente das espécies que nunca chegam
a uma florescência superior, a uma plena expansão da individualidade”237. Há um desfile de
teses do pensamento racialista em que a mulata é indolente, o mestiço é decadente, o alemão é
operoso e se a colônia tivesse sido deixada a cargo dos brasileiros tudo nela estaria então
“arrebentado”. O companheiro de Milkau representa um espírito colonizador com maior
predisposição imperialista e agressiva. Assim é que o jovem Lentz afirma sua posição sobre a
função da imigração: “é a lei da vida e o destino fatal desse país. Nós renovaremos a nação, nos
espalharemos sobre ela, a cobriremos com os nossos corpos brancos e a engrandeceremos para
a eternidade”238. Milkau via a coisa de uma maneira mais complexa, ao lembrar ao companheiro
que ninguém “até hoje soube definir a raça e ainda menos como se distinguem uma das outras”.
Interpelado por Lentz sobre a impossibilidade de a “raça negra atingir à civilização dos
brancos”, Milkau faz a defesa da miscigenação, num sentido de branqueamento:
O tempo da África chegará. As raças civilizam-se pela fusão; é no encontro das raças
adiantadas com as raças virgens, selvagens, que está o repouso conservador, o
milagre do rejuvenescimento da civilização. O papel dos povos superiores é esse
instintivo impulso de desdobramento da cultura, transfundindo de corpo a corpo. O
produto dessa fusão que, passada a treva da gestação, leva mais longe o capital
acumulado nas infinitas gerações239.
Os diálogos entre Milkau e Lentz constituem o cerne das ideias que marcam o
romance. Mais adiante, Milkau expõe essas mesmas ideias ao juiz da cidade, Paulo Maciel.
Este considerava que no Brasil o que havia era “uma incapacidade da raça para a civilização”,
ao que o alemão reafirmava que se “não tivesse havido a fatal mistura de povos mais adiantados
com populações atrasadas, a civilização não teria caminhado no mundo”240. A simbologia da
tese de Milkau fica por conta da relação que este terá com Maria Perutz, cuja história era
235
Cf. AZEVEDO, M H C. Um senhor modernista. Rio de Janeiro: ABL, 2002, p. 64 e segs.
Cf. RIO, João do. O momento literário, p. 92.
237
ARANHA, Graça. Chanaan, p. 3.
238
ARANHA, Graça. Chanaan, p. 42.
239
ARANHA, Graça. Chanaan, p. 49-50.
240
ARANHA, Graça. Chanaan, p. 331.
236
73
“simples como a miséria”, ela mesma filha de imigrantes alemães, podendo-se questionar o
caráter de tal miscigenação. De qualquer forma, a solução do romance reside no encontro dessas
duas personagens. O desfecho do livro, porém, gerou dúvidas quanto ao seu significado e
mesmo sobre o que realmente teria acontecido na história. Milkau resgatara Maria da cadeia da
cidade, onde estava recolhida acusada de ter assassinado seu filho recém-nascido que, na
verdade, viera à luz em uma pocilga e acabara sendo devorado por porcos. O casal foge pelas
matas e montanhas da região. A escapada começa a ganhar as colorações simbólicas de uma
busca pela felicidade terrena, pela Canaã sonhada por Milkau. Porém, nunca chegam a tal
destino e as palavras de Milkau assumem tons proféticos. A evasão não seria apenas um
desbravar do espaço da floresta e dos abismos intransponíveis, mas uma abertura temporal para
o horizonte de um futuro redentor. Diz ele à Maria na última frase do romance: “Eu te suplico,
a ti e à tua ainda inumerável geração, abandonemos os nossos ódios destruidores, reconciliemonos antes de chegar ao instante da Morte”241.
À época, tal final foi visto de forma enigmática e o livro assumiu tons pessimistas.
Para Ciro de Azevedo, Milkau teria ficado louco, assassinado Maria e suicidado em seguida.
Em geral, pensou-se que o desfecho habilitaria uma voga corrente no período e que vinha do
Trionfo della morte do escritor italiano Gabrielle d’Annunzio. Graça Aranha teria se indignado
com tal interpretação. Para ele, Maria simbolizaria a Humanidade e a Espécie: “esta é a
significação do livro (...) triunfo da vida, da Esperança, da Resignação”. O crítico Araripe Júnior
confessara, em carta ao autor, que também considerara a obra pessimista, se não pelo final, ao
menos por ela mostrar o Brasil como terra de “safadeza generalizada”242. Canaã consolidou-se
na cultura intelectual brasileira como um livro de destaque. Mais de vinte anos depois do
lançamento do livro, Sérgio Buarque de Holanda considerava Graça Aranha “um homem
essencial” e via em Canaã um “romance admirável”243. Porém, parece que ninguém entendera
o desfecho da obra segundo a intenção do autor, mesmo décadas após o aparecimento do
volume. Até o crítico literário Agripino Grieco, que dedicava especial admiração pela obra e
pela pessoa de Graça Aranha, considerava que este homem “sem preconceitos, que vive de
amar, de admirar e de esperar” tinha de reconhecer que “só é feliz quem morre, que só existe
na terra a Canaã da morte”244. Assim, apesar das intenções autorais, o romance era cético quanto
ao destino da nacionalidade. Seguindo os paradigmas racialistas, mesmo que elogiasse a
mestiçagem, esta nada mais era do que consumação das “raças fracas” pelas “raças fortes”.
241
ARANHA, Graça. Chanaan, p. 360.
Sobre os comentários acerca do fim do romance de Graça Aranha ver: AZEVEDO, M H C. Um senhor
modernista, p. 61 e segs.
243
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Um homem essencial, Estética, Rio de Janeiro, Ano 1, vol 1, p. 29.
244
GRIECO, Agripino. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 dez. 1923, p. 1.
242
74
Apenas num futuro distante, como afirmava Milkau, chegaria a Terra da Promissão, exigia-se
longa espera, pois viria ela no “sangue das gerações redimidas”245.
Em 1905, na obra América Latina, Manoel Bomfim criticava as teorias da mestiçagem
pelo seu racialismo racista e denunciava seu caráter imperialista: “Tal teoria não passa de um
sofisma abjeto do egoísmo humano, hipocritamente mascarado de ciência barata, e
covardemente aplicado à exploração dos fracos pelos fortes”246. À imagem da desigualdade
racial, de teor darwinista social, Manoel Bomfim, que tinha formação médica, contrapunha a
figura do parasita que poderia ser utilizada tanto para descrever as ações imperialistas entre os
países, quanto para denunciar as relações de dominação no interior de um país desigual como
o Brasil. Bomfim defendia o fomento à educação como meio de progredir não só o país, mas
toda América Latina247. Sua obra, porém, mereceu uma refutação de peso por parte de Sílvio
Romero que lhe dedicara um livro homônimo a fim de demonstrar que a soma das opiniões de
Bomfim era uma “verdadeira comédia” e que as teorias de desigualdade racial seriam
“investigações sinceras, objetivas, meramente científicas”248. Manoel Bomfim é um autor que
poderia ter marcado uma saída do ceticismo fruto das previsões racialistas, ainda nos anos 1900,
a partir de um paradigma educacional e social. Segundo seu próprio biógrafo, porém, Bomfim
fora relegado ao “rol dos esquecidos”249 e sua voz era uma dissonância no interior da cultura
intelectual.
Um intelectual contrário às doutrinas racialistas e que fora ainda mais esquecido do
que Manoel Bomfim, é o filósofo cearense Raimundo de Farias Brito. Mário de Andrade chegou
a considerá-lo como o único a ter realmente praticado filosofia no país250. Em sua obra de 1912,
A base física do espírito, Farias Brito criticara contundentemente as teorias da antropometria,
as análises biológicas do social e as metáforas organicistas da sociologia. O filósofo advogava
uma psicologia compreensiva e considerava que os fenômenos psicológicos só poderiam ter
explicação mediante uma “interpretação introspectiva”:
É o que poderia chamar-se a indagação da base física do espírito. E aí não somente
se deveria fazer o exame e análise dos sentidos e das sensações, como igualmente se
deverá trabalhar por descobrir a conexão íntima entre os fenômenos psíquicos e as
funções do cérebro e do sistema nervoso, sendo esta última precisamente a principal
preocupação da psicologia fisiológica. Mas ainda que essa conexão seja descoberta
e com o máximo de rigor precisada, o que decerto não será fácil, nem por isto deverá
a psicologia ser absorvida pela fisiologia, porque de toda forma continuarão os
fenômenos psíquicos a desenvolver-se, na conformidade dos seus processos
245
ARANHA, Graça. Chanaan, 1901, p. 359.
BOMFIM. Apud. SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 132.
247
Cf. DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Rebeldes e Literatos da República: história e identidade nacional ao
Almanaque Brasileiro Garnier (1903-1914). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 101.
248
ROMERO Apud. SKIDMORE, T E. Preto no branco, p. 281.
249
AGUIAR, Ronaldo Conde. O Rebelde Esquecido - Tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Top
Books, 2000, p. 16.
250
Cf. Andrade, Mário. Carta aberta a Graça Aranha. A Manhã, Rio de Janeiro, 12 jan. 1926, p 5.
246
75
próprios, constituindo uma esfera determinada de fatos que só poderão ser
observados e devidamente interpretados pela introspecção251.
A marginalidade no campo intelectual sofrida por autores como Manoel Bomfim e Farias Brito
revela a primazia, se não as teorias racialistas em si, ao menos, daquele imperativo de Euclides
da Cunha acerca da necessidade de se promover a “evolução biológica” dos brasileiros.
Se as doutrinas racialistas diziam que a “solução” para a condição racial brasileira
demandaria séculos, os problemas sanitários, as epidemias e doenças que afligiam as
populações urbanas e rurais reivindicavam remédios imediatos. Num primeiro momento, os
temas das reformas urbanas e da contenção das doenças são indissociáveis:
[...] o medo das doenças, somado às suspeitas para com uma comunidade de mestiços
em constante turbulência política, intimidavam os europeus, que se mostravam então
parcimoniosos e precavidos com seus capitais, braços e técnicas no momento em que
era mais ávida a expectativa deles252.
A história do pensamento médico ligado à ação pública compreende variáveis que vão muito
além da mera discussão a respeito de paradigmas científicos “objetivos”, “verdadeiros” ou
“falsos”. É neste sentido que a historiografia dos saberes médicos aplicados tem de lidar com
questões acerca das relações entre medicina e trabalho, sexualidade, “raça”, urbanismo, gênero,
desigualdade social, interesses de classe, disputas políticas etc. Na passagem do século XIX
para o XX, quando o saber médico ocupava proeminência ou, ao menos, uma significativa
influência em diferentes segmentos disciplinares (antropologia, sociologia, urbanismo, história,
literatura), tal condição social, política e cultural da ciência médica torna-se explícita253.
Para além dos debates entre os paradigmas médicos, é preciso considerar o evento que
reúne diferentes segmentos em torno de questões urgentes: a epidemia. Afinal, as epidemias:
São eventos sociais que envolvem o conhecimento médico-científico, a organização
institucional dos sistemas públicos de saúde, a esfera econômica e as relações
comerciais e diplomáticas entre as nações. Sobretudo, trazem consigo a ameaça de
dizimação coletiva. Por todos esses efeitos, em especial o último, as epidemias
mobilizam o imaginário social, ensejando um conjunto de representações através das
quais os indivíduos procuram conferir sentido ao mal que lhes acomete. [...]
sobretudo, o sentimento de medo suscitado pela morte, que se torna uma ameaça à
ordem e à convivência social ao atingir uma coletividade254.
Daí a força concedida pelo presidente Rodrigues Alves ao prefeito do Rio de Janeiro, Pereira
Passos, que, por sua vez, nomeara Oswaldo Cruz como diretor de saúde pública. O médico já
havia agido contra a febre amarela e a peste bubônica. A terceira epidemia era a da varíola que
seria combatida pela campanha de vacinação em massa, contra a qual se insurgira a Revolta da
251
BRITO, Farias. Apud. SERRANO, Jonathas. Farias Brito – O homem e a obra. São Paulo: CEN, 1940, p. 205206. Sobre história do pensamento de Farias Brito e de sua apropriação na cultura intelectual brasileira ver:
TOLENTINO, Thiago Lenine Tito. Monumentos de tinta e papel. Cultura e política na produção biográfica da
Coleção Brasiliana. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais, 2009.
252
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão, p. 28.
253
Cf. STEPAN, N L. A hora da eugenia, p. 16-17.
254
BRITO, Nara Azevedo de. La dansarina: a gripe espanhola e o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro, História,
Ciências, Saúde, vol. IV (1), mar.-jun. 1997, p. 13.
76
Vacina, em 1904. Apesar de tal vacina ter chegado ao Brasil em 1801 e de desde 1837 terem
sido feitas seguidas leis regulamentando a obrigatoriedade de sua aplicação, é sob a direção de
Oswaldo Cruz que a política de contenção da epidemia assume vigor inaudito. Um “despotismo
sanitário”, como se dizia à época. O “atestado de vacina” passou a ser o documento mais
importante que o cidadão deveria portar255. A ação era colossal:
O trabalho começou em abril de 1903. Brigadas sanitárias, compostas de um chefe,
cinco guardas mata-mosquitos e operários da limpeza pública, percorriam ruas e
visitavam casas, desinfetando, limpando, exigindo reformas, interditando prédios,
removendo doentes. Os alvos preferidos eram, naturalmente, as áreas mais pobres e
de maior densidade demográficas. Casas de cômodos e cortiços, onde se
comprimiam em cubículos e casinhas dezenas de pessoas, constituíam objeto de
atenção especial. [...] Para prevenir resistência dos moradores, as brigadas faziam-se
acompanhar de soldados da polícia. Pode-se ter ideia da dimensão do esforço através
da seguinte estatística: só no segundo semestre de 1904 foram visitadas 153 ruas;
foram feias, no primeiro semestre, 110.224 visitas domiciliares, 12.971 intimações,
626 interditos256.
A estratégia capitaneada por Oswaldo Cruz foi um marco na história das políticas de
saúde pública no Brasil. A escala da ação, os debates acalorados, as representações na imprensa
e na cultura em geral, a figura do médico como “salvador do país”, a revolta do povo
inconformado, mas visto também como incapaz de saber o que era melhor para ele mesmo
precisando ser tutelado por uma elite científica distinta, ao menos teoricamente, da corrompida
elite política, tudo isso iria promover nos anos seguintes modificações importantes no interior
da cultura intelectual brasileira. A trajetória de Oswaldo Cruz, que entrara para a Academia
Brasileira de Letras em 1912 segundo o “critério dos expoentes”, desencadeara contundentes
modificações no cenário institucional, científico e intelectual do país. Primeiro, superara:
[...] a tradição retórica e clínica da medicina da capital (ao vencer a epidemia de febre
amarela no Rio de Janeiro, tornou-se o primeiro “cientista-herói” do país). Segundo,
a fundação do primeiro instituto científico reconhecido internacionalmente (numa
tentativa de reproduzir o Instituto Pasteur, de Paris, onde foi treinado), o Instituto de
Soroterapia de Manguinhos, fundado em 1901, que posteriormente recebeu seu
nome. Após a fundação do Instituto, a produção médica carioca passou a se
concentrar principalmente sobre duas especializações: a saúde pública e a higiene257.
Tais modificações contribuiriam para o desenvolvimento de inciativas, algumas já
preexistentes, como a do Instituto Vacinogênico (1892), outras contemporâneas, como a do
Instituo Butantã (1901), e também posteriores, como a da Fundação Ezequiel Dias (1907), esta
criada como filial do Instituto Manguinhos na cidade de Belo Horizonte.
A emergência do pensamento e, o mais importante, das ações dos médicos e das
255
O atestado era exigido para “matrícula em escolas, emprego público, emprego doméstico, emprego nas fábricas,
hospedagem em hotéis e casas de cômodos, viagem, casamento, voto etc. Multas eram previstas para os
recalcitrantes”. CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados, p. 99.
256
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados, p. 94-95.
257
HERSCHMAN, Micael M. “A arte do operatório”. Medicina, Naturalismo e Positivismo. 1900-1937. In:
HERSCHMANN, Micael M; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. A invenção do Brasil moderno. Medicina,
educação e engenharia nos anos 20 – 30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 49.
77
políticas higienistas na primeira década do século XX no Brasil iriam ao encontro do imperativo
euclidiano acerca da “evolução biológica da raça”. A higiene assume-se como meio de
melhoramento da raça: “higiene e eugenia frequentemente eram encaradas se não como
sinônimos, pelo menos enquanto ciências que compartilhavam objetivos muito próximos”258.
Nos anos 1910, além de modificações institucionais, são perceptíveis na cultura intelectual
mudanças mais ou menos explícitas acerca da condição “biológica” da “raça” brasileira.
Em 1917, Rui Barbosa, no Teatro Municipal do Rio Janeiro, em homenagem à
memória de Oswaldo Cruz, fazia considerações sobre a febre amarela entendida pelo político
como “conservadora do elemento negro”. Isso significava que, com exceção dos casos das mais
violentas epidemias, a doença não acometeria os homens negros, seria “negreira” e “xenófoba”,
pois atacava os brancos e imigrantes, justamente os que viriam “depurar as veias da mestiçagem
primitiva”, fazendo com que o Brasil fosse “matadouro da raça branca”259. Porém, dois anos
depois, em campanha presidencial, Rui Barbosa condenara o Jeca Tatu de Monteiro Lobato:
Mas a impressão do leitor é que, neste símbolo de preguiça e fatalismo, de sonolência
e imprevisão, de esterilidade e tristeza, de subserviência e hebetamento, o gênio do
artista, refletindo alguma coisa do seu meio, nos pincelou, consciente, ou
inconscientemente, a síntese da concepção, que têm, da nossa nacionalidade, os
homens que a exploram260.
Teria havido uma mudança nas ideias de Rui Barbosa? Teria ele consciência da ambiguidade
de suas posições, ora advogando o racialismo, ora considerando-o preconceito de classe? Seria
apenas um discurso eleitoreiro que visava, tardiamente, reconhecer a existência de uma
“questão social” no Brasil261?
O curioso, porém, é que Monteiro Lobato é justamente um dos exemplos mais
retomados pela historiografia a respeito da transição de um racialismo pessimista para um
higienismo redentor durante os anos 1910, de modo que a suposta mudança vivida por Rui
Barbosa fora explicitamente assumida pelo autor dos Urupês. A obra lançada em 1918 reunindo
produções que vinham desde o ano de 1914 defendia ser o caboclo um “funesto parasita da
terra” e, ressoando o racialismo de Euclides da Cunha, um “inadaptável à civilização”. Dizia,
então, que “o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das
grotas”262. Já no livro seguinte, Problema Vital, lançado também no ano de 1918, mas com
textos escritos recentemente, Lobato fazia o elogio da obra sanitarista e falava em “Jeca Tatu –
258
LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: Um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Unesp, 1999, p. 223.
Cf. MAIO, M C. Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil: um debate sobre o pensamento higienista do século
XIX. In: MAIO, M C et al. Raça como questão, p. 53-54.
260
NAXARA, Maria Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra. Representações do trabalhador nacional
(1870-1920). Dissertação de Mestrado. UNICAMP, 1991, p. 23
261
É Gilberto Freyre quem reitera essa lacuna sobre a questão social na atuação política de Rui: “Nunca será
demais acentuar-se esse silêncio em que a esse respeito se conservou até 1919 Rui Barbosa”. FREYRE, Gilberto.
Ordem e progresso. Tomo II, p. 627.
262
LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1966, p. 270 e segs.
259
78
a ressureição”. O tipo, antes visto como “incapaz de evolução”, viveria como “vadio”, “bêbado”
e com fama de “idiota” até que um “doutor” chega à região e o diagnostica como doente de
anquilostomíase ou amarelão. Aí começa a “ressurreição” e o Jeca, então, segue os conselhos
higiênicos do médico: toma os remédios receitados, adquire botinas, deixa de andar descalço e
para de beber. O Jeca se torna fazendeiro, aprende a ler e passa a “ensinar o caminho da saúde
aos caipiras das redondezas”263. A obra Urupês provocou reações positivas e negativas, sua
primeira edição esgotara-se em um mês, garantindo o sucesso do autor que, por toda década
1920, recebia na imprensa o qualificativo de “o autor de Urupês”. Assim como seu nome ficara
ligado a essa obra, a figura do Jeca como um homem atrasado também persistirá, afinal:
No universo da população brasileira todos já, de perto ou não, conheciam ou tinham
ouvido falar da pobreza, da miséria, da preguiça, do alcoolismo... e pensavam o
brasileiro, principalmente o homem do campo, enquanto portador dessas
características. Isto sim parecia verdadeiro. Esta a imagem forte, que permaneceu. O
Jeca Tatu recuperado – o avesso de si mesmo – foi a utopia, possível enquanto
ficção264.
Ao continuar operando com o conceito de raça e não se distinguir radicalmente das
ideias eugenistas, o higienismo brasileiro mantinha no horizonte as distinções entre as pessoas
segundo critérios raciais, como o Jeca e o homem negro. Desenvolveu-se, para além do
“branqueamento” físico, o “branqueamento” cultural que foi, cada vez mais, sistematicamente
incentivado, combatendo práticas tidas como africanas e indígenas. A negritude era associada
ao passado atrasado, o branqueamento ao futuro progressista. No caso das escolas, entre as
décadas de 1910-1940, pode-se dizer que viraram verdadeiros laboratórios eugênicos. O
pensamento higiênico/eugênico brasileiro acabou por se constituir em uma episteme polimorfa
que, ora reconhecia possibilidades de “evolução biológica” da “raça” mediante as políticas
públicas de saúde, ora condenava à marginalidade as pessoas tidas como membros de “raças
inferiores”. O sistema escolar mostrou o caráter racista das políticas brasileiras baseadas em tal
suporte “científico”. Progressivamente, as pessoas negras foram, cada vez mais, excluídas do
sistema de ensino, de tal forma que quanto mais racionalizado o sistema, mais excludente ele
ficava. Uma “barreira de cor” começara a se fazer valer na educação e, na mistura do higienismo
com o racialismo, as teorias racistas permaneciam no discurso das elites, mas sem a clareza das
leis públicas. Não estaria aí uma das origens do racismo à brasileira? No caso das escolas,
professores negros eram afastados, não passavam em “exames médicos” que versariam sobre
saúde, temperamento e inteligência. Assim, o professor negro era tido como mediador
inadequado no processo de branqueamento cultural promovido pelas escolas, ao mesmo tempo
em que os alunos negros, a maioria proveniente das classes inferiores e repetentes nas
263
264
LOBATO Apud. NAXARA, M R C. Estrangeiro em sua própria terra, p. 23.
NAXARA, M R C. Estrangeiro em sua própria terra, p. 29.
79
disciplinas escolares, apenas comprovariam a inferioridade intelectual da “raça”265.
O higienismo sanitarista constituiu-se, assim, como horizonte de ação para a superação
do atraso brasileiro, não por modificações no regime político ou econômico, mas através da
“evolução biológica” da “raça”. O abismo dos sertões seria superado pelas ações encampadas
por cientistas, pelo “brado higienista” proclamado por nomes como Osvaldo Cruz, Carlos
Chagas, Adolfo Lutz, Artur Neiva e Belisário Pena. O desafio mostrava-se gigantesco, afinal,
como se considerava no período, “o sertão no Brasil começaria onde terminava a Avenida
Central” e o “Brasil é um imenso hospital”, conforme a sentença do médico Miguel Pereira266.
O chamado “Brasil real” delineado a partir das perspectivas higienistas era tão problemático
que poderia, ironicamente, gerar uma sensibilidade contrária aos clamores dos médicos
engajados. Afinal, os críticos do higienismo sanitarista “argumentavam que posições como as
defendidas por Belisário Penna, Artur Neiva e Miguel Pereira contribuíam para formar uma
geração de céticos e pessimistas”. Questionava-se a capacidade de se produzirem no Brasil
ações contundentes para o combate a tantas mazelas descritas por esses intelectuais267.
O higienismo foi parte constituinte e relevante de um processo maior pelo qual passara
a cultura intelectual brasileira nos anos 1910: a centralização da “questão nacional”. A préconsciência da experiência cética e a necessidade de superá-la começara a aparecer, como
constatara, em 1915, à frente da Liga de Defesa Nacional, Olavo Bilac ao reconhecer que, no
Brasil, a “indiferença é a lei moral”268. Tal processo se tornará cada vez mais contundente com
a emergência de uma nova geração de intelectuais que não só descobriu e tornou pública a sua
vocação nacional, mas ainda divisou o lugar que poderia ocupar dentro da nação269.
A figura de Alberto Torres tornara-se simbólica no sentido de um intelectual que
passara de uma concepção cosmopolita para a apreciação marcadamente nacionalista. De fato,
os primeiros trabalhos reunidos em livro por Torres, como Vers la paix (1909) e Le problème
mondial (1913), além de serem escritos em língua estrangeira, tratavam de questões pertinentes
às relações políticas internacionais. Sem dúvida, a concepção pacifista que orientava estas obras
foi útil à voga nacionalista que emergira nos anos 1910. Mas foram obras como A organização
265
Cf. DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura. Política social e racial no Brasil – 1917-1945. São Paulo: UNESP,
2006, p. 25-195. Também o sistema penal vivera esta situação entre um discurso intelectual que não se tornou lei,
mas que orientou as práticas no interior das instituições pertinentes. Apesar do projeto do médico baiano Nina
Rodrigues em criar uma legislação penal segundo orientações eugenistas nunca ter conseguido se fazer valer, em
ocorrências específicas, abriu-se a possibilidade de inserção do saber médico, como, por exemplo, no caso de
presos que antes de serem libertados precisavam passar por exames clínicos. Cf. FILHO RIBEIRO, Carlos Antonio
Costa. Clássicos e positivista no moderno direito penal brasileiro: uma interpretação sociológica. In:
HERSCHMANN, M M et al. A invenção do Brasil moderno, p. 144.
266
Cf. MARTINS, W. História da inteligência brasileira. Vol. VI, p. 139.
267
Cf. LIMA, Nísia Trindade. Um médico sabidíssimo contra o Triatoma bacalaureatus: Monteiro Lobato e a
campanha sanitarista da Primeira República. In: LUSTOSA, I (Org). Imprensa, história e literatura, p. 124.
268
BILAC Apud. SKIDMORE, T E. Preto no branco, p. 172.
269
PÉCAUT, Daniel. Os Intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990, p. 20.
80
nacional (1914) e O problema nacional brasileiro (1914) que revelaram em Torres uma espécie
de guia que deveria orientar a intelectualidade brasileira. Sua figura tivera reiteradas
apropriações ao longo das décadas. Em 1918, Saboia Lima publicara uma biografia do autor
que merecera o aplauso da Revista do Brasil270. Em 1924, na obra coletiva A margem da história
da República, os autores, apesar de não se dizerem discípulos, declaravam-se seus leitores e
admiradores271. Posteriormente, a reedição da referida biografia pela Cia Editora Nacional, em
1935, faria parte de um processo no qual “Alberto Torres foi recuperado no pós-30 como um
apóstolo do realismo no Brasil. Sua redescoberta se deveu à crítica do autor ao artificialismo
das instituições e à sua postulação de que a realidade nacional poderia ser desvendada”272.
A trajetória da fortuna crítica de Torres é um índice significativo acerca das
modificações que se operariam no interior da cultura intelectual brasileira entre os anos 1910 e
o fim dos anos 1920. A denúncia do ceticismo começa a aparecer, como afirmara o colunista
Paulo Silveira em 1915: “A nossa mocidade não sonha mais, e o país se vê consumido por um
ceticismo desolador”273. A partir de então, a história da sensibilidade cética no interior da
história republicana passa a ser feita pelos próprios agentes, a constituir sua consciência
temporal. Uma transição vai tornando-se cada vez mais explícita e o sorriso cético, que parecia
ser a marca civilizatória da Belle Époque brasileira, torna-se um sentimento anacrônico. Sérgio
Buarque de Holanda, em 1926, comemorava ter a sua geração abolido “aquele ceticismo
bocó”274 de dez anos atrás. Também fazendo contrapontos de gerações, José Clemente275
escrevia no jornal carioca Correio da Manhã, não reconhecer semelhanças “entre os rapazes de
dez e quinze anos atrás, mas ainda imbuídos de um deplorável nietzscheanismo e outros
atormentados pela filosofia de m. Bergeret, e os rapazes de agora, aqueles descrentes, céticos,
desiludidos, estes otimistas, crentes, entusiastas [...]”276. Em 1925, Carlos Drummond de
Andrade escrevia o texto “Para os céticos”, como editorial do primeiro número de A Revista277.
Ao ser chamado de cético por Tristão de Athayde, Oswald de Andrade tomara o adjetivo como
verdadeira ofensa278. Nicolau Sevcenko notara que nos últimos momentos dos anos 1920:
Nesse final da década, os tempos se tornaram convulsos e as mentes se turvaram. O
270
Cf. LUCA, Tania R de. A Revista do Brasil, p. 51.
Cf. CARDOSO, Vicente Licínio (org). À Margem da História da República. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1981, V. 1, p. 16.
272
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A Questão Nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 125.
273
SILVEIRA, Paulo. Apud. SKIDMORE, T E. Preto no branco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 170.
274
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. O lado oposto e outros lados, Revista do Brasil (Terceira Fase), Ano I,
Número 3, 15 de outubro, 1926, p. 9.
275
Trata-se, provavelmente, de pseudônimo. Moacir Assis Andrade (1891-1981), cronista mineiro, adotara tal
alcunha no período tratado. Cf. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Inventário do fundo Moacyr Assis Andrade.
Diretoria de Arquivos Permanentes, mar. 2014.
276
CLEMENTE, José. Aos críticos do modernismo. Correio da Manhã, 14 de julho, 1925, p 4.
277
ANDRADE, Carlos Drummond de. Para os céticos, A Revista, Belo Horizonte, n. 1, Vol 1, Jul. 1925, p. 11.
278
Cf. ANDRADE, Oswald de. A poesia Pau Brasil (Resposta ao crítico Tristão de Athayde), O Jornal, Rio de
Janeiro, 18 set. 1925, p 4.
271
81
acirramento das militâncias queria ver em cada criatura um soldado, numa guerra
que só admitia dois lados, o certo e o errado, o justo e o opressivo, o bem e o mal.
As metáforas militares se tornam cumulativas, dominantes, sufocantes279.
Se o ceticismo era de tal forma repudiado nos meios modernistas, ele o era ainda mais
em duas tradições que, no decorrer das primeiras décadas do século XX, ganharam relevância
no interior da cultura intelectual brasileiro: a católica e a operária. O regime republicano trouxe
a separação entre Estado e Igreja, o que se, por um lado, retirava a força oficial da instituição
católica, por outro lado, garantia-lhe maior liberdade de ação e autonomia nas decisões. Os
bispos brasileiros repudiavam a separação, mas reconheciam o valor da liberdade, de modo que
a reaproximação com o Estado será uma causa que irão defender pelas décadas seguintes280.
Desde o século XIX, o Vaticano vinha produzindo encíclicas que atentavam para a necessidade
de maior engajamento dos católicos no mundo político e social281. Era preciso mostrar o ponto
de vista da Igreja acerca de cada questão moderna. No cenário brasileiro, um verdadeiro
processo de “depuração” das ordens religiosas fora realizado, a fim de criar uma nova dinâmica
no interior da própria Igreja, alargando seu âmbito de atuação e consolidando a maioria das
dioceses hoje conhecidas282. As pregações do padre Júlio Maria, já na primeira década
republicana, enalteciam a necessidade de maior aproximação entre o clero e o povo. As ações
do padre inspiraram a criação, em 1908, da União Católica Brasileira que tinha à frente o
intelectual Jonathas Serrano e que está entre as primeiras ocorrências da reação católica no
interior da cultura intelectual brasileira republicana. A UCB publicava a Revista Social: órgão
da mocidade acadêmica, ciências, letras e artes que circulara entre os anos de 1908 e 1928283,
e, nos anos 1920, tivera o deputado Andrade Bezerra como o seu presidente.
279
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole..., p. 300.
Cf. RODRIGUES, Anna Maria Moog. A Igreja na República. Brasília: UNB, 1981, p. 7.
281
Destaca-se a encíclica Rerum Novarum (1891), do Papa Leão XIII, e a sua reafirmação com a Quadragésimo
ano (1931), do Papa Pio XI, ambas visando cristianização da vida econômica como meio de resolução dos
problemas sociais e políticos. Cf. ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra o Estado. (Crítica ao populismo
católico). São Paulo: Kairós, 1979, p. 144 e segs.
282
“No período que se seguiu, Roma assumiu a responsabilidade de fortalecer o fraco clero que fora formado no
Império. Foi enviado ao Brasil um enorme contingente de padres e freiras europeus com a finalidade de fundar
colégios, obras de caridade e assistência social, além de uma grande quantidade de missionários”. RODRIGUES,
A M M. A Igreja na República, p. 5. Gilberto Freyre faz interessante análise deste processo. O autor aponta os
aspectos de “progresso” no sentido “ocidental” no interior das Igrejas, ou seja, o aperfeiçoamento das condutas,
seguindo uma retidão ortodoxa e um moralismo ferrenho. Produziu-se um repovoamento dos mosteiros e
conventos, que passam a abrigar sacerdotes vindos da França, da Itália, da Alemanha e da Bélgica. Instituições
católicas são reforçadas e é revigorada a ação da militância religiosa, como em colégios confessionais como o
Sion, o Sacré-Coeur, o das Ursulinas, o das Irmãs do Sacramento, o das Irmãs de São Vicente de Paulo e o de São
José de Chambéry. Esse “progresso” iria acabar com a tradição no país dos padres amigados, maçons, pais de
família etc. Simbolicamente, tal alteração poderia ser revelada pelo abandono do estilo barroco e neocolonial pelo
gótico. Tal mudança é lamentada por Gilberto Freyre, que aí nota que nas mãos dos estrangeiros a igreja se
desnacionalizara e várias peças de valor histórico e artístico foram perdidas. De qualquer forma, sempre se destaca
o aumento da influência da catolicidade nos meios sociais, políticos, culturais e literários. Cf. FREYRE, Gilberto.
Ordem e progresso, p. 574-602.
283
Cf. SILVA, Giovane José da. O batismo de Clio: catolicismo-social e história em Jonathas Serrano. Dissertação
(mestrado). Universidade Federal de São João del Rei, 2011.
280
82
A “Pastoral de 1916” do Arcebispo Dom Sebastião Leme284 denunciava o fato de o
Brasil ter uma população alegadamente católica, mas que seria ignorante em matéria de religião.
As revistas Brazilea (1917-1918) e Gil Blas – Panfleto Nacionalista (1919-1923) constituíramse como focos do nacionalismo católico e tinham entre seus colaboradores um personagem que
se tornara verdadeiro divisor de águas na história do catolicismo brasileiro: Jackson de
Figueiredo285. Jackson estará à frente, sempre com a bênção de Sebastião Leme, da criação do
Centro Dom Vital e de sua revista A Ordem, além disso, ele militava quotidianamente nos
jornais. Há de se destacar, ainda, a criação da coluna jornalística “Ação Católica” em 1927 e,
simbolicamente, o erguimento do Cristo Redentor inaugurado em 1931 na cidade do Rio de
Janeiro, objetivando um processo que vinha se desenvolvendo desde o início dos anos 1920.
Dessa forma, a ação dos católicos visava conceder um caráter religioso às várias esferas do
mundo social: ao ensino, à política, às artes e, especialmente, ao movimento operário e aos
trabalhadores em geral. Se no despontar da República, a ideia de um intelectual católico parecia
ser um contrassenso, pois a afirmação da religião significaria um “atestado de limitações
intelectuais irremediáveis”286, ao fim da década de 1920, o dogmatismo religioso já poderia ser
visto com simpatia e respeito. Os céticos tornaram-se inquietos, como confessava Alcântara
Machado a Tristão de Athayde:
Mau grado seu ou à sua revelia ou sem você perceber ficou sendo orientador de muita
gente. Os inquietos pedem calmantes: você pega da pena e por amor ao apostolado
formula às carreiras o remédio. Deus, eu sei. O remédio é Deus. [...] Você acendeu
no poste a luz verde que é a cor da esperança. Caminho livre: é partir. Irei atrás com
certeza esperando chegar ainda em tempo287.
Se a eclosão da Grande Guerra (1914-1918) pode ser considerada como um índice
expressivo no interior da história da cultura intelectual brasileira, pois teria provocado a
“revisão dos padrões intelectuais brasileiros” e reacendido a “necessidade de pensar o Brasil do
ponto de vista brasileiro”288, a Revolução Russa (1917), com o passar dos anos, tornou-se um
referencial tanto para o movimento da classe trabalhadora, quanto para as interpretações mais
gerais acerca da chamada “questão social”. A relação entre o novo regime e a causa trabalhista
284
D Sebastião Leme é figura central na história do clericalismo brasileiro da primeira metade do século XX. Foi
arcebispo de Recife e de Olinda e, mais tarde, Cardeal do Rio de Janeiro. D Sebastião Leme esteve presente na
maioria das ações levadas a cabo pelo movimento católico nesse período. Cf. RODRIGUES, A M M. A Igreja na
República, p. 9.
285
“O importante nessa obra é o seu lado de engajamento na sociedade, a participação e o incentivo à participação:
ela dá algum vigor a corrente ponderável da vida nacional, corrente que marca passo, apesar da expressão
numérica. Pode-se fazer a história do catolicismo no Brasil antes e depois de Jackson de Figueiredo, pois ele é
ponto de referência obrigatória”. IGLESIAS, Francisco. Estudo sobre o pensamento reacionário: Jackson de
Figueiredo. História e Ideologia. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 110.
286
TORRES, João Camilo. Apud. RODRIGUES, Anna M M. A Igreja na República, p. 11.
287
Carta de Antônio Alcântara Machado a Tristão de Athayde, 24 jun. 1930. Cf. BARBOSA, Francisco de Assis.
Intelectuais na encruzilhada: Correspondência de Alceu Amoroso Lima e Antônio de Alcântara Machado. Rio de
Janeiro: ABL, 2011, p. 102.
288
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A Questão Nacional na Primeira República, p. 119.
83
seria marcada antes pela disputa por direitos do que pela harmonia entre Estado e a classe
trabalhadora. A postura idealizada pelo Estado republicano era a de considerar-se como um
provedor de direitos, devendo os movimentos sociais seguir as diretrizes estatais. Uma
concepção paternalista que se coadunava com distinção entre cidadania ativa e inativa descrita
acima. Já na primeira década do regime, a classe operária se encontrava dividida entre os
cooptadores do Estado e o sindicalismo livre, anarquista, mas prontamente perseguido289.
Os movimentos trabalhistas urbanos, apesar de não constituírem o grosso da massa
trabalhadora nacional, conseguiram, com o decorrer dos anos, afirmar a centralidade da
“questão social” no interior da dinâmica republicana. Enquanto a figura do trabalhador rural
ficara, por muito tempo, associada a imagens icônicas e sintéticas, seja a do sertanejo forte e
retrógrado, seja a do Jeca que teria sua condição resolvida por uma utopia higienista ligada à
“evolução biológica da raça”, os movimentos citadinos, a partir de várias ações de grande
repercussão, provocavam questões complexas acerca dos direitos trabalhistas, das divisões de
classe, do sistema político adotado e do estatuto civilizacional de um país. Eram problemas que
a cultura intelectual tinha de dar conta. Iniciativas como a fundação do Partido Operário
Brasileiro, do Centro do Partido Operário, da Associação dos Operários Brasileiros, do Centro
das Classes Operárias e do Partido Socialista Brasileiro, apesar de todas as suas fragilidades,
rachas, dissensões e impotências, conseguiram fazer com que o tema provocasse o temor de
figuras centrais no regime, já em 1897, como o ministro Joaquim Murtinho290. No inquérito
literário de João do Rio feito no ano de 1907, ainda que de maneira bem imprecisa, falava-se
em nova escola literária ligada ao “romance social” e à “poesia de ação”. Nomes como Olavo
Bilac, Fábio Luz, Sousa Bandeira, Nestor Vítor e Elísio de Carvalho afirmavam a contundência
da questão social no momento. Inglês de Sousa chega a defender ser impossível negar
centralidade da preocupação social, “que estaria em todos os espíritos”291. Francisco Foot
Hardman notara a relevância no interior da cultura intelectual brasileira da:
[...] produção de uma literatura social de cunho libertário, seja diretamente pelas
agências de cultura criadas pelos núcleos anarquistas (imprensa operária,
publicações dos próprios sindicatos e órgãos classistas), seja indiretamente, na
produção literária de certos intelectuais de origem pequeno-burguesa, produtores de
discursos que poderíamos chamar de “anarquizantes”: pois, se por um lado, não estão
enraizados de forma plena no movimento operário e nas lideranças ali produzidas,
constituem, entretanto, porta-vozes mediatos dos ideais anarquistas e elementos
dissidentes e radicais na sua recusa dos discursos dominantes292.
O movimento anarquista desde o I Congresso Operário no Rio de Janeiro em 1906 até
289
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados, p. 56.
Cf. GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p. 60.
291
Cf. RIO, João do. O momento literário. Curitiba: Criar, 2006, p. 160.
292
HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, nem patrão. Vida operária e cultura anarquista no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1984, p. 116.
290
84
o fim da década 1910 dera o tom às organizações trabalhistas urbanas. Com a criação de escolas,
jornais, panfletos, eventos, festas, comícios, greves e campanhas293, os anarquistas conseguiram
inserir de vez a questão social no interior dos debates públicos e, consequentemente, da cultura
intelectual brasileira. Descrentes das ações parlamentares no interior do regime republicano,
que viam com enorme ceticismo, os anarquistas orientavam-se tanto pela formação pedagógica
e cultural, quanto pela ação direta com greves e manifestações trabalhistas. As primeiras reações
do regime foram no sentido de criminalizar tais atores, fazendo da questão social um caso de
polícia, conforme frase atribuída a Washington Luís294.
Mesmo que com o decorrer do tempo fiquem claras as imprecisões, incoerências e a
complexidade do movimento anarquista, que ora poderia ser anarquista-socialista ou, até
mesmo, anarquista-comunista, e que as expectativas dos trabalhadores de cunho paternalista e
assistencial não fossem de todo satisfeitas pelo anarco-sindicalismo, é inegável a força que tal
fenômeno exercera no interior do debate público nacional. Se, por um lado, as ações políticas
dos trabalhadores serão, cada vez mais, combatidas pela legislação e pela mobilização
policial295, por outro lado, durante toda a década de 1920, os temas da desigualdade social, da
luta de classes, da ascensão do comunismo na Rússia e da proliferação desta ideologia pela
Europa irão permear a cultura intelectual brasileira. A eclosão da Grande Guerra revelara a
fragilidade do progresso único e contínuo que o século XIX parecia ter afiançado à
humanidade296, a Revolução Russa, por seu turno, faria despontar no horizonte a possibilidade
de realização das utopias. Ambos os eventos surgiam com a tentação irresistível das ideias
“vindas de fora”, daquela “atualização” com que a cultura intelectual brasileira vive seduzida,
o sentimento cético estava ultrapassado, o regime republicano, tal qual esboçado pela
Constituição de 1891, mostrava-se velho e a nova geração de intelectuais e políticos, aquela
nascida com a República, pedia passagem.
Três tempos em três contos
Por mais de uma vez, tanto Tristão de Athayde quanto os seus biógrafos aludiram ao
fato de o crítico, desde a adolescência, ter aberto mão da feitura de qualquer trabalho de cunho
293
Cf. GHIRALDELLI JR, Paulo. Movimento Operário e Educação Popular na Primeira República. Cadernos de
Pesquisa, São Paulo (57), maio 1986, p. 33; GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de
Janeiro: FGV, 2005, p. 87.
294
Em 1920, falando sobre sua plataforma de governo, Washington Luís reconhecia que ninguém poderia, naquele
momento, se desinteressar acerca da legislação operária e que “em São Paulo pelo menos, a agitação operária é
uma questão que interessa mais à ordem pública do que à ordem social; representa ela o estado de espírito de
alguns operários, mas não o estado de uma sociedade”. Como a ordem pública era garantida pelo Chefe de Polícia,
a questão social ficou sendo caso de polícia. Cf. EGAS, Eugênio. Quadriênio Presidencial do dr. Washington Luís
(1920-1924). São Paulo: OESP, 1924, p. 96.
295
Cf. GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo, p. 135.
296
Cf. COMPAGNON, O. O adeus à Europa, p. 19; 223.
85
literário-ficcional297. O fato, porém, é que o crítico por mais de uma vez vestiu a máscara de
ficcionista e publicou, pelo menos, três contos entre 1924 e 1928: “Seu Arcanjo e o paraíso
perdido”, “Tríptico” e “Policromia”. Estes três trabalhos representam em nossa perspectiva
expressões sintomáticas do processo pelo qual o intelectual passara durante a década de 1920:
o tempo da dúvida, da angústia e da decisão. Assim, a rápida leitura que empreenderemos deles
é claramente interessada em explicitar tal aspecto. Se, de fato, identificamos uma sobreposição
temporal, não se deve conceber aí um processo linear e unívoco, de modo que estas disposições
se confundem muitas vezes entre si, sendo, porém, possível perceber uma trajetória, um
percurso, que caracterizou não apenas o intelectual Tristão de Athayde, mas o conjunto da
cultura intelectual brasileira.
O riso cético
Publicado em fevereiro de 1924 na revista Terra de Sol, o conto “Seu Arcanjo ou o
paraíso perdido” narra, em terceira pessoa, as desventuras de Gabriel, cujo apelido era Seu
Arcanjo, que trabalhava como mata-mosquitos, antiga profissão da higiene pública, nos
arredores de uma velha sacristia. Casado há dez anos com Eurídice, apelidada Didice, que seria
“boa esposa”: “Nada de normalistas e costureiras, com trabalho na cidade. Menina ali mesmo
do Subúrbio, vivendo em casa, trabalhando”298. Arcanjo era apaixonado pelo teatro. Ao saber
da abertura de uma vaga de porteiro no Teatro Municipal, candidatou-se e obteve sucesso.
Assim, passou a trabalhar muito, de dia na sacristia e à noite no teatro. Desenvolveu um método
de classificação dos frequentadores do lugar: “os que usam casacas e joias verdadeiras e os que
não usam casacas nem joias verdadeiras”.
Certo dia, Arcanjo conseguiu um bilhete para levar Didice ao Municipal. Quando ela
se vestiu para a ocasião, porém, o porteiro mata-mosquito, apesar de a esposa lembrar-lhe que
outrora ele gostara do vestido, ficou profundamente contrariado:
_ Eu, achar bonito esta porcaria? Você está louca? Podia servir para os choros de
Santa Clara, com cavaquinho e reco-reco, mas para o Municipal, para as poltronas
do Municipal, ao lado das senhoras do set carioca, entre as elegâncias de todos
aqueles vestidos de tulle leves e discretos. Vão pensar que Você... sei lá. _ Eu, te
levar assim? Esperança299.
Gabriel foi sozinho. Pensou na mulher, arrependeu-se, ao voltar para a casa pediu desculpas
297
Seu primeiro biógrafo afirma baseado nas memórias do crítico: “Por que Alceu, tão sensível, tão literário da
cabeça aos pés, deixou de fazer ficção? Por que o contista não sobreviveu nele? Por uma razão muito simples,
concreta. Afonso Arinos leu casualmente, certo dia, um conto de Alceu que encontrara em sua mesa de trabalho,
de jovem candidato às letras. O conto se chamava ‘Torre de Mareuil’. E se passava na França. Arinos não gostou.
Repreendeu-o. Então, você, brasileiro, a escrever essas coisas. Escreva sobre o Brasil. Não perca tempo com essa
literatura cosmopolita. Seja brasileiro. Alceu nunca mais escreveu contos. Deve ter sido em 1915”. VILLAÇA, A
C. O desafio da liberdade, p. 43.
298
ATHAYDE, Tristão de. Seu Arcanjo ou o paraíso perdido, Terra de Sol. Revista de arte e pensamento, Rio de
Janeiro, Vol I, no 2, fev. 1924, p. 166.
299
ATHAYDE, T de. Seu Arcanjo ou o paraíso perdido, Terra de Sol, p. 170.
86
entre “beijos frios” e “silêncios penosos”. Gabriel mudou. De calmo que era, passou a ter “fúrias
sem razão”, com o fim das temporadas no Municipal, ele começou a faltar no trabalho diurno
e a andar pelos cafés a contar histórias do teatro, gostava de descrever joias e vestidos, “bebia,
armava conflitos, meteu-se com mulheres, o vagabundo clássico”.
Numa dessas noites, Gabriel dorme no chão da estação do trem a sonhar com Eurídice
e a fazer planos de regeneração. Pela manhã, Didice recebe as notícias de uma vizinha: “_ Sabes
que enfim estamos livres do bêbado do seu marido?” O homem tinha sido atropelado por uma
das máquinas de ferro. Ele, porém, não morreu, perdeu as duas pernas, ficara por meses
internado sem receber qualquer visita. Volta então para casa “no seu carrinho de mutilado”:
E quando a sua Didice, horrorizada com aquela ressureição, com aquele monstro que
lhe surgia do outro mundo pelos olhos, pela casa a dentro, como a imagem horrível
de um remorso, imerecido?, merecido?, fugiu pela rua alucinada, às gargalhadas, - o
miserável, o pobre Arcanjo quis chorar. Sentiu um desejo imenso de morrer de vez.
Mas não pode fazer nada, porque já não era nada, uma pobre coisa ambulante, um
trapo mundo, repelente. Que nojo de si mesmo! E ter de viver por não ter mais nem
forças para morrer.300
O fato é que Didice já estava morando com o Madureira que, então, toma parte na situação:
Seu Madureira voltou, a Didice acalmou-se. O miserável mutilado viu tudo aquilo.
A vizinhança comentou largamente o fato, mas outros vieram e tudo se foi
esquecendo. O marido era o Madureira, o rico Madureira, próspero Madureira, que
já tinha automóvel, e no ano seguinte tomou frisa no Municipal, onde passou a
pompear o ventre risonho, ao lado de Dona Eurídice, de colar de pérolas, vestidos de
Paris, capa de peles, pedindo ao porteiro, secamente, que lhe abrisse a porta da
frisa301.
Arcanjo virou mendigo e, num dos dias que contava com a solidariedade alheia à porta
de uma igreja, não viu o casal sair da missa, mas soube que se mudava para Botafogo onde
Madureira “construíra um palacete para residência”. Teria sido esta a última dor de Gabriel:
Não pode sofrer mais. E tinha quase sempre uma grande alegria. Quando à noite no
seu sono de leproso, numa cocheira de carroças da Piedade, na palha imunda dos
animais, sonhava com a sua casinha e outrora. E pouco a pouco, a casinha se
desvanecia, para ficar apenas a imagem da sala de jantar, o Arcanjo rutilante que era
ele, ele Gabriel em carne e osso, com as suas pernas, a sua face de outrora,
expulsando de casa os dois culpados, humilhados, corridos de vergonha, despidos de
tudo, ao passo que ele brandia o gládio vingador, só como um sol, na noite soturna
em que os outros mergulhavam para o sofrimento302.
A trajetória de Gabriel pode ser interpretada de várias maneiras. Cada leitor que faça a leitura
que lhe convier. O que faz muito sentido na argumentação que vai se seguir é o tom anedótico
incorporado pelo narrador, um sorriso amargo e cético frente à vanidade dos sonhos e destinos
humanos, segundo a impassibilidade de um transeunte descomprometido. Os sonhos de Arcanjo
levaram-no a uma condição em que apenas os sonhos valiam alguma coisa, enquanto que a
300
ATHAYDE, T de. Seu Arcanjo ou o paraíso perdido, Terra de Sol, p. 171.
ATHAYDE, T de. Seu Arcanjo ou o paraíso perdido, Terra de Sol, p. 171.
302
ATHAYDE, T de. Seu Arcanjo ou o paraíso perdido, Terra de Sol, p. 172.
301
87
resignação de Didice lhe trouxe uma realidade com a qual, talvez, nunca tivesse cogitado.
Ironias do destino, lição de moral ou, apenas, a verificação de que “mesmo os céus que
consideramos incorruptíveis conhecem de eterno apenas o eterno esvair das coisas”. Frase de
Anatole France, do livro Jardim de Epicuro lançado em 1923, bastante lembrada pelo crítico
em seus escritos e que recebia a cada momento uma interpretação diversa.
Angústia e loucura
O conto “Tríptico” foi publicado em outubro de 1926 na Revista do Brasil. O título faz
referência a um antigo modelo de pintura cristã, normalmente dividida em três partes que
formam a composição303. O conto segue tal formato, inclusive concedendo à segunda parte um
tamanho maior que a primeira e a terceira, assim como, tradicionalmente, os trípticos possuem
uma grande cena central ladeada por duas telas menores. Apesar de narrado em terceira pessoa,
o conto guarda uma relação bastante significativa com o autor. A primeira cena descreve o “Vale
da Serenidade” que seria uma “casa branca”, “muito larga, baixa, em arcadas”, bastante similar
à que o autor tinha em Petrópolis rodeada por “montanhas pouco altas” e “um riacho”304 e que
hoje é o Centro Alceu Amoroso Lima para Liberdade (CAAL).
O homem chega à residência anunciado pela “buzina conhecida”, no jardim há risos
de uma criança que vai recebê-lo junto à grade na entrada. Na varanda vermelha, “uma imagem
de brancura e esbelteza, cabelos voando, lançando as saias leves em ritmo, arranjando uma flor,
negaceando com a vontade de correr, a juntar-se ao grupo da grade. Ela, ele e a menina”305. Era
esse o retrato da “felicidade que desafia o mau”. Aí o homem podia esquecer o dia de trabalho:
[...] o dia mau, poeirento, ensurdecedor. A luta de cada hora na cidade sem piedade,
na oficina sem repouso, em que as grandes peças dos navios esperando em seco no
dique, ou em molhado nas docas, eram repassadas, polidas, soldadas dos estragos
das viagens. Depois, ou antes, ou durante, o escritório crepitante de Remingtons: os
telegramas de todos os continentes, um naufrágio, um fretamento vultuoso, uma
falência, a desorbitação contínua. Um volta pelo cais: o sabor do largo. [...] Um grupo
de imigrantes polacos. Uma casquete de couro. Uma blusa russa. Botas. Em cada
um, um letreiro, como matrículas dos cachorros. [...] Uma tristeza horrível nas rugas
dos mais velhos. A esperança dura dos moços306.
Esta a rotina do homem, talvez um empresário, um industrial como o autor, ou algum tipo de
funcionário que lidaria com logísticas industriais e movimentações do mercado internacional.
A segunda parte do tríptico começa com um diálogo em que o homem solicita com
urgência a presença de certo amigo. Algum mal acometia a mulher: “Emagrecera. Tinha longos
303
Cf. CUSATELLI, Giorgio; RABONI, Giovanni (Org). Enciclopedia Garzanti dell’arte. Milano: Aldo Garzanti,
1973, p. 852-853.
304
ATHAYDE, Tristão de. Tríptico, Revista do Brasil, Rio de Janeiro, Ano I, no 4, 30 out. 1926, p. 26.
305
ATHAYDE, Tristão de. Tríptico, Revista do Brasil, p. 26. Esta foi a primeira formação familiar de Alceu
Amoroso Lima que teve a primeira filha, Mara Helena, em 1919 seguida de mais seis filhos até 1938: Sílvia, Lia,
Jorge, Alceu, Paulo e Luís.
306
ATHAYDE, Tristão de. Tríptico, Revista do Brasil, Rio de Janeiro, Ano I, no 4, 30 out. 1926, p. 26.
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períodos de prostração. E depois horas agitadas, incoerentes. Não me queria perto. Fugia da
menina. Proibiu-me de trazer médicos para vê-la. Escrevia muito. E fechava tudo que escrevia
no seu cofre de joias”307. Vieram, porém, os médicos, a enfermeira, as drogas para o tratamento
que parecia correr bem. Porém, tudo parecia bruscamente perdido: “De pior a pior. Até que
ontem, foi o acesso. O acesso irreprimível. A alucinação horrível de uma noite de luta, braço a
braço. Que força! Que delírio naqueles olhos que você conheceu tão serenos. Meu Deus! Não
sei como cheguei aqui. A morfina. A casa de saúde”. No dia seguinte, os dois amigos resolvem
abrir o cofre de joias da mulher onde estaria seu diário.
O diário, sob o título “Meus dias”, passa a ser transcrito pelo narrador. Aí a mulher diz
começar a escrevê-lo por não ser feliz, apesar de achar que deveria sê-lo:
Não sei mesmo o que quero. Elazinha, - não porei nomes, é melhor – é toda a minha
vida. Toda? Não. Tenho um demônio cá dentro. Não sei o que é. E se tivesse que
explicar... Mas a quem? Felizmente não tenho a quem explicar. Ele me julga mais, e
menos do que sou. É isso mesmo. Ele pensa que sou melhor do que sinto ser. Mas
ele pensa também que sou mais simples, mais ingênua, mais dia a dia. E no entanto
eu tenho qualquer coisa aqui dentro que me sufoca. Sempre tive? Não vou aqui
escrever para mim mesmo a minha biografia. Ah! minha biografia, triste apagada,
cinza de uma vida. Mas como posso pensar em cinza? 20 anos! Ah! literatura. Mas
não é literatura, não é positivamente lit.
O conto segue reproduzindo as narrações do diário que aí confessava sentir a sua vida como
uma “felicidade intolerável”. A própria função do diário lhe parecia uma incógnita, amigo,
inimigo, espelho neutro, ela não sabia. Sabia que o marido nunca poderia ler aquilo. A sua
identidade começa a passar por um processo de dissolução, a mulher não sabe quem ela é, o
que ela é. Tais crises viriam quando estava só, naquele “ermo”, do qual ela tinha ímpetos de
fuga. Estados inquietos mesclavam-se com períodos de calma e serenidade, estes últimos cada
vez mais raros. A segunda parte do “Tríptico” termina com as palavras desesperadas da mulher:
Estou boa afinal! Ah! ah! ah! Tudo em ordem. Ah! ah! ah! Afinal tenho no fundo do
passado que nada faz amanhã mas quando é que eu poderia sim afinal, afinal matei
mas também foi assim quatro, cinco, quatro, cinco, mas Elazinha meu Deus socorro,
socorro eu me sinto morrer minha Vir
foi ontem mas talvez fosse quando não é possível correr, fugir, matei, matei,
mas também mas talvez fosse quando não é possível correr, fugir, matei, matei, mas
também ah! Dissolução, Dissolução, o Outro, não foi isso até que eu possa308
Na parte final do “Tríptico”, volta-se à narrativa em terceira pessoa que passa a
descrever as visitas do homem à mulher que agora estava internada. As mãos da esposa eram o
que mais lhe revelava os sinais físicos daquela mudança:
As mãos d’Ela tinham sido sempre o seu grande encanto. Quando ele sentia nas suas
mãos morenas e duras aquelas mãozinhas brancas, macias, tão finas, tão puras, era
como se tivesse nas mãos a penugem de um pássaro. [...] Mãos pequeninas. Dedos
afilados. As unhas como pétalas. E quando Ela tocava piano as mãos adejavam ao
teclado. [...] As mãozinhas d’Ela o salvavam da Vida. E cada dia no quarto nu, e
307
308
ATHAYDE, Tristão de. Tríptico, Revista do Brasil, p. 27.
ATHAYDE, Tristão de. Tríptico, Revista do Brasil, p. 29.
89
implacável de brancura, sem uma flor, sem uma inutilidade, ele tornava nas suas
aquelas mãos de unhas roídas ao sangue, marcadas de dentes, escarificadas, tantas
vezes em sangue, mãos já agora calosas, ásperas, disformes, cadáveres de mãos, de
suas mãos de outrora, de outrora309.
De diárias, passaram a semanais as visitas ao hospício, depois, quinzenais, até o isolamento
total, por meses. O homem lia compulsivamente o diário que em nada, porém, lhe valia como
esclarecimento da situação. Ao voltar a visitá-la, a situação apresentava seus traços definitivos:
E ele voltou a vê-la. Inutilmente. Mais calma. Mais distante também. Num mundo
que já agora era um mundo só dela. Em que ele nem ninguém poderia jamais
penetrar. Seria mesmo o que ela pressentira no seu Diário? Seria a libertação? Seria
a Voz? Para ele era uma pedra de túmulo. E o horror das mãos revistas. Terríveis
mãos sem formas, empoladas, calejadas, descascadas. Os sabugos inchados
monstruosamente de tanto roídos. Ela já tinha horror às próprias mãos. Era preciso
muitas vezes amarrá-las...
Ele viu que não haveria saída, que “aquela porta para o azul ia lentamente se fechando” e “no
dia em que se fechou de todo, ele voltou para casa armado”.
Chegou em casa e trancou-se no escritório. Refletia sobre sua juventude, sua ambição
da mocidade em “expandir-se como um senhor, esmagar os inertes, desafiar o destino, governar
a vida”310. A menina grita de longe. Diz que vai pegar borboletas. Ele reflete que a criança era
a “única coisa que me prende”. Com a porta do escritório trancada, ele sente não ser possível:
[...] recomeçar aquele horror. Aquelas visitas horríveis. Eu não posso viver. Eu não
posso, meu Deus...
_ Papai, pode entrar? Olha borboleta. Mas...
Fecha-se o “Tríptico” com a seguinte passagem:
A tarde descia da montanha. O arco da sombra...
(Um automóvel na estrada:
Ela _ Mas olha que casinha deliciosa! Como eu gostaria de viver aqui, neste sossego.
Ele _ Tá louca. Eu. Me meter neste buraco, como esses burgueses barrigudos e de
chinelas, numa vida monótona pacata, bocó? Deus me livre. O que eu quero é –
Viver!)
... se estendia. Empurrava lentamente o sol. O vale da serenidade. Um sino. A noite.
Passa-se, assim, do caso anedótico do Arcanjo para a tragédia burguesa. Não é possível
desprezar, segundo a tese que nos orienta, a maneira como o conto “Tríptico” constrói um
cenário bastante próximo à realidade do autor. A começar pelo ambiente burguês, a casa muito
similar à residência de Petrópolis, o homem que trabalha em meios urbanos e industriais, a
mulher educada finamente e, por fim, a filha que completa o quadro da primeira formação
familiar que o autor constituiu. Há muito mais. Tristão de Athayde, a partir de 1923, revela-se
um admirador fervoroso do escritor e dramaturgo italiano, Luigi Pirandello, e, reiteradamente,
tratou em suas críticas sobre a maneira como este autor trabalhava com precisão a “dissolução”
da personalidade humana. Em uma conferência sobre Marcel Proust, o crítico refletia sobre o
enriquecimento ao estudo da psique humana que poderia vir de “um cotejo entre a obra de
309
310
ATHAYDE, Tristão de. Tríptico, Revista do Brasil, p. 29.
ATHAYDE, Tristão de. Tríptico, Revista do Brasil, p. 30.
90
Proust, e a de Freud, no estudo do inconsciente, bem como entre a obra de Proust, e a de
Pirandello, nos domínios da dissociação da personalidade e da loucura”311. A fascinação pela
loucura, que o crítico chamou uma vez de “mal sagrado”, também compõe esta fase angustiante,
na qual as decisões tornam-se imperativas, mas não convincentes. O conto “Tríptico” parece
expressar, segundo uma leitura bastante biográfica, as angústias por que passava o crítico, tanto
na loucura, quanto no suicídio, conforme escrevia a Jackson de Figueiredo:
Meu querido amigo,
Estou só no escritório. [...] Estou só, num meio hostil, brutal, vulgar. [...] Você luta
contra um temperamento de revolucionário. Eu luto contra um temperamento de
burguês [...]. Você luta contra o anarquista que há em você, queira ou não queira o
reacionário que você criou em si para acorrentar o outro. Eu luto contra o servil, o
que se submete, o que aceita, o que se resigna. O homem odioso que se resigna. [...]
Eu luto contra o excesso de bom senso, o oportunismo, o acomodatício, o
conciliador. [...] Tenho duas filhas que são o meu maior, o meu único prazer puro na
vida. Tenho uma mulher a quem amo como no dia em que me casei, e que sei também
que me quer um grande bem. Tenho uma mãe que morreria talvez se eu morresse.
Tenho uma família que me cerca de tudo o que posso aspirar na vida. Tenho uma
casinha deliciosa. Um canto de livros onde passo as únicas horas boas que hoje vivo.
Tenho uma posição de fortuna que me permite viver sem preocupação (de momento)
alguma de dinheiro, abominável dinheiro. Fiz um pequeno nome literário. Tenho
tudo, tudo, tudo o que um homem normal pode desejar na vida. Sinto-me ferido de
morte. Sinto-me velho. É exato. Sinto-me sem força. Sinto-me esgotado. Nunca fiz
nada para isso. Nada justifica isso, a não ser essa terrível obliquidade para o
medíocre, que é o meu demônio interior. É isso, meu velho. Não me sinto pior do
que os outros. Sinto-me horrivelmente como os outros. Sinto-me um homem fraco,
sem personalidade, morno (!!), com uma tara horrorosa de burguesismo, de terra-aterra. [...] Juro-te de todo o coração. E mais uma vez te asseguro que falo sem
nenhuma excitação. Juro-te que se Deus existe em qualquer parte do universo, ou
em todo o universo, aqui ao meu lado ou dentro de mim, ou no Calvário, juro que se
Ele pode acaso ouvir a minha prece, a minha blasfêmia dirá você, só uma coisa lhe
peço: a loucura ou a morte. Creia que vejo os homens morrer com inveja, com uma
profunda inveja. Esse acabou de lutar consigo mesmo. Esse acabou de viver esta
odiosa humilhação cotidiana. Esse morreu, ou ficou louco, chegou à única felicidade
possível, que é a ilusão integral312.
A decisão católica
“Policromia” saiu no O Jornal em novembro de 1927 com ilustração de Henrique
Cavaleiro. O conto narra em terceira pessoa as trajetórias de um gerente de indústria, um
operário chamado Heliodoro e um corcunda. O ambiente é o de uma fábrica de tecidos, como
a Cometa da qual o autor era proprietário, de seu entorno formado por residências operárias e
uma serra. Abre-se a narrativa com um pedido de abono que Heliodoro faz ao gerente. Este
último nega sem ouvir as explicações do operário. Logo em seguida, vem a fala de um médico
que alerta sobre o caso do menino: “_ São traiçoeiras essas gripes. O coração não me agrada.
311
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Marcel Proust. Estudos II. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 156;
CONFERÊNCIAS DO LYCÉE FRANÇAIS, O Paiz, Rio de Janeiro, 28 ago. 1927, p. 7.
312
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 139.
91
Caso muito sério, sr gerente”. O dia amanhecia com o apito da fábrica que abria como uma
comporta seu “portão negro”. O gerente narra ao doutor os feitos dos quais se orgulhava:
_ Veja doutor, que gente sadia, bem disposta. Não me canso do espetáculo. Todas as
tardes vejo, aqui da janela, passar o nosso pessoal. E às 4 da manhã já estou de pé.
Nunca penso em outra coisa. Não leio um jornal. Não saio daqui um só domingo.
Tenho paixão desta minha obra, posso dizer. E sinto nela a minha força. É o único
vinho que tomo. Aqui, nas minhas mãos, tudo. É o único meio. Disciplina militar.
Trabalho a cada minuto. O mal são as horas de vadiação. Trabalho dos domingos por
mês para evita-las. E evito, é o que sei. Greves? Nunca. E não deixo o trabalho
esmorecer. [...] Falta de pessoal? Recuso todos os dias. Escolho muito. Pago bem,
mas exijo. Graças a isto é o que o doutor está vendo.
Dupliquei a fábrica em cinco anos. Remodelei todo o maquinismo. Produzo hoje em
oito horas o que meus antecessores não faziam em oito dias. E ainda tenho muito
que fazer. E hei de fazer313.
Enquanto isso, lá embaixo, ressoavam os gritos: “_ Fora Corcunda! _ Te pego, garoto
de uma figa”. Eram quatro da manhã e as crianças implicavam com o Corcunda: “E o Corcunda
passava, enfezado, torto, camisa em molambos, um saco de comida na mão. E quanto mais ódio
tentava pôr no olhar, mais humilde parecia. Morava só. Família? Lembrava-se de ter sempre
vivido, por ali, menino, ao acaso, sem pouso”. O fato era que ninguém se importava com o
corcundinha que “dormia num banheiro velho, em ruínas, onde, à noite, os casais suspeitos se
encontravam”, ocasiões nas quais o desventurado podia, escondido no escuro, ouvir coisas
doces e angustiosas. Um dia descobriu do que se tratava. Quis também namorar, procurou uma
“rapariga faceira, uma levada. Namorava todo mundo e mesmo mais. Mas a ele... _Seu
corcunda, não se enxerga?” Tentou inutilmente pela força e descobriu sua fraqueza. Dali em
diante, ouviria sempre a “palavra má, que doía. _ Corcundinha, corcundão, guarda tudo que lhe
dão”. As crianças ironizavam o fato de ele, por não ter nada, ver em tudo que ganhava um
tesouro a ser conservado. Entrou para a fábrica, apanhava do encarregado da sala, perdeu um
dedo, nunca tinha reconhecimento na profissão, apesar de seu esforço. Seu dia era dividido
pelos apitos da fábrica, assim como os que iam, sob o olhar do gerente, cedo para o trabalho.
A caminhada dos trabalhadores para a fábrica é descrita como uma “massa triste,
cinzenta. Algumas cores vivas. Cabelos em carapinha, brancos. Faces claras, lanhadas de preto
do óleo. Mãos escuras, enrugadas, escalavradas, enormes. Parecia que naquela multidão as
mãos se viam mais do que as caras”. Heliodoro vendo-os passarem por sua janela se reconhecia
naquelas mãos batidas, deformadas, não raro, com amputações. Eram como as suas:
Aquele sem um dedo, como o corcundinha. A do Juca, toda torta. Foi aquele dia, no
rolo da calandra. Que grito, meu Deus. E a da Marcela, dos teares, que a lançadeira
furou bem na palma. La vai ela. Esconde sempre. Parece que tem vergonha de
mostrar. La vai a viúva Rokersky. Sete filhos e tudo tossindo em casa. E ela também,
não sei como pode. Cada vez mais magra. [...] A de um pretinho, toda branca, de
quando abrira por engano uma torneira de água fervendo. O Velho Venâncio, dedos
quadrados, sem unhas, não se sabia por que. O Viegas, mecânico, que levara uma
313
ATHAYDE, Tristão de. Policromia, O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 20 nov. 1927, p. 1.
92
malhada em cheio e esmagara a ponta dos três dedos. E as crianças pareciam já ter
os dedos deformados e as palmas em sola. E as mocinhas, de unhas negras e calos
grossos, amarelos, como os homens314.
Estas eram as mãos dos operários, quão distantes estão daquelas da mulher de “Tríptico” antes
de sua loucura. As mãos destas pessoas pareciam desumanizá-las em certa medida, “mãos que
pareciam viver por si, separadas do resto do corpo, uma vida rude, animal, violenta”.
Heliodoro, porém, é obrigado a interromper sua apreciação, pois o doutor chegara a
sua casa para saber do estado de seu filho que passara toda a noite a delirar, com um febrão que
o fazia gritar, sonhar com “três cavaleiros no céu, cada um com um pássaro na mão e uma
espada na outra e cortavam as asas dos passarinhos com a espada, os passarinhos que caíam
aqui no quarto”, conforme relatava o pai desesperado. O médico concedia a receita, mas não
havia o dinheiro para os remédios. O gerente já dera a sua negativa, o operário teria de insistir.
O narrador passa a descrever aquela paisagem de uma indústria em meio à mata, aliás,
muito similar à Fábrica de Tecidos Cometa encravada em meio à Serra da Estrela em Petrópolis.
Assumindo a perspectiva de um olhar à distância, o narrador traça o seguinte painel:
Alguém, à janela do bonde procurava a expressão daquilo. Aquela tarde maravilhosa
de paz, tanta beleza nas coisas, a carícia única daquele ar macio, e no fundo do vale,
de onde subia o fumo das chaminés a extinguir-se, a massa escura daquela fábrica.
Os tetos em serrote. As linhas lisas, longas, retas, do cimento armado, geometrizando
a paisagem. E, ao lado, o casario velho. A promiscuidade. Miséria da vida. Quatro
velas velando um defunto. Felizardo. Que beleza em tudo, que tristeza em tudo. [...]
Um grande quadro de revolta talvez. A explosão do ódio imenso, recalcado. A alma
em delírio, a alma cega da massa vencendo a resignação, quebrando obstáculos como
uma lava ardente. A alegria animal do sangue. O homem animal novamente. O
clamor dos instintos, libertados. E no meio do sangue uma alma. Uma alma que o
sangue não mancha, mas que não pode reter o gesto, nem mesmo condená-lo. Mas a
onda do mal transborda. A palavra esmorece, a alma se apaga e o gesto, o gesto
sempre, o gesto inexorável, que enche o horizonte, que fecha a luz do céu315.
O narrador entregue às reflexões continua a dar vazão aos pensamentos que lhe acometem:
E por que não o contrário? Morrem as sementes, mas a semente se perpetua. A
piedade, a harmonia, a lama, se recolhem à semente e longamente germinam. A
paciência fecunda-se a si própria. E refloresce. E uma consciência nova viria apagar
o traçado dos gestos para que a vida voltasse a tecer a tela imortal, a deliciosa
angústia da fragilidade. Fragilidade, fragilidade... Força, sim. Só um quadro de
paixão, de arrebatamento poderia traduzir o silêncio angustioso e hostil daquele vale
negro, que escondia a fábrica imensa, a “máquina” de tortura e de esperança, de
todos os contrastes e até de beleza. Sim, de beleza nova, de ordem levada ao extremo
da vida, de fria utilidade, com a força inexorável da experiência de toda uma era. A
epopeia das máquinas.
A “epopeia das máquinas” seria marcada pela opressão ao humano: “As máquinas vivas,
moendo os homens, triturando, refazendo a matéria, brutalizando as almas ou vencendo a
natureza para criar novas fontes de cor ou de alegria. O mistério se recompondo no próprio
gesto fecundo dos mecânicos prosaicos”. Neste momento, o crítico parece tomar a frente do
314
315
ATHAYDE, Tristão de. Policromia, O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 20 nov. 1927, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Policromia, O Jornal, p. 1
93
narrador que passa a perceber nesse “grande quadro social” algo de muito eloquente, por demais
já “visto”. Exige-se, então, uma reflexão “mais sutil, de encanto menos palpável”.
Procura-se, assim, uma perspectiva que fosse além da descrição lógica e racional,
ainda que não se soubesse como afirmar tal sensação:
Qualquer coisa sem lógica, a lógica odiosa. De incoerente para o bom senso dos
rebanhos. Qualquer coisa que as palavras não poderiam exprimir. Talvez as formas
apenas, num todo! Menos ainda. Uma politonia sarcástica, ardente, humana? Sutil
demais, a natureza das coisas, ou alheia, impenetrável à deformação intelectual?
Inexprimível por extremo de espiritualidade, que a vulgaridade finita da matéria, a
lógica dos sons ou das ideias, não poderiam traduzir? Ou inexprimível por
inacessível às limitações do nosso espírito, por conter em essência, em transparência,
em pressentimento, a revelação inenarrável de outras realidades em seus eixos
pueris? Dentro de nós demais, diluída demais, ou excessivamente acima de nós,
ofuscando tudo?
O bonde seguia seu curso e as intervenções reflexivas do narrador-crítico literário vão ficando
para trás, realçando, porém, que “a cabeça na portinhola continuava a triturar em si a angústia
que aquela imensa doçura destilava. O aniquilamento. A imbecilidade. Melhor talvez”.
Pela quarta noite, Heliodoro velava o filho doente. O quarto continuava repleto de
fantasmas e asas cortadas de passarinhos. As ideias de vingança contra o gerente passam a tomar
a consciência do homem desesperado: “Como vencer tanta coisa má em torno da gente. Miséria,
miséria. Os homens ruins, os companheiros... Terão para eles? Perder o menino... O ódio depois.
Miserável, aquele gerente bêbado [...]”316. A mulher de Heliodoro, Cerulea, pede para que ele
chame de novo o médico, o operário lembra a falta de dinheiro. Mas ele sai mesmo assim. Vai
com a faca na mão a refletir sobre a inocuidade da ação vingadora, não traria o menino, acabaria
preso e o que seria da mulher? Passa em frente à casa do gerente. Mas não fica por ali. É
surpreendido por um casal de namorados e se esconde para não ser percebido. O casal parte, o
homem fica com a faca a pensar na ação:
Um soluço na noite. Para ele – só então – a razão da fuga... Heliodoro sentiu um
arrepio por todo o corpo. Há um pressentimento do nada mais sensível que o da
realidade. A Morte mandava aquele soluço fustigar o silêncio. E o soluço apagou os
vagalumes como enxotara os namorados. E o perfume de mato voltou para as folhas.
O silêncio calou os grilos. O manto esquecido na estrada pelos namorados tapou as
estrelas, para o vingador. Para o pai sobretudo. O soluço castigava o encanto da noite.
E ficou apenas a cor, a onda negra que tudo funde e vence os sete sorrisos do
espectro.
De volta, o malogrado vingador pergunta sobre o menino, Cerulea responde: “_ Bem melhor,
graças a Deus. Está fresquinho agora, dormindo sossegado. Não sei como. Vem ver”.
O dia seguinte era carnaval. Para o corcunda, isso representava enfrentar mais um
sofrimento, afinal, ele próprio não resistia à festa e se recusava a embrenhar-se no meio do mato
a fim de fugir da molecada: “Ora, Carnaval no mato, onde já se viu! Antes pedrada”. E assim
316
ATHAYDE, Tristão de. Policromia, O Jornal, p. 2.
94
foi, saiu com as “calças curtas, as meias, os sapatos de fivela, o chapéu de guizos, tudo de seda,
azul e vermelho”. Persistia a inquietação sobre a corcunda. Esta, porém, foi um sucesso:
No “Bloco dos espoletas” encaixou-se no préstito. E foi pegando fogo. Um
quarteirão mais e o polichinelo era a figura central do cordão. Gesticulava, urrava,
miava, pernas para cima, corcovos de muita xucra, guizos cascalhando em volta. A
corcunda crescia aos olhos dos que o éter, a promiscuidade, o instinto solto
embriagavam. E diminuía para ele. No fim do dia, todos falavam da sua corcunda.
Só ele se esquecera dela. Confessando-a, desaparecera. E foi feliz como nunca!
Viram-no em delírio pelas ruas. Falava só. Ganhava inteligência. Tinha o diabo no
corpo o tal Polichinelo.
A cena alegre ganhava, porém, um contorno soturno, quando a turba cruzara-se com um cortejo
de fúnebre: “_ Uma criança, quem será? Ua!! Pois é o filho lá do gerente de sua fábrica com
certeza. Você não sabia?” Heliodoro lembra então que a vermelhidão dos olhos do gerente, que
julgara ser fruto da bebida, tinha outras razões. O carnaval continuava. O corcunda celebrado,
um delírio de cores de confetes e serpentinas a invadir a madrugada: “Adormeceu como as
crianças, deslumbrado, reconciliado com a vida, para sempre, para sempre. _ Viva a corcunda
do palhaço! Vivôôôôô! Cantas moreninha. Sacudindo a saia. Na caldeira da fábrica velava o
primeiro apito”317.
O conto “Policromia” foi lançado cerca de dez meses antes da conversão do autor ao
catolicismo. Assim como tal conversão não se dera do dia para a noite, mesmo após convertido,
o crítico guardara algumas posições céticas e angustiantes que trazia consigo desde o início da
década de 1920. A conversão, porém, marca uma data decisiva, ritualística, que deveria
representar um renascimento do homem que passaria a contar com uma certeza superior e uma
esperança que, porém, não lhe assegurariam a paz espiritual. É o que Carlos Drummond de
Andrade questiona a Tristão de Athayde, após agradecer uma carta a ele enviada:
Só um trecho dela é que me perturbou: aquele em que você dá a entender que não
encontrou a paz na religião, porque a paz não é deste mundo. Mas então não sei o
que se deva procurar na religião. Se ela não é uma paz máxima e consoladora, uma
dissolução de todo os ímpetos, revoltas, inquietações, - não seria preferível continuar
do lado de cá, sem nenhuma certeza superior e sem nenhuma esperança? [...] A minha
pobre humanidade só poderia procurar na ideia religiosa o apaziguamento do
espírito, o termo das lutas com o mundo e comigo mesmo (estas sobretudo). Não
consigo compreender aqueles que dando tudo o que têm de melhor a Deus (como
você) dele não recebem a paz (Grifos do autor)318.
Em suas memórias, Alceu Amoroso Lima comentava como a sua conversão “antes de
me afastar dos problemas políticos e sociais, me levou a neles aprofundar ainda mais a minha
consciência”319. Assim, o conto “Policromia” abriga vários aspectos que já sinalizam uma visão
de mundo religiosa e católica. Tais índices de catolicismo nos escritos de Tristão de Athayde
foram, aliás, percebidos por Agripino Grieco em 1927, quando este analisou o volume Estudos:
317
ATHAYDE, Tristão de. Policromia, O Jornal, p. 2.
Carta de Carlos Drummond de Andrade a Tristão de Athayde, s/data, acervo CAAL.
319
LIMA, Alceu Amoroso et al. Alceu Amoroso Lima: Memórias Improvisadas, p.117.
318
95
“Acabará fatalmente católico, já sendo inocultável a sua simpatia pelos neo-místicos e tomando
um pouco mais a sério do que devia o catolicismo epistolar de Jean Cocteau”320.
Um aspecto essencial na conversão de Tristão de Athayde ao catolicismo é a forma
como os seus ímpetos individuais estavam intimamente ligados às questões sociais e políticas.
Diferentemente de Drummond, que buscaria uma paz interior na religião, Tristão de Athayde
parece ter encontrado na religião uma base sistemática para a ação política contundente e para
a atividade intelectual engajada, numa época em que os extremismos pareciam ser as únicas
disposições possíveis, à direita e à esquerda. É difícil delimitar no interior da cultura intelectual
brasileira quem, entre 1928 e 1938, não aderiu ou demonstrou simpatias ao catolicismo
ultramontano, ao fascismo italiano, ao integralismo brasileiro ou ao comunismo soviético. Mais
difícil ainda é encontrar personagens que defenderam abertamente um modelo democrático e
liberal de regime político. Praticamente impossível é encontrar, a partir já dos dois últimos anos
da década 1920, uma defesa integral da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1891321.
O aspecto social e político da conversão de Tristão de Athayde foi percebido por Sérgio
Buarque de Holanda que, logo após a conversão do crítico, fizera uma análise de suas ideias:
As antinomias que hoje se apresentam ao homem de pensamento desafiarão amanhã,
no terreno social, o homem de ação. [...] Isso nos explica muito sobre a hesitação do
sr Tristão de Athayde, as oposições que ele se empenha em vencer, a sua fraqueza,
e também – por que não? – a sua vaidade. Ele compreendeu bem claramente que a
solução final de todas essas antinomias só nascerá de nossa fidelidade a um plano de
existência superior e transcendental. Em outras palavras: que só poderá ser uma
solução religiosa. [...] Esse recurso a uma justificação espiritual não é inédito, dele
compartilha toda uma classe de pensadores novos com os quais o autor destes
Estudos apresenta importantes afinidades. É um processo que não deixa de evocar a
fórmula que presidia à elaboração das grandes Summas medievais. Apenas com esta
diferença, que nelas o que existia era uma fé em busca de suas justificações, de suas
razões – fides quaerens intelectus – quando, no caso presente, será antes uma
inteligência que quer se apoiar numa base emocional322.
Mário de Andrade percebia no convertido Tristão de Athayde um impulso para a ação que é
descrito em uma imagética hiperbólica:
Os Estudos de Tristão de Ataíde são um drama enorme. Apaixonantes, irritantes,
sectários, cultíssimos, nobilíssimos, se não representam porventura o mais
característico da personalidade do grande pensador católico, representam
melhormente o seu martírio. E se é certo que já agora ele é das mais fortes figuras
de críticos que o país produziu, desconfio que os futuros não-sei-o-quê vivendo
nestas terras do Brasil terão ao lê-lo o espetáculo dum homem querendo desviar uma
enchente, apagar o incêndio dum mato, ou parar um raio com a mão323.
320
GRIECO, Agripino. Crítica a um crítico, O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 6 nov. 1927, p. 3.
Neste sentido, cabe ressaltar que já a Constituição de 1934, conforme comenta à época o jurista Lemos Brito,
apesar de diferir “na forma e na essência da que foi mandada cumprir em 24 de fevereiro de 1891”, estaria
condenada a produzir, “em breve tempo, graves perturbações no país, não só em virtude do ecletismo teórico
adotado como das dificuldades de execução de muitas [sic] dos seus raros princípios”. LEMOS BRITO, José
Gabriel de. A nova constituição brasileira. Promulgada em 16 de julho de 1934. Precedida de uma notícia histórica
e seguida de um amplo índice alfabético remissivo. Rio de Janeiro: Livraria Jacinto, 1934, p. 76.
322
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tristão de Athayde, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 ago. 1928, p. 7.
323
ANDRADE, Mário de. Tristão de Ataíde. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1978, p. 25.
321
96
Dessa forma, a conversão de Tristão de Athayde conseguiu se estabelecer dentro de
um horizonte intelectual e teórico, por assim dizer. Ela significava o engajamento político e
intelectual nas causas que interessariam aos católicos em geral e, especificamente, à Igreja. Os
contos aqui retomados, porém, quando cotejados com os escritos do crítico e sua
correspondência, especialmente com Jackson de Figueiredo, revelam a maneira como a sua
inquietação interior vinculava-se a tais temas gerais. A questão social parecia lhe influenciar de
maneira fundamental e ser uma das “vergonhas” de seu catolicismo, mesmo após a conversão:
Medo diante dos ataques, das objeções, das injúrias que os meus inimigos vão poder
dizer, com justiça deste industrial católico – sempre a mesma imbecilidade, bem o
sei, mas não consigo chegar à sua serenidade quanto à questão social. É ela sempre
o meu pavoroso remorso. Agora, converter-se e continuar diretor de uma fábrica de
tecidos, e crítico literário nas horas vagas, que imensa humilhação diante de Deus.
Anteontem fui ao Cemitério do Caju. E eu, morador em bairro rico, passando por
aquelas casinhas miseráveis, de crianças esquálidas, de homens sem dentes, de mãos
estragadas pelo trabalho, de mulheres deformadas por maternidades sucessivas, de
famílias inteiras roídas de sífilis, de vermes, de vícios, e sobretudo a fisionomia velha
das crianças, a lealdade das crianças, que horror!!! – vendo tudo isso senti-me – por
que não dizer? – fariseu. Sim, a palavra é horrível, mas o sentimento foi esse e não
outro324.
Aí está, quase um ano após a publicação de “Policromia”, um olhar do crítico acerca dos bairros
pobres, da condição social dos trabalhadores, da apreciação sobre as mãos das pessoas como
sendo um dos maiores índices da personalidade humana. A conversão de Tristão de Athayde
tinha um sentido individual e um empenho social umbilicalmente associados, daí a relevância
de sua trajetória para a compreensão dos processos gerais por que passara a cultura intelectual
brasileira nos anos 1920. Do ceticismo aos extremos.
“Policromia” abriga diferentes questões que dialogam diretamente com o processo de
conversão de Tristão de Athayde. Os mais explícitos encontram-se na denúncia da desigualdade
social extrema, na cegueira do industrial que via “gente sadia” onde o que havia eram
trabalhadores mutilados pelas máquinas industriais, desamparados com suas famílias e filhos
vivendo de parcos vencimentos. A descrição “lógica” da situação, porém, recebe reparos, que
não admitem o levante dos trabalhadores que, mesmo sem lhes manchar a alma o sangue da
luta justa, se restringiria a uma concepção naturalista da sociedade. Ao “já visto”. O mistério
devia se fazer presente. As coisas não seriam tão simples. A luta de classes assemelha-se ao
rebaixamento do homem ao animal. O crítico parece fazer a vez do narrador denunciando que
há a existência do inexprimível, de realidades inacessíveis ao espírito, seja por serem diluídas
demais, seja por estarem “acima” demais.
Apesar do ambiente fortemente ligado à condição de dono de indústria do autor, este
não deve ser confundido com o personagem do gerente. Por várias vezes, Tristão de Athayde
324
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 249-250.
97
confessava não levar jeito para ser dono de fábrica, embora não tenha aberto mão do cargo de
diretoria que assumira em 1918 quando se casara. Parece que, em 1928, quase levara a Fábrica
Cometa à bancarrota, lembrando ao seu confidente a frase que os acionistas lhe diziam, “ou
bem se é literato, ou bem industrial”325. Em nenhum dos contos analisados, deve-se preconizar
a identificação biográfica do autor com algum dos personagens. Antes, trata-se de perceber
alguns desdobramentos dos ambientes, questões, problemas e interpretações que apareciam
tanto nos escritos analíticos do crítico, quanto em seus debates epistolares.
Em “Policromia” as cores conferem as tonalidades das situações que podem ganhar
interpretações mais ou menos segundo o esquema que propomos. Principalmente, aquele soluço
na noite, o escuro da Morte, quando Heliodoro, assustado por tal presença, acabara por dormir
por ali, esquecer a vingança e “ficou apenas a cor, a onda negra que tudo funde e vence os sete
sorrisos do espectro”. Na manhã seguinte, por milagre ou coincidência, o menino estava são e
Heliodoro é quem decide dormir, num “sono negro, como a noite depois do soluço”. O
corcunda, vestindo as cores azuis e vermelhas, caindo na farra do carnaval, atingira a felicidade
resignando-se, confessando-se. As máquinas, símbolos da tortura e da esperança, poderiam
revelar também a sua beleza, uma beleza nova, da “ordem levada ao extremo da vida”. As
máquinas representariam o humano em sua superação da natureza, podendo, assim, elas
mesmas serem “novas fontes de cor ou de alegria”. Os olhos do gerente, supostamente
vermelhos devido ao álcool conforme acreditava o injustiçado operário, eram a expressão no
capitalista da limitação de sua força e poder que tinha na morte algo que lhe era superior, que
lhe impunha um limite insuperável.
325
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II. Rio de Janeiro: ABL, 1992, p. 192.
98
SEGUNDA PARTE
O CRITICO E OS SUPORTES DA CRÍTICA
A “invenção” de São Paulo
“A sanha de Anhanguera”
“Nação”, Aldir Blanc, 1982.
Há cem anos, os jovens artistas José Wasth Rodrigues (1891-1957) e Guilherme de
Almeida (1890-1967) ganharam o concurso municipal para a criação do brasão e lema da cidade
de São Paulo que, no ano seguinte, 1917, seriam instituídos oficialmente pelo prefeito
Washington Luís. Wasth Rodrigues era pintor com formação em Paris e criara o desenho do
Brasão da cidade com referências aos portugueses, aos bandeirantes, à força da cidade e ao café.
Guilherme de Almeida compusera a máxima que deveria enfeixar o símbolo e servir de lema à
comunidade paulista: NON DVCOR DVCO (Não sou conduzido, conduzo). Trata-se de um
evento simbolicamente expressivo pois associava artistas de diferentes especialidades (pintura
e poesia) às forças políticas da oligarquia paulista em torno de um projeto político cultural que
se desenvolverá contundentemente no interior da cultura intelectual brasileira: a consolidação
de São Paulo como modelo político, econômico, cultural e intelectual para o resto do país.
Como já foi estabelecido pela historiografia pertinente, desde as últimas décadas do
século XIX, o Estado de São Paulo vivera um crescimento econômico, urbano e demográfico
vertiginoso proveniente da expansão da produção cafeicultora e de suas implicações estruturais
(ferrovias, portos, comércio, comunicações etc.)1. Tal processo “matou”2 umas e vivificou
outras3 cidades, mas a capital paulista tornou-se o símbolo maior deste “progresso” espantoso.
Além disso, com o advento da República, o Estado paulista conseguira aumentar
significativamente a sua representação política reclamada desde os tempos imperiais.
Assim, o lema criado para a capital paulista é uma espécie de novo batismo oficial da
cidade que, por um lado, reivindicava um passado fundador, nos símbolos dos bandeirantes e
1
Cf. CEPÊDA, Vera Alves. A construção da industrialização no Brasil: políticas econômicas, mudança social e a
crise do liberalismo na Primeira República, Desigualdades & Diversidades – Revista de Ciências Sociais da PUC
– RIO, no 7, jul/dez, 2010, p. 121.
2
Em 1906, Monteiro Lobato tratou do tema das cidades mortas pela migração da produção cafeeira para o oeste
paulista. Cf. LOBATO, Monteiro. Cidades mortas. São Paulo: Brasiliense, 1965, p. 3-6.
3
Cf. DOIN, José Evaldo de Melo; NETO, Humberto Perinelli; PACANO, Fábio Augusto; PAZIANI, Rodrigo
Ribeiro Paziani. A Belle Époque caipira: problematizações e oportunidades interpretativas da modernidade e
urbanização no Mundo do Café (1852-1930) – a proposta do Cenumc, Revista Brasileira de História, São Paulo,
v 27, no 53, 2007, p. 95.
99
dos portugueses, e, por outro lado, lançava-se ao futuro como guia da nação. A recepção na
Revista do Brasil, também lançada naquele ano de 1916, do novo brasão da cidade não poderia
ter sido mais positiva. No artigo intitulado “As armas de São Paulo” ia-se direto ao ponto: “Que
cidade do Brasil, entretanto, pode disputar a São Paulo mais honrosa história e mais notável
papel na formação da pátria brasileira? Não é preciso que repitamos, com o Visconde de São
Leopoldo, que a história de São Paulo é a história do Brasil”4. Assim, este engajamento
nacionalista, que pretendia modificar o ambiente cético das primeiras décadas da República,
envolvia a articulação de artistas, intelectuais e políticos que procuravam consolidar uma visão
de mundo segundo uma interpretação da história brasileira que legitimava a primazia de São
Paulo (Estado e Capital) no desenvolvimento do país e, portanto, excluía outras tradições,
histórias e identidades nacionais e regionais5. No mesmo ano, o historiador paranaense Rocha
Pombo concedia legitimidade ao empreendimento, pois em São Paulo teria sido:
[...] criada a nova alma da terra, consubstanciando o vigor das duas raças aliadas
[portugueses e índios], e fazendo-se assim capaz de assumir a direção da corrente
que se instalaria nesse lado do Atlântico. Estúrdia e agitada, a nova alma toma
decididamente o seu papel, e escreve na história do Novo Mundo a página mais
brilhante, ampliando a conquista até os Andes6.
Em 1907, porém, Rocha Pombo considerava que, intelectualmente, “o Rio de Janeiro
continuará a ser por muito tempo o Brasil”7. Não se trata de uma contradição absoluta do
historiador, pois será a partir da década de 1910 que o movimento intelectual e cultural paulista
ganhará força e notoriedade nacionais e a Revista do Brasil foi o maior índice dessa “origem”8.
Dessa forma, o processo de “invenção de São Paulo” no interior da cultura intelectual
brasileira contará com uma série de produções simbólicas: textos, ensaios, artigos, museus,
discursos, imagens, memórias, políticas culturais, biografias, efemérides, comemorações,
nomes de logradouros, manifestos, livros, jornais, revistas, histórias, conferências, romances,
contos, poemas, quadros, peças, esculturas, filmes etc. que, de modo algum, se restringirá aos
intelectuais paulistas e, muito menos, se fará sem conflitos em torno de tal construção complexa
e ambiciosa. João do Rio, que em 1915 precedera a Olavo Bilac9 na propaganda nacionalista
na Faculdade de Direito de São Paulo onde afirmou a grandeza paulista, dizia posteriormente:
Esta gente de São Paulo, meu caro, alucinada pela glória de suas bandeiras, perdeu
o senso comum: entende que jornais e revistas devem encher páginas de aplausos
aos seus triunfos, de graça, sem dispêndio até de um comezinho muito obrigado...
4
Cf. LUCA, Tania R. de. Imprensa e mundo letrado paulista no início do século XX: o caso de Monteiro Lobato.
In: LUSTOSA, Isabel (Org). Imprensa, história e literatura, p. 178.
5
A “invenção de São Paulo” está intimamente ligada à “invenção do Nordeste”. Cf. ALBUQUERQUE JR, Durval
Muniz de. A invenção do nordeste. E outras artes. São Paulo: Cortez, 2011, p. 56.
6
POMBO Apud. LUCA, T. R. de. Imprensa e mundo letrado paulista no início do século XX: o caso de Monteiro
Lobato. In: LUSTOSA, I (Org). Imprensa, história e literatura, p. 177.
7
POMBO Apud: RIO, João do. O momento literário(1907). Curitiba: Criar, 2006, 163.
8
Cf. LUCA, Tania R. de. A Revista do Brasil: Um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Unesp, 1999, p. 126.
9
Cf. SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 194.
100
Está, positivamente, mal habituada e quem assim a habituou foi eu...10
Intelectuais da “velha guarda” pareciam ter algumas restrições em relação à emergência
paulista. Olavo Bilac admirado em São Paulo por sua campanha civilista confidenciava que:
São Paulo é uma bexiga. Isto não vale dois caracóis! [...] Receberá qualquer dia
notícia de minha morte. Não posso viver numa terra onde só há frio, garoa, lama,
republicanos, separatistas, camelôs e tupinambás. [...] Que estúpida cidade São
Paulo! Que gente pérfida, que clima impossível11.
Intelectuais nascidos em torno da década de 1890, porém, poderiam ver no movimento
paulista e, especificamente, no programa nacionalista da jovem Revista do Brasil a
possibilidade de lançarem-se como artistas e escritores e atuarem segundo os padrões de
engajamento da época12. É assim que o carioca Alceu Amoroso Lima, em 1916, contando com
vinte e dois anos, fez sua estreia na Revista do Brasil. Segundo suas memórias, tal estreia teria
se dado a partir de um convite de Monteiro Lobato13. Essa informação é difícil de ser
corroborada. Mais preciso, talvez, seria afirmar que, em 1916, Monteiro Lobato não conhecia,
sequer de nome, Alceu Amoroso Lima. Em 1921, Lobato escrevia a Alceu aludindo a uma
futura viagem ao Rio de Janeiro que permitiria “conhecer o teu frontispício”14. No acervo
epistolar de Alceu, a primeira carta de Lobato data de 1919. Assim, é improvável que o autor
dos Urupês seja o nome que lhe teria aberto as portas da Revista do Brasil.
Encontramos, por outro lado, uma carta de Alceu a Plínio Barreto, então diretor da
Revista do Brasil, em que o jovem escritor lhe enviava o seu trabalho:
Dr. Plinio Barreto
Tomo a liberdade de enviar-lhe esse meu artigo, esperando que não seja indigno das
colunas de sua jovem e já esplêndida Revista. Foram notas coligidas em viagem, e
que têm, por todo o nosso Brasil, uma confirmação geral. Se só se deve escrever,
tendo alguma coisa a comunicar, penso que o meu pequeno trabalho tem a sua
desculpa na sincera indignação com que foi escrito.
Esperando o seu gentil acolhimento [...]15
Após algumas considerações, o artigo intitulado “Pelo passado nacional” foi aceito e abriu a
edição de setembro de 1916 da Revista do Brasil. Era um trabalho de quinze páginas com várias
fotografias das regiões visitadas solicitadas pelo próprio Plínio Barreto. Fruto de uma viagem
que fizera com Rodrigo de Mello Franco, o texto versava sobre as cidades históricas mineiras,
especialmente Ouro Preto e Diamantina. A “indignação” de Alceu dirigia-se ao abandono destas
paragens e, neste sentido, mobilizava um tema que, desde o século XIX, encontrou diferentes
10
RIO João do. Apud. SALIBA, E T. Raízes do riso, p. 194.
BILAC, Olavo SALIBA, E T. Raízes do riso, p. 195-196.
12
Cf. :PÉCAUT, Daniel. Os Intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990;
MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920-1945). Rio de Janeiro: Difusel, 1979.
13
“Em 1917 [sic], um dos primeiros artigos que publiquei, a pedido de Monteiro Lobato, na Revista do Brasil, foi
provocado por uma visita que Rodrigo de Melo Franco e eu fizemos a Ouro Preto”. LIMA, Alceu Amoroso et al.
Alceu Amoroso Lima: Memórias Improvisadas, p. 56.
14
Carta de Monteiro Lobato a Alceu Amoroso Lima, 3-8-1921, acervo CAAL.
15
PB-C-CP-0632. Cartas de Alceu Amoroso Lima. Coleção Plínio Barreto – Arquivo do IEB/USP.
11
101
ressonâncias, mas que ainda aguarda uma teorização de fôlego: o das Cidades Mortas16.
Em uma gravura do pintor e ilustrador francês Félix Buhot (1847-1898), nomeada Os
espíritos das cidades mortas (1886), uma gama de silhuetas fantasmagóricas ronda, sobrevoa e
peregrina em torno da cidade medieval cercada por muralhas e torres de pedra. No plano
inferior, a multidão formada por figuras esboçadas cobertas por longas vestimentas, apoiandose em cajados, carregando crianças, desloca-se numa espécie de procissão de camponeses
paupérrimos. Uma coruja escura os circunda, a cruz negra lhes acompanha sobranceira. No
plano superior, entre raios solares cinzentos, acima de todos, grandes personagens, mais bem
definidos em seus traços distintivos, mas compartilhando do aspecto fantasmagórico geral do
quadro, empreendem um movimento que se sobrepõe ao da turba sem, porém, se confundir com
o dela. Os “de cima” parecem rumar para além do céu, penetrar a pequena claridade que
guardaria a saída deste mundo de entretons. Estes “espíritos superiores” poderiam significar os
valores culturais da “cidade morta”: os saberes racionais na figura do homem com traços
apolíneos e a experiência sensual e da beleza no voo da musa seminua. Em meio a eles, porém,
a imagem da morte se destaca com seu rosto cadavérico e terrificante. Assim, o percurso
superior, talvez, não seja mais do que um caminho para o total desaparecimento. Escrita no ano
de 1896 e encenada em Paris em 1898, a tragédia do italiano Gabrielle D’Annunzio, A cidade
morta, tinha na antiga Micenas o seu “protagonista”. No enredo, um grupo de quatro
arqueólogos italianos, após anos de trabalhos de pesquisa na cidade, seria tomado pelo
“espírito” do lugar que leva-os à traição, ao incesto e ao assassinato17.
As “cidades mortas”, assim, guardariam uma “alma”, um espírito, que permaneceria
16
No início do século XIX, “cidades mortas” poderiam ser as grandes cidades antigas, como Tebas, Luxor e Abidos
cantadas no épico napoleônico em torno do Egito. Na década de 1850, na França, surgem livros de viagens sobre
cidades mortas, especialmente da Itália que era chamada por Théophile Gautier de “ossuário de cidades mortas”.
Nos anos de 1870, aparecem obras sobre as “cidades mortas” francesas, especialmente a de Charles Lenthéric que
influenciou escritores que, explicitamente, defenderam a conservação e a autenticidade da existência de tais
cidades, como o francês Maurice Barrès e o italiano Gabrielle D’Annunzio, ambos influentes na intelectualidade
brasileira do início do século XX. No caso do Brasil, o tema das “cidades mortas”, em meados do século XIX,
contava tanto com as referências “clássicas”, com evocações à Pompeia, quanto com constatações como a do
francês Ch. Ribeyrolles, segundo quem: “O Brasil, que nasceu ontem, tem já não obstante suas cidades mortas,
como os velhos continentes; e poder-se-ia contar mais de um cemitério nessa bela província de Minas Gerais, que
foi muito tempo, para Portugal, o opulento Jardim das Hespérides”. Este artigo, que versava sobre a decadência
do município de Vassouras, foi reproduzido, pelo menos, em dois outros jornais. Desde então, o tema das cidades
mortas povoará a produção intelectual brasileira até às obras que nos interessam diretamente neste trabalho. Cf.
MÉRY, Joseph. Napoléon en Égypte. Poème en huit chants, par Barthélemy et Méry. Paris: Ambroise Dupont,
1828, p. 138; JACOB DE LA COTTIÈRE. Les villes mortes, ou Trois mois au-déla des Alpes; suivi de Mon.
Macintosh. Lion : Imprimerie d’Aimée Vingtrinier, 1857; GAUTIER, Théophille. Quand on voyage. Paris : Michel
Lévy Frères, 1865, p. 184 ; LENTHÉRIC, Charles. Les villes mortes du golfe de Lyon : Illiberris, Ruscino, Narbon,
Agde, Maguelone, Aigues-mortes, Arles, les Saintes-Maries. Paris: Plon, 1876; BARRÈS, Maurice. Le jardin de
Bérénice. Paris: Perrin, 1891; D’ANNUNZIO, Gabrielle. La cittá morta. Milão: Treves, 1898; FOLHETIM. Livro
do domingo, Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 3 mai. 1857,; RIBEYRROLES, Ch. Uma pequena cidade
do interior – Vassouras, O Parahyba, Petrópolis, 7 out. 1858, p. 1-2. O mesmo artigo saiu em: Correio da Tarde,
Rio de Janeiro, 2 ago. 1859, p. 1-2; Correio Paulistano, São Paulo, 23 ago. 1859, p. 3-4.
17
Cf. KLOPP, Charles. Life as theater: Gabrielle D’Annunzio. In: VENA, Michael (org). Italian playwrights from
the Twentieth Century. A companion text. [s.l.] Michael Vena, 2013, p. 31-35.
102
por um longo tempo, apesar do abandono por parte dos vivos, mas que poderia ser perdido se
nada fosse feito. É no interior desta tradição que Alceu Amoroso Lima, no artigo “Pelo Passado
Nacional”, fala que mantivera um “grato colóquio com as coisas do passado” e que “se ouso
agora tomar da pena, é porque deles, dos nossos mortos amados, ouvi uma longa queixa sentida
contra o desamparo em que os deixam os brasileiros de hoje”18. Alceu, então, define:
Eis a função das Cidades Mortas: acordar em nossas almas o respeito pelas coisas de
antanho, o penhor seguro de um amor positivo às coisas do presente. Para sermos
verdadeiros patriotas, para alcançarmos esse patriotismo superior em que o coração
é um simples colaborador da razão, precisamos comover o nosso espírito ante o
espetáculo da tradição. O passado é um grande educador comunicando-nos essa
comoção indispensável ao trabalho fecundo das ideias, mas as suas lições só são
verdadeiramente instrutivas, quando tem por cenário o quadro em que ele
desenrolou. No Brasil, sobretudo, agonizante à míngua do patriotismo, é de urgente
necessidade guardar para a nossa e para as gerações vindouras a moldura do nosso
passado. E se os homens que o fizeram, pródigos não foram em obras e construções,
maior deve ser o nosso desvelo pelo pouco que nos resta das épocas vividas19.
O texto procura, assim, desdobrar os significados que tal relação com o passado deveria manter
com o presente. Para isso, Alceu recorria ao nacionalista radical francês Charles Maurras, em
uma citação bastante precisa: “Quem fala antiguidade, não o diz de forma sagrada; nossa vida
tem o direito de destruir para reconstruir; o mundo não é um museu”20.
O que se questionava, então, era a maneira como eram levados a cabo os processos de
restauração/destruição das construções passadas Não haveria um critério nem, muito menos,
uma razão “indispensável à intensificação da vida” que justificasse tais mudanças, mas apenas
duas forças: “a ignorância dos homens e a marcha do tempo”. Desse modo, em Diamantina, o
clero católico faria “verdadeiras mutilações” na Casa do Contrato, a fim de abrigar as novas
instalações da Casa do Bispo, chegando a inscrever a data 1915 na fachada do prédio.
Construções que remeteriam a nomes como Chica da Silva e Tiradentes, dentre muitos outros,
estariam sendo abandonadas. Denunciava-se o fato de as obras do “gênio” Antonio Francisco
Lisboa, o Aleijadinho, estarem desprotegidas e sujeitas às intempéries, assim como estariam em
ruínas edificações que remetiam aos inconfidentes e poetas do arcadismo mineiro. O mesmo
ocorreria em Antonio Dias, São João del Rei, Sabará, Mariana, Serro e Caeté; o autor cita ainda
o caso de Belo Horizonte que derrubara a antiga matriz do Curral del Rei para a “substituírem
por alguma inexpressiva capelinha gótica”. Enumeram-se casos em São Paulo, Santos e Rio de
Janeiro, concluindo que “a morte dos monumentos é uma epidemia nacional”21.
Alceu Amoroso Lima propunha uma relação construtiva com o passado, apropriandose do tema das “cidades mortas” para reconhecer uma tradição pulsante nas cidades do período
18
LIMA, A. Amoroso. Pelo Passado Nacional, Revista do Brasil, n. 9, São Paulo, Set. 1916, p. 1.
LIMA, A. Amoroso. Pelo Passado Nacional, Revista do Brasil, p.2.
20
Citado em francês. MAURRAS Apud. LIMA, A. A. Pelo Passado Nacional, Revista do Brasil, p.6.
21
Cf. LIMA, A. Amoroso. Pelo Passado Nacional, Revista do Brasil, p.14.
19
103
colonial que poderia ser útil à formação de uma cultura nacional:
A arte, a literatura, o estilo, a organização verdadeiramente nacionais serão uma
consequência lógica do nosso meio, do nosso clima, da nossa filiação, das nossas
tendências. Hoje, o espírito brasileiro está inteiramente obliterado por estranhas
influências; os artífices do futuro, trabalhando pela boa Obra, que não desprezem o
espetáculo de nossas origens, quando o mimetismo ainda nos não havia de todo
descaracterizado. É preciso encarar o passado, ler o caráter do presente através das
lantejoulas artificiais, e compreender o futuro, para tentar, então, logicamente, algo
de definido pelo espírito nacional. Tratemos portanto de guardar as roupagens do
nosso berço, para os obreiros do futuro22.
Para a consecução de tal projeto nacionalista, o jovem escritor defendia a criação de:
[...] uma lei, essa ao menos útil e benfazeja, à sombra da qual possam viver
respeitados os vestígios dos nossos primeiros anos, como colônia e como nação.
Somos um povo em infância, somos nós os fazedores do passado, não há dúvida,
mas não poderemos levar avante a nossa missão se desprezarmos o que para nós
constitui o passado da pátria. A perspectiva das origens é um elemento primordial
dos povos em formação; e é pela memória do passado que deve começar a obra de
construção nacional. A missão suprema do brasileiro de hoje é reunir os materiais
para preparar um espírito nacional, em todas as manifestações de sua atividade. E
para isso, é preciso que ao artista, ao jurisconsulto, ao arquiteto, ao político, ao
militar, ao industrial, não seduza unicamente a originalidade; “só se tem o direito de
ser original sem o querer”, disse-o Joaquim Nabuco23.
Mais de vinte anos após este artigo de Alceu Amoroso Lima, o Brasil conhecerá uma lei
nacional, de autoria de Mário de Andrade, de proteção de bens materiais24 de cunho histórico e
artístico que, então, se aglutinarão sob o conceito de patrimônio. Além disso, seu companheiro
de viagem, Rodrigo de Mello Franco, será um dos nomes mais importantes na história da
institucionalização das políticas de patrimônio histórico, cultural e artístico no Brasil25.
No “indignado” artigo de Alceu Amoroso Lima não faltou o devido “tributo” à visão
paulista da nacionalidade que se afirmava à época, reconhecendo os méritos paulistas tanto no
passado, pois “Vila Rica e o Tejuco, hoje Ouro Preto e Diamantina, incarnaram a epopeia
bandeirante. A capital do ouro e a capital do diamante foram a dupla expressão do sonho
radioso, que permitiu e realizou a conquista do Sertão”26; quanto no presente, ao apelar à São
Paulo, onde “é bem vivo o amor pelas velhas construções do passado e pelas tradições nacionais
[...] pelo menos em certas camadas superiores da população”, devendo-se reconhecer os
esforços de nomes como os de Washington Luís, Ricardo Severo e Eduardo A de Andrada27.
22
LIMA, A. Amoroso. Pelo Passado Nacional, Revista do Brasil, p.15.
LIMA, A. Amoroso. Pelo Passado Nacional, Revista do Brasil, p.14-15.
24
Apesar de o anteprojeto de Mário de Andrade prever o tombamento de bens materiais e imateriais, o Projeto/Lei
25/37 considerou apenas os primeiros.
25
Cf. LANARI, Raul Amaro de Oliveira. O patrimônio por escrito: a política editorial do Serviço de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional durante o Estado Novo (1937-1945). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal
de Minas Gerais, 2010.
26
LIMA, A. Amoroso. Pelo Passado Nacional, Revista do Brasil, p.1.
27
Respectivamente, prefeito da cidade de São Paulo; engenheiro lisboeta; engenheiro chileno. Todos ligados, via
casamento, a setores da oligarquia paulista. Os dois engenheiros estrangeiros eram entusiastas dos estilos
neocoloniais e tradicionalistas. LIMA, A. A. Pelo Passado Nacional, Revista do Brasil, p.12. Cf. MICELI, Sérgio.
Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo. São Paulo: Cia das Letras,
23
104
A reflexão a partir das “cidades mortas” constituiu-se como um eixo desse
nacionalismo nascente. Ao citar a obra de Maurice Barrès, La grande pitié des Églises de
France, Alceu lembrara a campanha do nacionalista francês por uma legislação que protegesse
não só as grandes catedrais góticas, mas também as pequenas construções do passado. Barrès
tratou da questão das “cidades mortas” no romance Le Jardin de Bérénice, cuja temática central
é uma cidade medieval francesa, Aigues-Mortes, bastante similar à retratada na gravura de Félix
Buhot citada acima. Numa passagem do romance, o protagonista, o político viajante Philippe,
fala ao seu amigo Simon, em Paris, sobre Bérénice e seu jardim em Aigues-Mortes:
Venha à Aigues-Mortes, ao seu estreito jardim sem vista para o mar. Estas muralhas
fechadas, esta torre Constance que não tem mais o que guardar senão as suas
lembranças, esta planície fértil apenas em sonhos colocam a minha Bérénice na sua
luz verdadeira, - como o pássaro do Paraíso é realmente o mais belo dos pássaros
apenas nos galhos umedecidos de calor nas melancólicas florestas do Brasil28.
O tema da “cidade morta” na reflexão francesa era um meio de garantir a autenticidade em meio
à suposta diluição dos meios urbanos e internacionalizados, uma maneira de valorizar o homem
“simples”, interiorano, e da vida segundo o instinto e a sagacidade da natureza. Era
fundamentalmente uma crítica ao “homem desenraizado (déraciné)”, conforme refletira
originalmente Barrès29. Na perspectiva do nacionalismo brasileiro, as “cidades mortas” eram
vistas como forma de se assegurar ao país algo de próprio, de único e original. Ao mesmo
tempo, tal perspectiva ia ao encontro de temáticas recorrentes na cultura intelectual brasileira,
como a oposição sertão/litoral, nacionalismo/cosmopolitismo e autenticidade/bovarismo.
Monteiro Lobato escreveu sobre as “cidades mortas” em artigo de 1906 que depois
saíra em livro homônimo lançado em 1919. As “cidades mortas” descritas por Lobato eram
aquelas abandonadas pelo progresso nômade do café: “Os senhores do café já haviam passado,
realizado seus lucros e migrado com seus capitais para terras mais férteis a oeste – restou o
caboclo ‘sorna’ vegetando em meio à ruína geral”30. Assim, seja como lugar da autenticidade
para a constituição da identidade nacional, como queria Alceu, seja como problema nacional
premente, como pretendia Lobato, as “cidades mortas” deveriam ser escutadas.
Utopia agrária e regionalismo paulista
Um ano após a publicação do artigo “Pelo Passado Nacional”, Plínio Barreto era quem
convidara agora Alceu a escrever sobre o escritor, advogado, jurista e diplomata Souza Bandeira
que acabara de falecer (1865-1917). Alceu frequentava a casa de Bandeira e nessa época
trabalhava no seu escritório de advocacia31. Além de escrever o elogio póstumo, ele enviara
2003.
28
BARRÈS, Maurice. Le jardin de Bérénice. Paris: Perrin, 1891, p. 171-172.
29
Cf. BARRÈS, Maurice. Les déracinés. Le roman de l’énérgie nationale. Paris: Bibliothèque-Charpentier, 1897.
30
Cf. NAXARA, M R C. Estrangeiro em sua própria terra. Dissertação de Mestrado. UNICAMP, 1991, p. 207.
31
Em um de seus livros de memórias, conta ter frequentado o “salão de Souza Bandeira”, onde conheceu seu
105
outro trabalho a Barreto, o qual considerava “merecer a atenção de todo Brasileiro” e que só
perderia algum valor se comparado aos escritos de Oliveira Vianna, Populações meridionais do
Brasil, que vinham sendo publicados nas páginas da Revista do Brasil32. O artigo “Êxodo” foi
lançado em setembro de 1917, um mês após o necrológio de Souza Bandeira33.
Três tópicos se articulavam neste novo trabalho: a condição que cada nação passaria a
ter a partir da eclosão da Grande Guerra, o desenvolvimento material e cultural do Brasil ao
longo de sua história e a maneira como economicamente e politicamente o país deveria se
afirmar frente às demais nações do globo. Escrito poucos meses antes de o Brasil declarar guerra
à Alemanha, o artigo considerava que mesmo as nações não envolvidas diretamente na
conflagração sofreriam algum tipo de ação reflexa, a situação mundial revelava a “precariedade
da existência das nações fracas” e “a necessidade de viver cada nação sobre si”34.
Constituir uma “nação forte” seria a condição de sobrevivência em uma realidade
mundial belicosa marcada por um futuro incerto, a finalidade de um país seria “viver fortemente
pela máxima independência”. O engajamento deveria se tornar uma prerrogativa no interior da
cultura intelectual, conforme a divisa “saibamos pensar nossa ação e agir nossas ideias”. Alceu
faz, então, uma breve reconstituição, tanto dos esforços tidos por ele como nacionalistas quanto
dos focos de desenvolvimento produção intelectual ao longo da história brasileira.
Os ímpetos nacionalistas estariam presentes desde a trajetória do português João
Ramalho (1493-1580), no século XVI, na região de São Paulo. Teriam ganhado força nas
guerras de expulsão dos holandeses de Pernambuco, no século XVII, assumido o caráter
independentista desde as lutas de 1817, se consolidado em 1822 e assumido desenvolvimentos
diversos em 1824 e 183135. Alceu menciona um “nacionalismo militar” incipiente nas guerras
do Prata, fortalecido na Guerra do Paraguai e que atingira seu zênite com a República e estaria,
portanto, em fase de decadência. O autor lembra que o romantismo criara o nacionalismo
literário que “encordoou em sua lira o sentimento patriótico”, mas considerava que “a feição
nacional das letras é hoje uma necessidade da inteligência e não um esforço do sentimento”36.
Para Alceu, o desenvolvimento das “manifestações mentais” dos povos acompanharia,
especialmente, o progresso econômico. Assim, ao invés do critério nacional, o autor elege como
sobrinho, Manoel Bandeira, e tivera contato com nomes como Olavo Bilac, Afrânio Peixoto, Aluísio de Castro,
Carlos Peixoto, James Darcy e Alberto de Oliveira. Cf. LIMA, A A. Memorando dos 90, p. 291.
32
PB-C-CP-0634. Cartas de Alceu Amoroso Lima. Coleção Plínio Barreto – Arquivo do IEB/USP.
33
Cf. LIMA, Alceu Amoroso. Souza Bandeira, Revista do Brasil, n 20, S Paulo, pp. 427 - 430, ago. 1917.
34
Brasil, n 21, São Paulo, set LIMA, Alceu Amoroso. O êxodo, Revista do. 1917, p. 30.
35
Esta reconstrução era bastante convencional e, à exceção do nome de João Ramalho e do lugar originário
paulista, pode ser reencontrada, dentre outras referências, na História do Brasil de João Ribeiro, que conhecera
várias edições durante a Primeira República. Cf. RIBEIRO, João. História do Brasil. Curso Superior. 2a Edição.
Rio de Janeiro: Livraria Cruz Coutinho, 1901.
36
LIMA, Alceu Amoroso. O êxodo, Revista do Brasil, n 21, São Paulo, set. 1917, p. 30.
106
fio condutor da história literária, entendida em seu sentido mais largo, a formação de centros
econômicos e culturais. Consequentemente, sinteticamente, “o século XVI pertenceu a
Pernambuco, o XVII à Bahia, o XVIII a Minas Gerais, o XIX o Rio de Janeiro; o século XX é
o século de S Paulo”37. Esta fórmula será reelaborada nos anos seguintes por Alceu Amoroso
Lima sem, porém, modificá-la profundamente. O seu sentido normativo era o de que os “povos
precisam ser livres para ser ricos, e ricos para ser inteligentes”.
A questão acerca dos males do país, então, torna-se um problema sobre a constituição
de sua riqueza. Esta poderia ser produzida de diversas maneiras, mas haveria um meio que seria
superior a todos: o “trabalho sobre a terra”. O nacionalismo agrário seria o substituto do
nacionalismo militar. Embora tal visão remonte ao Primeiro Império38, tenha sido constituinte
do liberalismo oligárquico da Primeira República39 e contara com teóricos expressivos que a
esposaram40, o jovem Alceu ainda a considerava como sendo a perspectiva mais lógica e
racional para a consecução da futura emancipação econômica nacional. E ele tinha algumas
razões para isso. A começar pelos artigos sobre as Populações Meridionais do Brasil de Oliveira
Viana lembrados pelo próprio Alceu. Alguns temas destacam-se nessa obra de Viana que:
[...] contrasta a “variabilidade e instabilidade próprias dos elementos urbanos” e a
“grande virtude e moralidade” da “alta classe rural, modelada pelo meio
conformador de almas”, em claro elogio à “família fazendeira... classe
fundamentalmente doméstica” e portadora do “nosso caráter nacional”; e aponta a
“hegemonia história das populações do norte e do Sul do país”41.
Alceu considerava que o nacionalismo agrário poderia “determinar os mais imediatos
e proveitosos [benefícios]: aumentar a produção nacional, e por conseguinte a independência
nacional; apurar o tipo da raça; permitir a formação de grandes famílias; conjurar, no berço, a
guerra de classes”42. Se a riqueza nacional vinha da produção agrária, o mais “lógico” seria
aperfeiçoar tais processos. De acordo com tais ideias, era o campo que “apuraria” a “raça”:
“Formando, portanto, com os elementos brasis a base física da liga, fazendo da sensibilidade
luso-africana o seu perfume moral, e caldeando o todo com a inteligência e a tenacidade arianas,
teremos forjado o nosso sinete nacional”. A formação das “grandes famílias” garantiria a
estabilidade da teia social, ao contrário dos caldeamentos arbitrários das cidades.
Tal “utopia agrária” impediria, ainda, a formação da “guerra de classes” no país, pois:
37
Cf. LIMA, Alceu Amoroso. O êxodo, Revista do Brasil, p. 33-35.
Octávio Tarquínio de Sousa, analisando a obra de Evaristo da Veiga, ironizava a velhice da noção sobre a
“vocação agrária do Brasil” lamentada pelo jornalista e político do Primeiro Império. Cf. SOUSA, Octávio
Tarquínio de. Evaristo da Veiga. São Paulo: CEN, 1939, p. 62.
39
Cf. CEPÊDA, Vera Alves. A construção da industrialização no Brasil: políticas econômicas, mudança social e a
crise do liberalismo na Primeira República, Desigualdades & Diversidades – Revista de Ciências Sociais da PUC
– RIO, no 7, Rio de Janeiro, jul-dez 2010, p. 119.
40
Cf. MARSON, Adalberto. A Ideologia Nacionalista em Alberto Torres. São Paulo: Duas Cidades, 1979, p. 171.
41
BRESCIANI, Maria Stella Martins. O Charme da ciência e a sedução da objetividade. Oliveira Vianna entre
intérpretes do Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 156.
42
LIMA, Alceu Amoroso. O êxodo, Revista do Brasil, p. 36.
38
107
A revolução social, que se prepara, não poderá senão reagir fracamente em nosso
meio, de condições bem outras que na Europa, onde as classes são um fato e não
uma designação, como entre nós. Tendo o exemplo europeu mostrado que a
formação de classes, com interesses e objetivos inteiramente diversos, redunda na
guerra entre as mesmas, é do mais claro bom senso impedir que, no Brasil, alcancem
elas uma personalidade tão forte, como atingiram no velho continente. O meio
prontamente acessível de se chegar a esse resultado parece ser a distribuição mais
equitativa das riquezas, evitando a miséria que, graças a determinadas
circunstâncias, não existe ainda entre nós43.
Ao defender o “êxodo” das populações citadinas para o meio rural, ele harmonizava-se com
políticas que efetivamente vinham sendo praticadas. A essa época, órgãos oficiais falavam em
cidades inundadas por “desocupados” oriundos do campo e, em 1914, “a Agência Oficial de
Colocação reconduziu para o interior cerca de vinte mil pessoas, sendo que doze mil no período
que mediou entre Agosto e Outubro”44. Alceu criticava o excesso de lirismo do brasileiro,
constatando que “somos todos um pouco Ricardo Coração dos Outros”. A lembrança do
personagem, em nenhum momento, porém, parece lhe remeter ao triste percurso do
protagonista do romance, Policarpo Quaresma, que vê seu otimismo agrário ser destruído pelas
saúvas, pelo abandono do trabalhador rural e pelas perversidades do comércio e da política
republicanos, sendo tal obra uma verdadeira barreira frente a qualquer onda ufanista.
O Brasil, porém, seria país eminentemente agrícola, os centros urbanos estariam
repletos de problemas sociais e o foco de riqueza que despontava em São Paulo teria sua origem
nas fazendas cafeeiras. Estas representariam, novamente, após a decadência pernambucana e
carioca, o poder agregador das grandes famílias, fixariam o homem ao solo, seriam “um novo
feudalismo que se prepara, de grande utilidade para o nosso futuro, se leis sábias impedirem a
formação de imensas fortunas individuais, de forma a dar a esse feudalismo uma feição como
que patriarcal”. E, com esse novo “feudalismo”, uma nova “cruzada para o sertão” se iniciaria45.
A obra do nacionalismo agrário contaria com a soma dos tipos regionais autênticos, “o ânimo
do bandeirante, a ambição do seringueiro, a resistência do caboclo, a astúcia do jagunço, a
bravura do gaúcho”46. Mas caberia a São Paulo “a realeza na República. Não é caso de invejas
pequeninas; esforcemo-nos, somente, por que o regionalismo, em vez de abafar o nacionalismo
lhe insufle novo vigor”47.
43
LIMA, Alceu Amoroso. O êxodo, Revista do Brasil, p. 39.
NAXARA, M R C. Estrangeiro em sua própria terra, p. 90.
45
LIMA, Alceu Amoroso. O êxodo, Revista do Brasil, p. 39; 41.
46
LIMA, Alceu Amoroso. O êxodo, Revista do Brasil, p. 38.
47
LIMA, Alceu Amoroso. O êxodo, Revista do Brasil, p. 35.
44
108
O Lançamento de O Jornal
O Jornal foi fundado em 1919 por Renato de Toledo Lopes, no Rio de Janeiro, e se
constituiu como importante folha no contexto da imprensa nacional. Em carta a Alceu Amoroso
Lima, Monteiro Lobato fazia, de São Paulo, considerações sobre o aparecimento do periódico:
[Essa] bela tentativa de imprensa decente que vocês com tanta tenacidade vão
levando para diante. Infelizmente, não é o Rio o ponto estratégico para um Jornal
assim prosperar. É aqui, onde a árvore da cultura pega, [...] e está a copar-se pelo
Estado inteiro.
O 1o Jornal de 100.000 exemplares será aqui, não no Rio. Veja ao mapa [...] de
estradas de penetração que partem de S Paulo. [...] O centro comercial e industrial
do país tende a localizar-se aqui. O jornal a 200 reis aqui cumpre vingar e,
desinteressante como é o “Estado” [de São Paulo], cumpre manter uma tiragem de
50.000 [...]. Mas no Rio, em concorrência com rivais parasitários do Tesouro, [...] e
sem saída para o interior - o grande recurso paulista - não vejo [...] possibilidade de
êxito monetário na imprensa honesta que não se aluga. Surgido aqui, e caso a
popularidade dele dependesse da triagem, o “Jornal” estaria hoje com 60 ou 80 mil
exemplares de tiragem. S Paulo está com fome de um jornal legível48.
O Jornal foi o primeiro veículo midiático adquirido por Francisco de Assis
Chateaubriand Bandeira de Melo, em outubro de 1924, tornando-se a pedra fundamental de seu
futuro império na comunicação de massa. Chateaubriand, além de dinamizá-lo de forma
inaudita, concederá ao jornal maior espaço publicitário, manchetes mais chamativas, ampliação
das seções e das páginas, edições especiais e comemorativas, além de criar concursos
cinematográficos e de Miss Brasil, rifas para os leitores, sorteios de prêmios e, até, um curioso
“jornal luminoso”49. Criará, ainda, sucursais, primeiro nos subúrbios do Rio de Janeiro e,
depois, em outras cidades, como Belo Horizonte. Com a aquisição do Diário da Noite, de São
Paulo, em 1926, ele começa uma rede de periódicos que resultará nos “Diários Associados”.
Como afirmam as memórias de Alceu Amoroso Lima e a biografia de Assis
Chateaubriand feita por Fernando Morais, O Jornal seria um periódico de “novos” que
buscariam romper com a tradição jornalística identificada com O Jornal do Comércio. O
próprio nome do matutino era uma blague. Seu título proviria de um jogo de sentidos que o
citadino carioca poderia compreender de imediato. Dizia-se apenas, “me dê o jornal de hoje” e
o vendedor entendia tratar-se do Jornal do Comércio. Assim, O Jornal é retomado como um
veículo que expressaria certo anseio de “novidade” e “modernidade”, com menos “carranquice”
no cenário da imprensa nacional. Em seus primórdios, O Jornal, custava 100 réis em todo o
Brasil, tinha a redação e administração na Rua Rodrigo Silva, no 12, na capital e circulava de
terça a domingo50. Nos primeiros meses, após algumas modificações, O Jornal passa a ser
48
Carta de Monteiro Lobato a Alceu Amoroso Lima, s/data, acervo CAAL.
Cf. “O JORNAL” luminoso, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 nov. 1926, p 1.
50
Tal periodicidade se deu em 1921, como anunciara o expediente: “Devido à recente lei municipal decretando o
descanso semanal obrigatório para a imprensa e proibindo o funcionamento das oficinas tipográficas, de 8 horas
da manhã de domingo às 8 horas da manhã do dia seguinte, o ‘O JORNAL’ não circulará às segundas-feiras”.
49
109
composto, em média, por doze páginas que abrigavam cerca de quinze grandes seções. Aos
domingos, seu tamanho aumentava para algo em torno de 16 a 20 páginas.
Nas recordações de Alceu, este conta que, relutante ao convite de participar do
periódico, fora motivado por seu criador que dizia “que o que ele pretendia era exatamente
fundar um jornal de ‘tímidos’, de ‘amadores’, de gente pouco conhecida”51. Tal “novidade”,
porém, deve ser nuançada. Observando a formatação do periódico e suas semelhanças com as
grandes folhas que circulavam na capital, como O Paiz, O Correio da Manhã, Jornal do Brasil,
O Imparcial e A Noite, mais certo é dizer que O Jornal expressa bem aquele início da fase
empresarial na imprensa brasileira descrita por Nelson Werneck Sodré:
Se, com o pós-guerra, profundas alterações se denunciam na vida brasileira, tais
alterações, para a imprensa, acentuam rapidamente o acabamento de sua fase
industrial, relegando ao esquecimento a fase artesanal: um periódico será, daí por
diante, empresa nitidamente estruturada em moldes capitalistas52.
Assim, podemos entender o modo como o O Jornal procurou atuar. Lopes de Toledo, em brinde
de champanhe no banquete de inauguração da folha, explicita tal aspecto:
_ Antes do grande público, cada um de vós, em sua consciência, é um juiz dos atos
e das atitudes desta empresa. Por isso, é perante vós que eu quero assumir toda a
responsabilidade que me cabe, e alargá-la, definindo-a. A ideia da fundação d’O
JORNAL nasceu da impressão que nos deixava a nós, homens de boa vontade, o
espetáculo de nossa pátria. Desde a abolição e da proclamação da República, dir-seia que nunca mais um ideal agitou o Brasil; e pouco a pouco o povo foi perdendo o
interesse da coisa pública. Desapareceram as ideias; e em contraposição avultaram
as pessoas. [...] Mas não quisemos ficar no grupo dos céticos e inativos. Aqui nos
reunimos, pois, homens de diferentes crenças e tendências, que se encontram na ideia
comum de estudar com honestidade e boa fé. [...] Tudo que for estimular as forças
da nação, tudo que for nobre, pelo bem e pela justiça, encontrará sempre o apoio d’O
JORNAL – que não tem amigos nem inimigos. Neste caminho como bons
orientadores e esclarecedores do público, nunca encontrareis embaraços, nem
restrições da parte da direção desta casa. Iniciemos, portanto, com toda a coragem,
com energia e com fé, o nosso labor imenso [grifo nosso]53.
Notamos que no discurso de lançamento de O Jornal alguns temas se destacam, como
a necessidade de se sair do ceticismo, se combater por um ideal comum, mobilizar-se por uma
causa pública notadamente identificada com a necessidade nacional. Trata-se de um tema
recorrente que, num olhar retrospectivo, ganhará tons de diferenciação entre a geração
intelectual que inicia sua atuação por volta do período da Primeira Guerra Mundial54 e a anterior
que passa a ser caracterizada como desconectada das questões nacionais55.
A disposição para a formação de opinião a partir da informação é clara. Tal
característica era comum na história da imprensa do país. Ao mesmo tempo, enuncia sua
Expediente. O Jornal, Rio de Janeiro, 7 de ago. 1921, p 1.
51
LIMA, Alceu Amoroso. Apud REIS, V L dos. O perfeito escriba, p. 67-68.
52
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 409.
53
LOPES, Renato de Toledo. “O Jornal”, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 jun. 1919, p. 1.
54
Cf. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A Questão Nacional na Primeira República, p. 73 e segs.
55
Cf. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 117 e segs.
110
orientação pluralista que procuraria conciliar diferentes “crenças e tendências” em prol do bem
comum nacional. Nascia evocando a imparcialidade como característica central de um
periódico que não teria “amigos nem inimigos”. Tal retórica era recorrente nos jornais. Já em
1901, no lançamento do Correio da Manhã, Edmundo Bittencourt esclarecia que:
A praxe de quantos até hoje têm proposto pleitear no jornalismo nosso a causa do
direito e das liberdades populares, tem sido sempre a firmação antecipada, ao
público, da mais completa neutralidade. Em bom senso sabe o povo que essa norma
de neutralidade com que certa imprensa tem por costume carimbar-se é puro
estratagema para, mais a gosto e a jeito, poder ser parcial e mercenária. Jornal que
se propõe a defender a causa do povo não pode ser, de forma alguma, jornal neutro.
Há de ser, forçosamente, jornal de opinião [...].56
Portanto, a retórica da neutralidade e imparcialidade é antes um índice de investigação acerca
das maneiras de lançar-se ao público do que uma garantia de objetividade.
Gostaríamos de notar que, neste início, o periódico abraça, ainda em consonância com
sua suposta vocação pluralista, o elogio à democracia e à participação política dos cidadãos
brasileiros. Pequenas notas localizadas no lado esquerdo da primeira página, os expedientes
informavam, esclareciam e comunicavam aos leitores questões pertinentes à dinâmica do jornal,
desde sua política para publicidade, passando pelo protocolo de assinantes, pela circulação e
preço do impresso, até sobre a não responsabilidade acerca de textos assinados. Em seu primeiro
número, O Jornal trazia em letras em caixa alta a seguinte sentença: “SE O SR NÃO É
ELEITOR NÃO CUMPRE O SEU PRIMEIRO DEVER DE CIDADÃO; E OS MAUS
GOVERNOS SÃO A CONSEQUÊNCIA DESSES MAUS CIDADÃOS”57. O Jornal lançavase, ao menos a princípio, como defensor das soluções democráticas às questões políticas
brasileiras, julgando que a participação sufragista da maior parte dos cidadãos eleitores fosse
capaz de modificar o estado de coisas através da constituição de “bons governos”. Esta defesa
da democracia e da possibilidade de o voto direto constituir-se em matriz de renovação e
melhoramento político será radicalmente questionada no decorrer da década de 1920.
O periódico teria surgido de um conflito no seio do tradicional Jornal do Comércio.
Toledo Lopes, diretor desse periódico, desentendera-se com Félix Pacheco. Infelizmente, não
há maiores informações sobre o caso. O próprio Renato de Toledo Lopes é um personagem
ausente das histórias da imprensa e do jornalismo no Brasil. As maiores informações chegam
por parte das memórias de Alceu Amoroso Lima:
A própria fundação de O Jornal, em 1919, fora um sinal dos tempos. Era uma
tentativa de criar um órgão novo, que substituísse o famoso velho órgão (Jornal do
Comércio) que, por quase um século, representara a grande imprensa do país.
Principalmente a imprensa de espírito conservador e oficialista. O O Jornal, pela
orientação de Renato Lopes [...] visava criar um novo tipo de imprensa livre, com a
56
57
BITTENCOURT Apud. SODRÉ, N W. História da imprensa no Brasil, p. 328.
EXPEDIENTE, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 jun. 1919, p 1.
111
colaboração de jornalistas não profissionais (...)”58.
O Jornal se tornará mais presente nas histórias da imprensa a partir de sua aquisição pelo
paraibano Assis Chateaubriand, em outubro de 1924, que fará do periódico um norte para o
desenvolvimento das técnicas de impressão, publicidade, circulação, formatação e, além disso,
um canal de expressão das polêmicas em torno das questões políticas de relevância nacional.
O Jornal pode ser dividido, no período que compreende nossa pesquisa, em duas fases:
a primeira, desde sua fundação em 1919, até sua compra por Assis Chateaubriand, em 1924,
quando iniciaria a segunda fase. Além da mudança de proprietário, são nítidas as
transformações estruturais do periódico, desde os equipamentos e estratégias comerciais
adotados até à equipe de colaboradores, além de seu formato gráfico e, também, o seu
engajamento político. Podemos adiantar sobre as duas fases do periódico, tão complexo em
suas dezenas de seções, colunas, escritos, charges, caricaturas, análises, comentários, notícias e
nomes que tal transição refletirá a passagem de uma perspectiva pluralista e relativamente
tolerante a outra mais sectária e doutrinária, notadamente nos editoriais de Assis Chateaubriand.
No início, a primeira página mantinha um índice com todo o conteúdo da publicação
e uma coluna chamada “O Jornal dos jornais - Ideias de Ontem” que trazia as notícias de alguns
dos maiores periódicos do país. Era na primeira página que se concentrava a maioria dos artigos
assinados, normalmente três ou quatro. Não havia um editorial propriamente dito, como
existirá, a partir de 1924, quando o nome de Assis Chateaubriand vinha abaixo de textos
opinativos e doutrinários. Em sua primeira fase, O Jornal manteve polêmicas entre os artigos
assinados, sem dúvida, mas o próprio jornal se isentava de responsabilidade por tais expressões.
Era na primeira página, ainda, que saía a coluna “Coisas de Antanho” assinada por “Conselheiro
Ayres” e que, como o nome sugeria, tratava de eventos passados, mormente em forma de
pequenas anedotas, não raro, tendo como cenário o século XIX. A primeira página contou,
também, até meados de 1921, com charges diárias produzidas por autores nacionais. A partir de
1921, as caricaturas passam a ser de autoria estrangeira. Os brasileiros Raul, J Carlos, Genesco,
Oswald, Edmir, Manolo, Perdigão, Nery, Jefferson, Seth entre outros, assinaram trabalhos que,
rompendo a linearidade dos caracteres empilhados em sete colunas inquebrantáveis, operavam
como verdadeiros cartões de visita na primeira página do jornal. Eram também uma espécie de
cartuns editoriais, uma vez que não se abstiveram de posicionar-se frente aos acontecimentos
culturais, políticos e sociais correntes.
A primeira página abrigará, com o passar do tempo, a maioria do conteúdo assinado
de cunho político-intelectual, incluindo aí as charges. Nela começarão a sair, após muitos
58
Carta de Alceu Amoroso Lima a Alberto Venâncio Filho em 1979. In: CARDOSO, Vicente Licínio (ORG). À
Margem da história da República – Ideais, Crenças e Afirmações – Inquérito por escritores da geração nascida
com a república. Tomo II. Brasília: Editora da UNB, 1981, p. 113.
112
deslocamentos de páginas, os artigos Vida Literária, que inicialmente apareciam sob a rubrica
Bibliografia, assinados por Tristão de Athayde que escrevera neste periódico desde seu início
até 1945. Na primeira página aparecerão, na primeira fase, os textos de João Ribeiro, João Do
Norte (Gustavo Barroso), Ronald de Carvalho, Jackson de Figueiredo, Perilo Gomes, Fidelino
de Figueiredo, José Maria Belo, Capistrano de Abreu, Delgado de Carvalho, A Carneiro Leão,
Monteiro Lobato e dezenas de outros.
A segunda seção, geralmente na segunda página, denominava-se “Comentários” e
tratava de vários assuntos cujos textos não eram assinados. Aí apareciam notas sobre o
executivo, o judiciário, da capital e dos estados, assim como algumas notícias internacionais.
Pequenas notas que traziam títulos como “o café”, “diplomas falsos”, “combatendo o jogo”,
“sociedade vegetariana brasileira”, “uma acusação contra um médico”, “morte sem assistência
médica”, “os serviços anarquizados do Lloyd Brasileiro”59. Abrigava também “O Conto do
Jornal” que era diário e ocupava cerca de um quarto da página do jornal. Pequeno fragmento
literário, o “Conto do Jornal”, que também poderia sair na primeira página, era uma coluna que,
a cada dia, trazia um autor diferente, raramente um nome de grande fama. Também na segunda
página, era assinada a coluna “Artigo sem fundo” por João sem Telha que ironizava, justamente,
os “artigos de fundo”60, isto é, os editoriais, os textos que centralizam as ideias dos periódicos.
Sua coluna era opinativa e poderia abordar desde temas como a seca no nordeste e o bovarismo
das elites brasileiras até os “males da luta de classes” sempre, porém, de forma breve e bem
humorada61.
A terceira seção chamava-se “Fatos e Informações”. Pequenas notas pululavam pela
página. Notícias variadas, com títulos em caixa-alta, algumas com ilustrações fotográficas. Aí
saíam informações sobre as greves e o movimento operário em geral. Neste noticiário, as
demandas trabalhistas eram permeadas pelos assuntos policiais. As pequenas notas traziam
títulos autoexplicativos: “O assistente da brigada conferencia com o chefe de polícia”, “Mais
grevistas presos”, “Uma comissão do Centro Industrial de Tecidos na Polícia Central”, “A
fábrica ‘Botafogo’ apita em vão”, “Reabre-se hoje a Cruzeiro”, “As providências da polícia”,
“Na Sapopemba compareceram mais operários”, “As bombas encontradas pela polícia”62.
A seção seguinte, “Crônica da Cidade”, trazia, principalmente, a recorrente notícia fait
divers. Na maioria das vezes, registros policiais em pequenas narrativas que, não raro,
59
Cf. O Jornal, Rio de Janeiro, 1 Jul. 1919, p. 2.
O artigo de fundo era o grande motor das folhas de início da República. Vivaldo Coroacy dizia a respeito: “O
artigo de Patrocínio tinha essencial importância. Nesse tempo, jornal que se prezasse não dispensava o ‘artigo de
fundo’. E era através dele que Patrocínio exercia a advocacia da causa, qualquer que fosse, a que, na ocasião,
tivesse alugado a sua pena de mestre. O artigo sustentava a folha, a casa de Patrocínio e as suas extravagâncias
(...)”. SODRÉ, N W. História da imprensa no Brasil, p. 311-312.
61
João sem Telha. Artigo sem fundo. O Jornal, Rio de Janeiro, 17 jun. 1919, p. 2.
62
O Jornal, Rio de Janeiro, 1 Jul. 1919, p. 3.
60
113
misturavam ficção com dados jornalísticos. Era uma marca não só da pequena imprensa, mas
também dos jornais de grande circulação. Apesar de contemplar três temáticas – crime,
cotidiano e prodígio – as “cenas de sangue”, se não criminosas, ao menos envolvendo algum
desastre, eram as mais recorrentes nos fait divers. Como lembra Valéria Guimarães:
Com a transformação da imprensa em empresa capitalista, que ocorreu no Brasil na
passagem do século XIX, o apelo ao sensacionalismo cresce. Histórias reais contadas
como ficção, não raro com dados inventados, por muito tempo comprometeram a
credibilidade do poder de informação deste tipo de “notícias diversas”63.
A autora destaca como essa produção compunha a experiência cultural da nova cidade brasileira
e despontava como um gênero que figurava entre os mais lidos, uma espécie de “modo menor
da escrita jornalística” capaz de articular a oralidade característica do seu modo de contar com
as vivências higienizadoras do urbanismo sempre disposto a eliminar os signos “populares”.
Dessa forma, as “Crônicas da Cidade” - sobre as quais O Jornal, em expediente na
primeira página, assegurava que evitaria a “publicação de pequenas notícias repugnantes” relatavam “Tentativa de suicídio”, “Atrasos da vida – Amores mal correspondidos”, em que
“Waldemar Silvério, 18 anos, tentou se matar ingerindo querosene”, “Colhido por um
Guindaste”, “Sob uma pilha de sacos”, “Despencou de um telhado”, “Acidente”, “Desastre ou
suicídio”, “Agressão a pau”, “Apanhado por um automóvel no largo da Glória”, “Na zona
perigosa, marinheiro agredido”, “Espancamento”, “Morrer aos 20 anos”, “Os ladrões em D
Clara”, “Faleceu a bordo do ‘Garonna’”, “Agrediu a vizinha com um tijolo”, “Uma carroça
atropela um menor”64 e por aí vai. Mais recentemente, este tipo de produção identificada com
o jornalismo dos séculos XIX e XX passou a ser objeto de estudos sistemáticos, inclusive
relacionando-o à emergência do romance realista dos oitocentos65.
A quinta seção do O Jornal era a “Viação Terrestre e Marítima” e, como o próprio
título diz, relatava acontecimentos sobre a Estrada de Ferro Central do Brasil, sobre o transporte
de gêneros, mercadorias, produtos e materiais diversos pelas vias férreas, além de retratar as
políticas referentes à viação. A parte marítima era recorrentemente noticiada segundo os
processos que ocorriam no Lloyd Brasileiro66. Em seguida, vinha a seção “Serviço Telegráfico”,
originalmente denominada “‘O Jornal’ através do mundo”. No primeiro número do jornal, a
publicação afirmava contar com os serviços da “Associated Press” apresentada como “a maior
63
GUIMARÃES, Valéria. Sensacionalismo e modernidade na imprensa brasileira no início do século XX.
ArtCultura, Uberlândia, v. 11, n. 18, jan-jun 2009, p. 238.
64
Cf. O Jornal, Rio de Janeiro, 1 Jul. 1919, p. 4.
65
“O fait divers é sem dúvida o primeiro intertexto do romance realista e, além disso, a evolução do fait divers
explica em grande parte as mutações da escrita romanesca”. THÉRENTY, Marie-Ève. Métamorphoses littéraires
3. Le réel. La modernité littéraire. In: KALIFA, D et al.; La civilisation du journal. Paris, p. 1536.
66
A Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro foi criada em 1890. Era uma estatal que por quase cem anos operou
como uma âncora do setor. Foi extinta em 1997. Cf. GOULART FILHO, Alcides. A trajetória da marinha mercante
brasileira: administração, regime jurídico e planejamento, Pesquisa e debate, São Paulo, vol 21, nó2 (38), pp. 247258, 2010.
114
organização do mundo com a missão de colher e espalhar notícias”. Não seria uma “organização
comercial” e, por isso, não realizaria lucros, segundo dizia o periódico:
[...] uma associação mútua de que fazem parte 1150 jornais da América do Sul,
Central e do Norte, com o fim especial de recolher e permutar informações diárias
sobre todos os acontecimentos. Para isso ela dispõe de correspondentes especiais em
todas as importantes cidades do mundo, tendo, além disso, combinações com
agências de menor importância, tais como a Agência Reuter, da Inglaterra, Fabri, da
Espanha e Portugal, e Stefani, da Itália67.
Como índice de credibilidade e isenção, falava-se que a agência era composta por vários jornais,
de diferentes nacionalidades e credos religiosos. Seria “absolutamente imparcial”, sem ligação
com governos e/ou quaisquer órgãos oficiais. Tinha a finalidade única de “fornecer a seus
membros notícias verdadeiras a respeito de todos os países do mundo”. E complementava:
Além d’O JORNAL, há apenas três órgãos da imprensa diária no Brasil que
pertencem à “Associated Press” – o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil e o
Imparcial. Na América do Sul, entre os mais importantes membros que recebem o
seu serviço contam-se: em Buenos Aires – La Prensa e La Razón; em Santiago do
Chile – El Mercurio e La Nación; em Valparaíso – El Mercurio; em Lima – El
Comercio, La Prensa, La Crônica e muitos outros demais países.
A seção trazia, em seu subtítulo, a informação de que os telegramas vinham das agências
Associated Press, Havas e Americana. Sodré destaca que, já na segunda metade do século XIX,
na Europa e nos Estados Unidos, despontava, cada vez mais, o jornal-empresa repleto de
notícias que não mais seria veículo para expressar uma ideia específica segundo seu
proprietário/ideólogo. Seu formato cresce, assim como a consciência da força dos periódicos
na formação da opinião pública seguindo um fluxo de notícias. Estas seriam colhidas pelas
agências e distribuídas pelos jornais. Porém, surge o problema da “luta entre essas agências de
notícias que, adiante, seriam associadas aos monopólios industriais em ascensão, e terminariam
concentrando-se, como aqueles”68.
Seja como for, segundo O Jornal, as agências seriam garantias de pluralidade,
imparcialidade e objetividade no tratamento das notícias. Além disso, era um privilégio de
poucos jornais que, assim, sairiam na frente na concorrência pelo leitor que procurasse manterse informado sobre o que ocorria no mundo. Pequenas caixas de informações configuravam a
página do jornal trazendo notícias de vários lugares do planeta vindas direto de Paris, Nova
Iorque, Washington, Londres, Berlim, Brest, Tóquio, Estocolmo, Havana, Ottawa, Buenos
Aires, La Paz, Lima, Copenhague, Cidade do México, Florença, Nápoles, Milão, Roma,
Versalhes e muitos outros. Também o noticiário dos estados da federação aparecia aí. Notas que
traziam informações de Manaus à Porto Alegre.
Em seguida, vinham a sétima e oitava seções, bastante similares às páginas dos diários
67
68
O Jornal, Rio de Janeiro, 17 jun.1919, p. 5.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil, p. 4.
115
oficiais: “O Direito e Foro” e “O Governo da República e o Governo da Cidade”. A primeira
relatava, de maneira protocolar, os acontecimentos jurídicos nas diversas varas do fórum da
cidade. Mormente, trazia apenas as pequenas notas: “Expediente”, “Nas varas cíveis”, “Corte
de Apelação”, “No Supremo Tribunal Militar”69 etc. A seção “O Governo da República e o
Governo da Cidade” tratava estritamente dos processos institucionais ocorridos em diversas
esferas, ministérios, repartições, câmaras, comissões, tanto do executivo, quanto do legislativo.
Notícias curtas, reprodução de discursos, notas informativas, decretos legais se amontoavam
em sete colunas de letras pequenas encabeçadas apenas pelos subtítulos em negrito: “No
Congresso”, “No Catete”, “No Ministério da Fazenda”, “Tribunal de Contas”, “No Ministério
da Marinha”, “No ministério da Guerra”, “No Ministério da Justiça”, “No Conselho Municipal”
e “Na Prefeitura”. Era uma seção volumosa que ocupava mais de uma página. A coluna
“Niterói” complementava esta seção. De caráter similar, era a coluna “Notas Suburbanas”,
menos periódica que “Niterói”, aparecia em diferentes páginas e trazia reclames, a pedidos e
notas informativas sobre “distantes” áreas da cidade do Rio de Janeiro. Podia ter tanto pequenos
títulos que explicitavam a origem do curto destaque: “Penha”, “Engenho de Dentro”,
“Jacarepaguá”, quanto nomes de ruas, igrejas, pessoas e reclamações que se queria evidenciar.
A “Seção Esportes” vinha em seguida com o noticiário do futebol, do “Turf”, como
eram chamadas as corridas a cavalos do Jockey Club, do motociclismo do tênis, do tiro, do ping
pong, do rowing, que era como se denominavam as competições náuticas a remo, práticas
esportivas bastante difundidas que, não por acaso, nomeavam os clubes de regatas Flamengo,
Vasco da Gama e Botafogo. A décima seção era “Notas Mundanas”. Aí eram noticiados os
eventos e acontecimentos da vida social carioca: “aniversários”, “nascimentos”, “núpcias”,
“hospedes e viajantes”, “manifestações” (de apreço social por figuras distintas), “banquetes”,
“enfermos”, “reuniões”, “enterros”, “necrologia”, “festas”, “missas fúnebres”, “excursões” etc.
Aí saía a “Croniqueta Parisiense” assinada por Giffon e que teve vida longa no periódico.
Dedicada especialmente ao público feminino, a croniqueta procurava atualizar a moda carioca,
noticiando o que estaria em voga em Paris, Nova Iorque e Londres.
A página abrigava, ainda, a seção “Vida Religiosa” que retratava os principais eventos
e notícias oriundos do mundo católico, evangélico e espírita. Também apareciam aí,
esporadicamente, notas sobre o positivismo, o ocultismo e a teosofia. Nos primeiros meses, a
décima segunda seção, “Bibliografia”, assinada por Tristão de Athayde saía nesta página,
normalmente, de número nove. Com o tempo, a mesma seção irá aparecer, com periodicidade
indeterminada, em diferentes lugares do jornal até que, em maio de 1921, torna-se “Vida
69
O Jornal, Rio de Janeiro, 1 Jul. 1919, p. 8.
116
Literária” e ocupa até o ano de 1924 a primeira página, aos domingos. Depois da aquisição do
O Jornal, em 1924, por Assis Chateaubriand, após alguns deslocamentos pelo periódico,
aparecerá sempre aos domingos na quarta página e aí se manterá, com algumas intermitências
e variações, até o ano de 1945. O Folhetim70 do O Jornal ocupava os rodapés desta página.
Trazendo dados do mundo econômico, a seção “O Movimento dos negócios” tratava
do “Mercado de câmbio e de títulos”, “Comércio, estatísticas e todos os mercados”.
Informações sobre “Mercados estrangeiros – descontos, câmbios e cotações”, “Mercado dos
principais produtos”, “Vales ouro”, “Juros e dividendos”, “Praça do Rio – Notas Comerciais”,
“Alfândega”, “Movimento da bolsa”71, etc. Era uma seção repleta de tabelas, números e
cotações que serviriam menos ao consumidor comum do que a investidores, empresas e
empreendedores mais ou menos profissionais. A penúltima seção do O Jornal era a “Teatro,
Música e Cinema” dedicada aos eventos culturais da cidade. Mantinha a coluna “Crônica
Teatral” especialmente dedicada ao Teatro Municipal. Esta seção abrigava os reclames,
anúncios e vinhetas que divulgavam os espetáculos e sessões de cinema. A última seção, décima
quinta, dedicava-se às “Últimas Notícias”, era acompanhada pelo destaque “4 e meia da manhã”
e podia relatar informações que, normalmente, sairiam em qualquer uma das seções relatadas
anteriormente. Devemos destacar que O Jornal contava, desde o primeiro número, com dezenas
de patrocinadores que estavam presentes em todas as páginas com exceção, nem sempre
verificável, da primeira. De tônicos a bancos e financeiras, casas de comércio a remédios para
“quebradura”, lojas de roupas masculinas a antiepilépticos, uma miríade de produtos, serviços
e negócios pululavam em qualquer seção do periódico.
Se o leitor conseguir obter uma visão geral do O Jornal, acreditamos ter cumprido com
um objetivo: demonstrar a riqueza, variedade, complexidade e dificuldade em abordar um
periódico como este. Mostramos aí apenas as seções mais recorrentes à época do lançamento,
várias outras ficaram de fora. Uma folha que pretendesse competir com as maiores do país
precisava contemplar uma miríade de temas de interesse múltiplo e que, por isso, poderia atingir
variados tipos de leitores: política nacional, regional e internacional, economia, sociologia,
cultura, literatura, questões sociais, vida social, moda, religião, arte, ciência, opinião, produção
editorial, crítica, humor, publicidade, enfim, eixos diversos com questões internas específicas
que dão bem a dimensão da cultura intelectual. Como diria a Fon Fon, “Pouca gente lê um
jornal de fio a pavio”. “Cada um tem a sua seção predileta”72.
Elencar os nomes de colaboradores nas duas fases do O Jornal seria uma tarefa ingrata,
70
Publicavam-se livros inteiros nesta seção. O primeiro foi David Copperfield de Charles Dickens. Cf. O Jornal,
Rio de Janeiro, 17 de jun. 1919, p. 9.
71
O Jornal, Rio de Janeiro, 1 Jul. 1919, p. 10.
72
VELLOSO, M P. Sensibilidades modernas. In: LUSTOSA, I. (Org). Imprensa, história e literatura, p. 228.
117
injusta e que levaria a uma quase infinita relação de nomes que aí passaram nestes nove anos
abordados em nossa pesquisa (1919-1928). As figuras poderiam ir de Artur Bernardes a Luís
Carlos Prestes, Pixinguinha a Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade a Jackson de Figueiredo,
Getúlio Vargas a Júlio de Mesquita, Carlos Drummond de Andrade a Viriato Correia, Artur
Thimóteo da Costa a Raul Pederneiras, Gilberto Freyre a Mendes Fradique, Pirandello a
Poincaré, Albert Einstein a Dom Sebastião Leme, Calógeras a Afrânio Peixoto, Gustavo
Barroso a Albertina Bertha, assim por diante em uma enumeração quase caótica. Isso não
significa a absorção de qualquer totalidade, ou mesmo algo próximo disso, afinal, o romancista
Lima Barreto não deixara de notar, em seu protesto contra sua marginalização no meio literário:
Se não disponho do Correio da Manhã ou do O Jornal, para me estamparem o nome
e o retrato, sou alguma coisa nas letras brasileiras e ocultarem o meu nome ou o
desmerecerem, é uma injustiça contra a qual eu me levanto com todas as armas ao
meu alcance73.
E, de fato, O Jornal nunca contou com sua colaboração, apesar de ter seu nome aí
reconhecido por Tristão de Athayde, José Maria Belo, Agripino Grieco e pelo acadêmico João
Ribeiro74. Assim, como dissemos anteriormente, a “cultura intelectual brasileira” é uma
“cultura dos jornais” e, como tal, está submetida a todos os processos de promoção e exclusão,
consagração e marginalização, hierarquização, politização e capitalização das relações sociais.
Foi por intermédio de Tristão de Athayde que o crítico Agripino Grieco conseguiu se firmar no
O Jornal, onde contribuiu por várias décadas. Este gesto de “amizade” foi lembrado por Grieco
até o fim de sua vida75.
73
Cf. BARRETO, Lima. A minha candidatura. Marginália. Belém: NEAD, s/d, p. 11.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919, p. 9; Vida Literária, O Jornal,
Rio de Janeiro, 26 nov. 1922, p. 1; BELO, José Maria. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 de jan. 1921, p
1; GRIECO, Agripino. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 de jul. 1923, p 1; RIBEIRO, João. Notas avulsas.
A proto-mártir academia, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 nov. 1923, p 1.
75
Cf. GRIECO, Agripino. Crítica a um crítico. O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 06 nov. 1927, p. 3; As
duras memórias do Agripino. In: SALES, Fernando; GRIECO, Donatello. Bibliografia crítica de Agripino Grieco.
1968-1973. Rio de Janeiro: Cátedra, 1977, p. 153.
74
118
O crítico expressionista
Inda outro dia escrevinhando o esboço dumas
teses temerárias sobre Álvares de Azevedo e
nosso Romantismo em geral, ao notar a
tendência para generalizações apressadas dos
nossos críticos, que se imaginando
conscientemente, ou supostos, sintéticos, são
na verdade duma excessiva tosquidão e sem
sutileza nenhuma: eu afiançava que só dois,
por apaixonados, tinham já descoberto
alguma coisa, Sílvio Romero, que se
apaixonava porque era uma alma odienta, e
você que é uma alma sectária.
Carta de Mário de Andrade a Alceu Amoroso Lima,
26 de janeiro de 1931.
A crítica na cultura do jornal
Em 1859, Machado de Assis escrevia sobre o livro, o jornal e o destino que a este
último caberia no desenvolvimento da humanidade. O jovem escritor não escondia sua
empolgação. Considerando, naqueles anos imperiais, que a “humanidade era republicana”, ele
via o jornal como a “nova cratera do vulcão” que levaria à regeneração, pois, dentre os “moldes”
do pensamento humano, nenhum era “democrático como ele”76. A imprensa é associada ao fogo
que Prometeu tomara dos deuses para dar aos homens, garantindo-lhes a independência:
O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual
em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente
democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e o fogo
das convicções77.
O que o jornal traria consigo era “o gérmen da revolução”, não só “literária”, mas “econômica”
e “social”. Encarnaria o “movimento da humanidade”, abalando as estruturas dessas esferas.
Naquele momento se completaria a “emancipação da inteligência”, devendo-se então
promover-se aquela dos “povos”. Seria o fim do “direito da força” e o “direito da autoridade
bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas vai cair. Os reis já não têm púrpura,
envolvem-se nas constituições. As constituições são tratados de paz celebrados entre a potência
popular e a potência monárquica”. E a grande “glória” do século XIX teria sido exatamente a
celebração das constituições, do governo das leis. Contraposto ao livro, o jornal teria vantagem:
O livro não está decerto nestas condições; - há aí alguma coisa de limitado e de estrito
se o colocarmos em face do jornal. Depois, o espírito humano tem necessidade de
discussão, porque a discussão é – movimento. Ora, o livro não se presta a essa
necessidade, como o jornal. A discussão pela imprensa-jornal anima-se e toma fogo
pela presteza e reprodução diária desta locomoção intelectual. A discussão pelo livro
esfria pela morosidade, e esfriando decai, porque a discussão vive pelo fogo. O
76
Artigo publicado originalmente no jornal Correio Mercantil, nos dias 10 e 12 de janeiro de 1859. ASSIS,
Machado de. O jornal e o livro. In: AZEVEDO, S M et al. Machado de Assis, p. 70.
77
ASSIS, Machado de. O jornal e o livro. In: AZEVEDO, S M et al. Machado de Assis, p. 73.
119
panfleto não vale um artigo de fundo78.
Se estabeleceria uma “tribuna universal” que significaria o “nivelamento das classes
sociais”, a “democracia prática pela inteligência”, ou seja, o “progresso”. O jornal promoveria
uma “lenta revolução no globo”. A dimensão utópica rege a esperança no veículo midiático:
Desaparecendo as fronteiras sociais, a humanidade realiza o derradeiro passo, para
entrar o pórtico da felicidade, essa terra de promissão. O talento sobe à tribuna
comum; a indústria eleva-se à altura de instituição; e o titão popular, sacudindo por
toda a parte os princípios inveterados das fórmulas governativas, talha com a espada
da razão o manto dos dogmas novos. É a luz de uma aurora fecunda que se derrama
pelo horizonte79.
Em outro artigo, falando em uma “reforma pelo jornal”, o jovem escritor considera que a
imprensa faria “tremer as aristocracias” e seria incompatível com “esses parasitas da
humanidade”. Confiante no poder da discussão, ele reforça os argumentos anteriores:
[...] o operário que se retira ao lar, fatigado pelo labor quotidiano, vai lá encontrar ao
lado do pão do corpo, aquele pão do espírito, hóstia social da comunhão pública. A
propaganda assim é fácil; a discussão do jornal, reproduz-se também naquele espírito
rude, com a diferença que vai lá achar o terreno preparado. A alma torturada da
individualidade ínfima, recebe, aceita, absorve sem labor, sem obstáculo aquelas
impressões, aquela argumentação de princípios, aquela arguição de fatos. Depois
uma reflexão, depois um braço que se ergue, um palácio que se invade, um sistema
que cai, um princípio que se levanta, uma reforma que se coroa. Eu o creio de
coração. Graças a Deus, se há alguma coisa a esperar é das inteligências proletárias,
das classes ínfimas; das superiores, não80.
Os escritos do jovem Machado sintetizam de uma maneira surpreendente aquilo que
se chamou, no século XX, de otimismo oitocentista: a fé no progresso da humanidade segundo
a emergência dos governos constitucionais, se não republicanos, ao menos democráticos, que
garantiria a emancipação política e econômica dos povos num horizonte revolucionário cujo
fim estaria, de antemão, afiançado pela Razão. Ao jornal caberia um papel fundamental de
promoção da opinião pública mantendo uma relação crítica com o presente a “preparar a
humanidade para saudar o sol que vai nascer, - eis a obra das civilizações modernas”81.
Machado traçava um paralelo entre o crítico literário e o político:
Exercer a crítica afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece
igualmente fácil a tarefa de legislador; mas, para a representação literária, como para
a representação política, é preciso ter alguma coisa mais que um simples desejo de
falar à multidão. Infelizmente é a opinião contrária que domina, e a crítica,
desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos incompetentes82.
Assim, o jovem escritor denunciava a falta de competência dentre aqueles que exerciam a crítica
e, talvez, a política. Neste artigo sobre o “ideal do crítico”, Machado de Assis traça as linhas
78
ASSIS, Machado de. O jornal e o livro. In: AZEVEDO, S M et al. Machado de Assis, p. 72-74.
ASSIS, Machado de. O jornal e o livro In: AZEVEDO, S M et al. Machado de Assis, p. 76-77.
80
Artigo publicado originalmente no jornal O Espelho em 23 de outubro de 1859. ASSIS, Machado de. A reforma
pelo jornal. In: AZEVEDO, S M et al. Machado de Assis, p. 81-82.
81
ASSIS, Machado de. O jornal e o livro. In: AZEVEDO, S M et al. Machado de Assis, p. 77.
82
Artigo publicado originalmente no Diário do Rio de Janeiro em 8 de outubro de 1865. ASSIS, Machado de. O
ideal do Crítico. In: AZEVEDO, S M et al. Machado de Assis, p. 236.
79
120
gerais que deveriam reger “tão curioso papel”. A crítica deveria ser imparcial, segundo uma
diretriz que preconize a “sinceridade, a solicitude e a justiça”, contrariando o “ódio, a
camaradagem e indiferença”. Deveria constituir-se enquanto análise, sem preconceitos e
mantendo um espírito de “urbanidade” entendido como tolerância e moderação, a fim “de
reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos”.
Quando, em junho de 1919, Tristão de Athayde propunha, junto à fundação do
periódico carioca O Jornal83, um programa de crítica literária, os temas dos artigos de Machado
de Assis ainda se faziam presentes. Acerca do papel do jornal, considerava-se que este deveria
ser um “orientador de espíritos, um guia consciencioso de consulta fácil”84. Sobre a crítica, dizia
que “pouco se cuida entre nós de crítica e divulgação bibliográfica, quando toda a cultura
depende, em parte, de uma informação variada e honesta das fontes de consulta”. Tristão afirma:
A cultura, no amplo sentido nietzscheano da expressão, encarada como ‘unidade de
estilo’, exige três elementos – como o amanho da terra requer o homem, a semente
e o solo: a ciência, a inteligência e a vontade. A inteligência que é o terreno a arrotear,
não falta entre nós, apenas anda desorientada.
Assim, segundo a definição “nietzscheana”85, as reflexões de Tristão de Athayde traçam os
horizontes da crítica em meio aos esforços para a formação de uma cultura nacional:
Um povo que quer relevar-se intelectualmente e durar precisa para isso empregar o
próprio esforço, e por ele terá realizado o segundo grau de cultura. Enfim, de que
vale um povo inteligente e desejoso de crescer, se lhe faltam os meios de se desalterar
nas correntes eternas e nas fontes recentes de cultura? Empresa delicada a dessa
revelação, para que o pensamento estranho, longe de desviar o curso da tradição,
venha fortalecer a individualidade nacional. Urge, pois, preparar as inteligências,
orientar as vontades, divulgar as ideias86.
Consonante com as questões gerais da cultura intelectual à época, Tristão de Athayde
83
Vera Lúcia dos Reis trata das diferentes versões que o próprio Alceu contara sobre seu início na crítica literária:
“Vale a pena comparar as diferentes elaborações que constrói para explicar como aceitou o convite de Renato de
Toledo Lopes, que, naquele momento, fundava O Jornal. Nas Memórias improvisadas, diz: ‘Posso datar minha
posição em face das letras de uma conversa em 1919, numa calçada da Avenida Rio Branco, com Ricardo [sic] de
Toledo Lopes’. No artigo ‘Rememorando’, escreve: ‘Comecei a fazer crítica literária de modo puramente acidental,
com já por mais de uma vez tenho contado. Convidou-me, de surpresa, Renato de Toledo Lopes, a assumir a seção
de ‘Bibliografia’ no jornal que ia fundar [...]’”. A autora questiona este “acaso” envolvido na estreia de Alceu como
crítico literário, lembrando produções anteriores do autor. Em Memorando dos 90, Alceu recorda que, convidado
em março de 1919, ele começara a escrever e, quando do lançamento de O Jornal, teria quarenta artigos escritos.
Porém, em janeiro de 1919, assinando ainda Alceu Amoroso Lima, ele publicou um artigo de crítica literária na
Revista do Brasil. A essa altura, ele mantinha correspondência periódica com Monteiro Lobato e, por essas cartas,
nota-se, em ambos, a possibilidade de Alceu fazer crítica literária no periódico paulista. Em uma carta,
provavelmente de 1919, Lobato fala em constituir um “corpo de críticos da Revista”, que seria formado por Alceu,
João Ribeiro, Sud-Menucci e Léo Vaz. Cf. REIS, V L dos. O perfeito escriba, p. 40; LIMA, A A. Memorando dos
90, p 47; LIMA, A. A. À margem de um livro, Revista do Brasil, São Paulo, no 17, ano IV, vol X, pp 83-87, jan.
1919; Carta de Monteiro Lobato a Alceu Amoroso Lima, s/data, acervo CAAL; Carta de Monteiro Lobato a Alceu
Amoroso Lima, s/data, acervo CAAL.
84
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 jun. 1919, p. 11.
85
A citação completa do filósofo alemão é: “A cultura é, antes de mais, uma unidade de estilo que se manifesta em
todas as atividades de uma nação”. Cf. NIETZSCHE, Friedrich. David Strauss: Crente e escritor. Considerações
intempestivas. Lisboa: Presença, 1977, p. 11; Sobre a influência do pensamento de Nietzsche na cultura intelectual
brasileira. Cf. BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900, p. 112; ROMERO, Sílvio. Zéverissimações ineptas
da crítica (repulsas e desabafos). Porto: Oficinas do “Comércio do Porto”, 1909, p. 96.
86
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 jun. 1919, p. 11.
121
fala da necessidade do trabalho conjunto dos intelectuais que deveria somar-se aos esforços de
saneamento “da gente e da terra” e de “estabilização econômica”. Assim:
Encargo de publicistas e críticos, professores e jornalistas, é talvez o mais delicado.
Cabe-lhes distinguir o que de eterno deixaram os clássicos, fazer justiça às
civilizações desdenhadas, admirar sem submissão antigos e modernos, descobrir
virtudes e belezas acima das fronteiras e nacionalidades, manter o contato com as
ideias e preocupações contemporâneas, isolar o fio da tradição, sempre de olhos
presos na cultura, para a formação de uma individualidade nacional. Tarefa mortal
para um homem, desmedida para uma geração, pesada ainda para um século. Não é
razão para que, dia a dia, cada um de nós na sua esfera não procure humildemente
concorrer para tão nobre intuito. E aqui nesta coluna de jornal, guia-nos a esperança
de que nos compreenderão, relevando a ousadia do empreendimento pela grandeza
do objetivo, todos aqueles que amam esta terra e confiam neste povo87.
Tristão pontua os malefícios da “camaradagem literária” classificada como a mais “pérfida” das
apologias, a necessidade de não se “personalizar os debates”, pois, por tais razões teria caído
no maior descrédito a “crítica entre nós”. Assim, os problemas assinalados por Machado de
Assis continuariam de alguma forma a caracterizar a dinâmica intelectual brasileira. Porém,
nesse ínterim, muito se produziu, refletiu-se e se conquistou em torno da crítica literária no
cenário brasileiro. Talvez, a precariedade da dinâmica jornalística tenha perpetuado alguns
problemas. O próprio Tristão lembrara neste artigo inaugural que:
Comentar sem paixão e divulgar em consciência, eis o seu objetivo. A crítica
subjetiva é a verdadeira crítica, mas só quando o autor já ganhou, por seu mérito, o
direito a ser ouvido. Interessa então o comentador mais do que o comentado. A
maioria dos autores estudados por Sainte-Beuve nos são desconhecidos e raramente
chegamos a lê-los. Nem por isso é menos o interesse com que folheamos as
Causeries du Lundi. E assim acontece, em parte, com Anatole France, com os
Goncourt, com Rémy de Gourmont, com Léon Daudet, o autor inconfundível de
Fântomes et Vivants, e, entre nós, com Veríssimo, Araripe Jr, com João Ribeiro88.
Neste primeiro texto, Tristão de Athayde se diz fiel a um “programa de nenhum
programa” e não teria nenhum propósito em “ser completo”. Se, por um lado, tais ideias
parecem reenviar a certo diletantismo, por outro lado, tal tipo de disposição faria com que o
crítico literário se colocasse em uma situação de ampla receptividade:
Se me não prendem preconceitos de tempo, menos me tolhem os de escolas ou
tendências. Para autores nacionais e estrangeiros, revistas ou folhetos, artistas ou
técnicos, para todos os que trouxerem uma ideia nova, uma beleza, um pensamento
útil, está reservada a acolhida nesta coluna.
Longe de ser algum tipo de manifesto, tais considerações vieram a lume na décima primeira
página do periódico O Jornal89, sob o genérico título “Bibliografia” e numa posição nem um
87
ALMEIDA, Afonso Lopes de. Os nossos livros, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 fev. 1921, p 1.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 jun. 1919, p. 11.
89
Manteremos, o máximo possível, as referências originais dos trabalhos de Tristão de Athayde. Desde a primeira
publicação em livro das suas primeiras críticas, em 1939, Alceu Amoroso Lima colocou títulos nos artigos,
selecionou alguns, editou outros, além de fazer notas de rodapé “justificando” posições que não mais defendia.
Estes primeiros livros já traziam, assim, o trabalho de memória efetuado pelo autor a fim de lhe conformar a
identidade desejada. Cf. LIMA, Alceu Amoroso. Primeiros Estudos. Contribuição à história do modernismo
literário. O pré-modernismo de 1919 e 1920. Rio de Janeiro: Agir, 1948.
88
122
pouco destacada em que até o seu nome saíra grafado erroneamente (como Tristão de Athrayde).
A rápida ascensão que a coluna terá nos meses seguintes, ganhando mais espaço e
saindo na primeira página do jornal, revela a importância que a crítica literária adquirira no
interior da dinâmica da cultura intelectual brasileira. Neste sentido, em 1925, o proprietário da
editora Anuário do Brasil, o português Álvaro Pinto, enumerava as razões pelas quais ocorria
uma “crise do livro” no país, acarretando a falência de várias editoras. Dizia ele sobre a crítica:
A crítica literária é outro embaraço à justa colocação do livro. Não se faz no Brasil,
salvo raríssimas exceções, a justa crítica literária, no sentido em que ela devia ser
compreendida de competência e independência. Depende a apreciação quase sempre
da amizade ou inimizade, dos ardores da dedicatória ou do bom ou mau humor do
crítico. Obras de realíssimo mérito – e tantas há hoje na brilhantíssima geração atual
brasileira – passam sem o devido registro porque a crítica não dar-lhes a atenção
devida. Obras de amigos, às vezes insignificantes, desprezíveis até, são badaladas a
todos os cantos como excelsas maravilhas. E assim se desorienta o leitor de tal forma,
que ninguém faz já caso dos críticos, a não ser os autores. Estes mesmos, se a crítica
lhes é favorável – acham bem. Se lhes é contrária – não a reputam inteligente. [...]
Anda, portanto, o livro à mercê de si próprio, aos baldoes do capricho90.
O próprio crítico escrevera sobre o alto preço dos livros, a falta de coleções populares, “ao
alcance dos pobres”, lembrando que o “Herói, como ‘homem de letras’, segundo Carlyle, é o
fruto supremo da idade moderna, fruto condicionado pela imprensa” e que “a verdadeira
universidade hoje é uma coleção de livros”. O livro não devia ser um luxo ou um perigo91.
No início dos anos 1920, escritores e literatos poderiam ter na crítica uma tarefa mais
ou menos secundária, exercendo-a com maior ou menor regularidade92. Poucos, porém,
dedicaram-se exclusivamente à crítica literária93. Dentre estes, havia o risco de ser
estigmatizado por algum tipo de característica, como no caso de Osório Duque Estrada que, por
demais associado à ABL e a uma sobrevalorização dos critérios gramaticais, fora apelidado de
“guarda noturno da literatura brasileira”, título, aliás, que parecia lhe agradar94. O crítico
literário, portanto, estava também à mercê do crivo de seus pares. E, visto a importância
concedida à época a esta figura estratégica, um crítico literário poderia influenciar não apenas
90
Ele ainda elenca como causas: o descaso dos jornais para com os livros, um estado geral de apatia e inquietação
decorrente dos problemas de ordem política do país, a fraqueza dos editores e “blagueurs” futuristas, a falta de
organização da indústria do livro, as más revistas; já as soluções seriam o incentivo aos livros novos, diminuição
de taxas postais, estímulos às convenções literárias, proteção do comércio de livros, criação de associações de
autores e a criação de cooperativas gráficas. Cf. A crise do livro, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 abr. 1925, p. 1-2.
91
O crítico lembra o fato de o livro ser tido como fator de anarquia, mas que seria também de ordem. Expressiva
desta situação quixotesca de perigos dos livros é, na obra Triste fim de Policarpo Quaresma, o momento em que
Quaresma está internado num hospício e seu amigo, Ricardo Coração dos Outros, ao pedir ao General Albernaz
um auxílio para ir visitar o amigo comum, ouve do militar: “_ Aquele Quaresma podia estar bem, mas foi meterse com livros... É isto! Eu, há bem quarenta anos, que não pego em livro...”. Cf. T de A. O preço dos livros, O
Jornal, Rio de Janeiro, 24 ago. 1919, p. 1; BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma, p. 144.
92
Neste período, tal será o caso de Lima Barreto, Menotti del Picchia (Helios), Mário de Andrade, Homero Prates,
Ronald de Carvalho, Leo Vaz, Medeiros e Albuquerque, Tasso da Silveira, Andrade Muricy dentre muitos outros.
93
Além dos acadêmicos fundadores, João Ribeiro e Osório Duque Estrada, Nestor Victor, José Oiticica e os mais
jovens Tristão de Athayde e Agripino Grieco mantinham colunas regulares de crítica literária em jornais.
94
Cf. MARTINS, W. História da inteligência brasileira. (1915-1933). Vol. VI, p. 61.
123
as tendências estéticas no interior dos meios artísticos, mas mobilizar culturalmente e
politicamente uma gama de pessoas, intelectuais ou não, que tomasse contato com suas
interpretações da realidade. Tal é o caso de Tristão de Athayde que ganhara o reconhecimento
como crítico literário e, em seguida, tornara-se verdadeiro ideólogo da causa católica no país.
A dinâmica do trabalho do crítico literário era, normalmente, o recebimento de obras
enviadas às redações por autores e editoras. A correspondência e a biblioteca de Tristão de
Athayde são repletas de pedidos de análises de obras com dedicatórias e elogios. Assim, o poeta
Afonso de Carvalho perguntava se o crítico recebera seus Poemas Parnasianos que, apesar de
entregues à redação do O Jornal, ainda não tinham aparecido nas páginas do periódico. O autor
enviava “outro exemplar, certo de que merecerei da vossa fidalguia uma sincera apreciação,
cujos termos, mesmo severos, rigorosos, agradarão meus sentimentos de autor, tanto confio no
vosso talento crítico e na vossa honestidade literária” e assinava como um “admirador
sincero”95. Já na biblioteca do crítico, encontramos um volume do Primeiro caderno do aluno
de poesia Oswald de Andrade, publicação feita em edição limitada em 300 exemplares, cujo
número 81 guarda a seguinte dedicatória: “Para o Tristão de Athayde fazer crítica errada e
eficiente. O Oswald cordial, 1927” 96. Tristão de Athayde dizia a respeito das dedicatórias:
E o caso das dedicatórias? Há todo um capítulo de psicologia da crítica, a escrever
sobre elas. As dedicatórias são preciosas para um crítico. Não há crítico, um pouco
treinado em seu ofício, que não possua a intuição das dedicatórias. Eu costumo, logo
que recebo um livro, correr à dedicatória. Por vaidade? Não creio, pois não há
dedicatórias sinceras, ou pelo menos inteiramente sinceras. [...] É apenas para fazer
uma classificação inicial do livro e do autor. Há livros cuja dedicatória condena logo.
Não é preciso abrir uma página. Conhece-se sem abrir, pelo olfato, pelo simples
contato. Outros, ao contrário, cuja dedicatória é uma sedução de mistério. Estão
quase sempre no sentido inverso da grandiloquência. Quanto mais bombásticos os
adjetivos mais insincero o autor, e mais nulo o livro. É uma regra que dificilmente
falha. Há autores secos, fechados, que temem a lisonja até se irritarem com os
críticos. [...] Há também os que graduam os adjetivos, à medida que decresce a
estima pelo crítico. Com a minha habitual impontualidade no comentário, sou vítima
desses esfriamentos frequentes. Certo autor, por exemplo, publicou três livros no
mesmo ano. Mandou o primeiro com “dois” adjetivos na dedicatória. Não tinha ainda
tido ocasião de ocupar-me com o volume, quando aparece o segundo. E este chegou
com “um” só adjetivo. Dois meses depois, publica o autor terceiro livro, e o nome
do crítico vinha solitário, sem ordenanças, secamente... As três dedicatórias eram a
descrição exata de todo um estado de alma!97
Assim, a relação entre autores e críticos era marcada por um tom afetivo que, por essa razão,
não tinha limites determinados acerca do que seria mais ou menos lícito em matéria de crítica
literária. Neste sentido, é sintomático que, apesar de uma missiva anterior, ao que tudo indica,
a correspondência de Tristão de Athayde com Jackson de Figueiredo voltada à discussão de
95
Carta de Afonso de Carvalho a Tristão de Athayde, 14-6-1920, acervo CAAL.
Cf. ANDRADE, Oswald. Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade. S Paulo: Tipografia da rua
Santo Antônio, 1927. Acervo CAAL.
97
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária. Gazeta, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 jun. 1928, p 4.
96
124
temas diversos tenha sido desencadeada pela apreciação negativa que o primeiro fizera acerca
da obra Cidade Encantada, de Xavier Marques, qualificando-a como um “livro muito fraco e
privado de todo relevo”98. Em resposta a Jackson de Figueiredo, o crítico considerava:
É escusado dizer que mantenho exclusivamente o que escrevi e isso por uma razão
muito simples – porque, graças ao temperamento pouco inflamável que tenho, só
costumo escrever o que penso [...] nem assim me retrato de coisa alguma escrita
nesse folhetim, que tanto o magoou. [...] Julga você, por acaso, que sacrifico a minha
tranquilidade, recuso quaisquer relações com literatos, fujo de toda vida intelectual
exterior ao meu gabinete, gasto as minhas curtas horas de ócio em ler muitas vez o
que não vale um olhar distraído, crio inimigos, repudio outros estudos e leituras mais
interessantes e instrutivas, tudo isso para fazer prazer a quem que quer seja [...]. Julga
você, por acaso, que dou a menor importância a pedidos ou recomendações, embora
vindos dos que mais caros me sejam? Pensa você que ao julgar o valor estético de
uma obra, indago do valor moral do seu autor? No dia em que o fizesse, ou no dia
em que fosse forçado a escrever contra a minha consciência, diria um adeus sem
saudade, talvez saudoso, quem sabe, a esse ingrato mas sedutor mister de crítico de
primeira mão, mas não de primeira água. [...] Não tenho, portanto, a lhe pedir
desculpas do pouco agrado que me deu a leitura de um livro que você teve a bondade,
a generosidade de me dar, confiante na minha sinceridade. [...] Pois bem. Nunca
tomei de um livro com qualquer ideia preconcebida.99
De um modo geral, pode-se considerar a figura do crítico como uma espécie de sismógrafo da
atividade da cultura intelectual. Ele mesmo, porém, poderia provocar algum tipo de abalo nesta
relação, não só por seus julgamentos, mas por suposto “desrespeito” a algum procedimento
tácito. Tal é o caso de Gilberto Amado que, em carta ao “Ilmo. Sr Tristão de Athayde”, dizia:
Não lhe mandei o folheto, e V.Sa., não obstante, o coloca na lista de livros recebidos
para da altura da sua autoridade, esmagar-me com a sua benevolência. Surpreendeme extraordinariamente esse procedimento. V.Sa. não tinha o direito de inscrever o
meu folheto entre os trabalhos submetidos voluntariamente à sua apreciação pelos
autores. A verdade é que V.Sa. deseja brigar comigo [...]100.
Vale lembrar que Amado assassinou a tiros, em 1915, no saguão do Jornal do Comércio, o poeta
Aníbal Teófilo. Uma ameaça do “cangaceiro fantasiado de intelectual”, conforme a pecha que
lhe dirigiu o finado Teófilo101, não era algo desprezível. Conforme certo Sebastião Arruda:
Os criticados não se conformam com a severidade dos críticos. [...] o amoroso Tristão
de Athayde, tendo uma ou outra vez censurado com vaselina alguns poetastros
deslavados, recebeu ameaças anônimas de espancamento, e daí por diante, tal qual
você [Osório Duque Estrada], usa Parabellum trocou a bengalinha almofadinha por
um respeitável galho de marmelo102.
Normalmente, porém, a crítica rendia, no máximo, apenas um ou outro debate aberto nas
páginas dos jornais. Portanto, nota-se que a atividade da crítica literária se constituía nos
interstícios entre o público e o privado. Assim, uma obra, como revela a revolta de Gilberto
Amado, poderia não “pertencer” ao debate público, a menos que seu autor “autorizasse”.
98
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 30 ago. 1920, p 2.
Cf. FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I. Rio de Janeiro: ABL, 1991, p. 34-35.
100
Carta de Gilberto Amado a Tristão de Athayde, 10-12-1922, acervo CAAL.
101
Cf. MARTINS, W. História da inteligência brasileira. (1915-1933). Vol. VI, p. 39.
102
ARRUDA, Sebastião. O Leque, O País, Rio de Janeiro, 28 jan. 1923, p. 3.
99
125
Constituir um espaço de reflexão crítica minimamente autônomo será o desafio de
Tristão de Athayde. De um modo geral, a crítica poderia assumir diversas características, desde
a descrição como uma espécie de resumo da obra enviada até à utilização desta como um mero
pretexto para se tratar de um tema geral que a contemplasse. Poderia ocupar algumas linhas do
jornal ou quase a página inteira. No caso de Tristão de Athayde, seus artigos se tornam cada vez
maiores, às vezes publicados em séries, com citações em língua estrangeira e notas de rodapé.
As teorizações lacunares
O combate à cordialidade e a defesa de uma “crítica imparcial” implicam na definição
sobre o que seria uma crítica justa ou, ao menos, legítima. Haveria uma “verdade” da crítica?
Tal questionamento foi feito em diferentes momentos, obtendo respostas diversas. Os anos 1980
parecem marcar um momento em que tais respostas tornam-se menos deterministas. Três obras
podem nos auxiliar no tema: A Teoria da literatura (1983), de Terry Eagleton; a Critique de la
critique (1984), de Tzvetan Todorov e a obra A criação literária, de Massaud Moisés (1983).
As três, segundo teorias distintas, refletem sobre a temática e chegam a conclusões
aproximadas. Pode-se adiantar que, após décadas de debates teóricos que procuraram afirmar a
especificidade do literário e de algum método positivo para sua análise (formalismo russo,
hermenêutica, nova crítica, estruturalismo, estética da recepção, pós-estruturalismo), os autores
reconhecem a impossibilidade de concretização de uma “ciência da literatura”.
Massaud Moisés defende que:
Intuito louvável e dignificante do labor crítico, diga-se de passagem, mas
nitidamente falacioso; por mais empenho que ponham alguns críticos na defesa
duma crítica científica e objetiva, ela sempre será insubordinável aos seus métodos,
ou estes conterão uma diminuição do significado múltiplo dos conteúdos estéticos103.
Tzvetan Todorov, por sua vez, confessa que:
Eu mesmo, descobrindo ao meu redor uma literatura a serviço da política, acreditava
que era preciso romper todo laço e preservar a literatura de todo contato com o que
não era ela. Mas a relação com os valores lhe é inerente: não apenas porque lhe é
impossível falar da existência sem referir a eles, mas porque o ato de escrita é um
ato de comunicação [...]104.
Tais perspectivas acadêmicas revelam que Barbey d’Aurevilly, em 1858, errara ao julgar que:
No folhetim, nós já o dissemos, a crítica não vai. [...] Além disso, nós temos a
anarquia. O exame literário se dividindo em várias penas, neste acantonamento
móvel da Variedade que deveria ser uma fortaleza, mas não passa de uma praça
pública, em que nós fazemos sobre o talento dos mesmos homens, tendências e até
sobre a importância das obras, as apreciações as mais contraditórias. Onde um
condena, o outro admira. É o sim e não perpétuos, mas o Abelardo é o jornal, no qual
se suprime a sua dignidade105.
103
MOISÉS, Massaud. A crítica literária. A criação literária. Prosa. São Paulo: Cultrix, 1983, p. 307.
TODOROV, Tzvetan. Critique de la critique. Paris: Éditions du Seuil, 1984, p.188-189.
105
D’AUREVILLY Apud. MELMOUX-MONTAUBIN, Marie. La critique littéraire. In: KALIFA, D et al. La
civilisation du journal, p. 945.
104
126
A universidade não livrara a literatura de suas apreciações contraditórias e nem lhe retirou o
caráter de “praça pública”. Tal teria sido, na segunda metade do século XIX, o objetivo da
formação de uma crítica universitária, de caráter mais ou menos positivista e científico,
simbolizada nas figuras de Hippolyte Taine, Brunetière e Gustave Lanson106. Terry Eagleton,
por seu turno, considera que “inexiste uma reação puramente ‘literária’: todas as reações, sem
exclusão das reações à forma literária, aos aspectos de uma obra que são por vezes ciosamente
reservadas ao ‘estético’, estão profundamente arraigadas no indivíduo social e histórico que
somos”107. A crise da crítica universitária propicia a lembrança do jornal. Costa Lima considera:
[...] sobre a polêmica, não só brasileira, entre crítica de jornal e crítica universitária,
observo de passagem como estas explicações nos mostram o caráter distorcido da
polêmica. Confunde-se a crítica de jornal com a respeitadora da linguagem comum,
ao passo que a universitária disfarçaria, sob uma arrogância empolada, seu blábláblá
de inutilidades. Esquece-se que, sob o resguardo da linguagem comum, na maioria
das vezes se respeitam o amadorismo, a preguiça mental e, notadamente, a
necessidade de vender o produto ao maior número possível de consumidores. Por
outro lado, os autores acadêmicos, simetricamente esquecem que as terminologias
especializadas só se impõem quando não há forma mais precisa de escrever. No caso
de países como Brasil, o problema se complica porque a inanidade quase geral das
universidades, que torna as publicações de seus membros tanto raras, quanto
normalmente incapazes de ultrapassar os clichês do último modismo108.
Imprecisa nas suas considerações teórico-metodológicas, consequentemente, a crítica literária
também irá sofrer uma indeterminação em torno de seu próprio objeto de estudo: a literatura:
Talvez a crítica literária e a teoria literária signifiquem apenas qualquer manifestação
[…] sobre um objeto chamado literatura. [...] Talvez seja o objeto, não o método, que
distingue e delimita o discurso. Enquanto esse objeto permanece relativamente
estável, podemos passar igualmente dos métodos biográfico ao semiótico ou ao
mitológico, e ainda saber onde estamos. Mas [...] a literatura não possui essa
estabilidade. A unidade do objeto é tão ilusória quanto a unidade do método. A
‘literatura’, conforma observou certa vez Roland Barthes, ‘é aquilo que é
ensinado’109.
Se, como afirmara o Tristão, os livros eram uma universidade, é necessário lembrar
que há “uma situação prática que exclui certas leituras e permite outras, conhecida como ‘o
professor’”110. Tal função professoral era recorrente na história da crítica em periódicos. Além
de professores convidados a escrever em colunas, estas dispunham de um espaço maior,
mantinham um espírito de seriedade e vontade didática assumida111. No caso do Brasil, a falta
106
Cf. LIMA, Luís Costa. Mimesis e modernidade. Formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980, p. 101.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 123.
108
LIMA, L C. Mimesis e modernidade, p. 101. Mais recentemente, as considerações não se modificaram muito:
“[...] crítica literária não tem um lugar preciso. Não o tem porquanto concretiza um juízo de reflexão exercido
sobre um tipo de objeto – seja a experiência estética da natureza, seja a da obra de arte – que não permite um juízo
determinante. [...] a partir de seu oscilante embasamento teórico, a crítica trabalha com valores e os valores nunca
deixam de ser afetados por alguma projeção ideológica. Os valores não são simplesmente ideológicos, mas o fato
de absorverem uma parcela desta ordem é mais um fator a impedir que a crítica tenha um lugar preciso” LIMA, L
C. Frestas. A teorização em um país periférico. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 445-446.
109
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução, p. 271.
110
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução, p. 121.
111
MELMOUX-MONTAUBIN, M. La critique littéraire. In: KALIFA, D et al. La civilisation du journal, p. 942.
107
127
de instituições universitárias dedicadas a tais objetos de investigação aumentou esse caráter
docente de determinadas colunas jornalísticas e afirmar-se como uma instância de legitimação
de leituras e interpretações da realidade tornou-se uma finalidade do crítico literário.
Frente a quase ausência de tais instituições de conhecimento112, os agentes da cultura
intelectual brasileira tinham de encontrar formas de manter contato com as produções dessas
instâncias. Em países que consolidaram instituição universitária, o domínio da crítica literária
permanecia sendo ocupado por diferentes figuras e manifestado em diversos lugares,
especialmente revistas especializadas ou de variedades. Daí o crítico literário da Nouvelle Revue
Française (NRF)113, Albert Thibaudet, falar da existência de três tipos de críticas: “a crítica
espontânea ou falada, a dos salões e dos jornais; a crítica profissional, a da cátedra ou dos
professores; enfim, a crítica dos escritores, a mais importante [...] pois é criadora”114. Na
indeterminação de tais esferas no cenário brasileiro, caberia ao crítico a acumulação de diversas
fontes que lhe pudessem assegurar aquele tom professoral. Em 1927, Tristão de Athayde recebia
vinte e cinco revistas nacionais e estrangeiras, além de ininterruptamente promover a formação
de sua biblioteca que contava com produções oriundas de diferentes países e em variadas
línguas115. Em sua estada no Rio de Janeiro no ano de 1926, o crítico literário e escritor francês
Paul Hazard elogiava a “extensão da cultura” dos brasileiros pelo fato de que a “horrenda
especialização que substitui o jogo livre da inteligência pelo mecanismo, ainda não impera
aqui”. O visitante fala de certo membro da ABL que seria professor, médico, conferencista de
talento, crítico judiciário, psicólogo, linguista, e que lembraria “um desses homens da
Renascença”. Também menciona a existência de um “industrial que passou o dia em seus
escritórios, mas cujos saberes são utilizados nas leituras de revistas inglesas, francesas,
espanholas, alemãs, pode-nos informar dos últimos movimentos do pensamento realizados em
Paris”116. É bem provável que o primeiro fosse Afrânio Peixoto e o segundo Tristão de Athayde.
A reflexão teórica desenvolvida por Tristão é marcada pela descontinuidade,
intermitência e, mesmo, contradição, uma vez que ela é acionada a partir dos livros trabalhados
e caracterizada por lacunas que fazem parte da própria dinâmica da crítica no jornal. Desde os
112
O próprio Tristão fala da existência, no Rio de Janeiro, de uma “incipiente” “Faculdade de Filosofia e Letras
com cursos de línguas clássicas, Filologia comparada, História das Religiões, Estética, etc., e todos com uma
frequência média de 20 a 30 alunos”. Ele, porém, não dá detalha a “empresa incipiente, mas de êxito assegurado
e proveito evidente [...]”. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 nov. 1919, p. 6.
113
A NRF foi uma das mais importantes revistas literárias das primeiras décadas do século XX na França. Sua
editora, a prestigiada Gallimard, se constituiu como lugar de consagração dos autores que aí estampavam seu
nome. Lançada em 1908 por André Gide e advogando um impreciso “classicismo moderno”, a NRF será palco de
debates artísticos, culturais e políticos que, não raro, terão ressonância da cultura intelectual brasileira. Sobre a
NRF, ver: DAGAN, Yaël. La nouvelle Revue française. Entre guerre et paix 1914-1925. Paris: Tallandier, 2008.
114
Cf. COMPAGNON, Antoine. Os Antimodernos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 276.
115
Cf. FIGUEIREDO, J d; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I. Rio de Janeiro: ABL, 1991, p. 206.
116
HAZARD, Paul. Impressões de um viajante, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 set. 1926, p. 1.
128
primeiros escritos, o crítico caracterizava seu tempo como uma época de “transição”:
Não será temerário prever que a época literária de hoje ficará na história como a de
um grande balanço da humanidade. O ciclo que veio da Revolução Francesa e da era
napoleônica encerrou-se com a guerra de 1914 e a paz de Versalhes, vindo
provavelmente a figurar o ano corrente [1920] como sua data final117.
Note-se que a “época literária” possui marcos políticos e tal constatação sobre a transitoriedade
abarcaria as mais distintas esferas. Este sentimento de se viver no fim de uma época e no
começo de outra propunha a revisão das “verdades” legadas pelo passado.
Acerca da crítica literária, especificamente, o crítico esboçara tais modificações a
partir da obra de Ronald de Carvalho, Pequena história da literatura brasileira. Ele via com
bons olhos uma empreitada desta natureza ser levada a cabo por um poeta. Afinal:
É certo que as teorias do criticismo moderno tem feito, cada vez mais, desviarem-se
estes estudos para o terreno da sociologia, considerando a obra de arte no mesmo
plano de um fenômeno jurídico, uma teoria filosófica, um sistema de governo, um
descobrimento científico, uma doutrina moral. Não seria ocioso um esforço, com
tendência a libertar ou aliviar a arte e a crítica, de um extremo empirismo científico,
mais exato que verdadeiro118.
A obra do poeta sucederia, especialmente, os trabalhos de Sílvio Romero e José Veríssimo119,
de modo que “das três atitudes do homem consciente perante a beleza, já em parte indicadas
por Lessing, adotou Sílvio Romero a do filósofo, José Veríssimo, a do crítico, e o Sr Ronald de
Carvalho, a do esteta”. Tais reflexões iam ao encontro de concepções já desenvolvidas por ele:
Um crítico – esse não pode deixar de ser claro, cristalino, transparente. Todo crítico
há de ser um dialético e um artista. Como artista, sente, vibra, comunica a sua
emoção, e não deve ser obscuro. Como senhor da dialética, que Cícero considerava
- omnium artium maximam lucem – a mais viva luz de todas as artes -, o crítico
esclarece, distingue, interpreta, iluminando as sombras e velando a luz crua.120
Ao comentar os trabalhos do português Fidelino de Figueiredo, especialmente a obra
A crítica literária como ciência, Tristão elogia a reflexão metodológica do autor, mas era
reticente acerca de tal cientificidade. Esta seria caracterizada pela capacidade de delimitar um
objeto próprio, um método específico e leis daí decorrentes. Estas últimas estariam ausentes do
horizonte crítico-literário, devendo-se, então, focar nos aspectos metodológicos e, mesmo,
psicológicos do crítico. A crítica seria uma espécie de técnica, de disposição para a leitura
profissional que exigiria não “apenas paciência ou erudição, mas um acervo de ideias precisas
sobre arte e história literárias, a investigação das fontes de estudo nacionais e estrangeiras para
117
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 out. 1920, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 3 nov. 1919, p. 7.
119
Tristão de Athayde buscava ter uma abordagem, por assim dizer, agregadora da tradição crítica brasileira,
evitando juízos severos acerca de nomes do passado. Daí ele comentar: “Fizeram os srs Coelho Neto e João Ribeiro
obra didática, e Sotero dos Reis, Wolf, Fernandes Pinheiro, ou Melo Morais, ensaios até certo ponto despiciendos.
Não podem, entretanto, ser deslembrados os admiráveis trabalhos de Varnhagen e os apreciáveis de alguns mais,
como Joaquim Norberto ou Vale Cabral”. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 3 nov.
1919, p. 7.
120
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 3 nov. 1919, p. 7.
118
129
a obra e para a vida dos autores e finalmente a adoção de uma ordem absoluta de trabalho”121.
A crítica exerceria funções variadas, pois ela seria quem:
[...] descobre e revela os valores literários; divulga a beleza, nem sempre facilmente
acessível, mormente em obras de estética avançada ou reacionária; classifica ou pelo
menos apresenta as razões de classificação de autores e obras; fixa e orienta as
correntes literárias; estuda e explica as relações das obras e dos autores consigo
mesmos, e com seu tempo, com seus contemporâneos, com seu país, sem cogitar de
critérios científicos, inatacáveis122.
Se as definições da crítica em seus aspectos positivos eram algo impreciso, os juízos acerca do
que ela não deveria ser eram mais fáceis de serem afirmados. Assim, quando o padre Leonardo
Mascelo, na obra A estética do silêncio, tratava da estética como uma ciência, Tristão de
Athayde considerava que:
São sempre perigosas e inúteis as definições. Nesta, que se não recomenda pela
concisão e clareza, divirjo logo da afirmação do autor em considerar a Estética como
uma ciência. Não creio que a Estética possa ir além da pesquisa e sistematização de
certas relações nem sempre necessárias entre os fenômenos artísticos123.
Retomando posições de Henri Bergson e Arthur Schopenhauer, o crítico concluía que
“em arte, nunca deixa o mais geral de ter qualquer coisa de individual, o que invencivelmente
repugna à ciência”. Além disso, a Estética, ao contrário do que dizia o padre, não se restringiria
às faculdades sensíveis e perceptivas, mas teria que ver também com “sensações independentes
de qualquer manifestação sensível”, tal teria sido a crítica de Hegel a Baumgartner (criador do
conceito de “estética”) e a razão da formulação de uma “filosofia da arte” hegeliana. Por fim,
criticava a definição da obra de arte caracterizada apenas pelo belo. Lembrava o crítico, as
definições do teórico alemão Carl von Lemcke (1831-1913) que veria a arte como:
[...] a manifestação fenomênica que pronta e claramente exprime a essência. O
caráter na obra de arte é sua força de impressão. Buscamos em tudo o característico.
(Na raça, no estilo, etc.) Até o baixo, o feio, o falso, e o próprio mal, ao menos
considerado no fenômeno, hão de mostrar-se característicos; só assim os respeitamos
esteticamente124.
Tratava-se de se considerar que a “verdadeira beleza tem sempre caráter, mas este nem sempre
é belo”. Além disso, o crítico frente ao debate milenar acerca do tema via ser “impossível ou
ousado definir exatamente a beleza, que é uma simples relação e não atributo”. Tal reflexão
serviria, ainda, para impedir que os juízos morais e religiosos orientassem as afirmações crítica.
A crítica expressionista
Em maio de 1922, Tristão de Athayde lançara um artigo sob o título de “crítica
expressionista” a fim de responder às considerações do acadêmico Alberto de Faria (que, aliás,
era seu sogro) que afirmavam o didatismo de sua crítica. Isso poderia significar três coisas: a
121
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 out. 1920, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 fev. 1920, p. 6.
123
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 nov. 1919, p. 6.
124
LEMCKE Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 nov. 1919, p. 6.
122
130
comunicação das ideias estéticas do crítico provocadas pelas obras estudadas ou a imposição
de normas e critérios pré-concebidos à atividade criadora dos artistas ou, ainda, o exame das
obras tendo como finalidade apenas o ensino. O primeiro caso seria inerente à crítica:
Como bem dizia Kant, defendendo uma de suas ideias prediletas – a universalidade
do juízo estético, - “numa experiência estética, nós sempre acreditamos até certo
ponto, estar com a razão, e por isso mesmo, ao contrário do que se dá com as nossas
experiências simplesmente gustativas, atribuímos àquela valor objetivo, procurando
comunica-la aos outros, quer por uma obra de arte, quer, mais indiretamente, pela
crítica”125.
Apesar da impossibilidade de tal “universalização”126, a crítica teria que se valer como
“comunicação de pensamento”, do contrário, cairia na “bibliografia meramente analítica ou no
pseudo-cientismo impassível e pedante”:
Não pode o crítico limitar-se a apontar a belezas ou os defeitos das obras, devendo
sempre mostrar a razão do seu juízo, os motivos de sua exaltação ou de sua frieza. E
como é todo o espírito do crítico, em sua síntese poderosa, e não esta ou aquela
faculdade, apenas, que se entrega à compreensão do espírito da obra – não é possível
excluir da atividade crítica a dialética demonstrativa, na qual se inclui naturalmente
o seu pensamento estético, pois a crítica é atividade filosófica127.
Sistematizando na tradição nacional os momentos decisivos da crítica, fala sobre a sua geração:
Tudo indica que à nossa geração cabe imprimir à crítica de arte novo espírito,
sistematizando ideias ou aspirações esparsas. Tivemos, com o romantismo, uma
atividade puramente ocasional e empírica, em que se cultivava especialmente a
apologia. Pode-se dizer que a crítica, entre nós, nasceu em meados do século, quando
Sílvio Romero iniciou a campanha antirromântica. Começou desde então a era de
Taine, ao mesmo tempo que crescera o louvável esforço de erudição, reunindo
materiais até esse momento esparsos e desdenhados. Estudou-se melhor a nossa
literatura, encarando-a, sobretudo, pelo prisma social e nacional. Procurou-se aplicar
a esses estudos de história e de crítica literária, os métodos indicados pelo
naturalismo crítico, então em voga na Europa. Foi incontestavelmente um passo de
incalculável importância.
A reação do impressionismo contra o “naturalismo crítico” continuaria pelo expressionismo:
Devemos tirar as obras de beleza dos arquivos sem ar e das salas de aula. Devemos
trazê-las para a luz do dia, isto é, para a chama de nossa admiração, para a argúcia
de nossa simpatia, para a prova do nosso gosto. Devemos reagir contra o didatismo
que impõe leis à arte, e nela buscar a sua essência, isto é, a – expressão. Para isso
deve o crítico ser, a um tempo, historiador e esteta, sabendo prender a obra de arte à
seiva profunda que de longe a alimenta, - mas nela descobrindo, sobretudo, a
expressão de uma alma comovida e a perpetuação de um momento de beleza. É essa
crítica expressionista, que venceu o cientismo seco e o dúbio impressionismo, - é a
reação por ela provocada contra o estreito didatismo, que venho procurando pregar
e realizar.
Tristão de Athayde pode sistematizar suas concepções acerca da crítica literária na obra
Afonso Arinos lançada em meados de 1922 pela editora Anuário do Brasil. O capítulo de
abertura intitulado “A crítica hoje” vinha com uma epígrafe de Benedetto Croce citada em
125
ATHAYDE, Tristão de. Crítica Expressionista, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 mai. 1922, p 1.
Acerca do tema, o teórico Luiz Costa Lima considera que a “pretensão de universalismo, reafirmada pelo
próprio Kant, dos juízos sobre o belo e o sublime, hoje já não passa de uma pretensão culturalmente provinciana”.
LIMA, Luís Costa. Frestas, p. 444.
127
ATHAYDE, Tristão de. Crítica Expressionista, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 mai. 1922, p. 1.
126
131
italiano, “Genio e gusto sono sostanzialmente identici”. O crítico não deveria mais ser visto
como o frio cirurgião apartado da atividade artística. Isso seria um erro de generalização devido
à existência de “críticos sem alma, cuja tarefa é medir friamente as obras pelo estalão comum,
ou dissecá-las sem piedade, julga toda gente ser a própria crítica que estiola a alma, apagando
sem demora a pequena chama que ainda ilumine o coração dos que a ela se dedicam”128.
A “crítica de hoje” lembrava que “passou a era dos retóricos e gramáticos, em crítica,
como passou a dos simples naturalistas literários”. Era necessário reconhecer que:
A crítica é atividade intelectual e não afetiva, filosófica e não apenas psicológica,
objetiva em seus fins e não puramente subjetiva. Nada se faz, porém, em atividade
alguma, nada de penetrante e realmente verdadeiro se conseguirá, especialmente em
crítica literária, sem esse calor da emoção que conduz a vontade e desperta a
inteligência129.
Sugere-se a compreensão como horizonte crítico. Esta implicaria uma “renúncia transitória ao
racionalismo”, de forma que “para se operar a transfusão do espírito da obra no espírito do
crítico, indispensável para a compreensão daquela, é mister que seja o sentimento do crítico a
observar a obra, antes que a inteligência a análise”. Retoma-se a figura do leitor profissional:
A operação capital da crítica é a leitura, não a leitura que comenta e anota, mas a
leitura que deleita, a leitura receptiva, que se faz por prazer, par sentir o espírito da
obra e a sua beleza interior. Sem isso, sem essa submissão prévia do crítico à obra,
não passará a crítica de fria consideração aparentemente científica, mas sem
penetração nem verdade.
A operação de leitura do crítico, portanto, constituiria um encontro:
A alma do crítico deve procurar a alma do autor. Através da obra se o não conhece;
fora dela, também, em caso contrário, deve o crítico tentar-se fundir-se, por alguns
momentos ao menos, com o espírito daquele cuja obra pretenda exprimir e analisar,
colocando-se na situação mental em que ele se encontrara para criar. Sai desse
contato de alma a alma uma centelha que abrasa e ilumina, que dá seiva e calor à
inteligência, para a obra que pretende elevar130.
Tal fusão de horizontes, numa espécie de atitude hermenêutica131, era a crítica expressionista:
Dessa crítica moderna, que poderíamos chamar de “expressionista”, se importasse a
denominação – cujo conceito repousa, como acabamos de delinear, numa penetração
mais profunda do espírito das obras, numa fusão preliminar da alma do crítico com
a do autor, na transformação da análise objetiva em síntese expressiva, na
individuação do juízo estético -, nasce da eliminação dos preconceitos nas críticas
parciais anteriores.
Neste sentido, tal empreendimento superaria as metodologias passadas:
Nem a crítica didática, que sentencia como juiz, com critérios pseudocientíficos; nem
128
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, Alceu Amoroso Estudos literários. Rio de Janeiro: Cia
Aguilar Editora, 1966, p. 535.
129
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 535-536.
130
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 536.
131
Em termos gerais, poderíamos assinalar que o “método filológico postula, com efeito, que o círculo
hermenêutico pode preencher a distância histórica entre o presente (o intérprete) e o passado (o texto), corrigir,
pela confrontação entre as partes, um ato inicial de empatia divinatória com o todo, e chegar assim à reconstrução
histórica do passado”. E, no caso das teorizações de Dilthey, “opondo à explicação, que só pode ser atingida pelo
método científico aplicado aos fenômenos da natureza, a compreensão, que seria o fim mais modesto da
hermenêutica da experiência humana”. COMPAGNON, A. O autor. O Demônio da teoria, p. 61-62.
132
a crítica acadêmica, que submete as obras a padrões imutáveis e a regras inflexíveis;
nem a crítica histórica, que apenas reúne materiais, sem os aproveitar, ou pior,
confundindo-os com o próprio juízo crítico; nem a crítica moralista, que tudo
investiga com a lente estreita de um alvoroçado e deslocado pudor; nem a crítica
verbalista, para quem os livros são meros campos de operações gramaticais; nem a
crítica pedagógica, que apenas procurar descobrir o ensinamento que contém as
obras de arte; nem a crítica sociológica, que estuda a determinação mas esquece a
criação das obras, colocando, portanto, o acessório acima do principal; nem a crítica
psicológica, a quem só interessa o autor, e desdenha a obra; nem o lirismo crítico,
que geralmente apenas nos revela a alma do crítico, quando o que nos interessa é a
obra e o seu autor; e muito menos o diletantismo, que elogia ou condena
arbitrariamente, ao sabor de preferências ou interesses. Nada disso como critério
sistemático, mas um pouco de quase tudo em síntese, pois alguns desses critérios
parciais, como o histórico, o sociológico, o psicológico e o lírico contém muita
verdade, perdida na rigidez do convencionalismo132.
Tratava-se de enunciar o “espírito da crítica contemporânea”. Daí epígrafe de Croce: identificar,
ao menos incialmente, o espírito do crítico com o do artista. A crítica literária teria, assim, que
se desvincular ou ao menos não se confundir com as formas da história literária:
Devemos compreender que o Zeit, Volk, Umgebung de Hegel, que Taine aplicou e
generalizou, com a genialidade de costume, na fórmula Race, Milieu, Moment, não
pode corresponder inteiramente à necessidade da verdadeira crítica de arte, dandonos apenas a história da civilização, a kulturgeschichte133.
A crítica deveria buscar a sua especificidade:
As considerações históricas, que explicam as origens e indicam a classificação da
obra, nada mais fazem do que reunir elementos para a verdadeira crítica. Pois há uma
coisa que a crítica puramente histórica ou sociológica não pode penetrar nem
exprimir: o espírito da obra, essa personalidade íntima e característica que nela
existe, independente de outras considerações que não sejam a sua própria força de
expressão. [...] sem negar a determinação, mas dando à criação, ao elemento
inventivo, a importância preeminente que lhe cabe134.
O livro Afonso Arinos não deixou de causar polêmicas devido ao conceito de “crítica
expressionista”, como costuma acontecer com este tipo introdução135. O lançamento da obra
significou um importante índice para se perceber o alcance, reconhecimento e lugar ocupado
por Tristão de Athayde, que fazia agora o papel de autor, no interior da cultura intelectual
brasileira. Assim, o crítico João Pinto da Silva lhe escrevia de Porto Alegre agradecendo o envio
da obra e lhe informava: “tenho acompanhado sempre com carinhoso interesse a fulgurante
atividade mental do ilustre confrade. Para mim, Tristão de Athayde é atualmente o mais
admirável dos nossos críticos”136. João Ribeiro lhe enviou duas cartas. A primeira considerava
132
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 537.
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, P. 537-538.
134
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 613.
135
Na segunda edição de Formação... Cândido comenta que: “(...) o que parece haver interessado realmente aos
críticos e noticiaristas foi a ‘Introdução’, pois quase apenas ela foi comentada, favorável ou desfavoravelmente.
Esse interesse pelo método talvez seja um sintoma de estarmos, no Brasil, preferindo falar sobre a maneira de fazer
crítica, ou traçar panoramas esquemáticos, a fazer efetivamente crítica, revelando a intimidade das obras e as
circunstâncias que as rodeiam”. CÂNDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Vol I, p. 15.
136
Carta de João Pinto da Silva a Tristão de Athayde, 10-09-1922, acervo CAAL.
133
133
a obra como “admirável” monografia de “senso crítico”137. Na segunda, já após algumas
polêmicas, João Ribeiro dizia ser “um dos mais contentes de seus admiradores” e que “não foi
preciso o tempo para que eu descobrisse a solidez e a autoridade das suas opiniões. Desde que
comecei a ler os seus escritos, percebi a alta valia que do seu espírito novo e reformador das
nossas antiquadas ideias em matéria de crítica”138.
Nos textos anônimos voltados mais à divulgação do livro falava-se no crítico Tristão
de Athayde como um “já consagrado escritor patrício”139. O crítico Homero Prates considerava
Tristão de Athayde como “um dos mais ilustres e, incontestavelmente, o mais popular dos
nossos jovens críticos literários” 140 e, segundo o crítico de O País:
Se outros títulos – crônicas e artigos esparsos – não tivesse o sr Tristão de Athayde,
que o colocassem à vanguarda da moderna crítica literária entre nós, bastaria este
ensaio, meditado e brilhante, para o consagrar como um dos nossos mestres desse
gênero literário no Brasil.
Medeiros e Albuquerque, num inquérito sobre crítica literária, avaliava a crítica expressionista:
Isso é apenas uma palavra. Ele procura, segundo disse, o que há de superiormente
humano, quase divino, nas obras de arte. A frase é de muito boa retórica, mas
traduzida em realidade não tem significação real. Posto em verso seria admirável.
Essa extração do “divino” é uma operação de química literária de alta fantasia.
Criticar é medir o que há de bom e de mau em uma obra de arte. Isso se pode disfarçar
mais ou menos, mas no fundo a crítica só pode isso. O crítico tem de nos dizer onde
estão as belezas da obra criticada e de que valor são elas. [...] O que Tristão de
Athayde chama “Expressionismo” é magnífico “impressionismo”, um
impressionismo que procura ser solene e doutoral, um impressionismo que a si
mesmo se ilude e que se julga estar fazendo extrações do que é divino em cada autor,
quando está apenas chamando divina a sua orientação. O que há de bom é que o
impressionismo de Tristão de Athayde é quase sempre excelente141.
Múcio Leão faz coro a tais ideias e joga com o pseudônimo do crítico: “Se o sr Tristão
de Athayde quisesse escrever acerca do livro que nos acaba de dar o sr Alceu de Amoroso Lima,
nós havíamos de ter um sólido ensaio de crítica expressionista” 142. Além disso, comenta Leão:
Agora, com a crítica da expressão, temos que nos afastar da crítica da impressão. E
se uma buscava as nossas emoções e os nossos sentimentos através das emoções e
dos sentimentos encontrados nos livros – não será lógico que a outra procura em nós
mesmos os sentimentos e as emoções que deveriam se conter nos livros? A
confissão? É que a crítica expressionista é a mesma crítica impressionista, apenas
olhada pelo lado oposto.
Numa das raras vezes que assinou como Alceu Amoroso Lima na década de 1920, o crítico
respondeu a este artigo. Recusava o significado comum atribuído à “crítica” lembrado por
Medeiros e Albuquerque e por Múcio Leão: o papel de julgar143. Não era esta sua finalidade:
137
Carta de João Ribeiro a Tristão de Athayde, 20-07-1922, acervo CAAL.
Carta de João Ribeiro a Tristão de Athayde, 17-09-1922, acervo CAAL.
139
“Afonso Arinos”, O Paiz, Rio de Janeiro, 11 ago. 1922, p 4.
140
PRATES, Homero. Notas literárias, O Paiz, Rio de Janeiro, 6 set. 1922, p 3.
141
ALBUQUERQUE, Medeiros e. Apud. FACÓ, Américo. O que pensam os que pensam, A Noite, Rio de Janeiro,
12 de jun. 1922, p 1.
142
LEÃO, Múcio. Tristão de Athayde, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 17 set. 1922, p 2.
143
Tal reavaliação do papel judicativo é recorrente na crítica em geral. Considerações como as de Lucien Febvre
138
134
A função do crítico, a meu ver, ao menos a função essencial que lhe compete, - não
é de forma alguma julgar. A função de juiz supõe uma diversidade de situações e de
pontos de vista da parte do crítico e do autor, quando o ponto central de todas as
minhas ideias sobre crítica literária está justamente na fusão prévia do espírito da
crítica com o espírito da obra, condição indispensável para a compreensão desta. E
sem compreensão profunda não há crítica, não há crítica sem essa simpatia, esse
calor da emoção, que procurei pôr em relevo no prefácio de Afonso Arinos144.
Retoma a correspondência entre o escritor Gustave Flaubert e a romancista George Sand, em
que o autor de Madame Bovary defendia a existência de uma “poética insciente”145 em cada
obra de arte e que caberia ao crítico compreendê-la e comunicá-la. Tristão de Athayde avalia:
A crítica expressionista, ou melhor, a crítica tout-court, no sentido mais elevado da
expressão, é aquela que não se limita ao egocentrismo dos que só pensam em si
mesmos e esquecem os outros, ou dos que excluem deliberadamente autor e crítico,
para encarar artificialmente as obras por meio de análises eruditas e mortais: essa
crítica verdadeira [...] é a que se submete ao autor, à expressão de arte perante a qual
se encontra e que procura recriar. Agora, deve essa crítica excluir inteiramente as
ideias de sua atividade? Não o creio e sei que o sr é da minha opinião [...] o que
procuro é conservar à obra de arte estudada o caráter de vitalidade com que foi
criada146.
Ao fim deste artigo de resposta, o crítico explicitava como via sua posição em meio aos seus
pares: “Se nos lugares em que escreveu – Tristão de Athayde – tivesse escrito – Osório Duque
Estrada – eu é que teria achado muito justa a sua crítica”.
O debate continuara em cartas e artigos de jornal, como era de praxe na cultura
intelectual brasileira. Medeiros e Albuquerque escrevera a Tristão alertando-o que a palavra
“expressionismo” estava “sendo usada na Europa com uma acepção inteiramente diversa de
que lhe dá. Os expressionistas são em pintura os cubistas”147. Medeiros cita um livro alemão
traduzido para o inglês, do psicólogo e psicanalista Oskar Pfister, intitulado Expressionism in
art – its psychological and biological basis. Segundo o autor suíço, o expressionismo era
feitas em 1938 sob o título “Pra que serve a crítica?” podem ser elucidativas: “Julgar, eu detesto essa palavra: o
historiador não é um juiz de instrução; ele é um intérprete. Um homem que, tendo compreendido alguma coisa,
faz outro compreender também. Não se pode compreender sem criticar, de fato. Mas a crítica não é feita para julgar
os homens, ou mesmo os livros [...] ela é feita para tornar mais inteligente aquele que lê”. FEBVRE Apud.
MÜLLER, B. Lucien Febvre, lecteur et critique, p. 16. No caso da arte e da literatura, especificamente, a crítica
poderia ser um meio de “plenificação da obra”, de modo que, “o julgamento da obra, na aparência, a praça forte
da apreciação crítica em declará-la excelente, boa, razoável ou má, é o aspecto mais perecível da crítica, pois a
possível contribuição do crítico quanto a seu objeto antes está na armação argumentativa que desenvolva”. LIMA,
Luís Costa. Frestas, p. 430.
144
LIMA, Alceu Amoroso. A propósito da crítica, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 21 set. 1922, p. 2.
145
As passagens citadas em francês na obra Afonso Arinos são as seguintes: “Você me fala da crítica na sua última
carta, me dizendo que ela desaparecerá em breve. Eu acredito, pelo contrário, que ela está, no máximo, em sua
aurora. [...] No tempo do La Harpe, era-se gramático; no tempo de Sainte-Beuve e de Taine, era-se historiador.
Quando será artista, nada menos que artista, mas apenas artista? Onde você já conheceu uma crítica que se pergunta
pela obra ‘em si’, de uma maneira intensa? Analisa-se finamente o meio do qual ela é produto e as causas que a
conduziram; mas a poética ‘insciente’? De onde ela vem? Sua composição, seu estilo? O ponto de vista do autor?
Jamais. Seria preciso, para uma crítica desta, uma grande imaginação e uma grande bondade, eu quero dizer uma
faculdade de entusiasmo sempre pronta, e ainda de gosto, qualidade rara, mesmo dentre os melhores [...]”.
FLAUBERT Apud. ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 538.
146
LIMA, Alceu Amoroso. A propósito da crítica, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 21 set. 1922, p. 2.
147
Carta de Medeiros e Albuquerque a Tristão de Athayde, 21/11/1922, acervo CAAL.
135
qualquer representação gráfica que incorresse numa apresentação subjetiva caracterizada por
uma total ou quase total distorção da natureza até chegar à incognoscibilidade ou à supressão
de toda realidade externa. Albuquerque, então, alerta que a crítica expressionista poderia se
tornar “cubista”, numa “total distorção” de sua intenção.
A carta de foi enviada na mesma data em que saíra o artigo de Tristão de Athayde
“Críticas à crítica”, no qual ele reiterava, pela última vez, os argumentos já debatidos. A fim de
reafirmar seus pontos de vista, o crítico considerava que:
O expressionismo crítico não será mais do que a disciplina do impressionismo. Não
indicam esses termos diferença alguma de essência, senão de método. E no fundo
não se distinguem, pois a crítica é uma só, “esforço criador como arte e como esta
expressão”. [...] A crítica será o que for o crítico, falível como ele e como ele
dependente do carinho, do prazer e da simpatia com que a espiritualizar a sombra
fugaz e luminosa de Ariel. A crítica é apenas a passagem da arte por outro espírito
criador e, portanto, “uma nova criação”148.
Ao se esforçar por caracterizar a crítica segundo parâmetros que lhe pareciam mais
condizentes com as questões de seu tempo e a “tarefa de sua geração”, Tristão de Athayde
procurou no termo “expressionismo” uma maneira de superar tanto a crítica universitária e
“científica”, quanto a impressionista. E no centro de toda a crítica ressaltava o que lhe era
determinante: o ato de leitura. “Leitor profissional” era a definição do crítico. Profissão que
deveria enfrentar tanto as ilusões de um cientificismo objetivista e insuficiente, quanto a
arrogância de um impressionismo orgulhoso de sua arbitrariedade. Fazer do expressionismo
uma sucessão do impressionismo não era algo inusitado.
Brevemente, convém precisar que o termo expressionismo149 teve circulação em
diferentes línguas europeias desde o início do século XX. Por ocasião de uma exposição de
pintores franceses (Braque, Derain, Friesz, Herbin, Marie Laurencin e Vlaminck, dentre outros)
na galeria berlinense “Der Sturm”, em 1912, o termo foi utilizado como meio de agregá-los.
Foi preciso décadas para que a historiografia da arte conseguisse determinar como
expressionistas apenas o grupo (Erich Heckel, Karl Schmidt-Rottluff, Fritz Bleyl, Ernst Ludwig
Kirchner, Max Pechstein, Emil Nolde e outros) formado em Dresden em 1905, que se intitulava
148
ATHAYDE, Tristão de. Críticas à crítica, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 nov. 1922, p. 1.
Segundo as considerações feitas em 1949 pelo o crítico de arte francês Maurice Raynal: “O novo termo
expressionismo veio da palavra ‘expressão’ tomada em seu sentido clássico de ‘representação das paixões’. [...]
não é de se surpreender que o termo ‘Expressionismus’ tenha sido proposto pela crítica alemã, há cinquenta anos,
para qualificar em geral toda pintura, mas particularmente aquela na qual a representação dos sentimentos humanos
toma a dianteira da resolução dos problemas puramente plásticos. É um retorno a uma forma sentimental do
Romantismo”. Cf. “Expressionnisme”, Le Grand Robert de la langue française – Version électronique. Paris : Le
Robert / SEJER, 2005. Para além disso, porém, no contexto das artes plásticas, as reflexões do pintor francês Henri
Matisse feitas em 1908, por exemplo, tomavam a expressão como meio de superar a mera “sensação” do
impressionismo em favor de um maior apelo à observação. Dessa forma, a “expressão” aí reivindicaria antes uma
maior “objetividade” representada pelas necessidades impostas por critérios puramente plásticos e técnicos, do
que a subjetividade das sensações emotivas do artista. Sobre esse verdadeiro imbróglio da história da arte moderna
ver: GORDON, Donald E. On the origin of the word ‘Expressionism’, Journal of the Warburg and Courtauld
Institutes, Vol. 29, pp. 368-385, 1966.
149
136
“Die Brücke” (A ponte), e seus desdobramentos150.
Os teóricos europeus do expressionismo dos anos 1910 e 1920 não afirmaram uma
definição precisa. O poeta e crítico triestino Theodor Däubler, em 1916, num ensaio intitulado
“Expressionnisme”, refletia sobre a estética cubista e seus principais artífices parisienses,
considerando, em seguida, o pintor francês Robert Delaunay como “o primeiro expressionista
consciente”151. As enumerações de artistas de diferentes orientações seria o que mais
comprometeria uma definição rigorosa. Assim, a revista Die Aktion ao classificar, em 1918, os
escritores de língua alemã segundo diferentes escolas: realista, ocultista, neorromântica,
impressionista, citava apenas dois escritores sob o índice expressionista, deixando de fora
nomes que viriam a ser tidos como ícones desta tendência, como Gottfried Benn definido pela
revista como humanista152. Já o importante teórico do expressionismo, Kasimir Edschmid, dizia
que “existiu o expressionismo em todas as épocas. Nenhum lugar não o teve”153.
Em 1914, porém, o poeta francês Yvan Goll considerava que:
O expressionismo não é uma nova religião que foi fundada. É uma coloração da alma
da alma que (para os técnicos da literatura) não tinha ainda sido analisada. [...] O
expressionismo está no ar de nossa época, da mesma forma como romantismo e o
impressionismo eram a única possibilidade de das gerações anteriores154.
O expressionismo parecia se definir mais pelo que ele negava, de modo que “antes de ser
esteticamente por alguma coisa, o expressionismo é contra”. Contra o impressionismo e o
naturalismo155. Uma das obras mais influentes no período acerca do tema era o livro do
austríaco Hermann Bahr intitulado Expressionismus (1920). O autor falava que a “pesquisa
expressionista” seria uma empresa sem precedentes. Bahr elencava diferentes tendências:
cubismo, futurismo, Blaue Reiter, Die Brücke. Todas seriam expressionismo, pois, apesar de as
escolas serem até hostis entre si, “o ponto comum é que todas se desviam do impressionismo,
todas se voltam mesmo contra ele (é por isso que as qualifico todas de expressionistas, mesmo
se isto seja apenas o nome de uma única seita e que as outras irão protestar)”156.
Estas reflexões acerca do expressionismo nas artes plásticas situam-nos de forma mais
consistente nos horizontes sensíveis que marcavam os impasses em torno da produção
intelectual naquela época. Sendo ou não o expressionismo algo que estaria “no ar da época”,
como queria o poeta, o fato é que o crítico Tristão de Athayde pretendeu dar uma resposta a um
impasse que vinha ocorrendo nas reflexões sobre literatura desde os fins do século XIX, quando
Cf. FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle, p. 19.
DÄUBLER Apud. FAUCHEREAU, Serge. Avant-gardes du XXe siècle, p. 19. .
152
Cf. FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle, p. 19.
153
EDSCHMID Apud. FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle, p. 21. .
154
GOLL Apud. FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle, p. 53.
155
FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle. Paris: Flammarion, 2010, p. 53.
156
BAHR, Hermann. Expressionismus. In: HARRISON, C. et al. Art en théorie. 1900-1990, p. 152.
150
151
137
a expressão “impressionismo” era reiteradamente utilizada157. A “crítica expressionista” não
era outra coisa que a tentativa de superar tal impasse de uma maneira original. Apesar de sua
inspiração e, mesmo, orientação teórica maior (Tristão o considerava “a maior figura da crítica
contemporânea”158), não se deve, porém, fazer do “expressionismo crítico” mera aplicação das
ideias do filósofo italiano Benedetto Croce. Se este é o precursor, ou o principal teórico
moderno, das reflexões acerca da arte como “intuição” e “expressão”, ele permaneceu na
perspectiva de uma filosofia da estética, entendendo esta como “ciência da arte” que, por sua
vez, faria parte de um “sistema” filosófico que abrangia a Estética, a Lógica e a Filosofia da
Prática, compondo o horizonte da “Filosofia como ciência do espírito”159. O “expressionismo”
de Benedetto Croce é fruto pertinente das conclusões de seus apreciadores e críticos que
adjetivaram o autor com o termo devido à centralidade da categoria “expressão”160 em suas
reflexões. Não há dúvida que ideias como a de ser a tarefa do crítico a realização da intuição da
obra de arte e, consequentemente, fazer do seu espírito uma “unidade com o do poeta”161, são
derivações diretas do pensamento croceano. Porém, as reflexões acerca de posições como as de
Gustave Flaubert, o debate com as tradições do pensamento crítico literário no Brasil e no
exterior, notadamente as relações entre impressionismo e expressionismo, e as apreciações da
psicanálise na crítica literária são algumas mostras da singularidade do crítico brasileiro.
As reflexões de Tristão de Athayde procurando reconhecer o valor da “alma” e da
“vida”, tanto nas produções dos artistas quanto na dos críticos, não seriam estranhas às
intenções dos expressionistas europeus em “escrutar o homem e sua época”162. De fato,
características do expressionismo alemão como a preocupação com suas distorções mobilizadas
por razões psicológicas, especialmente segundo uma concepção trágica e torturante do mundo,
a crítica ao urbano e à modernização, a sedução pelo tema da loucura e, por fim, a orientação
política cada vez mais explícita e determinante em torno de uma “nova objetividade” não
deixam de marcar paralelos, bem complexos é verdade, com a trajetória do crítico brasileiro.
157
Cf. GLIKSOHN, Jean-Marie. “Julgar”. In: BRUNEL, P et al. A crítica literária, p. 69.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 ago. 1921, p. 1. O teórico austríaco René
Wellek notara que desde a morte de Croce, tanto no formalismo russo e estruturalismo quanto nas hermenêuticas
e no desconstrucionismo, “Croce não é referenciado nem citado, mesmo quando ele discute os mesmos problemas
e concede soluções similares”. Croce ainda seria, segundo Wellek, indiscutivelmente, “a mais erudita e abrangente
[wide-ranging] figura na história da crítica”. Cf. ROBERTS, David D. Historicism and fascism in modern Italy.
Toronto: University of Toronto, 2007, p. 84.
159
Cf. CROCE, Benedetto. Estetica come scienza dell’espressione e linguistica generale. Teoria e storia. Bari:
Gius. Laterza & Figli, 1908. [Primeira edição 1902]
160
Já em 1922, o crítico britânico I A Richard, um dos fundadores do new criticism inglês, falara do
“expressionismo” croceano. Cf. RICHARDS, Ivor Armstrong. The foundations of aesthetics. Selected Works
1919-1938. Vol 1. Cambridge: John Constable, 2001, p. 37-39.
161
CROCE, Benedetto. Apud. KEMP, Gary. Croce's Aesthetics, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall
2014 Edition), Edward N. Zalta (ed.),
URL = <http://plato.stanford.edu/archives/fall2014/entries/croce-aesthetics/>. .
162
FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle, p. 35.
158
138
O fato é que, após a carta de Medeiros e Albuquerque relacionando o expressionismo
a um desejo patológico de distorção da realidade, o crítico não falará mais em crítica
expressionista. Os autores estrangeiros ligados ao expressionismo estarão presentes em suas
análises, mas antes como referências a serem combatidas ou relativizadas do que como nomes
com os quais se identificasse. De qualquer forma, o livro Afonso Arinos obteve o
reconhecimento dos pares, mesmo que o prefácio tenha roubado a maior parte das atenções.
Isto, porém, no interior da cultura intelectual brasileira, era algo positivo para a divulgação de
um autor e de uma obra, afinal, “a polêmica [foi] fundamental para dinamizar o sistema
intelectual”163. Tais debates levados a cabo nas páginas de jornais, com direito a réplicas e
tréplicas, parecem, mesmo, gerarem hoje considerações mais positivas, como a que defende
que “talvez seja possível imaginar que num futuro próximo o sistema interno de emulação, cujo
motor é a polêmica programática ou doutrinária, retorne ao cenário brasileiro”164.
Para além do prefácio
As polêmicas em torno da crítica expressionista não deixaram de notar as qualidades
que a obra Afonso Arinos traria. Múcio Leão comenta que “há muitas coisas novas; e uma dessas
é o encantador estudo de Afonso Arinos feito pelo sr Tristão de Athayde à luz das doutrinas
pansexualistas de Freud”165. Na parte da obra que buscava dar conta das relações entre a
personalidade e a obra de Afonso Arinos, a fim de descobrir aquela “poética insciente” sugerida
por Flaubert, o crítico considerava que “podemos recorrer, com proveito, à nova luz que, em
certos casos, trouxe a moderna psicanálise à crítica literária”. A partir da obra de Carl G. Jung,
Psychology of the unconscious, em edição de 1921, o crítico procurava mostrar que:
Em Afonso Arinos, encontramos duas formas de “libido” – não na acepção
“descritiva” em que Freud emprega o termo, mas no mais amplo sentido “genético”
em que Jung o interpreta: a concupiscência do grande mundo, e a concupiscência da
pequena pátria. Por diversas formas se manifestou pela primeira: pelo desejo, aliás
atávico, de abandonar os estreitos limites intelectuais da província, para conhecer a
terra e abeberar-se nas velhas civilizações europeias e asiáticas; pelo amor da
aventura, da vida farta e livre, em novos horizontes e meios diferentes; pelo gosto
fidalgo e aristocrático, que se orgulhava da nobreza bandeirante de seus
antepassados166.
Arinos não seria acometido pelo “mal de Nabuco” que atacaria os que saem do Brasil e nunca
retornam por demais que são envenenados pelo cosmopolitismo e bovarismo esterilizantes.
Esta “concupiscência da pequena pátria” seria como uma paixão do subconsciente pela
terra onde cresceu e pessoas que conheceu “nessa primeira infância de liberdade rústica e na
163
ROCHA, João Cezar de Castro. Sílvio Romero: a polêmica como sistema. In: CORDEIRO, R et al. A crítica
literária brasileira em perspectiva, p. 97.
164
ROCHA, J C de C. Sílvio Romero... CORDEIRO, R et al. A crítica literária brasileira em perspectiva, p. 110.
165
LEÃO, Múcio. Tristão de Athayde, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 17 set. 1922, p 2.
166
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 560.
139
vigorosa adolescência de sertanejo”. Assim, seria preciso observar que:
Essa dupla libido – recalcada uma, a do mundo, na primeira fase da vida, quando, no
ambiente acanhado de Ouro Preto, ansiava em vão por uma vida mais ampla, mais
farta, mais aventurosa, em meios de avançada civilização, e a outra, a da pequena
pátria, na segunda fase, quando em peregrinação no mundo, guardava sempre
vigilante a imagem de sua longínqua província mineira -, essa dupla libido recalcada
voltava-lhe à tona, segundo o processo que a psicanálise descreve, por duas válvulas
de liberação – superior e inferior. Da exaltação desses desejos reprimidos – a
“sublimação” na linguagem técnica de Freud – resultou-lhe a obra literária
originalíssima. Da degradação deles – que, segundo a psicanálise, produz as
diferentes perturbações mentais – veio-lhe a nostalgia esterilizadora167.
Na articulação das duas fases do escritor, constata-se que:
Se a repressão, na primeira fase, procurou uma válvula superior de escapamento,
convertendo-se em “expressão literária”, foi porque os desejos recalcados
representavam um acréscimo de vitalidade, uma vontade de expansão, um esforço
para crescer, para melhorar, para estender o campo de aplicação de sua atividade e
expansão de sua fantasia. Na segunda fase, pelo contrário, deu-se a libertação pela
válvula inferior, produzindo a “nostalgia esterilizadora”, porque os desejos então
recalcados representavam justamente um remorso, uma saudade, a convicção de uma
existência relativamente falhada, naquilo que mais ambicionara, a certeza de que não
correspondera, de todo, às esperanças despertadas nem conseguira exprimir quanto
ainda sentia confuso e vigoroso no subconsciente. Significava tudo isso uma
depressão, quando a fase anterior exprimira uma exaltação168.
O recurso à psicanálise na análise literária era algo que se coadunava com as ideias
expressionistas em geral, na constatação de que os “fatos só tem sentido segundo a mão do
artista que mergulhe neles capturando o que se encontra atrás deles”169. Encontrar o que há “por
detrás” é atividade primordial da psicanálise. Levada ao extremo, porém, tal procura
psicanalítica poderia sugerir fórmulas abrangentes e deterministas: “Sendo o complexo de
Édipo um fato humano universal, não há ficção, representação ou arte imagética que, de certa
forma, não seja dele ilustração velada”170. Tristão de Athayde nunca chegou a tanto, mantendose numa abordagem, por assim dizer, incipiente das relações entre psicanálise e crítica literária.
O livro sobre Afonso Arinos trazia uma interpretação que situava sua obra ao fim de
três fases da história literária brasileira: o americanismo, o brasileirismo e o regionalismo do
qual o “sertanismo” de Arinos seria um feitio. Tal reflexão fazia parte da “crítica expressionista”
que não encararia “as obras como criações arbitrarias de espíritos isolados. O elemento histórico
é indispensável à caracterização de uma obra e mesmo para sua compreensão estética”171. Esta
parte do livro também foi contemplada pelos críticos que o analisaram. Especialmente Ronald
de Carvalho, que em fevereiro daquele ano participara da Semana de Arte Moderna em São
Paulo, percebera aí uma expressão da “obra da geração moderna” despojada tanto do “lirismo
167
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 560.
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 561.
169
EDSCHMID Apud. FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle, p. 57.
170
ROBERT, Marthe. Romance das origens, origens do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2007, pg. 48.
171
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 590.
168
140
romântico quanto do pessimismo cientificista”172.
Ronald de Carvalho sintetiza em sua crítica os momentos pelos quais teria passado o
“pensamento” brasileiro nas épocas sugeridas pelo autor de Afonso Arinos: “O ‘americanismo’,
dos Frei Vicente do Salvador, dos Rocha Pitta e dos Santa Rita Durão; o ‘brasileirismo’, dos
Alencar, dos Magalhães e dos Taunay; o ‘regionalismo’, de Euclides da Cunha, de Arinos e
vários outros”. Em seguida, Carvalho faz longas citações sobre cada um destes temas,
concluindo que “seu primeiro livro” possui um modo “pessoal, riquíssimo de observar e julgar
as obras literárias. O homem, o crítico e o artista caminham de par, e não se apartam nunca”.
No mesmo sentido, Rodrigo de Mello Franco, sobrinho de Afonso Arinos, em carta a
Tristão de Athayde, considerara que:
[...] seu “Afonso Arinos” é, realmente, o mais agudo, o mais sério e o mais belo
estudo crítico publicado entre nós nestes últimos anos. [...] E se v. conseguiu realizálo, foi não somente pelas excepcionais qualidades de inteligência, que já lhe
granjearam [...] prestígio em nosso meio, e pela sua brilhante erudição, mais uma
vez posta à prova neste ensaio, mas sobretudo pela admirável força de simpatia, que
empresta um calor de vida e de verdade a cada uma daquelas páginas ilustrando
incisivamente as ideias que v. sustenta em sua magnífica introdução sobre “a crítica
de hoje”. A medida dessas linhas deixar avaliar-se a projeção futura de sua obra de
crítica, numa curva luminosa que o seu talento, a sua cultura e o desarroubo de seu
espírito dão direito de esperar173
Estratégias de história literária em um país periférico
Em suas considerações acerca da história literária brasileira, Tristão de Athayde reitera
uma ideia que talvez tenha sido, com maiores ou menores alterações, a mais repetida neste
campo da história intelectual do país174: a que tivemos “uma literatura transplantada”.
Verdadeiro lugar comum da tradição intelectual brasileira, a maior riqueza deste topos talvez
resida na apreciação sobre como cada intelectual ou grupo de intelectuais reagiu a esta
“verdade”. Segundo o autor de Afonso Arinos, tal experiência não seria exclusiva dos países
latino-americanos, podendo mesmo ser encontrada nas origens da literatura latina, nos tempos
de formação do Império Romano. Ao invés de tomar o tema das “literaturas transplantadas”
como exclusividade dos países de “formação recente”, notadamente das ex-colônias modernas,
172
CARVALHO, Ronald de. Afonso Arinos e o sertanismo. Recorte de Jornal, acervo CAAL.
Carta de Rodrigo de Mello Franco a Alceu Amoroso Lima, 21-7-1922, acervo CAAL.
174
Sílvio Romero considerava que “A literatura no Brasil, a literatura, em toda a América, é um processo de
adaptação de ideias europeias às sociedades do Continente”. Antônio Candido, utilizando uma metáfora orgânica,
afirmava ser a literatura brasileira “galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no
jardim das Musas”. Joaquim Nabuco havia utilizado metáfora similar para falar que no Brasil a civilização teria
sido “plantada de galho”. Silviano Santiago, em 2015, afirma que “a literatura, em si, é tudo, menos brasileira”.
Cf. ROMERO, Sílvio. A situação liberal. Lucros e perdas: crônica mensal dos acontecimentos. Rio de Janeiro:
Livraria Contemporânea de Faro Lino, 1883, p. 29; CÂNDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Vol 1, p. 910; NABUCO, Joaquim. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 31 jul. 1919, pg 9;
SANTIAGO, Silviano. A literatura brasileira da perspectiva pós-colonial – um depoimento, Aula Inaugural do
Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras (UFMG). Disponível em:
https://www.ufmg.br/online/arquivos/037483.shtml
173
141
ele via o processo como algo que estaria nas “origens” do pensamento ocidental.
Seguindo considerações do helenista Émile Egger (1813-1885) e do latinista René
Pichon (1869-1923), o crítico contrapunha o nascimento “espontâneo” da literatura grega à
“transplantação” da tradição helênica aos romanos. E o “regionalismo” aí teria seu papel:
É o regionalismo que prepara a grande florada literária do helenismo. Da Ásia Menor
viera o grande movimento heroico inicial. Em Paros, em Samos, em Éfeso começa
a despontar o lirismo. A ilha de Lesbos vê surgir esse admirável movimento de
lirismo musical, iniciado por Alceu e Safo, e que tanta importância ia assumir na
literatura grega posterior. Surge a comédia na Sicília, com Epicarmo e Formis. É na
Jônia que a história se forma e na própria Ática, das festas de Dionísio, desponta a
tragédia. Só então é que Atenas começa realmente a centralizar em parte o gênio da
raça – sempre, aliás, dividido -, que ia perpetuar e transmitir à posteridade o espírito
e o modelo do helenismo imortal175.
Segundo esta narrativa176, o gênio romano, “guerreiro e utilitário”, conquistara a Grécia, mas
se rendera ao seu “espírito”, de modo que “operava-se assim, nessa aurora da literatura latina,
o oposto do que ocorrera na Grécia. Nesta se fizera a eclosão da literatura, do particular para o
geral. Dava-se o contrário em Roma. A literatura nascia passando do universal para o local”177.
Assim, esquematicamente, ele afirmava que “não tivemos nós, à semelhança daqueles
tempos iniciais de Roma, uma literatura espontânea”. Porém, o Brasil não contaria com uma
civilização autóctone, sendo que “só o espírito de imitação à metrópole podia guiar aos que
timidamente aqui ensaiassem a lira, sem eco no meio local. A arte é em parte suscitada por
aqueles a quem se dirige”. Seria preciso reconhecer que:
[...] não teríamos [...] passado de colônia, de eco insignificante de além-mar, se o
novo meio e a gente – se não nova ao menos renovada com mesclas estranhas – não
começassem a reagir sobre os modelos recebidos, imprimindo caráter individual,
mais ou menos diferenciado, às obras que aqui vinham a lume178.
Nesta reação residiria a originalidade e o caráter da produção local.
Uma dialética cultural do novo mundo se formaria segundo a dinâmica do “contato da
literatura importada com esse elemento local”. Esse processo teria conhecido momentos
diferenciados: americanismo, brasileirismo e regionalismo que seriam três “sentimentos da
terra” que se sucederiam. Tristão de Athayde nota que tais momentos, sendo o segundo
175
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 586.
As considerações de Tristão de Athayde acerca da antiguidade nos interessam enquanto gesto de um intelectual
preocupado em legitimar o empreendimento teórico, literário e cultural num país periférico. Apesar de coerente e
atualizado com as teorias históricas da época, muitas de suas considerações não passariam intactas pelo crivo da
historiografia contemporânea. Assim, as ideias que veem na antiguidade a divisão dos povos baseada em critérios
raciais, a harmonia pressuposta numa unidade grega sem conflitos, o apagamento das desigualdades de classe, as
definições sobre o regionalismo na Grécia e mesmo o proverbial “filelenismo romano” são revisados pela
historiografia. Sobre este tema, agradeço as observações e indicações bibliográficas feitas a mim pelo jovem
helenista Igor Barbosa Cardoso. Cf. HUMMEL, Pascale. Emile Egger, historiographie des mutations
philologiques, Antiquité classique, Tome 75, pp. 155-160, 2006; TRABULSI, José Antonio Dabdab. Uma cidade
(quase) perfeita: a “cidade grega” segundo os positivistas, Varia História, Belo Horizonte, no 23, pp. 26-41, jul.
2000; WEST, Martin Litchfeld. Introduction to greek metre. Oxford: Clarendon Press, 1987.
177
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 586.
178
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 587.
176
142
adaptado a cada nação, poderiam ser encontrados em toda América Latina, inserindo, portanto,
a história literária brasileira num contexto americano. Assim, explicita os paralelismos:
O romantismo cedera ao realismo. E no mesmo ano em que Taunay publicava aqui
a sua Inocência, primeira obra em que o sertão se revela como é, vinha à luz na
Argentina um poema, que ficou até hoje como arquétipo da literatura gauchesca: o
“Martin Fierro” de José Hernandez, olvidado embora como obra individual mas
intensamente vulgarizado por todo por todo o país e caído no anonimato, tal a sua
popularidade179.
Com algumas exceções180, tal seria o processo na América Latina das “sensibilidades literárias”.
Assim, munido dessas concepções, Tristão de Athayde ensaia uma história da literatura
no Brasil segundo tais critérios. Antes de começar a empreitada, o crítico deixa claro que:
É toda parcial, convém logo advertir, essa consideração de nossa literatura pelo
prisma localista. Estamos muito longe de julgar que uma literatura só valha pela
originalidade local. Toda literatura nacional é tanto maior quanto mais universal. Ao
que se pode acrescentar, que será tanto menor quanto mais prematuramente ou
levianamente universal. A verdade está no momento e na necessidade da expansão
[...] Não significam [tais considerações] que o estudo de nossa história literária deva
girar em torno desse falso critério nacional, o que seria contradizer-nos incidindo em
um dos mesmos preconceitos que justamente procuramos combater181.
Apesar de arbitrárias, as fases procurariam seguir, em alguma medida, critérios “internos” aos
processos culturais desta história da “ação local sobre a literatura transplantada”:
O americanismo corresponde ao período colonial e vai até ao romantismo. Ainda é
de fora que o sentimos, pois nesse tempo ainda não se pode considerar a nossa
literatura para a vermos com veracidade, senão de Portugal, onde está o centro do
império luso-brasileiro. Sentem e verificam os portugueses que as obras dos seus
patrícios colonizadores – nascidos no Reino ou lá educados, o que é regra geral -,
escritas sob o sol tropical, têm qualquer coisa de diferente, qualquer ação própria da
natureza e mesmo da mentalidade ambiente. Não a atribuem ao Brasil, que ainda não
é uma nação, que ainda não apresenta fisionomia própria, e não passa de terra a
explorar, mas à América, ao continente novo, que o século XV revelara ao mundo
do Renascimento, ávido de vida, de ouro e de aventura182.
Os trabalhos de Frei Vicente de Salvador e Botelho de Oliveira estariam nesta
tendência. Sobre o primeiro, o crítico menciona a presença do que “viria a ser o grande tema de
nossa existência nacional – o litoral e o sertão”, e cita a passagem do primeiro que ele corrige:
Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato porque até agora não
houve quem a andasse (inexato), por negligência dos portugueses, que sendo grandes
conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar
arranhando ao longo do mar como caranguejos183.
179
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 588.
Tristão de Athayde cita, neste sentido, os casos do Chile e da Colômbia: “à exceção, até certo ponto, dos países
onde a raça, autóctone possuía uma importância tal, que deixou rastos na literatura, ou simplesmente de assunto,
como na Araucana de Ercilla, no Chile, ou também de espírito, como nas obras de Garcilaso de la Vega, o famoso
mestiço peruano do século XVI”. As informações são retiradas das obras de Salcedo Ruiz, Literatura Española, E
García Velloso, Historia de la literatura argentina, Alfred Koester, The literary history of Spanish America,
Ricardo Rojas, Historia de la literatura Argentina, Domingos A Caillava, La literatura gauchesca en el Uruguai.
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 588-590.
181
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 590.
182
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 590-591.
183
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 591.
180
143
Já o nome de Gregório de Matos traria características diferenciadas ao período:
[...] figura isolada, e que domina, do alto, todo o nosso período colonial, não sentimos
apenas esse americanismo de colorido e de fachada de toda essa era, mas a
coexistência de um verdadeiro espírito da terra, essencialmente urbano – e o primeiro
que revela o elemento humano local, quando só a natureza é que então operava e
seduzia -, com o sentimento profundo de verdadeiro poeta.
A Escola Mineira acentuaria o americanismo e revelaria aspectos do que viria a ser o
brasileirismo, notadamente, na temática do indianismo em Basílio da Gama e da explícita ou
sugestiva preocupação, descritiva ou sentimental, com a terra local, em obras de Santa Rita
Durão, Silva Alvarenga, Tomás Antônio Gonzaga, Caldas Barbosa e Cláudio Manoel da Costa.
Sobre o americanismo, Tristão lembra que os poetas, quase todos, são portugueses e
que nesses séculos sofrem “influxo do novo continente, porque não podem deixar de sofrê-lo,
mas cujas raízes se embebem todas além-mar, para onde voltam em geral as atenções, e donde
vem o espírito animar as obras, que o meio apenas colore”184. O americanismo teria perdurado
até a obra de Gonçalves Dias, quando livrando-se do jugo português:
Em 1835, o poema de Porto Alegre “A voz da natureza” é impresso em Nápoles. Foi
de Paris que nos veio, no ano imediato, o volume de Magalhães, de que ia datar a
inovação romântica. Varnhagen imprime em Madri o tomo 3o do seu precioso
Florilégio, e em 1857 leva Gonçalves Dias a Leipzig suas obras para uma edição
completa. É em Viena que Porto Alegre publica as suas Brasilianas, e Pereira da
Silva faz imprimir em Paris a História da Fundação do Império Brasileiro. Ampliouse o mundo de nossa visão literária e ao mesmo tempo crescia, com a independência,
a consciência da nacionalidade que despertava. Ainda não sabe o romantismo
distinguir o americanismo, vago e parcial, do brasileirismo, mais preciso e caldeado,
e por algum tempo hão de surgir as “brasilianas” ao lado das “americanas”185.
E são críticos europeus, como Almeida Garret e Alexandre Herculano, que demandam
mais “espírito nacional” nos autores. O primeiro denuncia a “educação europeia” que teria
apagado tal espírito, fazendo parecer que tais poetas “receiam de se mostrar ‘americanos’ e daí
lhes vêm uma afetação e impropriedade, que dão quebra em suas melhores qualidades”.
Herculano, por seu turno, lamenta a obra de Gonçalves Dias:
Quiséramos que as “Poesias Americanas”, que são como o pórtico do edifício,
ocupassem nele maior espaço. Nos poetas transatlânticos há, por via de regra,
demasiadas reminiscências da Europa. Esse Novo Mundo, que deu tanta poesia a
Saint Pierre e a Chateaubriand, é assaz rico para inspirar e nutrir os poetas que
crescerem à sombra de suas selvas primitivas.
Tristão reconhecia que, “em geral, até nossos dias, seria considerada a influência local como
derivada apenas da natureza, dessas ‘selvas primitivas’”. Inaugurava-se a fase romântica tendo
no indianismo a força mais contundente marcada pelo espírito independentista.
O romantismo era o “brasileirismo” que se particularizaria em cinco “meios” distintos:
as “cidades”, as “praias”, as “selvas”, a “roça” e os “campos”. O crítico ainda destaca que:
[...] é mister lembrar que a “literatura da escravidão” constituiu também uma espécie
184
185
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 591-592.
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 592.
144
particular do brasileirismo, não fundada no meio mas no mais grave dos nossos
problemas sociais no século XIX. Se não foi muito fecunda deu-nos, pelo menos,
um grande poema nacional, com A Cachoeira de Paulo Afonso de Castro Alves, que
a opinião insuspeita de estranhos julga credora de um lugar na literatura universal,
ao lado da obra imortal de Beecher Stowe186.
Aquela classificação dos meios permite situar a produção de autores, especialmente
romancistas, segundo a paisagem dos enredos trabalhados. Nesta disposição, o critério
cronológico cede ao temático e o crítico enumera autores posteriores ao romantismo,
acentuando antes os aspectos de tal “brasileirismo”. Assim, um “brasileirismo urbano” seria
reconhecível nas obras de Manuel Antonio de Almeida, Aluízio de Azevedo, França Júnior,
Artur de Azevedo, além de algumas produções de José de Alencar e Machado de Assis.
Já o brasileirismo das “praias”, apesar de inspirações das “mais ricas a sondar”, como
as dos “jangadeiros do Norte”, contaria com obras esparsas de autores já ligados ao
regionalismo, como Xavier Marques, Batista Coelho (João Foca), Gustavo Barroso, Juvenal
Galeno e Plínio Cavalcanti. O “meio” das “selvas” fora o dileto do indianismo e maior marca
do brasileirismo do século XIX, mas que estaria totalmente abandonado. Ele destaca o meio
“roça”, por estar próximo ao litoral e ao campo, não sendo nem sertão nem cidade:
Foi essa “roça” que iniciou, pode-se dizer, o brasileirismo do século e iniciou-o por
meio das Comédias de Martins Pena, que começaram a ser conhecidas em 1838 [...].
Pode-se dizer que é ainda desse caráter roceiro, mais do que sertanejo, que participa
o movimento dos poetas que, por volta de 1860 e estendendo-se até hoje, criaram o
que Sílvio Romero chamou de “sertanejismo” e antes seria “roceirismo” superficial,
com Bittencourt Sampaio, Zaluar, Joaquim Serra, Juvenal Galeno, Muniz Barreto,
Ezequiel Freire, Trajano Galvão, Bruno Seabra, etc. Desse caráter roceiro participam
esses romances vagamente rústicos, do período romântico, como O Tronco do Ipê de
Alencar ou o Ouro sobre Azul de Taunay e alguns de Macedo187.
Embora o indianismo seria a corrente mais em voga no período, o “sertanismo” possuía
um “caráter muito mais nacional” devido aos processos de “interiorização do Brasil”. Assim:
Foi propriamente com Bernardo Guimarães que surgiu o sertanismo literário, se lhe
quisermos encontrar uma data de referência, o que nunca deve ser categórico senão
aproximado, teremos a de 1858, com o aparecimento do Ermitão de Muquém. Já não
é o vago americanismo do século anterior, nem o brasileirismo urbano de Manuel de
Almeida ou roceiro de Martins Pena188.
Seria, porém, uma tendência nascida do indianismo e que, neste primeiro momento, pouco se
distanciaria dele, dando, antes, prosseguimento à busca literária pelo “espírito novo”:
No índio, na raça autóctone, despojada pelos invasores, raça cuja perseguição e caráter
indômito inflamavam o gosto de romanesco da época, julgaram ver o representante
típico da nação, que buscava um passado seu, alheio e contrário ao dos colonizadores.
Dissipada a ilusão das selvas, mas sentindo sempre a necessidade de procurar uma
originalidade local, voltaram-se para os campos, habitados por essa raça cruzada, já
nacionalizada e integrada no corpo da nação: o mestiço sertanejo. Daí resultou o
186
A comparação com Stowe teria sido feita em G Le Gentil. “Le cinquantenaire de Castro Alves”. In: Revue de
l’Amérique Latine, no 3, Março 1922, p. 196. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos
literários, p. 593.
187
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 595.
188
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 596.
145
sertanismo189.
A obra de José de Alencar passaria por todos aqueles “meios” que caracterizariam o
brasileirismo: o litoral, nos Contrabandistas ou no Ermitão da Glória, a cidade, na Pata da
Gazeta ou nos Sonhos d’Ouro, a roça, em O tronco do Ipê ou Til, as selvas, em Iracema ou
Ubirajara, o sertão, em O sertanejo e O Gaúcho, de modo que “todos os ambientes diversos da
nação foram por ele estudados superficialmente, mas com carinho e sinceridade, procurando
em todos exprimir de preferência a natureza, pendor de seu espírito”.
Franklin Távora teria iniciado no indianismo de Índios de Jaguaribe e passado para o
sertanismo de O cabeleira, O Matuto e Lourenço que, junto aos romances de Adolfo Caminha,
visariam criar uma “literatura do Norte”. Segundo Tristão de Athayde, a obra marcante do
sertanismo, porém, era Inocência, de Escragnolle Taunay, talvez, “a única obra representativa
dessa corrente literária no período romântico”. O sertanismo contemplado nos nomes de
Bernardo Guimarães, José de Alencar, Taunay e Franklin Távora, participava “da mesma índole
do brasileirismo literário de então: o preconceito de fazer literatura nacional, de criar o
‘romance brasileiro’, como era moda então dizer”190. Tal empenho é assim caracterizado:
[...] além do desejo de fazer sertanismo – por patriotismo e pela consciência justa de
que estavam a criar realmente uma literatura mais nacional do que nunca, outro
caráter havia que entre si ligava esses corifeus do sertanismo na época: a
generalização dos costumes e dos tipos em cena. [...] Não é o homem do sertão, em
suas variedade individuais, com o seu temperamento próprio, que aparece, mas o
homem médio, o homem representativo, uma espécie do famoso e falso Robinson
dos economistas clássicos191.
O sertanismo, com o tempo, adquiria maior espontaneidade, traria problemas como os da
língua, que Gregório de Matos teria já concedido “um sabor local até então desconhecido”, mas
que, no período anterior à Independência, “não se concebia que essas alterações vingassem, ou
pelo menos ultrapassassem variações superficiais no léxico”, sendo consideradas “erros das
colônias”. O tema desenvolvera-se durante o século XIX em obras de Varnhagen, Pereira
Coruja, Celso Magalhães e Couto de Magalhães. José de Alencar no Nosso Cancioneiro (1874),
considerava que “não é somente no vocabulário mas também na sintaxe da língua, que o nosso
povo exerce o seu inauferível direito de imprimir o cunho de sua individualidade ao instrumento
das ideias”192. Surgira, então, um movimento “pela emancipação da língua portuguesa na
América” que reuniria nomes como Macedo Soares, Batista Caetano, Baurepaire Rohan,
Pacheco Júnior, Manuel de Melo, Apolinário Porto Alegre, Capistrano de Abreu, Araripe Júnior
e, ainda, João Ribeiro. Paranhos da Silva chegaria a afirmar que “o português falado no Brasil
189
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 596.
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 597.
191
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 598.
192
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 599.
190
146
é que era o verdadeiro idioma clássico e o de Portugal era um vicioso galiziano”193.
O sertanismo passaria a ter desdobramentos regionalistas os mais variados e iria ser
caracterizado por uma “aproximação maior da realidade, mais verossimilhança na ação e nos
tipos, mais objetividade nas narrativas, mais naturalidade na língua, enfim, subjetividade mais
rica e profunda na criação”. Uma das obras características da transição seria Coração caipira,
de Lúcio de Mendonça, enquanto um marco seria o livro do paraense Inglês de Sousa, O
cacaulista, que retratava o meio amazônico e que procurava claramente combater a obra de
Joaquim Manoel de Macedo, A Moreninha, vista como “um tipo de literatura açucarada e falsa”:
Estava dado o novo impulso. O idealismo romântico cedia ao realismo naturalista.
De preconceito a preconceito, sempre dava a literatura mais um passo para a
compreensão e expressão da terra. [...] Acentuou-se o provincialismo, até então
exterior ou apenas sentimental, e já agora mais enraizado na alma. Começava o
homem a debater-se entre a proverbial diversidade de solicitações, pois tanto crescia
o apego à terra como à cultura194.
O sertanismo passaria a assumir as ideias provenientes tanto da Escola de Recife,
quanto de agrupamentos intelectuais como a Escola Popular formada no Ceará, nos anos 1870,
por nomes como Capistrano de Abreu, Rocha Lima, Araripe Júnior, Xilderico de Faria, Felino
Barroso e Pompeu Filho. Segundo o crítico, “era então a maçonaria considerada o refúgio do
espírito novo, e o órgão das novas ideias foi o jornal Fraternidade [...]. Fundaram a Escola
Popular, instituição destinada a divulgar a instrução primária e cívica, e a cultura geral, pelos
operários e por todos os desamparados da fortuna”. O movimento seria um marco na história
cultural do Ceará, tendo preparado o terreno para o aparecimento de dois grupos literários
subsequentes: o imediato, com o movimento abolicionista, entre 1880 e 1888, quando surgiram
Oliveira Paiva, Antônio e Álvaro Martins, José Carlos Ribeiro, Antônio Sales, Antônio Bezerra,
Rodolfo Teófilo e, depois, em 1890, com a fundação da Padaria Espiritual195.
O primeiro movimento produzira a obra Crítica e Literatura de Rocha Lima publicada
postumamente em 1878 e o romance D. Guidinha do Poço de Oliveira Paiva, que ainda era
inédito196. Os eventos provocados pela seca de 1877 também teriam influenciado na mudança
de perspectiva literária acerca do tratamento das realidades nacionais, dando origem à
“literatura das secas”. Segundo Tristão de Athayde:
Foi mister renovar as velhas tintas. A realidade era atroz: a natureza cinzenta,
esquálido o homem, o gado esquelético. Idealizar esse quadro fora mais do que um
absurdo estético: um crime contra essa terra martirizada e contra esse homem
esmagado pelos elementos. Só uma literatura rude e áspera, amassada com lágrimas,
pudera tentar vaga expressão literária desse inferno de cinza e pó. E nem assim
conseguiu fazê-lo, por um fenômeno de repressão mental inconsciente, hoje
explicado pela psicanálise. São unânimes os que assistiram ao flagelo, ainda de
193
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 600.
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 601.
195
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 603.
196
O romance foi publicado na íntegra apenas em 1952.
194
147
passagem, em declarar que nada, nem mesmo a epopeia admirável de Euclides da
Cunha, pode ainda traduzir o horror da realidade197.
Já em 1877, começaram a sair trabalhos sobre o tema, normalmente em folhetim e
posteriormente reunidos em livros, como Aves de arribação, do potiguar José Leão Ferreira
Souto e, no ano seguinte, a novela Ataliba, o Vaqueiro, de Francisco Gil Castelo Branco,
retratando episódios da seca no Piauí. Em 1878, Araripe Júnior lançara dois capítulos que
fariam parte de um romance nunca publicado intitulado O Retirante que tratava da seca de 1845.
Ao mesmo tempo, o autor lançara um romance de costumes cearenses, Luizinha. Além disso:
Em 1879, perdurando ainda a impressão da catástrofe, ocupou-se José do Patrocínio
com o tema em Os Retirantes, romance desvalioso mas significativo, publicado a
princípio em folhetins da Gazeta de Notícias e depois em volume. E um lustro mais
tarde, em 1884, publicava o sr Rodolfo Teófilo a História da Seca do Ceará,
voltando ao tema em 1888, data de novo flagelo, com o romance A Fome, em que a
epopeia das secas começa a assumir feição mais característica. Gira, em geral, desde
então em torno desse novo motivo a fecunda atividade literária do expressivo
romancista, que lhe dedica vários volumes de bastante cor local, estudando em Os
brilhantes o cangaço, um dos aspetos característicos desses sertões do Nordeste, e
em O Paroara a segunda fase do problema das secas, o êxodo para a Amazônia198.
Sobre a obra D Guidinha do Poço, cujo autor Oliveira Paiva morrera precocemente
em 1892, Tristão de Athayde considera que seria um “novo sertanismo” que traria:
[...] secas, vivas, originais, sem se demorarem em longas descrições e, pelo contrário,
com sabendo evocar a paisagem em duas palavras características, com rara concisão
de estilo e flagrância de transposição. Os tipos são verdadeiros e cheios de vida. Tudo
revela um temperamento literário de excepcional acuidade de visão, libertado de
preconceitos e exprimindo-se por meio da maior sobriedade de traços, apenas os
essenciais199.
Em 1902, o livro de Euclides da Cunha, Os Sertões, seria a “obra capital” dessa literatura e
teria, como nenhuma outra, deixado “um traço profundo e indelével” da “revelação brutal” que
era Canudos. Sua “forma literária” seria “imprecisa”, como o eram A retirada da Laguna, de
Taunay, e, mais tarde, Rondônia, de Roquette Pinto. O cânone sertanista estaria feito:
Um ano depois via o sertanismo literário das secas surgir outra obra-prima, e essa no
gênero ficção: a Luiza Homem de Domingos Olímpio, livro admirável de veracidade
e de emoção, que figurará entre as obras clássicas do nosso sertanismo literário, a
par de Inocência de Taunay, de O Missionário de Inglês de Sousa, da D Guidinha do
Poço de Oliveira Paiva, do Pelo Sertão de Afonso Arinos, do Inferno Verde de
Alberto Rangel, da Maria Bonita de Afrânio Peixoto, de Os Caboclos de Valdomiro
Silveira, dos Urupês de Monteiro Lobato, e alguns outros200.
Os escritores brasileiros caminhariam para um nacionalismo cada vez menos intencional, e após
aquele “‘brasileirismo’ consciente mas antes exterior que íntimo, aproximaram-se ainda mais
[...] da realidade local, e o espírito da terra, em suas feições particulares, integrado já, por vezes,
no espírito da gente, surgiu [...] para formar o ‘regionalismo’ contemporâneo”.
197
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 604.
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 605.
199
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 606.
200
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 607.
198
148
Enquanto autores como Coelho Neto, apesar de títulos como Miragem e Sertão, não
compareceriam em tal tradição devido ao “excessivo” “verbalismo literário”, o crítico percebia
que Monteiro Lobato estaria a “renovar o sertanismo” e tal “estímulo à espontaneidade e à
originalidade” seria “toda a justificação literária do sertanismo”. O crítico reafirmava que:
Se o sertanismo nos tem dado algumas obras que hão de ficar em nossa literatura, é
apenas por contarem estas uma expressão natural e vigorosa da alma de seus autores.
Daí não pode passar, sob pena de cair na mistificação ou no artifício da moda
literária. O sertanismo de forma alguma resume toda a nossa literatura. Mas
justamente por ser, de momento, uma de suas faces originais e fecundas, ‘devemos
deixá-lo exclusivamente aos filhos do sertão’201.
O estudo do sertanismo brasileiro, aqui reproduzido longamente, procurou dar conta,
parcialmente, da “ação local sobre a literatura transplantada”. Trata-se da história de um
processo que, dividido em três fases – americanismo, brasileirismo, regionalismo –, serviu
como esforço de organização e atualização da produção intelectual no país naquele momento.
Uma espécie de “o que nós fizemos até aqui”. O próprio Afonso Arinos seria um momento
passado, um personagem de transição, cuja maneira não era a dos “realistas modernos” e estava
“longe dos românticos”. Deixara, porém, o autor de Pelo Sertão, a máxima esperançosa que via
na América “o berço primitivo e poético da nova orientação filosófica e política do mundo”202.
A esperança da periferia (colônia) é um dia fazer sentido no centro (metrópole). Tal
relação em seu sentido clássico viria das teorizações do início do século XX de Werner Sombart
sobre a relação entre geografia e economia e que Allain Reynaud, já nos anos 1960, sintetizou
da seguinte maneira: “a concentração de população, riquezas, informações, capacidade de
inovação, meios de ação, enfim, de poderes de decisão que fazem a centralidade e por
consequência a diluição ou, mesmo, a falta destes critérios definem fazem a periferia”203. Devese retomar, também, as definições que criticam estas visões “centrais” promotoras de uma
perspectiva enrijecida e tranquilizadora das relações e posições entre centro e periferia. É
preciso dar conta de afirmações como as de Franz Fanon feitas num contexto de independência
colonial: “A Europa é literalmente a criação do Terceiro Mundo”204. Notar que “as formas
culturais são híbridas, ambíguas, impuras, e chegou a hora de a análise cultural voltar a vincular
o estudo e a realidade delas”205. Não se trata de produzir um horizonte teórico em que as
produções, ações, formações culturais, práticas e traduções de diferentes partes do mundo
“transferem-se” segundo esquemas de “mestiçagens” e, portanto, de “autenticidades
201
ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 612.
ARINOS Apud. ATHAYDE, Tristão de. Afonso Arinos. In: LIMA, A A. Estudos literários, p. 619.
203
REYNAUD, Allain. Apud. BLANCHARD, Nelly; THOMAS, Mannaig. Prologue. Qu’est-ce qu’une périphérie
littéraire ? In : BLANCHARD, Nelly; THOMAS, Mannaig (Dir). Littératures périphériques. Rennes : Presses
Universitaires de Rennes, 2014, p. 12.
204
FANON, Franz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1968, p. 81.
205
SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 50.
202
149
primordiais”, “purezas” reveladas ou perdidas, reproduzindo a “miragem do ocidente que pensa
ver o outro, mas apenas enxerga a si mesmo”206. Mas de se enxergar aquilo que parece ser
escondido sempre, reiteradamente, aquilo que parece ser interditado, numa espécie de limitação
do discurso que se esforça por estabilizar o lugar da periferia e do centro. A temática das lutas
haitianas na formulação de um dos maiores patrimônios da cultura ocidental, a filosofia
hegeliana207, é apenas uma ilustração disso. Assim como a existência do imperialismo - portanto
da disponibilidade de uma gama de produções, discursos, paisagens, viagens, imagens, objetos,
artefatos etc. - como condição de possibilidade à grande parte de todo o “primitivismo” da arte
de vanguarda do século XX208. Ora, estas produções são máximos expoentes nos quais a
“identidade ocidental” se reconhece, suas construções consideradas as mais elaboradas,
guardadas em museus e com valores inestimáveis, é o seu espelho favorito e orgulhoso.
A esperança da periferia (colônia) é um dia fazer sentido no centro (metrópole).
Poderia ser diferente? Verifica-se tal característica desde as demandas ao romantismo brasileiro
feitas pelos críticos europeus até às confissões de Tarsila do Amaral sobre Paris: “Não pensem
que essa tendência brasileira na arte é malvista aqui. Pelo contrário. O que se quer aqui é que
cada um traga a sua contribuição de seu próprio país. Assim se explicam o sucesso dos bailados
russos, das gravuras japonesas e da música negra”209. O re-conhecimento internacional, neste
caso, é a verificação do exótico. Talvez por isso a pintora, que antes considerara negativamente
que “o nosso verde é bárbaro”, passara, no exterior, a ter orgulho dele210. A angústia da
irresolução, da incompletude, da falta reiterada, da carência essencial é o motor que faz com
que os intelectuais e artistas periféricos procurem atingir uma realização cultural que possa lhes
parecer livre dos preconceitos nacionalistas, regionalistas e cosmopolitas. Tal problemática
atravessará toda a década de 1920211 e perdurará por muitos anos no horizonte da história
cultural brasileira. As literaturas tenderiam, assim, a ser “maiores” ou “menores”.
O termo “literatura menor” ganhou densidade teórica após os estudos acerca dos
Diários do escritor tcheco Franz Kafka212. Especialmente em torno de reflexões por ele feitas
em 1911 sobre as “literaturas pequenas” exemplificadas nos casos da produção literária na
Varsóvia escrita em ídiche ou em tcheco. Tais escritos, num autor como ele, chamaram atenção,
206
BOIDIN, Capucine. L’horizon anthropologique des transferts culturels, Revue Germanique internationale, no
21, janvier 2004, p. 268 », Nuevo Mundo Mundos Nuevos [Online], Resenhas e ensaios historiográficos, posto
online dia 07 fevereiro 2005. http://nuevomundo.revues.org/339
207
BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti, Novos Estudos –CEBRAP, no 90, pp. 131-171, 2011.
208
Cf. DECAUDIN, Michel. Guillaume Apollinaire devant l’art nègre, Présence Africaine, 1948/1, no 2, pp. 317324; SCHWARTZ, Jorge. Lasar Segall: um ponto de confluência de um itinerário afro-latino-americano nos anos
1920. Fervor das vanguardas. Arte e literatura na América Latina. São Paulo: Cia das Letras, 2013.
209
AMARAL, Tarsila do. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole..., p. 283.
210
Cf. “Uma pintora brasileira em Paris”, O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 9 dez. 1928, p. 3.
211
Cf. MORAIS, Eduardo J. de. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Edições, 1978.
212
CF. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
150
dentre outras coisas, para um outro tipo de re-conhecimento internacional que, poderíamos
dizer, é quase oposto àquele dos românticos e modernistas brasileiros, pois se daria não pela
afirmação do característico (e mesmo exótico), mas pelo apagamento deste. Assim:
Como Kafka parecia isento de toda determinação geográfica, não se hesitava em
adotá-lo, eu diria quase “naturalizá-lo”, e de fato, tratava-se deveras aí de um tipo de
procedimento de naturalização no qual nascia um Kafka francês, mais próximo de
nós certamente, mas tendo apenas uma relação longínqua com o verdadeiro (...) Este
direito de exterritorialidade era, no fundo, um privilégio celeste: vindo de lugar
nenhum e pertencendo a todos, Kafka produziu naturalmente o efeito de ter caído do
céu, mesmo aos escritores e críticos franceses os menos inclinados a tomar o céu
como medida213.
Os “re-conhecimentos” não são totalmente opostos porque, na verdade, apenas situam-se em
posições diferenciadas do mesmo jogo de espelhos. A demanda do outro para a melhor
afirmação de si mesmo214. Este tipo de relação, porém, não se restringe aos trânsitos
internacionais da cultura. Assim como a relação centro/periferia dependerá do escopo e objeto
de análise contemplados - a afirmativa de Lima Barreto de que o Brasil não era o Rio de Janeiro
e este não era a Rua do Ouvidor215 é exemplar-, a oposição exótico/natural216 também varia,
podendo ir dos regionalismos às vanguardas internacionais. Mesmo o “intelectual nativista”:
[...] valoriza altamente os costumes, tradições e aparências de seu povo, mas sua
experiência inevitável e dolorosa parece ser apenas uma busca banal de exotismo. O
sári torna-se sagrado e os sapatos vindos de Paris ou da Itália são abandonados em
favor dos calçados de couro cru, ao mesmo tempo que, de uma hora para outra, a
língua do poder dominante é sentida como queimando os lábios [...] a cultura para a
qual o intelectual se inclina não passa, muitas vezes, de um punhado de
particularismos. Ele quer se ligar ao povo, mas, em vez disso, só se apodera de sua
roupagem externa217.
Tais reflexões contribuem para uma melhor avaliação da dinâmica e estrutura da
valoração e distribuição dos méritos culturais ou dos “incontáveis atos de crédito trocados entre
os agentes engajados no campo”218, para utilizar uma linguagem bourdieusiana. Assim, no
213
ROBERT, Marthe. Apud. CASANOVA, P. La République mondiale des Lettres. Paris: Éditions du Seuil, 2008,
p. 229.
214
Daí as considerações de Leyla Perrone-Moisés: “Como toda a antiga colônia, a América é necessária à Europa
como um espelho. Que o espelho adquira uma perturbadora autonomia, tornando-se deformante, que devolva uma
imagem ao mesmo tempo familiar e estranha, é esse o risco ou a fatalidade de toda a procriação ilegítima”.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Cia das
Letras, 2007, p. 49.
215
Cf.
BARRETO,
Lima.
O
que
é
então?
Vida
Urbana.
Disponível
em
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2171 p. 111.
216
Devido a sua carga simbólica, política, cultural e social, optamos por tal oposição, que nos pareceu a “menos
enviesada”, seguindo as observações dicionarizadas que definem o exótico como: não originário do país em que
ocorre, estrangeiro, que não é nativo, indígena, esquisito, excêntrico, extravagante, que não foi bem acabado ou
realizado, malfeito, desajeitado. Já os seus antônimos são aborígene, autóctone, compatriota, doméstico, habitante,
indígena, morador, nacional, nativo, natural, patrício, pátrio, primitivo, vernáculo. Cf. Dicionário eletrônico
Houaiss. São Paulo: Objetiva, 2001.
217
FANON, Franz. Apud. APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997, p. 95.
218
BOURDIEU Apud. BLANCHARD, N et al. ; THOMAS, M. Prologue. Qu’est-ce qu’une périphérie littéraire ?
In : BLANCHARD, N et al. Littératures périphériques, p. 12.
151
âmbito internacional, o jogo de re-conhecimento afeta a “literatura latino-americana, na medida
em que a recepção internacional lhe é mais favorável quando ela responde aos desejos de
evasão, de exotismo e de folclore das culturas hegemônicas”219. O re-conhecimento Kafkiano,
porém, representaria propriamente a situação em que:
Os grandes consagradores reduzem de fato a suas próprias categorias de percepção,
constituídas em normas universais, as obras literárias vindas de alhures, esquecendo
todo o contexto – histórico, cultural, político e, sobretudo, literário – que permitiria
compreendê-las sem as reduzir. As grandes nações literárias cobram pela concessão
de uma carteira de circulação universal. É por isso que a história das celebrações
literárias é também uma longa sequência de mal-entendidos e de injustiças que
encontram suas raízes no etnocentrismo dos dominantes literários (notadamente dos
parisienses) e no mecanismo de anexação (nas categorias estéticas, históricas,
políticas, formais) que se realiza no ato mesmo de reconhecimento literário. [...] O
universal é, de alguma maneira, uma das invenções mais diabólicas do centro: em
nome de uma negação da estrutura antagonista e hierarquizada do mundo, encobertos
pela igualdade de todos em literatura, os detentores do monopólio do universal
convocam a humanidade inteira a curvar-se a sua lei. O universal é o que eles
declaram como conquistado e disponível a todos, sob a condição de que lhes seja
aparente220.
Quando as considerações de Franz Kafka sobre as “pequenas literaturas” vêm à tona, essa
“crítica universalista” se vê constrangida a tratar de um tema espinhoso em seus domínios, qual
seja, o nacionalismo em Kafka. Mais do que demarcar os traços biográficos e históricos do
autor, as reflexões sobre as vantagens da relação entre nacionalismo e literatura, assim como a
descrição da dinâmica singular destas “pequenas literaturas” configuram-se como uma maneira
alternativa de se analisar a produção literária segundo critérios não-universalistas. Kafka
reconhecia que, acerca das “pequenas literaturas” judia e tcheca:
[...] muitos dos benefícios da atividade literária, a renovação espiritual, a coerência
em um todo único da consciência nacional, frequentemente inoperante na vida
pública e sempre disposta a desintegrar-se, o orgulho e o apoio que a nação recebe
de sua literatura, para si mesma e contra o resto hostil do mundo, o fato de que a
nação escreva uma espécie de diário, que é algo muito distinto da historiografia, e
como consequência desse fato verifique um desenvolvimento mais rápido e, sem
embargo, constante e diversamente vigiado, a detalhada espiritualização da
simplificada vida pública, a assimilação dos elementos menos satisfeitos, que
passam a ser úteis justamente quando sua inutilização poderia ser danosa, a constante
integração do povo nesse todo, cumprida pela atividade das revistas, a concentração
da atenção da nação em seu próprio círculo, e recepção do estrangeiro apenas por
reflexo, a aparição do respeito pelo literato em atividade, o transitório despertar de
efeito, contudo duradouro, de ambições mais elevadas nas gerações jovens, o
reconhecimento da importância política dos acontecimentos literários, a dignificação
e a possibilidade da antítese entre pais e filhos, a exibição dos defeitos nacionais de
uma maneira em verdade bastante dolorosa, mas libertadora e merecedora do perdão,
a aparição de uma animada e, portanto, respeitável atividade editorial e de um
interesse pelos livros; todos estes efeitos podem ser obtidos mesmo por uma
literatura que na realidade não se desenvolve dentro de limites insolitamente vastos,
mas que pareça fazê-lo por carência de talentos significativos221.
219
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe nacionalismo, p. 49.
CASANOVA, Pascale. La République mondiale des Lettres, p. 226.
221
KAFKA, Franz. Diarios. 1910-1923. Buenos Aires: Emecé Editores, 1953, p. 140-141.
220
152
Esta enumeração de fatores propiciados pela dinâmica das “literaturas pequenas”
judias e tcheca revelaria um caráter específico do fazer literário em nações, com ou sem
território firmado, que não compartilhariam das condições das “literaturas grandes”, no caso de
Kafka, representadas pela tradição alemã. A literatura assumiria um caráter abrangente:
A vivacidade de uma literatura desse tipo até pode ser maior que a de uma literatura
mais rica em talentos, porque, como aqui não aparece nenhum escritor que, perante
seus méritos, ao menos a maioria dos céticos deva guardar silêncio, a competência
literária em grande escala se vê realmente justificada222.
Sendo algo que demandaria “maior atenção pública”, as questões literárias aí seriam marcadas
pelas polêmicas e debates públicos, de tal forma que:
Insultos considerados literários vão e vem; no círculo dos caráteres mais violentos,
voam. O que nas grandes literaturas ocorre no plano mais baixo, e constitui um sótão
de nenhum modo indispensável do edifício, aqui ocorre em plena luz; o que lá
provoca o momentâneo interesse de umas poucas pessoas, aqui absorve a atenção
universal como um assunto de vida ou morte223.
Tal apelo “público” da literatura mereceria as atenções da política, afinal, a partir do momento
em que se escreve a história de tais literaturas, que seria uma espécie de “diário da nação”,
percebe-se que “a vinculação exterior da literatura com a política não é danosa”, terminando
por “conseguir que a literatura se difunda pelo país apoiada nas muletas políticas”224.
Segundo Pascale Casanova, Kafka teria sido uns dos primeiros “a compreender que
todas as ‘pequenas’ literaturas podem (e devem) ser pensadas segundo os mesmos esquemas”
(grifos nossos)225. O historiador francês parece, com esse universalismo às avessas ou dos
avessos, seduzido pelo mesmo etnocentrismo que combatera nos mecanismos de afirmação dos
valores universais. Afinal, as rápidas considerações de Kafka feitas nas características
peculiares de um diário dirigem-se às produções em ídiche e tchecas na Varsóvia, o próprio
autor escrevia em alemão, como o fazia grande parte dos judeus em Praga. Ele não se
considerava como um “representante” de uma “literatura pequena”, mas admirava a vitalidade
destas literaturas226. Abordando as reflexões de Kafka em um contexto específico, Milan
Kundera ressalta como características das “literaturas pequenas” a relação intrínseca com o
tema nacional que, longe de ser algo óbvio e claro em si mesmo, permaneceria como um
problema, uma aposta e um risco em graus diferenciados. No caso da Polônia, por exemplo, o
risco do desparecimento de sua existência era algo real. A inquietação existencial marcaria a
“pequena literatura”, de tal forma que a nação se valeria de toda afirmação que a literatura lhe
poderia dar, ao mesmo tempo, porém, em que condicionaria a ação da criação artística a um
222
KAFKA, Franz. Diarios. 1910-1923, p. 141.
KAFKA, Franz. Diarios. 1910-1923, p. 143.
224
KAFKA, Franz. Diarios. 1910-1923, p. 142.
225
CASANOVA, P. La République mondiale des Lettres, p. 287.
226
Cf. LUPAS, Maria. Ionesco contre la littérature mineure ? Le cas de la littérature roumain, Les chantiers de la
création, 4 | 2011, disponível em : URL : http://lcc.revues.org/406
223
153
papel único. O laço entre literatura e política é, neste contexto, uma coação à criação227.
Assim, as considerações de Franz Kafka instigam pela maneira com que refletiu acerca
das funções das literaturas em contextos específicos segundo demandas determinadas. Em seu
“Esquema de características das pequenas literaturas”, o autor situou três eixos com as tópicas
pertinentes: 1 – Vivacidade: Conflito, Escolas, Revistas; 2 - Menos compulsão – Falta de
princípios, Temas pequenos, Fácil formação de símbolos, Supressão dos ineptos; 3 Popularidade: Vinculação com a política, História literária, Fé na literatura (se lhe permite
estabelecer suas próprias leis)228. Não se trata, nem parece ter sido pretensão do autor, de uma
“teoria” das “pequenas literaturas”229, longe disso, mas de reflexões que nos despertam para
uma abordagem diferenciada da literatura e, vindas de um autor “universal”, tornam-se ainda
mais interessantes. Alguns temas, portanto, podem ser ricos para se pensar a reflexão literária
no Brasil que, se não era no princípio do século XX uma “literatura pequena”, também não se
via (nem era visto) como portador de uma “literatura grande”. Assim, enquanto os temas das
polêmicas, da questão nacional persistente, da fé na literatura e da vinculação com a política
são praticamente óbvios no Brasil, a verificação da existência de uma “osmose entre o povo e
a literatura”230 só poderia nos causar perplexidade, a menos que tal condição fosse vista sob o
estigma de uma permanente carência angustiante231, o que não é o caso.
Ao considerar o fenômeno das “literaturas transplantadas” como algo recorrente que
poderia remontar à “antiguidade ocidental”, Tristão de Athayde ensaiava retirar o caráter
totalmente exótico da história literária no Brasil e conceder-lhe a complexidade dos processos
modernos. Ao mesmo tempo, a necessidade de fazer da história da literatura uma espécie de
“diário da nação”, significando não apenas a sucessão de diferentes autores, escolas e
tendências literárias, mas a própria forma com a qual as produções culturais relacionaram-se
com a gente, o meio e a história do país, faz da obra Afonso Arinos uma tentativa de
consolidação da tradição nacional. Um repertório de objetos mais ou menos recorrentes (o
sertão, o índio, a natureza, a miséria, as cidades, os costumes, a língua, as regiões, as raças, os
escravos etc.) contemplados de maneiras diversas (descritivas, narrativas de viajante, satíricas,
arcádicas, românticas, realistas, naturalistas, “modernas”), segundo valorações e interpretações
específicas (exotismo, nativismo, pessimismo, realismo, ufanismo, cientificismo etc.).
227
Cf. LUPAS, Maria. Ionesco contre la littérature mineure ? Le cas de la littérature roumain, Les chantiers de la
création, 4 | 2011, disponível em : URL : http://lcc.revues.org/406
228
KAFKA, Franz. Diarios. 1910-1923. Buenos Aires: Emecé Editores, 1953, p. 143.
229
O próprio Casanova reconhece que os escritos destes diários formam um “texto obscuro e difícil”, não sendo
uma “verdadeira teoria”, tratando-se, antes, de “notas atiradas sobre o papel”. CASANOVA, Pascale. La
République mondiale des Lettres, p. 290.
230
Cf. LUPAS, Maria. Ionesco contre la littérature mineure ? Le cas de la littérature roumain, Les chantiers de la
création, 4 | 2011, disponível em : URL : http://lcc.revues.org/406
231
Cf. LIMA, Luís Costa. Frestas. A teorização em um país periférico. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
154
Não fazia sentido, assim, tomar como índice inicial da história literária no Brasil o seu
caráter “brasileiro” ou nacional, mas ver este como um momento de um processo maior. Dessa
forma, evitava-se a exclusão arbitrária de produções relevantes para a tradição, como a de
Gregório de Matos232, ao mesmo tempo, porém, permanecia, ainda que bastante diminuída,
certa característica evolucionista e teleológica em função do desenvolvimento da “consciência
nacional”233. O livro Afonso Arinos foi tratado por poucos historiadores. Sobre a “crítica
expressionista”, Antônio Cândido a considerara “excepcional para o tempo e com certeza a
melhor monografia de escritor até então publicada no Brasil”, tendo sido a:
[...] primeira tentativa teórica de superar, no Brasil, as modalidades críticas
anteriores, que segundo ele partiam da inteligência reflexiva, não da afetividade, e
por isso ficaram no acessório, ou seja, coisas como as “causas” ou “funções” da
literatura, deixando escapar o essencial234.
Além disso, Antônio Cândido pontuava:
Verdadeiro feito, de grande rendimento interpretativo, [...] o mencionado recurso à
psicanálise, através do conhecimento de Freud e de Jung. Graças a esta visão
(moderníssima para o Brasil daquele tempo), ele não apenas comprovou, mas deu
poder de convicção à ideia de que a expressão se nutre da relação do autor com meio
formativo, e, como vimos, renovou o que fora um dos cavalos de batalha do
positivismo crítico235.
Assim, qualquer consideração sobre a crítica de Tristão de Athayde, durante os anos 1920, como
algo que não esteja no âmbito deste “expressionismo” crítico seria errônea.
O autor de Formação da Literatura Brasileira, porém, não tece comentários acerca da
história do “sertanismo” e das reflexões do crítico sobre a história literária brasileira. A
contribuição da obra Afonso Arinos para a história do regionalismo brasileiro sofrera, por assim
dizer, uma espécie de “apagamento progressivo”. Os trabalhos sobre o tema reforçaram o
regionalismo como produto literário dos anos 1930, considerando, em geral, toda a produção
anterior segundo os juízos negativos do pitoresco e do exotismo, desobrigando-se236 dela, por
assim dizer. As considerações de Tristão de Athayde, porém, além de apontar tais limitações,
232
Deve-se ter em mente que a história da literatura brasileira é um problema secular reiterado, desde ao menos
meados do século XIX, quase que a cada geração. Cf. CAMPOS, Haroldo de. O sequestro do barroco na formação
da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos. Salvador: FOJA, 1989.
233
Como aponta Leyla Perrone-Moisés: “Se escrevermos a história das literaturas latino-americanas como um
apêndice da história das literaturas das línguas-mães, mantendo-as como um paradigma a ser alcançado, estaremos
dentro de uma concepção evolucionista da literatura e tenderemos a considerar as primeiras manifestações
coloniais como infantis e canhestras. Se considerarmos que, em determinado momento, essa história se torna
autônoma, teremos dificuldades em situar precisamente esse corte. Se situarmos esse começo no momento da
independência política, apenas retardaremos sua infância”. Daí propostas como as de Haroldo de Campos em opor
um “nacionalismo modal ao nacionalismo ontológico”, de modo que o nacionalismo não seria uma busca pela
origem, mas um movimento dialógico com a diferença, favorecendo uma “historiografia fragmentada, não
homogênea”. PERRONE-MOISÉS, L. Vira e mexe nacionalismo, p. 42-43.
234
CÂNDIDO, Antônio. Mestre Alceu em estado nascente. Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004, p. 83.
235
CÂNDIDO, Antônio. Mestre Alceu em estado nascente. Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004, p. 85.
236
Cf. LIMA, Luís Costa. Regionalismo. In: COUTINHO, Afrânio (dir.). A literatura no Brasil. Vol. V Modernismo. Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana; CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945
(Panorama para estrangeiros). Literatura e Sociedade. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1980; ALMEIDA, Jose
Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro (1857-1945). Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
155
situava a função do regionalismo no desenvolvimento geral da história cultural brasileira, o seu
papel decisivo no processo da “ação local sobre a literatura transplantada”.
156
Terceira Parte
DÚVIDA
157
Contra a “literatura”: Sertão
“Canaã não é pura literatura”.
Carta de Medeiros e Albuquerque a Graça
Aranha (1902).
“Tentei contar neste livro, com um mínimo de
literatura para um máximo de honestidade [...]”.
Epígrafe de Jorge Amado
no livro Cacau, (1933).
As duas passagens citadas acima foram produzidas num intervalo de mais de trinta
anos, mas revelam a manutenção e, na verdade, o fortalecimento de uma concepção literária
que, curiosamente, era contra a “literatura”. Uma noção que complementa e ajuda a explicar
esta apreciação da “literatura” é a de “bovarismo”, termo que teve grande ocorrência na cultura
intelectual brasileira. Lima Barreto confessava a respeito em seu diário: “A minha vida de
família tem sido uma atroz desgraça. Entre eu e ela há tanta dessemelhança, tanta cisão, que eu
não sei como adaptar-me. Será o meu ‘bovarismo’?”1.
O conceito foi trabalhado por Jules Gaultier em 1892 no ensaio Le Bovarysme. O termo
é inspirado na protagonista do romance de Gustave Flaubert, “Mme Bovary” (1856), e,
conforme Tristão de Athayde: “O que de fato caracteriza essas personagens é um defeito
essencial de caráter fixo e de originalidade própria. Logo, se influenciadas pelo meio social se
julgam diversas do que são, é que – nada sendo por si mesmas – alguma coisa se tornam, em
virtude da sugestão a que obedecem”2. O “bovarismo” é tido por Jules de Gaultier como um
fenômeno e, na verdade, uma “patologia” da “civilização”. Segundo o autor, o mérito de
Flaubert residiria em sua perspectiva especial que, seguindo os princípios da “autonomia da
arte” e “impessoalidade do autor”, teria a capacidade de fornecer visões de mundo ao “espírito
crítico” e de produzir “sugestões psicológicas novas”. A morte do romantismo em Flaubert
estaria expressa na revelação, pela imaginação, dos “males da imaginação” e de um “mal do
pensamento” em que o “pensamento precede à experiência ao invés de sujeitar-se a ela”3.
Tal situação resultaria num desequilíbrio “mórbido” vivido por vários personagens de
Flaubert, mas derivado de um fenômeno maior: a civilização. Esta seria caracterizada pela
capacidade humana “de beneficiar seus descendentes dos conhecimentos científicos e morais
adquiridos durante sua passagem pela vida”. Porém, com o seu desenvolvimento:
[...] o círculo dos conhecimentos adquiridos se alarga a cada dia e a inteligência
humana se encontra na presença de um tão grande número de questões postas e
resoluções, que ela não pode verificar todas [...]. Como os meios de difusão das
opiniões tomaram uma extensão considerável, como o livro e o jornal permitem a
1
BARRETO Apud. MICELI, S. Poder, sexo e letras na República Velha, p. 41.
GAULTIER Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 ago. 1920, p. 2.
3
Cf. GAULTIER, Jules. Le Bovarysme. Paris: Librairie Léopold Cerf, 1892, p. 2-12.
2
158
um grande número de homens propagar seu pensamento, e a um número ainda maior
de homens apoderar-se do pensamento de outros, segue-se que há sobre cada assunto
milhões de opiniões; e esta pluralidade se estende não apenas às ideias morais que
cada classe da sociedade faz, frequentemente, um ideal diferente, que estão a mercê
das influências do meio e da literatura, mas também aos fatos da história, que através
das paixões políticas e religiosas, tomam um aspecto infinitamente diverso e variado
até formalmente se contradizerem4.
O autor considera o fenômeno como algo inerente às civilizações, mas não há dúvida que tal
caracterização (e reação) é debitária da proliferação dos impressos, da educação pública e de
uma cultura da escrita e da leitura na Europa, e especialmente na França, no século XIX.
A educação seria um dos vetores da “patologia do bovarismo”:
[...] supondo mesmo que esta educação tenha sido perfeita, este único fato de
conhecer existências anteriores a sua, de saber como se constituíram estas existências
em todas suas conjunturas da vida, constitui para ela [a criança aluna] um modelo
para lhe dirigir, uma miragem que lhe desflora as realidades, leva suas impressões
de ingenuidade e sua verdade: quanto mais as grandes imagens da história se
sobrepõem perante seus olhos em perspectivas mais altas, mais distantes e mais
multiplicadas, mais se torna para ela difícil de escapar da fascinação que exercem
sobre sua alma os altos fatos dos heróis tão louvados e as ideias que inspiraram tais
homens; ocorre que observa-se a vida presente apenas pelo prisma do passado; não
se relaciona mais com suas sensações e com suas próprias percepções; ela lhes
negligencia e não as toma em conta; porque ela tem de todas as coisas uma ideia préconcebida; ela sabe o que deve experimentar na presença de tal fato e se a emoção
não vem, ela a imagina; ela sabe previamente o que ela deve amar e o que ela deve
odiar e estes sentimentos imaginários de coisas imaginárias acabam por obscurecer
as realidades, por tornar seus nervos inaptos a retirar da vida impressões pessoais5.
Tal processo tomaria a quase todos os homens civilizados e conduziria a um “cataclismo” que
conformaria uma “nova humanidade” que, por seu turno, “levará no seu cérebro o germe de um
mal similar”6. O século XIX teria produzido a “patologia” em um grau mais elevado devido às
circunstâncias históricas que propiciariam o mal: guerras, eventos revolucionários e o Império,
este último com a revelação mais aguda do exotismo, teriam suscitado o romantismo:
Superaquecida pelo choque dos eventos, a alma humana se manifesta pelos atos
dramáticos, pelas trágicas levas; depois, logo que a temperatura do meio se resfria,
logo que os eventos decaem, esta força exasperada, pronta a se atirar em atos, é
doravante sem emprego sob esta forma bruta, pouco a pouco se transpõe; ela se
traduz pelos pensamentos e pelas formas artísticas, se insinua nas palavras que ela
anima, circula nas veias do mármore que ela forma, vibra e se expande nas ondas
sonoras. Foi em razão desta lei que o grande período literário de 1830 sucedeu o
impulso de ação do começo do século e que todas energias vitais erigidas pelas
violências da guerra encontram um derivativo nas orgias da imaginação romântica.
[...] Esta literatura fervente ainda e toda ofegante das convulsões das últimas lutas,
toda impregnada do hálito quente de uma atividade sem emprego, contendo os
germes da paixão que irão eclodir nos corações as concepções sentimentais que
exercerão sobre os cérebros uma influência preponderante e os precipitarão fora do
real7.
4
GAULTIER, Jules. Le Bovarysme. Paris: Librairie Léopold Cerf, 1892, p. 12-13.
GAULTIER, Jules. Le Bovarysme, p. 13-14.
6
GAULTIER, Jules. Le Bovarysme, p. 15.
7
GAULTIER, Jules. Le Bovarysme, p. 15-16.
5
159
Precipitar-se para fora do real é o mal principal do “bovarista”. O teórico do
“bovarismo” sempre reivindicará o realismo como parâmetro para suas críticas. E um dos alvos
principais era a “literatura”. Gaultier fala em figuras “contaminadas pela literatura”, da
literatura como um bacilo destruidor dos “temperamentos realistas” promovendo casos
desequilibrados e mórbidos, como Bovary que “abusada pelo falso ideal que ela formou sobre
si mesma, a pobre mulher se torna este ser híbrido devotado à mentira necessária e chegando
ao suicídio, que põe fim a sua terrível dualidade”8. Tal como haveria um “bovarismo”
sentimental, persecutório de amores irrealizáveis, existira outro, intelectual, obstinado por uma
fé no progresso e nas certezas científicas, e, ainda, um terceiro, político, que teria uma
concepção exagerada dos ideais históricos, como a fé no poder popular, na fraternidade e na
justiça9.
As reflexões de Gaultier tiveram repercussão não apenas no Brasil, mas na América
Latina10, onde receberam apropriações específicas. A campanha “contra a literatura” é explícita
na cultura intelectual brasileira nos primeiros anos da década 1920. Tristão de Athayde, acerca
do livro Cidade Encantada de Xavier Marques, considera que “por literatura, nesse sentido
pejorativo, entendo o artifício literário, o esforço da composição, a dispersão da realidade”11.
Esse tipo de “literatura” contaria com nomes reconhecidos, como o de Coelho Neto. A reunião
de seus discursos revelaria que a “arte viciou-lhe a naturalidade. Ele fala de Bilac morto como
aos remadores de um clube de regatas”, num caso em que “engenho e cultura exilaram razão e
sentimento. A corda mais ferida é a patriótica. Para o mar e para o sertão tem efusões de um
lirismo contínuo, que o demônio da literatura faz soar em falso”12.
Apesar de a questão nacional ser orientadora da cultura intelectual brasileira ao menos
desde meados da década de 1910, isso, por si só, não impediria a queda numa “corda patriótica”
perdida pelo “excesso de cultura” que a “elevava” na mesma medida em que a enfraquecia,
como no mito grego de Anteu (Antaeus)13 citado pelo crítico. Era preciso reconhecer uma
mudança na prática de tais intervenções intelectuais:
Entre nós, foi costume e moda, há dez ou quinze anos passados, fazer justamente o
contrário. Tomava-se a aparência das questões ou motivos de mera espuma literária:
o “leque”, o “sorriso”, o “casamento”, a “flor”, e sobre eles se bordava uma hora de
8
GAULTIER, Jules. Le Bovarysme, p. 26.
GAULTIER, Jules. Le Bovarysme, p. 46.
10
Cf. BEAUREGARD, Paulette Silva. La lectura, la pose y el desarraigo. Pedro-Emilio Coll y el “bovarismo
hispanoamericano”, Acta Literaria, no 37, pp. 81-95, II Sem. 2008.
11
ATHAYDE, Tristão. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 30 ago. 1920, p 2.
12
ATHAYDE, Tristão. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 25 jun. 1920, p 11.
13
O caso de Anteu é lembrado pelo fato de ele, filho de Posseidon (Netuno), ter sido, segundo a lenda, um lutador
imbatível até que Hércules descobrira que, quando suspenso seu contato com o chão, o combatente perdia toda
sua força. A cultura bovarista de Coelho Neto, quanto mais lhe rendia frutos de saberes superiores, mais o
enfraquecia em sua legitimidade frente às principais questões de sua época, lhe retirava do solo. Cf. SMITH,
William. Dictionary of greek and roman biography and mythology. Boston: Little Brown, 1870, p 181.
9
160
palestra de uma desoladora frivolidade. [...] a conferência tende hoje a um objetivo
mais elevado de educação e cultura14.
A conferência seria um meio “particular e atual” de “comunicação literária”:
Estamos em uma época de propaganda, época cujo principal caráter literário é uma
intervenção cada vez maior das letras na vida política e social dos povos, forçando a
arte a compromissos e desvios, que são uma degradação presente, mas uma redenção
futura. Degradação, porque a arte só é pura quando busca a beleza e hoje lhe vemos
fins utilitários ou morais. Redenção, porque ante o requinte, o subjetivismo, o
artificialismo aristocrático a que tinha chegado a arte, para a renovação da sua fibra
amortecida e exasperada, esse mergulho na realidade e na ação.
A literatura precisaria dos auxílios da história, da sociologia, do folclore, dos estudos
políticos e da crítica literária. A literatura, na verdade, teoricamente, abarcaria todos estes
saberes. Sobre as conferências, ressalta-se os trabalhos de Amadeu Amaral, especialmente sobre
“A Literatura da Escravidão” que concluía que o papel da “infanda instituição” foi “menor do
que devera ter sido, dada a influência profunda e permanente do tráfico na vida nacional”. Isso
seria devido ao “mal de grande parte de nossa literatura, onde as qualidades de imaginação
superam as de observação15, permanecendo em geral estranhos ao seu meio e ao seu tempo”16.
O combate à “literatura” exigia diferentes frentes de produção intelectual que lhe
garantissem o tão almejado “realismo”. O cenário posterior à Grande Guerra colocava em jogo
diferentes orientações políticas e culturais que tomavam as manchetes dos jornais brasileiros
com temas que iam desde o avanço bolchevista às questões dos negros norte-americanos,
passando por debates estéticos que tinham que decidir sobre qual relação se deveria manter com
as novas condições e exigências políticas. E, se os próprios intelectuais brasileiros reconheciam
seu “bovarismo”, eles não poderiam deixar de se identificar com dilemas internacionais.
Trata-se de um cenário complexo, mas que a crítica literária pretendia, de alguma
forma, organizar e conceder sentidos únicos ou, pelo menos, destacar os mais legítimos.
Convidado pela Revista do Brasil a fazer um balanço da produção literária do ano de 1920,
Tristão de Athayde verificava que, excluídos os trabalhos científicos, técnicos e estritamente
didáticos, ele reunira pouco mais de uma centena de obras na capital e nos estados. Além das
lacunas incontornáveis de tal tipo de levantamento, ele lembrava os problemas econômicos e
limitações tipográficas oriundos do cenário posterior à Guerra. Ademais, seria “desde logo
mister apontar o contraste entre essa escassa produção livresca e a grande frequência da
colaboração literária em jornais e revistas”17.
14
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 set. 1920, p 2.
Ao menos desde meados do século XX, esta consideração foi completamente invertida pela historiografia
literária brasileira. Cf. MIGUEL-PEREIRA, L. História da literatura brasileira. Vol XII, p. 175; CÂNDIDO,
Antônio. Formação da literatura brasileira. Vol 1, p. 18.
16
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 set. 1920, p 2.
17
ATHAYDE, Tristão de. A literatura em 1920, Revista do Brasil, São Paulo – Rio de Janeiro ano VI, volume
XVII, no 64, abril-junho 1921, p. 7-8.
15
161
Apresentado como “brilhante escritor, que apesar de jovem tão fortemente se impôs à
admiração do público inteligente”, ele elencara uma “dezena de gêneros” distribuídos em
“poesia, conto, crítica literária e filosófica, crônica, romance, viagens, filologia, memórias,
sociologia, ‘folclore’”18. O crítico avalia:
[...] a minha convicção é que, a despeito de tudo, um certo movimento idealista
anima as nossas letras e os que dela se ocupam. E esse movimento é o de uma
convicção crescente da nossa personalidade nacional e portanto literária, dos perigos
do cosmopolitismo, do contato com a nossa realidade e da necessidade de uma
conciliação dos caracteres locais e universais, individuais e humanos, para alcançar
a verdadeira personalidade literária19.
Tal como as reflexões sobre a condição racial, as perspectivas acerca de tal “verdadeira
personalidade literária” também eram vistas sob certo ceticismo, mas já com alguma confiança
ou, ao menos, um otimismo incipiente: “o mundo está preparando hoje uma geração poética
prodigiosa para 1960, quando se converter em matéria de beleza toda a massa dolorosa e
patética das grandes libertações atuais e da profunda inquietação do homem contemporâneo”20.
Domínios do tempo e do espaço
Se, no início dos anos 1920, a República estava velha, tal diagnóstico revelava-se antes
pelo descontentamento geral com o país do que por sugestões de mudanças reais de regime,
salvo exceções como a obra de Alberto Torres e as pregações dos movimentos anarquistas. O
que se destaca nos primeiros anos em torno da Grande Guerra é uma relação com o regime que,
apesar de não vislumbrar um horizonte de mudança radical, denuncia reiteradamente a
incapacidade de realização política do país. Pedro Lessa expressa tal condição no primeiro
número da Revista do Brasil ao tratar do “preconceito das reformas constitucionais”.
Segundo o jurista, a reivindicação daqueles que defendiam reformas constitucionais
baseava-se, justamente, na consolidação de um regime que estivesse mais de acordo com as
“tradições brasileiras”. Um governo condizente com a identidade do país. Lessa criticava essas
concepções, via o apelo a tais reformas como “recursos prediletos das nações fracas, incapazes
- por sua falta de educação e de energia – de um bom governo prático, e das nações decadentes
e enervadas, que, umas e outras, apelam frequentemente, mas debalde, para tão desacreditada
panaceia”21. No caso brasileiro, ele perguntava-se sobre qual regime seria esse, uma vez que,
sob o Império, a “constante preocupação dos espíritos liberais e progressistas era uma larga
descentralização administrativa, que no conceito dos mais adiantados quase se confundia com
18
ATHAYDE, Tristão de. A literatura em 1920, Revista do Brasil, p. 8.
ATHAYDE, Tristão de. A literatura em 1920, Revista do Brasil, p. 14.
20
ATHAYDE, Tristão de. A literatura em 1920, Revista do Brasil, p. 12.
21
LESSA, Pedro. O preconceito das reformas constitucionais – Qual a reforma do governo reclamada pelas
tradições brasileiras, Revista do Brasil, São Paulo, no 1, jan-abr 1916, p. 6
19
162
o federalismo”22. O parlamentarismo, em sua visão, “dados os nossos gravíssimos defeitos, a
péssima composição dos nossos congressos, a influência dos perniciosos elementos que
prevalecem na política nacional, [...] seria apenas uma nova e estranha modalidade da nossa
incapacidade, ou de nossa decadência política”. A tradição colonial, tampouco, emprestaria um
exemplo de governo, uma vez que o Brasil viveria sob o poder absoluto de Portugal que lhe
imprimira uma total tutela governativa23. Assim, não haveria nenhum regime político, ainda
mais na tradição brasileira, que pudesse servir de redenção à crise instalada e vivida.
Ele citava os Estados Unidos e a Argentina que compartilhariam, além de um passado
colonial, regimes similares ao do Brasil e que, não obstante, teriam “produzido os melhores
frutos, que é lícito esperar de aparelhos políticos, de organizações jurídicas abstratas”. O apelo
às reformas constitucionais seria confissão de incapacidade. Lessa acreditava que a “vida nova”
deveria começar sob a Constituição de 1891. Os eventos nacionais e internacionais, porém,
acenavam outras possibilidades e este texto de Lessa pode ser considerado uma das últimas
defesas da República brasileira tal qual ela havia sido delineada em sua primeira Constituição.
A própria reflexão acerca do passado segundo uma sucessão de “regimes de governo”
já não satisfaria a cultura intelectual. Daí a distinção que Tristão faz entre uma história
“considerada como registro e estudo dos fatos mais notáveis de um povo, especialmente do
ponto de vista do seu governo, e a história como investigação da vida, do caráter e da formação
desse povo, e nele portanto baseada”24. Enquanto a primeira estaria ligada à historiografia mais
tradicional, a segunda deveria ser mais explorada pelas próprias demandas do presente:
Se há um espírito de cada tempo, se o de hoje – que é mais do que nunca o de amanhã,
pois nunca talvez se tenha pensado tanto para o futuro como agora – nos leva a
estudar a sociedade em seus meandros, a esmiuçar-lhe as necessidades, a
compreender-lhe os direitos, pode-se afirmar que a história clássica, de datas e de
nomes, não tem por si o espírito do tempo.
A história dos “pontos culminantes” não interessaria mais, pois “a história não deve ser [...]
essa ‘mestra’ solene e moralista que, por poucas luzes que incita em seus discípulos, logo lhes
revela o manto de artifício e a consciente falsidade lançado sobre os acontecimentos”.
A história teria mais a ver com o “espírito coletivo”, “inconsciente” e “anônimo” do
que com as diretrizes reconhecidas em indivíduos e homens poderosos. Segundo o crítico, tais
ideias teriam suas primeiras sementes lançadas por Voltaire, em seu Ensaio sobre a história
geral e sobre os costumes e espírito das nações (1756)25, e ganhado desdobramentos ulteriores:
22
LESSA, P. O preconceito das reformas constitucionais, Revista do Brasil, p. 7.
LESSA, P. O preconceito das reformas constitucionais, Revista do Brasil, p. 7
24
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 out. 1921, p. 1.
25
O reconhecimento da obra de Voltaire verifica-se nas considerações feitas na History of Civilization in England
(1857) de Henry T. Buckle, autor influente e debatido pelos intelectuais brasileiros. Talvez, por isso, o crítico
considere a obra de Voltaire como precursora do “grande surto moderno da História da Civilização”. Cf. KERN,
Daniela. Voltaire. In: MALERBA, Jurandir (org). Lições de história: o caminho da ciência no longo século XIX.
23
163
Só estudando esses povos em sua vida cotidiana, só observando os seus costumes,
só procurando os seus ideais, é que será possível traçar um perfil menos inverídico
do que tenha sido realmente sua vida. As guerras são momentos de exceção, em que
cessa, ou melhor, se desvirtua a vida do país; as revoluções são simples crises agudas
de movimentos longos e profundos; as dinastias e as intrigas diplomáticas ficam
quase sempre estranhas à vida da nação, quando não contrárias. É mister estudar os
povos nos períodos de paz, na sua vida familiar, nos seus sentimentos íntimos, nas
suas festividades e nos seus hábitos, na sua organização social, nos seus meios de
vida, na sua instrução e educação, no seu jornalismo, na sua cultura, na sua vida
material e nos seus ideais, em tudo que represente realmente a vida normal desses
imensos corpos coletivos para depois confrontar as conclusões obtidas, com
observações sobre os períodos de crise, em que se põe à prova o trabalho das eras de
trabalho pacífico e fecundo. Seria, por exemplo, muito mais significativa de nossa
vida nacional, muito mais proveitosa para o estudo de nossa formação, uma História
da Escravidão no Brasil do que uma História Militar do Brasil. Pois bem, pouco ou
quase nada se tem feito pela primeira [...]26.
Tais reflexões eram feitas acerca do livro História Militar do Brasil do capitão Genserico de
Vasconcelos. Tal tipo de trabalho seria um modelo de “história transcendente” oposta,
consequentemente, a uma “história imanente”27. Em outra ocasião o crítico considerara que:
[...] tivemos oportunidade de expor dois métodos históricos, a que chamamos
transcendente e imanente, conforme partissem a priori dos grandes acontecimentos
para se aplicar a toda a vida nacional de um povo, ou começassem o seu estudo
empiricamente, partindo da realidade, aparentemente mais mesquinha e
desinteressante, a fim de lentamente ir traçando o verdadeiro perfil desse povo28.
Chegar a essa “verdade”, ou ao menos a um “perfil menos inverossímil”, seria
condição para superação do bovarismo que assolaria a cultura intelectual brasileira. Esta
concepção fazia com que Tristão de Athayde, ressoando as ideias de Capistrano de Abreu29,
considerasse ser impossível àquela altura a produção de uma história do Brasil:
Já se poderá escrever a História do Brasil? Penso que não. As raças em fusão e as
sub-raças derivadas ainda não cristalizaram em uma raça uniforme; o território ainda
não foi ligado com método e eficácia; uma nova língua lentamente se está formando;
o espírito da nacionalidade ainda não se desprendeu das tendências individuais e
regionais. Com uma unidade vacilante e instituições dificilmente adaptáveis à índole
nacional, estamos apenas em caminho para a independência. 1822 foi simplesmente
um pequeno impulso como haviam sido 1817, a abertura dos portos, a vinda da
família real, a Inconfidência, os descobrimentos do ouro e diamantes, a oposição das
câmaras municipais, o “bandeirismo”, as guerras holandesas. A posterior agitação
Rio de Janeiro: FGV, 2010, p. 41; ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 out. 1921, p.1.
26
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 out. 1921, p. 1.
27
A curiosa utilização deste vocabulário por Tristão de Athayde parece revelar no crítico a apropriação, tanto do
ramo da filosofia Escolástica, que percebia a “ação imanente” como aquilo que permanece no agente, ou seja, o
que ele quer, deseja, entende etc. e que era contraposta a uma “ação transitiva”, que teria sua finalidade em algo
exterior ao agente, como esquentar, serrar etc. Imanência contraposta à transcendência é uma relação cara à
tradição da filosofia idealista, especialmente em sua vertente alemã pós-kantiana, e a caracterização que Tristão
de Athayde faz do “transcendente” como associado a algo tomado como a priori corrobora com esta segunda
tendência. Porém, a forma como o crítico a aplica à história não parece ser coerente com nenhuma das duas escolas.
Sobre conceitos de transcendência e imanência ver verbetes em: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia.
Edição revista e ampliada. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
28
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 out. 1921, p. 1.
29
Desde 1882, Capistrano de Abreu via com ceticismo a possibilidade de se escrever uma “história do Brasil” e,
anos 1920, considerava tal história como uma “casa edificada de areia” e uma das razões para tal condição precária
era a falta de “monografias sobre temas históricos específicos”. Cf. OLIVEIRA, Maria da G. de. Crítica, método
e escrita da história em João Capistrano de Abreu (1853-1927). Dissertação de Mestrado. UFRS, 2006, p. 51.
164
política, imperial e republicana, e o progresso material não são mais do que novos
elos à cadeia. Nenhum desses movimentos tem uma ação definitiva: todos concorrem
apenas para um objetivo ainda alongado. Essa posição de nebulosa a resfriar-se não
permite, entre nós, a mentalidade do historiador nem a matéria histórica. O estudo
do Brasil só pode ser feito, hoje, por – estudos do Brasil. Só o assunto fragmentado,
os ensaios regionais podem preparar material para a futura visão do conjunto30.
Assim, às vésperas das comemorações do centenário da Independência, o crítico se perguntava
sobre a oportunidade “admirável” de nesta ocasião promover-se “a multiplicação dessas
monografias locais, como as queria Le Play, mas compreendendo toda a vida regional, pelas
quais se pudesse realmente compreender a eclosão da vida colonial, no território brasileiro”31.
O exemplo que viria sendo produzido à época seriam os trabalhos sobre a história
colonial de São Paulo feitos por Affonso d’Escragnolle Taunay, que compreenderiam que:
[...] a vida normal dos povos tem mais importância para a História, do que as
brilhantes narrativas dos fastos guerreiros ou políticos dos governos. A história de
baixo para cima não é a única mas é, sem dúvida, o fundamento, a estrutura da
História, que é vida e ideia e não museu ou panteão. Em nossa história ainda avulta
o mal por míngua de documentos. E, portanto mais merecem aqueles que tentam
reconstruir, sem fantasia, a vida colonial32.
Curiosamente, Taunay era o diretor do Museu Paulista desde 1917. De qualquer forma, na visão
do crítico, ele era um historiador que sabia analisar e reviver a “era das bandeiras” paulistas.
Sua pesquisa tinha como fontes principais as “Atas da Câmara Municipal de São Paulo”, cuja
publicação fora iniciada em 1914 por iniciativa do então prefeito da capital paulista,
Washington Luís, que, segundo Taunay, seria um grande “prestador de serviço à história paulista
e do Brasil”33. Na visão do crítico, da obra São Paulo nos primeiros anos (1554-1601):
[...] se podem imediatamente colher duas observações gerais de ordem material e
moral. Em primeiro lugar, a rudeza do viver quinhentista, em lares toscos,
desprovidos de todo conforto, num povoado de escassa centena de fogos, a princípio
isolado do litoral por um caminho longo e fragoso, habitado, aliás, por gente também
rude, de costumes frouxos, a que era preciso atalhar com uma regulamentação severa
de quase comunismo, e finalmente exposto constantemente aos ataques do gentio
inimigo e traiçoeiro34.
E a segunda “observação principal que ressalta dessas preciosas Atas: o espírito paulista de
independência e altivez. Desde então é possível notar a formação dessa índole, que vem a ser
até hoje o caráter específico do paulista, observado por quantos o tem estudado”.
Assim, a historiografia regional de Taunay contribuía para a consolidação e invenção
de uma identidade regional paulista que ganhava corpo com o decorrer dos anos35. Esta
30
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 jul. 1919, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 out. 1921, p. 1.
32
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 abr. 1923, p 1.
33
TAUNAY, Affonso E. Inventários do Sertão. O Jornal, Rio de Janeiro, 1 out., 1922, p 1.
34
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 mai. 1921, p 1.
35
Sobre formação da identidade paulista no século XX cf. ABUD, Kátia Maria. O sangue intimorato e as
nobilíssimas tradições (a construção de um símbolo paulista: o bandeirante). Tese de Doutorado em História.
USP, 1985; FERREIRA, Antônio Celso. A epopeia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (18701940). São Paulo: Editora UNESP, 2002.
31
165
historiografia seria um exemplo de história “imanente”, afinal, como o crítico afirmara:
[...] ouso recomendar a leitura atenta dessa história de São Paulo a todos que queiram
conhecer realmente o que foi o Brasil colonial e como nasceu lentamente a nossa
civilização. Aprende-se mais lendo um desses volumes de realidade precisa, sem
falsos arrebiques, nem grandiosidades afetadas, do que todo um curso de História do
Brasil. Porque ali se aprende a ver o Brasil real, a vida da colônia tal qual nascia do
primeiro contato do homem, despido do seu fulgor de herói, com a terra, despida da
sua clássica magnificência pomposa, e com índio, despido de sua coroa de mártir, ou
de sua pura animalidade de bárbaro. Nesses livros, de tão escrupulosa veracidade, é
que temos de fundar nossa história nacional. Quando se estenderem essas
monografias a outras partes do país, quando conhecermos realmente o caráter e os
costumes desse primeiro contato, é que poderemos começar o estudo definitivo de
nossa vida nacional, já tão brilhantemente versado, desde Fr. Vicente do Salvador ao
Sr Rocha Pombo ou Capistrano de Abreu36.
A obra de Taunay seria exemplo de história “documental” que se somava a outras abordagens
do passado: a “reconstitutiva” e a “polêmica”. Embora nenhuma existisse de maneira pura, o
crítico considerava a história documental como aquela que se prenderia à “análise das fontes,
procurando a autenticidade dos argumentos e provas em que se possa fundar toda conclusão ou
reprodução histórica”; a reconstitutiva como a que “faz ressurgir o passado em seus contornos
reais; evoca os acontecimentos procurando reproduzir a vida das épocas que estuda”; e a
polêmica sendo a que “procura interpretar os fatos, rever as provas, cotejar autoridades, para
pesar os juízos históricos e restabelecer quanto possível a veracidade dos acontecimentos”37.
Assim, a história poderia ser “imanente” ou “transcendente” e seguir orientações
documentais, reconstitutivas ou polêmicas. A história documental seria a menos praticada na
cultura intelectual. Já a reconstitutiva teria mais adeptos, como Alberto Rangel com o livro
Quando o Brasil amanhecia, que não seria “nem obra histórica, nem obra de ficção” e relatava
eventos “como [...] a morte de Fernão Dias, [...] a partida de Maurício de Nassau, a chegada a
Vila Rica da cabeça decepada de Tiradentes, [...] o levante de Felipe dos Santos e outros muitos
episódios peculiares [...]”38. Um nome que se destacava no gênero “reconstitutivo” da história
era Viriato Correia, autor, dentre várias outras produções, de Contos e Crônicas da História
Brasileira. Sua obra abrigaria a tensão entre o documental e a reconstituição:
Todo mundo sabe que o Sr Viriato Correia não faz um trabalho de investigação
original, de pesquisa de fontes e documentos, de história científica ou filosófica em
sentido geral. Trabalha sobre episódios históricos tradicionais, sem desdenhar as
próprias lendas, procura os fatos em cronistas ou historiadores particulares,
limitando-se, o que é muito, a reviver a vida de outrora, ou a interpretar os dados
fornecidos pelos investigadores originais ou outros, revendo julgamentos habituais
ou retraçando perfis adulterados pelo tempo ou pela fantasia. Sendo assim, não devia
o Sr Viriato Correia limitar-se às sumárias indicações que, às vezes, apresenta sobre
a origem das informações que lhe servem de base ou de subsídio. Afinal, se não é a
história em sua mais nítida compreensão que interessa ao Sr Viriato Correia, também
não pretende simplesmente fazer uma literatura à margem da história. Neste volume
36
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 out. 1921, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 mai. 1921, p 1.
38
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 jul. 1920, p. 2.
37
166
[...] sente-se que o critério da verdade cada vez mais o preocupa, tanto nas
reconstituições como nas discussões. Sendo assim, não se compreende a indicação
bibliográfica tão falha de todo o livro, sendo que às vezes inteiramente nula39.
Viriato, na visão do crítico, concederia à história uma “atualidade flagrante” e à literatura uma
“feição poderosa de veracidade”, harmonizando “perfeitamente as duas atividades”.
A história “polêmica”, por seu turno, poderia ter como objeto as mais diversas
questões. A história polêmica aproximaria o historiador do homem de ação. Tristão de Athayde
contrapunha a obra do General Alípio Bandeira a do historiador católico Jonathas Serrano. O
primeiro, participante da comissão Rondon, tratava do Serviço de Proteção aos Índios levado a
cabo por políticas de governo. Bandeira opunha o serviço do Estado, cujos agentes “acreditam
na possibilidade de incorporar o selvagem à nossa civilização, creem nas vantagens mútuas
dessa obra e estão convencidos dos processos que para isso emprestam”, à história das missões
religiosas, as quais, ainda naquele período, não teriam “preocupações tão altas. Para eles o índio
é a máquina da produção, o motivo da pedincharia, o instrumento da fortuna”40. Já a obra do
historiador Jonathas Serrano, Um aspecto social da educação da Infância, fazia proselitismo
católico considerando que “só no jardim da Igreja podem vicejar as flores do bem”. O crítico,
apesar de reconhecer os benefícios da ação religiosa, lembrava que existiria “solidariedade fora
dos jardins da Igreja”. Tristão reconhecia o valor das perspectivas polêmicas dos autores:
Dignos ambos de apreço, move-os a mesma intolerância sectária, fazendo com que
um só veja o bem na sua igreja, e o outro a verdade em seu credo. É a eterna
intransigência, fator de tantas injustiças, mas afinal inevitável, e talvez necessária.
Necessária, não para aquele que julga ou expõe os acontecimentos, portanto para o
historiador, mas para o homem de ação, para quem a justiça estrita e precisa é um
fator de enfraquecimento.
De modo geral, o importante era a forma como contribuiriam para a formação de uma
historiografia regional que, por sua vez, possibilitasse a consecução de uma História do Brasil.
Daí o crítico reconhecer o mérito na reedição de uma obra como os Estudos de História do
Ceará, de Joaquim de Oliveira Catunda. Tristão avalia positivamente a influência da
historiografia alemã no autor, ao mesmo tempo que impõe reparos ao seu racialismo. Assim, na
obra do historiador cearense “o pensamento mestre parece ser a hierarquia das raças. As raças
puras são as raças superiores: os mestiços são incapazes de civilização. Por aí logo se reconhece
a cultura germânica do autor”. Seria preciso, porém, refletir mais sobre tal questão racial:
Faltam-me competência e espaço para rebater esse debatido ponto de vista. O
espetáculo da civilização europeia, contudo, não é molde a recomendar a ideia. Que
são esses povos senão a amálgama de virtudes e defeitos do Mediterrâneo e do
Báltico? De um lado os germanos, eslavos e normandos, fortes e cruéis, sadios e
aventureiros, independentes e atrasados. De outro, os gregos, romanos e semitas com
os primores de uma civilização avançada, de um longo progresso intelectual – a
inteligência, a sensibilidade, o culto da beleza, a par de todas as taras de raças
39
40
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 mai. 1921, p 1.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 19 abr. 1920, p 2.
167
decadentes e esgotadas – a moleza, a luxúria, os requintes verbais, a pobreza moral.
E dessa fusão de virtudes e vícios – o intelectualismo meridional fecundado pelo
sadio vigor setentrional -, não veio nascer afinal o que de mais alto produziu a
chamada – civilização? Das raças inferiores pode nascer uma raça nobre. Helenos e
etruscos eram ramos da mesma migração asiática: os primeiros legaram a mais bela
flor humana, os outros passaram a viver apenas no olvido da história. E o esplendor
egípcio terá sido, por acaso, obra de raças estremes senão de mestiços? A América é
terra de mestiços. Os norte-americanos são frutos de raças fundidas, em marcha para
uma nova condensação. É certo que a nós coube peso maior, com o afluxo de sangue
“inferior” africano e indígena. Por isso, enquanto a fusão dava aos Estados Unidos
“a atividade”, às repúblicas hispano-americanas “a altivez”, deu-nos a nós uma
“submissão inquieta”, e essa “sensibilidade”, que é a nossa fraqueza e o nosso
perfume41.
Reconhecendo sua “falta de competência”, o crítico ensaia uma nem tão bem-sucedida tentativa
de escapar ao racialismo reinante no período. De qualquer forma, o que importaria no caso é
que a história não poderia se prender à verificação de processos raciais que, não raro,
acarretariam diagnósticos pessimistas e deterministas como os de Catunda:
A república (do Equador) morreu pela incapacidade nativa da raça para qualquer
regime de liberdade política. Jamais os descendentes das populações sul-americanas
formarão uma república de homens livres [...] Depois de mais de meio século de
tirocínio de governo constitucional o Ceará se acha ainda como nos primeiros dias
de sua inauguração42.
O crítico lembrava que o “cearense não é simplesmente um mestiço de índios falsos e venais,
de negros perversos, de brancos calcetas e aventureiros como quer o autor”. Ao mesmo tempo
em que se deveria combater as visadas deterministas de uma historiografia do século XIX [a
primeira edição do livro de Catunda é de 1885], reconhecia-se que “antes que de cada uma de
nossas províncias sejam feitos estudos análogos, não é possível a História Pátria”.
Assim, o regionalismo não seria uma mera escola literária mal definida e caracterizada
apenas por seus defeitos. O regionalismo era uma visão de mundo, um princípio orientador e
organizador dos saberes acerca do país e que se apresentava como condição de possibilidade
para a produção de qualquer conhecimento seguro acerca do conjunto nacional. Na perspectiva
regionalista, o realismo reivindicado pela cultura intelectual brasileira passaria pela superação
das sínteses que, seja segundo um princípio racial, seja segundo uma história dos eventos, não
chegariam ao conhecimento “real” do país. A relação entre o regionalismo e a República de
1889 seria íntima: “Só com a República e o seu federalismo político pôde expandir-se
francamente esse espírito regionalista, que sempre existiu (basta lembrar a ação das Câmaras
Municipais no esforço da independência), mas só então encontrava terreno propício para o seu
franco desenvolvimento”43.
Ao comentar o livro de Catunda, Tristão espantava-se com o fato de o historiador
41
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 jul. 1919, p. 9.
CATUNDA Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 jul. 1919, p. 9.
43
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 jun. 1921, p. 1.
42
168
cearense mencionar apenas de maneira passageira um tema como o da seca. O regionalismo,
assim, instituía temas e questões que iam se tornando incontornáveis na reflexão regional.
Através do domínio regionalista, o país começava a ser visto, de forma mais acentuada, segundo
suas diferenças “raciais”, sociais, políticas e culturais. Ao tratar da obra Beatos e Cangaceiros,
de Xavier de Oliveira, o crítico considerava que, assim como Sarmiento vira o litoral argentino
vivendo o século XIX enquanto as regiões interioranas permaneceriam no século XVI, em
“nosso território também convivem todos os estágios de cultura e civilização, desde a idade
regressiva da pedra lascada, dos aborígenes do Mato Grosso e do Amazonas, às mais avançadas
conquistas do Rio ou São Paulo”44.
O “conhecimento” regionalista instituía incompatibilidades e diferenças abissais, tanto
no espaço quanto no tempo. A obra de Xavier de Oliveira tratava do que já teria se
convencionado chamar “banditismo do Nordeste”. O crítico lembrava que o tema há pouco
tempo tinha sido apreciado por Gustavo Barroso, no livro Heróis e Bandidos, que estudara:
[...] as causas precípuas desse fenômeno, destacando sobretudo as condições
mesológicas e os antecedentes étnicos. Insistiu então o Sr Gustavo Barroso sobre o
motivos econômicos ou naturais, como sejam – clima, deficiência de alimentação,
vida pastoril, frequência às tavernas, falta de saneamento, isolamento – para explicar
a constituição rude dessa gente e os seus hábitos violentos e rudimentares.
Xavier Oliveira, porém, não compartilhava de tais concepções. Segundo Oliveira, as causas do
“banditismo” seriam devidas a “motivos morais: analfabetismo, ausência de justiça, falta de
trabalho e exiguidade de salário, politicagem”45. Por existir tais mazelas em todo o país, o crítico
não concordava com o diagnóstico. Lembrando ainda os escritos de Euclides da Cunha sobre
“a terra e o homem” presentes em Os Sertões, Tristão de Athayde estipula um “meio termo” em
que uma vez que “as causas profundas e remotas são essencialmente étnicas e mesológicas,
podem as causas apontadas pelo Sr Xavier de Oliveira ser aceitas como causas imediatas,
relevando entre elas – a ausência de justiça e a politicagem”46.
Segundo o autor de Beatos e Cangaceiros, “no sertão não há lei, não há direitos, não
há justiça. E, por isso, como nos tempos primitivos: cada um se garante a si mesmo, como
pode”. Daí a enumeração de casos como os do cangaceiro Antônio Silvino que, após o assassino
do pai ter ficado impune, matou por vingança o criminoso e quatro irmãos deste. Depois, entrara
para o cangaço. Oliveira afirma que “não há polícia no Nordeste” e sugeria o seguinte:
Poderiam fazê-lo avocando à União o ensino primário obrigatório: fazendo a unidade
da magistratura, para que os juízes encarregados da distribuição da justiça
independam dos governos dos Estados; criando as Regiões Militares, no interior do
país, para despertar o civismo dos sertanejos; e tornando um fato o voto livre e a
44
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mai. 1920, p. 2.
OLIVEIRA Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mai. 1920, p. 2.
46
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mai. 1920, p. 2.
45
169
eleição direta, desde os prefeitos dos municípios ao presidente da República47.
Note-se que as medidas coadunam-se com o regime estabelecido, apenas reivindicando-se
maior aplicabilidade das leis existentes e a reforma de algumas. O crítico, porém, continuava
cético, pensava que “uma tal transformação dessa sociedade só pode ser obtida, sucessiva e
paulatinamente, por um processo econômico, higiênico e moral com raízes profundas no tempo
e na consolidação de uma nacionalidade ainda efervescente”. Não obstante, seria um problema
que exigiria “medidas imediatas e práticas, ainda que não passem de paliativos ou fortificantes,
e sejam quais forem essas medidas, o mais urgente é combatermos a indiferença do litoral pelo
interior e atentarmos para o desamparo em que vive o homem do sertão”48.
O “homem do sertão”, no caso, ficava por conta da descrição dos “tipos” do beato e
do cangaceiro. Sobre este, a obra não traria originalidade, pois teria seu “tipo” já era descrito:
Grande chapéu de couro quebrado adiante e atrás, meio a Napoleão, enfeitado com
uma rosa encarnada, e de largo barbicacho, espécie de cilha na testa, logo acima das
sobrancelhas; um lenço encarnado, posto no pescoço, à cintura, servindo de peitoral,
um bornal cheio de balas e um cobertor de lã, postos a tiracolo; um patuá e uma
cabaça de colo amarrados à cintura, e onde trazia mantimentos e agia para as grandes
travessias; alpercatas de rabicho; cartucheiras de arma longa e de arma curta; um
grande punhal de dois gumes, cabo de prata e ouro, posto por trás das cartucheiras,
ao nível do abdômen de cima para baixo, da direita para a esquerda, de modo a ficar
o cabo à altura do hipocôndrio direito e a ponta para além do quadril esquerdo. Uma
pistola Colt, presa da cintura aí pela região paraumbilical do mesmo lado; um longo
facão, modelo baioneta, pendido da anca; e uma carabina, das do Exército nacional,
tipo 908, sua arma predileta!49
O “beato” seria original. Este não deixaria de ser um cangaceiro, “é antes uma coisa e outra,
ora cangaceiro arrependido, ora beato valente e cruel”. Haveria “várias espécies” de beatos
movidas, em geral, pelo “interesse ou o cuidado da própria salvação, o terror das penas eternas
e a devoção ao P Cícero, ‘o padrinho’”. Segundo descrição de Oliveira:
O beato é um sujeito celibatário, que faz voto de castidade (real ou aparentemente),
que não tem profissão porque deixou de trabalhar, e que vive da caridade dos bons e
das explorações dos crentes. Passa o dia a rezar nas igrejas, a visitar os enfermos, a
enterrar os mortos, a ensinar orações aos crentes, tudo de acordo com os preceitos
do catecismo! Veste à maneira de um frade: uma batina de algodão tinto de preto,
uma cruz às costas, um cordão-de-são-Francisco amarrado à cintura, uma dezena de
rosários, uma centena de bentinhos de São Bento, uns saquinhos com breves
religiosos e com orações poderosas, tudo pendurado ao pescoço50.
Segundo o crítico, alguns membros dessa “cultura do cangaço” seriam “bandidos comuns, sem
especial interesse”. Representariam outros, porém, “uma feição peculiar e preciosa da
nacionalidade, e todos denunciam uma grande miséria latente e um injustificável desamparo”.
Ao fim, reconhecia-se que da “observação dessa galeria de nossos compatriotas nos fica um
misto de admiração e de tristeza, mais de tristeza que de admiração”. O cangaço seria um
47
OLIVEIRA Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mai. 1920, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mai. 1920, p. 2.
49
OLIVEIRA, Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mai. 1920, p. 2.
50
OLIVEIRA, Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mai. 1920, p. 2.
48
170
fenômeno “natural” frente às “condições precárias de nossa civilização atual”, um “mal de
crescimento”, uma “força mal encaminhada”51.
O regionalismo não deixava de oferecer estereótipos e figuras exóticas, como a dos
cangaceiros e beatos. Onde começaria o exotismo e terminaria o conhecimento? A longevidade
destas descrições típicas revela a permanência do regionalismo no horizonte cultural da
sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, as descrições regionalistas vinham acompanhadas de
reivindicações quanto às ações a serem tomadas pelo poder público a fim de sanar as mazelas
do universo regional. A “verdade” do interior, cada vez mais, iria se caracterizar por seu caráter
ambíguo: ao mesmo tempo em que era tida como portadora de uma essência nacional, ela trazia
incompletudes, defeitos e problemas que necessitavam de intervenções políticas.
A produção regionalista era enorme. Tristão de Athayde procurou, por mais de uma
vez, sistematizar o processo que caracterizaria o regionalismo:
A mentira literária, que o romantismo erigira em dogma, como realizando
paradoxalmente a expressão mais sincera dos temperamentos, cedera então lugar à
obsessão da verdade – tudo estava no documento, no fato, na visão direta das coisas.
O prestígio secular da fantasia se apagava perante o valor crescente da observação.
Já não eram florestas encantadas, criaturas de lenda, incidentes romanescos, estilos
figurados que dominavam a literatura, mas o meio ambiente, as figuras reais, as
ações possíveis e a verdade das palavras. E o regionalismo literário nasceu,
naturalmente, dessa transformação do espírito público dessa nova orientação
estilística, contando já hoje com uma longa cópia de cultores [...]52.
Do estudo da crítica literária, uma lista de autores vivos àquela época pode ser depreendida
contendo nomes como Alberto Rangel, Rodolfo Teófilo, Catulo da Paixão Cearense, Alberto
Deodato, Gustavo Barroso, Xavier Marques, Xavier de Oliveira, Hugo Carvalho Ramos,
Alcides Maia, Valdomiro Silveira, Monteiro Lobato e outros. Assim como a história procurava
produzir monografias regionais a fim de consolidar uma historiografia nacional, os literatos
engajavam-se na construção de obras que reforçassem as identidades regionais.
É a época dos glossários ao fim das obras, das reflexões em torno da(s) língua(s)
brasileira(s), dos trabalhos que poderiam ir desde a coleta de produções tidas como populares
até à emulação poética e literária destas mesmas produções. As Trovas populares de Afrânio
Peixoto estariam incluídas no primeiro caso. Segundo o crítico, “foi nos meados do século XIX,
com José de Alencar, e especialmente com os preciosos estudos de Sílvio Romero, que se
iniciou entre nós o interesse pelo folclore, e desde então têm visado os investigadores a poesia,
desdenhando os poetas”53. A “novidade” residiria na identificação dos poetas tidos como
populares, assim como numa reflexão acerca do que seria “poesia popular”. Segundo Peixoto,
“a poesia popular sê-lo-á, não porque vem do povo, mas porque é criada para o povo, e por ele,
51
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mai. 1920, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 jun. 1921, p. 1.
53
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 nov. 1921, p. 1.
52
171
se o mereceu, foi adotada”54. O crítico comenta a tal respeito:
Se é certo, como observa o autor, que o sensualismo transborda de toda a poesia de
nosso povo, não é menos patente a ausência de dor nas suas trovas. As tristezas são
invocadas não como feridas da alma, senão para despertar a piedade ou o interesse.
Descuidoso e confiante, o nosso sertanejo é volúvel, esquece as dores sem dor.
Indolente, mas forte e otimista, sabe fugir a tristezas que emudecem o coração e
prefere o consolo da melancolia desamargurada, tinta de uns longes de ironia. Sem
embargo, nunca deixa de invocar o mal de amor, os queixumes da saudade ou da
desesperança, para o efeito poético ou o enternecimento amoroso55.
O livro organizado por Peixoto era uma tentativa de se contrapor à obra de Agostinho Campos
e Alberto de Oliveira, Mil trovas Portuguesas, daí a comparação de Tristão de Athayde:
As trovas portuguesas, ao invés, são um tecido de tristezas. O fado, o destino como
indica o termo, recebeu de início a tristeza dos mouros pioneiros, seus criadores,
quando às noites de Lisboa, nas ruas fechadas por cadeias, sob o olhar dos esculcas
cometidos à sua guarda, modulavam, em algaravia, suas queixas de exilados
nostálgicos das planuras comburentes de África. Depois recebeu o fado a tristeza das
mulheres que ensopavam de lágrimas as praias de Belém ao romper das caravelas
para Melinde ou Santa Cruz. E a dor dos que partiam, lançados no ignoto, isolados
da pátria, e do mundo, consumindo-se em saudades? Tristeza dos mouros, tristezas
das mulheres, tristezas dos navegadores – dessa trama se teceram as trovas de
Portugal.
Os cantores populares brasileiros, ao contrário, seriam “cigarras do sertão, beija-flores das
cidades” em que a dor é “apenas um tema”56. Além disso, a veia cômica seria uma constante:
Outros caracteres somenos distinguem as nossas quadras, como sejam: a irreverência
para com as ideias recebidas, a religião, a velhice, a mulher, reminiscência de nossos
costumes coloniais, que oscilavam entre a tirania estreita dos padres e a moral
despejada da massa; e ainda o pundonor da coragem, a petulância, a gabolice,
verdadeira feição do mestiço57.
No mesmo sentido, o livro de Leonardo Mota, Cantadores, reunia uma série de compositores
populares. O crítico procura estabelecer algumas características da poesia popular em geral:
O povo não é só a coletividade, mas cada uma das suas parcelas. O povo é o
indivíduo, caso este possua os caracteres daquele, sobretudo a espontaneidade e a
incultura, além dos peculiares a cada grupo nacional. A poesia culta se distingue pelo
que há de diferente, de pessoal, de original no seu criador. O poeta é o indivíduo que
se destaca do seu meio, e mais vale à medida que se eleva acima do ambiente. A
poesia popular, pelo contrário, caracteriza-se pela fusão com os elementos que a
rodeiam: o poeta do povo é tanto maior quanto mais participa da alma coletiva. Essa
poesia pode somente provir do povo, como apenas ser feita pelo povo. No primeiro
caso, será muitas vezes dessaborida e vulgar, porque o povo não é infalível, como
poeta humano que é. Sendo feita para o povo, mais fácil é ainda a falsificação
aparente e o valor nulo. O critério menos falho para julgar dessa poesia é sentirmos
que ela nasce do povo e naturalmente repercute e se espalha por ele58.
A apreciação da poesia popular pelo intelectual exigia essa disposição à contemplação
de seu “outro”, qual seja, do “inculto” que, por sua vez, lhe revelaria o que tanto busca: a “alma
54
PEIXOTO, Afrânio. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 jun. 1919, p. 11.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 jun. 1919, p. 11.
56
O crítico cita a seguinte quadrinha: Lágrimas são o que eu almoço,/Janto suspiros e dor,/À tarde merendo ais,/À
noite ausência de amor. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 jun. 1919, p. 11.
57
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 jun. 1919, p. 11.
58
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 nov. 1921, p. 1.
55
172
coletiva”. E, mais uma vez, o Ceará é destacado:
O Ceará não é o deserto nem a promissão, por ser uma e outra coisa. Calcinado pelo
sol, desamparado por seus filhos, vendo extinguir-se a vida em seu solo maldito –
não desaparece a seiva dessa terra incrível, mas recolhe-se pra explodir, em
verdadeiros hinos de vitória, nos anos de fartura e bem-aventurança, que se
prolongam até a marcha inflexível do flagelo que novamente se abate sobre a terra
mártir. Uma natureza dessas cria os homens à sua feição: nem o enfado do ócio, nem
o esgotamento da luta, mas o estímulo à vitalidade com a recompensa do esforço.
Esta uma das causas que pelo nordeste estimula a poesia popular, comunicando-lhe
excepcional poder de expressão e de impressão. Se a natureza operava por essa forma
sobre os homens, era natural que esses comunicassem à sua poesia espontânea a
têmpera que possuíam. E, por isso, o primeiro caráter que atrai a atenção para essa
musa popular é a sua varonilidade.
Novamente, a imagem do homem forte euclidiano moldado pelo clima, pela terra e pela raça se
destaca e se reafirma. O mérito da obra de Leonardo Mota seria o de não ter desdenhado o
sujeito criador, indo ao seu encontro para lhe ouvir as poesias e reproduzí-las. Aí as
individualidades despontam, revelando formações diferenciadas dos compositores que, na
opinião do crítico, “quando mais inculto o poeta, melhor a poesia”. Daí comparar Anselmo,
completamente analfabeto, ao cordelista João Mendes de Oliveira que se “gabaria” de ser
letrado e de editar seus versos59. O primeiro guardaria maior fluência e espontaneidade, ao passo
que o segundo perdera a “frescura natural”, mas tornara-se poeta expressivo da região ao
documentar, dentre outras histórias, “o fanatismo das rústicas populações do Norte pelo Padre
Cícero”60, seu verso “Páde Cisso é uma pessoa / Da santíssima Trindade!” teria ficado
famoso61. A obra elencaria vários “cantadores”, inclusive mulheres, prestando um bom serviço:
Serviço, a nós das cidades, porque nos permite compreender mais de perto a alma
sertaneja. Serviço à nossa literatura, porque lhe trouxe incomparável contingente de
expressão e de beleza. Serviço, enfim, a esses poetas do sertão, pois veio tirar do
anonimato em que viviam esses criadores da poesia popular, do povo para o povo,
apontando-os à nossa justa admiração62.
Também nesta tendência estão os trabalhos de Amadeu Amaral e Gustavo Barroso.
Este era autor de várias obras e artigos de jornal em torno do folclore e da cultura “popular”. O
folclore constituiria um domínio fundamental do regionalismo e seria, segundo o crítico, uma
“arte exata” ou uma “ciência balbuciante”63. O folclore expressava o interesse pelo “popular”:
59
Os versos citados de Anselmo são “Avoa, meu caboré, / Penera, meu gavião, / Palmatora quebra dedo, /
Palmatora faz vergão, / Quebra os osso e quebra a carne / Mas não quebra opinião!... / Triste sina de quem nasce
/ Porque, depois de nascê, / Não escapa de mamá, / Depois de mamá – vivê, / Depois de vivê – pecá, / Depois de
pecá – morrê... / Depois do corpo pená / A alma é quem vai sofrê”. Enquanto os do “letrado” João Mendes
guardariam títulos como “O Brasil em guerra” e se expressariam em versos como estes: “Vê-se na costa dos mares
/ A grande carnificina, / Entrou agora na luta! / Chile, Brasil, Argentina! / Da Prússia vem a natema / Com este
novo sistema / Da guerra subimarina”. Sobre o último, Tristão o compara ao cantador, poeta, músico e compositor
Eduardo das Neves. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 nov. 1921, p. 1.
60
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 nov. 1921, p. 1.
61
O poeta cearense é lembrado ainda hoje, dentre outras coisas, por ter abrigado Lampião em seu sobrado em
Juazeiro do Norte, no ano de 1926, por ocasião da Coluna Prestes. Cf. CARVALHO, Gilmar de. Madeira Matriz:
cultura e memória. São Paulo: Annablume, 1998, p. 65.
62
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 nov. 1921, p. 1.
63
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 jul. 1919, p. 7.
173
[...] sintoma característico das sociedades modernas, prolonga suas raízes até o
século XVIII. Foi esse um século de libertações, iniciado no domínio das ideias, e
passando, no fim, ao domínio da ação. Século de individualismo filosófico e ativo,
preparou o século da cultura, que foi o XIX. Essa nova entidade, povo, cujos direitos
e cujo poder se haviam revelado no século anterior, começou a interessar todos os
espíritos. [...] Já não era o povo aquele animal quase inconfundível com a terra, que
La Bruyère mostrara numa página pungente, nem essa terrível força social que se
impunha brutalmente à luz das novas correntes de ideias. Começava a ser estudado
cientificamente, com o fito na investigação de sua psicologia. Criou-se uma ciência
para as criações populares, que em 1846, recebia, na Inglaterra, o batismo de folklore. Mas enquanto, com o romantismo, via a arte nesse filão um meio de
diferenciação nacional – como se deu, por exemplo, na Alemanha com a fortuna do
Lied -, tendia cada vez mais essa ciência a mostrar a identidade humana fundamental
de todos esses caracteres, aparentemente diversos – ou de todas as origens, que,
segundo o unigenismo de Benfey64, iam encontrar-se no oriente indiano. Como
sempre, ao mesmo resultado divergente chegou, entre nós, o estudo da alma popular.
No velho mundo, foi a revolução filosófica e social que chamou a atenção de artistas
e críticos para a literatura do povo. Entre nós, foi a revolução política e logo o espírito
patriótico desse novo campo de estudos e de inspirações65.
No caso brasileiro, o crítico enumera os trabalhos realizados na década de 1870 por Celso de
Magalhães e José Alencar. Sílvio Romero, porém, teria conferido “sistematização” e caráter
“científico” a tais estudos segundo o caráter “etnológico” que tinha no “critério das raças
formadoras” o meio de “classificar os frutos da fantasia popular”. Desde então:
Foi a classificação geralmente seguida, depois dele, sendo que os estudos se
orientavam de preferência no sentido horizontal – isto é, a coleta de novo material
de acordo com os diferentes meios – do que no sentido vertical, isto é, na
investigação das origens, daquele caráter têm participado geralmente os estudos os
estudos de literatura popular posteriores a Sílvio Romero, e que em vez de tentarem
a consideração de toda a matéria, se restringiram a determinadas regiões, como o
Barão de Studart ou o Sr Leonardo Mota, no Ceará, Pereira da Costa, em
Pernambuco, Vale Cabral, na Bahia, Rodrigues de Carvalho, no Norte em geral, ou
Carlos de Koseritz, no Rio Grande do Sul.
Na obra Ao som da viola, de Gustavo Barroso, o folclore começaria uma nova fase:
Sílvio Romero faz derivar todo o nosso folclore das três raças básicas da nossa
etnografia, anotando as variações e mutações trazidas pelos mestiços. Mas
considerando todos os folclores, na maioria originários de um fundo comum de toda
a humanidade, e considerando as dificuldades que se antolham a qualquer estudioso
no escalpelar essas origens africanas, indígenas e portuguesas, já hoje tão baralhadas,
tão confundidas, parece melhor dividir o folclore sertanejo em ciclos mais ou menos
temáticos, que lhe possam dar maior facilidade de classificação e de organização66.
Assim, o estudo do folclore e da “cultura popular” passaria a relativizar a centralidade de
critérios racialistas. Barroso proporia um sistema de classificação e caracterização da “musa
sertaneja”. Haveria ciclos diferenciados da produção, como o dos Bandeirantes, o do Natal, o
64
Theodor Benfey (1809-1881) foi um professor alemão especializado no sânscrito e no estudo comparativo das
línguas. Suas teorias reconheciam a origem indiana de várias histórias, contos e lendas que formariam o conjunto
das tradições europeias. No fim dos anos 1920, suas teorias eram questionadas, apesar de a questão das influências
orientais permanecerem como um tema recorrente neste campo. Cf. D’OLDENBOURG, Serge. Le conte dit
populaire: problèmes et méthodes, Revue des études slaves, Tome 9, fascicule 3-4, pp. 221-236, 1929.
65
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 nov. 1921, p. 1.
66
BARROSO. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 nov. 1921, p. 1.
174
dos Vaqueiros, o Heroico ou dos Cangaceiros. O autor coletara e caracterizara a produção de
cantadores populares, segundo um “folclore repentista”, além de trabalhar outras formas dessa
cultura como histórias, fábulas, lendas e superstições. Acerca da “poesia popular”, ele
enumerava as formas variadas que ela poderia assumir como a quadrinha, o “martelo” (desafio
em toada rápida) feito em “obras” (estrofes) de dez versos decassílabos denominados, no
nordeste, “gabinete”. Sintetizava o crítico: “os gêneros poéticos de que geralmente se socorrem
os cantadores são as ‘obras de seis’, ‘sete’ ou ‘oito pés’, o moirão, o martelo, a obra de ‘nove
poesias’, a ligeira, o quadrão, o gabinete, o galope, a embolada, e o ‘dez pés em quadrão’”67.
A “fase” em que estaria o folclore àquela altura seria a de reunião documental:
Dia para dia afluem novos materiais, trazidos pelo carinho de devotos e fanáticos.
Os folcloristas são, por vezes, sábios observadores e eruditos; ainda não podem ser
cientistas. Os autores ingleses e alemães, que mais profundamente versaram o
assunto, acham-se ainda na fase das doutrinas, dos sistemas: caminham para a
verdade68.
O crítico considerava que tal tema não seria de fácil desenvolvimento, pois a “verdade popular
é árdua e arriscada”. Dessa forma, o folclorista deveria ser “um glotólogo, um humanista, um
observador, um generalizador, um erudito. E se não for um artista, ou quando menos um homem
de gosto, logo degenera em compilador árido e ilisível”. Mas o que se via era que “todo mundo
se julga folclorista. Não há quem desconheça mitos e tradições, provérbios e parlendas,
brinquedos e superstições populares e não se arvore em comentador desses fenômenos
literários. Por isso o material bibliográfico ou oral do assunto é inesgotável”. Os folcloristas
contribuiriam para o saber acerca do “povo” a fim de se superar o inveterado bovarismo.
Aí se incluiria parte da obra de Cornélio Pires, especialmente Conversas ao pé do fogo,
que faria parte do processo geral de um “auspicioso e crescente interesse pelas coisas do sertão”.
Pires recolhera “histórias autênticas ouvidas de caipiras puros e reproduzidas com a maior
fidelidade de léxico e sintaxe”, seu livro conteria “curiosos provérbios, abusões, ações,
recolhidas no sertão paulista, análogos aos coligidos no nordeste pelos Sres. Gustavo Barroso
e Leonardo Mota”69. Por mais de uma vez, o crítico retoma a história desse tipo de produção
que, pela fragmentação da crítica literária, temos que recompor como uma espécie de mosaico:
No correr de nossa literatura, o que a princípio interessou como elemento original do
país foi a natureza. Mais tarde começou o homem a valer alguma coisa, mas como
elemento típico e artificial, com pouca verdade intrínseca ou mesmo aparente.
Modernamente, com a orientação realista e regionalista de grande corrente literária
nacional, começou-se a encarar esse nosso “homem” com olhos de quem quer ver e
não iludir-se, como os românticos. E logo duas correntes se desenharam, uma como
reação à outra, que fora por sua vez reação, contra a corrente anterior. Considerava
uma o homem do sertão como um doente, um fraco, um falhado, mas a quem tudo
devíamos, porque quase tudo lhe faltava e sem o qual nada fôramos. Julgaram outros
67
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 nov. 1921, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 jul. 1919, p. 7.
69
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 nov. 1921, p. 1.
68
175
que havia injustiça nessa concepção e reagiram, mostrando o nosso sertanejo como
um forte, o puro, o sadio, que devíamos antes admirar que socorrer. Era a reprodução
das duas grandes correntes de nossa vida mental: o pessimismo e o lirismo.
Cornélio Pires estaria nesta última tendência, preocupava-se em distanciar-se das sínteses sobre
o sertanejo, de modo que “não estuda ‘o caipira’, o que pode levar à falsidade, nem ‘um caipira’,
o que leva à parcialidade, mas ‘os caipiras’, em sua característica variedade de tipos e costumes:
o caipira branco, o caboclo, o preto e o mulato”. O autor destacaria a validade das distinções
especialmente pelo fato de os “caboclos”, “descendentes diretos dos bugres catequizados pelos
primeiros povoadores do sertão”, serem comumente tomados como o caipira em geral,
especialmente segundo a figura do Jeca Tatu.
No mesmo sentido, estaria o trabalho de Amadeu Amaral, Dialeto Caipira, que
corroborava com a ideia da existência de uma “língua brasileira” distinta da portuguesa. Apesar
de dialetos implicarem a constituição de “formas particulares de linguagem” e, até mesmo, a
existência de “verdadeiros idiomas nacionais coexistentes”, o autor esclarecia que “o que
pretendemos nesse despretensioso trabalho é caracterizar esse dialeto caipira, ou, se acham
melhor, essa aspecto da dialetação portuguesa em São Paulo”70. Na visão do crítico, este tipo
de estudo era fundamental, uma vez que a “vida, a língua e a literatura regionais são as
verdadeiras células dessa renovação idiomática”71. Dessa forma, assim como a história e a
literatura, o estudo da língua “brasileira” só poderia ser levado a cabo segundo as análises
regionalistas. Amadeu Amaral norteou seu estudo pela avaliação de quatro eixos:
a) De elementos oriundos do português usado pelo primitivo colonizador, muitos dos
quais se arcaizaram na língua inculta. b) De termos provenientes das línguas
indígenas. c) De vocábulos importados de outras línguas por via indireta. d) De
vocábulos formados no próprio seio do dialeto72.
Essa linguagem “regional” passou a ser um tema recorrente nos debates culturais e
literários do período. Muito mais que a história ou o folclore de orientação regionalista, a
literatura, especialmente a poesia e o conto, era a produção mais volumosa deste domínio.
Assim, as questões linguísticas reafirmariam a sua centralidade na arte literária:
Compreendida a arte como uma das formas do conhecimento e não como simples
hedonismo, como simples prazer ou diversão [...] incompreensível se torna essa
mutilação do fato estético em fundo e forma, em pensamento, imagem ou comoção
que se vestem à vontade com as roupagens fornecidas por filólogos e gramáticos. Há
uma unidade substancial na obra de arte. A intuição e a expressão constituem simples
momentos da criação literária. [...] Assim compreendida a obra de arte, como um
corpo uniforme, sem solução de continuidade entre essência e aparência, é patente a
competência dos literatos - não em nome do critério científico – forma lógica do
conhecimento – mas no do critério estético – forma intuitiva dele -, em questões de
linguística, pelo menos na função orgânica e criadora que lhes cabe73.
70
AMARAL, Amadeu. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 fev. 1921, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 fev. 1921, p. 2.
72
AMARAL, Amadeu. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 fev. 1921, p. 2.
73
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 jul. 1920, p. 2.
71
176
Nas produções poéticas e ficcionais em geral, portanto, a linguagem era a própria matéria a ser
trabalhada e, no caso da literatura regional não poderia ser diferente. A produção literária de
Cornélio Pires, em Cenas e paisagem de minha terra, seria um exemplo do processo de
“decantação” pelo qual precisaria passar um poeta regionalista:
No sr Cornélio Pires ainda não se fez a necessária decantação, e seu livro contém
muita ganga presa às pepitas. Pela disposição da matéria, que não sei se corresponde
a uma ordem cronológica, sente-se uma ascensão dos desvarios literários do
sentimento à visão sincera, nítida, viva e pitoresca da realidade caipira, e decadência
dessa expressiva poesia dialetal e espontânea, para o poema satírico, alheio
inteiramente às cordas do autor. É o eterno bovarismo74.
A obra de Pires abrigaria, segundo o crítico, tanto formas “artificiais”, “bombásticas” e
“intoleráveis”75, quanto verdadeira “poesia regionalista” de “um admirável impressionismo
literário”76. Tristão de Athayde aconselhava ao autor que procurasse “despojar-se” “de toda essa
escória de falsa literatrice, cultive cada vez mais esse delicioso impressionismo regionalista”
que assim ele poderia um dia ser “um poeta à parte, o nosso poeta caipira”77.
Em algumas obras de regionalismo literário, como nos Poemas sertanejos de Câmara
Campos, o crítico notava que tais produções podiam ser apenas pitorescas, ricas em cor local,
mas sem nenhuma vivacidade ou evocação. O valor aí estaria apenas no glossário ao fim da
obra, aliás, algo presente nos livros regionalistas em geral. Assim, dessa literatura regionalista,
“ainda quando alheia a qualquer valor estético, como esses sonolentos poemas do Sr Câmara
Campos, fica a contribuição ao estudo das variações dialéticas do idioma”.
Nessa época, como ele sistematizara na obra Afonso Arinos (1922), o sertanismo seria
a “face mais original de nossa literatura”. Considerava o crítico que “outras haverá mais ricas,
mais compreensivas, mais formosas; dessa, porém, é que data afinal a nossa emancipação
literária já que no sertanismo não se dá exclusivamente uma escolha de assunto, sendo um
estado de espírito e um modo de expressão”78. Tais considerações foram feitas em torno da
publicação de Histórias e Paisagens de Afonso Arinos. A obra de Arinos, que estaria então já
“ultrapassada” pelos cultores modernos do gênero, traria impressões vividas:
[...] no sertão, o desalinho das paixões irreprimidas, o imprevisto trágico da vida, e
sobretudo esse elemento supersticioso – do temor irresistível do homem simples
perante o mistério, a par de sua coragem perante a vida e os outros homens. Dando
essa importância primordial à superstição, em seus contos, revelou Arinos uma das
74
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 jun. 1921, p. 1.
Cita-se a seguinte estrofe: “Morrer é libertar-se dos grilhões / que a alma nos prendem à mortal matéria; / é
apenas momentos de aflições / para fugir-se ao jugo da miséria”. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O
Jornal, Rio de Janeiro, 27 jun. 1921, p. 1.
76
Cita-se os versos: “Um rancho de sapé. O sol declina. / Num banco, uma cabeça de repolho, / Co’a peneira no
colo, nhá Firmina / cata o feijão para botar de molho”. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio
de Janeiro, 27 jun. 1921, p. 1.
77
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 jun. 1921, p. 1.
78
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 30 mai. 1921, p. 1.
75
177
faces mais expressivas da alma sertaneja, ainda tão imperfeitamente estudada79.
Arinos seria um defensor da “arte nacional”, tendo feito conferências sobre o tema, como a
“Nacionalização da arte”, onde considerava: “Aceito, pois, a influência estrangeira em nossa
literatura mas não aceito modo de sentir nem forma estrangeira. Acho que a obra nacional, ainda
quando filiada de estrangeiro ou por este sugerida, deve ter o cunho característico nosso”80.
De qualquer forma, o sertanismo teria ganhado no autor mineiro um desdobramento
significativo: “Arinos colocou nos termos mais justos a questão do ‘nacionalismo da arte’, e
por isso mesmo o sertanismo literário, por que sempre se bateu, longe de se localizar para
morrer, há de nacionalizar-se para durar”81. Assim, o regionalismo prepararia ou iniciaria a “arte
nacional” e provocaria, recorrentemente, a reflexão sobre a identidade do país que, por um
movimento secular marcado pela intercalação entre sertão e litoral82, teria se conformado numa
ambiguidade existencial que reivindicava soluções:
Estamos, portanto, em uma época ambígua, muito mais do que o século XVII, pois
neste não se deu a existência dos dois elementos – litoral e sertão -, senão a sucessão
deles, ao passo que no nosso esses elementos não só coexistem, mas coincidem,
sendo a nossa alma contemporânea feita de um misto de ambos83.
Pode-se apontar como eixos do regionalismo os temas da história regional, do folclore,
79
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 jun. 1921, p. 1.
ARINOS, Afonso. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 jun. 1921, p. 1. Em
várias ocasiões, Alceu Amoroso Lima recorda o fato de ter sofrido a influência de tais ideias diretamente de Afonso
Arinos durante os anos 1910. Cf. LIMA, Alceu Amoroso. Memorando dos 90, p. 252.
81
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 jun. 1921, p. 1.
82
O crítico, assim expunha tal processo: “Sabendo-se que a dois elementos capitais – o litoral e o sertão – é possível
reduzir a nossa história, há sintomas de que estamos repetindo, desde a Independência, o mesmo ritmo seguido no
período colonial. Descoberto o país, não se aventuravam os colonos pelo interior dele, privados de estímulo e
possuídos de terror. A relativa prosperidade de Pernambuco e as penosas iniciativas do Sul mais os prendiam à
costa, no temor da perda de contato com a metrópole, que ainda não lobrigara a fortuna que tinha em mãos. O
século XVI, portanto, foi o século do litoral, resumido por assim dizer nos três núcleos de Olinda, de Salvador e
de São Vicente. O vago sentimento de nacionalidade, que acaso se esboçara nesse início de colonização litorânea,
ia consolidar-se na primeira metade do século seguinte, ocupada com a luta contra os holandeses. [...] não se afasta
propriamente essa luta da orla da praia, decidindo-se toda ela nos campos adjacentes. A segunda metade do século
ia ver, porém, a primeira arrancada para o sertão. Era que à metrópole chegavam as primeiras notícias positivas de
riquezas fabulosas do interior e começavam para ela o sonho delirante do ouro e das pedras, que lhe dariam uma
fabulosa riqueza passageira e a perda definitiva da colônia. [...] O século XVIII, todo ele, por assim dizer, o século
das minas e das bandeiras, bem como do sentimento nativista, desde as lutas de emboabas e paulistas em 1708 e
1709 e o levante em Olinda em 1710, até a insurreição de Vila Rica em 1789. O delírio do sertão e do seu prodigioso
mistério de riquezas fabulosas estimulou a epopeia dos paulistas, que terminaram, por essa época, o descobrimento
do Brasil, chegando ao Madeira, depois de palmilharem as terras ignotas de Goiás e Mato Grosso, desvendando,
assim, o grande abraço dos rios, que é uma das figuras características de nossa terra. Foi, portanto, o século XVIII
o primeiro século do sertão. Seria o seguinte justamente o oposto. Com a abertura dos portos em 1808 e a
Independência, deslocou-se o eixo do interesse nacional, e o afinamento da população, bem como a
industrialização do país, até então apenas extrativo e agrícola, concentraram o movimento civilizador no litoral,
como em outras circunstâncias ocorrera com o primeiro século do descobrimento. Hoje, com a manhã do século
XX, vemos, novamente, o despertar ou o recrudescer o interesse pelo sertão, interessa já não apenas de ambição,
como outrora, mas de civilização. E com esse interesse de expansão sertaneja coincide uma assimilação, cada vez
mais ativa, por parte do litoral, da cultura universal. E tudo leva a crer que, uma vez terminada ou adiantada essa
assimilação de cultura, oscilará novamente o eixo da nossa civilização, para o interior do país, repetindo-se,
portanto, como a princípio afirmamos, o ritmo inicial da nossa história: litoral, litoral—sertão e sertão”.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 nov. 1920, p. 2.
83
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 nov. 1920, p. 2.
80
178
do espaço e do homem, da “cultura popular”, das individualidades populares e da língua que,
por sua vez, seriam analisados segundo a perspectiva maior de um realismo que percebia o
“dilema nacional” de um país cuja “alma” seria dividida entre sertão e litoral. No interior da
crítica de Tristão de Athayde, dois nomes se destacaram nas reflexões acerca do regionalismo
literário: Catulo da Paixão Cearense e Valdomiro Silveira. Um terceiro, o mais expressivo, era
Monteiro Lobato que, por sua especificidade, merecerá abordagem diferenciada. Valdomiro
Silveira, segundo o crítico, seria um dos precursores do gênero em sua vertente moderna e um
dos melhores realizadores, pois seus contos abrigariam os três elementos essenciais neste tipo
de produção: realismo, originalidade e localismo:
Não há quadros poéticos, crepúsculos preparados a receber as melancolias virginais,
manhãs de incêndio ou noites de pedrarias, a natureza soturna ou festiva que faz
geralmente o fundo dos quadros literários. Há, pelo contrário, uma natureza dura e
incolor, tal qual deve surgir ante os olhos dos “caboclos” que nela vivem. É a própria
vida local, trágica às vezes, outras cômicas, aqui revoltante de dor ou injustiça, feliz
mais adiante, mas quase sempre passiva e uniforme na sua monotonia. O leitor que
sinta com sua alma e penetre com sua compreensão tudo o que se contém de
profundo e original nessa humanidade tão estritamente regional e verídica. A verdade
não é necessariamente original; longe disso. No caso o é, pois espelha sentimentos,
raciocínios, costumes expressivos de uma gente privada de maior contato civilizador,
guardando por isso os seus caracteres espontâneos, ainda que simples ou triviais84.
O caso do poeta maranhense Catulo da Paixão Cearense é um dos mais ricos para se
estudar os desdobramentos do regionalismo no interior da cultura intelectual brasileira. Ainda
assinando como A Amoroso Lima, sua primeira crítica literária teve como objeto o livro de
Catulo, Meu Sertão. Era apresentado como o primeiro livro do então chamado “poeta
sertanejo”, mesmo que sua atividade intelectual remontasse aos últimos anos do século XIX85.
E foi por essa presença que, em 1918, uma “Comissão Central de Homenagem a Catulo”, por
iniciativa do conterrâneo “nordestino” Assis Chateaubriand, foi formada a fim de adquirir
recursos para a publicação da obra. Uma série de atividades foi programada, sendo a principal
a organização de um evento do Teatro São Pedro, no centro do Rio de Janeiro, em que Catulo
se apresentaria junto ao seu violão. Reuniram-se nomes como Roquette Pinto, Assis
Chateaubriand (à época apenas um jovem advogado ambicioso86), Pandiá Calógeras e os
acadêmicos Paulo Barreto (João do Rio) e Mário de Alencar87.
O livro veio a lume municiado por uma série de protocolos de leitura88. Primeiro, o
84
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 jun. 1921, p. 1.
Cf. VELOSO, Mônica Pimenta. Falas da cidade: conflitos e negociações em torno da identidade cultural no Rio
de Janeiro, ArtCultura, Uberlândia, v. 7, n. 11, jul-dez, 2005, p. 167; MORAES, Kleiton de Sousa. Catullo da
Paixão Cearense ou Como se constrói um autor (1894-1946). Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de
Janeiro / Instituto de História / Programa de Pós-Graduação em História Social, 2014, p. 41-45.
86
Cf. MORAIS, F. Chatô. São Paulo: Cia das Letras, 1994, p. 66-91.
87
Cf. MORAES, Kleiton de Sousa. Catullo da Paixão Cearense. Tese de Doutorado, p. 20.
88
Trata-se de uma concepção que reforça os aspectos que caracterizam os suportes textuais segundo orientações
editoriais que vão desde o aspecto mais “material” do produto (tipo de papel, cor, caractere) até os mecanismos
textuais como prefácios, ilustrações, notas de edição etc. confluindo para a formação de um “leitor ideal”. Cf.
85
179
soneto do poeta acadêmico Luís Carlos intitulado “A Catulo Cearense” o considerava “primeiro
trovador entre os primeiros”. Em seguida, o texto “Um Grande poeta”, de autoria do também
acadêmico Afrânio Peixoto, julgava como “obras primas” seus poemas. Posteriormente,
Alberto de Oliveira, membro da Academia de Ciências de Lisboa, assinava a nota “Catulo
Cearense” onde dizia se lembrar de Portugal ao ler o poeta, lhe reconhecendo como um
“continuador dos nossos trovadores populares da Idade Média”. Contava ainda o volume com
a transcrição dos discursos de Humberto de Campos e Roquette Pinto feitos por ocasião da
referida “Homenagem”. Apenas os dois últimos fizeram menção à linguagem de Catulo.
Campos considerava que, se “passados os versos para a linguagem correntia”, o poeta estaria
entre os “nossos melhores líricos”, mas reconhecia que, “como é sertanejo”, Catulo “vaza essa
forte seiva nos rústicos moldes que lhe fornece o sertão”. Pinto, por seu turno, se qualificava
como “simples naturalista” e considerava que “seja qual for o juízo que se forme do idioma
semibárbaro de que se ele serve, é preciso reconhecer que tal língua não morrerá” e que “esta
poesia semibárbara me fascina, porque sinto, nela, as louçanias e as imperfeições da minha
terra”89. Nas edições posteriores, o livro passara a contar com uma referência não assinada
publicada no Mercure de France e reproduzida em francês90.
Em 1918, Monteiro Lobato dera o tom que nortearia alguns dos debates posteriores
acerca da poesia de Catulo da Paixão Cearense:
A publicação das poesias de Catulo Cearense põe de pé uma interessante questão: é
possível aceitar, como língua, no qual se vazem versos, o modo de falar do caboclo?
Cremos que não, porque tal modo de falar não é sequer um dialeto e sim mera
corrupção do dialeto brasileiro. (...) Pensando assim, lamentamos o grande, o maior
poeta deste país, o poeta-poeta, o poeta cujas composições feitas em músicas vivem
de Norte a Sul cantadas por todas as bocas, despertando em todos os peitos as mais
suaves emoções, não tenha escrito seu livro em nossa língua, a língua brasileira, filha
da portuguesa. (...) Se Catulo traduzir seus versos em nossa língua, [...] fará uma
obra que marcará época, criará escola, determinará correntes. Está em suas mãos ser
apenas um poeta caipira ou ser o maior poeta popular do Brasil91.
Lobato explicita um problema que terá longa duração nos debates acerca da “língua literária”
CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. In: CHARTIER, Roger (org). Práticas da leitura. São Paulo: Estação
Liberdade, 1996, p. 77-105; ISER, Wolfgang, A interação do texto com o leitor. In: LIMA, Luiz Costa (Seleção,
tradução e introdução). A literatura e o leitor: textos de estética e recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.
83-122.
89
Cf. CEARENSE, Catulo da Paixão. Meu Sertão. Rio de Janeiro: Oficina Industrial Gráfica Americo Bedeschi,
1932, p. 5-23.
90
A nota considerava que “Catulo Cearense é único em seu gênero e nos deu o frisson novo. A matéria de seus
poemas é simples, vasta e rica. Ela é a contemplação do mundo e contemporânea de todas as épocas. Ela tem a
imagem forte, profunda, cósmica. Sua alma está no centro da floresta, como um eco sonoro, tal como a alma de
Victor Hugo no centro de tudo, segundo o verso célebre. Ele tem um jeito fácil e seguro de entrar na matéria, uma
familiaridade jamais vulgar, que me faz pensar no incomparável La Fontaine. Catulo nunca diz seus versos nem
os declama. Ele os vive. A voz, o gesto, a feição e os movimentos, tudo tem esta verdade, esta força espontânea e
justa de uma arte que se concilia com a vida. Ele é simples, natural e exato como um canto de pássaro. Mercure
de France, Paris, 1 de maio de 1919”. Crônica do “Mercure de France”. In: CEARENSE, Catulo da Paixão. Meu
Sertão. Rio de Janeiro: Oficina Industrial Gráfica Américo Bedeschi, 1932, p. 25.
91
LOBATO Apud. MORAES, K de S. Catullo da Paixão Cearense, p. 99.
180
apropriada a este tipo de obra92. Assim, na apreciação de Tristão de Athayde:
A crítica ao Poeta penso ter vindo como reação aos que dele querem fazer o nosso
Poeta Máximo. E nisso totalmente fundada. Catulo é mais do que um poeta regional,
menos, porém do que um poeta nacional, e muito menos um Poeta Máximo. Será ele
um poeta racial, o poeta de uma grei, o Vate dos Sertanejos. E como tal o devemos
julgar e sentir-lhe as belezas sem conta. Poeta Nacional só pode ser aquele cujo estro
exprima a onda de toda uma população, cuja obra seja a expressão de uma pátria. Só
pode haver Poeta Nacional quando há perfeita unidade nacional. O Brasil não pode
ter hoje um tal poeta, porque ainda não cristalizou completamente. Sub-raças
variadas espalham-se por um território onde há todos os climas, flora da mais rica,
costumes e aspirações divergentes. É certo que por detrás dessas variáveis se
cristalizam as constantes num lento trabalho de unificação. Nesse período transitório
de fixação, porém, não podemos produzir um Poeta que seja a expressão da
nacionalidade93.
Mais uma vez, o tema do regional precedendo ao nacional aparece e, onde Lobato destacava o
problema linguístico, o jovem crítico via uma questão relacionada ao próprio regionalismo:
É tão falso julgar o Brasil por S Paulo ou Rio como pelo Tocantins ou S Francisco.
O sertanejo dos Campos Gerais é tão nacional como o marítimo da Bahia ou o
operário dos grandes centros. O poeta que canta as paisagens e as paixões sertanejas
é tão nacional como o que procura exprimir a alma torturada dos praieiros, atraídos
pelo mar e enfeitiçados pela terra.
Ao contrário de Lobato, o crítico reconhecia na linguagem de Catulo um de seus maiores
atrativos: “que importa que essa língua não seja senão o português errado, sem verbos regulares,
sem gramática, sem concordâncias, se ela tem a beleza da forma adequada, se ela é bem a
expressão sonora da grande alma sertaneja!”94. Um dos dramas mais longevos do regionalismo
literário é fundamentalmente o drama da língua. Já a questão da exatidão do relato, da
autenticidade da visão, da documentação do registro, poderia ser relativizada:
Sinceridade de poeta, quais os teus limites? Sinceridade não pode ser somente a
expressão de uma sensação imediata, de uma visão completa das coisas. A memória,
a fantasia, o desejo, tudo concorre para a obra poética, e tudo concorre – nos
verdadeiros poetas – espontaneamente, do fundo da alma sensível e aberta. Catulo
largou o sertão aos 18 anos, viveu na cidade, perdeu os hábitos rudes do sertanejo,
mas ficou sertanejo de alma95.
Em várias ocasiões, Tristão de Athayde fez considerações acerca de Catulo, que
tornara-se um exemplo de naturalidade em poesia a ser contraposto a alguma expressão tida
como “bovarista”96. No livro seguinte de Catulo, Sertão em flor, o crítico continuava a lhe
reconhecer os méritos. Versando sobre a origem do fenômeno poético, associava-o a comum
inspiração deste com o sentimento religioso num hipotético “homem primitivo”. Este tipo de
92
Cf. BUENO, Luís. Uma história do romance de 30, p. 23.
LIMA, A A. À margem de um livro, Revista do Brasil, São Paulo, n 17, ano IV, vol X, janeiro de 1919, p. 84.
94
LIMA, A A. À margem de um livro, Revista do Brasil, p. 87.
95
LIMA, A A. À margem de um livro, Revista do Brasil, p. 86.
96
Analisando o livro de poemas Pandora, de Da Costa e Silva, Tristão de Athayde argumentava: “Qual o mais
espontâneo dos nossos poetas contemporâneos? O Catulo, parece, pois a sua poesia é de uma naturalidade
conquistada através da arte”. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 ago. 1919, p. 9.
93
181
consideração era recorrente à época, inclusive em concepções tidas como vanguardistas97.
Segundo o crítico:
Têm a poesia e a religião, uma origem comum. Nasceram ambas de um sentimento
de respeito. Misto de surpresa, terror e admiração, foi o respeito a atitude do homem
perante a natureza, quando pode distinguir a existência de um mistério oculto pelas
aparências. E isso, quer se aceite a teoria animista, quer se adote o moderno
objetivismo de Lévy-Bruhl98.
Em seguida, o autor faz uma associação do homem “primitivo” com a criança99, pois “quando
a evolução mental da criança lhe permite a consciência lúcida do mundo exterior, a surpresa, a
admiração e o terror criam-lhe o respeito pela natureza e pelo homem”100. Este último seria para
a criança uma espécie de “Deus” e:
[...] a submissão perante essa natureza e esse homem, cujo mistério ela apenas
entrevê, traz-lhe o sentimento religioso e, logo depois, o sentimento poético da
exaltação. Chega então a crise dos sentidos, a mais grave, aquela de cuja solução vai
resultar talvez toda a existência do indivíduo. Dela deriva o domínio ou a
escravização da vontade, com prejuízo da inteligência e reflexo no sentimento.
Conforme a solução dessa crise sexual, será o homem capaz ou não de respeito e
portanto de religião e de poesia. Os homens que a resolvem, submetendo-se aos
sentidos, são geralmente incapazes de respeito. É o que vemos comumente acontecer
com esses que se creem superiores e são geralmente ateus e prosaicos, impermeáveis
à dúvida e ao mistério.
97
Dentre várias, convém lembrar as posições do teórico alemão Wilhelm Worringer, cuja obra Abstraktion und
Einfühlung (“Abstração e Empatia”) lançada em 1907 tivera grande repercussão nos meios artísticos,
especialmente no expressionismo alemão e ganhara várias reedições ao longo das décadas seguintes. Worringer aí
considerara que se fizessem uma “psicologia da necessidade artística”, “ela seria uma história do sentimento do
mundo e, como tal, encontraria lugar ao lado da história das religiões”. Nas primeiras décadas do século XX, a
relação entre a criação artística e o fenômeno religioso também pode ser encontrada em teóricos como o britânico
Roger Fry na obra Um ensaio de estética (1909), onde fala sobre a existência de “um vínculo da arte com o místico
e o religioso”. Ainda poderia ser enumerado o trabalho do pintor e teórico russo Wasilly Kandinsky, Do espiritual
na arte (1911). Cada uma destas posições possuem especificidades e relações singulares no tratamento do tema
que, não obstante, lhe reconhecem pertinência. Cf. ENDELL, August. La Beauté de la forme et l’arte décoratif. In:
HARRISON, C. et al. Art en théorie. 1900-1990, p. 98-126. .
98
A obra do filósofo e etnólogo francês Lucien Lévy-Bruhl teve grande circulação e influência tanto no campo das
ciências humanas quanto nas reflexões de artistas da primeira metade do século XX. Suas teorias sobre a condição
“pré-lógica” e “mística” das populações “primitivas”, consequentemente, o levaram a uma noção hierárquica e,
além disso, variada acerca da natureza humana o que não era concorde com as teorias animistas, como a do
britânico Edward B Tylor, que antes viam um processo evolucionista da mentalidade humana cuja natureza seria
essencialmente a mesma. Nos finais dos anos 1930, em seus “cadernos” publicados apenas postumamente, LévyBruhl acabou por reconhecer os erros e falhas de quase todo o seu pensamento expresso em obras como As funções
mentais nas sociedades inferiores (1910) e A mentalidade primitiva (1922). Tylor, por sua vez, fora bastante
criticado, ao longo do século XX, por suas concepções evolucionistas, preconceituosas e condescendentes acerca
das populações “primitivas, de modo que o conceito de ‘animismo’ persistira, mas ganhara novas interpretações
antropológicas”. Cf. SPURR, David. Myths of Anthropology: Eliot, Joyce, Lévy-Bruhl, PMLA, Vol. 109, No. 2,
pp. 266-280, Mar. 1994; STRINGER, Martin D. Rethinking Animism: Thoughts from the Infancy of Our
Discipline, The Journal of the Royal Anthropological Institute, Vol. 5, No. 4, pp. 541- 555, Dec. 1999; ATHAYDE,
Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 dez. 1919, p. 6.
99
Revisando a antropologia do século XX sobre a África, o filósofo congolês V Y Mudimbe comenta a maneira
como o africano, ora visto como “primitivo”, ora visto como “raça inferior”, e a “criança” tornaram-se
intercambiáveis: “A Civilização humana era ocidental aos olhos dos colonizadores e os africanos não eram, [...]
em finais da década de 1930, perfeitamente humanos. O que eram, quer pura crianças quer seres humanos
incipientes necessitando de formação, era simplesmente o resultado da aplicação dos padrões ocidentais num
contexto não ocidental”. MUDIMBE, Valentin-Yves. A invenção de África. Gnose, filosofia e a ordem do
conhecimento. Mangualde/Portugal: Pedago, 2013, p. 94.
100
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 dez. 1919, p. 6.
182
Assim, segundo o crítico, num misto de teorias antropológicas e reflexões freudianas, a dúvida
e o “Mistério” seriam constituintes de um indivíduo “bem resolvido” sexualmente e
moralmente. Conforme precisa Tristão de Athayde, “o sentimento religioso não implica a
submissão a um determinado culto, senão o reconhecimento da miséria humana, a par da
grandeza divina”. A decisão por uma religião seria, na verdade, algo de menor importância:
A crença no mistério é essencial: secundária é apenas a solução temporal dessa
crença. Em páginas admiráveis, mostra Renan como a religião é o único ideal da
grande maioria dos homens. Só por meio dela sentem qualquer coisa de superior à
vida cotidiana, que os esmaga. Uma simples imagem da Virgem, na choupana de um
lenhador, é o mais puro raio de luz na vida obscura dos humildes. Mas os “homens
superiores” ou os “homens práticos”, não só desdenham da divindade, mas zombam
do próprio mistério. São por isso incapazes também de sentimento poético, porque a
essência da poesia é o reconhecimento de um mundo qualquer superior ao nosso.
A religião seria “nada disso exclusivamente, mas tudo a um só tempo”, de forma que a poesia,
em suas origens, “nasce com a religião, de um sentimento despertado pelo mistério e realiza-se
pela eloquência, que será a expressão harmoniosa desse sentimento íntimo”. O crítico, então,
lembra as reflexões hegelianas sobre a arte101, segundo as quais “a primeira manifestação do
sentimento poético foi o símbolo, ‘precursor da arte’, como chamou Hegel. E a manifestação
rudimentar do símbolo é a imagem, obtida pela comparação”102. A riqueza de Catulo residiria
na capacidade imagética de sua obra que traria aquela “exaltação” e “deslumbramento” pela
natureza física:
Nhá dona, o vestido dela
tinha a cô das foia verde
das arve, quando amanhece.
A fita dos seus cabelo
era amarela, amarela,
como as fulô do argudão.
E a fulô que ela trazia
na cova do cabeção,
era da coô da tristeza
do coração dos doente,
que sofre do coração.
As chinela, as chinelinha
era sem tirá nem pô,
mimosa e piquinininha
dois ôvo de bêja-fro.
O lenço, o lencinho dela,
seguro no cós da saia
era mais branco e arrendado
que a renda do lenço d’água,
que a onda estende na praia.
tudo nela era tão mimoso!...
Era lindo e encantadô!
O nariz era um biquinho
101
Tais considerações são feitas por Hegel, dentre outras ocasiões, acerca do que chama “panteísmo artístico do
oriente”, tido pelo filósofo alemão como a “primeira Forma de arte, a simbólica, com sua procura, sua
efervescência, seu enigma e sua sublimidade”. HEGEL, G. W. Cursos de Estética. São Paulo: EdUSP, 1999, p. 92.
102
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 dez. 1919, p. 6.
183
tão bem feito e ingraçadinho
como o da “fogo-pagou”.
Tinha a carinha redonda,
que nem que fosse uma bola.
O corpo, assim, tão bem feito,
cum as cadera
arredondada parecia uma viola103.
O crítico reconhecia na obra de Catulo uma “poética dialetal” “comovida e
harmoniosa”. Tal produção seria “rudimentar”, “próxima do ninho”, ou seja, trazia o aspecto
“primitivo” da origem poética, os elementos primordiais e originários do “respeito e da
exaltação”. Assim, o “sertanejo” traduziria tal estado de espírito, pois respeitaria as:
[...] forças misteriosas da natureza, a superioridade da inteligência, a grandeza dos
sentimentos, a força justa, as leis do dever. Exalta-se ao mesmo tempo, perante a
beleza física, o amor, os encantos da natureza, os rasgos de cavalheirismo, as proezas
da astúcia ou da bravura104.
Apesar de não ser “toda a poesia”, era uma produção “admirável” a que o crítico comentava ser
necessário notar que “a exaltação, a glorificação, o engrandecimento do mistério é apenas uma
atitude primitiva, que permite a eclosão do sentimento poético. A essa atitude podem suceder,
e sucedem mais tarde, outras de negação, de depressão, de incerteza, ou de simples resignação”.
Tristão de Athayde via em Catulo um poeta que, “a despeito de tudo que contém de técnica
aprendida, de sensação raciocinada, de simplicidade adquirida, é uma admirável, e talvez
singular, manifestação de lirismo elementar”. Seguindo ainda o pensamento estético hegeliano,
o crítico situa a lírica como “verdadeiro sentimento poético” e a face mais rica do poeta
maranhense que também fazia poemas satíricos.
O livro Sertão em Flor saíra com prefácio do acadêmico Mário de Alencar, filho de
José de Alencar, que trazia de novo à baila a questão da língua do Catulo:
Não lhe peçam ao poeta outra língua nem explicação de sua poesia, nem lhe sugiram,
ou solicitem outros assuntos que não os da natureza e humanidade agreste do Brasil,
nem outra forma que a da narração objetiva... Completo, perfeito em todas as partes
de cada poema? Não, antes incompleto, imperfeito, em muitas partes dos seus
poemas. Mas no fim de cada poema, e ainda nas suas poesias menores, a impressão
definitiva que ele nos deixa é a de um grande artista, como a natureza105.
Apesar de subscrever os elogios de Alencar, Tristão considerara Sertão em flor como um livro
“incomparavelmente inferior” ao anterior, Meu Sertão, representando uma espécie de
“decadência”. Catulo pareceria estar “cansado” ou “amargurado” e, talvez pela produção
atropelada (dois livros lançados em menos de um ano), acerca de uma nova produção
recomendava “a retardar quanto possível, a fim de permitir se lhe renove a inspiração”106.
Aparentemente, quem mais apreciou as considerações do crítico foi o próprio Catulo
103
CEARENSE Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 dez. 1919, p. 6.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 dez. 1919, p. 6.
105
ALENCAR. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 dez. 1919, p. 6.
106
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 dez. 1919, p. 6.
104
184
da Paixão Cearense que, na ocasião do lançamento de seu terceiro livro de poemas, enviou uma
carta ao “Ilmo. Sr Tristão de Athayde” lhe apresentando o “caçula dos meus três filhos
sertanejos”. Na ocasião, o poeta dizia ao crítico, “com a sua autoridade de esteta, me diga se se
parece com os outros, se é feio, formoso ou monstrengo, como o pai, este seu grande
admirador”107. Na carta, Catulo ainda esclarecia que:
[...] deixei, não de todo a imaginação, para, realmente, definir a alma dos homens,
que são os protagonistas de meus poemas. [...] Contêm este livrinho cinco poemas
escritos em linguagem corrente. O fundo, parece-me, é essencialmente sertanejo. É
uma tradução, mais ou menos em linguagem gramatical, do que eles diriam em seu
idioma bravio. O eminente crítico aprovará esta minha nova orientação? Isto é, devo
escrever os meus poemas nas duas línguas: a culta e a inculta?108
A carta ressoa as demandas, dentre outras, de Monteiro Lobato, especialmente na ideia de
“traduzir” sua poética. Tal questão se tornou central para o poeta maranhense. No caso, tratavase de se definir como poeta popular ou simplesmente um poeta, conforme Kleyton Moraes:
[...] a dúbia posição de Catullo no meio letrado de então, qual seja, a de ser um autor
de poemas sertanejos, porém poeta citadino, e a de ser reconhecido como alguém
que conhecia o sertão, mas que o representava com os referenciais e códigos
reconhecidamente das cidades. Dubiedade que era evocada como parte intrínseca e
fundante de sua condição de poeta109.
Tal dubiedade estava na crítica literária. Enquanto João Ribeiro via na produção de Catulo “uma
criação erudita disfarçada sob a fraseologia inculta de idiotismos, vocábulos e locuções
sertanejas”, Miguel Mello, considerando Catulo “o poeta da moda”, qualificava o maranhense
de “cantador de modinhas”, justamente pela pouca erudição de sua produção. Quando saem os
Poemas Bravios com as composições “traduzidas”, João Ribeiro considera que agora ele
poderia ser visto “como um poeta nacional; não tenho dúvida”110.
Apesar da cordialidade na carta de Catulo a Tristão de Athayde, este considerou que o
poeta, após ter sido por “alguns críticos aconselhado”, começara a escrever em “linguagem
comum”. O crítico, então, dava a sua opinião:
Penso que nada supre a linguagem original. Se as almas que passam em sua poesia
são as almas simples e rudes, se esses homens que falam nesses versos são criaturas
rústicas do sertão, se essa poesia deve toda a sua luz e todo o seu calor ao realismo
lírico que possui, e no qual se confundem a alma do poeta e as formas da natureza,
penso que deve conservar as irregularidades mais expressivas daquela linguagem,
sem precisar cair no puro regionalismo de expressão. Poderá mesmo corrigir essas
irregularidades, desde que não alterem em nada a naturalidade do verso. Para isso,
deveria escrever como falam no sertão, se possível, polir a linguagem original111.
Após enumerar alguns exemplos de possíveis transposições ou “polimentos”, o crítico
considerava haver “mais perigo que vantagem em suprimir a linguagem rústica desse povo do
107
Carta de Catulo da Paixão Cearense a Tristão de Athayde, 26-8-1921, acervo CAAL.
Carta de Catulo da Paixão Cearense a Tristão de Athayde, 26-8-1921, acervo CAAL.
109
MORAES, K de S. Catullo da Paixão Cearense, p. 105.
110
Cf. MORAES, K de S. Catullo da Paixão Cearense, p. 106-117.
111
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 nov. 1921, p. 1.
108
185
sertão”. Na verdade, haveria no livro passagens de uma “algaravia insuportável” que deveriam
“bastar para que desista o autor imediatamente de escrever em prosa comum”112. Em
apontamentos sobre o popular e o erudito, ele considerava a capacidade poética do escritor
maranhense segundo sua habilidade de “filtrar” o material sertanejo:
Acho que nada supre, repito, o dialeto rude e irregular dos sertanejos. A musa popular
é naturalmente inculta. Entre os próprios cantadores do sertão, que criam a poesia
popular sem mescla, é possível encontrar, como vimos, um princípio de falsificação
dessa poesia, quando corrompida pela prosápia de algumas tintas de instrução.
Perante eles, representa Catulo o artista que sabe filtrar os elementos recebidos do
sertão, para com eles recriar a beleza e a emoção. Já está, portanto, duplamente
afastado da plebe e da terra, pela distância e pela mentalidade. Está no limite
derradeiro para passar da arte ao artifício, pois que todo apogeu, naturalmente, é o
início da decadência. Nem sempre evita essa passagem e deve, por isso, resguardarse contra enganosas ambições. Foi o sertão que o consagrou: não seja ingrato ao
sertão113.
Naquilo que João Ribeiro via como o desenvolvimento que levara um autor de um
regionalismo erudito a uma “poesia nacional”, Tristão de Athayde reconhecia uma decadência
da arte transformada em artifício, denunciando seu caráter postiço e, por que não dizer,
“bovarista”. Este último juízo terá desdobramentos nos anos 1920, como no prefácio escrito
por Paulo Prado à Poesia pau-brasil (1924) de Oswald de Andrade: “O lirismo puro, simples e
ingênuo, como um canto de pássaro, só o exprimiram talvez dois poetas quase desprezados –
um, Casimiro de Abreu, relegado à admiração das melindrosas provincianas e caixeiros
apaixonados; outro, Catulo Cearense, trovador sertanejo, que a mania literária já envenenou”
[grifo nosso]114. O risco de se cair em “literatura”, “mania literária”, em “bovarismo” e
artificialismo era sempre lembrado, especialmente acerca da literatura regionalista:
Não é de hoje a falsificação do sertanismo. Toda corrente literária que se impõe
converte-se em moda e, como a moda é a negação da originalidade e o paraíso dos
medíocres, começa a chegar a onda dos imitadores. Perde-se o espírito do
movimento e transmite-se o seu formalismo – eis a regra geral da conversão das
escolas literárias em modas literárias115.
Tal convencionalismo atingiria também à crítica: “está em moda elogiar os que se inspiram em
movimentos locais, os que fazem literatura nacional e criticar os que se inspiram em outras
sugestões”. Apreciando os “Bailes e divertimentos suburbanos”, Lima Barreto considerava que:
O violão e a modinha que Catulo, com sua tenacidade, com o seu talento e a sua
obediência cega a um grande ideal, dignificou e tornou capaz da atenção dos
intelectuais, vão sendo mais prezados e já se fazem encantos dos saraus burgueses
[...]. É pena que para um Catulo, artista honesto, sob todos os pontos de vista, haja
112
A passagem citada é do conto “Curandeiro”: “Antônio Cobra, em se tratando do tóxico segregado pelas suas
homônimas, era um semideus daquelas paragens. Quem o deixaria de respeitar e admirar, se representava para
aqueles homens rudes o eminente Pasteur, imortalizado pelos seus trabalhos sobre a profilaxia da raiva e de outras
moléstias contagiosas?”. CEARENSE, Catulo da Paixão. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal,
Rio de Janeiro, 6 nov. 1921, p. 1.
113
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 nov. 1921, p. 1.
114
PRADO, Paulo. Poesia pau brasil. Um prefácio, Revista do Brasil, São Paulo, Vol. XXVII, set-dez 1924, Editora
Monteiro Lobato, p. 109.
115
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 set. 1921, p. 1.
186
uma dezena de Casanovas disponíveis, que, maus de natureza e sem talento algum,
se servem da arte reabilitada pelo autor de Sertanejo, a fim de, por intermédio de
horríveis cantarolas, levarem a desgraça a lares pobres e perder moças ingênuas e
inexperientes116.
A cultura do regionalismo, portanto, é uma cultura da República dividida em unidades
federativas que, por sua vez, teriam uma história, uma cultura e uma autonomia próprias a serem
determinadas e desenvolvidas dentro de marcos estaduais ou regionais. O regionalismo, com
seu anseio de “conhecimento do interior”, do “sertão” em oposição ao “litoral”, tornou-se um
domínio que reunia as mais diversas produções e apreciações. Sua dimensão mais visível e
acessível pode ser encontrada na “febre” sertaneja que marcara os anos 1910 e 1920 no Rio de
Janeiro e em São Paulo. O regionalismo, antes de tudo, fazia sucesso. Os livros de Catulo
conheceram dezenas de edições, receberam elogios de diversos seguimentos, como os do jovem
poeta paulista Guilherme de Almeida que, em 1918, entusiasmava-se com o sarau que iria
ocorrer na Sociedade de Educação Artística:
É um poeta sertanejo, que vai dizer versos no sarau de quarta-feira próxima no
Trianon. Ele não nos era desconhecido, porque não há quem, acompanhando com
um pouquinho de amor a vida artística brasileira, não conheça Catulo Cearense.
Qualquer violeiro de esquina canta por aí versos seus e qualquer de nós sabe de cor
essas quadras tão cheias de sentimento e verdades do “Luar do Sertão”. (...) E a gente
aplaude irresistivelmente, sem saber porque, aquela história corriqueira de amor;
aplaude inconscientemente, talvez porque, pela primeira vez, tenha sentido nela,
cantante e sincera, a alma brasileira, a nossa alma, bem caipira, escondida no fundo
do mato e trazida, assim de repente, à flor da arte e da verdade117.
Poetas e cantadores regionalistas, além de se apresentarem em lugares como a referida
Sociedade e o Teatro Municipal, arrancavam elogios de intelectuais respeitados, como o de
Monteiro Lobato, feito em 1916, após a apresentação de Cornélio Pires e João Pernambuco:
Nunca uma plateia como a nossa, vítima de azia crônica pelo abuso de orchatas
francesas como essa que o Lugné-Poe nos forçou a ingerir a 10$000 a dose,
vascolejou diafragmas e adjacências com mais sinceros saudáveis e tonificantes
risos. Não era o risinho espremido e forçado, verdadeira careta de mártir de quem
sorri por injunções do snobismo – sorriso palerma que é um esgar simiesco – repuxo
cômico de músculos faciais. O que no público ria não era a atitude, nem a francelha
cultura do espírito; era a carne, o sangue, a raça, era esse substrato mental e
sentimental que nós, medrosos da crítica escarninha dos elegantes que cheiravam
Paris e no-lo embutem como padrão supremo, conservamos timidamente em cárcere
privado. Que bem faz rir assim! (...) A outra consoladora manifestação de arte nossa
proporcionou-nos João Pernambuco. É um belo tipo de homem. Nele se estampam
em grau acentuado todas as características do brasileiro puro, criado ao ar livre, no
contato direto com a natureza bravia. Dentro do seu peito bate um coração. Sua alma
é a própria alma da terra. Paris não contaminou um glóbulo sequer daquele sangue
oxigenado pelo ar das florestas118.
A amplitude da presença no cenário cultural brasileiro dos autores regionalistas pode ser
verificada na conferência de Oswald de Andrade proferida em 1923 na Sorbonne. Naquela
116
BARRETO, Lima. Marginália, p. 22-23.
ALMEIDA, Guilherme de. Apud. MORAES, K de S. Catullo da Paixão Cearense, p. 109.
118
LOBATO Apud. MORAES, K de S. Catullo da Paixão Cearense, p. 112.
117
187
ocasião, elencava-se dentre os que buscavam a “verdade nacional” autores como Ricardo
Gonçalves, Cornélio Pires e Catulo, este último tido como o maior dos poetas de tal tendência
nacionalista119. Neste sentido, as reflexões de Moraes são bastante contundentes:
Essa conferência tem uma importância fundamental para o entendimento do que foi
o “modernismo” no Brasil, pois não se trata só de um balanço crítico das artes
brasileiras do período, mas de uma tentativa de produção de um discurso histórico
do “modernismo”. Há, no evento, uma apropriação dos nomes de diversos autores
de língua portuguesa de forma a culminar nos nomes dos modernistas paulistas. Mas,
se, posteriormente, muitos desses nomes elencados por Oswald desapareceriam dos
estudos literários brasileiros, ali, ainda em 1923, na proximidade dos acontecimentos
de 1922 em São Paulo, surgiam nomes inesperados que o conferencista evocava para
construir uma racionalidade histórica para o movimento diante do público francês.
[...] Entretanto, se, para o estudioso atual da literatura brasileira, o aparecimento de
nomes consagrados como “pré-modernistas” seria fatal, é com espanto que se vê
surgir na conferência de Oswald nomes improváveis como os de Amadeu Amaral,
Cornélio Pires, João Ribeiro e Catullo da Paixão Cearense120.
De fato, o regionalismo é, além de um conceito mal trabalhado, um campo da história
intelectual brasileira fragmentado e inexplorado em seus domínios literários, históricos e
políticos. A existência de “figuras regionais”, “descrições regionais” e “contextualizações
regionais” pode ser verificada em vários contextos e épocas. Porém, nos fins do século XIX,
destaca-se o aparecimento de uma “busca pelo regional” e pelas “raízes” nacionais expressa
especialmente na obra de Maurice Barrès (figura bastante lida no Brasil à época), mas também
debitária dos escritos sobre a diversidade francesa de Hippolyte Taine e da geografia regional
de Vidal de la Blache. O regionalismo, a essa altura, deixaria de ser meramente naturalista ou
social para tornar-se uma “inspiração”, uma “verdade última sobre os seres”, tal produção seria
visível especialmente nas publicações da Revue des deux mondes (de grande circulação no
Brasil) na virada do século XIX para o XX121.
Em obra dos anos 1960, mas que continuou sendo reeditada nas décadas seguintes,
Antonio Cândido avaliava a produção regionalista das primeiras décadas do século XX:
Gênero artificial e pretensioso, criando um sentimento subalterno e fácil de
condescendência em relação ao próprio país, a pretexto de amor da terra, ilustra bem
a posição dessa fase que procurava, na sua vocação cosmopolita, um meio de encarar
com olhos europeus as nossas realidades mais típicas. Forneceu-lhe o “conto
sertanejo”, que tratou o homem rural do ângulo pitoresco, sentimental, e jocoso,
favorecendo a seu respeito ideias-feitas perigosas tanto do ponto de vista social
quanto, sobretudo, estético. É a banalidade dessorada de Catulo da Paixão Cearense,
a ingenuidade de Cornélio Pires, o pretensioso exotismo de Valdomiro Silveira ou
119
A conferência de Oswald de Andrade, intitulada “Esforço intelectual no Brasil contemporâneo”, era um
apanhado que elencava nomes como os de Farias Brito, Jackson de Figueiredo, Roquette Pinto, Oliveira Viana,
Washington Luís, Afonso Taunay, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Afrânio Peixoto, Graça Aranha, Monteiro
Lobato, Paulo Prado, Mário de Andrade, Ronald de Carvalho, Menotti del Picchia, Anita Malfatti, Di Cavalcanti,
Rego Monteiro, Alberto Nepomuceno, Alexandre Levy, Francisco Braga, Villa Lobos, Serge Milliet, dentre outros.
Cf. M. Oswald de Andrade en Sorbonne, Le Figaro, Paris, 23 mai. 1923, p. 3.
120
MORAES, Kleiton de Sousa. Catullo da Paixão Cearense, p. 114-115.
121
Cf. CLAVAL, Paul. Le thème régional dans la littérature française, L’espace géographique, Paris, Tome XVI,
no 1, pp. 60-73, 1987.
188
do Coelho Neto de Sertão: é toda a aluvião sertaneja que desabou sobre o país entre
1900 e 1930 e ainda perdura na subliteratura e no rádio. A publicação de Os Sertões,
de Euclides da Cunha, em 1902, assim como a divulgação dos estudos de etnografia
e folclore, contribuíram certamente para esse movimento. Ele falhou na medida em
que não soube corresponder ao interesse então multiplicado pelas coisas e os homens
do interior do Brasil, que se isolavam no retardamento das culturas rústicas. Caberia
ao Modernismo orientá-lo no rumo certo, ao redescobrir a visão de Euclides, que não
comporta o pitoresco exótico da literatura sertaneja122.
Na opinião de Candido, o regionalismo é projeto falhado, mesmo que perdurasse na
“subliteratura” e no “rádio”, ou seja, que fizesse sucesso. Além disso, o autor considera que a
visão acerca do sertanejo devia lhe reconhecer o “retardamento”, por isso, não teriam sido bem
sucedidos os regionalistas. É surpreendente que, na mesma obra, apesar da crítica às teorias de
Lévy-Bruhl a partir de Lévi-Strauss citada por Candido, este propunha que os homens
“primitivos” seriam análogos aos “iletrados” das sociedades “civilizadas” e que a “atividade
artística” do “homem primitivo” seria “similar” à do “homem rústico”, demandando estudos de
folclore, sociologia e análise literária123. Dessa forma, ficamos, diante da síntese de Antonio
Cândido, sem saber exatamente o que ele queria dizer. Como notamos ao longo deste tópico, o
eixo euclidiano Sertão-Litoral era um dos principais organizadores e orientadores das
avaliações intelectuais acerca das produções culturais daquele período, prontos a denunciar o
exotismo e o pitoresco, de modo que simplesmente reivindicar um “redescobrimento” da visão
de Euclides pelo modernismo é algo que carece de maior demonstração. Ou será que Candido
pretendia reabilitar o racialismo de Euclides da Cunha e considerar o sertanejo como sub-raça
“retardada”? Por serem ligeiras tais considerações, é impossível depreender qualquer juízo que
não seja justamente o que destaca a forma rápida segundo a qual o tema geralmente é tratado.
Lúcia Miguel-Pereira, uma década antes do estudo de Candido, considerara o
regionalismo literário de maneira mais nuançada e já notava seu desdobramento na
“subliteratura” e no rádio. Segundo a autora, se toda obra que traduzisse “particularidades
locais” for considerada regionalista, este seria o gênero da “maior parte de nossa ficção”. Ela
prefere, então, considerar como regionalistas as obras:
[...] cujo fim primordial foi a fixação de tipos, costumes e linguagem locais, cujo
conteúdo perderia a significação sem esses elementos exteriores, e que se passem em
ambientes onde os hábitos e estilos de vida se diferenciem dos que imprime a
civilização niveladora. Assim entendido, o regionalismo se limita e se vincula ao
ruralismo e ao provincialismo, tendo por principal atributo o pitoresco, o que se
convencionou chamar de “cor local”. Essa definição indica por si só as vantagens e
as fraquezas124.
Assim, segundo Miguel-Pereira, o regionalismo traria sempre o tom das descrições, da
influência do meio sobre os personagens que comporiam uma totalidade com este último. Ao
122
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade, p. 113-114.
Cf. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade, p. 41-44.
124
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da literatura brasileira. Vol XII, p. 175.
123
189
analisar, porém, alguns regionalistas da virada do século XIX para XX, a autora reconhece que
o grande desafio proposto a esta seara literária era a superação de uma “posição de turista
assumida pelos autores”125. E, para além dos defeitos do gênero igualmente enumerados pela
historiadora da literatura, ela procura lhe revelar os motivos do sucesso:
[...] a própria esquematização, que por um lado lhe prejudica o alcance psicológico,
facilita-lhe por vezes o tratamento das personagens que, surpreendidas apenas nas
suas reações superficiais, guardam por isso, um certo mistério e adquirem assim
maior força sugestiva. Além disso, mergulhando na atmosfera poética criada pela
linguagem exótica, pelos ambientes fora do comum, pela mesma simplicidade das
criaturas, um caso banal se pode transfigurar, tornar vivo e dramático. Por fim, a
espécie de saudosismo de civilização diante da vida primitiva, que empolga o autor,
atua igualmente sobre o leitor, enternecendo-o, fazendo-o mais receptivo, mais
pronto à emoção126.
Em reflexão mais recente, Durval Muniz de Albuquerque Jr. problematizou o tema do
regionalismo, especificamente em torno da “história regional”. Segundo o autor de A invenção
do Nordeste, o próprio conceito de “região” deve ser considerado em sua dimensão inventiva e
instituinte, lembrando sua origem linguística que remonta tanto à noção fiscal, administrativa e
militar, reggere (comandar, reger), e ao domínio político do poder régio. Dessa forma, a região
não deve ser vista como algo “natural” e existente por si só nos domínios da natureza, ao
contrário, conforme o autor: “A região é produto de uma batalha, é uma segmentação surgida
no espaço dos litigantes. As regiões são aproveitamentos estratégicos diferenciados do
espaço”127 [grifos do original]. Assim, é preciso perceber que:
A região não é uma unidade que contém uma diversidade, mas é produto de uma
operação de homogeneização que se dá na luta com as forças que dominam outros
espaços regionais, por isso ela é aberta, móvel e atravessada por diferentes relações
de poder. Suas fronteiras são móveis e o Estado pode ser chamado ou não a colaborar
na sua sedimentação. O Estado é, na verdade, um campo de luta privilegiado para as
disputas regionais. Ele não demarca os limites político-institucionais das regiões,
mas pode vir a legitimar ou não estas demarcações que emergem nas lutas sociais128.
A “história regional”, mesmo quando crítica às implicações regionais e suas limitações,
permaneceria no “campo de dizibilidade” da região:
“História Regional” participa da construção imagético-discursiva do espaço
regional, como continuidade histórica. Ela padece do que podemos chamar de uma
“ilusão referencial”, por dar estatuto histórico a um recorte espacial fixo, estático.
Mesmo quando historiciza este espaço, valida-o como ponto de partida para recortar
a historicidade. Ela faz uso de uma região “geográfica” para fundar uma região
epistemológica no campo historiográfico, justificando-se como saber, pela
necessidade de estabelecer uma história da origem desta identidade regional,
afirmando a sua individualidade e sua homogeneidade. Por isso, o questionamento
da região, como uma identidade fixa, passa pela crítica desta “História”, que
participou desta cristalização identitária, e passa pela retirada das fronteiras do
campo historiográfico. O nacional e o regional não são critérios de validação de uma
125
MIGUEL-PEREIRA, L. História da literatura brasileira, p. 182.
MIGUEL-PEREIRA, L. História da literatura brasileira, p. 183.
127
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste, p. 36.
128
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste, p. 37.
126
190
produção historiográfica, não são referências pertinentes para fundar uma
epistemologia. Uma história serial não se pode ater a estas divisões, visto que as
séries históricas desconhecem estas fronteiras129.
Assim, segundo Albuquerque Jr., a história regional partiria de um erro construído a priori ao
procurar se inscrever reproduzindo, enriquecendo e atualizando a “naturalidade” inconsciente
que lhe caberia revelar artificiosa e humana. A história da invenção do nordeste não seria uma
história regional, ou seja, uma história que procure caracterizar uma região, mas, justamente,
segundo suas próprias palavras, a “história da emergência de um objeto de saber e de um
espaço de poder: a região Nordeste” [grifos do original].
As reflexões de Tristão de Athayde acerca do regionalismo no interior da cultura
intelectual brasileira procuram caracterizar de forma exaustiva o tema. Na visão do crítico do
O Jornal, o regionalismo seria “estritamente local, tanto na paisagem como nos tipos e na
significação”. Sua “força de repercussão” viria de seu aspecto “concentrado” e deste âmbito
limitado, de modo que “o regionalismo mais se expande quanto mais se restringe”:
Achando-se no polo oposto ao da literatura universal, pode chegar, por vias
antagônicas, a uma ressonância análoga. A literatura universal interessa todos os
homens, de civilização semelhante, porque contém o que neles há de eterno e
comum. Todos a compreendem porque todos nela se reveem. O regionalismo
literário, ainda que em menor escala, em virtude do seu modo de expressão menos
acessível, interessa também a todos, porque fixa o que há de absolutamente
antagônico entre os vários ambientes e os diferentes tipos humanos130.
O regionalismo trataria antes da repulsa do que da afinidade, provocaria a sedução por meio da
“atração dos contrários” e estimularia um sentimento “universal”: a curiosidade. Esta, por sua
vez, operaria a partir de um segundo aspecto que o regionalismo traria consigo, ao menos
teoricamente: a originalidade. Esta última não seria, porém, aquela da “fantasia”, mas provinda
“de um esforço especial de observação e de isenção, que formam o outro requisito principal da
literatura regionalista: o realismo”131.
O regionalismo voltado ao “aspecto exterior das coisas” contrariamente à “literatura
universal” que penetraria e exprimiria o “íntimo delas”, seria “a própria realidade em suas
manifestações locais e espontâneas”. Assim, “desde que nele se sinta a fantasia literária do
autor, a preocupação simbólica, filosófica, social ou outra qualquer, da obra, ou a deturpação
da realidade por elementos exóticos, perde o regionalismo o seu principal caráter literário”. Por
outro lado, o domínio regionalista abrigava as reflexões de trabalhos folcloristas como os de
João Ribeiro, Alberto Faria e Gustavo Barroso que, inspirados em produções inglesas, francesas
e alemãs, ao ultrapassarem a prática de catalogação e classificação segundo critérios locais,
tinha-se que o resultado a que “chegou essa investigação da literatura popular, estudada no
129
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste, p. 39.
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 jun. 1921, p. 1.
131
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 nov. 1921, p. 1.
130
191
tempo, foi o de uma identidade fundamental da natureza humana, expressa em seus elementos
mais simples e espontâneos, isto é, na alma popular”. Segundo notava Barroso, “todos os
folclores são semelhantes. As suas formas variam de espírito de país a país. O seu fundo
continua o mesmo desde a Ásia longínqua até às terras americanas. Raros os cantos, as lendas
ou as fábulas que se não encontram em todos os povos, em variantes as mais diversas”132.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que o regionalismo literário trazia consigo o
interesse “universal” pela compreensão da diferença humana, a poesia popular, segundo os
estudos folclóricos, revelaria, nas suas longínquas origens comuns, a unidade da natureza
humana. O regionalismo literário brasileiro teria como maior inspiração essa “alma popular”:
A arte, quando se universaliza, isto é, no seu apogeu de intensidade e repercussão,
chega, como a ciência, a essa unidade essencial dos espíritos, que criou a
weltliteratur de Goethe. Não é possível, porém, esse apogeu sem passar pelo
localismo, que será sempre, ainda no mais elevado universalismo, como que o fio
que prende as pérolas do colar. E as fontes mais ricas do localismo nascem
justamente da alma popular. A literatura popular, portanto, liga os povos e os
diferencia, conforme a encaramos com critério científico ou artístico. É que os
caracteres elementares dessa literatura são os mesmos, mas outros são os seus
elementos fisionômicos133.
Novamente, o regionalismo é associado a um momento necessário da produção literária de um
povo, sendo a condição para que atingisse voos mais altos. O regionalismo literário não seria,
assim, à parte e totalmente adverso às literaturas universais, mas algo que lhes constituiria, que
nunca seria totalmente abandonado e se manteria como o “fio que prende as pérolas do colar”.
A política regional também era algo que caracterizava o cenário da Primeira República.
Conforme notamos em tópicos anteriores, a dinâmica política do período era marcada pela
articulação e proeminência dos poderes regionais e mesmo os conflitos armados que ocorreram
tinham, em sua maioria, motivações locais, assumindo até mesmo nomenclaturas regionalistas,
especialmente no caso sulista, com seus maragatos e ximangos. No tumultuado processo de
consolidação das candidaturas presidenciais para as eleições de 1922, tal caráter tomou feição
ainda mais explícita. Opondo o mineiro Artur Bernardes ao fluminense Nilo Peçanha, a
campanha presidencial envolveu acontecimentos significativos na história política brasileira.
Ao Manifesto dos Convencionais que apoiava o primeiro contrapôs-se o movimento da Reação
Republicana a favor do segundo.
Assim que ficou claro o encaminhamento dos rumos distintos tomados pelos diversos
partidos republicanos dos Estados, o tema do regionalismo político ganhava contornos no
debate público. Como a candidatura do mineiro Artur Bernardes sofria oposições de diferentes
estados, o professor, político e diretor do periódico Diário de Minas, Magalhães Drummond,
132
133
BARROSO Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 nov. 1921, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 nov. 1921, p. 1.
192
tratou de deixar claro que a “política mineira” não comportava “tendências regionalistas”.
Segundo o autor:
[...] a verdade é que, por sua posição geográfica, como por sua formação étnica,
como por sua tradição políticas, Minas tem de ser, na vida política do Brasil, o centro
coordenador, o elemento de conservação e de equilíbrio, a garantia da liberdade
legal, o grande imã potentíssimo da unidade nacional134.
Tais características seriam comuns aos estados do sudeste, especialmente Rio de Janeiro e São
Paulo, que compartilhariam um “espírito conservador” marcado por uma “tempera moderada e
calma”. Tais verificações partiam dos estudos de Oliveira Viana, “mestre inigualado da
sociologia brasileira” segundo Magalhães Drummond:
É aqui, (refere-se ele à fase de elaboração dessas duas grandes obras nacionais), é
aqui que se começa a compreender a função providencial dessas populações centro
meridionais, o valor inestimável das suas virtudes pacíficas e ordeiras, dos seus
instintos de brandura e moderação, do seu horror do sangue e da luta. Essas
populações concorrem com a maior porção na formação do escol dirigente. Essas
populações exercem uma ascendência imensa sobre os grupos regionais, que lhes
ficam ao sul e ao norte. No meio delas está a cabeça do poder, o centro do governo
nacional, a sede da realeza e do parlamento. Nessa luta entre as aspirações liberais e
o princípio da autoridade, tivessem o liberalismo e a democracia aqui para auxiliálos, como tiveram no norte e no extremo sul, a lança do guerrilheiro e o cangaço do
jagunço, e a grande obra de organização nacional estaria contaminada e destruída.
[...] os homens do centro-sul não compreendem nem o heroísmo do caudilho, nem o
heroísmo do bandido. O seu herói, a personalidade magnética e imperante, que
centraliza a surda e silenciosa admiração das massas, é o homem de ideias e
convicções, o reformador que já realizou ou em quem elas pressentem, por instinto,
capacidade para realizar, de posse do Estado, um grande programa de regeneração e
de moralidade públicas135.
No início de uma das crises dentre os poderes regionais da República, a existência do
regionalismo político é atestada ao mesmo tempo em que é “solucionada” pela verificação de
que certas regiões, no caso a mineira, eram as “mais brasileiras” e, na verdade, como nota o
autor, nem seria regionalistas, mas mantenedoras do equilíbrio. E isso abrindo-se mão do
liberalismo e da democracia em nome da moralidade, da autoridade e do “instinto” que lhe cabe
na “posse do Estado”. Assim, no interior do horizonte político regionalista, delineia-se que o
interesse de algumas regiões era, por alegadas razões históricas, políticas e sociológicas,
coincidente com o interesse nacional. O nacional, nada mais é, nesse caso, do que a aceitação
pelo resto do país da proeminência do poder político de uma região privilegiada e esclarecida.
Esta traria consigo a verdade da história nacional, as virtudes pacíficas e ordeiras que, no
passado, “salvaram a nacionalidade da anarquia, da desintegração e da morte”136. Tal “região
meridional” seria, por fim, fiadora da própria nação.
Porém, o regionalismo ao longo da década de 1920, cada vez mais, seja no âmbito
134
DRUMMOND, Magalhães. A função política de Minas na política nacional. O Jornal, Rio de Janeiro, 30 jun.
1921, p 1.
135
VIANNA Apud. DRUMMOND, M. A função política de Minas na política nacional. O Jornal, p 1.
136
VIANA Apud. DRUMMOND, Magalhães. A função política de Minas na política nacional. O Jornal, p 1.
193
literário, político ou historiográfico explicita suas limitações e insuficiências frente às
exigências que despontam no período. O regionalismo é a cultura da Primeira República. Esta,
envelhecida nos anos 1920, começava a revelar o desgaste excessivo do arranjo oligárquico
que, não obstante, perdurará mesmo após a Revolução de 1930137. Da mesma forma como a
poesia de Catulo parecia ter se perdido em meio ao bovarismo reiterado da cultura intelectual
brasileira, o regionalismo, em geral, se mostrava limitado frente a questões que ultrapassavam
os limites geográficos de uma localidade ou o caráter de uma população específica. Além disso,
as reivindicações nacionalistas tendiam a reforçar a denúncia acerca do caráter malsão da
política oligárquica, mesmo que isso se desse de maneira lenta e imprecisa. Afinal, os
nacionalistas, intelectuais ou políticos, em geral, eram ligados a alguma oligarquia. Ao mesmo
tempo, temas como os da “questão social”, das repercussões da Revolução Russa e,
posteriormente, do avanço fascista, da emergência de um catolicismo decididamente
empenhado na reformulação da política nacional, da unidade nacional frente aos imperialismos
reiterados após a Grande Guerra, das reflexões sociológicas que criticavam a organização
política do país, dos debates culturais que procuravam determinar o caráter do país, dos
movimentos políticos que buscavam superar o regionalismo partidário, a insistência em
reformas constitucionais, ultrapassavam os limites do domínio regionalista e reivindicavam
soluções que não podiam ser contempladas por sua mera reprodução.
137
GOMES, Angela Maria de Castro (Org.). Regionalismo e Centralização Política – Partidos e Constituinte nos
Anos 30. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
194
Contra a “literatura”: Litoral
“[...] depois do café e do charque, não há no Brasil
produto mais valorizado que a literatura fescenina”.
Agripino Grieco, “Vida Literária”, 1923.
“[...] a vida sexual da mulher é um ‘continente
obscuro’ para a psicologia”.
Sigmund Freud, “A questão da análise leiga”, 1926.
O par antitético sertão-litoral foi um domínio bastante profícuo no interior da cultura
intelectual brasileira nas primeiras décadas do século XX. Dito nos seus termos, porém, o par
é uma criação do “litoral”. Contrariamente às produções regionalistas, a perspectiva litorânea,
quando imbuída de algum caráter reconhecido como nacional, haveria de se desdobrar em
algum universo (espacial, temporal, imaginário ou linguístico) que não fosse apenas aquele das
grandes cidades, dos cenários urbanos e cosmopolitas das classes mais abastadas. A síntese
nacional, diferentemente da descrição regionalista, precisava contemplar o universo cindido de
um país que a cada geração acredita se redescobrir.
Os elementos do par sertão-litoral possuíam um caráter móvel. Como afirmara Tristão
de Athayde, alguns defendiam que “para um brasileiro o sertão é o mundo”1. E se o sertão
começava onde terminava a Avenida, ele poderia ser tanto o suburbano sítio dominado pelas
saúvas de Policarpo Quaresma quanto as regiões inóspitas da Amazônia, o hinterland como se
dizia, para onde iam os cearenses “deserdados”. Agudiza-se a percepção de que se o “sertão”
guarda “a” verdade nacional, esta estava sendo muito descurada.
Tal perspectiva está presente no best-seller A Esfinge (1911) do médico e escritor
Afrânio Peixoto. No romance, há um momento em que a vida cosmopolita e agitada da elite
carioca, sempre a veranear em Petrópolis, começara a decepcionar o protagonista Paulo de
Andrade. Especialmente por se ver preterido pela “esfinge” Lúcia, ele programa uma viagem
para sua terra natal, no interior da Bahia, cuja narrativa ocupa toda a terceira parte das quatro
que compõem o livro. A ida à cidadezinha, sugestivamente denominada Amparo, seria “remédio
seguro para esquecer-se e de novo achar sabor na vida”2. Porém, já a viagem a barco
demandando dias para chegar ao destino começava a revelar uma realidade que contrariava as
lembranças nostálgicas: “Eram os mesmos vapores servidos no mesmo desmazelo, sem
decência nem asseio, tripulados por gente sem disciplina, cheios de passageiros sem
1
2
Cf. LIMA, A Amoroso. À margem de um livro, Revista do Brasil, p. 85.
Cf. PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 115.
195
compostura, mal vestidos, que falavam alto, a cuspinhar por toda parte”3.
Quando a cidade despontava no horizonte, o narrador conta o que se passava em Paulo:
Era aquilo que tão ansiosamente buscava, havia tantos dias, de tão longe, através de
uma viagem cheia de tédio e desconforto? Era o próprio Amparo que ele vira e
imaginara? Casas pequenas, desgraciosas, arruinadas e miseráveis sempre com as
mesmas decorações na fachada, pintadas de corres extravagantes e irrisórias...
Parecia-lhe que minguara, decaíra, e em vez da cidade de ruas largas e extensas que
deixara, com altos prédios, grandes e maciços que lhe causavam tanta admiração na
infância, davam-lhe um burgo desolado, de ruelas estreitas e tortas, com ar de
pobreza e decadência, que infundia mais desgosto que pena...4
Ao desencanto da paisagem citadina irão se somar as desventuras vividas nesta temporada no
sertão. Ao encontrar o irmão Pedro, este logo aludia ao esquecimento “da nossa gente”
provocado pelos “divertimentos”, “prazeres”, “distrações” e “passeios” da capital na qual Paulo
vivia há doze anos intercalados por um estágio na Europa onde se dedicara à formação em belas
artes como escultor. Ao se deparar com um coronel da região, o Tavares, apresentado como
“influência política da nossa terra”, mais uma vez os prazeres da capital são aludidos, revelando
os sonhos do sertão com a vida no litoral. Eugênia, mulher de Pedro, estudara na Capital e
aludia a sua condição rotineira de uma “uma vida triste”, ao passo que Paulo estaria “sempre
nas capitais, viajando, bons hotéis, bons teatros, bons museus, bailes, festas, jantares...”5.
Paulo começava a duvidar sobre o “remédio” aplicado às suas angústias. No passeio
pela cidadezinha, confirmara as primeiras impressões:
Possuíam as ruas nomes novos... eram agora datas nacionais e nomes de presidentes
da República, de generais... o Amparo, que nada tinha para sua memória de menino,
senão as saudosas Rua da Matriz, do Rosário, da Lapa, do Mercado, possuía agora
as inexpressivas 15 de Novembro, Marechal Floriano, 24 de Fevereiro, Marechal
Deodoro... como todas as vilas do Brasil, uniformemente, banais... O que havia de
novo era lastimável... uns casarões pesados e ridículos que seriam a Intendência, a
Cadeia, o Quartel...6
A situação política, assim figurada pelas ressignificações do espaço público da pequena cidade,
começa a ser explicitada quando Paulo encontra um amigo de outrora, Maurício de Brito. Este
põe a conversa em dia e conta que passaram os anos de infância:
_ Já se foram esses tempos. Veio a vida dura e triste... Empreguei-me como escrivão
da coletoria... trabalhava com zelo, tinha tudo em dia e em ordem... mas a política
apareceu, fui botado fora, quando menos podia, pois já era casado e com três filhos...
Seu irmão foi dos que mais me perseguiram... Armaram-se um processo
administrativo... não deixaram defender-me e fui posto no olho da rua, depois de seis
anos de bons trabalhos, sem um dia de falta ou menos irregularidade. Andei por aí,
de déu em déu, até que me fiz mestre de música, quando fundaram a Filarmônica da
Euterpe... Faço a escrita de duas casas comerciais... Vai-se vivendo com dificuldade.
Maldita política7.
3
PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 115.
PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 116-117.
5
Cf. PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 119-120.
6
PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 121.
7
PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 122.
4
196
O relato de Maurício associaria à precariedade urbana a decadência política que assolava o
local: “_ Você não imagina... Todo este povo que vê está dividido, dos maiores aos miúdos... de
um ou de outro lado... e falam uns dos outros, escrevem pasquins e cartas anônimas, difamam
as famílias, inventam calúnias, agridem-se...”8. Mesmo que Paulo não se empenhasse em
participar de tais querelas, Maurício lhe prevenira que, neste caso, só restaria o isolamento,
todos seriam contra ele na terra em que “quem não é por nós, é contra nós”.
As histórias sobre antigos conhecidos se desdobravam em casos de assassinatos,
bandalheiras, cavações, enriquecimentos ilícitos e infâncias conduzidas à criminalidade. As
eleições, por seu turno, seriam “uma indecência...”, conforme relato de Maurício:
[...] a princípio ainda havia alistamento, convocação, mesários. Deixavam a gente
votar e depois apareciam umas apurações fantásticas de dois, três mil votos aos
candidatos da chapa. O Alcântara [secretário da Intendência] tinha o cinismo de dizer
que se a eleição era livre, a apuração também havia de ser... Mas agora nem isto.
Sabemos das eleições pelo resultado que vem escrito nos jornais da Capital: e os
eleitores vão aumentando, ao passo que acabam as eleições. Na última, o município
deu quatro mil e seiscentos votos ao Governo; agora deve andar por uns cinco mil.
Uma sem-vergonhice meu amigo, um descaramento... E como recompensa, está o
Senado estadual...9.
O encontro dos amigos se desfaz assim que chegam próximos à casa de Pedro, agora inimigo
político de Maurício. O narrador conta a reflexão de Paulo sobre essa realidade provinciana:
Que importa houvesse lá fora luta tremenda e civilizadora, pela conquista do Direito,
pela posse do Progresso, pela cultura da Arte?... Ali no Amparo, em todos os outros
Amparos de que o Brasil está cheio, a preocupação absorvente, única, exclusiva,
seriam as pequeninas rivalidades locais, envenenadas e violentas que, se não
terminavam no sangue, viviam do doesto e produziam essa imensa ruína10.
Ao chegar à casa do irmão, era justamente o Alcântara, agora senador, que o aguardava
na sala. Após cumprimentos protocolares, “inclusive aludindo à honra da República e da
Democracia”, o visitante revelava seus motivos: filiar o recém-chegado na Filarmônica 28 de
Setembro, como Maurício previra. Embora Paulo assistisse a tudo isso com um pouco de humor,
a desilusão não poderia deixar de se fazer patente. Afinal, estava ali para encontrar a “verdade
interior” em seu sentido mais largo. E o que vira fora essa “vida do Amparo”. A visita do
Senador e seus pares era apenas o lado “cômico e grotesco”:
Desgraçadamente era apenas o avesso do outro, trágico e repulsivo. Justiça
corrompida e explorada; viúvas e órgãos deserdados por contas fictícias e hipotecas
falsas; arbitrariedades, violências, crimes e impunidade resultante das culpas não
formadas, dos despronunciamentos escandalosos ou absolvição dos juízes venais;
rendas públicas fraudadas, administração parasitária dos apaniguados, o povo sem
instrução, nem conforto, ou segurança... e a assistir a tudo isto, a Lei, vigilante, pela
polícia, pela política, protegendo o interesse de muitos e mantendo a covardia de
todos11.
8
PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 123.
PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 123-124.
10
PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 124-125.
11
PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 128.
9
197
A viagem de Paulo estava, na verdade, lhe aguçando as tristezas e desmazelos. O irmão Pedro,
ao saber das conversas com o rival Maurício, sentira-se traído e confessara que “dez ou doze
amigos me vieram censurar o seu procedimento e alguns até a mim próprio, porque consentia
uma indecência daquela ordem”12. Assim, a cidade do interior, o sertão ou algo que o valha, era
pura decadência. Se ali havia algum caráter a ser revelado estava já decididamente corrompido
pelos próprios homens que o habitavam e, dessa vez, era mesmo a moderna política republicana
que operava como catalisadora do atraso.
A busca, porém, não chegara ao fim. Ainda mais longe da capital nacional, para além
da pequena Amparo, no isolamento do “Barro Branco”, sítio de propriedade de sua família,
Paulo iria ter o remédio que ansiava. No local, morava apenas a família de caseiros que tinham
uma filha, Luísa, amor de infância de Paulo e agora contando com dois filhos. Ela será a
confidente do protagonista e lhe escutará todas as reclamações e angústias que trazia do Rio de
Janeiro. Luísa, a outra esfinge, desiludida outrora pelo jovem amante, lhe revelava agora o valor
do perdão a que ele deveria se submeter em relação àquela que o abandonara. Com o passar dos
meses, Paulo de Andrade “esquecera o Amparo e o Rio...”, conseguira sarar “males do passados
e cobrar energias sãs para tornar viver”13. Poderia voltar. O sertão redentor, por assim dizer,
torna-se um isolamento quase completo, numa vida em que memória e presente se confundem,
fora de qualquer registro público ou histórico, portanto, fora do tempo e do espaço. O “sertão
real”, a cidade de interior, o vilarejo interiorano, a vida pública dos “Amparos de que o Brasil
está cheio” não trazia nenhuma verdade redentora.
O romance A Esfinge tivera ótima recepção e ganhara seguidas reedições. Osório
Duque Estrada elogiara tanto o livro que se viu obrigado, em crítica subsequente, a pontuar que
não se tratava de “obra perfeita”14. Estrada destacava no livro a abordagem da “fina psicologia
de alguns residentes de Petrópolis”. O crítico considerara toda a terceira parte como um “detalhe
insignificante” sendo, portanto, desnecessária a descrição da “excursão de Paulo a Amparo e
Barro Branco”15. O autor não conta as razões de tal impertinência. Pelos elogios escolhidos,
nota-se que Estrada preferia o tratamento irônico e sarcástico de certas veleidades da elite
carioca às considerações críticas sobre a história e a realidade das regiões interioranas
brasileiras. Afinal, A Esfinge é uma obra marcada por passagens sobre bailes, salões, negociatas
políticas feitas à mesa do baralho, adultérios, práticas de aborto, cirurgias de esterilização
feminina, descrições dos prazeres das classes mais altas do país, considerações sobre o caráter
da mulher como mãe, amante, trabalhadora e religiosa, sobre o casamento e o divórcio em que
12
PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 130.
PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 156.
14
ESTRADA, Osório D. Ainda Esfinge, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 17 jul. 1911, p 1.
15
ESTRADA, Osório D. A esfinge. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10 jul. 1911, p 2.
13
198
a reflexão moral era a que mais se fazia sentir. Um dos personagens, o poeta Luís Macedo, a
propósito do divórcio, faz considerações que dão uma impressão acerca do universo da trama:
_ O casamento, o adultério, com ou sem divórcio, passam de moda... já não há poesia
do recato e da novidade, que dava a ilusão do amor... Este só encontra hoje, talvez,
entre as mundanas. De fato, a imoralidade anda agora principalmente com a gente
fina... vive nos salões. Na rua, no corso, nos teatros, as cocotes têm ar honesto, falam
bem, com timidez, discrição, e até aparentam acreditar no amor... pelo menos
praticam publicamente a virtude... Nas praças, nos jardins, nos carros, nas festas, são
simples e honestas burguesas... Nos salões, entretanto, a boa gente aperta-se, declarase, namora, beija-se e, se não faz mais, é simplesmente por uma questão de
mobiliário16.
Esta foi a característica que, com o tempo, mais se procurou criticar na produção
literária de Peixoto e que foi lhe foi associada de maneira implacável. O livro trazia as duas
coisas contrapostas entre si, explorando o contraste entre o sertão e o litoral. Este caráter
litoral/sertão da obra de Afrânio Peixoto pode ser percebido nas apreciações que Lima Barreto
fez do escritor baiano. Devido ao caráter mundano e do trânsito que Afrânio Peixoto tinha nos
meios elitistas da sociedade brasileira, Lima chamava-o de “visconde Afrânio Peixoto”,
especialista tanto em História das Religiões, quanto em modas e chapéus17. O escritor falava
que apenas com um professor de boas maneiras, um “matuto” poderia “imiscuir-se na sociedade
que tem para romancista o psiquiatra Afrânio”18. O próprio Lima Barreto, porém, destacara
como o “interessante Afrânio” dissera “diante de estrangeiros, na sua recepção na Academia,
um punhado de verdades amargas sobre a diligência de Canudos”. Assim como o sertão, seja
ele o que for, precisava deixar de ser idealizado, a cultura da elite litorânea tinha a sua vida
superficial ainda mais escancarada quando oposta àquilo que então se chamava de “Brasil real”.
Neste sentido, o interesse pelo romance de A Esfinge é de ele estar no início de um período em
que tal verificação se tornará cada vez mais recorrente e passará a ser um dos critérios para se
definir o valor e o caráter nacional de uma produção intelectual qualquer.
Domínios da ação, da volúpia e da síntese
Um dos autores que mais expressa a cisão entre sertão-litoral no interior da cultura
intelectual brasileira é Monteiro Lobato. Na primeira vez que abordou uma de suas obras,
Problema Vital, Tristão de Athayde considerou o autor de Urupês como o “Savonarola de nossa
desnacionalização, de nossa incúria, de nossa ilusão”19. O livro era uma reunião de artigos
publicados no O Estado de São Paulo onde os institutos Manguinhos e Butantã eram vistos
como “oásis salvadores nesse deserto de indiferença, ninhos onde começam de armar-se novos
16
PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976, p. 59.
BARRETO,
Lima.
Chapéus,
etc.
Vida
Urbana.
Disponível
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2171 p. 112.
18
BARRETO, Lima. Os nossos jornais. Vida Urbana, p. 4.
19
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 jun. 1919, p. 9.
17
em
199
cruzados do saneamento”. Parafraseando Lobato, o crítico notava que:
O quadro das grandes endemias nacionais não se esgota com a ancilostomíase, o
impaludismo, o mal de Chagas, parcas do nosso destino. Esses males físicos são
função de males morais que podem ser reduzidos em três grandes classes – o
bacharelismo, o burocratismo, o literatismo20.
Dessa forma, o quadro da cultura intelectual é traçado segundo uma patologia, diagnosticandose o “problema vital” do país. A crítica ao bacharelismo, já desde a obra de Alberto Torres21 e
Lima Barreto22, era algo recorrente. Com Lobato, porém, a coisa ganhava um caráter de doença,
como o bovarismo de Gaultier, inclusive com denúncias à “literatura”:
O bacharelismo ataca a mocidade por volta dos quinze anos. Contraída a sezão,
começa a corroer as fibras da vontade, da iniciativa, do realismo nacional e predispõe
o organismo para o mal burocrático. O burocratismo, encontrando terreno propício,
sutilmente corrompe o sangue ainda são da vítima e definitivamente a aparta das
profissões independentes e produtivas. E por trinta e cinco anos vegeta o indivíduo,
de casaquinho amarelo, entre o último bonde do “ponto” aberto e as quatro horas
libertadoras. Toma-lhe as horas do dia a minuciosa redação de vagos ofícios. Vive
de intriguinhas e cotoveladas nas promoções. Casa, tem dois filhos verdes, joga no
bicho e morre com os olhos pregados no ideal – a aposentação. O micróbio do
burocratismo é precursor do literatismo. Nas horas ociosas entre os raros ofícios do
dia, a mesa deserta convida aos sonhos literários. E o doente começa a deitar poesias.
Nesses óvulos se oculta a ninfa da moléstia que, pelos ouvidos e pelos olhos,
contamina toda a secretaria. Nos cafés, nas escolas, nas repartições e nos salões se
consuma a ruína de vinte milhões de opilados, de amarelados, de papudos, que
vagueiam pelo nosso interior23.
O crítico aponta a educação como causa principal desta situação devido à formação por demais
“teórica”, “viciada”, “pouco severa”, incapaz de “dar ao indivíduo a qualidade máxima: o
caráter”. A relação entre sertão e litoral aparece caracterizada:
Monteiro Lobato estuda, nesses artigos de combate, as duas faces do problema
higiênico, concluindo pela procedência do saneamento físico. Todavia, não está entre
nós o mal disseminado por igual. Temos o sertão contaminado fisicamente. Temos o
litoral contaminado moralmente. É o litoral que explora e domina o sertão. Logo é
mais urgente atender à causa do que ao efeito, que cessará com ela. Nada impede,
porém, e antes é desejável, que simultaneamente se enfrentem as duas faces do
problema.
Poucos meses depois, Lobato voltava a ser assunto da crítica de Tristão de Athayde,
dessa vez com os livros Ideias de Jeca Tatu e Cidades Mortas. Segundo o crítico, enquanto
artista, Lobato seria um criador, mas, na crítica, estaria antes ao lado dos demolidores24, devido
20
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 jun. 1919, p. 9.
Em 1911, iria ser criada a Faculdade de Medicina de Minas Gerais. Alberto Torres publicou um artigo, sob o
sugestivo título “Mais doutores”, criticando a iniciativa. Cf. TORRES. Apud. PIRES, Aurélio. Faculdade de
Medicina de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1927, p. 88-91.
22
Especialmente na obra Os Bruzundangas, Lima Barreto fala da cultura superficial e de imitações acríticas de
parte da intelectualidade da utópica República. O autor enumera uma certa hierarquia de doutores segundo as
gemas dos anéis de bacharel: Médicos (Esmeralda); Advogados (Rubi); Engenheiros (Safira); Engenheiros
militares (Turquesa); Engenheiros geógrafos (Safira e certos sinais no arco do anel); farmacêutico (Topázio);
Dentista
(Granada).
Cf.
BARRETO,
Lima.
Os
Bruzundangas.
Disponível
em
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=16833, p. 20.
23
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 jun. 1919, p. 9.
24
O volume Ideias de Jeca Tatu trazia o artigo “Paranoia ou Mistificação?” que Lobato escrevera a propósito da
21
200
a sua falta de “calma para analisar e serenidade para concluir”25. Se o Jeca aparecia revisto,
considerado desta feita não mais como um “acanhando”, “indolente” e “fatalista”, mas segundo
“ideias ardentes, convictas e agressivas”, as Ideias de Jeca Tatu eram, porém, “menos um apoio
aos desiludidos que uma sátira, direta e implacável, contra os males de uma civilização
apressada que se descaracteriza”. Tal condição era vista por Lobato como um atraso, pois,
àquela altura “já deveríamos ter uma personalidade nacional inconfundível”. O crítico, porém,
considerava a exigência “forçada”:
Nação de território imenso e geralmente hostil, com quatrocentos anos de existência
e cem de independência, solo em que se caldeiam as raças mais opostas, país lançado
prematuramente no jogo das nações e ligado, por força das circunstâncias, aos
maiores acontecimentos mundiais, forçado portanto, a um crescimento precoce, só
seria de espantar que fosse homogêneo e metódico o seu desenvolvimento. O nosso
descaráter de hoje é a mais perfeita expressão de uma nacionalidade solicitada pela
civilização, quando ainda se debate com a barbaria.
O tema do “desequilíbrio” nacional era recorrente e mesmo a escrita de um autor
poderia ser identificada com tal caráter (ou “descaráter”) do povo. Comentando o estilo de
Lobato, o crítico considerava como “novo [...] lidimamente brasileiro, tem o viço e o
desconcerto da terra”, “vibrante, expressivo nas comparações vegetais, independente, cria
neologismos, inventa construções inéditas, e para ideias novas aplica termos novos”. Porém,
não se poderia condenar simplesmente o cosmopolitismo das maiores cidades, uma vez que:
[...] não há esse país em que os grandes centros não tenham um caráter mais ou
menos cosmopolita. A civilização material criou uma semelhança bem sensível entre
todas as capitais. É sempre o interior dos países, no campo e nas pequenas cidades,
que se guarda o verdadeiro feitio nacional. [...] não se pode exigir de uma terra e de
um povo em nossas condições, um caráter claramente definido. [...] assim como se
não pode culpar o sertanejo pelo seu atraso científico ou intelectual, não se deve
acusar, sem remissão, o citadino pela sua despersonalidade. O sertanejo ainda vive
banzando, sem iniciativa viva nem saúde, por culpa do urbanismo de nossos
governos e da criminosa indiferença das classes chamadas superiores. Estas não
guardam nem criam uma feição nacional característica, porque se viram solicitadas,
inclusive pelos sentimentos atávicos, por civilizações estranhas e sedutoras, antes
que adquirissem a consciência do seu ser moral. Tanto o sertanejo como o citadino
não podem, sem grandes atenuantes, ser responsabilizados por esses males.
Impunha-se, porém, a ação do homem para “apressar tal transformação”. O crítico vê
a oportunidade de se formar um “movimento de opinião” que possa, enfim, atingir os objetivos
exposição de Anita Malfati, em 1917, criticando-a fortemente. Ao analisar o volume, o crítico não fizera qualquer
referência direta a tais críticas, apenas considerando que “reuniu o autor, em volume, vários escritos publicados
em diários e gazetas, sobre crítica de arte, crítica social e crítica literária. Ocupa-se com várias questões de estilo
nacional, de educação artística, das novas correntes estéticas, estuda com inteligência e gosto a obra de Pedro
Américo e de Almeida Júnior, escreve crônicas agudas sobre os costumes cosmopolitas contemporâneos, e publica
páginas fortes sobre Roquette Pinto, J A Nogueira, ou sobre o Saci Pererê e o inquérito aberto pelo ‘Estadinho’.
Se, como artista, é o sr Monteiro Lobato um criador, como crítico é um demolidor”. Cf. LOBATO, Monteiro.
Paranoia ou mistificação? In: BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro. Antecedentes da
Semana de Arte moderna. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1971; ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O
Jornal, Rio de Janeiro, 23 jun. 1919, p. 9.
25
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 jan. 1920, p. 8.
201
almejados. A obra de Monteiro Lobato corroboraria com tal movimento:
[...] revela-se o sr Monteiro Lobato um crítico impiedoso e demolidor, para com os
males de nossa descaracterização, sensível e carinhoso para com tudo aquilo que
concorra para a nossa emancipação intelectual e artística. O livro [Ideias do Jeca
Tatu] é desconexo e imoderado, perfeitamente expressivo do espírito tumultuoso e
combativo do autor. É este um destruidor, que saberá reconstruir, pois lhe sobre
talento, quando alcançar a serenidade. Hoje, mesmo em sua obra de arte, é um
criador mas não um construtor. Sente-se-lhe ainda nas ideias e nas sensações em
ebulição incompatível com o trabalho pausado e a cultura26.
Na produção ficcional de Lobato exemplificada no livro Cidades Mortas, Tristão de Athayde
via a expressão da “figura de mais acentuado caráter da nova geração intelectual. Dotado de
uma incomparável visão de observador, com grande pitoresco de expressão e excepcional
talento de narrador, tem o estofo de um admirável romancista”. O crítico traça-lhe o perfil:
Tem, como critério de arte, a verdade. Foge da beleza procurada. Não lhe interessam
os dramas interiores nem as dissecções da psicologia. Arte, para ele, é a expressão
intensa do meio e das paixões. É um naturalista, sem que lhe degenere o naturalismo
em obsessão do pormenor. Sabe ver com uma vivacidade singular, e transporta para
a sua obra toda a palpitação de uma realidade vibrante. Paisagem, costumes e ação
resumem a sua arte. Expressão e movimento talvez lhe sejam os mais distintos
caracteres, sem esquecer o pitoresco e a comoção. Como descritivo, chega muitas
vezes à caricatura, de que talvez abuse. Sabe forçar a realidade para gravá-la. É um
pessimista, ou antes, um realista, de sensibilidade muito aguda e tumultuosa. Vê os
homens como são, sem se iludir, ou melhor, com as ilusões mortas. [...] Esse realismo
escrupuloso dos seus tipos despertou a reação dos sertanejos, em geral da cidade...
O crítico considera que não haveria em Lobato intenções de deprimir o interior, o sertão, mas
de exprimí-lo. Sua severidade com o “homem da cidade” seria ainda mais aguda, visto que aos
defeitos deste último se somariam a vaidade e a hipocrisia: “Monteiro Lobato copia a realidade:
eis porque foi acusado de traí-la. Estamos tão habituados a ver os homens como queremos ver,
que mal acreditamos em quem os vê como são”. Segundo o crítico, o melhor na obra Urupês
era o seu estilo e aconselhava-o a realizar trabalho de maior fôlego:
Perde um pouco o livro [Cidades Mortas] pela falta de unidade. Porque se não lança
o autor, afoitamente e com êxito seguro, no romance? Porque dispersa elementos tão
preciosos? Porque não abandona de vez certo tom apaixonado e pessoal que altera a
sua arte forte e objetiva? Toda arte, e mormente a arte realista, deve viver por si, com
a mínima intervenção o autor. E na obra de ficção do próprio sr Monteiro Lobato é
fácil verificar como as melhores páginas são as que tem vida autônoma.
Em carta a Tristão de Athayde, Lobato considerava que quando a crítica era “séria e
meditativa” daria ensejo ao “ao criticado de pegar na pena, não para agradecer simplesmente,
mas para abrir-se em confidências que deixem entrever os bastidores psicológicos do
freguês”27. O escritor, então, pedia ao crítico que tivesse paciência para ler suas considerações:
Cid. mortas é um livro gaveta de sapateiro onde meti coisas velhas, anteriores aos
Urupês, é essa literatura que vem com o buço e as primeiras espinhas. Ideias do Jeca
é uma escaramuça. Nenhum deles é nem pretende ser mais que isso. E [...] os três
são oriundos do único sentimento que me anima a escrever: a indignação. Tenho
26
27
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 jan. 1920, p. 8
Carta de Monteiro Lobato a Alceu Amoroso Lima, 28-1-1920, acervo CAAL.
202
notado que é esse um dos grandes sentimentos criadores. No geral, porém, atrasamna os homens deblaterando em grupinhos, para desabafo [...] esperneando numa
mofina de seção-livre. Eu resolvi aproveitá-la de outro modo - renovando-a, sob a
forma de artigos de jornais ou contos. Todos eles têm origem na indignação.
Exemplos que me ocorrem: “Comprador de fazendas”. Eu morava na roça e certa
vez hospedei durante uma semana um candidato à minha fazenda; ao cabo ele se foi,
sem fechar negócio, confessando que há sete anos andava [...] em procura dessa
fazenda para comprar. Mal partiu meditei sobre o caso e disse a minha mulher: quer
ver que este patife me enganava? Mas deixa estar que me vingo. Casco-lhe um conto.
E incontinente, a um fôlego, depressa, depressa a tempo de apanhar a saída num
jornaleco de cidade vizinha que ele forçosamente leria, passei a minha indignação
naquela história, mas errei. Antes de publicado o homem voltava e comprava-me a
fazenda. “Velha Praga” e “Urupês”: a caipirada queimara-me grande extensão de
matas certo ano; apliquei a justiça, apliquei o esforço pessoal; perseverando a
indignação fiz aquelas [...] contra o jeca, que tanto popularizaram o mesmo.
“Imposto único”, indignação contra um fiscal que brutalizou um pequeno em minha
presença. “Ideia do Jeca”: indignação contra uma lombriga de asfalto que sob o nome
de Freitas Valle caftiniza as artes e os artistas de S Paulo. “Pollice Verso”: indignação
contra um médico que matou um meu amigo e extorquiu 10 contos ao espólio;
“Espião alemão”: indignação contra um atitude imbecil de um certo jornal e duns
tantos patrioteiros em face dos alemães do Brasil. E, assim por diante, tudo. [...]
Calmamente não escrevo senão [...] postais. Por esse motivo não me tenho na conta
de literato, não faço carreira disso, não aspiro à coisa nenhuma [...] academia etc. E
também por esse motivo não me atiro ao romance que V. e outros têm sugerido.
Como conseguir uma indignação que perdure durante 300 pgs.? A cólera criativa
arrefeceria ao fim do 1o capítulo... Errei pondo a classificação de “Crítica” às
“Ideias” [do Jeca]. Devia estar ali guerra [...] Como errei chamando contos às outras
coisas, devia dizer picuentas28.
Quando tratou de obras que criticavam abertamente a maneira como Lobato
caracterizara a figura do jeca, o crítico usou argumentos expostos nessa carta:
Pensando talvez em favorecer ao sr Monteiro Lobato, fez-lhe Ruy Barbosa um mal
inconsciente, pela publicidade que deu ao tipo do Jeca Tatu. Criara-o o autor de
“Urupês”, em um momento de revolta contra os caipiras que lhe haviam atacado a
fazenda e devastado as matas. Inspirava-o a “indignação” [...] e ainda a reação contra
o sertanismo idílico de Alencar ou Bernardo Guimarães, e não cogitara de traçar um
retrato, senão uma caricatura naturalmente forçada e injusta29.
Após o discurso eleitoral de Rui, Lobato tornara-se o “homem do Jeca”, que virara personagem
de teatro de revista e samba de carnaval30. O crítico apontava que perspectivas otimistas acerca
do homem interiorano, do sertanejo, estavam mais próximas das de Lobato do que se poderia
imaginar. Acerca do volume Jeca Tatu e Mané Chique-Chique, do autor cearense Idelfonso
Albano, Tristão de Athayde dizia que em ambos se poderia perceber o amor pela terra, o contato
com sertanejo e a consciência de que ele é o cerne da nacionalidade. Afinal, em Ideias de Jeca
28
Carta de Monteiro Lobato a Alceu Amoroso Lima, 28-1-1920, acervo CAAL.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 23 fev. 1920, p 2.
30
O samba “Jeca Tatu”, feito em pergunta e resposta, tinha na primeira parte tais versos: “Que vida penosa / Tem
o conductô / a picotá / a picotá/ Oh! Que luta danada / Fazendo sempre / Só madrugada” que era respondido pelo
coro: “O seu Jeca fica firme / Boa vida é picotar / Meu amigo isto é da vida /Não se ponha a espernear”. Cf.
Carnaval. Blocos dos Teteias. Grande Festival no Politeama Méier, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 jan. 1920, p. 8;
Cf. Dia 1. JECA TATU, revista de Alfredo Breda e Romano Coutinho, música de Paulino Sacramento. O Jornal,
Rio de Janeiro, 30 ago. 1919, p. 11.
29
203
tatu, diz-se que “O Brasil ainda é o caboclo”. Ambos autores teriam o “desejo de grandeza, fé
de prosperidade futura. Apenas o estado de alma de encarar os fatos é distinto”31.
Segundo o raciocínio de Tristão de Athayde, visto o aparecimento de uma literatura de
“defesa do sertanejo”, ao menos, “foi um dos bens da sátira esse despertar do interesse pelo
caboclo deslembrado ou romantizado”. Mesmo reconhecendo que as críticas feitas por Lobato
eram “pesadas”, o crítico insistia na oportunidade de tal método, questionando-se
retoricamente: “E o fim não foi então alcançado? Não decorrerá maior bem para o sertanejo, de
uma pintura exagerada e pessimista, ao seu estado, do que uma descrição idílica de sua
situação?” Assim, o livro Urupês e o sertanejo brasileiro, do escritor paranaense Leônidas de
Loyola, apesar das críticas a Lobato, compartilharia com este último do mesmo “ardor
patriótico”. A cisão sertão-litoral torna-se uma condição cada vez mais alarmada no país.
De maneira mais genérica, a questão marcava a busca pela unidade nacional. Tal
problema seria um “assombro” da história nacional com várias causas:
A grandeza da terra, o isolamento das regiões, as divergências de caráter, de clima,
de civilização, a variedade de culturas e de mercados, as aspirações centrífugas, a
proximidade de vizinhos poderosos, ou fracos mas ávidos de crescer, a colonização
deficiente e desequilibrada, tudo parecia conspirar contra uma unidade de pátria
aparentemente tão desfavorecida pelas circunstâncias32.
Por outro lado, outros aspectos teriam auxiliado à manutenção da unidade:
Primeiramente a colonização espanhola das regiões limítrofes, em oposição à
colonização portuguesa isolada no seio do continente. Em consequência desta, a
língua peculiar e divergente, laço nacional por excelência, que favorece as
aproximações e pode criar as indissolubilidades. E finalmente a centralização
monárquica, política de admirável realismo, quaisquer que tenham sido os seus
abusos ou desvios na prática.
Tais reflexões davam ensejo para se tratar da questão do território amazônico que, até então,
teria cumprido um papel de “isolamento” na preservação estratégica da unidade do país. O
território e as populações amazônicas, no decorrer da dos anos 1920, ganham notoriedade na
cultura intelectual brasileira, desde as perspectivas estéticas aos estudos econômicos e políticos.
Nesses anos, relatava-se uma história que remontava aos finais do século XIX em que
o território amazônico fora “o palco da mais prodigiosa tragédia, da mais aventurosa epopeia
da nossa história”. A imigração para a região seria uma “cruzada de desbravamento” que se
igualaria ou, ao menos, “empalideceria” os feitos do bandeirantismo paulista.
Eram os
“deserdados” descritos no livro de Carlos Vasconcelos. Tal história assumiria tonalidades
trágicas em que os principais artífices ficariam relegados ao esquecimento, de modo que “mais
triste é que ressaltam os mais ignóbeis, os exploradores, os ‘apuizeiros sociais’, quando os
verdadeiros heróis da conquista, os anônimos ‘cearenses’, desaparecem no estonteamento do
31
32
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 23 fev. 1920, p 2.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 18 abr. 1921, p. 1.
204
‘inferno verde’. É a lei da injustiça imanente, da reversão absurda dos valores”33.
O livro seria feito “em páginas ardentes, vigorosas, estonteantes, onde sangra uma
realidade de inacreditável violência. O feito literário do Sr Carlos Vasconcelos é a brutalidade”.
Seria uma produção que:
[...] não tem medida, não tem gosto, não tem sutilezas nem intensidade psicológica.
Vê o mundo em seus aspectos mais violentos ou grosseiros, sem recuar perante os
exageros de uma visão patética da existência. É um bárbaro, em literatura, com os
defeitos e as qualidades de uma força deliberada ou inconscientemente anárquica.
Estaria aí “o” romance da Amazônia da época. Não se tratava, porém, de um romance de fato,
mas da descrição de episódios que formariam um “colar de contos”. O livro de Vasconcelos
descreveria a situação dos seringueiros na Amazônia submetidos a uma dupla “escravidão”: da
natureza e do homem. Um quadro seguindo o realismo tão reivindicado é exposto:
O seringal era o reduto infernal onde agonizava a seringueira aos golpes furibundos
do seringueiro, acirrado em crises de desespero, e o estendal apavorante onde vinham
cevar-se, nos crimes multiformes, os monstros da ganância e da fereza! Os máximos
heroísmos ali se alternavam com as maiores vilanias. O esforço do braço cearense e
a pletora da seiva no líber das seringueiras, eis os exclusivos fatores de toda
heroicidade da estupenda cruzada contra a floresta infinda, no labirinto complexo do
gigantesco rio letífero, cujo ambiente prende como o visgo e atrai como ímã!
Transpunha-lhe os verdes umbrais saturados de esperança e cheios de vigor, para
logo voltarem desalentados e semimortos, quando escapos à seriação imensa de
perfídias e ciladas, adrede engendradas pelo homem e pelo ambiente: e, no entanto,
a lição tremenda, longe de os fazerem arribar dali, espavoridos, os reconduzia,
estoicos e contraditórios, à ‘praga’ parasitária, às provações exaustinantes, à
famigeragem multifária dos cães ali vestidos de pele humana34.
Aí se revelariam os aspectos materiais do desenvolvimento amazônico:
Tombados os grandes madeiros, ora mantidos pelas raízes adventícias, por essas
sapopembas colossais, a bacia do Amazonas oferecerá infindos planos à atividade
universal, com madeiras, palhas e fibras adequadas a todos os ramos da indústria;
abarrotar-se-á de celulose, víveres e gado, com a extrema uberdade que a crosta de
húmus natural assegura: e ao efeito de suas lendas mais formosas, esplenderá na
grandeza eternal da Gama e da Glória35.
Por outro lado, o agente de tal “epopeia amazônica”, o “miserável cearense”, era visto como:
Esquálido, falho de capitais e de forças, e só abroquelado no poder da vontade
criadora, o deserdado êxul das soalheiras do Ceará expugnara numa procissão
integral os labirintos do Rio Mar e legara à terra ferace um gigante na ação, na
perseverança e no patriotismo, seu filho másculo continuador de sua obra,
suprabrasileira, que, na Região das Águas, agora entra a espasmar o mundo36.
A obra tinha um valor que, na opinião do crítico, “muito maior seria se ao autor não faltasse
intensidade psicológica e uma técnica mais apurada”. O mais relevante, porém, era a sua
pertinência “neste momento, em que do extremo Norte e do Alto Acre nos chegam as mais
desoladoras notícias de miséria, de desamparo e até, Santo Deus, de fome, assume o livro forte,
33
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 abr. 1921, p. 1.
VASCONCELOS Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 18 abr. 1921, p. 1.
35
VASCONCELOS Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 18 abr. 1921, p. 1.
36
VASCONCELOS Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 18 abr. 1921, p. 1.
34
205
vibrante e doloroso do Sr Carlos Vasconcelos a mais sombria das feições”37.
Assim, produções como as de Carlos Vasconcelos e Monteiro Lobato tinham dentre
seus focos principais a denúncia acerca das condições inóspitas vividas pelas populações
interioranas, seja no Amazonas, seja no interior paulista. Estas últimas tinham se tornado
verdadeiro mote literário. Lima Barreto via como “uma das manias mais curiosas da nossa
mentalidade” o “caboclismo”. E, no caso, o escritor criticava o “general Rondon” que “nunca
venceu batalhas, e não as vencerá, porque o seu talento é telegráfico. Não há general como ele
para estender linhas de telégrafo; mas não há também general como ele, para catequizar
caboclos”38. Daí Barreto admirar a obra de Monteiro Lobato, pois este não teria procurado
“simbolizar em Jeca-Tatu, nem o sertanejo, nem coisa alguma”:
Ele não tem pretensões simbolistas, como nunca tiveram os grandes mestres da
literatura. Tais pretensões são cabíveis nos transcendentes autores que ninguém lê.
Ao que me parece, pois só epistolarmente conheço o autor do Urupês, o Sr. Lobato
viveu ou nasceu na região a que chamam “norte paulista”, o vale da parte de São
Paulo do Paraíba do Sul. É ela que ele descreve com tanta ternura e emoção contida
nos seus livros de ficção. Ele viu a sua decadência; ele relembra seu esplendor
passado. Certamente, quando menino, brincou lá com aqueles Jecas; e é a sua
saudade, é a sua simpatia, é a sua mágoa por não vê-los prósperos, que fez pintá-los
como pintou. Isto está a ver-se nas suas Cidades Mortas, livro seu, talvez mais
curioso que o famoso Urupês, que tanto escandalizou o patriotismo indígena39.
A produção de Barreto, se não tinha na cisão sertão-litoral o cerne de suas preocupações,
abrigava, em suas idealizações, a finalidade de superar a divisão entre os homens:
Fazendo-nos assim tudo compreender; entrando no segredo das vidas e das coisas, a
Literatura reforça o nosso natural sentimento de solidariedade com os nossos
semelhantes, explicando-lhes os defeitos, realçando-lhes as qualidades e zombando
dos fúteis motivos que nos separam uns dos outros. Ela tende a obrigar a todos nós
a nos tolerarmos e a nos compreendermos; e, por aí, nós nos chegaremos a amar mais
perfeitamente na superfície do planeta que rola pelos espaços sem fim. O Amor sabe
governar com sabedoria e acerto, e não é à toa que Dante diz que ele move o Céu e
a alta Estrela40.
Sua obra, assim, procuraria agir sobre os seus leitores, despertando-lhes o “sentimento
de solidariedade”. Na visão de Tristão de Athayde, Lima Barreto faria parte de uma tradição de
“tendência socialista, antianarquista, mas libertária”41 que estaria se avolumando no interior da
cultura intelectual brasileira. Segundo o crítico:
Literariamente, essa tendência trabalhista implica maior simplicidade de estilo,
menos rebuscado de sentimentos, generosidade e desejo de justiça. A hierarquia
intelectual e moral perdurará, porque é eterna, mas o pensamento será mais humano,
a expressão mais simples. Inspirada pela terra e apiedada pelo homem, a nossa
literatura de amanhã viverá num largo sopro de naturalidade.
Lima Barreto foi objeto da primeira crítica lançada por Tristão de Athayde em O Jornal, na qual
37
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 18 abr. 1921, p. 1.
BARRETO, Lima. O nosso caboclismo. Marginália, p. 24.
39
BARRETO, Lima. A obra do criador de Jeca-Tatu. Marginália, p. 61.
40
BARRETO, Lima. Impressões de leitura. O destino da literatura. Marginália, p. 41.
41
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919, p. 11.
38
206
abordara o livro Vida e Morte de M J Gonzaga de Sá. Aí ele comentava o fato de se evolar de
suas produções “um grande desencanto de viver. Vencido na vida, inadaptável, comunica à sua
literatura um acre perfume de tédio e amargor. Sua obra é uma galeria de caricaturas sociais,
magistralmente traçadas42”. Ele seria, mais do que um cético revoltado ou ironista, um
caricaturista. Um humorismo diverso do de Machado de Assis, pois em Lima Barreto “a revolta
contra os males sociais rompe amiúde o verniz da ironia. Ainda não alcançou a impassibilidade
do humour. Lá chegará, se vencer o tédio de viver”. Além disso:
[...] humorista, caricaturista, com uma visão dolorosa dos males ridículos sociais,
temperada pelo pudor de sofrer. Lima Barreto procura esquecer o cotidiano – vinum
laetificat cor hominis [o vinho alegra o coração dos homens]. O desconcerto de sua
obra ressente-se da boemia de seu viver. Contudo é o mais humano de nossos
romancistas, o de mais vasta mirada. Criou tipos imperecíveis e perpetuou os nossos
meios urbanos de mais caráter: a imprensa, a política, a repartição – fixando a
paisagem familiar do Rio. Que o mal de viver não emudeça esse raro e doloroso
artista, que conhece o segredo da arte literária – escrever nas entrelinhas.
O autor agradecera as palavras do crítico novato, enviando-lhe um cartão com as seguintes
palavras: “ao [...] Tristão de Athayde, cumprimenta Lima Barreto e agradece a crítica que sobre
o livro dele, teve o sr. a bondade de fazer no ‘Jornal’”43.
Por ocasião do falecimento do escritor, o crítico fizera considerações sobre a obra
completa do autor. Desta feita, ele lembrara a consciência social de Barreto, destacando a
influência dos romancistas russos e, além disso, reformulando os juízos sobre o tipo do seu
humorismo, agora percebido como ligado à “verdade”:
O humorismo satírico de Lima Barreto é uma função desse signo da verdade, sob o
qual nasceu literariamente. E por esse caráter se liga, no que lhe toca, a essa grande
corrente do cômico universal, que vai de Aristófanes a Charles Chaplin. Interrogado
este último sobre o meio que emprega para despertar nos homens de todas as classes
e todas as inteligências o mesmo riso irresistível e indelével, respondeu que se limita
a dizer as verdades mais corriqueiras, embora menos previstas: It is telling them plain
truth of things... I make them conscientious of life44.
Na visão do crítico, que tecera apreciações sobre cada um dos romances do autor, a obra de
Lima Barreto ficaria como marco do “romance social” brasileiro:
Seus livros hão de ficar, porque contêm um grande sopro de humanidade, no qual se
hão de reconhecer, através dos tempos, todos os que sentiram o peso da contradição
fundamental da vida. E se concorrerem para apagar um pouco do nosso egoísmo,
com a visão de tanta maldade e de tanta dor humilde, terão realizado o sonho de sua
vida de desabusado que nascera para burguês.
Tristão de Athayde notara, ainda, o aspecto central da capital nacional em sua obra que
“pôde perpetuar, pelo amor com que as amou, essas paisagens familiares do nosso Rio, que
compreendeu naquilo que possuem de bem nosso, debaixo do verniz de metequismo de todas
as grandes capitais”. A literatura que buscava ver “debaixo do verniz” traria consigo as questões
42
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 17 jun. 1919, p. 11.
Carta de Lima Barreto a Tristão de Athayde, sem data, acervo CAAL.
44
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 nov. 1922, p. 1.
43
207
sociais e políticas que afligiam a sociedade em geral, assim como as paragens urbanas que eram
desconhecidas pelos próprios habitantes das cidades. Aí estariam inclusas as produções do
escritor anarquista Afonso Schmidt, especialmente a reunião de contos intitulada Brutalidade,
na visão do crítico, “um livro de revoltado [...] um livro que os catalogadores classificariam
talvez de ‘literatura social’; mas não é um livro de proselitismo vulgar, em que o amor da tese
leva à falsificação consciente da verdade”45. Segundo a apreciação, “o drama deste livro é
justamente a visão constante da beleza em meio da vulgaridade, da serenidade em plena luta,
do céu enfarinhado de estrelas na noite lôbrega e imunda do calabouço”. Assim, recomendavase francamente a obra do “libertário” que “mais fará sem dúvida, pela nossa piedade humana,
que todo um tratado de materialismo histórico...”.
Os olhares por “debaixo do verniz” das cidades trariam muito mais do que
engajamentos em causas sociais. Uma obra que se situava no limite entre a literatura realista do
litoral e a “literatura” que parecia ter maior compromisso com a venda de livros, era a de Paulo
Barreto (João do Rio). Tristão de Athayde considerava sua produção como a “mais expressiva
do nosso desequilíbrio social e mental”, pois “nela se encontram os caracteres mais opostos de
civilização e empirismo”46. Afinal, “pelo amor ao rutilante, ao colorido, ao superficial, mostra
o que tem de rudimentar. Pela sutileza do pensamento, pela fertilidade da imaginação, pela
vibração do estilo revela um alto grau de civilização”. Seu estilo teria algo da maneira dos
pintores da escola pointillistes, do pós-impressionismo francês, uma literatura marcada por
“pinceladas leves e múltiplas, de cores vivas e várias, como se um punhado de confete houvesse
atingido a tela” e, por isso, seria mais profícuo no conto e na crônica. João do Rio mostraria
como nem sempre a verdade é verossímil e isso se consolidaria em uma busca pela
“originalidade a todo transe. Procura impressionar pela escolha de assuntos raros termos
inéditos, comparações extravagantes, teorias paradoxais. Se todos que escrevem para ser
publicados pensam no público, no Sr João do Rio ainda é o fato mais patente”.
A literatura de João do Rio traria uma gama de “tarados, paradoxais, viciosos,
neurastênicos, requintados, perversos” e seria caracterizada pela:
[...] repulsa ou desdém pelo natural, desde a escolha dos assuntos até à maneira de
os tratar. Sua imaginação oriental ignora o sentimento da verdade e da proporção.
Não é para ele a arte uma expressão sensível da relação entre os fenômenos e os
temperamentos. É uma literatura de ilimitado subjetivismo. Os limites da expressão
são os do próprio temperamento. Se é certo que usa da maior liberdade, não cai na
licença conservando-se nas lindes da compreensão, senão nos da sensação vulgar.
Dessa forma, produziria uma arte “nevrótica”:
[...] tudo é desproporcionado. O vício abjeto, o luxo refinado, a ignorância boçal, a
inteligência anárquica. O amor é um uivo dos sentidos, ou sacrifício atroz. A própria
45
46
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 jul. 1922, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 nov. 1919, p. 6.
208
virtude é agressiva. Não duvido da sinceridade de uma tal visão de mundo. Apenas
deve existir um desequilíbrio no foco dessa visão, que deforma a realidade,
dramatizando-a. Para o Sr João do Rio, não parece haver sentimentos médios,
inteligências parcas, costumes burgueses, vida tranquila, virtudes desinteressantes,
criaturas incolores47.
João do Rio cultivaria, ao mesmo tempo, o “trágico e o frívolo”, uma arte dos opostos que, por
tal condição, “não sendo moralmente inócua, ao menos em aparência, pode exercer
literariamente uma ação favorável, pela ousadia de seus processos e ideias. Em arte é preferível
a própria incoerência dos mais arrebatados ‘futuristas’ à paralisia dos conservadores
impenitentes e gelados”. O autor, porém, não concordara totalmente com as apreciações:
Será verdadeira a sua teoria a meu respeito? Eu achei que não, posto que a respeitasse
pelo que ela tinha de sincero e independente e de delicioso. Era e é desejo meu
encontrá-lo e conversar. Há meses, porém, ainda não me foi possível esse prazer.
Talvez da palestra surgisse a certeza de que o João do Rio não tem imaginação, não
é artificial, não passa afinal de um cidadão com um mérito único: a observação48.
Os livros mais vendidos apareciam esporadicamente na crítica literária de Tristão de
Athayde, que tinha no silêncio uma forma de apreciação. Os comentários, porém, sobre quais
obras tinham mais edições surgiam regularmente na crítica literária em geral. A esse respeito,
não restaria dúvida, dentre os mais vendidos estavam os livros associados a algum tipo de
pornografia ou sensualismo exacerbado. Daí as reflexões de Agripino Grieco:
Até quando abusarão da nossa paciência os escritores licenciosos? Pululam eles
agora entre nós como vermes num pedaço de queijo podre e vivem a espalhar livros
que, além de péssimas obras de arte, são péssimas ações morais. Faz vergonha a
existência, no Brasil, de tantos rabiscadores que exploram a turbação sexual, a
loucura e a fealdade, que propagam o gosto da desonra, da decadência e da morte de
seu próximo, mostrando amar a baixeza alheia como outros amam o vinho e o jogo,
possuídos de uma espécie de furor de deprimir os demais, para acanalhar todo o
gênero humano. Para eles, não há hierarquia na escala zoológica e o homem, se é
“un cochon qui sommeille”, está sempre pronto a despertar e grunhir. Só veem na
sociedade de hoje uma debandada moral; só se preocupam com misérias de hospital
ou de manicômio. Fazem da literatura uma escola de escândalo, um “club” de málíngua, e orgulham-se de ser os Houbigants do lixo, perfumistas paradoxais que
engarrafam e rotulam água suja de toucador49.
Os escritores de tais volumes fariam sucesso, seriam “lacaios da fama, preocupados unicamente
com o quinto ou sexto milheiro, transformam a glória artística, que já foi uma espécie de livro
de ouro da nobreza, em simples cadastro policial”. Dentre os autores assim considerados pelos
críticos, o escritor Théo Filho figurava com destaque. Apontava Grieco:
Sua gente preferida são os temperamentos aberrativos, paradigmas de canalhice,
loucos ou imbecis dados a idílios bestiais, sujeitos mal educados e bem vestidos,
mulheres de lábios e cabelos pintados, jogadores de campista, gozadores de cocaína
e morfina, políticos venais, banqueiros ladravazes, e da plebe o sr Théo apenas vê,
nas tascas e outros lugares sórdidos, velhas devassas, carregadores e peixeiros,
moleques que têm gestos obscenos de saguim irritado; sendo de notar o profundo
desprezo com que ele, bairrista excitado, todo louvores para o bairro do Catete, fala
47
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 nov. 1919, p. 6.
Carta de João do Rio a Tristão de Athayde, sem data, acervo CAAL.
49
GRIECO, Agripino. Vida literária. O Jornal, Rio de Janeiro, 7 out. 1923, p 1.
48
209
nos moradores do Meier50.
Tristão de Athayde, por sua vez, destacava o naturalismo na obra de Théo Filho:
[...] apesar de inteiramente sobrepujado por todas as corrente literárias modernas, é
só entre nós que o naturalismo continua a garantir o lucro de autores e editores, e
ninguém ignora que na França o grande escândalo literário do dia é essa
desinteressante e vulgar, embora bem feita, La Garçonne, livro friamente naturalista,
cuja tiragem num semestre já excedeu os duzentos mil exemplares51.
Como se vê, a “fórmula do sucesso” estava bem difundida. O livro La Garçonne, de Victor
Margueritte, além da fama pelo sucesso de tiragens, rendeu ao autor a expulsão da Legião da
Honra francesa. No caso, seu advogado foi o próprio Anatole France que, para explicitar a
injustiça, lembrava a censura imposta pelo governo de Napoleão III à obra Madame Bovary, de
Gustave Flaubert. Segundo apreciação de Adrien Delpech:
Na Garçonne ninguém se salva. Todos são odiosos e exclusivamente odiosos.
Monique entrega-se ao noivo antes do casamento, só para se afirmar a si mesma que
se acha acima dos preconceitos. Depois, sem a desculpa da paixão ou do simples
desejo, entrega o corpo ao primeiro transeunte encontrado de noite na rua, e gaba-se
dessa triste aventura perante os progenitores, dos quais a mãe é adúltera, e não
passando o pai de negocista sem sombra de escrúpulos, ao ponto de fazer uma
simples traficância o casamento da filha. O noivo vale o futuro sogro. Dos amantes
com quem Monique procura o repouso, depois de ter viajado na ilha de Lesbos e em
todos os paraísos artificiais, um, Régis, é uma espécie de fera, ciumento até o crime;
o outro, Blanchet, um declamador sem originalidade52.
A frase final do livro, “não se pensa no esterco quando se respira uma flor”, não teria sido
suficiente para salvar a moral da protagonista. La garçonne, porém, virou filme que
rapidamente foi proibido em todo território francês. Em Buenos Aires, recolheu-se o livro,
proibiu-se e depois se liberou as exibições53. No Brasil, a obra foi traduzida e anunciada como
um “grande sucesso” e, apesar dos protestos junto à polícia, ganhou as salas do carioca Cine
Palais, “tão apreciado pelas famílias”, segundo relatos da época, além de ter virado peça de
teatro e feito a moda dos “cabelos à la garçonne”54.
Segundo Tristão, a obra de Théo Filho, justamente por seu naturalismo, teria “a
vantagem de mergulhar na realidade contemporânea de tomar da vida em sua dinâmica
50
GRIECO, Agripino. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 jan. 1924, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 fev. 1923, p. 1.
52
DELPECH, Adrien. La garçonne, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 mar. 1923, p 1.
53
Cf. “La garçonne”, enfim, foi interdita no território francês, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 set. 1923, p. 11; Na
Argentina. O sequestro da novela “La Garçonne”, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 mar. 1923, p. 5; Foi permitida a
exibição de “La Garçonne”, em Buenos Aires, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 dez. 1923, p. 15.
54
Cf. La Garçonne, hoje à venda o 1o fascículo em português. GRANDE SUCESSO, O Jornal, Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 8 jul. 1923, p. 3; O protesto contra o filme saiu na seção de a pedidos do jornal e, dentre outros
reclamos contra a exibição da película, dizia “Moças brasileiras: afastai a vossa pureza e o vosso espírito da
materialidade grosseira e bestial”. O protesto gerou a resposta dos órgãos policiais dizendo que não caberia censura
policial, uma vez que o juiz da 3a vara criminal havia liberado a exibição. Cf. A pedidos. Moralidade pela moral!
O Jornal, Rio de Janeiro, 20 mai. 1924, p. 6; La Garçonne, o filme condenado, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 mai.
1924, p. 11; Apresentação no teatro à La Garçonne. Teatro Recreio, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 mai. 1924, p. 11;
Cabelos à La Garçonne. Máquina para cortar cabelos e navalhas para aparar os do pescoço. Casa Hermany. Rua
Gonçalves Dias, 54. O Jornal, Rio de Janeiro, 1 mai. 1924, p. 3.
51
210
poderosa, sem receio de macular os arminhos da arte” 55. O autor editando livros seguidamente,
construiria visões como a de um “espelho passivo”, faltando-lhe qualidades expressivas:
A verdade não pode ser um fim em arte, mas a matéria que serve à expressão pessoal.
E essa verdade não será essa realidade cotidiana e aparente, mas qualquer coisa de
mais vulgar, de mais sintético e deformado pela visão pessoal. A deformação é a
conformação que supera a realidade para erguer a arte.
Assim, os livros de Théo Filho, no caso Uma viagem movimentada e A grande felicidade,
seriam férteis na descrição de cenas, mas frágeis nas construções psicológicas:
O Sr Theo Filho, em suma, tem fantasia, facilidade de escrever, reproduzindo
correntemente a realidade, capacidade de observação superficial dos aspectos mais
cosmopolitas de nossa civilização de hoje. Faltou-lhe porém, a meu ver, capacidade
psicológica, originalidade de expressão, força de sugestão, humanidade e
individualidade. É um romancista copioso, e as grandes tiragens são sempre
consoladoras...
Théo Filho fazia carreira como escritor abordando temas e situações que tinham
repercussão no público. No livro 365 Dias de Boulevard, o autor traçou suas impressões da
cidade de Paris, objeto de desejo do imaginário brasileiro da época. O crítico, que àquela época
já havia estado na capital francesa por quatro vezes, não deixa de fazer restrições à turnê do
outro, apontando as dificuldades para tal tipo de literatura de viagem:
[...] lançou-se o autor no mais batido, no mais conhecido, no mais esgotado dos temas
– Paris -. Outro obstáculo a vencer. Não sei quem possa hoje dizer coisas novas sobre
Paris. Todos os seus aspectos já foram estudados e, no mais, é uma pretensão ingênua
querermos fazer psicologia em uma terra de psicólogos, que se têm observado e
estudado com todo o lazer e amor. Enfim, pode ser que olhos de fora vejam o que
foge aos da casa. Estão nesse caso os do sr Théo Filho56.
Tristão de Athayde fala sobre seu conhecimento da cidade, recriminando o fato de Théo Filho
não ter ido ao “Rive Gauche”, de ter visto “só o Boulevard” que seria o que “há de menos Paris
em Paris. É como se fossemos julgar o Brasil pela Avenida Rio Branco. Dirá o autor que quis
apenas salientar um aspecto de Paris. Mas porque foi justamente escolher o mais trivial, o mais
impressivo, o mais secundário dos seus aspectos?”. Segundo o crítico:
O Boulevard vive do estrangeiro. A burguesia média, o pequeno ou o grande
comércio trivial, os tipos equívocos, os teatros de escândalo, de dramalhão ou de
êxito, os cafés cosmopolitas, as agências e escritórios de informações, os jornais
vulgares, os homens de segunda ordem, tudo que há de internacional em Paris se
fixou entre a Madeleine e o Porto Saint Martin, o centro desse mundo de uma
vulgaridade desoladora ou de uma moralidade transparente é o memorável Café de
la Paix. Ali se encontra a primeira água dessa gente duvidosa que de todos os
continentes julga vir conhecer a grande capital instalando-se na “terrasse” célebre.
As caracterizações da capital vão se seguindo e, acerca da ida do autor ao bairro de
Montmartre, o crítico comentava sobre as mudanças da geografia poética da cidade:
Não há dúvida que a “butte” ainda se gaba de ser o centro de uma elite de jovens
reformadores em arte ou literatura. Mas, já no concurso de há anos para príncipe dos
poetas, o candidato do Montmartre – George Fourest, o autor daquela imprevista e
55
56
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 fev. 1923, p. 1
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 4 ago. 1919, p. 9.
211
deliciosa “Negresse Blonde”, foi batido por Paul Fort, que o “quartier latin”
apoiava57.
E, assim sucessivamente, ele ia pondo reparos às escolhas e juízos do autor. Este, por sua vez,
considerava haver “dois Paris: o que trabalha e o que se diverte. Daí três camadas sociais: a dos
ricos, a dos pobres, a dos miseráveis... O brasileiro que visita a Europa retira-se de Paris sem a
conhecer completamente, porque fica desde o começo na primeira camada social”58. Neste
sentido, Théo Filho diz não haver “nada mais grotesco do que o turista brasileiro que passeia
pela Cidade Luz” e conta a seguinte anedota:
O nacional desembarca em Paris na gare de São Lázaro, na de Leão, na de
Montparnasse ou no Cais d’Orsay. Um cocheiro vai ao seu encontro com um carro e
a respectiva alimária. “_ Onde vamos patrão? O brasileiro responde: _ A um hotel
caro... O cocheiro sorri, adivinhando o rasta... _ Há milhares de hotéis caros sr
príncipe. A qual deseja ir?... _ Ao mais caro, com todos os diabos!...”
Na visão do crítico, seus “quadros são uma fotografia ou um comentário da vida mais
insignificante, mais destituída de inteligência, mais maçadora, mais desinteressante de Paris”59.
Tais quadros retratariam os “bas-fonds” entre artistas, casos envolvendo cançonetistas, camelôs,
gorjetas, gabinetes de fumar ópio, restaurantes, cocheiros, aventuras campestres, cabarés, notas
mundanas e fait-divers. Se tais apreciações não tinham ressonâncias positivas no viajado Tristão
de Athayde, com Lima Barreto, a coisa era diferente:
Nunca, na verdade digo, viajei; mas desejava muito viajar, por isso tenho grande
inveja do Théo Filho que leva a vida a viajar toda a hora e a todo o instante. Este
Théo, sem vintém no bolso, leva daqui para Paris e de Paris para aqui. Não sei como
ele consegue isto, pela razão muito simples que, às vezes, me vejo em sérias
dificuldades para descer de Todos os Santos até o Campo de Santana. Théo não tem
dessas angústias. Embarca num paquete e vai até à França. Nesse país, passa anos e
escreve excelentes livros de viagem, como o 365 dias de Boulevard e agora, Uma
viagem movimentada60.
De um modo geral, Lima Barreto apreciava as descrições (ou indiscrições) que o autor faria da
sociedade da qual ele “desenha muito bem as mulheres”. Em sua obra apareceriam tipos como
o Pereirinha, do livro Virgens Amorosas, que teria “a monomania dos desvirginamentos, gênero
de psicopata sexual ainda não estudado pelos competentes, nós todos conhecemos tipos dessa
natureza”61. Sobre a obra Anita e Plomark, Lima Barreto elogiara a história em que “o par de
aventureiros agita-se em um meio de ‘rastas’ parvos, de patifes de toda a sorte e origem, de
gente que perdeu a alma ou nunca teve uma, formando uma corja que pode ser ‘sui-generis’,
mas que me é visceralmente antipática”62. Barreto, porém, não perdoava “semelhantes
vagabundos de caso pensado”, de modo que “para as fêmeas como essa Anita, que Théo parece
57
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 4 ago. 1919, p. 9.
FILHO, Theo. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 4 ago. 1919, p. 9.
59
ATHAYDE, Tristão. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 4 ago. 1919, p. 9.
60
BARRETO, Lima. Transatlantismo, Vida Urbana, p. 137.
61
BARRETO, Lima. Um romance de Botafogo. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 235.
62
BARRETO, Lima. Anita e Plomark aventureiros. Marginália, p. 73.
58
212
querer exaltar, só lhes desejo a guilhotina”:
A prostituta só é digna da piedade e respeito dos homens de coração, quando ela o é
em toda a força do seu deplorável estado, quando ela sabe com resignação e
sofrimento arcar declaradamente com a sua tristíssima condição. Não é assim a
heroína do romance de Théo Filho; não é mesmo o que os venezianos da Renascença
chamavam, com tanto respeito, uma hetaira “honesta”, isto é, a cortesã eivada de
arte, ensopada de poesia, com certo desinteresse natural e, talvez, uma tal e qual
generosidade espontânea. Ao contrário, Anita, como em geral, as mulheres públicas
da nossa sociedade burguesa, é de uma estupidez assombrosa e sem nenhum traço
superior de coração ou inteligência63.
Segundo Lima Barreto, a obra traria algo que ele considerara notável:
É como ele mostra o mecanismo espiritual pelo qual se dá esse estranho fenômeno
do caftinismo, essa abdicação da vontade da mulher, toda inteira, na de um homem,
esse domínio de corpo e alma do rufião sobre a meretriz, esse ascendente, quase
sempre unicamente determinado por laços psicológicos, em que não entra a mínima
violência64.
Se discussão sobre a cisão do país entre sertão-litoral invocava problemas de ordem
política e econômica, exigindo alguma ação governamental, o domínio do mundo “visto
debaixo do verniz” das cidades, não raro, recaía em reflexões morais que tinham nas censuras
da crítica e da sociedade as suas medidas restritivas. Especialmente quando envolvia a ação de
mulheres como a Monique de Margueritte ou a Anita de Théo Filho, o tom moralista era o mais
repetido. Como já dissemos, as descrições da vida elegante, cosmopolita e luxuriosa das elites
brasileiras tinham grande apelo público, especialmente quando embebidas em traços mundanos,
festas, bailes, namoros, diversões, traições, taras, seduções, cenas sexuais explicitamente
descritas ou meticulosamente sugeridas.
Nem só as personagens femininas transgressoras preocupavam setores da crítica
literária e social. Jackson de Figueiredo comentava sobre a oportunidade de a polícia agir em
casos de defesa contra o vício e o crime. Ele refletia sobre a curiosidade que poderia ser
provocada apenas pelo título de um livro que, capaz de surpreender “experimentados”, seria
ainda mais pernicioso em se tratando de “senhoras” ou “moças inexperientes”. No caso,
Figueiredo contava sobre como “uma garota de quinze anos, se tanto, lia a meu lado, num
bonde, um livro reconhecidamente imoral – o ‘Primo Basílio’, de Eça de Queiroz”. O articulista
defendia o combate à “tolerância das leis em face do livro imoral”, concluindo que “se os
paladinos da campanha em prol da educação nacional, não fizerem simultaneamente, uma outra,
e não menos vigorosa, contra o livro imoral, o jornalismo pornográfico, etc. não fazem outra
coisa, a meu ver, senão castelos de areia ao alcance da onda”65. Tal opinião acerca da obra de
Eça de Queiroz dificilmente encontraria consentimento no interior da cultura intelectual
brasileira em geral. Pelo contrário, a própria escritora Carmen Dolores, caso raro de mulher
63
BARRETO, Lima. Anita e Plomark aventureiros. Marginália, p. 73.
BARRETO, Lima. Anita e Plomark aventureiros. Marginália, p. 74.
65
FIGUEIREDO, Jackson. Literatura imoral e educação, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 de mai. 1921, p 1.
64
213
reconhecida por seus méritos intelectuais, tinha em Eça o melhor escritor da língua portuguesa,
sendo que o Conselheiro Acácio, personagem do romance atacado por Jackson de Figueiredo,
era uma figura recorrente de suas crônicas66. As considerações de Jackson, porém, explicitam
a situação moralmente maniqueísta da mulher naquele período da história brasileira, com
poucas identidades intermediárias entre a inocência e a prostituição67.
A primeira autora analisada por Tristão de Athayde foi a escritora Maria Eugênia
Celso. Na ocasião, ele traça uma apreciação sobre a escassez da produção intelectual feminina
no Brasil segundo a qual “a emancipação intelectual da mulher brasileira começa apenas a
operar-se”68. Ele aponta a atualidade das descrições de Elizabeth Agassiz quando passara, em
1865, juntamente com o marido, o naturalista Louis Agassiz, pelas terras brasileiras:
Em geral, presta-se muito pouca atenção, no Brasil, à educação das mulheres... A que
se lhes dá, confinada a um medíocre conhecimento do francês e da música, deixa-as
na ignorância de uma multidão de questões gerais; pode-se dizer que o mundo dos
livros lhes é fechado, pois é bem o das obras em outras línguas... Elas não imaginam
que um oceano de ideias se agita fora do seu pequeno mundo e suscita
constantemente novas fases na vida dos povos e dos indivíduos. Enfim, além do
estreito círculo de sua existência doméstica, nada existe para elas69.
O crítico considera que tais palavras refletiriam um “estado de espírito e de civilização” que se,
por um lado, “os moralistas evocam talvez com saudade”, por outro lado, existiria “uma
evolução necessária” em curso no país. Daí não haver surpresa ao se verificar que “todo o nosso
movimento literário se tenha operado com absoluta exclusão das mulheres, que só ultimamente,
graças ao desenvolvimento da educação e à evolução dos costumes, tem visto surgir a sua tímida
arraiada intelectual”70. Posteriormente, ele aponta exceções:
É certo que, há um século, ainda era muito mais imponderável essa literatura
feminina, embora já em princípios do século XVII existisse, no Brasil, ao menos
uma mulher de letras na pessoa dessa D Joana Rita de Sousa, pernambucana a que
se referem Varnhagen e Januário Barbosa. Até hoje cresceu o número, sem dúvida,
mas não na proporção que fora de esperar da queda de tantos preconceitos71.
Apesar de ignorar numerosas iniciativas que já teriam procurado contrapor-se ou, ao
menos, diminuir tal ausência feminina no cenário cultural brasileiro72, o crítico corroborava
com juízos que as próprias mulheres escritoras faziam a este respeito à época73. Segundo
Tristão, o processo de participação das mulheres na cultura intelectual brasileira estava sendo
66
Carmen Dolores é o pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Mello. Sobre sua atuação como intelectual
cf. ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Vidas de romance. As mulheres e o exercício de ler e escrever no
entresséculos, p. 233.
67
Tal condição era, ainda na década de 1930, recorrente na produção ficcional brasileira. Cf. BUENO, Luís. Uma
história do Romance de 1930, p. 283-332.
68
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1920, p. 2.
69
AGASSIZ. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1920, p. 2.
70
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1920, p. 2.
71
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 abr. 1923, p. 1.
72
Cf. HOLANDA, Heloísa Buarque de. O que querem os dicionários? ARAÚJO, Lúcia Nascimento; HOLANDA,
Heloísa Buarque de. Ensaístas brasileiras. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 13-19.
73
Cf. ELEUTÉRIO, M de L. Vidas de romance, p. 117.
214
consolidado e, em sua visão, “pode-se dizer que o século XX marcará o início da participação
efetiva da mulher brasileira no movimento literário nacional”74. A educação da mulher, tema
recorrente nos escritos de autoras do período, seria a condição para esta participação nas artes:
[...] a arte não é uma simples questão de inspiração, como tanto entre nós se faz crer.
A arte é instinto, sem dúvida, é a manifestação consciente do subconsciente, mas que
não chegaria a desprender-se dos limbos originais, sem a ação efetiva e vigorosa do
esforço individual, da paciência e do estudo.
Duas das maiores figuras da poesia feminina nacional seriam Maria Eugênia Celso e
Gilka Machado, esta seria “carne” e a primeira “espírito’. Na produção da primeira, elogiavase o “livro de puro sentimento e essencialmente feminino, é realmente digno de nota o domínio
efetivo e constante que, sobre a expressão de suas emoções, exerce a autora”. Tal notoriedade
proviria do lugar comum segundo o qual as mulheres seriam caracterizadas pelas marcas
emotivas e sentimentais75, daí o crítico notar que, “ainda no verso, linguagem natural de uma
forma de arte particularmente propícia à formação espiritual da mulher, não se distinguem elas
por uma produção satisfatória e nem mesmo apreciável”76. Esta associação entre poesia lírica e
o “espírito feminino” abrigava uma concepção mais profunda da mulher:
A alma feminina, portanto, que é afinal uma alma de homem em eterna adolescência,
não podia deixar de exprimir-se naturalmente por meio da poesia. O sonho ou a
nevrose, que são os dois estados fundamentais dessa alma, só por meio da poesia
conseguem exprimir realmente o seu mundo interior. A mais ligeira vista de olhos
por nossa literatura mostra a absoluta disparidade entre o número das nossas poetisas
e o das romancistas, ensaístas, cronistas, etc. Com o puro sentimento, sempre é mais
fácil criar poesia que orientar ideias. E, sendo a alma feminina sobretudo intuitiva,
compreende-se como seja o lirismo, que é a própria intuição em verso, a sua forma
poética espontânea e predileta77.
Elogiava-se empreendimentos como os de Henrique Castriciano de Souza, irmão da
poetisa Auta de Sousa, que criara a Escola Doméstica do Natal. Se a educação masculina era
deficiente, a feminina estaria ainda por ser delineada:
A mulher brasileira teve, outrora, apenas a educação do sentimento. Que epopeia
humilde a sua, ao longo de nossa história! Resignada, obscura, boa, às vezes heroica,
nunca teve o prêmio de sua dedicação calada. Com a independência começa lenta e
defeituosa, nas cidades, a sua emancipação intelectual, posto que de preferência e
especializada. Mas o interior continua até hoje fechado à obra de reabilitação78.
Um fator social e econômico estaria associado ao caso tratado, uma vez que devido ao “mistério
da Amazônia” que seduziria o homem pela “miragem da riqueza fácil”, mulheres e crianças
ficariam entregues à própria sorte, mormente em roças e sítios interioranos. Em tais casos, sobre
a mulher cairia “o peso do futuro”, ao que o crítico comenta pateticamente: “quantas vezes é
esperada em vão a volta do chefe, e à mãe cabe inteira a responsabilidade da família! O coração
74
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1920, p. 2.
Cf. ELEUTÉRIO, M de L. Vidas de romance, p. 109.
76
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1920, p. 2.
77
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 out. 1921, p. 1.
78
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 6 out. 1919, p. 10.
75
215
não basta para a tarefa, e a inteligência desaproveitada é de nenhum recurso”79. Henrique
Castriciano inspirara-se em modelos alemães e norte-americanos ao programar um curso de
seis anos dedicado à “medicina do lar”, “educação social”, além de história do Rio Grande do
Norte, do Brasil e Universal. O corpo docente seria formado por especialistas, dentre os quais
professoras francesas e americanas. Na opinião do crítico:
Nesse viveiro se está formando a verdadeira mulher brasileira, grande de coração,
de vontade firme, e com a inteligência orientada cientificamente para a sua alta e
silenciosa tarefa social. O intuito principal do sistema adotado é despertar nas
discípulas a individualidade. Deverá ser esse o objetivo de toda a educação. Não é
mesmo uma escola, senão uma cooperação de estudos. “Uma Escola Doméstica é
uma casa de família. Daí a nossa orientação no sentido do estabelecimento manter o
aspecto material e moral de um lar completamente feliz. Para conseguir esse intuito
[...] Mestras e alunas discutem a respeito como verdadeiras amigas, dando-se às
últimas plena liberdade de opinião”.
A Escola Doméstica do Natal era tida como uma contribuição, pois “a solução do problema do
saneamento dos campos entre nós, depende em grande parte da educação da mulher [...]” e
visava orientar a “mulher sobretudo para a vida campestre”80. Assim, a Escola seria “grande
exemplo de patriotismo inteligente, realçado pelo recato do empreendimento”81. A “mulher
brasileira”, porém, possuía variados perfis e as representações do feminino iam além do
espectro doméstico e familiar, apesar de este cumprir um papel extremamente recorrente.
Ao analisar a produção de Maria Eugênia Celso, o crítico a considerava habilidosa no
tratamento poético, havendo em seus poemas “um grande engenho e verdadeira opulência e
variedade nas imagens e comparações, além da pureza cristalina na linguagem, mas
naturalmente em sacrifício do sentimento interior e profundo e às vezes com uma ponta de
artifício e um abuso de composição”82. O equilíbrio da emoção e da expressão se revelaria na
obra da autora em versos como os seguintes:
É no torreão, cujas seteiras
O tempo de hera atapetou
que vem cismar horas inteiras
Essa que a um rei enamorou...83
Temas como a brisa, a chácara, a melancolia e paisagens clássicas povoariam o livro da autora
que não seria uma poetisa, termo pejorativo que indicaria uma mulher sem criatividade, mas
“um poeta – mas de alma profundamente feminina”84. Ou seja, suas qualidades intelectuais
existiriam na medida em que se igualariam à produção masculina. Ao crítico, a autora enviou
79
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 out. 1919, p. 10.
SOUZA, Castriciano Henrique de. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 out.
1919, p. 10.
81
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 6 out. 1919, p. 10.
82
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1920, p. 2.
83
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1920, p. 2.
84
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1920, p. 2.
80
216
um cartão com os dizeres “o poeta Maria Eugênia Celso agradece”85, reconhecendo-se com o
adjetivo masculino. No mesmo sentido, o crítico considerou a reedição da obra Esfinges, da
paulista Francisca Júlia que teria “como caráter essencial do espírito, o domínio da
personalidade”86. Desde as apreciações de Vicente de Carvalho, o percurso de Francisca Júlia
era visto como a passagem de um estado impassível, presente na obra Mármores, para uma
condição piedosa marcante em Esfinges87. Tristão de Athayde, porém, via antes uma evolução
do “sentido plástico ao filosófico guardando sempre a mesma tranquilidade superior de
expressão e revelando o mesmo domínio interior da alma” 88. Ele nega o caráter meramente
parnasiano da autora, pois, não teria ela “essa convicção parnasiana da arte, como expressão
perfeita das coisas”, conforme se poderia perceber pelos versos:
Aroma, ou asa, ou flor... Tudo o que diga e exprima,
Perde, ao amoldar-se em verso, o seu próprio relevo
Tristão de Athayde reconhece que Francisca Júlia:
Foi incontestavelmente um grande poeta – pelo domínio da língua que manejava
com absoluta firmeza, pela intensidade da vida interior que anima a sua obra, pela
beleza dos temas escolhidos, pela ressonância de certas invocações, pelo poder
evocador que possuía em alto grau, enfim pela nobreza da inspiração aliada à mais
plástica das formas.
Se Maria Eugênia Celso e Francisca Júlia eram expressões do equilíbrio, a escritora
carioca Albertina Berta traria o “outro lado” da imagem feminina. Na verdade, seria o
“verdadeiro” lado, uma vez que uma mulher equilibrada, provida de controle emocional, seria
uma mulher de qualidades masculinas. O volume Estudos, de Albertina Berta, foi enviado ao
crítico com dedicatória “ao brilhante homem de letras Sr. Tristão de Athayde”89, este, por sua
vez, considerava ser a autora “o Eu mais clamoroso das nossas letras. Sua obra de artista como
de pensadora tende a um delírio da individualidade” 90. Para ele, “nos seus livros tudo são nervos
exasperados, ânsias febris, desejos incoercíveis, expressos numa linguagem despenteada,
cortada de frases desconexas, relâmpagos de imagens, gemidos e imprecações”. Estudos foi o
segundo livro de Albertina que lançara o romance Exaltação em 1916. Antes disso, a autora
fazia conferências91 e era membro de organizações lideradas por mulheres como a Cruz
Branca92 e a Associação da Mulher Brasileira93. O romance teve várias edições e, conforme a
85
Carta de Maria Eugênia Celso a Tristão de Athayde, 2-7-1920, acervo CAAL.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 3 mai. 1921, p. 1.
87
Cf. ELEUTÉRIO, M de L. Vidas de romance, p. 109.
88
ATHAYDE, Tristão. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 3 mai. 1921, p. 1.
89
Cf. BERTHA, Albertina. Estudos, Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1920. Acervo CAAL.
90
ATHAYDE, Tristão. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 6 set. 1920, p. 2.
91
Cf. Correio Paulistano, São Paulo, 7 ago. 1915, p. 2; Correio Paulistano, São Paulo, 23 nov. 1916, p. 3.
92
Cf. A Cruz Branca realizou ontem a sua primeira sessão ordinária, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25 ago.
1915, p. 6.
93
Cf. Uma nova instituição feminina – A Associação da Mulher Brasileira, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 8
set. 1916, p. 2.
86
217
crítica da época, suas “maravilhas” estariam no “sensualismo” de uma história em que “um
casamento sem amor leva uma mulher ao adultério e depois ao suicídio quando sente que lhe
escapa o amante”94. Em comentários acerca de suas reedições, já se falava do “livro que tem
arrancado entusiasmo de todos”95 e que a sua protagonista, a personagem Ladice, seria “um
tipo perfeito, [...] o tipo mais bem acabado da mulher pernóstica, altamente pernóstica. Não fora
isso, a criação seria inverossímil”. José Oiticica descrevia Albertina Bertha como uma “árvore
brasileira que vingou”96: “Calcule-se esta alma feminina, com todos os característicos da
selvageria brasileira, impregnada de Nietzsche, aristocratizada pela cultura literária e artística,
solta num meio social oscilante. Ponha-se dentro dela uma tormenta passional e teremos a
autora da Exaltação”.
A influência do filósofo alemão foi um dos traços mais evidentes das primeiras
produções de Albertina Berta, Exaltação e Estudos. Segundo Tristão de Athayde, a obra da
autora traria um desequilíbrio em que “um esforço poderoso para o pensamento e a
impersonalidade é constantemente traído por um subconsciente irreprimível que perturba a
serenidade da atmosfera de cogitações abstratas”97. Faltaria a “humildade” dos sábios e
criadores para quem “a ideia ou a criatura em si valem muito mais que o seu próprio eu”. Tal
condição seria devida a sua “adoração de Nietzsche”. Albertina comentava a respeito:
Nietzsche deslumbra-me. Produz-me na imaginação o mesmo abalo das montanhas
com todos os seus trabalhos de seiva, de luz, de propulsões intensas... Devemos
saboreá-lo lentamente, lentamente, como se fora uma volúpia estranha, esquisita...
Os seus conceitos deixam-me na mente fendas luminosas, trilhas de oiro para
descobertas futuras; princípios, traços, que outros cérebros possantes virão ampliar,
avolumar, concluir...98
Reparos eram feitos a tal perspectiva, pois, o que interessaria nesse tipo de obra seria “a análise
de suas ideias, a explanação do seu sistema ou da sua falta de sistema, a crítica do seu
pensamento, a classificação de suas teorias, o estudo de sua influência”99. Dessa forma, o
interesse da autora por Nietzsche seria menos por suas ideias em si mesmas do que pelo “furor
individualista”. O “temperamento explosivo” de Albertina seria compatível com a frase do autor
alemão: “Eu não sou Homem, sou dinamite”. A paixão seria o motor de ambos.
Tal característica acabaria por fazer com que as análises de Albertina acerca do
pensamento alheio fossem sempre uma forma de egotismo que traria “uma originalidade e um
conhecimento da matéria aos quais o que menos falta é calor”. Dotada de uma “cultura
filosófica atropelada, mas superior”, ela faria de todos seus temas e personagens pretextos para
94
LOPES, Oscar. Um livro estranho, Correio Paulistano, São Paulo, 9 abr. 1916, p 3.
MUSME. Um novo livro. A propósito de “Exaltação”, Correio Paulistano, São Paulo, 13 jan. 1917, p. 3.
96
OITICICA, José. Crônica Literária, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25. Fev. 1917, p. 2.
97
ATHAYDE, Tristão. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 6 set. 1920, p. 2.
98
BERTHA Apud. ATHAYDE, Tristão. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 6 set. 1920, p. 2.
99
ATHAYDE, Tristão. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 6 set. 1920, p. 2.
95
218
expressar o seu “individualismo delirante”, como sintetizaria sua visão sobre a arte: “A grande
Arte deve ser livre, deve surdir inopinada já com todas as febres, todos os esgares da
sublimez”100. Tal definição, segundo o crítico, era um meio de fazer com que a arte fosse o
refúgio dos “ímpetos dionisíacos”101 da autora. Albertina Bertha seria um misto de cultura
elevada e incomum nos meios brasileiros, mas que seria corrompida por excessos de
indisciplina e orgulho num desregramento incapaz de dominar o seu “demônio interior”.
A autora enviou seus Estudos para Jackson de Figueiredo que, por sua vez, publicou
dois artigos sob o título “Cartas a uma Escritora”. Jackson fala do “excepcional talento” da
autora e que “alegrou-me poder verificar que o próprio amoralismo de que v ex. se fez
evangelizadora – sem ter bem consciência talvez do mal que faz às demais mulheres inteligentes
do nosso meio – não é moléstia incurável de que sofra”102. Em artigos repletos de citações em
francês, o intelectual católico procura corrigir as análises de Bertha sobrepondo às apreciações
da autora textos no original e concepções dele próprio. Na primeira carta, tratou-se das análises
acerca do pensamento lógico e, especialmente, das noções de causa e efeito na filosofia
nietzschiana e, na segunda carta, da questão do imoralismo. Sobre este último, faz reparos ao
desconhecimento da autora acerca da Verdade (aludindo às suas próprias crenças teológicas) e
também sobre a filosofia nietzscheana, ao “pandemônio de contradições do tresloucado
pensador alemão”103. É possível perceber o tom teológico de seus raciocínios que apontam a
autora como alguém que “deixou sua inteligência sucumbir aos afagos do sensualismo macabro
de imaginação”. Ele não admite as visões de Bertha sobre o papel da mulher no casamento:
Devemos ser-lhe um obstáculo indefinido para a curiosidade, um feixe de
complexidades divinas, a sua perplexidade constante [...]. Não lhe sejamos a calma,
o sossego, a certeza, uma coisa totalmente possuída [...]. É preciso que o nosso
marido anseie por nós, nos tema, acredite estarmos sempre com o pé na tragédia [...].
A nós, mulheres deste século de espiritualismo, também nos não satisfaz havermos
do homem a sua presença física e nada mais: exigimos-lhe as torturas metafísicas
[...]104
Tais proposições são consideradas pelo autor como “monstruosas”, apesar de “ridículas”. O
papel evangelizador de sua análise termina com a indicação à autora à leitura da obra do
Monsenhor Frappel, Oeuvres Pastorales et oratoires, além disso, Jackson lhe recomenda a
meditação sobre a frase do poeta setecentista Giampietro Zanotti: “É difícil mudar as coisas
para melhor”105. Como contraposição à figura de Albertina Bertha, podemos lembrar os artigos
que Jackson de Figueiredo escrevera sobre a poetisa potiguar Auta de Souza. Segundo
100
BERTHA Apud. ATHAYDE, Tristão. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 6 set. 1920, p. 2.
ATHAYDE, Tristão. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 6 set. 1920, p. 2.
102
FIGUEIREDO, Jackson. Cartas a uma escritora. O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jun. 1920, p 1.
103
FIGUEIREDO, Jackson. Cartas a uma escritora. O Jornal, Rio de janeiro, 11 jun. 1920, p 1.
104
BERTHA Apud. FIGUEIREDO, Jackson. Cartas a uma escritora. O Jornal, Rio de janeiro, 11 jun. 1920, p 1.
105
Cf. FIGUEIREDO, Jackson. Cartas a uma escritora. O Jornal, Rio de janeiro, 11 jun. 1920, p 1.
101
219
Figueiredo, esta autora teria a capacidade de “comover realmente, de agitar os melhores
sentimentos do coração humano”, não havendo nela algo recorrente na produção feminina da
época marcada por “uma poesia rudimentar segundo os sentidos, sensualismo, pura embriaguez
dos sentidos, gemido ou fúria de paixão, doloroso murmúrio ou gritos e brutais revoltas do
instinto”106. Por isso, a obra de Auta de Souza, que apenas publicou o livro de poesias, Horto,
lançado em 1900, estaria relegada ao esquecimento. O autor destaca a transfiguração da poetisa
que destacara a reflexão mística em sua educação e formação107. Figueiredo ressalta o caráter
cristão de Auta de Souza expresso em versos como os seguintes:
Não tenhas medo do sofrimento
Ele é a escada do Paraíso108.
Lima Barreto também analisara a obra de Albertina Bertha considerando-a “um dos
mais perturbadores temperamentos literários que, de uns tempos a esta parte, têm aparecido
entre nós”109. O autor reconhecia na escritora seus talentos de formação e educação:
Muito inteligente, muito ilustrada mesmo, pelo seu nascimento e educação,
desconhecendo do edifício da vida muitos dos seus vários andares de misérias,
sonhos e angústias, a autora do “Exaltação” com auxílio de leituras de poetas e
filósofos, construiu um castelo de encantos, para seu uso e gozo, movendo-se nele
soberanamente, sem ver os criados, as aias, os pajens e os guardas.
Se o romance anterior era considerado como de um “delicioso anacronismo”, a nova obra da
autora, Estudos, seria um “demonstrativo da originalidade do seu temperamento e do seu
curioso talento, tanto mais curioso quando se trata de uma mulher brasileira”. Além disso,
revelaria que o seu pensamento se caracterizaria por “uma certa difusão de ideias, uma falta de
nitidez, de clareza e coerência de ideias”. Novamente, a relação com Nietzsche vem à baila:
Aos primeiros, às naturezas plenas (os “Super-Homens”), a esses seres privilegiados,
artistas do pensamento e da ação, que sabem governar-se, manejar as paixões em
proveito próprio (tomem nota), desviar as reações, ela (a tal moral dos SuperHomens) tudo permite para a sua existência, o seu equilíbrio na vida universal:
aventuras, incredulidades, repouso, o próprio excesso, a impiedade, a rudeza...
Lima Barreto não compartilhava de tal admiração pelo filósofo alemão, pelo contrário, dizia
explicitamente: “Não gosto de Nietzsche; tenho por ele ojeriza pessoal”:
Ele deu à burguesia rapace que nos governa uma filosofia que é a expressão de sua
ação. Exaltou a brutalidade, o cinismo, a amoralidade, a inumanidade e, talvez, a
duplicidade. [...] Nietzsche é bem o filósofo do nosso tempo de burguesia rapinante,
sem escrúpulos; do nosso tempo de brutalidade, de dureza de coração, do “makemoney” seja como for, dos banqueiros e industriais que não trepidam em reduzir à
miséria milhares de pessoas, a engendrar guerras, para ganhar alguns milhões
mais110.
Assim, Albertina Bertha recebera as restrições de Tristão de Athayde sobre o impressionismo
106
FIGUEIREDO, Jackson de. Auta de Sousa, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mar. 1921, p 1.
FIGUEIREDO, Jackson de. Auta de Sousa. O Jornal, Rio de Janeiro, 12 mar. 1921, p 1.
108
Cf. FIGUEIREDO, Jackson de. Auta de Sousa. O Jornal, Rio de Janeiro, 23 mar. 1921, p 1.
109
BARRETO, Lima. Marginália, p. 65.
110
BARRETO, Lima. Marginália, p. 66.
107
220
de suas análises apaixonadas, as admoestações de Jackson de Figueiredo que considerou sua
obra como imoral e incorreta e as críticas de Lima Barreto que apontavam o caráter burguês e
elitista das reflexões da autora. Eram unânimes, porém, em lhe reconhecer a inteligência e a
cultura incomum.
Albertina tornara-se um nome reconhecido e uma referência no interior da cultura
intelectual brasileira do período. Ao analisar o livro Caracteres femininos, de Lila Escobar de
Camargo, Tristão de Athayde verificava que a obra de Bertha “fizera escola”111. Camargo
retrataria o “artifício requintado das cidades” no interior das quais ganharia cada vez mais
espaço a afirmação das individualidades femininas. Estas, porém, se fariam como “uma revolta
contra o pudor”. Assim, comparativamente:
Nos homens é uma afirmação da personalidade, é uma forma peculiar de orgulho. A
libertação que o individualismo masculino visa é toda intelectual. Os homens, por
ele, procuram fugir à disciplina do pensamento, que tanto os tem tolhido. As
mulheres, porém, visam à libertação do instinto. Já não é contra a disciplina
intelectual mas contra a disciplina moral e social que elas então se insurgem.
O pudor, mesmo quando alheio à disciplina moral e religiosa, seria uma “manifestação mais
natural de um domínio interior das sensações, emoções, sentimentos ou paixões”. Voltando-se
contra ele, o individualismo feminino se faria em “nome do instinto, de uma exaltação animal
do temperamento”. Tal libertação seria incompleta e prematura:
Essa glorificação dos instintos é uma verdadeira vingança da matéria contra o
espírito e demonstra um desenvolvimento intelectual incompleto. Afinal, não passa
do mesmo romantismo com que se pretendeu impor aos homens uma libertação
prematura e incondicional.
O livro de Lila Escobar de Camargo retratava a trajetória de três mulheres, três
caráteres definidos pelo crítico como “uma mulher forte e consciente, frágil e sensível outra e
uma terceira em cujo caráter o interesse e o instinto dominam sem contraste”. Cada uma com
seu destino singular, a primeira encontra a felicidade, a segunda morre de tuberculose e
“degrada-se a terceira para o luxo quase mercenário”. Numa obra cujo espírito seria a “ânsia de
libertação feminina”, o crítico impunha reparos:
Esse espírito de rebeldia, de histerismo, e a submissão à animalidade inferior se
comunicam à linguagem do livro, transmitindo-lhe por vezes certa vibração original,
mas quase sempre toucada daquela inflação doentia, característica do gênero. Essa
tensão constante que acompanha a narrativa devia produzir, como produz, uma
atmosfera artificial em que as figuras se movem animadas pela autora mas sem
existência real. Foi outro, porém, o resultado e, se a paixão existe, a psicologia é o
que há de vulgar e superficial.
A autora estaria a caminhar pelos passos de Albertina Bertha. Um “mau caminho”, o qual
Tristão considerava ser “uma péssima recomendação da autora no mundo das letras, onde
pretende entrar. Se julga que arte se faz com clamores e reclamo, pode estar certa que vai desde
111
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 mai. 1921, p. 1.
221
já corromper, irremediavelmente, certas qualidades literárias que revela”. O “mundo das letras”
não estaria propenso a receber tais “clamores e reclamos” de mulheres escritoras, mas, apenas,
indignações como as de Monteiro Lobato e outros.
A obra de Albertina Bertha revelava em um nível superior, por assim dizer, o espectro
que rondava as expectativas acerca da produção feminina. O dionisismo de Albertina, apesar
de “intelectual”, não deixava de situá-la num lugar comum então conferido às mulheres que
saíssem minimamente dos papeis tradicionais de mães dedicadas e voltadas a uma existência
dedicada aos âmbitos do mundo privado. Se as exceções a tais casos eram numerosos e cada
vez mais recorrentes, à cada produção no interior da cultura intelectual brasileira que envolvesse
as questões de gênero e feminilidade, o tema vinha à tona, seja para reiterar os papeis
tradicionais conferidos à mulher, seja para admitir e valorizar a mulher como ser humano dotado
de autonomia e capacidade intelectual equivalente à masculina. Aquele aspecto familiar e
maternal, porém, é marcante. Daí a obra de Maria de Lourdes Eleutério, Vidas em Romance, ter
utilizado como critério distintivo entre as escritoras as relações familiares de irmãos e irmãs;
maridos e esposas; amados e amadas; pais e filhas; mães e filhas. Segundo a autora, àquela
época, várias reflexões se encaminhavam para reafirmar que:
O papel primordial da mulher [...] tem de ser mesmo o de esposa e mãe, o de donade-casa. O seu espaço é o espaço da vida privada, mesmo quando chega a publicar
trabalhos e ganhar alguma projeção fora do lar. É que, em relação a ela, a educação
e a instrução não são em si mesmas um suporte para a manutenção de alguém voltado
para as atividades fora do lar, sobretudo após o casamento. A educação e a instrução
proporcionadas a essas mulheres objetivam antes o aprimoramento da educação de
seus filhos e o bem-estar dos maridos do que o delas próprias. [...] Há, portanto, uma
perda da identidade da mulher como indivíduo112.
Mesmo quando se reconhecia os valores intelectuais às mulheres, tal apreciação vinha
acompanhada pelo espanto e mesmo pela ironia. É o caso da análise que Tristão de Athayde fez
da obra Rito Pagão, de Rosalina Coelho Lisboa, juntamente com o livro Jardim das
Confidências do poeta Ribeiro Couto:
Tenho sobre a mesa dois volumes de versos. Na capa de um deles medita pálida
adolescente, languidamente reclinada à sombra de velho tronco. No outro, sobre o
fundo todo negro da página, se alça, isolada e arrogante, uma língua de fogo. Explica
o título do primeiro que essa doce criatura sonha no Jardim das Confidências, ao
passo que a chama ardente do segundo se eleva de uma ara, onde é celebrado o Rito
Pagão. Tudo no primeiro respira suavidade e doçura; tudo no outro, força e vibração.
Devem ser versos de mulher aqueles -, mas sabemos que o não são [...]. Devem estes
ser versos masculinos, mas o nome que o subscreve não permite duvidar do
engano113.
Sem lirismo, sendo às vezes marcial, isenta de declarações de amor, paixão e devaneios,
cantando heróis do passado e ironizando a figura de Jesus Cristo, rejeitando o perdão, a
112
113
ELEUTÉRIO, M de L. Vidas de romance. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005, p. 109.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 mar. 1922, p. 1.
222
humildade e a doçura, adepta de um “pessimismo integral”, Rosalina Coelho Lisboa era assim
vista pelo crítico: “não vem do coração sua poesia, nem dos sentidos, mas do pensamento”114.
Os versos finais do livro seriam expressivos de tais características:
E hei de saudar o fim, altiva e forte.
Sem temer, no declive ou na escalada.
A ignota lei que rege a humana sorte.
Que, tombando, no orgulho abroquelada,
Pouco me importa que me arraste a morte
Para a perpetuação ou para o nada115.
Sem cantos de amor, nem descrições de desejos incontidos ou inconfessáveis, sem
odes ao casamento e à vida familiar, Rosalina pareceu ao crítico uma figura varonil que destoava
das expectativas comuns. Já Ribeiro Couto faria “versos femininos” em que “tudo é macio,
sedoso, inacabado” e que se exprimiria em linhas que desejariam apenas cantar:
A dor sentimental dos romances perdidos
da mocidade inquieta e de uma espera inútil116.
O crítico, então, procura “explicar” essa aparente contradição sexual:
Que contraste, Santo Deus, entre a poesia em pé de guerra da Sra. Rosalina C Lisboa
e a poesia de biscuit do Sr Ribeiro Couto! Deu-se positivamente um engano de almas,
caso não se veja nessa contradição a ânsia de desencarnação de todos os poetas. A
poesia é, essencialmente, a insatisfação de si mesmo, e vemos, a cada passo, como a
fatuidade é sempre prosaica117.
Haveria uma “ânsia de desencarnação” que marcaria os poetas e, no caso de Rosalina Coelho
Lisboa, o que se revelaria era “o desgosto de ser mulher, e vinga-se reagindo contra o
temperamento feminino que ainda acaso possua”. Assim, o crítico retomava o fervor
sentimental que deveria marcar toda ação feminina, neste caso, a vingança. Segundo sua
análise, a poetisa parecia contrariar tudo aquilo que estaria afirmado desde a antiguidade:
O lirismo, desde Safo, é a forma natural de expressão poética feminina: escolheu,
para cantar, a forma parnasiana. A intuição e o sentimento são toda a alma da mulher:
refugiou-se na inteligência e na vontade. A fragilidade e o perdão são as armas
inestimáveis do sexo: prega a luta e a vingança. Os interiores mergulhados na
penumbra, a luz crepuscular, as alamedas dos jardins desertos são o ambiente
propício às almas de Eva: canta o sol que irradia ou a natureza opulenta e impetuosa.
Procurou, por conseguinte, a autora do Rito Pagão incutir em si mesma um
temperamento masculino, e, além disso, a admiração profunda que volta ao Oriente,
como se vê das páginas de seu livro, criou-lhe talvez uma alma oriental.
Na visão do crítico, tratava-se de uma inversão civilizacional. Apoiado nos escritos
Lafcadio Hearn, grego que se radicalizara no Japão assumindo o nome de Koizumi Yakumo118,
Tristão de Athayde esboçava uma tese, sempre ao seu gosto, contrapondo antiteticamente o
114
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 mar. 1922, p. 1.
LISBOA Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 mar. 1922, p. 1.
116
COUTO Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 mar. 1922, p. 1.
117
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 mar. 1922, p. 1.
118
Cf. FUKUMA, Yoshiaki. Representations of “the West”, “Japan”, and the “the Periphery” in the Discourse of
Lafcadio Hearn studies, International journal of Japanese sociology, Tóquio, no 20, pp. 89-106, 2011.
115
223
Ocidente ao Oriente119. Aí são acionadas as seguintes oposições entre o primeiro e o segundo
respectivamente: sentimento/vontade, liberdade/disciplina, paixão/ataraxia. Acerca do primeiro
par antitético, o crítico considera que “a civilização oriental é a disciplina da vontade, a
mortificação do corpo, a religião do dever. O ocidente é, todo ele, o culto do amor e da caridade,
com o cristianismo, o culto da beleza e da intelectualidade, com o helenismo”120. A maior
distinção, porém, residiria no amor que marcaria “a grande cisão entre Oriente e Ocidente, o
abismo que nos separa. Para nós outros, a paixão do amor é a justificação dos próprios crimes,
a maior grandeza da alma humana, que o próprio Pascal julgava transcendente à nossa razão”.
Os dois grandes “poemas ocidentais” seriam de almas “guiadas pelo amor”: “o poema do
destino, de Dante, e o poema da revolta, de Cervantes”. Por outro lado, lembrava o crítico:
Pois bem, é o maior conhecedor ocidental da alma do Oriente, é Lafcadio Hearn
quem nos informa nunca ter podido explicar aos seus alunos da Universidade de
Kioto o preceito cristão de que pelo marido deve a mulher abandonar pai e mãe.
Julgaram eles tão imoral o mandamento que não se podiam compenetrar de sua
veracidade, mostrando-se incapazes de compreender o culto que o ocidente votava
ao sentimento e especialmente ao amor.
A argumentação prosseguia considerando que, apesar de ser possível haver espíritos orientais
no Ocidente e vice-versa e que nunca haveria expressões perfeitas de tais tipos, “a nenhum dos
dois foi propício esse esforço de contrariar a natureza”. Rosalina Coelho Lisboa revelaria antes
esforço, aplicação, trabalho e dedicação no fazer literário do que espontaneidade e “instinto
poético”. Se era sua ambição ser a sucessora de Francisca Júlia, tal não poderia se dar, pois, “se
a lira parnasiana apenas serviu a Francisca Júlia para apurar a riqueza natural de seu
temperamento poético, representava para a Sra. Rosalina Coelho Lisboa quase toda a poesia”.
Considerada, portanto, como artificiosa, a escritora, no juízo do crítico, reduzira aos versos os
seus pensamentos, tendo antes uma atitude em compor uma fisionomia do que exprimir sua
alma pela arte. Ao lado de Ribeiro Couto, revelava-se a dualidade extravagante:
Se por falta de temperamento poético, e de ingenuidade, peca a poesia prosaica e
retórica da Sra. Rosalina Coelho Lisboa, traduzindo embora, além de um
temperamento forte e espírito culto, uma reação salutar contra a fácil ilusão das
confissões poéticas triviais, banham-se os versos açucarados do Sr Ribeiro Couto
numa atmosfera de pieguismo enervante que lhe provém justamente da hipertrofia,
da ingenuidade ou do abandono.
Não obstante o valor da poetisa de “temperamento forte e espírito culto”, o fato de ser mulher
provoca uma inquietação no crítico que só pode ser vista de uma contrariedade da natureza.
Dividida entre opostos extremos, a mulher, como temática da cultura intelectual
brasileira, tinha sempre ao lado da beatitude cristã a tentação afrodisíaca que lhe completava.
A imagem da esfinge ganhava força em personagens como a Capitu, do romance Dom
119
Sobre o tema ver: SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia das
Letras, 1990, p. 17.
120
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 mar. 1922, p. 1.
224
Casmurro, de Machado de Assis, mulher dedicada, mas misteriosa, na visão do homem, quanto
à sua fidelidade. Afrânio Peixoto fizera o romance da Esfinge, sem dúvida o livro que mais
consolidou na década de 1910 tal imagem enigmática da mulher121. A esfinge traduz a dualidade
anjo/demônio recorrentemente atribuída à mulher. O crítico comenta a tal respeito:
O grande problema feminino é hoje, como sempre, o problema moral. A mulher
sempre foi a santificadora ou a corruptora. O cristianismo, que formou a nossa
consciência de ocidentais, tornou a mulher o eixo da salvação individual. Nunca foi
ela elevada tão alto, nem degradada com tanto furor, como pelas vozes da Igreja.
Circe e Penélope já vinham do mundo pagão, sem dúvida, mas só o cristianismo é
que verdadeiramente deixou de considerar a mulher com indiferença. Para o
paganismo, fora a mulher sobretudo a beleza, para o cristianismo o Bem e o Mal122.
Os tempos, porém, iam mudando e a República fizera a separação entre Estado e Religião. No
romance A Esfinge, o protagonista Paulo de Andrade consegue, ao fim da obra, conquistar o
amor de sua desejada prima Lúcia. Esta, porém, era casada e, apesar de não ficar claro o que
fizera para se ver livre do marido, o novo casal procura realizar uma união pela Igreja Metodista
a fim de receber a tolerância da sociedade, uma vez que a dissolução da relação conjugal era
interditada, resguardando-se apenas a separação de corpos123. Temas como o do divórcio e o da
maternidade, por um lado, e da emancipação pelo trabalho - independência profissional - e pelo
direito ao voto e à representação pública -independência política - por outro lado, marcam os
debates acerca da realidade feminina neste período. Daí a profusão de produções que buscavam
descrever diferentes tipos de mulheres a fim de, além de dar conta da diversidade real de
possibilidades femininas, enfraquecer o ideal único da mulher mãe e protetora da família que,
não obstante, continuará sendo o mais recorrente no período. Estes diferentes papeis da mulher,
porém, raramente tocavam a questão das diferenças sociais e “raciais” existentes no interior do
universo feminino e feminista. As considerações no diário de Lima Barreto acerca de sua irmã,
Evangelina, malgrado o preconceito que o autor mantinha em relação às capacidades
intelectuais das mulheres, são esclarecedoras:
Minha irmã, esquecida que, como mulata que se quer salvar, deve ter um certo recato,
uma certa timidez, se atira ou se quer atirar a toda a espécie de namoros, mais ou
menos mal intencionados, que lhe aparecem. (...) Se a minha irmã não fosse de cor,
eu não me importaria, mas o sendo dá-me cuidados, pois que de mim para mim, que
conheço essa sociedade (...)124.
Com exceção, talvez, da maternidade, todos outros temas, como o divórcio, o trabalho
fora do lar, o voto e participação pública eram polêmicos. A “mulher” tornava-se
progressivamente um tema específico, um domínio do saber, a ser tratado pelos campos da
ciência, da literatura, da crônica social, dos discursos políticos, das organizações sociais
121
Cf. ELEUTÉRIO, M de L. Vidas de romance, p. 65.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 abr. 1923, p. 1.
123
Cf. PEIXOTO, Afrânio. A Esfinge, p. 195.
124
BARRETO, Lima. Apud. ELEUTÉRIO, M de L. Vidas de romance, p. 53.
122
225
coletivas etc. Tais esferas não podem ser tomadas segundo uma autonomia ideal. O eugenista
Renato Kehl, ao tratar da “inteligência da mulher”, dizia que “a mulher tem o cérebro idêntico
ao do homem e poderá desdobrar o seu psiquismo na mesma proporção” 125, contrariando, assim,
as posições acima citadas de Tristão de Athayde que via na mulher “uma alma de homem em
eterna adolescência”. Porém, o saber “científico” aí não poderia dar a última palavra:
Melhor será que não o faça: a espécie humana seria prejudicada se todas as mulheres
quisessem intelectualizar-se. A mulher, por ser mulher, não vence o homem pelos
dotes intelectuais, vence-o pelas suas qualidades morais e físicas. Aprimorai-vos,
pois, leitoras amigas, e contai sempre com a vitória nos lances do Amor – porque
sois o sexo forte – nesse terreno.
Assim, mesmo a “ciência” que se considerava portadora dos meios de “proteção e
aperfeiçoamento da raça humana” curvava-se frente às visões tradicionais acerca do papel da
mulher na sociedade. Tais posições procuravam fazer frente à onda de notícias, obras literárias,
científicas, cinematográficas, debates políticos etc. que traziam novas representações do papel
da mulher na sociedade. Falava-se sobre o direito ao voto e à participação política das mulheres
inglesas, questionando-se quando seria “reconhecido à mulher brasileira o direito de votar, e
ser votada para o Parlamento Brasileiro”126. Também da Inglaterra noticiava-se o “Girl Guide”,
espécie de associação que procurava erigir orientações que visassem remodelar a educação
física, intelectual e moral da mulher. Enquanto a primeira seria praticamente inexistente, a
segunda não passava de formações rudimentares e a terceira se confundia com o catecismo127.
Na Bélgica, ao passo que os católicos defendiam o voto feminino nas eleições comunais,
provinciais e gerais, os conservadores e socialistas advogavam pela protelação de tal lei que
seria “perigosa” por datar de 1914 a lei de ensino obrigatório128. Dos Estados Unidos, vinham
notícias sobre a Conferência Pan-Americana de Mulheres ocorrida em Baltimore e levada a
cabo pela “Liga das mulheres eleitoras dos Estados Unidos”. O direito ao voto feminino aí era
diretamente relacionado ao desenvolvimento da educação da mulher129. Joaquim Pimenta,
como os socialistas belgas, era favorável ao voto feminino, porém, para o futuro. Afirmava
Pimenta, às vésperas das eleições presidências de 1922:
Se a querem eleitora ou eleita para os congressos, para os conselhos municipais, para
as prefeituras ou mesmo para a presidência da República, deem-lhe previamente uma
concepção racional e positiva das coisas; cultivem nela o sentimento de uma justiça
que não se aprenda a amar ao pé dos altares, mas pela noção exata das necessidades,
dos conflitos e dos sofrimentos humanos; libertem-na moral e intelectualmente de
preconceitos que a enclausuram em um convencionalismo de virtudes postiças; em
síntese, seja ela uma unidade social autônoma, e assim o voto nas suas mãos, além
de se tornar uma força nos destinos políticos do país, exercerá ainda uma função
125
KEHL, Renato. A inteligência da mulher, O Jornal, Rio de Janeiro, 30 mai. 1920, p. 1.
A mulher vence, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 nov. 1919, p. 2.
127
LEÃO, A. Carneiro. The girl guide, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 ago. 1920, p. 1.
128
Notas Belgas. O direito de voto das mulheres, O Jornal, Rio de Janeiro, 3 de março, 1920, p 1.
129
Cf. LEÃO, A Carneiro. Conferência Pan-Americana de Mulheres (Pan-American Conference of Women), O
Jornal, Rio de Janeiro, 3 mai. 1922, p 1.
126
226
moralizadora do caráter nacional130.
Por ter sempre a moral em seu horizonte reflexivo, as ações envolvendo organizações
femininas haviam de ter algum posicionamento frente à religião. Pode-se dizer que, na década
de 1910, a exemplo de organizações como a Cruz Branca e a Associação da Mulher Brasileira,
a relação com a Igreja era pacífica. A Cruz Branca dedicava-se à caridade, tinha comissões de
festas, confecções, costura e socorros. A Associação da Mulher Brasileira seria mais complexa,
além de vender confecções e “todo trabalho de mulher”, notadamente os dedicados à costura,
mantinha “escritório de colocação para empregadas de armazéns, lojas, datilógrafas,
professoras, governantas e enfermeiras, abrangendo todas as profissões às quais possa dedicarse a mulher”131.
Por ocasião da instalação da Legião da Mulher Brasileira, “instituição destinada a
elevar o nível da moral feminina e proteger, sobre múltiplos e nobres aspectos a mulher
brasileira”132, a divisão no interior da agremiação feminista tornou-se explícita, justamente a
partir de um tema sensível como o religioso. A sessão era chefiada pelo Monsenhor Mariano
Lemos, vigário geral da Arquidiocese, ali em nome do cardeal Arcoverde, figura maior da igreja
católica no Brasil daquela época. Além dele, o padre João Gualberto estava representando a
instituição eclesiástica. Dentre as mulheres que ocuparam lugares de fala estavam Áurea Pires,
que dissertara sobre o papel da instituição em “elevar o valor moral, intelectual e social da
mulher”, Heloísa Lutz, Cecília Meireles e Maria Eugênia dos Santos, a Baronesa de Ibiapaba.
Os nomes dos cargos diretores eram Mary de Sayão Pessoa, Júlia Lopes de Almeida, condessa
Pereira Carneiro, Baronesa de Ibiapaba, Cacilda Martins, Marechala Gomez Pimentel, Heloísa
Lutz, Cecília Meirelles, Olga Doyle, Lúcia Serrano, Emília Muniz, Margarida L. de Almeida,
Angela Vargas, Áurea Gama e Flora Hanselma.
Parecia correr tudo bem até que o padre Gualberto ia dar a bênção à Legião, mas apenas
se “estivesse claramente delineado o programa da sociedade” segundo os princípios de propagar
a fé católica. Porém, conforme a reportagem que retratou o caso:
O padre Gualberto não pode entretanto, prosseguir na oração. As suas ideias, no
momento expendidas, acerca do modo porque, baseada nos ensinamentos da igreja
católica, devia a Legião presidir os seus destinos, provocaram sério protesto de uma
grande parte da assistência, que se levantou, retirando-se do recinto entre os protestos
dos que, com as ideias referidas, não podiam, por uma questão de crença, estar
absolutamente de acordo. Entendiam os que protestavam, que a Legião, formada por
senhoras de diferentes credos religiosos não deviam admitir injunções de quem quer
que fosse, de maneira a abalar o sentimento religioso que divergia por completo entre
os presentes.
130
PIMENTA, Joaquim. O voto feminino, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 fev. 1922, p 1.
Cf. A Cruz Branca realizou ontem a sua primeira sessão ordinária, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25 ago.
1915, p. 6; Uma nova instituição feminina – A Associação da Mulher Brasileira, Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
8 set. 1916, p. 2.
132
A legião da mulher brasileira. O Jornal, Rio de Janeiro, 16 mar. 1920, p 7.
131
227
A diretoria afirmara que sequer havia convidado o Arcebispo, mas que não “compactuava com
os protestos”133. Publicou-se nota ratificando que a Legião não possuía fins religiosos. No dia
seguinte, o próprio jornal recebera em sua redação “uma comissão de operárias que protestavam
contra as palavras do padre Gualberto, pois sendo leiga a associação que se formava, não
podiam as associadas aceitar dogmas que não professavam”. Assim, se no início do século XX,
Maria Eleutério pode reconhecer um espírito de solidariedade entre as mulheres que “se
protegem umas às outras no interesse de sua própria autonomia”, com o passar do tempo, se tal
esprit de corps não se rompe totalmente, suas divisões internas vão se tornando mais claras,
sendo cada vez mais difícil considerar a mulher de forma genérica e estereotipada.
Contemplando tais diferenças, porém observadas do ponto de vista moral, Tristão de
Athayde verificava na produção literária feminina que:
[...] ao passo que umas se revoltam contra o que lhes parece uma tirania, levantamse outras como vestais do templo. Enquanto algumas, a maioria sem dúvida, exaltam
os sentimentos nobres e puros, clamam outras, a minoria mais sonora, pela liberdade
dos instintos. Anjos e demônios – como nos tempos idos134.
Autoras como Madame Chrysanthème, pseudônimo de Cecília Bandeira de Mello Rebelo de
Vasconcelos, aceitavam encarnar o “demônio”, uma vez que, dentre outras coisas, isso lhes
permitia alcançar altas vendagens, aproveitando-se de um nicho que escritores como Théo
Filho, Afrânio Peixoto, João do Rio e outros usufruíam. Havia até os que, sob pseudônimos
femininos, exploravam o mercado de obras consideradas escandalosas, como o jornalista baiano
Eduardo Faria que, assinando Regina Alencar, fez sucesso com o livro Sensações (1922)135. O
crítico via em obras de Chrysanthème, como Enervadas e Gritos femininos, a reprodução da
“literatura tabaresca” que garantiria edições esgotadas. Agripino Grieco considerava:
Chrysanthème, depois de escrever lindas histórias para crianças, revelando-se uma
das mais encantadoras “femmes de lettres”, entrou a escrever livros meio
escandalizantes, como “Enervadas” e “Uma Paixão”. Passou a pôr venenos
borgianos nas suas compotas de manga ou caju. Seus heróis dantes faziam apenas
orgias domésticas com chá, a tisana elegante dos ricos: hoje, atiram-se à morfina e à
cocaína. Madame Chrysanthème descreve agora de preferência mostruário de
homens da Avenida e quase todos os seus heróis são Narcisos dos espelhos do Alvear,
arrotando éter e licores caros. Suas heroínas praticam uma espécie de donjuanismo
feminino. Nelas, o carmim é o único róseo do pudor, e perdem mais tempo polindo
as unhas que os sentimentos. Quando se fazem de ingênuas, são ingênuas de teatro,
ingênuas libertinas...136
Quais seriam os limites que determinariam o passo fatal do anjo que se torna demônio? Da
liberdade que se torna libertinagem? Do belo voluptuoso que devém pornografia?
Se a autoria feminina era já um pretexto para se acusar a presença dos instintos
133
A legião da mulher brasileira. O Jornal, Rio de Janeiro, 16 mar. 1920, p 7.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 abr. 1923, p. 1.
135
Cf. COELHO, Nelly Novaes. Regina Alencar. In: Dicionário crítico de escritoras brasileiras. 1711-2001. São
Paulo: Escrituras, 2002, p. 557.
136
GRIECO, Agripino. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 out. 1923, p 1.
134
228
dionisíacos comumente associados às mulheres, em obras assinadas por homens, a análise
crítica não era tão óbvia. Tal era o caso do romancista carioca Adelino Magalhães. Segundo
Wilson Martins, sua obra, que começara a ser publicada em livros em 1916, no volume Contos
e Impressões, “parecia comprazer-se na anedota escatológica, no pormenor sórdido, nos tipos
teratológicos e no emprego de sonos palavrões escritos com todas as letras”, havendo mesmo
cenas de “porcos trepando uns nos outros” em “atitude pederasta”, nas palavras de
Magalhães137. Nos contos de Tumulto da Vida, o autor parecia continuar nesse tom em que,
segundo Tristão de Athayde, “inegáveis qualidades de escritor, imaginoso e comovente, se
casam aos mais inaceitáveis processos estéticos”138. Magalhães, como João do Rio,
Chrysanthème e outros, justificava sua obra pelo apego à vida, à sinceridade e à observação,
considerando-se um “paladino da verdade”. O crítico, porém, discordava:
Escrever com todas as letras nomes e frases pornográficos ou vulgarmente imorais,
colocar os homens em posturas ridículas, exibir pavorosas e uniformes corrupções
ou deformações físicas, banir da arte, como inexistente toda a delicadeza ou mistério,
é trair a verdade, falsear a vida.
A pornografia, portanto, residiria no falseamento da vida em favor do grotesco. Ao contrário de
sua autorepresentação, o autor seria antes um impressionista do que um observador:
O realismo do Sr Adelino Magalhães é todo interior e procede mais da sensação que
da observação. Sensibilidade à flor da pele, deixa-se o autor impressionar por todas
as manifestações, portanto, mais aparentes que profundas, da realidade e reproduz
em sua obra esse tumulto de sensações cambiantes.
O livro produzira no crítico perspectivas díspares, ao mesmo tempo em que reconhecia
“um talento inculto e desconexo, mas incontestável, de narrador” e que “a própria anarquia de
estilo, que nele reina, é por vezes indício de vivacidade e comoção”, não podia deixar de
recriminar a “tirania da sensação” presente em sua arte. Faz-se um apelo à ordem:
E foi nesse sentido que indaguei, de início, se não era acaso “a desordem” o que o
Sr Adelino Magalhães pretendia impor como dogma de arte. É a consequência da
sua concepção elementar da sinceridade, como exata e perfeita reprodução do
tumulto interior do artista. É um engano. Esse tumulto interior existe, mas como
primeiro estágio da obra de arte, e esta não se deve modelar senão apenas inspirar
nele. A verdadeira sinceridade não é absolutamente incompatível com a forma
cuidada e a expressão modelada. A ordem e a lucidez, pelo contrário, são a suprema
expressão da verdadeira intuição criadora, em que se equilibram sentimento e
inteligência – ao passo que a desordem é sempre sintoma de anarquia intelectual e
de difícil assimilação. Queiram ou não, há de ser a razão eternamente o nosso
supremo brasão de homens.
Contra o domínio das sensações e do irracionalismo, o crítico lembrava que a:
[...] obra de arte não chegará a viver e muito menos a durar [...] sem a galvanização
da inteligência. Só esta, só a ação transfiguradora da razão conseguirá vitalizar essa
argila informe e divina, que é o germe maravilhoso da obra de arte, mas nunca - sem
a inteligência – passaria de um germe apenas potencial.
137
138
Cf. MARTINS, W. História da inteligência brasileira. (1915-1933). Vol. VI, p. 80.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 abr. 1920, p. 2.
229
Não por acaso, o nome do líder da Ação Francesa e signatário do Partido da
Inteligência, criado em 1919139, Charles Maurras140, era lembrado pelo crítico pela asserção
segundo a qual apenas pela razão se poderia atingir a “sábia naturalidade”. Acerca de Adelino
Magalhães, ele comenta:
A primeira consequência do seu antintelectualismo, inconfessado mas real, é essa
expressão desconexa e ofegante, que dá por vezes a impressão de vida, mas que
depressa fatiga e chega, não digo aos maiores, mas a verdadeiros absurdos do mais
elementar impressionismo: “Que Angústia! Ó! por que veio pizzicatear aos ouvidos
aquela palavra... assim, momentânea, em cintilar auditivo: cabaré! Cabaré! Cabaré!
Mas... avante! Avante! Cabaré! Cabaré! Cabaré! Sus! Tu és Fidalgo! Cabaré! Mais
alto!... Mais alçado ao Infinito! Redenção! Glória! Exulte ser por ser! O Universo
exulte! ser por ser goze ó! delírio Cabaré! Sus! Olá... Avante! Avante! Cabaré! Que
música espocante, convulsa em si mesma, insofrida no desejo glorioso dos
horizontes de lá... de lá... de lá! tão longe! Vês?... Sus! Tu és um fidalgo! Mais alto!
Mais estirado sobre teu triunfo! Avante! de longínquos horizontes: de gozo liberto!
E o Pecado exulte! E o Egoísmo fulgente... Por que não se bacharelara, ao tempo em
que seus irmãos, filhos de pai nobre, cursaram contudo o futuro respeitável do ‘sabe
com quem está falando?’ Por que dera para as leituras libertárias, depois de tão belo
curso propedêutico? E por que dera para tipógrafo, com o fim quase exclusivo de um
dia pregar a revolução?...”141
Aquilo que o crítico vira como “elementar impressionismo” foi tido, já ao fim da década de
1920, pelo grupo de intelectuais reunidos em torno da revista Festa, como algo “precursor, não
só no Brasil, mas no mundo, do suprarrealismo”142. Décadas depois, Wilson Martins
considerara Adelino Magalhães como alguém que possuía um “estilo expressionista”, sendo “o
mais fecundo dos pré-modernistas”143. Na visão de Tristão de Athayde, “nessa licença literária,
sem pudor, simplicidade e correção, de que se gaba o Sr Adelino Magalhães, não há mais do
que um individualismo ingênuo e rudimentar”144.
Em um contexto de mobilização em torno das temáticas nacionais, nem o regionalismo
nem as perspectivas que procuravam ver por “debaixo do verniz” citadino poderiam atender
aos anseios crescentes. A questão nacional ganhava ainda mais recorrência em função da
proximidade do centenário da Independência. Como afirmara o crítico:
Anuncia-se literariamente o ano próximo como o de um grande balanço nacional.
139
Cf. EINFALT, Michael. La critique littéraire de "L'Action française". In: Cahiers de l'Association internationale
des études françaises, 2007, n°59, p. 313.
140
Charles Maurras era um dos principais nomes da intelectualidade francesa do período entreguerras. Fundador
da Ação Francesa em 1899 ao lado de Maurice Pujo e Henri Vaugeois, defendendo um “nacionalismo integral”
que se baseava no monarquismo, catolicismo e classicismo, conseguira impor seu nome em diferentes meios
intelectuais e políticos, desde os do radicalismo da direita nacionalista até os do interior da consagrada Nouvelle
Revue Française. Cf. EINFALT, Michael. La critique littéraire de "L'Action française". In: Cahiers de l'Association
internationale des études françaises, 2007, n°59, p. 303 ; ORY, Pascal; SIRINELLI, Jean François. Les intellectuels
en France, p. 11; DAGAN, Y. La nouvelle Revue française, p. 112 ; PROCHASSON, Christophe. Sur Le cas
Maurras: biographie et histoire des idées politiques (note critique), Annales, Science Sociales, Ano 1995, vol 50,
n 3, p. 580.
141
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 abr. 1920, p. 2.
142
SILVEIRA, Tasso da. Renovação: a propósito de um livro de Tristão de Athayde, Festa: Mensário de
pensamento e arte, Rio de Janeiro, Ano I, no 2, 1 nov. 1927, p. 8.
143
MARTINS, W. História da inteligência brasileira. (1915-1933). Vol VI, p. 81; 145.
144
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 abr. 1920, p. 2.
230
Vamos procurar saber se, realmente, já conquistamos uma independência de que a
quebra dos laços políticos em 1822 foi simples episódio. Nessas condições, devemos
esperar por larga messe histórica, desde a história propriamente dita até o romance
do passado, o poema cívico ou o teatro da reconstituição145.
A dúvida e o ceticismo permaneciam como marcas do olhar que procurava identificar a
identidade brasileira como algo existente e consolidado. Frente a tais expectativas, seria preciso
se manter reticente acerca das obras meramente celebradoras:
Não há talvez forma poética mais difícil do que a musa comemorativa. A
espontaneidade da inspiração, a graça da expressão, toda a alma imprecisa e leve da
poesia tem de ceder lugar a uma gravidade forçada e incompatível com o encanto
alado do verso. Sente-se facilmente o trabalho laborioso da construção, a fria
disposição das estrofes146.
Ao tratar de livros de poesia escritos com tais intenções, aponta-lhes as falhas e insuficiências.
A obra A volta do Imperador, de Carlos Magalhães de Azeredo, era exemplar:
Ó Brasil! pátria adorada,
a quem todo eu pertence,
sem uma hora só pousada,
desde a infância atribulada
a essa noite de amargura,
que a um passo da sepultura,
ai! Me separou de ti!147
Tal “voz da pátria” não diria nada e seria marcada antes pela algidez, quando a “nossa poética”
reivindicaria o prosaico e anódino. O livro Predição. Saudação, do político católico Carlos de
Laet, seria “ainda menor” em sua ode à natureza do país:
Sem mais verde matiz vestirão as colinas;
Há-de armar-se nos céus um doce todo azul;
E corridos os véus das vésperas neblinas,
Surgirá mais nitente o Cruzeiro do Sul!
Após os processos pelos quais vinha passando a cultura intelectual brasileira, era impossível
aceitar este tipo de ufanismo como expressão da realidade nacional. O desafio do Centenário
era muito maior do que se podia imaginar.
A questão acerca do “estilo nacional” aparecera em praticamente todos os domínios da
cultura intelectual brasileira. O crítico destacava as considerações de Monteiro Lobato sobre a
arquitetura colonial e os esforços desenvolvidos, especialmente em São Paulo, para criar,
“senão um estilo nacional nosso, ao menos um que se abebere nas fontes próximas de nossa
nacionalidade, ibérica e árabe, e se inspire nas necessidades e nos motivos ambientes”148. Os
debates a respeito da formação de uma arquitetura nacional se faziam nas páginas dos jornais.
As grandes reformas urbanas que vinham ocorrendo em São Paulo corroboravam com a
discussão acerca da questão arquitetônica das cidades, conforme editorial de um jornal carioca:
145
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 out. 1921, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária. O Jornal, Rio de Janeiro, 23 mai. 1921, p 1.
147
Cf. ATHAYDE, Tristão. Vida Literária. O Jornal, Rio de Janeiro, 23 mai. 1921, p 1.
148
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 jan. 1920, p. 8.
146
231
Durante muito tempo dir-se-ia que os habitantes do Rio eram completamente
indiferentes à beleza da cidade. Desde que tínhamos uma “naturaleza” incomparável,
unanimemente elogiada pelos “touristes” e viajantes estrangeiros, julgávamo-nos
quites conosco mesmo; os arquitetos improvisados, os grosseiros mestres de obra ou
os homens sem sombra de gosto ou educação artística que passavam pelo governo
municipal, podiam encher impunemente a moldura maravilhosa da Guanabara com
os mais tremendos aleijões de pedra e barro que acudissem a uma imaginação
inferior de bárbaros. Mesmo depois da avenida e das obras de embelezamento do
prefeito Passos, os cariocas assistiam indiferentes à substituição dos velhos casarões
inestéticos que a pobreza de gosto artístico dos portugueses nos legara, pelo delírio
dos palacetes rastaqueras de Copacabana e Botafogo e dos monstrengos pesados e
coloridos da grande artéria central. Uma dia, entretanto, aqui, ali, começaram a surgir
os primeiros protestos tímidos contra a fealdade das construções cariocas e o
criminoso sacrifício das nossas lindas perspectivas naturais. Sem ir até às cidades
europeias, tínhamos nos bairros novos de S Paulo o exemplo de habitações sóbrias e
distintas, que atestavam, ao menos entre os paulistas, a capacidade primeiro de sentir
os efeitos das linhas puras e das cores medidas149.
O editorial não se perguntava sobre os problemas que vinham ocorrendo e sendo denunciados
na imprensa, seja acerca dos estilos empregados150, seja quanto aos problemas urbanísticos
desencadeados151 na cidade paulista. Tratava-se, para o periódico carioca, de se encontrar um
meio termo entre o “velho casario colonial e a imitação servil das vilas italianas, da moderna e
formosa arquitetura francesa ou dos feios arranha-céus de Nova York”152.
O debate opunha defensores do estilo neocolonial e os proponentes de uma absorção
das últimas produções europeias. José Mariano Filho iniciara uma discussão a partir dos
questionamentos que recebera do professor de arquitetura da Escola Mackenzie de São Paulo,
Cristiano Stockler das Neves, acerca das “sugestões” que dera, na condição de representante da
Sociedade Brasileira de Belas Artes, ao prefeito do Distrito Federal, o engenheiro Carlos
Sampaio, sobre as reformas na cidade. Entre abril e novembro de 1921, o debate sobre a
“arquitetura nacional” brindou os leitores do O Jornal com posições acerca da história do
barroco no Brasil e da importância da arquitetura e do urbanismo na formação das cidades.
Ambos falavam na busca de um “estilo nacional”, apenas o primeiro defendia que “o barroco
que nos foi legado é despido de valor artístico e não pode, de maneira alguma, inspirar nossos
arquitetos” 153. Para o autor, “temos que voltar as nossas vistas para a França que é o país onde
a arte está hoje mais adiantada, a despeito de todo o temperamento artístico dos italianos, cuja
arte estacionou com o barroco”. A arte nacional brasileira não podia ser a renovação do estilo
colonial pois este seria, antes, português. Daí que “um edifício pode ter elementos e não ter
estilo; é o que acontece com as nossas construções coloniais que, tendo elementos de diversos
estilos, ressentem-se absolutamente da falta de um caráter nacional ou mesmo regional”.
149
O problema das construções urbanas, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 abr. 1921, p. 1.
Cf. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole, p. 119.
151
Cf. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole, p. 109.
152
O problema das construções urbanas, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 abr. 1921, p. 1.
153
NEVES, Cristiano Stockler das. Arquitetura tradicional. O Jornal, Rio de janeiro, 13 jun., 1921, p 1.
150
232
José Mariano Filho, por sua vez, defendia o caráter ibérico do estilo colonial, cuja
“unidade do estilo barroco” ele mesmo teria verificado passando por Minas, Bahia e
Pernambuco e considerara que “nenhuma grande arquitetura [...] escapa ao espírito e tradição
de sua raça”. Fala das técnicas empregadas na península Ibérica, inclusive com as influências
de técnicas oriundas dos “países quentes” e “árabes” sob as telhas italianas. Segundo o autor,
“todos esses pequenos detalhes arquitetônicos aparentemente insignificantes, como a rótula, o
alpendre, o pátio interior, a telha romana, o grande beiral projetor de sombra amiga, todos eles
têm a sua explicação perfeitamente lógica, e por conseguinte, tradicional”. Era preciso sair do
“esnobismo artístico”, pois o Rio já estaria repleto de “castelos medievais” e “palácios art
nouveau, diante dos quais a orgia barroca adquire foros de nobreza ática”. Assim, reconheciase uma arquitetura tradicional capaz de inspirar a produção da arquitetura nacional154.
João do Norte (Gustavo Barroso) criticava Cristiano Stockler, considerava que o
barroco seria dotado de “altas qualidades e que possui força bastante para maravilhar os olhos
e mesmo para falar às almas”155. Apesar de sua inserção tardia em terras brasileiras, o barroco
colonial seria uma “arte das decadências” que, por isso, “possui belezas sem par, e às vezes os
grandes espíritos do mundo surgem na vertigem dessas decadências. Quando o que decai foi
grande, lança grandes chamas no bruxulear”. Contrariando Neves, considerava que “o Barroco
não é tão feio como ele pinta” e traça uma história do estilo desde suas origens italianas. O que
importava, segundo Barroso, era que o barroco “estava de acordo com a sua época, exprimia
sentimentos da mesma, e respondia às necessidades intelectuais, morais e física do momento”,
de modo que “uma arte assim ligada ao tempo há de ser elevada”. Além disso, o estilo seria
completo, “há o edifício leigo e o religioso, a catedral e o palácio barrocos, o objeto de prata
cinzelado e o quadro, a escultura e o vaso, o pano bordado e o móvel”. No caso brasileiro,
especificamente, lamentava-se o fato de que o “barroco jesuítico que nos coube por sorte não
ser dos melhores, pois é o vulgarmente chamado estilo João V, [...] penso, sem pretensão de
impor minha ideia, que ele não pode ser representativo da raça e da terra, porque não se
nacionalizou”. Ao contrário das experiências peruanas e mexicanas, em que o barroco teria se
nacionalizado “sobre as construções das civilizações precedentes”, como no caso da Igreja de
São Domingos sobre o Templo do Sol em Cuzco, no Brasil não teria ocorrido tal processo e “as
belas igrejas barrocas da Bahia, do Rio de Janeiro e do interior de Minas são barrocas só, não
são brasileiras, como são peruanas ou mexicanas que citei”. Para Barroso, devia-se nacionalizar
154
Cf. MARIANO FILHO, José. Arquitetura tradicional, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 abr. 1921, p 1; MARIANO
FILHO, José. Arquitetura tradicional (II). O Jornal, Rio de Janeiro, 15 mai. 1921, p 1; MARIANO FILHO, José.
Arquitetura tradicional (III). O Jornal, Rio de Janeiro, 30 mai. 1921, p 1; MARIANO FILHO, José. Arquitetura
tradicional (IV). O Jornal, Rio de Janeiro, 16 jun. 1921, p 1.
155
NORTE, João do. Arquitetura nacional. O Jornal, Rio de Janeiro, 26 mai. 1921, p 1.
233
o barroco mediante incorporação de motivos da fauna e flora nacionais, tal como em outros
países latino americanos.
José Mariano Filho escrevera ao “caro Tristão de Athayde” para que este participasse
da discussão. Segundo o debatedor, “não será escuso lembrar-lhe a importância social do
assunto em debate. A desnacionalização arquitetônica do Brasil é obra malsã [...] dos judeus
que não tendo pátria, nem tradições procuram destruir a dos outros”156. O crítico, porém, não
participou do debate. Ele, contudo, sob o pseudônimo de Fernando Telles, havia escrito, meses
antes, um artigo sobre a “casa brasileira” em que defendia ser a arquitetura a “arte mais
expressiva de um povo”, especialmente por seu “anonimato”, que poderia ser verificado pelas
obras da antiguidade dos egípcios, assírios e gregos157. Além de afirmar concepções tradicionais
da arquitetura como uma espécie de “mãe das artes”, o crítico reconhecia tal riqueza pelo fato
de aí ser possível notar “a solidariedade artística e a ação do momento histórico”. E o presente
não seria uma “época de ingenuidade arquitetônica”, mas de “uma época de pura imitação”, um
momento de “assimilação de cultura’”:
[...] para mal de nosso presente e para bem de nosso futuro, não temos a coragem da
ignorância, que tão profundamente distingue os nossos irmãos norte-americanos.
Desdenham eles, em geral, de toda cultura que lhes não seja útil e vão edificando
logicamente sua casa, a começar dos alicerces econômicos.
Mais uma vez, porém, o “caso brasileiro” revelava sua característica central de cisão, desacordo
e incongruência:
Com o sangue e a mentalidade que temos, não nos seria possível essa evolução
racional. Dotados de uma inteligência muito especial, viva e assimiladora, não
conseguimos adaptar o nosso estado mental ao nosso estado social. Esse desacordo
flagrante e inevitável, manifesta-se em todas as modalidades da vida nacional. Na
arquitetura é patente. São geralmente os nossos arquitetos homens sabedores e
mesmo sábios, inteligentes, cultos e de gosto. Que lhes falta então? A coragem de
ser nacionais, de tatear por mil obstáculos a vencer, de abrir caminho.
O crítico, então, lembrava que a “cultura” poderia tolher a criatividade:
Aos nossos arquitetos, falta a coragem de ser imperfeitos, esquecidos de que mais
vale uma imperfeição original do que uma perfeição copiada. Nunca um tão vasto e
deserto campo se apresentou a olhos de artistas como o de nossa arquitetura urbana
e rústica. Mas não se apontam arquitetos capazes de vencer a rotina do plágio, a que
nos habituamos, nem proprietários de bastante gosto, para compreender que só a
região, o clima e a gente podem inspirar a verdadeira beleza arquitetônica.
Assim, ele considerava que os “construtores nossos” seriam ou “boçais ou distintos”, mas
“bebidos por demais em revistas americanas, inglesas e francesas”. Deveriam os arquitetos
olharem para o “sol, para as nossas árvores, para o nosso mar, para a nossa gente, para a nossa
história”, a fim de compreender que “nada do que foi construído, embora com perfeição e gosto,
ficará como obra de arte ou civilização”. Nada fora do horizonte nacional poderia ser perene.
156
157
Carta de José Mariano Filho a Tristão de Athayde, sem data, acervo CAAL.
TELLES, Fernando. A casa brasileira, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 mar. 1920, p 1.
234
Tais produções ficariam como “prova da nossa civilização incipiente e mimetista, e como
documentos da falta de originalidade e de individualidade dos nossos cultos e elegantes
arquitetos”158. A superação deste “bovarismo arquitetônico” poderia ser atestada em produções
de São Paulo, como “na residência luxuosa de Numa de Oliveira” que provaria ser “possível
fazer arquitetura nacional de qualidade. Ou pelo menos luso-brasileira, que é nacional também”.
O crítico cita o nome do português Ricardo Severo159 que participaria das inciativas semeadoras
para “o nascimento de um estilo nacional arquitetônico”. À época, Mário de Andrade publicava
na Revista do Brasil a série de artigos “A arte religiosa no Brasil” sobre o barroco:
Todas essas igrejas, assim como os templos de maior porte, edificados mais tarde,
obedecem a uma certa ordem de tipos arquitetônico que, tendo-se vulgarizado por
todo o Brasil, tomariam uma feição fortemente acentuada, donde muito bem se
poderia originar um estilo nacional160.
José Mariano Filho e Cristiano Stockler das Neves concordavam com a sentença do
arquiteto americano Charles Freeman Gillette segundo a qual “a escolha de um estilo em cada
país deveria ser inspirada por sua história, voltando-se ao último estilo que ali nasceu para se
desenvolver o estilo futuro”161. A questão, porém, era precisar essa história, identificar seus
traços mais relevantes e aquilo que deveria caracterizar sua identidade. Ao comentar o livro
Jornadas pelo meu país, de Júlia Lopes de Almeida, Tristão de Athayde fala dos problemas de
se conhecer todo o território brasileiro, especialmente pela precariedade dos transportes,
embora não fossem raras as obras de viajantes. Aí residiria um aspecto fundamental para a
afirmação nacional, uma vez que “só seremos um, quando formos muitos. Só teremos uma
personalidade nacional quando granjearmos caracteres locais”162. Ele fazia restrições às
observações da escritora, para quem “só na paisagem logra um viajante encontrar certo motivo
de novidade, tão semelhante é entre si a vida das suas populações, pelo menos no que essa vida
tem de aparente”163. Na visão do crítico, esta afirmação do “aparente” é que não poderia
satisfazer aos anseios intelectuais, revelando antes alguém que “passou pelo Rio Grande,
colhendo as flores da terra, sem lhes perscrutar as raízes”164, não podendo assim perceber a
autora a “diversidade de vida das populações, dos seringueiros aos gaúchos, dos embarcadiços
aos fanadores” que formavam a população brasileira. “Perscrutar as raízes”, tal era o horizonte
que por muito tempo iria marcar a cultura intelectual brasileira.
158
TELLES, Fernando. A casa brasileira, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 mar. 1920, p 1.
Sobre trajetória e concepções de Ricardo Severo ver: MASCARO, Luciana Pelaes; BORTOLUCCI, Maria
Ângela; Lourenço, Júlia Maria. Ricardo Severo, Raul Lino e os movimentos tradicionalistas, Convergência
Lusíada, n. 25, pp. 102-123, janeiro-junho 2011.
160
ANDRADE, M Moraes de. A arte religiosa no Brasil, Revista do Brasil, São Paulo, Rio de Janeiro, no 50, fev.
1920, p. 98.
161
Cf. MARIANO FILHO, José. Arquitetura tradicional (IV), O Jornal, Rio de Janeiro, 16 jun. 1921, p 1.
162
ATHAYDE, Tristão. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1920, p 2.
163
ALMEIDA, Júlia L. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1920, p 2.
164
ATHAYDE, Tristão. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1920, p 2.
159
235
Neste sentido, o papel e lugar dos portugueses era algo que passava por constantes
reavaliações. A obra “colossal” e “monumental”, História da Colonização Portuguesa no
Brasil, organizada por Carlos Malheiro Dias e prevista para compor cinco volumes, teria a
participação das “maiores autoridades portuguesas, brasileiras e estrangeiras no assunto” e
pretendia ser “a obra de maior suntuosidade artística publicada até aos nossos dias em língua
portuguesa”165. Em seu primeiro volume, procurava-se demonstrar que “os descobrimentos
resultaram de um plano nacional, a que presidiram concepções geográficas arrojadas,
desenvolvidas por um trabalho científico de grande envergadura”. A partir de tais posições,
Tristão de Athayde propõe reparos segundo uma reflexão teórica acerca da história:
Para ser respeitável e útil, para que possamos confiar na sua palavra e beneficiar de
sua lição, deve a história visar um único objetivo – a verdade. Não se discute que
essa verdade seja falha, que o tempo desnature os acontecimentos, que as
interpretações modifiquem os documentos, que a personalidade do historiador não
possa inteiramente desaparecer perante os fatos. Tudo isso é sabido e quem for
esperar pela verdade completa melhor fará indo cuidar de seu jardim, como Candide.
O que se deseja é o ideal da verdade, isto é, a coragem de enfrentar os acontecimentos
sem preconceitos, de escrever a história sem defender ou contrariar sistematicamente
teses, sem se colocar em posição de apologista ou de negador, tomando dos fatos
como eles são, sem escolha prévia ou focalização de luz sobre os que convenham,
deixando à sombra os que contrariem simpatias ou convenções; o que se deseja é
que da condição da fé, da idade ou da nacionalidade do historiador se não possa
deduzir seus conceitos166.
O crítico suspeita que a orientação maior da obra não residiria em tais aspectos, mas no combate
a “certo nativismo feito contra Portugal” e, principalmente, como “pretexto para levantar o
ânimo da pátria, deprimido com a decadência política e econômica, encarecendo-lhe a
admirável grandeza do que foi e as possibilidades que o aguardam”.
A obra organizada por Carlos Malheiro Dias traria a deturpação da história para “servir
a um fim de glorificação nacional portuguesa ou de fraternização internacional luso-brasileira”.
Daí ela abrigar, à guisa de epígrafes e aforismos, sentenças como a de Guerra Junqueiro que
afirmam ser o Brasil a “eucaristia sagrada dos Lusíadas” ou, ainda, passagens escritas, segundo
apreciação crítica, em estilo de “comício popular”:
Uma das páginas mais brilhantes, mais gloriosas e mais fecundas da História de
Portugal é, sem dúvida, o descobrimento do Brasil. Este imenso território que ocupa
quase três quintas partes do Continente sul-americano, tanto na sua extensão
geográfica como na sua grandeza social, foi obra da fé e da energia dos portugueses...
A todos os colaboradores, portugueses e brasileiros, que vão contribuir com o melhor
de seus talentos para esta apoteose à raça da Lusitânia, que foi dominadora do
mundo, e ainda hoje se orgulha de ser das mais nobres, audazes e valentes... aqui
deixo a expressão do mais vivo e profundo reconhecimento167.
O crítico notava que era preciso escolher entre “História da Colonização” ou “Apoteose à raça
165
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 out. 1921, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 out. 1921, p. 1.
167
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 out. 1921, p. 1.
166
236
da Lusitânia”168. A obra ainda pretenderia explicar “em toda a complexidade, o milagre que
consiste em haver querido e podido uma pequena nação... (criar) no espaço de três séculos um
dos maiores impérios da terra”. A tais considerações, Tristão de Athayde lembrava o risco de se
acreditar em “milagres”, desdenhando-se “de certas causas naturais acessórias, para cair na
‘apoteose’ do homem colonizador” e que “a história de todas as colonizações nacionais é a
história de um sentimento: o interesse”. O crítico avaliava:
[...] só estudando os acontecimentos sem preocupação de “apoteose”, é que poderão
realmente levar a cabo uma obra imortal, com que hão de granjear a admiração e o
respeito de portugueses e brasileiros. Mas se pretendem provar que os portugueses
são os melhores colonizadores do mundo, que o desejo de Portugal era criar uma
nação para a liberdade, que os colonizadores chegavam animados de intenções
desinteressadas, que a administração colonial era o mais suave dos governos, então
devemos confessar que se terá perdido o mais admirável esforço até hoje
empreendido, para se estudar a história da nossa colonização.
Malheiro Dias respondera primeiramente em carta timbrada pela “Sociedade Editora
da História da Colonização Portuguesa no Brasil”169. Considerando-se “perplexo” e que desde
Tito Lívio “a História tem servido para glorificar as grandes nações e exprobar as más”, Dias
esclarecia que “no vasto plano em que trabalhamos, só há uma ideia preconcebida: a de procurar
explicar como um minúsculo povo criou esta pátria imensa”. O autor escreveu artigo
endereçado ao “Exmo. dr. Tristão de Athayde”, destacando que a crítica parecia destoar da
forma geral com que a obra fora recebida: “Se quisesse me magoar - e estou convencido de que
não foi de modo algum a sua intenção, - v. ex. não teria podido encontrar palavras mais ásperas
do que essas que juntou aos louvores veementes da vasta notícia dedicada ao 1o fascículo da
‘História da Colonização Portuguesa do Brasil’”170. Ele comentava que a “autoridade do seu
nome já consagrado pela retidão do seu proceder, pela imparcialidade do seu critério e pelo
fulgor do seu talento, tenha dado pretexto para que se generalizem suspeições tão injustas, que
vão ferir os homens eminentes congregados para este labor abnegado”. Por fim, o artigo
enumerava os colaboradores da obra171 que atestariam serem infundadas as suspeitas do crítico.
Este não respondeu, mas comentou posteriormente:
Acaba de aparecer o segundo fascículo da monumental História da Colonização
Portuguesa do Brasil. Prosseguindo na erudita “Introdução”, relativa à
intencionalidade do descobrimento da América, procurando reivindicar para os
portugueses a glória de uma empresa de que foi apenas Colombo o visionário da Fé.
Ocupa-se ainda o fascículo em provar os motivos de D João II em recusar o
oferecimento do Colombo, não por ignorância mas por ciência de que só o caminho
do nascente levaria à Índia. Note-se, enfim, que voltam os autores a afirmar o
propósito de não fazerem “literatura panfletária ou altercação nacionalista”, mas –
168
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 out. 1921, p. 1.
Carta de Carlos Malheiro Dias a Tristão de Athayde, 19-10-1921, acervo CAAL.
170
DIAS, Carlos Malheiro. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 out. 1921, p 1.
171
São elencados os nomes de D Carolina Michaelis de Vasconcelos, Duarte Leite e Luciano Pereira da Silva,
Lopes de Mendonça, Antônio Baião, Júlio Dantas, Esteves Pereira, Jayme Cortesão, Oliveira Lima, Anthero de
Figueiredo. Cf. DIAS, Carlos Malheiro. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 out. 1921, p 1.
169
237
“obra objetiva e imparcial, superior às paixões e às especulações patrióticas e
dialéticas”. A esse registro sumário e sucessivo nos limitamos, por ora, conforme
expressa deliberação172.
No mesmo sentido em que avaliara a obra organizada por Carlos Malheiro Dias, o
crítico apontava a lusofilia exacerbada que presidia produções como o livro O sentido do
Atlântico, do escritor português João de Barros. Segundo Tristão de Athayde:
Se o problema das relações luso-brasileiras está de novo em foco, provocando graves
dissidências em ambos os países e confundindo todos os espíritos, é que a leviandade
de alguns alvoroçados, como o Sr João de Barros, não soube compreender a situação
real dessa relações nem o estado de espírito dos dois povos. As ligações que
existiram, e continuam existindo por outras formas, entre os dois povos, longe de
serem um motivo de aproximação, como pode parecer a um raciocínio superficial,
aconselhavam o afastamento. Não se tratava simplesmente de duas nações “filhas do
mesmo passado, gêmeas pelo sentimento e pela linguagem”, como diz o Sr João de
Barros. Se assim fosse, nada mais fácil do que uma aproximação que redundaria em
fusão. A linguagem dos que pregam essa aproximação bem mostra quanto ela é
artificial, quando não espontânea, pelas sutilezas e subterfúgios que emprega173.
Este tipo de consideração sobre a realidade dos dois países seria algo que em nada contribuía
para o real conhecimento de suas especificidades, agindo antes em sentido contrário. Assim, o
passado deveria ser contemplado segundo perspectiva pertinente a cada uma das nações:
Portugal descobriu definitivamente e colonizou o Brasil, mas apenas transportado
para a América o povo de além-mar, e iniciado o caldeamento da raça com outros
elementos, bem como sob a ação do meio, começou a formar-se para a Colônia, uma
história própria, que é hoje o seu passado, e um de cujos principais característicos
foi justamente o espírito de reação contra Portugal. Não há por conseguinte em cena
duas “filhas do mesmo passado”, o que indica igualdade de condições, mas uma
metrópole, que se resignou, e uma Colônia que se libertou.
Assim como os brasileiros reconheceriam antes o “passado vivido” da Batalha dos Guararapes
do que o “passado transmitido” da Batalha de Ourique, não haveria razão em afirmar o caráter
gemelar de sentimento e linguagem entre as duas nações. E como o português colonizador teria
se “modificado fisiologicamente, e portanto não poderá ser o mesmo sentimento”, a linguagem
seria um “patrimônio de que não somos depositários nem mesmo usufrutuários, mas plenos
proprietários por direito de transmissão, e que sofre as alterações inevitáveis e necessárias do
tempo, da raça e do meio diferentes”. O crítico avaliava que:
A aproximação entre duas nações é tanto mais difícil quanto maiores são os laços
que as prendem. E isso porque não há “aproximações sentimentais” entre nações mas
aproximações de interesse. Foi o desconhecimento dessa observação comezinha da
vida internacional que provocou os movimentos prematuros de certas tentativas de
aproximação artificial e excessiva que provocaram o surto dos nativismos
agressivos, tanto lá como aqui.
O trabalho dos “os pregadores da amizade, os apóstolos da confraternização” faria com que a
hostilidade entre os países aumentasse, dando ensejo à emergência de movimentos de
intolerância recíproca. O crítico lembrava que:
172
173
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 nov. 1921, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jul. 1921, p. 1.
238
Nunca o Brasil e Portugal se amaram menos do que no dia em que se começou a
pregar o amor que deviam ter um pelo outro! Para que as relações entre Portugal e
Brasil possam um dia atingir sua máxima cordialidade, sem prevenções nem
ressentimentos recíprocos, é mister que por muito tempo voltem as duas nações a
trilhar os caminhos divergentes por onde as ia levando o destino, com sabedoria,
antes da atoarda das aproximações inoportunas e consequente agastamento
agressivo174.
O autor considerava a obra de João de Barros como funesta e contraproducente. Assim, a
afirmação de Barros de que “o que se deseja, e de toda a alma, é que Portugal compreenda que
deve amar o Brasil, e que o Brasil aceite, e, em carinho e ternura, recompense o amor de
Portugal” 175 era tida pelo crítico como “pura fantasia”:
Não há amor, de povo a povo, nem amizade! Há simpatia, como será o nosso caso
para um Portugal, quando tiver cessado de vez a agitação dos importunos pregoeiros
de amor que só tem conseguido até hoje semear a discórdia e a desconfiança. O
“acordo espiritual”, tão caro ao Sr João de Barros, talvez se faça um dia, mas só
quando o Sr João de Barros e seus companheiros deixarem de pregá-lo... [...] parece
refletir [o livro], no empenho da aproximação, mais uma ambição do Portugal maior
do que o desejo proclamado do “Grande Brasil” ou da equivalência entre as duas
nações.
Os próprios princípios simbólicos que interessavam aos dois países seriam opostos
naquele momento. Na opinião do autor de O Sentido do Atlântico:
Quando, um dia, um estadista português compreender que o futuro de Portugal,
estando diretamente ligado ao desenvolvimento das nossas colônias, está ligado
também, e estreitamente, a um bom e leal entendimento com o Brasil – porque só
esse entendimento, nos poderá dar predomínio econômico sobre o Atlântico, mare
nostrum, caminho único da nossa ambição e da nossa possível expansão; quanto esta
concepção alimentar e inspirar a nossa política externa – teremos entrado de vez
numa era de vitoriosas realizações nacionais. [...] A aproximação com o Brasil faz
parte do nosso “patrimônio de esperanças” [...]. Ninguém há que não parta para a
corrida extenuante da ambição e do triunfo! Mais do que nunca a vergonha e o dano
é hesitar, é quedar-se, é recear. Caminha também, meu Povo audaz! Nas tuas mãos
amadurece o teu destino: na tua coragem resplandece a tua alegria e a tua vitória176.
A justiça aí, nas observações do crítico, só seria válida para os “professores de patriotismo”. Na
verdade, ele notava que nestes casos tratava-se de um “imperialismo velado”:
O que é grave é que esses clamores imperialistas sejam velados, aos olhos da
maioria, por palavras blandiciosas de puro amor desinteressado. O interesse de
Portugal e o bem mais preciosos do seu “patrimônio de esperanças” é expandir-se
apoiado no Brasil, e nesse caso devemos terminantemente recusar tal apoio, pois não
podemos de forma alguma desviar o nosso espírito dos problemas internos, sendo
muito outra a diretriz dos nossos destinos, ou Portugal pode reencetar sozinho seu
novo caminho de ambições nacionais, e não deve solicitar amizades que se
refuguem, solicitação que pode muito justamente ser interpretada como simples
apelo de hipocrisia diplomática177.
Dessa forma, enquanto João de Barros defendia que a união deveria vir da consciência
de que “os dois países terão do seu comum ‘destino atlântico’, imposto pelas respectivas
174
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jul. 1921, p. 1.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jul. 1921, p. 1.
176
BARROS Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jul. 1921, p. 1.
177
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jul. 1921, p. 1.
175
239
situações geográficas”178, o crítico afirmava que o processo pelo qual passava o Brasil era o de
“americanização” e que, menos do que deixar abertas as portas do Atlântico, “devemos abrir as
nossas portas para a verdadeira estrada do nosso futuro – o Sertão”179. Tristão de Athayde
recusava as loas a uma “coisa amorfa e ridícula chamada ‘patriotismo luso-brasileiro’” e rebatia
os apelos do escritor português com novas conclamações:
Não nos deixemos, por conseguinte, embalar por essas vozes de sereias que nos vem
apregoar a grandeza tradicional ou as glórias futuras do Sentido do Mar. Não é para
ele que nos conduz a nossa evolução natural. Outro ideal deve animar a nossa
consciência coletiva, outro sentido deve apurar-se em nosso corpo nacional, único
que o guiará para o seu verdadeiro destino – o Sentido da Terra.
Se, negativamente, ou seja, afirmando o que ela não deveria ser, era relativamente simples a
distinção da identidade brasileira em relação à portuguesa, outro era o caso quando se devia
considerar o que ela era positivamente. Na crítica a João de Barros, Tristão de Athayde defendia
que os interesses do país estariam na “conquista da terra e a fixação da raça”.
Sobre esta última, a “raça”, além das discussões intermináveis em torno de suas
características biológicas e culturais, havia o problema do “preconceito de raça no Brasil”, título
de um panfleto de Álvaro Bomilcar que tocava neste tema que era uma espécie de tabu no
interior da cultura intelectual brasileira. Poucos escritores analisavam tal preconceito no Brasil
e Tristão de Athayde era exemplar dessa postura geral:
Existirá preconceito de raça no Brasil? Penso que não. É certo que publicistas uma
vez por outra se ocupam dele. [...] Julgo mesmo inteiramente inútil o gasto que se
faz de ciência, de veemência, de sentimentalismo ou de retórica – para provar ou
desmentir pretensas superioridades étnicas. Somos um povo de mestiços em
caminho para uma raça vindoura e remota. [...] Nessa raça futura hão de fundir-se
todos os elementos lusos, africanos, germanos, indígenas, anglo-saxônicos, asiáticos,
mediterrâneos, semitas, que a imigração vem trazendo ao território nacional. Julgo,
portanto, perfeitamente inútil e ilusória, até contraproducente, toda ação contra
qualquer das correntes que a fatalidade histórica trouxe ou trouxer à nossa formação
étnica180.
Dessa forma, Tristão de Athayde negava a existência do problema que, por não ter bases “reais”,
não haveria razão de se perpetuar. Tais reflexões, porém, como reiteradamente se pode perceber
nos discursos da época, eram marcadas pela ambiguidade e contradição. Assim, continuava o
crítico na tecla que afirma ser o brasileiro um povo “mestiço” e que o melhor a se fazer era
“tentar a nacionalização das raças que nos procuram e a solução das questões de nossa formação
histórica. Uma intervenção no problema da raça só se compreende para fundir os elementos
heterogêneos, e melhorar as condições dos inferiores”. Não haveria “preconceito de raça”, mas
existiriam raças inferiores e superiores e, para resolver o problema inexistente, o crítico termina
pela seguinte propedêutica: “Deixemos que as raças continuem a fundir-se porque é este o único
178
BARROS Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jul. 1921, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jul. 1921, p. 1.
180
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 ago. 1919, p. 9.
179
240
meio de evitar preconceitos de raças”181. Tal posicionamento confuso acerca das diferenças de
cor no Brasil vistas como distinções “raciais” é duradouro182.
Ao analisar o folheto de Bomilcar, o crítico preferira observar o caráter anti-português
da obra e à reflexão sobre as condições raciais do país se somava a crítica à “lusofobia”:
Devemos partir, quanto à raça, desse postulado evidente; somos mestiços; [...] que a
nossa história, com formosas exceções [...] é a crônica de uma colonização péssima,
feita com sacrifício de negros e índios cujo mérito maior foi o próprio mal que
sofreram; que nunca houve, entre esses elementos, divergências sérias que, pelo
contrário, tudo tem caminhado nesses quatro séculos para a unificação dos fatores
primordiais; que modernamente um novo afluxo – a imigração europeia -, e cada vez
mais, doravante, a imigração norte-americana tem concorrido e hão de concorrer
para a precipitação definitiva, em uma nova raça, de todos os elementos primeiros;
que a ação humana nunca consegue vencer, senão orientar a fatalidade histórica; que
as nações só morrem para renascer; que quarenta milhões de brasileiros nada podem
temer de seis milhões de portugueses, e que portanto o perigo luso é um mito; que
se deixar de ser absurda uma ideia de Confederação Luso-Brasileira, ela se fará
apenas em detrimento de Portugal que independente foi glorioso, e confederado será
mesquinho; que o tempo é o fator máximo de todas as evoluções históricas ou étnicas
e que o Brasil e os brasileiros, com seus males e defeitos comuns a todos os povos,
com os seus portugueses, caboclos, mulatos, germanos, anglo-saxônicos ou
mediterrâneos, não tem razão de falar em “beira do abismo” ou “dominação
estrangeira”!
Tal perspectiva antiportuguesa comporia outra obra de Bomilcar, A Política no Brasil ou o
Nacionalismo Radical, que o crítico reparava as insuficiências acusando o “caráter urbano” e
restrito da perspectiva do autor. Bomilcar, apesar de “patriota sincero”, teria se deixado
“dominar pela paixão de suas ideias e escravizar por uma ridícula obsessão” contra Portugal,
produzindo, assim, um “nacionalismo negativo”183. Seu programa falava em “mudança da
capital”, “nacionalização do comércio”, “nacionalização da imprensa”, “organização do teatro
nacional brasileiro”, “A regulamentação dos alugueis de casa”, o “crédito agrícola”, a “política
de solidariedade americana” e a reforma da Constituição, especialmente acabando com a
igualdade que equipararia “o alienígena ao filho do país”184.
Jackson de Figueiredo fazia coro às ideias de Bomilcar no volume Do nacionalismo
na Hora Presente. O líder católico compreendia o nacionalismo como sendo:
181
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 ago. 1919, p. 9.
No interessante e importante inquérito feito por Gilberto Freyre nos anos 1950, no qual foram ouvidas cerca de
trezentas pessoas de diferentes idades, à pergunta sobre a atitude dos entrevistados em relação às pessoas negras,
mulatas e “de cor”, a maioria respondia não possuir preconceito algum. Porém, quando questionada sobre como
reagiriam a uma união de filho, filha, irmão ou irmã com “pessoa de cor” ou “de cor mais escura que a sua”, a
grande maioria, aí incluídos padres e religiosos, com poucas exceções, era veementemente contrária ou se omitia
a responder. As respostas assumiram as mais variadas “justificativas”, mas mantiveram um interesse geral que via
a sorte das pessoas negras como invariavelmente pior que a das brancas. Júlio de Mesquita Filho, proprietário do
jornal O Estado de São Paulo, por exemplo, se dizia contrário ao casamento com “gente indisfarçavelmente de
cor. Além do mais, porque me recusaria sempre a concorrer para que viessem ao mundo infelizes. E o preto e o
mulato, devido às condições sociais, cada vez mais predominantes no Brasil, de toda evidência, são uns infelizes”
Cf. FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. Vol II, p. 359.
183
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 jul. 1921, p. 1.
184
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 jul. 1921, p. 1.
182
241
[...] de um modo feliz ou infeliz, não importa, certo ou errado, a sistematização,
digamos assim, do que hoje vulgarmente chamamos patriotismo, a nacionalização
do que é puro sentimento, ou quando muito, também, um punhado de ideias
rudimentares; [...] a ação de uma elite que, acertada ou erroneamente, repito, mas de
boa-fé, quer dar a uma dada pátria o sentimento e a ideia de que já constituiu uma
raça histórica, tão legítima quanto as que mais legítimas se julguem185.
A tais palavras, o crítico lembrava “que a boa-fé, no terreno das ideias, vale tanto quanto a
intenção, no terreno da arte, isto é – nada, como critério de verdade ou de beleza”186. Jackson
de Figueiredo identificava dois pontos absolutamente tradicionais que deveriam compor o
nacionalismo brasileiro: o espírito católico e o anti-lusitano. Segundo Tristão de Athayde:
[...] a concepção nacionalista do sr Jackson de Figueiredo, mormente em sua
objetivação, parece-me enormemente acanhada. Se os dois únicos ideias do
nacionalismo da hora presente são – desenvolver o espírito religioso e combater a
influência portuguesa, temo muito que se inutilize entre esforços de Sísifo e
estocadas de D Quixote.
Apesar de “tradicionalmente católico”, o povo seria “muito superficialmente religioso”:
O espírito religioso, por tradição, é infinitamente mais frágil que o espírito religioso
por convicção, e um estudo sumário de nossa história ou a observação dos nossos
costumes mostram que a nossa religiosidade não tem na alma aquelas raízes
profundas da gente espanhola, por exemplo, ou das orientais em geral.
O catolicismo brasileiro seria fruto da colonização e não chegaria a formar um “caráter”. Além
disso, o crítico comentava que o espírito católico “nada teria de propriamente nacionalista, pois
teríamos conosco todas as nações hispano-americanas e grande parte da Europa”. Tampouco o
antilusitanismo teria tal força:
O desequilíbrio entre o litoral e sertão, os pruridos separatistas de certas regiões,
inassimilação do elemento italiano ou germânico, as relações econômicas com a
América do Norte, as relações políticas com os vizinhos fronteiriços, a questão social
natural e importada, a cultura cosmopolita e muitos outros problemas são mais sérios
para a nossa nacionalidade que as relações com Portugal.
Dessa forma, ele concluía:
O verdadeiro nacionalismo é a ação construtora, a ação “por” alguma coisa e não
“contra” alguma coisa. O verdadeiro nacionalismo brasileiro é a consolidação
higiênica, econômica, política, moral e intelectual da nacionalidade brasileira. É a
política de saneamento, de independência econômica, de estímulo à produção, de
paz no exterior para o trabalho interior.
Jackson de Figueiredo respondera a tais considerações dirigindo-se em artigo ao “distinto e
admirado amigo sr Tristão de Athayde”187. O intelectual católico rebatera as acusações de
lusofobia, mas reconhecia sua relação com Álvaro Bomilcar, a quem deveria a “primitiva
orientação” do seu nacionalismo, mas que “de tempos para cá, múltiplas foram as causas que
me separara dele, no que diz respeito às ideias gerais, que devem dirigir o movimento
nacionalista”. Figueiredo, porém, defendia a superioridade colonização portuguesa, não admitia
185
FIGUEIREDO Apud. ATHAYDE, Tristão. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 mar. 1921, p 1.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 mar. 1921, p 1.
187
Cf. FIGUEIREDO, Jackson de. Do nacionalismo na hora presente, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 abr. 1921, p 1.
186
242
nacionalismo brasileiro sem ser católico e, diferentemente de Afonso Celso e Álvaro Bomilcar,
não aceitava que em tal movimento se admitisse não católicos.
As propostas inusitadas de Bomilcar e o nacionalismo católico de Jackson de
Figueiredo expressam a recorrência do anseio, ainda incipiente e cético, que começa a
caracterizar a cultura intelectual brasileira. Nenhum dos dois, porém, na visão do crítico,
corresponderiam ao “nacionalismo realista” que deveria nortear a intelectualidade do país.
Segundo ele, “é um sintoma do melhor augúrio observar como, desde Euclides da Cunha ou
Alberto Torres, se vem generalizando essa concepção realista das coisas nacionais, que fora a
dos grandes formadores da nacionalidade”188. Tal concepção “realista” teria de levar em conta
a oposição sertão/litoral fora da qual só restariam abordagens parciais, retóricas, deficitárias e
incapazes de irem ao fulcro dos problemas nacionais. A fim de contemplar o par antitético, as
metáforas orgânicas ganham cada vez mais espaço, afinal, desde o romantismo, “a sociedade
verdadeiramente orgânica seria aquela da realização plena de cada um e de todos ao mesmo
tempo”189. Diferentemente dos modelos mecânicos, a imagem biológica do organismo
concederia ao seu objeto o dinamismo vital de um ser integrado em suas partes que se
desenvolve tanto espiritualmente quanto fisiologicamente, tanto moralmente quanto
fisicamente. Através de sua cultura, raça, literatura, política, clima e geografia, a nação é tomada
como uma personalidade impelida pelo espírito que lhe garante a autonomia e a liberdade190.
Assim, o par sertão/litoral é visto sob a perspectiva biológica e médica:
[...] os grandes centros só podem pensar lucidamente pelo país e dirigi-lo com
eficácia, ao compreenderem que só existem saúde e desenvolvimento em um corpo
quando há perfeita harmonia entre os vários órgão e funcionamento perfeito de cada
um deles. O louvor dos que estudam os nossos problemas por um prisma de
nacionalismo positivo está em compreenderem essa verdade e procurarem observar
o Brasil em sua existência real, com seus males profundos, com seus defeitos
inveterados, investigando portanto os sintomas com a isenção fria e aguda de um
médico. E aos médicos cabe justamente um papel saliente nessa orientação moderna
e fecunda do nosso nacionalismo positivo191.
O crítico fazia referência à obra do médico Belisário Pena, O clamor da verdade, na
qual Oswald Cruz era tido como o “maior dos brasileiros”. Na visão de Tristão de Athayde, aí
residiria a orientação que se destacaria da percepção de que “o Brasil tem sido feito de cima
para baixo; agora chegou o momento de refazê-lo, como deve ser, de baixo para cima”. Daí a
saudação à “política sanitária” defendida por Belisário Pena e que deveria ser vista como o
verdadeiro patriotismo isento da nota ufanista, mas, superior pelo horizonte de ação:
Quero apenas acentuar que não vejo impatriotismo algum nas cores negras com que
188
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 jul. 1921, p. 1.
Cf. SCHLANGER, Judith E. Les métaphores de l’organisme. Paris: Librairie Philosophique J Vrin, 1971, p.
235.
190
Cf. SCHLANGER, Judith E. Les métaphores de l’organisme, p. 152-155.
191
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 jul. 1921, p. 1.
189
243
pinta o quadro da nossa população do interior. Parecem-me exatas essas cores,
mesmo por observação superficial; mas ainda quando não o fossem, seriam
necessárias para despertarem a apatia nacional, a respeito do problema do
saneamento, que de qualquer forma é primordial. Nada há de irreparável em nossa
situação geográfica ou étnica, para que nos seja lícito desesperar; mas também muito
deixamos a desejar, nesse sentido, para que não urja a convergência de esforços sobre
a eliminação de certos fatores primaciais de indolência e pessimismo, que impedem
o surto de qualquer progresso192.
O realismo brasileiro só poderia redundar, se não em pessimismo, ao menos em
diagnósticos e análises que reiterariam a situação negativa do país. Estas sínteses realistas estão
na base daquilo que será a nova fase de interpretações nacionais da realidade brasileira que
procuram lhe conferir o caráter segundo seu povo, geografia, história e cultura. Assim, na obra
Grão de areia, do sergipano Gilberto Amado, após a consideração sobre o indivíduo como um
grão de areia frente ao “Estado frio”, o sociólogo tratava da educação, do meio e da evolução
histórica do Brasil. Os três tópicos mostrariam que “o Brasil é uma nebulosa em consolidação,
que só do tempo poderá esperar remédio para o seu desconcerto” 193. Tristão considerava que:
Esta postura de fatalismo perante o destino pode ser exata mas não é fecunda. Por
mais ingrato que seja o nosso meio para campanhas políticas, morais ou de
inteligência, qualquer ação desinteressada e honesta terá sempre um efeito indireto,
por mínimo que seja. Das pequenas resistências ao mal se fazem as grandes virtudes.
Se cada homem sincero e bem intencionado se revoltar, do seu recanto, contra o mal
ambiente, a atmosfera acabará por clarear. Se Oswaldo Cruz tem sido fatalista, ainda
teríamos a febre amarela. Se Rondon esperasse o maná da providência, os nossos
sertões continuariam ignotos. Se Murtinho não tem estendido a sua mão de ferro,
que seria do nosso crédito? Se as câmaras municipais da Colônia não se tem imposto
lentamente pela oposição ao Reino, teria sido possível a independência? É a vontade
que conduz a história, vontade individual ou coletiva.
Esse elogio à vontade, independente dos cálculos e das apreciações razoáveis, é um dos
primeiros passos à saída do ceticismo que parece marcar ainda a obra de Gilberto Amado.
Defendendo uma “moral pragmatista”, Amado, em matéria de educação, advogava que o ensino
teria de ser orientado pelo “princípio da utilidade [que] domina a moral moderna”, devendo a
educação ser guiada pela busca pelo dinheiro, segundo um “breviário do arrivismo”. Haveria
muito “humour” nas observações de Gilberto Amado, porém, o que o crítico destacava era a
singularidade do seu trabalho nos meios intelectuais brasileiro:
Entre nós, a não ser o compêndio excessivamente didático do sr João Ribeiro, tem
sido a história mister de cronistas, de historiadores, diplomatas. Uns relatam
simplesmente o que viram, outros o que lhes é pedido. Alguns fazem história para
publicar certos documentos inéditos, outros para ganhar a vida. Aos nossos
historiadores, se assim os podemos apelidar, tem faltado amor, desinteresse, cultura,
espírito de nexo e generalização, visão política. Não falta número nem valor: falta
pulso. O sr Gilberto Amado tem qualidades de historiador, senão de uma
nacionalidade ao menos de um período: observação arguta e pessoal, despida de
preconceitos e exotismos, independência, generalização e lógica. Ele raciocina para
o Brasil com pensamento e argumentos brasileiros. Nasce-lhe o tino histórico da
192
193
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 jul. 1921, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 jul. 1919, p. 9.
244
própria realidade, não de teorias ou lirismos. No quadro que traça de nossa evolução
teve em mira provar que – “a população do Brasil politicamente não tem existência”.
Não é contudo feito com cores negras senão com tintas fortes. Acentua, com acerto,
o papel do escravo na história, resumindo – “aí está esboçada toda a história do Brasil
no século XIX: Senhores e escravos”194.
A obra de Gilberto Amado195 advogando este pensar com “argumentos brasileiros”
compõe, ainda que de forma incipiente, a tendência nacionalista que irá se desenvolver nos
ensaios e estudos de interpretação nacional que irão reivindicar a especificidade de análise para
se compreender o “caso” brasileiro. Sem dúvida, a obra que mais contribuiu à época para tornar
palpável este “caso” brasileiro foi Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana. Em um
país que primava pela falta de perseverança, falta de estudos pacientes, fraqueza de observação
e marcado por uma “erudição dispersiva e parcelada”, segundo avaliação do crítico, a obra de
Viana escaparia tanto da ideologia quanto do empirismo, distinguindo-se pela “originalidade e
singularidade do tema escolhido” em que abordaria o “nosso povo, com suas peculiaridades de
caráter ainda tão pouco definidas”. A investigação se desdobraria sobre o “cerne da
nacionalidade”, ou seja, as populações interioranas compreendidas como “matrizes da
nacionalidade”. De pronto, o trabalho revelaria:
[...] a ausência de uma unidade geral do povo, mas a existência, senão de “tipos
sociais fixos”, ao menos de “ambientes sociais fixos, em virtude da diversidade dos
hábitos, a sua ação durante três ou quatro séculos, de variações regionais no
caldeamento dos elementos étnicos e principalmente a inegável diferença das
pressões históricas e sociais sobre a massa nacional, quando exercidas ao norte, ao
centro e ao sul”196.
Seriam três meios distintos que formariam três sociedades diferentes (sertões, matas e
campos) com três tipos humanos singulares: sertanejo, matuto e gaúcho. A obra lançada
abordava apenas o segundo tipo, ficando previstos os estudos sobre as “Populações rurais do
extremo-sul”, “Populações Sertanejas” e “Os caucheiros da Amazônia”. Viana não passara do
primeiro volume, porém, o plano geral, por si só, seria uma “obra de ciência, observação e
método, que raramente vem a lume na nossa escassa produção sociológica”. O livro publicado
abordaria, portanto, o “matuto” que seria o “homem de formação agrícola”, aquele que
compreenderia a “grande massa de nossa população”, enquanto “o jagunço e o gaúcho, de
‘formação pastoril’, são tipos regionais”. Oliveira Viana explica as razões de sua escolha:
[...] o grande centro da política nacional, depois da Independência, se fixa justamente
dentro da zona de elaboração do tipo matuto. Este fato da contiguidade geográfica
do principal ecúmeno agrícola com o centro do governo nacional dá ao tipo social
194
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 jul. 1919, p. 9.
O sociólogo agradecera a crítica, pontuando que o livro deveria ser uma “vasta obra em dois grossos volumes”.
Porém, o autor era cético sobre o destino da empreitada: “Mas não consegui concluir e nem sei se concluirei nunca.
A Biblioteca Nacional gasta uma hora para encontrar um livro em que se vai buscar uma nota de cinco linhas”. De
qualquer forma, Amado era grato ao crítico: “Tristão de Athayde o sr me deu uma boa manhã, além das que me
tem dado todos os dias com os seus [...], saborosos, excelentes escritos. [...]”. Carta de Gilberto Amado a Alceu
Amoroso Lima, 2-7-1919, acervo CAAL.
196
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 dez. 1920, p. 2.
195
245
nele formado uma situação de incontestável preponderância sobre os outros dois
tipos regionais197.
Estas “populações matutas” teriam exercido obra fundamental à “formação nacional”,
notadamente devido ao “valor inestimável de suas virtudes pacíficas e ordeiras, dos seus
instintos de brandura e moderação, do seu horror do sangue e da luta”. Nestas populações
meridionais residiria uma das principais “matrizes” do caráter nacional positivo que, com o
tempo, converteram-se “em clãs poderosos, de grande coesão individual, mas de nenhuma
solidariedade social” que tiveram, por sua vez, uma decadência “espontânea” frente à ascensão
da legitimidade da coroa e consolidação da formação do Estado Nacional. Na sociedade rural
residiriam as origens nacionais:
Essa sociedade em formação, dispersa, incoerente, revolta, gira realmente em torno
do domínio rural. O domínio rural é o centro de gravitação do mundo colonial. Na
disseminação da população, lembra um pequeno núcleo solar, com as suas leis e a
sua autonomia organizada. Dele é que parte a determinação dos valores sociais. Nele
é que se traçam as esferas de influência. Da sociedade colonial – abstraídos os
aparelhos administrativos, que se lhe ajustam, estranhos e inassimiláveis – resta
apenas como elemento celular o domínio rural. Sobre ele, a figura do senhor de
engenhos se alteia prestigiosa, dominante, fascinadora. Nenhuma desprende de si,
em torno, para as outras classes, fluidos mais intensos de sedução magnética e
ascendência moral... O grande domínio açucareiro ou pastoril extrema as duas
classes coloniais: o patriciado dos ‘homens bons’ e a plebe dos emigrados, dos
aventureiros e dos mestiços livres, tumultuantes no vasto remoinho colônia. Ele é
que classifica os homens. Ele é que os desclassifica.
A forma de dominação tradicional no Brasil seria esta exercida na sociedade colonial:
O espírito da obra do Sr Oliveira Viana é mostrar como, nessas populações de origens
tão nitidamente diversas, sem nenhum dos fatores morais e econômicos da
sociabilidade, sem a consciência e a necessidade da associação municipal, formouse, pela própria natureza das coisas e pela ação eficaz de um regime forte, uma
sociedade definida que forma elemento essencial da nacionalidade198.
Neste sentido, interrogado sobre a tradição do liberalismo e do conservadorismo imperiais no
Brasil, Viana não teria dúvida em afirmar que:
Às maiores figuras da nossa história chamam-se Olinda, Feijó, Bernardo de
Vasconcelos, Evaristo, Paraná, Eusébio, Uruguai, Itaboraí, Caxias... Neles o
entusiasmo pela liberdade e pela democracia não chega a turvar nunca a consciência
que todos têm das nossas realidades e dos nossos destinos americanos, salvando,
com o senso prático e a sua coragem, o princípio da autoridade e o da unidade
nacional199.
Apesar do entusiasmo geral com a obra, Tristão fazia alguns reparos ao trabalho:
[...] compreendeu, aliás, perfeitamente a nossa história, cujo problema máximo tem
sido e devia ser essa formação da estrutura nacional. Mas toda evolução social
apresenta uma inevitável tendência individualista, o verdadeiro significado da
civilização é a emancipação humana. As pátrias não são um fim em si, e unicamente
um meio para esse fim supremo que é o Homem200.
197
VIANA. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 dez. 1920, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 dez. 1920, p. 2.
199
VIANA Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 dez. 1920, p. 2.
200
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 dez. 1920, p. 2.
198
246
Dessa forma, na visão do crítico:
Encarando essa maravilhosa formação da pátria brasileira surgindo do caos inicial
do primeiro século, desdenhou um pouco o Sr Oliveira Viana, na significação e no
objetivo superior de sua obra, essa eclosão tocante das classes, das famílias e dos
indivíduos, na evolução dos instintos despejados do início da colonização, ao
sentimento moral que floresceu, enfim, no quarto de século, e para o qual, aliás,
chama a atenção, até a formação lenta da inteligência e da cultura a que estamos
assistindo201.
Daí não haver na obra de Viana qualquer consideração sobre a história da instrução da
população, o que revelaria o obscurecimento dos papeis individuais em seu trabalho. O crítico
considerava como uma:
[...] falta, aliás, muito grave, mesmo sob o ponto de vista da formação nacional, e
que atenuará certamente o rigor com que o autor encara a plebe rural, fazendo
ressaltar, como devia, a responsabilidade criminosa, embora explicável, da
“aristocracia” e do governo, metrópole ou coroa, no estado rudimentar ou transitório
de civilização dos “mestiços”. Nem tudo pode a etnologia explicar, mesmo a de
Gobineau ou Lapouge...
O individualismo era um fenômeno flagrante no processo histórico brasileiro e não poderia ser
obliterado por uma análise excessivamente coletivista. Porém, Tristão de Athayde aponta que,
talvez, tal condição seja, justamente, o “flagrante entre nós [da] oposição entre o litoral e o
sertão, entre uma civilização que já atingiu a fase individualista e a que ainda se encontra na de
elaboração estrutural”. De qualquer forma, a obra de Viana era um marco:
Com a sua cultura real, com o seu conhecimento familiar de nossa história, com a
sagacidade de sua observação pessoal, com o critério objetivo e o método seguro que
adota, reconhecendo embora no autor uma rigidez excessiva de ponto de vista e,
coroando toda essa base indestrutível de conhecimentos com o luminoso espírito de
generalização que possui, coloca-se desde já o Sr Oliveira Viana, com o seu volume
de estreia, entre os poucos mestres dos nossos estudos sociológicos.
O crítico Agripino Grieco tivera o mesmo entusiasmo, que parece ter sido geral,
lamentando apenas a excessiva importância concedida a fatores “antropo-sociológicos”:
É ele dos que ainda creem em arianos, dos que ainda creem em craniometria, em
indícios cefálicos e em outras complicações dos livros de Vacher, de Lapouge. Ora,
tudo isto caiu no terreno do romance. Só os irmãos Rosas poderiam ainda falar a
sério em dolicocéfalos e braquicéfalos...202
Não obstante, Grieco não deixava de considerar a obra de Viana como “a coluna vertebral da
sociologia brasileira”. Por ocasião do lançamento de Pequenos estudos de psicologia social,
Tristão de Athayde o considerara como aquele que veio “ocupar a vaga que em nossos estudos
sociais se abrira com a morte prematura de Alberto Torres, um dos nossos poucos grandes
homens”203. Haveria, porém, diferenças entre os dois, uma vez que Viana:
[...] não procurava uma visão original ou uma concepção generalizada e completa do
nosso caso nacional. Vinha, pelo contrário, pregar e empregar método um tanto
diverso, e tanto menos comum em nosso meio quanto mais fecundo. Contra a
201
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 dez. 1920, p. 2.
GRIECO, Agripino. Vida literária. O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jul. 1923, p 1.
203
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 ago. 1922, p. 1.
202
247
demagogia, contra o liberalismo excessivo, contra o lirismo de nossas apressadas
generalizações em matéria social, vinha o Sr Oliveira Viana estudando a nossa
formação nacional à luz de critérios empíricos204.
O crítico ressalta o fato de Viana não fazer “sociologia de amador”, mas “sociologia de vida
real” que advogava a revitalização da vida rural: “É a renovação desse belo culto da terra opima
e nutridora, culto em que se formaram e definiram os atributos melhores de nossa índole étnica:
é nisto que está a grande obra empreender-se para regenerar o nosso caráter e para nacionalizar
a nossa alma”. Tais estudos acerca do passado terminavam por conferir as tonalidades das
apreciações sobre a realidade política brasileira do presente:
Estudando em seguida o nosso meio político, com o mesmo escrúpulo de observar
as coisas de perto, sem temor dos males a descobrir, antes procurando-os para os
corrigir – descobre entre as singularidades da nossa democracia esse egoísmo
político consagrado que faz com que os homens públicos se desinteressem dos
negócios da nação, uma vez que não estejam inteiramente empenhados neles. Não
encontra em nossa democracia essa participação ativa de toda nação nos negócios
públicos, como se compreende que seja toda democracia verdadeira. A nossa “é uma
democracia inconsciente de si mesma, absenteísta, indiferente, completamente
alheia à vida administrativa e política do país”. Indagando, em seguida, as causas
desse absenteísmo, em forma eleitoral, aponta várias, como os hábitos de alheamento
adquiridos durante os séculos do período colonial, a extinção dos antigos partidos, e
sobretudo o desaparecimento dessa classe de “senhores rurais”, de chefes dos
grandes latifúndios, que interessavam os seus apaniguados e dependentes nas
grandes lutas eleitorais de outrora205.
O crítico lembra ao sociólogo que tais “senhores rurais” de ontem seriam os coronéis de hoje
não devendo ser, assim, tão encarecidos os seus antepassados. Além disso, notava-se uma causa
primordial do absenteísmo eleitoral: “o sistema presidencial, que transformando o governo da
nação em simples maquinações de gabinete, sem a teatralidade e a divulgação do debate
parlamentar, produz como que uma cisão entre as classes dirigidas, suscitando nestas o
marasmo e o desinteresse pela coisa pública”206.
O realismo sociológico de Viana, assim, produzia os conteúdos que poderiam servir
de arsenal para as críticas cada vez mais contundentes ao regime republicano e democrático
brasileiro no interior da cultura intelectual brasileira. Apesar de ainda não ter se desdobrado em
projetos paralelos e utópicos de organização social, o realismo nacionalista, progressivamente,
se desenvolvia em sínteses que apontavam as mazelas do país pobre, atrasado e analfabeto. A
busca pelas raízes, o olhar sobre o Brasil real, seja pela observação do sertão, seja pela visada
“por debaixo do verniz” das cidades, produzia, ainda sem direções claras, apreciações que cada
vez mais assinalavam o desencontro do país consigo mesmo.
204
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 ago. 1922, p. 1.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 ago. 1922, p. 1.
206
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 ago. 1922, p. 1.
205
248
Clássicos, românticos: modernos
A arte só deixará de ser nacional no dia no qual o universo
inteiro viver sob um mesmo clima, nas moradas construídas
sob o mesmo modelo, falará a mesma língua com o mesmo
sotaque, quer dizer, jamais. Das diferenças étnicas e nacionais
nasce a variedade das expressões literárias, e é esta variedade
mesma que é preciso salvaguardar.
Guillaume Apollinaire, “O espírito novo e os poetas”, 1918.
Se fosse possível uma medida legislativa no campo das letras,
eu proporia a supressão sumária da Grécia, por dez anos da
nossa literatura.
Tristão de Athayde, “Vida Literária”, 1921.
Entre todas as relações que a modernidade possa ter, a relação
com a antiguidade é a melhor.
Walter Benjamin, “A modernidade”, 1938.
Não parece ser exagero afirmar que um dos maiores problemas da memória e da
história acerca das estéticas modernas e do modernismo no Brasil se deveu a um grande mal
entendido, com intenções explícitas ou inconscientes de se procurar uma origem absoluta, a
Semana de Arte Moderna, que confundia-se com a emergência de São Paulo como centro
econômico e político do país. Daí a proclamação de verdadeiras e falsas vanguardas,
precursores legítimos e oportunistas de ocasião, obras relevantes e produções que não merecem
mais do que o esquecimento. Tal aproximação estética com o passado produziu uma memória
e uma história canônica sobrecarregada com os mesmos cinco ou seis nomes e pouco mais de
uma dezena de obras que, por sua vez, recobriam, a golpe de força, todo o “resto” da produção
nacional. Esta busca por uma depuração quase ilimitada chegou a considerar nomes como o de
Menotti del Picchia, o autor que mais se utilizou da imprensa para promover os ideais
“futuristas” do incipiente movimento intelectual que se organizava em São Paulo1, como um
desvio, uma dissidência ou um “falso radical” infiltrado2. Em outras ocasiões, verdadeiros
contorcionismos teóricos foram necessários a fim de se assegurar a proeminência estética de
determinados nomes. Tal foi o caso das seguidas apreciações de Antônio Cândido sobre a obra
completa de Oswald de Andrade. Num primeiro momento, nos anos 1940, Candido considerou
que ainda não seria o momento de julgar a produção de Oswald, pois haveria no horizonte uma
“obra que se anuncia cheias de expectativas promissoras de renovação”3, talvez sem aquele
catolicismo do autor que insistia em finalizar suas obras dos anos 1920 com um LAUS DEO,
para perplexidade do crítico4. Décadas depois, Candido refletia acerca da obra de Oswald:
1
Cf. THALASSA, Ângela. O primeiro diário de São Paulo e a cobertura da Semana de Arte Moderna. Dissertação
de Mestrado, Faculdade de Comunicação, Pontifícia Universidade de São Paulo, 2007.
2
Cf. FARIA, Daniel. O mito modernista. Uberlândia: EdUFU, 2006, p. 17.
3
CANDIDO, Antonio. Estouro e libertação. Brigada Ligeira. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004, p. 11.
4
CANDIDO, Antonio. Estouro e libertação. Brigada Ligeira, p. 20.
249
A ninguém ocorria que já tivesse feito o suficiente para não haver mais necessidade
de obras novas como condição do seu lugar na literatura. Ele era o autor de Memórias
sentimentais de João Miramar, Serafim Ponte Grande, Pau Brasil, Primeiro
caderno do aluno de poesia; do “Manifesto antropófago” e alguns artigos geniais de
polêmica. Todavia, eu (nós) esperava (mos) por uma confirmação, um coroamento
que ele teimava em anunciar como tal! O autor ajudava o crítico a errar; e este não
percebia que o que viesse viria por acréscimo. [...] o melhor ainda deveria estar pela
frente, já que Oswald não dissera a palavra final... Vendo de hoje, é claro, que em
matéria de ficção esta palavra estava dita naqueles dois livros [Memórias... e
Serafim...]5.
Assim, com o passar do tempo e após a morte de Oswald de Andrade, o “insuficiente” tornouse “suficiente”. É interessante observar o modo como o “modernismo” operou no interior da
reflexão histórico-literária brasileira e a conduziu a ambiguidades como essas. Wilson Martins,
ao escrever o livro O modernismo, considerava que “história literária é feita pelo que aceita e
consagra, assim como, pelo que exclui. Só há olhar que se guie pela qualidade”6. Ao ver o
modernismo antes como uma “época da vida brasileira” do que uma escola, o olhar qualitativo
não conseguiu somar mais do que cinco obras representativas, entre poesia e ensaio, e dezenove
“autores fundamentais”, num período compreendido entre 1916 e 1945. Ao realizar trabalho de
maior fôlego, Martins reconhecia o modernismo como sendo um “movimento de livros únicos”
e que, já em meados da década de 1920, “esgotado o primeiro impulso revolucionário e, ao que
parecia, impotente para traduzir em obras o seu próprio programa, via-se de repente em um
beco sem saída”7. Assim, tendo sido o modernismo algo como um “espírito de época”, ao
mesmo tempo, ele era surpreendentemente improfícuo. Não há, porém, contradição. O olhar
estético do passado cria um horizonte monumental que preza pela manutenção de uma série de
nomes e obras que se reproduzem em livros de história, coletâneas, celebrações, edições
comemorativas que, não raro, reiteraram os mesmos fatos, acontecimentos e eventos célebres.
Todo perigo vivido pela história monumental reside em aproximações indevidas que,
ao humanizarem as estátuas erguidas, podem, às vezes, manchá-las e, no limite, as derrubar.
Assim, o catolicismo de Oswald de Andrade e Mário de Andrade, a relação umbilical dos
principais nomes do modernismo paulista com a oligarquia do Estado e com sua elite
cafeicultora, sinal da limitação classista e conservadora de tal renovação cultural, os contatos
amistosos e combativos que estes autores tiveram entre si e com outros intelectuais consagrados
ou não pelo cânone, a relação no mínimo ambígua com o chamado modernismo que Mário de
Andrade manteve ainda nos anos 1920 e o repúdio ao modernismo de Oswald nos anos 1930,
os elogios que a cúpula do cânone modernista fizera a nomes como os de Graça Aranha e Plínio
Salgado, a inserção do modernismo num processo maior de nacionalismo da cultura intelectual
5
CANDIDO, Antonio. Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade. Vários Escritos. São Paulo: Duas
Cidades, 1977, p. 62.
6
MARTINS, Wilson. O modernismo. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 9.
7
MARTINS, W. História da inteligência brasileira. (1915-1933). Vol. VI, p. 414.
250
brasileira, ainda que para lhe conferir novas perspectivas, estas e muitas outras faces deste
monumentalizado movimento começam a encontrar desdobramentos na historiografia corrente.
A abordagem da cultura intelectual brasileira deste período não procura ser uma
“história do modernismo”. Esta já está contada e consolidada há muito tempo8. Começa com a
exposição de Anita Malfatti em 1917, muito criticada por Monteiro Lobato etc., e termina deus
sabe quando. Por um lado, autores dos anos 1930, como Graciliano Ramos, Jorge Amado e José
Lins do Rego repudiavam a produção modernista dos anos 1920, conforme observa Luís Bueno,
“se olharmos em bloco as manifestações sobre o modernismo levado a público pelos
intelectuais – romancistas, poetas, críticos – dos anos 30, veremos que a recusa dominava”9.
Por outro lado, historiadores da literatura, como Wilson Martins, dizem que o movimento durou
até os anos 195010, quando teria encontrado a sua fase criticista. Preocupada em separar o “joio
do trigo”, a historiografia literária corre o risco de criar barreiras e separações que são antes
frutos de seleções feitas a fim de se estabelecer o que deve ou não ser lembrado. Assim, em
1970, Augusto de Campos propusera uma ReVisão de Kilkerry nos seguintes termos:
Kilkerry não só compreendeu mais conscientemente que outros simbolistas o papel
desempenhado na criação pelo subconsciente – mais tarde supervalorizado pelo
Surrealismo – como soube levar mais longe a liberdade de associação imagética. Por
outro lado, a capacidade de síntese, assim como a consciência das limitações da
sintaxe ordinária, são mais agudas em qualquer outro poeta nosso Simbolismo11.
Desde então, o poeta Pedro Kilkerry tornou-se uma espécie de precursor da modernidade
brasileira “descoberto” pelos concretos. O autor baiano, porém, foi primeiramente publicado
em livro no volume Humilhados e Luminosos, do intelectual católico Jackson de Figueiredo,
que, como sugere o título, traça os perfis de quatro figuras paupérrimas, porém talentosas. Na
qualificação de Tristão de Athayde, seriam “tipos curiosíssimos de nossa boemia e da nossa
miséria literária”: Uriel Tavares, Melo Leite, Pedro Kilkerry e José Magalhães. Os quatro foram
amigos de Jackson de Figueiredo que dizia ser Kilkerry, o “Gregório de Matos daquele período
da vida baiana”. Conforme Tristão: “pelo que de sua obra semeada ao acaso, nos revela o sr.
Jackson de Figueiredo, pode-se concluir que Kilkerry terá sido o mais legítimo representante
brasileiro do simbolismo”. Versos do poeta baiano são, então, citados:
O mar faz medo... que espanta
A redondez sensual
Da praia, como uma anca
De animal12.
Que dizer? Depois de cinquenta anos, o trabalho do intelectual católico conservador foi
8
Um volume exemplar de tal cristalização da história é a obra comemorativa escrita por Marcos Gonçalves. Cf.
GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922. A semana que não terminou. São Paulo: Cia das Letras, 2012.
9
BUENO, Luís. Uma história do romance de 30, p. 46.
10
MARTINS, Wilson. A crítica modernista. In: COUTINHO, A. A literatura no Brasil, p. 499.
11
CAMPOS, Augusto de. ReVisão de Kilkerry. São Paulo: Fundo Estadual de Cultura, 1970, 12.
12
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro 28 mar. 1921, p 1.
251
continuado e o juízo do jovem crítico reforçado e consagrado.
Historiograficamente, a reflexão sobre o “mito modernista” parece abrir perspectivas
mais profícuas no estudo deste período da história intelectual brasileira, não para revelar alguma
verdade ocultada por qualquer mito tradicional, mas para substituí-lo:
O Mito Modernista é, portanto, apenas uma forma de historicizar-se a literatura
brasileira contemporânea. [...] este mito, unidade narrativa recorrente nas mais
diversas versões sobre o “modernismo”, traz consigo as marcas próprias do épico:
nele traça-se a imagem de um momento que funda a história, engendrando uma
comunidade (a nação brasileira), e no qual a emergem as figuras de heróis dotados
de infalibilidade e confrontados por monstruosas contrafações do caos. Frente a isto,
a proposta foi substituir o Mito modernista por outro mito, não épico, mas
quixotesco, entendendo-se o Dom Quixote como herói que, ao invés de fundar a
historicidades, está em conflito com o histórico, em tensão constante com o mundo
da narrativa13.
Deve-se ter em mente, ainda, uma série de obras que procuraram nas últimas décadas produzir
reflexões históricas e teóricas que reconstituíram as experiências de modernidade,
modernização e modernismo, tanto na sociedade em geral, quanto nos domínios estéticos, que
relativizam o cânone que o movimento modernista ocupa na história cultural brasileira14. De
qualquer forma, é preciso dar conta da maneira como estes autodenominados “futuristas” e,
depois, “modernistas” integraram-se ao conjunto maior da cultura intelectual brasileira.
A harpa brasileira
Por mais de uma vez, Tristão de Athayde elencou as figuras de Machado de Assis e
Euclides da Cunha como duas linhas mestras da tradição intelectual brasileira que
representariam “as tendências capitais da nossa inquieta e vária alma contemporânea”. A
13
FARIA, Daniel. O mito modernista. Uberlândia: EdUFU, 2006, p. 22-23.
Mencionamos alguns títulos a esse respeito: FABRIS, Annateresa (org). Modernidade e modernismo no Brasil
(ORG). São Paulo: Mercado das Letras, 1994; FABRIS, Annateresa. Figuras do moderno (possível). In:
SCHWARTZ, Jorge (Org). Da antropofagia a Brasília: Brasil: 1920-1950. São Paulo: Faap: Cosac Y Naify, 2002;
FARIA, Daniel. O mito modernista. Uberlândia: EdUFU, 2006; FERES JÚNIOR, João. Introdução a uma crítica
da modernidade como conceito sociológico, Mediações, Londrina, v 15, n 2, pp. 28-41, jul-dez 2010; GOMES,
Ângela de Castro. Essa gente do Rio...: modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: FGV, 1999; MORAIS,
Eduardo Jardim de. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Edições, 1978;
HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, nem patrão. Vida operária e cultura anarquista no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1984; HERSCHMANN, Micael M; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O imaginário moderno no
Brasil. A invenção do Brasil moderno. Medicina, educação e engenharia nos anos 20 – 30. Rio de Janeiro: Rocco,
1994; MARTINS, Ana Luiza. Páginas revisteiras modernistas: letra e imagem. In: LUSTOSA, Isabel (Org).
Imprensa, história e literatura. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2008; MORAES, Eduardo Jardim de.
Modernismo revisitado. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol 1, n 2, pp. 220-238, 1988; OLIVEN, Ruben
George. Cultura e Modernidade no Brasil, São Paulo em Perspectiva, 15 (2), pp. 3-12, 2001; PASSIANI, Enio.
Na trilha do Jeca. Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil. Bauru/SP: EDUSC, 2003; SALIBA,
Elias Thomé. Raízes do riso. A representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros
tempos do rádio. São Paulo: Cia das Letras, 2002; SOUSA, Jessé. A modernização seletiva. Uma reinterpretação
do dilema brasileiro. Brasília: UNB, 2000; SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras. Literatura, técnica e
modernização. São Paulo: Cia das Letras, 1987; VELLOSO, Mônica Pimenta. Sensibilidades modernas: as revistas
literárias e de humor no Rio da Primeira República. In: LUSTOSA, Isabel (Org). Imprensa, história e literatura.
Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2008; VELLOSO, Mônica. A modernidade carioca na sua vertente
humorística, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol 8, no 16, pp. 269-278, 1995.
14
252
oposição entre ambos era construída da seguinte maneira:
Machado de Assis é sóbrio, frio, humorista, interior, humano. Euclides da Cunha
opulento, caloroso, eloquente, exterior, dramático, racial. Àquele vão de preferência
os de cultura universal, os de caráter frio ou que preferem a razão à imaginação, os
seduzidos pelo estudo da alma humana, os delicados e interiores, os que
compreendem a ordem e a disciplina, os clássicos enfim. A este os ímpetos
incoercíveis, de temperamento exuberante, de imaginação tropical, sensuais e
libertários, atraídos por uma originalidade racional, românticos enfim15.
Não seria uma contraposição irreconciliável, uma vez que “qualquer dos dois isolados não
exprime a alma brasileira no atual momento histórico, pois ela se biparte justamente naqueles
caracteres divergentes, de cuja coexistência deriva talvez a maior originalidade do atual
momento literário”. O país atravessaria três “dramas esquilianos”:
Um, em tímida e arraiada e universal aliás, que é o despertar sombrio dos humildes
e resignados, pela instrução e pela higiene, que chegam sem corretivo, ou melhor, o
complemento econômico e moral necessário. Dos outros dois aspectos, um é o
problema da terra [...] outro o da consciência. A luta pela terra será fisicamente mais
dolorosa, mas a tragédia da consciência, solicitada pela cultura à imitação de moldes
estrangeiros e forçada pela observação, pelo raciocínio e pelo instinto, à criação de
categorias novas, tem por certo, ainda quando interior, uma intensidade moralmente
superior. A ela não pode fugir qualquer espírito aberto à voz das ideias e sensível às
solicitações do meio e do sangue. Eis por que me não parecem inconciliáveis as duas
tendências literárias, expressas por Machado de Assis, o clássico, e por Euclides da
Cunha, o romântico.
O crítico estabelecia as noções de clássico e romântico segundo linhas gerais de princípios,
atitudes, personalidades, não significando com isso escolas históricas de pensamento e nem se
restringindo aos campos da estética e da cultura. Tais conceitos abrangeriam as mais diversas
produções intelectuais, desde manifestos artísticos de vanguarda até os programas políticos, de
forma que o mais comum era a indeterminação de ambos, embora quase ninguém nos anos
1920, nem no Brasil nem no exterior, se autoproclamasse romântico. Denunciava-se, porém,
correntemente, o romantismo dos outros. Um dos casos mais expressivos de tal confusão entre
clássicos e românticos é um artigo do jornal The Times sobre Charles Maurras. Este fizera do
classicismo o caráter maior da identidade francesa que, segundo o raciocínio pós-guerra do
nacionalista radical, opunha-se fundamentalmente ao romantismo alemão. O periódico inglês,
porém, não titubeava em chamar romântico o líder da Ação Francesa, conforme Yaël Dagan:
Sua obsessão pela “ordem” traduz na realidade uma angústia toda ela “romântica”,
o conduzindo a construir uma teoria desprovida de realismo. Para um inglês,
continua o autor, é extremamente difícil de compreender como uma teoria tão fraca
possa ter tanta repercussão na França: “O caso do sr Maurras é realmente muito
interessante; nós nos questionamos como ele feito tanto de habilidade, quanto de
penetração, uma paixão tão profunda pela razão e pela clareza tenha podido chegar
a semelhante destempero”16.
O crítico literário da Nouvelle Revue Française, Albert Thibaudet, também acabara por incluir
15
16
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 out. 1920, p. 2.
DAGAN, Yaël. La nouvelle Revue française, p. 291.
253
Maurras no interior da tradição romântica: “(...) pode-se separar do romantismo aqueles que
construíram no romantismo e contra ele ou mesmo que reconheceram faltar nele, os Stendhal,
os Sainte-Beuve, os Renan, os Flaubert, os Barrès, os Maurras?”17. Já André Gide dizia:
O único classicismo legítimo hoje, o único ao qual podemos e devemos pretender é
aquele na ordem do qual “todos os elementos que fermentam no mundo moderno,
após ter encontrado uma livre expansão, se organizam segundo suas verdadeiras
relações recíprocas”, conclui o crítico do Times. E eu adoto de boa vontade a sua
fórmula final: “O objetivo ao qual nós aspiramos é uma larga integração”18.
Paul Valéry compreendia as noções de clássico e romântico segundo as relações de uma
dinâmica na qual “todo classicismo supõe um romantismo anterior [...] A essência do
classicismo é vir depois. A ordem supõe uma certa desordem que ela vem reduzir”19. Por fim,
não se pode perder de vista a relação fundamental que a modernidade teria com a antiguidade
como situou Charles Baudelaire, conforme apreciação de Walter Benjamin:
Entre todas as relações que a modernidade possa ter, a relação com a antiguidade é
a melhor. Baudelaire encontra esta ideia apresentada em Victor Hugo: “O destino
levou... a transformar a ode antiga e a tragédia antiga... nos poemas e dramas que
dele conhecemos”. A modernidade caracteriza uma época; caracteriza
simultaneamente a força que age nesta época e que faz com que ela seja parecida
com a antiguidade. [...] Segundo essa teoria, o exemplar modelar da antiguidade se
limita à construção; a substância e inspiração da obra é o objeto da modernité. “Ai
daquele que estuda outra coisa na antiguidade de que não a arte pura, a lógica, o
método geral. Se ele se aprofundar demasiado na antiguidade... renuncia... aos
privilégios que a ocasião lhe oferece”20.
No interior da cultura intelectual brasileira, o mais corrente era a associação do
classicismo à Grécia antiga e a motivos helênicos consolidados numa visão não raro
academicista acerca do clássico. Havia, porém, toda uma poética art-nouveau, na apreciação de
João Paulo Paes, que, tanto sob as formas e regras parnasianas consagradas, quanto pela
tradição simbolista da virada do século XIX-XX, percorria temáticas típicas do espírito Belle
Époque: a dança e a vertigem; a embriaguez da vida; o grande Pã; entrelaçamento monístico;
sensações primaveris; magia das flores; lago e barco; cisnes; sonho ao crepúsculo; horas de
entorpecimento estival; a maravilha do corpo; o paraíso terrestre21. Tal enumeração poderia ser
complementada pelo caráter “cinzento” e “indefinido” do fazer poético francês da época:
[...] de um lado, um lirismo de expressão indireta em que o eu se dissimula
voluntariamente sob as imagens – alegorias, emblemas, figuras divinas, máscaras de
heróis – e inventa, se for preciso, fábulas, dramas, personagens nos quais se
encarnam seus poderes e seus desejos. De outro lado, recomeça-se a colher, nas
partes mais humanas do eu, uma inspiração sentimental que absolutamente não
procura ultrapassar-se a si mesma para florescer em beleza pura ou transformar-se
em impulso místico, mas que, pelo contrário, se confessa ingenuamente,
17
Cf. COMPAGNON, Antoine. Os Antimodernos, p. 140.
GIDE Apud. DAGAN, Yaël. La nouvelle Revue française, p. 291.
19
VALERY Apud. DAGAN, Yaël. La nouvelle Revue française, p. 292.
20
BENJAMIN, W. A modernidade. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: 1975, p. 17.
21
A enumeração teria sido proposta pelo crítico alemão Jost Herman. Cf. PAES, José Paulo. Gregos e Baianos.
São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 77.
18
254
pateticamente22.
Não seria, porém, possível ensaiar uma redução sintética acerca da produção poética brasileira
e tais indicações nos servem apenas para destacar alguns caracteres do fazer poético que
ultrapassavam as fronteiras nacionais à época. Conforme Tristão de Athayde:
Na proporção de três a um, prossegue o predomínio da poesia em nossa produção
literária. E daí as conhecidas e inevitáveis conclusões de que o Brasil é uma lira
(geograficamente “uma harpa”, dissera o Fr. Vicente do Salvador), que a literatura
vive aqui chorando em verso e os vates brotam, abundantes e delicados, como flores
no charco. Fora de desejar que tivéssemos o privilégio do mal, para assim nos
distinguirmos por critério certo. Não o temos. Por toda parte onde há literatura – e
não existem Libérias e Andorras que se não gabem de possuí-la -, sempre a poesia
supera a prosa em quantidade23.
Abundavam os poetas que ocupavam livros, jornais, revistas, propagandas publicitárias, seções
de “a pedidos” etc. e, conforme notava o crítico, não era isso nosso “privilégio:
[...] os frios ingleses, que julgamos todos preocupados com questões econômicas,
políticas, geográficas e filosóficas, afinam a lira e concertam o pigarro como
qualquer latino-americano de melenas e olheiras. Basta dizer que, depois das obras
de Shakespeare, o livro que mais edições tem alcançado na Inglaterra é o Rubayat,
de Omar Khayyam. [...] É mal de todo mundo a abundância de poetas. [...] há uma
facilidade de composição poética muito propícia à produtividade farta. O mal está
em confundirem a facilidade de alinhar versos com a verdadeira espontaneidade
poética.
“Alinhavar versos”, esta era uma atividade extremamente recorrente na cultura
intelectual brasileira, sendo difícil nomear um intelectual, talvez mesmo um cidadão letrado ou
não, que não tenha versejado em algum período de sua vida. A história do fazer poético não se
restringe à dimensão única da arte ou da estética. Pelo contrário, fazer poesia foi parte de um
momento da cultura brasileira, seja uma moda, seja algo provido de razões mais “profundas”,
o poético era presente em diversas esferas da vida cotidiana. Na crítica literária, porém, tratavase de se definir as características da produção corrente, assim como estabelecer as orientações
gerais que incluiriam o fazer poético no interior de processos culturais, sociais e políticos mais
abrangentes. Tais “orientações” variavam e, de modo geral, os poetas preferiam navegar em
águas conhecidas, como nota Marcel Raymond, acerca da poesia no fim do século XIX francês:
Para a maioria dos novos poetas, o importante era menos impor-se por alguma
originalidade impressionante ou simplesmente pela expressão forte de um
temperamento do que cultivar em si uma consciência linguística escrupulosamente
francesa introduzir-se em formas já experimentadas do espírito nacional24.
Substitua-se aí a “consciência linguística escrupulosamente francesa” por linguagem
comumente aceita nos meios oficiais da literatura brasileira que chegaríamos a uma comparação
exemplar das duas realidades. Em 1918, Andrade Muricy comentava que entre os jovens poetas,
“nenhum esforço fazem para compreender o seu verdadeiro papel social e artístico; para se pôr
22
RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo. São Paulo: EdUSP, 1997, p. 61.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jan. 1922, p. 1.
24
RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo. São Paulo: EdUSP, 1997, p. 61-62.
23
255
em dia com a evolução da arte nos grandes centros; para tomar conhecimento das modernas
tendências do pensamento”25. No ano anterior, João Ribeiro reclamava:
[...] já se tornou fatigante em retardatários, imitadores provincianos, que aprenderam
as excelências técnicas dos seus mestres, igualaram quase a sua perfeição, e, por
assim dizer, banalizaram, até ao fastio, a sua estética. Daí, o desencanto de antigos
segredos, o excesso de sonetos perfeitos e inúteis, aos milhares, aos milhões26.
O que esperar dos poetas? No caso destas duas últimas apreciações, nota-se a
expectativa moderna comum que procura na poesia, como nas artes em geral, a autocertificação
de se estar “atualizado” com a “evolução dos grandes centros”. Trata-se da interiorização
sensível da visão de mundo que, ao caracterizar o tempo histórico como uma “história do
mundo” em progresso contínuo, preocupa-se com a condição “atrasada” de uma determinada
comunidade, no caso a dos poetas nacionais. Assim, a maior expectativa em relação a um poeta
ou a um artista qualquer seria a sua capacidade de expressar a “Ideia” maior de seu tempo, este
último visto como unificado segundo a lógica do desenvolvimento de um espírito absoluto em
incessante busca de conhecimento de si mesmo. A história da crítica moderna não deixa de ser,
em grande medida, uma história da filosofia da história do progresso, especialmente em seus
motivos recorrentes de inovação, vanguarda, atualização, rompimento etc. Participar
expressivamente de uma “Verdade universal” é um dos objetivos maiores do artista moderno
que teria seu lugar ao lado da religião e da filosofia:
Uma segunda forma da união espiritual entre o objetivo e o subjetivo é a Arte: ela
aparece mais na realidade sensível do que a religião; na sua mais nobre atitude ela
deve representar não, na verdade, o espírito de Deus, mas a forma do deus – e depois,
o divino, o espiritual, em geral. Mas a Verdade não apenas alcança a representação e
o sentimento, como acontece na religião, e a intuição, como ocorre na arte, ela
também atinge o espírito que pensa – leva à terceira forma dessa união: a Filosofia.
Este é seu resultado mais elevado, mais livre e sábio27.
Dessa forma, as relações entre os povos convertidos em nações que expressariam em
alguma medida tal “Verdade”, especialmente segundo manifestações coletivas concretizadas
em Constituições de Estados Nação, seriam mensuráveis de acordo com grau de progresso e
atraso de uns em relação aos outros, em que o marco maior seria a liberdade entendida segundo
o padrão de uma Razão universal dinâmica, qual seja, sua capacidade de autodeterminação. Ao
mesmo tempo, no interior da mesma tradição filosófica, o chamado romantismo alemão,
reivindica-se a legitimidade das especificidades das nações, independentemente de se
constituírem enquanto Estados, cuja riqueza residiria em sua cultura, linguagem e tradição. No
primeiro caso, a manifestação de um “espírito nacional” só adquire pleno sentido quando
reenviado à lógica maior de um “espírito absoluto” que o integraria em seu progresso pela
25
MURICI, Andrade. Apud. BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro, p. 90-91
RIBEIRO Apud. BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro, p. 93.
27
Hegel, GW F. A razão na história: uma introdução à filosofia da história. São Paulo: Centauro: 2001, p. 100.
26
256
liberdade, no segundo caso, o “espírito nacional” tem sua finalidade em si mesmo, sendo seu
valor supremo a felicidade28. Estes dois tópicos, o internacionalismo universalista e o
nacionalismo autêntico, constituem importantes eixos de argumentação artística, filosófica,
histórica e política que sempre retornam nos debates intelectuais modernos.
Assim, as críticas de João Ribeiro e Andrade Murici esperavam dos poetas a saída do
provincianismo, ou seja, o estabelecimento de maior conexão com os “centros progressistas”
que, por sua vez, conforme ficará claro com o tempo, ansiavam pela “verdade” autêntica das
nações “exóticas”. Tal cruzamento de expectativas e questionamentos podem ser notados na
recepção de um dos trabalhos de Ronald de Carvalho. Em 1919, com a publicação de Poemas
e Sonetos, o poeta teve a oportunidade de revelar o sentido daquela poesia acusada de excesso
de referências antigas. O volume foi elogiado por seu amigo29, Tristão de Athayde:
[...] aquele cujo pensamento agudo recebe da sensibilidade a emoção para convertela em ideia que vai ser vazada numa forma nobre. O ciclo da poesia é uma cadeia de
três elos – sensibilidade, pensamento, expressão. A sensibilidade imoderada leva ao
desconcerto do romantismo. O pensamento pode cair no cientismo, e a obsessão da
forma conduz à poesia de mármore. Do uso ao abuso vai a distância de Racine a
Campistron30.
Relembrando a trajetória poética de Carvalho, o crítico revela a maneira como a poesia fazia
parte da vida daqueles jovens: “Começou por poetar como todos: para os jornais, em família,
para as revistas de Escola, para os ilustrados da semana”. Neste processo, assinala-se que “a
sensibilidade do poeta é hoje menos ostensiva e por isso mais profunda. Seu pensamento é mais
sintético e assim se eleva mais alto. Moderando-se, atingiu à harmonia suprema da expressão”.
O livro evocaria paisagens de castelos italianos, jardins perfeitos, num imaginário recorrente de
classicismo ao qual o crítico, porém, recusava o caráter acadêmico:
Toda primeira parte do livro é um hino à natureza: à natureza real e à natureza ideal,
desde as cascatas e as florestas, aos repuxos – leves e esguios como “uma pluma” –
e aos “tanques de opala”. A paisagem não lhe é a expressão de um aspecto da
natureza, senão a própria natureza estilizada. Os jardins de seus versos são antes
sonhados que vividos, como as árvores de Corot. Não que tenha a paisagem
acadêmica de Herédia ou Poussin, nos seus quadros naturais há, pelo contrário, uma
vibração íntima, um grande talento de evocação, uma prodigiosa riqueza descritiva.
Não são jardins impossíveis, nem jardins reais; são jardins perfeitos.
Neste sentido, são citados os seguintes versos:
Nos parques de veludo, onde as árvores bolem,
Sobe um leve rumor de repuxos e ramos,
Há mais astros no azul, nas flores há mais pólen,
Por que não vieste mais? Como nós nos amamos...31
28
SCHLANGER, Judith E. Les métaphores de l’organisme, p. 142.
No volume Companheiros de Viagem, o crítico lembra esta amizade que remontava ao curso da Faculdade de
Direito e dos encontros no Itamarati onde trabalharam juntos em 1917. Cf. LIMA, Alceu Amoroso. Companheiros
de viagem. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, p. 30-31.
30
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1919, p. 11.
31
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1919, p. 11.
29
257
Enquanto Tristão considerava que do livro do poeta se desprenderia um “perfume ático
de graça e elegância”, o crítico Nestor Vítor afirmava que os Poemas e Sonetos eram, desde o
período do romantismo, o livro mais divorciado da alma e da índole brasileiras. Sua forma seria
a dos clássicos portugueses e brasileiros e as ideias, “o fundo”, mostrariam como:
[...] o poeta, à semelhança da pavoneante gralha, e com um pouco mais de sutileza
do que o ingênuo animal do fabulista32, foi revestindo a sua inteligência das louçanias
de uma roupagem de empréstimo que, nem por ser luxuosa e fulgurante, consegue
encobrir a sua estranha origem33.
A tais críticas, Ronald de Carvalho pergunta-se se apenas o folclore e as trovas populares seriam
fontes de literatura nacional e considera que:
Mas qual o poeta brasileiro, desde Bento Teixeira, que se inspirou em Camões, ou
Gregório de Matos, que plagiou Quevedo, ou Cláudio Manoel da Costa, que imitou
os árcades franceses e os italianos, até Gonçalves Dias, que escreveu as Sextilhas de
Frei Antão, Castro Alves, que decalcou Victor Hugo, Álvares de Azevedo, que
refletiu Byron, Raimundo Correia, que traduziu Metastasio e Gautier, Olavo Bilac,
que parafraseou Baudelaire, Alberto de Oliveira, que aproveitou muitos motivos de
Heredia e Leconte, Cruz e Sousa, que tantas afinidades tem com a dúvida pessimista
de Antero e o satanismo melancólico de Rollinat, qual o poeta brasileiro, em suma,
do século XVI aos nossos dias, que estaria isento da pecha lançada pelo senhor sobre
o meu insignificante volume de versos?34
A presença em seus poemas de rebanhos de carneiros, frautas de pastoral, dourados de trigais,
perfis de moinhos, choupos, salgueiros etc. não seria algo inusitado na tradição brasileira. Os
exemplos retomariam Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Casemiro de
Abreu e outros. Assim, um artista nacional não se restringiria a motivos locais: “Ora, sendo a
arte manifestação pessoal da nossa vontade criadora, deve ser livre, deve sobrepor-se às
contingências de tempo e espaço. Nós sentimos como brasileiro, é certo, mas criamos como
homens”. Ele questionava um critério nacionalista estreito e dizia ser um carioca criado em um
meio cosmopolita e que, portanto, não seria estranho haver em sua arte certo “sentimento de
exotismo”, justificando um fazer poético reconhecido como acadêmico e mimético.
O que esperar dos poetas? Ao comentar o inquérito “A Academia julgada pela nova
literatura”35 feito pela Revista Nacional, em 1919, Tristão de Athayde notava como tal tipo de
“investigação literária, aqui iniciada ou pelo menos revelada pelo sr Paulo Barreto, pode ser
realmente expressiva”36. O crítico comenta acerca das respostas:
32
Referência à fábula “A gralha entre os pavões”, que conta a desventura de uma gralha que enfeitou-se com penas
de pavões que descobriram seu disfarce e a expulsaram, também os de sua espécie perceberam a falseta e a
repeliram do grupo. Cf. LA FONTAINE, Jean de. Fábulas. Vol II. Rio de Janeiro: Edigraf, 1967, p. 144-147.
33
Cf. CARVALHO, Ronald de. Carta a Nestor Vítor, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 out. 1919, p 4.
34
CARVALHO, Ronald de. Carta a Nestor Vítor, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 out. 1919, p. 4.
35
Cf. Momento literário, Revista Nacional, Rio de Janeiro, ago. 1919, p. 33-36.
36
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 set. 1919, p. 12. Desde o fim do século XIX,
haveria um imaginário onipresente da “enquête” no periodismo que adentrou pelo século XX. Um exemplo pode
ser encontrado na própria biblioteca de Alceu: VARILLON, Pierre ; RAMBAUD, Henri. Enquête sur le maîtres
de la jeune littérature. Suivi de commentaires et de lettres par Mme de Noilles ; F P Albert ; Maurice Barrès ; Paul
Bourget ; René Boylesve ; André Gide ; Émile Henriot ; Henri Massis ; Charles Maurras. Paris : Bloud & Gay,
1923. Sobre este tipo de produção e sua relação com a história da literatura e do jornal cf. KALIFA, D. La
258
[...] a impressão que me deixaram as respostas foi a – severa ponderação da nossa
mocidade, a sua falta de vibração, de ousadia, de irreverência. [...] Dos 26 inqueridos,
respondeu a metade, salvo leves restrições, favoravelmente à Academia, o que pode
ser uma verdade, mas deslocada em penas tão jovens. Nove se declararam
absolutamente contra e quatro preferiram a ironia, que é ainda a melhor atitude
perante o “salão literário”, às vezes fino, que é a Academia. O sr Humberto de
Campos, ou melhor, o candidato à vaga de Emílio de Menezes: - “Que pensa a
Academia de mim?”; o sr Da Costa e Silva não tem condescendências: - “No
conceito cristão, a imortalidade e o reino do céu vem a ser a mesma coisa; e só os
pobres de espírito têm direito a tão alta bem-aventurança”; o sr Homero Prates diz:
- “Como provável candidato, penso, como toda a gente, que a entrada na Academia
é uma glória, um justo prêmio, um êxito final e honroso a toda a carreira literária”;
o sr Raul de Leoni: “A Academia Brasileira, por seu conceito essencial, deverá ser
o Estado Maior da nossa inteligência, reconhecendo as seleções da nossa cultura,
orientando a vida adolescente do nosso pensamento; o sr Mário Pinto Serva é
categórico: “Nenhum país do mundo ousou imitar à França a Academia de Letras,
porque seria apenas ridículo. A Academia Brasileira de Letras é a cópia servil da
Academia Francesa”; o sr Carneiro Leão: - “A Academia Brasileira é, pois, uma bela
instituição, que poderá vir a ser excelente”; o sr Andrade Muricy: - “A Academia de
Letras é legítima representativa da grande maioria da intelectualidade brasileira”; o
sr Heitor Lima: - “Candidato a uma cadeira na Academia... não estou, pois, no
momento, com necessária liberdade de ânimo para corresponder à gentileza da
‘Revista Nacional’”. E se a “Revista” abrisse agora um inquérito, entre a mocidade,
sobre o chamado cubismo literário?37
Dessa forma, o horizonte acadêmico parecia compor as expectativas de parte dos escritores
brasileiros. Naquele mesmo ano de 1919, o entrevistado Antônio Francisco da Costa e Silva
teve seu livro de poemas, Pandora, analisado pelo crítico que, na ocasião, aproveitara o título
helênico do volume para fazer algumas considerações: “Confesso que, ao se me depararem o
título e a capa do livro e ainda nas primeiras páginas, julguei encontrar um poeta erudito e
artificial, obcecado pelos mitos gregos e pela paisagem de lenda. A Grécia é a nossa mestra e o
nosso mal”38. A imagem grega tinha estatuto de superioridade poética e humana, de forma que
a utilização de símbolos, alegorias, imagens, personagens e temas a ela associados já era um
começo para se vestir o artista com um caráter clássico e, portanto, superior, afinal, “por obra e
graça do imobilismo acadêmico, a cultura da Grécia ‘clássica’ se converteu desde a Renascença
em modelo teórico da cultura dita ‘erudita’”39. Tristão de Athayde caracterizava o sentido e
significado da cultura helênica em algumas produções intelectuais reconhecidas:
Não queremos compreender o exemplo de Atena, cujo templo “é uma lição eterna
de consciência e de sinceridade” e arrancou a Renan aquele grito sublime: “Ô
noblesse! Ô beauté simple et vraie ! déesse dont le culte signifie raison et sagesse”40.
[...] A palavra de Hélade é uma lição de sinceridade. O falso helenismo de imitação,
o adeus de Lamartine à catedral gótica ao defrontar o Parthenon, a própria prece de
Renan levaram à reação excessiva dos “ocidentalistas”, chefiados por esse nobre
Adrien Mithouard, que acaba de morrer. Os partidários do “particularismo estético e
intelectual” chegaram a qualificar de “insensível” a Palas Ateneia, “ídolo primário
civilisation du journal. Paris : Nouveau Monde, 2011.
37
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 set. 1919, p. 12.
38
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 ago. 1919, p. 9.
39
PAES, José Paulo. Gregos e Baianos, p. 9.
40
“Oh Nobreza! Oh beleza simples e verdadeira! deusa cujo culto significa razão e sabedoria”.
259
trazido ao nosso país (França) para abolir a tradição e degradar as inteligências”. [...]
Palas não é insensível. Ela nos dá os tipos supremos da beleza, as ideias imortais de
equilíbrio, gosto e verdade para justamente realizarmos o voto profundo da nossa
personalidade. [...] Palas nos deve guiar, mas “apenas” guiar. [...] A verdadeira
cultura clássica estimula a personalidade, sem nunca a desviar. A única beleza
“simples e verdadeira” é a que encontramos dentro de nós41.
Este era o preâmbulo à análise do livro de poemas de Costa e Silva que não procuraria atingir
algum classicismo acadêmico. Talvez porque o trouxesse naturalmente consigo, conforme os
seguintes versos do autor exaltando a forma e o amor:
Ânsia de perfeição! glória legítima,
Por quem o meu espírito se eleva
Para o infinito, na atração da luz,
Tu és crença de que sou a vítima,
A fé que ilumino a minha treva,
A miragem falaz que me seduz42.
O poeta seria um “um verdadeiro técnico do verso e da inspiração desejada e realizada”. Seu
parnasianismo era motivo para Tristão de Athayde lembrar que tal escola tivera no país “uma
ação de incalculável valor, dando aos poetas, o amor pela expressão”, pois, antes disso:
Poesia, entre nós, era, em parte, sinônimo de inspiração fácil ou de sentimentalismo
trivial e simples. Foram, em parte, o naturalismo em França, tomando em poesia a
feição do parnasianismo, e, mais tarde, o realismo clássico de Baudelaire que
sugeriram aos nossos poetas a verdadeira cultura poética. [...] O pensamento íntimo
e a explicação dessa nova poética nacional [...] podem ser encontrados nestes
conselhos de Baudelaire aos jovens literatos. “A orgia deixou de ser irmã da
inspiração: este parentesco adulterino foi por nós quebrado. A rápida enervação e a
fraqueza de alguns belos temperamentos dão testemunho contra esse preconceito
odioso. A única coisa necessária aos escritores fecundos é uma alimentação
substancial, mas regular. Decididamente a inspiração é irmã do trabalho cotidiano.
[...] Se quisermos viver em uma contemplação perseverante da obra de amanhã, o
trabalho cotidiano servirá à inspiração, como uma escrita legível serve para
esclarecer e como o pensamento calmo e poderoso serve para escrever legivelmente:
car, le temps des mauvaises écritures est passé!”43.
As mesmas considerações voltam à baila por ocasião da apreciação do livro Colunas, do poeta
Luiz Murat. Mais uma vez a imagem grega, mais uma vez a questão do parnasianismo. O crítico
lembra análises de José Veríssimo que, apesar de “pouco simpático ao movimento”, reconhecia
que “da influência do parnasianismo resultavam afinal três aquisições úteis à nossa poesia: uma
forma em suma mais perfeita, uma diminuição do subjetivismo sentimental e um gosto novo de
temas gerais com sacrifício dos motivos pessoais”44.
No caso da obra de Luís Carlos, o crítico considerava que se o livro “fosse aliviado
talvez de metade, por inaceitável ou por medíocre, de seu conteúdo, seria incontestavelmente
um dos melhores do momento e da época” e destaca o soneto final:
41
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 ago. 1919, p. 9.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 ago. 1919, p. 9.
43
“Porque é passado o tempo dos escritos ruins”. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro,
14 ago. 1919, p. 9.
44
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 26. Jul. 1920, p. 2.
42
260
Esta muda tristeza indefinida
Que prematuramente me envelhece,
Dando-me ao ser a contrição da prece,
Dando-me à vida a sombra da outra vida;
Este surdo pesar, que me intimida
E o ânimo quente, aos poucos, me arrefece,
Colhendo lágrimas em larga messe,
Sempre a mesma recôndita ferida.
É a condição da minha essência humana
E sente-a, apenas, quem, no curso incerto
Da existência falaz, nunca se engana;
Quem não vibra à ventura que tem perto;
Quem, no solo de alegre caravana,
Compreende a sós a mágoa do deserto45.
A poética submetida às regras de escola poderia ser exemplificada pelos Poemas Parnasianos,
de Afonso de Carvalho, que, na visão do crítico, seguiriam os preconceitos de escola, inclusive
com referências à produção de Bilac, bastante banalizada àquela altura:
_Ourives das estrofes rutilantes,
Quero que o verso máximo consista
Numa sonora orquestra de brilhantes.
Olavo Bilac, porém, era visto com outros olhos pelo crítico que, na ocasião da publicação do
volume póstumo Tarde, pode fazer um apanhado geral da obra do príncipe dos poetas. Acerca
do primeiro volume de Bilac, Poesias, Tristão de Athayde apontava algumas diferenças sutis
entre o título da obra e os nomes recorrentes de obras do parnasianismo de língua francesa:
Era este o nome singelo sob o qual Bilac reunia em 1888 a sua primeira messe. Mas
não era então Bilac um parnasiano? E com a tradição dos Émaux et Camées,
Cariatides, Stalactites, Poèmes Antiques, Poèmes Barbares, Les Trophées, limitouse a batizar os seus poemas com a naturalidade de um clássico46.
A filiação à escola francesa, porém, era declarada, como explicita a “Profissão de fé” do poeta
escrita em 1866 e que se tornara exemplo sintético do parnasianismo brasileiro,
Torce, aprimora, alteia, lima
A frase, e, enfim
No verso de ouro engasta a rima
como um rubim47
Na visão de Tristão de Athayde:
Influenciado pela poesia de Banville, Gautier ou Leconte de Lisle e levado, pelo seu
instinto de artista, a reagir contra o desconcerto dos nossos românticos e o mau-gosto
do “cientificismo”, Bilac lançou-se na reforma parnasiana, e com ele Machado de
Assis, Teófilo Dias, Luiz Guimarães, Raimundo Correia, Augusto de Lima, Alberto
de Oliveira.
O crítico citava os versos seguintes à “Profissão de fé”:
Caia eu também sem esperança,
Porém tranquilo,
Inda ao cair, vibrando a lança
45
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 26. Jul. 1920, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 25. Jul. 1919, p. 9.
47
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 25. Jul. 1919, p. 9.
46
261
Em prol do Estilo! 48
Conforme apreciação do crítico, “é possível que essa mocidade ardente, que vinha ‘vibrar a
lança em prol do estilo’, se julgasse parnasiana ou impassível o caso é que nunca alcançou nem
uma nem outra coisa”. O parnasianismo brasileiro seria marcado por aspectos como “lirismo
natural”, “solicitação dos sentidos”, “calor extenuante”. Mesmo em seu maior “joalheiro”,
Alberto de Oliveira, haveria tais características, podendo-se concluir que “entre nós nunca
existiu, como escola, o ‘parnasianismo’”. No caso de Bilac, não teria passado de uma intenção,
a tal ponto que a epígrafe de sua “Profissão de fé” foi tomada ao maior nome do romantismo
francês, Victor Hugo, apesar de ter escolhido versos que bem expressavam o conteúdo da sua
“crença”: “o poeta é cinzelador”. Expressão de uma época em que o poeta “dominado, a
princípio, pelo instinto, modelado pelo meio, poetando involuntariamente ao sabor do ambiente,
Bilac começou por ser o veículo de uma inspiração coletiva. Era seu estro a condensação de um
mundo de poesia do instinto brasileiro”. Fez o epitáfio do indianismo:
E, no sopé do monte, era de ver erguido
O vulto de Tapir... Inesperado um ruído
Seco, surdo, soou, e o corpo do Guerreiro
De súbito rolou pelo despenhadeiro...
E o silêncio outra vez caiu.
Para o crítico, Bilac “foi talvez no seu tempo, o mais nacional de nossos poetas. Poeta nacional
é antes o que possui os dons da alma patrícia do que o cantor dos assuntos nacionais” e “foi
nacional pelos dons de sensibilidade, de sensualismo ardente, de lirismo da alma brasileira”.
Olavo Bilac teria conseguido se desdobrar em variadas expressões poéticas, do
sensualismo ao nacionalismo engajado. Porém, a vitória parnasiana ou de seu ideal, no interior
da poética brasileira, teria criado a recorrência e segurança garantidas por um receituário
poético, do “poeta cinzelador”, assim como uma restrição dos horizontes, notadamente visando
à incorporação acadêmica. Tristão lembrava os conselhos de Alain (pseudônimo do ensaísta e
filósofo francês Émile-Auguste Chartier) aos artistas: “Pense sua obra, sim, certamente; mas a
gente pensa apenas aquilo que é; faça, portanto, a sua obra. Sempre que a Ideia precede e regula
a execução, é indústria”49. Tais considerações estariam desenvolvidas na obra Système des
Beaux-Arts, lançada em 1920, e o crítico aproveitava para diferenciar o artista do artesão:
Submeter deliberadamente a própria inspiração a conceitos e preconceitos de escola
é sacrificar a espontaneidade necessária da expressão. Um poeta deve fazer
“poemas”, mas não “poemas parnasianos”, ou “poemas líricos”, ou “poemas
simbólicos”. A famosa “teoria dos gêneros”, de Brunetière50, já deu o que tinha de
48
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 25. Jul. 1919, p. 9.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 26. Jul. 1920, p. 2
50
Referência ao livro A evolução dos gêneros na história da literatura (1890). Apesar de Tristão de Athayde
considerá-la uma perspectiva esgotada, a obra teve sua sexta edição em 1914. Cf. BRUNETIÈRE, Ferdinand.
L’évolution des genres dans l’histoire de la littérature. Leçons professés à L’École Normale Supérieure. Paris :
Hachette, 1914, p. 1-13. .
49
262
dar51.
Assim, na obra Manhãs de Sol, de Orlando Penaforte Caldas, haveria “os mesmos versos de
sempre, em torno dos mesmos temas, com o mesmo séquito de imagens, sem nada que nos
repila, nem nada que nos atraia”52.
“Nada que repila nem atraia” tal divisa poderia servir como norte para a apreciação
das obras poéticas, sendo expressiva de certos espíritos poéticos pouco preocupados em
definirem-se para além da média comum. Não deixava de ser um espírito cético e conformado
com a realidade circundante. A obra do poeta sergipano Hermes Fontes, que no início da década
de 1920 havia publicado três livros, despertaria na crítica juízos que variariam “desde o da
genialidade até o da negação de todo talento poético”53. No começo, ele seria marcado pela
ambiguidade de duas forças contrárias: “um romântico às avessas, cheio do clamor e da
exterioridade do romantismo, mas já possuído pelo intelectualismo parnasiano”. O crítico
destaca sua “Salve Rainha”, versos de juventude que trariam alguma “espontaneidade nativa”:
Ó mãe que amparas os desamparados:
Mãe das minhas virtudes, que me assistes
e me atenuas todos os pecados,
mãe de misericórdia: mãe dos tristes!...
Salve fonte das minhas esperanças!
_ Fonte, de cujas lágrimas me inundo
Nas translúcidas gotas que me lanças!
_ Fonte, de que meu pensamento é oriundo;
que choras... de chorarmos desde crianças
Neste vale de lágrimas – o Mundo54.
Com o tempo, aquele “intelectualismo parnasiano” teria lhe tornado um autor de “frio engenho,
prosaico, artificial e conceituoso”, o qual “confundindo trivialismo com naturalidade e beleza,
quis vencer o primeiro e suprimiu também em geral a naturalidade e beleza”. Assim, nos versos
de Odisseia, a linguagem do coração cederia ao artifício:
A alma, porém, floresce, frutifica
e jamais apodrece! É seu condão
Manter-se sempre nova, sempre rica
do ouro de que é o filão.
Ouro de sofrimento e de bondade,
moeda sem ágio, que o Homem – emissor,
para que Deus em astros a arrecade,
cunhe o inimigo tórculo da dor.
Hermes Fontes parece corporificar um processo descrito diversas vezes pelo crítico:
A nova orientação tomada pela nossa literatura, depois de 1870, teve justamente por
origem a tímida introdução de um certo elemento intelectual em domínios até então
exclusivamente reservados ao elemento afetivo. Depois das orgias, por vezes
magníficas de sentimentalismo e emoção, dos românticos, houve o corpo literário
mister, para se não perder no vago da sensibilidade exausta ou no mero formalismo
51
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 26. Jul. 1920, p. 2
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jan. 1922, p. 1.
53
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jun. 1922, p. 1.
54
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jun. 1922, p. 1.
52
263
artificial, de uma reação vigorosa da inteligência, dando ao verso uma consistência
e uma significação maiores e à prosa um vigor e uma autonomia desconhecidos. [...]
tem essa intervenção cada vez maior da inteligência em seus processos de
composição e em sua própria essência caracterizado a nossa literatura. Foi ela que
nos deu Machado de Assis e Euclides da Cunha [...]. A ela devemos, com poucas
exceções, toda a nossa poesia contemporânea, de voo acanhado, sem o vigor e a
espontaneidade da romântica, mas de um gosto, de uma fantasia, de uma plástica
inteiramente novos, que serão os grandes alicerces poesia vindoura55.
A poesia corrente, em geral, seria de “voo acanhado”, de tal forma que o poeta mais
publicado no alvorecer dos anos 1920 era Castro Alves. Mas, afinal de contas, o que se espera
dos poetas? E quem espera? Em uma perspectiva como a nossa, que procura apontar mudanças
das sensibilidades no interior da cultura intelectual, o espírito cético transparece em versos
como os do jovem carioca Ildefonso Falcão:
Como quem olha às vezes o caminho
penosa e longamente perlustrado,
quedo-me a recompor, devagarinho,
uma por uma, as coisas do passado.
Quanto cardo agressivo! quanto espinho
que me magoou a cada passo dado!
Planura sem uma ave; maninho
torvo deserto o mundo atormentado!
Hoje, entretanto, pelo que padeço,
vejo o mesmo deserto bem mais largo,
os cardos e os espinhos mais pungentes...
Melancólico, paro e reconheço
que, no presente, tudo é mais amargo,
mais ferozes os homens e as serpentes...56
José Eduardo do Prado Kelly, poeta premiado aos quinze anos pela Academia, mais tarde
tornado jurista, advogado e deputado, enveredava-se, no seu livro Tumulto, pelo panteísmo e o
pansexualismo. Segundo o crítico, “neste livro não há Deus. Nem um só momento o mistério
do além ocupa a alma adolescente” 57. Haveria, porém, “todos os deuses, um panteísmo vibrante
enche essas páginas tumultuosas, que assentam em uma visível unidade. A natureza é a única
realidade”. Expressaria inconscientemente “a lei da sucessão eterna das coisas, o ‘retorno
eterno’ de Nietzsche” e cantaria a miséria e o esplendor humanos:
Na minha vida túrbida e sombria,
cheia de fé tranquila e luz ardente,
sinto a neve dos tempos refulgente,
envolvida no ocaso do meu dia.
Mas, tremulando pela tarde fria,
na tristeza em que tomba lentamente
imergindo na sombra, o meu poente,
cheio de orvalho, fúlgido irradia.
Olha o sol, que se foi: e a luz doirada
do meu sonho: e o estendal fecundo e imenso
da minha suave e límpida alvorada.
55
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 ago. 1920, p 2.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 mai. 1920, p. 1.
57
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 set. 1919, p. 10.
56
264
E volto a ter, no ardor, em que trabalho,
a grandeza infinita do que penso
na pequenez eterna do que valho58.
Mas estes são apenas dois exemplos. Acompanhemos o crítico. Há uma espécie de paralelismo
entre o crítico que procura inserir as obras analisadas em um contexto maior, nacional e
internacional, e os autores que, no mais das vezes, apenas publicavam livros de poesia a fim de
expressar algum sentimento ou divulgar algum ideal moral ou científico. Daí a lembrança, ao
analisar a obra poética de Medeiros Albuquerque do “cientificismo poético”. Segundo o crítico:
Essa forma de reação contra o romantismo já levara Teófilo Braga, em 1864, a
escrever os versos, hoje e sempre ilisíveis, da Visão dos Tempos, de forma que em
1881, quando Martins Júnior publicava as suas Visões de Hoje, ensaios de poesia
científica, surgia esta como fruto natural de uma campanha que havia mais de dois
lustres agitava o Recife, pelo verbo de Tobias Barreto e pela pena de Sílvio Romero.
Ninguém ignora o fracasso a que estava destinada esta forma poética, puramente
cerebral, que era por natureza a negação da própria poesia [...].59
Medeiros e Albuquerque teria seguido, em sua juventude, essa “escola modernista”, segundo
qualificação do crítico, “que sucedia ao romantismo antes de ceder o cetro aos parnasianos”. Se
tal vertente científica da poesia ficara restrita aos finais do século XIX, em 1920, o positivista
Montenegro Cordeiro publicava o livro de poemas As catedrais e Tristão de Athayde
aproveitava para traçar algumas reflexões sobre arte e moral:
Todos os que exclusivamente se preocupam com objetivos morais e sociais
desdenham da beleza como fim em si, reconhecendo-lhe função subalterna na vida
do espírito. Foi o que Max Nordau60 exprimiu perfeitamente, ao escrever que: “Fica
estabelecido que a arte não se exerce somente pela arte, possuindo ao contrário um
duplo objetivo – subjetivo e objetivo: o de satisfazer uma necessidade orgânica do
artista e o de exercer uma ação sobre os seus semelhantes, aplicando-se a ele os
princípios pelos quais se julga qualquer outra atividade humana que busque o mesmo
objetivo: os princípios da moralidade e da legalidade”. Neste período está contida a
condenação da arte e a sua submissão às regras mais estreitas e intoleráveis. [...] O
artista é um espelho animado, que reflete as imagens da vida e da imaginação,
recompondo-as em seu espírito, e não pode, por isso, ter preconceitos, nem
religiosos, nem morais, nem filosóficos, nem sociais61.
O crítico frisa a restrição aos preconceitos, uma vez que o “artista superior” teria a capacidade
de “resumir e transformar em matéria de beleza (no sentido mais geral do termo) toda a
variedade de concepções do universo e de visões da vida que conviver em seu espírito”. Tristão
via no ceticismo uma expressão de “espíritos superiores, uma condição de docilidade a esse
reflexo do mundo que deve existir no artista”. Por outro lado, espera-se “nos espíritos menos
fortes, confusão e obscuridade, pelo que neles se torna até desejável, como elemento de lucidez
e ordem mental, a existência de criações de opiniões determinadas”. O que, porém, não
58
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 set. 1919, p. 10.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 abr. 1922, p. 1.
60
Sobre Nordau Cf. BALDWIN, P M, Liberalism, nationalism, and degeneration: the case of Max Nordau, Central
European History, no 13, june 1980, p. 103.
61
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 dez. 1920, p. 2.
59
265
encontrava a aceitação do crítico era utilizar-se o “artista de sua arte para proselitismo, que
altere ou falseie a realidade e os dados dos problemas”62:
Quando esse proselitismo não corrompe a fonte de observação e fantasia, dando luz
indistinta a todas as faces da realidade, pode converter-se em força de ação local e
de expansão universal, como é o caso, por exemplo, do admirável romance russo. Se
a arte exige, em sua elaboração profunda, essa liberdade de espírito, ainda mais
sensível se torna essa exigência quanto aos seus meios de expressão. E dificilmente
será possível conservar a esses meios, ao estilo, enfim, toda a plasticidade necessária,
quando o submetermos às torturas da arte filosófica, da arte religiosa, da arte moral
ou da arte social.
Montenegro Cordeiro fala da época que escreveu o livro em Paris, quando da Grande Guerra:
Para nós, positivistas, que temos no cemitério de Père-Lachaise o sacrossanto
relicário nos túmulos de Augusto Comte e de sublime inspiradora, era terrível
ameaça de ver Paris sob o guante e sob a bandeira do alucinado inimigo de tantos
anos, causadora de excepcionais sofrimentos. [...] Foi depois de vencido o pânico
inicial [...] que me apercebi do labirinto de erros em que me perdera no ardor de
irrefletidas paixões. Destruindo então o que havia feito até aí, tomei para tema de
minhas íntimas elucubrações não mais a guerra, momentânea e maldita geradora da
destruição e da morte, mas sim o Amor, o Amor eterno e invencível [...]. Minha
elaboração poética era, entretanto, um mero exercício particular, uma simples
diversão as horas de ócio e de solicitude63.
“Antes tivesse continuado a ser” é a frase que o crítico contrapõe à última sentença do relato.
O poeta faz o elogio ao passado, recriminando os novos blasfemadores:
Ímpios, entrai e vede. A luz do Sol, que passa
Tamizada através da esplêndida rosaça,
Iriando-se, projeta auréolas ambulantes
Sobre humílimos fiéis de pálidos semblantes
Levando aos corações em críticos declínios
Remorsos, contradições, balsâmicos alívios!
Por que então blasfemar, ateus! Por que aluir
A crença do Passado antes que a do Porvir
Empreste âncora nova aos corações aflitos
Naufrágios lhes poupando em íntimos conflitos?!
Julgando intolerável essa linguagem de um “acanhado sectarismo” que “de tudo pretende
legislar”, o crítico considerava que a obra “como ideia nada contêm de original nas suas
preocupações moralizadoras e como forma são o que se acaba de ver: prosaicos, duros,
incolores, enfáticos”64. Além disso, reforçava a nota acerca das relações entre moral e estética:
“Não se pode negar que em ‘As Catedrais’ há uma bela, uma pura intenção. Mas já
Schopenhauer dizia e todos sabem que em arte a intenção não vale coisa alguma”.
Se o moralismo não era garantia de bons resultados, tampouco o abrigo no sensualismo
mais ou menos imoral asseguraria o reconhecimento do crítico. O livro Fada Nua, do paulista
Gofredo da Silva Teles, estreara com sucesso em São Paulo e no Rio de Janeiro, segundo a
apreciação de Helios (Menotti Del Picchia): “No Rio, o novo livro de Gofredo causou ruidoso
62
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 dez. 1920, p. 2.
MONTENEGRO Apud. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 dez. 1920, p. 2.
64
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 dez. 1920, p. 2.
63
266
êxito, quando lido à elite cerebral carioca. Aqui, a sua leitura despertou, uma roda íntima, a
mais auspiciosa das impressões”65. Em outra ocasião, o poeta e crítico considerava que “o
erotismo helênico dos seus versos lapidares ressurgiu nos longes de mim mesmo, essa bizarra
fada, de olhos estranhos, que anda a exaltar minhas cismas de homem e de artista...”66. O livro,
porém, foi considerado imoral e Helios voltara ao tema:
Gofredo, para o bolchevismo de muitos, tem um grande defeito: é rico. Há ainda o
velho preconceito de que a riqueza ilide o talento, e só é genial e forte o que é
esmolambado e miserável. [...] “A fada nua” é, sem favor nem amabilidades, um dos
melhores livros que tem produzido a poesia lírica de S Paulo. Ressente-se de uma
audaciosa liberdade lasciva, que não é pecado fascenino do vício condenável, mas a
expressão segura e dionisíaca da própria vida, afirmando-se na sua procacidade e no
seu amor. O artista é sincero e às vezes deixa a nudez sadia da natureza, que não
criou véus nem rendas, onde o pudico hipócrita poria uma cauta e policial folha de
parreira67.
Madame Chrysanthème também saíra em defesa do poeta:
Eu não sou poeta e muitas vezes não compreendo bem o que esses habitantes do
Parnaso gritam nas suas rimas e nas suas figuras, mas, folheando a “Fada Nua”, toda
a simplicidade, toda a singeleza desses lindos versos me saltaram aos olhos e se
gravaram no meu coração68.
Tristão de Athayde, não reconhecia um valor que fosse além de certa inspiração do poeta:
No lirismo íntimo do sr Gofredo da Silva Telles, dirão os partidários da arte
moralista, há uma intenção pior, que é a do impudor. Não penso assim. Se impudor
existe nos versos d’“A fada nua”, onde há, pelo menos, um tremor incoercível de
sensualismo, provém ele do que há de mais puro em arte, que é a confissão sincera
de um alma. “A fada nua” é a história de um amor físico, mas não se lhe nota a
intenção intolerável do interesse picaresco. [...] Mas, no caso, intimidade não indica
exibição e há no sensualismo da poesia brasileira, muito da sua feição
característica69.
A Fada Nua, que parecia atender às expectativas de Menotti del Picchia, era tida por Tristão de
Athayde como obra superficial e muito trivial, cujo “maior encanto, porém, talvez provenha da
natural simplicidade da expressão, tão característica da nossa moderna poesia”. A “moderna
poesia”, em 1920, podia ser exemplificada em tais versos:
Paramos num talude. Em baixo, à nossa frente
Via-se em pleno vale, a cidade. E a luz quente.
Cobrindo o morro azul dispõe as grotas sob cumes.
Acordava no bosque as asas e os perfumes.
A seiva se exaltava entre os tojos marinhos.
A água enchia de som as frinchas do barranco.
E havia um pó dourado em volta dos caminhos.
E havia a luz do céu sobre um vestido branco70.
Se havia uma profusão de “alinhadores de versos”, a expectativa do crítico é definir os
65
HELIOS. Crônica Social, Uma leitura de versos, Correio Paulistano, São Paulo, 12 jan. 1920, p. 2.
Helios, Crônica Social, A fada nua, Correio Paulistano, São Paulo, 13 jan. 1920, p. 3.
67
Helios, Crônica Social, A fada nua, Correio Paulistano, São Paulo, 28 out. 1920, p. 4.
68
CRYSANTHÈME, “A fada nua” de Gofredo, Correio Paulistano, São Paulo, 31 out 1920, p. 1.
69
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 dez. 1920, p. 2.
70
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 dez. 1920, p. 2.
66
267
parâmetros da poesia, identificar o seu sentido maior. O que ele espera dos poetas e da poesia:
Sem remontar além do mundo moderno, podemos atestar como tem mudado o
critério poético. Veio da Itália a nova palpitação de beleza, que a alma ardente da
Provença fecundou. Permaneceu nessa incomparável ebulição da adolescência,
durante esse século XVI [...] Foi então disciplina e de beleza e nobre harmonia de
sentimentos, até que o abuso da “regra” provocou o grito de libertação provindo da
Alemanha. Passou o critério de dogmático a libertário e em nome do puro sentimento
se lançou a poesia no decorrer do romantismo. Mas a facilidade cansa mais do que a
escravidão, porque esta embota o espírito enquanto aquela o sacia, e os poetas foram
pedir à verdade e à beleza pontos de referência, nesse éter sem limite em que se
banhavam desde o início do século. Foi o duplo caráter da poesia parnasiana e
neoclássica, dos meados do século. Veria o fim deste outro critério, com a reação do
espírito contra o prosaísmo em que se tinha resolvido a objetividade excessiva. E em
nome da pura fantasia julgou o simbolismo os seus poetas. Já não há hoje o
simbolismo como escola. Que há, então? Toda verdadeira poesia é a um tempo
clássica, romântica, parnasiana e simbolista, pois toda ela deve possuir o amor da
beleza, o calor do sentimento, a perfeição da forma e a repercussão humana das
imagens. Não impede que novas escolas se fundem, pois a miragem é o estímulo de
todo esforço criador. A miragem de hoje é a um tempo remontar às fontes empíricas
da personalidade e realizar formas imprevistas de expressão. Daí o amplo critério
que mencionei – naturalidade e originalidade71.
Alguns jovens, porém, não pareciam tão inclinados a introduzir em seus trabalhos tais
pretensões, afinal, poetas de vinte anos viveriam a cantar suas tristezas e lamúrias:
Poetas da alegria deviam ser todos, se como Fausto houvessem saboreado a
mocidade depois da experiência e do saber. Como homens, porém, são tristes por
excesso antes de o serem por deficiência. Nessa idade, em tese, só são alegres os
jogadores de futebol e os caixeiros de venda, porque para esses a vida é uma
realidade, em suas formas consoladoras dos sentidos. Somos poetas, aos vinte anos,
com a mesma antecipação com que aos quinze pretendemos ser homens. Contar
tristezas é uma forma real de independência vã, como é para os meninos a vaidade
de saírem sozinhos.
Em Mocidade, de Afonso Schmidt, o crítico distingue temáticas e aspectos de um caráter
moderno caracterizado pela “desarticulação do verso, pelo domínio do impressionismo, pelo
exílio das formas gongóricas ou eloquentes, pela intimidade dos sentimentos sem preconceito
de escola, pela simplicidade da forma, pela expressão direta das emoções e das impressões
variadas na flexibilidade do verso”. Do “cinzelador” passa-se ao pintor:
O verso não é mais do que uma pincelada,
Um sulco, um traço, um golpe, um acorde, um clamor;
Penetra pelo olhar uma alma enamorada.
Desperta o sonho, a graça, o riso, a mágoa, a dor;
E o que nos deixa o forasteiro? Quase nada:
Nos olhos um clarão, nos lábios um temor...72
A lembrança da cidade de São Paulo sobrepõe-se à cidade real do presente, a idealização
bucólica de seu passado, da “velha pauliceia”, é expressada:
No Piques, vagando à toa
é raro quem não pressinta
Uma toada indistinta
71
72
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jan. 1922, p. 1.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jan. 1922, p. 1.
268
que sob as pedras ressoa.
Cantas moedas, tilintas,
Na cadência de uma loa
A fonte exilada e boa
Há muitos anos extinta.
sua alma que ali nevoa,
De céus e de ares faminta
Repete a cada pessoa,
Uma novela sucinta:
Noturno, capas, garoa,
1830...73
Afonso Schmidt seria, segundo o crítico, “moderno em toda expressão poética”, guardando
porém a “mais soberba aristocracia de inspiração”, que transparecia em sua relação com o tema
que se impusera “com mais autoridade aos literatos do século XIX”74: a multidão.
O contágio da gleba os artistas perturba.
Sufoca-nos a massa, esmaga-nos a turba
A beleza morreu na igualdade das gentes75.
Tal olhar, no autor que assinara as Palavras de um comunista brasileiro à Liga Nacionalista e
à mocidade das Escolas76, não deixa de surpreender e a explicação para tal incongruência
reside, talvez, no fato de o volume de poesias reunir produções de dez anos. Mesmo a imagem
de seu idealismo, porém, poderia assumir um sentido quixotesco: Um herói verdadeiro em
cavalo de pau. Ao fim, sobrevinham as lamúrias do poeta de vinte anos:
Mundo vil, que eu sem cólera, desprezo
Altivo, nos meus áureos desenganos!
Altivo por ter muito e ser um Creso
Altivo por contar vinte e dois anos!
Príncipe, e louco, habito em minarete
Que abre no azul arquiteturas mouras
E arrasta os pés em cálido tapete
Um tapete real de tranças louras!
... Deixe-me só neste esplendor, embora
Digam que é sonho e que ele não existe!
Deixai-me neste orgulho de quem chora,
Nesta ventura imensa de ser triste!77
O livro Mocidade teve boa recepção da crítica em diferentes perspectivas:
É o caso de um crítico tradicional como João Ribeiro, um estreante como Alceu
Amoroso Lima, um católico como Jackson de Figueiredo, socialistas como Maria
Lacerda Moura e Oduvaldo Viana, simbolistas e neo-simbolistas como Nestor Vítor
e Tasso da Silveira e um “futurista” como Mário de Andrade, que afirma ter
acompanhado o nascimento do livro, admirado seus poemas desde antes da
publicação78.
73
SCHDMIT, Afonso. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jan. 1922, p. 1.
Cf. BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: 1975, p. 46.
75
SCHDMIT, Afonso. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jan. 1922, p. 1.
76
Cf. SCHMIDT, Afonso. Palavras de um comunista brasileiro à Liga Nacionalista e à mocidade das Escolas.
Rio de Janeiro: s/ed, 1920.
77
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jan. 1922, p. 1.
78
PAULILO, Maria Célia de Almeida. Tradição e modernidade: Afonso Schmidt e a literatura paulista (19061928). São Paulo: Annablume, 2002, p. 118.
74
269
O nome de Afonso Schmidt foi arrolado por Oswald de Andrade em seu discurso na Sorbonne
de 1923, o próprio poeta, porém, fez questão de se desvencilhar do modernismo, explicitando
sua orientação libertária, presente na obra Brutalidade comentada no tópico anterior. Afonso
Schmidt formara-se como intelectual nos meios anarquistas em torno do jornal A Plebe, de
Edgar Leuenroth, mais tarde, fez parte do grupo “Colmeia”, de Monteiro Lobato, e, por fim,
integrara o grupo Zumbi, cujo panfleto “Palavras de um comunista...” citado acima foi uma das
primeiras manifestações que divulgara no Brasil os ideais do grupo francês Clarté79. Mero
“experimentalismo formal” marcariam as querelas sobre “passadismo e modernismo”:
Por temperamento, não compreendo a arte pela arte, jogo de paciência para
mandarins; palavras cruzadas. Suponho sempre que quem fala ou escreve tem um
pensamento a comunicar, uma emoção a transmitir. A maneira como se desobriga da
questão é questão de engenho; tanto melhor, se dá mostras de habilidoso e o faz por
meio inesperado e atraente80.
Schmidt critica nos modernistas o intuito em se “reformar uma arte nas suas exterioridades,
deixando intacto todo o sistema endurecido pela arteriosclerose”. Defendia uma literatura que
tivesse como finalidade “comunicar-se com um público cuja percepção fora embotada pela
existência sofrida”81. As distâncias entre a poesia lírica e as temáticas sociais e políticas, no
interior da cultura intelectual brasileira, podiam, assim, ser menores do que se imagina. Outro
jovem poeta, Ricardo Gonçalves, morto precocemente aos vinte e oito anos, transitava entre o
lirismo bucólico regionalista e o posicionamento politicamente engajado. Não por acaso, o
panfleto “Palavras de um comunista...” trazia o seguinte poema de Gonçalves no frontispício:
Tremei, vampiros nojentos
Tremei, nos vossos doirados,
Palacetes opulentos!
O sangue dos desgraçados
Sugai, bebei gota a gota!
Não tarda que chegue o instante
Em que a turba se levante
Sedenta, faminta e rota.
E quando comece a luta
Quando explodir a tormenta,
A sociedade corrupta,
Execrável e violenta,
Iníqua, vil, criminosa,
Há de cair aos pedaços,
Há de voar em estilhaços,
Numa ruína espantosa!82
Em volume, porém, o que ele publicava em 1921 eram versos regionalistas reunidos na obra
Ipês. O poeta traria, na visão do crítico, a “originalidade na extrema simplicidade”:
Filia-se a essa corrente de poesia sertaneja, que nas imediações de 1860 aqui derivou
79
SCHMIDT, Afonso. Palavras de um comunista brasileiro à Liga Nacionalista e à mocidade das Escolas, p. 6.
SCHMIDT, Afonso. Apud. PAULILO, M C de A. Tradição e modernidade, p. 118.
81
Cf. TOLENTINO, Thiago Lenine T. Monumentos de Tinta e Papel, p. 196-197.
82
Cf. SCHMIDT, A. Palavras de um comunista brasileiro à Liga Nacionalista e à mocidade das Escolas, p. 1.
80
270
para o interesse regional a inspiração que andava dispersa e sem rumo. De Juvenal
Galeno – ainda vivo hoje em dia, em sua casinha de Fortaleza, como verdadeira
imagem do passado e patriarca vivo do regionalismo, pois foi em 1859 que
Gonçalves Dias, chegando ao Norte, o animou a cultivar a lira bucólica e popular
que cantava o sertão e as praias do seu Ceará -, de Juvenal Galeno, digo, de Zaluar,
de Bittencourt Sampaio, de Joaquim Serra, de Muniz Barreto e alguns outros, partiu
essa corrente de poesia local do sertão83.
O poeta seria superior ao “sertanejismo poético”, com “sentimento mais íntimo da terra e
manejo mais perfeito no verso” expressos em sua “Cisma de caboclo”:
Longe, uma tropa trota pela estrada
E a vibração das matas, impregnada
De perfumes sutis,
Traz dos grotões que a sombra, lenta invade
O soturno queixume de saudade
Das pombas juritis84
A estreia do poeta mineiro Wellington Brandão vinha sob o signo do Deslumbramento de um
triste. A poesia de Brandão, para quem era a dor é a matriz de que decorre tudo, traria a
aspiração amorosa da perfeição extática cantada em soneto:
Êxtase é a dor profunda da Ventura
e a ventura mirífica da Dor,
numa ascensão para a suprema altura
em que da Perfeição luz o esplendor...
Êxtase é a vida no que tem de pura,
a integral compreensão da Luz, da Cor:
por toda a estrada negra da amargura,
todo o luar de sol que é o nosso amor!
Aceno espiritual à Perfeição...
anseio dolorido dos que vão
seguindo o sonho, num silêncio triste...
Êxtase: elo de luz encadeando
as almas tristes dos que estão sonhando
ao sonho eterno do que não existe...85
Em 1921, a revista paulista A Novela Semanal anunciava a coleção “A Nova Plêiade” a ser
publicada pela editora Olegário Ribeiro, a mesma do periódico. Tal projeto se faria pela:
Coleção de pequenos livros de versos a se publicar sob a direção de Amadeu Amaral
(da Academia Brasileira) e destinada a vulgarizar as obras dos poetas novos de
grande merecimento, ainda pouco conhecido. Iniciaremos coleção com o primoroso
livro “Manhã” pode poeta paulista Graco Silveira86.
Tristão de Athayde elogiara a iniciativa, assim como a escolha do primeiro nome a ser
publicado. Apesar de ser o poeta, por vezes, “retórico” e “quase sempre acadêmico”, teria ele a
“facilidade de versejar e elegância de estilo” expressos em trechos como os seguintes:
Segue serenamente os ríspidos caminhos
Da existência. E através das torpezas mundanas
Vai ferindo os teus pés, entre seixos e espinhos.
Mágoas... Ingratidões... finge que hás de esquecê-las!
83
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jan. 1922, p. 1.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jan. 1922, p. 1.
85
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jun. 1920, p. 2.
86
Cf. A Novela Semanal, Ano I, no I, São Paulo, 2 mai. 1921, p. 1.
84
271
Para o claro sorriso amargo das estrelas...87
Assim se expressava um jovem poeta promissor de São Paulo em 1921. Era o que o
grupo da Novela Semanal esperava. O que esperar dos poetas? A expectativa do lirismo poético
teria, em meados do XIX, diminuído em metrópoles colonialistas como França e Inglaterra.
Nota-se na modernização e modernidade das artes e sensibilidades que:
[...] as condições de acolhimento de poesias líricas se tenham tornado menos
propícias [...] o lírico não é considerado mais como o poeta em si. Não é mais o
“vate”, como ainda o era Lamartine; agora se fez um gênero. (Verlaine faz com que
esta especialização se torne tangível; Rimbaud já é um esotérico que, ex officio,
mantém o público afastado de sua própria obra). Um segundo fato: depois de
Baudelaire a poesia lírica não registrou nenhum êxito popular. (A lírica de Hugo teve,
todavia, ao aparecer, uma grande repercussão. Na Alemanha o “Buch der Lieder”88
marca o limite). Disto se pode deduzir um terceiro elemento: o público tornou-se
mais frio, inclusive quanto àquela poesia lírica do passado, que lhe era conhecida. O
espaço de tempo em questão pode datar-se, mais ou menos, da 2a metade do século
XIX. [...] Visto que as condições de recepção para a poesia lírica tornaram-se mais
pobres, pode-se deduzir que a poesia lírica, só de forma excepcional, conserva o
contato com os leitores. E isso poder-se-ia atribuir ao fato de que a experiência dos
leitores se tenha transformado em sua estrutura89.
É notável que um dos principais meio de veiculação literária no século XIX seria o responsável
principal por esse embotamento da sensibilidade do leitor moderno, o jornal:
Os princípios da informação jornalística (novidade, brevidade, inteligibilidade e
sobretudo ausência de qualquer conexão entre notícias isoladas) contribuem para
este efeito, tanto como a paginação e o estilo linguístico [...]. A rígida exclusão da
informação, no que diz respeito ao campo da experiência, depende, deste modo, do
fato de que a informação não entra na “tradição”. Os jornais aparecem em grande
tiragem. Já nenhum leitor tem facilmente “algo de si” para contar ao próximo. Existe
uma espécie de competência histórica entre as diversas formas de comunicação. Na
substituição do antigo relato pela informação e da informação pela “sensação”,
reflete-se a atrofia progressiva da experiência. Todas estas formas se separam, por
sua vez, da narração, que é uma das formas mais antigas de comunicação. A narração
não visa, como a informação, comunicar o puro em si do acontecido, mas o incorpora
na vida do relator, para proporcioná-lo, como experiência, aos que escutam. Assim,
no narrado fica a marca do narrador, como a impressão da mão do oleiro sobre o pote
de argila90.
Como constata Pierre Bourdieu, apesar de recorrente na produção literária, os livros de poesia
vendiam cada vez menos no interior do mercado dos gêneros artísticos:
[...] vê-se por inúmeros indícios que, sob o Segundo Império, o topo da hierarquia é
ocupado pela poesia, que, consagrada como a arte por excelência pela tradição
romântica, conserva todo o seu prestigio: a despeito das oscilações – com o declínio
do romantismo [...] ela continua a atrair um grande número de escritores, embora
seja quase totalmente desprovida de mercado - a maior parte das obras conta apenas
com algumas centenas de leitores. Ao contrário, o teatro, ao qual se impõe
87
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jan. 1922, p. 1.
“Livro de Canções”, trata-se de poemas recolhidos pelo poeta alemão Heinrich Heine, em 1827, e que teve
inaudita repercussão. O teórico alemão Theodor Adorno segue a linha das análises de W. Benjamin acerca da
decadência do lirismo na modernidade: “O Buch der Lieder exerceu influência indescritível, que se estendeu muito
além do âmbito literário. Logo em seguida, a lírica foi enfim rebaixada à linguagem do jornal e do comércio”.
ADORNO, Theodor. A ferida Heine, Notas de literatura. Vol 1. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 127.
89
BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos, p. 38.
90
BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos, p. 40.
88
272
diretamente a sanção imediata do público burguês, de seus valores e de seus
conformismos, proporciona, além do dinheiro, a consagração institucionalizada das
Academias e das honras oficiais. Quanto ao romance [...]. Adquire um peso
considerável no campo literário quando, com Zola, obtém sucessos de venda
excepcionais (portanto, ganhos muito importantes que lhe permitem libertar-se da
imprensa e do folhetim), atingindo um público muito mais vasto que qualquer outro
modo de expressão, mas sem renunciar as exigências especificas no que se refere a
forma (chegara mesmo a obter, com o romance mundano, uma consagração burguesa
até então reservada ao teatro)91.
Se a poesia tinha, em terras brasileiras, a predileção dos escritores, a expectativa lírica
e amorosa, por seu turno, era explicitada pela crítica. Assim, acerca dos poetas paulistas Menotti
del Picchia, Guilherme de Almeida e do mineiro Nilo Bruzzi, reconhecia Tristão de Athayde:
Três poetas do amor! Três poetas bem nossos portanto; já que o amor é o motivo, por
excelência, de toda a nossa poesia. De toda poesia, diria melhor. [...] Pode-se mesmo
dizer que a poesia é a expressão, mais que literária, natural do amor, já que este é o
criador máximo do maravilhoso e aquela a forma espontânea de tradução desse
maravilhoso pela palavra. Só ela consegue exprimir o impreciso, o infinito, o
intuitivo, desse divino sentimento, que espiritualiza os homens e justifica a vida. Só
ela pode traduzir a harmonia e o colorido, o gosto da morte e a intensidade da vida,
o delírio e a lucidez, a força inabalável e a sublime fraqueza, que se contêm na
paixão. Só a poesia, forma literária do sentimento, pode interpretar o sentimento por
excelência, que é o amor. Não compreendo, portanto, aqueles que acham vulgar a
poesia amorosa. Compreendo os que não gostam de poesia, embora me pareçam
espíritos, talvez profundos, mas inacabados. [...] A poesia do amor não é vulgar;
vulgares são, muitas vezes, os que a praticam. [...] E daí essa chuva de versos de
amor que todo poeta se julga na obrigação de publicar e todo namorado de endereçar
à sua vítima92.
Nilo Bruzzi estreava com Luar de Verona que seria obra espontânea e despreocupada de técnica,
com versos que permitiam ao poeta “espelhar as primeiras ondulações de sua alma adolescente,
embora não lhe evite o trivialismo de certas expressões e mesmo a frouxidão geral da poesia”:
Rola o céu a lua, tristemente,
E eu, triste sonhador inveterado
Procuro-a, num desejo inconsciente,
Para aquecer meu coração gelado...93
Guilherme de Almeida procuraria, por seu turno, penetrar no coração humano em seu Livro de
horas de Soror Dolorosa que recebeu, aliás, representação do escultor Victor Brecheret em
192194. O amor de Soror teria a morte no horizonte por ter nascido do pecado, aspirando ao
aniquilamento aquilo que começou pela “Tentação”:
Por uma noite dorida
eu levantei-me toda
envolta em cinza e spleen,
e fui a passo lento
plantar meu pensamento
num canto do jardim.
91
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Cia das Letras, 1996, p. 134.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 fev. 1921, p. 2.
93
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 fev. 1921, p. 2.
94
A obra está exposta no museu Casa de Guilherme de Almeida, na cidade de São Paulo.
http://www.casaguilhermedealmeida.org.br/museu/acervo-museologico.php
92
273
Então, na trama escura
daquela noite impura,
um desejo infernal
luziu, e num instante,
riscou, como um diamante,
minha alma de cristal95.
Após o amor-tentação, vem a culpa e o destruição:
Como um trapo de vida aos pés da cruz sucumbo.
Soldou-me o amor de fogo as pálpebras de chumbo,
para tudo de belo e bom que o mundo encerra
para toda alegria esparsa na terra
A morte, expressa nessas “pálpebras de chumbo”, não calaria, porém, a palavra do amor:
Amo para viver. O amor é a vida. Um dia
“eu morrerei de dor,
porque deixei de amar”... Assim dizia
a que morreu de amor
O crítico traça as seguintes considerações acerca de Guilherme de Almeida:
É a fatalidade e a grandeza do amor que gravara, no seu poema [...]. Nele alcançou
a sua poesia uma intensidade de vibração muito superior à dos seus anteriores
poemas. Procurou concentrar, de mais em mais, o sentimento poético. O pensamento
é mais elevado e agudo; a expressão lacônica; a comparação original e exata.
Desarticulou o seu verso. Despojou, em geral, a rima de sua majestade parnasiana.
O próprio ritmo se adapta à severidade do estilo. É interior, inacabado, sugestivo,
sombrio. Não há luz, mas uma penumbra velada; não há clamores, mas uma voz em
surdina. Toda dolorosa majestade do amor se reflete nessas páginas sinceras, ainda
que impessoais. Não têm retumbância, mas intensidade. E toda a inquietação da
poesia moderna, que a torna ofegante e fragmentária96.
Menotti del Picchia abria sua obra Máscaras com a seguinte inscrição: “Julga-te feliz
se, com ideias velhas, fizeste frases novas”. Talvez por adotar um tema tradicional, o amor de
Pierrot e Arlequim pela Colombina, o poeta escolhera tal epígrafe. Segundo o crítico:
Não há dúvida de que as idéias não são propriamente novas já que a encarnação de
Pierrot como puro romântico data, por assim dizer, da transplantação desse tipo de
comédia italiana e da pantomina francesa para a nossa literatura, e já que a
consideração do amor como misto de desejo e sonho é de todos os tempos.
O “poemeto” criado em torno das três personagens traria uma concepção amorosa em cada uma
delas. O Arlequim figuraria o amor carnal, sensual e vibrante:
O beijo da mulher: Ó sinfonia louca
da sonata que o amor improvisa na boca...
No contato do lábio, onde a emoção acorda
sentir outro vibrar, como vibra uma corda...
À vaga orquestração da frase que sussurra...
vez um corpo fremir tal qual uma bandurra...
Desfalecer ouvindo a música que canta
no gemido de amor que morre na garganta...97
Pierrot, por sua vez, lhe responde com a imagem de um amor ideal, sonhado e nunca
95
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 fev. 1921, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 fev. 1921, p. 2.
97
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 fev. 1921, p. 2.
96
274
experimentado, do qual o segredo estaria “na intenção da carícia e nunca na carícia”. Segundo
Tristão de Athayde, seria ele um “cético” ao pressentir o “amargor da saciedade”:
E é tão doce sonhar!... A vida nesta terra
vale apenas, talvez, pelo sonho que encerra.
Ver vaga e espiritual, das cismas nos refolhos,
toda uma vida arder na tristeza de uns olhos,
não tocar a que se ama e deixar intangida
aquela que resume a nossa própria vida,
eis o amor, Arlequim, misticismo tristonho,
que transforma a mulher na incerteza de um sonho...
Já a Colombina, conforme observação do crítico, “é mulher e portanto ama o amor. Amando-o,
sente-o sinceramente em todas as suas formas e desconhece a consciência da infidelidade. O
egoísmo do homem não pode compreendê-la”:
Não! Não me compreendeis... Ouvi, atento, pois,
meu amor se compõe do amor de todos dois.
Hesitante, entre vós, o coração balanço;
O teu beijo é tão doce... e o teu sonho tão manso...
Pudesse eu repartir-me e encontrar minha calma,
dando a Arlequim meu corpo... e a Pierrot minh’alma!
Quando tenho Arlequim, quero Pierrot tristinho,
pois, um dá-me prazer e outro dá-me o sonho!
Nessa duplicidade o amor todo se encerra:
Um me fala do céu... outro fala da terra!
Eu amo, porque amar é variar e em verdade
toda a razão do amor está na variedade...
Penso que morreria o desejo da gente
se Arlequim e Pierro fossem um ser somente,
porque a história do amor pode escrever-se assim:
Um sonho de Pierrot... E um beijo de Arlequim.
Tristão de Athayde reconhecia nesta “comédia encantadora” a expressão da “nossa vida
interior” dividida entre Arlequins e Pierrots, de modo que “a luta é o estado normal dos seres
que habitam a nossa miserável túnica de carne”.
Dois anos antes do livro de Menotti, Manuel Bandeira fizera do Carnaval a temática
de sua poesia. O crítico esboçara na ocasião uma reflexão sobre o simbolismo na poesia:
Não basta dizer que o Sr Manuel Bandeira é um simbolista ou que a sua lira tem
muito da de Laforgue, o “falhado de gênio” dos decadentes, ou de Cesário Verde. O
simbolismo não é senão um dos momentos agudos do individualismo artístico e, em
princípio, seria um contrassenso estudar as influências, literárias ou outras, sofridas
por um simbolista, que é essencialmente um independente. É um aristocrata da
sensação. Com o medo da amplificação, o horror ao sentimentalismo e o desdém da
vulgaridade, faz da sua arte uma túnica alegórica e sutil, não isenta de pedantismo
ou de artifício, com que veste a sua emoção. Ironista e impressionista, fixa com
vivacidade os momentos agudos de uma realidade expressiva e o ricto sensitivo do
seu “tormento obscuro do impressentido”. Arte nervosa e ofegante, que não chega a
ser uma libertação, arte sintética, que procura a notação precisa e nua, também
exasperada e febril, e chega, por vezes, nessa procura, ao mero artifício verbal, ou
antes, musical98.
98
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jun. 1920, p. 2.
275
O caráter musical do simbolismo seria a única tópica que permitiria alguma generalização e
reunião de artistas tão díspares entre si, conforme assinala Paul Valéry: “o que foi batizado
como simbolismo resume-se muito simplesmente na intenção comum a muitas famílias de
poetas (aliás, inimigas entre si) de retomar à Música o seu bem”99. O crítico brasileiro vê o
“Debussy” como aquilo que seria “quase um pastiche do autor da Sérénade interrompue”:
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Um novelozinho de linha...
Para cá, para lá...
Para cá, para la...
Oscila no ar pela mão de uma criança,
(Vem e vai...)
Que delicadamente e quase a
adormecer o balança.
- Psiu... - Para cá, para lá...
Pra cá e...
O novelozinho caiu100
Tais versos seriam frutos de um impressionismo de “estilo nervoso e original”. O carnaval de
Bandeira traria um Pierrot “sombrio e amargo”, transeunte em uma quarta feira de cinzas:
Entre a turba grosseira e fútil,
Um pierrot doloroso passa.
Veste-o uma túnica inconsútil,
Feita de sonho e de desgraça
O seu delírio manso agrupa
Atrás dele os maus e os basbaques.
Este o indigita, este outro o apupa...
Indiferente a tais ataques,
Nublada a vista em pranto inútil
Dolorosamente ele passa.
Veste-o uma túnica inconsútil
Feita de sonho e de desgraça...101
O poeta guardaria o sofrimento e o vício, a piedade e uma “morbidez cerebral”, esta última
vista pelo crítico no apelo aos sentidos e desejos:
Se perguntarem: que mais queres,
Além de versos e mulheres?...
_ Vinhos... O vinho que é meu fraco!...
Evoé Baco!
E ainda em “Pierrete”:
O sexo obsidente alucina
A minha índole surpresa:
As imagens da natureza
São um delírio de morfina,
a minha carne complicada,
Estreita em voluptuosos ardil,
Alguém de que tenha a alma sutil,
99
VALÉRY Apud. RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo, p. 43.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jun. 1920, p. 2.
101
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jun. 1920, p. 2.
100
276
Decadente, degenerada.
Esta seria, entretanto, “uma feição fugaz e inferior de suas arte, cujo verdadeiro aspecto é o da
expressão sintética, irônica e febricitante, às vezes preciosa, de um grande desengano
íntimo”102. Destaca-se então os poemas em que se deseja um carnaval de sentidos contidos, mas
com expansão da interioridade, mais uma vez provocada pela musa musical:
Eu quis, um dia, como Schummann, compor
Um Carnaval todo subjetivo:
Um Carnaval em que só o motivo
Fosse o meu próprio ser interior.
O poeta revela seu pudor ao confessar aquilo que guarda secretamente:
Tudo que existe em mim de grave e carinhoso
Te digo aqui como se fora ao teu ouvido...
Só tu mesma ouvirás o que aos outros não ouso
contar do meu tormento obscuro e impressentido.
Em tuas mãos de morte, ó minha Noite escura!
Aperta as minhas mãos geladas. E em repouso
Eu te direi no ouvido a minha desventura
E tudo o que em mim há de grave e carinhoso...
Tristão de Athayde considera por fim acerca do poeta estreante:
A coação indicada atinge as próprias fontes da inspiração e por isso a originalidade
se não converte em insinceridade, embora abuse o autor do arabesco e do cinzelado,
do artifício, portanto. Será, talvez, um escudo, e por isso frio, mas nunca indiferente.
E é essencial, na arte como na vida.
Também no ano de 1919, o livro Juca Mulato, em segunda edição, trazia a reflexão, a
partir da poesia, acerca do tema do “caráter”, tanto individual quanto nacional:
Os poemas do Sr Menotti del Picchia deixam uma funda impressão de sua leitura:
não pode haver melhor demonstração do seu “caráter”. Quando essa impressão não
se limitar aos leitores e aos críticos, e se estender à própria literatura nacional, terá a
sua poesia atingido ao grau supremo que lhe auguro103.
O poema Juca Mulato sendo uma narrativa não estava ligado apenas ao lirismo do poeta a
expressar uma condição pessoal e existencial qualquer, mas guardava a descrição deste “tipo”
nacional, o mulato, com claras referências a uma ordem social e política com a qual o herói
deveria harmonizar-se. Em termos gerais, o crítico elogiara a construção poética do autor:
O poema do Sr Menotti del Picchia tem a simplicidade e a frescura das criações
espontâneas e necessárias, onde o esforço da composição permanece obscuro como
deve. Para lhe realçar a beleza não se sente a crítica compelida a buscar símbolos
problemáticos ou filosofias arbitrárias. Sendo o que é – um mal de amor impossível
que leva a alma à desesperança, para se resignar depois e ressurgir consolada pela
visão da terra amada, da felicidade atingível e do sonho necessário -, como pelo
simples aspecto de suas linhas harmoniosas.
O amor impossível do mulato é a filha dos proprietários de uma fazenda de café. A riqueza
simbólica deste poema, tanto para representar a relação do imaginário poético paulista da época
com a realidade cafeicultora, quanto para expressar a forma segregacionista que deveria se
102
103
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jun. 1920, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 set. 1919, p. 12.
277
reproduzir na realidade nacional, com a finalidade de consolidá-la, é significativa. A obra abria
a década de 1920 provocando reflexões como estas: “Juca Mulato é a reconciliação do homem
consigo mesmo, do brasileiro com sua terra, do bárbaro com seu isolamento. Reconciliação às
vezes impossível, outras ilusória, raramente realizada”104.
As imagens consagradas (ou seriam estereotipadas?) do trabalhador rural, ainda
refletem as notas do tradicional sertanejo euclidiano:
É ágil como um poldro, forte como um touro;
no equilíbrio viril dos seus membros possantes,
há audácias de coluna e a elegância dos barcos105
Esta a imagem do lavrador de café das fazendas paulistas que, no caso do poema, canta o que
perdera pelo amor impossível:
Também, como esse bosque eu tive outrora,
na alma, um bosque cerrado de emoções.
As palmeiras das minhas ilusões,
iam levando o fuste, espaço afora.
Floriam sonhos; era uma pletora
de crenças, de desejos, de ambições...
Não havia por todos os sertões,
mais luxuriante e mais violenta flora.
“Ai, bosque real, e o tempo das queimadas...”
É agosto, é agosto, o fogo arde o que existe
em fogachos sinistros e medonhos...
Ai de nós!... Somos almas desgraçadas,
pois, na luz de um olhar lânguido e triste,
também ardeu o bosque dos meus sonhos...
Em busca de uma “mandinga” que desfaça o sentimento que o enfeixara, o herói recorre a um
“velho negro feiticeiro” que lhe aconselha:
Esquecer um amor dói tanto que parece
que a gente vai matando um filho que estremece.
Foge! Arrasta contigo essa tortura imensa
que o remédio é pior que a própria doença
pois, para se curar um amor tal qual esse...
_que me resta fazer? / Juca Mulato; esquece!
Desesperado, Juca Mulato começa a ouvir, então, “a voz das coisas”, conforme o crítico
descreve a relação telúrica que o trabalhador teria com o mundo a sua volta: “O cedro de cuja
madeira lhe fora feito o berço, a torrente que dera a água para o seu batismo, a estrela que o
iluminara ao nascer, a floresta, o azul, a terra, tudo lhe fala ao coração e à mente”106:
Não vás. Aqui, serão teus dias mais serenos,
que, na terra natal a própria dor dói menos...
E fica que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)
no pedaço de chão em que a gente nasceu!107
104
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 set. 1919, p. 12.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 set. 1919, p. 12.
106
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 set. 1919, p. 12.
107
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 set. 1919, p. 12.
105
278
Assim, o “mulato” é associado ao mundo natural, a um estado primevo e primitivo em que o
homem integrado à terra encontraria a sua real autenticidade. O poema final resumiria a obra:
E Mulato parou.
Do alto da serra,
Cismando, seu olhar era vago e tristonho.
Se minha alma surgiu para a glória do sonho,
o meu braço nasceu para a faina da terra.
Reviu o cafezal, as plantas alinhadas,
todo o heróico labor que se agita na empreita,
palpitou na esperança imensa das floradas,
pressentiu a fartura enorme da colheita...
Consolou-se depois: “O Senhor jamais erra...
Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua.
Juca Mulato! Volta outra vez para a terra,
procura o teu amor, numa alma irmã da tua”.
“Esquece, calmo e forte. O destino que impera,
um recíproco amor às almas todas deu.
Em vez de desejar o olhar que te exaspera,
procura esse outro olhar que te espreita e que te espera
que há por certo um olhar que espera pelo teu”108.
Tristão de Athayde não esconde o entusiasmo com o livro comentando que “a fragmentação das
obras de arte é o sacrilégio inevitável da crítica. A esta que fizemos do ‘Juca Mulato’ só pode
revelar o desejo que desperta pela leitura do original”. O crítico termina por afirmar, apesar de
alguns reparos, queo “poeta mostra ser uma das mais formosas esperanças da poesia nacional.
Mas não estará justamente o caráter do poeta no maravilhoso desequilíbrio radical de sua arte
– poderosa como a terra, e desordenada como a gente?”109.
Daniel Faria nota que Juca Mulato foi o maior sucesso de Menotti del Picchia, tendo
atingido, em três décadas, vinte e nove edições. O “sentido do poema” seria que:
[...] o homem separado da força vital na terra perde-se num anseio pelo nada. Mas
na terra e nas realizações concretas estariam inscritas as possibilidades de
regeneração. Com isso, o amor se tornaria fonte de construção de uma civilização,
deixando de se ser um anseio idealista pelo impossível. A terra, no poema de Menotti,
implicava metaforicamente a ideia de autenticidade110.
Se tais características são estruturantes do poema, é bastante clara, ao mesmo tempo, a
consideração do “mulato” segundo características associadas a um universo pré-racional e précientífico e, mesmo, pré-civilizacional, primitivo, tendo a magia como forma primordial de
relação com o mundo que, por sua vez, teria canais abertos com o herói malfadado. Este é
limitado duplamente: pela situação de classe do empregado e pela condição racial do “mulato”.
Ao aconselhar Juca a procurar o amor “numa alma irmã da tua”, o poema revela o sentido
ambíguo de tal predição, podendo significar tanto o sentido vulgar de “alma gêmea” amorosa,
quanto aludir à condição hereditária explícita no nome do protagonista. O poema de Menotti
108
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 set. 1919, p. 12.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 set. 1919, p. 12.
110
FARIA, Daniel. O mito modernista, p. 55.
109
279
encontra uma resolução, por assim dizer, “realista” da maneira como se devia solucionar as
questões de classe, raça e organização social brasileiras. A organização pressupõe o
cumprimento estrito do papel de cada personagens no interior do microcosmo que é, no caso, a
fazenda cafeicultora paulista, cuja ordem estanque é a força mais determinante do enredo, de
tal modo que até a “natureza” aconselha o herói a respeitar tal estrutura. Assim, a “integração”
do “mulato” nesta vertente literária da cultura intelectual brasileira se dava segundo um registro
que encontraria importantes desdobramentos ulteriores. A figura do mulato e do negro associada
ao “primitivo”, a integração destes personagens para formar uma “identidade brasileira” ou o
seu retrato segundo a composição de papeis/raças determinados, a valorização da terra como
fundamento para a criação da autenticidade nacional, a restrição, quase nunca explicitada, mas
reiterada de maneira latente, ao casamento entre pessoas de “raças” distintas, a abertura às
experimentações formais nas criações poéticas, por fim, a fazenda de café paulista como pano
de fundo deste processo, revelam o lugar significativo desta obra que continuou sendo editada
por décadas, algo sempre relevante, notadamente em um país que não primava pela pujança
editorial.
Futuristas?
Observamos nos autores analisados acima a recorrência de expressões como
“moderno” e “atual” utilizadas para se caracterizar produções que a tradição crítica da segunda
metade do século XX, de forma alguma, em geral, concordaria. Parece que a historiografia
celebradora do modernismo no Brasil restringira significativamente a imaginação sobre o
moderno. Neste sentido, algumas definições simples e genéricas, porém esclarecedoras, podem
ser úteis como pontos de partida. Sobre o termo “moderno”, por exemplo, o teórico alemão
Reinhart Koselleck traça uma história do conceito:
Esta expressão pode significar ou a simples constatação de que o “agora” é o novo,
de que o tempo atual se opõe ao tempo passado, seja qual for a profundidade desse
passado. Este sentido se forjou a expressão “modernus”, que desde então não perdeu
o significado de “atual”. Por outro lado, o novo tempo pode indicar uma
reivindicação qualitativa, a de ser novo no sentido de inteiramente diferente, ou até
mesmo melhor, do que o tempo anterior. Então o novo tempo indica novas
experiências que jamais haviam sido experimentadas dessa maneira, ganhando uma
dimensão que confere ao novo um caráter de época. Por último, o tempo moderno
também pode ter um significado, derivado dos dois significados possíveis que o
precedem, que retrospectivamente é entendido como novo frente à Idade Média111.
Não nos importa perscrutar cada momento destas acepções em uma história secular. Apenas
ressaltar que o “tempo moderno” é esta época da história ocidental e de seus horizontes de alémmar mais ou menos conectados em que se torna cada vez mais evidente a vivência em uma
época que parece guardar um futuro distinto do presente e um passado diferente de ambos. O
111
KOSELLECK, Reinhart. Futuro do passado, p. 274.
280
moderno como atual e impulsionado pelo novo, o tempo experimentado como pressão de
tempo, ou seja, como força que impele para uma expectativa sempre mais alargada do que a
experiência passada parecia assegurar. A vantagem dessa definição segundo uma semântica do
tempo histórico é a sua generalidade, não se prendendo a determinações por vezes
excessivamente específicas e localistas como as dos conceitos de modernização112 e
modernidade113, este último, na perspectiva de Koselleck, poderia ser alargado até o século
XVI114, apesar de o teórico preferir utilizá-lo para explicitar os horizontes temporais de fins do
século XIX, quando surge o termo como “conceito enfático do novo tempo”, ou seja, como
consciência da vivência em um constante “tempo de transição”. Acerca do sufixo “ismo”, o
autor reconhece em tal recorrência (liberalismo, republicanismo, comunismo, socialismo,
modernismo etc.) a temporalização que passa a marcar a reformulação e criação dos conceitos:
“O que eles possuem em comum é basearem-se apenas parcialmente na experiência. A
expectativa que depositam no tempo que está por vir está em proporção inversa à experiência
que lhes falta. Trata-se de conceitos de compensação temporal”115. Ao tratar de temas como
esses, é preciso ter em mente que “não há algo como a modernidade em geral. Há somente
sociedades nacionais, cada uma das quais se moderniza em sua própria feição”116. Cabe aí o
reparo significativo que sequer esse recorte nacional é suficiente para se apreciar
adequadamente a complexidade de tais processos históricos.
Como epígrafe de seu texto, Koselleck escolheu uma passagem de Wilhelm Schulz:
A emergência de novas palavras na língua, seu emprego cada vez mais frequente e
as modificações de sentido que lhes são atribuídas pela opinião dominante, em uma
palavra, aquilo que se poderia caracterizar como sendo a linguagem da moda, são
um importante ponteiro no relógio do tempo, que não deve ser negligenciado por
aqueles que, partindo de fenômenos aparentemente insignificantes, procuram tirar
conclusões sobre as mudanças no conteúdo da vida117.
Neste sentido, Nicolau Sevcenko foi preciso na apreciação da São Paulo do início dos anos
1920, quando “a palavra ‘moderno’, de recente fluência na linguagem cotidiana, em particular
através da presença crescente da publicidade, adquire conotações simbólicas que vão do exótico
ao mágico, passando pelo revolucionário”118. Assim, “moderno” se torna uma “palavra-fetiche”
provocando fantasias, expectativas, sonhos, como dissera Koselleck, por basear-se apenas
parcialmente na experiência, depositando no tempo que está por vir aquilo que não pode ser
afiançado pelo passado. A lógica da publicidade e da moda como a da revolução e da vanguarda,
112
HABERMANS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 5.
Cf. FERES JÚNIOR, João. Introdução a uma crítica da modernidade como conceito sociológico, Mediações,
Londrina, v 15, n 2, jul-dez 2010, p. 38-39.
114
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro do passado, p. 269.
115
KOSELLECK, Reinhart. Futuro do passado, p. 297.
116
HERF, J. O modernismo reacionário, p. 13.
117
SHULZ, Wilhelm. Apud. KOSELLECK, Reinhart. Futuro do passado, p. 267.
118
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole..., p. 227.
113
281
porém, é fazer este tempo agora, tornar o “futuro presente”. Assim, há uma “medicina moderna”
que “comporta tecnologias mirabolantes, conhecimentos revolucionários, métodos inéditos,
resultados extraordinários que ultrapassam tudo o que se sabia sobre a vida e a morte”. De um
modo geral:
“Moderno” se torna a palavra-origem, o novo absoluto, a palavra-futuro, a palavraação, a palavra-potência, a palavra-libertação, a palavra-alumbramento, a palavrareencantamento, a palavra-epifania. [...] um novo sentido à história, alternando o
vetor dinâmico do tempo que revela sua índole não a partir de algum ponto remoto
no passado, mas de algum lugar no futuro119.
Modernas eram as roupas, de vanguarda as lojas, os automóveis, por sua vez, modernos,
ultramodernos, revolucionários. Associado ao consumo de produtos industrializados e caros, o
moderno podia ser para poucos, como a consulta médica com raios-X, ou acessível a uma
parcela mais significativa da população, como os remédios Bayer. O moderno gramofone
direcionado aos jovens, símbolos do novo e da liberdade, era tido com causa de desordem,
indisciplina e promiscuidade. As profissões modernas apareciam com métodos modernos de
aprendizagem, que garantiriam a velocidade na apreensão de conhecimentos. A sexualidade
moderna afiançaria o “amor à vontade” com vacinas anti-gonorréia e métodos contra a
impotência. A política moderna aparecia na crítica ao caráter agrícola do país ou na ação
moderna do Estado com processos de racionalização administrativa, gerenciamento tecnocientífico, ciências sociais aplicadas, estatísticas e censos120.
“O Modernismo” é o nome do artigo publicado por José Veríssimo no primeiro número
da Revista do Brasil. Associado a uma série de acontecimentos e “movimentos de ideias”, estes
caracterizados em correntes como o “positivismo comtista”, “o transformismo darwinista”, o
“evolucionismo spenceriano”, o “intelectualismo de Taine e Renan” que influíram para se “pôr
termo ao domínio exclusivo do Romantismo”. O modernismo, segundo Veríssimo, “entrou a
sentir no Brasil” em torno da Guerra do Paraguai. Um renovado nacionalismo surgira, a questão
do trabalho servil suscitara a crítica à organização do trabalho, a questão religiosa teria
alvoroçado “o espírito liberal contra as veleidades do ultramontanismo” e a guerra franco-alemã
chamara a “nossa atenção para uma outra civilização e cultura que a francesa, estimulando
novas curiosidades”121. Desde então, a expressão “pensamento moderno” tornara-se recorrente
e, “na ordem mental”, “os seus efeitos se fizeram sentir numa maior liberdade espiritual e num
mais vivo espírito crítico”122.
Assim, “moderno” e “modernismo” eram palavras correntes no interior da cultura
intelectual brasileira em suas feições as mais diversas, do apelo publicitário à periodização em
119
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole..., p. 228.
Cf. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole..., p. 229-231.
121
VERÍSSIMO, José. O modernismo, Revista do Brasil, São Paulo, Vol 1, Ano 1, no 1, jan-abr. 1916, p. 43.
122
VERÍSSIMO, José. O modernismo, Revista do Brasil, p. 44.
120
282
história literária. Como se trata de um tempo em que “o futuro trazia outro futuro”, os termos
podiam ser renovados reiteradamente, explorando ao máximo o vazio entre a experiência
conhecida e a expectativa almejada. Historiograficamente, portanto, a “denúncia” de “radicais
de ocasião”123 ou “infiltrados” perde de vista tal perspectiva teórica. Afinal, se a única
permanência era a transição contínua, como o crítico Tristão de Athayde não cansava de repetir
acerca de sua época, buscar identidades estanques e posicionamentos fixos parece ser ir contra
o tempo. Daí podermos ver o jovem crítico Sérgio Buarque de Holanda, tradicionalista e
monarquista, que em 1920 escrevia textos como “Viva o Imperador”, que em 1921 falava que
“futurismo, o cubismo e quejandas” seriam expressões do mundo da arte que reproduziam o
utilitarismo anglo-saxão, “efêmeras escolas artísticas”124; mas que, alguns meses depois,
defendia que estas mesmas escolas seriam um “atestado sério de independência de espírito e
que embora o gênio nunca acompanhe escolas, estas são sempre agentes de grandes ideias”. E
no início do ano seguinte, com o artigo “Il faut des barbares”125, expressão divulgada por André
Gide tomada da correspondência do poeta Charles Louis-Philippe126, elencava nomes como
Apollinaire, Rodin, Knut Hamsun, Proust e Romain Rolland, defendendo o “futurismo” que
assentará “que o campo da arte é vastíssimo, é infinito, que o repouso e que o movimento são
indistintamente motivos dignos de serem representados”127. Tudo isso sintetizado em uns versos
do “realista místico”128 Paul Claudel:
O poète, je ne dirai point que tu reçois de la nature
aucune leçon, c’est toi qui lui imposes ton ordre129.
Seria Sérgio Buarque de Holanda um modernista de ocasião? Apreciações similares poderiam
ser feitas de outros autores, como Mário de Andrade que, até a Semana de 1922, tinha apenas
um livro publicado sob o pseudônimo de Mário Sobral, o Há uma gota de sangue em cada
poema... (1917), e que ressoava as divisões entre germanófilos e aliadófilos que afloravam na
cultura intelectual brasileira à época da Grande Guerra. Oswald de Andrade, apesar de ter
participado da direção de dois periódicos, O Pirralho e Papel e Tinta130, e ser colaborador do
Jornal do Comércio de São Paulo, havia publicado em um pequeno volume duas peças em
123
Cf. PRADO, Antônio Arnoni. 1922 – itinerário de uma falsa vanguarda – o dissidentes, a Semana e o
Integralismo. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 7.
124
WEGNER, Robert. Criação e crítica literária na trajetória modernista de Sérgio Buarque de Holanda (19211926). In: CORDEIRO, R et al. A crítica literária brasileira em perspectiva, p 136.
125
Cf. WEGNER, R. Criação e crítica literária na trajetória modernista de Sérgio Buarque de Holanda (19211926). In: CORDEIRO, R et al.; A crítica literária brasileira em perspectiva, p. 136-137.
126
A frase completa é: “O tempo da suavidade e do diletantismo passou. Agora, precisa-se de bárbaros”. E, ainda,
dizia André Gide: “O curioso é que é pela própria cultura que [Philippe] toma consciência da legitimidade desse
sentimento”. RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo, p. 170.
127
Cf. HOLANDA, S B de. ...Il faut des barbares. In: BOAVENTURA, M E (org). 22 por 22, p. 34.
128
Cf. RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo, p. 164.
129
Cf. HOLANDA, S B de. ...Il faut des barbares. In: BOAVENTURA, M E (org). 22 por 22, p. 34.
130
BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro, p. 33; 108.
283
francês, “Mon coeur balance” e “Leur âme”, em 1916, ao lado de Guilherme de Almeida131.
Em 1926, Oswald considerava que as duas foram “Dedicadas ao sr Washington Luís Pereira de
Sousa. Única qualidades”132, revelando a mudança de suas concepções estéticas, mas a
permanência de suas orientações políticas.
Assim, quando, em 5 de fevereiro de 1922, oito dias antes da Semana de Arte Moderna,
José Maria Belo fez artigo sobre “o movimento literário de São Paulo e a literatura nacional”,
ele comentava os números alcançados pela editora Monteiro Lobato & Cia que atingira a marca
de 130 mil exemplares. O crescimento econômico de São Paulo daria seus frutos culturais:
Durante os últimos anos do império e durante toda a República, S Paulo, preocupado
com o seu admirável aparelhamento econômico, esquecera-se quase de todo das
relações de espírito, de arte ou ciência, que tanto as riquezas materiais afiram e
definem a existência de uma nação. Enquanto no Rio e nos velhos centros
intelectuais do Norte, em Pernambuco ou na Bahia, intensificava-se o cultivo das
letras, boas ou más, gordas ou finas, não importa, os paulistas, muito mais positivos
ou práticos, rasgavam as terras virgens do oeste, plantavam o café para as
“valorizações” posteriores e enriqueciam... A vida mental do país era função dos
nortistas ou dos provincianos do Estado. Não era mesmo sem certo sorriso de
piedade, vagamente irônica que o “homem prático” de Ribeirão Preto ou de Santos
sabia da existência dos “literatos cariocas”, pobres poetas, mais ou menos boêmios
e miseráveis, mais ou menos parasitas da burocracia...133
Desde o lançamento da Revista do Brasil, o autor considerava que “à sua indiscutida hegemonia
econômica e política na Federação, S Paulo junta a hegemonia literária”. Maria Belo atualiza o
cada vez mais reiterado passado bandeirante paulista, reconhecendo que ao estado caberia o
verdadeiro centro da nação e que “um dia, rico, superpovoado, pletórico, ele integralizará, pelas
novas ‘bandeiras’ conquistadoras, o resto do país à marcha triunfal”. Porém, a literatura que lá
despontava não traduziria tal estado de coisas. A tendência era ainda o “regionalismo à antiga
maneira”, de modo que “os escritores e poetas paulistas procuram na história sem brilho e nos
costumes ingênuos da raça vencida os seus motivos de inspiração”. Estes estariam voltados:
Para o pobre Jeca Tatu, vencido sem luta, abandonado ou esquecido nas suas terras
do norte, se voltam, através de todas as ironias e todas as “perversidades” literárias,
as melhores simpatias do sr Monteiro Lobato. No “Dialeto Caipira” desconta o sr
Amadeu Amaral a sua ternura regionalista. No poema “Juca Mulato”, canta o sr
Menotti del Picchia, que pelo nome deve ser um descendente próximo de italiano,
os amores infelizes do mestiço, que S Paulo quase não mais conhece, como o sr
Cornélio Pires, aliás da geração anterior, revivera nos seus contos regionais, o caipira
clássico a que o contato diário do “colono” estrangeiro vem emprestando outros
sentimentos e outra língua134.
O autor via aí uma “moda” que deveria, enquanto tal, passar, pois a “literatura caipira” só
poderia frutificar pela curiosidade. Ele aguardava para o futuro a frutificação artística das novas
131
MARTINS, W. História da inteligência brasileira. (1915-1933). Vol, p. 50.
ANDRADE, Oswald de. Tristão de Athayde e a crítica brasileira, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 nov. 1926, p. 4
133
BELO, José Maria. Vida literária. O movimento literário de S Paulo e a literatura nacional, O Jornal, Rio de
Janeiro, 5 fev. 1922, p 1.
134
BELO, J Maria. Vida literária. O movimento literário de S Paulo e a literatura nacional, O Jornal, p. 1.
132
284
gerações, não só de São Paulo, mas cariocas, baianas e pernambucanas e considerava não ser
“justo exigir uma literatura acabada em um país onde pouco ou nada existe de definido”.
Menotti del Picchia respondera a José Maria Belo considerando que as fontes do autor
não lhe permitiram chegar às “verdadeiras tendências literárias de S Paulo moderno”135. O autor
de Juca Mulato falava sobre o fim do regionalismo, que seria um “artificio quase cabotinamente
jacobino” e que “o cérebro paulista não se anquilosaria no fatalismo da jeremiada, nem pararia
fulminado, como a mulher de Lot, a contemplar as ruínas das últimas taperas sob as quais
agonizavam os últimos Jecas”. Chegara o tempo de se reconhecer o novo personagem: “O
neobrasileiro de São Paulo, caldeado, sob este sol de trópico, com o sangue de cem raças
radicadas à terra dadivosa em que nasceu, como as perobas e os cedros, é um homem de ação,
pragmático, ativo”. Por fim, ele fala da existência de um grupo “reacionário de novos”, que
acompanharia a “estética do pós guerra” e seriam “mal etiquetados com o rótulo de ‘futuristas’”,
cuja “primeira aparição oficial será na Semana de Arte Moderna”.
Não só as fontes de José Maria Belo seriam falhas. Na Fisionomia dos novos, livro do
rio-grandense João Pinto da Silva lançado em 1922, fala-se de uma “Escola Paulista” formada
por nomes como Monteiro Lobato, Hilário Tácito, Godofredo Rangel (nascido em Minas
Gerais), Leo Vaz e Guilherme de Almeida. Ao analisar o livro, Tristão de Athayde lembra, neste
“movimento de intensa eclosão literária que estamos assistindo em São Paulo”136, as figuras de
Martins Fontes, Afonso Schmidt e Menotti del Picchia. Considerando ser inegável a existência
de uma “Escola paulista”, o crítico asseverava que:
[...] não se pode tentar um estudo aproximado de uma orientação, sem nele incluir a
plêiade de escritores que neste século, e mesmo desde a última década do século
passado, vem lentamente criando o ambiente intelectual da Pauliceia, que
circunstancias mais remotas concorreram também para tornar fecundo.
A tal “Escola Paulista” era composta por nomes de autores com livros publicados e que teriam
uma produção passível de ser analisada pela crítica. Se o artigo de Maria Belo serviu para que
a resposta de Menotti concedesse um tom inaugural à Semana, a apreciação de Tristão feita
meses após o evento assinalaria a limitação de sua repercussão na cultura intelectual brasileira,
não ultrapassando, em geral, os limites geográficos da capital paulista137.
Embora Menotti falasse em um grupo de “reacionários de novos” que seriam “mal
etiquetados com o rótulo de futuristas”, tal “rótulo” foi assumido por ele e outros e em dezenas
de artigos na imprensa tornava-se palpável a existência de uma vertente “futurista” nas letras
brasileiras. A palavra, antes usada pejorativamente como na apreciação de Lobato à exposição
135
Cf. HELIOS. Um artigo de Maria Belo. In: BOAVENTURA, M E (org). 22 por 22, p. 53-55.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 jun. 1922, p. 1.
137
Cf. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. (1915-1933). Vol. VI, p. 272. Exceções como o
caso de Inojosa devem ser lembradas. Cf. INOJOSA, Joaquim. Arte Moderna: 1924-1974. Rio de Janeiro: Meio
Dia, 1977, p. 11-12.
136
285
de Anita Malfatti de 1917, passa a assumir uma força expressiva que parecia encarnar uma
novidade que o desgastado termo moderno não garantiria, de forma que, à época da Semana de
Arte Moderna, esta era chamada nos jornais de Semana Futurista ou Semana de Arte Futurista.
Em 1920, na sua “conversão ao futurismo” dizia Menotti:
Que é futurismo? Aí está um nome pavoroso, que arrepia a pele ao conservador
pacífico, bolchevismo estético, agressivo e iconoclasta, lembrando um camartelo
sonoro a estilhaçar a espinha vertebral da ordem e do bom senso. [...] Eu, que fui um
encruado perseguidor desses revoltados, só em ouvir o nome de Marinetti sentia
ânsias de estrangulamento e minhas mãos crispavam-se como tenazes. [...] Hoje,
amansei minhas cóleras. Sem admitir-lhe as loucuras, sem aplaudir-lhes as
aberrações, admirei-lhes as belezas [...] Como se vê isso não é um bicho de sete
cabeças, que nos pintaram os primeiros e barulhentos futuristas. É uma coisa séria,
raciocinada, honesta...138
A essa altura, a pintora Tarsila do Amaral desembarcara em Paris e escrevia à Anita Malfati: “Já
estive no Grand Palais, no salão do Outono: olha, Anita, quase tudo tende para o cubismo ou
futurismo”139. Na onda do “futurismo”, a exposição de Anita Malfati de 1917 veio a ser o trauma
do movimento, merecendo tardias desculpas públicas de Menotti140 e a garantia de Mário de
Andrade do caráter precursor da pintora no Brasil141, apesar da mostra expressionista de Lasar
Segall de 1913142.
A figura do escultor Victor Brecheret, por seu turno, veio a ser o apanágio dos
“futuristas”. O artista formara-se no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, foi para a Itália em
1913 e lá ficou por seis anos. Tendo montado um atelier no Palácio das Indústrias, Brecheret
foi “descoberto” por Menotti e Oswald de Andrade que o consagraram como o “Rodin
Brasileiro”. Também Monteiro Lobato elogiara o escultor. Os três intelectuais criaram uma
comissão encomendada pelo prefeito da cidade de São Paulo, Washington Luís, em 1920, para
a consecução de um monumento à Independência e outro dedicado às Bandeiras. Para este
último, Brecheret fez uma maquete que, não podendo ser aceita pela prefeitura, foi adquirida
pelo Estado de São Paulo que a acolhe na sua Pinacoteca. Em pouco mais de um ano, Brecheret
fora incorporado pela oficialidade paulista e conseguiu bolsa para ir à Europa, onde fora
premiado em Paris. A síntese de Menotti del Picchia é expressiva de tal situação:
Essa Vitória dá o que pensar. Pelo menos dá que pensar nisto: 1o que há muitos
cérebros atrasados entre nós. 2o que estes cérebros representam a maioria. 3o que em
matéria de arte estamos nos tempos da pedra lascada. 4o que há um pequeno grupo,
o tal caluniado grupo “futurista”, que parece enxergar mais do que os outros. 5o que
o nosso governo [...] sabe fazer justiça aos artistas de valor143.
138
Helios. Apud BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro, p. 169.
Cf. MARTINS, W. História da inteligência brasileira. (1915-1933). Vol VI, p. 213.
140
Cf. THALASSA, Ângela. O primeiro diário de São Paulo e a cobertura da Semana de Arte Moderna, p. 108.
141
Cf. BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro. Rio de Janeiro, p. 71.
142
Cf. BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1971, p. 68;
THALASSA, Ângela. O primeiro diário de São Paulo e a cobertura da Semana de Arte Moderna, p. 109.
143
Cf. BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro, p. 132-133.
139
286
O “Monumento às Bandeiras”, hoje exposto em frente ao parque Ibirapuera na cidade de São
Paulo, expressa a integração entre “artistas de valor” e as propostas de supremacia e liderança
paulista no contexto nacional. É a fase “futurista”, por assim dizer, da invenção de São Paulo.
A concorrência entre a oficialidade governamental e os “futuristas” era significativa.
De fato, deve ter sido o primeiro caso em que um manifesto de arte moderna ou algo que o
valha foi produzido em uma mesa de banqueiros, oligarcas e alguns intelectuais orgânicos.
Menotti estava entre estes últimos. Redator do jornal Correio Paulistano, o poeta recebera um
banquete em sua homenagem em janeiro de 1921, quando ocorrera o chamado “Manifesto do
Trianon” encorpado pelo discurso de Oswald de Andrade que, repórter do Jornal do Comércio
paulista, também andava envolto pelos barões da República. Na ocasião, o tom rebarbativo dá
bem a ideia do ambiente oficialesco do entorno, assim como da reiterada nota paulista:
Uma voz quase pessoal a minha, que vem dizer o mesmo louvor coletivo da festa
que fazem, apenas numa tecla de sonoridade diferente, por querer completar a
homenagem aqui afirmada de políticos e poetas, de amigos certos e admiradores
permanentes, com a adesão de um grupo de orgulhosos cultores da extremada arte
de nosso tempo. É um restrito bando de formalistas negados e negadores que se
juntam e se desfazem e permanecem no espírito de mútua eleição que se criaram
para o gozo próprio e virtude, quem sabe, da cidade tumultuária que os abriga. [...]
S Paulo, neste instante em que o eixo da vida de pensamento e de ação parece
deslocar-se num milagre lento e seguro para os países descobertos pela súplica das
velas europeias, partidas como num pressentimento de fim, para a busca de Canaãs
futuras, S Paulo é a continuada promessa dos primeiros escolhos em que bateram,
numa festa, as antigas proas cansadas. [...] Toma, pois, um sentido de investidura a
nossa participação na tua festa, ó irmão cumulado de abençoadas farturas. [...] E para
que continues a marcha sobranceira no deserto [...] vimos assegurar-te nessa
dolorosa viagem da crença a calma companhia vigilante e profunda dos teus irmãos.
[...] S Paulo atingiu a primeira quietação de uma etapa vencida. Daqui, pra diante!144
Na audiência, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Victor Brecheret, Armando Pamplona
e René Thiollier, provavelmente, seriam eles o “bando de formalistas negados e negadores”.
O ano de 1921 assistira a emergência de uma série de artigos na imprensa paulista
entoando o “futurismo”. Declamavam-se “descobertas”, como Oswald acreditando ser o
primeiro a falar no Brasil sobre o poeta francês Paul Fort que visitava o país naquele ano145.
Em entrevista ao jornal carioca Gazeta de Notícias, Oswald de Andrade apresentado como “um
dos espíritos mais fulgurantes da nova geração” diz fazer parte do “grupo do futurismo
paulista”. Este, porém, não seria ligado a Marinetti, aos dadaístas, ultraístas e “demais
paradoxistas da literatura internacional”146. O termo “futurismo” poderia englobar o “surto que
deu à França a gloriosa falange de Romain Rolland [...], Apollinaire, André Gide, Duhamel, e
Charles Vildrac”, de modo que “a literatura do novo século [...] liga-se, entanto, por uma
144
Cf. BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro, p. 181-182.
Cf. BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro, p. 194.
146
Cf. O momento literário paulista. Fala-nos o escritor e jornalista Oswald de Andrade, Gazeta de Notícias, Rio
de Janeiro, 18 out. 1921, p. 2.
145
287
idêntica afirmação de força lírica e uma igual ambição espiritualista”147. No caso dos paulistas,
porém, não se tratava de ir “até o histerismo de inovação dos grupos bolchevistas da Europa”.
Ele alude ao fato de Lobato ter voltado atrás na decisão de publicar a Pauliceia desvairada de
Mário de Andrade tido como um “crítico notável e extraordinário poeta”. Enumera-se como
futuristas Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Afonso Schmidt, Cândido Mota Júnior,
Agenor Barbosa, Rodrigues de Almeida e Cleomenes Campos. Fala-se de São Paulo como
“uma civilização que rebenta em audácias, empreendimentos, renovações, vida e luta”.
O mesmo Oswald de Andrade, no Jornal do Comércio paulista, anunciando o livro
Pauliceia Desvairada que sairia apenas um ano depois, falava em “meu poeta futurista”,
omitindo, porém, o nome de Mário de Andrade. Este, por seu turno, responde com um artigo
intitulado “Futurista?!”, que em uma das epígrafes retomava a frase de Rui Barbosa: “Não
poucas vezes, pois, razão é lastimar o zelo dos amigos”148. A resposta procurava se desvencilhar
do “futurismo”, considerando que a obra era “livro íntimo”, não destinado à publicação, e que
seria “livre (ao menos no sentido estético), mais romântica do que clássica, mais gótica do que
argiva, mas onde uma alma se chora sem preocupação de escola e até sem preocupação de arte”.
Não obstante, publicou-se o livro no ano seguinte. Porém, continua, Mário de Andrade:
E classificam-no de futurista, e agrilhoam o meu pobre Prometeu, às artes ou
artimanhas de Marinetti ou de Boccioni!!! Futurista por que? Será só unicamente
porque o meu amigo admira certos corifeus do futurismo e reconhece, no meio das
suas erronias, os benefícios que o grupo nos veio trazer?149
O artigo dizia não haver filiação ao “futurismo internacional”, que o autor da Pauliceia
Desvairada (o texto é escrito na terceira pessoa) seria um “reformador”, mas jamais um
“revolucionário, iconoclasta”, questionava se existia tal futurismo paulista, que produtos teria,
quais ideais, o que desejava e qual futuro almejava. O autor então considera que:
Algumas ideias dele pude muito bem compreender ou distinguir; mas estas
horrorizam: o banimento completo da lembrança de Deus, o desrespeito absoluto
pelo meigo idioma, também gentil, e o abandono das noções de pátria e
principalmente de tradição...150
Mário, porém, liga-se ao grupo dos “futuristas” (seria ele um futurista de ocasião?),
ainda que para relativizar o “futurismo”, e a maior expressão desse processo, antes da Semana,
foi a série de artigos “Mestres do Passado” publicada no Jornal do Comércio de São Paulo. O
autor que, dois meses antes dizia não ser revolucionário ou iconoclasta, fazia agora obituário,
necrológio e réquiem a fim de enterrar Francisca Júlia, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira,
Olavo Bilac e Vicente de Carvalho. Nesta extrema-unção do parnasianismo, ele afirma:
No Brasil leem-se Kant, William James, Schopenhauer – mas só um ou outro,
147
Cf. O momento literário paulista. Fala-nos o escritor e jornalista Oswald de Andrade, Gazeta de Notícias, p. 2.
Cf. BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro, p. 236.
149
Cf. BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro, p. 236-237.
150
Cf. BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro, p. 237.
148
288
raríssimo, folheou um tratado de lógica, leu uma súmula de psicologia ou
prolegômenos de Metafísica. Tenho um amigo muito querido que se admira eu nunca
ter lido Nietzsche... Mas como ler Nietzsche, se o adorado irmão Bernardo, no
Ginásio do Carmo, não me deu bomba em Lógica só porque eu fazia o meu sexto
ano e precisava formar-me! Prefiro não ler Nietzsche enquanto não compreender
bem compreendida a Psicologia de Mercier que há seis meses dorme num canto da
minha secretária a imortalidade do “Enchanteur Pourissante”. (L’Enchanteur
pourrisant, de Guillaume Apollinaire, 1921, edição da Nouvelle Revue Française,
xilografias de Derain). Como veem, sou ilógico, mas não sou cata-vento. Por tudo
isso prefiro, dos nossos homens escritores, um Medeiros e Albuquerque – ruim no
conto, detestável na poesia, abominando no romance, horripilante no drama –
homem de ideias, ateu, anticlerical, bobo, mas que afinal é bobo, é anticlerical, é
ateu: tem ideias. Quanto a essas balanças inconscientes: hoje adoradores de Buda,
amanhã de Odin, positivistas em fevereiro, coisa nenhuma em agosto... é
deplorável!151
Mário parecia ver-se enveredado em uma miríade de apelos e contradições, procurando um
ideal definido, ainda que bobo. Esta dúvida dividida entre um ceticismo amargurado, vivendo
a catar o vento, e o desejo não realizado de se decidir por uma orientação mais contundente, é
expressiva de um caráter geral que despontava na cultura intelectual brasileira.
Apesar das incontáveis citações de figuras nacionais e internacionais, nos sete artigos
de Mário de Andrade não há menção a quase nenhum nome de intelectual brasileiro atuante à
época. Com exceção dos “enterrados vivos” Vicente de Carvalho e Alberto de Oliveira, de um
elogio a Martins Fontes, que seria poeta de “achados magníficos”, aparecem apenas Medeiros
e Albuquerque e Tristão de Athayde. O primeiro é mencionado na passagem acima. Há uma
referência a Oswald de Andrade, mas apenas para fazer alusão ao “escândalo literário”
suscitado pelo artigo “meu poeta futurista”. Dessa forma, se os “mestres do passado” estavam
muito bem representados, o leitor não sabe exatamente quem seriam seus antagonistas, os
reveladores do futuro ou, como diz o articulista, os “Dragões do Centenário”:
Nós, os novos de hoje, os Dragões do Centenário, tombamos de nossa paz para os
guararapes da guerra. E não nos curvamos diante de vós, porque diante de vós somos
como homens diante de homens. E homens superiores, mais belos, mais terríveis,
porque não mentimos, porque somos sinceros, porque não temos preconceitos
literários, porque sabemos amar a juventude estonteada, a meninice inerme, os
janeiros e as auroras152.
Ao grito iconoclasta “E que não fique nada! nada! nada!” sucedia o último parágrafo dos
“Mestres do Passado”:
Só eu. E os meus amigos... Não. É preciso que fique também o “eminente jornalista”.
E os “Bons e Maus” também. E o sr Nuto Santana... O sr Nuto Santana é necessário
para a alegria da vida. Não. Melhor é que tudo fique assim como está: nem o
Universo se desmantele, nem a Terra vá bater na Lua, nem o Brasil seja infeliz. Mas
que fique também o riso, a alegria, a criançada! O sr Tristão de Athayde já verificou,
citando Hegel, que tudo isso é sintoma das épocas de transição. Viva o riso, a alegria,
151
ANDRADE, Mário de. Mestres do Passado. In: BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro, p. 269.
ANDRADE, Mário de. Mestres do Passado. VI - Vicente de Carvalho. In: BRITO, M da S. História do
modernismo brasileiro, p. 307.
152
289
a “blague”! Estaremos nós por acaso numa época de transição?...153
Questionamento, apelo ou blague, o crítico do O Jornal não respondeu diretamente às
palavras de Mário de Andrade. Em janeiro de 1922, porém, Tristão de Athayde tocara na
questão que parecia ser tratada já como dissídio entre “passadistas” e “futuristas”:
Entre os extremos, igualmente censuráveis, dos que querem o Brasil improvisado e
dos que o desejam anquilosado, havemos de encontrar um justo termo. Em quase
todos os aspectos nacionais, encontramos o dissídio desses pontos de vista, mas só a
face literária aqui nos interessa. Ainda nesta se repelem os projetos do futuro e os
impregnados do passado. Buscam todos o “caráter” brasileiro – tema até hoje
preferido de nossa vida intelectual. Só na fonte há discordância. Encontram-na
alguns na obediência ao tempo que passou, enquanto só no presente a procuram
outros. Foi o peso do passado que nos levou à sua negação. Houvesse a nossa
literatura brotado espontânea e a tempo, quando tudo concorresse para a eclosão, e
hoje nos havia o passado de desvanecer. Fomos colônia, porém, e, como todos os
povos colonizados do berço nos ficou o vício radical. Tudo recebemos antes de criar,
e, portanto, era natural que criássemos reagindo contra o que recebêramos. Antes
assim, se tal era a fatalidade de origem. Mil vezes antes a rebeldia que a inação. [...]
Não é, contudo, um largo e opulento passado que tolhe a invenção, antes de certos
limites alongados do tempo e esgotamento. Sempre no espírito é que devemos buscar
o mal. Só quando infante ou decrépito é que um povo se mostra incapaz de defesa
contra o peso de uma herança. Cresce com o requinte a reserva de originalidade até
a lenta agonia da perfeição. E os extremos ainda uma vez se encontram. Estará o
Brasil no caso de “ainda” repelir o passado? [...] Não sou pela repulsa, mas pela
precaução contra o passado. Muito maior tem sido, para as nossas letras, o mal da
imitação e do receio que o da audácia e da originalidade. A cauda do passado nos
tem tolhido a marcha por tímidos que somos. E é preferível por isso ver-nos
iconoclastas que idólatras154.
É difícil determinar se tais palavras eram uma resposta à série “Mestres do Passado”.
Afinal, um mês depois da publicação dos artigos de Mário de Andrade, em outubro de 1921,
Menotti del Picchia falava em uma “bandeira futurista” formada por Mário, Oswald e Armando
Pamplona que ia de São Paulo para o Rio de Janeiro a fim de engrossar a “turba futurista”,
avolumando “a triunfante legião dos avanguardistas do liberto pensamento brasileiro...”155. Nas
enumerações dos nomes do Rio de Janeiro feitas por Menotti del Picchia, cujas crônicas seriam
um “diário do modernismo”, aparecem Ronald Carvalho, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira,
Álvaro Moreira, Olegário Mariano, Villa Lobos, Flexa Ribeiro, Alves de Souza, Raul de Leoni,
Afrânio Peixoto e Graça Aranha. Em dezembro de 1921, porém, não se falava em Semana de
Arte Moderna, nem em algum evento similar. Como se pode depreender da historiografia acerca
do tema, há um descompasso entre toda a “campanha futurista” de 1921 e a dúvida que paira
sobre a organização da Semana, que ocorrera nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. Mário
de Andrade rememora a respeito:
Quem teve a ideia da Semana de Arte Moderna? Por mim não sei quem foi, nunca
soube, só posso garantir que não fui eu. [...] Já tínhamos lido nossos versos no Rio
153
ANDRADE, Mário de. Mestres do Passado. VII – Prelúdio, Coral e Fuga. In: BRITO, M da S. História do
modernismo brasileiro, p. 309.
154
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 jan. 1922, p. 1.
155
Cf. BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro, p. 316.
290
de Janeiro; e numa leitura principal, em casa de Ronald de Carvalho, onde também
estavam Ribeiro Couto e Renato de Almeida, numa atmosfera de simpatia,
“Pauliceia Desvairada” obtinha o consentimento de Manuel Bandeira [...]. E eis que
Graça Aranha, célebre, trazendo da Europa a sua “Estética da Vida”, vai a São Paulo,
e procura nos conhecer e agrupar em torno da sua filosofia. Nós nos ríamos um
bocado da “Estética da Vida” que ainda atacava certos modernos europeus da nossa
admiração. E alguém lançou a ideia de se fazer uma semana de arte moderna, com
exposição de artes plásticas, concertos, leituras de livros e conferências explicativas.
Foi o próprio Graça Aranha? foi Di Cavalcanti?... Porém o que importa era poder
realizar essa ideia, além de audaciosa, dispendiosíssima. E o fautor verdadeiro da
Semana de arte Moderna foi Paulo Prado156.
Desde então, a concorrência acerca de quem seria o idealizador da Semana de Arte Moderna
converteu-se em embates de memória e história. Anita Malfatti lembrava que:
Muito falou-se e escreveu-se sobre a decantada Semana de Arte Moderna. Foi com
a chegada ao Rio de Janeiro do escritor Graça Aranha, que René Thiollier com Paulo
Prado conseguiram alugar o Teatro Municipal por uma semana inteira para os
artistas. Foram eles, influenciados por alguns artistas cariocas e por Mário de
Andrade, Guilherme de Almeida e outros íntimos de Paulo Prado, que foram os
promotores desta Semana, que tanta influência teve sobre o desenvolvimento da Arte
Moderna no Brasil157.
Em carta a Tristão de Athayde, provavelmente de 1925 ou 1926, Ribeiro Couto conta a sua
versão que, apesar das lacunas na leitura, merece ser citada:
Quando o Graça quis fazer em S Paulo a Semana de Arte Moderna, recusei-me a ir.
O Graça queria ver primeiro o que eu levaria (Vá aí as favas! E, se eu dissera que
não, mais forte fiquei na negativa). Detesto essas excursões intelectuais,
sobremaneira confusas. Entendo que o pensamento puro não lucra nada com elas.
Porém, aí havia um agravante: a coisa ia ser teatral, com o Menotti del Picchia a
deitar falação modernista do mesmo passo que recitava Rostand! De modo que nos
preparativos da tal Semana de Arte Moderna, feitas na redação da “América
Brasileira” (O Elísio, de charutão, estava meio estomagado, porque [ilegível]
também queria tomar parte; então, [ilegível] faz, creio que em casa do Freitas Valle,
uma conferência sobre a Cavalaria entre a nobreza paulista do século XVI... nesses
preparativos, ficou [ilegível] claro: o Graça, ausente da pátria muitos anos, queria
fazer um movimento com rufos de tambor158.
No relato de Mário, à “bandeira futurista” paulista se sucedera uma investida de Graça Aranha
com o claro propósito de agrupar os paulistas em torno de sua filosofia. Se Mário e seus amigos
riam-se de Graça Aranha, era um riso que não teve publicidade entre 1922 e 1924. O que se vê
em 1922 são apoios irrestritos ao autor de Estética da Vida que, já em 1921, recebera elogios
de Cândido Mota Filho e Menotti de Picchia159. Oswald de Andrade, dias antes da Semana de
1922, defendendo que “o futurismo tem tendências clássicas” e criticando a “vida intensamente
acadêmica” das artes brasileiras, considerava que na literatura, “a não ser Graça Aranha que
vem mantendo uma grande linha de pensamento em evolução admirável – Canaã, Malasarte,
156
ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. Aspecto da literatura brasileira. São Paulo: Martins Fontes,
1978, p. 234-235.
157
MALFATTI, Anita. Apud. BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Tietê, Tejo, Seja. A obra de Paulo Prado.
Campinas: Papirus, 2000, p. 90.
158
Carta de Ribeiro Couto a Tristão de Athayde, sem data, Acervo CAAL.
159
Cf. BRITO, M da S. História do modernismo brasileiro, p. 322.
291
A Estética da Vida – vemos Afrânio Peixoto e mais alguns raros escritores sérios”160. Após a
Semana, Mário de Andrade publicara uma carta a Menotti:
[...] Somos todos os pseudofuturistas uns casos teratológicos. Somos burríssimos.
Idiotas. Ignorantíssimos. Compreendes que, com todas essas qualidades, só havia
um meio de alcançar a celebridade: lançar uma arte verdadeiramente
incompreensível, fabricar o Carnaval da ‘Semana de Arte Moderna’... e deixar que
as araras falassem. [...] O que fica é o nome e um sentimento de simpatia que não se
apagam mais da memória do leitor. Estamos célebres! Enfim! Nossos livros serão
comprados! Ganharemos dinheiro! Seremos lidíssimos! Insultadíssimos!
Celebérrimos! Teremos nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte
Brasileira. Agora calemo-nos, amigo Helios: não há necessidade de escrever.
Estamos célebres, amados e detestados. E tudo isso por que? Porque os araras caíram
na armadilha. Insultaram-nos161.
Não se pode tirar a razão do autor de Pauliceia Desvairada. Apenas, essa repercussão foi um
pouco mais limitada à época e tornou-se mais sensível com o passar das décadas. Entre 1921 e
1924, falava-se muito mais em futuristas do que em modernistas, confirmando que, como
dissera Mário, “o que fica é o nome”162.
Nos trabalhos de Tristão de Athayde daquela época, a Semana de Arte Moderna não
ocupa quase nenhum espaço, sendo uma presença apenas nas suas memórias:
Não tomei parte na Semana de Arte Moderna de São Paulo, mas a apoiei
integralmente, embora com absoluta independência. Não fazia parte de nenhum dos
grupos, nem paulista nem carioca. Não frequentava grupos literários nem livrarias.
Não tinha por isso mesmo compromisso com ninguém. Prezava por demais a minha
liberdade e a minha independência de espírito para me deixar envolver por teorias
ou por tendências grupais163.
Tais “grupos”, porém, não tinham uma existência tão rígida e contundente, talvez, nem seja
muito preciso falar em grupos, sendo mais proveitoso pensar em articulações momentâneas,
pois praticamente todas elas se corroeram ou modificaram profundamente sua relação interna
de forças em menos de uma década. Dessa forma, o crítico, independentemente de suas
memórias, poderia ser facilmente associado ao “grupo” do O Jornal, onde escreviam
regularmente Ronald de Carvalho e Renato Almeida, por exemplo.
No caso de Ronald de Carvalho, não é por acaso que Mário de Andrade e outros foram
ler poemas na casa dele em fins de 1921. A esta altura, além de autor de uma Pequena história
da literatura brasileira, dos volumes Luz gloriosa e Poemas e sonetos, o premiado escritor
assinava a coluna intitulada “Crônica de arte” no O Jornal. Aí tratava-se das exposições da
160
ANDRADE, Oswald. Semana de Arte Moderna. In: BOAVENTURA, M E (org). 22 por 22, p. 70.
Cf. THALASSA, Â. O primeiro diário de São Paulo e a cobertura da Semana de Arte Moderna, p. 142-143.
162
Já em 1921, o periódico O Jornal reproduzia charge intitulada “Futurismo”, originalmente publicada em O
Carnaval de Barcelona. No caso, em uma exposição de arte, o comprador se diz adepto da escola e, por isso, iria
pagar apenas depois de cinco anos. No mesmo sentido, o samba de Noel Rosa e Ismael Silva, “Seu Jacinto” (1932),
fala numa figura que, por ser futurista, sempre paga no futuro. Com Lamartine Babo, Noel Rosa gravou “A B
Surdo” (1930), utilizando o termo para dizer que a marchinha não era uma marchinha devido aos “absurdos”
utilizados na gravação da mesma, o refrão dizia: “É futurismo menina, é futurismo menina, pois não é marcha nem
aqui nem lá na China”. Cf. O futurismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 dez. 1921, p. 1.
163
Cf. LIMA, A A et al. Alceu Amoroso Lima. Memórias Improvisadas, p. 68.
161
292
Escola de Belas Artes, dos Salões Anuais desta mesma instituição e de uma ou outra mostra
artística que ocorria na cidade. Em 1919, ele escrevera sobre Di Cavalcanti, figura reconhecida
no Rio de Janeiro que já vinha se apresentando no Salão dos Humoristas desde 1916 como
caricaturista164, abordando sua produção como desenhista e ilustrador que mereceria uma
“particular referência”:
Seu talento, ainda um pouco indisciplinado, é, entretanto, de um vigor excepcional,
e já se mostra nessas primeiras realizações que ele nos oferece, capaz de uma obra
considerável e farta. [...] A sensibilidade e a imaginação resgatam-lhe, porventura,
as indecisões de uma inteligência que, apesar de aguda e ágil, não ganhou por
enquanto a expressão definitiva e perfeita. [...] Possuindo, de par com uma deliciosa
fantasia, uma capacidade de análise nada comum. Di Cavalcanti se firmará, em
futuro muito próximo, como retratista e ilustrador. [...] se falta uma certa segurança
de desenho, sobra-lhe, porém, uma espontaneidade, diria até um atrevimento de
fatura, realmente singular. [...] Não se lhe nota, em tal passo, mau grado a verdura
dos anos, aquela estreiteza de visão peculiar aos estreantes. Ele não procura efeitos
de luz ou de sombra para iludir as dificuldades, para evitar qualquer pormenor
desagradável ao espectador. Vai ao assunto diretamente, sem hesitações, tal se
quisesse, de um só ímpeto, apanhar o flagrante de verdade que lhe entremostram as
ilhas misteriosas da face humana. Quase todos os seus retratos são máscaras de
grande movimento, quase todos traduzem um pensamento secreto, um acordo íntimo
entre o modelo e o artista165.
Dentre os pintores que iriam participar na Semana, Ronald de Carvalho analisou as obras de
Zina Aita e Vicente do Rego Monteiro. Este último expôs na ocasião um “Retrato de Ronald de
Carvalho”. Acerca da primeira, Carvalho comenta a mostra no Liceu de Artes e Ofícios:
[...] Zina Aita tem o dom da naturalidade. Seus motivos preferidos, suas cores, seus
matizes, o corte e os acessórios das suas composições são de uma singeleza quase
primitiva [...] é sintética por excelência, despreza as minudências graciosas, estiladas
e ricas. [...] A forma que lhe seduz mais que a cor, mas a sua originalidade está
especialmente no modo por que nos transmite o volume das figuras e dos objetos.
Ao revés dos impressionistas, cujo processo já está velho e revelho, apesar de parecer
novidade e vulto a muita gente, sua fatura não apresenta aquele conjunto de massas
impetuosas, movimentadas e eloquentes. É uma fatura seca, precisa, porém cheia de
energia na sua graça suave e modesta. [...] Seus defeitos indicam apenas desvios
naturais de uma vontade que deseja libertar-se das formas rígidas e dos preconceitos
inúteis. São defeitos salvadores...166.
Já sobre o pintor pernambucano Vicente do Rego Monteiro, Carvalho aproveitara para reafirmar
164
A caricatura ocupava lugar significativo no interior das artes plásticas do país àquela época. Além do Salão dos
Humoristas, nas exposições anuais da Escola de Belas Artes havia um espaço reservado à produção caricatural. Di
Cavalcanti expôs no Salão dos Humoristas, quando foi muito elogiado. Gastão Penalva é quem conta essa história:
“Foi no Salão dos Humoristas de 1916, esse interessante conjunto de arte e espírito que, como todas as boas
iniciativas, não teve nessa terra a ajuda do destino. Em meio de centenas de quadros aramados por mestres, por
novos e por anônimos, toda a gente parava diante de uma caricatura feminina assinada por Di. Quem seria esse
Di? Os jornais que criticaram a exposição não dispensavam uma referência ao trabalho do artista desconhecido,
louvando-lhe a perfeição e a semelhança da caricatura. Afinal Di apareceu, tornou-se artista de verdade [...].
Impávido aos golpes rudes da censura atrasada, que lhe não condescende em perdoar o feitio cunho artístico, segue
Di para frente a trabalhar, e o seu sucesso confirma-se dia a dia pelo trabalho que já tem e pelas provas públicas
de algumas exposições em S Paulo, por fins do ano último, com um catálogo pequeno e escolhido de obras
imediatamente adquiridas”. Cf. PENALVA, Gastão. A caricatura no Brasil. III Di Cavalcanti. Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 5 jun. 1920, p. 5
165
CARVALHO, Ronald. Crônica de Arte. Os Nossos Desenhistas, Di Cavalcanti, O Jornal, 7 jul., 1919, p 7.
166
CARVALHO, Ronald. O espontaneísmo de Zina Aita, O Jornal, Rio de Janeiro, 30 nov. 1920, p 1.
293
a tecla da necessidade de se criar uma “arte verdadeiramente brasileira”:
Sua exposição é [...] digna de aplauso. Rego Monteiro viveu em Paris alguns anos,
aprendendo a sua arte na França. Poderia, portanto, trazer-nos flagrantes do
“boulevard”, paisagens da Bretanha, impressões da ilha de França. Poderia exibirnos ilustrações das velhas lendas nórdicas, orientais ou caledônias. [...] preferiu o
ineditismo das nossas lendas selvagens, com a sua poesia estranha e a sua indumenta
esquisita. O aspecto obscuro das civilizações primitivas, hoje mais do que nunca,
empolga o artista. Rego Monteiro observou, certamente, o pendor dos modernos
pintores e escultores europeus para a ingenuidade, a rudeza, o espontaneísmo das
artes antigas, principalmente da Índia e do Egito. Os Picasso, os Matisse, os Derain
procuram, sem compromisso com as fórmulas clássicas voltar ao sentimento dos
antigos, à “humanização da arte”, no dizer de um crítico da época, o sr André
Salmon167. Se a missão desses homens, na Europa cansada e batida por tantos séculos
de cultura, tem encontrado entusiasmos delirantes, que dizer da de Rego-Monteiro,
aqui, onde tudo é novidade. Na sua exposição, o que mais interessa é a contribuição
do pintor para os efeitos de uma grande arte cênica, de caráter profundamente
nacional. A série de bailados que lhe sugeriam as fábulas selvagens, como a do
Curupira e o Caçador, a de Pahy e Tumaré e das Icamiabas, mereceria ser
aproveitada por um dos nossos musicistas, como Villa Lobos. Com aqueles cenários
e indumentárias que desenhou Rego Monteiro, poderíamos ter alguns bailados
admiráveis. Aproveitando-se os motivos musicais dos nossos selvagens, encarecidos
não faz muito por Villa Lobos em uma entrevista cheia de bom senso, combinando
essas melodias bárbaras com as decorações de Rego Monteiro, muito lucraria nossas
artes168.
Deve-se lembrar, neste sentido, as considerações de Aracy Amaral sobre o fato de Ronald de
Carvalho ter sido “particularmente responsável pela adesão de Heitor Villa-Lobos, seu amigo
pessoal, e dos artistas plásticos Hildegardo Leão Velloso (1899-1966), Zina Aita (1900-1967) e
Vicente do Rego na Semana, tendo a ela enviado parte significativa da sua própria coleção
particular para exposição”169.
Como crítico de arte, Ronald de Carvalho tinha de apreciar obras diversas segundo
seus critérios, procurando contemplar o que podia haver de valioso em cada uma delas. Como
afirmara certa vez acerca da crítica: “As obras de arte não podem ser julgadas senão pelo
espírito profundo que as anima, pelas intenções que traduzem, pela realidade transcendente que
nos comunicam”170. Ao tratar de alguns paisagistas, elogiava os trabalhos de Jorge de
Mendonça, considerando, porém, o fato de a Escola de Belas Artes não ter conseguido, após
cem anos de existência, criar uma “verdadeira escola de paisagem”. O aspecto nacional que,
como vimos acima, o Ronald poeta procurara relativizar, era acionado pelo crítico de arte. A
linguagem acadêmica seria uma espécie de “retórica da paleta”, marcada por “meia dúzia de
lugares comuns” segundo as regras de um academismo impassível e inócuo. O autor criticava
167
Crítico e poeta francês foi, ao lado de Apollinaire e Max Jacob, um dos entusiastas dos quadros de Pablo Picasso
desde 1905. Cf. RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo, p. 197.
168
CARVALHO, Ronald de. Duas exposições de pintura, O Jornal, Rio de Janeiro, 3 jul. 1921, p 1.
169
Cf. BOTELHO, André. Um ceticismo interessado: Ronald de Carvalho e sua obra dos anos 20. Tese de
Doutorado. Unicamp. Campinas, 200, p. 122.
170
CARVALHO, Ronald. As bases da crítica, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 mar. 1923, p 1.
294
a insistência e a primazia dos motivos greco-romanos que reinariam solitariamente na arte
decorativa e lembrava a sentença do pintor inglês William Turner (1775-1851) que afirmava
pintar o que via e não o que sabia, ao contrário dos brasileiros que estariam sempre, com
algumas exceções, a reproduzir saberes não se importando com aquilo que viam171.
As crônicas de arte de Ronald de Carvalho são fontes importantes para se compreender
o desenvolvimento das artes plásticas no Brasil daquele período segundo as preocupações,
questões e movimentos que importavam ao segmento. As exposições da Escola de Belas Artes
eram eventos significativos na cultura intelectual brasileira no interior da qual ganhavam
interpretações as mais variadas172. Se não é o caso de acompanharmos aqui as análises de
Ronald de Carvalho acerca destes pintores e artistas, destaquemos um de seus textos teóricos
que versava, em 1920, sobre a “tortura da arte contemporânea”. Ele refletia sobre o “dilema
trágico” do artista:
Uma longa tradição esterilizante de escolas tanto ou quanto fictícias, a prática de
certas regras impostas pelo hábito ou pelo respeito à antiguidade, assim como o peso
morto de um passado que já não corresponde aos desejos e às ambições da alma
moderna, estão indicando a necessidade de novos métodos mais largos e
animadores173.
Não seria mais possível ao artista permanecer numa “atitude de tranquilo ecletismo” que
marcaria o ambiente cético que caracterizaria o mundo das artes no início do século XX:
Ele tem de escolher, sem hesitar, um destes dois caminhos: em aceitar o cânon
acadêmico, tão dilatado que abrange até as rebeldias serôdias do impressionismo,
ou, então, romper com o formulário passivamente adotado e olhar, frente a frente, a
realidade tumultuosa da vida circunstante. No primeiro caso teremos um artista
amável, avisado, prudente conhecedor daqueles enganos e misturas sábias que são o
encanto dos amadores felizes. No segundo, estaremos em face de um técnico
possivelmente inferior, sem os recursos do outro, sem a sua astúcia calculada e sutil,
mas estaremos em face de um homem, isto é, de uma vontade criadora que, muitas
vezes em detrimento de uma certa beleza convencional e aprioristicamente, prefere
a extravagância e o exotismo à prática do mimetismo cheio de brilhos inúteis e
perigosos. Esse ideal de arte viva e livre que, por um momento, julgaram encarnar
cubistas e futuristas, não está, entretanto, nem na plástica geométrica daqueles nem
no dinamismo metafísico destes. O cubismo nada mais é, no fundo, que uma simples
decomposição matemática das coisas. Ele se reduz a uma análise numérica das
figuras, análise seca e precisa que, à força de tanto seccionar o contorno dos corpos,
acaba por destruí-los, tirando-lhes a fisionomia própria e o caráter particular.
171
CARVALHO, Ronald. Os pintores de nossa paisagem, O Jornal, 10 out. 1920, p 1.
O livro Mocidade Morta (1900), de Gonzaga Duque, publicado em 1900, é bastante elucidativo acerca das
visões críticas acerca do academismo. Dentre outras tramas, o livro narra as desventuras de um grupo de jovens
escritores e artistas, os insubmissos, que pretende reformar as artes brasileiras, “escangalhar a academia”, em nome
de uma arte nova. Formam então o grupo “Zut” que significaria “qualquer coisa, coisa nenhuma”. O livro se inicia,
inclusive, com a exposição na Escola de Belas Artes de um premiado pintor que chegara recentemente da Europa,
onde fora premiado, Telésforo de Andrade, e que apresentava um quadro histórico, enorme, intitulado a Rendição
Uruguaiana – 28 de setembro de 1865, numa clara referência aos consagrados quadros históricos de Pedro
Américo e Vítor Meireles. Os jovens faziam piada da produção do pintor consagrado por verbas do governo e por
presenças ilustres, exclamando em frente ao quadro: “_ Sublime! Único! Telesfowmidal”. Cf. DUQUE, Gonzaga.
Mocidade Morta. Disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=38020, p. 34.
173
CARVALHO, Ronald. A tortura da arte contemporânea, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 dez. 1920, p 1.
172
295
Querendo reagir contra o chamado pós-impressionismo, que não via na atmosfera
senão a luz, os cubistas, a exemplo de Picasso ou Metzinger, caíram no exagero
oposto, porquanto só percebiam no espaço o valor dos volumes. Apesar de todas as
suas audácias de expressão o cubismo não conseguiu libertar-nos do ranço clássico,
pois representa, na imobilidade dos seus planos conjugados, das suas numerosas
projeções e dos seus ângulos caprichosamente distribuídos, uma volta, bastante
confusa sem dúvida, aos métodos tradicionais. Não se enganaram os futuristas
quando taxaram o cubismo de arte estática, ainda amarrada aos preconceitos do
desenho e da cor, das massas e da luz174.
Não se trata de subscrever os juízos de Ronald de Carvalho, é inegável, porém, que o crítico
possuía uma visão bastante precisa acerca de alguns dos significados das vanguardas plásticas
do início século XX. Lembramos, neste sentido, que, nos esforços de se criar definições rápidas
e sintéticas, “tais afirmações vão se tornar frequentes: o cubismo é um realismo, o cubismo é
um classicismo; confrontado sem distinção às duas concepções respectivas, o público era
impelido a aceitar o cubismo”175. Carvalho esforça-se para criar uma linha interpretativa válida
para a realidade brasileira a partir de uma crítica às vanguardas artísticas:
Mau grado a crítica cerrada feita contra os cubistas, o futurismo também não
resolveu o problema que a si mesmo se propôs. Tentando, segundo pontificam em
sua linguagem científico-pitoresca, “colocar o espectador no centro do quadro”,
estabeleceram como princípio fundamental que, “ao invés do contorno dos objetos
fugir para um centro situado o nosso horizonte, foge para uma periferia (ambiente)
da qual ocupamos o centro”. A simultaneidade da nossa visão e das coisas que
incidem no raio dela, deveriam criar, assim, um dinamismo de planos e luzes, único
capaz de nos dar a medida justa da linha e do movimento. Ora, baseando-se a arte
futurista na linha e no movimento, e sendo estes a expressão mesma do dinamismo
universal, não haveria como recusar a excelência dos princípios assentados por
Marinetti e Boccioni. Teríamos que aceitar, então, não só a poesia do lirismo
multilíneo, senão a pintura dos sons, dos rumores e dos perfumes, proposta por Carlo
Carrá, em seu manifesto de agosto de 1913176. Perceberíamos, pois, cheios de febre
e de certeza de ideal novo, as cores da velocidade, da alegria, da tristeza, as “cores
do movimento sentido no tempo e não no espaço”. [...] Veríamos o invisível,
sentiríamos o insensível, tocaríamos no imponderável! O simultaneísmo futurista
não passa, porém, de uma bela fantasia para nos arrancar da monotonia desse eterno
quotidiano que nos amargura. [...] Filosoficamente, nada poderíamos dizer contra as
leis da metafísica futurista. Esteticamente, porém, elas são absurdas. Nosso olhar não
percebe os “volumes dinâmicos” de um Russolo, nem as “espessura atmosféricas”
de um Balla, nem tampouco as “sínteses” de um Soffici, assim como não consegue
o nosso aparelho mental, talvez por em quanto, penetrar o dadaísmo de Tristan Tzara
ou simultaneísmo poético da Picabia. Para tanto, será necessário que as condições
físicas e morais da humanidade se mostrem muito diversas das atuais. Faz-se mister,
entretanto, que atiremos os nossos dados. Respeitemos as tradições, saibamos
compreender a obra do passado, mas não nos confinemos dentro das fórmulas
rígidas, nem confundamos o preconceito com realidade. Não devemos afirmar, a
exemplo de Marinetti, que um automóvel lançado em vertiginosa carreira é mais belo
que a Victoria de Samotrácia. Devemos fazer, ao contrário, de todas as coisas uma
obra de beleza, retirando delas a energia alegre e saudável de que necessitamos. É
preciso não esquecer que cada homem traz consigo a sua fórmula, cada homem é um
momento da história universal.[...] A modernolatria, entretanto, é tão perigosa como
174
CARVALHO, Ronald. A tortura da arte contemporânea, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 dez. 1920, p 1.
Cf. FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle, p. 100.
176
Trata-se do manifesto “La pittura del suoni, rumori e odori” publicado por Carlo Carrà em agosto de 1913.
175
296
a classicolatria. [...] Libertemo-nos tanto de um quanto de outro preconceito [...]177.
As considerações de Ronald de Carvalho poderiam somar-se às inúmeras manifestações de
críticos, artistas, teóricos e pensadores que em diversos países procuravam reiteradamente (re)
significar e (re) orientar a produção artística e intelectual nas primeiras décadas do século XX.
No caso brasileiro, tais proposições feitas no despontar dos anos 1920 parecem começar pelo
fim, ou seja, quando o impacto da Grande Guerra, da ascensão do fascismo e da Revolução
Russa de 1917 produzira movimentos como os do retorno à ordem178, da Nova Objetividade e
de outros posicionamentos179, como os de Pablo Picasso, que insistia, em 1923, que o cubismo
estava totalmente inscrito “nas regras e limites da pintura”, tendo utilizado “o desenho, a forma
e a cor no mesmo espírito e com os mesmos métodos que as outras escolas”180. O próprio pintor
futurista Carlo Carrá publicava um Nossa antiguidade (1916), rejeitando a vanguarda em nome
dos “valores eternos” encarnados na tradição clássica. Sobre a história das vanguardas é
importante manter pontos de vista abertos à multiplicidade de significações, evitando-se
concepções restritas que apenas empobrecem a contemplação histórica de tais fenômenos:
Em uma perspectiva temporal larga, o vanguardismo aparece finalmente como uma
característica essencial de alguns decênios do século XX; ora, cada cultura tem sua
lógica e seu ritmo. Seria o erro deste vanguardismo histórico de se comportar como
se certas culturas fossem mais avançadas que outras – donde um militantismo
inconscientemente colonialista em muitos de seus guias. A força de um movimento
ou de uma obra é de estar em fase com seu meio e sua época, quiçá de os ultrapassar;
aqui os vanguardistas são assim simbolistas, alhures eles são surrealistas, e isto não
é uma maior ou menor vantagem. A circulação de ideias e de formas não tem um
sentido único, e uma hegemonia ou uma retração nunca serão definitivos181.
Se Ronald de Carvalho possuía uma produção e uma atuação que justificavam a
atração que exercera sobre os jovens “futuristas”, Graça Aranha, com sua Estética da Vida,
parecia também agradá-los182. Tristão de Athayde, porém, não compartilhou do entusiasmo pela
teoria estética do acadêmico que possuiria um inato “horror visceral pela análise”:
Possuidor de formosa inteligência, que não se alimenta no conhecimento das coisas,
mas na intuição delas, dotado de imaginação delirante, libertado de qualquer tortura
da dúvida interior, partindo de um otimismo fundamental para chegar a um risonho
egotismo, sentindo apenas no mundo exterior a volúpia das formas e no mundo
íntimo o sensualismo das ideias puras, animado de perene entusiasmo, e confiado
mais no que sonha do que no que vê, tudo para o Sr Graça Aranha está na magia das
177
CARVALHO, Ronald. A tortura da arte contemporânea, O Jornal, 21 de dezembro, 1920, p 1.
O texto de Guillaume Apollinaire, “O espírito novo e os poetas”, lançado em 1918, marcaria esse “retorno à
ordem”, ou chamado à ordem, que se afirma revalidando o classicismo, afirmando seu cartesianismo ao advogar
um sólido e assentado bom senso: “Assim o espírito novo, que tem a ambição de marcar o espírito universal e que
não pretende limitar sua atividade a isto ou àquilo, não sendo menos, e pretende continuar uma expressão particular
e lírica da nação francesa, de modo que o espírito clássico é, por excelência, uma expressão sublime desta mesma
nação”. Cf. In: HARRISON, C. et al. Art en théorie, p. 262.
179
Cf. FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle, p. 44.
180
Entrevista de Pablo Picasso feita por Marius Zaya, intitulada “Picasso fala”. In: HARRISON, C et al. Art en
théorie, p. 249.
181
FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle, p. 542.
182
Cf. MORAIS, E J de. A brasilidade modernista, p. 21-22.
178
297
aparências e só há no mundo uma verdadeira inimiga do homem: a Verdade183.
As reflexões teóricas de Graça Aranha teriam um caráter espetacular, navegariam numa lógica
conceitual abstrata, trabalhariam com noções gerais cujo acompanhamento pelo leitor não era
e continua não sendo uma tarefa simples. O crítico fazia restrições às ideias de Graça:
Tendo chegado pela inteligência a domar a sensibilidade, que nos faz sofrer pela
participação às dores alheias, não pode permanecer na pura intelectualidade, cuja
ação também nos leva à dor, pelo debate insolúvel, entre a curiosidade e a
incapacidade humana. Certa tendência inata ao repouso íntimo, e à contemplação
ativa, o sentimento de que “os homens procuram na vida contingente a felicidade”,
e a visão dessa felicidade, não na Virtude, como quer Sócrates, mas na alegria, como
quer Spinoza, mostraram-lhe a necessidade de vencer também a inteligência, que nos
fere com a verdade, depois de ter vencido a animalidade, que nos fere com o desejo,
e a sensibilidade, que nos fere com o altruísmo, para chegar, enfim, à serenidade da
pura intuição do universo, que nos torna transcendentes aos seus males, pela
eliminação do bem e do mal.
Nesta “intuição do universo” residiria a sua “concepção estética da vida” que partiria de uma
crítica, muito comum à época, às limitações da ciência para a formação de uma vida autêntica:
A ciência decompõe o Universo, discrimina-o, estuda-o nas suas manifestações
parciais. Só há ciência do que se pode fragmentar. Pode-se analisar, explicar cada
ordem de fenômenos percebida pela sensação; a ciência não dará jamais a explicação
sintética do todo, a essência da causalidade. Ela ficará estranha ao sentimento da
unidade infinita do Universo, que só nos pode ser revelada ela religião, pela filosofia,
pela arte.
Conforme notava o crítico, uma vez que o autor não optara pela religião, ele acabara por abraçar
uma concepção que tinha sua matriz na filosofia do francês Henri Bergson:
Bergson chegou à intuição como forma “final” do conhecimento, mas o que corre
mundo como bergsonismo184, e abre as portas da metafísica a todos os inspirados da
filosofia, é a intuição como forma “inicial” do conhecimento, prescindindo da longa
e paciente pesquisa pura da inteligência, cômodo diletantismo que estava longe de
ser a intenção do filósofo. Só tem o direito de desdenhar ou de passar adiante da
ciência aquele que a penetrou profundamente e pode conhecer-lhe os limites185.
A filosofia de Bergson ao substituir a medida objetiva do tempo matemático pela duração
subjetiva, defendendo a primazia da intuição na relação do homem com o mundo, enfeixada
numa concepção otimista do progresso humano segundo uma “evolução criadora” servia como
uma luva na concepção espetacular do universo esposada por Aranha. Não haveria neste último,
assim como no próprio Bergson186, a preocupação com as ciências. Conforme notara o crítico,
183
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 ago. 1921, p. 1.
Charles Péguy e Julien Benda tinham posições antagônicas sobre o bergsonismo. Enquanto o primeiro
considerava que “o bergsonismo também é um método para bem conduzir sua razão. (...) O bergsonismo nunca
foi um irracionalismo, nem um antirracionalíssimo”; Benda “atacava em termos estritos o suposto irracionalismo
de Bergson, a sua desconfiança da ciência e da inteligência, pois o ‘ódio à Inteligência é uma das características
essenciais de nossos modernos’, acreditava [...]”. Cf. COMPAGNON, Antoine. Os Antimodernos, p. 258-259.
185
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 ago. 1921, p. 1.
186
Segundo Bertrand Russel, autor muito citado por Tristão, a obra de Bergson constituiria uma importante vertente
da filosofia àquela época, que ele divide entre pragmáticos, clássicos e realistas. O filósofo francês estaria entre os
primeiros e, para o cético inglês, assim poderia se resumir seu trabalhos: “Donnés immediates de la conscience de
Bergson, foi publicado em 1889; e seu Matéria e memória, em 1896. Mas a grande reputação começou com A
evolução criadora, publicado em 1907 – não que este livro fosse melhor do que os outros, mas continha menos
argumentos e mais retorica, de modo que tinha efeito mais persuasivo. Não há, nesse livro, do começo ao fim,
184
298
Aranha invertera o esquema da filosofia comteana “fazendo a humanidade passar do teocrático
ao científico e daí ao metafísico, de onde partirá para a sublime inconsciência final...”187. Tristão
criticava a visão pragmática de Graça Aranha exposta no trecho seguinte:
A concepção estética do Universo, pela sua essência, é estranha a toda a ideia do bem
e do mal. Nessa perfeita unidade com o Todo, não se prossegue nenhum fim, tudo é
aparência, tudo é ilusão... Os homens buscam na vida contingente a felicidade... A
alegria só pode ser dada aos estados especiais de inconsciência transcendental... O
máximo da ascensão espiritual é a não ascensão, é a unidade... O ideal é sentir e não
compreender188.
Esta espécie de “humanitismo” Quincas Borba189 só poderia fazer sentido, segundo o crítico, a
partir de um lugar bastante privilegiado:
Não é de poeta essa voluptuosa isenção, mas de sibarita, que vê passar,
confortavelmente sentado em sua acolchoada poltrona de filósofo espectador, toda
essa roda de possessos, que vive a vida sem estética, perseguidos pelo mal da
essência, que lhes impede de gozar a sublime e macia aparência. Eis a atitude
filosófica do Sr. Graça Aranha, eis a que se reduz a sua estética da vida [...]. A
essência da arte, para o Sr Graça Aranha, é “o seguimento dessa unidade (com o
Universo), quando se realiza pelos contatos sensíveis com a natureza, pelos sentidos
corporais, transportando as sensações até a altura de emoções vagas, indefinidas do
Todo”. [...] Tudo vem dar afinal no “frêmito de infinito”, que é a grande volúpia
espiritual do sr Graça Aranha e à sua obra comunica um fulgurante vácuo. É sempre
o seu profundo anti-intelectualismo que o inspira a escrever que “o pensamento e a
ideia, elementos essenciais da poesia e da literatura, são limitações à pura emoção
estética”. Chega, por isso, ao puro verbalismo, que pratica, quando explica que “na
poesia, pelos contatos sensíveis das palavras, o espírito humano é levado ao
nenhum argumento e, portanto, nenhum mau argumento; existe apenas um retrato poético que apela para a fantasia.
Não há nele para ajudar-nos a concluir se a filosofia por que advoga é verdadeira ou falsa; essa questão, que pode
ser encarada como frívola, Bergson deixa para os outros refletirem. Porém, segundo suas próprias teorias, ele está
correto, pois a verdade deve ser alcançada pela intuição, não pelo intelecto e, assim, não é uma questão de
argumento. Uma grande parte da filosofia de Bergson é apenas misticismo tradicional expresso em uma linguagem
com algumas conotações novas”. RUSSEL, Bertrand. Ensaios céticos. Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 66.
187
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 ago. 1921, p. 1.
188
ARANHA Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 ago. 1921, p. 1.
189
Sem reduzir a filosofia de Graça Aranha às reflexões do personagem, indico algumas semelhanças entre a
disposição intelectual de ambos, ou seja, certa personalidade e certo caráter que parecem compartilhar. Conforme
o personagem, o “humanitismo” proviria de “humanitas” e procuraria ir ao “princípio das coisas”. Segundo os
comentários de Brás Cubas, era uma “filosofia que acomodava-se facilmente com os prazeres da vida, inclusive a
mesa, o espetáculo e os amores; e que ao contrário, a frugalidade podia indicar certa tendência para o ascetismo,
o qual era expressão acabada da tolice humana”. O “universalismo” era o ponto de partida do humanitismo: “Para
entender bem o meu sistema [...] importa não esquecer nunca o princípio universal, repartido e resumido em cada
homem”. O narrador não deixa de inscrever marcas irônicas sobre essa filosofia que fala do mundo e de todos os
males na tranquilidade da farta mesa de jantar: “Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação
conveniente, como disséssemos o estalar de dedos de Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do
frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera. [...] este frango, que eu almocei agora
mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mato ao meu
apetite”. A dor é assim definida: “A dor, segundo o humanitismo, é uma pura ilusão. Quando a criança é ameaçada
por um pau, antes mesmo de ter sido espancada, fecha os olhos e treme; essa predisposição é que constitui a base
da ilusão humana, herdada e transmitida. Não basta certamente a adoção do sistema para acabar logo com a dor;
mas é indispensável; o resto é a natural evolução das coisas”. O humanitismo, em sua concepção espetacular e
universalista, era otimista por natureza, a expressão de um mendigo que encontrara a fortuna. Seu elogio à vida e
seu otimismo exacerbado podem ser resumidos na inversão da máxima trágica de Sileno. Enquanto esta pregava
que a o maior bem humano seria não ter vindo à existência, Quincas Borba dizia que “verdadeiramente há só uma
desgraça: não nascer”. Cf. ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1881, p. 253-306. Sobre a teogonia da dor na tragédia antiga a partir da figura mítica de Sileno ver:
NIETZSCHE, Friedrich. A origem da tragédia na música. Lisboa: Editora Guimarães, 1982.
299
sentimento vago na unidade infinita do Universo”. Coloca, por isso, a música no
ápice das artes, porque o oceano de harmonia em que banha, ao ouví-la, o nosso
espírito não exige o menor esforço de compreender e leva-nos a essa voluptuosa
moleza da imaginação, em que William James via, com razão, o maior perigo para a
alma humana, mas em que a filosofia confortável do Sr Graça Aranha descobre
justamente o único meio de alcançarmos o Infinito que é a inconsciência...190
Não aceitava o crítico esta ascendência do inconsciente sobre o consciente, salvando nela,
apenas, a “vertigem do infinito” que para ele seria “a poesia dessa metafísica pragmática”.
O presente fugidio
Não era Graça Aranha o indicador dos caminhos que o crítico tanto ansiava segundo a
percepção de se viver numa época de transição. Tal “transição” seria verificável no pós-guerra
que teria aberto um horizonte impreciso, entre a evolução e a revolução, na literatura:
Atualmente as predições são meras conjeturas. Sem embargo, já se podem descobrir
na guerra dois efeitos prováveis (dependendo como dissemos da evolução ou da
revolução) sobre a literatura vindoura: um formal, outro virtual. O efeito formal será
o assunto mais trágico e aventuroso, vocabulário mais rico e ousado, sensibilidade
menos delicada e mais geral. O efeito virtual se traduzirá por mais vigor na literatura,
mais movimento na arte, mais voo na poesia, vida mais plena enfim. [...] A literatura
baixará dos cenáculos e grupos de aristocracia intelectual para o meio da multidão,
sem se perder nela. O homem crescerá mais em mais. A literatura será menos um
jogo de palavras, que a expressão de uma realidade superior. A arte ainda uma vez
realizará “o esplendor da verdade”191.
Guillaume Apollinaire é retomado, reforçando o papel dos franceses nas reflexões brasileiras:
Guillaume Apollinaire, o Debussy das modernas escolas literárias francesas,
diminuído pelos excessos de seus discípulos, escreveu, pouco antes de morrer: “o
novo espírito das letras, oriundo da guerra, terá por caráter diferencial a exploração
da verdade exaltando a vida, sem prejuízo do bom senso”. [...] Eis aí, sem mais detido
exame, um esboço da influência da guerra sobre a literatura na terra de França,
Delfos do mundo moderno.
O esboço aludido pelo autor tratava da emergência de um “neorrealismo” durante a guerra que
teria em Henri Barbusse e Georges Duhamel, escritores que tematizaram diretamente o conflito,
seus maiores nomes. Tal orientação, porém, não manteria sua predominância após o conflito,
deixando as expectativas indefinidas: “A guerra sacudiu a literatura, trazendo-a do cubismo
quase ao naturalismo, e levando-a depois a mais desmedida fantasia192: só com o tempo poderá
voltar a serenidade e o repouso, para a eclosão do Grande Rapsodo”193.
Na visão do crítico, tal condição oracular era compreensível, tendo suas razões e
consequências num país como o Brasil que após a conflagração poderia ter outra perspectiva:
Nacionalidade ainda não sedimentada, politicamente nula e economicamente
190
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 ago. 1921, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jun. 1919, p. 9.
192
“Nota-se, em França, um renascimento do romance de aventuras, da literatura de imaginação, da fantasia e do
exotismo. Pierre Benoit, o grande autor do dia, escreve obras de uma inspiração ardente - como L’Atlantide ou
Koenigsmarck. Pierre Mille leva-nos à Turquia, Charles le Goffic conta-nos histórias de piratas. As gazetas vêm
cheias de narrativas sobre costumes armênios ou marroquinos, japoneses ou das Antilhas, Rosny Ainé e Claude
Farrère voltam à baila”. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jun. 1919, p. 9.
193
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jun. 1919, p. 9.
191
300
instável, carregando um peso imenso de analfabetos e de doentes, temos de refletir
as cambiantes literárias do Velho Mundo ou restringir nossas ambições. [...] Nesse
sentido, trouxe-nos a guerra um grande bem. A verdadeira literatura é a que busca a
seiva no solo que nos gerou. Árvores exóticas só podem vingar em estufa. Assim,
graças, em parte, à guerra, acentuamos a tendência ao regionalismo a que já nos
conduzia nossa própria evolução. Vai circular cada vez mais, nos nossos livros, um
perfume de mato, de terra molhada, de brisa fresca do mar. Os assuntos brasileiros,
os costumes sertanejos ou praieiros, a paisagem que nos cerca hão de dar mais
espontaneidade à nossa literatura. A inspiração nacional não nos levará tão alto, mas
com mais segurança, para um futuro remoto de criação e independência. Precisamos
ganhar personalidade. Por ela [guerra] talvez venha alegria à nossa literatura.
Paradoxo possível, se bem que improvável. A tristeza é uma flor de civilizações
cansadas. É certo que pode ser também de civilizações apressadas, como a nossa.
Contudo, limitando-nos a ambição intelectual, renovando a verdadeira tradição,
despertando o realismo nacional, dando-nos, enfim, saúde mental, é possível que a
guerra traga o sorriso à nossa arte triste. Com uma inspiração mais natural, com um
pensamento mais livre e sadio, poderá nossa produção literária alcançar aquela forma
simples e vigorosa, padrão de boas letras194.
Com a reiterada verificação da perspectiva acadêmica dentre os jovens, o crítico ia depurando
suas reflexões estéticas em torno do fenômeno artístico, ainda que mantivesse o horizonte
nacional. Em fevereiro de 1921, desdobrava-se sobre a especificidade do literário:
Por extensão, pode considerar-se literatura todo o movimento de publicidade
intelectual de um povo. Sob esse aspecto, a filosofia ou a própria ciência são
literatura, como expressão literária do pensamento. Estritamente, porém, literatura é
o aspecto verbo-motor do fenômeno artístico. E como tal exclui o pensamento puro.
[...] Pois bem: escoimado o campo literário de tudo que não seja composição da
própria fantasia, estreme de qualquer outra preocupação, é possível ainda encontrar
nesse acervo de obras puramente literárias dois caracteres essenciais e distintos: o
estático e o dinâmico. [...] Algumas abrem caminho, procuram novas formas de
expressão, refletem com toda a nitidez a personalidade do autor, cuja preocupação
não é tanto o assunto da sua obra, como o próprio temperamento, a própria alma em
ebulição. São vivas, intermitentes, desordenadas, denunciando o desejo da inovação,
o gosto da originalidade. Quebram moldes, ostentam veleidades literárias, não
desdenham da própria mistificação para escândalo das severas vestais do
academismo, do tradicionalismo. São irreverentes e ingênuas, de curto fôlego e viva
impressão. Apresentam outras aspectos radicalmente diversos. Não se dispersam em
furores de originalidade nem traem a alma do autor, mas vivem de uma vida mais
objetiva, procurando antes condensar e consolidar os elementos dispersos que outros
semearam. São mais sólidas, mais duradouras, desenvolvendo-se com toda a
segurança, dentro dos limites consagrados e procurando o objetivo de arte com uma
disciplina mais severa e vencendo, certamente, dificuldades maiores. [...] esses
elementos estático e dinâmico, em literatura, não são mais, em suma, do que a velha
querela de clássicos e românticos195.
O crítico considera que, àquela altura, quanto aos aspectos estático e dinâmico, “sofremos do
abuso do primeiro, e desconhecemos os abusos do último”. Este teria desdobramentos
diferentes na literatura de ficção nacional e na de outros países:
Esse elemento dinâmico, que em outras literaturas muito mais avançadas e
requintadas está produzindo uma arte sem fio, traduz-se no nosso meio por uma
maneira pessoal de sentir, de observar, de escolher o assunto e de exprimi-lo. E se
nessas literaturas tende cada vez mais para o universal e o arbitrário desde a sintaxe
194
195
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jun. 1919, p. 9.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 fev. 1921, p. 2.
301
até o instinto infantil que tanto encarece, orienta-se em nossa literatura
decididamente para o nacional e o real196.
Assim, determinada em sua especificidade, “literatura é o aspecto verbo-motor do fenômeno
artístico”, e ressaltada a sua autonomia, “escoimado o campo literário de tudo que não seja
composição da própria fantasia, estreme de qualquer outra preocupação”, o crítico procurava
erigir um campo reflexivo que franqueasse àquele elemento dinâmico uma abertura ainda
desconhecida na cultura intelectual brasileira. A orientação deveria ser o realismo e o
nacionalismo que garantiriam o dinamismo brasileiro. O reiterado classicismo acadêmico teria
de ser superado: “A todos que venceram a rotina e o academicismo parece que a velha retórica
Greco-romana está respeitosamente catalogada no museu das antiguidades literárias, ao lado
dos cânones artísticos, dos tratados de poética ou da famosa coordenação platônica”197. Ao
tratar da obra As belas letras, de Gastão Franca Amaral, ele se diz surpreso em ver “cá fora”
ideias que pareciam mumificadas:
Sendo o estilo uma coisa toda formal e concreta, a sua constituição ou organização
só pode ser feita depois da elaboração do pensamento, na ocasião de sua expressão
vocabular-gráfica sobre o papel (sic). Neste momento, então, é que o escritor dispõe
ao seu gosto, segundo a ordem que se lhe afigura mais elegante, as palavras, as frases,
de acordo com as regras. [...] O Estilo é antes de tudo uma disposição formal da
expressão vocabular, uma espécie de escultura da frase e do período. O que constitui
propriamente são as figuras de sintaxe: elipse, zeugma, silepse, hipérbato, anacoluto,
anástrofe, assíndeto e polissíndeto e as partículas de realce198.
Tristão de Athayde ironiza que tais ideias sejam defendidas em “pleno século XX” e aproveita
a ocasião para tecer algumas reflexões sobre o estilo em literatura:
[...] a nova concepção do estilo tem sido um dos pontos vitais de toda a crítica
moderna, desde a reação contra a teoria seiscentista, que fizera a famosa apologia
dos “ornamentos literários”. [...] A disciplina da linguagem, o polimento do estilo,
as correções, as substituições de palavras, tudo isso a que estão habituados os que
escrevem, não são absolutamente - como pensava a retórica clássica e julgam ainda
os seus continuadores – simples habilidade técnica ou obediência a fórmulas
gramaticais ou retóricas estabelecidas. Não se trata de embelezar, de corrigir ou de
melhorar a forma material do espírito, mas de apurar o próprio espírito, de procurar
o próprio eu. Esse esforço pelo estilo [...] não é um exercício literário, mas um
esforço de psicologia199.
Dessa forma, à frase do romancista Eneas Ferraz, autor do romance Histórias de João Crispim,
que afirmava “o melhor estilo é aquele que menos interrompe o curso de um pensamento”200, o
crítico destacava que o romancista “poderia ter acrescentado, para esclarecimento, que assim é
porque o estilo é o próprio pensamento, é imanente a este”.
Em outra ocasião, ele retomara uma imagem já utilizada por Sérgio Buarque de
Holanda acerca da “literatura nova de São Paulo” como provida de dois planos, horizontal e um
196
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 fev. 1921, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 mai. 1922, p. 1.
198
AMARAL, Gastão F. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 mai. 1922, p. 1.
199
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 mai. 1922, p. 1.
200
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 mai. 1922, p. 1.
197
302
vertical, que seriam “tendências universais da arte”. Holanda trata da predominância da
primeira nos paulistas e, utilizando as obras de Guilherme de Almeida, revelava o caráter
clássico deste último, erroneamente tomado como romântico, pois “o classicismo consistindo
antes de tudo na concretização das noções abstratas, de outra maneira: na objetivação do
subjetivo e na horizontalização do vertical”201. Tristão afirmava sobre o romance nacional:
A literatura contemporânea é sobretudo fragmentária. [...] Foi Alberto Thibaudet [...]
quem mostrou que o simbolismo desviara a literatura da linha horizontal à vertical.
É uma fórmula gráfica incisiva do crescente individualismo literário. E há pouco
escrevia certo crítico inglês que um dos caracteres da literatura vitoriana fora o
volume de quinhentas páginas. Para confirmar a regra, temos hoje aliás a torrente
exaustiva e irresistível de Marcel Proust, que mal pôde saborear a amarga
embriaguez da glória. Entre nós, a modernidade desse fragmentarismo, acresce a
tendência inata à literatura sem fôlego, tão da nossa negação à paciência. Somos
muito mais criadores que eruditos, seja Deus louvado. E como criadores, antes
agudos que extensos. Daí a abundância de contos e a escassez de romances202.
Ao analisar o romance de Vida ociosa (1920), de Godofredo Rangel, o crítico lembrava
que a lista de bons romancistas brasileiros vivos não parecia ir além de Lima Barreto e Afrânio
Peixoto. Na obra do autor mineiro, ele percebera, porém, a presença daquele “elemento
dinâmico”. Tristão destaca o aspecto “curioso que a literatura tenha sido, entre nós, até agora,
a única forma de arte isenta do extremado modernismo pós-bélico cujos ecos nos tem chegado
de além-Atlântico”203. O livro de Godofredo Rangel faria parte, segundo o crítico, da “nossa
literatura moderna”, cujo caráter principal seria o de “olhar a realidade sem óculos verdes, tomála tal qual é, com suas imperfeições e relatividades. E é o mais grato sinal de vitalidade literária
e social”. Assim, haveria na obra de Rangel:
[...] boa prosa literária, de um puro sabor de brasileirismo e flagrante poder de
sugestão. Não pode merecer o livro a censura, até certo ponto justa, e comumente
assacada aos nossos romancistas, de pobreza de assunto. Foi justamente um dos
meios que permitiu ao autor alcançar o seu objetivo e transmitir-nos, em forma de
ficção, as suas impressões da vida rural mineira. A intensidade dessa vida está menos
nos objetos tratados pelo autor que na maneira de os tratar. A forma de intensidade
sugestiva, empregada pelo Sr Godofredo Rangel, atua lentamente, por extensão e
pelo poder evocador das descrições, dos diálogos e das observações. E, nesse
sentido, não é absolutamente um paradoxo afirmar que a Vida Ociosa é um romance
de vida intensa. E duradoura, acrescentarei.
Wilson Martins considerara esta obra como um monótono romance sobre a monotonia204. O
romancista Autran Dourado, por sua vez, adjetivara-o como admirável, ao que o próprio autor,
Godofredo Rangel, já idoso, dizia ser “livro antigo e velho como eu, um escritor e juiz
aposentado”205. A obra, de fato, tinha como eixo principal o tédio que o juiz Dr Félix, o narrador,
201
HOLANDA, S B de. Literatura nova de São Paulo. In: BOAVENTURA, M E (org). 22 por 22, p. 148.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 dez. 1922, p. 1.
203
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 fev. 1921, p. 2.
204
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. (1915-1933). Vol VI, p. 90.
205
Cf. DOURADO, Autran. Prefácio. In: RANGEL, Godofredo. Vida Ociosa. Belo Horizonte: Edições Casa de
Rui Barbosa, 2000, p. IX.
202
303
vivia na repartição que só era remediado pelo ócio menos entediante que passava na fazenda
do amigo Américo, filho dos idosos Próspero e siá Marciana. Os dois amigos passavam dos
quarenta e eram solteiros. Américo vivera sempre na fazenda, não se formara em nada e
cotidianamente ficava a refletir sobre temas como o da existência de extraterrestres, a infinitude
do universo e, não raro, interpelava o protagonista com questões como a seguinte: “_ Senhor
doutor, com capacidade calorífica que tem hoje o centro de nosso sistema planetário, e dado o
seu arrefecimento progressivo, qual será o lapso de tempo necessário para extinção completa
da energia solar?”206. O narrador, por sua vez, fazia da preguiça o seu maior predicado. As
histórias de sua narração vinham, antes, dos fatos relatados pelo velho Próspero. A certa altura,
Dr Félix descreve sua “filosofia”, ao recusar um convite de pescaria: “_ Venho com tenções de
pescar, e no entanto não me encorajo a arrostar sol e ladeira para satisfazer meu desejo. E a vida
assim é que me parece razoável: um perpétuo aspirar, sem realizações”207. Ficava cansado e
entediado apenas de ver ou pensar no trabalho alheio e, a certa altura, quando vence uma dessas
letargias para ir ver uma cachoeira, acaba por concluir ceticamente: “_ Pode ser belo –
mastiguei; mas monótono e repisado como uma descrição de Zola. Havendo satisfeito a velha
curiosidade, eis-me enfarado, com a saciedade da posse. Isto me confirma a cômoda
filosofia...”208. Não haveria superioridade do campo sobre a cidade e daí talvez o realismo e
intensidade percebidos por Tristão de Athayde. A casa da fazenda é descrita em contradição
com o seu proprietário, Próspero: “As ripas enxadrezadas com os paus-a-pique, exibem por
toda a parte sua ossatura carunchosa. É um cadáver de casa, uma carcaça decomposta, já
mostrando as costelas”209. Em carta ao “sr. Tristão de Athayde”, Godofredo Rangel agradecia:
Se apenas agora, muitas semanas após a publicação de suas benevolentes palavras
acerca do meu livrinho, cumpro o dever de agradecer-lhe, é que o favor foi tão grande
que me enchia de hesitação não sabendo como fazê-lo. Sua opinião é de peso, com
ela se firmam ou se destroem reputações literárias; e a repercussão que ela teve, no
tocante a minha modesta tentativa, foi muito na aceitação que “V. Ociosa” tem tido.
Críticas como a sua servem de poderoso estímulo para os que se dedicam às letras210.
Como se sabe, Godofredo Rangel era amigo de Monteiro Lobato211 e a obra que está
na biblioteca do crítico contém a dedicatória: “Ao Tristão off. o Lobato esta obra prima”212.
Esse o procedimento que Lobato adotou para a promoção de outro autor de sua predileção, Leo
Vaz, que tinha seu romance apresentado ao crítico em carta do editor da Revista do Brasil:
“Mando-te um livro extraordinário o Professor Jeremias. É Sterne213 puro, é Machado de Assis
206
RANGEL, Godofredo. Vida Ociosa, p. 61.
RANGEL, Godofredo. Vida Ociosa, p. 58.
208
RANGEL, Godofredo. Vida Ociosa, p. 99.
209
RANGEL, Godofredo. Vida Ociosa, p. 6.
210
Carta de Godofredo Rangel a Tristão de Athayde, 22/04/1921, acervo CAAL.
211
Cf. LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. São Paulo: Globo Editora, 2010.
212
Cf. RANGEL, Godofredo. Vida Ociosa. São Paulo: Edição Revista do Brasil: 1920. Acervo CAAL.
213
Citado por Machado de Assis na abertura de seu Brás Cubas, revelando ter adotado sua “forma livre”, o escritor
207
304
da melhor fase, é o homem do ano”214. Na observação do crítico do O Jornal, seria um livro
sem enredo. “É um romance, espelho da vida215, e por tal forma fiel ao seu destino, que
desdenha de alterar a realidade, curvando-se às necessidades de uma ação seguida e
predeterminada”216. Dividido em pequenos capítulos, talvez daí a lembrança do Machado de
Assis “da melhor fase”, o livro evoluía em narrativas episódicas. Vaz prescindiria das descrições
de paisagens: “Não há sequer uma árvore nesse livro. Reduz ao mínimo as descrições,
limitando-se aos traços essenciais e indispensáveis”217. A força da obra estaria alhures:
A este livro falta movimento aparente, falta fantasia, falta paisagem, falta variedade,
falta comoção, falta luz, parecem faltar todos os elementos do romance, e no entanto
vive, vive intensamente dessa vida que se prolonga e mantém em nossa memória
feita de vibração interior, de pensamento agudo, de ambiência mais pressentida que
provocada, de realidade profunda nas personagens e nos fatos, de pequenas minúcias
luminosas e significativas como de imagens admiravelmente expressivas, adequadas
e originais. [...] Poderia, por exemplo, ser ainda mais conciso, e às vezes menos
forçado e tortuoso. Mas nada disso afeta a essência do livro.
A outra relação com Machado de Assis seria o ceticismo do romance:
O sr Léo Vaz é um homem para quem o mundo exterior existe apenas na inteligência
humana. Daí um profundo desdém e uma grande piedade pelas coisas humanas. Mas
a piedade é profunda, ao passo que o desdém é superficial. Nem uma nem outro são
aparentes. O que mostra é uma perfeita seriedade, quase a severidade do “humour”.
Transparente como é essa gravidade apenas exterior, deixa ver ao fundo o
pessimismo do autor. Esse puro intelectual, para quem a realidade é uma aparência,
e a razão humana parece a única certeza, zomba da própria razão, mostrando, nessa
deliciosa história do louco de Juquery, o absurdo da lógica inflexível, que se não
adapta às circunstâncias da vida e raciocina pelas simples deduções do espírito218.
Tristão de Athayde considera que o Professor Jeremias vai de par com a crença dos céticos,
como Montaigne, que só teria fé na “eterna passagem de dia a dia, de minuto a minuto”, ou
como Anatole France a lembrar que “mesmos os céus que nós acreditamos incorruptíveis
conhece de eterno apenas o eterno esvair das coisas”219. O perfil do cético seria o de uma:
[...] alma compassiva e débil de aparência, com uma ironia profunda e risonha, uma
grande convicção da vaidade profunda das coisas, e, justamente por isso, um
verdadeiro carinho por todas as formas e aspectos; libertado de preconceitos, sibarita
e pirrônico irmão daqueles tipos que Anatole France e Machado de Assis
imortalizaram, incapazes de ação espontânea, otimistas por desengano integral e
frutos de uma civilização requintada e decadente220.
O romance Histórias de João Crispim, de autoria de Eneias Ferraz, acima mencionado
irlandês setecentista Lawrence Sterne tinha reforçada sua associação à obra machadiana desde as apreciações
críticas de Sílvio Romero, especialmente acerca do humorismo do autor. Cf. ROMERO, Sílvio. O humorismo de
Machado de Assis – teorias de Hennequin e Taine. Machado de Assis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936.
214
Carta de Monteiro Lobato a Amoroso Lima, 13/01/1920, acervo CAAL.
215
Definição provavelmente inspirada em Stendhal: “Um romance: é um espelho que se leva ao longo de um
caminho”. Cf. STHENDAL. O vermelho e o negro. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 90.
216
ATHAYDE, Tristão de. O Professor Jeremias, Revista do Brasil, no 53, São Paulo, mai. 1920, p. 79.
217
ATHAYDE, Tristão de. O Professor Jeremias, Revista do Brasil, p. 82.
218
ATHAYDE, Tristão de. O Professor Jeremias, Revista do Brasil, p. 80.
219
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. O Professor Jeremias, Revista do Brasil, p. 82.
220
ATHAYDE, Tristão de. O Professor Jeremias, Revista do Brasil, p. 83.
305
nas reflexões sobre estilo, teve boa recepção do crítico:
E se eu disser que o seu livro é uma obra de real interesse, a revelação de um novo
romancista de talento, justamente por ser o contrário da literatura experimental, por
ser o romance lírico? Seu fim não foi “a verdade”, mas “a expressão da verdade”. Se
tivesse apenas buscado “a verdade”, não teria o Sr Eneias Ferraz ultrapassado a velha
estética naturalista, puramente documentadora, e que só conseguia galvanizar a
matéria literária estática, e friamente recolhida, quando o sentimento do artista fundia
os materiais esparsos e dava vida à inércia das observações. A obra-prima de Zola é
Germinal, porque o sentimento socialista do autor, a sua paixão pelos homens, a sua
indignação pelo sofrimento dos mineiros animavam, com uma chama interior
extraordinária, os dados recolhidos em sua faina de naturalista literário221.
Tristão de Athayde, porém, não faz maiores comentários acerca do livro de Ferraz, apenas
lembrando suas associações com o romance de Lima Barreto:
João Crispim e Afonso Pina são o Sr Eneias Ferraz, têm as ideias do Sr Eneias Ferraz,
olham a vida pelo mesmo prisma que este e empregam, como este, para comentá-la,
um, a mesma calma do desprezo, e o outro, a mesma paixão da revolta. A maneira
do romancista aproxima-o do Sr Lima Barreto, cujos tipos de Policarpo Quaresma e
Gonzaga de Sá têm certa analogia interior com o João Crispim. Se este é um tipo que
se grava em nossa memória, é justamente por não ser uma simples transposição da
realidade aparente, possuindo, porém, uma profunda verdade interior.
O livro de Eneias Ferraz acabou por ser visto, posteriormente, como tendo em Lima Barreto o
seu verdadeiro protagonista, um retrato do autor, conforme crítica de Wilson Martins222, e uma
biografia dele, segundo apreciações mais recentes223. Eneias Ferraz era bastante próximo de
Barreto. Este último, além de ter ajudado na publicação da obra224, lhe fez a apreciação crítica
em jornal225. Lima Barreto parece ser um autor que, já em um de seus necrológios, teve
pressagiada a sua fortuna crítica: “O homem e o romancista em Lima Barreto foram uma só e
mesma individualidade viva. Ele tinha forçosamente de morrer como vivera...”226. Assim, se a
maioria de seus personagens recorrentemente foi associada à vida do autor, uma obra que se
inspirasse neles, fatalmente, tornar-se-ia sua biografia.
Um quarto romance poderia somar-se a estes três, tanto pelo reconhecimento crítico
da época, quanto pelas semelhanças da visão cética expressa por um livro de Anatole France à
cabeceira do protagonista que ali o mantinha como uma “mão irônica e piedosa que o guiava e
corrigia através dos excessos sentimentais”227. Trata-se de A Juventude de Anselmo Torres, de
Mateus de Albuquerque. O livro narra a trajetória do personagem título que, saído de Alagoas,
passa a viver no Rio de Janeiro desfrutando especialmente da companhia de um antigo amigo
221
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 mai. 1922, p. 1.
Cf. MARTINS, W. História da inteligência brasileira. (1915-1933). Vol VI, p. 321.
223
Cf. SANTOS, André Luiz. Caminhos de alguns ficcionistas brasileiros após as Impressões de Leitura de Lima
Barreto. Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2007,
p. 125-147.
224
Cf. BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p. 320.
225
Cf. BARRETO, Lima. Marginália, p. 53.
226
Cf. PEREIRA DA SILVA, A J. Lima Barreto. A Noite, Rio de Janeiro, 7 nov. 1922, p 2.
227
ALBUQUERQUE, Mateus de. A juventude de Anselmo Torres. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1922, p. 21.
222
306
da Escola de Direito do Recife, o advogado Eduardo de Lacerda. A história se passa em salões
e eventos da burguesia carioca, onde o protagonista se vê apaixonado pela mulher do amigo,
Hortênsia. A obra foi recebida com entusiasmo por Ronald de Carvalho, que o considerara um
“romance moderno”. Para justificar o epíteto, Carvalho ensaiara uma sintética e erudita história
do romance, a começar por suas origens antigas, como “filho prosaico da epopeia”. No fim do
artigo, o autor tenta mapear algumas produções da época:
Hoje, com Maurice Barrès, André Gide, Marcel Proust, Jules Romains, Knut
Hamsun e Papini, temos excelentes modelos da novela puramente psicológica.
Procuram os contemporâneos, nomeadamente o autor de “Sodoma e Gomorra”,
explicar o indivíduo pela soma das suas sensações mínimas diante da realidade
quotidiana. O plano dos seus livros se resume, às vezes, na análise de meia dúzia de
impressões triviais, que, aos românticos e aos naturalistas, pareceriam, sem dúvida,
secundárias. O que os singulariza justamente é não desprezarem eles a menor parcela
da realidade. O gesto mais simples, a palavra mais vaga tem a sua correspondente
exata. Nada fazemos, pois, inutilmente. Torna-se, portanto, o romance como que
uma longa confissão, um ensaio minucioso das experiências íntimas que a
realizamos228.
O livro de Mateus de Albuquerque, embora não se filiando a tal tendência, manteria “preciosas
ligações com ela”. Seria um “romance depoimento, em que a urdidura da fábula foi
manifestamente posta de lado. A ação de sua obra é toda interior [...]”. Assim:
Anselmo Torres nasce para dizer o que pensa, e não o que vê. Passam-lhe os
ambientes sob os olhos, rapidamente, subitamente, com a celeridade da película
cinematográfica. Anselmo é um sensitivo, capaz do perdão e do crime, do crime de
se sacrificar, o pior de todos os delitos nesta sociedade monstruosamente incolor, de
agora ou possivelmente de sempre. [...] Compensam a falta de movimento exterior
com a riqueza, das intenções, de sonho e do caráter dos seus personagens. Aliás, seus
personagens são apenas desdobramentos, em carne e osso, dos desejos, das ideias e
dos sentimentos de Anselmo Torres. [...] Reproduz também o sr Matheus de
Albuquerque, exatamente, os conflitos da alma provinciana, sensual e desprevenida,
ao entrar e se perder nos torvelinhos de ambição e despeito do Rio de Janeiro.
Correndo a fabulação da sua novela, após a guerra, apresenta-nos ele quadro quase
contemporâneo dos nossos costumes.
Tristão de Athayde não compartilhava de tal entusiasmo na avaliação do livro.
Também ele tecia algumas considerações sobre o gênero do romance:
O Romance é [...] a arquitetura literária. Nele se conjugam todos os gêneros, como
na arquitetura se podem reunir quase todas as artes. O lirismo da poesia, a aguda
sugestão do conto, o gosto da crítica, o pensamento da filosofia, a reconstituição da
história, a verdade da ciência e especialmente a verdade humana da ciência social
[...]. É o homem todo, em sua máxima expressão literária, e toda a vida. [...] Podese mesmo dizer generalizando que as quatro grandes pátrias do romance moderno –
a Rússia, a França, a Inglaterra e a Itália – apresentam cada uma nesse gênero um
caráter diverso: o sentimento profundo do mal social, entre os russos; o extremo
requinte da psicologia individual na França; o senso da vida, e da sua comicidade
trágica, britânica; a poesia ou o dinamismo das paixões na Península itálica229.
O crítico lembra as credenciais de Mateus de Albuquerque, “amigo da beleza, poeta; amigo das
228
229
CARVALHO, Ronald de. Um romance moderno, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 nov. 1922, p 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 fev. 1923, p. 1.
307
ideias, crítico; amigo da vida, cronista”230, e a expectativa que tais características provocariam
acerca do anúncio de um romance de sua autoria. Como Ronald de Carvalho, ele retoma o fato
de ser o livro um “romance interior”, um “momento da alma brasileira contemporânea”. Porém,
Tristão, já no início de sua apreciação, considera que se trata de um “romance imperfeito”:
A despeito de se tratar evidentemente da história da própria alma, e talvez por isso
mesmo, pela grande delicadeza que possui, conservou-se o romancista um pouco
estranho ao romanceado. Estranho, é demais. Conservou-se fora, como espectador,
mostrando apenas, talvez por pudor e “elegância moral”, os traços gerais desse
caráter. Falta, portanto, ao livro um pouco mais dessa palpitação da verdade humana,
da vida em ação, que é talvez o encanto e a força suprema dos romances. Essa relativa
passividade da “juventude de Anselmo Torres”, é que tolhe um pouco o movimento
do romance, já não digo de ação exterior, que é quase nula, e não importa que o seja,
mas de vida íntima, o que é essencial. E todo o livro é escrito nessa mesma linguagem
disciplinada, sensível de uma simplicidade “que só Deus sabe o que custa”, como
diz o autor.
Consequentemente, o crítico considerava ser ainda cedo para uma tradução que se estava
fazendo do livro para o francês, que seria o ingresso para a “universalidade”:
Não será um pouco prematuro? A despeito do incontestável valor que possui – como
documento moral, como modelo de anti-romantismo vulgar e como elegância de
expressão – pode ainda dar-nos melhor o Sr Mateus de Albuquerque, com os
elementos que possui, em uma obra de introspecção mais profunda, de síntese
criadora mais intensa, de simpatia social mais viva.
A crítica feita por Ronald de Carvalho foi publicada em dezembro de 1922, meses após sua
participação na Semana de Arte Moderna. Já as considerações de Tristão de Athayde são de
fevereiro de 1923, um mês depois de ter analisado as obras de Mário de Andrade, Oswald de
Andrade e Menotti del Picchia. É inegável o impacto que os livros Pauliceia Desvairada, Alma
e O homem e a morte, em graus diferenciados, teve sobre o crítico.
Ao comentar a obra de Mário de Andrade, Tristão de Athayde, como era recorrente em
suas análises, lembrava uma passagem, fato ou interpretação de tempos passados. No caso,
falou-se dos seguintes comentários de Castro Alves:
Em 1868, escrevia-se de São Paulo para a Bahia o seguinte: “Olha, se leres poesias
nebulosas, germânicas, tiritantes, híbridas, acéfalas, anômalas... não critiques nunca,
antes de ver se são de São Paulo, e se forem... cala-te. São Paulo não é Brasil... é um
trapo de solo, pregado a goma-arábica na fralda da América (como dizia o
Tobias)”231. Cito o trecho com vistas aos que só veem extravagâncias no movimento
literário iniciado ultimamente em São Paulo, e que já reconheceram, no autor da
profecia, o seu consagrado Castro Alves, acusado no seu tempo de excessos
semelhantes aos de hoje232.
O crítico comenta sua relação com o movimento: “A evolução literária é um pêndulo. E, aliás,
sinto-me a vontade para falar desse malcrismado ‘futurismo’, pois me incluo entre aqueles que
Unamuno chamou de ‘eternistas’”. Assim, ao mesmo tempo em que os elogiava, ele se
230
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 fev. 1923, p. 1.
A referência é a correspondência de Castro Alves com Augusto Álvares Guimarães. Cf. ALVES, Castro. Obras
completas de Castro Alves. Vol. II. Rio de Janeiro: São Paulo: Belo Horizonte: Francisco Alves, 1921, p. 447.
232
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
231
308
distinguia dos “futuristas”, arrogando-se uma outra identidade temporal: a do eterno. Conforme
refletira o crítico literário alemão Ernst Robert Curtius em meados dos anos 1920 sobre uma
tradução tardia da obra Del sentimento trágico de la vida publicada originalmente em 1912:
O elemento autêntico. Forte e impressionante da religiosidade de Unamuno é o seu
desejo de eternidade. [...] Muitos de nós não sentem essa necessidade. Mas outros
associarão um sentimento de libertação a voz de Unamuno, que, na nossa Europa
esclarecida, cética e sofisticada, permanece alheia às críticas do senso comum e aos
cautelosos gestos da erudição. Entre os intelectuais europeus, não é considerado
polido falar sobre a morte e a eternidade. Mas não é esta repressão a causa de muitos
dos nossos sofrimentos? Em essência, a fome de Unamuno (...) pela imortalidade
não é mais do que o instinto de sobrevivência. Ele não quer morrer233.
Tal apreciação ressoava a nota recorrente no interior de determinadas esferas do contexto
intelectual alemão da época que reiterava a perspectiva de uma existência destinada
inexoravelmente à morte234. Porém, desde pelo menos a década de 1910, as ideias de Unamuno
circulavam na Europa e América do Sul com significações variadas235.
O “eternismo” reivindicado por Tristão de Athayde pode ser, sem desprezar as
apreciações anteriores, associado às ideias céticas sempre reticentes em relação às grandes
novidades ou àquele eterno esvair das coisas, conforme a imagem de Anatole France. A visão
da evolução literária como um “pêndulo” reforça tal perspectiva. A própria “fome de
imortalidade” e os explícitos anseios religiosos do filósofo espanhol, que considerava ser o
“único problema vital” o “problema da imortalidade e salvação eterna da alma individual”236,
marcavam antes a angústia recorrente de uma existência cindida do que a afirmação segura:
Esta incerteza produz uma constante dúvida que condiciona qualquer raciocínio, e
seu exemplo mais representativo são suas terríveis e angustiosas crises religiosas
[...]. As vacilações reduzem o método científico unamunesco ao ignorabimus
socrático [...] e da aliança entre a incerteza dubitativa e uma acentuada humildade
[...] resulta um inquebrantável ceticismo frente a qualquer postura que se apresente
como inalienável ou dogmática237.
O “sentimento trágico da vida” compartilhado por Tristão de Athayde era, na visão de Miguel
Unamuno, a experiência reiterada de um impulso vital para a fé logo contraditado pela razão:
“a vida é tragédia, e a tragédia é perpétua luta, sem vitória nem a esperança dela; é
contradição”238. A figuração é feita a partir de dois “perpétuos lutadores”: Dom Quixote e
Sancho Pança. O autor pretendia, no interior do contexto espanhol, tomar o “quixotismo como
233
CURTIUS, Ernst Robert. Apud. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926, p. 423.
Cf. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926, p. 373.
235
CF. BAGGIO, Kátia Gerab. Ronald de Carvalho e Toda a América: diplomacia, ensaísmo, poesia e impressões
de viagem na sociabilidade intelectual entre o Brasil e a Hispano América. In: BEIRED, José Luís Bendicho;
CAPELATO, Maria Helena; PRADO, Maria Lígia Coelho (ORG). Intercâmbios políticos e mediações culturais
nas Américas. São Paulo: Laboratório de Estudos de História das Américas – FFLCH – USP, 2010, p. 174.
236
Cf. UNAMUNO, M. de. El sentimiento trágico de la vida, p. 80.
237
ARDILA, J A G. El “hacer política” de Unamuno y el punto de vista platónico-kierkegaardiano, Bulletin
Hispanique, Tome 103, no 1, 2001, p. 179.
238
Cf. UNAMUNO, M. de. El sentimiento trágico de la vida, p. 17.
234
309
religião nacional”239, a partir de uma “uma fé à base da incerteza”:
[...] a heroica fé que Sancho Pança teve com seu amo o Cavaleiro Dom Quixote de
la Mancha [...] uma fé à base da incerteza, da dúvida. Isso porque Sancho Pança era
homem, homem inteiro e verdadeiro, e não era estúpido, pois apenas sendo-o teria
acreditado, sem sombra de dúvida, nas loucuras do seu amo. Que por sua vez
tampouco cria nelas dessa maneira, pois tampouco, ainda que louco, fosse estúpido.
Era, no fundo, um desesperado [...]. E por ser um heroico desesperado, o herói da
desesperação íntima e resignada, por isso é o eterno modelo de todo homem cuja
alma é um campo de batalha entre a razão e o desejo imortal. Nosso Senhor Dom
Quixote é o exemplar do vitalista cuja fé se baseia na incerteza, e Sancho Pança é o
do racionalista que duvida de sua razão240.
O empenho e a luta dos modelos de Miguel Unamuno são lembrados por Tristão de Athayde:
[...] a religião do quixotismo [...] aconselha o homem: “Procura vivir em contínuo
vértigo pasionalmente dominado por una pasión cualquiera. Solo los apasionados
llevam a cabo obras verdaderamente duraderas y fecundas… Hagamos que la nada,
si es que nos está reservada, sea una injusticia: peleemos contra el destino, aún sin
esperanza de victoria”241.
Assim, tal postura não significava uma relação de indiferença, soberba ou desprendimento, mas
a marca de uma inquietação e insatisfação profundas de que o ceticismo era antes um sintoma
do que uma solução.
Seguindo na avaliação da obra de Mário de Andrade, Tristão de Athayde aludia ao
passado poético do autor da Pauliceia Desvairada:
O Sr Mário de Andrade, que agora perturba o despertar ou desperta o fel de tantos
Sanchos indígenas, era poeta – imaginação, sentimento, técnica segura -, prontinho
para figurar em sólidas antologias, onde os sonetos dormem respeitosamente, lado a
lado, para desespero dos estudantes de gramática, para a insônia de algum varejista
letrado ou para gáudio de algum letrado a varejo. Pesou-lhe, porém, a monotonia dos
trilhos, tão do grado dessa literatura de horário certo, de que não temos aliás
privilégio. Tentou a variação de um desvio. Mas os desvios levam muitas vezes ao
isolamento, longe da linha-tronco. E resolveu então descarrilhar, com grave prejuízo
dos horários organizados pelo Sr Luís Carlos242.
O “descarrilamento” de Mário de Andrade significaria, finalmente, uma mudança real no
horizonte poético da cultura intelectual brasileira:
Pauliceia Desvairada é tanto ou mais um livro de combate do que um livro de
poesia. Não que deixe de conter poesia, e poesia profunda, vinda do íntimo e vinda
da terra, poesia virgem e inquieta, que leva consigo toda a personalidade e não o
simples devaneio. Mas acima disso, é um livro que rompe barreiras, que arrasta ou
que afasta os tímidos e ignora onde termina a blague, onde principia a seriedade. A
ironia, a sátira, a gargalhada, todos os recursos e portanto a própria injustiça são
elementos desse lirismo sub e supra consciente. Exausto da lividez clorótica e da
tímida melancolia de nossos pierrots, resolveu envergar arrogantemente a véstia de
Arlequim, com que cobriu também, alegremente, o seu livro. E rompeu combate,
pelo “seu” tempo, pela “sua” verdade literária.
O aspecto “eternista” de sua perspectiva fazia-o lembrar que tal desejo de ser de seu tempo, ser
239
Cf. UNAMUNO, Miguel de. El sentimiento trágico de la vida, p. 301.
UNAMUNO, Miguel de. El sentimiento trágico de la vida, p.122.
241
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 jun. 1923, p. 1.
242
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
240
310
atual, era velho, de “antes que os nossos papagaios viessem nomear um continente e colorir, em
cores vivas, o mapa de Cantido para Hércules D’Este” e cita o filósofo inglês Geoffrey Chaucer,
que vivera no século XIV: “Take every man his turn as for his time”243.
Tristão de Athayde, entre o classicismo e o romantismo, esboça uma pequena reflexão
sobre os critérios da crítica poética: “O poema é liberdade, clamaram os românticos, o poema
é servidão, afirma o neoclassicismo de Charles Maurras. Não seria mais exato dizer que o
poema é o poeta?”. E nos domínios das referências intelectuais inglesas, lembra a posição de
Samuel Johnson, escritor e crítico literário do século XVIII: “Já o famoso Dr Johnson escrevera
que o essencial, em poesia, não era submeter-se às regras, nem se revoltar contra elas, mas
superá-las”. Tais palavras precedem à análise do “Prefácio Interessantíssimo”:
Não prega o Sr Mário de Andrade o libertarismo incondicional, que aliás só pode
existir na poesia dos loucos. O que deseja é conservar ao estado lírico o máximo de
sua frescura, de seu arroubo original. Em quarenta páginas de um “prefácio
interessantíssimo”, que o é de verdade, no qual revela toda a agilidade viva e toda a
sólida e leve erudição de seu espírito de revoltado consciente – expõe seu
“desvairismo”.
Tal posição equilibrada estaria expressa nas seguintes palavras de Mário de Andrade:
A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer empecilho a perturba e mesmo emudece.
Arte, que, somada a lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira
do estado lírico para avisá-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que
tropece, caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições fastientas, de
sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis ou inexpressivos. Arte não é,
portanto, a desordem da consciência, mas a consciência da desordem original de
sensações, de emoções, de evocações associadas244.
Tais reflexões ressoariam a primazia da inteligência notada por Tristão de Athayde como uma
força que regeu a cultura intelectual brasileira desde finais do século XIX. O crítico nota como,
“no estado de nossa evolução literária”, tratava o poeta de reivindicar a liberdade, ainda que
com moderação: “Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso”. O poeta, por seu
turno, parecia abandonar as críticas ao “mestres do passado”: “Sou passadista confesso.
Ninguém pode se libertar de uma só vez das teorias-avós que bebeu... livro evidentemente
impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o impressionismo”.
Tristão de Athayde – e é a partir desse momento começa a corrida pela “atualização”
incessante que os debates sobre o modernismo desencadearão - lembra que, antes da guerra, a
crítica ao impressionismo era feita por Kasimir Edschmid, “um dos apóstolos expressionismo
alemão”, e que “na França, o que se nota hoje, de fato, é uma volta à disciplina, sem sacrifício
da renovação”245. O crítico cita algumas passagens de 1922 do poeta Tristan Derème246:
243
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
ANDRADE Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
245
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
246
Tristan Derème (1889-1941) teria feito parte de um grupo de poetas que se deixavam influenciar tanto pelo
simbolismo quanto pelo classicismo francês. Cf. RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo, p. 115-121.
244
311
Eis, por exemplo, o que escreve Tristan Derème, no prefácio de seu recente e
delicioso La Verdure Dorée, “A matéria dada, a arte é toda escolha e indústria na
reunião dos elementos escolhidos, habilitada no emprego das luzes diversas, que o
poeta se compraz em esclarecer seu domínio. De maneira que, longe de se deixar
afogar nos sentimentos, ele lhes avalia, lhes domina, os julga e os canaliza”247.
As referências seguintes operam como legitimação do lugar de fala do crítico:
Jacques Copeau248 pede uma “adequação entre a inspiração e a técnica”. Jules
Romains faz um “Curso de Técnica Poética”. Falando de Paul Valéry, o puro artista
dos charmes, evocam críticos os poetas da Pleiade. E Marcel Raval, no último
número das Feuilles libres249, vê um sintoma de fim de era, nos balanços poéticos
empreendidos por Epstein, Cocteau e Max Jacob: “A poesia não tem nada que ver
com o progresso. Por se estar num momento cru, suscetível de vida e de movimento,
ela tem de colher nesta pesquisa uma lição de humildade que a conduza dócil e
flexível ao nosso manuseio”. A evolução literária é um pêndulo, repito, mas nunca
um pêndulo inútil250.
Daí o crítico sentir-se à vontade para notar um “relativo atraso do sr Mário de Andrade em
relação às tendências poéticas modernas”, sendo isso, porém, “um grande bem”, uma prova de
sinceridade, fugindo das questões sobre mimetismo e originalidade:
É certo que o defeito orgânico desse modernismo, como foi do camonianismo, do
arcadismo, do romantismo, do simbolismo, de todos os “ismos” (evitáveis) de nossas
letras, é a sua transplantação. Convém, aliás, advertir que todas as evoluções
literárias, ainda no que têm de mais local, de mais espontâneo, de mais original, mais
ou menos se repetem em todos os países.
“Mestre de si mesmo”, na apreciação do crítico, Mário de Andrade teria, porém, os seus
inspiradores que, entretanto, se colocariam, em geral, “acima das modas literárias, e cuja ligação
é sobretudo a mesma ânsia de exprimir a vida moderna, em sua trepidação exterior e em sua
inquietação íntima [...]”. Destaca-se as seguintes reflexões do autor:
A poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou, talvez mesmo
antes do século XVIII, o regime da melodia quando muito oitavada para enriquecerse com os infinitos recursos da harmonia. A poética, com rara exceção até meados
do século XIX francês, foi essencialmente melódica. Chamo de melódico o mesmo
que melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas, contendo
pensamentos inteligíveis. Ora, se em vez de unicamente usar versos melódicos
horizontais... fizermos que sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas
palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem e gramaticalmente, se sobrepõem,
umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas
harmonias251.
Tal perspectiva seria explicitada no tratamento da decadência do rio Tietê, desde o período das
monções até “as braçadas vulgares e inúteis de hoje, no clube de regatas: Arroubos... Lutas...
Cantigas... Povoar!”. O crítico aí reconhece a capacidade sugestionadora de tais versos:
247
Citado em francês. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
Escritor e crítico teatral francês, fez parte do comitê de redação da Nouvelle Revue Française desde a sua
fundação. Ao lado de Henri Ghéon, André Gide e Jean Schlumberger, estava entre aqueles que em certo momento
demonstraram admiração e, por vezes, adesão às ideias de Charles Marras e da Ação Francesa. Cf. DAGAN, Yaël.
La nouvelle Revue française, p. 113.
249
Revista parisiense dirigida pelo poeta e escritor Marcel Raval (1900-1956), dedicada às “letras e artes”,
começou a ser publicada em 1918 e circulou até 1928. Cf. http://data.bnf.fr/32774875/les_feuilles_libres__paris_/
250
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
251
ANDRADE, M. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
248
312
Vemos nele a ambição inicial dos bandeirantes, os perigos a vencer, os combates
contra o indígena, as saudades sonoras de Taubaté ou São Paulo – onde haviam
deixado o que permanece à beira de todas as torrentes; e, finalmente, a visão do
futuro, o povoamento do deserto, a independência, a pátria252.
O processo de “harmonia poética” era complementado pela “polifonia poética”, não se tratava
da justaposição de palavras “soltas”, mas de frases complementares, como quando “dentro da
névoa paulistana rompe o ronco de um motor: A engrenagem trepida... A bruma neva...”
O crítico retoma suas ideias sobre o elemento dinâmico em arte que, no caso da poesia
de Mário, viria de um esforço de síntese que realizaria a perspectiva do poeta e crítico inglês
Robert Graves, para quem haveria um “poder da surpresa que marca toda poesia verdadeira”253.
O tema da “surpresa” é recorrente nas reflexões sobre a vida e a arte modernas, Charles
Baudelaire considerava que “depois do prazer de ser surpreendido, não há outro maior do que
o de causar uma surpresa” e, décadas depois, Guillaume Apollinaire: “O novo está todo na
surpresa [...] É o que há nele de mais novo, de mais vivo”. O poeta Jean Pellerin, companheiro
da Escola Fantasista de Tristan Derème, falava da “surpresa constantemente renovada que
sugere ao leitor o sentimento da incoerência essencial da civilização e da vida moderna”254. A
surpresa nos versos de Mário se daria pela “ressonância das associações”, esta característica
enriqueceria sobremaneira o fazer poético, o que faz o crítico lembrar de certo intelectual inglês
que faria algumas reflexões não muito distantes daquelas de Ezra Pound e dos imagistas255
anglo-americanos em sua admiração pelo ideograma256:
Certo orientalista britânico, apaixonado pelo Levante, afirmava ser o chinês a única
língua em que a verdadeira poesia poderá ser escrita, em virtude da cadeia invisível
de alusões contidas em cada palavra do idioma inesgotável e inacessível quase, do
Celeste império. A poesia vale sobretudo pelo que retém e desperta257.
A polifonia de Mário se realizaria não nos sentidos, mas “pelo choque das palavras
objetivamente, o que produz a incoerência, senão na inteligência, no esforço mental de
apreensão, consecutivo à leitura ou à visão da arte”258. Se a experiência da surpresa era marca
de um “espírito moderno”, por assim dizer, o choque tornou-se objeto de variadas interpretações
pelos teóricos da vida moderna. Walter Benjamin situou o trabalho de incorporação (defesa)
contra o choque como fundamento da poética de Baudelaire:
No caso do funcionamento frustrado da reflexão, produzir-se-ia o espanto, agradável
ou (mais comumente) desagradável, que – segundo Freud – sanciona o fracasso da
defesa contra os choques. Este elemento foi fixado por Baudelaire numa imagem
crua. Fala de um duelo no qual o artista, antes de sucumbir, grita de espanto. Este
252
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
Cf. GRAVES, Robert. On english poetry. New York: Alfred A Knopf, 1922, p. 24.
254
Cf. RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo, p. 205; 127.
255
Sobre imagistas ver: FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle, p. 159-171.
256
“A estrutura ideogrâmica uma das chaves do método e da própria poesia de Pound”, conforme apreciação de
Augusto de Campos. Cf. POUND, Ezra. Abc da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1970, p. 10.
257
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
258
ANDRADE Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
253
313
duelo é o processo mesmo da criação. Portanto, Baudelaire colocou a experiência do
choque no coração de seu trabalho artístico259.
Georg Simmel, por seu turno, situa a “defesa contra os choques” da vida nas metrópoles como
uma das principais razões para a formação da subjetividade urbana, do homem metropolitano,
excessivamente intelectualizada a fim de o proteger das solicitações recorrentes aos sentidos:
“A reação aos fenômenos metropolitanos é transferida àquele órgão que é menos sensível e
bastante afastado da zona mais profunda da personalidade. A intelectualidade, assim, se destina
a preservar a vida subjetiva contra o poder avassalador da vida metropolitana”260. Segundo esta
visão, o intelectualismo tornou-se uma forma de relacionamento no interior da vida na
metrópole, constituindo, na verdade, um mecanismo de defesa:
Se houvesse, em resposta aos contínuos contatos externos com inúmeras pessoas,
tantas reações interiores quanto as da cidade pequena, onde se conhece quase todo
mundo que se encontra e onde se tem uma relação positiva com quase todos, a pessoa
ficaria completamente atomizada internamente e chegaria a um estado psíquico
inimaginável261.
O choque provocado pela poesia de Mário de Andrade falaria, no espírito da pauliceia,
antes à inteligência que aos sentidos, exigindo a “leitura atenta”:
Só a leitura artificial, desatenta ou inepta é que pode ver nessa arte moderna a simples
extravagância [...]. O que há é o desejo de desarticular o aparentemente fundido para
novamente articular uma realidade muito mais ampla, com elementos diversos, mas
em geral convergentes e cujo disparate é apenas aparente ou transitório. A lógica
pode ser um empecilho à verdade da arte, que é de caráter diverso da verdade da
natureza, pois entre as duas existe o transformador da inteligência humana, que altera
pelas sensações e intensifica pelas associações. A lógica é mesmo frequentemente a
maior inimiga da naturalidade. E do abuso da lógica provém muitas vezes essa
impressão irresistível de artifício que a arte produz. Alinhar pode ser trair262.
Neste primeiro artigo, as considerações de Tristão de Athayde voltavam-se quase
exclusivamente às questões teóricas que envolviam o livro de Mário de Andrade. O crítico
preocupa-se em demarcar o lugar que deveria ocupar a obra na cultura intelectual brasileira:
Poesia de ação, quando estamos habituados a poesia contemplativa. Poesia do
presente, quando estamos habituados a poesia prolongada no tempo ou na distância
– outras eras, outros sóis, outros olhos. Poesia de simultaneidade, quando estamos
habituados a poesia do tema único, com variações secundárias. Não admira, portanto,
a surpresa de uns, a revolta de outros, o desdém ou a gargalhada grosseira e paradoxal
das múmias.
Talvez com alusões à Semana de Arte Moderna, ele reconhece o valor de ambos os lados:
A revolta contra as revoltas literárias não é simplesmente um sinal de atraso mental,
como convém aos inovadores crer. [...]. A vaia é, ao mesmo tempo, uma consagração
e uma legítima defesa. O nosso mal não é a vaia, mas antes o medo de vaiar e o medo
de ser vaiado. Desconheceu-o o Sr Mário de Andrade, e, outro valor não tivesse a
sua obra, teria o de quebrar corajosamente as convenções, o de rasgar novas janelas,
259
BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos, p. 44.
SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental (1902). In: VELHO, Otávio Guilherme (ORG). O Fenômeno
Urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, p. 13.
261
SIMMEL, G. A Metrópole e a Vida Mental (1902). In: VELHO, O G (ORG). O Fenômeno Urbano, p. 17.
262
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
260
314
embora fossem para os mesmos horizontes263.
Mas a originalidade do autor superaria o ímpeto inovador, pois a sua Pauliceia Desvairada
possuiria “uma intensidade de vida, uma trepidação de movimento, uma variedade de sugestões,
como ainda ninguém tinha expresso e muito menos por essa forma”. O crítico não deixa de
lembrar que, apesar disso, trata-se de São Paulo e “o defeito desse impressionismo é chegar ao
regionalismo urbano, de modo que seu livro só pode ser compreendido em seus pormenores,
em suas alusões constantes às coisas locais, por um paulista ou habitante de lá”. Ressaltava-se
o fato de a inovação da obra de Mário não se enfeixar nas descrições da cidade moderna:
“Escrever arte moderna” diz ele com razão no seu admirável e inteligente prefácio,
“não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior:
automóveis, cinema, asfalto. Se estas palavras frequentam-me o livro não é porque
pense com elas escrever moderno, mas porque, sendo meu livro moderno, elas tem
nele sua razão de ser. [...] há no meu livro e não me desagrada, tendência
pronunciadamente intelectualista”.
Tristão de Athayde continuava sua apreciação em artigo seguinte, de uma maneira que
ele nunca havia feito antes, não pela divisão da análise em textos subsequentes, mas pelo
esforço teórico de precisar os significados e a riqueza de uma obra que viera a lume nestes
quase quatro anos como crítico literário militante no O Jornal. Além de aumentar cada vez
mais a produção editorial, de São Paulo viriam as “vozes dos novos cantos”. Na Pauliceia
Desvariada, o crítico pontua os juízos sobre o “livro de combate”:
Aceitá-lo integralmente seria confundir os meios com o fim, que o próprio poeta
distingue no poema final da obra, quando a sua “loucura”, depois de todos os esgares
da luta impiedosa travada contra “os orientalismos convencionais”, contra “as
senectudes tremulinas” e contra “os sardanapilários indiferentes”, entoa a deliciosa
“cantiga de adormentar”, que cai sobre o campo ardente de batalha como um orvalho
cheio de frescura, molhando as fontes latejantes das “juvenilidades auriverdes”264.
A esta passagem que glosa os trechos que compõe “As juvenilidades auriverdes”, cita-se os
versos do poema “Minha Loucura” que sucedem os primeiros:
Chorai! Chorai! Depois dormi!
Venham os descansos veludosos
Vestir os vossos membros! ... Descansai!
Ponde os lábios na terra! Ponde os olhos na terra!
Vossos beijos finais, vossas lágrimas primeiras para a branca fecundação!
Espalhai vossas almas sobre o verde!
Guardai nos mantos de sombra dos manacás os vossos vagalumes interiores!
Inda serão um sol nos oiros do amanhã!
Chorai! Chorai! Depois dormi!265
O crítico destaca no livro a esperança celebrada, “o amor pela terra verde de café”, com fé
renovada e otimismo nacional. Haveria o apelo nacional no sentimento brasileiro, mas, acima
de tudo, de paulistanidade que beiraria, como dissera anteriormente, a certo regionalismo.
263
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1923, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
265
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
264
315
Elogia-se os contrastes que marcariam a capital, figurados no poema “Domingo”:
Missas de chegar tarde, em rendas, e dos olhares acrobáticos...
tantos telégrafos sem fio!
Santa Cecília regurgita de corpos lavados e de sacrilégios picturais...
Mas Jesus Cristo nos desertos,
mas o sacerdote, no “confiteor”... Contrastar!
- Futilidade, civilização266.
Tristão de Athayde ressalta os aspectos contraditórios da cidade explicitados pelo poeta:
S Paulo! Comoção de minha vida.
Galicismo a berrar nos desertos da América!
O crítico sintetiza tal aspecto enumerando a presença da temática em vários poemas que
constituem a Pauliceia Desvariada:
“O Trovador”, “A Escalada”, poema forte e vibrante de vida sintética dos imigrantes
que vêm enriquecer a Pauliceia, caluniada e miraculosa; “Rua de São Bento”, “O
Rebanho”, “O Domador”, “Colóquio Sentimental”, excelente de vida vivida e
sugestão; “Paisagem no 4”, além do poema final “As Enfibraturas do Ipiranga”, são
todos inspirados num conflito interior de sugestões de que salta a centelha,
espontânea, aguda, colorida267.
Na conclusão, Tristão volta a precisar a originalidade dessa obra que “longe de ser mero
futurismo de imitação, como se espalha, é um livro que procura o que há de novo nesta
civilização americana que tentamos, o significado literário de cem anos de independência”. A
crítica termina com uma apreciação sobre o lugar do livro na cultura intelectual brasileira:
[...] representa o livro uma corajosa clarificação de tendências, uma visão poderosa
da vida atual e de todos os contrastes da civilização moderna, uma reação necessária
contra a asfixiante rotina das formas consagradas, e sobretudo, uma tentativa de
originalidade literária brasileira, ainda presa demais ao urbanismo talvez, para poder
alcançar uma realidade mais vasta, mais cheia de força, de possibilidades, de
inteligência conquistadora. [...] Nem há fórmulas de arte; o necessário é que cada
artista se procura a si mesmo. E o encanto a vida literária é justamente a diversidade
e o jogo das personalidades. O Sr Mário de Andrade é um homem de muito espírito
para não compreender tudo isso, assim como viu que em seu livro a blague se
entrelaçava à seriedade. Seja como for, vale por toda uma vanguarda.
Acerca do romance Alma, primeiro volume da trilogia intitulada Os condenados, de
Oswald de Andrade, Tristão de Athayde considerava o autor como uma estreia “fora do
comum”. Não era uma estreia. Porém, como dissemos acima, apesar da campanha futurista,
estes intelectuais, especialmente Oswald e Mário de Andrade, não eram tidos como autores de
obras conhecidas. O crítico lança mão de comparações entre escritores modernos para ilustrar
o lugar que ocuparia a obra do romancista: “Mais sereno, porque apenas construtivo, está para
o Sr Mário de Andrade como um conto de Paul Morand para um poema de Cocteau, ou um
romance de Joseph Conrad para um poema de T S Eliot”. Além disso, a obra do “sereno”
Oswald viria ao encontro das expectativas do crítico em relação ao romance no Brasil:
Os Condenados!, livro novo e de sempre, livro profundo! “A literatura de hoje não
266
267
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
316
pode ser uma joia a cinzelar mas uma comunhão pessoal com a vida a exprimir”,
escrevia eu em minha penúltima crônica. E nenhuma obra podia realizar mais
integralmente o meu pensamento que este admirável romance do Sr Oswald de
Andrade, primeiro pão de um tríptico que há de marcar indelevelmente em nossas
letras. Como estamos longe, aqui, do romance pitoresco, que procura, com a
novidade dos costumes, encher o vácuo da alma, do romance arquitetado, que revela
a cada passo os mistérios transparentes da estrutura, do romance de luxo, em que só
interessam ao romancista aquelas “almas de duzentos mil francos de renda”, de que
falava Mirbeau. Temos aqui um livro de carne e osso, se é possível dizer. Um livro,
cuja personagem máxima e nunca ausente é o Destino... e é por isso que uma grande
angústia desce em nós, ao fecharmos a página final deste prelúdio sombrio, de uma
ronda de vida268.
Tais elogios não encontraram muita ressonância na fortuna crítica dessa obra que, segundo
Antônio Cândido, Wilson Martins e Haroldo de Campos, cada qual reiterando o juízo do outro,
tratava-se de “um romance falho como estilo, como criação de personagens, como expressão
de humanidade”269. Para Tristão de Athayde, porém, a coisa era distinta. Ele se comprazia na
destinação infeliz das personagens, talvez por ver aí o espírito trágico que compartilhava:
Pesa sobre as criaturas desse romance a condenação da matéria. Nenhuma delas
conhece a libertação. E esse tema da volta à fatalidade é como um dobre implacável
lembrando a argila de que é feita a nossa fugaz espiritualidade. Não existe, entre
esses pobres escravos de si mesmos, uma vontade que consiga passar da rebelião
instintiva, realizando-se. Alma – assim se chama a figura central dessa galeria
palpitante de verdade vazia de literatura – não é uma encarnação, não é um tipo de
viciada ou de amorosa, não é predestinada às grandes tragédias. É uma mulher, uma
simples mulher, que passa da ingenuidade infantil a todas as humilhações da carne,
sem que o mais leve artifício literário altere a profunda naturalidade e a tragédia
silenciosa da transformação. Sacrificada em sua paixão, entregando-se ao namorado
de outrora, por compaixão e pela sentimentalidade nunca vencida em seu coração
honesto e frágil. Saciada do bem, como do mal, entrega-se então, por interesse, a
outro desses filhos do instinto, que lhe fazem abominar dia a dia os homens. Já então
luzira, em seu calvário descendente, o consolo de uma maternidade palpitante:
voltava, por um momento, à infância a sua alma apenas desvirginada. Mas o destino
velara, e o último raio da inocência perdida foi aconchegar-se em seu pobre coração
como uma saudade irreparável a mais. E quando, ainda uma vez voltou ao
apaixonado fiel de todos os momentos, confiante, talvez, na ilusão impossível de
uma reabilitação definitiva um engano fatal fez transbordar a resignação exausta
daquele outro ‘condenado’, e um crepúsculo rápido de dor desce sobre este prólogo
pungente de humanidade em carne viva. Até aqui, o que já de eterno no livro – esse
embate de paixões, essa escravidão da matéria, esse ergástulo de almas que é a vida.
A história de Os condenados é a trajetória dessa Alma, adolescente que percorre a vida extática
da São Paulo dos anos 1920. Seduzida pelo cafetão Mauro Glade, sedutora do romântico João
do Carmo, amante do rico engenheiro Tales de Melo, mãe de dois filhos mortos precocemente,
um abortado e o outro, Luquinhas, vitimado de colerina, ela permanece, enquanto tudo morre
ou desaparece a sua volta. Antônio Cândido assim traça as limitações da obra:
As pessoas neste livro são pequenos turbilhões de lugares-comuns morais e
268
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
Cf. CANDIDO, Antonio. Estouro e libertação. Brigada Ligeira. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004, p. 14.
Considerações semelhantes em MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. (1915-1933). Vol. VI, p.
278; CAMPOS, Haroldo de. Miramar na mira. In: ANDRADE, Oswald de. Obras Completas. Vol 2. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1972, p. XL.
269
317
intelectuais; o processo do autor consiste em acentuar violentamente as suas
banalíssimas qualidade, afogando-os definitivamente na retórica. Literatos
baudelairianos, caftens desalmados, flores de vício, velhinhos sofredores,
funcionários ridículos -, todos são de uma coerência espantosa com os traços
convencionais que os constituem. Feitos de um só bloco, sem complexidade e sem
profundidade, não passam de autômatos, cada um com a sua etiqueta moral
pendurada no pescoço. Reina um convencionalismo total do ponto de vista
psicológico270.
O fato, porém, de a heroína (aliás, na passagem de Cândido não há uma definição para a
protagonista, “flor de vício”, talvez) após tantas desventuras “morais” continuar ao fim da obra
e, talvez, com um novo pretendente à vista, destoa do lugar comum que à mulher coube até o
romance dos anos 1930 em que lhe era reservado apenas o papel de esposa ou prostituta como
notamos em momento anterior. De qualquer forma, não há dúvida que o romance é um
interessante contraponto entre uma São Paulo nascente e otimista, pronta a “conduzir o país”,
e aquela pintada pelo escritor em traços decadentes e viciantes. Nas últimas passagens do livro,
a pauliceia desvairada é invocada com o fim do romântico João do Carmo: “E desvairada
Pauliceia, as carroças rodando nos viadutos, silhuetados em aço pelos relâmpagos curtos...
Silêncio! Um homem vai morrer, voluntariamente, vitoriosamente...”271. Mário da Silva Brito
destacou como o livro foi considerado imoral por revelar uma São Paulo que desagradava os
orgulhosos da capital emergente e tinham de ver a cidade infestada por nomes que não eram
aceitos na vida social cotidiana e, muito menos, na urbs literária: cáften, caftina, rendez-vous,
bom macho, burrada, gigolô, gado, cabaretier, rachar a despesa, trouxa, rabicho, fêmea,
femeaço, saiazar272. Aí aquele “olhar por debaixo do verniz” de que tratamos anteriormente e
que fazia o sucesso de certas obras literárias. E, ainda segundo Brito, há de se destacar:
[...] o caráter urbano e cosmopolita da Trilogia, a topografia paulista e paulistana em
que se desenvolve, o censo e o recenseamento de sua população fictícia, a
constituição social dos personagens que nela habitam - em linhas gerais integrada
pela burguesia, uma ascensional e outra em declínio; pequenos funcionários,
públicos ou particulares; os representantes dos diferentes meios artísticos; modestos
trabalhadores autônomos, que vivem de biscates; capitalistas e defensores da ordem
pública; profissionais liberais; mais o lumpen-proletariat do que o proletariado
propriamente dito.273.
Conforme pontua Antônio Cândido, no romance A Revolução Melancólica, publicado
vinte anos depois, Oswald continuaria, no que diz respeito à sua técnica, “fielmente o
cinematografismo e a síncopa de ‘Os Condenados’”274. Tal “cinematografismo” fora destacado
por Tristão de Athayde, assim como o investimento estilístico do autor:
O que há de novo, sobretudo, é o estilo, é a expressão pessoal dessa comunhão com
270
CANDIDO, Antonio. Estouro e libertação. Brigada Ligeira, p. 15.
ANDRADE, Oswald. Alma. Obras Completas. Vol I. São Paulo: Civilização Brasileira, 1975, p. 104.
272
Cf. BRITO, Mário da Silva. O aluno de romance Oswald de Andrade. In: ANDRADE, Oswald de. Alma. São
Paulo: Globo, 1990, p. 13.
273
BRITO, M da S. O aluno de romance Oswald de Andrade. In: ANDRADE, O de. Alma, p. 27.
274
CANDIDO, Antonio. Estouro e libertação. Brigada Ligeira, p. 22.
271
318
a vida, em sua verdade essencial, em sua sombra inexorável. Nem as amplificações
majestosas do romantismo, em que se comprazia a imaginação em vestir de sedas e
rendas a realidade. Nem as intermináveis descrições do naturalismo, falsas à força
de verdade minuciosa e de complacência no insignificante. Nem os requintes
decadentes do simbolismo, em que um fim de era procurava quintessências para
matar o tédio e sacudir nervos esgotados. Nem mesmo as hesitações, os desvios, as
alusões veladas do humour. Nada de supérfluo. A palavra tomada em seu valor exato
e incisivo. A realidade, temas e episódios, possuída em bloco no espírito e
procurando realizar-se sem artifício, com o máximo efeito na maior simplicidade. É
a grande economia de força literária. É literatura de ação, em ação275.
O elogio, mais que à simplicidade, à economia da força literária, à síntese expressiva
é um tema que se tornará cada vez mais recorrente na crítica literária e artística do século XX
no Brasil. Conforme nota Haroldo de Campos, “da ‘magreza estética’, do estilo ‘gago’ de
Machado de Assis, numa certa linha rastreável de evolução, à escritura telegráfica de Oswald
de Andrade, marcada pela metonímia cubista”276. Neste primeiro romance de Oswald de
Andrade, o que os críticos Haroldo de Campos e Antônio Cândido percebem, aliás, tida por eles
como única novidade do livro, é a escrita cinematográfica. Sobre o tema, considerava Tristão:
O leitor colabora com o autor. Tem a ilusão de que vai criando também, e vive melhor
a vida do livro e vai tendo a ilusão de que o romance é também seu, pelo que vai
descobrindo nas entrelinhas, nas palavras isoladas que desprendem ondas sonoras de
significação, como cordas tangidas no silêncio. E o efeito é admirável, de força
partilhada, de emoção transmitida, de uma imensa realidade contida em essência. Há
muito que a divisão forçada de capítulos vem mostrando que frequentemente trai a
naturalidade da ação. Ou a continuidade sacrifica a variedade ou esta parcela e
diminui a intensidade daquela. Neste livro, suprimiu o Sr Oswald de Andrade a
capitulação convencional e consegue comunicar à narrativa uma vivacidade que de
outra forma perderia. Procura a simultaneidade das ações de forma a conservar à
vida e ao ritmo do pensamento a sua marcha original. A ordem de exposição lógica
está muitas vezes em contradição com a desordem aparente dos acontecimentos e
das ideias. Sente-se nesta reação contra a ordem artificial, a influência do cinema
como a proclamou Epstein ou como a ensaiou também Jules Romains. Consegue,
mesmo sem as dissonâncias do Sr Mário de Andrade, uma simultaneidade de ação
superior à que se poderia realizar na tela, pois a palavra sugestionadora não está
sujeita às contingências da teatralização prévia, a que se vê forçado o cinema277.
O crítico cita uma passagem que conta o abandono de Alma pelo “amado explorador”:
Fez do braço um travesseiro humilde... Que adiantava adoecer? Um barulho
levantara-a. Mauro andava lá dentro. Um arrepio começou-lhe no ventre, subiu. Foi
perdendo a energia inteira. Até a força dos olhos glaucos caiu... Estava sem saliva...
e doía-lhe o coração de vinte anos. Ele continuava a andar, a mexer nos móveis
alugados... não iria decerto... Bom! Lindo! Em meio das lágrimas, um irreprimível
sorriso confessou-se... Cão! mesmo assim, queria-o tanto! Ia sair, ia sair, ia sim,
deixá-la... Andava no tom decididos dos sapatos americanos... ia... Uma calma de
novo na casa sonora... um arrastar de cadeira... ia... um arrepio... Não ia... estava se
demorando... que fosse! Não... se tivesse escutado! Calma de novo... Ia... pressentiu
que ia mesmo... esticou-se toda de bruços, querendo alongar-se como uma cobra até
a rua... Tapou os ouvidos depressa e escutou perfeitamente, implacavelmente, o
275
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
CAMPOS, Haroldo de. Arte pobre, tempo de pobreza, poesia menos. Metalinguagem e outras metas. São Paulo:
Perspectiva: 1992, p. 223.
277
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
276
319
barulho estalado da porta fechando-se278.
Ele reconhecia no romance de Oswald de Andrade o seu aspecto sensivelmente trágico:
Como se vê, o romance é uma obra profunda, de humanidade e intensamente aguda
de expressão. Lembra, por vezes, pela compreensão trágica e ao mesmo tempo
serena da matéria social contemporânea – esses russos modernos, ainda tão mal
conhecidos entre nós, e que estão perpetuando a tradição incomparável dos seus
antecessores: Tchekhov, Bounine...279
Tal associação com os russos renderá uma discussão epistolar com Mário de Andrade280. Cabe
notar que, apesar da empolgação do crítico com o romance de Oswald de Andrade, alguns
consideravam como decepcionante um livro que vinha como concretização da campanha
futurista feita meses antes. Conforme Wilson Martins, “a crítica literária da Revista do Brasil
falava da ‘decepção profunda’ que tinham sido ‘Os condenados’ e ‘O homem e a morte’ para
os que haviam antecipado como obras revolucionárias: eram ‘livros sólidos, passadistas, sem
nenhuma extravagância’”281. Tristão de Athayde assim sintetizava o significado das três obras:
Se o Sr Mário de Andrade, através de todos os excessos desejados e passageiros de
sua cruzada combativa, procura uma expressão poética nova da civilização brasileira
do século XX – se o Sr Oswald de Andrade penetra a realidade social de hoje,
tomando ainda da vida em sua força coletiva, e com um senso de universalidade -,
mantém-se o Sr Menotti del Picchia, neste poema em prosa, na pura vida subjetiva,
ainda muito tocado de simbolismo282.
A obra deste último, que já contaria com quase dez anos de atividade intelectual, estaria sempre
a evoluir. E a referência encontrada pelo crítico, agora, é a comparação do estilo que sempre
vibra “cordas de uma lira irisada e fagulhante, como uma página musical de Stravinsky”. Com
o horror das repetições e da vulgaridade, o poeta cantaria a vida das:
[...] verticalidades, e toda negação do que rasteja. A “Morte” desta sua “tragédia
cerebral” não é a figura soturna e lúgubre que a Idade Média nos legou, mas uma
mulher deslumbrante de vida e de mocidade, cujos lábios destilam o hidromel
irresistível de um amor sempre renovado e fulminante. A vida mais intensa é sempre
o desejo de uma afirmação impossível.
A expressão “tragédia cerebral” é empregada pelo próprio Menotti del Picchia para caracterizar
seu livro narrado em primeira pessoa pelo protagonista Homem que vive envolto com Kundry.
Esta seria a morte e o amor do homem, conforme passagem de Picchia: “O Homem, para possuir
a Vida, precisa destruir a Vida. O que ele ama no fundo da vida é aquilo que a vida não é... o
homem no fundo da vida, ama a Morte”283. Num jogo de símbolos e alegorias que incluem
faunos, sátiros, a própria Kundry, homônimo da sedutora personagem da ópera “Parsifal” de
278
ANDRADE, O. Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
280
Tristão de Athayde, em mais de uma ocasião, advogou a relação mais profícua que os brasileiros poderiam ter
com a intelectualidade russa contrapondo-a à francesa. Neste sentido, Mário de Andrade lhe escrevia: “Acho o
caminho russo positivamente ruim e até impossível. Fico abismado até quando vejo tanta gente boa, inteligente,
criticamente, falar que Os Condenados do Oswaldo parecem Dostoievski. É tão diferente mas tão que nem posso
compreender”. Cf. Carta de Mário de Andrade a Tristão de Athayde, 23-12-1927, acervo CAAL.
281
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. (1915-1933). Vol VI, p. 277.
282
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
283
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
279
320
Richard Wagner, o poeta buscaria, segundo o crítico, dar conta desse desejo do impossível:
Esse amor pelo Além, tão deliciosamente objetivado na carne ardente de Kundry,
tentou Críton, o arquiteto, objetivar na arte, pela criação de seu sonho interior de
beleza. E morreu, também, ao desprender-se a criatura do seu criador, alheia a ele,
possuída pela carícia dos elementos e pelos olhares dos outros homens. Sempre a
loucura ou a morte, espiando na orla da floresta sombria das vidas, que rastejam e se
confundem na penumbra284.
Kundry, como na obra de Wagner, tem aí também o seu jardim que conforme a caracterização
do crítico comporia uma das passagens expressivas do estilo gongórico abraçado pelo poeta
que, porém, faria o que era antes decorativo constituir agora sua “vida intensa e ofuscante”:
Os relâmpagos lívidos pareciam adagar decepando nuvens em fuga... As ondas a
apalpavam com suas mãos de água... A noite, feita de farrapos de nuvens e punhados
perdidos de estrelas... Kundry, nua, flagelada pelos ventos, gritava... Sua voz mal
roçou o silêncio... A tarde caminhava com passos de brisa... O sol decepava, como
um alfanje de ouro, as cabeças pensativas do tinhorões tristes... Os galos vaiavam,
longe a tragédia da noite que findava... O velho parque onde, como de repuxos,
jorrava o tédio estrídulo das cigarras... A lâmina do horizonte degolara a cabeça
sanguinolenta do sol... A aurora invisível canta na garganta dos galos escarlates285.
Conforme Daniel Faria, a obra de Menotti contou com entusiasmo de Mário de Andrade:
Naquele momento o livro foi apresentado por Mário de Andrade como um dos
pilares da reação literária promovida por Klaxon e seus colaboradores286. Juntamente
com Os Condenados, de Oswald de Andrade, e Epigramas Irônicos e Sentimentais,
de Ronald de Carvalho, o texto de Menotti perfazia, na perspectiva de Mário, a
proclamação da independência da literatura brasileira287.
Ao se deparar com obras tão diversas entre si, Tristão terminava sua análise elogiando Menotti
del Picchia e destacando o caráter eclético do “movimento modernista de São Paulo”:
É o poeta esplêndido e livre, em todo o seu sonho de beleza, que escreve neste livro,
simbólico e irrealista, a tragédia interior de sua ânsia impossível de libertação. O
movimento modernista de São Paulo, como vemos, não cerceia a personalidade, tão
diferente, de cada um destes três autores. A escola só existe onde não há talento. E
há mais que talento nestes três criadores. Há uma renovação288.
Os artigos dedicados aos escritores de São Paulo renderam ao crítico do O Jornal a
sua filiação “oficial”, por assim dizer, ao movimento. Já em meados de 1922, Osvaldo Orico
dizia que Tristão de Athayde havia acabado de “aderir ao pensamento moderno”289. Menotti del
Picchia, sem dúvida o nome que naqueles anos mais falou em futurismo, Semana de Arte
Moderna e bandeira paulista, apenas quatro dias após às análises do crítico, comentava:
[...] verdadeira vitória da gente nova paulista foi a sagração feita aos seus chefes pelo
notável crítico Tristão de Athayde, acatado hoje no Rio de Janeiro como uma das
mais notáveis autoridades críticas do país. Suas palavras, no ‘Jornal’ sobre as obras
capitais do “movimento de S. Paulo” são de molde a desacoroçoar todas as múmias
284
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
PICCHIA Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1
286
Wilson Martins alude a um primeiro dissenso entre Mário de Andrade e Oswald de Andrade justamente acerca
dessa crítica, pois o último não concordava com os elogios feitos pelo primeiro especialmente à obra de Menotti.
Cf. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. (1915-1933), p. 277.
287
FARIA, Daniel. O mito modernista, p. 35.
288
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jan. 1923, p. 1.
289
ORICO, Oswaldo. A elegância da nova crítica, América Brasileira, Ano I, jul. 1922, p 20.
285
321
que ainda passam por gente viva no mercado das múmias...290
Este artigo foi conservado por Tristão, revelando, talvez, a importância que tais palavras podem
ter significado para ele em algum momento.
Naquele mesmo ano de 1923, porém, o crítico revelava que sua concepção acerca do
moderno, talvez nem tanto do modernismo, era mais complexa do que a celebração futurista
que parecia ecoar de São Paulo. Ao analisar a obra Luz Mediterrânea do poeta carioca Raul de
Leoni, Tristão de Athayde reforçava, mais uma vez, os significados de clássico, mas, desta feita,
incorporando as novidades literárias que vieram a lume naqueles últimos meses:
Ao passo que alguns poetas novos pedem, com razão, luz americana, mergulha o Sr
Raul de Leoni a raiz de sua inspiração nesse Mediterrâneo sutil e aventuroso. Seu
livro é tipicamente europeu e exprime, melhor que qualquer dissertação erudita, toda
uma face de nossa fisionomia. Não há nele nada de americano, nada de brasileiro,
nada dessa mescla mental que caracteriza nossa cultura. É um livro de espírito
universal, sem a menor correção, sem a mínima influência do meio novo, dos novos
ideais, da nacionalidade peculiar em formação. Filho de uma cultura greco-latina,
recuperada no humanismo do Renascimento, conservou intata a herança do espírito
clássico. E, adversário de todo romantismo, e de todo excesso, avesso a toda
originalidade que implique a negação de suas origens, impregnado de arianismo,
guarda nos seus versos a pureza extrema da sua tradição mental e de seus ideais
estéticos. O espírito clássico do Sr Raul de Leoni é a própria feição do seu espírito
que exprime, naturalmente, por uma forma, em geral moderna, ampla, vasada em
rima pobre ou inexistente, de ritmo caudaloso ou imprevisto e musicalidade apenas
interior291.
Dessa forma, o crítico revelava sua simpatia para com um autor que parecia estar em
desacordo292 com aquilo que ele mesmo falava sobre a orientação moderna da arte literária
brasileira, ou seja, seu olhar nacional, realista, antes iconoclasta que tradicionalista etc. Acerca
do classicismo de Raul de Leoni, Tristão de Athayde avalia que:
[...] No livro do Sr Raul de Leoni há classicismo, e não academismo. Se não cria
novas formas estéticas, se não procura uma expressão nova da civilização que
estamos levantando, se não representa absolutamente esta necessidade anárquica,
mas espontânea e rica, de renovação literária, que vemos surgir com a nova geração,
se repudia, integralmente, ao menos nesse livro, toda forma de americanismo,
deixando-se prender cada vez mais pelos velhos laços europeus não se contenta
absolutamente com a beleza convencional ou com as formas obsoletas, criando, pelo
contrário, uma poesia espontânea e moderna em sua exposição impregnada de
sensibilidade aguda e de pensamento profundo293.
Dessa forma, o moderno encontrava-se com o clássico sem a mediação vanguardista. A
290
Helios. Crônica. Na estacada, Correio Paulistano, São Paulo, 25 jan. 1923, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 abr. 1923, p. 1.
292
A crítica de Tristão de Athayde é propícia para, por um lado, se relativizar o que a historiografia literária parece
ter afirmado sobre o fato de a obra do poeta ter sido “esquecida pela crítica, sobretudo no momento da publicação,
quando todas as atenções voltam-se para as rupturas promovidas pelos poetas modernistas” (grifo nosso). Por
outro lado, ela revela a contradição entre uma obra de sucesso, reeditada reiteradas vezes, e seu “esquecimento”
crítico e historiográfico subsequente, na medida em que Tristão de Athayde, apesar dos elogios, irá explicitar as
contradições entre Raul de Leoni e seu tempo. Cf. MELLO, Ana Maria Lisboa de. A posição de Raul de Leoni na
história da lírica moderna brasileira, Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 41, no 4, dez. 2006, p. 58; ALCIDES, Sergio.
Introdução. In: LEONI, Raul. Luz mediterrânea e outros poemas. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
293
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 abr. 1923, p. 1.
291
322
identidade da poesia de Raul de Leoni, conforme o “Pórtico” de seu livro, é assim descrita:
Alma de origem ática pagã,
Nascida sob aquele firmamento,
Que azulou as divinas epopeias,
Sou irmão de Epicuro e de Renan,
Tenho o prazer sutil do pensamento
E a serena elegância das ideias294
Tristão de Athayde percebe aí uma tendência a fazer das ideias objetos de malabarismo, ou seja,
reconhece no poeta uma expressão viva daquele ceticismo, cada vez mais questionado, que
marcaria parte da cultura intelectual brasileira. Sua poética conduziria a uma constante
reiteração da “convicção de uma inanidade do pensamento”. O poeta faz uma apologia do
instinto prefigurada na concepção que visaria apenas o prazer na relação formal com as ideias:
De tudo então, ficou somente em mim
O pavor tenebroso de pensar
Por que as ideias nunca tinham fim...
Que mais resta da fúria malograda?
Um bailado de frases a cantar...
A vaidade das formas... e mais nada...
Ainda que considerado de qualidade “superior”, não sendo mero “sibaritismo vulgar”, mas
expressão de uma “crença nessas ideias eternas e grandes, que são toda a nossa humanidade e
não um simples devaneio espiritual”, o crítico via como ultrapassada tal postura:
Há nesse livro, de um verdadeiro poeta tão elegante e puro de formas, tão
harmonioso em pensamentos, tão cheio de sensibilidade velada e nunca desmedida,
a expressão muito peculiar ao estado de espírito em que se formou a adolescência de
nossa geração impregnada de dúvida, saturada de renanismo e de epicurismo,
educada na palavra de ouro e de seda de Anatole France, herdeira do ceticismo
amável que nos legaram os predecessores. Hoje, parecerá, talvez, um livro de
ontem295.
Tristão de Athayde, apesar dos elogios a Raul de Leoni, parece começar a dar um adeus
a si mesmo. Ele não deixa de apelar, mais uma vez, ao sentido angustiante que marcaria a
destinação da sua geração: “A tragédia interior de nossa mocidade já não parece ser a desilusão
pessoal e a resignação sorridente na harmonia das formas, mas a luta entre a afirmação e a
negação que se trava em nós”. Lembra, então, as palavras do poeta francês poeta Charles LouisPhilippe, numa espécie de epitáfio da Belle Époque: “Acabou a doçura de viver: os tempos da
paixão chegaram”. Ironicamente, este trecho enfeixa aquele reivindicado por Sérgio Buarque
de Holanda sobre a “necessidade dos bárbaros”296. Os versos do jovem poeta seriam passados:
O drama da nossa consciência hoje é sobretudo a luta ardente da inércia dessa ironia
sedutora, desse afastamento, desse ceticismo risonho que amava “todas as ideias”,
contra a força viva de uma clarificação de tendências, de uma nova confiança em
294
LEONI Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 abr. 1923, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 abr. 1923, p. 1.
296
“Agora, precisamos de bárbaros. É preciso ter vivido muito perto de Deus sem tê-lo estudado nos livros, é
preciso ter uma visão da vida natural... Começa hoje o tempo da paixão”. Cf. RAYMOND, M. De Baudelaire ao
surrealismo, p. 55; HOLANDA, Sérgio Buarque de. ...Il faut des barbares (1922). In: BOAVENTURA, M E (org).
22 por 22. São Paulo: EdUSP, 2008.
295
323
ídolos derrubados. Em alguns o drama já cessou; mas em quase todos ainda é ardente
a luta. Nem sei se algum dia poderá ter fim. E de qualquer forma esse livro, fino e
profundo, há de ficar não somente como obra de beleza, mas também como o espelho
de uma época297.
Na mesma ocasião, o crítico analisara a obra de Prado Kelly, Alma das coisas. Kelly foi
premiado aos quinze anos e recebera elogios do crítico anteriormente. Desta feita, porém, mais
que as esperanças, a certeza do crítico não teria sido realizada:
A própria orientação poética está na lógica da que fora anteriormente indicada.
Apenas, sente-se neste segundo livro a cristalização do sentimento, a repetição de
processos, a monotonia dos efeitos, o artifício convencional dos ornatos. Consumido
por esse desejo de perfeição, que foi em tempo tão necessário em nossa poesia, e
produziu tantas obras-primas, mas de que se tem abusado à saciedade, acontece que
fez um livro friamente parnasiano, hierático, solene, quase sempre distante, apesar
de todo o calor panteísta que espalha por seus versos. Livro que parece mais
esculpido do que criado repetindo frequentemente certos clichês de efeito, as eternas
sutilezas, que a princípio interessam e mesmo encantam, mas logo cansam quando
sentimos que se transforma em “processo” [...].
O poeta continuara o mesmo, o crítico é que começava a modificar sua visão de mundo. Em
suas apreciações finais sobre o livro de Prado Kelly, se não relativiza o seu “eternismo”, ele
começa a ter dúvidas sobre a pertinência de eternos há muito já assentados, por assim dizer:
Pesa-me ver tanta força poética esperdiçada em temas repetidos, em sonetos
inevitáveis, em comemorações conhecidas, com todo o séquito do convencionalismo
e da beleza artificial, do eterno panteísmo, do eterno sensualismo que justamente por
serem eternos nunca perdem quando esquecidos por algum tempo [...]. Que lhe falta
então? Com deve orientar-se? Não compete aos críticos dizer-lho, pois não lhe falta
talento para descobrir em si mesmo o segredo de um novo esplendor, que não lhe
altere a intuição poética, o momento inicial, a essência da poesia, mas ir para adiante,
renovar-se, criar uma beleza nova e não convencional e esmaltada meditando o
conceito eterno de Rodó: “Reformarse es vivir”.
Na dedicatória do livro Dança dos Pirilampos, Osvaldo Orico assim se expressava:
“A Tristão de Athayde, ao novo Tristão – que se libertou das velhas frases acadêmicas, e
enfrenta hoje o alto pensamento da vontade sem algemas e da arte sem dogmas”298. Talvez por
isso o crítico optou por analisar a obra de Orico juntamente com a conferência do modernista
português Antonio Ferro299, A cidade do jazz-band. Na ocasião, também foram abordados os
livros Fonte Carioca, Arlequim e Penso, logo... Eis isto do humorista Bastos Tigre, que assinava
como D Xicote. Era um daqueles artigos em que os autores abordados pareciam servir como
pré-textos para que o crítico pudesse traçar alguma tese geral. A tristeza era um dos temas:
Para nós brasileiros parece que o riso é impróprio do homem. “Muito riso, pouco
siso”, sentença que se incute em nosso espírito desde a mais tenra infância, primeira
advertência da longa lição de melancolia que é a vida aqui, entre o delírio ardente do
sol, o coro despreocupado das cigarras do estio, a exuberância dos verdes e a velhice
precoce de todas as faces300.
297
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 abr. 1923, p. 1.
ORICO, Osvaldo. Dança dos pirilampos. São Paulo: Monteiro Lobato Editores, 1923. Acervo CAAL.
299
Sobre Ferro Cf. SARAIVA, Arnaldo. Modernismo brasileiro e modernismo português. Subsídios para o seu
estudo e para a história das suas relações. Campinas: Unicamp, 2004, p. 165-181.
300
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 jun. 1923, p. 1.
298
324
O crítico considerava que “felizmente, nem só de clima e da terra nos vem o riso, como nem só
do esgotamento humano nos vem o sorriso”301 e que “o homem se diverte a contrariar as teorias
que os homens edificam”, não devendo ser causa de surpresa o sucesso dos humoristas. E os
modernos seriam, no Brasil, continuadores da tradição humorística do país:
Reação contra a melancolia habitual de viver, como reação contra a tristeza literária
encontramos nos livros dos nossos modernistas, a quem a praga dos medíocres ou
dos céticos não consegue asfixiar. Modernos são, cheios de vida nova, os Sres.
Antônio Ferro e Osvaldo Orico, aquele, aliás, uma das figuras mais originais e
representativas da nova geração portuguesa, e que por aqui passou o ano passado
numa conferência sonora e frenética que ora se publica. Ambos modernos, ambos
moços, ambos cheios de talento inovador e cansados de repetir, ambos pregando
alegria. Mas, no mais, um verdadeiro contraste entre eles.
A oposição entre os dois autores é expressa da seguinte maneira:
Enquanto o Sr Antônio Ferro, chocalhando as palavras como guizos, faz
ruidosamente a apologia da vida exteriorizada, de vida ao sol, vibrante, colorida,
agitada, da vida vulgar, do sibaritismo contemporâneo, reclama o poeta sutil e
delicado que se revela o Sr Osvaldo Orico, em versos alados:
Ama os meus versos, pois eles são como um favo
de doçura – ninguém conhece, infelizmente,
o que a gente deixou guardado como travo.
O pensamento esconde tudo, alegremente.
Ninguém sabe o que vai nas pétalas vermelhas,
nem conhece o amargor que vem doirado e flavo,
no trabalho paciente e suave das abelhas.
A oposição entre sertão e litoral parece ganhar uma atualização em torno do modernismo:
Ondula livremente, sem preconceito de forma, ao sabor da brisa interior, que balança
brandamente os seus versos, sem rumor ou apenas em surdina, como que a medo de
despertar a eloquência sonora ou o pessimismo amargo, que dormem em todos nós,
como peso da condição humana. Mas o jazz-band polifônico e sem alma do Sr
Antônio Ferro pretende quebrar todo esse encantamento de asa que faz sorrir a
superfície quieta da lagoa, de garça arisca que pisa de leve o chão verde, de abelhas
tontas e de vaga-lumes rasgando a sombra, como estiletes de fogo. É o áspero rumor
dos dancings, o rascar irritado das violas, os silvos finos e os pratos claros, toda essa
orquestra em delírio que faz duvidar do silêncio, confunde guinchos de palhaços com
estertores de coma, e apaga das paredes com sofreguidão todos os Mane-ThecelPhares da nova humanidade que surge da miséria, da velha humanidade que se
refugia nos templos. “A Europa envelheceu, teve um abaixamento de vez com as
emoções da guerra”.
Não se trata, porém, de optar entre as duas estéticas, mas reconhecer onde reina o
artifício, condenado pelo crítico, e onde se estabelece a relação mais autêntica com a
modernidade. O jazz-band torna-se o símbolo da nova cultura que não é vista positivamente:
A Europa lembrava um soprano lírico em decadência. Foi a América quem lhe valeu,
quem lhe injetou nas veias murchas a vida artificial do jazz-band. Sejamos alegres,
sejamos despreocupados, sejamos arlequins. Fora com os pierrôs, fora com o luar –
esse insuportável alvaiade... “Infantilizemo-nos”, clama enfaticamente, cheio de
infantilidade aventureira e de modernidade epidêmica. Nessa dogmática apologia do
“artifício” encontra o Sr Antônio Ferro uma das características da Idade Moderna –
301
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 jun. 1923, p. 1.
325
que Paul Morand302, com muito mais modernidade real e sem sombra de artifício,
fixou indelevelmente em suas extraordinárias águas-fortes literárias303.
Fenômeno internacional, a jazz-band era uma ocorrência que chamava a atenção dos mais
diversos setores. Instituída como signo da “geração atual”, a chamada “jazzmania” podia ser
associada a doenças endocrinológicas que, por sua vez, seriam as verdadeiras causadoras de
alguns “sensacionais crimes da atualidade”, conforme noticiavam os jornais:
A rapariga endoidece pelo jazz, que mata, que envenena, que chora, é uma vítima da
pressão do seu sangue, dizem alguns investigadores. E esta pressão do sangue é
geralmente o resultado das glândulas tiroides superestimuladas ou congenitamente
anormais304.
Tais investigações encaminhadas por médicos norte-americanos conseguiram fazer com que
um juiz decidisse pela internação da jovem Dorothy Ellington, que assassinara a própria mãe,
ao invés de enviá-la para uma penitenciária. Criou-se um tipo, a “rapariga do jazz-band” (Jazz
Girl), que intrigava cientistas. Começara-se, então, a estudar a:
Era do Jazz, a era do modernismo e do futurismo, da mesma maneira, por que
estudam culturas microscópicas através de uma lente. Nos últimos dois anos, por
exemplo, aumentou nos Estados Unidos uma estranha mania entre as raparigas, a
mania de fugir de casa305.
Haveria uma “cultura do jazz-band” que parecia evidenciar a formação de uma nova sociedade.
O escritor alemão Thomas Mann também mantinha reticências em relação à onda americana:
Nós vivemos numa época em que a fidelidade intransigente algumas vezes nos irrita:
uma verdadeira época de bandas de jazz, cujos heróis são o campeão de boxe e as
estrelas de cinema, e estes revelam todos os detalhes de suas grandes orgias. Orgias
espetaculares e divertidas, admito. Certamente seria filistino e pequeno-burguês
esbravejar contra os novos tempos306.
As reflexões do crítico, porém, não seriam esse esbravejar ou, pelo menos, não se
restringiriam a ele. Tratava-se da reflexão sobre a questão secular acerca da relação entre arte e
natureza, a questão da mimesis307, que a oposição entre naturalidade e artifício trazia latente:
A natureza existe, está aí à vista de todo o mundo, não oculta as suas belezas. O
homem, cada um de nós, se realiza nela, mas em face dela. Copiar a natureza, imitála, é uma inutilidade, é repetir o que está feito e repetir o mal, porque a voz do vento
não pode ser reproduzida, como é única e infinita de recursos a luz do sol. Só resta
ao homem realizar por si o seu sonho de beleza: é a arte. A arte não deve, portanto,
imitar, deve criar, procurando o homem tirar de si os elementos dessa criação. É
incontestável a possibilidade que pode conter essa fecunda concepção de arte,
contanto que seja ultrapassada, e não permaneça apenas no preconceito. A natureza
existe para o homem, como este só é homem por ser um momento de natureza.
Naturalidade e artifício no fundo se confundem. Não há limites fixados, não há
caracteres inconfundíveis. É tudo um jogo de sombras, uma ronda de entretons.
Haverá nada mais artificial do que uma cattleya, com aquela gradação de vermelhos
302
Escritor, poeta, dramaturgo e diplomata francês. Cf. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926, p. 412.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 jun. 1923, p. 1.
304
Um interessante problema social e científico: serão todas as perturbações da jazzmania causadas pela glândula
tireoide. O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 12 jul. 1925, p. 1.
305
Cf. Um interessante problema social e científico: serão todas as perturbações da jazzmania causadas pela
glândula tireoide. O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 12 jul. 1925, p. 1.
306
MANN Apud. GUMBRECHT, H U. Em 1926, p. 73.
307
Sobre o tema cf. ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013, p. 387.
303
326
que assombra, com aqueles lábios recortados como apenas conseguiram igualar os
mais ágeis dedos femininos, com aquela transparência de tecido, inacessível à
análise, porque a síntese dos seus elementos é por assim dizer orgânica? E o
esplendor dos crepúsculos tropicais, quem perante eles não pensou em como parece
ilusória essa possibilidade prodigiosa de mentir divinamente, das palhetas humanas?
E nem sempre uma orquestra straussiana ou stravinskyana será superior em
variedade aos ruídos do silêncio na floresta tropical, ou à voz de uma cidade em
trabalho, que é natureza, como natural é o rumor de uma multidão em revolta ou o
vento. A natureza sabe criar a ilusão do artifício como o homem chega à
naturalidade, porque artifício e naturalidade se confundem, sem se anular,
contudo308.
Tristão de Athayde procurava definir teoricamente alguns pressupostos que deveriam
caracterizar a produção artística moderna, abandonando o conceito tradicional de mimesis como
cópia, para atualizar o sentido relacionado à produção associada a uma subjetividade criativa.
Esta última seria sintoma dos processos de emancipação do indivíduo na modernidade:
Mais efêmero do que negar a natureza, só o preconceito de circunscrever-se a ela.
Existe na arte moderna, entre os elementos de rejuvenilidade que os megatérios
insistem, naturalmente, em negar, uma conquista ao menos que há de ficar, quando
a arte moderna ceder à nova arte moderna de amanhã: é o esplendor da deformação.
A arte foi, quase sempre, para nós, segundo a herança greco-romana do nosso
pensamento, uma tendência à harmonia. A natureza era a desordem que o homem
podia disciplinar pela arte. A arte era a supressão do disforme; era, por essência, uma
conformação. O homem moderno, por agudeza de engenho ou por originalidade
mórbida, por decadência ou requinte, um pouco por tudo isso, sentiu que a escala
não bastava, que as formas visíveis não esgotavam as invisíveis, que o silogismo não
exprimia todo o pensamento. E chegou à dissonância na música, à deformação na
plástica, à sugestão alógica na poesia. A literatura não é apenas filha das condições
sociais, como se julgou algum tempo, mas sobretudo das condições intelectuais. As
condições sociais modernas, suscitando o individualismo e o ambicionismo,
provocaram esse delírio de egotismo que a loucura do jazz band tão sugestivamente
evocada pelo Sr Antônio Ferro põe em foco.
Neste processo de desenvolvimento das condições intelectuais modernas, Tristão de Athayde
ressalta a própria crítica à ciência e ao racionalismo como componente da realidade nova:
As condições intelectuais modernas, todavia, ainda concorreram mais para os novos
horizontes literários. Bergson já tinha mostrado, pelo recurso à intuição, que a razão
pura não lhe bastava. Depois dele, Bertrand Russel ou Wittgenstein procuraram
mostrar que a lógica aristotélica já não lhes parecia suficiente para toda a ambição
analítica do conhecimento e chegam à “logística”, à “filosofia como ciência do
possível” à totalização da vida mental, de forma a insuflar novas modalidades ao
pensamento, dando-lhe uma flexibilidade e uma fluidez, que o tornam talvez mais
obscuro, mas, possivelmente, mais sutil e humano.
Note-se, portanto, que o tecido reflexivo criado pelo crítico abordava diferentes matrizes da
cultura intelectual: filosofia, arte, história e sociologia são modalidades de pensamento que ele
procura articular em suas apreciações. Tristão de Athayde lembra passagens do livro Le
subjetivisme do escritor anarquista nascido na Argélia, Han Ryner309 (pseudônimo de Jacques
308
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 jun. 1923, p. 1.
Sobre recepção das ideias de Han Ryner no Brasil ver: RAGO, Margaret.
“Entre o anarquismo e o feminismo: Maria Lacerda de Moura e Luce Fabri.” Disponível em:
<http://www.nusol.org/agora/pdf/margarethrago.pdf>.
309
327
Élie Henri Ambroise Ner), mas radicado na França:
O homem é um tecido que de forma alguma se analisa sem um pouco de mentira e
de destruição. Há o conhecimento e a crença no terreno onde mergulham as raízes
da ação; e é necessário ao conhecimento e à crença um princípio ativo. O gênio atinge
uma precisão harmoniosa apenas na refletida luz do pensamento; e um esforço
constante e feliz em direção à ciência pressupõe uma disciplina da vida310.
O princípio crítico que mantém distante a possibilidade de chegar-se a um ponto final
do conhecimento ou, como diz o crítico, “a verdade, sempre inatingível, recua sempre, mas nós
não recuamos e esse é o consolo, a verdadeira fé”, não poderia ser, entretanto, razão para se
abandonar a orientação racionalista e intelectualista da disposição humana. O crítico procura
expor tal perspectiva no interior da história da arte e do pensamento modernos:
As correntes mais modernas da literatura são filhas da logística, mais que da anarquia
contemporânea. Todos procuram quebrar a rigidez dos moldes convencionais, por
uma aproximação - ilusória e mínima, mas confiante e vencedora – dessa verdade
que refuga, para nosso bem, ao nosso conhecimento. Apenas não deram ainda hoje
as letras uma figura como Einstein para as ciências. “A dificuldade de compreender
a teoria da relatividade não está tanto em aprender quanto em desaprender”, dizem
os que a entenderam. É o que acontece, igualmente, no nosso mundo literário. O
obstáculo em compreendermos a riqueza da deformação é libertarmos o nosso
espírito da sedutora harmonia em que educamos os sentidos. Mas sabemos que o que
não se explica é muitas vezes a explicação exata de que a arte que tudo diz é uma
arte que tudo cala à nossa inteligência e sensibilidade; que a perfeição modelar é a
negação da verdade, sempre imperfeita, dessa verdade que é apenas uma marcha
para a Verdade, que é um elo, um degrau, uma doutrina ou um poema. Por isso
mesmo não creio absolutamente que a originalidade fecunda dos artistas modernos
esteja em negar a natureza, senão em descobrir novas fórmulas de expressão dessa
comunhão crescente da vida real e imaginária, da arte e do artifício, do silêncio inato
e da agitação numerosa, que a vida de hoje comunica ao nosso espírito. “Impedir a
arte de se nutrir em uma fonte qualquer é secar todas as fontes ao mesmo tempo”,
escreve admiravelmente esse mágico Elie Faure311.
Tristão de Athayde defendia, assim, uma concepção abrangente do moderno que não deveria
valer-se de preconceitos e restrições, mas manter-se aberto a todas as fontes. E aí
compreendemos onde se encontram os pirilampos e a jazz-band: “Tão moderna é a vibração
exterior e selvagem dos jazz-bands vulgares, como o requinte destilador dos mundos íntimos.
O contrário seria apagar os pirilampos do Sr Osvaldo Orico”. O humorista Bastos Tigre
enfeixava tais reflexões com a nota cética, mas não complacente, que era marca recorrente:
“[...] paradoxal ou truísta, imprevisto e vulgar, mas sempre vivo e sempre agudo, sempre lúcido,
mudo ou sorrindo, passando rasteiras garotas nos ridículos encartolados, sem por isso negar o
calor do ideal: ‘Ri dos sonhadores; mas experimenta se é possível realizar os seus sonhos’”312.
O ponto de chegada, por assim dizer, das reflexões de Tristão de Athayde neste
primeiro período que denominamos como “tempo da dúvida” pode ser reconhecido em uma de
310
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 jun. 1923, p. 1.
Autor francês dedicado à história, crítica e teoria da arte. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal,
Rio de Janeiro, 10 jun. 1923, p. 1.
312
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 jun. 1923, p. 1.
311
328
suas últimas críticas feitas antes da interrupção de sua atuação em O Jornal entre agosto de
1923 e fevereiro de 1925. Trata-se de um elogio à representação da peça Seis personagens à
procura de um autor do dramaturgo italiano Luigi Pirandello:
Comédia, disse eu, mas comédia no verdadeiro sentido em que Dante empregou a
expressão “Comédia”, que fere mais duramente, que penetra mais a fundo nos
tecidos da vida que a mais trágica tragédia. Um tema... não há um tema. Há o tema
por excelência, de todos aqueles que, em qualquer tempo, tentaram criar. A tragédia
do artista que se sente senhor da vida, mas, ao mesmo tempo, incapaz de dar vida a
toda a verdade, a toda a sutileza da verdade que ele mesmo não sabe bem exprimir a
si próprio. E, no caso, não é a tragédia do criador que vivemos, mas a dor da criatura,
da personagem. Criada, ou melhor, concebida no espírito do homem audaz, que quer
ser Deus, a personagem se destaca dele, vai viver sua vida, sua vida de fantasia. Vida
de fantasia, vida de realidade. Onde o limite? Somos o que nos julgamos ser. Se da
matéria só os fenômenos nos atingem – do espírito, do espírito que é o homem
mesmo (pois a carne não é mais do que o espírito da matéria), desse espírito
conhecemos uma realidade ainda mais fugaz, cambiante, sutil, do que os fenômenos
da matéria. Porque esta, ao menos, é uma coisa em si. Na matéria existe uma coisa
em si, que não sabemos qual seja, mas que, se acaso tivesse consciência de si mesma,
saberia ela qual a sua realidade real313.
Nessa reflexão sobre as (im)possibilidades de conhecimento de si e do mundo, o crítico percebia
na peça a fugacidade dos saberes e da própria representação que os homens fazem de si mesmos:
A consciência é apenas a visão interior, misteriosa, do que refuga em nós mesmos à
ideia de fixidez, de determinação. Somos o que é o espírito, o que nos parece o
espírito – uma ronda imponderável e intangível de imagens e de pensamentos, que
conseguimos, muitas vezes, fixar, mas fixar ilusoriamente. Porque cada um de nós é
sempre outro, a cada momento, e a luta que sentimos em nosso íntimo é a dessa
multiplicidade que procura incessantemente a sua unidade interior, para a vida viva
do espírito.
A encenação, que tinha na atriz italiana Vera Vergani uma de suas protagonistas não buscaria a
originalidade por si mesma, mas a alcançaria pela sua “admirável cena de verdade e dor”.
Segundo o crítico, os contrastes eram a feição principal da peça por ele descrita:
[...] o contraste entre o realismo do início, quando assistimos, nos bastidores de um
teatro, aos preparativos de um ensaio, e a chegada imprevista daquelas seis
personagens falidas como a dor, e trazendo no luto do vestuário o vestígio recente
da morte, que passou entre elas; o contraste entre o sarcasmo irônico daquele
punhado de atores e a tragédia incompreendida, que estraçalha o coração daquelas
seis criaturas, fundidas entre si, como os elos de uma cadeia, pela fantasia macabra
e irrealizada de um artista; o contraste entre a verdade antiteatral daquele horrível
drama de família, que as personagens pretendem recriar em cena, e o cabotinismo
dos cômicos que se esforçam por encarnar as vítimas da tragédia, mas falsificam a
verdade e não conseguem sair de si mesmos. E próprio contraste entre a Mãe,
imagem da fatalidade sofredora das criaturas todas de bondade, o Filho legítimo,
soturno como a moral inflexível e sem piedade, o pequeno bastardo, cujo silêncio é
o remorso de uma culpa inexistente, mas sempre atribuída uns aos outros, todos esses
de uma humanidade rigorosa e concentrada – e de outro lado o Pai e a Filha bastarda,
odiando-se como espíritos impenetráveis, vivendo intensamente a comédia que lhes
rasga o peito, e mais mediocremente humanos, querendo reviver e completar no
palco a tragédia que o seu criador deixara inacabada, esboçada apenas em sua
fantasia. Tudo isso parece nebuloso e obscuro. Eu é que sou nebuloso e obscuro,
pretendendo prender em algumas palavras a onda de vida, de sofrimento, de
313
ATHAYDE, Tristão de. Pirandello, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jul. 1923, p. 1.
329
humanidade, que Pirandello conseguiu fazer palpitar num palco – que não é um palco
– durante algumas horas de arte verdadeira. Porque a arte verdadeira nem sempre é
a arte pura. A arte pura será quase sempre uma beleza distante. A arte que Pirandello
criou nessa página tão humana, não é pura, e por isso mesmo é mais, talvez, do que
se fosse pura. É a arte que se mistura realmente com a vida, com o nosso espírito, na
realidade das criaturas. E mais uma vez é preciso voltar ao tema inflexível do
contraste, que é, talvez, a grandeza maior desse drama. A dor que é toda dor parece
que se esfuma; perde-se em sua totalidade. Mas a dor muda, que vive ante o desprezo
e o sarcasmo, como a das três criaturas silenciosas; a dor que chega à própria
degradação de se exibir, sem perder, contudo, a consciência do seu mal incurável,
como a do Pai e da Filha – essa dor parece que reponta com mais horror, porque
ressalta de uma negação314.
Mas questões menos filosóficas parecem ter tomado a atenção do crítico que aproveita a ocasião
para tratar de outra atração do espetáculo, a plateia de teatro no Rio de Janeiro daquele tempo:
Uma boa senhora lamentava o dinheiro perdido, pois viera ver uma tragédia, “os
italianos não dão para a comédia” (a boa senhora ria muito, depois deve ter-se
desconsolado) e caíra naquilo. Outros soltavam sonoras gargalhadas a torto e a
direito, como se tudo aquilo fosse impagável. Uma dama se indignava que o teatro
estivesse quase cheio: “Só porque fez sucesso em Paris. Tudo esnobismo”; dizia com
certa razão, sem dúvida. E muitos outros sorriam com superioridade das
“maluquices” de Pirandello.
Ronald de Carvalho irritado com a falta de público nos concertos de Villa Lobos falava em
“decadência da plateia carioca” e sobre o teatro tornar-se “um lugar de conversa, de encontros
amáveis, de intrigas sibilinas, onde há uma orquestra e meia dúzia de cantores, tal qual como
nos restaurantes de luxo”315. Segundo Carvalho, “a maioria da nossa plateia contemporânea é
incapaz de julgar uma obra de arte” e, frente ao bovarismo reiterado, incentivava Vila Lobos:
Não desanime, porém, o sr Villa-Lobos. Dê os seus dois últimos concertos, embora
para os cem admiradores que tem ido ao Municipal, pois, quando voltar da Europa,
consagrado pelos elogios do estrangeiro, pelos aplausos de Varsóvia ou de
Bucareste, serão dois mil os seus entusiastas. Infelizmente, a nossa moeda artística
depende, como a fiduciária, do câmbio meteca.
No caso da crítica de Tristão de Athayde a Pirandello, além de seus vizinhos de
poltrona, houve outras manifestações contrárias. Maria Belo assume honestamente não ter
compreendido bem a peça:
Onde a verdade? Que tentou dizer Pirandello? Na sua confusão macabra de cômico
e trágico, e que é um velho processo do humorismo, não desejaria, apenas, intrigar e
atordoar o espectador incauto? A sua estranha concepção não caberia, porventura,
nas regras eternas da técnica literária e teatral? Acredito que todos nós, que
assistimos a comédia de Pirandello, o sr Tristão eu, o vizinho divertido do sr Tristão
[...] fomos vítima duma nova “duperie” [...]. A inteligência do sr Tristão de Athayde,
confessadamente simpática às formas, mais ou menos obscuras, da arte nova,
futurismo, penumbrismo, impressionismo e não sei que mais, e que a mim se me
afiguram simples sintomas duma triste decadência literária [...]. A inferioridade do
meu exclusivismo, que ainda não pode sair da linha que vem de Montaigne a Anatole
France, clara, precisa, geométrica, responderia negativamente316.
314
ATHAYDE, Tristão de. Pirandello, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jul. 1923, p. 1.
CARVALHO, Ronald de. A decadência da plateia carioca, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 dez.1922, p 1.
316
BELO, José Maria. Pirandello, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 jul. 1923, p 1.
315
330
Ele termina por lembrar as verdades clássicas que iriam de encontro a tais “coisas novas”:
Ateneia é mais implacável das deusas. Ela não perdoa nunca os atentados dos
bárbaros contra a sabedoria das suas regras de verdade e de beleza clara, simples e
medida, e que são as únicas que resistiram e resistirão, incólumes e eternas, no alto
da Acrópole, às injúrias loucas dos homens e dos séculos...317
Tristão de Athayde responde a Maria Belo com um artigo que começava já por
comentar a reivindicação da autoridade antiga: “No século XVI, [...] quando Sá de Miranda
provocava a consciência estética do país, surgiu também, em Portugal, a crítica literária na
pessoa de Antonio Ferreira, em seus versos pregava a submissão servil à antiguidade”318:
... o inculto, o fero
Em si só confiado não me apraz:
Eu, Musas, a vós sigo, em vós espero.
Cantei na arte, trabalho, tempo e lima.
Fizeram aqueles nomes tão famosos,
Por quem a Antiguidade se honra e estima.
Retomam-se as reflexões sobre o mal do classicismo academicista e reitera-se que a “arte é
expressão e a beleza um êxtase do espírito”. Questiona o que seria de Shakespeare e da literatura
inglesa, dos escritores russos, de franceses como Rabelais e Marcel Proust, de “toda a literatura
e toda a arte espanhola, misto impuro de cristianismo e de arabismo, produto, portanto, de um
hibridismo inconciliável com a clara simplicidade ática”. Comenta, afinal, que:
Do Oriente, então, nem falemos, porque conservou intacta a sua extravagante
personalidade, expressa em uma arte que é a negação dos modelos clássicos. E da
nossa pobre América, então? Dela só podemos guardar aquilo que imitou aos
modelos herdados, em que obedeceu às regras eternas do mosaísmo estético e
estático. Da literatura brasileira, coitada, varra-se tudo o que tentou humildemente
fazer de um pouco seu. – e os apóstrofes do Navio Negreiro irão encontrar no Limbo
do ostracismo “Os Sertões”, de Euclides da Cunha.
Tais argumentações serviam para afirmar o sentido do artigo: “O encanto da arte é a
multiplicidade. A beleza é movimento e variedade, sempre a mesma e sempre diversa”. E o
critério da originalidade a partir do nacional é, mais uma vez, reiterado:
Cada continente, cada povo, cada um de nós, deve procurá-la, não como moldura
passiva para uma tela indiferente, mas como expressão de vida e sangue da nossa
alma, nessa avidez de recriar eternamente um mundo à imagem do nosso espírito
que nos reconcilie com o mundo a imagem dos nossos olhos, em que a ironia da
fatalidade nos faz nascer. Foi isso o que Pirandello, como tantos outros, nos revelou,
por alguns momentos fugazes. Não há fórmulas de beleza. O seu esplendor é a
multiplicidade.
Maria Belo respondera afirmando que Tristão exagerara as posições do primeiro e considera
que: “Não desejaria nunca que repetíssemos servilmente as formas da beleza helênica. Acredito,
no entanto, que dentro das regras eternas de harmonia, proporção e graça, de que ela é a
expressão suprema e eterna, cabem todas as inspirações pessoais”319. Toda a reflexão sobre
317
BELO, José Maria. Pirandello, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 jul. 1923, p 1.
ATHAYDE, Tristão de. A beleza múltipla, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 jul. 1923, p 1.
319
BELO, José Maria. Arte antiga e moderna, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 jul. 1923, p 1.
318
331
deformação em arte que o crítico de O Jornal vinha expondo não encontra ressonância em
Maria Belo que, por sua vez, encerra o debate dizendo que ambos poderiam estar com a verdade.
Nesse ano de 1923, Tristão de Athayde irá interromper por mais de um ano a sua
atividade de crítica literária em O Jornal. A defesa da “Beleza Múltipla” ia, ainda, em acordo
com uma sociedade múltipla também que, conforme veremos a seguir, será menos um valor a
ser defendido do que um dilema acerca das condições políticas e culturais que não param de
demandar soluções. O tempo parecia, cada vez mais, ser sentido como uma pressão e, ainda em
1923, ao comentar sobre a voga do regionalismo, o crítico diz que “por aquele tempo, pouco
depois, temeu-se o perigo regionalista, pela direção que ia tomando nossa literatura, atraída pela
preocupação nacionalista em voga”320. A expressão “por aquele tempo” é utilizada aqui para se
falar de três anos passados, revelando a forma como o presente parecia, cada vez mais, diluirse frente aos acontecimentos que se sucediam. Em uma de suas memórias, Tristão de Athayde
dizia que:
[...] em 1922, com a Semana de Arte Moderna, de que eu não tomei parte
diretamente, mas tomei indiretamente, e aí, isso que foi a posição, realmente, a minha
posição em relação ao modernismo foi como um crítico que tinha começado três
anos antes [...] com uma certa abertura de espírito, mas com uma certa seriedade
também. A minha posição e a importância que eu possa ter tido a esse tempo foi ter
tomado a sério o modernismo, essa é que a verdade321.
O crítico cada vez mais tomará a sério não só o modernismo como várias outras esferas da
cultura intelectual brasileira, fazendo da angústia uma de suas características mais patentes.
320
321
ATHAYDE, Tristão. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 abr. 1923, p 1.
“Dr Alceu”. Direção: Heloisa Buarque de Holanda. [s.l.] Embrafilme, 1981.
332
Intermezzo: O Espetáculo da coluna da angústia e da esperança
A coluna distende-se e prossegue pelo atalho
angustioso, furando a floresta rumo da salvação.
“Episódios da Coluna Prestes”, 1926.
Em 1925, quando Tristão de Athayde voltara à atividade periódica depois de pouco
mais de um ano de interrupção de sua coluna de crítica literária semanal, o O Jornal estava já
consideravelmente modificado. Desde 2 de outubro de 1924, o nome de Assis Chateaubriand
passou a encabeçar a primeira página do veículo que noticiava a mudança da seguinte maneira:
[...] renunciou ontem o lugar de diretor desta folha o Dr Renato de Toledo Lopes.
Renato Lopes fez, em curto lapso de tempo, uma definitiva reputação de homem de
imprensa. O JORNAL foi em 1919, ao raiar da luz branca da paz, uma ousada
tentativa de ressurgimento, no Rio de Janeiro, da imprensa doutrinária [...].
Assumiram interinamente a direção da Empresa Gráfico Editora, os Sres. A Cruz
Santos e A Chateaubriand, os quais deverão convocar a assembleia geral, destinada
a escolher os diretores efetivos. A nova direção escolheu para redator chefe o sr Dr
Saboia de Medeiros1.
Em outra apresentação, os novos proprietários do O Jornal afirmavam o prosseguimento em
sua orientação “conservadora” e “para a direita”:
Um grupo de homens de boa vontade, animados pelo desejo ardente de prestar
serviço ao país, no momento grave que passa e em que tem de enfrentar a resolução
de problemas delicadíssimos, do qual dependem os seus destinos, escolheu adrede
este jornal para órgão e instrumento da ação que lhe ditam os seus sentimentos
patrióticos. [...] Parece-lhes [...] que a situação social e política da nação brasileira
está a reclamar uma ação mais enérgica e decidida, um “coup de barre” mais
vigoroso para a direita, um combate mais renhido contra os males e vícios que
atacam o organismo nacional e lhe ameaçam a existência. Essa orientação
conservadora, importa, claro está, em prestigiar a autoridade em seu princípio
mesmo, enquanto autoridade, responsável pela coisa pública, sem que, entretanto,
este respeito indispensável lhe tolha a liberdade justa e necessária de assinalar os
erros e desvios possíveis na direção dos negócios públicos. [...] A todas as reformas
sociais há que aplicar os princípios daquele “empirismo organizador” de que fala
Charles Maurras, e que implica numa ação reformadora constante,
perseverantemente seguida, com decisão e energia, mas com tato, moderação,
prudência e delicadeza: uma ação perscrutadora para adotar as leis e regras diretivas
às realidades e continências da vida social. [...] O JORNAL pretende servir e
defender o interesse nacional; não o interesse de uma classe ou de um partido, mas
o interesse comum, aquele “bem comum” que é o objeto e a única razão de existência
das comunidades políticas2.
Esta passagem pode ser vista como um segundo manifesto do O Jornal, de forma que se o
primeiro ressaltava a orientação democrática e liberal, o último se comprometia com princípios
da ordem e da direita política, inclusive com citações do nacionalista reacionário Charles
Maurras. Ironicamente, Jackson de Figueiredo, que tanto escreveu sobre o intelectual francês,
não colaborará nesta segunda fase do O Jornal. Figueiredo, aliás, teria participado da censura
1
2
EXPEDIENTE, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 out. 1924, p 1.
PELA REAÇÃO CONSERVADORA, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 out. 1924, p. 1.
333
policial no governo Bernardes que intervira, inclusive, nas páginas de O Jornal.
Os artigos de Assis Chateaubriand delineiam as novas orientações do veículo, assim
como a sua expansão de páginas, colaboradores, patrocinadores, campanhas, propagandas,
intervenções na vida pública etc. situava o jornal entre os maiores do país. Nos dois âmbitos –
a doutrina jornalística de Chateaubriand e as diversas produções abrigadas pelo jornal – aqueles
princípios de conservadorismo e defesa da autoridade foram relativizados. Conforme Moraes,
com sua linguagem de biógrafo entusiasmado:
Chateaubriand assumiu a direção de O Jornal com o estrondo das tempestades de
verão da Paraíba. Como se quisesse deixar bem claro que vinha para ficar, para
presidir a nova empresa ele chamou ninguém menos que o ex-presidente Epitácio
Pessoa. Uma das diretorias foi entregue a Alfredo Pujol e a outra a Rodrigo Melo
Franco de Andrade, o responsável pela coleta de dinheiro em Minas Gerais. [...]
Cercado pelas três mais luzidias estrelas da política, do direito e da intelectualidade
[sic], trabalhou freneticamente nas suas primeiras semanas como dono de jornal. No
Brasil, só O País e O Imparcial, assinantes do serviço integral da agencia de notícias
americana United Press, publicavam regularmente artigos assinados sobre política e
cultura internacionais. Mas eram assinaturas de analistas da própria agência, nomes
pouco conhecidos do público. Chateaubriand resolveu inovar e, após breve troca de
telegramas, trouxe para as páginas de O Jornal nomes cobiçados internacionalmente,
como o prêmio Nobel de literatura Rudyard Kipling, o ex-presidente francês
Raymond Poincaré e o ex premiê britânico Lloyd George [...]3.
Sob o novo comando, o O Jornal sofreu diversas modificações. Seu tamanho passou a variar
entre quinze e vinte páginas em média, mas, não raro, chegava a trinta ou quarenta. As edições
de domingo, que poderiam abrigar três seções, chegavam a contar com cinquenta páginas.
Em um editorial, Chateaubriand reconhecia sua admiração pelos norte-americanos:
Nós estamos ainda na infância do jornalismo. A própria Europa pode dizer que agora
entra na fase da adolescência. Porque os mestres, os que incontestavelmente levaram
a imprensa, sobretudo na parte informativa, ao apogeu da sua vitalidade e da sua
perfeição, são os americanos do norte. E aí há muito menos imprensa amarela do que
se supõe4.
O jornalista, porém, não define o que seria essa fase adulta do jornalismo, pois o artigo tratava
de denunciar um direito de resposta não garantido pelo jornal Correio Paulistano que, assim,
estaria a quebrar a lei moral e de imprensa. Portanto, ele falava em atraso material e ético do
jornalismo brasileiro. Acerca do primeiro, o jornalista paraibano investiu muito na
modernização do maquinário que imprimia seus periódicos5. O que se destaca no jornalismo de
Chateaubriand é a sua tendência ao espetáculo. Tudo que saía no jornal assumia ares de
“exclusividade”, de novidade e de “furo” jornalístico. Até a coluna literária assinada por Tristão
3
MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1994, p. 141.
CHATEAUBRIAND, Assis. O que é jornalismo no Brasil, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 jan. 1925, p. 1.
5
Conforme Fernando Morais: “No Rio de Janeiro O Jornal exibia a opulência semelhante ou até maior que a do
Diário da Noite. Para o jornal carioca comprara uma máquina ainda mais sofisticada que a Albert que fazia tremer
o velho prédio do vale do Anhangabaú: uma Hoe de alta velocidade, novinha em folha, capaz de imprimir duas
vezes e meia mais jornais que a máquina instalada em São Paulo – ou seja, 72 mil exemplares por hora,
continuamente”. MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil, p. 154-155.
4
334
de Athayde ganhara um parêntesis de “especial para O Jornal”. O princípio maior que passa a
nortear a sua imprensa é a publicidade, desde seu aspecto de propaganda de venda de produtos
até o investimento nas formas de se tornar a notícia, a informação jornalística, mais atraente ao
leitor/consumidor. Chateaubriand foi um grande divulgador dos princípios publicitários na
imprensa brasileira, escrevia artigos sobre o tema e promovia ações como um inquérito em
torno da publicidade no país e seus efeitos positivos para o empresariado6. A própria publicidade
poderia virar notícia, como na divulgação do “Mais caro e mais eficiente anúncio que já se fez,
do Brasil, na imprensa norte-americana”. Aí, o Copacabana Palace Hotel apresentava, nos
Estados Unidos, a capital brasileira como uma “fuga” “dos destinos batidos e prazeres estáticos
da Europa”, convidando o estrangeiro a vir para “um novo mundo [...] Rio de Janeiro, onde
você pode aproveitar livre de todas as restrições”7. Falava-se sobre a peça:
É verdade que o anúncio foi habilmente preparado e escrito pelo conhecido
especialista americano da publicidade, sr. Fritz Gibbon, antigo chefe de publicidade
do “New York American”, e alguns outros diários importantíssimos de Nova York,
o qual, nessa ocasião, estava contratado pelo O JORNAL para a organização do seu
departamento de Publicidade e que agora faz anúncios interessantes de importantes
casas de comércio da praça, clientes de sua nova Agência de Anúncios, fundada por
ele sob o nome de Publicidade Internacional, com sede no n 22 da Avenida Rio
Branco. [...] O JORNAL tem, em muitas ocasiões, salientado a importância e a
necessidade da publicidade moderna e eficiente, tanto no Brasil como fora dele e
publica esta página no desejo de estimular o apreço público por essa relevante
questão e para auxiliar o desenvolvimento do Rio de Janeiro como um centro de
turismo8.
Esta preocupação com a publicidade fazia com que o periódico reiterasse a cada grande
manchete, notícia ou evento, um caráter de comunicação direta com o público leitor, lembrando
a este que apenas no O Jornal ele poderia ter acesso a tal informação. Discutia-se à época,
inclusive, a questão dos direitos autorais na produção intelectual brasileira9. Assim como a
publicidade exigia gastos para a promoção de produtos à venda, a notícia chamativa também
vinha acompanhada por reivindicações de propriedade intelectual e jornalística. Um dos feitos
significativos do O Jornal foi a divulgação do “testamento de Lenin”. O que era noticiado
somente a partir de notas não assinadas das agências internacionais, agora vinha como “furo”
de reportagem exclusiva. Enquanto a morte do líder soviético ganhava nos telegramas
internacionais apenas descrições rápidas e sintéticas10, as novas pretensões do periódico de
Chateaubriand abrigavam contribuições como as de Morris Gordin, assim apresentado:
6
Cf. CHATEAUBRIAND, Assis. A eficiência da propaganda jornalística, O Jornal, 11 de julho, 1926, p 1.
O MAIS CARO E MAIS EFICIENTE ANÚNCIO QUE JÁ SE FEZ, DO BRASIL, NA IMPRENSA NORTEAMERICANA, O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 20 mar. 1927, p. 5.
8
O MAIS CARO E MAIS EFICIENTE ANÚNCIO QUE JÁ SE FEZ, DO BRASIL, NA IMPRENSA NORTEAMERICANA, O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 20 mar. 1927, p. 5.
9
Cf. MENDES, Brito. Da propriedade literária. O Jornal, Rio de Janeiro, 14 mai. 1924, p 1.
10
Cf. O enterro de Lenin, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jan. 1924, p 5.
7
335
Morris Gordin é, hoje, um dos escritores russos de maior sucesso nos Estados
Unidos. Depois de haver servido durante quatro anos ao governo do Soviete, em
contato com Lenine e Trotsky, ele foi à América do Norte, onde ganhou a fama de
um dos críticos mais bem informados da política sovietista. Os seus artigos, dos quais
O JORNAL adquiriu a exclusividade, vulgarizam fatos até agora desconhecidos ao
público ocidental, sobre os negócios russos11.
Assim, e com o devido parêntesis de “especial para o jornal”, Gordin publicava as cartas que
Lenin deixara e deveriam ser lidas antes da escolha de seu sucessor no Congresso do Partido.
As cartas caracterizavam cada líder soviético, com os parêntesis de Gordin:
Zamenev – Presidente do Soviete de Moscou, um “oportunista” incurável. Um fraco,
assim se mostrara em 1917. Deve ser vigiado. Zinoviev – (presidente da
Internacional Comunista) – Sem talento, arde pelo poder. Deve ser estritamente
vigiado, porque pode se tornar prejudicial ao Partido. Bukharin – (Editor do Pravda,
órgão central do Partido Comunista) – Não é perspicaz. O seu Marxismo é
desnecessário, porque não sabe como tirar partido da dialética. Tem muito
temperamento, gosta de paradoxos. É, no entanto, o único teórico que existe no
Partido, mas em caso algum o teórico do Partido. Trotsky (o recente ministro da
Guerra do Soviete na Rússia) – É muito bem dotado, porém “poseur” demais. Possui
extraordinárias faculdades de comando e organização. O seu passado
“menchevismo” há muito se evaporou. De mais a nada, ele nunca foi um
“menchevista” verdadeiro, mas constantemente propenso ao bolchevismo. Amante
da disciplina, deseja-a igualmente para si e para os outros. Tem muita coragem em
reconhecer as faltas passadas. Deve, portanto, estar à testa do Partido. Piatakov –
(vice-presidente do Comissariado da Economia Pública do Povo e ardentíssimo
oposicionista) – É um homem habilíssimo. Infelizmente foi nos últimos anos
monopolizado pela administração do trabalho. Deve lhe ser dada uma larga parte na
direção do Partido. Stalin – É astuto e inteligente. Tem paixão pela ditadura. De
forma alguma lhe será permitido ser secretário geral do Partido (o que hoje é). Se
preciso for será expulso do Partido, a fim de serem aproveitados os preciosos
serviços de Trotsky12.
O próprio articulista comenta a proibição de que foi objeto tal “documento secreto” que
permanecerá por décadas na obscuridade13.
O investimento, portanto, de Assis Chateaubriand num jornalismo ao mesmo tempo
informativo e espetacular era alto. Talvez fosse isso que entendesse por grande imprensa norteamericana. Várias eram as estratégias de promoção do periódico O Jornal e de sua associação
à vida das pessoas. Assim, ele promovia diversas promoções, colunas e eventos que faziam do
jornal muito mais do que um informativo. Criou-se então o “Concurso de Beleza do ‘O Jornal’”
que promovia uma interação entre as figuras femininas, a publicidade e a concessão de
prêmios14; o “Grande concurso cinematográfico do O Jornal”, também anunciando premiações
variadas15; outra premiação criada era a distribuição de dinheiro pelo jornal, normalmente vinte
11
GORDIN, Morris. Uma crise no Partido Comunista Russo, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 abr. 1925, p. 1.
GORDIN, Morris. A morte de Lenine, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 de jun. 1925, p 1 e 2.
13
Orlando Figes narra como Stálin impedira a divulgação de tais notas, que teriam “ficado nas sombras” até 1956,
de sua restrita divulgação nos anos 1920 e que “coube a Trotsky e a seus seguidores divulgar, no Ocidente, o teor
do Testamento de Lenin”. Cf. FIGES, Orlando. A tragédia de um povo. A Revolução Russa 1891-1924. São Paulo:
Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 981.
14
Cf. O concurso de Beleza do O Jornal, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 mar. 1925, p. 3.
15
Cf. Grande Concurso Cinematográfico do O JORNAL, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 jun. 1927, p. 7.
12
336
mil reis, a pessoas que fossem flagradas pelos repórteres lendo o periódico pelas ruas do Rio de
Janeiro16; ofereciam-se brindes aos assinantes17; o “concurso semanal de palpites esportivos do
O Jornal” rendia premiações de até quinhentos mil reis18. Além de premiações e concursos, o
periódico desdobrava-se em colunas e seções com interesses cada vez mais específicos, como
as dedicadas às “horas de lazer feminino” (com o subtítulo “Mundanismo – Modas – Literatura
– Arte – Frivolidades”)19, ao “jornal das crianças”20 e até uma “seção de eletricidade”21.
Publicou-se um “Almanaque Informativo do O Jornal”22. Prefigurava-se, assim, o advento da
revista Cruzeiro lançada por Chateaubriand em 192823.
No mesmo sentido, criou-se um “Jornal Luminoso”, “uma novidade sensacional a qual
é nem mais nem menos do que um jornal da noite elétrico escrito no ar”, com patrocínios
garantidos da Brahma, Fox Filmes, Philips do Brasil e outros, anunciava-se que:
Este “Jornal Luminoso” será fornecido exclusivamente pelo O JORNAL com um
serviço regulador de informações úteis: as cotações de encerramento do câmbio e do
café, boletim do tempo, todas as últimas notícias esportivas e outras informações de
grande interesse para o púbico. [...] O “Jornal Luminoso” será publicado no ar, no
alto do prédio, diretamente em frente do Hotel Avenida, isto é, num lugar onde
dezenas de milhares de pessoas passam todas as noites, ora tomando os bondes a
caminho de casa, ora neles chegando dos arrabaldes com o intento de ir em qualquer
dos pontos de diversão do centro, para não falar já dos inúmeros viandantes que
enchem a Avenida à hora do fechamento do comércio. [...] O espectador observando
tal instalação pela primeira vez fica atônito ao ver frases de luz correrem como
relâmpagos pelo espaço [...]. O JORNAL instalou um departamento especial o qual
está continuamente atento às notícias de todas as partes do mundo, nas quais o
público do Rio esteja interessado particularmente o momento, de maneira que 3 ou
4 minutos mais tarde, esta informação possa ser inserta no “Jornal Luminoso”. Em
outras palavras, esta novidade torna possível ao público possuir informações
transmitidas em grandes em grandes letras de fogo, legíveis facilmente por milhares
de pessoas simultaneamente. Sem dúvida, marca este jornal de luz, um novo
progresso na divulgação de notícias e informações de todas as naturezas. [...] Como
sempre, é O JORNAL na sua ânsia de modernizar-se sempre o primeiro a introduzir
para o público o Rio um novo veículo de informações e anúncios, o qual marca um
progresso notável e criará um novo interesse na vida diária Carioca24.
O “jornal luminoso” pode ser considerado como a concretização da notícia como um
espetáculo. Chateaubriand apostou nisso, de modo que aquele conservadorismo é bem relativo.
De fato, assim que o governo Artur Bernardes chegara ao fim, Chateaubriand
começara uma intensa campanha contra o ex-presidente mineiro. Em janeiro de 1927, o diretor
16
O Dinheiro distribuído pelo “O Jornal” aos seus leitores, O Jornal, Rio de Janeiro, 3 out. 1926, p 3.
Um belo presente para os leitores do “O JORNAL”, O Jornal, Rio de Janeiro, 3 out. 1926, p 3.
18
Concurso semanal de palpites esportivos do “O JORNAL”, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 dez. 1926, p. 7.
19
Para as horas de lazer feminino, O Jornal (Segunda Seção), 14 nov. 1926, p 3.
20
Jornal das crianças. O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 28 nov. 1926, p. 5.
21
No lançamento da coluna, afirmava-se que “A eletricidade é um auxiliar indispensável da vida moderna”. O
JORNAL VAI COMEÇAR UMA SEÇÃO DE ELETRICIDADE. O Jornal, Rio de Janeiro, 11 dez. 1927. p. 12.
22
ALMANACH INFORMATIVO D’O JORNAL. Para 1928. O Jornal, Rio de Janeiro, 31 jul. 1927, p. 5.
23
Em meados de 1928 era anunciada a abertura para assinaturas da revista e seu slogan aparecia: “Tudo sabe. Tudo
vê”. Cf. Cruzeiro, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jul. 1928, p. 1.
24
“O JORNAL” luminoso. O Jornal, Rio de Janeiro, 28 nov. 1926, p 1.
17
337
do O Jornal elogiava o presidente recém-eleito, Washington Luiz, por ter posto fim ao estado
de sítio que não seria “mais do que uma mordaça posta à nação para que fosse ela roubada e
saqueada por duas dúzias de malfeitores medíocres” e que o presidente Bernardes teria subido
“ao poder graças ao suborno”25. As desavenças entre Chateaubriand e Bernardes, segundo o
biógrafo do jornalista, remontariam à tentativa de compra do Jornal do Comércio pelo primeiro
e de acordos comerciais estrangeiros que o segundo teria inviabilizado26.
Em dezembro de 1926, o livro de Assis Chateaubriand, Terra Desumana, era
anunciado com toda a publicidade de que poderia tirar proveito o dono do O Jornal:
O enorme êxito do livro TERRA DESUMANA que, sobre a personalidade do
presidente Bernardes escreveu o sr Assis Chateaubriand, decorre da alta dose de
sinceridade e da lealdade com que foi escrito este ensaio. O autor jogou com uma
bibliografia riquíssima: os depoimentos objetivos que lhe transmitiram muitas
pessoas que conviveram com o Dr Bernardes. O livro está cheio de frases, de
reflexões inéditas do Dr Bernardes, permitindo todo esse material fazer-se uma luz
perfeita sobre o curioso fenômeno psicológico, que é o ex-presidente. A facilidade
com que já se esgotaram 5 mil exemplares da primeira edição é a prova de que há no
público verdadeiramente ansiedade por conhecer de perto o homem estranho que
durante quatro anos governou o Brasil27.
No ano seguinte, continuava a publicidade, dessa vez com uma linguagem ainda mais corrosiva:
O presidente Artur Bernardes examinado através dos dados da psicologia mórbida.
TERRA DESUMANA, que foi escrito durante o sítio é um livro que pinta o sr Artur
Bernardes tal como a história o incorporará amanhã definitivamente à lista dos
condutores de povos, e a quem a trágica dependência de uma tara, de uma psiconevrose, torna capaz de todas as abominações e de todas as crueldades. O sr Assis
Chateaubriand toma o ex-presidente como quem fosse a um manicômio e
examinasse a categoria dos semiloucos, enfermos dessa modalidade patológica, que
a psicologia mórbida chama o messianismo. [...] ele não ataca nem destrói o expresidente, mas apenas interpreta-o, examina-o, com a mesma impassibilidade com
que um vivissecador corta a uma cobaia, para fazer uma experiência em bem da
humanidade. Oito mil exemplares já foram vendidos [...] Com a mesma pasmosa
ausência de responsabilidade moral com que mandava bombardear São Paulo, em
1924, o sr Arthur Bernardes dilapidava Banco do Brasil, tesouro público, federal e
mineiro, arrasava a constituição, tomado por aquela ideia fixa dos obsessos, para os
quais o mundo deve girar em torno da sua vesânia. TERRA DESUMANA é um
ensaio piedoso de psiquiatria, cujo alto interesse reside na serenidade com que o
autor, senhor dos dados da psicologia mórbida, se aventurou ao estudo de uma
psiconevrose, em marcha acelerada para um breve desenlace, e a qual já deu ao
Brasil vários exemplares da perigosa extirpe do sr Arthur Bernardes, tais como
Antônio Conselheiro, Padre Cícero e outros profetas do medíocre e grosseiro
messianismo, mercê do qual o ex-presidente fez no Catete, em plena metrópole do
Brasil, uma ressurreição de Canudos. [...] todos estes aspectos da personalidade do
sr Arthur Bernardes são objeto, na TERRA DESUMANA, de um exame detido, que
leva o leitor à conclusão imediata de defrontar o mais alarmante espécimen de
charlatão da ideia republicana, que ainda assombrou o Brasil com a improbidade
conjugada à crueldade28.
A obra recebera a crítica do redator-chefe do O Jornal, Austregésilo de Athayde, que não lhe
25
CHATEAUBRIAND, Assis. [...] da legalidade, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 de janeiro, 1927, p. 2.
Cf. MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil, p. 135-137.
27
Um livro de grande atualidade, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 dez. 1926, p. 1.
28
Terra desumana, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 abr. 1927, p. 1.
26
338
poupara as críticas pertinentes. O autor do livro seria um “inimigo sincero do ex-presidente”:
Há em todo o livro, que é uma longa invectiva carlyleana, o objetivo indisfarçável
de apresentar o presidente Bernardes com as feições pavorosas de um monstro, de
uma dessas criaturas taradas para o cometimento daquelas maldades, que ficam na
história espantando as gerações, fria encarnação de tirano com o sadismo do ódio e
da vingança29.
Na crítica de Austregésilo de Athayde, que elogiava Chateaubriand pela abertura de tal espaço
em seu jornal revelando não ser “oposicionista de aldeia”, sugere-se uma avaliação geral do
governo Bernardes como um “vitorioso” e “justiceiro”.
O jornal, porém, investiu alto na oposição a Bernardes e o livro Terra Desumana era
o primeiro gesto30. O grande tema que seria tratado da maneira espetacular pelo O Jornal era a
Coluna Prestes. Além da oposição ao ex-presidente, era um evento de grande apelo público e
que constituiria uma nova representação das expectativas políticas no país, especialmente frente
à indeterminação política dos tenentes. Não era pouco. Conforme Carone:
O fracasso da revolução de 1922 não significa o fim da ideia revolucionária: é
verdade que alguns dos participantes ou alguns daqueles que não puderam lutar em
julho de 1922 tenham optado por soluções diferentes. Mas o governo férreo de Artur
Bernardes, a perseguição contra a oficialidade do Exército, os julgamentos dos
revolucionários de 1922 – e outros fatores – obrigam os tenentes a continuar a
revolução31.
Em 1924, os elementos militares teriam atuado de maneira diferente daquela de dois anos atrás,
especialmente por certa fragilidade no apoio oligárquico:
Praticamente isolados – mas não totalmente – os militares continuam a trabalhar, até
que em 5 de julho de 1924 deflagra-se a revolução em São Paulo. A retirada da
Capital paulista, na madrugada de 27 de julho de 1924, representa a determinação de
continuar a luta. Os fracassos dos movimentos revolucionários em São Paulo, Mato
Grosso, Sergipe e Amazonas (todos em julho) não impedem que os tenentes tentem,
pelas armas e ocupação militar, levar a revolução para outras partes do país32.
Conforme as ações não encontram os resultados esperados por seus líderes, as estratégias vão
se modificando: “Derrotada momentaneamente a ideia de revoluções nos Estados, a Coluna
Paulista representa novo elo com os futuros acontecimentos: é dela que parte a esperança para
a continuidade de novos movimentos tenentistas, cujo ponto alto é a revolução de outubro de
1924, no Rio Grande do Sul”33. Nesta série de movimentações militares que irrompem no
cenário político brasileiro, Carone propõe a seguinte síntese:
Entre julho de 1924 e início de 1927 sucedem-se revoluções contínuas, em cadeia
ininterrupta. Podemos dividi-las em dois segmentos: as paralelas de julho de 1924,
de São Paulo; e as posteriores, que resultam da continuidade deste movimento, isto
é, da Coluna Paulista e Coluna Miguel Costa-Luís Carlos Prestes34.
29
ATHAYDE, Austregésilo de. Terra desumana. O Jornal, Rio de Janeiro, 12 dez. 1926, p 4.
Várias acusações ao legado de Bernardes eram feitas, como a suposta dívida legada pelo mineiro ao seu sucessor.
Cf. 1 milhão e 550 mil contos de dívida flutuante, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 jan. 1927, p 2.
31
CARONE, Edgar. O tenentismo. Acontecimentos, Personagens, Programas. São Paulo: DIFEL, 1975, p. 45.
32
CARONE, Edgar. O tenentismo, 1975, p. 73.
33
CARONE, Edgar. O tenentismo, p. 73.
34
CARONE, Edgar. O tenentismo, p. 101.
30
339
Dessa forma, a Coluna Prestes é resultado do encontro da Coluna Paulista e a Coluna Gaúcha.
Sua finalidade é “levar a revolução pelo interior do Brasil”35. Assim:
O objetivo da nova coluna Prestes-Miguel Costa é marchar pelo interior, para
despertar ou esperar a eclosão de novos focos revolucionários. Num certo momento,
o próprio Isidoro Dias Lopes (jan. 1925), pensa em dirigir as tropas para o Rio de
Janeiro, mas é Prestes que acentua a ideia de “guerra de movimento” que realmente
começa quando os efetivos paulistas e gaúchos se põem em marcha. De 29 de abril
de 1925, quando termina a travessia do rio Paraná, a 3 de fevereiro, de 1927, quando
se interna na Bolívia, a Coluna percorre um total de 24.000 km, somando-se as
marchas de seus destacamentos36.
Contando com um número móvel de combatentes, variando entre oitocentos e mil e quinhentos,
dentre militares e civis, a Coluna teria se envolvido em cinquenta e três combates e não saíra
derrotado de nenhum. Na peregrinação, ela conhecera apoios, mas também hostilidades:
Mas a propaganda, acrescida de estragos e requisições, leva a hostilizar homens cujo
objetivos estas populações não entendem e não podem entender. O comum é
encontrar vilarejos vazios; no Ceará a população ataca os revolucionários porque
pensa – como dizia a propaganda bernardista – que são ateus e vão prostituir as
mulheres; em Goiás os fazendeiros resistem por causa das requisições de cavalos.
Mas Bernardes para derrotar os revolucionários, usa todos os recursos: Exército;
Forças Públicas Estaduais; Lampião, que é contratado e ganha patente de Capitão; o
Padre Aristides na Paraíba e o Coronel Horácio de Matos na Bahia; jagunços em
Goiás e o coronel Franklin de Albuquerque em Pernambuco37.
As notícias à época, tampouco, conseguiam determinar os marcos dos apoios e resistências. No
caso do Ceará e do “Norte” em geral, noticiava-se que:
Com exceção da população de Juazeiro, cujo chefe político, o padre Cícero, já teve
oportunidade de dizer que caso os revolucionários tentem entrar naquela cidade, não
fará a mínima resistência, desde que eles venham de modo mais ou menos pacífico,
as de Teresina, Caxias e Crato estão alarmadas, presas de verdadeiro pânico38.
A cobertura que o periódico O Jornal fez da Coluna iniciou-se em 1926 e cresceu
enormemente nos anos seguintes. Trata-se, portanto, de uma abordagem muito mais em torno
da constituição do sentido e significado da Coluna Prestes, do que de se noticiar suas peripécias
pelo interior do país. Acerca destas últimas, dois anos após os movimentos de julho de 1924,
publicam-se análises e descrições das batalhas e evoluções da Coluna acompanhadas de mapas
e croquis que procuravam dar conta da “ação dos revoltosos de São Paulo e Rio Grande nos
dois anos de campanha”. Tal série de reportagens era assim apresentada:
O JORNAL inicia hoje a publicação de um trabalho de um dos nossos mais
competentes oficiais superiores, analisando as operações militares, durante as revolta
destes últimos dois anos. [...] A marcha da Coluna Prestes através do interior do
Brasil, e as tentativas de descrição das suas atividades por parte de alguns jornais,
tem solicitado fortemente a atenção da opinião pública para os acontecimentos
militares que originaram, em 1924, há precisamente dois anos, a incursão daquele
ardoroso chefe rebelde do sul a norte do país. [...] A um dos nossos mais brilhantes
e capazes oficiais superiores pedimos um depoimento sincero, que considerasse a
35
CARONE, Edgar. O tenentismo, p. 121.
CARONE, Edgar. A República Velha. Evolução Política. Rio de Janeiro: DIFEL, 1977, p. 397.
37
CARONE, Edgar. A República Velha, p. 399.
38
A coluna Prestes no Norte, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 set. 1926, p. 3.
36
340
situação dos revolucionários, que ainda se acha em armas, desde o primeiro foco da
insurreição, que foi em São Paulo, abrangendo depois Mato Grosso, Santa Catarina
(a luta em Clevelândia, Catanduvas, Barracão e a subsequente invasão do território
paraguaio), até a marcha dos remanescentes, que atravessando o Paraguai, sob o
comando do capitão Prestes, partiram para o norte, a fim de fazerem o “raid” hoje
conhecido em todo o país39.
O termo “raid” era utilizado para se descrever os desafios que as pessoas se propunham,
especialmente atravessando distâncias enormes, pondo a vida em risco em barcos ou aviões.
Tristão de Athayde fala “daquele desmiolado que se jogou num bote ‘sozinho através do
Atlântico (Alain Gerbault)’”40. O O Jornal fazia a manchete sobre o “Grande ‘raid’ em torno
dos cinco continentes” que o piloto italiano Francesco de Pinedo pretendia levar a cabo41.
Também havia o “feminismo na aviação”. Neste caso, relatou-se “o triunfo na vitória e na
morte” ao se tratar das aviadoras Ruth Elder, que fizera o percurso entre os Estados Unidos e a
França, e Mildred Doran, que “desapareceu no Pacífico”. Ambas seriam “campeãs do
feminismo”, “uma vencendo e outra morrendo na aspiração do seu ideal”42. Sobre aviadores de
1926, Gumbrecht nota como eles procuravam representar o seu país, como o espanhol Ramón
Franco, irmão do general Francisco Franco, ao mesmo tempo em que proporcionavam o
melhoramento técnico e do conhecimento da engenharia a partir de tais raids, travessias,
competições e corridas sobre desertos, oceanos e continentes inteiros43.
A Coluna Prestes vista como um “raid” transmitia essa excitação de um espetáculo de
vida ou morte, envolvendo algum comprometimento nacional e a aspiração a um ideal. Isso não
passou despercebido aos olhos de Assis Chateaubriand e de seus colaboradores. Mais do que
explorar o sensacional da notícia, o O Jornal engajou-se na causa da Coluna que, justamente
por não ter uma orientação determinada, mas uma indecisão angustiante em suas pretensões44,
permitia ao periódico conceder-lhe os sentidos que o aprouvesse. Já no elogio que
Chateaubriand fizera ao fim do estado de sítio, o tema dos tenentes vinha à tona:
A grande dificuldade que terá o historiador futuro será em saber, no quadriênio de
1922-1926, quem foi a legalidade, quem encarnava a Constituição, a lei, a ordem
39
General X. A ação dos revoltosos de São Paulo e Rio Grande, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 jul. 1926, p 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária. Selvas e Salões, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 nov. 1925, p. 4.
41
Cf. O aviador De Pinedo deve iniciar hoje o grande “raid”, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 fev. 1927, p. 1.
42
O feminismo na aviação, O Jornal, Rio de Janeiro, 06 nov. 1927, p. 5.
43
Também o piloto De Pinedo propagandeava a tecnologia italiana de seus aviões e recebera, por seus feitos, o
“bastão de fascista honorário” em cerimônia com presença do próprio Mussolini. Cf. GUMBRECHT, H U. Em
1926, p. 51-57; Uma homenagem dos fascistas a De Pinedo, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 nov. 1925, p. 3.
44
A historiografia acerca do tema reforça sempre o descompasso entre os movimentos tenentistas e a “realidade
do país”. A análise “ideológica” tende a avaliar que, “na essência, a ideologia tenentista é pequeno-burguesa,
reformista, colocada no plano ético”. Caio Prado Júnior verifica o caráter complexo do tenentismo: “Apesar do
conteúdo militar aparente de todos ou quase todos esses movimentos, nada existe neles contudo que os caracterize
como ‘militaristas’, no sentido próprio do termo. [...] eles não agem e não pensam como militares. Exprimem antes
a inquietação das classes médias a que pertencem pela sua origem; de uma burguesia progressista cujos anseios de
renovação encarnam e que as forças conservadoras da República Velha comprimem num arcabouço anacrônico e
rígido, que já resvalara francamente para a mais completa degradação política e moral [...]”. Cf. SODRÉ, Nelson
Werneck. A Coluna Prestes. Análise e depoimentos. São Paulo: Círculo do Livro, 1971, p. 56.
40
341
social. Se o general Isidoro não é a ordem; se o capitão Prestes não é a legalidade,
muito menos o serão estas duas coisas, o sr Bernardes ou o general Setembrino, o
general Santa Cruz ou o general Fontoura. A revolução da caserna e dos espíritos; o
motim na alma do soldado e do paisano, são muito mais obra destes, que encarnavam
o governo, que se diziam a ordem, que faziam a caricatura da legalidade, do que
aqueles que levantaram os quarteis e a população. Quando Isidoro, João Francisco,
Juarez Távora levantavam, em 1924, as guarnições de São Paulo e conseguem levar
atrás de si uma forte corrente popular – já o sr Bernardes, o ministro Setembrino e o
general Fontoura se haviam utilizado do Exército e das armas federais para duas
revoluções, uma no Estado do Rio e outra no Rio Grande do Sul45.
Um dia depois, Chateaubriand escrevia outro editorial, desta feita defendendo abertamente a
anistia dos membros da Coluna Prestes e lembrando suas desavenças pessoais com Bernardes:
Todos os amigos do sr Washington Luís dizem que o atual presidente se manifesta
contrário à anistia dos implicados nos movimentos revolucionários durante a
presidência Bernardes. [...] os oficiais da Marinha e do Exército, que se amotinaram
contra o presidente Bernardes, seriam todos eles mais respeitáveis, mais dignos do
apreço público do que este, o qual abusando da sua autoridade, não só dilapidou a
fortuna privada como a pública. [...] Para que o governo atual insista em levar à barra
dos tribunais os que se revoltaram contra a legalidade bernardista, não promovendo
a anistia, é indispensável que se promova também a responsabilidade do sr Arthur
Bernardes, por outros tantos movimentos revolucionários com que ele ensanguentou
o país e desprestigiou a majestade da Constituição [...] Ponha o sr Washington Luís
diante da sua consciência de brasileiro este problema delicado e procure resolvê-lo,
isento das paixões de antigo correligionário do sr Bernardes. Este não pode ser
senador da República e os outros rebeldes, seus discípulos, no fundo das prisões. A
anistia é o corolário da senatoria do ex-presidente. Salvo, se resolverem mandar o sr
Bernardes tomar banhos de mar na Ilha de Trindade. Mas isto seria muita honra dada
a tão lamentável criatura46.
A campanha em prol dos membros exilados da Coluna Prestes, porém, foi muito além
dos editoriais dirigidos à presidência da República. Além de movimentações parlamentares e
do engajamento explícito de nomes proeminentes à época como o senador Irineu Machado47 e
o político Pandiá Calógeras48, o O Jornal investiu alto na notícia/espetáculo desse grupo de
homens e mulheres que decidiu sair caminhando pelo interior do país em nome de uma causa
que poderia ser a de qualquer um, uma vez que ninguém sabia ao certo do que se tratava. Os
tenentismos tinham o ímpeto para ação, mas eram indecisos ou indeterminados politicamente.
Suas ideias estavam em movimento como seus corpos que procuravam encontrar a realidade
nacional transitando por cada região até terminarem no exílio.
O O Jornal chefiara, nos primeiros meses de 1927, uma intensa campanha de
arrecadação em prol dos soldados da Coluna Prestes. Assim, prestava-se contas sobre as ações
realizadas a favor da causa que, agora, era a do amparo aos próprios membros da Coluna:
45
O articulista refere-se às eleições de Raul Fernandes no Rio de Janeiro, de quem ele teria sido inclusive o
advogado na causa no Supremo Tribunal Federal, e da intervenção na eleição de Borges de Medeiros no Rio
Grande do Sul. Cf. CHATEAUBRIAND, Assis. [...] da legalidade, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 jan. 1927, p 2.
46
CHATEAUBRIAND, Assis. A questão da anistia, O Jornal, Rio de Janeiro, 02 jan. 1927, p. 2
47
Cf. MACHADO, Irineu. Em prol da anistia ampla, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 mai.1927, p. 1; 10.
48
Cf. CALÓGERAS, Pandiá. Anistia, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 nov. 1926, p. 1.
342
O apelo que destas colunas dirigimos ao coração brasileiro, no sentido de amparar e
auxiliar os soldados da Coluna Prestes que estão exilados na Bolívia, teve em todo o
país uma acolhida significativa. Foi com unânime simpatia que todas as nossas
classes sociais receberam a ideia d’O JORNAL, trazendo-nos imediatamente o seu
apoio e a sua solidariedade. Nem outra coisa, de resto, se podia esperar do generoso
coração do nosso povo, onde há sempre lugar para os sentimentos altos da
bondade e do patriotismo. Depois era um dever elementar de humanidade socorrer
esses bravos legionários, ontem, revolucionários, hoje apenas brasileiros, que se
encontram no exílio, em terra estrangeira, a curtir privações e amarguras49.
Assim, se a Coluna foi algum dia “revolucionária”, agora era apenas uma reunião de brasileiros
que precisavam do apoio dos compatriotas solidários. A fim de ganhar o público nacional,
esvaziava-se o caráter político e partidário da Coluna, fazendo dela uma causa de “bondade” e
“patriotismo”. A campanha foi bem sucedida, conseguira arrecadar mais de dezessete contos de
reis, além de remédios, mantimentos e vestimentas. As doações vindas de várias partes do país
eram dirigidas à redação do próprio do O Jornal, na rua Rodrigo Silva 12, no Rio de Janeiro.
Com o passar do tempo, a campanha ia ganhando os mais variados apoios, inclusive
tendo mobilizado “estudantes das escolas superiores” que se propunham a “fazer uma passeata
para angariar donativos”. Os discentes lançaram um manifesto em apoio aos exilados:
A mocidade acadêmica do Rio de Janeiro, representada pelos Centro Acadêmico
Nacionalista, Centro Reacionário e Partido da Mocidade vem, confiante, exigir o
nobre concurso do povo carioca, que sempre exultou nas manifestações grandiosas
de liberalidade, para compartilhar uma causa sacrossanta e cheia de fé que os moços
abraçaram, unificados pelos mesmos sentimentos humanos e irmanados pelo
verdadeiro civismo rezando de mãos postas, no altar da pátria o seu credo
nacionalista!50
Como se vê, o argumento de apoio aos soldados é baseado no “credo nacionalista” segundo
uma “liberalidade” que tinha antes que ver com o aspecto “sacrossanto” e crente da causa do
que com qualquer princípio propositivo de maior alcance. A mobilização, porém, que a “causa”,
talvez justamente por seu caráter impreciso, era capaz de acionar é significativa. Essa mesma
“comissão acadêmica pró-Coluna Prestes” realizara um leilão, com o concurso “das Sras. viúva
Coelho Lisboa e da admirada poetisa brasileira dona Rosalina Coelho Lisboa”, em que seriam
arrematados: desenho feito por Rio Branco, retrato autografado de Siqueira Campos, de Santos
Dumont, Autógrafo de Albert Einstein, Soneto autografado por Olavo Bilac, autógrafos de
Machado de Assis, José Bonifácio, Joaquim Serra, Fontoura Xavier, Gago Coutinho e Secadura
Cabral, Carta de d João VI, autógrafo de Nabuco, de Vicente de Carvalho. Os autógrafos eram
febre entre os brasileiros51. Porém, o item que dá a dimensão da maneira como a Coluna Prestes
começava a, mais do que ser um evento espetacularizado pela mídia, ganhar tonalidades míticas
49
EM PROL DOS SOLDADOS DA COLUNA PRESTES, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 mar. 1927, p. 2.
EM PROL DOS SOLDADOS DA COLUNA PRESTES. O Jornal, Rio de Janeiro, 1 mai. 1927, p. 2.
51
Sobre o tema o aviador Ramón Franco comenta: “Existe neste país [Brasil] uma mania que não tínhamos visto
nem conhecíamos quando partimos. Esta mania certamente vem da Inglaterra ou dos Estados Unidos, porque nós
latinos não fazemos isso. Ela consiste no fato de que todo mundo quer um autógrafo de qualquer pessoa que tenha
se destacado de alguma maneira. Nós fomos as vítimas destas mania”. Cf. GUMBRECHT, H U. Em 1926, p. 57.
50
343
e redentoras era o “fragmento (que pertenceu ao tenente revolucionário do Forte de
Copacabana, Eduardo Gomes) da bandeira que os 18 de Copacabana dividiram para trazer ao
peito, na tarde de 5 de julho”52. A “heroica coluna” se revestia de um passado recente já capaz
de se converter em relíquia de culto patriótico.
Se a coluna era heroica, como queriam seus entusiastas, o herói maior era a figura de
Luís Carlos Prestes. E era uma carta dele, transcrita no O Jornal, que garantia o recebimento
de todos os bens arrecadados. Coube ao repórter Luiz Amaral, “enviado especial à Bolívia, ao
Paraguai e à Argentina”, a cobertura da situação dos exilados. Uma série de reportagens é feita.
Era um dos momentos mais altos da configuração da imaginação sobre a Coluna Prestes. Aí se
falou das “mulheres da Coluna Prestes”, com fotografias de bebês nos colos de suas mães,
descrevendo-se o papel que elas teriam na nova “bandeira”:
Na “bandeira” da Coluna Prestes, não foram só homens valentes que se empenharam.
Empenharam-se, também, várias mulheres. Umas, seguiam os maridos ou os
companheiros – oficiais, soldados ou civis; outras, eram enfermeiras ou costureiras
e houve também uma cozinheira. Algumas dessas mulheres seguiram a Coluna desde
S Luiz, no Rio Grande. Outras, partiram de São Paulo, quando da evacuação da
cidade pelas tropas revolucionárias. Morreram algumas pelo caminho, resistiram
outras até o fim53.
A situação no exílio seria cada vez pior. O repórter descreve o trabalho a que algumas tinham
de se dedicar frente à “miséria voraz” que, não obstante, não lhes retirava o empenho na luta:
Não tive a impressão de estar falando com vítimas arrastadas ao sacrifício e, sim,
com pessoas que, embora exaustas e, marcadas pela fatiga, pelos sofrimentos, tem
prazer de relembrar os dias amargos que voluntariamente e conscientemente
viveram, empolgadas pela bravura de seus homens, absorvidas pelas dores alheias,
que a elas, como enfermeiras, cumpria mitigar. Essas mulheres, algumas débeis e
cuja constituição não garantiria as vicissitudes a que se submeteram, não tinham
comodidades especiais. Seguiam a tropa a cavalo, vestidas como soldados, de laço à
garupa da montaria54.
Há, ainda, o relato da maternidade e da dedicação extrema das mulheres: “Nascida a criança,
prosseguiam a derrota, laço à garupa, filhinho ao colo... Se morria de alguma o esposo, nem por
isso a liça era abandonada. A viúva prosseguia, ou só ou unida a outro bravo. De todas as
crianças nascidas na campanha, só três sobreviveram”. E é da voz de uma das combatentes,
Elza Schmidtke, uma alemã que deixara a Coluna para viver em Cuiabá, que se afirma a
“moralidade” dos tenentes e, em especial, de Luís Carlos Prestes:
_ Eram muito bons e muito estimados. O general Prestes55 não fuma, não bebe nem
gosta de mulheres. Zelava muito pelo respeito às famílias das localidades onde
passávamos. Os infratores eram enviados para o Batalhão de Disciplina, a puxarem
carretas ou condenados a marcharem a pé durante 15 dias ou um mês. De manhã o
52
Cf. A DOCUMENTAÇÃO DA ENTREGA DO PRODUTO DAS SUBSCRIÇÕES D’“O JORNAL” E DO
“DIÁRIO DA NOITE”, A LUIZ CARLOS PRESTES, O Jornal, Rio de Janeiro, 05 jun. 1927, p. 3.
53
AMARAL, L. Conversando com as mulheres da Coluna Prestes, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 jul. 1927, p. 6.
54
AMARAL, L. Conversando com as mulheres da Coluna Prestes, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 jul. 1927, p. 6.
55
Luís Carlos Prestes era capitão, mas foi “promovido” a General em meio à marcha da Coluna, em fevereiro de
1926. Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. A Coluna Prestes, p. 32.
344
“Tenente disciplina” aplicava-lhes dez vergastadas de laço. Os mesmos castigos
eram infligidos aos que voltavam ao acampamento trazendo algum fruto de roubo,
algum objeto além das requisições necessárias. [...] _ Todos muito bons, muito
respeitosos. Eles eram amigos do general e procediam bem, para agradá-lo56.
As descrições da mãe e viúva acerca da personalidade Prestes somavam-se às dezenas
de relatos que iam encorpando o culto à figura do líder da Coluna. Na Bolívia, a recepção da
Coluna também teria sido de empolgação pelo brasileiro, conforme narra Luiz Amaral:
_ Esses homens não são ladrões, disse-me o governador do Oriente Boliviano. São
homens exemplares, contra os quais até hoje não se me apresentou uma só queixa,
por pequena que fosse. Se houvessem roubado, não precisariam de estar qui cavando
estradas e rolando madeira. Onde está o dinheiro que roubaram? Prestes não tem
nem sapatos: está descalço!57
A figura de Prestes assume, assim, os contornos de uma personagem moral, de uma pobreza
franciscana e dedicação desinteressada. Segundo o mesmo relato, Prestes é figura inigualável:
_ Seria excessivamente feliz e privilegiado o Brasil, se possuísse muitos filhos iguais
a Prestes. Como não creio que assim seja, não posso compreender que prescinda por
muito tempo da colaboração desse homem quase perfeito, no qual descubro
predicados extraordinários, qualidades hoje raríssimas, que exornam apenas um ou
outro homem em toda humanidade.
Quando a voz é do próprio Prestes, ele é apresentado como alguém que vivia no “meio
das amarguras e privações do exílio voluntário em Gaíba” e que “interpretou os anseios da alma
nacional” quando se revoltou e correu todo o território. O líder esperava que a anistia viesse,
uma vez que Washington Luiz devia cumprir suas “intenções pacifistas”, mas que ele nunca a
pediria. Acerca da situação política do país, Prestes criticava o fato de o povo viver divorciado
do governo e sob os desmandos deste. Fala então de uma “revolução legal” e lembra as palavras
do presidente do estado de Minas Gerais, Antônio Carlos: “É preciso fazer a revolução antes
que o povo a faça”. Assim, esperava-se que o governo fizesse a revolução, modificando “os
processos políticos e administrativos” ou o povo faria repetidas revoluções. Defendia a anistia
aos soldados da Coluna ressalvando que os “chefes não querem benefício algum”58.
Em 1927, esta é a imagem de Prestes. Moral, desinteressado, jovem, franciscano em
sua pobreza e dedicação e que falava em “revolução legal”. Um processo de mitificação de sua
figura é posto em prática, conforme nota Daniel Aarão Reis:
Ele [...] agora se tornara o Cavaleiro da Esperança. A expressão foi usada pela
primeira vez por Isidoro Dias, inspirado na figura e na saga do general Lazare Hoche,
da Revolução Francesa, conhecido como Le Chevalier de l’Esperance. De origem
pobre, soldado aos dezesseis anos, general aos 25, morto aos 29, ele simbolizara a
determinação, o espírito prático (les choses, pas les mots: “as coisas, não as
palavras”), a coragem e a generosidade da juventude revolucionária59.
56
AMARAL, L. Conversando com as mulheres da Coluna Prestes, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 jul. 1927, p. 6.
Cf. AMARAL, L. Conversando com Siqueira Campos, Miguel Costa e João Alberto, O Jornal, Rio de Janeiro,
8 mai.1927, p. 3.
58
Cf. AMARAL, Luiz. O pensamento de Luiz Carlos Prestes sobre a Anistia, O Jornal. Rio de Janeiro, 22 mai.
1927, p. 1-2.
59
REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes. São Paulo: Cia das Letras, 2014, p. 110.
57
345
Como era de praxe, um teatro de revista encenava já a peça “Prestes a chegar” e, numa confusão
entre anseios e possibilidades, Luís Carlos Prestes foi votado nas eleições no Rio Grande do
Sul e no Rio de Janeiro, apesar de não ser candidato60. O mito vivo, porém, pode sempre ter de
enfrentar as complicações da realidade histórica. A indeterminação de Prestes, e notadamente o
seu apelo eleitoral, parecia interessar, e muito, aos setores políticos que se articulavam desde as
crises do governo Artur Bernardes. Chateaubriand declara oposição formal ao presidente:
O ilustre presidente Washington Luís fora, entre todos os presidentes da República,
o único que até hoje subiu ao Catete fazendo, de antemão, uma confissão pública da
sua inexperiência política e administrativa. Enganou-se com ele quem quis. [...] Os
homens de espírito verificaram, desde logo, que na presidência se sentava, não uma
dessas criaturas desempenadas do ocidente, crentes no poder galvanizador da
vontade, mas um suave muçulmano, destituído de iniciativa para encarar uma
situação delicada e resolvê-la [...] Aqui chegando, o doutor Washington Luís teve
como primeiro cuidado “desmoralizar a confiança”. Confessou a própria fraqueza, e
de 15 de novembro até hoje o chefe da nação, que é um dos nossos mais simpáticos
turistas, não tem feito outra coisa senão passear a sua amável indiferença sobre todos
os problemas de administração e governo61.
Desde 1926, Chateaubriand fizera-se porta-voz do Partido Democrático que se fundara
em São Paulo tendo à frente nomes como o Conselheiro Antonio Prado, Frederico Vergueiro
Steidel, Francisco Morato, Reinaldo Porchat e Waldemar Ferreira, dentre outros62. Seu
programa é reproduzido e comentado nas páginas do O Jornal pelo professor e jurisconsulto
Gama Cerqueira que é apresentado como um de seus “ilustres líderes”. Seus principais objetivos
seriam “doutrinar, fiscalizar os poderes públicos, selecionar rigorosamente os elementos de sua
composição e arregimentá-los dentro da disciplina”63. O escopo de atuação é reformista, ainda
segundo os preceitos da Constituição de 1891, destacando algumas medidas segundo um:
[...] complexo de providências legislativas dirigidas [...] na qualificação eleitoral, no
momento de votar, na apuração e no reconhecimento; depois as que entendem com
representação efetiva das classes agrícolas e industriais [...]; nos conselhos diretores
da política e da administração; as que focalizam a questão social tão descuidada entre
nós, exatamente quando um concurso afortunado de circunstâncias nos permite ainda
canalizar e dirigir convenientemente correntes sociais aproveitáveis para o bem
comum, que, deixadas ao acaso mais tarde poderão trazer-nos graves perturbações
que atualmente observamos em outros países.
Neste mesmo ano de 1926, Chateaubriand adquiria o periódico paulista Diário da Noite. No
ano seguinte, ele inaugurava pessoalmente a sucursal do O Jornal em Belo Horizonte instalada
na Avenida Afonso Pena, no Palacete Guanabara. Dizia ser amigo do então presidente do estado,
Antonio Carlos, e defendia que o O Jornal não era um “diário carioca”, mas que procurava se
“constituir em porta-bandeira das aspirações do Brasil desde o Acre ao Rio Grande do Sul”64.
60
REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes, p. 110-111.
CHATEAUBRIAND, Assis. O muçulmano do Catete. O Jornal, Rio de Janeiro, 02 set. 1927, p. 2.
62
CARONE, Edgar. A República Velha. Evolução Política. Rio de Janeiro: DIFEL, 1977, p. 409.
63
CERQUEIRA, Gama. O programa do Partido Democrático, O Jornal, Rio de Janeiro, 07 mai. 1926, p. 1.
64
A inauguração ontem da sucursal em Belo Horizonte, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 jun. 1927, p. 2.
61
346
Na ocasião, o jornalista negava ter o periódico qualquer caráter partidário e que seria movido
pela impessoalidade. Acerca de Artur Bernardes, ele considerava:
Com o vosso antigo presidente, o Dr Artur Bernardes [...] se nem sempre nos
pudemos entender como queríamos, não foi porque O JORNAL não houvesse posto
uma infinita dose de boa vontade nas suas relações amistosas com o poder. O Dr
Arthur Bernardes constituiu com o Todo Poderoso, à semelhança daquele sucessor
dos margraves de Brandenburgo de que fala Eça de Queirós, uma sociedade
solidária, da qual era ele o sócio gerente aqui neste pequenino grão de areia perdido
nos espaços etéreos.
Assis Chateaubriand defendia a necessidade de se respeitar a liberdade para não se cair no
cesarismo, no caudilhismo ou na anarquia. Ao mesmo tempo, porém, falava em revolução
inevitável que seria melhor conduzida se tivesse homens como Antonio Carlos a sua frente:
Se aspirarmos um governo livre e honesto no Brasil, teremos de pagá-lo com um alto
esforço, a custo das nossas virtudes heroicas, de ganhar uma prodigiosa vitória moral
sobre o nosso comodismo, sobre o nosso apetite de gozo, sobre a ruminação dos bens
materiais que o espírito mercantil ávido e cupido nos ensinou. Temos de “viver
perigosamente”, enamorados do nosso ideal, decididos a realizá-lo intrepidamente.
Trata-se, meus senhores, hoje, no Brasil de defender as liberdades públicas, tanto
contra os ventos da desordem que sopram tantas vezes das turbas como das violentas
tempestades interiores, que quase sempre sacodem e devastam os governos. Jamais
o nosso presente acusou uma fisionomia mais inquietadora, como penha dessa
cooperação fraternal, em que, governantes e governados, numa incessante atividade,
preparam o futuro comum. O Brasil não está, como se diz, às bordas de um abismo,
mas de uma revolução, que é fatal e inevitável. Se em todos os Estados encontrarmos
homens de governo, como o vosso presidente atual, ela será pacífica, porque o vosso
primeiro magistrado, com o trato sutil que distingue, na barbaria dos nossos
costumes cívicos, se está incumbindo de orientá-la aqui em Minas, com a doçura que
impedirá a inundação da torrente impetuosa, procurando precipitar-se fora do
álveo65.
Por fim, o orador salientava o “sentimento conservador” que presidia o O Jornal, cuja sucursal
mineira seria entregue a Milton Campos, e que encontraria, entre a “bondade e ao espírito de
tolerância destes montanheses suaves”, o fio da tradição que cria, “‘através da terra e dos
mortos’, o diálogo eterno entre as gerações que se foram e as que acrescentam novos elos à
cadeia família”. Era a revolução conservadora e ela partiria de Minas Gerais.
Assis Chateaubriand vinculando-se a nomes da política paulista, carioca e mineira,
constituíra seus “diários associados” em pouco mais de três anos e, em 1929, fundara outro
jornal, o Diário de São Paulo. Toda esta estrutura midiática articulada nos três principais
estados do sudeste e que ia costurando alianças políticas e criando um discurso para a tomada
do poder esteve, por um tempo, à disposição de Luís Carlos Prestes. Da Bolívia, destacava que
o líder dos tenentes tinha o O Jornal em “alta estima” e que ele seria o veículo de sua gratidão.
Na fundação da seção carioca do Partido Democrático, o nome Prestes era exaltado nas páginas
do jornal de Chateaubriand, ainda que se procurasse manter distante o horizonte revolucionário:
65
Cf. A inauguração ontem da sucursal em Belo Horizonte, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 jun. 1927, p. 2.
347
Sob a bandeira deste partido [Partido Democrático], foram se congregando, para a
conquista pacífica do poder, todos os homens honrados e independentes do grande
Estado [São Paulo]. E, enquanto essa corrente pacifista se avolumava rapidamente,
o grande idealista e patriota Luiz Carlos Prestes, julgando que a ideia revolucionária
era uma convicção profunda do povo, saía do Rio Grande do Sul [...] percorria todo
o território pátrio até o Maranhão, voltava outra vez ao sul, palmilhando a maioria
dos Estados do Brasil, ouvindo sempre o mesmo conceito revolucionário, a mesma
teoria, sem encontrar, entanto, muitos que a quisessem praticar, tanto assim que, após
dois anos de luta, seu contingente, em lugar de aumentado, se achava reduzido a
quatrocentos soldados, pugilo de heróis que, desiludidos de alcançar pela revolução
as aspirações uniformes do povo brasileiro. E, enquanto a energia [...] de Prestes
assim se quebrava [...] resultados que ele pudesse colher resultados práticos de sua
campanha, os quarenta fundadores do Partido Democrático de S Paulo assistiam ao
rápido engrossar de suas fileiras. [...] O que os soldados de Prestes não conseguiram
pelas armas, com a revolução, os democráticos de S Paulo alcançaram,
brilhantemente, pelo voto, com a educação cívica. [...] Fui vítima da ilusão
revolucionária, participei, prática e efetivamente, de todas as revoluções, desde o
primeiro 5 de julho: por isso, pleiteio, com todas as energias, a anistia para os meus
irmãos sacrificados pela ingratidão da Pátria66.
Tais palavras eram ditas por Mattos Pimenta, que era o secretário do P D do Distrito Federal.
Esta a proposta: um Prestes candidato e não revolucionário. No máximo, talvez, para encabeçar
alguma “revolução conservadora” conforme ele mesmo dissera sobre Antônio Carlos.
Em 1928, Prestes era cotado para ser presidente da República. Porém, além de não ter
idade para pleitear constitucionalmente o cargo, ele contava então com trinta anos de idade, sua
imagem persistia ligada a um espírito revolucionário que os membros do Partido Democrático
procuravam afastar, notadamente quando se falava em revolução bolchevista. Assim, esclarecia
um dos líderes do partido que o “processo eficaz de combate ao exagero das ideias comunistas
não é a repressão à força: é a satisfação do ideal de justiça, sob todas as suas formas. Não é de
leis mais ou menos draconianas que precisamos: é de educação”67. Os que investiram na
mitificação da figura de Prestes pareciam ter perdido o controle sobre a criatura. Diferentes
vertentes políticas procuraram se aproximar do carismático líder, uns ansiando pela “revolução
legal” outros pela “revolução contínua do povo”68. Assim, quando as oposições ao governo
Washington Luiz se dividem em espectros mais ou menos próximos, com a atuação do Partido
Libertador, do Partido Nacional e do Partido Democrático, que estariam dispostos a apoiar tanto
Assis Brasil quanto Antônio Carlos, o nome de Prestes é vinculado a forças “extremistas”:
A corrente extremista da oposição antipática com esse alvitre e preferindo imprimir
à sua atitude um cunho de estreita solidariedade com o capitão Prestes e com as suas
ideias recentemente expendidas em entrevistas, deseja para candidato uma expressão
revolucionária, considerando os elementos fascinados pelo liberalismo, meros
remanescentes da ordem de coisas que desejam destruir a todo custo69.
66
PIMENTA, Mattos. Partido democrático do Distrito Federal. O Jornal, 19 jun. 1927. p. 2.
LABORIAU, F. Bolchevismo?, O Jornal, Rio de Janeiro, 02 ago. 1927, p. 2.
68
Prestes, no exílio, fora procurado tanto por Getúlio Vargas quanto pelo líder comunista brasileiro, Astrogildo
Pereira. Cf. REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes, p. 113.
69
A esquerda em face da sucessão presidencial, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 dez. 1928, p. 4.
67
348
As “entrevistas de Prestes” revelariam que o canonizado líder tornava-se cada vez mais
indócil aos seus cultuadores interessados. Sua posição era ambígua, defendia os nomes de Assis
Brasil e do Partido Democrático, mas insistia em ideias como a de que “não há solução possível
para os problemas brasileiros dentro dos quadros legais vigentes”. E, segundo um repórter:
Resume [Prestes] a situação brasileira como uma máquina opressora, solidamente
instalada, oprimindo e reprimindo todos os movimentos democratizadores,
acreditando, por isso, pessoalmente, na eficácia da guerra civil como único meio de
solucionar os problemas... devidos à “incompetência”, à “falta de visão” e à “má
vontade dos atuais dominadores do regime”70.
Em telegrama publicado, ainda no início de 1928, Prestes afirmava que “fazer toda a política
de oposição em torno do voto secreto e da anistia é ficar muito aquém das aspirações nacionais
e, portanto, não concorrer para a formação do ambiente indispensável à ação que planejamos”71.
Tais orientações eram centrais no programa do Partido Democrático.
Em janeiro de 1929, o aniversário de Prestes, então exilado na Argentina, era celebrado
com missa na igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Rio de Janeiro, com grande concorrência:
Comemorando a passagem do aniversário natalício do capitão Luiz Carlos Prestes
[...] um grupo de amigos e admiradores do chefe revolucionário exilado, mandou
celebrar solene missa em ação de graças, na igreja de Nossa Senhora do Carmo. O
cônego Amalto Correa de Magalhaes, que todas as quintas-feiras, no mesmo templo,
reza missas em intenção dos revolucionários mortos na luta, oficiou na cerimônia de
ontem, acompanhado pelo coro e pela orquestra da igreja da Candelária. Estiveram
presentes à missa centenas de pessoas, [...] além de muitos outros oficiais do Exército
e da Marinha, advogados, médicos, jornalistas, etc. [...] À saída do templo, [...] um
popular ergueu um “viva”! a Luiz Carlos Prestes, a qual foi correspondido por todos
com entusiasmo72.
No mês seguinte, o aniversariante dizia que “não devemos temer o fantasma bolchevique”73.
Em meados do mesmo ano, quando já se articulava a oposição em uma “Aliança Liberal”,
Prestes não comporia a movimentação: “continuamos intransigentemente fieis aos ideais da
Revolução, desinteressando-nos portanto das competições das oligarquias bem como de
alianças incompatíveis à memória dos companheiros sacrificados na luta”74. Debalde foram as
tentativas de Assis Brasil, Maurício de Lacerda, Oswaldo Aranha e Getúlio Vargas para
convencê-lo a participar da orquestração política. Coube ao último encorpar a figura que parecia
pronta para o outro, conforme análise de Raimundo Faoro acerca de Vargas:
O homem vestia, predisposto por velhas tendências, o mito. Começava a sentir que
não era ele o candidato dos situacionismos divergentes, mas de um país em protesto.
A máscara, que parecia caber a Luís Carlos Prestes, amolda-se à sua fisionomia, para
não mais desprender-se de sua cabeça75.
Os antigos companheiros tenentes também tentaram convencer Prestes a embarcar na
70
Cf. REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes. São Paulo: Cia das Letras, 2014, p. 118-119.
Cf. CARONE, Edgar. A República Velha, p. 430.
72
O aniversário do capitão Luiz Carlos Prestes, O Jornal, Rio de Janeiro, 04 jan. 1929, p. 1
73
Cf. REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes. São Paulo: Cia das Letras, 2014, p. 123.
74
Cf. CARONE, Edgar. A República Velha, p. 430.
75
FAORO Apud. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole..., p. 306.
71
349
Aliança. João Alberto que, juntamente com Siqueira Campos e Miguel Costa, travou com o
antigo chefe da Coluna um debate fundamental sobre os rumos da disposição política brasileira,
conta como Prestes, agora, “parecia um fanático, transbordando de violência contra adversários
e amigos da véspera e colocando todos [...] na classe de exploradores do povo”76. A verdade é
que ele tinha, finalmente, se decidido. Após seis anos de lutas, viagens, Coluna, reportagens,
fotografias de primeira página, namoros com as oligarquias dissidentes, ídolo da “mocidade
acadêmica”, símbolo de patriotismo e civismo, líder consagrado, o Cavaleiro da Esperança
surpreendia a todos com seu manifesto de maio de 1930 que saíra após as eleições daquele ano,
talvez uma das últimas concessões que faria a solicitações estranhas à causa. O fato de o
requerente, Siqueira Campos, ter falecido tragicamente horas após o pedido de protelação do
manifesto deve ter reforçado seu empenho em guardar o segredo. Temia-se que sua decisão
pudesse mudar os rumos políticos do país, conforme nota Carone:
[...] neste mesmo mês de maio, em Buenos Aires, Prestes lança o seu Manifesto
Comunista. Para a grande maioria daqueles que não estavam a par do que se passava
com o líder revolucionário tenentista, o lançamento deste Manifesto, em que ele se
declara comunista e contra a revolução da oligarquia, seria um choque suficiente
para pôr em dúvida o que se vinha tramando. [...] No que fica sendo conhecido por
Manifesto de Maio, Prestes fala na necessidade de “modificação na orientação
política que temos seguido”; a última campanha é “mais uma farsa eleitoral,
metódica e cuidadosamente preparada pelos politiqueiros... com o concurso ingênuo
de muitos revolucionários”; “mais uma vez os verdadeiros interesses populares
foram sacrificados e vilmente mistificado todo um povo por uma campanha
aparentemente democrática, mas que no fundo não era mais do que a luta entre os
interesses contrários de duas correntes oligárquicas...”77
A jovem Patrícia Galvão, a Pagu, segundo uma de suas biógrafas, lembrava-se acerca
da Coluna Prestes que, diferentemente de sua família, ela “via naquele dom Quixote tupiniquim
um exemplo de luta pela dignidade”78. A imagem da coluna como algo quixotesco é, talvez,
mais precisa e rica em significado histórico do que as análises que a historiografia em geral e
os próprios tenentes fizeram acerca do tenentismo como uma espécie de movimento
desencontrado com os anseios reais da população e com concepções limitadas acerca da
revolução e do desenvolvimento histórico, conforme a síntese de Edgar Carone:
A dicotomia entre objetivo e realidade – ou melhor, a falta do conhecimento da
realidade concreta brasileira – é fatal para o tenentismo pois, em nenhum momento
os revolucionários se identificam com os valores e desejos das populações locais –
trabalhadores e patrões. Daí a facilidade do governo em combatê-los, simplesmente
porque surgem como estranhos e ameaçam os bens e valores das populações locais79.
Embora correta em um sentido preciso: o tenentismo falhou em seus objetivos e não conseguiu
o apoio massivo das populações espalhadas pelo país, em uma reflexão mais larga, porém, as
76
Cf. REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes, p. 134.
CARONE, Edgar. A República Velha, p. 432.
78
CF. FREIRE, Tereza. Dos escombros de Pagu. São Paulo: Senac, 2008, p. 33.
79
CARONE, Edgar. O tenentismo, p. 121.
77
350
próprias premissas parecem de difícil aceitação. O “conhecimento da realidade concreta
brasileira” era algo que estava em constante disputa no interior da cultura intelectual. Apesar
do diagnóstico de uma República em ruínas, velha e decadente, as soluções propostas eram tão
variadas quanto às sínteses sugeridas no volume À margem da história da República, que ainda
iremos abordar, ou às notícias sobre a expansão do bolchevismo e do fascismo, assim como à
criação do Partido Comunista Brasileiro e os programas de reformas constitucionais sugeridos
desde a Reação Republicana de 1922 até a Aliança Liberal, já no fim da década, que, derrotada
como a primeira, consegue, porém, pela “Revolução”, chegar ao poder.
Talvez o ímpeto da Coluna tivesse sido antes o de conhecer o país do que o de
esclarecê-lo, mas tratava-se de se “levar a revolução”, segundo os seus artífices. Há um aspecto
angustiante na Coluna nesse desencontro de força e contundência, assim como há uma
esperança de talvez eles, os tenentes, se encontrarem no interior do país consigo mesmos. O
que explicaria tal disposição de centenas de pessoas, homens e mulheres em palmilhar dezenas
de milhares de quilômetros em nome de uma causa que não se distinguia claramente nem do
próprio programa político de Artur Bernardes? A resposta à Coluna Prestes, porém, chega com
o exílio de seus integrantes. Transformada em objeto simbólico, constituindo-se através das
narrativas e relatos midiáticos, fazendo-se motivo de comoção pública e solidariedade nacional,
de forma que os opacos princípios políticos que orientariam seus integrantes desapareceram
frente ao gesto e à ação a que se propunham. Ao contrário de Quixote, cujos ideais seriam
relativamente precisos e a ação desastrosa, a Coluna Prestes marcava por suas ações e deixava
que o significado delas fosse reiteradamente construído notadamente pelos jornais.
A Coluna Prestes fez algo que a cética República jamais seria capaz ou, no máximo,
consideraria como messianismo ou fanatismo. E não seria um pouco disso? Estariam os
fanatismos e esperanças messiânicas tomando a ordem do dia? Em um dos livros de Henri
Barbusse, a figura de Lenin aparecia como uma espécie de Messias80. A imagem é retomada
por Plínio Salgado, em seu romance O Estrangeiro:
Na madrugada vermelha, Cristo surgia blindado, - silhueta enorme de um carro de
guerra.
Era Lenine.
Debruçava-se no peitoril nevoento do Século...81
É importante notar como as propostas feitas no horizonte constitucional republicano não
pareciam surtir efeitos positivos ou sequer comparáveis às expectativas desencadeadas também
80
81
Cf. ORY, Pascal; SIRINELLI, Jean François. Les intellectuels en France, p. 132.
Cf. SALGADO, Plínio. O Estrangeiro. Crônica da vida política. S Paulo: Helios, 1926, p. 201.
351
pelo tenentismo. Assim, o voto secreto82, o voto feminino83, as reformas do judiciário, do
legislativo, da imprensa, dos direitos trabalhistas, nada disso parecia ser suficiente no interior
de um horizonte revolucionário e... messiânico. Precisava-se de um Cavaleiro da Esperança que
a todos salvassem. Forjado no afã nacionalista, Prestes foi elevado à categoria de presidenciável
sem ter sequer um partido, sem fazer parte de nenhuma oligarquia, não era nem uma patente
militar reconhecida, mas um jovem de vinte e tantos anos que, após demonstração de bravura e
sabedoria militar, foi feito redentor de um país. É de se imaginar como reagiram os que tanto
lhe apoiaram e nele depositaram as suas esperanças de tomada do poder, quando o viram
comunista. De qualquer forma, a angústia de Prestes resolveu-se numa decisão extrema, como
a de muitos de sua geração.
82
O voto secreto e a defesa das garantias liberais e democráticas formavam o escopo do Partido Democrático,
assim como dos liberais que o apoiavam. É sintomático, porém, que já no fim da década, nem os liberais paulistas
acreditam em alguma mudança do cenário político através do voto. Conforme depoimento de um de seus artífices:
“(...) as revoluções, embora perigosas, representam um direito de todo povo esbulhado e oprimido, e que na ordem
legal não tenha meio legítimo de reivindicar o que lhe pertence”. O voto secreto foi aprovado ainda na Primeira
República em experiências estaduais, como a do Ceará. A mudança, porém, não parece ter tido a repercussão
esperada, sendo mesmo uma “desilusão completa”. Cf. CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo.
São Paulo: Brasiliense, 1988; Uma experiência do voto secreto, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 jan. 1927, p. 3.
83
A Primeira República aprovou a o voto feminino em escopo estadual, em 1927, no Rio Grande do Norte. Cf. O
problema do sufrágio feminino, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 nov. 1927, p. 23.
352
Quarta Parte
ANGÚSTIA
353
Política e Letras I
... a angústia é a realidade da liberdade como
possibilidade antes da possibilidade.
Sören Kierkeegard, conceito de Angústia, 1844.
Ao mesmo tempo em que a democracia triunfa ela
parece decepcionar.
Pierre
Rosanvallon,
O
desencantamento
democrático, 2003.
“_Porque, quando o rico geme, / O pobre é que
sente dor” Esta última sentença de um xará que
muito me honra, João Martins de Ataíde, parece-me
admirável na sua singeleza. É a história de todas as
crises.
Tristão de Athayde. Vida Literária, 1921.
Nos debates na imprensa em torno das candidaturas à presidência em 1922, José Maria
Belo sentenciava: “o que ficará, ao menos, para os que ainda creem na verdade das democracias
burguesas e nos velhos ideais republicanos é o resultado positivo deste ou daquele jogo de
vaidades e ambições pessoais”1. Enquanto a historiografia acerca da Primeira República
ressalta o alcance limitado das eleições, seu baixíssimo quórum de votantes, assim como seu
aspecto de “arranjo” entre as oligarquias que controlavam o país, a cultura intelectual à época,
consciente de muito destes defeitos, não deixava de expressar posições e anseios que vinham a
lume nos períodos de sucessão governamental. A disputa entre o mineiro Artur Bernardes e o
carioca Nilo Peçanha é tida como uma das exceções em que o vencedor contou com menos de
70% dos votos para presidência2.
Bernardes era o nome oficial, foi escolhido em abril de 1921 nas articulações dos
partidos republicanos estaduais que, em junho daquele ano, durante a Convenção nacional,
deveriam todos consentir com a candidatura do mineiro. Os estados do Rio de Janeiro, Bahia,
Pernambuco e Rio Grande do Sul, porém, não estavam de acordo com a decisão. Assim,
dividem-se os republicanos entre os “convencionais”, que tinham ao seu lado estados como os
de São Paulo e Minas Gerais defendendo os nomes de Bernardes e Urbano dos Santos, e os
membros da Reação Republicana, que apoiavam Nilo Peçanha e o baiano José Joaquim Seabra.
Há certa dificuldade em caracterizar este processo político. Cláudia Viscardi aponta quatro vias
interpretativas para o processo:
A primeira vertente associou o surgimento da Reação aos conflitos interestaduais,
em razão da escolha do Vice-Presidente que iria compor, ao lado de Bernardes, a
chapa oficial. A segunda vertente explicou o advento da Reação, como expressão das
discordâncias em relação à política econômica posta em vigor pelo situacionismo, a
qual favorecia, exclusivamente, os interesses cafeeiros, em prejuízo de outros setores
econômicos. A terceira vertente viu a Reação como um resultado das articulações da
1
2
BELO, José Maria. Em torno da questão política, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 out. 1921, p. 1.
Cf. CARVALHO, J M de. Os três povos da República. Revista USP, p. 107.
354
dissidência oligárquica com os setores urbanos emergentes, exercendo sobre eles,
uma liderança de caráter “proto-populista”. Por fim, uma quarta vertente que
entendeu a Reação como uma tentativa de se formar um eixo alternativo ao domínio
de Minas-São Paulo, sobre o regime oligárquico, incorporando reivindicações por
mudanças de ordenamento institucional, que passava, sobretudo, por uma
distribuição mais equitativa das benesses do Estado em relação às unidades
autônomas federadas3.
A autora se inclui na da quarta vertente. Mas de onde viera a força de tal embate entre as forças
políticas? Conforme nota Sodré, “foi a imprensa que transformou a centelha em incêndio”4. De
fato, do manifesto da Reação Republicana ao episódio das “cartas falsas”, a mobilização em
torno da disputa eleitoral presidencial se deu pelos debates, provocações, injúrias e teses
defendidas na imprensa. Era uma batalha de opiniões. A forma como tais ideias tocaram a
maioria da população é difícil de se mensurar, porém, é possível perceber que o momento da
eleição de Artur Bernardes marcou a explicitação e a emergência de temáticas que terão
desdobramentos importantes: a centralização do governo, as propostas de reformulação
constitucional, a “questão social” tomada mais a sério com a criação de delegacia especializada
na vigilância política, as falhas da democracia brasileira, a recorrência ao estado de sítio e ao
autoritarismo como forma legítima de governo, a prática reiterada da censura na imprensa, a
questão da prerrogativa do catolicismo na cultura do país, a reavaliação da história do país
segundo um paradigma considerado como moderno e adequado à realidade nacional, a tentativa
de pela ação militar conquistar o poder da República.
No discurso oficial das forças políticas, o debate entre Nilo Peçanha e Artur Bernardes,
no início, não se tingia de cores fortes. No Manifesto da Reação Republicana lido por Raul
Fernandes em 24 de junho de 1921 na Sede da Sociedade Rio Grandense no Rio de Janeiro
fala-se que Peçanha e Seabra contariam com o apoio da “direção política” do Rio Grande do
Sul, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, assim como de “líderes” de outros estados e de “altas
patentes do Exército”. O Manifesto repisa a já recorrente crítica à política eleitoral do país:
Enquanto as circunstâncias políticas do país não determinarem a formação de
partidos nacionais, a eleição presidencial há de correr sob a responsabilidade das
agremiações partidárias existentes nos Estados. [...] num país como o nosso, onde a
grande massa dos cidadãos não possui o exercício do direito do voto, o pleito
presidencial é ineficaz para corrigir o desacerto das candidaturas, em cuja escolha
houver sido preterida aquela condição essencial ao desafogo da opinião pública. [...]
É tempo de emendar o erro das convenções ou aclamações [...]. Sem dúvida, as
convenções são precedidas da formalidade de uma consulta prévia; mas pouco a
pouco vai se estabelecendo como regra que a consulta versa sobre determinados
candidatos e é formulada em nome de partidos regionais, em número reduzido, mas
constituindo um núcleo eleitoral de peso decisivo. [...] Sem um corpo eleitoral
bastante numeroso para por si só exprimir a vontade nacional e corrigir, assim, os
possíveis equívocos da interpretação que lhe deem os patronos ocasionais dos
candidatos, e, de mais a mais, homologando as candidaturas em convenções que não
3
4
VISCARDI, Cláudia. O teatro das oligarquias, p. 281.
SODRÉ, Nelson W. História da imprensa no Brasil, p. 410.
355
exprimem sequer a livre manifestação da vontade de todos os partidos políticos nela
presentes por seus delegados, vimos criando pouco a pouco uma situação cujos
perigos é inútil encarecer e que se desenha com todos os visos de uma nefasta
desinteligência entre a política eleitoral e a opinião5.
O Manifesto, porém, era reticente quanto a qualquer definição acerca de projetos políticos da
chapa oposicionista, não pretendendo “traçar aos nossos candidatos um programa
pormenorizado de governo”. A tecla mais batida é a necessidade de equilibrar pagamentos, não
se permitindo gastos públicos que excedam a arrecadação em impostos. Uma perspectiva de
reponsabilidade fiscal, por assim dizer. Outros temas aparecem genericamente:
Esperamos que, eleitos, façam um governo conservador, e [...] busquem para as
classes militares, chefes da estirpe dos Florianos, dos Mallets e dos Noronhas - só
para citar os mortos – sem descurar de prosseguir no seu aperfeiçoamento técnico.
A conciliação entre operários e patrões, singularmente facilitada pelo inteligente
liberalismo dos chefes da indústria nacional, deverá encontrar no governo um
mediador imparcial, atento à manutenção do princípio da propriedade – base da
ordem econômica e, entre nós, porta de fácil ascensão do operariado – mas disposto
ao desenvolvimento das instituições de progresso social, que elevam as classes
proletárias a um padrão mais largo de vida, e não entravando a progressiva
socialização do direito naquilo em que as reformas se coadunarem com o grau de
desenvolvimento econômico e social da nossa pátria.
A referência aos militares revela o sucesso obtido pelas “altas patentes” acima citadas. O
marechal Hermes da Fonseca foi preterido pela Convenção que se decidiu por Bernardes.
A campanha começara em junho de 1921, as eleições seriam em primeiro de março de
1922 e o governo eleito tomaria posse apenas no dia 15 de novembro. Se o discurso oficial era
moderado, a campanha na imprensa foi feita em um tom cada vez mais exaltado, não
importando tanto o fato de as duas candidaturas se autodenominarem conservadoras. Um dos
nomes que mais batalhou pela candidatura de Bernardes foi Jackson de Figueiredo, que
contribuía em O Jornal desde a fundação do periódico. Figueiredo contando com pouco mais
de trinta anos de idade escreveu dezenas de artigos em que defendia que o “candidato dos
católicos” era o mineiro, considerando que “quando não seja para que estatue a nosso favor este
ou aquele privilégio, pelo menos, para que não sejamos os mais combatidos pelo seu
indiferentismo religioso”6.
O Correio da Manhã respondia diretamente aos artigos de Jackson de Figueiredo. Este
ganharia benefícios do candidato mineiro, desde o apoio a candidaturas políticas até cargos no
funcionalismo público7. O jornal ironizava o católico militante, chamava-o de autor do livro
Pascal e a cavação moderna8 e pretendia denunciar os motivos por detrás de sua militância:
5
A reação contra a candidatura Arthur Bernardes, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25 jun. 1921, p 3.
FIGUEIREDO, Jackson de. Catolicismo e política, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 ago. 1921, p 1.
7
Cf. No mundo político. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 21 jun. 1922, p 2; Tópicos e notícias, Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 17 jul. 1923, p 4; A questão religiosa no México e as relações do Brasil com esse país
amigo, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 ago. 1926, p 3.
8
Trocadilho como livro de Jackson, Pascal e a Inquietação moderna. Cf. Para ler no bonde. Correio da Manhã,
Rio de Janeiro, 30 mai. 1924, p 2.
6
356
O abnegado e desprendido filósofo deve continuar a zurzir, com mais violência, os
próceres da reação republicana. Isso de ser filósofo é muito bom, muito bonito, muito
altruístico. Mas é sempre bom atender ao “princípio” das conveniências. É isso que
faz o sr Jackson, e – sejamos lógicos – vai bem...9
Um dos principais feitos de campanha promovidos pelos adeptos da Reação Republicana foi o
episódio das “Cartas Falsas”. Estas últimas, vindo a público em novembro de 1921 e sendo
atribuídas a Bernardes, trariam uma série de vitupérios do candidato mineiro ao marechal
Hermes da Fonseca10. O Club Militar repudiou as missivas, prontificou-se em “analisá-las”11,
a campanha eleitoral efervesceu e, pode-se dizer, não teve arrefecimento definitivo.
A eleição veio, Bernardes ganhou, mas a Reação Republicana não aceitou o resultado.
Convocou uma recontagem no Supremo Tribunal Federal que lhe favorecera, mas foi derrotada
em apreciação no Congresso. Em junho de 1922, a Reação Nilo Peçanha e Seabra afirmavam:
Estamos eleitos presidente e vice presidente da República por uma maioria de 22.764
votos. A decisão que reconhece o candidato oposto por um Congresso sem
autoridade e que se colocou fora da Constituição, renunciando voluntariamente à sua
função de juiz, importa, pois, num esbulho aos direitos soberanos do povo e cuja
consumação se pretende para o 15 de novembro próximo vindouro. A Reação
Republicana [...] não se submete nem se conforma com essa situação
revolucionária12.
Os autores, habilmente, denunciavam a “revolução” dos outros a fim de arrogar para si o lugar
de conservadores que ficara distante após os apelos militares e a recusa em aceitar o resultado
eleitoral. Menos de um mês após tal recusa pública, estourava a revolta no Forte de Copacabana
comandada pelo filho de Hermes da Fonseca, o capitão Euclides Hermes da Fonseca.
As ligações entre os membros da Reação Republicana e a revolta militar13 são
evidenciadas tanto pela acusação proposta pelo procurador da República à época, quanto por
um dos réus no processo. Segundo a acusação:
Está provado no inquérito, quer pela confissão de alguns indiciados, quer por
depoimento de testemunhas, que o deputado federal José Eduardo Macedo Soares,
coronel Vivaldi Leite Ribeiro, Dr Sílvio Rangel, Dr Laurindo Lengruber Filho,
coronel Januário de tal e o capitão reformado Carlos Eiras [...], momentos antes de
explodir a revolta, obtiveram a adesão do comandante da polícia estadual César
Sampaio Leite e do seu ajudante, Paulo Ornelas do Couto, com o auxílio dos quais
fizeram ocupação militar da Companhia Telefônica, impedindo durante toda a noite
qualquer comunicação com esta capital [...]. Esses indiciados, depois de haverem
afirmado [...] aos Drs. Nilo Peçanha e Raul Fernandes, nesta capital, que a revolta
explodiria naquela noite, foram para Niterói, onde praticaram o ato de rebelião acima
descrito, e tudo fizeram para persuadir, o chefe de polícia a aderir ao movimento
9
No mundo político. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 21 jun. 1922, p 2;
CARONE, Edgar. A República Velha, p. 350.
11
Cf. SÁ, Alberto Leandro de. A moção do Club Militar, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 nov.1921, p 1.
12
PEÇANHA, Nilo; SEABRA, J J. À nação, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10 jun. 1922, p 2.
13
Mesmo que se leve em conta, conforme Carone, a “obscuridade” do movimento militar de 1922, não se pode
perder de vista estas razões explicitadas em várias fontes e documentações que sempre traçam a relação entre
membros da Reação Republicana, militares descontentes e a prisão de Hermes da Fonseca etc. Se o protagonismo
era militar, vários civis eram cientes dos acontecimentos, como Graça Aranha que não só buscou apoio para causa,
como acabou preso por ordem explícita do presidente da República. Cf. CARONE, Edgar. O tenentismo, p. 21;
AZEVEDO, Maria Helena Castro. Um senhor modernista, p. 288.
10
357
subversivo e mandar a força policial ocupar todas as repartições públicas estaduais
e federais14.
O deputado Macedo Soares arrolado como réu no processo não nega a relação com os
revoltosos, apenas fala da ignorância dos próceres da Reação e a recusa em apoiar o movimento:
O sr marechal Hermes da Fonseca foi preso15, no domingo dia 2, e solto na segunda
feira, 3 de julho. Nesse dia, tive notícia de que um grupo de oficiais julgava inadiável
e urgente a desafronta do Exército; na quarta-feira, 4 de julho, às 3 horas da tarde,
fui informado que a reação armada se daria imediatamente. Às 6 da tarde, colhi
detalhes sobre os últimos preparativos do movimento iminente. Depois disso fui à
casa do senador Nilo Peçanha [...] com o intuito de pôr o chefe da Reação
Republicana ao corrente dos acontecimentos que se preparavam. Estavam na casa do
chefe fluminense várias pessoas [...] Falei à parte ao senador Nilo Peçanha, que se
mostrou cético sobre o rompimento da revolta, sobre cuja eficiência não podia fazer
ideia. Às 9 horas da noite tive as derradeiras informações, marcando a hora para o
rompimento, dando sinal o forte de Copacabana. [...] Não cogitamos em dar qualquer
espécie de cooperação material à revolta [...]16.
Em 14 de novembro de 1922, na véspera da posse de Bernardes, primeiro presidente eleito
empossado sob estado de sítio, Peçanha encerrava a disputa, mas não o ideal da Reação:
Aproxima-se o momento da transmissão do governo da República, e sinto-me no
dever de acudindo à inspiração de quantos prestaram o seu concurso à causa da
Reação Republicana e que me fazem a honra de pedir um conselho, falar-lhes, ainda
uma vez, que se está encerrada a questão da Presidência, não está encerrada a questão
de princípios que ela levantou, nesse primeiro e talvez mais largo apelo direto do
povo brasileiro às urnas17.
Por mais de uma vez, Peçanha lamentara não ter sido a Reação Republicana um partido nacional
devido à “fraqueza dos políticos”, mas que expressava um “estado de alma”.
A vaga definição do senador pode ser mais significativa do que aparenta. Se a Reação
Republicana, de fato, não tinha em seus objetivos compromissos que a distinguissem
significativamente de seu opositor, ela teve o papel de dar vazão a algumas forças sociais e
políticas que continuarão a agir no decorrer da década de 1920 no Brasil. A campanha eleitoral
de 1921-1922 cumpriu importante papel no interior da cultura intelectual brasileira, ainda que
fosse para explicitar os limites acanhados das ações políticas promovidas pelos representantes
do poder institucional na República que só poderiam convidar ao ceticismo, conforme José
Maria Belo: “Todas figuras de primeiro plano têm origens idênticas e se movimentam por
finalidades análogas. São igualmente conservadores e republicanos: acreditam com a mesma fé
nos ‘largos destinos’ da nossa democracia burguesa e juram trabalhar pela felicidade do país”18.
O autor comentava que, assim como Bernardes vencera a eleição, a escolha poderia ter “recaído
no sr Washington Luís, no sr Borges de Medeiros ou no sr Nilo Peçanha”. O absurdo seria
14
Perante a comissão de Justiça da Câmara, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 dez. 1922, p. 1.
Hermes da Fonseca foi preso acusado de apoiar uma revolta no estado de Pernambuco. CARONE, Edgar. A
República Velha, p. 363.
16
Perante a comissão de Justiça da Câmara, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 dez. 1922, p. 1.
17
A sessão de ontem no Senado, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14 nov. 1922, p. 3.
18
BELO, José Maria. Em torno da questão política, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 out. 1921, p 1.
15
358
depender a “direção do pais” de “quatro ou cinco nomes” que controlavam a “máquina eleitoral
das principais unidades federativas” segundo os princípio de um “conservadorismo
constitucional”19. Durante a campanha eleitoral, Maria Belo explicitava o descompasso entre
as premissas das coligações partidárias e as questões que prementes do país:
Quer os homens da convenção de junho, quer os da dissidência estão profundamente
satisfeitos com a atual ordem de coisas. São todos eles declaradamente burgueses
conservadores, admiradores do capital e das forças armadas, que constituem mesmo,
ao seu ver, a cúpula do edifício social. [...] Podem ser amanhã com a mesma
displicência, protecionistas ou livre-cambistas, individualistas ou intervencionistas,
papelistas ou anti-papelista conforme as circunstâncias, como podem ser
revisionistas ou conservadores da velha e absurda Constituição de Fevereiro20.
Enquanto Jackson de Figueiredo concederia um conteúdo católico-nacionalista à campanha de
Bernardes opondo-se a Edmundo Bittencourt, redator Correio da Manhã, que fazia de Peçanha
um progressista e liberal, críticos como Maria Belo só viam a inocuidade de ambos.
Gilberto Freyre aponta a demora de certos temas em tomarem a arena do discurso
político oficial, seja com a apreciação tardia de Rui Barbosa acerca da existência de uma
“questão social” no país, seja com o juízo que via nesta última um caso de polícia, na apreciação
de Washington Luís. Os próprios tenentes ancoravam-se em ideias e projetos que, em grande
medida, se confundiam com aqueles das oligarquias que queriam derrubar. Trata-se de um
processo complexo que, a exemplo dos movimentos militares, se, por um lado, a sua
persistência na luta revela a existência de uma expectativa (angústia) utópica de revolução no
país, a indeterminação de suas prerrogativas políticas acentua a sua relação com as reflexões
políticas oficiais que se mantinham distantes de ideais que pudessem parecer subversivos e
contrários às tradições conservadoras do país, como gostavam de dizer. Levará alguns anos até
a cultura intelectual brasileira, em geral, julgar “velha e absurda Constituição de Fevereiro”.
A “questão social” na cultura intelectual brasileira
Se o discurso político oficial tendia a apenas tangenciar ou, quando muito, a aceitar a
existência de uma “questão social” no país, nos demais domínios da cultura intelectual brasileira
o tema tornava-se cada vez mais recorrente. Enquanto o presidente Epitácio Pessoa negava a
existência de tal “questão no país”21, o noticiário era repleto de casos a respeito de expulsões,
prisões e ações policiais que visavam conter as ações, greves, movimentos e manifestações de
orientação claramente trabalhista, notadamente segundo uma visão de mundo anarquista22.
19
BELO, José Maria. A imprensa e a vida política. O Jornal, Rio de Janeiro, 25 ago. 1921, p 1.
BELO, José Maria. A campanha política, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 dez. 1921, p 1.
21
Cf. KAREPOVS, Dainis. Os comunistas: Do surgimento no Brasil aos primeiros passos na vida eleitoral (19181924). A esquerda e o parlamento no Brasil: o Bloco Operário e Camponês (1924-1930). Tese. Departamento de
História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2001, p. 50
22
Cf. A EXPULSÃO DOS DECLARADOS ANARQUISTAS. O Jornal, Rio de Janeiro, 15 out. 1919, p. 4;
Combate ao anarquismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 abr. 1920. p. 1; Os anarquistas em atividade, O Jornal, Rio
20
359
Conforme Angela de Castro Gomes, os movimentos anarquistas atingem seu auge no ano de
1919 no Brasil e começam a decair frente à repressão desencadeada pelos governos Epitácio
Pessoa e Artur Bernardes23. As “campanhas contra o anarquismo” podiam estar presentes tanto
no endosso das matérias de jornal à legislação e às ações de repressão, quanto nas produções
simbólicas que condenavam tais orientações políticas. As charges aí se destacam24.
Se os anarquistas tinham de enfrentar a forte repressão estatal, os ideais comunistas,
bolchevistas e maximalistas, como se dizia, ocupavam grande parte dos informativos
internacionais, tornando-se um tema incontornável. A própria utilização da expressão
“bolchevismo intelectual”25 era reflexo dessa situação. O Jornal manteve numa coluna
intitulada “notas bolchevistas” com notícias da Rússia e notas diversas sobre a figura de Lenin
ou o funcionamento dos sovietes, por exemplo26. Além disso, cotidianamente falava-se em
“avanço bolchevista no mundo”, “Rússia Soviética”, “Pedagogia bolchevista”, “psicologia do
Maximalismo”, “a praga do Maximalismo”27 etc. Como a maioria dos periódicos não dispunha
da colaboração das agências internacionais de notícias, muitas dessas informações eram
republicadas em outros jornais e revistas, como no caso da nota sobre “Lenin: o político e o
orador” aparecida em O Jornal e reproduzida na Revista do Brasil, no início de 1920. Este tipo
de apreciação era uma composição que buscava, ao mesmo tempo, dar uma noção minimamente
objetiva acerca do tema tratado e promover o repúdio ao bolchevismo que deveria decorrer
logicamente da notícia. Não era algo tão simples. Assim, o perfil de Lenin era traçado como
“lúcido e perspicaz”, “cínico e cruel”, porém, não se resumindo a tais adjetivos:
Lenin é um primitivo. Desde que adotou a doutrina da luta das classes, ele rejeitou
de propósito deliberado toda investigação científica e moral. [...] Com este exercício
quotidiano ele se consumiu singularmente e espantaria ao mais cético pelo seu
racionalismo elementar. [...] Em suma, Lenin não enriqueceu o pensamento humano
com ideia alguma nova. Procurar-se-á, em vão, em suas obras escritas, antes e
durante a revolução, outra coisa além de comentários mais ou menos engenhosos da
tese de Karl Marx. Mesmo quando escreveu, em 1908, sobre a pretendida
superioridade do regime dos sovietes, não achou outro argumento em favor de sua
de Janeiro, 23 jul. 1919, p. 4.
23
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo, p. 123.
24
É significativa a quantidade de charges que, estampadas em primeira página, traziam críticas, denúncias e
reprovações acerca de tais orientações políticas. Numa delas, Oswaldo ironiza “A partida dos anarquistas”, em que
um grupo de pessoas está a discutir e sobressai o seguinte diálogo: “_ Eles foram de carro para bordo...” “_ De
carro e com guarda de honra! E ainda há quem proteste contra o embarque dos anarquistas. Nem passagem eles
pagam...”. Cf. OSWALDO. A partida dos anarquistas, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 out. 1919, p. 1.
25
A expressão “bolchevismo intelectual” foi utilizada, dentre muitos outros, por João do Norte (Gustavo Barroso)
para criticar os ideais artísticos que despontaram no ano de 1922. Cf. NORTE, João do. Bolchevismo intelectual,
O Jornal, Rio de Janeiro, 1 dez. 1922, p. 1
26
Cf. Notas Bolchevistas. Lenin: o político e o orador, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 fev. 1920, p. 1; Notas
bolchevistas: que é um soviete?, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 jan. 1920, p. 1.
27
Notas estrangeiras. Propaganda Bolchevista, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 de mar. 1921, p 1; VIEIRA, José. A
Rússia Soviética, O Jornal, (SEGUNDA SEÇÃO), Rio de Janeiro, 16 jan. 1927 p. 1; Notas alheias. Pedagogia
bolchevista, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 mai. 1921, p. 1; A psicologia do Maximalismo, O Jornal, Rio de Janeiro,
17 out. 1919, p. 1; SERVIÇO TELEGRÁFICO – A PRAGA MAXIMALISTA, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 ago.
1919, p. 5.
360
tese senão citações tiradas das obras de Marx [...]. Aliás, a pobreza de pensamento é
a característica de toda revolução russa, em todos os seus períodos28.
As notícias, os relatos e demais produções simbólicas que faziam referências diretas
ou indiretas aos acontecimentos na Rússia constituem importantes fontes para se apreender os
desdobramentos no interior da cultura intelectual brasileira acerca das ideias sobre reformas
constitucionais, mudanças de regime e modernização da “ciência política”. Frente ao noticiário
abundante, surgem nomes como o do jurista Viveiros de Castro a teorizar acerca do tema de
uma maneira diversa daquela que os militantes anarquistas e socialistas faziam há tempos sem
atingir, porém, espaços hegemônicos como o dos jornais de grande circulação e as instituições
consagradas. Assim, Castro dava cursos na Faculdade de Filosofia e Letras do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro acerca da “questão social” cujo programa era:
Objeto do curso: explicações preliminares, Definição de – ‘operário’. – A Questão social;
Impropriedade de denominação; definição. Existe realmente uma questão social; ela não é
uma superstição -, como pensava Garófalo. Otimismo da escola liberal: sua refutação.
Causas que tornam atualmente mais grave o conflito entre o capital e o trabalho. As quatro
– vigas mestras – da organização social29.
Conforme a notícia, Viveiros de Castro não seria nem socialista nem liberal, pois via “o
problema do trabalho como essencialmente moral, não podendo ser resolvido sem se fortalecer
o sentimento religioso”. Castro era ministro do STJ e suas ideias eram assim glosadas:
[...] todos estão de acordo [...] que urge por meio de medidas prontas e eficazes vir
em auxílio das classes inferiores [...]. Já não é mais possível demorar a solução da
questão social dentro das normas jurídicas, mesmo para evitar que essa solução seja
dada por processos revolucionários, ou ditada pelas sugestões do medo. Hoje, em
regra, o patrão considera o operário um instrumento de produção, como as máquinas,
do qual é preciso obter tudo o que ele pode representar, substituindo-o quando tornar
imprestável. [...] firmou-se o regime da – riqueza móvel -, do – dinheiro. A isto, veio
juntar-se um novo perigo [...] a excessiva concentração de capitais acumulados em
pequeno número de mãos, enquanto mais de dois terços das populações sofrem
necessidades. [...] as quatro vigas mestras da ordem social: _ Deus, a Família, a
Autoridade e a Propriedade. Os Estados procuram apagar da alma humana a ideia de
Deus; os laços familiares estão cada vez mais frouxos; o princípio de autoridade é
violentamente combatido; a propriedade é considerada uma expropriação ignóbil.
Ao tratar do livro Penso e Creio, de Perilo Gomes, Tristão de Athayde expressava sua
desconfiança frente à utopia religiosa. Tal orientação faria parte, segundo o crítico, de um
processo geral de “depuração das direitas” frente à ação das esquerdas. Antes de tudo, o autor
reafirmava sua posição “eternista”, solicitando um lugar de observador transcendente:
Não creio em eclipses da civilização. Há épocas dolorosas, há ciclos de
desorientação mental, há períodos de miséria, há momentos de aparente estagnação,
mas nunca há propriamente retrocesso. Tudo depende da altura em que se colocar o
observador, do alcance de sua visão30.
Os acontecimentos revolucionários que irrompiam no oriente teriam uma lógica histórica:
28
Notas Bolchevistas. Lenine: o político e o orador, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 fev. 1920, p. 1. Também publicado
em: Lenine: o político e o orador, Revista do Brasil, São Paulo, no 52, pp. 366-367, abr. 1920.
29
As Grandes Conferências. No Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, O Jornal, 27 set. 1919, p. 8.
30
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 fev. 1921, p. 2.
361
A chamada orientação à esquerda de todo o movimento político do século XIX não
era uma simples veleidade, mesmo porque as veleidades individuais não podem
contrariar uma tendência coletiva invencível. Essa orientação era a consequência, e
por sua vez a causa, de um crescente individualismo, filho inevitável da instrução
difundida nas massas e da meia cultura das elites. E a questão social, hoje máxima,
é uma consequência desse individualismo. Sem indagar de outras e remotas
consequências benéficas que esse movimento libertário traga consigo, movimento
tão injustamente julgado pelas aparências, às vezes de fato desoladoras, basta a
primeira delas para nos convencer de que a civilização não está em perigo. A
primeira consequência benéfica do movimento das esquerdas é a depuração das
direitas: Toda ordem social estabelecida que não tenha contra si uma oposição,
honesta, sincera, forte e justa, só por um milagre [...] pode evitar o enlanguescimento.
A ordem social capitalista chegara talvez a esse ponto, enquanto os subversores dela
apenas pregavam a desordem ou pelo menos a negação da ordem estabelecida. Hoje
o movimento é mais sério, e o pensamento da esquerda, amadurecido pelo tempo,
pela meditação e pela experiência, apresenta um corpo poderoso e unificado de
doutrina e ataque. Consequência: a ordem estabelecida cogita sua defesa. A esse
movimento depurador das direitas, no tocante às ideias, pertence o Sr Perilo Gomes,
como a ele também se filia o Sr Jackson de Figueiredo, e se hoje é um mero fio de
água será amanhã certamente caudal, já que corresponde a uma reação natural e
necessária que se está produzindo normalmente em todos os países do mundo31.
O crítico observa que o princípio de autoridade constituiria um foco central nas reflexões
teóricas de reabilitação do pensamento de direita que atacariam, justamente, as noções gerais
de liberdade e individualismo. O autor não deixa de ironizar a premissa de Perilo Gomes:
É de notar, aliás, como os anti-individualistas fazem questão do seu caso individual.
Penso e Creio é o título desse livro de combate ao individualismo, e não “Pensar e
Crer”. O fato, porém, é que o Sr Perilo Gomes [...] parte da consideração religiosa
do problema. E ataca a este de frente, com desassombro e tanta vaidade e orgulho de
sua submissão à Igreja quanto a dos que a combatem. Nada lhes fica devendo.
Habilitar a validade da reflexão religiosa no interior da República laica e do pensamento
moderno em geral estava entre as pretensões dessa direita católica politicamente engajada.
Dessa forma, acerca da “questão social”, Perilo Gomes considerava:
E nós não pretendemos mais do que foi feito: lembrar que a Igreja quando possuiu o
‘controle’ sobre a ordem temporal, fez o possível em matéria de organização social,
e que para resolver o problema máximo do nosso tempo – o pauperismo – o seu
maior obstáculo é a impiedade.
O crítico não se entusiasma com as soluções católicas, desconstruindo os argumentos religiosos,
acentuando o caráter fundamental da mudança por que ele passará posteriormente:
Toda a dialética do Sr Perilo Gomes, que aliás é a apologética de todos os tempos,
[...] baseia-se na consideração de que o mistério supremo das origens e dos fins
implica necessariamente do sobrenatural. Mas haverá nada mais natural do que o
mistério? Se o Sr Perilo Gomes é o primeiro a reconhecer que o mistério, no sentido
popular da expressão, é simplesmente uma questão de ignorância que não implica a
existência do sobrenatural, por que não há de logicamente aplicar o mesmo critério
para as questões que se encontram “na raiz de todas as ciências”? A incapacidade do
rústico em conhecer a origem do trovão e a tendência a atribuí-lo à manifestação da
divindade é da mesma espécie que a incapacidade do sábio em desvendar a origem
da vida e atribuí-la a Deus. [...] O mistério parece-me, portanto, a ignorância talvez
definitiva do homem [...] À medida que a ciência aumenta o seu campo de ação,
31
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 fev. 1921, p. 2.
362
diminui o do mistério: não creio que a ciência seja capaz de eliminar o mistério nem
que deva vedar aos homens a consideração dele. [...] A ordem sobrenatural, portanto,
é a incapacidade do homem em determinar os limites da ordem natural. É mais
lógico, portanto, atribuir essa ordem sobrenatural aparente à ignorância fundamental
do Homem do que à existência de Deus. [...] Mas qual o motivo da radicação
profunda do sentimento religioso, no coração e na mente da humanidade? Por uma
necessidade de Ordem, fundamental à natureza humana, ordem individual e ordem
social. O instinto filosófico, ou seja, a indagação pessoal dos problemas [...] deixa
os homens isolados em sua interrogação dramática do mistério, ao passo que o
instinto religioso congrega os homens, dá a cada um o conforto de um edifício
secular de pensamento e de bondade, em que nunca o deixarão só. Socialmente, fora
da religião, só um sentimento fragílimo consegue conter os instintos das massas – o
hábito. E a ordem social só foi possível, durante séculos, graças ao sentimento
religioso, que, acenando com outra vida melhor, trazia os homens o consolo
individual ou a resignação social. Mas nem a existência secular das religiões prova
a existência objetiva do sobrenatural, nem a majestade da moral religiosa prova a sua
revelação divina, apresentando, ao contrário, todos os característicos de uma lenta
elaboração humana. E no mais, se “a descrença é um estado anormal do homem”, a
experiência prova que a fé no sobrenatural é um estado transitório. E se o mistério é
indecifrável, isso prova, como vimos, contra a razão humana e não pela existência
divina. [...] [o livro] é, de momento, a mais formosa manifestação, entre nós, do
grande movimento universal de apuração e de depuração dos direitos da Fé32.
Assim, não era a solução religiosa que atraía o crítico. Não seria inexato dizer que e o
crítico travou durante a década de 1920 um debate consigo mesmo. Sob o nome de Fernando
Telles, ele, como já escrevera no artigo “Êxodo” analisado em tópico anterior, fazia o
contraponto entre uma sociedade urbana e outra rural, ressaltando a prevalência que esta última
teria nas projeções políticas brasileiras. Comentando o panfleto do deputado e vice-presidente
da Sociedade Mineira de Agricultura, Fidélis Reis, Telles defendia o alistamento rural:
Ao invés desse sorteio militar, que só atinge, em regra, aos pobres e desprotegidos,
tirando dos campos para as cidades o maior número dos seus conscritos, levaria o
serviço agrícola para os campos, durante um tempo determinado, toda a nossa
mocidade que definha e se perde nas cidades. O trabalho no campo é a grande escola
de saúde e da virtude. O contato forçado com a terra, com a nossa terra que tão
criminosamente desleixamos, havia de deixar, em grande número desses novos
servidores da pátria, o salutar amor pela liberdade, pela iniciativa, pela vida forte e
fácil do campo. A “política da gleba” é a única política construtora de uma nação
incipiente como a nossa33.
Em outro artigo, Telles reafirmara a sua aversão aos meios urbanos, considerando-os fonte
originária de vários males modernos, da “inconsequência ocidental”:
Enquanto no Oriente se prepara a luta sem tréguas contra as sociedades burguesas,
enquanto no nascente um novo e rubro sol se levanta sobre o mundo, quando a mais
grave das ameaças paira sobre as nossas cabeças, o ocidente dança, ri, diverte-se,
goza voluptuosamente o prazer atropelado dos sentidos, sem freio moral, sem pudor,
sem consciência. [...] Muito mais grave do que a “onda de preguiça”, que moralistas
conservadores e jornalistas reacionários descobrem nas classes proletárias, é a onda
de prazer que varre as chamadas classes superiores. [...] A guerra foi como uma pedra
lançada no charco: está vindo à tona todo o lodo. Como é lamentável o contraste que
aqui a nossos olhos avulta! De um lado, o sertanejo desamparado, as populações do
nordeste morrendo à míngua, o povo humilde das cidades torturado pela vida cara e
32
33
ATHAYDE, Tristão De. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 fev. 1921, p. 2.
TELLES, Fernando. A política da gleba, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 fev. 1920, p 1.
363
difícil, a sociedade em perigo e de outra parte, esta mesma sociedade inconsciente e
risonha, corrompida pelo luxo, vulgarizada pelo cosmopolitismo, escravizada pelas
modas mais absurdas, esquecidas dos deveres que os seus direitos lhe impõem, sob
pena de os perder. [...] Uma campanha temos contra o urbanismo causa primeira de
todos esses males sociais, contra o luxo, contra os costumes importados, contra as
modas e danças exóticas, contra a miséria, contra o utilitarismo crescente das
mentalidades, contra a falta da educação moral, contra a decadência do sentimento
religioso, contra a – onda de prazer – que acentuou o contraste entre o sertão e os
grandes centros e agrava a delicada questão social, uma campanha geral e incansável,
contra esses males do momento, é o mais comezinho dever de defesa e consciência,
de uma sociedade, que ainda queremos crer não mereça o suicídio, a que está sendo
impiedosamente levada34.
É interessante notar esse desdobramento das figuras de Alceu Amoroso Lima, Tristão de
Athayde e Fernando Telles cada qual com um posicionamento público distinto. Ao analisar a
obra do dramaturgo Luigi Pirandello, o crítico ressaltava o caráter dissociado da personalidade:
Pirandello é o mais inumano dos homens. Para Pirandello o homem não existe. Não
no sentido em que não existia para Joseph de Maistre. De Maistre, como também
Gobineau, dizia ter encontrado em sua vida muitos franceses, muitos alemães,
muitos russos, mas nunca ter encontrado – o homem. Pirandello vai além. Não
encontrou nem mesmo esse homem-nação: - francês, russo ou alemão; nem mesmo
o homem-profissão: - pedreiro, banqueiro ou estadista; nem mesmo o homemcaráter: - intelectual, afetivo ou artista. Pirandello nunca encontrou homem de
espécie alguma. O homem para ele é um mito. O homem é uma abstração. O homem
não existe para Pirandello. Só existem os estados de espírito [...]35.
Talvez viesse da própria experiência a empolgação pelo artista italiano. Afinal, parece haver um
jogo de heterônimos e figurações contraditórias em que o viajado e industrial Alceu Amoroso
Lima, que lembra ter introduzido o tango argentino no Rio de Janeiro36, assume a persona de
um Fernando Telles idealizador do mundo rural a recriminar a “onda de prazer” que assolava a
“civilização” ao mesmo tempo em que Tristão de Athayde reconhecia a possível positividade
dos movimentos revolucionários na Rússia e em outros lugares do mundo e era cético em
relação a qualquer resolução religiosa da “questão social”.
Fernando Telles, porém, era condizente com o papel de industrial, que guardava por
detrás de seu pseudônimo, a produzir uma síntese sobre a formação da classe operária moderna:
Um dos grandes fatores do descontentamento contemporâneo, entre as classes
operárias, provém, sem dúvida, da falta de amor à tarefa. E essa falta não pode ser
34
TELLES, Fernando. A onda de prazer. O Jornal, Rio de Janeiro, 7 mar. 1920, p 1.
ATHAYDE, Tristão de. Pirandello, O Jornal. Rio de Janeiro, 25 set. 1927, p. 4.
36
Em entrevista ao O Pasquim, em setembro de 1977, recordava o crítico literário: “Bailarino? Introduzi o tango
no Rio de Janeiro. [...] Olha, brinquei no Champs-Elysées quando Proust brincava lá. O final da minha belle époque
foi com essas argentinas. Namorei uma delas mas não deu em nada felizmente me voltei para uma moça nacional
(ri). [...] Aprendi o tango porque era a dança da época, mas no Brasil era considerado uma dança imoral, pior que
o maxixe. Tango era o que havia de mais baixo. Em 1915, eu estava em Poços de Caldas onde conheci Vera Barbosa
[...] que também tinha aprendido o tango em Paris. [...] Mas a Vera era uma moça muito avançada e quando a
orquestra tocou um tango me perguntou: ‘Vamos dançar?’ ‘Sem dúvida nenhuma’. O espanto foi geral! A orquestra
sempre tocava tangos mas ninguém saía para dançar. Já sabíamos que seria um escândalo. Formou-se uma roda e
demos um show. Era a primeira vez que uma moça e um rapaz de sociedade ousavam dançar o tango. Até hoje
quando tocam La Cumparsita me lembro desses tempos de dança. [...] Vocês falaram jeunesse dorée. Pois nós
éramos chamados de jeunesse adorée. Íamos ao Palace, um cabaré [...] Havia jogos, bacará, roleta, danças, bebidas,
essas coisas todas”. LIMA, Alceu A. Memorando dos 90, p. 209-210.
35
364
atribuída a defeito do trabalhador, senão à própria organização do trabalho na
indústria, onde a questão social assume sua verdadeira importância. [...] Este era
antes um artista que um artífice. Mas o princípio fecundo de Adam Smith – a divisão
do trabalho -, e a introdução cada vez maior das máquinas, na indústria, vieram
alterar completamente o sistema de trabalho. O novo sistema vinha afastar o operário
de sua obra, impedindo-lhe de nela imprimir o cunho de sua personalidade. [...]
Criou-se, então, a grande indústria, com o trabalho dividido e a máquina auxiliando
ou substituindo o homem. E com a grande indústria se criou, ou melhor, se acirrou a
eterna questão social. [...] E o antagonismo dos dois interesses rivais foi aumentando
com o afastamento cada vez maior entre patrões e empregados. É o ponto em que se
encontra a nossa indústria. [...] É uma forma de dissidência, que se diz irreparável,
entre o capital e o trabalho, esquecidos todos de que trabalho é capital em formação
e capital trabalho consolidado37.
Telles, então, apresenta aos leitores as propostas de Frederic Winslow Taylor, fundador do
“Sistema Taylor” ou taylorismo. A admiração pelo taylorismo era algo que irrompia mesmo nos
líderes da União Soviética38 e, no caso dos industriais brasileiros, o sistema poderia ser uma
solução bastante sedutora, pois excluiria os perigos revolucionários, conforme comenta:
Em 1911, reunia em volume o resultado de trinta anos de pesquisas, de observações
e de resultados práticos maravilhosos, sob o título de – “The Principles of Scientific
Management”. Guiava-o o princípio econômico de que a máxima prosperidade do
patrão dependia da máxima prosperidade do operário e o princípio moral de que a
primeira não devia subsistir sem a segunda. Nessa união de um princípio moral a um
princípio econômico é que reside o poder incomparável do taylorismo, que está
fadado, quiçá, senão a resolver pelo menos a encaminhar a solução da questão
operária, hoje central em quase todo universo. [...] estamos longe de tentar qualquer
solução racional do dissídio, divididos entre reacionários e revolucionários. [...] Se
as grandes potências resolverem pacificamente a questão social, também
resolveremos, sem a menor perturbação; se, pelo contrário, só uma revolução, o que
é improvável conseguir classificar a grande confusão contemporânea, também não
escaparemos a ela39.
Em um segundo artigo sobre o tema, Fernando Telles sistematiza as posições do taylorismo:
“1o – desenvolver uma ciência para cada elemento de trabalho humano, em
substituição ao velho método empírico; 2o – escolher cientificamente, e depois
preparar, ensinar e apurar o trabalhador, enquanto outrora era este a escolher o seu
próprio trabalho e a fazê-lo como melhor o entendesse; 3o – obter a cooperação
cordial entre os chefes e os subordinados, de acordo com os princípios científicos.
Estes repousam numa quase perfeita divisão do trabalho entre a gerência e os
trabalhadores. [...] É o próprio Taylor quem nos põe em guarda contra certas adoções
apressadas de suas ideias. Só lentamente, e pelo estudo prévio das condições do
trabalho a organizar, pode ser fecunda a aplicação dos princípios científicos do
“taylorismo”.
37
TELLES, Fernando. O Sistema Taylor. O Jornal, Rio de Janeiro, 29 mar. 1920, p. 1.
Segundo Figes: “O apreço de Lenin pelas ideias de Friedrich W Taylor ajuda a explicar esta tendência. Há muito
que ele saudava a ‘administração científica’ [...] do taylorismo [...]. Os métodos de Taylor e Henry Ford
forneceriam a chave para um futuro brilhante e próspero, diziam alguns bolcheviques”. Nas palavras de Lenin, em
1918: “Aprender a trabalhar – eis a tarefa que o Poder Soviético deve apresentar ao povo. A última palavra do
capitalismo sobre esta questão, o taylorismo, contém toda uma série de descobertas científicas as mais fecundas
no domínio da análise dos movimentos mecânicos durante o trabalho, a eliminação dos movimentos inúteis e
inadaptados, a elaboração de métodos de trabalho os mais apropriados, a introdução dos melhores sistemas de
recenseamento e de controle, etc. [...] É preciso estudar e ensinar na Rússia o sistema Taylor; é preciso implementar
o sistema Taylor e o adaptar às nossas necessidades. [...]”. Cf. FIGES, Orlando. A tragédia de um povo, p. 913;
LENINE. La révolution bolcheviste. Écrits et discours de Lénine de 1917 à 1923. Paris: Payot, 1970, p. 87.
39
TELLES, Fernando. O Sistema Taylor. O Jornal, Rio de Janeiro, 29 mar. 1920, p. 1.
38
365
Sintomaticamente, porém, esse Fernando Telles entusiasta de uma utopia taylorista
desaparecerá justamente após refletir sobre a complexidade do problema da questão social que
não poderia ser solucionado plenamente segundo uma reorganização fabril. E, neste sentido,
em suas últimas linhas, Fernando Telles fazia uma apreciação sobre a questão do bolchevismo:
[...] o silêncio que se fez em torno do artigo do grande psicólogo argentino José
Ingenieros, publicado no último número da Revista do Brasil, e onde, com toda a
serenidade, com a máxima isenção [...] estuda a sério a contribuição doutrinária do
movimento bolchevista, que é possível resumir em um grande princípio geral, que é
a expressão de “uma nova filosofia política” – a representação profissional. Esse
trabalho de ciência [...] é talvez a única coisa justa e sensata, isenta de paixão ou de
preconceito, que entre nós se tenha escrito sobre a obra de Lenin, odiosa e admirável,
ao mesmo tempo, como a de todos os grandes reformadores sociais40.
Antes, porém, de o ítalo-argentino José Ingenieros criticar a “infatigável difamação
radiotelegráfica” de que era alvo o regime soviético, Gilberto Amado batia na tecla sobre o
problema da confiabilidade das notícias sobre a Rússia e o comunismo:
Tem-se a impressão, ao ler esses telegramas, que a United Press e a Havas continuam
a nos julgar indignos da verdade, pobres bugres que convém manter no alheamento
completo do que se passa no mundo. É claro que não há aqui, para bem falar,
bolchevistas. Não há aqui gente bastante séria para fazer oposição a uma ordem
estabelecida. No Brasil só se faz oposição a pessoas... Mas ainda que não haja
propriamente bolchevistas, ou comunistas, há, contudo, homens inteligentes a que
certas coisas irritam41.
Denunciava-se a falta informações sobre o apoio de Anatole France ao comunismo e a Lenin:
O raciocínio mais elementar está demonstrando que se um homem como Anatole
France saúda Lenin ou se deixa acompanhar por sujeitos que o aclamam, é claro que
pelo menos não reputa Lenin um monstro, fora da humanidade, responsável pelos
crimes hediondos que lhe são atribuídos e ao seu partido. E se um homem como
Anatole France é socialista, combate pela implantação do comunismo na sua França
e, porfiando pela realização das teorias de Bergeret, arrisca a sua pele em meio às
violências da polícia de Paris – é intuitivo que pelo menos a causa, não é tão nociva
assim, e que não somente bandidos a ela se afeiçoam e por ela querem batalhar.
Temem-se porventura os aliados de que nós os contaminemos do vírus socialista e
que a influência de Anatole os possa ser nociva? Não acreditem nisto. Anatole
France não tem aqui leitores capazes de se interessar pelas questões sociais em si
mesmas, nem a nossa sensibilidade e o nosso raciocínio chegaram a esse ponto de
refinamento desinteressado em que se pode sentir e refletir com amargura ou revolta
as desigualdades e o absurdo do regime social em que vivemos. Podem os aliados
deixar vir para cá todas as notícias42.
Tristão de Athayde, em artigo que saíra no O Jornal e na Revista do Brasil, falava da
precedência que na “mentalidade brasileira” o sentimentalismo teria sobre a reflexão racional:
Ressente-se o nosso julgamento sobre o bolchevismo desse mal de nossa
mentalidade. A maioria, ainda a letrada, julgando sobre telegramas fantasiosos, por
ideias feitas ou interesses ameaçados, conclui que o movimento russo é uma
aberração monstruosa da natureza humana, um simples caso de usurpação do poder
por aventureiros judeus, uma mera transferência de propriedade, imoral e feroz. Por
seu lado, certas minorias exaltadas, julgando talvez por simples oposição ao
40
TELLES, Fernando. Realismo social, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jun. 1920, p. 1.
AMADO, G. Anatole France comunista, Revista do Brasil, São Paulo, Ano IV, no 43, jul. 1919, p. 276.
42
AMADO, G. Anatole France comunista, Revista do Brasil, p. 276-277.
41
366
preconceito da maioria, aceitam cegamente tudo que na Rússia fizeram e fazem os
partidários de Lenin. Estão cegos ou de má fé como os outros. [...] Todas as grandes
revoluções suscitaram os mesmos fanatismos, que o movimento moscovita
contemporâneo. [...] Quando estudarmos a organização dos atuais senhores da
Rússia, veremos que eles já não representam o que de mais extremado existe em
matéria social. Aos homens como às ideias, modifica sensivelmente a posse do
poder. A oposição irredutível não é entre regimes ou classes determinadas, senão
entre os de cima e os de baixo. [...] Todo governo, pelo próprio fato de sua existência,
suscita oposição. E a mais grave as oposições seria a provocada pela inexistência de
governo. [...] Discutir o problema social, sem preconceito, portanto, é crer
preliminarmente na impossibilidade de uma solução perfeita da matéria. [...] Para
isso, é mister conhecer o que se está passando a Rússia. Ainda são vagas e suspeitas
as notícias de que lá nos chegam. [...] Devemos, contudo, estudar imparcialmente o
assunto, clarificando as ideias e preparando a inteligência para a compreensão e
talvez para a defesa43.
Pouco tempo depois, vinha a lume o artigo de José Ingenieros sobre a “democracia
funcional na Rússia” na Revista do Brasil. O próprio jornal argentino La Nación, citado pelo
autor, notaria uma mudança no tratamento do tema na imprensa internacional:
[...] É digno de notar-se que The Times, cuja atitude ante o maximalismo tem sido
até agora tão agressiva quão intransigente, publique um artigo do seu correspondente
especial na Rússia sovietista, no qual se não fala de atrocidades. O correspondente
se limita a descrever a situação desse país, que julga comparável à de outros países
europeus que ainda não provavam do maximalismo44.
Ingenieros procura analisar em que medida o sistema soviético representaria a emergência de
uma “nova filosofia política” e de novas “características sociológicas”. Ao considerar que os
“sistemas políticos efetivos são sempre o resultado da experiência; nunca improvisações
inventadas por quimeras utopistas”, ele afirma que as origens do fenômeno russo remontaria à
Revolução Francesa e à emergência de uma “soberania popular”. Define-se “revolução”:
Só merece o nome de Revolução uma mudança de regime que implique fundas
transformações das ideias ou radicais desequilíbrios entre as classes que coexistem
no Estado; por um vício de linguagem costumam confundir-se com ela os motins e
pronunciamentos em que se cansa a história de certos povos45.
Assim, a partir das revoluções francesa e americana, a afirmação da soberania popular em
detrimento de qualquer princípio divino ou absolutista de legitimação do poder traria consigo
mudanças acerca da representação política. Sobre esta última, comenta o autor:
A soberania popular foi firmada como um direito individual e contra os privilégios
de classe; como consequência desse critério, se tendem a distribuir a representação
quantitativamente, dividindo o povo soberano em tantas seções eleitorais quantos
representantes devia eleger. Ele permitiu desagregar os privilégios que viciavam as
precedentes assembleias; mas, ao mesmo tempo, suprimiu o caráter funcional da
representação, em vez de aumenta-lo46.
O autor enumera algumas consequências “lógicas” – toda argumentação é atravessada pela
43
T. de A. A questão social, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jan. 1920, p. 1. Também publicado em: T. de A. A questão
social, Revista do Brasil, São Paulo, no 50, pp. 177-178, fev. 1920.
44
INGENIEROS, José. A democracia funcional na Rússia, Revista do Brasil, p. 10.
45
INGENIEROS, José. A democracia funcional na Rússia, Revista do Brasil, p. 11.
46
INGENIEROS, José. A democracia funcional na Rússia, Revista do Brasil, p. 13.
367
reivindicação do olhar científico, sociológico e, portanto, “desinteressado” - da representação
nas democracias modernas acerca das quais apenas os partidos políticos não concordariam. Daí
falar em “democracia funcional” na Rússia, uma vez que a “democracia” permanecia como
horizonte legítimo, qual seja, a “soberania popular”, mas a sua realização é que encontrava uma
resolução distinta dos sistemas parlamentares ocidentais. Tal “falseamento” da representação
seria já reconhecido pelos sociólogos, de modo que ao invés de representar a população, os
parlamentos constituiriam uma classe política e que os:
[...] partidos parlamentares têm por finalidade assenhorar-se do poder ou participar
dele, em proveito dos representantes do povo, mais e melhor do que em benefício do
soberano representado. Os que mais falam de patriotismo, são, geralmente, os de
conduta menos patriótica; não tratam de cooperar com os demais para o bem-estar
comum, mas de combatê-los sistematicamente para monopolizar o poder; a rixa dos
partidos mantém a sociedade em estado de guerra. [...] O cidadão é um zero à
esquerda, depois de eleger como representantes os políticos profissionais que
dirigem o partido de suas simpatias. O parlamento [...] não representa a sociedade, é
um organismo parasitário e nocivo para o funcionamento das atividades sociais47.
A criação de partidos trabalhistas revelaria a necessidade de tais mudanças na
representação. Ingenieros apresenta os tópicos basilares da constituição do sistema soviético:
1o: “Os cidadãos da República dos Soviets” nomeiam deputados por grupos
funcionais; a massa desses deputados sai dos laboratórios, das oficinas, das escolas,
dos centros ferroviários, das associações científicas e artísticas etc. No caso
particular de Moscou, capital do Estado, também se representa o pessoal técnico das
repartições centrais. “Assim se impede, desde o começo, o nascimento dos
profissionais da política”. Visa ainda este fim o fato de se tornarem demissíveis e
substituíveis os delegados. 2o “Por sua especial capacidade econômica, ora como
produtores ora como consumidores”. Nos sovietes locais, da cidade e do campo,
existe uma subcomissão econômica, que delega um deputado à sua respectiva
Federação; esta, por sua vez, é representada na Assembleia Geral do Soviete, onde
constitui a Seção Econômica, conjuntamente com técnicos especialistas
(economistas, agrônomos, estatísticos [...]) 3o Através dos partidos políticos. “O
número dos representantes eleitos com este critério é muito pequeno comparado com
o dos representantes diretos de corporações técnicas. Levou-se em conta que os
líderes políticos podem ser úteis nos serviços públicos; sua cooperação, quando
possuem conhecimentos técnicos é necessária no período de transição e
reconstrução”. 4o Todo “soviete” local ou seccional mantém representação com
“sovietes” gerais da mesma especialidade48.
Mesmo que, segundo o autor, o regime representasse ainda um “sistema funcional”
incompleto, os bolcheviques estariam realizando conquistas eleitorais49 e políticas importantes,
não podendo ser considerado uma “associação de ignorantes ou malfeitores prepostos a
47
INGENIEROS, José. A democracia funcional na Rússia, Revista do Brasil, p. 17.
INGENIEROS, José. A democracia funcional na Rússia, Revista do Brasil, p. 24.
49
O autor cita reportagem do jornal La Prensa que reproduzia telegrama de Londres: “Informações radiográficas
de Moscou anunciam a primeira sessão do ‘soviet’ [...] Votaram, anuncia-se, 507.000 eleitores, ou sejam 87% do
total dos eleitores alistados. O número de habitantes que carecem de voto é de 588.000, dos quais 468.000 são
crianças e o resto criminosos e pessoas cujos meios de vida não são obtidos pelo trabalho. Sob o regime do czar o
número dos que votavam não excedia de 15.000. No tempo de Kerensky votaram 45.000”. Cf. INGENIEROS,
José. A democracia funcional na Rússia, Revista do Brasil, p. 24.
48
368
assassinar e roubar os ricos, sem prejuízo de fazer o mesmo aos pobres”50. Alguns lemas do
regime, como “quem não trabalha não come”51 e “quem não trabalha não vota” são destacados
e serão recorrentes nas apreciações sobre os sovietes. Tudo, porém, estaria por fazer, o horizonte
que se abria era um processo histórico marcado pela angústia e pela esperança:
O aumento da felicidade não é para a murcha geração da guerra, e sim para a futura
geração da paz. As épocas revolucionárias não tiram a felicidade do nada, e implicam
angústia para todos. [...] A violência não é finalidade das revoluções, senão a
dolorosa defesa imposta elas circunstâncias contra a ameaça dos reacionários. [...]
As nações civilizadas caminham para uma Democracia Funcional. Educar os
espíritos nessa orientação é obra inteligente de Paz; obstruir o curso a história é obra
louca de Guerra52.
Se tais palavras caíram no silêncio, como dissera Fernando Telles, o fato é que, com o tempo,
a temática apenas ganhou em vigor e complexidade no interior da cultura intelectual brasileira.
Entre dezembro de 1920 e fevereiro de 1921, o socialista Joaquim Pimenta53 publicava
uma série de seis artigos intitulada “A luta de classes em face do direito moderno” publicada
sempre na primeira página do O Jornal. Em uma linguagem vazada de metáforas biológicas e
organicistas segundo uma concepção evolucionista, Pimenta considerava que o:
Coroamento da evolução, a revolução não só se justifica, como é necessária; é uma
intervenção cirúrgica que se impõe a um organismo que, para poder viver, tem de
amputar certas partes gangrenadas ou que perderam a sua função; é uma intervenção
que a sociedade exige de si mesma, impelida pelo próprio instinto de expansão vital
que tanto preside ao transformismo biológico dos seres, como ao dinamismo
sociológico dos povos54.
Pimenta criticava concepções anarquistas que, por serem reticentes e até contrárias à existência
do Estado, estariam restritas à ação sindical. Porém, o que vem à tona é a crítica radical ao
liberalismo e ao regime brasileiro no qual o Congresso “não representa o povo, nem o
eleitorado, mas os governadores estaduais junto à presidência da República” aqui e no exterior:
[...] Em todos os países onde ele [Parlamentarismo] se se erigiu em imperativo
categórico do liberalismo político, o contraste logo se denuncia entre os fatos e o tão
decantado “governo do povo” pelo “povo” [...] o poder que na Inglaterra está acima
de todos os poderes não é o Parlamento, mas o Gabinete. Este pode impedir ou deter,
em qualquer das duas casas, a votação dos “bills” que lhe convierem; “tornou-se a
única fonte de legislação séria; daí, pela força das coisas, se fez a única fonte de
legislação constitucional”. Dos Estados Unidos sabe-se que assentam eles em uma
constituição que se tem por um dos mais suntuosos monumentos da cultura jurídica.
Entretanto, não há país onde se haja mistificado tanto os sãos preceitos da ética
constitucional. [...] O mercado de votos, para o qual se criou uma classe especial de
agentes, os “bosses”, converteu a poética ficção da soberania nacional na mais
50
INGENIEROS, José. A democracia funcional na Rússia, Revista do Brasil, p. 24.
Ironicamente, a frase tem origem bíblica e é atribuída ao apóstolo Paulo em sua “Primeira Epístola aos
Tessalonicenses”. Lenin a utilizou como mote para combater os burgueses da Rússia em um contexto de grande
fome que se seguira à revolução, o lema era visto como “a primeira máxima fundamental que está na base do
socialismo: ‘Aquele que não trabalha, não come nada’ [...] todo trabalhador compreende isso”. LENINE. La
révolution bolcheviste, p. 94.
52
INGENIEROS, José. A democracia funcional na Rússia, Revista do Brasil, p. 27.
53
Sobre Joaquim Pimenta e sua militância Cf. GOMES, Â de C. A invenção do trabalhismo, p. 147-165.
54
PIMENTA, J. A luta de classes em face do direito moderno, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 dez. 1920, p. 1.
51
369
prosaica transação mercantil. O dólar é o verdadeiro título eleitoral por que a grande
República faz sentir [...] a força do seu imperialismo econômico-político55.
Joaquim Pimenta terminava sua série de artigos retomando a questão da representação funcional
como horizonte das formas políticas vindouras, com evolução ou revolução:
[...] não há atualmente um governo que realize o regime democrático como o
delinearam os corifeus do liberalismo racionalista [...] o “Estado popular do
trabalho”, uma República ou antes uma federação de sindicatos, de estrutura
essencialmente jurídica, em que o equilíbrio das forças econômicas, morais e
intelectuais do agregado humano resultará da coparticipação no gozo das riquezas,
qualquer que seja o seu aspecto, por todos os indivíduos que as tiverem produzido.
Fora das orientações engajadas diretamente no sindicalismo ou nas lides partidárias,
Tristão de Athayde ressoava o tema do socialismo e da “questão social” ao analisar a obra Clarté
de Henri Barbusse. Tratava-se de se abordar a obra e o engajamento do autor:
Sente-se correr por seus livros um sangue quente de desejo, mas de desejo são e viril,
de desejo fecundante e simples. Ele prega a ruína, mas a quer apressar para a obra
necessária de reconstrução. Os românticos amavam [...] a desordem nas ideias e a
liberdade de sentimentos. Henri Barbusse acentuara o seu amor à razão, sua
confiança no pensamento, seu apego à ordem. – La révolution, c’est l’ordre [A
revolução é a ordem]. Esta frase poderosa resume o seu idealismo positivo56.
Tal “idealismo positivo”, às vezes, poderia prejudicar seu valor literário:
Seu último livro, Clarté, reúne e enfeixa os dois precedentes: L’Enfer e Le Feu.
Delineia-se em sua obra uma severa unidade de pensamento, missionário que é da
Ideia-Nova. Seu proselitismo o conduz, por vezes, ao sofisma especioso e ao golpe
de teatro trivial de dramalhão. O tom de apóstolo que assume nem sempre atrai, antes
irrita. Alma de uma delicadeza doentia, espírito sensível ao mal, o autor de Clarté
aumenta as misérias, só vê as misérias. Há pessoa para quem o mundo é o belo: para
Barbusse o mundo é o feio. A revista Les Marges abriu, há pouco, um inquérito sobre
qual o monumento mais feio de Paris. Barbusse respondeu: _ “Todos”. Essa resposta
não parece sintomática de sua predisposição a dramatizar a realidade?
Tais reparos não impediam o crítico de avaliar que o “volume não pode ser resumido: deve ser
lido” e que seu “amor pelo homem do povo sofredor, vítima do mecanismo social, pelo soldado
raso, pelo proletário intelectual e manual, aguçou-se-lhe o contato íntimo com a tragédia de
1914”. Acerca de suas ideias políticas e sociais, Tristão de Athayde afirmava:
A razão [...] o conduz a modelar a sociedade futura aliás vagamente esboçada em
quatorze ou quinze mandamentos, entre os quais avultam a supressão das pátrias
políticas e de toda hereditariedade social e política e a subsistência da propriedade
fundada no trabalho. [...] Barbusse foi o grande épico da guerra. Será a grande voz
da evolução? [...] Sua fé na remodelação social não é utópica. Ele não crê que
qualquer regime social possa influir na felicidade – “paraíso íntimo e pessoal” -, mas
a “vida equilibrada e cuidada é necessária ao homem para construir a mansão isolada
da ventura”, para “viver a paz e o trabalho justo, a doçura do lar, o conforto geral,
para os inventos, os acordos, as virtudes”. Não é idílico o seu quadro de futuro: é
justo e razoável. [...] Sua filosofia, em L’Enfer e Le Feu, fora a do esvaimento eterno
das coisas do nosso mestre incomparável Anatole France. Em Clarté esse
pensamento se completa pelo esplendor da verdade reacendendo o gosto de viver.
As ideias de Clarté tiveram boa recepção na cultura intelectual brasileira. A emergência
55
56
PIMENTA, J. A luta de classes em face do direito moderno, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 fev. 1921. p. 1
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 jun. 1919, p. 11.
370
do grupo Clarté e suas reivindicações são indissociáveis do impacto que a Grande Guerra tivera
no cenário intelectual francês. Criado em 1919 por Henri Barbusse que, anteriormente, foi um
dos fundadores da Associação Republicana dos Antigos Combatentes (ARAC), não por acaso
livros intimamente ligados à guerra (L’Enfer e Le Feu) prefiguram a origem ao grupo. Apesar
de engajados na revolução, a orientação pacifista do ideário de Clarté ressoa o caráter pósguerra do movimento. Clarté se dizia livre de qualquer orientação partidária, elencava, entre
membros e patronos, nomes como Anatole France, Máximo Gorki, Rosa Luxemburgo, Jules
Romains, Georges Duhamel e outros. Acerca das obras Le Feu e Clarté, Lenin comentava:
Pode-se reconhecer nestes livros uma das confirmações particularmente persuasivas
do desenvolvimento da consciência revolucionária das massas. A transformação de
um representante comum da pequena burguesia [...] em um revolucionário,
precisamente sob a influência da guerra, é mostrada com a força do talento e uma
verdade extraordinária57.
No Brasil, um dos documentos mais marcantes sobre a recepção das ideias de Clarté
é o panfleto assinado pelo paulista Afonso Schmidt e intitulado Palavras de um comunista
brasileiro à liga nacionalista e à mocidade das escolas58. O pequeno volume é dividido em
cinco tópicos: “‘Clarté’ Manifesto dos intelectuais franceses aos seus colegas do mundo
inteiro”; “O nosso apelo”; “À margem de um programa comunista”; “Aos intelectuais
brasileiros de todos os credos” e “Grupo comunista brasileiro ‘Zumbi’”. Este último, com sede
no Rio de Janeiro, estaria em processo de filiação ao grupo francês, de modo que os “brasileiros
poderão colaborar com os intelectuais de todo o mundo no advento da República Universal,
fora da qual não há salvação para os povos”. O próprio título do panfleto revela uma
característica importantes do pequeno manifesto: a nacionalização da “questão social”. Afinal,
parte da argumentação visa refutar a tese de que a questão social seria provocada por imigrantes:
[...] quando se fala em questão social, os conselheiros da República, que continuam
a ser os mesmos da Monarquia [...] limitam-se a repetir o venerando chavão: - “O
Brasil é um país novo, rico e imenso. Quem não puder vencer nas cidades que vá
para o sertão, onde há terra para todos”. E o problema – dizem eles – ficará resolvido.
[...] Precisamos notar que os trabalhadores que da Europa nos chegam são, na sua
maioria, camponeses de pouca cultura que aqui vem receber os primeiros rudimentos
da literatura e da ciência, e isto mesmo quando nos chegam muito jovens. As ideias
libertárias bebem-nas aqui. [...] enquanto o capitalista europeu traz para o nosso meio
a intransigência feroz das classes a que pertencia no seu país de origem, o trabalhador
europeu, pelo contrário, adapta-se logo aos nossos costumes, identifica-se com a
nossa gente e faz causa comum com o proletariado brasileiro59.
O temor em relação ao destino dos trabalhadores estrangeiros era mais que justificado:
Os debates parlamentares envolvendo a discussão de projetos de expulsão de
estrangeiros não eram um fato novo, tendo ocorrido em 1907 e 1913. Mas em 192021, o projeto foi aprovado – considerando o anarquismo crime – permitia legalmente
a deportação sumária de estrangeiros envolvidos em distúrbios e o fechamento de
57
Cf. ORY, Pascal; SIRINELLI, Jean François. Les intellectuels en France, p. 131.
SCHMIDT, Afonso. Palavras de um comunista brasileiro à liga nacionalista e à mocidade das escolas, p. 5.
59
SCHMIDT, Afonso. Palavras de um comunista brasileiro à liga nacionalista e à mocidade das escolas, p. 10.
58
371
quaisquer associações que realizassem atos considerados prejudiciais à ordem
pública60.
O capital internacional ditaria as regras no país, segundo os brasileiros entusiastas de Clarté:
“Esses capitalistas estrangeiros influem diretamente na política interna do nosso país e a
administração pública sofre a sua influência perniciosa e subversiva. Quase todos os nossos
políticos devem favores eleitoreiros às grandes empresas estrangeiras”61. O panfleto enumerava
várias influências, elencando tanto autores da tradição anarquista, quanto figuras associadas ao
comunismo62. Quanto a este, porém, havia o esforço de defini-lo a partir do alinhamento com
os bolchevistas, traduzindo o termo para o português como “maximistas” ou “maximalistas”,
mas que, a fim de evitar confusões, utilizariam o termo comunista63. No sentido de nacionalizar
a questão social no Brasil, enumera-se tanto os inspiradores do movimento quanto seus
membros efetivos, elencando-se nomes como Euclides da Cunha, Rocha Pombo, Ricardo
Gonçalves, José Oiticica, Graça Aranha, Fábio Luz, Marcelo Gama, Augusto dos Anjos, Lima
Barreto, Orlando Correia Lopes, Curvelo de Mendonça, Octávio Brandão, Benjamin Mota,
Avelino Foscolo, d. Maria Moura Lacerda, Astrogildo Pereira, Maurício de Lacerda, Evaristo
de Moraes, Joaquim Pimenta64 e muitos outros.
Em artigo para O Jornal, José Maria Belo repercutia o “apelo de Clarté”:
A chamada questão social não se resume, como se afigura à maioria dos nossos
políticos, a um simples conflito, declarado ou latente, entre operários e patrões, em
que o Estado possa intervir como mediador gracioso [...] Ela existe por toda a parte,
desde que o trabalho de braço ou da inteligência humana se restrinja à função de
escravo dos capitalistas65.
Maria Belo, então, fazia a defesa do novo grupo e aponta suas possíveis limitações:
O apelo de “Clarté” aos intelectuais da América não tem outro sentido senão o de
um toque de reunir a todos os homens de inteligência ou mesmo, de simples boa
vontade. [...] “Clarté” será mais um método do que uma religião fechada [...] O apelo
60
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo, p. 135.
SCHMIDT, Afonso. Palavras de um comunista brasileiro à liga nacionalista e à mocidade das escolas, p. 9.
62
Como é destacado pela historiografia, a imbricação e mesmo confusão entre visões de mundo anarquistas e
comunistas permaneciam mesmo após a fundação do Partido Comunista Brasileiro. O PCB foi fundado em
congresso realizado em Niterói, entre os dias 25 e 27 de março de 1922. O ecletismo teórico pode ser verificado
no depoimento de um dos fundadores do PCB: “Abstraindo do conceito que de mim façam todos os anarquistas
[...], eu na minha consciência sinto-me tão anarquista como os que mais o sejam. Não obstante, estou de acordo
com a Terceira Internacional, e, por consequência, com a Ditadura do Proletariado, porque acho que para os efeitos
da realização do ideal anarquista, são necessárias a centralização e a disciplina e não dispersão e irresponsabilidade.
[...] Eu, sendo anarquista, sou aderente e simpático à Ditadura do Proletariado apenas como um ‘meio’. Assim
sendo, não preciso dizer que nos princípios e finalidades estou plenamente de acordo com todos os anarquistas,
porém, me parece que quanto aos ‘meios’, de dia para dia, a prática e os fatos nos ensinarão quais são os mais
eficazes e seguros”. Cf. KAREPOVS, D. A esquerda e o parlamento no Brasil, p. 43.
63
Explica-se: “A palavra russa Bolshevik pode ser traduzida por maximista e designa o grupo que, num congresso
efetuado antes da revolução, declarou-se a favor do programa socialista na sua máxima expressão. [...] A parte
vencida, os que eram pelo socialismo na sua mínima potência reformadora, passaram a designar-se mencheviki,
ou minimistas. [...] A designação de maximalista corresponde presentemente à de comunista. É esta, portanto, a
que, de preferência, devemos usar para fugir às confusões que tanto agradam aos detratores da nossa ideia”.
SCHMIDT, Afonso. Palavras de um comunista brasileiro à liga nacionalista e à mocidade das escolas, p. 10.
64
SCHMIDT, Afonso. Palavras de um comunista brasileiro à liga nacionalista e à mocidade das escolas, p. 28.
65
BELO, José Maria. O apelo de “Clarté”, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 set. 1921, p. 1.
61
372
de Anatole e Barbusse, secundando na Argentina pelo sr. Ingenieros, não se perdeu
como eu supunha, para tristeza e humilhação da nossa inteligência. [...] Resta, agora,
apenas que ele não se limite a uma simples tentativa literária, tornando-se o que deve
ser – um núcleo de estudo e de ação eficiente que, através das misérias do nosso
empirismo político e do egoísmo displicente das nossas letras, possa dar aos outros
países e a nós mesmos, a certeza de que conduzimos também as nossas pedras para
a edificação da cidade futura66.
Se no contexto francês o grupo Clarté foi ao mesmo tempo algo significativo e estatisticamente
pouco representativo67, no Brasil, além da nacionalização da “questão social”, ele mobilizou
alguns personagens com trajetórias nos meios políticos legais e clandestinos, sendo, assim, um
ponto nodal na história da cultura intelectual brasileira. Conforme nota Karepovs:
A posterior trajetória do grupo “Clarté” levou parte relevante de seus membros a
afastar-se de suas posições de simpatia à Revolução Russa e a defender, a partir de
posturas reformistas [...] a criação de um Partido Socialista, que, como tantos que o
antecederam, acabou não vingando. Mais tarde, no final dos anos 1920, vários de
seus membros acabaram aproximando-se da Aliança Liberal de Getúlio Vargas e,
vitoriosa a chamada Revolução de 30, ingressaram na máquina estatal getulista, o
que levou Hall e Pinheiro a afirmar que o “Grupo Clarté” teria sido, na verdade, mais
que elemento formador do PCB, um precursor do Ministério do Trabalho. No
entanto, parte dos membros de “Clarté”, particularmente os oriundos do “Grupo
Comunista Brasileiro Zumbi”, passou a integrar as fileiras do PCB68.
Assim, se os debates políticos oficiais mantinham-se reticentes frente às demandas políticas e
sociais oriundas da chamada “questão social”, esta ocupava o noticiário e vários espaços de
produção simbólica com diferentes tratamentos no interior da cultura intelectual brasileira.
Sistemas e projetos
Ao tratar da obra de Assis Chateaubriand, A Alemanha, Tristão de Athayde refletia
sobre as causas da Grande Guerra que não poderiam recair sobre apenas um país:
Sei muito bem que atribuir à Alemanha a exclusiva responsabilidade da guerra, como
hipocritamente faz o Tratado de Versalhes, é uma simples manobra do cesarismo que
ditou as condições draconianas de paz, e que as origens do fenômeno, para não ir
mais longe, remontam às duas colunas básicas de nossa sociedade atual – a
propriedade e a soberania – sem cuja remodelação será impossível alcançar qualquer
progresso social e internacional69.
Os temas tratados a partir da “questão social” propiciaram a emergência de uma variada
produção intelectual preocupada em tratar da remodelação do regime político brasileiro. A
República parecia defasada em relação aos processos políticos e culturais noticiados do
exterior. A defesa de Ingenieros de uma “democracia funcional” era uma expressão clara deste
processo. Não se trata do aparecimento de uma originalidade primordial, mas da conformação
de um conjunto de condições políticas, culturais e sociais, nacionais e internacionais, que
confluíram para a estruturação de um campo simbólico preciso que faz a “questão social” se
66
BELO, José Maria. O apelo de “Clarté”, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 set. 1921, p. 1
Cf. ORY, Pascal; SIRINELLI, Jean François. Les intellectuels en France, p. 131.
68
KAREPOVS, D. A esquerda e o parlamento no Brasil, p. 38.
69
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 mar. 1922, p. 1.
67
373
relacionar com a “questão nacional” que, ademais, tomava todos os campos da cultura
intelectual brasileira.
O realismo é também reivindicado, ainda mais do que em outros domínios da cultura
intelectual, no tratamento da reflexão política e social. Há uma profusão de textos e livros que
começam a tratar o país como um problema político a ser resolvido e os programas começam a
surgir ininterruptamente. Sobre uma conferência de Luciano Pereira, O que temos sido e o que
devemos ser, o crítico considera que, se o autor era desprovido de originalidade, ele teria uma
“visão exata de nossas necessidades”. Tratava-se de se golpear de vez qualquer ufanismo:
Se tivéssemos a coragem de confessar que o nosso solo é, em geral, pobre e enfestado
de obstáculos naturais à cultura, que as nossas vias de penetração têm de ser
laboriosamente construídas e custosamente mantidas, que é a imensidão de nossas
distâncias é um mal quase invencível, que os nossos grandes rios são de navegação
difícil e às vezes impossível, que enormes regiões do nosso território exigem um
saneamento rigoroso [...] A nossa grandeza há de ser obtida graças a uma luta
contínua e implacável em que teremos de vencer a natureza e a nós mesmos: a
natureza por ser áspera e difícil; a nós mesmos porque nascemos mais para o
devaneio que para a ação70.
O crítico termina, porém, com a cética afirmação de que se tratava, no caso, de “mais um
programa e um bom programa de construção nacional. Como se sabe, tudo está em realiza-lo”.
Ao tratar do livro de Félix Rodrigues, Velhos rumos políticos, a coisa era distinta.
Tristão de Athayde traça uma reflexão sobre o próprio estatuto do pensamento político no país,
de suas limitações teóricas e epistemológicas:
A teoria política é pouco versada entre nós. Deliberadamente me esquivo de falar em
“ciência política”, expressão tão do agrado de muitos ideólogos e teoristas. É tão
instável o governo dos homens, que à fixidez da ciência se deve preferir a
maleabilidade da arte, ainda em seu conceito menos variável de “teoria”. Não
costuma esta prender frequentemente a atenção dos nossos publicistas, seduzidos de
preferência pelo ponto de vista histórico ou prático [...]. Se passarmos, então, da
literatura jornalística ou parlamentar para a prova de fôlego da literatura livresca,
rareiam de mais em mais as contribuições. À falta, em nosso meio, das “escolas de
ciências políticas”, que orientam os espíritos desde a mocidade, para o debate
teórico, se deve em grande parte essa exiguidade de concurso a uma matéria de tão
alta relevância humana. Formam-se, quase sempre, os nosso estadistas, no
desempenho dos cargos públicos e nas pugnas mesquinhas do partidarismo e da
politicagem, lutando os nossos publicistas, já em plena maturidade, num esforço
inglório e exaustivo de autodidatismo71.
Daí o crítico se dizer surpreso com o aparecimento de uma obra como a de Félix
Contreiras Rodrigues72. Tratava-se de uma teoria do Estado que o considerava segundo sua
forma, regime e sistema. Conforme o próprio Rodrigues: “A forma é dada pela divisão política
e administrativa do Estado. O regime é dado pela determinação da origem da autoridade. O
70
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 abr. 1920, p 2.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 jun. 1921, p. 1.
72
Há poucas informações sobre o autor, cf. CARDOSO, Claudira. Integralismo no processo político gaúcho.
Partido da Representação Popular (PRP). Jaguarão/RS: Selbach & Associados, 2014, p. 105.
71
374
sistema é a entrosagem constitucional de que se serve a autoridade para reger o Estado”. Quanto
à “forma” do Estado, ele defenderia uma “centralização política”, com isso significando a
permanência da unidade nacional num sistema burocratizado e unificado. Rodrigues aí trata do
processo de formação dos Estados nacionais segundo uma “lei histórica da atração nacional”.
A Guerra revelaria o caráter internacional da questão nacional:
A tendência secular para a nacionalização [...] acentuou-se consideravelmente com
a guerra. “A última guerra autoriza a generalizar que a humanidade, ciente dos
resultados da diferenciação política, faz cara-volta [...] enveredando pelo número da
diferenciação étnica... E, de fato, as nações incompletas alargaram os seus círculos,
atingiram os limites extremos, se expurgaram dos elementos estranhos, se
completaram, se nacionalizaram. Fora a Suíça, respeitada na sua formação
espontânea, não há hoje Estado que não seja uma nacionalidade”73.
Esta “diferenciação étnica” marcaria a definição das identidades e horizontes nacionais. O
crítico faz reparos em torno da complexidade que envolveria tal relação entre etnia e nação. Ele
considerava “ridículas” as pretensões de Rodrigues em associar uma identidade entre o mundo
Ibérico e a América Latina, segundo tal aproximação entre etnia e nação que, ademais, o autor
não utilizaria para a América inglesa: “Já somos hoje tão pouco portugueses quanto se
consideram ingleses os norte-americanos, e a nossa nacionalidade tende, como a deles, a
consolidar-se cada vez mais, em torno de elementos variados e convergentes, sem a mínima
relação com a ex-metrópole”74.
O processo de consolidação das nações seria caracterizado por um movimento duplo
de internacionalização constante e de emancipação dos direitos individuais:
Com grande agudeza de visão, mostra o Sr Felix Rodrigues a tendência moderna
para a universalização. Nunca, estando tão desagregado, esteve o mundo mais ligado
do que hoje. [...] Há um nacionalismo exasperado em todas as nações, preso a um
internacionalismo fatal. Nunca os inimigos dependeram tanto uns dos outros,
odiando-se com mais implacável sentimento. E apesar disso e por isso, “a marcha
ascensional da política humana” vai do particular para o geral. Dos Estados para a
Federação, das federações para as alianças, das alianças para a Sociedade das Nações
e desta, verossimilmente, para a “unarquia de todos os homens”. Mas se as
particularidades políticas tendem a desaparecer, cresce o poder dos indivíduos: “A
humanidade ameaça absorver as agregações particulares, os Estados, as pátrias, mas
exalta o indivíduo. O maior apanágio da humanidade é a própria individualidade.
Permitir que cada indivíduo se desenvolva, dilate o seu eu até onde atinja o do
próximo, ou indefinidamente onde o não encontra, de forma a contribuir no que
puder para a expansão geral, eis o que é e o que será eternamente humano”.
O subtítulo da obra de Rodrigues era Ensaio contributivo para a revisão constitucional do
Brasil e, ao desdobrar suas propostas políticas, tal preocupação com liberdades e direitos
individuais se diluem e assumem um caráter secundário, afastando-se mesmo da democracia:
O governo é feito para o povo e no interesse do maior desenvolvimento possível de
cada uma das suas unidades; mas o poder, se repousa no povo, há de ser por
intermédio de órgãos autorizados e depuradores da massa, onde tenha assento a
73
74
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 jun. 1921, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 jun. 1921, p. 1.
375
“qualidade” e não a “quantidade”. “A eleição em si, como iniciativa do povo, não
existe... O povo, entregue a si mesmo, costuma escolher os indivíduos que mais
convém aos seus interesses imediatos; mas isso não significa que escolha os que lhe
são mais convenientes... Que se governe, em virtude do sufrágio universal, a grande
massa dos habitantes de um país, com a preocupação predominante da
preponderância do maior número, muito bem... Mas que, por sua ação, fique excluída
a intervenção segura e permanente do que representa a qualidade nacional, é injusto
e não republicano. Ao contrário, aristocratizando-se a república, tornar-se-á
respublica mais generalizada, mais república, portanto”75.
Dessa forma, acerca do segundo tópico de sua análise, “o regime” defendido por
Rodrigues é uma “aristodemocracia” que teria no Senado o “equilíbrio” qualitativo da
República. O crítico se decepciona com a “solução” proposta pelo autor:
O órgão desse escol será o Senado, escolhido por voto restrito que faça uma “seleção
dos eleitores para elevar o nível dos eleitos no Senado”. Não explica, aliás, qual deva
ser em sua opinião essa seleção, limitando-se a falar em “condições de seleção
exigidas por lei”. [...] É uma falha séria do livro do Sr Félix Rodrigues essa falta de
precisão do que entende por “qualidade”, no seu sistema de governo. Aliás, nada tem
este de propriamente original, a não ser a organização do senado que justamente não
chega a esclarecer [...]76.
A terceira parte de sua análise do Estado e proposta para o Brasil reside no “sistema”, ou seja,
na “entrosagem constitucional” do regime:
A última parte do livro é dedicada à defesa do parlamentarismo, de um lado, por ser
“brasileiro historicamente”, e de outro, sob o aspecto doutrinário, por apresentar
motivos de preferência sobre o presidencialismo, sendo o mais adequado à formação
da unidade nacional e de um escol social, por ter caracteres mais gerais, sendo mais
plástico à evolução social, por tornar mais efetiva a responsabilidade política e
equitativa a representação dos partidos no governo. República unitária,
aristodemocrática e parlamentar, eis a conclusão do Sr Félix Rodrigues, sobre o
sistema de governo mais adequado ao nosso desenvolvimento nacional [...].
Apesar dos elogios à obra de Rodrigues, especialmente por seu caráter claro e preciso, Tristão
de Athayde lamenta que o autor não tenha se desdobrado sobre a constituição deste Senado que
equilibraria os poderes. Retomando seu “eternismo”, segundo o qual “nada é velho em política”,
aludindo ao título da obra Velhos rumos políticos, e que “tudo vai da maneira de compreender
os preceitos de Sólon ou de Licurgo, tudo vai, sobretudo, da maneira de aplicar os ditames das
teorias”, o crítico fala da mais importante “velha novidade” em política à época:
Outro velho rumo político [...] que não mereceu a atenção do Sr Félix Rodrigues,
talvez por julgá-lo revolucionário e dada a sua índole contrária a tudo quanto não
seja pacificamente consagrado pelo tempo, [...] está sendo renovado hoje, ainda em
experiência, e vai certamente introduzir uma grande transformação nos sistemas
constitucionais de um futuro pouco remoto. [...] Essa alteração nos vem da Rússia
bolchevista e por isso vai provavelmente merecer a repulsa imediata de todos
quantos ainda veem a Revolução Russa como um simples acesso de barbaria [...].
Essa alteração [...] é a representação profissional, substituindo a formação
geográfica ou partidária do parlamento. Nenhuma dessas duas espécies representa,
hoje, plasticamente, a sociedade, como teórica e praticamente devem os parlamentos
fazer. [...] O parlamento profissional será o verdadeiro parlamentarismo do futuro
75
76
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 jun. 1921, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 jun. 1921, p. 1.
376
próximo e só nessas condições posso compreender e aprovo a predominância do
escol no governo, como que o Sr Félix Rodrigues.
A obra de Félix Rodrigues propunha uma reavaliação do horizonte político republicano
brasileiro que já não se confundia com as propostas das lides partidárias das oligarquias. O
comentário de Tristão de Athayde, por seu turno, revelava o caráter complexo com que a cultura
intelectual brasileira começava a lidar com os destinos incertos que estariam reservados à
República, especialmente quando situada no interior de um movimento internacional que
parecia irresistível. O crítico destacara a força do realismo que caracterizaria, cada vez mais, as
reflexões sociológicas e políticas como, aliás, já havia verificado na produção literária:
É um sintoma do melhor augúrio observar como, desde Euclides da Cunha ou
Alberto Torres, se vem generalizando essa concepção realista das coisas nacionais
[...]. Foi esse realismo que nos deu [...] o livro tão merecidamente falado do Sr
Oliveira Viana, e este ano o livro tão injustamente calado, embora menos valioso
que aquele, do Sr Félix Rodrigues. É esse realismo que está inspirando a dupla
campanha benemérita, pela política sanitária e pela política econômica, que já
conquistou a consciência nacional e penetrou mesmo as famosas esferas
governamentais, embora anulado ou atenuado por erros de outra espécie77.
A velhice da República verificada desde fins da década de 1910 começa a assumir um caráter
agônico. Uma das produções mais significativas neste sentido é a obra coletiva À margem da
história da República lançada em 1924 e organizada por Vicente Licínio Cardoso. Antes de a
analisarmos, porém, alguns necrológios pedem passagem.
Sobre três necrológios
Dois dias após a morte de Rui Barbosa ocorrida em 1o de março de 1923, Tristão de
Athayde escrevia sobre a dificuldade em precisar o significado de seu testamento:
Até hoje, e hoje mais do que nunca, não tivemos serenidade para julgar esse homem
a quem tudo foi negado, a quem tudo foi concedido, e que nem foi o falso grande
homem dos seus inimigos, nem o grande homem perfeito dos seus amigos. [...] Só o
tempo nos livrará dessa emoção, dessa perturbação inexplicável que irradiava
daquela figura, e tolhia a todos que ousavam defini-la, caracterizá-la, situá-la78.
O político e intelectual baiano era uma lembrança importante da geração da campanha civilista:
Quem de nós, cuja adolescência se escoou pelos dias sombrios do civilismo, não viu
Rui Barbosa surgir como um verdadeiro facho luminoso, acordando em nossas almas
crestadas de ironia e egotismo, um pouco daquela ingenuidade do entusiasmo
impensado, que um racionalismo sutil e demolidor envenenara lentamente de
ridículo. Foi um momento de restauração romântica; um momento apenas, mas que
nos salvou talvez da negação.
O romantismo de Rui Barbosa é assim verificado pelo crítico: “Romantismo político, o seu
infatigável e indestrutível liberalismo; romantismo religioso, a sua evolução do livre
pensamento ao espiritualismo. [...] Romantismo literário, essa prolixidade inesgotável de sua
pena, essa feição tribunícia e ciceroniana que assumiam todos os seus escritos”. O aspecto mais
77
78
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 jul. 1921, p. 1
ATHAYDE, Tristão de. O amigo dos livros, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 mar. 1923, p. 1.
377
destacado pelo crítico na obra de Rui Barbosa é o seu caráter livresco que traria boas e más
características. As primeiras seriam a polidez no caráter, a falta de rancor e o tratamento sem
asperezas, pois “entre os livros é que nasce a verdadeira urbanidade”79. Já dentre as más:
[...] a obra de Rui Barbosa foi toda ela concebida e criada em plena biblioteca. Daí a
raiz principal dos defeitos que lhe há de a posteridade apontar. E daí talvez esse outro
fato paradoxal: esse homem formidável, que perturbou a todos os seus
contemporâneos, que transcendeu do presente, que escreveu sem cessar por mais de
cinquenta anos para erguer uma obra imensa, informe, dispersa, desigual – não
possui o “seu” livro, o livro que seja ele. É a Réplica, para uns. Para outros o Parecer
da Instrução. As Cartas de Inglaterra, para alguns. Nunca chegou a escrever o livro
de sua vida. Talvez porque desconheceu a coragem de ser breve.
Sequer no direito, área a que mais se dedicou, teria Rui deixado uma obra que o imortalizasse.
O crítico parece não encontrar o testamento e o que encontra não pretende guardar para si:
Literariamente, não foi um criador de valores, nem um modelador de beleza, nem
um perpetuador de vidas. Foi acima de tudo – o defensor da língua. A memória
prodigiosa de que era dotado, os longos e continuados estudos empreendidos, o
método rigoroso a que submetia essas investigações, tudo faz desse romântico o
grande clássico vivo da língua. [...] E se não consigo encará-lo como um bom mestre
de estilo, é inegável que revelou a quase todos o imprevisto e a opulência que se
continham nesse instrumento que nunca descansou em suas mãos, nem guardava
mais segredos, afinal, para aquele que o domara.
A insistência em afirmar o romantismo de Rui Barbosa revela a distância que haveria
entre os anseios nascentes àquela época e os ideais que estariam sendo enterrados. O realismo
tão reivindicado não poderia ser expresso segundo a “cultura livresca” a ele atribuída. Mesmo
aquela polidez no tratamento, talvez, não seria mais condizente com os tempos revolucionários
que os jornais insistiam em proclamar. O necrológio de Rui Barbosa é, em certa medida, mais
uma afirmação da decadência da República brasileira tal qual definida nos moldes da
Constituição dos Estados Unidos do Brasil cuja autoria é, em grande parte, atribuída ao político
baiano. Por essas razões – seu romantismo associado a um liberalismo oitocentista, sua cultura
de biblioteca, seu apreço pelos ideais que pareciam ter conduzido a Europa à Grande Guerra Tristão de Athayde, não vendo algo realmente válido no testamento de Rui, considerava que o
recém falecido “não representa para as novas gerações um guia”, mas “apenas um exemplo”.
O segundo necrológio foi o do escritor e militante político francês Maurice Barrès
falecido em quatro de dezembro de 1923. Muito associado ao nacionalismo direitista, seus
últimos dias são retomados por Tristão de Athayde que vê nas diferentes formas com que o
francês se relacionou com a cidade de Veneza um meio de revelar seus “extremos”:
Para os que só de longe o conheceram, a última imagem de Barrès, a mais viva e
cheia de evocações, foi aquele retrato com d’Annunzio num balcão de Veneza. [...]
Veneza foi sua primeira plenitude. Na cidade dos doges, encontraram os seus
atormentados vinte e cinco anos a afinidade que repousa. Mais tarde, foi ele o cantor
de sua Morte80. E é preciso ter sentido pessoalmente o arrepio pungente dessa cidade
79
80
ATHAYDE, Tristão de. O amigo dos livros, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 mar. 1923, p. 1.
Conforme menciona Leo Spitz, com a geração fim de século de D’Annunzio, Barrès, Hofmannsthal e Thomas
378
maravilhosa, única em toda a terra, que lentamente mergulha no Adriático, para ler
dolorido, vencido pela fatalidade, essas páginas de imensa tristeza em Amori et
Dolori Sacrum, que parecem encolher-se de emoção dessa grande frase triste e
verdadeira: “Desespoir d’une Beauté qui s’en va vers la mort” [Desespero de uma
Beleza partindo em direção à morte]81.
A atração da morte em Veneza teria atingido o próprio crítico, conforme suas lembranças82.
O que interessaria era demarcar as duas fases que caracterizariam a trajetória de
Maurice Barrès. A primeira seria a de um intelectual fortemente direcionado por um “culto do
eu”, quando o “individualismo encontrou o segredo de suas inquietações”:
Barrès estreara em 1887, Sous l’oeil des barbares, em páginas de análise rebelde e
penetrante, nas quais se comprazia em fustigar a mediocridade, alimentando o
orgulho de civilizado no escândalo que o seu egotismo provocava. […] Un Homme
libre foi o segundo painel desse tríptico, que se encerrou com Le Jardin de Bérenice,
e naquele volume [...] é que Veneza aparece ainda viva, sem aquele torpor de beleza
agonizante que mais tarde inspiraria o seu canto de Morte83.
Esta faceta de Barrès, “sibarita da análise interior” e “inimigo das leis”, porém, ficara para trás:
Para toda a gente, Maurice Barrès, foi o apóstolo do nacionalismo francês moderno,
o grande culpado do chauvinismo, que mantém aceso na Europa o rastilho das
guerras futuras, o sucessor de Déroulède84. [...] Os homens que trabalham apenas
com os dados do espírito estão fadados aos públicos restritos. As multidões só
glorificam os medíocres, os homens de ação ou, depois de mortos, os gênios que elas
não leem. Mallarmé ou Rimbaud ficaram na primeira fase de Barrès: nunca os seus
nomes conheceram os grandes repúdios e os grande entusiasmos do ar livre85.
Mann, o eixo amor-morte herdado de Wagner e Baudelaire tornou-se a temática por excelência. Antes de Mann,
que publicara a novela Morte em Veneza em 1912, Maurice Barrès, em 1903, lançara Amor et Dolori Sacrum – A
morte de Veneza. Nesta obra, Barrès assim trata do tema: “O gênio comercial de Veneza, seu governo despótico e
republicano, a graça oriental de seu gótico, suas invenções decorativas, eis as sólidas bases de sua glória: nenhuma
destas maravilhas, porém, seria suficiente para fornecer esta qualidade de volúpia melancólica que é propriamente
veneziana. A potência desta cidade sobre os sonhadores está em seus canais lívidos, em suas muralhas bizantinas,
sarracenas, lombardas, góticas, romanas, mesmo rococó, todas molhadas de musgo que alcançam sob a ação do
sol, da chuva e da tempestade, a virada equívoca, quando, mais abundantes de graça artística, elas começam a sua
decomposição. Assim vão as rosas e as flores de magnólia que nunca oferecem odor mais inebriante, nem
coloração mais forte, do que no instante no qual a morte aí projeta seus segredos ardentes e nos propõe suas
vertigens”. Cf. SPITZER, Leo. Essays on English literature. New Jersey: Princeton University Press, 2015, p. 34;
BARRÈS, Maurice. Amori et dolori. La mort de Venise. Paris : Félix Juven, s/d, p. 21-22.
81
ATHAYDE, Tristão de. Os extremos de Barrès, América Brasileira, Rio de Janeiro, ano III, no 25, jan. 1924, p.
12.
82
Por mais de uma vez, Alceu falou da ocasião em que lhe viera o desejo de se matar: “Tenho a impressão de que
fui velho em moço e remocei com a velhice. Já contei ao próprio Papa [...] que aos 20 anos e sozinho em Veneza,
pensei em suicídio pela primeira e última vez em minha vida, exatamente por não encontrar, aos 20 anos, o sentido
profundo de viver. Nessa época, uma das frases que mais me impressionaram foi aquele verso de Alfred Musset
sobre sua própria geração: ‘Nous sommes venus trop tard dans um monde trop vieux’ [‘Nós viemos muito tarde
em um mundo muito velho’.]. Era isso, mais ou menos, o que eu pensava em moço. E comigo grande parte de
minha geração”. Porém, em julho de 1928, dias antes de sua conversão oficial ao catolicismo, o crítico revelava a
Jackson de Figueiredo a sua angústia “E como posso eu, católico, ser cúmplice disto, eu, senhor de escravosoperários em 1928, como o negreiro de 1828, senhor de escravos-agrícolas. Isso é que é realismo, verdade nua.
Ímpetos de suicídio. Meu Deus!”. Cf. LIMA, A A. Memorando dos 90, p. 317-318; Canal Livre. O direito do
homem. 18 de jul. 1981. Entrevista com Roberto D’Ávila. Participantes: Otto Lara Resende, Carlos Eduardo
Novaes, Célio Borja, Lígia Fagundes Telles e Darcy Ribeiro; Cf. FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A.
Correspondência. Tomo II, p. 199.
83
ATHAYDE, Tristão de. Os extremos de Barrès, América Brasileira, p. 12.
84
Barrès, em julho de 1914, tornara-se presidente da Liga dos Patriotas franceses, sucedendo a Paul Déroulède.
Cf. ORY, Pascal; SIRINELLI, Jean François. Les intellectuels en France, p. 105.
85
ATHAYDE, Tristão de. Os extremos de Barrès, América Brasileira, p. 12.
379
O que marcaria tal passagem do individualismo misantropo ao coletivismo nacionalista de
Barrès seria o “Affaire Dreyfus”. A apreciação de Tristão de Athayde acerca do acontecimento,
ainda hoje tido como marco na história intelectual francesa, é a de um divisor de águas:
Para nós aqui, a questão Dreyfus foi simplesmente (se é possível dizer) um erro
judiciário. As cartas de Rui Barbosa e as correspondências do Sr Delgado de
Carvalho para o Jornal de Comércio teceram em torno da vítima uma auréola de
martírio, a mesma que os Zolas e os Clémenceaus pregavam em França. [...] o
problema era muito mais sério e profundo. Foram duas Franças que se ergueram uma
contra a outra. Dreyfus e Esterhazy entravam em cena como meros símbolos de duas
mentalidades que se opunham [...] a França da Tradição e a França da Revolução.
Barrès sentiu renascer, do fundo do seu eu, que ele cultivara com tanto orgulho, e
tanta impertinência, as vozes abafadas e mais vivas do que nunca de sua Lorena
ancestral. E jogou-se em plena ação. Datam dessa época as duas grandes séries de
romances de fixação e de defesa nacional – Le Roman de l’énergie nationale e Les
bastions de l’Est, que gravaram definitivamente a sua figura de nacionalista
intransigente e agressivo86.
O crítico ressalta na trajetória do francês este caráter dividido entre extremos. Uma
divisão que não seria estanque, mas trabalhada reiteradamente, como na afirmação de Barrès
sobre a unidade sua obra: “A tradição reencontrada pela análise do eu”87. Embora não estivesse
nas graças da “nova geração francesa” que, apesar de lhe reconhecer os méritos, “não hesita em
repudiá-lo”, destaca Tristão de Athayde o que haveria de positivo em tal testamento:
Para nós [...] Barrès tem o encanto das hesitações vencidas, do romantismo
dominado mas não humilhado, da razão triunfante mas pela aliança do sentimento.
As incoerências de Barrès, o mistério de suas agitações, a tortuosidade de suas
análises, as desilusões do seu helenismo tudo que ele procurou fundir numa unidade,
por que sempre ansiou sem de todo alcançar, tudo isso é que o aproxima de nós. [...]
Outros serão mestres mais seguros, menos perigosos. [...] Se havia contradição
nesses extremos, ele a procurou conciliar. E quando o não tenha conseguido, deixounos, ao menos, para afinidade e refúgio o espetáculo, sensível a todas as negações,
mas que soube dar vida e plástica às afirmações necessárias da inteligência88.
O terceiro necrológio foi o do celebrado intelectual e militante político Anatole France
falecido em doze de outubro de 1924. É o menor dos três textos de Tristão de Athayde e o mais
direto. Tratava-se aí de se enterrar um dos ídolos mais importantes de sua geração:
Três ídolos seduziram nossa adolescência. Três ídolos que a geração anterior nos
transmite: Anatole França, Eça de Queiroz, Machado de Assis. [...] Três ídolos, sim,
que nos deram, aos quinze e vinte anos, o sabor mais puro da civilização. A herança
maior que recebemos foi, afinal, esta, em literatura. O Brasil é o mau gosto; a arte
brasileira a imitação ou o delírio de possessos. Portugal é o clássico mofado e ilisível,
escrevendo vidas de santos cacetíssimas ou romantizando lacrimosamente episódios
históricos. Aqui e lá, duas exceções, dois mestres de bom gosto, de medida, de
aulicismo, os dois únicos civilizados da língua: Machado e Eça. E acima deles,
mestre supremo, senhor da Irreverência e do Pecado, aquele que escrevia a língua
mais harmoniosa que jamais soara aos nossos ouvidos – Anatole France89.
Tal geração anatoliana guardaria em seu seio o sentimento de ser “civilizada”, de aspirar ao
86
ATHAYDE, Tristão de. Os extremos de Barrès, América Brasileira, p. 12.
Citado em francês.
88
ATHAYDE, Tristão de. Os extremos de Barrès, América Brasileira, p. 13.
89
ATHAYDE, Tristão de. Anatole France, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 out. 1924, p 1.
87
380
universal e em tudo ver o superficial e vulgar. Uma disposição intelectual que consagrava a
dúvida e ridicularizava as certezas: “A dúvida já não era o demônio interior. A dúvida passava
a ser a inspiradora a criadora de coisas eternas, a revelação do mistério inexistente. A Dúvida
era, afinal, a Verdade”90. A metáfora que mais caracterizaria tal posição seria a do jogo:
Anatole France criou em nós o sentimento íntimo do jogo. Todo pensamento se
resumia num jogo admirável de ideias. As coisas eram ou deixavam de ser, à medida
do nosso poder de malabarismo. A verdade perdia a sua austera fisionomia imutável
para multiplicar-se em jogos de luz, em irisações deliciosas da matéria ou do espírito,
em que todas as coisas valiam pelo segredo de beleza que em cada uma delas
sabíamos descobrir. [...] Tudo, nesse plasticismo, nessa volta ao antigo, nessa
reivindicação do clássico, era, no fundo, um jogo de ideias, um sensualismo de
formas. Porque ele amava a realidade pelo que ela lhe pudesse dar de gozo mental
ou de volúpia dos sentidos e não pelo que representava de real.
Ele seria a encarnação do ceticismo que, cada vez mais, Tristão verificaria como uma disposição
não apenas sua, mas de sua geração. A herança aí guardaria bens negativos: “hoje, é com certo
ressentimento que reabrimos esse passado de ontem. Teria esse epicurismo sutil roubado às
nossas almas o gosto amargo de afirmar, dever de agir, a força dos abandonos necessários?”
O necrológio de Anatole France é uma das explicitações da passagem do ceticismo à
angústia no interior da crítica literária de Tristão de Athayde. A dúvida não podia continuar
sendo a “Verdade”, assim como o realismo necessário à formação de uma nova política nacional
não podia ser o liberalismo livresco de Rui Barbosa. O nacionalismo militante de Maurice
Barrès, apesar de todas suas intransigências “irritantes”, parecia ainda guardar um sentido
histórico, especialmente porque dividido entre o comprometimento social e a afirmação
individual. Era cindido por natureza. A angústia, neste caso, é a necessidade de se afirmar algo
sem, porém, saber-se exatamente o que. Angústia de nada, conforme dizia, em 1844, o teólogo
e filósofo Sören Kierkeegard: “a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade antes
da possibilidade”91. Utilizando-se da passagem bíblica sobre a condição de Adão frente à
proibição de provar da árvore da ciência do mal e do bem, o pensador dinamarquês percebe aí
a expressão da angústia: “a proibição o angustia, pois a proibição desperta a possibilidade de
liberdade nele [...] a possibilidade angustiosa de poder”92. O sentimento da angústia propicia a
busca incessante por definições e afirmações que possam saná-lo. Kierkeegard encontra na
união da fé com a angústia um modo para a salvação. Aí há um reconhecimento de se conviver
com a angústia a partir da fé que, retomando Hegel, o autor define como “a certeza interior que
carrega a Infinitude”93. A busca por uma certeza desse tipo, porém, é que faz o caminho
angustiado do cético que, como lembra o autor dinamarquês, pode muito bem, ao invés da fé e
90
ATHAYDE, Tristão de. Anatole France, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 out. 1924, p 1.
KIERKEGAARD, Sören. El concepto de la angustia. Madrid: Espasa-Calpe, 1982, p. 60.
92
KIERKEGAARD, Sören. El concepto de la angustia, p. 62.
93
KIERKEGAARD, Sören. El concepto de la angustia, p. 183
91
381
do “controle da angústia”, encontrar no suicídio94 a sua decisão.
A angústia não permite o sorriso irônico, superior ou civilizado do cético frente ao
“eterno esvair das coisas”. As próprias “coisas” exigem a tomada de decisão do agente indeciso,
atormentado, inquieto diante dessas demandas. O apelo ao realismo se faz segundo a projeção
no presente de um passado e futuro mobilizados para conceder veracidade a sonhos, projetos,
utopias e sistemas almejados pelos angustiados frente a um destino inevitável. O realismo é,
assim, um valor reivindicado na cultura intelectual que, por sua autoridade constituída, procura
afirmar a verdade da angústia comum e, não raro, os caminhos e saídas possíveis. Ao romper o
véu racionalista do ceticismo, a angústia abre espaço à ação, à vontade, ao irracional, à fé, à
loucura, à violência e ao suicídio. “Uma viagem, embriaguez, suicídio...” diz Luís da Silva, o
“Lula”, protagonista do romance Angústia de Graciliano Ramos95. Diferentemente da
disposição cética, não raro acompanhada por uma expectativa pessimista, a angústia abre
espaço à esperança, à ideia de uma possível saída. Uma viagem, uma embriaguez, um suicídio.
A República na Cultura Intelectual Brasileira
O livro À margem da História da República publicado no aniversário de trinta e cinco
anos do regime era anunciado da seguinte maneira na imprensa:
[...] é uma obra de análise profunda, de honesta mas rigorosa crítica. Foi escrito para
afirmar que nós começamos a conhecer-nos verdadeiramente; que compreendemos
nossa grandeza, mas também vemos nossos males; que vamos adquirindo mais clara
visão de nosso passado e de nosso presente, e por isso mergulhamos mais a fundo o
olhar ansiado na perspectiva longa de nosso destino de povo no planeta. É o livro de
uma geração consciente de seus deveres para com a pátria96.
Na abertura da obra, o organizador Vicente Licínio Cardoso apresentava o volume como um
“uma afirmação coletiva de ideias, de crenças, de almejos”. Os autores seriam uma geração:
Reunidos, representam [...] uma geração de homens: a geração que nasceu com a
República, pouco antes ou pouco depois: não viram o imperador, não conheceram os
escravos, não herdaram títulos, nem cargos, nem comissões. [...] são pois
republicanos e democratas na verdadeira acepção do termo, fizeram viver, em suma,
as suas próprias ideias97.
A percepção geracional permitiria a verificação da distinção entre o momento presente e aquele
da proclamação da República. Não se tratava mais de instituir um regime, mas de fomentar o
trabalho intelectual que deveria se engajar no trabalho de se fixar, “no tempo e no espaço, o
pensamento e a consciência da nacionalidade brasileira”98. A competência para tal empreitada
seria garantida por autores que teriam a liberdade de pensamento como característica comum:
94
Cf. KIERKEGAARD, Sören. El concepto de la angustia, p. 185.
Cf. RAMOS, Graciliano. Angústia. São Paulo: Livraria Martins, 1964, p. 9.
96
Edições do “Anuário do Brasil”, Terra de Sol. Revista de arte e pensamento, Rio de Janeiro, Vol IV, nov-dez
1924, p. 140.
97
CARDOSO, Vicente Licínio. Prefácio. CARDOSO, Vicente Licínio (Org.) À Margem da História da República.
V. 1. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 16.
98
Nota do Editor. In: CARDOSO, V L (org.). À Margem da História da República. V. 1, p. 13.
95
382
Agrupados, apresentam todos uma característica comum: não estão presos a
nenhuma escola europeia, ou filiados a nenhum sistema importado. Leram Spencer,
Comte, Le Play, Karl Marx e outros, mas, contrariamente aos predecessores da
geração passada, não são ortodoxos. Leram e admiraram, por outro lado, o nosso
Alberto Torres, mas nenhum se intitula seu discípulo. Descobriram-no de per si,
isoladamente, cada um a seu tempo. [...] São brasileiros: pensam pois como
brasileiros, americanos, latinos e tropicais99.
O impulso do lançamento do volume é a inquietação frente a acontecimentos que
exigiriam uma reação, ainda que sob o lema caro à República brasileira, “ordem e progresso”:
Compreendem, de outro lado, a gravidade de nosso momento histórico presente e
procuram reagir. Mas reagir pelo progresso dentro da ordem, por isso que todos eles
sabem que em Sociologia o caminho seguro para andar mais ligeiro é aquele que
evita os desatinos das correrias revolucionárias perigosas e intempestivas. O livro de
agora será de futuro um prefácio ou um epílogo: prefácio inicial de uma obra maior
exigida pelo ambiente de nossa pátria, ou um epílogo sombrio onde serão inscritos e
conservados os nomes dos visionários tombados por não haverem encontrado o
estímulo, protetor e oportuno; dos aplausos e adesões que lhes tiverem faltado.
Epílogo temeroso ou prelúdio criador, ele marcará porém uma época, definirá uma
geração ou fixará uma data de nossa história100.
Lançada sob o estado de sítio de meados do governo Artur Bernardes, esta obra
constitui-se como uma manifestação intelectual que guardava críticas as mais radicais ao
regime. O governo Bernardes instituíra a censura na imprensa101 logo após tomar posse, em 15
de novembro de 1922. Em julho de 1924, estourava a segunda revolta tenentista. A derrota dos
insurgentes na capital paulista não significara o fim do ímpeto revolucionário e de tal disposição
surgirá a Coluna Prestes102. Neste momento, porém, convém destacar que o Manifesto das
Forças Revolucionárias lançado em 27 de julho de 1924 nas páginas do jornal O Estado de São
Paulo defendia que a luta se fazia em nome do voto secreto, da justiça gratuita, da reforma do
judiciário, de uma “verdadeira democracia”, da “igualdade perante a Lei”, da reforma do
ensino, que deveria acabar com esse “malfadado ensino livresco que tem gerado entre nós, essa
classe [...] que o povo denomina bacharelesca”103. Seu horizonte estava, assim, plenamente
inserido no regime constitucional existente e sequer a questão social era aí mencionada. A
99
CARDOSO, V L. Prefácio. CARDOSO, V L (Org.) À Margem da História da República. V. 1, p. 16.
CARDOSO, V L (Org.) À Margem da História da República, p. 17.
101
Já em 21 de novembro de 1922, a primeira página do O Jornal aparecia com várias de suas colunas em branco,
pois o texto havia sido retirado pela “censura policial”. No dia seguinte, afirmava-se que tal censura foi feita por
engano. Ou seja, censura prévia. Outro ponto a ser verificado é a expressiva diminuição da presença de charges
brasileiras e, posteriormente, de qualquer tipo no periódico. Apenas entre os anos de 1919 e 1922 mais de vinte
artistas brasileiros foram por nós enumerados. A contribuição estrangeira tornou-se cada vez mais expressiva após
as eleições de 1922. Apesar de parecer haver uma relação direta entre o acirramento da censura e a fragilização da
produção chargista, não encontrei suportes suficientes para comprová-lo. Na obra de Herman Lima não há qualquer
referência a tal relação, porém, não há em seus volumes charges sobre Bernardes entre os anos de 1922 e 1925. O
presidente, ainda segundo Lima, teria sofrido as “piores campanhas”, mas já nos momentos finais ou posteriores
ao seu mandato, quando passou a se definir o político da maneira teratológica com “orelhas de morcego, olheiras
de hiena, rabo de demônio e asas de coruja”, Cf. A reunião do Ministério. O Jornal, Rio de Janeiro, 22 nov. 1922,
Rio de Janeiro, p.1; Cf. LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Vol. 4. Rio de Janeiro: José Olympio,
1963, p. 1208.
102
CARONE, Edgar. O tenentismo, p. 73.
103
CARONE, Edgar. O tenentismo, p. 277.
100
383
indignação contra o “bacharelismo” dá bem a ideia de uma revolta quase literária, por assim
dizer, ao fazer deste verdadeiro clichê intelectual, que fora reiterado por toda a Primeira
República, a razão para um levante armado que gerara um bombardeio terrível que por vários
dias assolou a capital paulista104. Nas memórias do movimento de 1924, porém, há
dissonâncias. Como lembra Carone, “não existe tenentismo, mas tenentismos. Tenentistas são
antigos revolucionários, novos adesistas, oportunistas, elementos oligárquicos e tutti quanti que
se acham de dizer revolucionários”105. Nelson Werneck Sodré destaca que:
Se o próprio chefe do levante paulista, o Marechal Isidoro Dias Lopes, teme entregar
armas aos anarquistas, no segundo 5 de julho [o primeiro sendo o de 1922], quando
estes as solicitam, para apoiá-lo na luta, já o General Olinto de Mesquita
Vasconcelos, na retirada de São Paulo, doa terras aos índios das barrancas do Paraná,
concitando-os a “varrer o capitalismo do Brasil”, pois, dizia, “só haverá realmente
povo, quando desaparecerem as castas. O comunismo é o único capaz de resolver o
problema”. Essa proclamação, de 7 de setembro de 1924, era pioneira, no sentido de
pregar “a queda do regime capitalista, o advento, no Brasil, das novas aspirações da
humanidade”106.
Assim, o tenentismo teria conhecido o elogio ao comunismo nas “barrancas do Paraná”. Seria
o caso de uma viagem que revelara a verdade/decisão e dava fim à angústia?
Os que pretendiam, porém, ficar à margem da história da República eram imbuídos de
expectativas, ideias e projetos que podiam se diferenciar em grau elevado do horizonte
constitucional existente. Este, à época, já era alvo de uma série de propostas legislativas de
revisão constitucional que acabarão sendo efetivadas, em 1926, por Artur Bernardes, em projeto
oriundo do próprio Executivo que ampliava o poder central restringindo o dos Estados e
garantia maior autonomia para decretação do estado de sítio. O volume organizado por Licínio
Cardoso expressa tal abertura no interior da cultura intelectual brasileira. Carneiro Leão
apontava alguns pontos críticos do regime eleitoral, numa perspectiva reformista e democrática:
Quando vemos o tamanho da população brasileira – quase três vezes maior do que a
da Argentina – e observamos que, numa eleição renhida como a do nosso último
pleito presidencial, não concorreram às urnas mais de 600 mil eleitores, enquanto,
na República vizinha, foram contados mais de 900 mil votos, na sua derradeira
eleição, percebemos o avanço da cultura política dos nossos amigos do Prata. Ali há
vários partidos, de programas definidos, com deputados e senadores no parlamento,
todos eles disputando renhida e lealmente, pelo voto secreto, as conquistas das
posições políticas. Aqui tem sido o indiferentismo, manifesto em todos os aspectos
da vida nacional, um dos maiores males brasileiros. Não há o controle da opinião
pública. São os clientes políticos, quase os únicos concorrentes às eleições nacionais.
[...] Não é, pois, estranho que sejam os grupos, ainda hoje, os donos do Brasil107.
As principais preocupações de Carneiro Leão se dirigiam à educação no Brasil que, mesmo
com as imprecisões estatísticas, manteria o número de 48% das crianças fora da escola. Celso
104
Cf. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole..., p. 304.
CARONE, Edgar. O tenentismo, p. 13.
106
SODRÉ, Nelson Werneck. A Coluna Prestes. São Paulo: Círculo do Livro, 1971, p. 56.
107
LEÃO, A Carneiro. Os deveres das novas gerações brasileiras. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da
História da República. V. 1, p. 22.
105
384
Vieira também zelava pela Constituição de 1891:
Se há defeitos na relação criada entre o homem e a lei, são nossos: ignorância das
massas, degenerescência política do escol. O pecado mortal desta geração é que o
seu espírito sem ideais, atraiçoando o velho idealismo dos antepassados, não tenha
sabido animar gloriosamente aquele texto108.
Gilberto Amado resumia a história do Brasil do século XIX a uma relação única e
determinante: senhores e escravos. A escravidão era a base de um regime que, mesmo após as
leis de restrição ao tráfico, continuava a importar e a comercializar pessoas escravizadas, se não
numa crescente contínua, ao menos com uma regularidade inglesa. A tese de Amado é a
reiterada adoção no Brasil de instituições que não corresponderiam à realidade do país. Ideias
fora do lugar? Talvez. O problema, porém, era sempre acentuado em sua forma cultural, ou seja,
na constituição do caráter brasileiro no qual a escravidão desempenharia papel fundamental:
A República não pode deixar de ser, portanto, como era a Monarquia [...] se
estudarmos o fenômeno do funcionalismo que apresenta no Brasil o aspecto de um
novo coletivismo, não sonhado pelos comunistas, pois assenta no tesouro público,
veremos que eles têm, a bem dizer, a sua origem na escravidão. Foi ela que tornando
abjeto o trabalho da terra, obrigou a encaminhar-se para os empregos do Estado os
filhos dos homens livres que não podiam ser senhores e que não queriam igualar-se
aos escravos. Sendo o trabalho ocupação de negros, os mestiços e brancos julgar-seiam desonrados nele109.
A reivindicação de Amado é o apelo ao realismo que, em seu caso, significa a formação de uma
“‘elite’ de diretores mentais” que demonstre antes o conhecimento das “realidades práticas do
Brasil” do que a “erudição de constitucionalistas americanos”. Abrasileirar a República é a
divisa defendida. O que implicaria significativas revisões constitucionais em um país cuja
“população é ainda incapaz de exercer seus direitos políticos” e cumprir os seus deveres
cívicos110. J A Nogueira, por seu turno, destaca as perspectivas de representação profissional
expostas em obras como a de Alberto Torres e José Ingenieros. Segundo Nogueira, era preciso
consolidar essa “justiça distributiva”, havendo consequentemente “na orientação socialista uma
parte perfeitamente realizável e que não deve repugnar aos povos mais cultos, contanto que se
extreme das utopias anárquicas do comunismo radical”111.
No mesmo sentido iam as preocupações de Pontes de Miranda que procurava
estabelecer uma “política científica”112 para o país. Neste caso, havia uma verdadeira utopia
técnico-científica advogada pelo jurista. Antes, ele assim delineava o quadro “realista”:
108
VIEIRA, Celso. Evolução do Pensamento Republicano no Brasil. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da
História da República. V. 1, p. 43.
109
AMADO, Gilberto. As Instituições Políticas e o meio social no Brasil. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem
da História da República. V. 1, p. 56.
110
AMADO, Gilberto. As Instituições Políticas e o meio social no Brasil. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem
da História da República. V. 1, p. 59.
111
NOGUEIRA, José Antônio. O ideal brasileiro desenvolvido na República. In: CARDOSO, V L (Org). À
Margem da História da República. V. 1, p. 81.
112
A ideia de “política científica” tivera grande recorrência no país desde os fins do século XIX. Cf. ALONSO,
Ângela. Crítica e Contestação: o movimento reformista da geração 1870, Revista Brasileira de Ciências Sociais,
385
O Estado, esse, no Brasil, sempre foi oligárquico. [...] Não há conservadores, nem
liberais, nem patriotas, nem reacionários, nem subversivos; há egoístas, há
desfibrados, há flexíveis e desmedulados. [...] Dizem que não há razão, no Brasil,
para reivindicações proletárias. Há, sim, e do proletariado manual, do técnico, do
intelectual. O brasileiro é um dos homens mais roubados do mundo: roubam-no, na
teia sutilíssima dos contratos seculares, empresas estrangeiras criadas com o nosso
dinheiro e que, em regra, nunca trouxeram capital; roubam-no os que contam com a
doentia tolerância do nosso temperamento. No interior, a escravidão continua; poderse-ia criar um museu social, com os troncos, os instrumentos de suplício e de tortura,
e o mundo certamente se espantaria de que tudo isso passasse em pleno século XX.
Que nos vale ocupar posições invejáveis e desfrutar copiosos ordenados se
descendentes de homens que vieram da Europa com os nossos avós e mais audazes
do que eles, mais valorosos, porque se internaram no sertão e lutaram com a braveza
da gente e da terra, definham, mal alimentados, nas choupanas imundas e
rudimentares, depois de trabalhar, sem aparo moral e sem conforto, oprimidos e
maltratados, de sol a sol, sob a chuva ou sob os raios ardentes do trópico? [...] Não
há, absolutamente, democracia113.
O intelectual alagoano advoga uma reforma que “desartificialize” o país. Seria chegada a hora
de fazer dos cientistas e “técnicos da vida social” os diretores da sociedade. A “política
científica” seria uma “revolução branca” que criaria uma “Segunda República”. Os temores são
claros, apesar de não o serem as diretrizes de resolução:
Não queremos eliminar o Estado, mas regenerá-lo. Em vez de política especulativa,
como a dos utopistas de 1889 a 1891, a política científica e experimental, eficaz e
prática, que evitará as formidáveis calamidades que nos esperam, quando, dentro de
dez anos, esmagados pela casca artificial e despótica dos dirigentes, sem organização
do trabalho e da indústria, a população brasileira, acrescida da imigração incessante,
utópicas: socialismo puro ou anarquismo114.
Pontes de Miranda começa então a esboçar a sua “política científica” segundo a qual a “escolha
científica dos homens para os diferentes misteres da vida (porém todos igualmente dignos)
constituem um dos pontos capitais”. O teórico defende uma verdadeira engenharia social:
Nas escolas públicas (e não deverá haver escolas particulares ou de privilegiados)
começará a seleção profissional segundo as indicações da ciência, para que a
sociedade não sofra os prejuízos dos erros de profissão e os indivíduos não tenham
de ser castigados pela adoção do ofício que não era o melhor para eles115.
Consequentemente, toda a sociedade seria sujeita a uma planificação “científica” que produziria
estatísticas sobre necessidade de cada profissão em cada região, a orientação profissional seria
um dever do Estado, na medida em que era tomada como um problema de técnica, formandose conselhos de profissão compostos por cientistas, industriais e técnicos. O ensino seria
democratizado e o serviço militar obrigatório. A ciência definiria os melhores segundo a sua
natureza, daí a defesa uso de dados biométricos na adequação de cada indivíduo a sua atividade.
vol 15, no 44, outubro 2000, p. 46.
113
MIRANDA, Pontes de. Preliminares para a revisão constitucional. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da
História da República. V. 2. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 8.
114
MIRANDA, P de. Preliminares para a revisão constitucional. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da História
da República. Vol 2, p. 13.
115
MIRANDA, P de. Preliminares para a revisão constitucional. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da História
da República. V. 2, p. 14.
386
Desse modo, ao invés de legisladores e aplicadores da lei, seriam “os técnicos com a
imparcialidade dos homens de ciência” que deveriam assumir a direção da sociedade. Oito
ministérios seriam formados: da Vida Genésica, Econômica, Intelectual, Religiosa, Estética,
Moral, Jurídica e Política. Trata-se de uma verdadeira utopia tecnocrática.
Sem dúvida, um dos autores que mais reiterou a crítica acerca da existência de um
Brasil “real” e um Brasil “legal” foi Oliveira Viana. No volume À margem da história da
República ele contribuiu com o trabalho “O idealismo da Constituição”. As reflexões de Viana
aí expostas são desdobramentos de ideias que ele já defendera em obras anteriores, como no
manifesto116 O idealismo a evolução política do Império e da República e no volume O povo
brasileiro e a sua evolução, ambos lançados em 1922. Acerca destes últimos, Tristão de
Athayde destacava o lugar diferenciado que Oliveira Viana representaria na cultura intelectual
brasileira, “do lirismo e do pessimismo organizador, que se esboça entre os que estudam hoje o
nosso caso nacional, se destaca, entre os da primeira linha, o Sr Oliveira Viana. Poucos têm
estudado, em síntese, a civilização brasileira com tanta lucidez e objetividade como ele”117. Tal
“lucidez” e “objetividade” seriam empregadas nas análises da sociedade, raça e instituições
nacionais. Tendo em mãos o recenseamento levado a cabo por Bulhões de Carvalho em 1920,
Viana, desta feita, ao contrário do seu livro de estreia, não se restringiria às “populações
meridionais”. O crítico ironizava as definições do “caráter racial” brasileiro aí expostas:
Estudando a evolução da raça, depara-se ao Sr Oliveira Viana a deficiência de dados
exatos. E a propósito, nunca devemos esquecer que todas estatísticas, ainda as mais
verificáveis, são muito aleatórias, pois a exatidão dos recenseamentos se funda,
afinal, no grau de educação do povo, que entre nós ainda é mínimo, especialmente
no campo. Quanto aos dados etnográficos, nada se pôde obter no recenseamento de
1920, pelo temor de prejudicar (pelo preconceito que parece inexistente, à primeira
vista) a obtenção dos outros. De forma que as conclusões do Sr Oliveira Viana só se
podem basear nos dados incertos de 1890, que mostram, entretanto,
inquestionavelmente: “A tendência para a arianização progressiva dos nossos grupos
regionais” cuja diferenciação aliás é sensível, mas que tendem para o tipo ruivo – o
ariano, vestido com a libré dos nossos climas tropicais?
No artigo/manifesto de 7 de setembro de 1922, depois publicado como folheto, Viana
caracterizava a “evolução política” segundo um “movimento contínuo de maré que vai do
regionalismo colonial ao unitarismo imperial, e do federalismo de 89 às tendências cada vez
mais forte de centralização”, na apreciação de Tristão de Athayde. As duas forças políticas
principais do país se conformariam à época do Império, com a formação das linhas dos partidos
conservador e liberal, o primeiro representando o “idealismo orgânico” e o segundo o
“idealismo utópico”. O crítico concorda com a tese geral, embora com restrições:
Trabalharam estes [os liberais utópicos], em regra, sobre ideias bebidas na
organização política da França, da Inglaterra e da América do Norte, ao passo que os
116
117
Cf. BRESCIANI, Maria Stella Martins. O Charme da ciência e a sedução da objetividade, p. 45.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 fev. 1923, p. 1.
387
seus antagonistas procuravam de preferência estudar o meio local para nele procurar
a lição incomparável da experiência e da realidade. A observação é exata, se tomada
por alto e em bloco, pois de fato as transigências foram recíprocas, tanto assim que
coube, em geral, aos conservadores realizar as reformas liberais, como todos sabem,
e aos liberais, muitas vezes, o papel de defensores da unidade, como Feijó, por
exemplo118.
Acerca das conformações políticas do país, Oliveira Viana considerava que os “erros” do
“utopismo federativo” republicano estariam sendo sanados lentamente:
[...] o pais se está reintegrando, aos poucos, na sua primitiva unidade, sob a ação
poderosamente articulada de sua rede ferroviária... quer dizer que o majestoso
edifício da nossa unidade política, que o Império não pôde assentar senão sobre uma
base artificial, começa agora a assentar-se sobre as suas verdadeiras bases, que são
as de uma circulação política tanto quanto possível eficiente e completa.
Já no texto de 1924, O idealismo da Constituição, o autor tratava da carta magna da
República que, desde sua criação, ou seja, da Assembleia Constituinte, fora inferior ao processo
de formação da Constituição imperial de 1824. Assim, a República passa a ser submetida a uma
crítica essencial, radical, que denuncia o “embuste” que traz na origem:
Na Constituinte Republicana, nada disto. Já as próprias fontes da sua autoridade não
eram de pureza absoluta: o mandato que receberam não lhes vinha de uma delegação
nacional, comparável a de que resultara a Constituinte Imperial; mas, sim, de um
embuste formidável, conscientemente preparado através do famoso “regulamento
Alvim”, com o fito declarado de abafar qualquer manifestação do povo contrária à
ideia republicana. [...] Por isto, os expoentes do ideal republicano, na Constituinte
ou fora dela, não pareciam muito senhores da sua ideia matriz: a impressão que nos
dão é que não sabiam bem o que queriam, nem bem o que era preciso fazer. [...] Eles
se haviam contentado até então com um vago programa de aspirações, vagamente
formulado em frases vagas: os “imortais princípios”, o “regime da opinião”, a
“soberania do povo”, a “organização federativa”, o “princípio da liberdade”, a
“democracia”, a “república”, etc. O manifesto de 70 é um magnífico exemplo desse
culto das generalidades sonoras, que constitui o fundo da mentalidade dos
republicanos da propaganda. [...] O traço mais distintivo dessa mentalidade era a
crença no poder das fórmulas escritas. Para esses sonhadores, por em letra de forma
uma ideia era, de si mesma, realizá-la. [...] as palavras tinham o poder mágico de dar
realidade e corpo às ideias por elas representadas. [...] Excelentes tradutores dos
males estranhos; péssimos intérpretes dos nossos próprios males119.
Os princípios que norteariam a Constituição republicana assumem o caráter de fórmulas
mágicas e de feitiços que ludibriariam os seguidores crédulos:
Por aquela época, a crença nas virtudes do Liberalismo, do Federalismo e da
Democracia era tão profunda como a dos feiticeiros nas virtudes dos seus esconjuros
e das suas mandingas: a mais leve expressão de dúvida sobre a excelência destas
fórmulas políticas acarretaria para o dissidente as agruras da lapidação; quando
menos, ele sofreria a dor de se ver alcunhado de “retrógrado” – ofensa tremenda para
aqueles tempos. [...] Veio a República. Veio a Democracia. Veio a Federação. E para
logo se levantou um sussurro de desapontamento do seio da turba fanatizada – e esse
desapontamento se acentuou, com o tempo, numa permanente desilusão. [...] Os
Cristos da Nova Revelação foram justamente os que mais alto fizeram ressoar o
118
VIANA Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 fev. 1923, p. 1.
VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da História da
República. V. 1, p. 104-105.
119
388
refrão do seu desânimo. Não era esta a República dos meus sonhos! Diziam,
sucumbidos. E suspiravam com melancolia120.
O ideal republicano não se adequaria nem à “estrutura da nacionalidade” nem ao seu “espírito”.
Proclamada no ano seguinte ao da abolição da escravidão, não poderia haver pior momento:
No fundo, a abolição do trabalho escravo desorganizara o sistema de meios de vida
da aristocracia nacional – e a República a encontrou na situação de quem procura
“urgentemente” uma nova base econômica. [...] Tanto mais quanto essa aristocracia,
deslocada da sua grande indústria da terra, passou a encontrar no Estado uma nova
base econômica que lhe substituiu a antiga base econômica destruída. Essa nova base
econômica foi a indústria do emprego público, que o novo regime fundou e que se
tornou para a grande aristocracia nacional mais vantajosa e lucrativa do que a velha
indústria da exploração da terra, então profundamente desorganizada. [...] Nestas
condições, os cargos públicos – administrativos ou políticos – passaram a ser
disputados, não como meio mais eficiente para realizar o “ideal”, o “sonho”, mas,
pura e materialmente, como meio de vida121.
Assim, a República, já em seus primeiros dias, conhecera duas “correntes de opiniões” ou “duas
atitudes típicas” que ainda dividiriam os republicanos:
[...] a dos “intolerantes”, que atribuem a falência do regime à corrupção dos que
detêm eventualmente o poder, e a dos “tolerantes”, para os quais a falência do regime
era apenas aparente, porque oriunda da falta de “experiência” ou de “aprendizagem”
das novas instituições”122.
Os primeiros faziam a defesa da “força” e da “violência” como meio de “dar realidade à
ideologia da Constituição” através das “salvações”123, mas que, segundo Viana, tais “tentativas
do partido da Força” eram “invariavelmente coroadas pelo fracasso”. Já os segundos
acreditavam que o “tempo” seria o meio necessário para que o regime atingisse a sua plenitude,
assumiriam certa postura “fatalista” e se resignariam a “esperar messianicamente na ação do
grande milagreiro”124. Em ambos os casos, a República era algo que não havia dado certo.
Viana acentua que a “causa mais profunda” que explica tal “incapacidade” e
“insucesso” do regime não estaria na fraqueza da força nem na escassez de tempo, mas no
“desacordo entre o idealismo da Constituição e a realidade nacional”. Assim, o apelo ao
realismo faz com que aquilo que existe concretamente assuma um caráter fictício, ideal e irreal.
Os modelos dos governos ingleses e norte-americanos não poderiam ter realidade entre os
brasileiros. Especialmente acerca da “opinião pública”, que Viana situa como peça fundamental
das democracias modernas, o autor tece os seguintes comentários:
120
VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da História da
República. V. 1, p. 107.
121
VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da História da
República. V. 1, p. 107.
122
VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da História da
República. V. 1, p. 109.
123
“Salvação” era o nome que se dava às intervenções militares da União em casos de problemas de sucessão ou
consolidação dos poderes estaduais, algo que ocorrera já no início da República. Cf. VISCARDI, Cláudia. O teatro
das oligarquias, p. 202.
124
VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da História da
República. V. 1, p. 109.
389
O “regime da opinião” na Inglaterra não resulta, pois, exclusivamente do fato dos
cidadãos ingleses terem a prerrogativa de escolher, pelo direito do voto, os
representantes do poder; mesmo sem o direito do voto, essa poderosa solidariedade
de classes, esse espírito popular, militante e infatigável, acabaria por obrigar, pela
simples força moral da sua opinião, os detentores do poder e a classe propriamente
política a considerá-lo, a ouví-lo e a atendê-lo. O regime de opinião preexiste à
prerrogativa eleitoral – e a sua razão de ser está nestes dois atributos intransferíveis
do cidadão inglês: sua índole ativa e combativa (a aggressive vitality, de Whitman),
por um lado: por outro, o espírito de solidariedade, o sentimento instintivo do
interesse coletivo, aquilo que van Dyke chama – the spirit of common order and
social co-operation. Estes dois atributos – um de natureza biológica, porque se
prende ao temperamento da raça, outro de natureza moral, porque se prende à
formação social e política do povo – é que asseguram à democracia inglesa esta
surpreendentemente vitalidade, que faz a admiração e também o desespero de todo
os povos não saxônios do mundo125.
O “realismo” de Oliveira Viana acentua a diferenciação cultural entre os povos fazendo com
que cada nação deva encontrar o regime político que seja adequado às suas condições
especificas, ao seu caráter. No Brasil, não haveria solidariedade de classe, nem classes
organizadas, à exceção da militar, nem organização da opinião pública. O problema do país é
visto segundo a formação do caráter do brasileiro que nas eleições revelava-se exemplarmente:
[...] o eleitor vai à urna para comprazer o chefe local, ou porque aí o leva o boss do
partido; nunca, porém, por um impulso superior de civismo, por um movimento
espontâneo de sua consciência – para o fim de constituir os órgãos do governo
político da sociedade. Ir às urnas, como servir o júri, como exercer qualquer cargo
não-remunerado, mas benéfico à coletividade, representa tudo isto, para 99% de nós
brasileiros, um “sacrifício”, um “incômodo”, uma “maçada”. Este é um dos traços
mais característicos da nossa psicologia social [...]126.
Ao contrapor as características dos brasileiros àquelas das “raças germânicas” e da
“raça inglesa”, Oliveira Viana explorava um caminho de longa tradição na cultura intelectual
brasileira, qual seja, a definição do estatuto da modernidade brasileira e do “caráter nacional”.
A privatização do público é delineada como uma característica distintiva dos brasileiros:
[...] o monopólio dos órgãos do poder pelas pequenas parcerias politicantes, que
entre si distribuem os cargos públicos; consequentemente, os congressos federais
unânimes, as assembleias estaduais unânimes, as câmaras municipais unânimes; e,
portanto, a inevitável subordinação de todos esses corpos legislativos e
representativos aos chefes do executivo municipal, do executivo estadual e do
executivo federal. Tudo isto são fatos naturais, perfeitamente lógicos, num povo que
não tem – nem podia ter – nem espírito democrático, nem sentimento democrático,
nem, portanto, hábitos e tradições democráticas. Fazendo dos cargos públicos e,
consequentemente, do tesouro público coisa da sua propriedade privativa, os nossos
clãs partidários, que manipulam o governo da União, dos estados e dos municípios,
estão na mesma situação de um indivíduo que se apoderasse de uma res derelicta127.
A formação das oligarquias não seria algo condenável, pois, “num povo como um nosso”, elas
125
VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da História da
República. V. 1, p. 111.
126
VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da História da
República. V. 1, p. 112.
127
VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da História da
República. V. 1, p. 113.
390
eram inevitáveis e, até mesmo, necessárias. Tudo estaria em “educá-las”, “discipliná-las” a fim
de “reduzir o seu mal”. Para isso, várias reformas seriam necessárias e, fundamentalmente,
acabar com um espírito de expectativa que anseia pela chegada de um “governo patriótico”:
Nós, com efeito [...] nós, brasileiros, vivemos budicamente mergulhados nessa doce
expectativa utópica de esperar do “patriotismo dos governos” – um patriotismogeração espontâneo, de origem endógena, sorte de factus animi lucreciano, surgido
das próprias entranhas dos patriotas que governam!128
Se, conforme apontara Tristão de Athayde acerca dos trabalhos de 1922 de Viana, o autor se
dedicara antes à “crítica dos erros” do que aos “remédios sugeridos”, a situação em 1924 era
distinta. De fato, nesta ocasião, Viana apresenta algumas propostas que teriam, a seu ver, o valor
do “realismo” e não se tratariam de concepções oriundas de idealismos, “dedutivismos” e
noções sem objetividade. Como a maioria da população brasileira e, portanto, do eleitorado
residia em áreas rurais sob o domínio de senhores que teriam o poder de expulsar de suas terras
os trabalhadores que discordassem da situação em que viviam, era preciso criar condições que
proporcionassem a emergência da formação da opinião pública:
Ora, os meios mais eficazes para assegurar essa independência não serão, por certo,
o “sufrágio universal”, nem a “eleição direta”, nem o “voto secreto”, nem o “selfgovernement local”; mas sim outros meios, de natureza econômica e social: o
estabelecimento da “pequena propriedade”; um sistema de “arrendamentos a longo
prazo” ou um “regime de caráter enfitêutico” a difusão do “espírito corporativo” e
das “instituições de solidariedade social”; uma “organização judiciária” expedita,
pronta e eficaz; uma “magistratura autônoma”, com força moral e material para
dominar o arbítrio dos mandões locais, etc. nenhuma dessas reformas tem qualquer
caráter político ou constitucional; mas somente elas serão capazes de dar à nossa
plebe rural, base do eleitorado nacional, esses indispensáveis atributos de
independência e altivez, sem os quais a famosa “soberania do povo” não tem
significação alguma129.
Tristão de Athayde via no autor o realismo nacionalista: “Só quem desconheça totalmente a
nossa realidade nacional e continue a acreditar nessa política de exemplos estrangeiros [...]
poderá negar a procedência das justas observações do Sr Oliveira Viana”130.
O comunismo à deriva
Os “exemplos estrangeiros”
poderiam ser tanto aqueles
do liberalismo,
republicanismo, federalismo e democratismo, que fundamentariam a “ultrapassada” República
brasileira, quanto as ideias “novas” noticiadas em torno do comunismo russo e do fascismo
italiano. Sobre este último, desde 1921, falava-se da “tática dos fascisti”, de uma “nova força”
capaz de “opor-se aos comunistas que se haviam desencadeado no país”:
Não são, porém, apenas os políticos, pertencentes aos partidos moderados, e
principalmente os burgueses, que elogiam a ação dos “fascisti”: homens
128
VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da História da
República. V. 1, p. 116.
129
VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. In: CARDOSO, V L (Org). À Margem da História da
República. V. 1, p. 117.
130
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 fev. 1923, p. 1.
391
naturalmente calmos e sensatos, homens de estudo e de gabinete, que vivem alheios
às preocupações eleitorais, rejubilam-se e felicitam a pátria por terem os “fascisti”
entrado em cena131.
Com o passar dos anos, noticiava-se que o fascismo contava com um milhão e meio de
associados132, inclusive com a formação de núcleos no Brasil, que a “imprensa italiana” em São
Paulo seria “toda fascista”, criando-se uma segunda imagem negativa (a primeira se referia aos
antigos anarquistas) dos imigrantes daquele país conforme sentenciava um cronista: “só os
italianos é que procuram estabelecer ‘fascios’ para dificultar a nacionalização e criar embaraços
políticos para o futuro”133. Via-se a “agressividade do fascismo” com admiração e repulsa:
O “fascismo”, na sua vitalidade, na sua atuação eficiente e profícua, recorda o
apólogo do feixe de varas, que quebravam, com facilidade, uma a uma, mas que eram
inquebráveis quando reunidas, quando se apresentavam juntas, em um só feixe.
Quando o “fascismo”, na sua obra de fortalecimento das energias italianas, que
pareciam soçobrar ao influxo das ideias do comunismo, haja atuado, assim, sob a
inspiração do seu chefe, do seu Duce, só é para louvar, sendo deveras plausível essa
concentração de elementos que fizeram o triunfo rápido dos “camisas pretas”. [...] A
dedicação inteligente e raciocinada é tão nobre e louvável quanto é perniciosa a
intolerância na defesa dos ideais, a agressividade aos que não concordam com os
princípios esposados pelos correligionários, os atentados à liberdade de pensamento
e à liberdade de crítica dos que dissentem dos nossos pontos de vista. O aspecto
antipático do “fascismo”, mesmo na sua atuação magnífica dentro da Itália, é o
dessas explosões que tanto o desrecomendam à civilização dos dias que correm. [...]
que os apologistas da obra renovadora do primeiro ministro italiano queiram
transplantar peara terras estranhas, onde são hóspedes, esses processos de coação e
de violência, para a imposição de seus ideais, é o que se não pode admitir em um
país republicano, em que se assegura a brasileiros e estrangeiros todas as garantias
de liberdade, amplas, ilimitadas, a não ser pelas leis e pela liberdade de cada um134.
Os telegramas, à época, noticiavam a posição do Centro Católico afirmando que “o Fascismo
merece a adesão de todos os católicos sinceros, pois que ele, pela primeira vez na História,
ousou combater a Maçonaria, numa luta contínua e árdua, que ainda perdura, porque os maçons
de ontem continuam maçons hoje”135. Apesar de, no fim dos anos 1920, jornais ingleses ainda
escreverem que o fascismo era uma “loucura temporária, como a mania da dança medieval na
Itália”136, no Brasil, em meados da década, assistia-se à conversão ao credo italiano de uma
figura como a o humorista Mendes Fradique, pseudônimo do médico Madeira de Freitas, autor
de obras como História do Brasil pelo método confuso137 e cronista do O Jornal. Ele se
dedicaria a campanhas políticas ardorosas138, mas, no início de seu fascínio pelo fascismo,
131
Notas Alheias. A tática dos “fascisti”, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 jun. 1921. p. 1.
O fascismo conta com 1.500.000 partidários, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 nov. 1926, p 16.
133
AMARAL, J B S. O fascismo e a nacionalização dos imigrantes, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 set. 1926, p. 4.
134
A AGRESSIVIDADE DO “FASCISMO”, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 set. 1926, p 4.
135
O centro nacional católico e o fascismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 jan. 1927, p.1.
136
O “Star”, de Londres, prediz a queda de Mussolini ante a criação do Grande Conselho Fascista, O Jornal, Rio
de Janeiro, 23 set. 1928, p. 1.
137
Cf. LUSTOSA, Isabel. Brasil pelo método confuso – humor e boemia em Mendes Fradique. Rio de Janeiro:
Bertrand do Brasil, 1993. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 dez. 1921, p 1.
138
Isabel Lustosa relata como Madeira de Freitas convertera-se ao catolicismo e tornara-se integralista nos anos
1930, tendo sido preso e ficado paralítico. Cf. LUSTOSA, Isabel. Brasil pelo método confuso – humor e boemia
132
392
mantinha um pouco de bom humor: “Em matéria de defeitos graves, descobrimos em Mussolini
apenas três: não ser imortal, não ser brasileiro e gostar dos versos do Sr. Marinetti”139.
Tristão de Athayde, no período abordado, tratara do fascismo apenas em passagens
rápidas, considerando-o, por exemplo, como uma “barbaria da direita”140. Era o comunismo
que lhe chamava a atenção, como atesta uma série de quatro artigos de meados de 1925. Tratase de um trabalho muito significativo no interior da cultura intelectual brasileira que, além de
expressar a importância que os processos políticos internacionais tinham na definição
identitária nacional, revela o esforço para se construir uma visão minimamente objetiva,
“realista”, acerca de uma realidade obscura não só para os brasileiros. Assim, a reflexão sobre
o comunismo em sua feição “real”, ou seja, na maneira como ele era levado a cabo na Rússia,
tinha como impulso primordial a condição indecisa e angustiante que começava a se tornar
patente nos escritos do crítico acerca da realidade nacional. Tal situação gerava uma análise
estruturada em suas fontes de percepção, mas com juízos determinantes segundo sua orientação
decisiva. Sua abordagem dos sovietes assim se inicia:
Homens de terra firme e homens do mar alto... É exato. Sempre que penso nos
homens de hoje, especialmente nos homens de hoje, a imagem do mundo me ocorre.
Continentes e oceanos. De um lado, os homens que já coordenaram as suas ideias e
que se submeteram a uma doutrina. Aqueles que se acolheram e um sistema geral do
mundo, a uma estrutura completa de ideias – o catolicismo, sobretudo, ou o
socialismo, o positivismo etc. -, para melhor expandirem o seu pensamento. Homens
da terra firme. De outro lado, os que, pelo contrário, ainda navegam angustiosamente
de porto em porto à busca de um porto; os que viajam por diletantismo; os
milionários que peregrinam por excesso de dinheiro; os miseráveis que se engajam
a bordo por falta de pão... Homens do mar alto. Para estes, que ainda vagam à procura
de um porto ou desiludidos de todos eles, é que os faróis são necessários. Mesmo
para os outros o são... Mais ainda para nós, porém, que ainda não conseguimos
chegar àquela terra firme ou que acreditamos ser possível viver sem certas
abdicações definitivas141.
O próprio crítico indaga-se acerca da seriedade de tais preocupações. Haveria tal “risco” para
o Brasil? Gilberto Amado uma vez dissera que não haveria razões para se cuidar ou descuidar
de manifestações maximalistas no Brasil, pois se tais ideais vencessem na França, na Inglaterra
ou nos Estados Unidos, fatalmente por aqui se adotaria o novo regime “de um dia para outro,
haja ou não preparo ou propaganda”142. Apesar de atuar praticamente na ilegalidade, o PCB
articulava-se em campanhas e associações políticas, inclusive com a controversa Confederação
Sindicalista-Cooperativista Brasileira (CSCB)143, atuava na imprensa144 e lançava programas
em Mendes Fradique. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1993, p. 241-242.
139
FRADIQUE, Mendes. Mussolini, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 abr. 1927, p. 5.
140
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 set. 1922, p. 1.
141
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Comunismo I, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 jul. 1925, p. 4.
142
Cf. AMADO Apud. MARTINS, W. História da inteligência brasileira. Ponta Grossa: UEPG, 2010, p. 208.
143
Cf. GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo, p. 149-150.
144
Cf. GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo, p. 147.
393
de campanha145. A este respeito, Ângela de Castro Gomes considera que “no que se refere à
divulgação de textos teóricos e de artigos de doutrina e propaganda, não há dúvida de que o PC
foi bem-sucedido”146. Em 1925, o acadêmico best-seller Afrânio Peixoto lançara o romance As
razões do coração que retomava os ambientes urbanos e dos salões da burguesia carioca
expostos na obra A Esfinge. Muitos personagens reapareciam no novo livro. Dentre eles, o velho
Dr Lisboa que, no livro de 1911, representava uma espécie de sabedoria sobranceira, crítica e
um pouco cética. No volume de 1925, Dr Lisboa aparece debatendo com o pragmático poeta
acadêmico Luís Macedo e com o Conselheiro Machado acerca do comunismo. É de Macedo a
primeira voz reproduzida por nós, seguida pela de Lisboa:
_ Bem achado. Governar é explorar a todos, em proveito de alguns... A velha lei da
biologia – o parasitismo...
_ Não é outra coisa. Seja o rei absoluto, pela vida, e com a sucessão hereditária, ou
o presidente nas repúblicas presidenciais, com sucessão indicada, seja o rei
constitucional hereditário, como nas monarquias representativas, ou presidente eleito
como nas repúblicas parlamentares – isto não tem importância, questão de tempo, de
herança, de indicação ou eleição, mas o fato essencial é este: cobrar impostos, de
todos, dá-los, em empregos, a alguns. Por isso, quando chegar a vez do comunismo,
em que todos devem trabalhar para si, e portanto para todos, em vez de todos
trabalharem para alguns que não trabalham, os governos se hão de unir
clamorosamente contra essa restituição, de justiça e de probidade.
_ Já se disse que toda revolução é apenas uma transferência de capitais, de uma a
outra classe... a ditadura do proletariado valerá a da burguesia, de hoje, como esta
vale a da nobreza, de ontem...
_ Não; em cada revolução há uma evolução. O terreno adubado da economia dá as
plantas dos costumes e dos hábitos sociais, que florescem nas artes, na justiça, na
felicidade humana. Sempre conseguimos alguma coisa a mais, e para melhor. Com
o comunismo, o trabalho imposto a todos, não haverá a posse privada, e portanto, o
capital; não haverá o parasitismo civil e militar, isto é, a burocracia, a administração,
a polícia, o exército, a armada, portanto as guerras, que são os pretextos para a
existência destes funcionários. Redimida a mulher pelo trabalho, terá a
independência de escolher o seu companheiro, o casamento durará enquanto se
amarem, e os dois farão por isso, pois já não terão o privilégio da indissolubilidade...
_ E os filhos? perguntou o Conselheiro, entre irritado e irônico. _ Os filhos se opõem
a essa dissolução...
_ Os filhos não serão dos pais, senão temporariamente, se esses o merecerem, ou
puderem. Os filhos serão do Estado. A notificação da concepção será compulsória.
Desde aí a lei velará pelo futuro cidadão, protegido no seu direito de viver, contra o
abortamento e o parto prematuro. Receberá a gestante um estipêndio e será paga para
criar e amamentar o filho, filho do Estado, sempre sob a vigilância médica e
pedagógica da autoridade. A educação será uniforme para todos os cidadãos, para
impedir a formação de classes, endereçados os indivíduos para as profissões,
segundo as suas aptidões naturais...
_ E a ternura humana onde fica, “seu” comunista? interrompeu ainda o Conselheiro.
– Os pais não poderão manifestá-la aos filhos?
_ Contanto que os não desviem dos preceitos comuns, de higiene, de educação, de
civismo. O que se chama ternura dos pais é muitas vezes a tirania do egoísmo deles,
como se a criatura que chamaram, sem o querer aliás... que chamaram à vida,
também não tivesse direitos... Foi uma mulher, e mãe, e com talento para se exprimir
145
146
Cf. KAREPOVS, Dainis. A esquerda e o parlamento no Brasil, p. 69-70.
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo, p. 147.
394
pelas outras, quem disse: “ser mãe... é, em troca do dom da vida, ter o direito de
morte sobre a criatura. E usar dele”. Não, isto não será mais possível. Os pais
indignos, incapazes, imprudentes, ignorantes, serão privados de fazer mal; os outros,
vigiados, instruídos, responsabilizados, se quiserem, até certo prazo, e sob certas
condições, poderão guardar os filhos, os filhos do Estado, - que pagará para se
criarem homens e mulheres dignos desse nome, enquanto hoje paga a funcionários e
soldados, para não fazerem nada, ou nos fazerem mal147.
Assim, o comunismo invadia várias áreas da cultura intelectual brasileira, do noticiário às
campanhas políticas, das sínteses sociológicas aos romances mais vendidos. Cada um com sua
visão e imaginação sobre o que seria ou viria a ser tal entidade contemporânea.
Frente a tal profusão, Tristão de Athayde procura acentuar a força do comunismo no
interior da cultura ocidental, vendo o fenômeno como um grave perigo que:
[..] ameaça destruir a estrutura e sobretudo o espírito da sociedade ocidental, que o
mundo moderno já tem corrompido e abalado por tantas formas [...] Fantasia? Uma
fantasia que tem raízes mestras de um século, e que dura, mais ou menos realizada,
há oito anos, e não apresenta sinal algum de fraqueza. Perigo remoto? O comunismo
já tem grupos militantes e numerosos, decididos a tudo, espalhados por todo o
mundo. [...] O comunismo está nessa alternativa: ou para viver organiza a revolução
mundial, ou se resigna ao isolamento e provavelmente morrerá de asfixia. Já o
previra o próprio Marx. E, por isso, tendo o governo de Moscou desistido, por ora,
de derrubar de frente as nações ocidentais, começa agora a atacá-las corajosamente
pelas costas, pelo Oriente, pelo mundo muçulmano, pelas colônias, pelos fanatismos
asiáticos e africanos. Pelas próprias raízes do poder econômico ocidental. Como a
luta está aberta, devemos ter a consciência clara do mal para não vacilar148.
Se antes o crítico falava em aprender com o regime dos bolchevistas, a posição agora se tornou
muito clara: há uma luta em curso e faz-se necessário se posicionar. Não se trata, porém, de um
panfleto anticomunista. O próprio advento do regime é visto com o realismo de um processo
com bases na história moderna e com a inevitabilidade dos destinos necessários e angustiantes:
[...] temos de compreender que o que se está passando na Rússia não é, como muitos
querem fazer crer, um fenômeno puramente eslavo ou restrito em sua evolução. O
fenômeno é humano, universal. [...] Será talvez um episódio capital da grande
revolução social que o século XX vai possivelmente operar na estrutura da sociedade
ocidental. E digo ocidental, e não apenas europeia, porque no caso em que essa
evolução radical se opere, realmente, teremos, nós americanos, certa transformação
também a sofrer. Estaremos realmente no pórtico da grande revolução, que vai
destruir e substituir o democratismo parlamentarista e mais ou menos liberal do
século XIX? Pelas linhas que já começam a esboçar-se, essa revolução tem um duplo
ponto de partida; a revolução de baixo para cima e a revolução de cima para baixo.
Ambas substituindo os métodos indiretos pela ação imediata. Ambas partindo de
uma visão realista dos fenômenos sociais. Ambas compreendendo que acima do
conceito “abstrato” de “liberdade” – que o democratismo colocara como ideal social
– está o conceito “concreto” de “necessidade”.
Toda a tradição liberal e democrática que desde o século XVIII teria ganhado fôlego parecia
estar ameaçada. Seria o fim de uma época, de uma era, de uma civilização. Questiona-se sobre
o futuro de um presente que se mostrava instável e cuja falência parecia ser questão de tempo:
147
PEIXOTO, Afrânio. As razões do coração. In: As razões do coração. Uma mulher como as outras. Rio de
Janeiro: INL, 1976, p. 72-73.
148
ATHAYDE, Tristão de. O Comunismo I, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 jul. 1925, p. 4.
395
Ao Estado Retórico Jurídico de hoje substituir-se-á o Estado Utilitário e Moral de
amanhã? Passarão as Declarações de Direitos a ser Declarações de Deveres? Ao
predomínio dos “doutores oniscientes” da democracia atual sucederá o predomínio
dos “técnicos profissionais” e dos “especialistas políticos”? Um século de
experiência já parece suficiente para mostrar que o democratismo atual satisfaz
muito mais a fantasia do que a inteligência, aos interesses ilegítimos do que às
necessidades legítimas. Mas a transposição ao democratismo futuro que parece
possível será lenta e inteiramente divergente em seus métodos. [...] Os pontos de
partida contraditórios já hoje se delineiam em torno do “Comunismo”, partindo de
baixo, e em torno do “Fascismo”, partindo de cima149.
O crítico lembrava a dificuldade que havia para se obter informações sobre o que se
passava na Rússia revolucionária e pós-revolucionária, de modo que “uma revolução que só em
1789 encontrava paralelo” era marcada por um silêncio trágico em seu redor. Porém, as coisas
se modificavam, “as cortinas se foram abrindo. As vozes chegando pelos sem-fios, pelos trilhos,
pelo mar. O cordão de isolamento cedia. O comércio ensaiava”. O momento seguinte,
entretanto, estaria marcado pela paixão: “De cada lado um desperdício assombroso de
adjetivação. Ou o laboratório de todas as barbáries ou o pórtico da Nova Era de felicidade
humana”. Tudo estava, a princípio, portanto, em se conseguir fontes “sem intenção ou pelo
menos com uma intenção desapaixonada de observação e de estudo”. Estas seriam as questões
primordiais, não se tratava mais de se discutir teorizações sobre capitalismo e comunismo, mas
como a coisa era levada na prática. A obra que Tristão de Athayde apresenta, apesar de “sujeita
a todas as contingências humanas, especialmente com a falta de dados exatos que ainda há e
sobretudo com a proximidade dos fenômenos”, como capaz de reunir “desinteresse puro do
homem de ciência” associado à competência e à erudição são os trabalhos do sociólogo alemão
Werner Sombart:
[...] professor de Economia Social na Universidade de Breslau, diretor por muito
tempo [...] dos Archiv für Sozialwissenchaft und Sozial Politik, e nome
universalmente familiar a todos que se ocupam com problemas econômicos. [...] a
feição do seu espírito parece-me, particularmente, indicá-lo para um julgamento
inicial, quanto possível objetivo da revolução russa, tanto mais quanto o que mais
interessa são as fontes autênticas e as estatísticas, que não regateia em sua obra.
Jeffrey Herf analisa a trajetória e a obra de Werner Sombart segundo suas orientações políticas
e o define no interior do campo intelectual alemão como um “modernista reacionário”:
Werner Sombart (1865-1945) foi o mais importante representante da sociologia
alemã a influenciar a revolução conservadora bem como a tradição modernista
reacionária. Ao lado de Max Weber, editava uma das maiores revistas da ciência
social alemã, Die Archiv für Sozialwissenchaft und Sozialpolitik. [...] A principal
contribuição que prestou ao modernismo reacionário precedeu a guerra. Die Juden
und das Wirtschaftleben (Os Judeus e a Vida Econômica, 1911) era uma
interpretação das origens do capitalismo na Europa que traduzia categorias históricosociais em arquétipos religiosos e psicológicos. [...] O resultado foi desviar o protesto
cultural contra o capitalismo e o mercado para longe dos ressentimentos
antitecnológicos e para cima do liberalismo, do marxismo e dos judeus150.
149
150
ATHAYDE, Tristão de. O Comunismo I, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 jul. 1925, p. 4.
HERF, J. O modernismo reacionário, p. 59.
396
Como se sabe, Max Weber associava o espírito do capitalismo à ética protestante, prevenindo,
inclusive, acerca da complexidade das relações que poderia ter com judaísmo:
[...] quando autores [...] caracterizam a tendência ética de base do puritanismo,
especialmente na Inglaterra, como “hebraísmo inglês”, não estão, se corretamente
entendidos, errados. Contudo, é preciso não pensar no judaísmo da Palestina dos
tempos das Escrituras, mas no judaísmo como veio a ser sob a influência de diversos
séculos de educação formalística, normativa e talmúdica. E mesmo nesse caso devese tomar muito cuidado ao fazer paralelos. A tendência geral do judaísmo mais antigo
para uma aceitação ingênua da vida como tal estava muito longe das características
especiais do puritanismo. [...] Os judeus se identificavam com um capitalismo
aventureiro, político e especulativo; seu ethos era, em uma palavra, o do capitalismo
pária. Mas o puritanismo se sustentava no ethos da organização racional do capital e
do trabalho151.
O que as pesquisas e teorias de Werner Sombart e Max Weber compartilhavam era,
basicamente, a perspectiva teórica “espiritualista” e “compreensiva”:
O homem moderno [...] costuma ser incapaz de atribuir às ideias religiosas a
importância que merecem em relação à cultura e ao caráter nacional. Mas não é meu
intuito substituir uma interpretação causal materialística unilateral por outra
interpretação espiritual, igualmente unilateral, da cultura e da história. Ambas são
viáveis mas, se qualquer delas não for adotada como introdução, mas sim como
conclusão, de muito pouco serve no interesse da verdade histórica152.
Conforme analisa Herf, Werner Sombart considerava que:
O capitalismo que se desenvolvia correspondia a objetificações de um espírito
arraigado na psicologia e na religião judaica. O judaísmo era uma “obra da razão”
(Verstandeswerk), isto é, uma obra desprovida de sensação e emoção e, portanto, em
conflito com o mundo “natural” ou “orgânico”. O racionalismo e o intelectualismo
eram as “feições fundamentais” do judaísmo, bem como do capitalismo, e
ameaçavam “o que é irracional e misterioso, [...] sensual, artístico e criativo [...] A
religião judaica não conhece nenhum mistério”, e era a “única” religião que não
conhecia nenhum mistério. Não fora o ascetismo protestante, mas sim o judaísmo,
que impulsionara a racionalização do mundo moderno. [...] Cônscio da obra de
Weber sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo, Sombart escreveu: ‘O
puritanismo é o judaísmo’”153.
Todas estas considerações são úteis para nos situarmos historicamente no contexto
intelectual em que se dava investigação angustiada de Tristão de Athayde acerca do comunismo.
O crítico, após apresentar as credenciais acadêmicas do autor alemão, traça um esboço bastante
preciso acerca de sua produção bibliográfica. Em um apanhado geral dos livros de Sombart, ele
enumera as principais obras publicadas e destaca a que trata dos judeus e o capitalismo:
Sem falar nos trabalhos isolados como que à parte ou preparatórios do seu tratado
sistemático sobre a vida econômica medieval e moderna – isto é, Gewerbewesen,
Luxus und Kapitalismus, Die deutsche Volkswirtschaft im neunzehnten Jahrhundert,
Händler und Helden, Die Juden, Der Bourgeois, etc. -, devo chamar particularmente
a atenção para a sua grande obra histórica e econômica – Die Juden und das
Wirtschaftsleben que há dois anos apareceu em tradução francesa (Les juifs et la Vie
Economique, trad. Jankélévitch, A. Payot) e que mereceria uma atenção particular,
não só pelo excepcional interesse da tese aí magistralmente desenvolvida, mas
151
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 124.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 136.
153
HERF, J. O modernismo reacionário. São Paulo: Ensaio, p. 157-158.
152
397
também por contar muitos dados e informações que interessam de perto a vida
colonial brasileira154.
Como se vê, ao apresentar, ainda em seus preâmbulos, a abordagem que fará do comunismo na
Rússia, o crítico envia o leitor a uma série de nomes e livros em língua alemã, muitos dos quais
lançados poucos meses antes155 da publicação desses artigos de julho e agosto de 1925. Como
não eram os judeus e o capitalismo o foco da análise do crítico brasileiro, este apenas afirma
que um atestado do caráter insuspeito de Sombart era sua aversão ao capitalismo:
Existe (diz ele no seu livro sobre O Burguês); na própria natureza do espírito
capitalista, uma tendência imanente a se decompor e a se aniquilar. Já no decorrer
deste trabalho encontramos várias dessas destruições do espírito capitalista; no
século XVI, na Alemanha e na Itália, no século XVII na Holanda e na França, no
século XIX (e no presente) na Inglaterra (O livro apareceu em 1913)156.
Assim, segundo o crítico, não seria a obra do autor alemão uma expressão tipicamente
capitalista e anticomunista. O livro que Tristão de Athayde se utiliza para a análise do
comunismo na Rússia é Der Proletarische Sozialismus lançado em 1924, que estaria em sua
décima edição, revista, aumentada e poderia ser visto como um “tratado” do “movimento
socialista universal”. A obra traria “quadros cronológicos” acerca “de todos os fatos sociais
relativos à ação internacional do movimento trabalhista, nos diferentes países do mundo com
indicação sincrônica dos fatos essenciais do capitalismo e da Legislação Social” entre 1750 e
agosto de 1924. Daí a autoridade do alemão:
Essa autoridade, portanto, de que vou extrair alguns dados e indicações, para facilitar
a compreensão do caso russo e justificar uma repulsa decisiva a certos métodos e
sobretudo aos Ideais da Revolução, é a de um universitário, um professor, cuja
objetividade ao tratar do assunto é tal, que ao fim do livro sobre a ação econômica
dos judeus fica-se indeciso se ele os louva ou ataca. [...] É a autoridade, enfim, de
um homem que escreveu o seguinte sobre os chefes da revolução de 1917: “Como
acaso histórico muito importante e decisivo para o êxito da revolução e a longa
duração do domínio soviético, devemos finalmente indicar a circunstância de que a
Revolução trouxe à tona três homens muito acima da média e mesmo em certo
sentido genialmente dotados: Lênin, Trotsky, Radek. [...] Lênin, o estadista genial;
Trotsky, o genial organizador do Exército; e Radek, o diplomata genial [...]” Em
comparação a eles, os três guias da Revolução Francesa em seu último estágio:
Robespierre, Danton, St Just surgem apenas como “tagarelas vaidosos”.
Tristão de Athayde traça um quadro acerca das origens históricas, sociológicas e
populares do regime soviético. As primeiras trariam a recorrência da violência e do domínio a
que sempre estivera submetido o povo russo sob o regime czarista, onde a escravidão mantevese até 1860, as condenações à morte eram recorrentes, assim como as execuções sumárias157. A
154
ATHAYDE, Tristão de. O Comunismo I, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 jul. 1925, p. 4.
Alguns livros em alemão que estão na biblioteca de Alceu Amoroso Lima têm os selos das seguintes livrarias
que poderiam ser os lugares onde o autor comprava ou encomendava tais obras: “Livraria Alemã, Frederico Will,
rua da Alfândega 69”; “E & H Laemmert. Livraria Universal. Livros portugueses, franceses, alemães, ingleses,
etc. Rua do Ouvidor”.
156
ATHAYDE, Tristão de. O Comunismo I, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 jul. 1925, p. 4.
157
Cf. ATHAYDE, Tristão de, O Comunismo II – Antecedentes e origens da Revolução, O Jornal, Rio de Janeiro,
2 ago. 1925, p. 4.
155
398
condição miserável da maioria dos camponeses russos era um dos fatores considerados dentre
os mais importantes para a eclosão da revolução. Soma-se ainda o “caráter libertário” que passa
a caracterizar os intelectuais russos e sua “inteligência” em geral, conforme comenta o crítico:
Nessa terrível liberdade de espírito, nessa capacidade de bruscamente se arrancar da
sua terra, de seus costumes e da história, de queimar atrás de si os navios, de repudiar
todo um passado em nome de um futuro desconhecido, está uma das particularidades
mais profundas do espírito russo” escreveu Merezhkovsky, citado por Sombart, e
todos que conhecemos a literatura russa, e algumas raras criaturas dessa terra
prodigiosa e terrível, podemos confirmá-lo158.
Por último, as causas “populares” do movimento russo poderiam ser assim interpretadas:
Entre as causas populares, acentua Sombart, o messianismo das massas russas. “A
dominação dos bolchevistas, sob o ponto de vista russo, não significa outra coisa do
que o aparecimento do Anticristo”, diz Sombart, estendendo-se sobre o assunto, para
concluir que se encontra no movimento o espírito de três raças: “Dos judeus provém
o racionalismo, dos tártaros o ativismo, dos eslavos o passivismo. Os judeus
imaginaram o sistema, os tártaros o puseram em prática, e os eslavos até agora o
suportaram”.
O crítico via aí uma “síntese empolgante” e Sombart parece desconhecer o antissemitismo que
também fizera parte do movimento russo desde a eclosão da revolução159. De qualquer forma,
o que o crítico destacava era o fato de os “homens da revolução” terem conhecido apenas o que
a sociedade teria de pior: “a miséria, a luta implacável pela vida, o esmagamento dos fracos, a
polícia, o exílio, o cárcere”. O movimento trabalhista na Rússia, diferentemente dos seus
congêneres em outros países, onde seria possível distinguir no movimento operário reformistas
e revolucionários, seria radical por excelência. Assim, os líderes soviéticos estariam:
[...] aplicando, portanto, os princípios do materialismo histórico, partindo de um
espírito de ódio. Dir-se-á que esse ódio é inevitável, em seguida às injustiças de que
tinham sido vítimas. Mas o fato é que na origem da nossa sociedade atual
encontramos também como formadores dessa sociedade uma grande massa de
homens perseguidos, escravizados, comprimidos na liberdade de suas convicções,
de seus ideais, e no entanto animados exatamente do oposto, de um espírito de amor
e não de ódio. E por isso é que puderam criar uma estrutura social que atravessou
séculos e terríveis vicissitudes e que só começou realmente a desagregar-se quando
as ambições individuais de liberdade não quiseram mais respeitar os sábios limites
da experiência da razão e do tempo. E o resultado será essa salvação da desordem e
sobretudo da injustiça atual pelos remédios violentos e bárbaros com que o futuro
nos ameaça, quer nos submetamos à mecanização comunista, quer demarquemos a
nossa vitalidade pela reação contra ela.
A reiteração da nota acerca de uma “mecanização comunista” revela a maneira como o crítico
brasileiro apropriou-se de algumas categorias importantes que o “modernismo reacionário”
158
Cf. ATHAYDE, Tristão de, O Comunismo II – Antecedentes e origens da Revolução, O Jornal, Rio de Janeiro,
2 ago. 1925, p. 4.
159
Conforme Figes: “O antissemitismo fez parte da vida russa durante todo o período revolucionário. Os judeus
foram alvos constantes da fúria das massas. A palavra pogrom poderia significar tanto ataques aos judeus quanto
assaltos a propriedades. [...] Fazer dos judeus bodes expiatórios tornou-se prática generalizada a partir de 1914.
Entre os líderes do Exército Branco, de oposição aos sovietes, espalhara-se a propaganda que “retratava o regime
bolchevista como conspiração semita, espalhando o mito de que todos os principais líderes Vermelhos eram judeus,
à exceção de Lenin”. Cf. FIGES, Orlando. A tragédia de um povo, p. 830-831.
399
alemão, do qual Werner Sombart era um dos maiores expoentes. Conforme Jeffrey Herf:
Os pensadores a que chamo de modernistas reacionários nunca empregaram
precisamente estes termos para descrever a si mesmos. Mas essa tradição consistia
numa coleção coerente e significativa de metáforas, palavras familiares e expressões
emotivas que tinham o efeito de converter a tecnologia, de componente de uma
Zivilisation estranha, ocidental, em parte orgânica da Kultur alemã. Combinavam
reação política com avanço tecnológico. [...] Os modernistas reacionários foram
nacionalistas que desviaram do bucolismo voltado para o passado o anticapitalismo
romântico da direita alemã, apontando em lugar disso para os contornos de uma
ordem nova e bela que substituiria o caos disforme devido ao capitalismo em uma
nação unida, tecnologicamente adiantada. [...] Na revolução conservadora de
Weimar, a adoção irracionalista da tecnologia foi defendida por Hans Freyer, Ernst
Jünger, Carl Schmitt, Werner Sombart e Oswald Spengler, com Martin Heidegger
juntando uma voz mais ambivalente ao coro modernista reacionário160.
O “modernismo” destes reacionários alemães, na visão de Herf, reside em sua adoção da
tecnologia que deixa de ser associada a algo estranho ao nacionalismo alemão, como o era desde
o século XIX. O reacionarismo, por seu turno, é a revalidação nos anos 1920 das categorias
irracionais e românticas como meios de constituição da orientação política. A própria dialética
entre razão e mito que este pusera em curso, segundo teoria clássica de Theodor Adorno e Max
Horkheimer161, precisava ser nuançada segundo a especificidade alemã:
Horkheimer e Adorno estavam certos em salientar que a razão e o mito estavam
enaltecidos na ditadura alemã. [...] Contudo, se era acurada sua percepção, sua teoria
do Iluminismo e sua visão da história alemã moderna estavam deploravelmente
equivocadas. O que se provou tão desastroso para a Alemanha foi a separação entre
o Iluminismo e o nacionalismo alemão. A sociedade alemã permanecia parcialmente
– jamais “plenamente” – esclarecida. A análise de Horkheimer e Adorno passava por
cima desse contexto nacional e generalizava as misérias da Alemanha como dilemas
da modernidade per se. Consequentemente, eles culpavam o Iluminismo por aquilo
que na realidade resultava de sua fraqueza. Em que pese a tecnologia exercesse
fascínio sobre os intelectuais fascistas da Europa inteira, foi apenas na Alemanha que
ela se tornou parte da identidade nacional. A singular combinação do
desenvolvimento industrial com uma fraca tradição liberal constituía o pano de
fundo social do modernismo reacionário. A tese da dialética do Iluminismo
obscureceu essa singularidade histórica. Enquanto “teoria crítica”, ela é
estranhamente apologética em relação à história moderna da Alemanha. É uma das
ironias da teoria social moderna que os teóricos críticos, que pensavam estar
defendendo o singular contra o geral, contribuíssem para obscurecer a singularidade
da via iliberal da Alemanha rumo à modernidade162.
A emergência do irracionalismo como categoria significativa do campo intelectual alemão dos
anos 1920 é indissociável da experiência da guerra, das reações anticapitalistas e românticas
que “quando celebravam a emoção, a paixão, a ação e a comunidade e criticavam a razão ‘sem
alma’, voltavam-se para o estado como alternativa para o liberalismo político e a sociedade
capitalista”163. Conforme Adorno, um “jargão da autenticidade” era reiterado indefinidamente
no qual “certos conceito absolutos, tais como sangue, raça e alma, eram colocados além da
160
HERF, J. O modernismo reacionário. São Paulo: Ensaio, 1993, p. 13-14;
Cf. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. São Paulo: Jorge Zahar, 1985.
162
HERF, J. O modernismo reacionário, p. 22.
163
HERF, J. O modernismo reacionário, p. 27.
161
400
justificação racional. Na opinião deles, a própria razão era lebensfeindlich, ou seja, ‘hostil à
vida’”164. Herf destaca que tal romantismo tocava autores de esquerda (Georg Lukács e Ernst
Bloch), de centro (Thomas Mann e Max Weber) e de direita (Ernst Jünger). Porém, nomes
expressivos do “modernismo reacionário” tiveram relações de rejeição e ambiguidade com o
“nacional-socialismo”, deixando no ar que algo se perde nas análises de Herf:
Pelo fato de jamais haverem ingressado no Partido Nazista (Jünger, Freyer, Sombart,
Spengler), ou de o terem feito só por pouco tempo (Heidegger, Schmitt), alguns
comentadores acentuaram o hiato entre as opiniões deles e as do nacionalsocialismo. Mas os pontos em comum pesavam mais que as diferenças165.
As reflexões de Tristão de Athayde, porém, não se prendiam apenas à tradição dos
“modernistas reacionários” alemães, pelo contrário, o crítico brasileiro lançava mão de um
repertório intelectual muito mais amplo de influências e diálogos intelectuais. O que o
interessava e seduzia nos trabalhos de autores como Sombart era, fundamentalmente, a
prerrogativa dos fatores culturais e “espirituais” sobre os materialistas e deterministas. A sua
crítica à “mecanização da vida” que poderia resultar de uma vitória do comunismo vinha,
justamente, dessa concepção que pretendia salvaguardar alguma essência humana segundo os
valores de “vida” e “autenticidade”. É interessante notar que na análise de Herf sobre os escritos
de Sombart, o livro estudado por Tristão de Athayde, Der Proletarische Sozialismus não é
sequer mencionado. Preocupado em reconstituir as origens intelectuais do nazismo, Herf
prioriza a “tecnologia e a questão judaica” na obra de Sombart, algo que, como vimos, era
secundário nas preocupações do brasileiro. Em 1925, o que importava para o crítico era o rumo
dos acontecimentos na Rússia e não na Alemanha. Em 1925, acreditava-se que o “terror” viria
dos sovietes ou dos fascistas, ao passo que esses modernistas reacionários alemães teorizavam
sobre a morte, a existência autêntica e a experiência dilacerada da vida moderna entre a técnica
e a alma, a máquina e a natureza, que poderia abrigar desde a constatação de um mundo
desencantado segundo a metáfora da jaula de ferro weberiana até a mitificação da tecnologia
conforme o impulso fáustico defendido por Oswald Spengler, conformando-se tal tradição
como uma espécie de reserva espiritual da filosofia moderna ocidental. E, não por caso, ela se
fará cada vez mais recorrente nos escritos de Tristão de Athayde. Por ora, porém, tratava-se de
se esclarecer (a si e aos leitores) sobre o perigo soviético.
Ao comentar um livro de Maxime Gorki, Lenin e o camponês russo, o crítico anotava
as tentativas do regime em extirpar do país a religião sem obter, porém, os resultados esperados:
O caso contado por Gorki é o das famosas “exumações” de relíquias166. O governo
dos sovietes acreditou que mostrando ao povo, por meio de uma exibição teatral, que
164
ADORNO, T Apud. HERF, J. O modernismo reacionário, p. 31.
HERF, J. O modernismo reacionário, p. 60.
166
“Os milagres cristãos eram tachados de mitos; sepulcros nos quais haveria relíquias de santos russos haviam
sido abertos e, segundo os bolcheviques, nada continham além de esqueletos ou, em alguns casos, efígies de cera;
165
401
aquelas relíquias de cadáveres intatos de santos, etc. não eram mais do que
mistificação dos padres, tinha extirpado do coração do povo o ópio religioso e
emancipado as massas das velhas superstições. Mais uma das variadas espécies de
extirpação que os homens têm inventado, ao longo da história, contra a religião. Mas
os comunistas julgam que a sua seja a última. Pois se lutam contra o fanatismo... A
uma dessas exumações, [...] assistiu Gorki, como chefe que era de uma sociedade
para a difusão do ensino popular. Terminado o espetáculo, com o maior êxito para
os Comissários do Povo, organizadores da cerimônia, dirigiu-se Gorki a um grupo
de camponeses. “Ah! (disse um deles); os santos previam o sacrilégio de que iam ser
vítimas e retiraram a tempo os seus despojos. Ou então (dizia outro); foram os
próprios popes que esconderam as verdadeiras relíquias em lugar seguro, para
subtraí-las à heresia”167.
Assim, a República Socialista dos Sovietes teria procurado arrancar, “numa manhã de inverno,
do coração do povo russo a erva daninha da religião, substituindo a auréola dos santos pela
auréola de Marx e de Lenin”. Quais outros estariam sendo derrubados?
Tristão de Athayde pretende contar a trajetória do regime soviético a partir de três
fases: “a) A fase inicial de vingança. b) A fase da Ideologia. C) A fase atual de Conciliação e
Propaganda”. A primeira trata da reação violenta contra a ordem instituída identificada como
burguesa. Em 1918, um ano após a Revolução, assim trataria do caso um jornal bolchevique:
Os interesses da Revolução exigem o aniquilamento físico da burguesia. Façamos
do nosso coração uma arma que temperamos no fogo do sofrimento e da luta
sangrenta pela liberdade. Tornaremos os nossos corações sombrios, rudes,
insensíveis; não havemos de tremer à vista do mar de sangue inimigo que faremos
correr. [...] eles se hão de afogar no próprio sangue... Que o sangue da burguesia
corra em torrentes! Mais sangue, tanto sangue quanto possível168.
As cifras de Sombart contabilizariam um milhão e setecentas mil vítimas, dentre proprietários,
soldados, policiais, médicos, professores, trabalhadores, camponeses, profissionais liberais e
outros. Saques se proliferariam sob as máximas de Lenin “roubai o que vos foi roubado” e de
Trotsky “tomai aos burgueses os sapatos e deixai-lhes apenas os chinelos”169.
A instituição russa que mais simbolizaria o terror do regime seria a Cheka (Comissão
Extraordinária de Todas as Rússias para Combater a Contrarrevolução e a Sabotagem). Segundo
o depoimento de um suposto anarquista, transcrito por Sombart, criava-se a seguinte situação:
Um espantoso, bárbaro e nunca visto desdém e desprezo pelos direitos mais
elementares do homem tornou-se em axioma do governo comunista. Com uma
sequência lógica converteram-se as comissões extraordinárias num organismo
e os celebrados ‘ícones chorosos’ não passariam de pedaços de borracha que, devidamente comprimidos,
produziam ‘lágrimas’ quando alguém lhe oferecia um donativo. O apego do campesinato às explicações e
superstições religiosas só merecia ser ridicularizado como imbecilidade: colheitas perdidas e epidemias deveriam
ser evitadas pela ciência agronomia e meteorológica e não por preces e rituais, diziam os donos do poder. Para
dirimir dúvidas, o regime fez a prova dos nove, semeando ‘terras de Deus’ e ‘terras ateias’, lado a lado – a primeira
tratada com água benta, a outra com fertilizantes químicos. A bordo de aeroplanos, os agricultores podiam constatar
com seus próprios olhos que no céu não havia anjos nem seres divinos. A imprensa provinciana mantinha seções
especiais dedicadas ao ‘paganismo científico’. Centenas de panfletos e histórias ateus também foram publicados.
A literatura e a música tidas como religiosas não mais podiam existir”. FIGES, O. A tragédia de um povo, p. 916.
167
Cf. ATHAYDE, Tristão de. O Comunismo II – Antecedentes e origens da Revolução, O Jornal, Rio de Janeiro,
2 ago. 1925, p. 4.
168
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Comunismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 ago. 1925, p. 4.
169
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Comunismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 ago. 1925, p. 4.
402
monstruosamente autocrático, que é independente e irresponsável e tem em suas
mãos direito de vida e de morte. Recurso contra ele é impossível, não existe170.
Outro autor, Georges Popoff, que seria um revolucionário segundo Tristão de Athayde, relatava
que “no campo, vê-se com particular nitidez que a Cheka é a própria autoridade administrativa...
Nas cidadezinhas e aldeolas desertas e quase mortas das regiões da fome, são os edifícios da
Cheka o único lugar onde ainda existem vida e ordem”. Popoff, que era russo, teve algumas de
suas obras traduzidas para outras línguas. O livro Sous le soleil des soviets publicado em 1925
é o utilizado pelo crítico brasileiro. Não se trata, porém, de um “revolucionário”, pelo menos
não de um que se manteve como tal, mas de um intelectual poliglota que deixara a Rússia. A
obra citada era fruto de uma temporada no país dos sovietes entre 1922 e 1923171 e revelaria a
situação diversa da época do Czar, a fim de prevenir o “empreendedor europeu”:
A decadência econômica é tal que o comércio exterior e interior representa apenas
uma fração insignificante do tráfego de antes da guerra; mais da metade das usinas
não funciona; o poder de compra do povo empobrecido e dizimado se reduz ao
mínimo; a população não dispõe mais do que uma quantidade extremamente
pequena de mercadorias. No campo sobretudo, e nas cidades pequenas, a miséria é
tão grande que a Europa ocidental não pode ter a mínima noção. A população não
produz quase nada, ancorando-se em métodos tradicionais. Com todos estes fatos, o
negociante, o empreendedor europeu [...] O quadro de ruína que por toda parte eles
verão poderá lhes demover, - não talvez se eles estiverem informados com
antecedência e objetivamente acerca das coisas que lhes aguardam. O governo
bolchevista é tão vacilante que o empreendedor europeu é ameaçado na sua liberdade
pessoal; que ele deve contar sempre com uma flutuação súbita e arbitrária do câmbio;
que o objetivo principal dos bolchevistas – o estrangulamento da ideologia burguesa,
da economia capitalista – irrompe continuadamente; que é na aplicação do “livre
comércio” que se mostra a mais forte oposição dos chefes sovietes aos capitalistas
ocidentais, e que em todos se reconhece a intenção clara de sufocar a livre expansão
da empresa estrangeira. Os bolchevistas retiram hoje do empreendedor estrangeiro o
que eles lhe deram ontem: com uma mão eles lhe apertam seu coração, e por outro
eles tentam lhe apunhalar pelas costas...172
O livro de Popoff parece ter sido bem recebido na França. Alguns diziam, inclusive, que a obra
“na ignorância sistemática em que nós estamos, é um documento pleno de interesse”173. Em
outra ocasião, acerca de uma obra sobre sua experiência como presidiário sob o controle da
Cheka, relata-se que o autor russo estaria “ligado à missão americana de ajuda à Rússia” e,
“preso sob uma obscura denúncia”, pode contar “o funcionamento desta instituição medieval,
cujos procedimentos ultrapassam em horror aqueles da Inquisição”174. O jornal do Partido
Comunista Francês, por seu turno, deslegitimava as histórias de Georges Popoff:
Sr Georges Popoff, emigrado russo, que teve a chance de se beneficiar da desdenhosa
piedade dos Sovietes, na época quando ele tentava espiá-la e traí-la em nome da
170
Trata-se de certo Rud Broker. Não encontramos, porém, nenhuma referência a alguma obra por ele publicada.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. O Comunismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 ago. 1925, p. 4.
171
Cf. POPOFF, Georges. Sous l’étoile des soviets. Paris: Plon, 1925, p. 2.
172
POPOFF, Georges. Sous l’étoile des soviets, p. 4-5.
173
LALOY, Louis. Les livres, Comoedia, Paris, 22 mar. 1925, p. 3.
174
TIMMERMANS, Marcel. La Tschéka par Georges Popoff, L’homme libre, Grand journal quotidien du matin,
Paris, 30 mar. 1926, p. 2.
403
burguesia intervencionista, fez aparecer um compêndio de leitões mais ou menos
novos, mas todos igualmente imundos, sobre a Tchéka, esta não se deu a pena de
executar um tão pobre ser e não consentiu mesmo em mantê-lo preso, sem dúvida
por motivos de higiene penitenciária. [...] Pobre Popoff! Ele não terá a vantagem, que seria enorme para um quase aborto - de ser tomado a sério pelo Humanidade175.
A força e a centralização do poder do regime soviético eram reiteradamente afirmados
por Tristão de Athayde. Desde as falas de Lenin, que defenderia a estratégia de “nos decidir a
todos os sacrifícios, e, quando for necessário, empregar mesmo a astúcia, a esperteza, os
métodos ilegais, a reticência, a sonegação da verdade, etc.” 176, aos relatos de Emma Goldman,
exilada anarquista nos Estados Unidos, que assim comentava os “métodos” nos Congressos
Anuais de Todas as Rússias: “todos os meios imagináveis são empregados pelos bolchevistas
para aumentar os votos comunistas. Quando os métodos habituais não dão resultado, ameaçase com a redução das rações e com a prisão”. Werner Sombart, por sua vez, concluía que “a
verdadeira constituição no tempo de Lênin era a de uma monarquia absoluta: hoje podemos
indicá-la como uma constituição diretorial autocrática (autokratische Direktorialfassung)”.
A “fase ideológica” do regime seria marcada pela aplicação do “programa econômico
comunista”. Conforme descreve Tristão de Athayde:
Esse programa se resumiu afinal numa oficialização total dos meios de produção, de
distribuição e de retribuição. A nacionalização começou pelos bancos. Seguiu-se a
grande indústria e logo a pequena indústria. [...] Foi em seguida efetuada a
nacionalização da terra, de forma que a produção era dirigida pelo governo, de
acordo com um plano único e central, para que os representantes dos ofícios isolados
não seguissem egoisticamente os seus interesses, porém se conjugassem na
engrenagem coletiva. [...] Estabeleceram-se os salários oficiais [...] Cada pessoa
recebe uma “caderneta de consumo” e só consegue comprar alguma coisa quando
está na caderneta a observação de que ela produziu um trabalho (o que se considera
trabalho, não está dito em parte nenhuma). Os trabalhadores recebem o seu salário,
não em dinheiro, porém, in natura [...]. Lembremo-nos de que por “trabalhadores”
se deve entender a “sociedade inteira”, já que o lema muito justo, aliás, em princípio,
“quem não trabalha não come” domina toda a vida comunista. Quem não possuir a
sua caderneta, com boas notas, morre de fome. [...] O comércio interior e exterior
fica sendo monopólio do Estado. A especulação é proibida – em tese, o que na prática
a multiplica. A população é dividida em pequenas comunas de consumo, existentes
em cada bairro da cidade. Essas konsumkommunen é que requisitam da Central os
produtos e os distribuem pelos consumidores. [...] Nada se pode comprar
isoladamente. Tudo por um requerimento especial à Comuna de Consumo que tratará
então de obter, se possível, o que o indivíduo pede. A economia doméstica é
suprimida e substituída pelas cozinhas públicas, “para emancipar a mulher da sua
servidão”. Os proprietários de casas são naturalmente expropriados e as residências
distribuídas por ordem das repartições competentes. Era a ideologia comunista
aplicada em sua cristalina pureza177.
Em três anos, a situação econômica ruíra e a NEP (Nova Política Econômica) passa a ser posta
em prática em 1921. Conforme o crítico, era “um começo de negação às ilusões iniciais”. Ainda
175
PARIJANINE. Le sieur Popoff rescapé de la Tchéka, L’humanité : organe central du Parti Communiste, Paris,
30 out. 1926, p. 4.
176
Cf. ATHAYDE, Tristão de. O Comunismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 ago. 1925, p. 4.
177
ATHAYDE, Tristão de. O Comunismo III, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 ago. 1925, p. 4.
404
que provisória, a NEP178 era oposta ao que se entendia por comunismo, conforme o crítico:
A) “A concessão de salários mais elevados aos chefes de serviço”. Essa simples
medida era o suicídio do comunismo puro. B) “A introdução de uma disciplina mais
rigorosa em todos os ofícios”. E como Lênin acrescentava: “A própria Revolução
exige hoje, e realmente no interesse do socialismo, a ‘subordinação incondicional’
das massas à vontade unitária do guia do processo de trabalho”. C) “A aplicação do
sistema Taylor”. D) “A introdução do salário contratual (akkordlohn)”, isto é, “a
liberdade de contrato de serviço (sic)”. E) “A adaptação do salário conforme a tarefa
produzida”. F) “A organização da concorrência entre as Comunas de produtores e
consumidores”, por meio de “elevação de salários, redução de horas de trabalho,
concessão de maior quantidade de bens culturais ou estéticos (sic) etc. G)
“Cooperação estreita com o corpo de burgueses... de forma a guiá-los, dar-lhes certas
concessões e nos utilizarmos deles (sic)”179.
Ideias como a do reconhecimento de méritos individuais, de premiações pelo esforço,
de alguma liberdade contratual voltariam a fazer sentido como fomentadoras da produção.
Lenin teria arrancado “‘cerca de 85% da vida econômica russa à dependência comunista’. E
com isso, abolir por decreto a entrega de salários em gêneros, e quase tudo o que fora a ilusão
mais fagueira da ideologia comunista”. A crise, porém, não foi solucionada e os problemas de
ordem econômica não teriam sido interpretados como um sinal da falência do regime:
O que o governo bolchevista reconheceu nesse momento de crise, não foi a
inaplicabilidade de seu absurdo programa. Ele quis ver apenas nos desastres que o
programa provocara uma falta de habilitação dos homens para agirem de acordo com
os puros princípios da escola, e resolveu adiar a aplicação desses princípios até o dia
próximo ou remoto em que prevalecer a frase de Lenin: “De cada um conforme a
sua capacidade; a cada um conforme suas necessidades”. O paraíso terrestre.
Reconhecendo a falta de preparação do povo para a sua ideologia, resolveram então
os bolchevistas enveredar pelo caminho das concessões e dos compromissos, para
manterem o poder – e iniciarem então a obra gigantesca de propaganda.
Começaria, então, a “terceira fase” da história do regime comunista. Tristão de
Athayde reconhece o “realismo” dos líderes do governo soviético, especialmente em figuras
como a de Anatole Lunatcharski, Comissário do Esclarecimento, que “depois do sacrifício de
suas ideias econômicas, reconheceram que o comunismo só podia durar organizando a
revolução mundial e preparando o espírito das novas gerações. Daí as duas armas atuais: a
propaganda e a educação”. Enquanto na América e Europa a propaganda se faria entre as massas
para que estas se opusessem aos governos estabelecidos, na Ásia e na África as divulgações dos
ideais comunistas se fariam dentre os membros do poder estatal. Seja nas colônias ou nas
metrópoles, a finalidade era “derrubar a sociedade atual”. A partir dos relatos de Popoff, o
crítico comenta o que se passava pelo interior da Rússia:
[...] exército de pintores encarregados de brochar, futuristicamente, toda a espécie de
quadros de propaganda, que se encontram nas mais miseráveis estações de estradas
178
Segundo Figes: “A Nova Política Econômica foi originalmente concebida como um recuo temporário. ‘Fazemos
concessões econômicas pra evitar transigências políticas’, disse Bukharin ao Comitern, em julho. Em dezembro,
Zinoviev acrescentou: ‘A NEP é apenas um desvio transitório, um recuo tático antes do ataque decisivo do trabalho
contra o capitalismo internacional’. Lenin concordava”. FIGES, O. A tragédia de um povo, p. 945.
179
Cf. ATHAYDE, Tristão de. O Comunismo III, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 ago. 1925, p. 4.
405
de ferro, ao lado de bustos de Marx, de Lênin, de Robespierre, entre toda a sorte de
sinais cabalísticos sempre dominados pelo emblema soviético da foice e do martelo
cruzados. Museus de propaganda espalharam-se pelo país. [...] O filme famoso da
exumação é passado sempre, em todos os cinemas, com detalhes os mais grotescos.
São organizadas contraprocissões em todos os dias santos, com os maiores escárnios
às coisas sagradas, figuras escarnecedoras de Jesus, insultos à Virgem180, bustos
caricaturais de Buda e Maomé, tudo misturado [...]181.
Uma reforma educacional seria levada a cabo com a finalidade de formação e consolidação de
uma “mentalidade comunista”. Os programas para o ensino superior reformariam as
universidades existentes e criariam novas. Algumas medidas são apontadas, como a exclusão
das “‘pseudociências abstratas’, isto é, aquelas ciências ‘que não chegam a qualquer dado
prático (sic)’” e, nas unidades de ensino de ciências sociais, apenas seriam “permitidos
professores comunistas ou pelo menos marxistas”. Uma das criações que chamou a atenção do
crítico era a dos Proletkult de Lunatcharski. Este assim tinha comentadas suas palavras:
“[...] Grupos, Comunidades de Trabalhadores para a criação de literatura, de teatro,
de música e de artes plásticas. Em cada um deles se reúnem, sob a direção dos
instrutores do Proletkult, vinte a trinta pessoas. Esses estudos devem ser melhor
comparados a laboratórios... nos quais são feitas pesquisas, em condições
particulares e em parte artificiais, para conseguir novas conquistas culturais”. Esses
laboratórios de arte proletária são realmente uma obra-prima de engenhosidade
comunista. Como diz Lunatcharski: “Os Gogols e os Pushkins hão de vir”. E para
isso foi organizado os seus laboratoriozinhos, com todos os aparelhos modernos de
fabricação de cultura e de arte. É o último avatar da indústria182.
Ao fim desta viagem guiada pelas mãos e olhos de um intelectual avesso ao regime
soviético, as reflexões passam a ganhar suas tonalidades conclusivas e determinantes:
O ideal comunista [...] é um ideal puramente utilitário. Como não podia aliás deixar
de ocorrer numa aplicação do materialismo histórico. [...] O mundo comunista é um
mundo sem Deus, sem Família, sem Pátria, sem Liberdade, sem Contemplação, sem
Arte Livre, sem ciência Pura, sem Beleza desinteressada. Um mundo geométrico [...]
onde “um par de sapatos vale mais do que todo Shakespeare”, na frase de um
comunista citada por Sombart. Reduz-se a educação a uma simples máquina de
formar comunistas, isto é, espíritos limitados, sem ambições excessivas, sem
veleidades individuais, bons técnicos, homens práticos e resignados, pensando pelas
cartilhas do Estado, visitando os museus em grupos de vinte, fazendo espírito em
laboratórios de cultura mental, enfim, o ideal do perfeito súdito, embriagado de belas
palavras e conformado com o seu lugar nas fileiras. Aos conceitos humanos naturais,
imortais, de raça ou de pátria, de família e religião, de cultura ou virtude, substituise o conceito utilitário de classe. E de fato por uma volta à escravidão. Pois de duas
uma: ou as várias classes são necessárias à vida de uma sociedade, e nesse caso todas
elas têm um direito incontestável à justa recompensa do seu esforço, ou realmente a
sociedade pode subsistir apenas com a classe proletária e nesse caso desaparece o
conceito de classe, pois a classe é mais uma “relação” que uma existência em si183.
É importante destacar que, apesar dos juízos, descrições e comentários essencialmente
180
“Surgiu uma arte ateísta – um cartaz particularmente blasfemo mostrava a Virgem Maria grávida sonhando com
um aborto – um teatro iconoclasta e um cinema profano”. FIGES, Orlando. A tragédia de um povo. A Revolução
Russa 1891-1924. São Paulo: Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 916.
181
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Comunismo III, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 ago. 1925, p. 4.
182
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Comunismo III, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 ago. 1925, p. 4.
183
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Comunismo IV, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 ago. 1925, p. 4.
406
negativos acerca do regime soviético, a conclusão geral de relatos como o de Georges Popoff
era de que o sistema bolchevique iria de perdurar. Conforme um analista de sua obra:
De todos os livros sobre o bolchevismo, são poucos dos quais se depreende com
tanta clareza e verossimilhança as razões que este regime apresentado
ordinariamente como calamitoso, há de durar. Esquece-se facilmente que o povo
russo é quase exclusivamente camponês – e que um governo que saiba se conciliar
com os camponeses tem toda a Rússia. Os Sovietes nisso tiveram sucesso ordenando
a divisão de terras, que isso tenha resultado numa diminuição da produção de chá,
que a exportação de cereais, fonte de riquezas para a antiga Rússia, tenha se tornado
impossível – são questões que não preocupam de forma alguma o mujique. Tem-se
o erro, por muito tempo de o julgar como um europeu. Nós o acreditamos patriarcal,
religioso, conservador, enquanto ele não é nada disso [...]184.
Em busca do bom governo
O repúdio ao comunismo não significava o fim das inquietações de Tristão de Athayde.
Pelo contrário, se a República Soviética não era o “paraíso terrestre”, isso implicava uma
angústia ainda mais aguda. Afinal, se o comunismo não era o caminho, o que poderia ser? A
própria conclusão do artigo acerca do governo russo era antes um questionamento, um ponto
de partida, do que uma afirmação ou um porto, para utilizar a imagem empregada pelo crítico:
Por mais grotesco, porém, que seja o quadro social comunista [...] por mais sensível
que nos apareçam a discordância entre as palavras e os fatos bem como as renúncias
às utopias iniciais ou o reconhecimento de princípios outrora renegados, o fato é que
tudo indica nesse comunismo um dos pontos de partida da renovação social do século
XX. [...] desde já podemos observar que está sendo uma dolorosa lição de realidade.
[...] Aproximou-nos mais da realidade social – esse é o fato. Cabe agora ao futuro e
ao ocidente, se fugir ao lento suicídio atual, fazer o que eles não fizeram. Conseguir
um ideal social que em essência se resuma em duas palavras – “justiça” e
“variedade”. [...] não permitir que esse ideal de “justiça” tão desdenhado de fato na
sociedade egoísta e arrogante de hoje venha impedir o surto da “variedade”, a
expansão justa do Indivíduo, a livre afirmação da família, o estímulo da criação e da
recompensa individual, o sentimento da responsabilidade, a conservação do passado
naquilo que nos legou de grande e de justo – tão inexistente no mecanismo social
simplista do comunismo. Não tenhamos grandes ilusões. Todo governo é apenas um
mal menor. Partindo desse princípio exato, o democratismo esfacelou o poder nas
mãos dos indivíduos, certo de que por esse meio o mal seria reduzido ao mínimo. O
resultante foi até hoje, ao lado de um progresso material assombroso e de uma
incontestável elevação das massas, uma desordem latente e uma injustiça patente.
Reagindo contra isso, propõe o comunismo o inverso. A centralização absoluta.
Moscou, o Kremlin, centro não somente da Rússia, porém de todo o Universo. [...]
Para favorecer a reação contra essa extrema mecanização social, para levar a
restauração de uma estrutura social sólida e forte em formas que ainda seria arriscado
prever, mas que não esmague o indivíduo, antes o estimule a se expandir, o exemplo
do comunismo está aí vivo ante os nossos olhos. Através de que lutas terríveis vai
operar-se essa transformação social no decorrer do século XX, o tempo o dirá185.
Ao criticar a forma como a justiça teria se tornado uma “arma de governo” sob o regime dos
sovietes, consolidando-se como uma “justiça de classe”186, segundo a qual dever-se-ia “punir
184
G-R, B. Sous l’étoile des Soviets, Les nouvelles littéraires, artistiques et scientifiques : hebdomadaire
d’information, de critique et de bibliographie, Paris, 2 mai. 1925, p. 3.
185
ATHAYDE, Tristão de. O Comunismo IV, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 ago. 1925, p. 4.
186
A “justiça de classe” seria aquela exercida pelos tribunais revolucionários instituídos já em 1918: “Os
407
os inimigos dos operários [...], ‘mais fortemente’ do que os criminosos de origem proletária
‘pelo mesmo delito’, praticado por uns ou outros”187, Tristão de Athayde lembra as alegorias
acerca do “bom” e do “mau” governo pintadas por Ambrogio Lorenzetti no século XIV:
E a esse respeito me vem à mente aquela obra-prima da pintura trecentista, com que
Ambrogio Lorenzetti, em mil trezentos e tantos, adornou as paredes do Palazzo
Público de Siena. [...] São as duas alegorias do “Bom Governo” e do “Mau
Governo”. Este é rodeado confusamente pela Tirania, pela Soberba, pela Vaidade,
pela Crueldade, pela Guerra e entre os muros da cidade a Anarquia impera. O Bom
Governo, porém, ladeado pela Prudência, pela Paz, pela Fortaleza, pela
Magnanimidade, pela Temperança, com os homens de armas, as forças da Terra, a
seus pés, e com o Santo Espírito, as forças do céu, sobre a cabeça, recebe a sua
inspiração e a sua força de uma outra figura. Só, no extremo oposto do painel,
destacada, grave, sobre a qual converge a visão, e que tem acima da cabeça, como a
iluminá-la, a imagem da Sapiência, e abaixo de sai a Concórdia, estendendo a sua
ligação até o governo por uma série de homens bons, em trajes locais, como aquele
Dante de Giotto, tão familiar a todos nós. Essa figura de que tudo deriva para o Bom
Governo – é a imagem da Justiça. Não é só a pintura que prende o espectador. É a
ideia que resume todo o pensamento político de uma época, aquele admirável senso
de equilíbrio católico da sociedade que até na própria arte imprimia, pela primeira
vez, com tanta grandeza, o seu selo inconfundível. E abaixo dos affreschi,
comentando o símbolo da independência e liberdade comunal que aquilo
representava e a genial arquitetura política de uma época, o artista escreveu entre
outras palavras o seguinte: “Lá dove stá legata la Justizia – nessuno al ben comum
giá mai si accorda” [“Onde a justiça está atada – ninguém nunca se reúne para
promover o bem comum”]. Palavras inesquecíveis.
Assim, a República delineada no horizonte idealizado por Tristão de Athayde encontra-se no
passado e não no futuro. Conforme Quentin Skinner, as pinturas do artista italiano participavam
da instituição e da consolidação de uma “ideologia” que se constituíra no processo de criação
das cidades-repúblicas italianas a partir do século XI. Trata-se de um momento no qual as
comunas de Pisa, Milão, Genova, Arezzo, Bolonha, Pádua, Florença, Lucca e Siena
estabeleceriam uma autonomia política em relação aos poderes imperiais, adquirindo o status
de repúblicas independentes com constituições que garantiriam seus autogovernos eletivos188.
Ao avaliar que se tratava de uma expressão do “senso de equilíbrio católico”, o crítico
brasileiro reproduz a interpretação tradicional das alegorias que as vê como expressões do
pensamento tomista e aristotélico. Skinner, por seu turno, considera que a obra de Lorenzetti
dialoga com os autores “pré-humanistas”, do século XII-XIII, que tinham na tradição romana,
especialmente nos escritos de Cícero e, em menor medida, de Sêneca, a base de suas ideias.
julgamentos realizavam-se segundo a posição social do réu e suas vítimas. Em uma destas cortes, os jurados
adotaram o hábito de inspecionar as mãos do denunciado. Se fossem limpas e macias, ele era condenado.
Comerciantes afeitos à especulação recebiam punições severas e, às vezes, acabavam sentenciados à morte. Em
contrapartida, ladrões – e até assassinos de pessoas com dinheiro – viam-se penalizados com penas brandas ou
acabavam absolvidos, caso alegassem pobreza como causa para o crime. O saque aos saqueadores fora legalizado
e a lei, abolida: grassava a ilegalidade. Lenin sempre insistirá que o sistema jurídico deveria ser usado contra a
burguesia, funcionando como arma do terror de massa”. FIGES, Orlando. A tragédia de um povo, p. 913
187
ATHAYDE, Tristão de. O Comunismo IV, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 ago. 1925, p. 4.
188
Cf. SKINNER, Quentin. The rediscovery of republican values. Visions of politics. Vol II. Renaissance virtues.
Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p.10-15.
408
Isso significava a confluência nos afrescos dos valores “teológicos” – fé, esperança e caridade
– com valores “políticos” – prudência, justiça, temperança, fortitude e magnanimidade, este
último expressamente oriundo das reflexões de Sêneca189. Assim, aquilo que o crítico via como
um apogeu do catolicismo poderia conter, na verdade, o início de sua decadência. A Sapiência,
que sobranceia a Justiça, teria, a partir dos escritos de Cícero, na figura do Legislador aquele
que traria o bem comum e o triunfo da paz, inclusive da instituição da religião190. Trata-se,
assim, de uma visão do mundo político com vários elementos pagãos. Tal característica, porém,
não pode ser considerada como uma restrição às ideias de Tristão de Athayde sobre os últimos
séculos da Idade Média nos quais o autor reconhece justamente a existência de um “realismo”
típico e de um conceito de liberdade, de forma que ambos teriam ruído a partir do mundo
moderno. Novamente, o mundo moderno passa a ser visto como uma decadência. O crítico
considera acerca do problema da miséria, da fome e das desigualdades sociais:
[...] a nossa sociedade está muito longe ainda de ter tido a inteligência de resolver
um problema, cada vez mais insolúvel, desde que o conceito capitalista (judaico e
anglo-saxônico) da economia ilimitada, nos séculos XV e XVI, suplantou o conceito
cristão de economia limitada, que só ele pode salvar-nos do comunismo191.
Em outra ocasião, ele retoma tais ideias:
Entre os abalos sofridos pela Igreja revelou-se também um abalo nas concepções
econômicas. A admirável teoria econômica cristã, limitando os impulsos do lucro,
por meio de freios morais e religiosos, já vinha cedendo diante do progresso material
crescente, das competições nacionais e do espírito judaico de lucro e economia. Com
a Descoberta da América, coincidindo aproximadamente com o movimento
libertário da Reforma, o espírito da economia livre venceu definitivamente, por
alguns séculos, o princípio da economia limitada. Werner Sombart e Max Weber
estudaram detalhadamente o fenômeno, mostrando como o espírito judaico e o
espírito protestante, em nome da liberdade de ação, venceram o espírito católico da
economia limitada e deram início ao Grande Capitalismo moderno que naturalmente
veio civilizar a América192.
Sobre o ilimitado horizonte econômico capitalista, Michel Foucault propõe uma síntese das
mudanças estruturais por que passa a governamentalidade moderna a partir do liberalismo:
Creio que começa a se esboçar aí algo muito importante, cujas consequências, como
vocês sabem, estão longe de ter se esgotado. Esboça-se aí uma coisa que é uma nova
ideia da Europa, uma Europa que não é mais imperial e carolíngia, mais ou menos
herdeira do Império Romano e com estruturas políticas bem particulares. Tampouco
[...] é a Europa clássica da balança, do equilíbrio entre as forças estabelecidas de tal
modo que nunca a força de um prevaleça de uma forma demasiado determinante
sobre o outro. É uma Europa do enriquecimento coletivo, é uma Europa como sujeito
econômico coletivo que, qualquer que seja a concorrência estabelecida entre os
Estados, ou melhor, através da própria concorrência que se estabelece entre os
Estados, deve tomar um caminho que será do progresso econômico ilimitado193.
189
Cf. SKINNER, Quentin. Ambrogio Lorenzetti and the portrayal of virtuous government. Visions of politics. Vol
II. Renaissance virtues. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 80.
190
Cf. SKINNER, Q. Ambrogio Lorenzetti and the portrayal of virtuous government. Visions of politics, p. 56.
191
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Comunismo IV, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 ago. 1925, p. 4.
192
ATHAYDE, Tristão de. Aspectos Brasileiros, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 set. 1925, p. 4.
193
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 75.
409
Este modelo de concorrência livre, de enriquecimento ilimitado dos estados europeus, de
progresso constante do ocidente (em seu sentido restrito), para quem haveria à disposição “um
mercado cada vez mais extenso e, no limite, a própria totalidade do que pode ser posto no
mercado, no mundo”, ou seja, a “mundialização do mercado”194, teria levado às crises abissais
que, após a Grande Guerra, pareciam decretar a falência de tal estrutura política e econômica.
Se o crítico brasileiro já perdera as esperanças no comunismo, se é que algum dia as manteve
realmente, a partir da crítica à economia capitalista e ao sistema soviético, ele encaminhava-se
para portos mais tradicionais, mas não menos fervorosos e bélicos.
194
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica, p. 75.
410
Política e Letras II
Fui educado num colégio francês. Palpito de entusiasmo, de amor
ante a renovação da arte musical italiana. Admiro e estudo
Uidobro e Unamuno. Os Estados Unidos me entusiasmam como
se fossem pátria minha. Com a aventura de Gago Coutinho fui
português. Fui russo durante o Congresso de Gênova. Alemão no
Congresso de Versalhes. Mas não votei em ninguém nas últimas
eleições brasileiras.
Mário de Andrade, A escrava que não é Isaura – Discurso sobre
algumas tendências da poesia modernista, 1924.
Mas a vida da inteligência, como a vida das nações e a de cada
um de nós, é justamente, em sua essência, esse jogo de tendências
extremas e moderadas que se corrigem, que se repelem, que se
suportam ou se confundem.
Tristão de Athayde, Política e Letras, 1924.
É a minha sina: a de descontentar no dia seguinte, aqueles a quem
na véspera tinha tão plenamente satisfeito.
Carta de Tristão de Athayde a Jackson de Figueiredo, 1924.
Em 1922, Tristão de Athayde lançara seu primeiro livro que se desdobrou em torno da
reflexão teórica acerca da “crítica expressionista” e da contribuição à história da literatura no
país. Dois anos depois, em participação no volume À margem da história da República
organizado por Vicente Licínio Cardoso, a mudança de olhar do crítico pode ser vislumbrada
desde o título do alentado ensaio: “Política e Letras”. Tal associação expressa a virada que se
passava na cultura intelectual brasileira em que as interpretações sobre o passado e presente do
país tomavam o centro das preocupações, numa espécie de revisão completa da história nacional
e da abertura de um horizonte político indeciso e angustiante.
“Política e Letras” pode ser considerado como o seu ensaio de intérprete nacional. Ele
parte da divisão tradicional da história brasileira em períodos colonial, imperial e republicano.
Sobre o primeiro, traça o seguinte panorama, aliás, bastante convencional:
No “período Colonial”, que se estende até 1808, [...] não possui o Brasil existência
sua e vive de Portugal e para Portugal. Sua vida não tem espontaneidade nem destino
próprio. Recebe de Portugal tudo de que necessita para trabalhar, para produzir, para
iniciar a sua vida. [...] Sua riqueza é a Coroa que absorve. Sua gente vai ser educada
em Coimbra e lá se aportuguesa em regra definitivamente. Todo desenvolvimento
da Colônia tende naturalmente para a Mãe-Pátria195.
Os juízos são rápidos, com alguns destaques como o que afirma ter sido a colonização
portuguesa mais “opressora” do que a espanhola. Na colônia estariam as raízes do país: “as
195
ATHAYDE, Tristão de. Política e Letras. In: CARDOSO, Vicente Licínio (Org). À Margem da História da
República. V. 2. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 49.
411
raízes da nacionalidade estão no período colonial. Nem por isso deixa ele de ser o período luso
por excelência de nossa história, em que a nossa formação tudo deve, por assim dizer, ao que
nos vinha de além-mar. Nem outro recurso restava à terra imensa e silenciada”196.
Acerca do período Imperial, o crítico propõe uma visão tradicional à época, mas que
hoje poderíamos considerar controversa e que, há décadas, era tida como conservadora.
Conforme escreve José Honório Rodrigues nos anos 1970, segundo tal tese:
[...] se pode dizer que o processo da Independência se realiza entre abril de 1821,
com a partida de D João VI, e agosto de 1825, com o Tratado de Reconhecimento.
Uns começam mais cedo, outros ampliam para mais adiante. Os primeiros seguem a
tradição que veio de Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro [...]
que atribui à vinda da família imperial uma importância decisiva na eclosão do
movimento emancipador. [...]197.
O centro dessa tese é que “a independência é uma doação da dinastia: D João cede e transfere
ao seu filho a soberania de parte de seu império”198. Já segundo a outra tese, que o historiador
chama “liberal”, teria “ocorrido uma ruptura, que o povo, só o povo, senhor da soberania
nacional, podia dar a coroa de D Pedro, como podia ter preferido a República. O rei era uma
simples criação do povo e a aclamação é que legitimara o seu poder, e não os títulos dinásticos”.
Assim, a Independência se inicia:
[...] em 1822 e se conclui em 1831, com a abdicação, quando se elimina a tutoria que
D Pedro vinha exercendo com o governo absolutista. D João é o grande obstáculo à
Independência e sua partida desembaraça as dificuldades [...] o 25 de agosto de 1825
marca a conclusão vergonhosa da Independência transformada numa compra por 2
milhões de libras esterlinas, um fato talvez inédito na história das emancipações
europeias ou americanas.
Rodrigues aponta como falha geral da tese conservadora a ausência de uma “base
econômica e social”. Esta última terá nos anos 1960 maior desenvolvimento:
Não parece exagero afirmar que o enquadramento teórico predominante e mais
influente na historiografia da Independência, pelo menos desde os anos 1960, é
aquele derivado da abordagem de Caio Prado Jr. Partindo de um ponto de vista
marxista, ele procurou entender o “sentido” da colonização, inserindo a história do
Brasil num contexto senão planetário, ao menos ocidental: a história do Brasil
explicar-se-ia como um derivativo da história europeia, no contexto da expansão do
capitalismo comercial. Essa tese é a base das teorias da dependência199.
Jurandir Malerba faz reparos a tal perspectiva. A própria “história” seria aí secundária, apenas
confirmando teses sobre o desenvolvimento social, econômico e político do mundo moderno:
Entendido o funcionamento da máquina, sua “dialética”, está dada a história [...]. Os
processos de independência na América Latina seriam meras “vertentes do mesmo
processo de reajustamento e ruptura na passagem para o capitalismo moderno, na
segunda metade do setecentos e primeira metade do Oitocentos”200.
196
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 49.
RODRIGUES, J H. Independência: historiografia. Ensaios Livres. São Paulo: Imaginário, 1991, p. 209-210.
198
RODRIGUES, J H. Independência: historiografia. Ensaios Livres, p. 210.
199
MALERBA, Jurandir. As Independências do Brasil: ponderações teóricas em perspectiva historiográfica,
História, São Paulo, v.24, n.1, 2005, p. 105.
200
Cf. MALERBA, Jurandir. As Independências do Brasil, História, p. 107.
197
412
Tal tese inspirada no marxismo e na escola dos Annales estaria, porém, desde o fim do
século XX, sendo revisada e nuançada. Ao comparar as abordagens, Malerba nota que nem
parece se tratar do mesmo tema. Agora, estuda-se com maior dedicação o período de D João VI
no Brasil, reconhecendo as culturas políticas aí proeminentes e as novas linguagens e práticas
políticas. Num cenário amplo, aborda-se a função de variadas produções simbólicas, dos jornais
às festas públicas, a ação de personagens (biografia), o papel dos debates políticos, a emergência
de um liberalismo brasileiro e preserva-se no horizonte a dedicação a pesquisas que possam
ressaltar ou reconhecer a participação da maioria da população, ou seja, escravos, libertos e
trabalhadores em geral na história da Independência do Brasil201.
Não se poderia, assim, dizer que a historiografia atual acerca da independência do
Brasil mantenha um horizonte teórico radicalmente diverso, como a dos anos 1960, das
perspectivas desenvolvidas na passagem do século XIX para o XX. Quando analisou a obra de
Oliveira Lima, O movimento da Independência (1922), Tristão de Athayde afirmava sobre os
debates acerca de personagens determinantes: “é tão absurdo atribuir a esse ou àquele o
movimento emancipador, como acreditar apenas em causas naturais”202. O livro teria como tese
geral a ideia de que foi o “espírito liberal que fez a nossa independência, conseguindo vencer a
volubilidade aventureira de d. Pedro I e a inércia das massas, contra a política recolonizadora
das Cortes de 1822”. Tratava-se de se rever o papel de alguns personagens, ao mesmo tempo
em que se ressaltava o papel da imprensa, das lojas maçônicas e da ação de alguns deputados
brasileiros junto à Corte, lembrando-se que “nunca a preocupação de conservar ao Brasil o seu
caráter colonial foi tão grande, em Portugal, como naquele momento”, como apontaria a
historiografia atual. Assim, as ideias desenvolvidas por Tristão de Athayde acerca do tema são
antes controversas do que totalmente ultrapassadas. De qualquer forma, representam um
momento da historiografia brasileira que respondia ao seu tempo presente:
Como bem acentua o Sr Oliveira Lima, citando a frase de Antônio Carlos, foi a
atitude das cortes que despertou o amodornado Brasil. Essa tendência à modorra é,
aliás, um elemento com que sempre devemos contar entre nós, e constitui a esperança
de todos os governos arbitrários...
Acerca do período Imperial, Tristão de Athayde adianta um dos aspectos gerais da tese
defendida no ensaio “Política e Letras”, a saber, o caráter “artificial” da ordem estabelecida.
Em seus períodos sucessivos, ele caracteriza o oficialismo imperial:
O de D João VI fora o prurido de transplantar instituições, de inaugurar serviços e
academias. O oficialismo de Pedro I fora o de pressentir o desejo ambiente de tomar
a si a iniciativa dos atos definitivos que criavam situações novas e decisivas para a
vida nacional. O oficialismo da Regência fora o de resistir à desunião, opor a
autoridade central à anarquia periférica, defender o Brasil uno que recebera e o trono
que simbolizava essa unidade nacional. O oficialismo de Pedro II é o de árbitro dos
201
202
Cf. MALERBA, Jurandir. As Independências do Brasil, História, São Paulo, v.24, n.1, 2005, p. 117.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 fev. 1923, p. 1.
413
partidos, o de fiel nessa balança de poderes que o Parlamentarismo da Inglaterra fazia
oscilar constantemente. Pedro II nunca abdicou do seu Poder Moderador, que era o
nome constitucional desse novo oficialismo do segundo reinado203.
Retomando a periodização de Euclides da Cunha, o crítico situa em 1870 o fim do Império:
O “Período Republicano” data de 1870. É que então se começa realmente a sentir
como a serenidade desse Império americano era artificial. [...] Foi-se vendo pouco a
pouco – e até hoje o vemos ainda com surpresa, por vezes, que o Brasil se formara
às avessas, começara pelo fim. Tivera Coroa antes de ter Povo. Tivera
Parlamentarismo antes de ter eleições. Tivera escolas superiores antes de ter
alfabetismo. Tivera bancos antes de ter economias. Tivera salões antes de ter
educação popular. Tivera artistas antes de ter arte. Tivera conceito exterior antes de
ter consciência interna.
Na “republicanização do Império”, a “hipertrofia do oficialismo e a inanição das forças reais
do país começavam a revelar o artifício daquela imponente serenidade imperial”.
Seria o momento da ascensão da geração nascida com a Independência que clamaria
“contra o abuso do poder pessoal e a atonia do povo”. Dotada de uma formação jurídica, ela
acabaria criando novos artifícios caracterizados, desta feita, pelo ardor das reformas: “a fé nas
reformas eleitorais, o fetichismo da liberdade, a pureza do regime parlamentar”. Esse primeiro
momento do republicanismo brasileiro combateria a “ficção imperial” na qual “o povo era o
grande esquecido nessa pompa fingida do Império”. A partir de matérias da imprensa da época,
livros de história, memórias, discursos parlamentares e depoimentos avulsos, o crítico analisa
a orientação política de D Pedro II que, “imbuído de liberalismo, do romantismo político que
frutificou tão profusamente no século XIX, não oferecia resistência à propaganda dissolvente.
O que talvez lhe prolongou o trono até 1889 seja dito de passagem”204.
O aspecto econômico da emergência do republicanismo é ressaltado segundo a
modernização por que passara o país, neste “período das primeiras grandes usinas de açúcar,
das fábricas de algodão, das máquinas beneficiadoras de café, das estradas de ferro, da
navegação a vapor”. Além disso, destaca-se o papel crescente que os paulistas passam a ter na
atividade produtiva nacional, notando que o “aparelhamento mecânico e a imigração fazem
desde então o espantosos progresso econômico de São Paulo, desenvolvendo a um tempo o
urbanismo, pela indústria, e o ruralismo, pela riqueza crescente do café”205. O crítico propõe
uma geografia de forças que contribuiriam para o progresso do republicanismo sob o Império:
Em São Paulo [...] com a revolução econômica; no Rio, com a agitação abolicionista
e o progresso do liberalismo político; no Sul, com o foco permanente de caudilhismo,
eterna reserva de reivindicações democráticas e libertárias; e no Norte, enfim, com
o movimento de ideias, especialmente em torno de Recife, que se desenvolveu
sobretudo por essa época – nesses quatro pontos principais operava o movimento de
transformação republicana. [...] o “elemento popular”, no Rio Grande, pelo instinto
aventuroso e anárquico; o “elemento econômico”, em São Paulo, pelo
203
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 51.
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 54.
205
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 55-56.
204
414
desenvolvimento da iniciativa individual; o “elemento político”, no Rio, pela
oscilação crescente das correntes políticas para a esquerda, contra o imperador, que
“era o Império”, no dizer de Cotegipe; o “elemento intelectual”, no Recife,
combatendo as ideias e sentimentos que tinham afinal constituído a feição moral do
Império206.
Neste sentido, a República já estaria feita sob o Império. Tristão de Athayde faz apelo
a figuras e metáforas vitalistas e espiritualistas que se tornarão muito recorrentes:
Quando em 1889 se proclamou a República a república já existia no Brasil. Não são
os fatos mas o espírito dos fatos que realmente marca os períodos. [...] É preciso
distinguir, na história das nações, o que é método de exposição e o que é evolução
vital [...] Durou trinta e dois anos a Revolução Francesa, dizem os historiadores. Mas
nós bem sabemos que não durou trinta e dois anos a Revolução Francesa. Seria
simples demais. E a realidade se ri desses compartimentos estanques com que
procuramos dividir o tempo, para compreender o passado. [...] O principal é o que
se oculta embaixo das águas. O essencial da história é o trabalho dos espíritos e o
pressentimento fugitivo de um ou outro fato precursor207.
A mudança do regime veio e “as transformações políticas que houve – e só o tempo
naturalmente as revelou – deram-se justamente no sentido oposto ao que pretendiam os
ideólogos do movimento”. A República dos republicanos não era aquela sonhada:
A República, hoje, com trinta e cinco anos de realização, é a resultante de duas forças
contraditórias: o “cesarismo” e o “caudilhismo”. Entre as duas, o país indiferente, a
grande força obscura de trabalho, de inteligência, de egoísmo e de sacrifício que tece
surdamente a vida da nação e em cujo nome as forças contraditórias se digladiam. A
República não resolveu ainda nenhum dos problemas básicos que provocou logo
após a sua proclamação208.
Após a síntese da história política do Brasil independente, aqui esboçada, o ensaio passa a
considerar o outro termo de seu título destacando, porém, a relação íntima entre ambos:
Não é possível isolar [...] as letras da política, a vida de cada espírito da vida do
espírito coletivo, das forças gerais que animam um povo, que lhe dão uma
fisionomia. Não é preciso submeter uma à outra, nem chegar aos excessos que o
naturalismo crítico, pseudocientífico, pretendeu implantar. [...] Literatura é
independência. “Uma nação apenas se eleva à dignidade da história através da arte e
sobretudo pela literatura, que lançam suas raízes numa vida econômica intensa e
exuberante”209.
A citação entre parêntesis é do filósofo francês François Mentré210, autor da obra Les
générations sociales lançada em 1920, e marca uma passagem no interior das reflexões de
Tristão de Athayde em que o conceito de “geração”, antes visto com ceticismo (“geração é eu
e meus amigos”), passa a ser o condutor acerca das variações da cultura intelectual brasileira.
O que desponta na reflexão sobre “política e letras” é o quanto estas últimas participam
efetivamente da primeira. Daí considerar que os “homens de letras” de quase todo o período
colonial terem se dedicado apenas “às “letras de importação” e que “nenhuma intervenção
206
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 56.
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 56-57.
208
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 57.
209
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 59-60.
210
Sobre Mentré Cf. ATTIAS-DONFUT, Claudine. La notion de génération : usages sociaux et concept
sociologique, L'Homme et la société, Paris, no 90, 1988, p. 40.
207
415
tiveram, naturalmente, no governo da Colônia”. Não haveria aí “nenhuma ou quase nenhuma
preocupação com os problemas locais. Olhos em Portugal, só ansiavam pelo dia de pisar de
novo o solo europeu. Seria absurdo pretender o contrário”. Daí o valor dos inconfidentes:
É quando a contradição existente entre os pruridos literários e a vida do país tende a
diminuir. Quando os poetas de Minas entram em conspiração com outros elementos
da terra para tentar a independência. É preciso não encarecer a importância desse
episódio. É preciso também o não desconhecer. Fossem quais fossem as
responsabilidades conscientes, ou a atitude posterior dos conjurados, o sinal dos
tempos é significativo. Foi o primeiro ensaio de intervenção efetiva, em nossa
história, dos homens de letras na vida política do país211.
Após a Independência, ainda não seria apropriado sequer falar em “homem de letras”,
afinal, apenas “à medida que a civilização modela a vida e a figura de um país é que podemos
verificar nos homens essa variedade profissional, que indica a complexidade crescente da vida
coletiva e o desenvolvimento correspondente da vida mental de um povo”212. Haveria a partir
de então a “colaboração pela primeira vez da ‘inteligência’ brasileira nos negócios públicos”:
Pode-se mesmo dizer que a independência foi antes uma conquista intelectual e
política do que um movimento revolucionário popular. Os Mocamboas não
faltaram... Mas a obra grande e eficaz operava pela ação das inteligências, das
melhores inteligências do tempo, como Evaristo da Veiga ou Odorico Mendes, como
Hipólito da Costa ou Silva Lisboa213.
Porém, é no “planalto político” criado a partir da Maioridade, que desenvolve-se a
“verdadeira iniciação” das letras pátrias. Tal produção, contudo, teria perdido seu valor:
Uma aspiração de independência: o indianismo. Uma forma nova, dentro do
inevitável mimetismo de uma literatura apenas nascente: o romantismo. Uma nova
figura: Gonçalves Dias. Nomes, pouco importam. Quem se dá ao trabalho de ler hoje
Magalhães ou Porto-Alegre? O que conta é o estado de espírito. E daí a nossa escassa
tradição literária. A tradição só se forma quando se lê o passado por gosto e não por
curiosidade. Quando o passado é sempre presente. A não ser um pouco de Gonçalves
Dias, quem lê hoje a primeira geração romântica?
Assim, enquanto a primeira geração romântica agira, a segunda “iniciara” e a terceira “tomava
posse do terreno e da consciência de sua missão”. O romantismo imprime a política nas letras:
Naquele momento, sentimos realmente pela primeira vez o sentimento brasileiro da
criação literária. [...] A literatura imperial, como a política imperial, procurava criar
para o Brasil uma fisionomia espiritual que iludia aqueles que a concebiam.
Julgavam ter realizado uma arte brasileira, adaptando moldes europeus a paisagens
tropicais – como os estadistas pensavam modelar socialmente o Brasil adaptando
formas parlamentares europeias à anarquia e apatia americanas.
Este “sonho de brasileirismo” teria o valor de Castro Alves, mas era José de Alencar, deputado,
ministro e publicista quem encarnaria a “figura nacional por excelência”. Alencar, segundo o
crítico, “procurou a verdade e a ficção. Nunca as dissociou. E nesta, sentiu como ninguém toda
a complexidade pátria, toda a variedade de aspectos que procurou refletir em sua obra de
211
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 60-61.
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 61.
213
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 62.
212
416
romancista. Fez uma obra menos de inspiração que de vontade”214. O outro lado do romantismo
era o dos que não se preocupava com tais questões, revelando que “o homem brasileiro já se
sentia tranquilo nos limites de sua pátria, e voltava-se então para si mesmo”, de tal maneira que
“seu pesadelo eram as paixões. Era o coração que os atormentava. Era o subjetivismo delirante,
por vezes genial como nos lampejos de Álvares de Azevedo, que lhes guiava a chama literária”.
O republicanismo, ou seja, os anos 1870, traria o naturalismo nas letras. Especialmente
a partir da Escola de Recife. As novas gerações, agora inspiradas por obras como O Mulato
(1881) de Aluísio de Azevedo, “sorriam da ingenuidade literária de seus antecessores, e, em
nome da verdade, aboliam o lirismo”. Tratava-se de outro momento:
E a nova era surgia das imprecações contra a “tirania” de Pedro II e a “anemia” de
Alencar. [...] seria ocioso investigar se o naturalismo foi um mal ou um bem. Não
podia ter sido de outra forma, dado o impulso inicial de mimetismo nossas letras,
como de nossas instituições políticas. Em poesia, deu-nos o parnasiano, isto é, alguns
dos melhores poemas de nossa literatura, dos mais atuais de nossa aceitação ou
repúdio moderno. Em prosa, deu melhor, porque aproximou a tendência nacionalista
do romantismo, da nossa verdade nacional215.
A realidade republicana apresentaria um caráter complexo que, apesar de uma “apatia
e uma debilidade aparentes”, tornaria explícita a existência de um país que progredia de maneira
desigual, sem ideal único, havendo uma “coexistência cada vez mais viva de épocas literárias”:
Acotovelam-se em todas as gerações homens que adormeceram no naturalismo e
mesmo no romantismo; os que acreditam que o simbolismo ainda é uma novidade.
Os que importam o dadaísmo como elemento terapêutico de dissolução. [...]
Estamos, realmente, como em nenhuma época, talvez, da nossa história, diante “de
uma multiplicidade de tempos de crescimento”, que torna o nosso tempo anárquico
de aparência. No fundo, porém, seguimos o fio fatal da evolução interior216.
A contraposição entre a literatura imperial e a republicana evidenciaria na primeira a orientação
romântica, o brasileirismo, o sentimentalismo na inspiração, assim como uma suposição do
“Divino”, ao passo que a segunda teria “oscilado entre o regionalismo e o cosmopolitismo;
entre a verdade provincial, dialetal, local da terra e a expressão universal ou nitidamente ligada
às correntes literárias europeias mais modernas. E, sobretudo, uma literatura sem Deus”. Assim,
o Império foi “unitário e católico”, enquanto a República era “federativa e ateísta”.
Tristão de Athayde comenta tratar-se de uma “feição geral dos períodos” e lembra
palavras de Albert Thibaudet: “uma das heranças definitivas que o século XIX nos legou foi a
ideia bergsoniana da durée, da continuidade, do fluxo de vida que prende todos os fenômenos
no espaço e mantém no tempo a fusão das épocas”217. Assim, percebe-se a existência de “uma
formação interior da história, cuja importância avulta para a compreensão dos homens e das
ideias. Nada vive isoladamente. Tudo é uma preparação à vida”. Daí os significados gerais da
214
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 63.
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 64.
216
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 65.
217
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 66.
215
417
passagem do Império para a República no Brasil:
O naturalismo foi a forma literária do materialismo republicano que ganhara os
espíritos. E, filosoficamente, os guias mentais da nova geração eram Comte ou
Spencer, Haeckel ou Darwin, Renan ou Taine, sem grande distinção de categorias.
As famosas “demolições” do século XIX ganhavam os nossos espíritos, e o
romantismo [...] não oferecia grande resistência aos novos ideais218.
Na esfera política, porém, a dinâmica parlamentarista do Império teria cedido às manobras
republicanas marcadas por uma dose maior de imprevisibilidade:
Politicamente, ao passarem das lutas claras e, quanto possível, polidas do Parlamento
[...] para as lutas imprevistas do presidencialismo republicano, regime de arestas
vivas, em que a oposição trama na sombra e a autoridade degenera facilmente em
tirania civil ou dos quartéis219.
Apesar de dizer não ser um saudosista monárquico, tal sentimento se depreende de seu ensaio:
O que não impede de verificarmos que o Parlamentarismo brasileiro era apenas uma
ficção, que em setenta anos não conseguiu senão dar uma imagem ilusória da
nacionalidade, nem resolver os seus problemas essenciais, e ao mesmo tempo
observarmos que as novas tendências literárias de então nos deram depois algumas
das obras mais perfeitas de nossas letras220.
Dessa forma, os regimes políticos do Brasil independente seriam marcados por
fragilidades e falhas essenciais, não se podendo saber mesmo qual deles era o pior. No tocante
à literatura, sugere-se uma imagem geográfica para se compreender a história literária:
Os meridianos literários serão os grandes sentimentos humanos, as atitudes
essenciais do homem perante os problemas eternos, suas ideias fundamentais. Os
paralelos literários serão as épocas e as escolas, as formas que, no correr dos tempos,
vão assumindo esses problemas, essas ideias, esses sentimentos. A diferença estará
apenas em que esses modos de ser essenciais do espírito são ilimitados, e limitados,
portanto, os meridianos, ao passo que o tempo acrescenta sempre novos paralelos
àqueles que o passado traçou. Porque os homens procuram sempre ver as mesmas
coisas com outros olhos, sentir o que há dois mil anos sentiam mas com outro
coração, mostrar que, se nada há de novo embaixo do sol, há sempre um modo novo
de compreender o que existe embaixo do sol.
É no Parlamento imperial que o crítico reconhece a originalidade da produção intelectual da
época monárquica. Daí decorre uma questão polêmica do ensaio:
No Parlamento está a verdadeira literatura brasileira desse período imperial de nossa
história. [...] O Parlamento foi realmente, por meio século, a essência viva do Brasil
e o seu espelho. E nisso não vai apenas um elogio. [...] Mas a fisionomia que o
Império imprimiu à vida brasileira, desse longo planalto do século XIX, encontra no
regime parlamentar sua expressão real. E enquanto a inteligência literária cá de fora
se deixava em regra arrastar pela imitação, ou por uma fantasia mórbida e um
sentimentalismo sem força de impressão e de originalidade, lá dentro a inteligência
podia expandir-se sobretudo mais presa à realidade concreta de nossa existência
nacional. Era uma literatura falada [...] superior em suma, à generalidade da literatura
escrita de então.
Ciente do caráter heterodoxo de tais considerações, ele reforça seu julgamento, revelando como
o termo “Letras” que intitula o ensaio devia ser tomado em um sentido largo:
218
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 66.
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 66-67.
220
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 67.
219
418
Se mesmo aí, no Parlamento, o sentido da imitação prejudicava muito a originalidade
dessa literatura de eloquência, muito menos grave era o mal do que cá fora, nas letras
escritas ou de mera ficção, muito mais artificiais e efêmeras que a outra. [...]
Percorram-se os jornais do tempo. Passam-se meses sem que um só livro de interesse
venha a lume. Imprimem-se folhetos insignificantes, livros de ensino, poesias
lacrimosas e ilisíveis, banalidades intoleráveis. Ao passo que rara é a semana em que
no Parlamento não se ouça um discurso digno de ser ouvido. É ali que o espírito da
raça se exprime com sinceridade e com arrebatamento, com personalidade221.
Com a queda do Império, a República fecha o Parlamento e a literatura “se torna
realmente livre”. Tal processo marcaria um direcionamento à independência e à autonomia que:
[...] apresenta uma riqueza de criação mais intensa que em outro qualquer período
de nossas letras. Esses vinte e cinco anos do século XX já podem apresentar um
patrimônio literário, que não encontra paralelo, em opulência, a nenhum outro
período de nossa história. Isso não quer dizer que esse movimento de independência
já se tenha consolidado. Longe disso. Nem há de ser provavelmente em nossos dias
que a nova tendência produzirá seus frutos. Mas o caminho está traçado222.
Cem anos após a emancipação política do país, o tema da independência permanecia como uma
questão recorrente. No período republicano, as letras teriam uma nova função:
Já não será no interesse e na surpresa pela nova terra, como no período colonial, ou
no esforço pela formação política e social da nacionalidade, como na era imperial,
que a literatura poderá encontrar seus elementos de originalidade. É por si mesma,
doravante, que ela tem de valer. [...] Doravante, se se abandonar inteiramente à
inveterada preguiça da imitação, já não terá outro recurso de originalidade, e a
inteligência se dissolverá no cosmopolitismo ou se fará raquítica e enfezada no
regionalismo. A responsabilidade, portanto, da inteligência brasileira, na nova fase
que a República abriu para a nacionalidade, é maior do que nunca foi. [...] Ou se
tornará independente ou vai confessar o seu irremediável fracasso223.
O crítico traça as seguintes considerações que, no fundo, procuram caracterizar o lugar
que Machado de Assis ocupa neste período de transição política e cultural:
Mas a República foi a obra imediata dos militares e do parlamentarismo liberal, com
o apoio despeitado ou a condescendência dos conservadores monarquistas e
favorecida apenas por uma pequena propaganda política [...] A República fez-se,
portanto, em grande parte, à revelia das letras. E estas a aceitaram, em geral, sem
oposição nem entusiasmo. Nos espíritos, a República já fora há muito proclamada.
A atitude de Machado de Assis, a maior figura da época, é bem expressiva do
indiferentismo com que a literatura encarava o novo regime224.
A obra de Machado traria dentre os traços de sua originalidade seu caráter político específico:
Ao passo que toda a nossa literatura até então, no que tivera de mais original, fora
um recurso à Natureza, Machado de Assis foi deliberadamente ao Homem, mostrou
que não somente no verde de nossas matas se devia procurar o motivo para criar. As
Memórias Póstumas de Brás Cubas marcavam, em 1881, um momento capital das
nossas letras. Esta primazia psicológica, que levou Machado de Assis do humanismo
ao humorismo, não podia senão resolver-se no absenteísmo político e social. E a sua
atitude no movimento de 1889 está bem marcada nas páginas inesquecíveis do Esaú
e Jacó.
Machado de Assis representaria um indiferentismo recorrente das letras que, não
221
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 67-68.
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 68.
223
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 68-69.
224
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 70.
222
419
obstante, não poderia ser generalizado dentre os membros da geração que o sucedera. Na
verdade, o ambiente seria complexo, entre céticos, boêmios, idealistas e nacionalistas radicais:
Enquanto a república mergulhava no militarismo, seu mal de origem, os homens de
letras se isolavam como Machado e os primeiros parnasianos; desperdiçavam-se
pelos cafés, como toda a “boêmia” de então, dos bigodes empinados de Mallet ao
vozeirão de Paula Ney, de candura de Fortúnio às truculências de Murat, da
improvisação superficial de Valentim Magalhães às exaustivas observações de
Aluísio, das estilizações de Anselmo Ribas aos ardores de Bilac; procuraram, no
isolamento, com ansiedade o mal secreto da nacionalidade, como Alberto Torres; ou
então, raros e sem eco, entravam em cheio na batalha política, como Eduardo Prado
e Raul Pompeia225.
O crítico considera como forças opostas o conservadorismo de Eduardo Prado e o idealismo de
Raul Pompeia. Ambos, porém, concordes no apreço à “ordem” e à “autoridade”:
Visaram ambos à conservação do Brasil, da precária civilização brasileira, embora
pregando remédios distintos. Combatiam, cada um por seu lado, o instinto
demolidor, o “negativismo da descrença”, as ameaças à nacionalidade e à unidade
brasileira. [...] enquanto Prado defendia vivamente o Império e a tradição, que nos
haviam dado o feitio moral e a configuração nacional, Pompeia sustentava
apaixonadamente o idealismo republicano, que viera colocar o país na posse
definitiva de seu ser, embora combatido interiormente por males desesperadores226.
Várias são as considerações acerca destes intelectuais. Sobre Pompeia, Tristão de Athayde
aponta que ele “iludia-se” com “a tranquilidade do dia 15, da parada garbosa e incruenta, da
‘revolução pela ordem’. Não via o veneno nas raízes. Como naquele momento não havia febre,
não procurou diagnosticar o mal interior”. Pompeia não teria percebido os riscos do militarismo
republicano, pois “julgava que a função das forças armadas, no movimento de 89, fosse apenas
de catalisador”. Eduardo Prado, por seu turno, seria menos lúcido que Pompeia, uma vez que
não percebia que “fossem o que fossem os vícios de origem, a República era a lógica fatal da
nossa história”. Assim, apesar de Prado ver, “com toda lucidez, a origem e a verdade atual da
situação”, acabava por pregar “um remédio ilusório, impossível”227. Os dois intelectuais
representariam a maneira como as letras podiam envolver-se na política:
Faltou um derivativo a esse puro artista [R. Pompeia], transviado nas lutas penosas
de um início de regime, na “profunda convulsão moral com que a transformação da
República abalou a nossa sociedade por todas as formas, por mil modos”, segundo
suas próprias palavras. E só na morte violenta ia encontrar repouso, que Eduardo
Prado dois anos mais tarde, depois de Canudos, e do ataque sofrido pelo seu jornal,
pode encontrar “num pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre”228.
A morte de Pompeia e o exílio de Eduardo Prado marcariam a cisão crescente entre a literatura
e a política até a emergência do principal fato vivido até então pela jovem República:
O absenteísmo intelectual de uns; a boêmia desperdiçada de alguns; a angústia ou a
desesperança de outros, levavam as letras a campo diverso daquele a que os males
naturais do regime em início ou a inépcia dos homens conduziam o país. Até
225
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 72.
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 63.
227
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 74-75.
228
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 76.
226
420
Canudos. Canudos foi um aviso tremendo229.
Não importava que a República houvesse, por fim, “vencido” a Guerra e mesmo saído reforçada
do conflito, seu significado seria mais profundo que a mera destruição do arraial de Belo Monte:
Canudos era o resultado de um longo erro, de um erro secular. Era o artifício da
civilização brasileira que ali se expunha à luz da mais terrível realidade. Era o
Império, com o seu litoralismo; era a República, com a sua corrupção militarista, que
ali se julgavam afinal. A República desorganizara a autoridade e portanto a unidade
nacional; o Império não conseguira organizar a civilização no Brasil, eis o que
revelavam aqueles fanáticos broncos e formidáveis do Vaza Barris.
E do trágico conflito surgiria a figura de Euclides da Cunha cuja função principal seria a
denúncia daquele artificialismo que parecia caracterizar as instituições brasileiras, políticas e
intelectuais, em sua relação com a realidade do país. Retrospectivamente, o “realismo” tão
reivindicado pelos teóricos dos anos 1920 teria sua “origem” na obra de Euclides da Cunha:
Ele vinha mostrar, eloquentemente, e com fatos, o erro do litoralismo político, que
fora na Monarquia o parlamentarismo, importando fórmulas e confundido ficções
com soluções. [...] Literariamente, vinha revelar o erro do esquecimento em que jazia
a massa dos homens brasileiros e dá aos vindouros um exemplo incomparável de
originalidade, ao tomar em suas mãos a miséria bárbara americana, e procurar
exprimi-la, sem a correção de escolas e preconceitos. E criou um estilo – o que é
realmente a obra suprema de um artista230.
Ao fim do alentado ensaio, o crítico afirma a herança antagônica que os brasileiros
receberam de seus antepassados, cujos males deveriam nortear os idealismos futuros:
O problema da civilização brasileira é um problema de assimilação. E o resultado a
que chegamos hoje, em quatro séculos de lenta nacionalização, é justamente o
contrário. Na política – a oposição de cesarismo e caudilhismo; nas letras – a
oposição de regionalismo e de cosmopolitismo. As duas forças que operam em toda
a civilização sul-americana ainda não conseguiram anular-se entre nós.
O autor teme que qualquer uma das orientações, se levadas ao extremo, poderiam levar a males
ainda maiores do que os já vividos:
Que subsistiria do Brasil se vingasse o precedente de uma interrupção brusca da
unidade do governo? Quantos anos de anarquia? Que probabilidade de dispersão
definitiva desse milagre da unidade, que só o artifício imperial conseguiu manter e
consolidar? Que desastre, talvez irreparável, para a nacionalidade? Por outro lado,
que esperança de solução do nosso problema nacional se o caudilhismo é um
elemento inato da nacionalidade, e se queremos resolver o problema do todo pela
supressão de uma das partes? Tem sido esta solução empregada dezena de vezes (e
há circunstâncias em que se torna inevitável), mas o resultado é sempre o mesmo. O
ressurgimento do instinto demolidor com mais vitalidade, com mais perfeita
organização e palavreado mais retórico231.
Ele defende que “o tempo e o bom senso” tragam soluções políticas, em um processo de
“assimilação das forças vivas da nacionalidade americana, por natureza anárquicas e incultas,
pelas forças vivas da espiritualidade, tantas vezes desviadas pela paixão do poder, mas afinal
229
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 76.
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 77.
231
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 78.
230
421
cultivadas pelo idealismo e pela experiência do ocidente cristão”232.
No caso da produção literária, esta seria acometida por semelhantes problemas de
“instituições transplantadas” e “letras importadas”. Aí estaria o “dado essencial de nosso
problema de civilização” e, portanto, de “nosso problema estético”. As duas faces da medalha
brasileira eram Machado de Assis e Euclides da Cunha, mas a medalha era uma só. O crítico se
questiona sobre as orientações que caberiam à arte literária brasileira:
Literatura brasileira, dizem uns pensam outros, é por ora uma utopia. Limitemo-nos
a fazer o que o mundo moderno pede que façamos. Sejamos românticos, e seremos
românticos; sejamos naturalistas, e seremos naturalistas; sejamos simbolistas, e
seremos simbolistas; sejamos futuristas, e seremos futuristas. E o que é ainda mais
frequente, fazem-no sem dizer que o fazem. É o cosmopolitismo. Artifício – clamam
horrorizados os adversários. Se queremos ser nacionais, olhemos para as nossas
matas, para os nossos rios, para o nosso céu; inspiremo-nos nos temas da nossa
história; voltemos as costas deliberadamente, a todo mimetismo; sejamos bárbaros;
queimemos, em efígie, o Partenon e fuzilemos Marinetti; sejamos nossos para ser
novos. E assim se chega ao regionalismo. Duplo engano, como fora o engano político
da solução exclusivista. Não há apenas um artifício na inspiração em escolas
alienígenas, nem se alcança uma expressão nossa, pelo simples recurso a temas,
ideias ou formas indígenas233.
O caminho sugerido é o de um lento processo de assimilação segundo o qual nem o
regionalismo nem o cosmopolitismo atingiriam a “verdadeira originalidade” se orientados em
soluções restritas: “Ser nacional é criar uma nacionalidade e não submeter-se a ela”.
“Criar uma nacionalidade”, este é objetivo colocado como questão final do longo
ensaio “Política e Letras” de Tristão de Athayde. Em um país desagregado, dividido em regiões
com marcos de progressos diferenciados, uma população diversa em sua cultura e instrução,
caberia aos intelectuais produzir “uma literatura imperiosa e fecunda” que só poderia ser levada
a cabo se enfrentasse o problema da falta de “uma integração social e moral”. Para tal desafio,
seriam necessários “os homens ou antes as gerações de gênio que consigam realizar a síntese
dos antagonismos atuais”234. E não é isso que se procura na tradição ensaísta das décadas de
1920 e 1930? A produção de sínteses interpretativas do país torna-se a obsessão da cultura
intelectual brasileira. Não se trata de inspirar-se na “cor local” para garantir o nacional, nem de
se vestir o autóctone com a roupagem importada para lhe dar ares de universalidade, mas de se
encontrar/produzir este retrato, essas raízes, a linha mestra evolutiva, o caráter fundamental que
fizesse com que as instituições políticas e intelectuais do país se tornassem menos estranhas ao
próprio conjunto formador da “nação”. Esta deve ser unificada, des-regionalizada, integrada, o
que significa que o federalismo republicano torna-se um empecilho aos anseios de
nacionalização. A velhice da primeira República significa no interior da cultura intelectual o
232
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 78.
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 78-79.
234
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 79.
233
422
apelo à diversidade em si mesma, enquanto que os movimentos políticos passam a procurar a
centralização do poder e as orientações artísticas e intelectuais, por seu turno, visam a
nacionalização da cultura como meio para a sua “universalização”.
Do “futurismo” ao nacional incógnito
Em dezembro de 1923, Jackson de Figueiredo, já funcionário do governo Artur
Bernardes, publicou uma série de artigos, no tradicional jornal Gazeta de Notícias, intitulada
“Literatura reacionária”. O objetivo era dar conhecimento aos leitores acerca de uma:
[...] literatura de reação, antirromântica, que vai, ora definidamente católica, ora
revestindo-se somente do senso prático social, do Catolicismo, não só reduzindo à
poeira os abastados créditos das doutrinas individualistas e materialistas, como, de
alguns anos para cá, assentando já as bases de uma remodelação social, consciente e
positivamente inspirada nos ensinamentos da Igreja235.
Ele pretendia tornar claras as exposições acerca do “ideal antirrevolucionário” que teria já
concretizações no “fascio da Itália” e no “riverismo da Espanha”. Os principais intelectuais
escolhidos eram o suíço Auguste Viatte, autor de Le catholicisme chez les romantiques, e o
crítico literário da Ação Francesa, Henri Massis. Ao passo que o primeiro valeria por “um
programa de inovação da mentalidade política entre os próprios católicos”, o segundo
explicitaria a orientação católica em crítica literária. Além disso, Figueiredo tratou das obras de
Perilo Gomes, Ensaios de crítica doutrinária, e do Padre Leonel Franca, A Igreja, a Reforma e
a Civilização. A reunião de tais produções revelaria a “ligação de caráter o mais íntimo que há
entre as tentativas tradicionalistas, monarquistas, integralistas, enfim, reacionárias, em todos
esses países, mesmo no nosso, e a intensa produção intelectual católica desses últimos vinte
anos, máxime nos países de cultura latina”.
Tais considerações procuravam fazer reparos aos “envolvimentos futuristas” de
Ronald de Carvalho. Este teria um “espírito francês” e um “espírito de ordem”, mas estaria a
dar “ouvido a essas sereias de indisciplina e fuliginosas imaginações... Pois é difícil apreender
em que sentido evolveu o sr Ronald dos seus ‘Poemas’ e da sua ‘Pequena História’ aos seus
‘Epigramas’ e ao seu último artigo do ‘O Jornal’”236. O artigo citado por Figueiredo é “A
Revolta dos Anjos” que talvez por suas metáforas bíblicas tenha chamado a atenção do
intelectual católico. Uma delas é a epígrafe com uma passagem do Deuteronômio: “Observa o
mês dos frutos novos, que é o princípio da primavera...”. A imagem de nascimento e recomeço
é significativa neste período em que se produz de maneira quase interminável uma série de
projetos, ideias, manifestos, metáforas, interpretações, análises e juízos no interior da cultura
intelectual brasileira que se colocam numa disputada posição de criação, de ação inaugural, de
235
236
FIGUEIREDO, Jackson de. Literatura reacionária, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 dez. 1923, p. 2.
FIGUEIREDO, Jackson de. Literatura reacionária III, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 23 jan. 1923, p. 2.
423
invenção, seja de uma nova arte, seja de uma nova política. Muitas vezes, das duas coisas.
Mesmo os reacionários falavam em “inovação da mentalidade”. A “Revolta dos Anjos”
explicitava tal condição:
Os Tronos, as Potências, os Serafins, todas as ordens maiores e menores que ruflam
as asas cândidas no firmamento das nossas artes, girando e regirando em redor do
sinistro Deus-Preconceito, estão brandindo as espadas de fogo contra os anjos maus.
Remova-se a tradição do Gênese. [...] Há novas maçãs na Árvore da Sabedoria. Há
novas serpentes nos jardins paradisíacos237.
O autor retoma a Semana de Arte Moderna como um marco depois do qual “a inteligência
brasileira não tem mais o direito de ficar atrelada aos varais de um quinhentismo senil, de um
gagaísmo empalhado”. A “revolta dos anjos” seria contra os “gramaticalhos rebarbativos”, “os
remanescentes do ‘parnasiano’” e do “arcadismo”, o “virtuosismo superficial e tímido”, o
“regionalismo de empréstimo”, a “velhice precoce dos adolescentes desalentados” e “a teimosia
solerte dos anciãos retrógrados em querer dirigir e orientar”. Sobre o “futurismo”, Ronald de
Carvalho o considera “coisa velha e revelha, um espantalho para as crianças mal comportadas
literariamente”. O autor emprega um plural que sugere a divisão na cultura intelectual brasileira:
Acusam-nos de inimigos da tradição, da ordem, da disciplina, do método. Mas quem
está com a razão? Nós, que desejamos uma arte livre, que represente a nossa vida
brasileira, o tumulto das nossas forças em ascensão, a índole da nossa raça, neste
momento histórico, ou os que se esterilizam na cópia disfarçada e inócua dos Fr.
Heitor Pintor, dos d’Annunzio, dos France, dos Renan, dos Verlaine, os que não
veem que a imaginação criadora é que prepara as realidades do futuro?
A própria existência da tradição literária brasileira é questionada quanto ao seu valor intrínseco:
Qual é essa ordem, essa disciplina, esse método, essa tradição, em suma? Temos,
porventura, como a França, a Alemanha, a Inglaterra ou a Itália o que se
convencionou chamar “espírito universitário”? Qual é a nossa tradição literária? A
dos românticos, que imitaram Victor Hugo, Byron, Espronceda? A dos parnasianos,
que se inspiraram nos “Poèmes Barbares”, nos “Trophées”, no “Intermezzo”, de
Heine, nos “Noturnos”, de Gonçalves Crespo? A dos simbolistas, que foram buscar
nas “Fleurs du Mal”, nas “Fêtes Galantes”, no “Chariot d’Or”, nas “Vies Encloses”,
os seus motivos preferidos? Digam, por favor, senhores tradicionalistas, onde estão
as colunas inabaláveis das nossas tradições literárias? [...] Não temos ídolos, temos
ideias. Interessa-nos a totalidade do fenômeno brasileiro.
Carvalho incorporava o impulso sintético a fim de dar conta da “totalidade do fenômeno
brasileiro”, o que significava reavaliar o passado segundo uma nova disposição do presente:
É preciso mostrar ao país que não temos escolas, que os mestres da juventude ainda
estão por vir, que o pensamento brasileiro ainda não encontrou a sua finalidade
superior. E é preciso, sobretudo, rir generosamente, rir atordoadamente no rosto
pergaminhoso desses falsos doutores sutilíssimos, que, por tantos anos, dilapidaram
a nossa inteligência, atalhando-a de noções apressadas, ridículas e inúteis. Também
os anjos se cansam de divagar na Eternidade...
Tal perspectiva gerou a reação do católico Jackson de Figueiredo que lamentava as
novas ideias de Ronald de Carvalho. Este último, por sua vez, responde ao “querido amigo”
237
CARVALHO, Ronald de. A revolta dos anjos, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 jan. 1924, p 1.
424
com o artigo “Morra o futurismo”:
Estamos empenhados, todos quantos refletimos sobre o grave assunto da cultura
brasileira, numa batalha, em que mesmo a paixão violenta é imprescindível. Será,
portanto, desleal e perigosa qualquer fuga nesse terreno incerto, que precisamos
conquistar inteiramente, a fim de realizar os nossos objetivos238.
Seguindo os escritos de Giovanni Papini, principalmente a obra L’esperienza futurista (1919),
de onde retira seguidas citações em italiano, ele descreve as origens do futurismo:
O futurismo foi também um movimento político. A Itália adormecida de Carducci, a
Itália papirizada e congelada da Academia della Crusca, das nevroses d’annunzianas,
continuadas por Benelli, da crítica empalhada de Ojetti e Del Lungo, a Itália
imitadora de Baudelaire e dos naturalistas; a Itália dos revezes na África, sem
prestígio no Adriático, onde Polla, e não Veneza, era a cabeça mestra; a Itália, sem
os caminhos do Mediterrâneo, onde a esquadra de sua majestade britânica dominava
e cruzava impunemente; a Itália, forçada a entrar num pacto de aliança com os seus
inimigos tradicionais; a Itália, entregue aos conservadores intolerantes e seriamente
ameaçada pelas sucessivas crises econômicas; a Itália, sem carvão e sem ferro, os
dois fatores das grandes potências modernas, estava diante deste dilema inevitável:
ou reformar os processos caducos, ou desaparecer, tutelada pela Áustria, pela França
ou pela Inglaterra. Foi nessa ocasião, [...] que Papini, rodeado de sua falange latina,
rompeu com um apodrecido tradicionalismo, que pretendia encarnar a tradição
italiana dos Dante, dos Julio II e dos Maquiavel.
Segundo tal raciocínio, haveria uma distinção entre o “futurismo” e o “marinettismo”, algo que
o próprio Papini desde 1915239 havia traçado, marcando um movimento cultural mais amplo:
Essa livre agitação de ideias [...] estratificou-se lentamente numa Escola. O
futurismo desapareceu no marinettismo. Marinetti pôs abaixo as linhas da arquitetura
papinista, codificando, regulando, petrificando a estrutura admirável que recebera.
O Estado futurista, propriamente dito, foi destruído pela administração Marinetti.
Como observou Papini, o marinettismo opôs à latinidade, à supercultura, ao desprezo
do culto do passado, à sensibilidade nova, à agudeza, à originalidade, à ironia, à
finura, à aristocracia, à paixão da liberdade, ao patriotismo, à combatividade do
futurismo, o germanismo, o americanismo yankee, a ignorância, o desprezo do
passado, o tecnicismo novo, o simplicismo, a forma esdrúxula, o profetismo, a
publicolatria, o imperialismo humanitário, a solidariedade estreita, o xenofobismo
e o militarismo240.
O autor procura valorizar a “tradição futurista” segundo os escritos de Papini e não de Marinetti,
pois a partir da “reação” do primeiro “se alargaram os horizontes da arte italiana, e dela surgiu
a figura dominadora de Mussolini, condottiere empolgante da Itália Nova [...]”. Assim, a “ação
futurista” devia ser vista como algo que se desenvolvera “na Itália, para o gênio italiano e para
as realidades italianas” e, consequentemente, estariam aí traçadas as “origens, vida, tragédia e
morte” do futurismo. No fim de seu artigo/carta, Carvalho procura uma posição conciliatória:
O que desejamos é integrar o Brasil no Universo, liberando-se de um passadismo
artificial, que não é o Passado de tradicionalismo fácil, que não é a Tradição. Tu,
dentro da Igreja, acompanhado aliás de muitos dos acoimados “futuristas” e, eu, fora
dela, na medida de minhas possibilidades, pretendemos em verdade a mesma coisa.
[...] O futurismo é também um passadismo. Morra o futurismo!
238
CARVALHO, Ronald de. Morra o futurismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jan. 1924, p 1.
Cf. FAUCHEREAU, Serge. Avant-gardes du XXe siècle, p. 139.
240
CARVALHO, Ronald. Morra o futurismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jan. 1924, p 1.
239
425
Apesar das explicações eruditas de Carvalho, o termo “futurista” continuará a ser empregado
para avaliar determinadas produções artísticas, intelectuais e culturais. Pode-se afirmar que os
“futuristas” tiveram de se integrar ao debate geral em torno da questão nacional, sob o risco de
terem sua ação muito restringida ou, mesmo, caírem no ridículo.
Em resposta a Carvalho, Jackson de Figueiredo reiterava sua crença que visava à:
[...] realização do bem – o que não é possível sem o culto da verdade integral, que é
a verdade, ou o conjunto de verdades, confiado por Jesus Cristo, filho de Deus vivo,
Deus vivo Ele próprio, à Igreja Católica apostólica romana, dura escolha de
disciplina, não resta dúvida, mas única fonte, que se conhece, de santidade e amor, a
que sacrifício nenhum consegue imitar241.
Tal modo de ser não “ia bem com futurismo”, mas ele reconhecia que ao menos não seria o seu
contraditor um “revoltado”. Ronald de Carvalho lança, então, um artigo intitulado “Estética”
que trazia como epígrafe uma ideia cara à filosofia kantiana: “a verdadeira beleza não tem
finalidade, mas é viva e livre”. Trata-se de um texto bastante erudito, com alusões a filósofos
da antiguidade e expoentes da época, procurando refletir sobre o estatuto do conceito de
“ordem”, central nas ideias de Figueiredo, como norteador da reflexão estética. Ele sistematiza:
Apresenta-nos a história das ideias estéticas duas estradas paralelas: a primeira é a
dos dogmáticos, a dos idealistas absolutos, a dos que subordinam o fenômeno
estético a uma categoria metafísica; a segunda, é a dos relativistas, a dos que
consideram o fenômeno estético através dos processos de introspecção
psicológica242.
Após densa argumentação, afirma-se uma posição crítica e reflexiva: “O que ficou de pé, em
matéria de estética, depois dessa longa controvérsia de séculos é que a arte não pode ser
explicada nem pelas categorias absolutas da metafísica nem pelos métodos experimentais
apressados”. Os juízos estéticos deveriam situar-se em condições e contextos específicos:
No fenômeno estético a primeira coisa que devemos considerar é a força da
expressão individual e humana que recebemos dele. Não houve um só metafísico,
um só idealista que pudesse explicar as fórmulas e as regras predeterminadas para a
criação da obra de arte. Se não, vejamos. Quando me referi à chicana da ordem, foi
na mais perfeita sinceridade de ânimo. Que é ordem? É uma categoria metafísica, e,
pois, variável, conforme a interpretação a que formos determinados. Ordem não quer
dizer “realidade”, nem “proporção”, nem “medida”, nem “bom-gosto”, nem “bom
senso”, nem o “belo”, em suma.
Sustenta-se, assim, a relatividade do próprio conceito de “ordem”: “Se aceitássemos uma
ordem preestabelecida, condenaríamos o Parthenon ou a Catedral. Com os dois não
poderíamos ficar [...] Eu prefiro por exemplo, o ‘Woolworth Building’ ao monumento de
Atenas e ao de Paris”. O mesmo se poderia dizer da ideia de ordem como “medida” ou “bom
gosto”. Acerca das produções artísticas contemporâneas, Carvalho conclui da seguinte maneira:
Em que espécie ou categoria de ordem preestabelecida, com as suas consequências
lógicas de “beleza”, “bom gosto”, “proporção”, poderiam ser enquadradas as cenas
de pura luz de Monet, a pintura sem construção real de Picasso, a poesia inumerável
241
242
FIGUEIREDO, Jackson de. Literatura reacionária IV, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 30 jan. 1924, p. 2.
CARVALHO, Ronald de. Estética, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 fev. 1924, p. 1.
426
de Whitman, ou a música do “Sacré du printemps”, de Stravinsky? Cada obra de arte
revela, portanto, uma ordem. Cada artista é uma fórmula nova do Universo243.
Apesar de Jackson de Figueiredo se considerar satisfeito com as respostas do autor,
este continuara sua reflexão, dessa vez associando à reflexão sobre juízos estéticos aquilo que
diria respeito às “raízes éticas” do movimento. No caso, combatia-se a ideia da inferioridade
brasileira e do brasileiro. Fala-se, então, de um novo homem distinto daquele do romantismo,
pois haveria àquela época “profundas modificações na substância nacional”:
O brasileiro de “escol” não é mais “filho de fazendeiro”, habituado aos longos
silêncios do sertão [...] testemunha de uma raça escrava, em cujo leite mamou as
primeiras dúvidas. E o brasileiro, em síntese, não é mais, tampouco, o exclusivo
produto de caldeamentos limitados a três grupos étnicos: o índio, o africano e o luso.
O italiano, o alemão, o polaco e o russo trouxeram a máquina para a nossa economia.
O Brasil industrializou-se [...]244.
O combate entre homem e natureza teria agora a força de uma “nova raça de sangue mais
temperado [que] vencerá o meio cósmico que os nossos maiores conquistaram”. A inspiração
em Graça Aranha permeia os escritos de Carvalho e tal visão do Brasil como uma terra inóspita
a ser conquistada por “homens superiores” é reiterada desde, pelo menos, a obra Canaã. No
caso, porém, trata-se mais explicitamente da demonstração da “ciência moderna” segundo a
qual “a civilização é uma conquista do homem sobre a natureza”. O realismo estético deveria
produzir a superação da melancolia brasileira através do “claro riso dos modernos”. A “alegria”
é o sentimento que conduziria a tal “libertação”: “Sejamos livres, portanto, para afirmar o nosso
ser, ou ‘alegres’, como queria Spinoza”. Poeticamente, as palavras deveriam ser postas em
liberdade, suprimindo-se adjetivos, advérbios, segundo a fórmula do Suplemento ao Manifesto
técnico da literatura futurista245 publicado por Marinetti em 1912, o que concederia “de novo
ao substantivo seu valor essencial, total e típico”. Tal perspectiva seria a de Blaise Cendrars,
Apollinaire, Mário de Andrade e do próprio Ronald de Carvalho.
Se a alegria era o meio de se combater “preconceitos infecundos”, a deformação se
colocava como condição primordial da inteligência artística: “O artista é, por excelência, um
deformador, um indivíduo que inventa uma super-realidade. [...] A própria palavra é uma
deformação da ideia”246. Excluído do termo “Brasil” a adjetivação tradicional (atrasado,
inferior, gigante adormecido etc.), a libertação do substantivo traria apreciações artísticas
variáveis. Assim como os teóricos políticos se abriam para a reflexão sobre novos regimes, os
escritores e intelectuais engajados na remodelação cultural tinham nas vanguardas a medida
para se reconstituir os parâmetros identitários nacionais.
243
CARVALHO, Ronald de. Estética, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 fev. 1924, p. 1.
Cf. CARVALHO, Ronald de. O claro riso dos modernos, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 fev. 1924, p. 1.
245
Cf. MARINETTI, F T. Suplemento ao manifesto da literatura futurista. In: TELLES, Gilberto Mendonça.
Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 101-103.
246
CARVALHO, Ronald de. O claro riso dos modernos, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 fev. 1924, p. 1.
244
427
A série de artigos de Jackson de Figueiredo também provocou resposta de Tristão de
Athayde. Ao tratar dos escritos do francês Henri Massis, Figueiredo o qualificava como uma
“moderníssima alma” que teria superado o dualismo entre ética e estética, mantendo-se, porém,
coerente com a doutrina católica. Sobre Tristão, ele comenta:
[...] tenho dito sempre que muito fez pelo ressurgimento da crítica literária no Brasil
contemporâneo, mas que isto se lhe deve mais ao caráter que à inteligência. Esta,
brilhantíssima, aliás, deixou-se dominar, no entretanto, pela moderna nevrose da
novidade, e fora inútil esperar que assim dominada pudesse exercer a menor função
benéfica, se o caráter que é, em certo sentido, uma espécie de inteligência social, não
fosse, nele, conservador e tradicionalista, por excelência, pelo menos nos seus
processos de repulsa a indignação, quero dizer, franqueza e absoluto horror ao
relativo...247
Em resposta ao “querido Jackson”, o crítico reconhece a função que a religião poderia exercer
na arte moderna, especialmente segundo o “sentido de mistério” que traria à tona:
Não nego meu querido Jackson a riqueza estética do senso do divino. Julgo mesmo
que a arte de amanhã ganhará sensivelmente com a deslocação da mentalidade cética
ou racionalista do século passado. A própria arte de hoje, reagindo contra o
naturalismo em prosa, contra parnasianismo em poesia, procura, até certo ponto,
explorar em beleza as novas fontes de mistério, que o pensamento contemporâneo
vai desvendando248.
Ele, porém, não concorda com as imposições segundo a “disciplina da ordem religiosa ou
moral” feitas às produções artísticas, e faz reparos ao crítico literário da “Ação Francesa”:
O esforço de Massis – e não desconheço a admirável contribuição, tão sutil,
inteligente e perturbadora da exegese católica moderna – no sentido de equiparar
catolicidade e universalidade em todas as ordens, parece-me levemente forçado.
Toda verdade que se coloca alheia à própria realização progressiva é uma limitação.
Tudo estaria, na verdade, na teorização acerca da especificidade da produção artística:
A beleza, a bondade, a justiça, a verdade, a sobrenaturalidade, etc... são cores do
espectro interior. [...] A arte é um esforço de toda a espiritualidade para a beleza,
como a moral o é para o bem, como o direito para a justiça, como a religião para a
nossa consciência do mistério.
A perspectiva da Henri Massis não deixaria a arte “escapar à moral”, especialmente com a
afirmação de uma filosofia verdadeira e de uma moral verdadeira. Dirigindo-se às afirmações
do intelectual católico, o crítico define a sua posição:
Se julgasse que o esforço da arte moderna [...] fosse apenas uma “nevrose de
novidade” não me interessaria por ele. Se o vejo com toda a simpatia [...] é que sinto
quanto há nele de necessário para o revigoramento de uma força criadora [...] e
sobretudo para a incorporação de novas forças, que o espetáculo do mundo de hoje
tem posto em movimento, aos motivos eternos de beleza, que há três mil anos e mais,
o homem vem tirando de si mesmo e do mundo sempre se esgotando e renovandose sempre.
A resposta do crítico não convenceu o intelectual católico que considerava que tal
questão encontraria “solução” apenas num debate mais profundo que em primeiro lugar:
[...] discutíssemos o ser e as suas divisões, as bases mesmas da metafísica, e, posta
247
248
FIGUEIREDO, Jackson de. Literatura reacionária VI. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 13 fev. 1924, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. O espectro interior, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 fev. 1924, p 1.
428
de lado toda vaidade, nos entregássemos a aborrecida tarefa de definir um por um
todos os objetos sobre os quais discutimos. Só após a caracterização da filosofia que
nos orienta é possível saber o por que pensamos desta ou daquela maneira em relação
a esta ou aquela coisa249.
O católico percebe no crítico literário a possibilidade de ele cair em um “intelectualismo
abstrato”, um “nocionismo”, que não encontraria saída para suas reflexões. A argumentação de
Tristão de Athayde é, então, repreendida em seu aspecto “materialista”: “A sua comparação da
bondade, beleza, justiça, às cores do espectro, às quais é possível isolar pela análise, se bem
que, cessada a decomposição, voltam para o raio, é de um lastimável materialismo [...]”.
O crítico retoma a questão, sem o desejo de “prolongar uma polêmica”, reafirmando
os direitos do artista frente às solicitações da moral e dos costumes estabelecidos:
O artista é o espelho que passa a criar imagens por si próprio. É a cera dócil a todas
as impressões que o universo comunica, com a graça de modelar um novo universo.
Não pode haver critério justo de verdade e de realidade para caracterizar a obra de
arte. A obra de arte é completa em si mesma. É em si mesma que ela encontra a sua
finalidade250.
Em relação direta com os valores católicos e a história do cristianismo, o crítico lembra que a
estética é também uma forma de conhecimento e que deve ser resguardada em sua autonomia:
Se Jesus nos trouxe realmente uma palavra de verdade imperecível, que iluminou
todo o Ocidente, se criou realmente uma nova “ordem moral” apenas pressentida
pelos homens ou pelo menos esparsa e indisciplinada em tentativas individuais ou
locais, vamos negar que toda arte anterior ao século I esteja viciada por esse erro
fundamental de eclosão? Não terá o paganismo criado um mundo de beleza, que se
não esgotou os temas da arte – porque a expressão dos homens só com eles morrerá
– realizou o ciclo completo de sua existência?
Acerca dos novos rumos da cultura, o artista é visto como figura fundamental à consecução de
projetos que ganharão conformações mais definidas e polêmicas. O crítico aposta no papel
fundador do artista que, talvez, viria “revelar” a verdade de uma época angustiada:
O artista é justamente aquele que vai além, que descobre novas realidades, que faz
recuar as aparências e nos revela a nós mesmos, melhor que um sistema filosófico
ou que a ordenação da dogmática religiosa, apesar de serem a religião e a arte duas
formas de conhecimento, em que os pontos de contato são inúmeros e provavelmente
comum, o ponto de partida. A arte só pode ser compreendida pelo espetáculo da arte
e essa independência da estética é a lição da história.
Como sugeriu Jackson de Figueiredo, o debate exigiria maiores investigações e
questionamentos acerca das posições gerais que cada um dos autores esposava.
As querelas que tomavam as páginas dos jornais, não raro, se desdobravam em
correspondências e o caso de Jackson de Figueiredo ganha destaque na trajetória de Tristão de
Athayde justamente pela força que essa relação missivista teve sobre os posicionamentos
futuros do crítico literário. Vale lembrar que todo este debate público era “controlado” por outro
travado na esfera privada. Este último, inclusive, podia ser mais interessante, ao menos no que
249
250
FIGUEIREDO, Jackson de. Literatura reacionária VIII. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 27 fev. 1924, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. A beleza total, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 mar. 1924, p 1.
429
toca às referências explícitas a autores envolvidos na questão, assim como por se caracterizar
por certa disposição para um tipo de expressão que, se por um lado, pode parecer mais sincera
devido ao foro íntimo, por outro lado, também possui um leitor-alvo, conformando-se assim o
discurso a essa condição primordial251. Tristão de Athayde considerava que não se deveria
confundir “espírito conservador político com espírito conservador literário”:
Sou, como você, um espírito conservador em política, embora julgue que essas
minhas ideias precisem de uma certa atenuação, em virtude da situação que tenho.
Sou suspeito de defender, embora com certas restrições, (admitindo as reformas
necessárias como fruto de evolução natural), uma sociedade que podem alegar que
defendo por interesse ou coisa parecida252.
O crítico reafirma a especificidade dos debates da cultura intelectual àquela época:
Devemos estar fartos, no Brasil, de coisinhas medidas e acadêmicas, por moldes
feitos e França, para uso de meninas de colégio. Sofremos de não ter a coragem de
ser novos, de procurarmos uma expressão nossa, embora bebidos os princípios
renovadores em literaturas estranhas. É possível que haja muita blague no que
escrevem esses novos de São Paulo. Nem algum deles nega isso, como o Mário de
Andrade. Mas é uma blague de combate, um pouco ingênua, sem dúvida, mas
necessária para agitar esse mar morto em que andam geralmente as nossas letras. [...]
Quanto ao que você diz sobre medida, moderação, etc., estou farto de ler isto nos
críticos franceses. Vou mesmo além: sou adversário do romantismo e você bem sabe
quanto estou ligado às ideias, mesmo estéticas, da “Action Française”. Apenas, há
duas coisas a pensar nesse ponto: primeiramente, que é preciso entender classicismo
[...] inteligentemente, como disciplina interior, domínio da própria sensibilidade e
força de vontade literária de forma a dar o máximo de intensidade à expressão do
mundo interior de intuições, de ideias, de imagens. E depois, que nós, brasileiros,
estamos perante um novo problema literário que não é o mesmo que tinham a
resolver os franceses [...], mas a quem por vezes vemos demais como autoridades
incontestáveis e como modelos a seguir com servilidade253.
Na associação entre arte moderna e conservadorismo ou progressismo político, o crítico lembra
um fator que nem sempre é posto em evidência nas histórias da arte e da literatura254:
Acaso você já leu a obra de Marcel Proust, de Paul Morand, de Jean Giraudoux, de
Tristan Derème? Limito-me a citar nomes de escritores [...] que pertencem à extrema
direita, intimamente ligados, senão filiados, à “Action Française”. Pois bem, em cada
um desses escritores, há uma nova forma de expressão artística, revolucionária
talvez para os que pensam como você em matéria de estética, mas não os impede de
pertencerem à geração e ao partido que prega a contrarrevolução. [...] Pouco me
importa louvar, ao mesmo tempo, um tradicionalista e um modernista, se em ambos
reconhecer talento, originalidade e sinceridade. E essa é mesmo a razão principal
porque chamei de expressionista a crítica que procuro fazer: quero o jogo das
expressões individuais e respeito a variedade delas, estimulando-as, enquanto me
251
Sobre características literárias e sociológicas das relações missivistas cf. SANTIAGO, Silviano. Suas cartas,
nossas cartas. Ora (direis) puxar conversa! Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 65; TREBITSCH, Michel.
Corespondances d’intellectuels. Le cas de lettres d’Henri Lefebvre à Norbert Guterman (1935-1947). Les cahiers
LIHTP, no 20, março 1992, p. 82.
252
Cf. FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 63.
253
Cf. FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 63-64.
254
Neste sentido, Antoine Compagnon comenta que a tradição antimoderna perdeu na política, mas venceu na
literatura: “Quase toda a literatura francesa dos séculos XIX e XX preferida pela posteridade, se não é de direita,
é ao menos antimoderna. Quando se recua no tempo, Chateaubriand triunfa sobre Lamartine, Baudelaire, sobre
Victor Hugo, Flaubert, sobre Zola, Proust, sobre Anatole France, ou sobre Valéry, Gide, Claudel, Colette [...]”.
COMPAGNON, Antoine. Os Antimodernos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 15.
430
pareçam conter uma força nova, uma vitalidade própria. Esse é talvez o ponto vital
da nossa discordância: você louva e prega a crítica dogmática, que submete as obras
a certos critérios fixos, julgando-as de acordo com esses modelos inflexíveis. A
minha crítica é o oposto disso: ela procura buscar a vida onde a encontre, e como um
dos males maiores da nossa literatura é o academicismo, e o ar confinado da
classicomania, é lógico que pode chocar por vezes os espíritos tímidos ou
dogmáticos, louvando certas inovações que parecem, à primeira vista, páginas de
hospício255.
Por fim, Tristão de Athayde afirma a sua identidade e seu lugar como crítico literário:
Onde você se engana é na importância que atribui às minhas críticas. Pouco valem e
menos valerão de agora em diante, quando se afastam de mim todos os que tomam
as letras a sério. Vou continuar mais do que nunca como até hoje: só. Pois recusarei
qualquer adesão a velhos ou novos, especialmente a estes, a quem nada devo e que
menos me devem. Sou e serei um franco atirador. É a minha sina: a de descontentar
no dia seguinte, aqueles a quem na véspera tinha tão plenamente satisfeito256.
O debate público levado a cabo por Jackson de Figueiredo, Ronald de Carvalho e
Tristão de Athayde nos primeiros meses de 1924 pode estar dentre as razões que levaram o
presidente da Academia Brasileira de Letras, Medeiros e Albuquerque, a realizar uma série de
palestras que procuraria “ajustar-se à curiosidade natural sobre as transformações das letras e
das artes” desde o início do século XX257. Anunciava-se que o acadêmico Graça Aranha falaria
sobre o “Espírito moderno”. Nos jornais, a apresentação era divulgada como um momento no
qual Aranha “apresentará opiniões suas, talvez um pouco irreverentes, sobre a ABL”, que seria
um “acontecimento extraordinário”, “um manifesto contra o academicismo, dentro da própria
academia”. O evento contou com a presença de intelectuais não acadêmicos como Mário de
Andrade, Rubem Borba de Morais, Oswald de Andrade, Manoel Bandeira, Tristão de Athayde,
Ronald de Carvalho, Renato Almeida e Augusto Federico Schmidt dentre outros258.
Graça Aranha inseria suas ideias na perspectiva de renovação nacional, num sentido,
aliás, bastante vago, porém sintomático do momento. Conforme Jardim de Moraes:
“O Espírito Moderno” é a plataforma de um projeto de construção da cultura
nacional. Veja-se a este respeito o final da conferência que levaria Graça Aranha a
abandonar a Academia: “O movimento espiritual, modernista, não se deve limitar
unicamente à arte e à literatura. Deve ser total. Há uma ansiada necessidade de
transformação filosófica, social e artística”. [...] Continuando a mesma linha de
pensamento de A estética da vida, ela vem acompanhar o surto do nacionalista de
1924259.
Segundo os relatos da época, a sessão daquele dia na Academia seria marcada por várias
manifestações da plateia, ora vaiando, ora aplaudindo o conferencista. Quando Osório Duque
Estrada pedira para falar após o fim da palestra, a coisa teria virado “um quase conflito” em que
“aquilo parecia uma sessão do antigo Reichstag austríaco”. O fato é narrado da seguinte forma:
255
Cf. FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 65.
Cf. FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 67.
257
MONTELLO, Josué. O modernismo na Academia. Rio de Janeiro, ABL, 1994, p. 37.
258
AZEVEDO, M H C. Um senhor modernista. Biografia de Graça Aranha, p. 327.
259
MORAIS, E J de. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica, p. 30-31.
256
431
A impetuosa vanguarda dos escritores modernistas abafou a voz do irritado crítico
do “Registro Literário”. O sr Osório, vermelho como uma crista de peru,
desconjuntava-se em gestos e atitudes de revolta contra os admiradores do sr. Graça
Aranha.” _ Fora bobo! Gramaticógrafo!... crítico de meia tigela! ... Vá limpar as
caspas do “fraque” e da sua prosa”...260
Enquanto uns saíam e outros entravam, Coelho Neto “abrindo a custo passagem entre os
revolucionários” improvisa uma fala e afirma que o conferencista “é um dos fundadores desta
casa, não podia cuspir no prato em que come”. Após outros gritos e recriminações recíprocas,
“dois dos mais robustos levantaram o sr Graça Aranha, colocaram-no nos ombros
acompanhados de uma multidão, cantando a ‘Internacional’ do espírito moderno”. Um destes
“robustos” teria sido Tristão de Athayde, ao passo que o outro poderia ser Murilo Araújo ou
Augusto Frederico Schmidt que executariam a façanha “enquanto os partidários de Coelho Neto
o arrebatavam da tribuna, levado nos ombros de Rafael Pinheiro e Osório Duque Estrada”261.
Tanto o clima agitado da sessão, em que “a assistência participava abertamente do debate”,
quanto seu desfecho foram relatados pelos jornais da época. Era, na expressão de um repórter,
o “batismo de fogo” da “Ideia Nova” 262.
No mesmo dia, a conferência era publicada no jornal A Noite, na manhã seguinte, saía
na íntegra no Jornal do Brasil e, como o autor atacava a Academia e elencava uma série de
autores que estariam lhe dando apoio, as reações partiam tanto dos simpatizantes da primeira,
quanto pelos nomeados como seus pares de “espírito moderno”. Estes seriam Villa Lobos,
Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Victor Brecheret, Renato
Almeida, Jackson de Figueiredo, Agripino Grieco, Manuel Bandeira, Paulo Silveira, Tristão de
Athayde, Menotti del Picchia, Ribeiro Couto, Oswald de Andrade além de “mil jovens sôfregos
de demolição e construção”.
Os primeiros a apontar as reações à conferência nos meios acadêmicos foram os
repórteres que começaram a indagar nomes como Coelho Neto, Carlos de Laet, Mário de
Alencar, Alberto de Oliveira e Azevedo Amaral que, em geral, eram reticentes ou
explicitamente contrários às posições de Graça Aranha263. Barbosa Lima Sobrinho falava em
“comédia literária” feita por aquele que era tido pelos pares como o “traidor à causa comum, o
sitiado que foi abrir a porta da praça para que entrassem os sitiantes”. Sobrinho afirma se tratar
260
Divergência entre “imortais”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 20 jun. 1924, p. 2.
Alceu Amoroso Lima rememora: “Fui, no entanto, daqueles que carregaram Graça Aranha nos ombros, na
Academia Brasileira de Letras, em 1924 [...]. Nessa função de ‘charoleiro’, creio que tinha como companheiro
Augusto Frederico Schmidt que dizia estar lembrado do fato. Assim também pensa Agripino Grieco em
depoimento a respeito. Mas Prudente de Morais Neto, que se encontrava presente a essa ruidosa sessão na
Academia, diz que foi Murilo de Araújo um dos que carregaram Graça Aranha nos ombros. O próprio Murilo
confirma a versão”. Cf. MONTELLO, Josué. O modernismo na Academia. Rio de Janeiro, ABL, 1994, p. 39;
LIMA, Alceu Amoroso et al. Alceu Amoroso Lima: Memórias Improvisadas, p. 68.
262
Cf. O espírito Moderno, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 jun. 1924, p 7.
263
O tumulto na Academia. “A contenda dos imortais”. In: MONTELLO, J. O modernismo na Academia, p. 67.
261
432
de “um movimento intitulado futurista” que “se apega a fórmulas sem maior expressão”264.
Medeiros e Albuquerque também dizia ter “algumas objeções”. Albuquerque apontava a
contradição em o acadêmico Aranha ser tido como “chefe revolucionário” do movimento. Além
disso, dentre os associados ao “chefe”, só haveria um parentesco: “as respectivas certidões de
idade que oscilam entre vinte e poucos e quarenta e poucos anos”. Apesar de reconhecer no
palestrante uma “grande ilustração”, contesta que “do que ele nunca nos precisará dar lições é
de patriotismo, é de nacionalismo. A Academia é brasileira e de letras brasileiras”265.
Neste sentido, os artigos de Gustavo Barroso assinados sob o pseudônimo de João do
Norte, que tinha acabado de ser aceito na ABL, são dignos de nota. Intitulados “La Illa Allah
Mohammed Raçul Allah!”, que segundo a tradução do autor significaria “Deus é Deus e Maomé
é o seu profeta!”, os textos tem um tom de blague, invertendo a provocação: “Vaia futurista é
vaia futurista e Graça Aranha é o seu profeta”. Barroso ironiza os esforços “futuristas”:
Lançado, assim, o meu grito de guerra, eu, que era múmia e que era passadista,
incorporo-me definitiva e integralmente nas fileiras daqueles que, ansiosos pelo
maximalismo intelectual, resolveram abolir de suas obras a elegância moral,
escolhendo a falta de regras e saber na produção artística, a falta de compostura nas
manifestações públicas. Viva a anarquia! Morra o ritmo! Morra a regra! Viva o
apupo! Viva a pedrada! Viva o desaforo! Chegou a hora do crê, ou morre. Quem não
seguir as pegadas do Messias, [...] do Padre Cícero das Letras, arrisca-se a acabar
nas unhas ferozes dos seus jagunços, mesmo dentro dos mais finos salões do Rio de
Janeiro266.
A vaia, segundo o autor, seria, na verdade, um aspecto da identidade nacional:
Ademais, isto é o país ideal da vaia. Aqui se vaia tudo e a todos: os heróis e os sábios,
os mais nobres personagens, os presidentes da República, antes, durante e após o
mandato. Um dia chegará em que talvez haja brasileiros que vaiem a própria
bandeira da sua pátria! Nós vivemos numa contínua, desenfreada molecagem.
As supostas influências de Graça são questionadas, ao mesmo tempo em que o humorista,
através das citações, revela que sua recusa não era devida à ignorância de obras europeias:
O sr Graça lera Cinematoma de Max Jacob, Jeroboam de Lafitte, La fin du monde
de Cendrars e Léger, Prikaz de Salmon. Vira os quadros de Picasso, os desenhos de
Dufy, aquarelas de Cézanne, Chez Bernheim, e as ilustrações de Van Dongen, na rara
edição de Hassan Badreddine. Divertira-se com o Ubu Roi de Alfred Jarry, a Noce
Massacrée de Cocteau, com o Bestiaire de Appolinaire, série de chatices em verso
sobre os motivos do Pímandro de Hermes Trimegisto, do cortejo de Orfeu e dos
fisiólogos medievais. Na verdade, coisas futuristas! Kerdyk fizera com seus versos
assombrosos son âme pure rever à sa venue... Mas as poesias de Cocteau, produzidas
de 1917 a 1920, essas lhe agitaram a alma sonhadora.
Questionava-se a influência europeia que permeava a exigência de se afirmar a brasilidade: “os
escritores brasileiros são acusados pelo mestre Graça Aranha de remoer a bagaceira europeia.
De versos, assim como os de Cocteau, nasceram os já célebres dos novos Andradas de S Paulo:
264
Cf. SOBRINHO, Barbosa L. A comédia literária. In: MONTELLO, J. O modernismo na Academia, p. 71-75.
Cf. O presidente da Academia, Medeiros e Albuquerque, responde ao confrade, dois dias depois no mesmo
salão. In: MONTELLO, J. O modernismo na Academia, p. 83-91.
266
NORTE, João do. La Illa Allah Mohammed Raçul Allah! O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jun. 1924, p 1.
265
433
insetos roendo caixa de fósforo e Mário paga o tostão do bonde...”. Como se vê, as ironias não
se restringiam ao “papa Graça Aranha”. No segundo artigo, Gustavo Barroso emula a suposta
forma de escrita dos “futuristas” e, dizendo-se filiado ao “futurismo”, fala sobre a conversão:
Após meu batismo na pia do futuro, apadrinhado pelo sr Graça Aranha, resolvi
manter essas linhas gerais na minha obra futuperra, acrescentando-lhes a poesia,
gênero que até agora não me atrevera a tentar, por causa das sílabas, das tônicas, dos
hemistíquios, e de todos esses empecilhos acumulados pelas trevas do passado.
Deixarei de imitar os clássicos, os Anatole France, os Flauberts e os Goethes,
deixarei de mão o regionalismo como o praticava, abandonarei as minhas ideias
pessoais e passarei a comer na mesma gamela dos Jarrys, dos Laffites, dos Cocteaus
e dos Maxs Jacobs. E vou merecer um rodapé no “O País”, declarando-me gênio,
vários artigos na “Gazeta”, proclamando-me incomparável, um folhetim líterocrítico aqui do O JORNAL, qualquer domingo destes, guindando-me às nuvens; os
rapazes de óculos de Harold Lloyd, que sabem trepar em cadeiras estofadas nos
salões de recepção, cuspir nos bondes, brandir juncos e dar vaias anônimas, porão os
olhos em alvo, em beatifica admiração, à minha passagem, acharão que eu sou o
“suco” (a expressão é lidimamente futurista) da literatura nacional, e terei uma
estátua depois de morto, nu, ou de ceroulas, esculpida pelo Brecheret, que será
inaugurada ao som duma música de Villa Lobos com discursos desvairados...Viva
eu e a minha pevide!...267
O autor expõe duas historietas, “O charuto de Carlos Magro” e “A meningite do Papaconha”,
ambas sem nenhuma pontuação, e um poema piada “O retrato a óleo da minha”. Numa destas
provocações, Carlos Magro teria também os seus doze pares: “Tristão Jacques Oswald Mário
Paulo Picchio Brechero Roldão Renato Sérgio Wilhelm e Lobo”. Por fim, conta uma anedota:
Quero findar o meu manifesto futurista com mais algumas palavras. Toda gente
conhece a fábula passadista do Sansão bíblico. Empurrando para um e outro lado as
colunas do templo filistino, ele as aluiu e derrubou. Então, o teto pesado abateu e
sepultou sob seus escombros Sansão e os inimigos de Israel. Mas pouca gente sabe
da lenda do famigerado atleta Milo de Krotona. Num banquete de amigos, o
travejamento que sustentava o forro da sala fendeu-se e ameaçou desabar. Houve um
grito de horror. Sorridente, o hercúleo atleta trepou sobre a mesa, sustentou as traves
do telhado nos ombros possantes e deu tempo a que todos os convivas se pusessem
a salvo. Quando a Academia Brasileira de Letras elegeu o sr Graça Aranha, pensou
trazer para o seu seio um novo Krotoniate. Enganou-se. O homem era um Sansão.
Diante desse lindo exemplo, eu me converti ao futurismo.
De maneira mais séria, mas ainda segundo uma orientação “anti-futurista”, Adrien
Delpech analisou as ideias de Graça Aranha para, em seguida, questionar a pertinência delas268.
O manifesto pode se dividir em três partes: 1o Curto histórico da arte na Idade
Medieval e nos tempos modernos: “submetida a um subjetivismo que o romantismo
exacerbou e que contrasta com o objetivismo atual”; 2o Definição, em duas
267
NORTE, João do. La Illa Allah Mohammed Raçul Allah! O Jornal, Rio de Janeiro, 8 jul.1924, p 1.
Em 1991, o Jornal do Brasil dedicou uma edição especial a Tristão de Athayde intitulada “O diário modernista
de Tristão”. Conforme apresentação de José Montello, eram alguns escritos que o crítico lhe havia entregue
dizendo se tratar de “três textos correspondentes ao meu diário de escritor, em três momentos de nosso
Modernismo. São suas. Talvez lhe sejam úteis”. São abordagens feitas acerca da conferência de Graça Aranha em
anos diferentes, 1924, 1925, 1926, 1944 e 1964. O texto de Adrien Delpech aparece no “diário” como sendo datado
de 1925, apesar de ter sido publicado em 1924. Esta confusão nas datas expõe a cautela que o historiador deve
manter em relação a esta documentação. Cf. O diário modernista de Tristão. Jornal do Brasil, Caderno
Ideias/ENSAIOS, Rio de Janeiro, 8 set. 1991, p. 6-8.
268
434
proposições, do universalismo para que deve tender a arte moderna e a do futuro no
espírito do reformador; 3o Aplicação de suas teorias à arte brasileira269.
O autor se diz decepcionado com o manifesto, afirmando que “as fórmulas empíricas das
escolas literárias duram menos que uma receita de cozinha”. O que mais é acentuado por
Delpech é o fato de as ideias de Graça Aranha reproduzirem o “já dito e de uma maneira muito
melhor”. Mesmo o impulso à liberação frente à cópia estrangeira seria coisa reiterada na história
literária brasileira e tivera suas feições no “romantismo, condoreirismo, germanismo de Tobias,
Sertões de Euclides”. Dessa forma, “o manifesto do sr Graça Aranha, com todo o seu futurismo,
será mais velho, de aqui um mês, quando o escândalo da atualidade se terá amortecido, que os
conselhos de Aristóteles ou a arte poética de Boileau”.
Alguns autores imbuídos já de um espírito antiacadêmico louvaram a ação de Graça
Aranha, mantendo, porém, algumas restrições. Antonio Torres elogiava o conferencista que
“deu anteontem algumas vassouradas e alguns golpes de espanador naquele sarcófago”270.
Torres não deixa de questionar o discurso que teria uma primeira parte “extremamente confusa”,
“como tudo em que este escritor mete filosofia”. Mas o que ficaria era o exemplo, “o serviço
por ele prestado às letras pátrias”, de forma que seria “necessário repetir a dose, mas agora deve
ser a pedradas e de tal modo que se destrua de uma vez para sempre aquela Bastilha do
pedantismo condecorado”. O autor questionara alguns nomes elencados por Graça Aranha: “E
como fazer reação contra a Academia com Ronald de Carvalho, laureado da sobredita
Academia, e Jackson de Figueiredo, candidato a ela?!”
Jackson de Figueiredo mantivera uma posição ambígua frente à conferência polêmica.
Se, por um lado, ele discordava do “local para aquela confissão revolucionária do ponto de vista
acadêmico” 271, por outro lado, dizia não concordar totalmente com “os que condenavam o
próprio espírito da conferência”. Sobre o seu nome estar entre os lembrados por Graça Aranha,
ele considerava que o autor não havia qualificado como “‘futuristas’ as pessoas citadas, e sim,
as apontou como os que lhe pareceram representantes do espírito moderno, dando [...] a este
uma amplitude que reuniu doutrinas e pensamentos os mais opostos [...] semelhantes apenas no
ardor da combatividade do espírito brasileiro”. Assim, ele reprovava os excessos, o “futurismo”,
mas reconhecia se tratar de um “ato de fé no espírito brasileiro”.
Várias foram as manifestações em apoio ao conferencista. Agripino Grieco elogiava o
fato de que, agora, era um “inquilino que se encarrega, ele próprio de derrubar o edifício, a
golpes de picareta, de dentro pra fora” 272. Nomes como Ronald de Carvalho e Renato Almeida,
269
DELPECH, Adrien. O modernismo do senhor Graça Aranha. O Jornal, Rio de Janeiro, 5 jul. 1924, p 1.
TORRES, Antônio. Protesto de letras... atacando a Bastilha do pedantismo condecorado!, Gazeta de Notícias,
Rio de Janeiro, 21 jun. 1924, p. 1.
271
FIGUEIREDO, J. A conferência do sr. Graça Aranha, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22 jun. 1924, p. 1.
272
Cf. GRIECO, Agripino. O espírito moderno e a Academia de Letras, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21
270
435
reconhecidos admiradores das ideias de Graça Aranha, também se mostraram favoráveis à
palestra. Almeida, já repercutindo o debate que se firmara entre passadistas e futuristas,
procurava destacar a inocuidade de tal questão: “Só houve o protesto de um homem, o sr Coelho
Neto, ‘o último heleno’, aliás tão pouco olímpico, revelando bem a perturbação de todo o
passadismo, o seu pavor ao sopro da rafada nova”273. O problema tocaria pontos que iriam
muito além da produção artística ou do salão da ABL: “não só na literatura e na arte, mas
também na política e até nos costumes, os figurinos europeus é que nos modelam, mal ajustados
em geral. Não nos percebemos sequer do ridículo doloroso”. A percepção de uma nova época,
de um tempo com horizonte aberto, também se afirmava de maneira incisiva: “O necessário é
fazer total essa renovação. O Brasil nos chama a todos para a mesma obra de força e de energia,
na terra, na forja, na escola, na política, nas letras e nas artes”. O ponto sempre é o engajamento
nacionalista que sequer é adjetivado, gozando de um valor auto-evidente:
Nem desprezo do passado, nem renúncia à cultura, mas a busca incessante de uma
harmonia perfeita entre a nossa sensibilidade e o nosso pensamento com as vozes e
os ardores da terra. Só transpondo para as categorias universais as forças hauridas do
fundo do inconsciente nacional, é que faremos obra duradoura, que domine o tempo
e domine o espaço. Só assim o Brasil viverá perpetuamente274.
O discurso de Aranha tocava pontos diversos da cultura intelectual brasileira e
mobilizou até personagens como o médico e eugenista Azevedo Amaral que via a possibilidade
de se refletir acerca da “tragédia psicológica do brasileiro diante do misterioso destino étnico
da sua descendência”275. Amaral assume o tom inaugural que marcaria o momento presente:
O Brasil até agora foi apenas uma fórmula de alguns espíritos sonhadores que
tiveram a intuição genial das vastas possibilidades do nosso meio como teatro para
o desenvolvimento de uma civilização de grande amplitude. [...] O grande ciclo
brasileiro principia conosco; somos o primeiro elo de uma cadeia histórica, apenas
muito vagamente relacionada com os homens e com os fatos dos primeiros séculos
de ocupação do nosso território.
A tese que afirmava ser o país o produto de “uma fórmula de alguns espíritos sonhadores” era
diretamente relacionada aos trabalhos de Oliveira Viana citado nominalmente. O próprio Viana
teria se interessado pelo discurso de Graça Aranha a partir dos comentários de Amaral. Uma
vez, porém, que este último impunha restrições às análises de Viana acerca da validade dos
processos passados sobre o presente, o autor de “O idealismo da Constituição”, em carta a Elísio
de Carvalho publicada em O País, desdobrava o debate entre “passadistas” e “futuristas”:
O artigo do Amaral fez-me sorrir. O futurismo do Graça Aranha será aquilo mesmo?
[...] Para poder assegurar, com conhecimento de causa, que o Brasil atual nada tem
como Brasil passado seria preciso primeiramente que o Amaral fizesse um estudo
consciencioso desse Brasil passado e [...] desse Brasil presente. [...] o Amaral
confunde duas coisas distintas – confunde influência do passado e consciência da
jun. 1924, p. 2.
273
ALMEIDA, Renato. Pelo espírito moderno, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 jul. 1924, p 1.
274
ALMEIDA, Renato. Passadismo e imitação, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 jul. 1924, p 1.
275
AMARAL, Azevedo. Olhando para o futuro, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 de jun. 1924, p 1.
436
influência do passado. O que me parece mais divertido é, porém, aquela sentença do
Amaral em que ele diz que o erro de todas as hipóteses explicativas do Brasil está
em aplicar a nós os métodos com que se estudam as velhas nações civilizadas. [...]
esta ideia é a minha ideia, é o leit-motiv de todos os meus livros [...] Mande-me, pois,
a oração da Acrópole. Quero lê-la já e já. Quero estar com a consciência do meu
tempo e também a dos tempos futuros!276
Contudo, não tardará muito para que os nomes elencados ou não por Aranha comecem a definir
esse “Brasil” e daí surgirem fissuras, conflitos e rusgas entre os entusiasmados nacionalistas. O
momento, porém, guarda a passagem dos “futuristas” para o “espírito moderno” nacionalista.
Em artigo intitulado “Tropicalismo Universalista”, Tristão de Athayde faz a sua
primeira análise do discurso de Graça Aranha. Frente a tantas manifestações de apreço, recusa,
adesão, ironia e entusiasmo, o crítico procura situar a sua posição:
Longe de partilhar [...] de muitas ideias do sr. Graça Aranha, e conservando como
até hoje, minha inteira liberdade de apreciação penso que a oração de Graça Aranha,
na Academia, já é, de qualquer forma que a encarem, um fato histórico em nossas
letras. Não será possível omiti-la, mais tarde, quando o tempo serenar as paixões.
São palavras que marcam. Que iniciam alguma coisa277.
Do conteúdo da conferência, seria possível tanto uma apreciação rápida e sintética que revelasse
os seus significados mais importantes e, principalmente, aquilo que seria realmente uma marca
a ser deixada na cultura intelectual brasileira, quanto uma reflexão mais conceitual e crítica,
que buscasse desenvolver os termos que eram colocados em jogo no debate estético nacional:
E os críticos vindouros, ao indagarem do efeito possível dessas palavras de vida
sobre a poesia ou o romance de amanhã, é provável que lhe encontrem uma das
origens nas sugestões mais simples, pois são sempre aquelas que mais vivamente se
transmitem. Nesse caso – o apelo à alegria e ao colorido. Uma arte menos tocada de
tristeza e de passividade sentimentalista talvez surja, ou se acentue [...]. Para nós,
porém, há outros aspectos teóricos da conferência, que merecem comentários. E
especialmente a referência ao “objetivismo dinâmico”, como caráter essencial do
novo espírito em arte, que a muita gente há de causar surpresa, ironia ou ceticismo.
Se, por um lado, a alegria era a prova dos nove, como se dirá mais tarde, os significados da
teorização de Graça Aranha precisariam ser analisados e submetidos à crítica estética.
Não era possível definir “um espírito novo” unívoco e hegemônico, sendo necessário
reconhecer as diversas tendências e optar pelas mais pertinentes à realidade brasileira:
Acredita-se, em geral, e com certo fundamento, que a essência do espírito moderno,
é um libertarismo incondicional, em que o homem se prevalece da anarquia social
contemporânea para dar folga a seus instintos, nessa agitação desenfreada do
modernismo, convencional, para repórteres e autores de revistas. Existe, porém, no
espírito de parte das novas gerações, velado embora por dissidências ou aparências
ilusórias, uma tendência a um objetivismo renovado, a uma consciência dos limites,
a uma necessidade dos limites, a uma necessidade de disciplina interior, que a volta
a Bach278 em música, por exemplo, exprime luminosamente.
276
Cf. MONTELLO, Josué. O modernismo na Academia. Rio de Janeiro, ABL, 1994, p. 80-81.
ATHAYDE, Tristão de. Tropicalismo universalista, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 jun. 1924, p. 1.
278
Maurice Denis, pintor e teórico que muito contribuiu para o reconhecimento crítico do modernismo de Cézanne,
lançou em 1909 o ensaio “De Gauguin e Van Gogh ao neoclassicismo” que procurava afirmar a relação entre o
simbolismo de fins do século XIX e o neoclassicismo das primeiras décadas do século XX, estabelecendo uma
espécie de laço entre o anti-naturalismo dos primeiros e o “retorno à ordem” dos segundos. Esta relação entre
277
437
O crítico retoma uma análise, bastante recorrente à época, acerca dos processos culturais que
caracterizariam a passagem do século XIX para o século XX, em especial em torno da arte:
O fim do século XIX viu a reação contra o materialismo literário pela reafirmação
do individualismo. Os homens se cansaram de abdicar. A ciência começou a desiludir
a fé ingênua daqueles, que pensaram, por ela, realizar a eterna tendência humana a
superar os limites do visível. A imaginação voltou a pleitear junto à observação, que
parecia tê-la esmagado definitivamente. Como se houvesse, em arte, qualquer coisa
de definitivo. A mortalidade das obras de arte é um dos segredos de sua imortalidade.
Renascem mais vivas, porque vivem sempre o perigo de perecer. Nisso está, talvez,
a superioridade da beleza humana sobre a beleza natural279.
Tristão de Athayde aponta o problema das caracterizações estáticas dos processos culturais e
artísticos, uma vez que “só nas raças incapazes de marcar a sua personalidade, é que se vê a
passividade das tradições rigorosamente obedecidas e por isso mesmo inertes e cristalizadas”.
Mas era a contradição e os impasses que manteriam vivas as “as raças fortes e jovens”:
[...] em perpétua contradição consigo mesmas e nessa contradição permanente que é
o esforço incessante da ordem intelectual sobre a anarquia dos instintos está a
verdadeira tradição de vida e cultura. As afirmações se mantêm vivas graças à
constância da negação. O furor dos que desejariam a vida lisa como um espelho,
esquece-se de que o espelho é liso, porque frio, inerte e passivo.
O crítico caracteriza, então, o que seria o momento da reação simbolista quando:
[...] o ponto de vista passou a ser a realidade. As formas se ondularam, esfumaçaramse, perderam-se numa vaporização em que as irisações sugeriam o mistério das
coisas. Era tudo uma grande ilusão. Cada homem via a natureza e as ideias como
função de si mesmo e a evanescência universal era a lei de permanência.
Periclitavam as coisas nas névoas dos sentidos. Tudo era música de cores, colorido
de tato, olfatização de formas. [...] Era do impressionismo em crítica, do delicioso
verlainismo em poesia, da sutilização extrema da luz, em pintura, do intelectualismo
genial da música de Debussy.
A Grande Guerra seria o “gongo” do individualismo simbolista, ou seja, quando irrompera “em
pleno idílio de ideias sutis, de análises proustianas do coração, de matizações supremas em
todas as formas de arte, o golpe da realidade terrível, sufocante, esmagador”.
A Guerra provocaria uma espécie de imediata renovação do naturalismo, em que a “a
vida humana nada mais era realmente que uma alga na onda”, uma “volta à realidade”, mas,
com a paz, viera “um desejo de renovação profunda”. O que Tristão de Athayde critica no
“objetivismo dinâmico” de Graça Aranha é sua disposição anti-subjetivista. Afinal, Aranha
falara em um “objetivismo estático” que poderia ser qualificado como uma “tirania da
natureza”, uma disposição à “cópia”, à mera reprodução realista da natureza, ao passo que,
segundo o “objetivismo dinâmico”, “a arte exprime o movimento das coisas, que agem pelas
simbolismo, anti-naturalismo e novo classicismo aparecerá nas reflexões de Tristão de Athayde. Acerca da obra
de Sebastian Bach, Denis considera que “os músicos, menos niilistas que os pintores, mas como eles absorvidos
por mais liberdade individual e mais expressão, submetem-se, ao mesmo tempo, à influência do romantismo
wagneriano, do pitoresco russo e da música pura que lhes revelam César Franck, Bach e os contrapontistas do
século XVI”. Cf. DENIS, Maurice. De Gauguin et van Gogh au néoclassicisme. In: HARRISON, C et al. Art en
theorie, p. 78.
279
ATHAYDE, Tristão de. Tropicalismo universalista, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 jun. 1924, p. 1.
438
suas próprias forças independentes do eu”. De um modo geral, o subjetivismo é visto como algo
que “importa em destruição individualista. Na ordem social vem desde a revolução francesa,
atingiu o seu máximo na grande guerra e ainda se alastra”280. No caso brasileiro, o subjetivismo
era o “horror cósmico da imitação da natureza”, um “lirismo da tristeza” por “não termos
vencido a natureza”281. Conforme o conferencista, tratava-se de uma “época de reconstrução”
em que, “neste caos, o objetivismo dinâmico nos revela o universo nas suas forças simples e
eternas e recompõe com os seus fragmentos ativos a unidade intelectual e sentimental, criando
uma ordem prática, simples, útil, enérgica”282. Não seria o caso, em arte, de uma subjetividade
a contemplar o mundo, mas da decomposição das formas, volumes, sons que integrariam o
objeto na totalidade da matéria universal: “a essência da arte está nas emoções provocadas pelos
sentimentos vagos, que nos vêm dos contatos sensíveis com o Universo e que se exprimem nas
cores, nas linhas, nos sons, nas palavras”.
Tristão de Athayde confessava, como muitos outros, não compreender “a fusão do
espírito no universo, como já pregava a ‘Estética da vida’” e investia na reflexão sobre a
dualidade entre subjetividade e objetividade. Conforme acentua o crítico:
[...] não creio que seja possível, em arte, a negação do subjetivismo. A liberdade do
artista é uma resultante de duas disciplinas: a que nos vem das coisas e a que criamos
em nosso espírito. A arte é a centelha do contato entre esse mundo exterior da
necessidade e o mundo interior da liberdade. Devemos justamente dar vida a essa
dupla fecundação -, das coisas que impõem a sua linha de permanência sobre o
espírito que a deforma, e do espírito, que povoa a inércia das coisas naturais, sobre
a passividade da matéria. E a arte é a consequência dessa discordância. São dois
mundos que procuram mutuamente inserir-se, e nesse esforço de criação onde ambos
os elementos conservam toda a frescura de seu poder estará provavelmente a
originalidade do artista novo cujo gênio se impuser283.
Trata-se de uma nova relação que se impunha à reflexão moderna que se afirmaria explorando
uma tensão, mais do que repousar em alguma resolução unitária e coerente:
O novo espírito, na maleabilidade de suas tendências pessoais e variadas, não
implica, portanto, a meu ver, numa abdicação do subjetivismo. Reação contra o
subjetivismo romântico e simbolista, sim. Mas antes reforço ao poder do espírito.
[...] Os dois maiores gênios do teatro contemporâneo, Pirandello e Shaw, como em
“Niebla” mostrara Unamuno, demonstram essa preeminência da visão.
Especialmente Pirandello, trouxe à arte contemporânea esse elemento realmente
novo e fecundo, da realidade plástica das coisas mentais. Os homens são o que são
e o que nos parecem. E como os homens, os atos e as ideias. Daí, um enriquecimento
da realidade, um conflito cada vez mais fecundo de vida espontânea e de vida criada,
de forças da natureza e de forças do espírito. [...] A arte moderna se afasta do
280
Cf. O espírito Moderno, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 jun. 1924, p 7.
A este respeito, sintetiza Eliana Dutra: “[...] ao vencer a natureza, com sua exuberância e força; a metafísica,
superando o medo e o terror místico da natureza herdado de índios e negros; e a inteligência, dominando a
faculdade imaginativa, o brasileiro estaria vencendo o mundo tropical e os elementos bárbaros de sua herança
cultural. Só assim nossa ‘trajetória animal da vida’ seria domada, pondo fim à nossa libertinagem mestiça [...]”.
DUTRA, Eliana Regina de Freitas. O não ser e o ser outro. Paulo Prado e seu Retrato do Brasil, Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 14, no 26, 2000, p. 242.
282
Cf. O espírito Moderno, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 jun. 1924, p 7.
283
ATHAYDE, Tristão de. Tropicalismo universalista, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 jun. 1924, p. 1.
281
439
realismo, pela afirmação desse poder criador do homem, fecundando as formas
inertes da natureza, deformando-as para conformá-las numa vida superior e
universal. Afasta-se do simbolismo, pela afirmação daquele “objetivismo dinâmico”,
que prende o homem às formas essenciais dessa natureza que ele pensou poder
suprimir, mas que sempre lhe volta, amorosamente ou violentamente. [...] E a arte
poderá retirar recursos admiráveis [...] da acentuação cada vez mais sensível desse
dualismo essencial, em que as duas disciplinas se inserem, mas não se anulam.
Por fim, o crítico afirma que o lugar escolhido por Graça não era dos melhores:
A Academia é um ponto de reunião elegante e inócuo, em que alguns homens de
talento real se confundem na massa dos figurões e figurinos. Se algum ingênuo
esperasse dela qualquer coisa pela arte viva, bastaria para desenganá-lo, a leitura da
lista de mortos da mais ilustre delas [...].
De um modo geral, as Academias de Letras nunca se conformariam bem a tais investidas:
A imortalidade parece matar as Academias. E a própria guarda da tradição literária
– que fez Maurras expor Jonnart284 ao ridículo de batê-lo – é, até certo ponto, mesmo
em França, uma ilusão. A tradição viva das letras se forma onde se formam as letras
e se conserva em plena vida da criação de beleza e do debate de ideias, isto é, longe
dos recintos inertes, onde se convencionou guardar as tradições, e onde o que se
guardam são os generais aposentados, ministros, fraques, traças de dicionário e
outras preciosidades.
Assim, era preciso se ter em mente que “é sempre fora dos recintos acadêmicos que a vida tende
para as expressões de arte e de pensamento. Com ela ou sem ela, o essencial é que surjam os
talentos e o poder criador e renovador”.
No mesmo dia em que saiu o artigo “Tropicalismo Universalista” de Tristão de
Athayde, Oswald de Andrade lançou nas páginas do Correio da Manhã o texto “Modernismo
atrasado”. Um dos aspectos fundamentais das invectivas de Andrade é o de desqualificar a
maneira como o conferencista teria feito contato com os ideais das vanguardas:
Graça Aranha entrou em contato com o cubismo apenas há três semanas, tomando
chá comigo e Paulo Prado no atelier da pintora Tarsila do Amaral, que possui em
São Paulo, além de alguns quadros seus, de transição, filiados a esse movimento,
uma boa coleção de telas cubistas, francesas. [...] E não tendo nenhuma vocação
especial para entender de arte, o que o interessava era somente a retórica
especulativa. Provo que Graça Aranha entrou em contato com o cubismo há pouco
tempo. A noção que ele trazia da Europa sobre a última revolução pictórica, fora
condensada nas seguintes passagens da “Estética da Vida”: “Na pintura o que se
espraia é a decoração. E nessa fantasia do colorido, rebusca-se, diverte-se, brinca
uma arte fácil e superficial”. Depois: “Como explicar essa superficialidade em um
instante tão trágico do destino humano? Parece que o artista hesita diante do abismo
e disfarça, brincando com a forma, a cor e o som”. Ora, na sua conferência sobre “O
espírito moderno”, o cubismo peca justamente por defeitos opostos: “O grande erro
do cubismo é o seu exclusivismo intelectual”. E, na indicação detalhada de que a
nova escola remontou na sua grave pesquisa até Platão, Kant, Cícero e Bossuet, eilo que só demonstra uma coisa – que a pintura moderna não é “uma arte fácil e
superficial”. Esta contradição só pode ser filha de um chá elegante, onde sandwichs
e broinhas exageram a importância espiritual dos primeiros quadros da escola,
284
Alusão à disputa que Charles Maurras perdera para Célestin Jonnart na eleição para a Academia Francesa, em
19 de abril de 1923. Cf. Cours et conférences. Charles Maurras écrivain, L’express du midi, Organe de défense
sociale et réligieuse, Toulouse, 21 abr. 1923, p. 4.
440
avistados pelo erudito esteta que em Paris, acreditando nas insignes raivas de seu
amigo Mauclair nunca visitou um atelier cubista ou uma galeria moderna285.
A reação de Oswald de Andrade atualiza a corrida intelectual para se mostrar quem é aquele
que mais está a par das correntes estrangeiras de pensamento e cultura. Na verdade, trata-se de
uma divisão que já se começara a se explicitar frente a um dos primeiros esforços de adjetivação
contundente do termo Brasil. Mais do que a “monomania verbal” de Graça Aranha, Oswald de
Andrade reage à caracterização que Aranha fizera, sem nomear o autor paulista, do recémlançado “Manifesto da poesia pau-brasil”. Este saíra em letras pequenas em 18 de março de
1924 na parte inferior da quinta página do jornal Correio da Manhã286. Segundo Andrade:
Não posso perdoar a Graça Aranha me ter posto no meio dos brilhantes renovadores
subjeto-dinâmico-objetivos que com tão sacra fúria amarretaram a Academia na sua
última sessão. E maior despeito me causou o inventor de “Malazarte”, quando,
conseguindo me identificar com uma perícia de gabinete policial, num trechozinho
da sua palestra, deixou de por meu nome e qualidades. Lede: “Os escritores que no
Brasil procuram dar de nossa vida a impressão de selvageria, de embrutecimento, de
paralisia espiritual, são pedantes literários”. E adiante: “ser brasileiro não é balbuciar
uma linguagem imbecil, rebuscar os motivos da poesia e da literatura, unicamente
numa pretendida ingenuidade popular”. Eu, pelo menos, me sinto aí à vontade,
depois que publiquei o meu Manifesto da Poesia Páo Brasil. E, francamente, muito
mais à vontade do que de braços pela Avenida das Nações com o baralho metafísico
do Renato Almeida e a sabença do meu ainda caro Mário de Andrade, atrás da
charola do emboaba Graça Aranha287.
Oswald de Andrade desqualifica a atitude de Graça Aranha e sua pretensa liderança intelectual:
Graça Aranha é dos mais perigosos fenômenos de cultura que uma nação analfabeta
pode desejar. Leu mais duas linhas do que outros, apanhou três ideias além das de
uso corrente, e faquirizado por uma hipnose interior, crédulo e ingênuo, quer impor
à outrance os seus últimos conhecimentos, quase sempre confusos caóticos. Chegou
ao Brasil amigo de Camille Mauclair, entusiasta de Barrès e alto comissário das
ideias nietzche-bergsonianas. Encontrou o Brasil lendo Max Jacob, Cendrars,
Cocteau e Marinetti. Imediatamente a sua flama cerebral imantada voltou-se para
esse lado. Aderiu. Ficou futurista.
Não parece que muitos intelectuais se manifestaram publicamente a favor das duras
críticas de Oswald de Andrade a Graça Aranha288. Um apoio, em certa medida inaudito, veio
285
Camille Mauclair, pseudônimo do francês Séverin Faust, foi um crítico, poeta, escritor e teórico que, amigo de
Graça Aranha, escrevera o prefácio da edição francesa do livro Malazarte, cuja tradução foi publicada em 1920.
Mauclair contribuiu com vários artigos na imprensa brasileira e, em O Jornal, publicou uma série de textos
intitulada “As letras e artes em França”. Além de ter idade aproximada a de Graça Aranha, Mauclair também é
visto como um escritor “especialmente prolixo” e que atuara em diferentes áreas do campo intelectual. Cf.
AZEVEDO, M H C. Um senhor modernista. Rio de Janeiro: ABL, 2002, p. 244, 342-346; MAUCLAIR, Camille.
As letras e as artes em França, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 fev. 1921, p 1; CARBONNEL, Marie. Camille Mauclair
ou la vigilance critique, Romantisme, no 121, 2003, p. 83. ANDRADE, Oswald de. Modernismo atrasado, Correio
da Manhã, Rio de Janeiro, 25 jun. 1924, p. 2.
286
O destaque, entre vários outros textos, daquela seção “Letras & Arte” eram os versos em francês da poetisa
Margueritte Flori Bracet. Esta era apresentada pelo jornal como a “esposa do pintor brasileiro Augusto Bracet, é
um fino talento de poesia, em que a uma visão profunda das coisas se junta a uma forte esquisita sensibilidade.
[...] Nascida e educada em França, a Sra. Bracet adora, entretanto, o nosso país. Cf. Letras & Artes, Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 18 mar. 1924, p. 5.
287
ANDRADE, Oswald de. Modernismo atrasado, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25 jun. 1924, p. 2.
288
Repercutindo algumas reflexões do “diário modernista de Tristão de Athayde”, em que este consideraria ser o
artigo de Oswald de Andrade “a coisa mais importante depois do discurso”, Castro Azevedo anota que: “Mário vai
condenar o artigo, dizer o que de áspero, de brutal a Oswald. Na confidência a Manuel [Bandeira], em outubro, é
441
do crítico literário do Correio da Manhã, José Oiticica. Este último redigiu uma “Carta aberta
ao sr Graça Aranha”, na qual faz as seguintes considerações:
Animou-me, todavia, o artigo do sr Oswald de Andrade no Correio da Manhã de
quarta feira. O desrespeitoso moço teve o ousio de achar v s passadista. Para ele, o
maravilhoso discurso de v s, é marca romântica, lardeado de frases feitas e
expressões grisalhas, quando se esperava de v s, roupa nova, um alinho literário, sem
fraque, sem cartola, sem casaco fofoló. Vê o irreverente, nas imagens de v s,
“cinquenta anos de belchior” e anota um forja do futuro, um alavanca do espírito,
um clave de igualdade, e outras claudicâncias passadistas lamentáveis289.
Oiticica, porém, se coloca na posição de precursor das ideias de Aranha, as quais ele afirma ter
expresso há quinze anos. Ele questiona, ainda, onde estaria tal “estilo novo”, que o mostrasse:
[...] nos versos melindrosos, meia tinta, dos Sres. Guilherme de Almeida, Ronald de
Carvalho ou Ribeiro Couto, nos versos futuristas dos srs. Mário de Andrade e
Oswald de Andrade, na filosofia escolástica do sr. Jackson de Figueiredo, e, se eu
fora músico, nas inconsistentes composições de Vila Lobos. Não nego o talento de
nenhum deles. Todos são prodigiosos; Mas, ilustre acadêmico, não vejo neles, por
mais que busque, nenhum vestígio de integração do ‘homem no Todo’”.
Um mês após a conferência, Tristão de Athayde reagindo às inúmeras manifestações
geradas pelo discurso de Graça Aranha, publica o artigo intitulado “O gesto”, em que procura
destacar a riqueza e o caráter positivo do debate que passa a acalorar a cultura intelectual
brasileira. Partindo de uma tipologia do escritor espanhol José Maria Salverría, o crítico explora
a distinção entre os “escritores espetaculosos” e os “escritores silenciosos”:
Os primeiros [...] eram os que deixavam a suas personagens o cuidado de se
formarem por si, ficando na sombra o autor, que apenas dava o impulso inicial e
retraía-se. Os segundos, aqueles que sempre apareciam, que nunca abandonavam a
cena nem se resignavam a ficar nos bastidores, encarnando-se, ao contrário, em cada
uma de suas criaturas. [...] São os silenciosos, os retraídos, os que fecham dentro de
si a luta que outros vivem ao ar livre, os que ouvem a voz do silêncio, os que veem
no deserto, já tocado pela ironia necessária da imortalidade, o tumulto dos homens,
os que compreendem ainda hoje a “beatitude” que existe na solidão. Os
espetaculosos, porém, quebram com irreverência esse grato silêncio do
recolhimento. São os que vivem para o exterior, para o ar livre, para o tumulto das
controvérsias, para as camaradagens ruidosas e os proselitismos intolerantes.
Abominam a vida interior. Odeiam a quietude. Ignoram a paixão do isolamento. Só
sentem a vida dentro dela, na passagem ardente e fugaz de cada momento, como se
a vida se resumisse toda ela no choque imediato, na pressão aguda do tempo que
passa. [...] Escritores de sombra. Escritores de luz290.
Apesar de afirmar que sua simpatia seria para com os primeiros, ele diz não poder negar “o que
há nos outros de força, de vida, de necessidade”.
Assim, segundo Tristão de Athayde, as discussões que tomavam as páginas dos jornais
deviam ser vistas como algo benfazejo e poderiam ser caracterizadas com os tipos descritos:
No debate, que ora felizmente anima as nossas letras, e que queira Deus tão cedo não
um impulso meio ingênuo de conciliação, grupalismo, o que parece ter orientado a reação de Mário, sempre
avocando a si responsabilidade no movimento. Ele sugere ter condenado Oswald sobretudo porque julgava (será
possível?) que Graça Aranha não o visara na crítica ao primitivismo; ‘o Graça me tinha negado que tivesse a
intenção de atacar o Osvaldo. Falara em ideias gerais’”. Cf. AZEVEDO, M H C. Um senhor modernista, p. 342.
289
OITICICA, José. Espírito Novo, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 jun. 1924, p 4.
290
ATHAYDE, Tristão de. O gesto, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 jul. 1924, p 1.
442
esmoreça a não ser para dar a cada um menos paixão, menos despeito, e mais
superioridade de visão, nesse debate há no fundo uma dissidência de escritores de
sombra e escritores de luz, silenciosos e espetaculosos291.
Graça Aranha estaria entre os “espetaculosos”, o principal de sua conferência residiria no
próprio gesto, na ação, muito mais do que nas ideias:
Seu ato foi um ato de juvenilidade necessária. Um ato de fé, que repercutirá em todas
as originalidades tímidas. Pode hoje o bom senso triunfar facilmente dele. O que não
poderá é suprimi-lo, nem impedir-lhe a irradiação. Daqui alguns anos, quando as
ideias da oração tiverem vivido o seu destino, quando as novas gerações tenham
vindo com o seu modernismo menos improvisado, com o seu tropicalismo mais
consciente, com o seu universalismo mais lúcido, quando a própria oração não for
mais lida, perdurará o gesto, o gesto juvenil, o gesto inconveniente, o gesto de
coragem e de esperança [...].
O crítico, porém, mantém reiteradas restrições acerca das importações vanguardistas,
utilizando termos e conceitos de maneira larga, sem se preocupar com a precisão das ideias:
O excesso de literatura, a intoxicação da inteligência nas letras, levaram a Europa há
alguns anos, depois que a tentativa desesperada do futurismo fracassou a um niilismo
cínico, que na França se chamou dadaísmo e na Alemanha expressionismo. Foram
dois sintomas do desespero. “Littérature”292, chamava-se a revista, que em França
introduziu o movimento, como suprema forma de suicídio. Não havia mais nada a
dizer. Esgotaram-se tudo na beleza, no pensamento, na expressão. E para não repetir
só havia um recurso – arrasar, chegar ao puro negativismo, à infantilidade
balbuciante. Era claramente um sintoma de excesso de requinte e de falta de
originalidade, só possível em nações cuja literatura atingira realmente à suprema flor
da graça e do engenho.
Se tais movimentos teriam razão de ser nos países europeus, o caso brasileiro era diverso:
Querer introduzir, porém, essa infantilidade senil numa literatura que está ainda
lutando com os males da infância verdadeira, é positivamente a prova de uma
incapacidade risível de criar, de olhar o mundo que nos cerca, de pensar um minuto
em nosso caso nacional, de tentar um pequeno esforço de originalidade.
Compreende-se que no Velho Mundo, onde tudo foi dito, embora tudo reste a dizer
para os que realmente possuírem o “dom” – compreende-se que a originalidade seja
de fato um esforço intolerável para a grande maioria dos que não se resignam a
remanchar ideias e formas já mil vezes repetidas. Aqui, porém, onde tudo está por
dizer, a tentativa desse niilismo é simplesmente uma confissão de incapacidade. E a
inteligência, nesse caso, estaria na resignação. O Brasil precisa de tanta gente que
trabalhe em coisas úteis e prosaicas! Mas será possível desistir do demônio
literário?... Vaidade, vaidade...
A ideia de que o esforço nacional brasileiro não poderia ser uma cópia das correntes
vanguardistas estrangeiras é um aspecto caro às reflexões de Tristão de Athayde que, nos anos
seguintes, sempre reafirmará esta tecla nas análises de autores modernistas ou não. Na
geopolítica das influências intelectuais, o crítico acredita ser antes a Inglaterra e a Rússia os
países que mais poderiam auxiliar os projetos artísticos nacionais. Nas reflexões do crítico, a
291
ATHAYDE, Tristão de. O gesto, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 jul. 1924, p 1.
Revista lançada em 1919 e dirigida por Louis Aragon, André Breton e Philippe Soupault, tidos então como “os
três mosqueteiros” herdeiros de Guillaume Apollinaire. Com o tempo, o periódico, que de início trazia certo
ecletismo, abrigando nomes como o de Paul Valéry, tornou-se porta-voz das vanguardas dadaístas e,
posteriormente, foi precursora do surrealismo. Cf. FAUCHEREAU, Serge. Avant-gardes du XXe siècle, p. 330.
292
443
literatura francesa seria “tipicamente intelectual, filha de gente de inteligência mais fina do
nosso tempo” e sua influência só poderia “desviar-nos do caminho da originalidade”293. Países
como Inglaterra e Rússia, por seu turno, seriam “menos requintados, menos agudos, menos
polidos, conservando ainda certa ingenuidade no pensamento”, de tal forma que saberiam
melhor “penetrar na ‘vida’”, assim como seriam “mestres” que ensinariam a “refletir e a
transportar para a inteligência toda essa massa inesgotável de uma matéria sempre renovada,
sempre fresca, sempre inspiradora”. O exemplo maior seria o do poeta irlandês W. B. Yeats que
recentemente ganhara o prêmio Nobel e, na opinião do crítico, podia ser considerado “talvez
em todo o Ocidente o poeta nacional típico, que soube plasmar o elemento nativo com todas as
forças que lhe traziam uma grande cultura e uma inteligência universal”. A ideia mais destacada,
que já estava na conclusão do ensaio “Política e Letras”, era a de que ao poeta não caberia a
inspiração nos motivos nacionais, mas modelar “a sua própria nacionalidade”. Conforme Yeats:
Nós chamamos criativas certas mentes porque elas estão entre as modeladoras da
nação e não porque são feitas por seus moldes. [...] não é a grande peça, não a peça
que dá a sensação de uma realidade externa, mas a peça na qual há a grande
abundância da vida em si mesma, da realidade que está em nossas mentes?294
Na visão de Tristão de Athayde, o engajamento acrítico nas vanguardas poderia ser visto como
mais um tipo de filiação de escolas de pensamento:
Não é de regras e escolas que precisamos. Com elas temos vivido e já nos bastam. O
que precisamos é penetrar, é viver realmente, como Whitman fez em seu tempo, a
vida que se esboça em nossa terra, com a riqueza de sentimento que só a natureza
pode dar e com a lucidez de inteligência que se libertar do peso do passado morto
dos próprios preconceitos da liberdade295.
O crítico lembra um conto de Pirandello no qual se narra a história de um siciliano
produtor de azeite e que um dia viu quebrar-se seu jarrão de pedra. Não tendo onde guardar o
precioso produto, ele contratou certo velhote que se gabava de ter a melhor das colas. Este
iniciou o seu meticuloso trabalho, meteu-se no meio dos cacos e foi reconstruindo o objeto, até
atingir a sua forma original e perfeita. Tal foi sua concentração e dedicação que, ao fim do
processo, o velho se viu preso dentro do próprio vaso que teve de ser novamente quebrado a
fim de se libertar o homem. Narrado o conto, conclui o crítico: “Assim, com os preceitos, em
literatura e em arte, reacionários ou revolucionários. Lucidez, disciplina, equilíbrio, crítica. De
outro lado – liberdade, inspiração, força criadora, dinamismo. Tudo muito bem. Apenas –
cuidado em não ficar dentro do jarro...”.
Em janeiro de 1924, antes, portanto, da conferência polêmica, do “Manifesto da poesia
293
ATHAYDE, Tristão de. O gesto, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 jul. 1924, p 1.
Citado em inglês no original. Cf. ATHAYDE, Tristão de. O gesto, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 jul. 1924, p 1.
A citação é do texto “The play, the player and the scene” lançado em 1904. Cf. YEATS, W B. The collected works
of W B Yeats. Vol. III. The Irish dramatic movement. New York: Scribner, 2003.
295
ATHAYDE, Tristão de. O gesto, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 jul. 1924, p 1.
294
444
pau-brasil” e do início das divisões sobre a adjetivação que deveria ser associada ao termo
“Brasil”, Tristão de Athayde fizera alguns a da seguinte afirmação de Graça Aranha presente
no livro de correspondências entre Joaquim Nabuco e Machado de Assis:
Não podemos instituir o culto dos escravos em antítese ao culto do índio. O escravo
foi um acidente doloroso que passou: o índio é uma idealização eterna no sentimento
nacional... Não se volta à escravidão; aspira-se sempre à liberdade de que o índio é
o protótipo... Parece hoje que o indianismo tem a feição de uma desforra contra a
imigração. E isto vai dar-lhe vida nova296.
Não estaria aí uma prefiguração das “raízes” e do “caráter” nacionais que a década de 1920 irá
privilegiar simbolicamente em determinada vertente de sua cultura intelectual e que ganhará o
cenário internacional? O crítico não concorda com a apreciação de Aranha e faz uma reflexão
sobre a contribuição do homem negro no Brasil, algo que estava longe de ser um lugar comum:
Esse paralelo me parece puramente literário. O negro é muito mais nosso que o índio.
Toda a nossa vida nacional está entrelaçada à sorte dessa miserável gente africana.
Toda a melancolia da nossa gente, tanto ou mais que saudade portuguesa, é banzo
africano. Toda a superstição do nosso povo, toda a bondade, todo o fácil
sentimentalismo, toda a indolência tropical de nossa gente não está revelando os
traços da alma negra que nos ficaram? E a unidade da nossa terra teria sido possível
sem o braço negro? Foi o escravo que sustentou no século XVIII as liberalidades
loucas de Portugal, que despertando a cobiça na terra rica, apertaram os laços da
submissão e suscitaram os ímpetos da independência. Foi ele que permitiu a
formação dos grandes latifúndios que estenderam o domínio e a cultura da terra rude
e interminável, fixando os núcleos esparsos da futura pátria. Foi o escravo que
preparou a riqueza da independência, que permitiu o paradoxo da sua escravidão,
sustentando a liberdade do país297.
Tal apreciação que preza antes por uma visada mais em acordo com a reflexão historiográfica
e menos com a força “simbólica” e “icônica” que poderia um dos termos angariar à época será
recorrente nas críticas de Tristão de Athayde. Continuando sua apreciação, ele afirma:
Enquanto o índio se embrenhava em suas selvas, inacessível à civilização, soberbo
talvez mais inassimilável, o negro se aproximava, subia lentamente de sua sorte
miserável, ia conquistando aos poucos a mesma liberdade a que nunca deixara de
aspirar, e cuja negação não podia desonrá-lo mas apenas àqueles que o privavam
dela. O índio é um mito para todos nós, como o pau-brasil. Ao passo que o preto é a
vida de cada dia, é o contato de todo momento. Quem de nós não guarda em seu
coração a saudade de uma mãe-preta, toda generosidade e sacrifício? E quando
vemos nossos filhos adormecerem nesses amplos regaços, cheios de aconchego e de
fidelidade, podemos, acaso, afirmar que o índio é o nosso ideal e o preto o nosso
escárnio? O indianismo foi um ideal puramente literário e que representou sobretudo
o ímpeto da libertação intelectual.
As concepções de Tristão de Athayde sobre as populações indígenas eram inspiradas nas
apreciações e estudos de Roquette Pinto que, não obstante toda a sua luta e engajamento na
defesa dos povos autóctones assim como a sua crítica contundente aos preceitos racialistas no
saber etnológico, mantinha concepções ambíguas acerca do estatuto antropológico de tal
296
ARANHA Apud. ATHAYDE, Tristão de. Dois amigos, Terra de Sol. Revista de arte e pensamento, Rio de
Janeiro, Vol 1, no 1, janeiro 1924, p. 37.
297
ATHAYDE, Tristão de. Dois amigos, Terra de Sol, p. 37.
445
população. Assim, Pinto defendia a “desigualdade entre as raças” recusando, porém, qualquer
hierarquização daí advinda, o que o fazia considerar a existência de “raças mais inteligentes;
outras mais sentimentais e terceiras mais pertinazes”, situando as populações indígenas antes
entre as segundas e terceiras do que como membros das primeiras298. Da mesma forma, ele
estabelecia que o “nosso papel deve ser simplesmente proteger, sem procurar dirigir, nem
aproveitar essa gente”299. Esta última sentença está em uma das obras mais importantes da
história da cultura intelectual brasileira das primeiras décadas do século XX, Rondônia. Dentre
as várias passagens grifadas por Tristão de Athayde, está a que considera que, ao contrário do
Paraguai, “no Brasil, o índio, na concorrência, tem sido sumariamente liquidado; não contribuiu
senão através de seus descendentes, para a etnogenia do país”300. Dessa forma, o crítico
associando a tais posições a teoria da decadência das civilizações, provavelmente a partir da
obra do alemão Oswald Spengler, considerava que o “indianismo”:
Não pode voltar senão como elemento. O cotejo com o caso do México e do Peru
não procede. Enquanto os Astecas e os Incas haviam representado realmente uma
civilização, de que hoje restam exemplares soberbos, nossos índios se encontravam
no último grau da decadência. Não eram raças elementares; eram fins de raças, eram
a despedida de uma humanidade. Sou o primeiro a proclamar que aproveite, por
exemplo, em nossa arte decorativa301, os elementos admiráveis que eles nos
deixaram com a arte das penas e das contas. Mas é quase tudo. Mesclados, ainda nos
deram os extraordinários jagunços. Puros, nada ou quase nada. O índio é um ideal
remoto; o preto a realidade presente. E a epopeia de cada um tem a mesma grandeza,
pois se um defendeu nas selvas a sua liberdade, o outro nunca deixou de lutar por
ela, e tão humanamente soube elevar a sua súplica que criaturas como Joaquim
Nabuco, desceram de sua classe para lhes dar a mão. Beleza por beleza, sacrifício
por sacrifício, nenhum leva a pala ao outro. E é falso, portanto, concluir que a
liberdade de um é um ideal a seguir e a escravidão do outro uma mancha a esquecer.
A liberdade está em nosso espírito e no esforço que fazemos por alcança-la, em nós
mesmos. Ambos viveram sem ela e para ela e mais nosso portanto é aquele que viveu
e vive conosco302.
Estas reflexões feitas a partir de noções desenvolvidas por Graça Aranha, ainda que
contrárias a elas, revelam aquilo que Jardim de Morais escrevendo sobre a “dimensão
filosófica” da “brasilidade modernista” contundentemente constatara: “[...] a obra de Graça
Aranha dá forma a todo o segundo momento modernista em sua generalidade. Só podemos
alcançar a dimensão do universal passando pelo singular. E o singular é o nacional”303. Em
298
Cf. SANTOS, Ricardo V. Os debates sobre mestiçagem no início do século XX. “Os Sertões” e a medicinaantropologia do Museu Nacional. In: LIMA, Nísia Trindade; MIRANDA DE SÁ, Dominichi (org’s). Antropologia
brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 134.
299
PINTO Roquette. Apud. SANTOS, R V. Os debates sobre mestiçagem no início do século XX. “Os Sertões” e
a medicina-antropologia do Museu Nacional. In: LIMA, N T et al. Antropologia brasiliana, p. 131.
300
PINTO, E. R. Rondônia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917, p. 43. Acervo CAAL.
301
Tais aspectos acabaram sendo, de fato, reiteradamente sugeridos pelo professor da Academia de Estrasburgo,
August Herborth que, além de expor desenhos sugestivos na Academia de Belas Artes em 1926, escreveu artigos
ilustrados na imprensa explorando o tema. Cf. HERBORTH, Augusto. A Arte primitiva do Brasil e sua significação
para a arte moderna, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 set. 1926, p. 18.
302
ATHAYDE, Tristão de. Dois amigos, Terra de Sol, Rio de Janeiro, Vol 1, no 1, janeiro 1924, p. 37-38.
303
MORAIS, E J de. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica, p. 122.
446
inquérito de 1924304 feito por Renato Almeida na revista América Brasileira acerca do
“problema do gênio em arte”, Tristão de Athayde, que foi o primeiro entrevistado, respondia à
questão associando a genialidade à universalidade, à angústia e à superação do ceticismo:
A universalidade acima de tudo. [...] Dante ou Miguel Ângelo viveram angustiados,
já não digo pelo espírito da nacionalidade, mas da cidade, de partido. Foram até ao
extremo, até o ódio, até a morte, cidadãos. E no entanto o universo viveu e vive
neles. E são nossos, intimamente nossos. Sabem responder à nossa inquietação. [...]
O ceticismo é justamente a negação da genialidade que supõe a confiança em
penetrar no segredo das coisas. As civilizações da conformidade, como Esparta ou o
Egito, não são favoráveis à genialidade, que supõe uma expansão mais livre e
espontânea do indivíduo. A Itália do Renascimento, onde tantos gênios brotaram, foi
a terra da ebulição da força viva da vida em chama. Onde a conformidade é uma
resignação, a reserva de surpresa do indivíduo não desaparece. E os gênios surgem,
como na Rússia de ontem. Hoje querem também transformar a Rússia numa
civilização de conformidade. O futuro dirá se as reservas da raça conseguirão vencer
a inércia da sociedade que Licurgo-Lênin modelou. Mas os românticos admiram os
homens de gênio. Os clássicos as ideias de gênio. Não esquecer sobretudo, que os
homens de gênio são homens de gênio. Femininos por vezes305.
Após a polêmica conferência, Graça Aranha apresentou um projeto306 de reforma da instituição
que, segundo o seu autor, visaria “modernizar a sua atividade” situando os temas nacionais
como primordiais, mas que foi rejeitado pelos próceres da Academia Brasileira de Letras. Em
outubro de 1924, o “senhor modernista” escreve uma carta ao presidente da instituição
solicitando o seu desligamento307. Apesar de ser um dos seus membros fundadores, Graça
Aranha abre mão da Academia que, ironicamente, não tardará muito a receber candidaturas a
prêmios e a cadeiras tanto dos seus detratores, quanto de seus admiradores.
O “Suprarealismo” e os modernos brasileiros
Em fevereiro de 1925, anunciava-se que Tristão de Athayde voltava a “fazer o folhetim
literário, por ele inaugurado desde a fundação do O JORNAL” 308. O jornal elogiava a figura
que por sua “finura do espírito, gracioso e sutil, a atitude do pensamento e a probidade e
impessoalidade dos processos da crítica literária, conquistou, no Brasil, uma tão invejável
situação [...]”. Reforçava-se, então, ideias do ensaio “Política e Letras” e incorporava-se o
espírito renovador que via o período como uma espécie de marco zero da história nacional:
Falemos franco. A literatura brasileira existe mas não vive. A literatura brasileira
sempre acompanhou os movimentos europeus, nunca suscitou uma idealidade
própria além de suas fronteiras. A literatura brasileira pode ser ignorada por um
homem culto309. Não temo acrescentar – por um homem culto brasileiro. Sim. É
304
Dentre os ouvidos estavam Graça Aranha, Medeiros e Albuquerque, Afrânio Peixoto, João Ribeiro, Antônio
Austregésilo, Mário de Alencar, Ronald de Carvalho, Celso Vieira, Jackson de Figueiredo e Tristão de Athayde.
Cf. Um Inquérito da “América Brasileira”, América Brasileira, Rio de Janeiro, Ano III, n. 29, mai. 1924, p. 153.
305
O problema do gênio (inquérito), América Brasileira, Rio de Janeiro, Ano III, n. 31, jul. 1924, p. 207.
306
Cf. MONTELLO, Josué. O modernismo na Academia, p. 103-104.
307
Cf. MONTELLO, Josué. O modernismo na Academia, p. 135-136.
308
A crítica literária do “O Jornal”, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 fev. 1925, p. 1.
309
Ideia similar foi retomada por Antônio Candido trinta anos após essa crítica: “(...) podemos imaginar um
francês, um italiano, um inglês, um alemão, mesmo um russo e um espanhol, que só conheçam autores de sua terra
447
perfeitamente possível ser um brasileiro inteligente, cultivado, cheio de pensamento
e rico de seiva criadora e não ler habitualmente os livros brasileiros, ignorar o
passado literário brasileiro. Parece uma heresia afirmar esse direito à ignorância
numa seção literária. Um crítico, que reinicia a sua atividade, lançando essa
condenação à própria matéria de que vai viver, parece desejar apenas um efeito fácil
de paradoxo ou de escândalo barato. Mas o fato é esse. Podemos ignorar a nossa
literatura e fazer por ela mais do que muitos que a conheçam profundamente310.
Assim, o primeiro passo para a criação original no Brasil residiria em “libertar-se da imitação
estrangeira”, pois a falta de caráter era a marca essencial de tal tradição negativa:
[...] a nossa memória e o nosso gosto corrompem a nossa inteligência criadora. Desde
o classicismo arcádico ao futurismo categórico, todos os nossos movimentos
literários ou plásticos, musicais ou filosóficos, revelaram o sinete de outras gentes.
Sempre fomos a cera dócil, esquecidos de que a palavra “caráter” é [...] de origem
grega, que significa, não a cera em que o sinete se grava, mas a marca profunda que
nela deixa...
Não seria o caso de se pregar a ignorância, mas de se constatar que desconhecer o que
“fizeram os imitadores não será propriamente um bem, mas também não pode ser um grande
mal”. Os “imitadores” formavam quase toda tradição literária brasileira. Tristão de Athayde
parece dar continuidade a algumas reflexões que ele fizera no ano anterior acerca do conceito
de “realidade” como um parâmetro profícuo para o desenvolvimento da arte moderna brasileira:
Para nós, nem um nem outro pode satisfazer inteiramente. Daí a inquietação em
procurar a lei interior dessa realidade que nasce alheia a nós, defrontando a realidade
não menos real que nasce dentro de nós. E a deformação humana limitada pelo jogo
das grandes massas naturais, será a síntese plástica ou literária do esforço moderno
contra o simbolismo e o realismo, - pela realidade311.
A “realidade” possibilitaria operar a síntese que garantiria a originalidade e a independência
cultural que surgiriam de uma nacionalidade feita de fraturas, contradições e imperfeições:
O meio tropical, excessivo, luminoso, a herança sentimental e ideológica, o ambiente
de civilização informe de tendências discordantes, toda essa força exterior ou
recebida se impõe a nós como uma resistência que nos oprimiria, se por sua vez não
reagisse nossa disciplina de cultura, nosso gosto de universal, nossa vontade de
reação contra o academicismo, nossa fé na realidade do espírito, um sentimento de
expressão nova, forte, profunda, que satisfaça a nossa ampla concepção de beleza,
como intuição do mundo exterior e como expressão do mundo íntimo.
Da criação desta “realidade” viria um sentido novo e total para a cultura intelectual:
Quais são os dois grandes livros destes 50 anos, talvez os dois maiores livros
brasileiros, pois não se destinam apenas a artistas, e letrados, mas a toda inteligência
brasileira? Penso que não haverá dúvida em nomear: “Um estadista do Império”, de
Joaquim Nabuco, e “Os sertões”, de Euclides da Cunha312.
Tal juízo se afirmaria num esforço de integração que iria além de qualquer limitação a priori:
Eles são grandes livros porque testemunham, através de duas inteligências tão
díspares, as duas faces da nossa alma brasileira: - a que se expõe e a que se recolhe,
e, não obstante, encontrem neles o suficiente para elaborar a visão das coisas, experimentando as mais altas
emoções literárias. Se isto já é impossível no caso de um português, o que se dirá de um brasileiro? [...] Comparada
às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca”. CÂNDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Vol 1, p. 9-10.
310
ATHAYDE, Tristão de. A literatura brasileira e a crítica, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 fev. 1925, p. 1.
311
ATHAYDE, Tristão de. Realidade, Terra de Sol, Rio de Janeiro, Vol II, no 5, mai. 1924, p. 194.
312
ATHAYDE, Tristão de. A literatura brasileira e a crítica, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 fev. 1925, p. 1.
448
a que confessamos e a de que nos envergonhamos, as capitais e o interior, a cultura
recebida, a inteligência, a polidez, a autoridade, a vontade de plasmar, de conformar,
de constituir a nacionalidade, - e do outro lado a massa em ebulição, a natureza
eriçada de espinhos, o sol impiedoso, a gente bárbara, toda a rudeza da vida
abandonada, do instinto à solta, da rédea livre313.
O que estaria em acordo com a “alma brasileira” seria a constatação de que “não foi o amor da
beleza que até hoje tem conseguido salvar a nossa obra, mas o amor da verdade”. Essa
“verdade” seria a expressão da realidade em sua complexidade, o que, àquela altura, parecia
produzir apenas um angustiante ceticismo frente à sucessão de derrotas que seria a história da
literatura brasileira e que continuava sendo em um presente vivido sob o signo da espera:
Uma geração dificilmente compreende a geração anterior e a seguinte. A barreira
entre pais e filhos é quase intransponível. O homem novo é um novo homem.
Especialmente quando vale alguma coisa. Daí as raízes verdadeiras das escolas
literárias. [...] As escolas porém também são artificio e cabotinismo. E sobretudo
uma lição de convencionalismo. O “poncif” é a sorte de toda revolta sem gênio. [...]
Apenas há uma imitação mais grave do que a dos discípulos insofridos ou levianos
de escolas novas: é imitação de escolas mortas. Caso tão frequente entre nós! São os
românticos do período naturalista, os parnasianos do simbolismo, os que fazem
naturalismo na era do super-realismo. E assim por diante. Imitar é mau, mas imitar
o que passou é apenas amar a consagração fácil. [...] O caos presente das nossas
letras não autoriza senão um grande ceticismo sobre qualquer progresso em relação
ao passado. [...] aumentamos consideravelmente a nossa produção, animando a nossa
inteligência com um dos seus elementos de vida, que é a quantidade. Mas a espécie
é que vale. [...] Produzir muito, sim, pois é uma ilusão pensar que os grandes livros
nascem sozinhos, no seu momento necessário. Parecem sós mais tarde, mas porque
ofuscaram os outros livros seus contemporâneos ou predecessores. [...] O gênio é a
economia misteriosa de um longo desperdício.
De qualquer forma, era com essa tradição de “imitação” e essa “quantidade” que
superava a “qualidade” que o crítico tinha de lidar. Assim como a manutenção do termo “Brasil”
em suspenso não poderia perdurar, se é que poderia ser feita de alguma forma, o juízo de
negação total da tradição e da história nacionais era antes uma nova maneira de se olhar para o
passado a fim de se encontrar a especificidade do presente. As tendências passadas seriam
integradas e superadas pelo presente reflexivo: “O romantismo viu, apenas, dessa natureza, o
idílio, como o realismo euclidiano viu apenas a tragédia. Como em tudo, especialmente em
letras, estamos apenas juntando materiais para o futuro”314.
Tal atualização não poderia sucumbir ao mero canto patriótico. Este demonstrara sua
fraqueza intelectual e estética durante os anos de Guerra na Europa. Conforme retoma o crítico:
O patriotismo literário dificilmente evita converter-se em patriotada. E essa forma
falsa de patriotismo frutificou fartamente na Europa, durante a guerra. [...] E o
resultado foi uma literatura de ódio e de heroísmo forçado, de lirismo guerreiro e de
romantismo de ação, que traía o estoicismo de salão e a estratégia em chinelas. Os
insuportáveis versos de Rostand, de Henri de Regnier ou de Richepin, escritos nesse
período, são típicos desse falso heroísmo. O suave, o eternamente expatriado Loti
clamava furiosamente contra a “hiena enraivecida”. Filósofos, como Bergson,
313
314
ATHAYDE, Tristão de. A literatura brasileira e a crítica, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 fev. 1925, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de, Fagundes Varela e o romantismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 mar. 1925, p 4.
449
pensadores, como Durkheim procuravam, a todo transe, adaptar os seus sistemas à
nova realidade. Paul Adam rugia tranquilamente coisas épicas, ante os campos de
batalha que visitava... depois das batalhas. O sábio Bédier vinha investigar, não mais
a origem das canções de gesta, mas os crimes dos invasores, ao passo que Joseph
Reinach fazia a estratégia de salão, em quinze volumes. E o próprio France começou
por sacrificar ao novo espírito, no seu Sur la Voie Glorieuse [...]. Em outros países
ocorria o mesmo. Um professor de literatura como Walter Raleigh, escrevia a
História da Aviação Durante a Guerra, com toda a grandiloquência de quem não
conhecia a guerra. O próprio Santayana também se deixava levar por esse desvio da
naturalidade. Alguns conseguem conservar-se independentes de espírito, como esse
profundo Bertrand Russell, mas, para cair no excesso oposto. O próprio Kipling,
poeta do imperialismo britânico e que escreveu algumas coisas impressionantes
sobre a guerra, como esse modesto e profundo epitáfio: “If any question why we died
/ Tell them, because our fathers died”; o próprio Kipling é muito maior escrevendo
contos da floresta indiana que a história dos guardas irlandeses durante os quatro
anos. Na Alemanha as obras de Thomas Mann e de alguns poetas, não mobilizados,
conduzem a uma nova estética de ação e de intelectualismo, que toma o nome de
Aktivismus. E a nossa própria língua não se isentou. Um dos últimos livros de Júlio
Dantas, Espadas e Rosas, reúne bem o que o “dantismo” tem de mais pedante e
artificioso, ora suspirando coisas melífluas, nos boudoirs das marquesas, ora
declamando períodos enfáticos sobre o heroísmo nas Flandres. Tudo literatura315.
Tais palavras de 1923 mostrariam que a afirmação nacional não viria das maneiras e formas
consagradas de expressão patriótica, mas já esgotadas em sua capacidade de revelar algo
significativo ao público. Ao menos a uma parcela do público crítico.
Segundo esses impulsos críticos e analíticos acerca do passado e do presente, Tristão
de Athayde abordou as obras O espírito moderno, de Graça Aranha, e A escrava que não é
Isaura, de Mário de Andrade. O crítico começa a introduzir horizontes vitalistas em suas
análises, algo que se tornará mais recorrente com o passar do tempo:
Como no mundo físico, pode-se dizer que a inércia é uma lei fundamental ao mundo
moral. A vida humana é uma exceção. As coisas inanimadas são, por assim dizer, a
regra da natureza. E, assim sendo, tudo tende à morte. E a vida, sendo uma exceção,
é uma reação. Viver é vencer a morte a cada momento. E a morte não é apenas a
cessação da vida; a morte é tudo que nega a vida; tudo que se opõe ao movimento, à
saúde do corpo, à força de ascensão do espírito. A inércia do mundo moral é o
caminho da morte. [...] A arte não escapa, portanto, a essa lei de inércia da vida.
Sendo, por si mesma, um dos meios supremos de reação contra o poder da morte –
das mortes, seria preferível dizer, pois há muitos meios de morrer, embora o fim
definitivo seja um só – logo que a arte se incorpora novamente à vida, porém, sujeitase à lei comum e tende, naturalmente à imobilidade, à estagnação, a petrificar-se.
[...] A tendência à imitação vence o esforço pela originalidade. A preocupação da
forma vence a essência viva. As artes poéticas sucedem à poesia. Os cânones à
invenção. A tirania imposta, à disciplina espontânea. O convencionalismo à criação.
E só um esforço de reação consegue impedir que essa inércia, como o mata-pau dos
nossos matos, absorva toda a seiva da vida316.
O crítico reafirma a percepção de se viver numa época de transição de destino incerto:
Estamos vivendo, hoje, um período de transição entre a inércia das formas recebidas
e a vida das formas renovadas. Estamos em pleno período de revolução literária e
artística, e, como o nosso meridiano literário impede de nos isolarmos do mundo, é
natural que participemos também, embora remotamente, da agitação que vai pelo
315
316
ATHAYDE, Tristão de. Curel e a Guerra, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 ago. 1923, p. 1.
ATHAYDE, Tristão. Modernos I, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 abr. 1925, p 4.
450
Velho Mundo e pela América, ao menos. Estamos, portanto, num período de
desatinos, demolições e demagogias, como o é todo período revolucionário. Alguns
como Spengler [...] veem nessa agitação um simples sinal de decadência definitiva.
[...] Mas o que parece, talvez, contrariar as sombrias previsões do Savonarola tedesco
é que essa a essa revolução da liberdade, que há 50 anos agita a cultura europeia,
sucedeu uma revolução da autoridade, aos modernos os antimodernos – mais
“modernos”317, de fato, que os primeiros, pois são os que preparam o novo
classicismo de amanhã. Ao delírio de dissolução seguiu-se um áspero desejo de
formação; aos espíritos possuídos de espírito negador sucederam os que pretendem
afirmar, construir, embora voltando a buscar materiais que pareciam definitivamente
condenados, como a escolástica, na filosofia, ou a lei, na arte318.
O crítico lembra ideias de Eugênio D’Ors, destacada figura associada ao “novecentismo”, ao
“mediterranismo” e ao nacionalismo da Catalunha319, segundo a qual se, antes, as artes estavam
envoltas nos esquemas vindos da música, agora era a arquitetura que surgia como centro
gravitacional estético. O Brasil seguiria, ainda, seu papel de lua, ou seja, a refletir “luz alheia”:
O pouco que existe de modernismo brasileiro veio de Paris. Veio também de Roma,
com Marinetti. Do norte do continente, com Whitman. Da Alemanha, com os
expressionistas. De Madri, com os ultraístas. Dos povos de língua inglesa, com a
“new poetry”. Veio de fora, como até hoje vieram todas as escolas em que os
historiadores dividem a nossa evolução literária. Isto é, sozinhos não teríamos saído
da rotina. Nem poderíamos ter tomado iniciativas dessas. Timidez, velhice
prematura, academismo perro, gramaticismo? Falta de tempo, repito320.
O crítico confere a Graça Aranha o papel de ter “trazido de Paris” o modernismo, atualizando
conflitos sobre o papel de “precursor” e de “liderança” do modernismo brasileiro321. A
“importação” não deveria ser vista com algo negativo em si. Afinal, esta era a dinâmica da
tradição brasileira que, nem por isso, deixara de ter produzido nomes como Castro Alves, José
de Alencar, Aluízio de Azevedo e Machado de Assis. O importante seria a incorporação do
elemento nacional, do “tropicalismo”, como se passou a dizer.
Acerca da obra O espírito moderno, o crítico lembra se tratar da reunião de artigos que
causaram repercussão no interior das letras nacionais, de forma que o que haveria de novo eram
os fragmentos literários, “Terra” e “Mar”, especialmente criticados:
317
A concepção do antimoderno como um moderno por excelência aparece já no livro de Jacques Maritain, de
1922, intitulado Antimoderne. O livro é dedicado a Vladimir Ghika, ícone intelectual e religioso na defesa da fé
cristã e no combate ao comunismo e, posteriormente, ao nazismo. Na obra Antimoderne, Maritain afirma: “O que
chamo aqui antimoderno, poderia muito bem ser chamado ultramoderno”. Retomando tais ideias, Antoine
Compagnon considera que “os antimodernos [...] não seriam outros senão os modernos, os verdadeiros modernos,
aqueles que o moderno não engana, aqueles que sabem”. Cf. MARITAIN, Jacques. Antimoderne. Nouvelle édition
revue et augmentee. Paris: Editions de la Revue des Jeunes, 1922, p. 14; COMPAGNON, Antoine. Os
Antimodernos, p. 12.
318
ATHAYDE, Tristão de. Modernos I, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 abr. 1925, p 4.
319
Cf. KERN, Maria Lúcia Bastos. Imagem e acontecimento: o Mediterranismo de Joaquín Torres-Garcia,
Domínios da imagem, Londrina, ano 1, no 1, p. 137-148, nov. 2007.
320
ATHAYDE, Tristão. Modernos I, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 abr. 1925, p 4.
321
No manifesto A arte moderna de Joaquim Inojosa, que teria “levado o modernismo” à Paraíba e demais estados
vizinhos, a posição de Graça Aranha é tida como a de líder inconteste: “Graça Aranha, todos sabem, trouxe para o
Brasil, depois de longa estada na França, o credo da Arte Nova, rezado, pela primeira vez, na Semana de Arte
Moderna no Teatro Municipal de São Paulo”. As reações apareceram na correspondência do próprio Inojosa.
Oswald de Andrade, por exemplo, agradece o fato de ser lembrado, mas afirma que no livro haveria “falta de
informação”. Cf. INOJOSA, Joaquim. Arte Moderna: 1924-1974. Rio de Janeiro: Meio Dia, 1977, p. 49; 18.
451
Esses dois fragmentos literários [...] são puro romantismo verbal, simples
repercussão do processo de alguns modernos, de isolar as palavras na frase, o que é,
realmente, de efeito, mas que, empregado sistematicamente, convencionalmente, de
princípio ao fim, é mais “poncif” do que toda a sintaxe tradicional322.
Assim como Oswald de Andrade destacara o “modernismo atrasado” de Graça Aranha, Tristão
de Athayde ressalta as contradições que o “senhor modernista” guardaria entre 1922 e 1924.
Especialmente acerca da reflexão em torno do subjetivismo que, no primeiro momento, seria o
fundamento da liberdade moderna e, no segundo, o causador da “destruição individualista”,
devendo ser, então, suprimido pelo “objetivismo dinâmico”. O crítico analisa:
No prefácio do livro procura explicar essa contradição real pela evolução das
concepções de arte, de 1921 a 1924. Isso é pura fantasia ou desculpa, pois já data de
muito antes de 1921 o desejo de reconstrução. [...] Sua afirmação de 1922 era falsa,
era apresentada e já estava há muito julgada e por muitos condenada. Eis, entre
muitas citações que pudera fazer, o que escrevia o malogrado Jacques Rivière323, em
1920: “É preciso que renunciemos ao subjetivismo, à criação pura, à constante
pretensão do objeto, que nos precipitaram na vida... Importa, sobretudo, que o
espírito crítico deixe de nos parecer como essencialmente estéril”324.
Tais mudanças de perspectiva seriam sintomas da dinâmica da cultura intelectual brasileira:
Isso prova, mais uma vez, o caráter de simples repercussão que têm ainda entre nós,
essas ideias. Enquanto lá fora houve vidas inteiras dedicadas a cada uma dessas
afirmações, nós aqui nos satisfazemos com evoluir, tranquilamente, de um pelo
outro, em dois anos, como se as ideias pudessem caminhar com essa rapidez, quando
levam consigo realmente, todo o nosso sangue e toda a nossa alma. [...] essa
passagem brusca de extremo a extremo indica apenas – ao lado de certo açodamento
indiscreto em seguir a última moda de Montparnasse – o atraso com que chegamos
a esse debate, que há já tantas dezenas de anos apaixona toda a inteligência europeia,
e que nós só há poucos anos conhecemos325.
Assim, o papel de Graça Aranha passa a ser aquele reservado ao gesto, à ação, ao fato de ter
posto em curso o debate e sofrer hostilidades não só dos acadêmicos, mas também “por parte
de modernistas que já procuravam, em silêncio, a ideia nova, verdadeira ou falsa, e viam-se,
talvez, despojados da glória ou dos espinhos de inovadores, ou, pelo menos, de reveladores”. A
sua ação e disposição seriam o principal, não se devendo esquecê-las frente às “vacuidades e
fantasias de seus escritos [...] desde o aparecimento da ‘Estética da Vida’, cuja ‘Integração ao
Todo Infinito’ volta ainda neste livro, com uma indiscrição mística e nebulosa...”.
Enquanto Graça Aranha marcaria um esforço já realizado, a obra de Mário de Andrade
afigurava-se ao crítico como um começo de destino incerto. Da mesma forma que o primeiro
modificara suas ideias, o autor de Pauliceia Desvairada também parecia começar a seguir
novos caminhos teóricos, conforme as palavras expostas no posfácio do livro recém-lançado:
Fala-se muito e eu mesmo falei já da bancarrota da inteligência [...] Hoje pode-se
dizer francamente que o intuicionismo faliu e Bergson com ele. A poesia
322
ATHAYDE, Tristão. Modernos I, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 abr. 1925, p 4.
Jacques Rivière, que tinha acabado de falecer quando do lançamento do artigo de Tristão de Athayde, era, desde
1919, o diretor da Nouvelle Revue Française. Cf. DAGAN, Yaël. La nouvelle Revue française, p. 195-196.
324
Citado em francês. ATHAYDE, Tristão de. Modernos I, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 abr. 1925, p 4.
325
ATHAYDE, Tristão de. Modernos I, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 abr. 1925, p 4.
323
452
instintivamente qualitativa já não basta para o homem novo. A transformação será
profunda [...] o paisagismo sentimental já vai aos poucos terminando. Nos discursos
atuais, rapazes, já é de novo a inteligência que pronuncia e tenho dito326.
Por seu intelectualismo, Mário estaria em “completa oposição” a Graça Aranha, o que revelaria
a complexidade do movimento que surgia no país e que os:
[...] modernistas têm razão quando afirmam que não existe um rudimento organizado
e uniforme, de que o sr Graça Aranha fosse o papa carioca e o sr Mário de Andrade
o pajé paulista, mas apenas um estado de espírito revolucionário ou reacionário que
procura trazer para o Brasil o grande debate que divide a Europa e lhe prepara talvez
um grande esplendor de criação artística para os meados deste século327.
Visto como “extremamente inteligente e culto”, Mário seria a figura central em debates que, se
pensados dez anos antes, seriam tão “remotos como a revolução chinesa ou o reino do
Rastafari”. Tristão de Athayde destaca um dos períodos finais da obra:
[...] cá muito em segredo rapazes, acho que um poeta modernista e um parnasiano
todos nos equivalemos e equiparamos. Ao menos porque estas lutas e mil e uma
estesias por uma arte humana só provam uma coisa: É que nós também os poetas nos
distinguimos pela mesma característica dominante da espécie humana – a
imbecilidade328.
Segundo o crítico, tal passagem seria especial, pois expressaria um “grito final de
amargura” que guardaria, por sua vez, o aspecto angustiante por que passaria o modernismo:
O que noto é um grito de angústia de quem procura honestamente, de quem busca
“o novo” com sinceridade e paixão de toda a alma, e vê na praça pública a exibição
lamentável de todos os esgares, e ridículos, e disformidades, e malabarismos, e
cabotinismo. Sob o seu passageiro soluço de desesperança. Passageiro, sim, porque
estou certo de que, no seu próximo livro, nos contará como chegou a disciplinar a
sua ansiedade e a estabilizar o seu pensamento. Quanto à angústia do coração, essa
oxalá que nunca a domine, pois de lá nos virá a sua arte, a sua expressão, a sua beleza,
e nós espectadores somos canibais insaciáveis...329
Conforme prevenira o próprio Mário de Andrade, o livro Escrava que não é Isaura já
não representaria as ideias correntes do autor, pois, sua maior parte teria sido escrita dois anos
antes da publicação. De qualquer forma, Tristão de Athayde considera ser o livro, que tanto
custara a vir a lume, em matéria de “poesia moderna”:
[...] o primeiro ensaio sistemático que entre nós se tenta sobre o assunto. E para muita
gente será uma revelação de loucuras mal suspeitadas, de regiões arbitrárias onde se
comprazem apenas os extravagantes, os malucos, os imbecis e os esnobes. Tanto
maior o valor de um homem, como o sr Mário de Andrade, de alma religiosa e
apaixonada de verdade, que já procura discernir entre esses valores novos. Ainda o
faz a medo. E realmente nada mais difícil, nesses casos, do que distinguir – entre o
vozerio oco -, a palavra anunciadora.
Acerca de um dos pressupostos fundamentais que a obra abrigaria, a refutação do
impressionismo segundo a fórmula da poesia vista como “máximo do lirismo, mais máximo de
crítica, igual a máximo de expressão”, o crítico afirma que apenas se forem concedidos aos
326
ANDRADE Apud. ATHAYDE, Tristão de. Modernos II, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 abr. 1925, p 4.
ATHAYDE, Tristão de. Modernos II, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 abr. 1925, p 4.
328
ANDRADE Apud. ATHAYDE, Tristão de. Modernos II, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 abr. 1925, p 4.
329
ATHAYDE, Tristão de. Modernos II, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 abr. 1925, p. 4.
327
453
“termos uma amplitude arbitrária e exagerada”, tal proposição poderia ser aceita:
Tomando-os, porém, em sua verdadeira significação, parece-me que falta a essa
definição um elemento essencial. [...] Por ela, a arte é possível, em qualquer
momento em qualquer circunstância, em qualquer parte, onde haja um espírito lírico,
que se critique e procure exprimir esse seu mundo subconsciente de inspiração. E no
entanto, o que a história e o pensamento nos revelam é exatamente o oposto. Um
espírito sozinho, em circunstâncias adversas, não consegue medrar. A sua realização
depende “também” de um elemento externo que permite e mesmo suscita o trabalho
de espírito330.
Tal elemento exterior seria a própria história, ou seja, a maneira como a arte teria acompanhado
“sempre a civilização, a força, a riqueza, os lazeres, a instrução”. A primeira referência do
crítico ao Manifesto do Surrealismo lançado por André Breton alguns meses antes aparece aí:
Ora essa existência de um “Espaço” exterior a nós, independente do Espírito, que
possa existir “antes” e “depois” do Espírito – a existência desse espaço é que torna
defeituosas todas as definições de criações humanas em que a ação desse “espaço”
seja desprezada. André Breton, “dissolve o peixe”, ao passo que, “na realidade”, o
peixe “também” existe.
Esse “âmbito exterior” teria de ser abrigado pela teorização a fim de se atingir a
realidade almejada. Tal incorporação da história seria um elemento fundamental da passagem
do futurismo ao modernismo da brasilidade. Apenas de tal tensão poderia surgir a originalidade:
E o defeito dessa definição unilateral é que, por ela, se perde ligação necessária do
artista às circunstâncias de seu meio, do seu tempo, de sua gente, que sempre se
revela nos altos espíritos expressivos, e não apenas efêmeros e logo esquecidos. É
afinal o que distingue a verdadeira originalidade, da simples extravagância.
O eixo teórico que gira em torno da dualidade homem natureza, simbolismo e naturalismo,
subjetivismo e objetivismo, problema mimético por excelência, permanece como o horizonte
de toda essa reflexão que deveria tirar da própria tensão/angústia o seu fator criativo:
As ideias são tão reais como os fatos. Fazem parte da natureza, como eles. São
promotoras de vida, de ação, de movimento. Têm uma existência intangível aos
nossos sentidos exteriores, porém mais tangível a nossa inteligência e a nossa
sensibilidade do que a realidade aparente. Nada mais verdadeiro e fecundo, portanto,
do que corrigir a verdade da natureza exterior, pelas verdades do espírito e viceversa.
Os desvios excessivos em função de uma das partes poderiam levar ao hermetismo:
Escreve o sr Mário de Andrade que a inspiração do poeta é como um telegrama que
o subconsciente lhe expede e que ele exprime, como acha que pode despertar
repercussão “O leitor que traduza o telegrama”. Acontece, porém, que com esse
sistema os poetas tendem a abusar do telegrama cifrado e se esquecem de fornecer a
cifra.
O comprometimento da inteligibilidade é algo que os dois autores não parecem dispostos a
bancar. Ao firmar Mário o combate ao hermetismo, o crítico julga que “nunca será bastante que
o faça, com a autoridade que lhe dá o seu admirável conhecimento de toda poesia
contemporânea, a sua influência nos novos espíritos, a sua aguda e original inteligência”.
Outras características do “discurso sobre algumas tendências da poesia modernista”
330
ATHAYDE, Tristão de. Modernos II, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 abr. 1925, p. 4.
454
são destacadas por Tristão de Athayde, como a destituição dos temas poéticos e artísticos tidos
como legítimos, considerando-se que “em tudo há poesia”, apenas dependendo do “modo de
tratar o assunto”331. Liberdades consagradas como a da rima, do verso livre e do dicionário em
sua riqueza vocabular também são reconhecidas o que, não obstante, não deveria se constituir
em regras: “Muito judiciosamente explica o sr Mário de Andrade que o metro livre e a rima
ausente não são exigências e sim apenas autorizações. O poeta as empregará ou não, de acordo
com as necessidades do assunto e do pensamento”. Cada um destes termos poderia se converter
em meros malabarismos, hermetismos de dicionários ou, ainda, desprezo pela riqueza que
determinadas regras poéticas conferiam mesmo a formas modernas de expressão:
E esses poemas orientais, que tanto influíram na poesia modernista ocidental como
o próprio sr Mário de Andrade reconhece, são escritos, como os “haikai”, por
exemplo, em metros rígidos e inflexíveis. Nem por isso é menos espontâneo, e
franco, e sugestivo o sentimento expresso, e menos viva a imagem, que de tão longe
age tanto sobre nós. A disciplina só escraviza os espíritos por natureza escravos.
Uma imagem histórica e política delineia o valor da liberdade: “Não acho, porém, que essa
liberdade deva ser imposta, a jeito daqueles puros da Revolução francesa ou hoje do
comunismo bolchevista, que ‘cortavam a cabeça aos nobres para lhes impor a liberdade’”.
Um mês após a crítica de Tristão de Athayde, Mário de Andrade lhe endereçava uma
carta, talvez a primeira de uma extensa correspondência, na qual comentava sobre o crítico:
Imensamente lhe agradeço o artigo que escreveu sobre a Escrava. Li e reli repensei
aproveitei. O que mais me agrada em você é um dom de penetração quase jesuítico.
Nunca vi ler tão bem nas entrelinhas. Já pegando a minha Pauliceia você soube com
paciência que só mesmo as inteligências muito vivas têm descobrir o que era na
realidade aquele livro como expressão psicológica dum autor. Agora, com a Escrava
ainda foi mais sutil332.
No final de sua crítica literária, Tristão de Athayde via na reflexão teórica de Mário de Andrade
uma “necessidade de construir, de procurar novos caminhos, sem abandonar o passado, antes
procurando sempre o que há de vivo e eterno nele”333. Neste sentido, ele teria se tornado o
“elemento mais interessante e mais valioso do atual modernismo brasileiro”. E tal situação se
verificaria pelo embate entre “modernismo e antimodernismo, mas no sentido de superar. Será
amanhã a terceira fase das três que o Dr Johnson viu no espírito poético: servilismo à lei, o
desprezo pela lei, a incorporação da lei”. Acerca de tais palavras, Mário de Andrade dizia:
É verdade que essa historiada de modernismo já me caceteia. Não é propriamente
que eu hesite entre modernismo e antimodernismo, não, porém faz bem uns dois
anos já que principiei a imaginar que a palavra tinha de servir, que a vida dum homem
tem coisas mais importantes pra resolver que isso de mostrar se o paletó envergado
é do último verão ou do próximo inverno. A minha vida é muito bela muito gostosa
para eu me preocupar de saber se o que escrevo é bem moderno ou não. Modernismo
e antimodernismo são palavras que já não têm mais nenhum significado para mim,
331
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Modernos II, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 abr. 1925, p. 4.
Carta de Mário de Andrade a Tristão de Athayde, 28/5/1925, acervo CAAL.
333
ATHAYDE, Tristão de. Modernos II, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 abr. 1925, p. 4.
332
455
juro que não sei mais o que elas querem dizer. Você cuja justeza e independência de
pensamento eu respeito me diga se não tenho razão. [...] Nada me desinteressa e
muito menos o modernismo porém vejo que este em todo o mundo e no Brasil, com
algumas exceções apenas está se dissolvendo em vaidades mandachuvas, partidinhos
e sobretudo em feroz perplexidade. Tendo já usado todas as cocaínas e outros
excitantes literários, usado e abusado, o modernismo não sabe mais o que há de
inventar para chamar a atenção dos desocupados. Ora você bem percebeu na minha
gargalhada de Pauliceia a revolta dolorida. [...] Eu não tenho o preconceito da alegria
que leva tão facilmente a confundir a alegria com pândega. Pagodeio também mas
reconheço o direito vital da dor. Daí o não compreender mais o sentido da palavra
modernismo. Não por causa do modernismo porém por causa dos modernistas334.
Se o nome de André Breton aparecera de passagem no artigo sobre a Escrava que não
é Isaura, cerca de dois meses depois, o crítico se dedicava inteiramente à análise nova
vanguarda. É sintomático que os dois artigos de Tristão de Athayde, nos quais tratou
diretamente do Manifesto do Surrealismo, não constem em vários trabalhos que tiveram como
tema “o surrealismo no Brasil”. Em seu “surrealismo no Brasil”, Antonio Cândido vê o
movimento como algo que não teria uma “necessidade vital” para o país, de modo que, por
aqui, “o Surrealismo, além de ginástica mental, só pode ser compreendido como uma
contribuição técnica, nunca como uma concepção geral do pensamento e da literatura, à maneira
por que é cabível na Europa”335. João Paulo Paes, por seu turno, considera:
Mas qualquer que seja a grafia, ao falar em surrealismo está-se falando a rigor do
escolástico, instaurado por Breton com o manifesto de 1924, e desde então
indissoluvelmente ligado ao seu nome, a ele que foi um pastor zeloso sempre
disposto a fulminar com anátema as tentativas de cisma na sua igreja. A par, todavia,
do surrealismo oficial e histórico, há um outro difuso, oficioso, sem doutrina ou
preceptística claramente definida, mas nem por isso menos atuante enquanto espírito
de época336.
O autor afirma que rigorosamente falando, “do surrealismo literário no Brasil quase se poderia
dizer o mesmo da batalha de Itararé: não houve”337. Ora, enquanto apreciação crítico-literária
não apenas houve, cumprindo todas as exigências das oficialidades literárias defendidas pelo
teórico, como serviu como um dos meios de se balizar a produção intelectual à época. Sérgio
Lima, no texto “Surrealismo no Brasil: mestiçagens e sequestros”, diz haver no Brasil “vínculos
explícitos com o surrealismo e seu movimento, desde os inícios dos anos 20”. O autor elenca,
então, algumas iniciativas como a presença do surrealismo em algumas revistas, na “declaração
dos direitos do sonho” feita por Sérgio Buarque de Holanda338, da edição de algumas obras, do
“retorno ao selvagem” que iria desde as reflexões sobre o “inferno verde” vindas de Euclides
da Cunha e Alberto Rangel até “às pesquisas de Rego Monteiro, passando pelo Pau Brasil,
‘Antropofagia’”. Apesar de reconhecer a presença do termo em passagens de Graça Aranha,
334
Carta de Mário de Andrade a Tristão de Athayde, 28/5/1925, acervo CAAL.
CANDIDO, Antonio. Surrealismo no Brasil. Brigada Ligeira. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004, p. 97.
336
PAES, José Paulo. Gregos e Baianos. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 100.
337
PAES, José Paulo. Gregos e Baianos, 1985, p. 99.
338
Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Perspectivas, Estética, Ano II, Vol 1, abr-jun. 1925, p. 273.
335
456
ainda que não atendendo ao rigor que o conceito passara a ter339, e em críticas dos anos 1930
de Mário de Andrade, a reflexão de Tristão de Athayde não ganha sequer uma menção340. Na
mesma obra, Valentim Facioli, no texto “Modernismo, vanguardas e surrealismo no Brasil”,
apenas afirma de passagem que “Prudente de Morais, neto, e Sérgio Buarque de Holanda,
defenderam quase instantaneamente [o surrealismo] e polemizaram contra os seus detratores
[...] entre eles o crítico católico Tristão de Athayde”341. Conforme analisamos, o crítico àquela
época não era visto como um “católico” e nem se afirmava enquanto tal, além disso, o termo
surrealismo, ou suprarealismo, sequer é citado por Sérgio Buarque de Holanda em seu artigo
“Perspectivas” publicado em Estética em 1925, de forma que o epíteto antes lhe fora atribuído
nos debates críticos que travara com o “católico”. Mais recentemente, tanto o volume
organizado por Jorge Schwartz, Vanguardas latino-americanas342, quanto o seu livro O fervor
das Vanguardas343, ambos dando continuidade ao trabalho que o autor escrevera nos anos 1980,
Vanguarda e cosmopolitismo344, mantêm o mesmo silêncio. Em O fervor das Vanguardas, no
capítulo intitulado “Surrealismo no Brasil? Décadas de 1920 e 1930”, o historiador considera
que a participação do poeta surrealista francês Benjamin Péret na revista Antropofagia teria
acontecido num momento em “que o surrealismo era praticamente desconhecido no Brasil”345.
Assim, a análise histórica sobre a relação do surrealismo com a cultura intelectual brasileira dos
anos 1920, uma vez que as influências diretas parecem não ter muito rigor e pertinência, se
contentaria com frases de espírito como a que diz que “desde sempre fomos um pais
surrealista”346, algo, aliás, presente já no “Manifesto Antropófago”347.
Apesar deste “sequestro do surrealismo em Tristão de Athayde”, as reflexões do crítico
não só satisfazem os “requisitos formais” para se falar do tema, como tiveram influência
significativa no interior da cultura intelectual brasileira. A começar pelo objeto de análise
abordado nas análises que saíram nos dias 14 e 21 de junho de 1925 na coluna “Vida Literária”
de O Jornal: o Manifeste du Surréalisme em sua primeira edição, quando precedia os textos
339
O termo “surrealismo” teria sido criado por Guillaume Apollinaire, em 1918, significando algo como um “novo
realismo”, e ganhado novo sentido a partir dos manifestos surrealistas. A primeira acepção do termo teve também
o seu percurso internacional, como se pode verificar pela apreciação do jovem Sérgio Buarque de Holanda a falar,
em 1922, dos “sobre-realistas” de Apollinaire. Cf. RAYMOND, M. De Baudelaire ao surrealismo, p. 206;
HOLANDA, Sérgio Buarque de. ...Il faut des barbares. In: BOAVENTURA, M E (org). 22 por 22, p. 34
340
Cf. LIMA, Sérgio. Surrealismo no Brasil: mestiçagem e sequestros. In: PONGE, Robert. Surrealismo e novo
mundo. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1999, p. 309-310.
341
Cf. FACIOLI, Valentim. Modernismo, vanguardas e surrealismo no Brasil. In: PONGE, R. Surrealismo e novo
mundo, p. 298.
342
SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas. São Paulo: EdUSP, 2008.
343
SCHWARTZ, Jorge. Fervor das vanguardas. São Paulo: Cia das Letras, 2013.
344
SCHWARTZ, Jorge. Vanguarda e cosmopolitismo na década de 20. Oliverio Girondo e Oswald de Andrade.
São Paulo: Perspectiva, 1983.
345
SCHWARTZ, J. Fervor das vanguarda p. 49.
346
PAES, José Paulo. Gregos e Baianos, p. 99.
347
“Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua Surrealista”. ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago,
Revista de Antropofagia, São Paulo, ano 1, no 1, mai. 1928, p. 3.
457
enfeixados sob o título de Poisson Soluble (“Peixe Solúvel”)348. A obra fora lançada entre
outubro e novembro de 1924 e ganhara maior divulgação a partir da edição da revista
Révolution Surreáliste, em dezembro do mesmo ano, que, não por acaso, trazia em sua
contracapa um grande peixe, nem um pouco “dissolvido”, com o termo “surrealismo” inscrito
sobre ele como uma espécie de marca fixada numa ilustração de lata de sardinha ou atum
circundado pelos dizeres: “Nós estamos à véspera de uma Revolução você pode tomar parte. O
escritório central de pesquisas surrealistas está aberto todos os dias de 4 hs. 1/2 a 6 1/2”. Na
capa da revista dirigida por Pierre Naville e Benjamin Péret, falava-se na “necessidade de se
alcançar uma nova declaração dos Direitos do Homem”349. Esta dimensão geral do surrealismo,
acionando a tradição revolucionária francesa em nome de uma “nova declaração dos Direitos
do Homem”, não podia deixar de ter fortes ressonâncias em alguns intelectuais brasileiros.
Como destaca Cláudio Willer, em análise histórica do movimento, a especificidade do
surrealismo frente às outras vanguardas que o antecederam residiria no seguinte aspecto:
E aqui tocamos no que realmente seria o fundamento do surrealismo, ou sua razão
de ser: uma tentativa, não de revolucionar ou questionar a criação artística apenas (o
que foi levado até o limite pelo dadaísmo), mas sim de repensar e refazer o homem,
a sociedade, passando pela revalorização do sujeito, porém entendido
dialeticamente, como relação com o que lhe é exterior e com o inconsciente, o nãosujeito consciente, o outro, o “duplo” do romantismo (e é neste ponto, que não pode
haver confusão entre o surrealismo e qualquer modalidade de idealismo)350.
Essa dimensão geral e contundente expressa no manifesto de André Breton não passou
despercebida pela crítica de Tristão de Athayde. Ele cunha a tradução “suprarealismo” e
claramente demonstra sua contrariedade com a novidade:
Lá para 1950 chegará por aqui. Por ora, limitam-se os salões das bas-bleus
paulistanas a imitar servilmente o cubismo de há vinte anos351, ou a atual Exposição
de Artes Decorativas de Paris (que aliás revela certas tendências de reação sadias)
com louvável coragem de afrontar o ridículo, mas uma desoladora incapacidade de
serem naturalmente originais. O suprarealismo é mais grave do que se fosse uma
simples expressão de cabotinismo. Ou a efêmera ambição de um revoltado, de um
original, de um segregado. Já pode apresentar toda uma série de nomes. É uma escola
literária. Já tem adeptos entusiastas. Já tem revelações inéditas a anunciar. Surge ao
fim desse primeiro quartel de século, em França, terra de irradiação incomparável,
por meio da nova geração. Rapazes de inteligência e de cultura. Quebra radical com
tradições anteriores. Base científica alegada. Momento propício. Neo-romantismo,
respondendo, a um século de distância, ao movimento romântico de 1830352.
348
O volume consultado é o da biblioteca do crítico. Cf. BRETON, André. Manifeste du Surréalisme. Poisson
Soluble. Paris : Éditions du Sagittaire, 1924. Acervo CAAL.
349
Cf. La Révolution Surréaliste, Paris, Année 1, No 1, 1 dez. 1924.
350
WILLER, C. Prefácio. In: BRETON, André. Manifestos do surrealismo. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 15.
351
Assim como Oswald de Andrade dissera que Graça Aranha tivera contato com o cubismo em um chá no atelier
de Tarsila do Amaral, Renato Almeida, em fevereiro de 1924, narrara suas impressões do cubismo com que tivera
contato na oficina da artista paulista. Almeida confessa que “não foi sem uma sensação de curiosidade que entrei
no atelier da Sra. Tarsila do Amaral. Ia ter o primeiro contato como cubismo, que só conhecia através de livros e
infiéis reproduções fotográficas”. Tais manifestações contextualizam a afirmação do crítico sobre o cubismo nos
salões paulistanos. Cf. ALMEIDA, Renato. Num atelier cubista, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 fev. 1924, p. 1.
352
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 jun. 1925, p. 4.
458
Se as suas considerações encerrassem apenas tais imprecações definitivas, talvez, elas
merecessem o esquecimento a que foram relegadas. Porém, não se tratou apenas disso. Como
analista de obras alheias, como “crítico expressionista”, Tristão de Athayde pretendeu definir o
que seria o “suprarealismo” segundo as palavras do autor francês.
O crítico lembra que a “base científica alegada” pelo surrealismo residiria nas teorias
psicanalíticas desenvolvidas por Freud que teria, mais do que qualquer outro teórico, encarecido
“a importância do subconsciente, procurando na distração e no sonho a expressão sincera desse
subconsciente, que seria a expressão profunda da nossa personalidade”. Aí estaria assentada a
perspectiva surrealista que, nas palavras de André Breton, tomariam a seguinte dimensão:
“Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a
realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer”353.
Conforme a argumentação do crítico, o surrealismo buscaria se expressar segundo um:
[...] “automatismo psíquico puro”, que nos dá “o funcionamento real do
pensamento”. A expressão literária será ‘um ditado do pensamento, fora de toda
fiscalização da razão’. Repousa sobre “o sonho todo-poderoso” e tende a “arruinar
definitivamente todos os demais mecanismos psíquicos”354.
Na apresentação do suprarealismo ao Brasil segundo Tristão de Athayde, a escrita
suprarealista procuraria e recomendaria que se evitasse os estados de atenção, fazendo com que
o escritor ficasse “em estado de passividade consciente, de forma a permitir que o sonho – pelo
subconsciente – possa manifestar-se livremente. A atenção só existirá para manter a distração”.
O crítico percebe aí um receituário para a banalidade na produção artística, uma vez que
implicaria numa perigosa irradiação através da “divulgação por todos aqueles que hoje anseiam
por escrever sem pensar, por ser artistas sem perder a hora dos cabarés ou faltar aos dancings”.
Tal perspectiva tornaria a arte “servil dessa farândola desmiolada e alvar de uma civilização
que se suicida” e os seguidores de Breton, muito provavelmente, não teriam o cuidado que ele
mesmo diz ter cultivado na feitura de sua obra: “Acrescente-se que André Breton levou seis
meses, diz ele355, de esforço contínuo a criar um só de seus fragmentos supra-realistas. Se for
isso exato, seus imitadores ou continuadores hão de rir-se bastante do mestre, pois em cada seis
minutos farão o que ele levou seis meses a fazer”356.
O crítico, então, procura situar o movimento surrealista em uma ordem maior de
coisas, interpretando-o como um sintoma de uma “civilização à beira do suicídio”. Trata-se de
uma apreciação do antigo e “confuso” conceito de decadência, conforme definido por Jacques
353
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 jun. 1925, p. 4.
Tradução de Luiz Forbes. Cf. BRETON, André. Manifestos do surrealismo, p. 45.
354
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 jun. 1925, p. 4.
355
Alusão a seguinte passagem de André Breton: “O poema FLORESTA-NEGRA marca exatamente este estado
espírito. Passei seis meses a escrevê-lo e, podem acreditar, não descansei um só dia”. BRETON, André. Manifestos
do surrealismo. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 5
356
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 jun. 1925, p. 4.
459
Le Goff357, que, em diferentes momentos, ganhara atualizações singulares segundo concepções
historicamente específicas. A ideia de um suicídio europeu aparece explicitada no contexto da
Grande Guerra, quando afirmações como a de Romain Rolland, “a velha Europa feudal decidiu
morrer como morrem todos os desesperados: pelo suicídio”358, tornavam-se recorrentes:
Cabe dizer que a desilusão latino-americana é alimentada pela circulação de uma
série de ensaios que, oriundos do outro lado do Atlântico, não para de confirmar o
profundo mal-estar que afeta o Velho Continente: La crise de l’esprit, de Paul Valéry
(1919); Le déclin de l’Europe, do geógrafo Albert Demangeon (1920); Où va la
France? Où va l’Europe?, de Joseph Caillaux (1922); La decadenza dell’Europa, de
Francesco Nitti (1922); os dois volumes de Der Untergang de Abendlandes, de
Oswald Spengler (1918 e 1922); ou ainda as análises do economista espanhol
Vicente Gay y Forner sobre a decadência e a morte dos povos europeus (1923)359.
Muitos destes autores faziam parte do repertório analítico de Tristão de Athayde que
procura produzir, então, a sua visão do “suprarealismo” como uma “infecção literária natural,
que corresponde ao estado de espírito de toda uma época”360. O crítico faz um grande parêntesis
a fim de definir tal “época” como o último ponto de um processo secular, para não dizer milenar,
segundo uma síntese que pretende demonstrar como o “pensamento antigo e medieval procurou
sobretudo ‘diversificar’ as coisas”, ao passo que o “mundo moderno procurou de preferência
‘homogeneizar’”. Trata-se de uma teoria da modernidade que procura estabelecer as principais
modificações ocorridas com o fim da antiguidade e da Idade Média:
Os antigos procuraram analisar as coisas, dar a cada elemento o seu valor. Chegouse assim a uma série de leis, de regras, de preceitos, que eram o fruto de um longo
trabalho de lucidez e de depuração. Uma “disciplina espontânea” da liberdade. A
arte estratificou-se em Cânones. As letras em Retórica. A moral em Decálogo. A
religião em Teologia. O direito em Digesto. A filosofia em Escolástica. A ciência
em Leis. A política em Estado. Tudo isso foi uma lenta cristalização da sabedoria,
do esforço, da inteligência, de séculos. Alguns povos ficaram nessa estrutura
definitiva das abstrações humanas. [...] Outros, porém, caminharam. E o mundo das
abstrações – que era afinal o mundo da realidade analisado, medido, pesado em suas
minúcias – desagregou-se lentamente, lentamente, como um velho palácio veneziano
minado pela laguna.
A imagem do mundo passado assume o desenho de um conjunto de edifícios que
ruíram. Segundo o crítico, construções como o Direito Romano, “que chegara às codificações
mais rígidas e permanentes das leis de justiça e convivência social”, definhara frente ao “Direito
Germânico” que, “cheio de novas concepções, novo espírito de força, de vida, de liberdade,
veio infiltrar-se no velho formalismo jurídico”. Nas artes, também ia ruindo a Retórica e os
Cânones, de maneira que “a tradição da beleza clássica – toda em proporções, em leis, em
limites – desapareceu na originalidade medieval e gótica, vinda do Norte, como as novas
357
Cf. LE GOFF, Jacques. Decadência. História e Memória. Campinas/SP: Unicamp, 1990, p. 375-417.
Cf. COMPAGNON, O. O adeus à Europa, p. 22.
359
COMPAGNON, O. O adeus à Europa, p. 212.
360
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 jun. 1925, p. 4.
358
460
correntes jurídicas”361. O momento do Renascimento é visto como a reação “de uma
religiosidade clara e racionalista do catolicismo mediterrâneo [...] contra o misticismo cristão
do Norte gótico”. De tal forma, o Renascimento é tido como um período em que ressuscitara a
“tradição clássica”, mas que “não impediu a marcha segura pela desagregação”. Na visão do
crítico, a “estética do catolicismo” teria sido capaz de “harmonizar-se com o mundo clássico”,
assim como “reagir contra a oposição inicial que o cristianismo representara contra o
paganismo”.
Pela primeira vez na crítica literária de Tristão de Athayde, a figura de São Tomás de
Aquino aparece como marco de pensamento estético: “Tomás de Aquino, na tradição sucessiva
de Platão, Plotino, Agostinho, resumiu admiravelmente naqueles três princípios básicos da
beleza: integritas, consonantia, claritas – uma verdadeira concepção de estética pré-cristã”.
Cada uma dessas categorias teria sofrido um processo secular degradação: a integritas tornouse fragmentação, a consonantia fez-se dissonância na harmonia que, por sua vez, já seria uma
sucessão à monodia e, atingindo, finalmente, a “politonia de alguns malucos lógicos vencendo
a harmonia”, não só em música. Já a claritas teria sido transformada em obscuridade:
[...] todos os movimentos estéticos sucessivos – com raras exceções -, no que tiveram
de mais original, vieram caminhando para a sombra, até chegar ao esoterismo de
certas seitas artísticas absurdas, mas no fundo lógicas, de ontem e de hoje. Pode-se
dizer, portanto, que a arte moderna teve uma evolução a-tomista.
“Edifícios religiosos” como a Apologética, a Escolástica e o Decálogo, construídos
através de séculos teriam sido destruídos aos poucos e ainda mais abalados pelo mundo
moderno do que a arte e o direito. Assim, enquanto a Escolástica “era repudiada, desde
Descartes, como incompatível com a Verdade cósmica e humana, a Apologética era abandonada
aos círculos estreitos das ordens religiosas e a Moral procurava seus fundamentos em motivos
extra-religiosos e puramente racionais ou utilitários”. O crítico nota, porém, uma reação:
Alguns espíritos procuram hoje [...] voltar à Sabedoria dos Antigos, que cristalizara,
que temperara e conformara todas as atividades do homem em construções sólidas e
fortes, dentro das quais fosse possível a nossa alma viver, expandir-se, criar, sem
estar a cada momento indagando, como hoje o fazemos, da razão de ser das cosias
fundamentais, estruturais e elevadas: as leis da justiça humana, as coisas da beleza,
as verdade da natureza, o ideal do procedimento moral e finalmente a própria
verdade Suprema. O homem moderno pensa ao ar livre, ao passo que o homem
antigo pensava entre as paredes formidáveis de um edifício.
Também o Estado teria sofrido tal processo de ruína, segundo a concepção que percebe
que enquanto a “política tendeu, durante séculos, para a formação de uma arquitetura social, as
tendências modernas operaram sobretudo no sentido de derrubar esse edifício de ordem e
hierarquia”. A Revolução francesa e a ideologia democrática provocariam a “desagregação de
361
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 jun. 1925, p. 4.
461
todo o velho edifício social”362. Assim, o Estado “deixou de depender de ‘princípios morais’
(bem ou mal aplicados, pouco importa), passando a depender de ‘direitos individuais’ (bem ou
mal alegados também)”. Posteriormente, a tendência à homogeneização teria se tornado mais
recorrente com o progresso do socialismo que encontraria na Revolução Russa a sua “fina
expressão”. Dessa forma, o “Estado [...] que os antigos tinham erigido e preparado, como a
suma arquitetura social, desagregou-se pelo democratismo, e homogeneizou-se mecanicamente
no comunismo”.
A ciência também teria se tornado alvo de tal processo, uma vez que Einstein estaria a
empregar uma “linguagem bem diversa da de Newton, quando falava do Tempo e do Espaço,
como daquelas grandezas finais, imutáveis, eternas, sobre as quais toda a Natureza assentava”.
O processo seria o mesmo, pois “onde outrora se procurou distinguir, hoje procuramos fundir e
confundir, porque a isso nos parece levar a inclinação natural do pensamento, em busca da
verdade. É a tendência à ‘homogeneidade’”. Elementos antes irredutíveis estariam agora
integrados em um “conceito indistinto total, do Espaço, no qual se poderá resolver a própria
Matéria e de que o Tempo não é senão uma de suas dimensões: o Espaço-Tempo”. E se a ciência,
ao menos, ainda guardava a distinção entre sujeito e objeto, “consciência perceptiva e uma
realidade percebida”, a “filosofia moderna vai além e desrespeita mais esse dado da nossa
intuição inata das coisas. Os materialistas reduziram o universo matéria. A alma era uma
simples secreção. A inteligência um humor fisiológico”. Por outro lado, o idealismo reduzia “o
universo ao espírito. Tudo se explica no plano mental, por sucessivas ‘sínteses a priori’ que são
a única realidade possível para a nossa consciência. Até chegaram à negação da matéria”.
Também a psicologia moderna estaria a seguir o mesmo caminho, de tal forma que,
segundo o crítico, “o que vemos, ainda uma vez, é o desejo de fundir, de anular as
diferenciações, de sintetizar num todo e dissolver o que os antigos haviam dividido em partes”.
Sendo a psicanálise a principal vertente “científica” reivindicada pelo surrealismo, o crítico
descreve a maneira como a tendência à homogeneidade afetara os estudos psicológicos:
Toda a psicologia moderna está impregnada dessa ideia de homogeneidade e de
dissolução. E de “ciência da alma”, como desde Aristóteles era considerada, passou
modernamente a simples processo de vida, quando Avenarius e Mach tentaram
dissolver totalmente essa ideia de concentração, esse conceito de alma, a maior das
tais “entidades metafísicas”, tão abominadas pelos psicólogos modernos,
substituindo-a pelo de “séries vitais”, pelo de “experiência pura”. Ao passo que
Lange, Sergi ou James, pela famosa teoria periférica das emoções, procuravam
descentralizar a consciência. Enquanto outros chegam a negar mesmo a consciência.
Ou fazem do indivíduo um reflexo do grupo, do meio social que o cerca, como Tarde
ou Durkheim.
Após esse longo parêntesis em que o crítico esboça uma teoria da modernidade segundo a
362
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 jun. 1925, p. 4.
462
passagem da “diversidade” à “homogeneidade” e vê o mundo moderno como uma ruína,
retoma-se a análise do movimento francês segundo sua inspiração na psicanálise que, dentre os
sistemas e contra-sistemas, seria “o mais famoso, o mais espalhado, o mais cheio de verdade
também, a psicanálise freudiana, onde o suprarealismo embebe as suas raízes”363.
Dessa forma, a primeira coisa a se levar em conta era que o suprarealismo não seria
“um simples acesso de charlatanismo, como tantos que ultimamente se sucedem na Europa” e
que, portanto, “não deve ser considerado com o simples sorriso dos céticos, com a gargalhada
dos ignorantes ou dos sarcásticos, ou com o desdém dos criadores”. Assim como faria em
relação ao comunismo, Tristão de Athayde verifica o “perigo” da nova vanguarda que, como o
regime soviético, seria algo “fundamente ligado a todo o ambiente mental moderno e porque
situado em pleno declive ‘natural’ das tendências contemporâneas, da marcha secular das ideias.
E por isso merece que a nossa repulsa seja menos efêmera que um simples muxoxo”364. A
relação entre comunismo e surrealismo, como se sabe, será bastante acentuada nos anos que se
seguiram365. A relação entre política e letras tornar-se mais clara na recepção das vanguardas.
Segundo Tristão de Athayde, o crítico britânico Middleton Murry já teria se
pronunciado sobre a incapacidade da psicanálise em gerar um “fruto estético”. Além disso,
procurava-se situar a psicanálise freudiana no interior da história da psicologia moderna:
Na verdade, [a psicanálise] veio apenas ampliar pontos de vista filosóficos já
indicados desde Leibniz, ou psicológicos sobretudo desde Charcot, Janet ou Breuer.
Justiça seja feita. Freud não é culpado dessa cisão que lhe atribuem. Como sempre,
os discípulos são mais orgulhosos que os mestres. Justamente porque não tiveram o
trabalho de criar. E não percebem como a criação é apenas um elo a mais366.
Dessa forma, a primeira restrição direta feita pelo crítico ao suprarealismo é acerca da
pertinência teórica de sua leitura da psicanálise, especialmente a valorização do sonho e da
distração pregada pelo movimento:
Ora, isso é uma interpretação muito parcial e errada da psicanálise, mesmo sem
entrar na crítica desta. Para o que nos interessa, o ponto de vista estético, o que a
psicanálise veio revelar não foi, como querem os suprarealistas, a predominância do
mundo subconsciente, mas apenas a riqueza desse mundo subconsciente.
O que estaria em jogo nas pesquisas freudianas seria antes uma maior compreensão acerca do
funcionamento da psique humana a fim de mostrar que “não havia arbitrariedade no nosso
mundo mental. Que tudo se reportava a dados, rigorosamente certos, a elementos preexistentes
363
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 jun. 1925, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1925, p. 4.
365
“Em contraste ou mesmo em contradição com esta ligação com o esoterismo, o surrealismo se declara
materialista e, desejando levar também a revolução no plano social, empreende desde 1925 sua aproximação com
o partido comunista. Após longas tergiversações devidas à desconfiança dos intelectuais do partido, às objeções
de Pierre Naville e à rejeição ao engajamento de muitos escritores surrealistas, em particular Soupault, Artaud e
Vitrac, que serão ‘excluídos’ no fim de 1926, têm-se os artistas fora de um engajamento formal. [...] Nos primeiros
dias de 1927, Aragon, Breton, Éluard, Péret e Pierre Unik aderem ao partido comunista, mas esta adesão durará
apenas alguns meses”. Cf. FAUCHEREAU, Serge. Avant-gardes du XXe siècle, p. 353.
366
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1925, p. 4.
364
463
em nós mesmos e que apenas não conseguimos perceber ou os percebemos mal”367. Para tanto,
a “ciência” da psicanálise poderia “através dos sonhos e dos atos falhos” chegar a “uma visão
mais lúcida dessa causalidade psíquica”. O crítico se questiona se a conclusão suprarealista
seria coerente com tal perspectiva clínica: “Ora, como concluir daí que o homem, o homem
verdadeiro, o homem sincero, seja esse homem das regiões sombrias?” Desdobra-se, assim, o
argumento que restringe a leitura estética que os suprarealistas fariam da psicanálise368:
Seria o mesmo que dizer [...] que o verdadeiro Brasil, o Brasil puro, o Brasil único,
é o Brasil das jazidas de minério. Revelar uma riqueza não é, de forma alguma,
concluir pelo seu predomínio. O dinheiro, a abundância de dinheiro verdadeiro é
uma riqueza, não há dúvida. Mas o predomínio exclusivo do dinheiro é a plutocracia
que submerge e desmoraliza as democracias modernas. O sentimento é a maior
riqueza da nossa alma. Mas uma arte que confia ao sentimento a supremacia,
degenera logo no mais descabelado romantismo, no vago, no artifício, na ênfase369.
Ainda que mantivesse alguns “absurdos”, a psicanálise teria chamado a atenção para
“esse mundo misterioso do subconsciente” e mostrado como dele se poderia “extrair força e
beleza, arte e poder, bondade e perfeição”. A sua finalidade não seria habitar tal mundo:
Mas também mostrou que sozinho esse mundo não se elevava e que as
degenerescências humanas eram justamente a compressão inconsciente das
tendências instintivas mais prementes. Era afinal a ausência de consciência que
provocava as degenerações. E o excesso de consciência permite as sublimações, para
empregar a terminologia da escola.
Assim, a princípio, o suprarealismo teria nascido de “uma falsa interpretação da psicanálise”.
Tristão de Athayde aponta uma série abolições, destruições e comprometimentos em
que o suprarealismo seria o ponto de chegada, num processo secular de afirmação da liberdade:
A arte, como a filosofia ou a ciência, caminhou no sentido da desagregação, da fusão
e daí da confusão. Aboliram-se as leis. Aboliu-se o passado. Aboliu-se o gosto.
Aboliu-se a inteligibilidade. Aboliu-se a natureza. Aboliu-se a beleza. Aboliu-se
tudo que pudesse limitar, por menos que fosse, a liberdade absoluta. André Breton
exclama, num grito de profunda sinceridade: Só o que me exalta ainda é a única
palavra liberdade. Palavra reveladora!370
O crítico destaca a “honestidade” de Breton em revelar a base teórica do suprarrealismo,
afirmando-se como nova expressão que, entretanto, partiria de pressupostos equivocados:
Expressão nova, revolucionária, em oposição à verdade do nosso espírito e da
realidade externa – mas afinal nada mais do que expressão. E nisso, não é possível
ir além do que foi a estética de Croce. Ou o silêncio – e portanto a renúncia a tudo,
367
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1925, p. 4.
Em 1937, André Breton manteve com Freud uma correspondência que revelaria os supostos equívocos teóricos
do surrealismo. Convidado a participar de uma coletânea de textos sobre o sonho, Freud recusou, pois “para ele o
sonho só apresentava interesse enquanto conteúdo manifesto que remetia a um conteúdo latente: ‘... o enunciado
literal, o que chamo de sonho ‘manifesto’, não tem para mim qualquer interesse. Dediquei-me a encontrar o
‘conteúdo latente do sonho’, que se pode extrair do sonho manifesto por meio da interpretação analítica. Uma
recompilação dos sonhos, sem as associações que lhe são acrescentadas, sem conhecimento das circunstâncias em
que o sonho teve lugar – uma recompilação semelhante nada quer dizer para mim’”. Cf. WILLER, Cláudio.
Prefácio. In: BRETON, André. Manifestos do surrealismo, p. 15.
369
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1925, p. 4.
370
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1925, p.
4. Tradução: Luiz Forbes. Cf. BRETON, André. Manifestos do surrealismo, p. 35.
368
464
à arte inclusive -, ou uma forma qualquer, por mais absurdo que seja, de
exteriorização, e portanto expressão371.
A primeira produção suprarealista estaria contida no próprio volume em que saiu
publicado o “Manifesto”, conforme aponta o crítico: “À sua expressão supra-realista (o nome
é de Guillaume Apollinaire) chamou André Breton de Poisson soluble”. O que se destaca então
é o apelo à dissolução que marcaria, conforme fora apontado, uma tendência de um processo
histórico geral. A imagem que Tristão de Athayde se utiliza para descrever os efeitos do
suprarealismo na cultura não deixa de ser passível de verificação em algumas produções
pictóricas surrealistas que vieram a lume posteriormente, notadamente na de Salvador Dalí:
Fabre se refere aquele inseto que injeta em sua vítima uma substância venenosa, que
lhe dissolve as fibras, que o reduz a uma geleia, a uma papa informe, de que ele então
longamente se deleita. Esse é, em arte, o processo supra-realista. Inocular na
natureza, no mundo das coisas sólidas e das ideias lógicas, um ácido dissolvente, que
as reduz à forma gelatinosa!
O crítico, então, passa a citar vários fragmentos em francês que compõem o Poisson Soluble a
fim de dar o leitor a dimensão objetiva do que seria uma produção suprarealista:
O parque, a esta hora, estendia suas louras da fonte mágica. Um castelo sem
significado rolava na superfície da terra. Junto a Deus, o caderno desse castelo estava
aberto sobre um desenho de sombras de penas e de íris. O Beijo da Jovem Viúva: tal
era o nome da estalagem acariciada pela velocidade do automóvel e pelas colgaduras
de relvas horizontais. Assim, jamais os ramos datados do ano anterior se mexiam ao
se aproximarem os estores, quando a luz faz com que as mulheres se precipitem em
direção às sacadas. A jovem irlandesa, perturbada pelas lamúrias do vento leste,
ouvia as aves marinhas rir-lhe no seio372.
Em seguida, são reproduzidas passagens do fragmento número 2:
Em menos tempo do que o necessário para dizê-lo, com menos lágrimas do que as
necessárias para morrer, computei tudo, aí está. Procedi o recenseamento das pedras;
o número delas é o dos meus dedos e de mais alguns; distribuí prospectos entre as
plantas, mas nem todas quiseram aceitá-los373.
A seguinte passagem do fragmento número 6:
A terra, sob meus pés, não é mais que imenso jornal desdobrado. Às vezes passa uma
fotografia, é uma curiosidade qualquer, e sobe das flores, uniformemente, o cheiro,
o cheiro bom da tinta de imprensa. Quando eu era jovem ou vi dizer que o cheiro de
pão fresco era insuportável aos doentes, mas repito que as flores cheiram a tinta de
imprensa374.
E, por fim, um pedaço do fragmento número 9:
Noite suja, noite de flores, noite de estertores, noite capitosa, noite surda cuja mão é
um papagaio de papel abjeto, detido por fios de todos os lados, fios negros, fios
vergonhosos! Campo de ossos brancos e vermelhos, que fizeste de tua árvores
imundas, de tua candura arborescente, de tua fidelidade que era uma bolsa de pérolas
371
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1925, p. 4.
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1925, p.
4. Tradução Sérgio Pachá. Cf. BRETON, André. Peixe Solúvel. Manifestos do Surrealismo, p. 67.
373
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1925, p.
4. Tradução Sérgio Pachá. Cf. BRETON, André. Peixe Solúvel. Manifestos do Surrealismo, p. 72.
374
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1925, p.
4. Tradução Sérgio Pachá. Cf. BRETON, André. Peixe Solúvel. Manifestos do Surrealismo, p. 78.
372
465
justapostas, com flores e inscrições medíocres, significados, em suma?375
Tristão de Athayde informa ao leitor que se trata disso o Peixe Solúvel, trinta e dois
fragmentos de uma “prosa amena, satisfeita, tranquila”. O crítico considera que o suprarealismo
teria já atravessado o Atlântico, lembrando a produção poética do norte-americano E. E.
Cummings, que faria poemas “bem no espírito da escola, embora muito menos radicalmente
dissolvidos...” Conforme a própria publicidade do “Manifesto” lançado por Breton, “o mundo
inteiro fala do surrealismo”376 e tal difusão justificaria a seriedade na apreciação:
É fácil demais rir. Por isso mesmo não devemos fazê-lo. Sorrir quando muito. E
defender-nos. Tudo isso à primeira vista é uma bobagem. Mas é pior que isso. É
realmente uma dissolução voluntária, a frio, da natureza, do espírito. E sobretudo
uma sobrevivência de fantasmas e sombras que mostra bem o caráter simplesmente
residual desse método377.
Retoma-se a tese que vê no mundo moderno a destruição dos “edifícios abstratos”,
porém, ressaltando-se a positividade de tal expansão da “liberdade”. Esta agira frente à inércia
que caracterizara a fortuna de cada um daqueles “edifícios”:
O Direito Romano, solidificado no estreito formalismo, tornara-se artificial,
demorado, anacrônico, perro. A Arte, compendiada em Retórica, perdera a sua
verdade natural, a sua frescura, a sua humanidade profunda e desejada. A Filosofia,
depois de codificada em Escolástica, por um esforço mental incomparável,
renunciara à investigação independente da verdade, em proveito de uma rigidez de
fórmulas e preceitos que abafavam o pensamento e impediam todo surto individual.
A Idade Média não foi absolutamente esse inverno que os nossos professores
quiseram incutir em nosso espírito. Foi antes uma formidável retorta de ideias e
realizações. Mas depois de criada a Escola? Que faria o pensamento se não jogar
com palavras e fórmulas? A Ciência, por sua vez, enfeixada em leis imutáveis e
eternas, supunha varrer toda outra cogitação de verdade, arrogando-se o direito de
dizer em tudo a última palavra. O homem criara assim uma série de abstrações, às
quais dera uma realidade tão tangível, que acabou por tomá-las como a verdadeira
realidade e esquecer a fonte viva de onde elas tinham se formado. A Retórica abafou
o artista, como a Escolástica tolheu os filósofos, como a Ciência substituiu-se aos
sábios ou o Código aos jurisconsultos. Em lugar da disciplina espontânea da
liberdade, que levou a essas admiráveis construções de ideias, as gerações seguintes
começaram a receber uma disciplina imposta da liberdade. Em lugar de arquitetos,
os homens se viram forçados a ser apenas os pintores, os decoradores, os
conservadores dos edifícios. Em vez de criar como seus antepassados, só lhes
restava guardar. Revoltaram-se. E em lugar de aumentar os edifícios, de elevá-los,
de enriquecê-los, como podiam, como deviam fazer, como hoje talvez recomeçam a
fazer, resolveram demoli-los. Reagiram... e foi pior, até o ponto em que não
souberam conter-se. E o abalo produzido por todos esses desmoronamentos suscitou
no homem moderno tal dose de ceticismo, tal perplexidade e amargura, que permitiu
e alimenta essa onda de desagregação moral que por toda a parte cresce. E as
potências vis, as forças do interesse, do luxo, da ambição, de gozos do instinto, vão
também crescendo.
Dessa forma, não se trata de uma crítica à modernidade que apenas verificaria uma injustiça
total com as estruturas passadas, apesar de se destacar a maneira como o período medieval
375
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1925, p.
4. Tradução Sérgio Pachá. Cf. BRETON, André. Peixe Solúvel. Manifestos do Surrealismo, p. 85.
376
La Révolution Surréaliste, Paris, Année 1, No 1, 1 dez. 1924, p. 34.
377
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1925, p. 4.
466
deveria deixar de ser visto como um “inverno” segundo uma filosofia da história que tinha no
mundo moderno a superação de uma Idade das Trevas378. Neste sentido, menos do que a criação
de uma utopia passada, tratava-se da verificação de um sentimento segundo o qual os
antimodernos seriam “os verdadeiros modernos”, os “modernos a contragosto”379.
Trata-se, antes de tudo, de uma crítica a um presente cindido no qual a “inteligência”
deveria cumprir um papel essencial:
Quando a inteligência renuncia, o instinto se apodera. Um imenso suicídio. E é por
isso que, a meu ver, para mencionar apenas o campo da arte, que aqui nos interessa,
cada vez mais, o problema moderno por excelência, o que mais nos deve ocupar é o
378
Conforme Le Goff, nos últimos três séculos da era pré-industrial, o período medieval já passa a ser visto com
uma “época execrável de que a humanidade saiu, a bárbara Idade Média, essa idade de trevas, agora dissipadas.
Os eruditos e os lexicógrafos expressam bem esta noção na sua linguagem própria: não é só a média, mas também
a baixa latinidade que a Idade Média revela através da língua – índice por excelência do nível cultural e moral –
media et infima latinitas”. A configuração do imaginário intelectual acerca do mundo medieval nos anos 1920
passa por vários eixos, desde a renovação dos estudos historiográficos até à adoção de motivos medievais como
inspiração vanguardista, passando pela renovação dos estudos acerca de São Tomás de Aquino, favorecendo toda
a emergência de um neotomismo católico que teve grande propagação. Especialmente os séculos XII e XIII são
vistos como períodos de desenvolvimento cultural, político, econômico e artístico, não se devendo doravante
corroborar com as ideias modernas que adjetivaram o período medieval como “obscuro”, “ignorante” e “bárbaro”.
Época das grandes catedrais góticas, das Cruzadas, da origem das universidades e das instituições parlamentares,
do auge do papado, da emergência da literatura vernacular, da integração da filosofia aristotélica à teologia cristã,
dos começos incipientes da investigação cientifica, das viagens de Marco Polo, dentre outros aspectos. Neste
sentido, o historiador medievalista americano, Charles Homer Haskins, a fim de relativizar os “inícios”
proclamados durante o renascimento, lançou, em 1927, a obra The Renaissance of the Twelfth Century [O
renascimento do século doze], assim como, em 1907, o jesuíta e historiador James Joseph Walsh publicara The
Thirteen, Greatest of Centuries [O treze, o maior dos séculos]. Em 1924, Marc Bloch lançara Os reis taumaturgos,
marco da nova historiografia que seria simbolizada pela criação da Escola dos Annales em 1929. Já no campo das
artes de vanguarda, desde o grupo “Die Brücke” (“A Ponte”), fundador do expressionismo alemão, nota-se a
influência e admiração explícita por artistas medievais, de modo que “os expressionistas dirão sempre sua
admiração por Greco, Hogarth, Goya ou Daumier, mas sobretudo por uma arte muito especificamente germânica:
os Apocalypse de Dürer, os nus de chapéu de Cronach que Kirchner tanto admira, as Sorcières de Baldung Grün,
o Cristo convulsionado em dores do retábulo de Issenheim de Grünewald, as xilografias da Dança macabra de
Holbein, a gravura sobre a madeira medieval [...]”. Além disso, um artista como Ezra Pound, teórico maior do
“imagismo” inglês, era um “admirador da poesia medieval e provençal”, tendo produzido uma antologia de poetas
medievais. O próprio Guillaume Apollinaire saberia “casar com elegância a fantasia e as rimas funambulescas do
Grandes Retóricos medievais e seus contemporâneos Paul-Jean Toulet e Tristan Derème”. Tanto no primeiro
quanto no Segundo Manifesto do Surrealismo, André Breton faz alusão à alquimia medieval e à magia como fontes
de inspiração. A reabilitação do tomismo ganha força a partir da produções como a do professor Maurice de Wulf,
especialista em história da filosofia medieval, foi professor na Universidade de Louvain e em Harvard, autor,
dentre outras, de uma Philosophy and civilization in the middle ages lançada em 1922. Além disso, intelectuais
como François Maritain atualizavam o tomismo como uma filosofia condizente com o revigoramento católico no
interior da sociedade moderna. Eram os católicos ultramontanos. Pode-se dizer que Tristão de Athayde participou
de cada um desses eixos. Em sua biblioteca, há várias obras sobre história, filosofia e cultura na Idade Média.
Desde livros de vulgarização, como a Life in medieval France (1925) de Joan Evans, que pretendia descrever a
vida nos castelo e nos casebres, nas catedrais e monastérios, na escola e na Universidade, na cidade e no campo,
até obras como a de Maurice de Wulf citada acima, a do alemão Alois Dempf, Ethik des mittelalters [“Ética da
Idade Média”], lançada em 1927. No campo artístico, lá está o livro do importante historiador e teórico da arte,
Wilhelm Worringer, La esencia del estilo gótico, tradução em espanhol lançada em 1925. Além disso, o ensaio
interpretativo do filósofo russo Nicolai Berdiaev, Das neue mittelalter” [“A nova Idade Média”], lançado em
alemão em 1927. Cf. LE GOFF, Jacques. Decadência. História e Memória. Campinas/SP: Unicamp, 1990, p. 390;
LITTLE, Lester K; ROSENWEIN, Barbara H. Debating the Middle Ages: issues and readings. Padstow:
Blackwell, 1998, p. 1-2; BURKE, Peter. A escola dos Annales. São Paulo: UNESP, 1992, p. 29-30; LE GOFF,
Jacques. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 13-15; FAUCHEREAU, Serge.
Avant-gardes, p. 27-362; HARRISON, Charles et al. Art en theorie. 1900-1990, p. 98-99.
379
Cf. COMPAGNON, Antoine. Os Antimodernos, p. 226.
467
problema da autolimitação da liberdade380.
O último estágio da liberdade ilimitada seria o suicídio. O tema do suicídio não era estranho à
campanha surrealista. Em seu primeiro número, a revista Revolução Surrealista abria uma
enquete ao público que devia enviar as respostas para o Escritório de Pesquisas Surrealistas:
A Revolução Surrealista dirigindo-se indistintamente a todos, abre a seguinte
enquete: a gente vive, a gente morre. Qual é a parte da vontade em tudo isso? Parece
que a gente se mata como se sonha. Não é uma questão moral que nós colocamos: O
SUICÍDIO É ELE UMA SOLUÇÃO?381
Uma vez que o suprarealismo seria mais do que uma “escola estética”, André Breton naquele
mesmo ano de 1925 dizia que “nós não temos nada que ver com a literatura. O surrealismo não
é um meio de expressão novo, ele é um meio de liberação total do espírito”382. As restrições
radicais que Tristão de Athayde fizera acerca do movimento francês não podem ser
simplesmente excluídas da história intelectual e artística do país, sob o preço de se transformar
a reflexão historiográfica em celebração acrítica e narcísica.
Assim, o surrealismo não só teve recepção crítica imediata no Brasil, como foi
utilizado como parâmetro de análise daquilo que surgia como vanguarda no país. Se, por um
lado, o esforço “intelectualista” de Mário de Andrade era imediatamente reconhecido como
valioso por Tristão de Athayde, a poesia “pau-brasil” de Oswald de Andrade foi, com a mesma
prontidão, associada à “libertação suicida” que teria se tornado uma espécie de tendência
histórica geral. Não por acaso, ao analisar a obra deste último, ele intitulou seu artigo como
“Literatura suicida”. Voltando à afirmação sobre a necessidade de lucidez, o crítico retoma a
imagem do mundo moderno que estaria a viver uma “era de luta”, na qual quem “não queira
sucumbir, ou concorrer por inação, para auxiliar a decadência e a morte, precisa optar”. No
caso, entre Montaigne e Pascal, era o segundo que deveria prevalecer, uma vez que “escolher –
para nós que nascemos, que fomos educados, que fomos corrompidos, naquele paraíso da ironia
e do ceticismo – é a mais dolorosa das operações. Escolher nos parece uma mutilação. O
problema portanto é: escolher sem mutilar”383. Verdadeiro herói dentre os antimodernos, Pascal
atingiria vários personagens do campo intelectual. Dentre os convertidos ao catolicismo desde
a virada do século XIX para o XX, ele seria o “autor mais citado depois dos Evangelhos”. Nos
meios vanguardistas, Apollinaire escrevia a Picasso: “O que ainda hoje há de mais novo, mais
moderno, mais sóbrio, mais carregado de riquezas do que Pascal? Você gosta dele, acho, e com
razão. É um homem que podemos amar”384. Maurras não compartilhava tais ideias:
(...) a vitória de Pascal é uma vitória perigosa (...) é a vitória do irracional; é, além
disso, a vitória do pessimismo, de uma concepção patética e romântica do mundo,
380
ATHAYDE, Tristão de. O Suprarealismo II, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 jun. 1925, p. 4.
Cf. La Révolution Surréaliste, Paris, Année 1, No 1, 1 dez. 1924, p. 2.
382
Cf. Manifestes, Les nouvelles littéraires, artistiques et scientifiques, Paris, 28 mar. 1925, p. 2.
383
ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida I, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
384
COMPAGNON, Antoine. Os Antimodernos, p. 244.
381
468
(...) do divino, da inquietude, da intuição, da violência, de sei lá mais o quê! (...)
Acrescentarei (...) é a vitória do modernismo. Com efeito, não basta declarar-se
violentamente antimodernista para não o ser, se o modernismo está instalado no
centro de tudo. É bom expulsar Descartes: mas colocar em seu lugar Bergson sob o
nome de Pascal é um outro perigo385.
Sempre reiterando o papel específico de sua geração, que como nenhuma outra teria a
“necessidade tamanha de traçar o seu roteiro”, Tristão de Athayde temia tanto o conformismo
da “geração anterior”, quanto a importação do “modernismo destruidor”. Este último teria se
tornado a orientação de Oswald de Andrade que, após ter repudiado “o ambíguo modernismo
do Sr Graça Aranha”, lançara as “suas hiperbólicas Memórias Sentimentais de João Miramar
(embora por vezes engraçadas, pois talento não falta ao autor desse excelente romance, Os
Condenados, seu primeiro livro, que parece ter desdenhado, pelos malabarismos da moda)”386.
O “manifesto da poesia pau-brasil” não parece ter obtido à época de seu lançamento grande
repercussão387. O próprio Mário de Andrade escrevera a Tristão de Athayde lembrando que “no
dia do famoso da leitura do manifesto aqui em casa, até Paulo Prado estava, tanto que escanchei
com o manifesto que até o Oswald saiu meio estomagado, deixando a reunião no meio”388. O
crítico destacava a maneira como tal produção viria prosperando, louvava-se do fato de ter
ganhado as “elites” e não poderia mais passar despercebida. Ele nota que nas próprias páginas
do O Jornal Oswald de Andrade havia divulgado a poesia “pau-brasil”.
Trata-se de um artigo intitulado “pau-brasil” no qual Oswald de Andrade, além de
expor as suas ideias, nomeia uma série de figuras a ele associada. Apresentado como um dos
“corifeus do modernismo” em São Paulo e aquele que estaria ali para mostrar “as últimas
produções literárias da mocidade futurista da Pauliceia”, o autor abre sua reflexão:
Fatigados de tudo. Fatigados de cultura. Fatigados de sabença. Reagindo. Não
nascemos para saber. Nascemos para acreditar. Sem pesquisa a não ser a do nosso
instinto que é excelente, quase maravilhoso. É assim que entendo e realizo o
momento brasileiro. Não será o bom caminho? Meu espírito banha-se numa piscina,
inunda-se de repouso e de alegria, quando por exemplo, chego com um dos meus
personagens prediletos – Serafim Ponte Grande, o burocrata transfigurado – à
conclusão urbanista de que “o Largo da Sé é o ponto de junção das ruas Direita e 15
de Novembro”389.
Contrariamente à pesquisa e à reflexão, o instinto liberaria a “alma nacional” que estaria aí
apenas esperando para ser afirmada através do artista. A estupidez, então, é o que se deveria
cultivar: “Porque o nosso cérebro precisa é de um banho de estupidez, de calinada bem nacional,
brotada dos discursos das câmaras, dos comentários da imprensa diária, das folhinhas, enfim de
385
COMPAGNON, Antoine. Os Antimodernos, p. 245.
ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida I, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
387
Neste sentido, destaca-se a nota literária de Menotti del Picchia intitulada “Manifesto anti-pau-brasil”, mas que
contava apenas com sua assinatura, ou melhor, de seu pseudônimo Helios. Cf. Helios. Cronica Social. Manifesto
anti-pau-brasil, Correio Paulistano, São Paulo, 13 abr. 1924, p. 4.
388
Carta de Mário de Andrade a Tristão de Athayde, 19/05/1928, acervo CAAL.
389
ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 jun. 1925, p. 1.
386
469
tudo quanto representa a nossa realidade mental”390. A estupidez é o que representaria a
“realidade mental” brasileira. “Pau-brasil” seria o oposto dessa “desarmonia” e “falsidade”:
“Chamei Pau Brasil à tendência mais vigorosamente esboçada nos últimos anos em aproveitar
os elementos desprezados da poesia nacional. Poesia de exportação, dizia eu há dois anos.
Oposta ao espírito e à forma de importação”. Um “desses elementos desprezados” seria
justamente a produção dos cronistas da época colonial. Daí a utilização de trechos da carta de
Pero Vaz de Caminha que, segundo o artista, um “crítico profundo” poderia ver aí “a fundação
da raça, a obra civilizadora, que sei eu, partida dessa primeira reunião social dada no Brasil.
Nesse pulo de galego contente na praia das descobertas eu vejo poesia. E poesia bem nossa”.
Ao invés de Florença e Grécia, nesses motivos residiria a expressão nacional e não apenas no
passado:
O estado de inocência que o espírito sorve nas notícias dos cronistas sobre ananases,
rios e riquezas e nos casos de negros fugidos e assombrações trazidas a nós pela
tradição oral e doméstica, não, é porém, privilégio do passado. A mesma inspiração
de poesia anda aí nos jornais de hoje e nos fatos de nossa vida pessoal.
A valorização do jornal como meio expressivo da “vida mental” brasileira traria a inspiração
poética em torno do “Reclame” e do “Lloyd Brasileiro”, por exemplo, e, para o poeta, era disso
que se tratava, afinal, sua poesia procuraria:
[...] somente fixar com simplicidade, sem comentário, sem erudição, sem
reminiscência, os fatos poéticos da nacionalidade, pareça ela tosca, primitiva,
humorística ou guindada. Isto é o que quer eu. Vida de Far-West e de preguiça
colonial – estética helênica e renascentista, eis o que querem os outros.
Oswald de Andrade elenca uma série de “outros futuristas” que revelaria uma “verdade bem
nossa, bem de exportação”, como Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Menotti del
Picchia. Além deles, Tarsila do Amaral é apresentada como aquela que “fundou a grande pintura
brasileira, pondo-nos ao lado da França e da Espanha de nossos dias. Ela está realizando a maior
obra de artista que o Brasil deu depois do Aleijadinho”. Paulo Prado e D. Olívia G. Penteado
são elogiados também. Sobre o primeiro, anuncia-se a publicação da obra Paulística e o fato de
que o poeta “se tivesse de invejar a forma de escrever de alguém, invejaria a de Paulo Prado”.
Já Penteado seria “o centro de nossa vida social e culta. Em sua casa fidalga, formou-se o melhor
selecionado da intelectualidade paulista”. Por fim, Oswald de Andrade considera que “são as
elites que se manifestam por nós. Está criada a moda. Ser brasileiro. Pau Brasil. Jean Cocteau
já nos ensinou que a toda moda exterior corresponde uma moda interior e profunda”.
Tristão de Athayde reproduz os mesmos poemas publicados no artigo de Oswald:
PRIMEIRO CHÁ391
Depois de dançarem
Diogo Dias
390
391
ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 jun. 1925, p. 1.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
470
Fez o salto real.
RECLAME
Fala a graciosa atriz
Margarida Pernagrossa.
Lindacor que admirável loção
Considere lindacor o complemento
Da toalete feminina da mulher
Pelo seu perfume agradável
E como tônico do cabelo garçonne
Se entendiam todos com seu Fagundes
Único depositário
Nos E U do Brasil392.
NOITE NO RIO
O Pão de Açúcar
É Nossa Senhora da Aparecida
Coroada de luzes
Uma mulata surge nas avenidas
Como uma rainha do palco
Talco
Fácil
Árvore sem emprego dormem de pé
Há um milhão de maxixes
Na preguiça
Que vem do fundo da colônia.
Do mar
Da beleza da dona Guanabara
Paixões de féerie
O Minas Gerais pisca para o Cruzeiro.
O crítico acrescenta que tais “patacoadas” não diferiam muito daquelas apresentadas na obra
Memórias sentimentais de João Miramar e cita o poema CASA DA PATAROXA:
A noite
O sapo o cachorro o galo e o grilo
Triste tris-tris-tris-te
Uberaba aba-aba
Ataque e o relógio tac-tac
Saias gordas e cigarros.
Como já deixara transparecer, seu juízo considera que esse tipo de poesia que “outrora seria
uma pura palhaçada é apenas a resultante que os espíritos lógicos tiraram de todo um longo
passado de estética libertária, que começa a ser pregada aqui como novidade e contra a qual
devemos reagir”393. Mais uma vez, essa expressão é vista, não como algo que devia ser
ridicularizado, embora pudesse ser vista como tão ridícula quanto os “moedores de sonetos que
continuam a despejar o seu laissé pour compte sobre as estantes dos livreiros e as colunas de
jornais e revistas”. De um modo geral, a perspectiva de Oswald de Andrade é assim apresentada:
O que pretendem, portanto, o Sr Oswald de Andrade e o grupo de seus admiradores
é abolir todo o esforço poético no sentido da lógica, da beleza, da construção, e nadar
no instintivo, na bobagem, na mediocridade. Exaltar a vulgaridade. Chegar ao puro
balbuciamento infantil. Reproduzir a mentalidade do imbecil, do homem do povo ou
392
393
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
471
do almofadinha dos cafés. Curvar o joelho diante de todos os prosaísmos. Voltar ao
bárbaro ou deleitar-se no suburbano. Em suma: liberdade absoluta, o puro
subjetivismo arbitrário394.
A primeira questão diretamente extraída das propostas de Oswald de Andrade gira em
torno do tema “exportação e importação poética”. Segundo o crítico, nessa “liberdade absoluta”
o intelectual paulista pretenderia basear a sua “poesia de exportação”, ao passo que todos outros
poetas brasileiros fariam “poesia de importação”. Ressaltando a intenção de não pretender ser
o “campeão dos poetas brasileiros”, Tristão de Athayde afirma que a poesia que Oswald
defenderia era “tão importada como as demais”. E, pior, não seria das melhores importações,
mas “mercadoria deteriorada - automóveis em segunda mão, máquinas já usadas e enferrujadas,
etc.”, de forma que toda “a sua literatura mandioca, aborígine, precabrálica, precolombiana,
premongólica, toda ela é bebidinha, direta e indiretamente, em duas fontes europeias muito
recentes e muito conhecidas: o dadaísmo francês e o expressionismo alemão”. O sentimento de
esgotamento que Oswald de Andrade explicitara em seu artigo sobre pau-brasil viria da
vanguarda inaugurada por Tristan Tzara, assim delineada pelo crítico:
Funda-se na vaidade fundamental de todos os conhecimentos. Percorremos todos os
caminhos. Esgotamos todas as sensações. Criamos tudo o que se poderia ter criado.
Lemos todas as filosofias. Esvaziamos o céu de todos os deuses. Só nos resta
demolir, negar, balbuciar. Medida na escala da Eternidade toda ação é vã395.
Já acerca da rasura do passado segundo um “banho de estupidez”, o crítico reconhece suas
raízes nos textos André Breton sobre o dadaísmo. Primeiramente, cita-se o “manifesto dada” de
Breton, intitulado originalmente como “Géographie Dada”, uma conferência que foi publicada
pela primeira vez na revista francesa Littérature em 1920, mas que saíra, em 1924, na
composição “Dois manifestos dada” no volume Les pas perdus (“Os passos perdidos”). O outro
“manifesto” é um texto chamado “Pour dada” publicado originalmente na Nouvelle Revue
Française, também em 1920. Assim, são citadas as seguintes passagens:
O cubismo foi uma escola de pintura, o futurismo um movimento político. Dada é
um estado de espírito... O livre pensamento em matéria religiosa, não se assemelha
a uma igreja. “Dada” é o livre pensamento artístico. Enquanto se fizer recitar as
orações nas escolas sob a forma de explicações de textos e de passeios nos museus,
nós clamaremos contra o despotismo e procuraremos avacalhar a cerimônia. Dada
não se dedica a nada, nem ao amor nem ao trabalho. É inadmissível que um homem
deixe um rastro de sua passagem pela terra. Dada reconhece apenas o instinto,
condena à priori a explicação. Segundo ele, nós não devemos manter nenhum
controle sobre nós mesmos396.
Dessa forma, a recusa de Oswald de Andrade à pesquisa e sua crença nos instintos poderiam ter
aí suas origens ultramarinas. O crítico prossegue com as referências “dada” de Breton:
Nós não conhecemos meio de tratar seriamente um assunto qualquer, por uma razão
ainda maior: nós... Eu falo e nada tenho a dizer. Eu não vejo em mim a menor
394
ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
396
BRETON Apud. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
395
472
ambição... no sentido mais geral da palavra, nós passamos por poetas, porque antes
de tudo nós atacamos a linguagem que é pura convenção397.
E, por fim, o elogio à obscuridade e do nonsense: “A obscuridade de nossas palavras é uma
constante. A charada do sentido deve permanecer nas mãos das crianças. Ler um livro para
saber denota certa simplicidade”398. Passa-se, então, à citação de trechos de poemas dadaístas
de Francis Picabia, de 1920, com “Unique Eunuque” (“Único Eunuco”):
Au lycée des pensée infinies
Du monde le plus beau
Archictetures hyménoptères
J’écrirais des livres d’une tendresse folle
Si tu étais encore
Dans ce roman composé
En haute des marchés399
De Louis Aragon, são reproduzidos trechos do poema “Programme” também de 1920:
Tirerens-nous au sort le nom de la victime
L’aggression noeud coulant
Celui qui parlait trépasse
Le meurtrier se relève et dit
Suicide
Fin du monde
Enroulement des drapeaux
Coquillages400
Do mesmo ano, são as passagens de “Artichauts” (“Alcachofras”), espécie de manifesto
dadaísta de Georges Ribemont-Dessaignes:
O que é o belo?
O que é o feio?
O que é forte, grande, fraco?
O que é Carpentier, Renan, Foch?
O que sou eu?*
Desconheço. Desconheço, desconheço, desconheço401
Assim, o crítico ironiza a importação que estaria sendo feita por Oswald de Andrade:
É uma pura delícia literária. Ao lado disso, que triste papel fazem os nossos
subdadaístas acreditando ainda na existência do Pão de Açúcar, do encouraçado
Minas Gerais, do cruzeiro do Sul, da febre amarela? Não há dúvida que o dadaísmo
já vinha deteriorado quando o importaram, ainda mais apodreceu aqui. Mediocrizouse. Sempre o nosso medo dos extremos402.
397
BRETON Apud. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
BRETON Apud. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
399
Citado em francês. Não encontramos uma tradução para o português. Literalmente: No liceu dos pensamentos
infinitos / Do mundo o mais belo / Arquiteturas himenópteras / Se você está ainda / Neste romance / Neste romance
composto / Acima dos mercados. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de
Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
400
Citado em francês. Literalmente: Tiremos na sorte o nome da vítima / A agressão nó de forca / Aquele que
falava falece / Suicídio / Fim do Mundo. / Enrolamento de bandeiras / Moluscos. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Vida
Literária. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
401
Publicado originalmente em: Dadaphone, Paris, no 7, mar. 1920, p. 2. A frase com * não está na transcrição que
o crítico fez no jornal nem na reedição do artigo em volume. Citado em francês. ATHAYDE, Tristão de. Vida
Literária. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
402
ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
398
473
Além das supostas origens dadaístas das concepções do autor de “pau-brasil”, Tristão
de Athayde se refere às teorizações expressionistas como outras origens da nova vanguarda
brasileira. Muitas vezes citado de maneira vaga, equívoca e imprecisa ao longo de seus textos,
o expressionismo, desta feita, ganha maior consistência bibliográfica e argumentativa. Assim,
o crítico começa por lembrar a contribuição do escritor, editor, crítico, tradutor e ensaísta
alemão Paul Wiegler403 que escreveu a parte relativa à “literatura contemporânea” na obra Die
Weltliteratur im zwanzigsten Jahrhundert: vom deutschen Standpunkt aus betrachtet (“A
literatura mundial no século XX: do ponto de vista alemão”) escrita por Richard Meyer, lançada
em 1913 e reeditada em 1922. As considerações de Wiegler são úteis para que o crítico consiga
precisar que “já em 1910 o movimento expressionista se revela na pintura, ou literariamente em
poetas como George Heym”404.
Os textos teóricos utilizados para caracterizar o expressionismo são os ensaios dos
intelectuais alemães Kasimir Edschmid e Paul Fechter. Acerca do primeiro, o brasileiro lembra
alguns escritos produzidos durante a Grande Guerra, mas que teriam alcançado maior
notoriedade logo após o fim do conflito, quando:
[...] as bases da nova estética que tanto êxito ia alcançar depois da derrota de
novembro, do “zusammenbruch” [colapso], quando a Alemanha toda ansiava
pelo aniquilamento, num delírio de negação, num histerismo niilista, numa
renúncia a todo esforço, a toda esperança, a toda luz, num adormecimento
cataléptico.
Assim como a filosofia de Oswald Spengler, exposta na obra A decadência do Ocidente (19181922), o expressionismo é visto como um sintoma de um país que aspiraria a própria queda,
ambos seriam “justificações de um povo que aspirava aos vermes”. O crítico cita passagens da
conferência Kasimir Edschmid, Über den dichterischen Expressionismus (“Do expressionismo
poético”405), proferida em 1917 e publicada em livro em 1918, onde haveria o clamor “contra
a Burguesia, contra o Naturalismo, contra a ‘arte pela arte’, contra o impressionismo” e a
afirmação de que “a unidade da nova arte e literatura expressionista: a consciência imensa e
cósmica”. Assim, nas palavras do alemão, os poetas expressionistas:
[...] não estavam mais subordinados às ideias, às necessidades, às tragédias pessoais
de um pensamento burguês e capitalista. Neles a sensação se desenvolvia sem
medida. Eles não viam. Contemplavam. Não fotografavam. Possuíam faces. Em vez
de foguetes criavam a excitação duradoura406.
403
Paul Wiegler editou várias revistas e jornais. Wiegler teria sido o responsável pelas primeiras publicações dos
pequenos textos em prosa intitulados Considerações que, mais tarde, tornaram-se o primeiro livro de Franz Kafka.
Entre 1908-1913, Wiegler esteve na direção do jornal Bohemia, um dos mais antigos diários publicados em língua
alemã na cidade de Praga, onde ele seria um dos responsáveis por levar o gosto pelas vanguardas vindas de Berlim.
Publicou vários poetas em Praga, como Max Brod, Otto Pick e Franz Werfel. Cf. GRAY, Richard T; GROSS, Ruth
V; GOEBEL, Rolf; KOELB, Clayton. A Franz Kafka encyclopedia. Westport: Greenwood Press, 2005, p. 43.
404
ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
405
Uma tradução parcial do texto pode ser encontrada em: EDSCHMID, Kasimir. Expressionismo na poesia. In:
TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 111-112.
406
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
474
Já o teórico Paul Fechter, no livro Der Expressionismus (1920), afirmava que “a esse
intelectualismo conscientemente de uma era, orientada cientificamente nas coisas principais, o
Expressionismo conscientemente pôs fim”. O apelo ao inconsciente e aos instintos faria
também a voga expressionista, nas palavras de Fechter citadas pelo crítico: “Não se trata mais
de conhecer, porém de comungar, ascender às regiões da alma onde dorme aquilo que
corresponde à força produtora, que dá vida à obra; onde dorme e portanto espera ser despertado
do Ser puramente inconsciente, até tornar-se um fator vivo no destino da alma”407.
O expressionismo é visto como uma estética que validaria a “independência absoluta
do artista”, que se afirmaria segundo uma série de negações, da “cultura”, da “lógica”, do
“esforço de lucidez”, da “beleza”, do “gosto”, do “ideal de perfeição” ou de “transposição”. É
situado, entretanto, no tempo passado: “Era uma pura expressão do inconsciente. A alegria da
passividade. E para começar, a negação da natureza”408. Sobre este último aspecto, o crítico
brasileiro reproduz as considerações do professor de história da arte da universidade de Breslau,
Franz Landsberger, autor da obra Impressionismus und Expressionismus (1919), que tivera seis
edições em três anos: “A reprodução da natureza subordina o artista ao mundo exterior, em vez
de o deixar seguir o próprio impulso interior... Assim se transforma ele num escravo onde
deveria dominar em liberdade”. Vendo nisso uma abertura para o “puro subjetivismo”, Tristão
de Athayde depreende a relação que haveria entre expressionismo e o romantismo e utiliza
passagens da obra Die methode des expressionismus (1921), de Georg Marzynski:
A arte expressionista, já não se dedica à sublimação da face objetiva da realidade
total porém à sublimação do sujeito... Isto é, compreender o mundo como reflexo da
própria personalidade e levar a um egocentrismo de espécie prodigiosa. [...] O
expressionismo, em cada uma de suas orientações, demonstra um afastamento da
realidade e tem, por isso, certa relação com o romantismo. E como o romantismo é
uma moléstia humana generalizada com o aparecimento do Expressionismo voltam
a reviver as correntes românticas repelidas409.
As considerações críticas de Tristão de Athayde sobre o expressionismo são bastante parciais,
apesar de rigorosamente assentadas em estudos críticos relevantes à época, alguns deles ainda
hoje importantes. Talvez se tivesse atentado à angústia marcante do expressionismo, ao mal
estar existencial que lhe dá origem, inclusive com uma reiterada inconformidade com os
ambientes urbanos e industriais410, o crítico pudesse ter se reconhecido um pouco mais na
vanguarda alemã. Porém, não foi isso que se deu. E, àquela altura, o que importava era
demonstrar como as ideias de “pau-brasil” não seriam tão “pau-brasil” assim, de modo que, em
407
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
409
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
410
“As obras expressionistas nasceram de um sentimento de mal-estar; os problemas econômicos e sociais, mais
rápido na Alemanha do que alhures, entranharam uma crise existencial entre os mais sensíveis e os mais refletidos.
Suas acusações as mais imediatas são contra a cidade”. Cf. FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle, p. 63.
408
475
toda essa argumentação recheada de citações e referências em alemão, reiterava-se que o “antiintelectualismo”, o “apelo à intuição”, o “desprezo à pesquisa” defendidos no artigo de Oswald
de Andrade poderiam ter raízes no estrangeiro.
Além disso, tratava-se de se ressaltar que ambos os movimentos, dadaísmo e
expressionismo, naquele ano de 1925, seriam coisas passadas. Provavelmente percebendo o
movimento que, a partir de 1923 se consolidaria sob nome de “Nova Objetividade” na
Alemanha, Paul Wiegler afirmava que “o fim do expressionismo é afirmado por vários críticos
jovens que se tinham deixado arrastado por ele”411. Já o crítico de arte e ativista político
Wilhelm Hausenstein, que era entusiasta das manifestações expressionistas desde suas origens
de antes da Guerra412, passa, em 1920, com o volume Die Kunst in diesem Augenblick (“A arte
no momento atual”), a considerar que “hoje descansamos e indagamos o que nos trouxe ele (o
expressionismo). Hoje – pois hoje está terminado”413. O próprio André Breton, no mesmo
volume em que saíram os “dois manifestos dada”, revelava que havia mudado suas posições,
falando agora que “dada” não estava mais em causa, que seu funeral foi feito em 1921 e que
“apesar de ter tido, como se diz, sua hora de celebridade, deixou pouca saudade [regret]; com
o tempo, sua onipotência e sua tirania tornaram-no insuportável”414. Assim, o primeiro artigo
de Tristão de Athayde sobre a poesia pau-brasil terminava por denunciar a sua importação
ultrapassada: “[...] é essa ‘moléstia’ alemã e esse ‘cadáver’ francês que o Sr Oswald Andrade
pretende impingir-nos como novidade, como coisa sua, como panaceia saneadora da poesia
nacional, nascida, crescida aqui, poesia-mandioca. A mosca do coche. Ou antes o: - ‘nós
laranjas...’”415.
No segundo artigo acerca da poesia pau-brasil, o crítico reforça a ideia de se tratar no
caso de um impulso para a morte de seres que se consideravam, mais que satisfeitos, fatigados
de tudo. Lembra então um crime em que dois americanos teriam assassinado um homem apenas
para experimentar a sensação, homens com “nervos esgotados de civilizados, intoxicados de
drogas, desiludidos do dinheiro, tendo passado por todos os gozos, tendo exaurido realmente
tudo o que o mundo lhes forneceria de novo, só lhes restava isso. O sadismo de matar. Matar
voluptuosamente”416. No caso de Oswald, o que lhe mobilizaria não seria a “miséria literária”,
mas, ao contrário, por ser homem “culto, inteligente, viajado, sabendo ver e sabendo como os
outros veem, não sofre literariamente de privações mas de fartura”. A alegação de “esgotamento
411
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
Cf. CROCKETT, Dennis. German post-expressionism. The art of the great disorder, 1918-1924. University
Park: The Pennsylvania State University, 1999, p. 12.
413
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
414
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
415
ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1925, p. 4.
416
ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida II, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 jul. 1925, p. 4.
412
476
e cansaço” 417, se poderia ter algum fundamento na “geração europeia”, por aqui, não faria muito
sentido, assim, o impulso do paulista seria como o dos assassinos norte-americanos: “deu-se ao
prazer de matar pelo gosto de ver como morriam, entre as suas mãos, essas recém-nascidas, que
são a poesia e a prosa brasileira. E conclui que isso era ‘uma pura delícia’”.
A partir de uma das frases mais divulgadas de Charles Maurras, “a gente demole
apenas aquilo que a gente substitui”, o crítico começa a refletir sobre a ideia de imitação em
sentido largo, convencionando que “não temos que proclamar o nosso repúdio integral à
imitação. Não façamos como o Sr Oswald de Andrade e seus companheiros, que têm horror à
imitação... e imitam às escondidas”. Segundo seu raciocínio, ainda não estaria pronto o Brasil
para produzir literatura “inteiramente própria e ao mesmo tempo universal”, consequentemente,
por muito tempo, só restaria o trabalho reiterado e contínuo, “absorvendo a matéria nacional,
plasmando-a – mas sem desfalecimento, sem renúncia”.
Trata-se de se teorizar sobre a maneira como a cultura intelectual brasileira deveria
relacionar-se com o mundo. Assim, distingue-se imitação de reprodução, a fim de se alcançar
uma “imitação criadora” que teria como valor maior a “revelação de nossa humanidade,
dilatando o campo de nossa sensibilidade e a penetração da nossa inteligência”. Aí estaria uma
das bases que garantiriam a “nossa libertação” e a “imitação criadora” poderia ser vista, na
verdade, como “inspiração”. A imitação não deveria se restringir às formas utilizadas alhures,
mas contemplar o espírito que impulsionara tais criações. Nisto residiria a superioridade do
romantismo brasileiro sobre o parnasianismo. Enquanto o primeiro captara o espírito geral que
envolvia os processos românticos, o segundo apenas teria copiado uma forma de se fazer poesia:
[...] é a imitação profunda, e apenas inicial, que se diversificará mais tarde em formas
quase contraditórias. Imitar, para inspirar-se, portanto, não é submeter-se cegamente
ao exemplo estranho. Imitar o espírito é um reconhecimento dos limites, a maior
prova de independência de um espírito. É a sua humanização.
Com relação à Europa, seria preciso “saber onde e em que vamos inspirar-nos, já que
sugerimos como devemos fazê-lo”. Na divisão mundial do trabalho intelectual, o crítico não
titubeia em afirmar a centralidade europeia:
Tudo o que a América pode fazer por si está, pelo menos em germe, nessa velha
Europa, caluniada e decadente, ameaçada de todas as ruínas, e onde há dois mil anos
crepita a maior chama de pensamento e de ação de que há memória entre os homens.
Estamos longe, bastante, para poder sentir claramente as imensas fraquezas e os
males do espírito europeu. E se for possível para nos precavermos contra os germes
envenenados que ele também irradia. Mas é lá, ainda hoje, o foco da inteligência
universal. O Oriente sente, a América trabalha, e começa a pensar, mas a Europa
ainda é realmente quem pensa. E pensa em todos os sentidos, em todas as formas. A
Europa é mais moça que a América. E especialmente que a nossa América Latina. É
uma lenda essa da velhice do Velho Mundo. Tudo se tenta por lá, tudo se destrói,
tudo se reconstrói, tudo se pensa, tudo se imagina.
417
ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida II, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 jul. 1925, p. 4.
477
Ao menos em germe, literariamente, a Europa guardaria todas as manifestações. E ela própria
estaria a imitar, não a América do Sul, mas os americanos do norte. Assim, seria preciso imitar
as forças europeias que estariam lutando contra o abismo e não as que saltavam nele. Não
aquelas que levariam “as sereias, céticas e sarcásticas e vazias, da destruição”, mas as que
poderiam conceder “uma receita de inteligência”418. Ao contrário do que poderia parecer, tais
manifestações vanguardistas poderiam ser apenas provas de colonialismo:
Se deixarmos que os de nossa geração se alistem entre os suicidas, ou se contaminem
do ceticismo radical desses homens que andam de Packard e balbuciam poemas
gagos e desdentados, leem Joyce no original (é exato que sem entender uma página
e duas, na melhor das hipóteses) e bancam de infantis e primitivos, vestem camisas
de seda do Charvet e divinizam a poesia em mulambos – se deixarmos que a nossa
geração se infeccione com esse primitivismo artificial, sarcástico, cabotino, teremos
dado o mais triste exemplo do nosso colonialismo.
A reação proposta pelo crítico é a ida ao clássico. O chamado à ordem que tanto se
propalava. Reafirma-se o romantismo e o classicismo como marcos para o entendimento das
produções intelectuais, havendo entre os dois termos uma dinâmica criativa de oposição:
O romantismo é a descida ao inconsciente: o clássico é a reascensão ao consciente.
Ser clássico é clarificar o espírito, é submeter a criação à crítica, é absorver o
romantismo ambiente, o romantismo profundo do nosso subconsciente, o
romantismo das forças de dissolução, de anarquia, de hesitação, de paixão e de
exuberância, que andam esparsas no mundo exterior, e no nosso mundo íntimo, para
coordená-las, depurá-las e chegar à essência da expressão
As concepções que pretenderiam fazer do inconsciente e do instinto as bases para a criação
artística não poderiam perdurar:
Não há fundo no subconsciente. Construir sobre ele é cooperar na destruição. Elevar
uma obra sobre a desordem fundamental das paixões mais ou menos conscientes é
resignar-se servilmente ao transitório, ao desinteligente. Ambos erram. O romântico
lógico, por ação destruidora. O romântico tímido, por omissão.
Exemplos de “clássicos modernos” seriam as posições de autores como T S Eliot que
em seu ensaio Tradição e talento individual (1919) defenderia que a “poesia não é uma
liberação da emoção, mas uma fuga da emoção; não é a expressão da personalidade, mas uma
fuga da personalidade. Naturalmente, porém, apenas aqueles que têm personalidade e emoções
sabem o que significa querer escapar dessas coisas”419. Outro nome lembrado é o do escritor
francês Max Jacob que seria um “espírito onde as zwei Seele [duas almas], de Goethe, têm
lutado e crepitado num braseiro de ideias destruidoras e criadoras, bem de nossa época”. Tristão
cita, então, a entrevista que Jacob concedera a Frédéric Lefevre em abril de 1924420:
Uma época clássica é uma época unitária, tendo um único gosto e inimiga das
curiosidades, caracterizada por um tipo de desinteresse pelo “eu”. Os artistas das
grandes épocas clássicas estão a serviço da humanidade e da beleza, ou parecem
418
ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida II, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 jul. 1925, p. 4.
Citado em inglês no original. Tradução de Ivan Junqueira. Cf. ELIOT, T S. Tradição e talento individual.
Ensaios. São Paulo: Art Editora, 1989, p. 47.
420
Cf. LEFEVRE, Frédéric. Une heure avec M. Max Jacob. Poète, romancier et humoriste, Les nouvelles
littéraires, artistiques et scientifiques, Paris, 12 abr., pp. 1-2, 1924.
419
478
estar. Só se pode ser eterno, quer dizer, clássico, servindo às grandes leis da vida e
servindo-se delas. Toda afetação é um desvio da beleza em favor do indivíduo. Os
corcundas e os coxos têm também uma individualidade. A humanidade é uma. Ela é
imensamente uma, mas é “uma”421.
O “clássico”, na apreciação do crítico, é a “transcendência do eu”, a passagem do “social ao
humano”. A situação brasileira reclamaria este tipo de atuação, uma vez que o caos reinaria:
Tudo é transitório. Aceitamos as correntes as mais contrárias. A riqueza, nas mãos
de estrangeiros ou no fundo da terra. A unidade nacional abalada. A sorte do
indivíduo abandonada. O poder, arbitrário, periclitante ou acometido de armas nas
mãos. A arte, a filosofia, a literatura, imitando o passado ou comprazendo-se na
diluição, no sarcasmo cínico, na morte. A terra ignorada. O futuro incerto. Tudo
transitório. Tudo por fazer. Tudo vago, indeciso, amorfo422.
O repúdio ao classicismo, ao academismo, não poderia implicar na recusa do espírito clássico
de construção e afirmação “lúcida” e, principalmente, “consciente”.
A resposta de Oswald de Andrade foi feita na forma de uma carta à redação do O Jornal
iniciando um debate que durará, pelo menos, três anos na imprensa brasileira. Com uma
epígrafe de Jean Cocteau, “nada se assemelha mais a uma casa em ruínas do que uma casa em
construção...”423, o autor paulista escreveu um longo artigo rebatendo as ideias do seu “amável
crítico”. A resposta chegava com atraso, pois fora redigida em Paris:
Foi numa noite de julho findo, em Paris, que Paulo Prado, jantando na peniche de
Poiret, da Exposição de Artes Decorativas, tirou de uma carteira um retalho de jornal
e me deu. Era a sua primeira ofensiva contra a Poesia Pau Brasil. Juro-lhe que fiquei
alarmado com a minha sabedoria, pois pela primeira vez tive a vantagem de ler os
manifestos epiléticos de André Breton e da cervejaria expressionista que, pelo que
vejo, também são meus. Minha surpresa cresceu diante da sábia manipulação que v.
fez para convencer (principalmente a mim, que ignorava – não, Dadá e o
Expressionismo – mas os detalhes das suas campanhas eleitorais) de que houvesse
uma coincidência criminosa entre esses ilustres perturbadores da ordem mental
europeia e a minha tentativa de brasilidade – tentativa que, sem dúvida, atinge na
calva a furiosa erudição que vinga entre o Equador e o Trópico de Capricórnio424.
As “campanhas eleitorais” mencionadas seriam uma explicitação de como vários nomes
começam a manter no horizonte um debate sobre o lugar de “chefia” ou “liderança” dos
movimentos culturais que ninguém assume, ao mesmo tempo em que todos denunciam.
Oswald de Andrade ironiza a pecha de “copiador” afirmando que o crítico deveria ter
se inspirado no que aparecia por aqui e não em lentes estrangeiras para ver o nacional:
É incontestável. Eu marotamente arranjo a minha originalidade nos “últimos”
manifestos da vanguarda europeia. E admira que chegando ao Brasil [...] não tivesse
a presença de espírito de aproveitar a verdadeira novidade do momento – a que v
chamou de suprarrealismo – criando, por exemplo, uma variante do sucesso e essa
nacionalíssima: O arrealialismo, em vez de copiar de linguinha de fora, num
estafamento de simulações criadoras os cacos vencidos de Dadá e do
Expressionismo, a fim de fazer propaganda da já invencível Poesia Pau Brasil. Para
vir v. marechal Fontoura das letras pátrias, meter-me [...] na ilha dos plagiários.
421
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida II, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 jul. 1925, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Literatura Suicida II, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 jul. 1925, p. 4.
423
Citado em francês. Cf. ANDRADE, O de. A poesia Pau Brasil, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 set. 1925, p. 4.
424
ANDRADE, Oswald de. A poesia Pau Brasil, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 set. 1925, p 4.
422
479
Este apontamento contém a segunda invectiva do intelectual paulista contra o crítico carioca:
não só a cópia do estrangeiro, como o atraso daquilo que se pregava como solução, ou seja, o
retorno ao clássico. Oswald afirma que o que Tristão de Athayde pregava ele já estaria a fazer:
Mas v. faz o mesmo, meu sempre prezado Tristão de Athayde, v. também coincide
e, imagine com quem, comigo mesmo! Leia este pedacinho do meu manifesto de há
dois anos: “Contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo
acabamento técnico” e veja a sua crítica: “repudiar o romantismo em todas as suas
formas”. O seguinte é do meu manifesto. “A coincidência da primeira construção
brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau Brasil”. Isto é seu: “Ir ao
clássico. Penetrarmo-nos do seu espírito de disciplina criadora”. O seguinte é do meu
manifesto: “Nossa época anuncia a volta ao sentido puro”. “As leis nasceram do
próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos: a síntese, o equilíbrio, a
invenção, etc.” Como se vê, nunca estive tão perto das suas ideias de disciplina e
construção do que quando, 24 meses antes da sua admirável sova, pensei pela
primeira vez na Poesia Pau Brasil425.
Além disso, era esse tipo de fórmula que estaria “estafada neste tempo de descrédito dos
Lenines”. O próprio classicismo de Jules Romains seria defendido, desde 1924, por nomes
como Cassiano Ricardo e Francisco Pati. Consequentemente, o autor de “pau-brasil” não deixa
de notar que “como não foi novidade para v. o expresso-dadaísmo das minhas ideias – o que
aliás é falso – é velha para mim a sua ida ao clássico, esgotada até a medula pela revista ‘Le
mouton blanc’426 [‘O carneiro branco’]”427.
Assim, o poeta afirma ao crítico que a “classicomania” já seria coisa do passado:
Houve mesmo uma classicomania moderna na Europa. Escute. Encontrei uma
manhã Picasso, na Rua La Boetie. Isto se deu há dois ou três anos. Picasso estava
irrequieto, andaluz. E interpelou-me: _ Que negócio é esse de clássico? Eu virei
clássico. Todo mundo é clássico. É Cocteau que anda nos etiquetando. Vou fazer um
escândalo. Vou virar cubista... Contei a Cocteau o que Picasso me dissera. Cocteau
correu ao dicionário, depois ao telefone: _ É você, Picasso? Olhe, descobri que você
é clássico..._ Como? Nunca! _ Você sabe o que é clássico? Veja no Petit-Larousse:
“O que é ensinado nas escolas”. A sua pintura está chegando aos liceus. Clássica428.
Oswald de Andrade reafirma não pretender ser líder, “bússola”, e não deveria ser confundido
com Ronald de Carvalho ou Jackson de Figueiredo, pois ele estaria sendo apoiado por Tarsila
do Amaral, Blaise Cendrars adjetivado ironicamente como “um amoroso do Brasil”, Paulo
Prado e Mário de Andrade. O que lhes teria interessado seria “a indicação agressiva e cômoda
criada para tudo quanto seja nacional, Pau Brasil. O que deve ser apurado como tendência única,
disciplinadora e construtiva, se quisermos ter uma literatura e uma arte e mesmo uma política
e uma educação”. As vanguardas europeias apenas coincidiriam como esforço pau-brasil:
[...] os primeiros cronistas, os santeiros de Minas e da Bahia, os políticos do Império,
o romantismo de sobrecasaca da República e em geral todos os violeiros. Pau Brasil
425
ANDRADE, Oswald de. A poesia Pau Brasil, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 set. 1925, p 4.
Revista francesa que apareceu em 1922, dirigida por Pierre Favre e inspirada em Jules Romains. O periódico
se autoproclamava “órgão do classicismo moderno”.
427
ANDRADE, Oswald de. A poesia Pau Brasil, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 set. 1925, p 4.
428
Passagens entre “” citadas em francês no original. ANDRADE, Oswald de. A poesia Pau Brasil, O Jornal, Rio
de Janeiro, 18 set. 1925, p 4.
426
480
era o pintor Benedito Calixto antes de desaprender na Europa. Pau Brasil é o sr
Catulo quando se lembra do Ceará e o meu amigo Menotti quando canta o Brás429.
Num tópico intitulado “confidência”, Oswald conta o que estaria a fazer na Europa:
E prefiro declarar a v. que Nossa Senhora da Aparecida não sai de meu bolso e que
na Europa como no Brasil, uma salutar vocação para o trabalho equilibra os meus
dias. Faço esporte. Cortei relações com os artistas degenerados de minha terra. E v.
me encontrará comendo o bife trapista de Brancusi, no atelier da Impasse Ronsin nunca fazendo cauda nas literaturas de horizonte artificial. Não quis até hoje privar
com os dissolventes mentais que v. cita, nem com Tzara nem com Breton, nem com
Picabia – o único a quem fui ocasionalmente apresentado, mas que pouco me
interessou. Ao contrário, tive grande prazer em conhecer em vida Satie e Radiguet –
a ida ao clássico! Estimo imenso Cendrars, Leger, Romains, Larbaud, Supervielle –
a saúde de Paris.
E, nesse contexto de “saúde”, ele narra a conversa com Cocteau, neoconverso ao catolicismo:
Vendo-o abatido, interroguei-o sobre o seu estado de saúde. _ Que se passa em mim?
Dizem que é o desintoxicamento. Depois, nós, poetas, somos assim, cortados pelo
meio a toda hora, arrancados pelos cabelos, estraçalhados. Só há dois caminhos, é
ser assim ou então como quem? Como... monsieur Victor Hugo. _ É verdade que
você está católico?_ Estou. Há muito tempo que sentia que andava metido num
escafandro. Com ligações lá em cima (aí contou-me os detalhes da sua conversão
que deve a Maritain). Mas sofro muito. Quando me aproximo da mesa da comunhão,
as piores coisas me vêm à cabeça. Não se dá isso com você?_ Eu não pratico há
alguns anos. _ Por que? _ Uma crise de curiosidade. _ Mas você tem fé? _ Intangível.
Converti-me a 11 anos. Filosoficamente. Desde esse dia, possuo a chave do mundo.
Trago-a no bolso. _ É a chave do mundo. Fora disso não há explicação. _ Reverdy
é católico? _ Um santo. Comunga todos os dias. Isso lhe dá uma grande força. _ E
Max Jacob? _ Max Jacob? _ Max tem a extraordinária faculdade de voltar a si, de
não abandonar o altar...
Daí ele refutar completamente o epíteto de cético e de autor de uma “literatura suicida”. Ao
descrever as divisões do cenário intelectual francês, ele explicita a maneira como os extremos
contrários, o dadaísmo e a “Action Française”, se encontravam na necessidade de serem
renegados e que caberia ao autor brasileiro a afirmação do nacionalismo “pau-brasil’:
De um lado estão Dadá e os antiescolas anarquistas. Do outro, todos os operários de
construção atual, chamem-se eles Maurras ou Massis, Cendrars ou Satie. Apenas,
neste grupo, a divisão para a qual pende o seu espírito é a divisão anti-poeta,
burguesa e convencional, não coincide com Dadá na necessidade de se afogar o
monstro sabença num dilúvio sem arca. Nesse ponto, eu não me envergonho de
sofrer o mesmo nojo pelo homo sapiens do século passado que produziu o
cientificismo e entre nós resultou nas mentalidades guanabarinas. Os dadaístas
querem, porém, permanecer na treva gagá em que se refugiaram ou daí tatear para
um compartimento puramente freudiano. Eu proponho a linha nacionalista que vem
da santidade dos cronistas à burrice dos anúncios do Fróes.
O intelectual paulista sugere ao crítico que abandonasse o “espírito de polêmica” e fosse mais
sereno nas análises de “pau-brasil”. De forma alguma ele estaria a incorporar o instinto
assassino daqueles “imbecis americanos”, mas apenas trabalhando a sua prosa a fim de
melhorá-la. Por fim, Oswald retoma a crítica ao “primitivismo” a ele dirigida por Graça Aranha,
mas que, se o epíteto lhe “matava”, ele não deixaria de reconhecer que, após a “gagueira” que
429
ANDRADE, Oswald de. A poesia Pau Brasil, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 set. 1925, p 4.
481
lhe acometera quando tivera de abandonar a maneira de escrever de Os Condenados, conseguira
destravar a língua e fazia “redondilhas perfeitas”430, como esta sobre Recife:
Desenvoltura
Atração sinuosa
Da terra pernambucana
Tudo se enlaça
E absorve em ti
Retilínea
Cana de açúcar
Dobrada
Para deixar mais alta
Olinda
Plantada
Sobre uma onda linda
Do mar pernambucano
Se não há balbuciamento aí, há primitivismo. Isso há. Sem escola. Sem monotonia.
Primitivismo, porque se formos naturais, temos que ser de nossa época. Uma época
que começa. Que ignorava o vapor há cem anos, o automóvel há trinta, o avião há
vinte, o gás asfixiante há doze, o Brasil há três. Muito seu admirador.
O artigo de Tristão de Athayde e a resposta de Oswald de Andrade revelavam que o marco zero
e a adjetivação do termo “Brasil”, segundo os autores que buscavam renovar o tema nacional,
iria propiciar uma série de polêmicas, debates e disputas.
No início do romance lançado em 1925, As razões do Coração, o acadêmico Afrânio
Peixoto compunha uma cena em que o personagem Luís Macedo, junto a amigos no porto do
Rio de Janeiro, comentava sobre um grupo visto por ele:
_ Aqueles são “novos”... – velhos que fossem, era o mesmo... um grupo clamoroso
de “novos”... agressivos porque supõem que lhes tomam o direito ao sol... Os velhos
detêm editores e leitores... uma injustiça! São futuristas, cubistas, dadaístas,
integralistas, harmoniosistas, associacionistas... _ Não... acionistas... da posteridade!
_ ... expressionistas, arregionalistas, pão-d’açucaristas... Em falta de uma obra feita,
um rótulo de escola... _ Uma escola literária, já se disse, é um homem de talento,
cercado de um bando de sujeitos que não o têm... um delirante que reclama, e muitos
imbecis conclamam... _ Ali quem não é imbecil é o Ricardo Sena, que se agita, para
que não o esqueçam. Modesto, porque não confia no próprio talento o que espera do
cabotinismo. E, com uma multidão, investe agora contra os consagrados, a Academia
- grêmio que por sinal não existe, pois apenas existem quatro ou cinco homens de
talento, que lhe dão fama e se chamam acaso acadêmicos -, Academia, à qual
pertencerá, entretanto, como é de justiça... _ E com isto, cuidam de história, folclore,
tradições... Futuristas anacrônicos! _ Felizmente para ele, e para nós, tem talento o
chefe, e há de vencer. Será, pois, como passadista, lapidado pelos porviristas de
amanhã... _ O divertido, disse Lisboa, - a quem os fatos miúdos, ainda os brincos
literários dos grandes autores in herba excitavam a indução, - o divertido é que eles
se dão ares de fazer coisa nova e original. Desde que o mundo é mundo foi sempre
assim, velho contra novo, novo contra velho. Aristófanes versus Eurípedes, Focion
versus Demóstenes... antigos e modernos no século XVII, Perrault contra Boileau,
clássicos e românticos no XIX, Lemercier contra Hugo... e não acaba... parnasianos,
simbolistas, dadaístas... Ôte-toi de là que je m’y mette... Arrivismo impaciente. _ A
“mesmice” e a “outra coisa”, a moda velha e a novidade... Apenas, nas indústrias da
vida, se faz a oposição e a substituição, sem o insulto. _ É arma da inteligência...
melhor que a boycotage, o descrédito, a falência... armas do comércio! _ A evidência,
430
ANDRADE, Oswald de. A poesia Pau Brasil, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 set. 1925, p 4.
482
ou a fama, é mesa posta, que não querem abandonar os de apetite incansável, na qual
os desejam substituir os jovens, cansados já de apetite..._ Como se justifica aquele
belo costume canibal, de matança dos velhos!... _ A fome de glória e de... leitores
faz isto, estas exigências de indelicadezas e de insulto... _ Sim, mas agora o
movimento se faz com o nacionalismo..._ Bela novidade! O chefe reside em Paris,
de onde nos manda suas encíclicas, impregnadas de Barrès e Bergson: os mais
fogosos alunos têm nomes peregrinos... O rótulo ‘futurismo” é tomado a Marinetti;
a arte nova é Picasso, Debussy, Apollinaire, Cocteau, Cendrars... Nacionalistas,
contra o regionalismo: pelos “metropolitanos” e sky-scrapers. Indústria indígena
feita com máquinas e material estrangeiro... o Lloyd nacional. _ Assim deve ser...
somos novos todos. Começamos, infantes, por imitar alguém; não imitamos a mais
ninguém: será a maioridade, acabamos imitando a nós mesmos, na decadência.
Macedo não atendeu à lei geral, e concluiu: _ Puerilidade. Há meninos de todas as
idades... Pueri ludunt431.
Esta passagem pode ser considerada como uma boa expressão de como os modernistas eram
vistos pelos autores acadêmicos e, provavelmente, por parte do público leitor, uma vez que
Afrânio Peixoto era um dos autores, se não o autor, de romances mais vendidos à época.
Em resposta a Oswald de Andrade, Tristão de Athayde retoma muitos dos argumentos
já explicitados. Intitulado o artigo como “Queimada ou fogo de artifício”, o crítico punha em
foco o livro Páo Brasil, cuja primeira edição saiu publicada na França pela editora Sans Pareil.
A disposição não seria para a polêmica, mas para que a fórmula do “nacionalismo literário” não
obtivesse apenas o silêncio frente a “essas bandeirolas brasileiras escandalosas e berrantes”432.
A figura de Oswald é vista como um talento em vias de ser desperdiçado: “Não seria honesto
deixar um talento como o dele, um dos mais originais da nova geração, um dos que mais hão
de marcar nas nossas letras, afundar-se nesse cabotinismo da imbecilidade, julgando de boa ou
má-fé, que está representando o papel providencial de Moisés de Botocudos”.
A associação do nacionalismo brasileiro ao primitivismo é o que mais é criticado nas
apreciações de Tristão de Athayde. Lembrando uma comédia do novelista espanhol Perez
Galdós, Alma y Vida, comenta-se o contraste entre os camponeses “de papelão” dos árcades e
os lavradores reais, “pobres rústicos”, de modo que o jogo de espelhos entre a representação
artística e o real só poderia provocar o assombro. Assim, o crítico reflete sobre como se daria o
encontro de duas feições da poesia brasileira: aquela presente em volumes como o dos
Cantadores, com poesias coletadas por Leonardo Mota entre “nativos, sertanejos de fato, sem
artifícios de sertanismo parisiense”, com os versos de Oswald de Andrade:
E lá diz humildemente o velho Pedro Nonato:
Quando é tempo de juá,
Fulô de rompe-gibão,
A abeia, devido o vento,
Trabaia rente co chão,
Pinica na alma do pé
Que a dô vai pro coração.
431
432
PEIXOTO, Afrânio. As razões do coração. In: As razões do coração. Uma mulher como as outras, p. 29-30.
ATHAYDE, Tristão de. Queimada ou fogo de artifício, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 out. 1925, p. 4.
483
E o poeta, indulgente, lhe diz: “Não é isso não, patrício. Poesia brasileira é isto”:
CAPELA NOVA
Salão Mocidade
Hotel do Chico
Uma igreja velha e cor-de-rosa
Na decoração dos bananais
Dos coqueirais.
PAISAGEM
Na atmosfera violeta
A madrugada desbota
Uma pirâmide quebra o horizonte
Torres espirram do chão ainda escuro
Pontes trazem nos pulsos rios bramindo
Entre fogos
Tudo novo se desencapotando
E a cada nova joia de brasileirismo autêntico, o pobre Nonato irá recuando com os
pés barrentos sobre o tapete de Foliot (sacrifício, o silêncio nacionalista do sr Oswald
de Andrade, ao ver as manchas de lama no tapete), até fugir porta afora, a quebrar o
berimbau na primeira esquina, para estudar poesia no “Pau-Brasil, Sans Pareil”,
único depositário da marca autêntica de poesia nacionalista”433.
Ao se voltar para a afirmação da “autenticidade nacional”, o movimento modernista
teria de lidar com aquilo que já vinha consolidando-se como característica fundamental da
nacionalidade: a divisão sertão/litoral e os ímpetos regionalistas e cosmopolitas. Como definir
a “poesia nacional”? Ela é “popular” ou é a dos chás, salões e revistas internacionais? Esta
problemática irá acompanhar sempre estes autores preocupados em atingir a “universalidade”
a partir do “nacional”. Questiona-se o primitivismo como melhor forma de expressão brasileira:
O que é falso, o que é artificial e cabotino é reduzir o Brasil ao balbuciamento. É de
uma petulância incrível que um almofadinha qualquer do Triângulo, qualquer que
seja o excepcional talento que revele, e pior ainda por isso mesmo, venha bancar de
Colombo, para renegar tudo o que se tem feito até hoje pela absorção no Brasil, que
não é muito mas já é.
Vê-se que o crítico parece não concordar com a afirmação que ele mesmo fizera meses atrás
sobre um homem culto, mesmo brasileiro, poder tranquilamente ignorar a literatura nacional.
Na disputa sobre quem seria o “mais brasileiro”, Tristão de Athayde considera que Oswald de
Andrade, pelos versos de “pau-brasil”, não poderia estar num patamar superior a Castro Alves,
Fagundes Varela e José de Alencar. Se os índios de Alencar eram de opereta, a fantasia de caipira
de Oswald de Andrade, paradoxalmente, parecia fazê-lo distanciar-se de sua cultura:
Entre as almofadas do seu Cadillac, depois das trufas do Automóvel Club, entre uma
partida de mah-jog, e a última de Epstein, entre os apitos das fábricas e os uivos das
sereias, entre a aquisição de um Fernand Leger e uma discussão sobre a montagem
da nova usina elétrica de 100.000 H.P., entre uma carta do Comte Etienne de
Beaumont e o exame dos planos do novo sky-scraper do Triângulo, o Sr Oswald de
Andrade senta-se à sua secretária do Ruhlmann, acende o seu cachimbo de Old
Bond-Street, toma da sua Watermann, invoca os manes de Apollinaire e do citoyen
Vaché e põe-se a ensinar poesia brasileira aos caipiras do Cariri e do Garnier.
433
ATHAYDE, Tristão de. Queimada ou fogo de artifício, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 out. 1925, p. 4.
484
Não se trataria de “fechar os portos”, mas de se considerar a “realidade”:
Como já disse, acho que ainda não estamos em condições de ser universais, não nos
falta apenas primitivismo, não. Isso temos de sobra, por todos os lados, por todas as
formas, inclusive a mais pitoresca que é a da crença no primitivismo salvador e da
possível virginação de homens atolados, “infernados” de cultura como nós434.
O crítico termina o artigo dizendo que, apesar de tudo, as manifestações de Oswald de Andrade
deviam ser vistas com alegria, ainda que lhe caiba o papel ingrato de fazer o papel do clássico
François Audriaux que se opunha ao romântico Alphonse Lamartine:
E, com tudo, o que me fica é a alegria de ver enfim viver essa mare aux grenouilles435
da nossa literatura. Que o Sr Oswald de Andrade tire o pé do lodo, em que se vai
afundando, abraçado por fidelidade ao tronco do último Pau-Brasil (terá ele jamais
visto algum em casca e folha?), e um dia me agradecerá ter-lhe feito o grande favor
de bancar de Andrieux perante esse Lamartine...
As reflexões de Tristão de Athayde em sua apreciação da poesia “pau-brasil”
apresentam categorias gerais que irão nortear muitas de suas análises e classificações
posteriores em relação às produções ditas modernistas. Ao escrever sobre a revista organizada
por Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Morais Neto, Estética, cujo primeiro número era
aberto por um texto de Graça Aranha e um elogio ao acadêmico feito por Holanda436, o crítico
retoma os juízos sobre um açodamento no interior da cultura intelectual brasileira:
Mas a Estética aí está no seu terceiro número, alegre, próspera, inteligente e,
atrasados como sempre andamos, procurando ganhar tempo para galgar etapas. O
que outros levam cinquenta anos a fazer, nós fazemos em poucos meses. Questão de
impulso inicial. E ficamos depois convencidos de que fizemos o mesmo que os
outros. O que acontece é que grande parte de nossa literatura, e sobretudo de nossa
arte, dá a impressão de um desses oradores de praça pública, que vemos de longe,
gesticulando muito, fazendo toda a mímica da oratória, mas sem que uma só palavra
nos alcance437.
O texto de Sérgio Buarque de Holanda, “Perspectivas”, é lido como uma expressão do
“suprarealismo” que o autor, conforme nota Tristão de Athayde, “expõe, engenhosamente, mas
sem mencionar o nome”. Holanda se questiona acerca da defesa dos “direitos do sonho”: “Mas
nós então não temos também as mesmas razões de sentirmos o esgotamento do consciente? Não
somos homens como eles? Filhos do mesmo século XX? Participantes da mesma
civilização?”438 Segundo o crítico, tal questão deveria reconhecer a diferença existente entre
europeus e brasileiros, de modo que o suprarealismo seria uma reação de “desespero” para
“consolar um pouco a sua impotência de esgotados” e seguir tal tendência seria incorporar um
434
ATHAYDE, Tristão de. Queimada ou fogo de artifício, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 out. 1925, p. 4.
Literalmente “lagoa de sapos”, trata-se de uma expressão para significar um ambiente, normalmente político,
agitado e sem muitos recatos de ordem moral e ética.
436
Cf. ARANHA, Graça. Mocidade e estética, Estética – Revista Trimestral, Rio de Janeiro, Ano 1, vol 1, pp. 311, set. 1924; HOLANDA, Sérgio Buarque. Um homem essencial, Estética – Revista Trimestral, Rio de Janeiro,
Ano 1, vol 1, pp. 29-36, set. 1924.
437
ATHAYDE, Tristão de. Salvação pelo angélico, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 out, 1925, p. 4.
438
HOLANDA, Apud. ATHAYDE, Tristão de. Salvação pelo angélico, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 out, 1925, p.
4.
435
485
“desespero de contágio”. Se os escritores brasileiros começassem a “dizer palavras incoerentes
e sibilinas que o nosso subconsciente for ditando à nossa mão dócil, com a cumplicidade da
distração compulsória”, seria algo “ridículo e profundamente hipócrita e esnobe”439.
A recepção das vanguardas europeias no Brasil teria de seguir a ordem das
necessidades nacionais segundo seus problemas específicos que, de modo algum, seriam os
mesmos pelos quais passavam os artistas europeus. O crítico destaca que onde Holanda
procurava alguma “vida”, só haveria morte:
Esse supra-realismo, esse recurso ao sonho, ao subconsciente, ao ininteligível, ao
incoerente, que o Sr Buarque de Holanda sustenta ser a lei da vida, ao passo que a
“expressão” seria a lei da tendência à morte, esse supra-realismo foi inventado por
esse grupo de ex-dadaístas para mostrar o seu desespero, a sua tendência à morte.
Nenhum deles pensou em sustentar o absurdo de que aquelas bobagens incoerentes
do subconsciente fossem “vida”, a vida que o Sr Buarque de Holanda quer
paradoxalmente insuflar-lhes.
Cita-se a carta aberta assinada por Louis Aragon, Antonin Artaud, André Breton, Max Ernst,
Paul Éluard, dentre outros, em protesto às declarações do poeta e embaixador Paul Claudel.
Este último, numa entrevista, dizia que os tempos haviam mudado, que na sua época de
simbolista faziam-se pesquisas e descobertas musicais, ao passo que os jovens daquele presente
teriam apenas a preocupação visual. Segundo Claudel, “não se preocupa mais em se interrogar
as ideias, os homens e as coisas, para saber o que eles significam”, mas de apenas “os projetar
em um campo de luz, numa sucessão a mais acelerada. É o triunfo do cinema”440. Sobre os
surrealistas e os dadaístas, o poeta diz que ambos teriam apenas um sentido: o pederástico441.
Tal afirmação gerara a carta aberta contra “Paul Claudel”, em julho de 1925, cujo seguinte
trecho é citado por Tristão de Athayde:
Nós desejamos com todas as nossas forças que as revoluções, as guerras e as
insurreições coloniais venham aniquilar esta civilização cuja canalha você defende
até o Oriente, e nós clamamos a tal destruição como o estado de coisas o menos
inaceitável ao espírito. Não poderia aí haver nem para nós nem equilíbrio nem grande
arte442. [...] Nós aproveitamos esta situação para nos dessolidarizarmos publicamente
de tudo o que é francês, em palavras e em ação [...] Não há salvação pra nós em parte
alguma443.
O crítico considera que tal situação seria compreensível na Europa, mas que não encontraria
muita razão de ser no Brasil:
É horrível esse grito sincero de desespero. Quem não consegue em parte
compreendê-los? Foram homens que passaram pelo momento mais terrível da
439
ATHAYDE, Tristão de. Salvação pelo angélico, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 out, 1925, p. 4.
Cf. Belles Lettres, Sur la poésie moderne, Une interview de Paul Claudel à Florence, Comoedia, Paris, 24 jun.
1925, p. 3.
441
Cf. Belles Lettres, Sur la poésie moderne, Une interview de Paul Claudel à Florence, Comoedia, p. 3.
442
Tal passagem se refere às considerações de Claudel segundo as quais “para reencontrar o equilíbrio perdido e
o sentido da grande arte sã e fecunda, só há uma salvação: o retorno ao catolicismo fundamental apoiado no
classicismo greco-romano”. Cf. Belles Lettres, Sur la poésie moderne, Comoedia, p. 3.
443
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Salvação pelo angélico, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 out, 1925,
p. 4.
440
486
história moderna. Viveram o martírio da guerra. Veem a sua gente dizimada,
amargurada, enterrada no mais bestial amor do ganho e do luxo ou incapaz de uma
palavra de amor e de esperança. Ah, esse é um sofrimento que justifica todos os
suprarealismos deste mundo. Mas nós, nós aqui... O que há de grotesco em nosso
caso é isso. Por um século, nos habituamos a imitar, a repetir, a refletir docilmente
movimentos alheios. A ordem de pensar sempre nos veio do Velho Mundo. Sempre
fomos um Novo Mundo Velho. Sem capacidade de criar até hoje qualquer coisa de
irradiante. A não ser secundário ou excepcional. Tudo aliás compreensível, até certo
ponto444.
O que deveria ser o Brasil? A questão ficaria em suspenso ou, mais do que isso, seria respondida
apenas de maneira lacunar e insuficiente, restando uma perspectiva angustiante:
O que “devemos” ser. Ah! como é duro, no meio desse horror do desespero ou dessa
delícia ilusória da liberdade, falar em “dever”. Há cem anos que a liberdade vem
enchendo seu tufão. [...] E o que ainda nos retém? Para aqueles que tem Deus, Deus.
Para nós que ainda não o temos, o esforço periclitante de imperativos pré-kantistas,
duros mas necessários, de uma projeção do espírito que forma a estrutura dos limites
capitais. A noção dos deveres próximos, da obra apenas iniciada, da revisão de todos
os valores.
O crítico reitera a defesa “da lucidez, de disciplina, de predomínio da claridade sobre o
obscuro”. Uma vez que o divino não era alcançável, pelo menos não para os que estavam a
“olhar em torno do vazio que o mundo contém para nós”, a “salvação” residiria no “angélico”.
Ao contrário da revista Estética, o periódico mineiro A Revista lançado em julho de
1925 e dirigido por Martins de Almeida e Carlos Drummond de Andrade, traria no editorial de
seu segundo número, “Para os espíritos criadores”, escrito por Martins Almeida, a afirmação
do “moderno criador e não sarcástico, suicida ou mimetista” 445, na apreciação do crítico. Este
destaca a seguinte passagem de Almeida: “Pressentimos o perigo enorme do cosmopolitismo.
É a ameaça de dissolução do nosso espírito nas reações da transplantação exótica. Não podemos
oferecer nenhuma permeabilidade aos produtos e detritos (isto sim) das civilizações
estrangeiras”. Tristão de Athayde reconhece um princípio de “saúde” em tal perspectiva,
especialmente na percepção segundo a qual o editorial dizia haver “no nosso tempo uma volta
à realidade... Cabe a nós uma obra de dura disciplina e de serenidade construtiva. Precisamos
não só de atos de inteligências, mas, sobretudo, de atos de fé”. O nacionalismo realista de a
Revista é visto como um ponto de equilíbrio no interior dos modernismos: “Em Minas, o
espírito de cultura equilibrará os extremos e poderá trabalhar com menos tensão, com menos
combatividade, que traz o exagero ou o sarcasmo. E quase sempre a amargura que deprime”.
Já em janeiro de 1925, Carlos Drummond de Andrade teve o artigo “Nacionalismo
literário” publicado em O Jornal. Nesta ocasião, além da afirmação de que a “literatura
brasileira voltou ao nacionalismo”, destaca-se o “gesto heroico” de Graça Aranha, a “moléstia
de Nabuco” diagnosticada por Mário de Andrade, assim como elogia-se o “caso” Oswald de
444
445
ATHAYDE, Tristão de. Salvação pelo angélico, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 out, 1925, p. 4.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Saúde, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 set. 1925, p. 4.
487
Andrade que, porém, não poderia ser aceito “na sua totalidade” e explicita-se certo incômodo
com o termo “modernismo” que teria “um cheiro de futurismo disfarçado” 446. A figura de
Oswald de Andrade é a que mais lhe causa admiração, vendo a obra Memórias Sentimentais de
João Miramar como “único livro de prosa verdadeiramente moderno, até hoje aparecido no
Brasil”. A obra revelaria o verdadeiro brasileiro daquela época:
[...] este livro nos oferece o melhor retrato do brasileiro atual, filho da classe
burguesa, ingenuamente devasso, ambicioso sem teimosia, preguiçoso, indeciso –
bom. Convenhamos que é um retrato melancólico. Entretanto, não é um tipo
definitivo, resultante de seculares refinamentos e cristalizações, e sim o primeiro
produto apreciável da civilização em nossa terra. Por isso mesmo, João Miramar não
tem armas contra o destino. Sua filosofia é feita de laisser aller. Sem apriorismos.
Seduz principalmente pela clara ingenuidade de suas impressões, pela falta de
malícia e pela absoluta virgindade moral e intelectual.
Oswald Andrade é visto pelo jovem poeta mineiro como um dos “felizes dominadores do nosso
tempo”, cuja questão maior começaria a revelar um caráter, se não autoritário, ao menos,
decididamente categórico: “Ser ou não ser brasileiro: viver ou não, com plenitude e consciência,
neste cenário particularíssimo, o nosso formidável momento: eis o dilema. Aos que não
quiserem resolver pela afirmativa, aconselho uma coisa: naturalizem-se turcos”.
Carlos Drummond de Andrade partia de um pressuposto segundo o qual a orientação
dos escritores deveria assumir uma maior atuação no meio social em geral, não se restringindo
aos domínios estéticos e literários. Ou melhor, estes domínios só fariam sentido real se
trouxessem em seu âmbito o empenho em se articular com o conjunto maior da sociedade: “Não
nos esquecemos de que os escritores são ainda os maiores homens de ação, e que as realidades
sociais só se desenvolvem na atmosfera intelectual que eles preparam ou de alguma sorte
ajudam a fixar”. O editorial de Carlos Drummond de Andrade em A Revista, sintomaticamente
intitulado “Para os céticos”, com o país sob o estado de sítio de Artur Bernardes, defendia que:
[...] na ordem interna, é forçoso lançar ainda uma afirmação. Nascidos na República,
assistimos ao espetáculo quotidiano e pungente das desordens intestinas, ao longo
das quais se desenha, nítida e perturbadora, em nosso horizonte social, uma tremenda
crise de autoridade (...) No Brasil, ninguém quer obedecer447.
O editorial afirmava, ainda, que o “programa” da revista “resume-se em uma palavra: Ação.
Ação quer dizer vibração, luta, esforço construtor, vida”448. Em uma entrevista, Drummond
considerava: “Nenhum desejo absurdo de liberdade, como já fez sentir Tristão de Athayde, mas
o domínio do nosso instinto tropical, pelo cultivo amoroso da nossa inteligência universal”449.
Tristão de Athayde associa aos princípios da A Revista as orientações segundo a
446
ANDRADE, Carlos Drummond de. Nacionalismo literário. O Jornal, Rio de Janeiro, 23 jan. 1925, p 4.
Para os céticos, A Revista, Belo Horizonte, ano 1, no 1, jul. 1925, p. 12. A atribuição da autoria deste editorial
está afirmada em: TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro, p. 336.
448
Para os céticos, A Revista, Belo Horizonte, ano 1, no 1, jul. 1925, p. 11.
449
Cf. BARROS, Jayme de. O que pensam e sentem os homens moços do Brasil, O Paiz, Rio de Janeiro, 17 jul.
1926, p. 1-2.
447
488
“hierarquia”450, sem que esta, porém, implique na quebra da “harmonia”, uma vez que o
“problema brasileiro” por excelência, tanto no “terreno social” quanto no “terreno literário”,
residiria na incapacidade de se “incorporar a multiplicidade” do país, devendo-se evitar:
[...] ou que a multiplicidade não consiga incorporar-se e portanto se formem núcleos
de cristalização artificial, por falta de capacidade assimiladora do foco, além de uma
atrofia geral. Ou, ao contrário, que a multiplicidade elimine o foco unificador e a
desagregação mutile a obra de coordenação necessária. A primeira hipótese se dará
em virtude do espírito de intolerância e preconceito; a segunda, em consequência do
espírito de indolência e ceticismo.
A partir de tais reflexões, o crítico considera que a “saúde mental” deveria adquirir o papel de
norteador do modernismo brasileiro:
Um fenômeno que se tem dado em nossa literatura, como em geral nas literaturas
modernas, é esse da disjunção do elemento moral e do elemento intelectual,
justamente pela ação desses preceitos de exclusão. Por um lado, a literatura nova,
inteligente, livre, que tem realmente qualquer coisa de penetrante e de original,
timbra em ser imoral ou pelo menos amoral. Por outro lado, o pouco que de moral
se publica é ilisível, acanhado, acadêmico, pueril, de uma ineficácia e de uma
bobagem psicológica da gente se torcer. O preconceito é que virtude e inteligência
se repelem. Uma das consequências da introdução do princípio de saúde em nossas
letras modernas será justamente atenuar esse preconceito e essa disjunção. É preciso
que as novas gerações se orgulhem de ficar aquém do bem e do mal. É preciso
dessensualizar uma arte que se tem deixado contaminar. É uma ilusão julgar que os
sentidos se enriqueçam pela soberania incondicional que lhes dermos. Guiados pela
inteligência, polidos pela inteligência, é que eles podem realmente deixar penetrar
até o mundo interior do artista toda a verdade e toda a magia da natureza.
Neste sentido, qualquer “indianismo”, se tomado a sério, resultaria num falseamento da
realidade brasileira, uma vez que:
O índio vai logo aos males da civilização, à cachaça, ao tabaco, ou vegeta no
marasmo da troca e na servidão ao branco. O índio é livre, ou parece sê-lo em plena
selvageria! No mato. E como nós não podemos escapar da civilização, a
consequência é uma só e inelutável: se a liberdade pela liberdade é uma volta ao
índio, e se o índio degenera ou marasma em contato com a civilização, o progresso
só pode derivar de uma repulsa ao índio e, portanto, à liberdade pela liberdade.
Ao fazer do tema da liberdade um aspecto fundamental de sua reflexão acerca da
produção modernista, a crítica de Tristão de Athayde aproxima-se das ideias e metáforas
políticas. Ao tratar da obra de Guilherme de Almeida, o crítico considera o poeta como um
“girondino do modernismo”451. Assim, a partir da imagem dos grupos que se opuseram na
Revolução Francesa, fala-se em jacobinos, especialmente Oswald de Andrade, e girondinos,
notadamente Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto e Guilherme de Almeida.
Mário de Andrade seria girondino em suas reflexões teóricas e jacobino em alguns escritos
poéticos. O jacobinismo de Oswald de Andrade e dos que o acompanhassem se revelaria na
“sua concepção radical e suicida da poesia, são os verdadeiros Jacobinos, os iniciais, pelo
menos, dessa revolução incruenta que pretendem fazer [...]”. Esta direita e esquerda do
450
451
ATHAYDE, Tristão de. Saúde II, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 set. 1925, p. 4.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Um girondino do modernismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 jul. 1925, p. 4.
489
modernismo, porém, não tiveram reiteradas apreciações nos escritos posteriores do crítico. E
nisso podemos suspeitar de uma dupla impropriedade. A primeira por empresar do vocabulário
político termos que pouco diriam sobre o tipo de arte que caracterizaria cada um dos grupos,
numa época em que a Revolução Russa havia atualizado tanto o jacobinismo revolucionário
quanto a arte que lhe seria pertinente com os Proletkult452, ambos analisados pelo crítico. A
segunda restrição é que o “jacobinismo” do modernismo teria de ser extremamente depurado
de suas conotações políticas, uma vez que o movimento paulista encontrava-se umbilicalmente
associado às oligarquias mais tradicionais daquele estado. As próprias manifestações de Oswald
de Andrade sempre dizendo estar pelos cafés, chás e ateliers de São Paulo ou de Paris,
lembrando as companhias de D. Olívia Guedes Penteado, Paulo Prado e fazendo elogios
públicos à figura de Washington Luís, reivindicando que “pau-brasil” era algo “da moda”
revelam o quanto de repórter do Jornal do Comércio de São Paulo e de discursador em mesas
de barões, como no caso do “Manifesto do Trianon”453, mantinha-se em sua identidade.
O modernismo, de uma maneira larga, foi também um avatar do desenvolvimento
material e político de São Paulo no interior da federação brasileira o que, inclusive, pode ter
definido em grande medida a sua própria feitura estética454. Seus eventos fechados eram assunto
das crônicas sociais as mais distintas e endinheiradas. Fazendo-se repórter de coluna social,
Assis Chateaubriand assim narra um destes vernissages modernistas:
A Sra. Olivia Penteado, demonstrando o seu interesse pela arte moderna, encomenda
ao forte pintor russo, Lázaro Segall, a decoração de um pavilhão, consagrado ao culto
da modernidade, no jardim do seu palacete em São Paulo. As ruas retas da nova
Babilônia paulista traduzem a inteligência, o espírito sadio, higiênico das novas
gerações que ali se estão formando455.
A festa, além da “grande dama de espírito”, reunia “pouco mais de uma dezena de artistas”,
dentre os quais Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Godofredo
Telles e Tarsila do Amaral. Chateaubriand conta ter ganhado, numa festa do Automóvel Clube,
uma peça de Lasar Segall456 que seria o que “de mais religioso respeito [...] ainda se fez no
Brasil pela civilização do ‘fox-trot’, pelo gosto da época em que vivemos”457.
Dessa forma, qualquer análise que reivindique a associação de determinada tendência
do modernismo paulista daquela época com alguma orientação política à esquerda ou à direita
452
Ver tópico neste trabalho, Política e Letras I.
Ver tópico neste trabalho. Clássicos, românticos: modernos.
454
“Dito de outro modo, as obras dos modernistas brasileiros nos parecem hoje um tanto acanhadas, bastante
aquém das realizações intrigantes dos grandes metres do cubismo, por exemplo, por não terem [...] logrado
ultrapassar a barreira renitente dos padrões de gosto e sobretudo da irrisória taxa de risco estético a que estavam
dispostos os clientes domésticos”. MICELI, Sérgio. Nacional estrangeiro, p. 91-92.
455
CHATEAUBRIAND, Assis. Na cidade de Pereira Inácio e de Francisco Matarazzo. O Jornal, Rio de Janeiro,
7 jun. 1925, p. 1.
456
Sobre trajetória de Segall e sua relação com os “mecenas” da arte moderna de São Paulo, ver: PINHEIRO
FILHO, Fernando Antonio. Lasar Segall: arte em sociedade. São Paulo: Cosac Naify; Museu Lasar Segall, 2008.
457
CHATEAUBRIAND, Assis. Na cidade de Pereira Inácio e de Francisco Matarazzo. O Jornal, p. 2.
453
490
precisa fazer grande esforço de abstração sociológica e política. Assim, falar em conservadores
e progressistas, neste momento e acerca deste grupo, só é algo aceitável historicamente se tais
conceitos vierem rigorosamente vinculados a definições claras sobre princípios estéticos
específicos. Como afirmara certa vez Florestan Fernandes, talvez de uma maneira muito
incisiva, “nem a ‘esquerda’ nem a ‘ultraesquerda’ do modernismo chegaram à negação da
ordem”458. Não por acaso, em 1933, Oswald de Andrade, que encontrara a sua decisão extrema
no comunismo, faz as seguintes afirmativas:
O movimento modernista, culminado no sarampão antropofágico, parecia indicar um
fenômeno avançado. São Paulo possuía um poderoso parque industrial. Quem sabe
se a alta do café não ia colocar a literatura nova-rica da semicolônia ao lado dos
custosos surrealismos imperialistas? A valorização do café foi uma operação
imperialista. A poesia Pau-Brasil também. Isso tinha que ruir com os cometas da
crise. Como ruiu quase toda a literatura brasileira “de vanguarda”, provinciana e
suspeita, quando não extremamente esgotada e reacionária. Ficou da minha este
livro. Um documento. Um gráfico. O brasileiro à-toa na maré alta da última etapa do
capitalismo. Fanchono. Oportunista e revoltoso. Conservador e sexual. Casado na
polícia. Passando de peque-no-burguês e funcionário climático a dançarino e
turista459.
Em sua conferência sobre o movimento modernista feita em 1942, Mário de Andrade faz uma
série de reflexões críticas especialmente sobre a postura que ele e seus companheiros à época:
Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia
do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros
de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa
curiosidade na cultura. [...] Não me imagino político de ação. Mas nós estamos
vivendo uma idade política do homem, e a isso eu tinha que servir460.
Assim, as divisões que começam a pipocar no interior dos círculos dos modernistas
brasileiros não devem ter suas causas buscadas em motivações associadas a engajamentos
políticos, mas à política literária. O poeta Ribeiro Couto, em carta a Mário de Andrade, alude
ao fato de este último fazer “política literária”, no sentido de, às vezes, ser “insincero” e, mesmo,
“hipócrita”. As duras palavras se dirigiam especificamente ao fato de Andrade não ter se
pronunciado publicamente acerca da atuação de Graça Aranha junto aos modernistas. Segundo
afirma Couto, conforme conseguimos transcrever de uma carta em péssimo estado:
V. [..] evitou a luta com o Graça. Fez o papel de sujeito que não dá queixa à polícia
para não brigar com o ladrão. No entanto, o furto foi clamoroso. O Graça, com ares
de Pedro Álvares Cabral, anunciou [...] movimento moderno, da ideia moderna. [...]
V. consente que ele considere V. e outros uns simples discípulos da ‘Estética da Vida’
[...] e ainda se zanga com o Oswald, porque o Oswald, sincero, viu o cabotinismo do
Graça, tanto mais à custa do sacrifício de passar por satélite dele. Assim, provo: eu
disse que V. não é sincero em certas atitudes. Exemplo: na sua atitude para com o
Graça em S Paulo, depois e agora. Pode ser que V. agora tenha feito restrições ao
458
FERNANDES, Florestan. Prefácio. In: VASCONCELOS, Gilberto. Ideologia curupira. Análise do discurso
integralista. São Paulo: Brasiliense, 1979, p. 15.
459
Prefácio à obra “Serafim Ponte Grande”. Cf. ANDRADE, Oswald. Obras completas. Vol II. São Paulo: Vera
Cruz, 1972, p. 132-133.
460
ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1978,
p. 253.
491
Graça. Mas, pelo menos até bem pouco a sua atitude era de apoio explícito ou virtual.
Quem cala consente461.
Menos de dois meses após esta carta, em janeiro de 1926, vinha a público a “Carta Aberta a
Graça Aranha”, em que Mário de Andrade dispensara o acadêmico do “grêmio modernista”,
“como se despede um criado de mesa”462, na apreciação de um cronista. O intelectual paulista
destacava, especialmente, as incompreensões do autor de Estética da Vida acerca do “cubismo”
e do “primitivismo”, dizendo diretamente ao acadêmico que ele havia falhado como
“orientador” na “chefia que erradamente deram a você”463.
Assim, as divisões da “política literária” modernista iam fazendo-se a cada gesto, obra
e posicionamento público de seus integrantes. O crítico, por sua vez, procurava dar conta de tal
dinâmica. Daí falar-se no “brasileirismo” do poeta Guilherme de Almeida, que em seu livro
Raça atualizava a síntese romântica das três raças formadoras, em que tudo é tripartite, inclusive
a reiterada nota da tristeza: saudade dos brancos / saudade dos verdes / banzo dos negros...464
tendo, ainda, o símbolo da cruz como força unificadora. Elogia-se o fato de o poeta começar a
retirar de sua “inserção na matéria brasileira [...] uma poesia que não seja apenas sua, mas nossa
também”. A narrativa de Raça, porém, estaria ligada ao passado colonial:
E afinal sobre esse quadro – ainda apenas colonial, Brasil de ontem – de coisas
americanas, de coisas africanas, de coisas lusitanas, nessa sarabanda imprecisa e
semibárbara, nesse redemoinho de raças que se fundem, que se derretem, que se
anulam para ressurgirem numa mestiçagem vaga, onde dificilmente as forças se
desenham, sobre esse quadro de terra ardente, de raça em ebulição, desce afinal,
como uma grande paz, a Cruz que vai dar a essa incógnita um destino e uma
esperança465.
As “atualidades” apareceriam em perspectivas como a que Mário de Andrade e
Alcântara Machado, nas páginas do periódico dirigido por este último e por A C Couto de
Barros e lançado em janeiro de 1926, Terra Roxa e outras terras, faziam acerca do circo:
Quanto aos louvores ao Circo Alcebíades (correspondente paulista do nosso
Spinelli), como teatro eminentemente nacional, é influência já do pau-brasil de auriverde memória, já da moda parisiense que estes últimos anos foi lançada pela
extreme-gauche literária, que lançou o circo e o café-concerto como reação contra a
decadência e a vulgarização do teatro. Lembrem-se da festa que o Comte Etienne de
Beaumont deu no Olympia, do êxito mundano do Nouveau Cirque ou do número
especial que o Crapouillot466 dedicou ao Circo. Mais uma vez o primitivismo
inoculado pelo sr Oswald de Andrade mostra que é apenas um reflexo da última
moda de Paris467.
O livro Raça de Guilherme de Almeida ganhara uma apreciação crítica no novo periódico, na
qual Sérgio Milliet considerava que “só se é brasileiro sendo paulista, como só se é universal
461
Carta de Ribeiro Couto a Mário de Andrade, 29/11/1925, acervo CAAL.
O apedrejamento do mestre, A Manhã, Rio de Janeiro, 14 jan. 1926, p 3.
463
ANDRADE, Mário DE. Carta aberta a Graça Aranha. A Manhã, Rio de Janeiro, 12 jan. 1926, p 5.
464
Cf. ALMEIDA, Guilherme de. Raça. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p. 30.
465
ATHAYDE, Tristão de. Brasileirismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 fev.1926, p. 4.
466
Le crapouillot: Gazette poilue foi um periódico francês lançado em 1915 e que circulou até 1966.
467
ATHAYDE, Tristão de. Atualidades, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 abr. 1926, p. 4.
462
492
sendo do seu país”. Tristão de Athayde procura explorar os significados que tais palavras
poderiam agregar, ao mesmo tempo em que ironiza as suas limitações regionalistas:
O como não está certo, caso esteja certa a primeira parte da frase. Se todos os
brasileiros, para serem brasileiros, têm ora avante de se naturalizar paulistas, o certo
seria dizer que “só se é universal sendo brasileiro”, o que teria o mérito de ser
positivamente original. Tão original quanto a paulistização compulsória dos paroaras
aos guascas... Enfim, o que o sr Sérgio Milliet quis afirmar foi o louvor do
regionalismo e pouco há que lhe objetar, pois a nossa literatura ainda na faina dos
materiais para as futuras construções. O erro, como todos sabem, será tomar uma
coisa pela outra, ou pelo pior, que o regionalismo urbano do modernismo paulista
veio descobrir a pólvora... ou o cigarro de palha e o fumo picado468.
Avaliando que na nova revista haveria mais coisas boas do que ruins, o crítico ressalta que um
dos riscos do “quinzenário de regionalismo piratiningano” seria o de cair no defeito do “elogio
mútuo, a camaradagem de igrejinha” que, inclusive, seria algo inevitável “num movimento
ainda indeciso e recluso, que precisa de se apoiar reciprocamente para vencer”. A formação de
tais divisões, que a historiografia pretendeu afirmar desde muito cedo na oposição entre verdeamarelos e os apoiadores de pau-brasil da revista Terra roxa e outras terras, constituiu-se de
maneira muito precária até finais da década de 1920. Conforme demonstra Picoli:
Comparando-se os argumentos ideológicos utilizados pelo grupo Verde Amarelo
com as temáticas identificadas em Terra Roxa e outras terras encontramos muitas
semelhanças. Ambos utilizam os mesmos argumentos da grandeza histórica,
geográfica e econômica de São Paulo, muitos deles semelhantes àqueles apontados
por Paulo Prado em suas obras. Ambos elegem o bandeirante como símbolo da
grandeza e referem-se ao nacionalismo dos paulistas. [...] Sendo assim, a separação
efetuada pelos críticos do movimento modernista entre grupos como o de Terra roxa
e outras terras, e o Verde Amarelo; entre grupos de ideologias chamadas de esquerda
e de direita; entre períodos mais estéticos e mais políticos; tais divisões não se
revelam tão claras quanto se pretenderia. A ideologia apresentada pelo grupo Verde
Amarelo revela semelhanças evidentes com as temáticas identificadas no jornal
literário Terra roxa e outras terras. Semelhanças que não podem ser ignoradas
simplesmente porque os grupos se declaram opositores469.
Neste sentido, a obra O Estrangeiro projetou de maneira significativa uma figura que
iria ganhar grande importância no interior da cultura intelectual brasileira: Plínio Salgado. O
livro, em sua primeira edição, trazia as tonalidades nacionalistas que começavam a caracterizar
o dito grupo “verde-amarelo”: uma capa branca com escritos azuis e borda amarela, abaixo, a
parte central circular da bandeira do Brasil com o lema ordem e progresso e as estrelas. Mais
abaixo, em azul, os dados editoriais. Na contracapa, três papagaios verdes com peito amarelo
tomam toda a página. Lançada pela editora Helios, a obra é apresentada como o “terceiro
volume da série Novíssima, destinada a fixar o atual momento literário modernista”470.
O livro teve uma recepção muito positiva, esgotando a primeira tiragem em menos de
468
ATHAYDE, Tristão de. Atualidades, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 abr. 1926, p. 4.
PICCOLI, Fabíola. “Terra roxa e outras terras”: modernismo e paulistanidade. Campinas, SP: [s.n.], 1997.
Dissertação de mestrado, p. 140-141.
470
SALGADO, Plínio. O Estrangeiro. Crônica da vida política. S Paulo: Helios, 1926.
469
493
um mês, o que fez seu autor ser objeto de uma série de homenagens e prêmios471 que lançaram
seu nome como um dos mais importantes escritores naquele ano de 1926. Se, de fato, muitas
dessas homenagens contaram com o apoio do jornal Correio Paulistano, do qual Plínio Salgado
participara e Menotti del Picchia era redator, em suas declarações públicas, o autor de O
Estrangeiro assumia um tom conciliador. Assim, em um texto sobre o “Espírito acadêmico”,
Plínio Salgado afirmava que a hora de destruição havia terminado:
Basta, num relance, observarem-se as modalidades Graça Aranha, Mário, Oswald,
Tarsila, Millet, Luiz Aranha, Alcântara, C de Barros, Ribeiro Couto, Manuel
Bandeira, Rodrigues de Abreu, Pedro Nava, Martim de Almeida, Ronald, Guilherme,
Cassiano, Menotti, Augusto Meyer, Vargas Netto, Raul Bopp, Moraes Netto,
Drumont (sic), Agripino, Tristão, Tasso da Silveira, Andrade Murici, Murilo Araújo,
Agenor, Graciotti, Nuto, Pati, e quantos, quantos outros! para se ter uma ideia da
inquietude em que amanhecemos. Divergentes, mas em comum “o anseio de
renovação o de afirmação de humanidade na modalidade brasileira”472.
Já numa nota intitulada “Sessão Verde Amarela”, Menotti del Picchia reproduzia um suposto
encontro dos verde-amarelos, dentre os quais Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Raul Bopp:
Reunida com a presença de todos os seus membros [...] funcionou em sessão plena
a Academia Verde e Amarela. Ordem do dia: destruição de todas as academias do
universo. – Após o bolchevismo – apartou Plínio Salgado. Bopp defendeu a arte
negra:_ Sou pela cultura do micróbio do banzo... [...] Cassiano, caçador de
papagaios, catava ecos para estilizá-los nos seus poemas. Eu falava como uma
metralhadora. Senti uma picada na perna. _ Acho que os pernilongos são a pimenta
dos ares. Condimentam, com o queijo da lua, os ‘nhoque’ das nuvens amotinadas...
Plínio discordou: _ Ao individualismo anárquico sobrevirá o comunismo... Ivan era
o organizador alegórico das tendências industriais. Pantojo a ruína romântica da
velha organização agrária... Bopp retrucou: _ O ritmo africano superpõem-se à
dolência nostálgica da nênia lusa, herdada do árabe contemplativo. Somos por uma
arte bárbara. Não concordei:_ Sou adverso ao espírito gregário das corporações
acadêmicas. Anulam a individualidade, isto é, a originalidade, na tábula rasa do
coletivismo... [...] Estava discutido o assunto: as academias deviam morrer.
Lavramos o decreto: “Ficam extintas todas as academias de letras por absoluta
inutilidade funcional”. Academia Verde e Amarelo [...]473.
Ivan era o protagonista do romance O Estrangeiro, um imigrante russo cuja trajetória
no estado de São Paulo, primeiramente nas áreas de plantação cafeeira e, posteriormente, nos
centros urbanos e fabris, era narrada. O livro foi acolhido com entusiasmo por Tristão de
Athayde, especialmente por se tratar de uma “literatura de participação” e não uma produção
“exclusivista”. Tratava-se, no caso, de uma reflexão acerca do estatuto da literatura brasileira:
Existe uma literatura de exclusão, como existe uma literatura de participação. E
ambas são verdadeiras. Apenas, o que numa é vida em termos de universalidade, de
abstrato, em outra é vida em termos de individuação, de concreto. A verdade, como
unidades sucessivas pela depuração do múltiplo. Ou a verdade como variedade
latente, como multiplicidade elementar. Só as civilizações depuradas podem chegar
a uma literatura de exclusão, que não seja um simples artificio de idealismo. Para
471
Em dezembro de 1926, foi entregue a Plínio Salgado o bronze “Juvêncio e os papagaios” em uma cerimônia
no salão nobre do jornal Correio da Manhã. Juvêncio é o nome de um dos personagens principais do romance “O
Estrangeiro”. Cf. CRÔNICA SOCIAL. Plínio Salgado, Correio da Manhã, São Paulo, 18 dez. 1926, p. 4.
472
SALGADO, Plínio. O Espírito acadêmico, Correio Paulistano, São Paulo, 21 ago. 1926, p. 3.
473
HELIOS. Crônica Social. Sessão Verde Amarela, Correio Paulistano, São Paulo, 23 set. 1926, p. 6.
494
nós, por exemplo, é a literatura de participação a que realmente [...] corresponde ao
que somos por natureza. O que não quer dizer que sejamos somente isso. Uma coisa
é ser; ser em relação a um observador que nos visse de fora, de cima. Outra coisa é
o que somos, isto é, o que pensamos ser, o que sentimos ser. E como a obra de arte é
uma criação do mundo do espírito, pode acontecer que aquilo que parecia artificial,
inoportunidade, desvio, ao observador estranho – seja de fato naturalidade,
oportunidade, normalidade para o mundo das abstrações mentais em que se passa
[...]474.
Dessa forma, verificava-se que a literatura brasileira carecia de ser mais participativa,
empenhada e, até mesmo, engajada na “realidade” do país. Neste sentido, algumas polarizações
dos autores modernos revelariam as suas limitações, se tomadas como orientações absolutas,
pois, “tanto erra o nacionalismo forçado, que só considera arte brasileira ao bárbaro ou ao
primitivo, como o racionalismo estético, que pretender guiar a nossa caravana literária, por
princípios definitivos, por mais exatos que sejam, em abstrato”.
Tal caráter de “participação” teria sido uma constante na história literária do país,
desde os “brasileirismos” românticos até os “naturalismos” republicanos, ambos considerados
como processos sucessivos de imitação que, não obstante, produziriam “uma reação renovadora
do fio tradicional”. O mesmo valeria para as vanguardas modernistas. Tal elemento de
participação teria uma relação fundamental com a situação política e econômica do país:
Seria simples demais, dizer que o Império assentava sobre a agricultura. E que a
República passou a assentar sobre a indústria. O traço geral é exato, assim mesmo.
E a indústria quer dizer urbanismo, com toda a sua miséria e a sua tragédia, logo,
com sua literatura, que nasce sempre onde há movimento, riqueza, portanto miséria
e dor.
Inclui-se, então, na análise literária não apenas a reflexão acerca das influências estéticas,
culturais e teóricas que marcariam as produções artísticas, mas, também, a perspectiva
econômica e social que caracterizaria a nova “realidade” que passa reivindicar abordagens no
interior da cultura intelectual brasileira. Assim, o presente é visto sob o signo da crise:
A plutocracia democratizante de hoje está condenada, - à direita pelo espiritualismo
religioso ou pelo realismo político, cada vez mais vivos e à esquerda, pelo
materialismo comunista cada vez mais poderoso e violento. Entre essas três grandes
forças em ação, as maiores talvez do mundo contemporâneo em matéria social, está
o capitalismo, em sua dupla acepção, condenado a retrair-se consideravelmente,
pela submissão do indivíduo a forças coletivas ou sobrenaturais que ele tem de
reconhecer como superiores à sua audácia criminosa de cego egotismo.
O crítico inspirado no escritor católico inglês G K Chesterton expõe uma visão de mundo
segundo a qual o capitalismo tende ao total colapso, não seguindo daí o surgimento de um
sistema socialista ou comunista, mas, pelo contrário, a emergência de um mundo desagregado
e fragmentado em pequenos poderes locais. A crise do capitalismo era a crise do urbanismo:
A desvalorização dos capitais trará consigo o desmembramento das capitais. E o
mundo de amanhã conhecerá talvez dias melhores – depois de que tragédias é de
imaginar – em que as misérias da ostentação das nossas capitais de hoje não deem
474
ATHAYDE, Tristão de. Ebulição, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 mai. 1926, 4.
495
mais lugar a essa imensa ostentação de misérias que torna hoje em dia mais do que
nunca amarga toda alegria possível de viver475.
Assim, o futuro, se guardaria alguma redenção terrena, esta seria conhecida apenas após
tragédias que estariam já no horizonte presente. Sobre o mesmo tema, Tristão de Athayde
reproduzia a mesma perspectiva que projetava, mantendo a incerteza das previsões históricas,
o colapso de um sistema que cresceria ininterruptamente, sem limites e de forma irreflexiva:
[...] até ruir em catástrofes memoráveis ou voltar ao barbarismo inicial, à fome, à
troca, às luas do medievalismo primitivo, após a queda do Império Romano. Chegue
ou não a hipertrofia do capitalismo a essas catástrofes, improváveis mas não
impossíveis, o certo é que ele já hoje representa uma negação daquilo de que partiu,
isto é, o respeito à liberdade individual.
O que importaria, na análise de O Estrangeiro, era, àquela altura, o desenvolvimento urbano e
capitalista, especialmente em São Paulo: “o que temos ainda hoje é o movimento de capitalismo
ascendente. Essa é a face da nossa civilização atual. E, portanto, é ela que a literatura deve
traduzir, a literatura de participação já se vê”476.
Dessa forma, o crítico exalta o tratamento do “movimento de capitalismo ascendente”
existente na obra o que, inclusive, o faz considerá-la como um “romance social”. Sobre a
filiação nas tendências modernistas, ele avalia tratar-se de um “romance de imigração”:
Ligado à corrente que o sr Graça Aranha iniciou com “Canaã”, em 1902 (e a que o
sr Afonso Celso já tinha dedicado a sua romântica “Giovanina”, hoje ilisível) e que
há tempos fora engrossada pelo enfático “País de Ouro e de Esmeraldas” do sr J A
Nogueira. É um romance da raça em formação, da nacionalidade em fusão, o
romance do “melting pot” paulista. Cheio de raiz na terra. E de galhos no ambiente
bem vivo, bem nosso de hoje. Um livro enfim que traz a primeira qualidade de uma
obra literária durável – a necessidade.
Plínio Salgado dizia que o livro era um desabafo, o que era bem visto pelo crítico, pois isso
retiraria do romance qualquer aspecto de “coisa feita, preparada para agradar, ou para provocar
certa originalidade expressiva, ou para permitir ambições e vaidades pessoais”, caracterizandose pela “impressão de voz alta que ele deixa. De ar livre. De vida vivida. De coisa em marcha”.
O Estrangeiro traria exposições que gerariam uma má impressão. Conforme destaca o
crítico, a obra começaria por:
[...] explicar o que é que cada uma de suas personagens representa. Este o “ciclo
ascendente dos colonos”, aquele “o ciclo descendente das raças antigas”. Aqui, “a
marcha do caboclo para o sertão o novo bandeirismo (Zé Candinha)”, ali o espírito
de italianidade (a “Dante Alighieri”), “ou, a reação das tradições e sentimentos
inerentes ao tipo provisório anteriormente esboçado (Juvêncio)”. Enfim, tem-se a
impressão de que o autor vai entrar por uma dessas máquinas de alegorizações, tão
caras aos últimos abencerragens do nosso positivismo religioso a que nos tem valido
movimentos monumentais como todos sabem...
Mas Plínio Salgado não se prenderia a tais esquematizações, priorizando uma abordagem de
conjunto em sua narrativa:
475
476
ATHAYDE, Tristão de . O Distributismo. Estudos 2a Série. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 262.
ATHAYDE, Tristão de. Ebulição, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 mai. 1926, 4.
496
[...] o que mais vive no livro não é cada personagem de per-si, mas todos juntos. É o
S Paulo de hoje. Essa coisa formidável que vai para a frente. Duramente.
Implacavelmente. Cheio de vícios, de males, de misérias caladas, de arrogâncias
intoleráveis, de arrivismos, de patifarias e escândalos477.
O crítico louva a opção por fazer de um russo, mais que o protagonista do romance, “a figura
culminante do livro”, o “coro da tragédia”, pois nele se revelaria a “consciência periclitante,
angustiada, indecisa do Brasil que surge entre as ruínas da velha e nobre estrutura imperial e o
esboço dos novos caldeamentos de sangue e ideias que a República suscitou”. Frente aos
conflitos sociais e políticos cotidianos, o personagem teria função significativa:
E andou bem em fazer de Ivan um russo. Um russo anarquista, expatriado do tzarismo,
que aqui funda uma indústria nova, com ideias novos de participação nos lucros aos
operários, a organização do egoísmo inevitável, mas cujo messianismo, cuja
imaginação que nunca se pousa, é incapaz das grandes realizações, e cujo
cosmopolitismo não o deixa criar raízes, na vida.
Ao contrário do que mais tarde ficará claro tanto nas exposições do grupo “verdamarelo”,
quanto na historiografia que o abordara478, Tristão de Athayde vê na figura do “estrangeiro” o
retrato da própria condição intelectual brasileira:
A mentalidade brasileira tem realmente qualquer coisa de mentalidade russa. E a
agitação no vácuo de Ivan, a sua impossibilidade em concluir, a sua imaginação
delirante, a sua eterna dissolução interior, o seu fogo contraditório não são apenas o
“delírio insatisfeito de um ‘estrangeiro’”, insassimilado, e sim o fundo fofo de nossa
alma, tanto capaz de grandes feitos como de todas as abdicações479.
O valor da obra estaria na reflexão que despertaria sobre a “nossa vida moderna”, os choques
provocados “entre o espírito de coisas novas e de coisas velhas que aqui se entrelaçam”. O
crítico, porém, estava longe de avaliar O Estrangeiro como romance isento de imperfeições e
falhas. Pelo contrário, chega a considerar que o livro “deverá ser refundido em certos pontos,
para aliviar o que ainda tem de excessivo ou de artificial” e que conteria influências “do pior
da poesia do sr Menotti del Picchia. Literatura ruim, literatrice de adornozinhos e arabescos. É
muitas vezes inchado, gongórico”. Os elogios, porém, sobressaíam:
Mas é um livro novo e naturalmente original. Que fixa o fenômeno mais importante
de nossa formação atual, como raça. E que faz viver, em páginas por vezes
477
ATHAYDE, Tristão de. Ebulição, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 mai. 1926, 4.
A historiografia acerca do grupo “Verde amarelo”, formado por Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Candido
Mota Filho, Plínio Salgado e Raul Bopp, este último nem sempre lembrado devido a sua posterior participação em
“Antropofagia”, reitera o caráter nacionalista radical que tais intelectuais esposavam, o que implicaria numa
identidade marcadamente xenófoba e, inclusive, simbolizada por figuras como a do Curupira que, além de
emprestado à “tradição indígena” do país, seria caracterizado como um ser “sem fendas, hirto e defensivo,
invulnerável à penetração estrangeira, sisudo e compenetrado, vacinado contra a sedução transoceânica e avesso
às ‘ideologias exóticas’”. Haveria, assim, uma continuidade óbvia entre os impulsos “verdamarelos” dos anos de
1924-1929 e a formação do integralismo e seu partido em 1932. Se, de fato, tais continuidades são explícitas, não
se pode perder de vista o caráter ambíguo das perspectivas “verdamarelistas” que compartilhava, pelo menos, de
uma simbologia (o recurso ao índio, ao bárbaro, ao “pré-europeu”) que não era estranha aos outros “grupos
modernistas”. Especialmente o pau-brasil. Não por acaso, por mais de uma vez, os “verdamarelos” foram acusados
de copiar as produções pau-brasil, conforme veremos a seguir. Cf. VASCONCELOS, Gilberto. Ideologia curupira,
p. 18; ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Totalitarismo e revolução. O integralismo de Plínio Salgado. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
479
ATHAYDE, Tristão de. Ebulição, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 mai. 1926, 4.
478
497
admiráveis de caráter e de cor, toda uma multidão bem moderna de obsessos, de
alucinados, de angustiosos ou de delirantes, de consciências martirizadas de agitação
ou bichadas de cinismo, a quem dá vontade de clamar, não as palavras de vingança
e de ameaça – mas as palavras eternas de Jesus, palavras de vida de consolo: Fuge,
Tace, Quiesce480.
Com tal invocação ao quietismo cristão, Tristão de Athayde começava a lançar mão da visão
de mundo católica como um aspecto que deveria integrar o debate sobre a realidade nacional.
Uma característica ressaltada pelo crítico era a de o romance O Estrangeiro poder
desagradar “alguns por moderno demais. A outros por pouco moderno”. E o que se seguiu ao
sucesso da obra foi a projeção de Plínio Salgado não só como escritor de valor, mas como
teórico do modernismo. Uma nova liderança, por assim dizer. Em setembro de 1926, Salgado
refletia sobre a importância da imagem como forma essencial de cativar o leitor moderno que
seria “rápido” e “dinâmico”, sendo a imagem “uma necessidade da expressão nova”:
Conceitos tornam-se imagens. Imagem síntese e conceito imagem faz a prova
fragmentar-se e deixar de ser maçante. Grupos de imagens e conceitos. Nisso reside
o segredo da prosa moderna. Substantivos e verbos são os elementares. Cria-se
verbos, adjetivos, neologismos, idiotismos, gíria, regionalismos, e até barbarismos.
Criamos uma língua nova nacionalista481.
Salgado citava como exemplos deste “imagismo” trechos de poesias de Jorge Luís
Borges, Pedro Garfias, Apollinaire, Serguei Iessienin482, Cassiano Ricardo, Oswald de Andrade,
Mário de Andrade e Menotti del Picchia483. Dessa forma, as conquistas estéticas das
vanguardas, especialmente este apelo à síntese, ao recurso imagético, icônico, serviam para dar
o passo seguinte no projeto nacionalista dos “verdamarelos”. No discurso de recebimento de
um bronze em sua homenagem, Salgado discorria sobre o sentido geral do movimento:
O horror de parecermos ridículos tem nos tornado mais ridículos ainda. Temos receio
de que a Europa não nos julgue bastante atilados e perspicazes para compreendermos
a sua arte. Imitamo-la, pois, como gorilas, na certeza de que só por essa forma
seremos considerados um ilustríssimo povo de refinados. Tomamos o Brasil como
um tema, só porque o sr Blaise Cendrars fez uma poesia muito espirituosa sobre a
avenida São João e estampou um negro numa parede de cal. Temos a visão objetiva
da nossa terra. [...] essencial voltarmos à simplicidade. O que o futurismo procurou
e não achou, na Europa, aqui temos. Virginalmente, na língua falada pelo nosso
povo, um substrato americano, tão positivo como o espírito de unidade política, a
identidade moral e sentimental da raça brasileira484.
As conquistas estéticas da vanguarda serviriam para expressar essa “unidade política”,
480
ATHAYDE, Tristão de. Ebulição, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 mai. 1926, 4.
Este tipo de reflexão revela que não é totalmente exata a apreciação de Gilberto Vasconcelos segundo a qual o
“verdamarelismo” guardaria uma “indiferença total pela linguagem”. Cf. VASCONCELOS, G. Ideologia
curupira, p. 107; Cf. SALGADO, P. Criadores de Imagens, Correio Paulistano, São Paulo, 10 set. 1926, p. 3.
482
Este, inclusive, um dos principais nomes do chamado imagismo russo surgido em 1918, com manifesto lançado
em 1919 e fim decretado pelo próprio poeta em 1924. Entusiastas da revolução, nostálgicos em temas poéticos e
contrários ao futurismo de Marinetti, que esteve em Moscou em 1913, os imagistas russos são um bom exemplo
da complexidade em diferentes vanguardas acerca das questões entre novo, velho, passado, futuro, progressismo
e reacionarismo. FAUCHEREAU, S. Avant-gardes du XXe siècle, p. 260-265.
483
Cf. SALGADO, Plínio. Criadores de Imagens, Correio Paulistano, São Paulo, 10 set. 1926, p. 3.
484
Cf. Homenagem dos escritores paulistas a Plínio Salgado – A entrega de um bronze comemorativo ao autor d’O
Estrangeiro, Correio Paulistano, São Paulo, 19 dez. 1926, p. 3.
481
498
“moral” e “sentimental” da “raça brasileira”. Anteriormente, Salgado já havia afirmado a
necessidade de o Brasil ser “integrador”, de modo a considerar a “unidade de sentimentos
necessária para a unificação”485. Foi a partir do discurso de premiação, feito em finais de 1926,
que se formou o texto a “Anta e o curupira – Considerações sobre a literatura moderna”,
primeira manifestação propositiva, por assim dizer, do grupo “verdamarelo”. Plínio Salgado
fizera da anta um símbolo contra os preconceitos raciais e culturais, contra o ceticismo, o
negativismo e o desânimo. Em uma das primeiras definições da “revolução de anta”, Salgado
atualizava a divisão sertão/litoral vista como duas “mentalidades opostas” corporificadas na
oposição São Paulo/Rio de Janeiro. À capital litorânea caberia o “oficialismo, cultos e costumes
exóticos, requinte de inteligência [...] apurando a faculdade crítica, sobretudo o senso de
comparação e de ecletismo, com detrimento da faculdade criadora”. Já os paulistas, apesar das
diferentes orientações intelectuais, seriam unificados pela “ingenuidade de provincianos” e
seriam capazes de promover a unificação de todas as “províncias” do país a partir “do
sentimento brasileiro, que as colocará de pé em luta contra a ditadura de cem anos dos
pensadores e artistas estrangeiros. Contra o nosso regime colonial”486. A simbologia de anta
reenviaria aos ímpetos expansionistas dos bandeirantes paulistas que, por sua vez, seriam
conduzidos por uma “razão étnica” proveniente de suas origens indígenas:
A centelha do movimento de anta faiscou uma noite, no decorrer de uma conversa
entre mim, Alarico Silveira e Raul Bopp. A propósito de uma alusão que fiz a um
artigo de Alarico (grande espírito e profundo conhecedor de coisas nossas), falounos ele da marcha bandeirante, no rumo do oeste, sugerindo as razões étnicas porque
se encaminharam os paulistas naquela direção. Para ele, era uma espécie de saudade
dos planaltos bolivianos, que o sangue índio plantou no sangue português, nas
primeiras núpcias de raças, a que presidiu João Ramalho. Os tupis tinham vindo
daquela região. Referindo-se à marcha pré-colombiana e à origem do nome dessa
grande tribo, falou-nos do totem da raça, a anta ou o tapir – o maior mamífero da
América e o único grande animal genuinamente americano do sul – totem largamente
proclamado como tal pelos guerreiros, com os brados de “che tapya”, que vieram
atroando as brenhas, naquela procura épica e predestinada do Atlântico, por onde
vinham, também numa procura épica de continentes, as caravelas lusitanas.
Aí ele teria encontrado a “força que possibilitou a unidade nacional”, a síntese que lhe permitiria
tomar o país como um todo, sem fragmentações e acima das divisões sertão/litoral.
A partir de então, a unidade nacional é vista como um produto não da história ou da
formação política, social e econômica, mas do mito racial conscientemente explorado:
Nem os nossos sistemas hidrográficos ou orográficos: nem a unidade do processo
moral da formação brasileira; nem as contingências políticas, me eram mais
sugestivos do que o próprio sangue tupi, proveniente das Ibiturunas (Andes), que eu
via como um “denominador comum” das diferentes expressões humanas dos
cruzamentos. Era bem verdade que não somente o tupi entrou na formação brasileira,
uma vez que havia outras tribos selvagens, que não eram tupis; mas o símbolo servia
e podia abranger todas as famílias autóctones, e ser tomado como “senha” de um
485
486
SALGADO, Plínio. A raça harmoniosa, Correio Paulistano, São Paulo, 10 out. 1926, p. 3.
Cf. A Revolução da Anta, O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 13 mar. 1927, p. 7.
499
vigoroso movimento nativo. Pois, em toda a parte, víamos o índio: Poti, no norte;
Tibiriçá, no centro, e S Sepé, no sul487.
Como fará recorrentemente, Salgado afirma o tom conciliador de suas propostas em relação a
outras tendências modernistas, diminuindo qualquer tipo de discussão e discórdia que poderia
vir a público, lembrando que, no fim, todos se encontravam para alguma celebração conjunta:
Quando eu e Bopp falamos da anta, nossos amigos verdamarelos puseram o bicho
de quarentena. Tomaram-no, a princípio, como expressivo de uma função restritiva
de preconceito racial. Espíritos irmanados no mesmo desejo e na mesma fé, Menotti
del Picchia, Cassiano Ricardo, Motta Filho, Genolino Amado, Raul Bopp e eu,
costumamos discutir com único intuito de chegarmos a um acordo. Na discussão,
tudo se esclarece. Não brigamos, mesmo quando usamos de violência no terreno das
ideias. Espírito largo de tolerância. Acordo que estalece o desacordo. Até mesmo os
que estão fora merecem o nosso respeito. Divergimos, por exemplo, em muitos
pontos, de Mário de Andrade, e votamos-lhes (de minha parte fervorosamente), uma
grande admiração. Pregamos tacapadas no Oswald de Andrade, que nos agride
também no seu rodapé do “Jornal do Comércio”, e, à noite, confraternizamos em
palestras amigas na sala acolhedora do “Correio Paulistano”.
Na mesma ocasião, ele alude à leitura que fizera de seu “Nheengassú”488 e que teria
desencadeado “a discussão que se tornou base do acordo em que hoje estamos em S Paulo de
desenvolver uma ação nova no Brasil”489. Afirma-se a utopia ultranacionalista de se libertar de
“todas as contribuições da consciência alheia” a fim de constituir uma identidade fundada
explicitamente na instrumentalização de determinados mitos:
Como símbolo da ação que temos de desenvolver tomamos o totem de uma raça que,
objetivamente, desapareceu, porém que é uma incontestável realidade na nossa
formação étnica. E não se confunda formação étnica com formação nacional, que é
outra coisa decorrente desse fator e de outros ainda. E se nos perguntarem porque
tomamos o índio, diremos que pela sua virgindade a nos ensinar, constantemente
que, não tendo nós ainda pensado pelas nossas cabeças, podemos fazê-lo sem
compromissos com as velhas civilizações. Responderemos ainda que, pela nenhuma
contribuição cultural ou civilizadora que ele nos trouxe à formação nacional, pode a
Nação dizer-se sua descendente, sem submissão histórica, até sem gratidão, o que a
faz mais livre. E foi justamente esse senso de individualismo nacional que ensinou
aos clãs primitivos a se dizerem descendentes dos bichos: para que pudessem fazer
sua eclosão como uma força de liberdade selvagem490.
Apesar dos trabalhos de Roquette Pinto e de outros lembrados pelo próprio autor, Salgado
afirma o desaparecimento das raças indígenas, algo, aliás, recorrente no interior da cultura
intelectual brasileira à época, mobilizando antes valores simbólicos e sintéticos do que qualquer
empenho em relação às populações indígenas reais. O autor negava se tratar de um “novo
indianismo”, mas da possibilidade e da necessidade de se responder a “angustiosa pergunta”
sobre o destino da civilização na América. O relativismo civilizacional provocado pela
487
Cf. A Revolução da Anta, O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 13 mar. 1927, p. 7.
Apesar de considerado como um texto de 1929 e admitido como manifesto “verdamarelo”, a referência já existia
em 1927, pelo menos, e deve ser vista como um dos primeiros passos contundentes do “modernismo” brasileiro
rumo aos totens indígenas e ultranacionalistas. Sobre datação de “Nheengassú” ver: TELLES, Gilberto Mendonça.
Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro, p. 361.
489
Cf. A Revolução da Anta, O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 13 mar. 1927, p. 7.
490
A Revolução da Anta, O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 13 mar. 1927, p. 7.
488
500
experiência da Grande Guerra ganha no “verdamarelismo” um caráter que, acertadamente, a
historiografia percebeu como sintomas do que constituiria a ideologia do integralismo nos anos
1930491:
O que queremos é um Brasil masculino, que tenha a iniciativa dos atos fecundantes.
Pois há povos masculinos, que fecundam, e povos femininos, que são fecundados.
Como há espíritos femininos, que se emprenham pelo ouvido. Queremos, pois, um
Brasil brasileiro. Não falo isto por patriotismo, mas por humanidade. Pois vejo que
a civilização ocidental europeia faliu. Já nada se espera dela. Temos (e quando falo
temos quero abranger séculos futuros), temos de criar uma civilização em que talvez
o gênero humano seja mais feliz. Isso parece pilhéria, aos espíritos (como a maior
parte dos intelectuais brasileiros), que esperam sempre os resultados do que se dá em
outros países. Mas, creio firmemente que não o é. Ponho uma grande fé na “raça
cósmica” de que fala José Vasconcelos492. Ela poderá dizer a última palavra.
Voltemos à sabedoria da infância. Porque nascermos velhos? A Europa é uma velha
caduca, nós somos filhos do índio como o índio era da anta. E nada temos a ver com
gente estranha. O movimento da anta é de ação. Ação verdamarela de independência.
Sentir diretamente, dizer diretamente. Perder essa noção do ridículo, ministrada por
estrangeiros e inimigos, essa noção que nos fez perder o brio nacional. Não mais
dizermos que somos latinos. Isso é política que nos prende eternamente à Europa. E
onde já se viu caboclo e mulato latino? Acabemos com esse respeito supersticioso
pelas coisas que veem de fora. Sejamos brasileiros, para sermos dignos da
Humanidade493.
Em outras manifestações de Plínio Salgado, a afirmação do irracionalismo de Anta é reiterada,
no sentido de consagrar a ação irrefletida, impulsiva e instintiva. Anta, que nas “questões sociais
e políticas” se dizia passadista, considerava que a “arte nova” expressa nas várias revistas
modernistas envelhecera, não correspondendo mais ao “espírito cultural nacional”. As escolas
surrealistas, a psicanálise e outras perspectivas são vistas como novos preconceitos e “na
impossibilidade de criar uma arte e um novo senso de vida para substituir a essas velharias, ou
baldas, inventamos a Anta. Que é a Anta? Nada”494. Assim, a vontade, o ímpeto da Anta,
constituiria a simbologia perfeita na sua não sistematização, na ação impensada: “Anta é um
grito de independência. É o incêndio das bibliotecas. É a candura virginal e a estúpida violência
dos seres e dos povos nascentes, em função de querer”.
Oswald de Andrade foi dos primeiros a contrariar “Anta” e seus seguidores
491
Cf. ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Totalitarismo e revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987;
VASCONCELOS, Gilberto. Ideologia curupira. São Paulo: Brasiliense, 1979.
492
Importante político e intelectual mexicano, autor de duas obras seminais na reflexão acerca da identidade latino
americana em meio às vanguardas. Segundo Stepan: “Em dois populares e controversos ensaios, Raza Cósmica
(1924) e Indiologia (1925), Vasconcelos desenvolveu a idealização da mestiçagem da forma mais completa jamais
feita até então. Vasconcelos imaginou a América Latina como palco da ascensão de uma nova era dominada por
uma raça nova e ‘cósmica’. Seria nova por representar o estágio final da formação da raça, quando o momento de
domínio mundial das raças branca e amarela pertencesse já ao passado; seria cósmica porque todas as raças se
fundiriam em uma nova unidade racial; seria latino-americana por ser na América Latina que todas as raças já
estavam presentes e o processo de fusão racial já ia mais avançado. Finalmente, a raça cósmica seria tropical
porque todas as grandes civilizações haviam nascido nos Trópicos”. STEPAN, N L. A hora da eugenia, p. 160.
493
A Revolução da Anta, O Jornal (Segunda Seção), Rio de Janeiro, 13 mar. 1927, p. 7.
494
SALGADO, Plínio. O significado de anta, Festa – Mensário de pensamento e arte, Rio de Janeiro, Ano I, no 4,
1 jan. 1928, p. 13.
501
“verdamarelos”. Suas primeiras invectivas foram no sentido de ridicularizar o movimento,
especialmente no texto “Antologia”, publicado no Jornal do Comércio de São Paulo e todo
feito de trocadilhos com o prefixo “ant” que afirmavam ser “antrasado”, “antipático” e
“antiqualho” o caráter do movimento que não poderia vingar: “Pelo que inda hoje nos irritariam
se não possuíramos mágicos e imunizadores antaclifos antagônicos a bufos de antambas mortas
de seculice e cheirando antontem pelo que antigalho dão o nome à peça com que se seguram as
vergas, quando a enxarcia desbaratada, que tanto Anta se assemelha e é dela semelhanta”495. O
poeta e crítico Tasso da Silveira também ridicularizou o movimento e seu símbolo: “Porque
vara as florestas em linha reta, abrindo caminho, derrubando obstáculos sem nunca desviar-se,
invencível na sua teimosia? Isto é cegueira e não inteligência”496.
As críticas à Anta, porém, não se limitavam à ridicularização. Pelo contrário, havia mais
em jogo. Oswald de Andrade considerou que o “verdamarelismo”, na verdade, seria uma cópia
de suas ideias e que teriam apenas mudado “o título e a maneira de expor. O verdamarelismo
nada mais é que uma contrafacção do pau brasil”497. Também Prudente de Morais, neto, e
Rodrigo de Mello Franco, à época mais “simpatizantes” do “lado pau brasil” do modernismo,
afirmavam que O Estrangeiro era feito de “pastiches do estilo do sr Oswald de Andrade”498.
Denunciava-se antes a “cópia”, ou seja, a falta de originalidade e alguns “erros estéticos” do
que as implicações políticas de tal nacionalismo exacerbado. Aspectos míticos e simbólicos,
como o apelo à origem indígena, o elogio à “barbárie”, ao “primitivo”, a oposição fundamental
do Brasil ao continente europeu, o esforço sintético que afirmasse um caráter nacional etc. eram
antes perspectivas disputadas do que temas em si mesmos refutados por qualquer um dos lados.
Era fator antes de “política literária” do que de engajamentos políticos. O Correio Paulistano,
tanto abria suas páginas para os “verdamarelos” quanto celebrava o aniversário de Oswald de
Andrade adjetivado como “distinto intelectual paulista” que, por seu turno, ia pessoalmente à
redação do periódico agradecer os encômios499. As disputas entre “verdamarelos” e “paubrasil”, entre “Anta” e “Antropofagia”, entre o tupi da unidade brasileira e a união
antropofágica, irão se prorrogar durante anos até assumirem tonalidades mais extremas.
O que surgia, de qualquer forma, era a figura de Plínio Salgado como intelectual
capacitado a formular sínteses convincentes acerca da realidade nacional, ainda que estas
pudessem significar, em última análise, “nada”. O irracionalismo posto em curso aumentava o
495
Cf. MIRAMAR, João. Antologia. In: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas, p. 571-573.
SILVEIRA, Tasso da. A anta e o carrapato, Festa – Mensário de pensamento e arte, Rio de Janeiro, Ano I, no
3, 1 nov. 1927, p. 3.
497
ANDRADE, Oswald. Apud. RICARDO, Cassiano. Caçando papagaios, Correio Paulistano, São Paulo, São
Paulo, 2 abr. 1927, p. 3.
498
Cf. ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Prosa “verde amarela”, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 fev. 1927, p. 4.
499
Cf. Crônica Social. Agradecimentos ao “Correio”, Correio Paulistano, São Paulo, 14 jan. 1927, p. 4.
496
502
valor da ação em detrimento da reflexão racional, o apelo ao símbolo, o uso de certas fórmulas
de determinadas vanguardas a fim de fazer da imagem direta e sintética o fundamento da
consciência comum revelaram seus usos políticos nos anos seguintes. Tristão de Athayde, em
1927, não incluíra o artigo sobre O Estrangeiro na primeira reunião de seus escritos enfeixados
sob o título Estudos500 com produções do ano anterior. Talvez temesse ser tomado por um
“verdamarelo”. É difícil saber, porém, o porquê de o artigo nunca ter sido publicado em livro501.
Outro evento em 1926 que contribuíra para a afirmação das divisões no interior dos
escritores modernistas brasileiros foi a visita que Marinetti fizera ao país502. Trata-se de um
verdadeiro acerto de contas. Afinal, era o pai do propalado futurismo, tantas vezes associado
aos ou assumido pelos modernistas, que agora podia ser visto em carne e osso. No Teatro Lírico
do Rio de Janeiro, a conferência de Marinetti, que contou com a apresentação de Graça Aranha,
foi marcada por vaias, gritos e reações entusiasmadas da plateia. Conforme narra um cronista:
De um lado, a rapaziada do “poleiro” cantava: Maria, ó Maria... / Maria Marinetti /
Teu pai usa navalha, / Tua mãe usa gilete. Do outro lado, vinha a resposta: Maria,
ó Maria... / Maria Marinetti / Teu pai vai de automóvel / Tua mãe vai de charrete503.
Em meio à plateia exaltada, Graça Aranha afirmava o que o “espírito” da escola italiana poderia
trazer à realidade brasileira, não excluindo o horizonte político:
Na Itália o futurismo é ocidental e por isso patriota, nacionalista, militarista e
imperialista. Na Rússia é oriental, comunista, universalista, místico, pacifista e
terrorista. No Brasil não será nem fascista nem comunista. Será coisa nossa, uma
fórmula que corresponda à nossa espiritualidade libertada de todos os terrores, e à
nossa suprema realidade. É preciso principalmente que exista, que seja. É preciso
que o movimento, já eficiente na arte, se alargue e renove o Brasil. Para a análise
transcendente, fascismo e comunismo valem igualmente como resultantes do
movimento que revolveu a inteligência e o coração dos homens e com ideias novas
está reconstruindo o mundo.
Marinetti lera poesias “passadistas” e “futuristas” sempre em meio a gargalhadas, assovios,
aplausos e vaias. Ao final, o italiano dissertara sobre a pintura futurista e o fascismo italiano,
“fazendo uma exortação à mocidade brasileira, em cujas vaias à sua pessoa, ele vê uma
manifestação da força, de alegria e de saúde. E é isso mesmo que o futurismo ensina”.
Marinetti excursionou com sua esposa pelo morro da Favela, hoje conhecido como da
Providência, acompanhado por A. Chateaubriand, Saboia Medeiros, Maria Henriqueta Barroso,
Helena Medeiros, Rodrigo de Melo Franco e Zózimo Barroso Filho. Também faziam parte da
comitiva dois soldados da polícia militar carioca, além de cinco moradores do local que
500
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Estudos. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1927.
Algumas vezes, o crítico foi solicitado por autores a não publicar em livro algum rodapé por motivos diversos.
Não foi o caso de Plinio Salgado que respondera à crítica de maneira muito favorável, dizendo-se “honradíssimo”
pelo “belíssimo rodapé que dedicou ao ‘Estrangeiro’, no qual, mais uma vez, e como sempre, se revela uma
superior visão estética e social”. Carta de Plínio Salgado a Tristão de Athayde, 1/08/1926, acervo CAAL.
502
Sobre a visita do intelectual italiano ao país ver: BARROS, Orlando de. O pai do futurismo no país do futuro:
As viagens de Marinetti ao Brasil em 1926 e 1936. Rio de Janeiro: E-papers, 2010.
503
Cf. A estreia de Marinetti no Brasil, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 mai. 1926, p. 3.
501
503
ciceronearam os visitantes. A reportagem foi narrada por Afonso Arinos de Melo Franco504 que
assim descrevia o caráter do morro carioca: “Na Favela existe o pitoresco da paisagem aliado
ao pitoresco dos costumes. Alpes da miséria sem a serenidade da neve e sem o conforto dos
Palace. Ao vê-la, leprosa cheia de orgulho, pode-se mesmo declamar, imitando Manoel
Bandeira: ‘Morro da Favela, muito mais Suíça brasileira do que Minas Gerais’”505. Quando
atingiram o pico da Favela, encontraram certo “Zé da Barra”, qualificado pelo visitante italiano
como o “piccolo Mussolini de questa colina”, e entraram na pequena sede da Sociedade
Dançante dos Sujos e Limpos, onde o “‘choro’ toca na varanda e todos os convidados e sócios
da agremiação ficam no terreiro”. Raras parecem ter sido as falas do italiano sobre tudo o que
via. Uma passagem, porém, é ilustrativa. Do alto do morro, na sede dos Sujos e Limpos,
contemplando a paisagem das luzes da cidade abaixo, Arinos descreve a seguinte situação:
Dir-se-ia um jardim suspenso... os jardins suspensos da Babilônia... Mas aquele
cheiro não provinha seguramente de flores... aquele perfume estonteante tinha outra
origem... Essa varanda não era um jardim. E Marinetti concluiu sentenciosamente:
“É bello: são as latrinas suspensas da Babilônia...”
A relação do futurismo com o fascismo evidenciou-se na viagem que Marinetti fizera
à cidade São Paulo. O hotel em que o italiano se hospedara foi apedrejado por um grupo de
pessoas que protestavam contra a presença do criador do futurismo. Houve disparos de revólver,
mas sem ocorrência de fatos mais graves. A manifestação exaltada seria oriunda “tão somente
das paixões políticas entre fascistas e antifascistas da colônia italiana de S Paulo, visto ser
considerado o sr Marinetti como agente do fascismo”. Embora o tenha desmentido, o rumor
correra pela cidade e na madrugada, “depois de Marinetti haver realizado a sua conferência no
Cassino Antártica, um grupo de exaltados resolveu fazer o seu ‘enterro’ e dirigiu-se, conduzindo
o caixão mortuário, até a frente do Hotel Esplanada [...] fazendo grande algazarra”506.
Além das apresentações no Rio de Janeiro e em São Paulo, Marinetti fez discursos
transmitidos pela Rádio Sociedade precedidos por apresentação de Ronald de Carvalho, de
maneira que, desta feita, “a sua conferência foi ouvida não só pelo mundo culto e elegante, que
se achava na sede daquela sociedade, como por todas as pessoas que possuem em suas casas
esses aparelhos de radiofonia”507. Esta apresentação no rádio parece ter sido uma das mais bem
sucedidas, pois, segundo o relato de um cronista, foi “a sua grande noite, ouvido, como foi, pela
guarda avançada dos seus discípulos e por um auditório onde havia figuras de destaque como
o vice-presidente da República, ministros, cientistas, médicos, representantes das artes das
letras, jornalistas e a elite do mundanismo carioca”.
504
Tal autoria foi afirmada apenas na década de 1930 em um texto de Assis Chateaubriand. Cf. BARROS, Orlando
de. O pai do futurismo no país do futuro, p. 69.
505
Cf. No Monte Sinai, de onde descem as leis da malandragem... O Jornal, Rio de Janeiro, 19 mai. 1926, p. 5.
506
Cf. Marinetti em São Paulo, O Jornal, Rio de Janeiro, 30 mai. 1926, p. 16.
507
Cf. Marinetti falou pelo rádio, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 mai. 1926, p. 16.
504
Quando retornara das visitas à Argentina e ao Uruguai, Marinetti esteve novamente no
Rio de Janeiro e, dentre outras coisas, falou sobre a capital carioca e a cidade de São Paulo.
Além do clima “admirável”, da “natureza de uma situação incomparável”, do “espírito
notavelmente progressista” e de estar “destinada ser uma metrópole dinâmica e sempre
formosa”508, a cidade do Rio é cercada de elogios. Inclusive de um que, à primeira vista, parece
contrariar os anseios urbanistas, industriais, velocistas, “maquínicos” tão ao agrado do futurista
que considerava que “apesar do intenso trânsito, e da extraordinária quantidade de automóveis,
nunca senti meu olfato ofendido por essas emanações nauseantes de gasolina e asfalto fervido,
que criam nas outras metrópoles do mundo uma atmosfera especial, pesada, opressiva e malsã,
que sufoca e enjoa”. Acerca do ambiente cultural, o italiano diz o seguinte:
[...] surpreendeu-me observar no Rio um intenso movimento literário e artístico,
tendo a seu serviço formosas inteligências e capacidades muito acima do comum. O
futurismo é compreendido e defendido por uma legião de escol, igualmente brilhante
na prosa e no verso, Graça Aranha e Ronald de Carvalho, primam entre esses
precursores da arte nova.
Acerca da capital paulista, Marinetti lembrava a maneira como foi recebido naquela cidade,
sem, porém, deixar de revelar o que mais lhe chamara a atenção:
Mal grado a tempestuosa recepção com que me acolheu S Paulo, esta cidade deixoume também excelentes impressões. S Paulo é uma metrópole artificial, elevada por
um esforço incessante, titânico, que soube deduzir formas belas de um ambiente
hostil. É uma cidade feita pela vontade, pelo desígnio férreo e tenaz, que não conhece
obstáculos, e vence as circunstâncias. [...] S Paulo é a cidade moderna por excelência,
fecunda e forte, bela da beleza viril das coisas úteis. [...] Encontrei em S Paulo uma
vanguarda de intelectuais que muito honram as letras brasileiras. Conservo grata
recordação de cintilante grei de futuristas paulistanos. Destaco, sobretudo,
Guilherme de Almeida e a Sra. Olívia Penteado.
As reações provocadas pela visita de Marinetti foram variadas. Como mostramos
acima, mesmo grupos sociais que nada tinham que ver com questões de estética e arte
modernista fizeram protestos contra o italiano, associando-o ao regime de Mussolini. No
espírito das provocações da plateia carioca, o humorista Juó Bananère também ridicularizou o
futurismo. Com sua linguagem caracterizada pelo “dialeto ítalo-paulista”, que seria a maneira
como parte dos habitantes de São Paulo se comunicavam, Bananère narrava a visita do italiano:
As minhas impressó sopra do o Marinetti?” [...] Io axo chi u Marinetti é un numaro!
Fui illo chi inventó u futurisimo, u Mussolino i, a modinha da Maricota sai da xuva.
A primiera cumferenza che illo fiz inzima du u Gazini fui una billeza! Aparicía a
fêra du largue du Aroche. Tenia batata, tumato, banana, pexe podre uova con
pintigno, ecc ecc che caia du çeu quano u Marinetti aparlava chi até u Xico du
Butteghino che stava lá giunto cumigo vuleva descê du gallinhêro p’ra agiuntá, […]
O futurismo é una tioria literária chi manda aprantá batata tuttas tradiçó, a storia, u
passato, i tutto chi é veglio. Tutto chi é veglio non presta, i a genti devi agiugá fora.
U paie, a maia i o avô do a genti quano fica veglio a gente devi turcê u piscoço i
agiugá fora tambê. U P.R.P. e u Gorreio Baulistano chi já stó podri di veglio precisa
508
Marinetti, de regresso da Argentina e do Uruguai, está novamente no Rio, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 jul.
1926, p 16.
505
agiugá fora tambê. Tambê a Ripubliga giá stá molto avacagliada, pur isso axo
migliore mandá abuscá un figlioti du Mussolino p’ra toma gonta distu i mandá
s’imbora u Bernardes chi stá moito visto giá509.
Mais seriamente, o poeta Oswaldo Orico dizia que o futurismo já era algo envelhecido e que a
viagem de Marinetti era “o clássico passeio monetário à América”. Segundo Orico:
A nova inteligência brasileira, que não está representada no “grupinho” que
pretendeu representá-la, vê em Marinetti um simples cavouqueiro do lucro
fiduciário. Nada mais. Ele é um inimigo do modernismo, porque tenta impedir a
evolução natural de todas as correntes com a velha e primitiva aspiração com que o
moveu510.
De qualquer forma, lançou-se à época a obra Futurismo: manifestos de Marinetti e seus
companheiros que trazia um prefácio de Graça Aranha511.
Tristão de Athayde também se manifestou sobre a visita de Marinetti ao Brasil e sua
significação geral no interior da cultura intelectual brasileira. De um modo geral, o crítico abria
sua argumentação com o uma apreciação que sintetiza a sua perspectiva:
Um homem com quem se tem inimigos comuns é quase um amigo. É o que se pode
dizer de Marinetti. E esses inimigos comuns o que são senão o comodismo, a
facilidade, o diletantismo, o decadentismo, o d’annunzianismo faisandé, o ceticismo
sibarita, à France, a passividade, o titubeamento, a indolência, o culto beato dos
mortos, do passado estático, do adjetivo, das formas convencionais, do falso
classicismo, do ornamental, do acadêmico de tudo o que nos mergulha na inação
burguesa ou nas deliquescências de um romantismo caduco?512
Dessa forma, importaria antes incorporar o “espírito do futurismo” do que as suas realizações
concretas. Repudiar a “escola” e considerar o ímpeto. Reitera-se o mimetismo brasileiro:
Se não fossemos tão atrasados intelectualmente, se não tivéssemos, como sempre
sucedeu no passado, de esperar vinte anos para que todos os movimentos novos
atravessassem o Atlântico, já poderíamos ter ultrapassado o futurismo, como hoje o
faz o maior número das inteligências. Mas o que importa aqui é o que somos e não
o que deveríamos ser.
O crítico procura, assim, depurar o futurismo de seu aspecto dogmático, escolástico, incisivo
no seu “ismo” definidor. Também o gosto pelas abstrações expressas nas invocações dos
substantivos maiúsculos iria de encontro ao realismo reivindicado por Tristão de Athayde:
Outro defeito do Futurismo é a maiúscula. Um gosto excessivo de maiúsculas. Logo,
de abstrações. O que em política representaram para o século passado a Liberdade,
a Justiça, o Progresso, a Humanidade, a Ciência, representariam para uma literatura
brasileira fundada na dogmática futurista a Palavra, a Liberdade, a Enharmonia, o
Dinamismo, a Geometria, etc., etc. Coisas abstratas. Contendo cada uma delas uma
parcela de verdade. Mas sistematizadas. Enrijecidas. Não podendo por muito tempo
prender a nossa atenção, o nosso gosto, a nossa fé.
Além disso, o futurismo seria um movimento nacional que se tornara internacional, dirigindose ao “Homem”, proclamando-se universal, ele desprezaria as condições locais, de época e
509
Cf. CHATEAUBRIAND, A. A excursão de Marinetti a São Paulo. O Jornal, Rio de Janeiro, 10 jun. 1926, p. 1.
ORICO, Oswaldo. O fenômeno Marinetti, O Jornal, Rio de Janeiro, 30 mai. 1926, p 2.
511
Cf. MARINETTI, Filippo Tommaso. Futurismo: manifestos de Marinetti e seu companheiros. Rio de
Janeiro, Pimenta de Mello, 1926.
512
ATHAYDE, Tristão. Marinetti I, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 mai.1926, p. 4.
510
506
singulares tornando-se uma espécie de “Esperanto artístico”513.
O maquinismo do futurismo também é visto como algo negativo e exagerado. Embora
a vida humana seria, cada vez mais, marcada pela presença de máquinas, estas seriam tanto
libertadoras quanto escravizadoras, mas, acima de tudo, responderiam ao mundo humano.
Tristão de Athayde esposa uma concepção libertadora da máquina, que levaria à “independência
do homem”: “A maquinização do homem é um estágio transitório do maquinismo moderno. O
futuro verá a humanização da máquina. Não me parece [...] que o futurismo tenha estudado bem
profundamente a máquina, quando lhe atribui uma revolução na natureza humana”. Assim, da
mesma forma que se deveria incluir a “história das máquinas” na história da arte, também não
se poderia deixar de considerar a liberação do homem através da maquinização da vida.
A concepção de tempo linear do futurismo também é criticada. A sua crença no
progresso, na evolução e na celebração do presente significaria uma “simplificação absurda da
complexidade de nossa posição no universo”. Uma vez que não se pode deixar de ser de seu
tempo, não faria muito sentido se vangloriar da atualidade, residindo a complexidade, na visão
do crítico, em “ser também de todos os tempos. E lutar contra a irreversibilidade”. Questionase, ainda, o aspecto demagogo do futurismo, que seria uma orientação voltada para as massas:
O futurismo é a arte transportada para o meio da rua, para o meio do povo. É a
vingança do vulgo contra uma arte de salões, de que ele vivia afastado. Daí o mal
em que degenera tudo que se apoia nas paixões das massas. A mediocrização. A
vulgaridade. A insinceridade. A desordem pela desordem. O barulho, a troça, a
improvisação. A substituição da qualidade pela quantidade. A ilusão do valor pelo
ruído. A anarquia dos méritos. E sobretudo – o cabotinismo. A desforra dos
charlatães.
As qualidades do futurismo residiriam, justamente, no lado reverso de seus defeitos
apontados. Assim, valoriza-se o seu ímpeto para as afirmações, contra os ceticismos, a sua
orientação decisiva e sem maiores sutilezas de pensamento:
[...] lição de vigor e de precisão. Combate o romantismo palavroso, o
sentimentalismo choroso, o simbolismo decadente, o velho preconceito de que
poesia é sinônimo de nostalgia. E renova o gosto da verdade precisa. Da visão direta.
Da deformação enfim, mesmo da deformação sintética para condensar e reforçar as
realidade esparsas e dispersas.
A disposição para ação incorporada no futurismo, o seu lançamento à vida e à ação seria útil
num futuro próximo de combates monumentais que oporiam ocidente e oriente, significando,
no caso, a contenção da expansão comunista pelo mundo:
O mundo continua em luta e prepara-se para lutas ainda mais terríveis. A civilização
ocidental, (e sobretudo as classes intelectuais, as grandes corruptoras, as grandes
artificializadoras), se continuar pelo caminho em que seguia nada mais será, em
pouco tempo, do que a mais fácil das presas ao mundo oriental que ele procurou
explorar e a quem incutiu o segredo da sua força e das suas fraquezas. O Futurismo,
como elemento auxiliar de outras forças saneadoras do espírito ocidental, a maior
das quais é o espírito militante e sempre novo da Igreja – procurando incutir nos
513
ATHAYDE, Tristão. Marinetti I, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 mai.1926, p. 4.
507
homens o sentimento esquecido de otimismo consciente, de confiança em si, de amor
à vida e de desdém pela morte, poderá auxiliar a renovação de forças de uma
civilização em decadência, de salvação hipotética, em que não faltam os profetas e
os sinais de aniquilamento514.
Assim, a força do futurismo seria como aquela da Igreja no esforço de assegurar a continuidade
da “civilização ocidental”.
O apelo ao tempo presente e a revolta contra o passado marcariam a aceitação do
mundo moderno, implicando uma disciplina pessoal, uma contenção da liberdade, em nome da
ação contundente. Marinetti reconheceria as qualidades de animal do ser humano, bastando ver
“a precisão e a energia com que ele tempera a ponta de aço da vontade, com que ele rebate as
indolências da passividade, com que ele pretende justificar a sua arte pela sensação e pela
razão”. O combate absoluto ao passado, apesar de impossível, e “fazer rir”, guardaria, porém,
um “convite à reflexão” a “separar a veneração beata do passado – que é a falsificação corrente
que nos impõem – da compreensão do seu espírito, o que é mais difícil. E indispensável”. Já a
“demagogia” do futurismo poderia ser vista como a destruição das “torres de marfim”, um meio
de se “impedir os isolamentos artificiais, de pôr a arte diretamente em contato com a vida”.
O que o crítico acaba por valorizar é a “vitalidade” do futurismo que tornará fecunda
a sua passagem no interior da cultura intelectual brasileira. Assim, o “marinettismo” seria útil
pela ação “galvanizadora de hesitações, saneadora de anacronismos, vitalizadora de uma
literatura corroída de decadência”. Não se trataria da submissão à “disciplina futurista”, nem à
“estrutura clássica”515. Cada povo teria o seu “clássico” e, no caso de alguns, poderia mesmo
ser o romantismo. Assim, na situação brasileira:
Para nós, só o nativo é clássico. O sadio, o forte, o bárbaro mesmo, se quiserem
contanto que não se dê a esse termo um falso senso de indianismo artificial ou de
anarquia intencional. O único indianismo que podemos admitir será o euríndio. O
elemento de fusão das raças, de embriaguez do verde, de aspereza da terra dura. De
vulgaridade da gente. De violência da civilização incipiente. De nostalgia do sangue
herdado. Só essa massa em ebulição viva, onde alguns mais cultos, mais avançados,
menos iludidos de modernidade presente e de modas efêmeras (isto é, de
esquecimento do futuro), já procuram os traços de ordem do espírito, única eterna só esse “courant vital” de que falava Balzac, em sua energética criadora – só essa
massa de energias vivas e novas pode constituir o fio condutor de uma ação nossa,
sincera e permanente e não apenas original de aparência.
Tristão de Athayde lança mão de uma oposição linguística que guardaria o potencial
daquilo que ele passara a reconhecer como fundamental à cultura intelectual brasileira:
“Possuem os alemães duas expressões para designar a oposição de estilos: Kraftsprache, a
linguagem de força, e Mondsprache, a linguagem enluarada. Eis aí o que devemos procurar, e
o que devemos evitar”516. A reflexão sobre o modernismo não poderia seguir as categorias
514
ATHAYDE, Tristão. Marinetti I, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 mai.1926, p. 4.
ATHAYDE, Tristão. Marinetti II, O Jornal, Rio de Janeiro, 30 mai.1926, p. 4.
516
ATHAYDE, Tristão. Marinetti I, O Jornal, Rio de Janeiro, 30 mai.1926, p. 4.
515
508
politicamente figuradas em “girondinos” e “jacobinos”. A essa altura, faz-se o apelo a condições
de existência, disposições intelectuais e visões de mundo que compreenderiam toda a
expectativa de uma situação angustiante de uma civilização em crise. Não se trata da reflexão
racional acerca de regimes ou posicionamentos políticos segundo os exemplos que a história
podia conceder e a teoria política analisar. A ideia de um período de fundação, de criação de
uma nacionalidade, invocava uma situação primordial de lançar-se no mundo. A noção de
“Kraftsprache”, cara ao romantismo alemão, traria justamente essa reivindicação de uma língua
instituinte, em que o adjetivo “força” entendido tanto no universo da natureza quanto no da vida
humana faria da linguagem uma entidade caracterizada pela “potência”, “eficácia”, “virtude”,
“vigor”, pela energia para “engendrar e desenvolver a vida”, pela capacidade de “portar consigo
a modificação, de progredir do estado estático ao movimento” e, principalmente, da força como
“aquilo que toca a vida da alma e emerge da interioridade do indivíduo, que lhe faz aproximar
do coração da vida”517.
Dessa forma, o conceito ou a noção que passa a servir como parâmetro de compreensão
da realidade passa a ser não o de “realismo”, ainda bastante marcado por sua associação ao
“naturalismo” e ao “cientificismo” do século XIX, mas o de “vida”. A partir de tal condição, o
“vitalismo” será uma visão de mundo fundamental à crítica civilizacional e à abertura de um
horizonte crítico que permitirá pôr em xeque várias das concepções racionalistas tradicionais
acerca das realidades políticas e culturais. Tal “virada” epistêmica no interior da cultura
intelectual brasileira é fundamental para se compreender como que, nesse período de transição,
a vontade passa a superar a razão, a ação o ceticismo e a decisão a angústia. Se, nas reflexões
sociológicas e políticas, procurava-se o regime que se adequasse à “realidade nacional”,
superando-se a “importação constitucional” que caracterizaria a envelhecida República, em que
conceitos como democracia, liberalismo e liberdade tornavam-se cada vez mais imprecisos e
“importados”; nas perspectivas culturais e artísticas, que não estavam muito distantes das
primeiras, fazia-se da síntese, do mito, do ícone, da “expressão nacional” a maneira
privilegiada, menos de se conhecer tal realidade segundo a constituição de uma historiografia,
por exemplo, do que de intuí-la, simbolizá-la e reduzi-la a um motivo geral, uma imagem, que
permitiria expressar o “caráter” de todo o país. A suspensão do substantivo “Brasil” provocou
a corrida e a disputa intelectual pelas definições sintéticas, submetidas antes ao princípio de
ação do que o de reflexão.
517
Cf. ABRAHAM, Bénédicte. Les concepts de ‘force’ et d'‘énergie’ en Allemagne à la lumière des définitions
des dictionnaires entre la seconde moitié du XVIIIe siècle et le début du XIXe siècle », e-CRIT 3224 [en ligne],
mis en ligne le 10 janvier 2010. URL : http://e-crit3224.univ-fcomte.fr
509
Entre civilizações: América, Europa e África na cultura intelectual
brasileira dos anos 1920.
Era a primeira vez que as duas iam ao morro do Castelo. [...]
Velho caboclo, pai da adivinha, conduziu as senhoras à sala. [...]
a consulta era só de uma – com o número 1.012. Não há que
pasmar o algarismo; a freguesia era numerosa, e vinha de muitos
meses. Também não há que dizer do costume, que é velho e
velhíssimo. Relê Ésquilo, meu amigo, relê as Eumênides, lá verás
a Pítia, chamando os que iam à consulta: “Se há aqui Helenos,
venham, aproximem-se, segundo o uso, na ordem marcada pela
sorte”... A sorte outrora, a numeração agora [...] o pai roçava os
dedos na viola, murmurando uma cantiga do sertão do Norte:
Menina da saia branca, / Saltadeira de riacho...
Machado de Assis, Esaú e Jacó, 1904.
Um carnaval sambado dá a ideia de que recorremos
neste século à civilização africana para nos
divertirmos. Sem arte.
Alfredo da Rocha Viana Filho (Pixinguinha).
Ao acompanhar os eventos da Grande Guerra do outro lado do Atlântico, vários
intelectuais brasileiros tomavam partido, como Mário de Andrade fizera no seu primeiro livro,
Há uma gota de sangue em cada poema..., lançado em 1917. Dividiam-se entre “aliadófilos” e
“germanófilos”, como uma vez ilustrara Tristão de Athayde: “[...] nisto vem a guerra. Nós
ficamos aqui, comodamente, de palanque a torcer pelos boches ou franciús, a nos esgoelarmos
como meninas histéricas no Fluminense e no dia 11 de novembro arvoramos o tricolor,
enfaticamente”518. Após o fim do conflito, o realismo nas relações internacionais era a
constatação da inevitabilidade do imperialismo. No interior da cultura intelectual brasileira,
obras como Os postulados da Guerra (1919), da autoria de Santos Neto, começavam a
caracterizar o debate no pós-guerra que se viu enredado na oposição entre a “cultura” alemã e
a “civilização” francesa. Santos Neto defendia a causa alemã, na qual enxergava uma “raça de
predestinados” e uma “pátria apolínea”. O crítico denunciara o “darwinismo social alemão” do
autor que preconizaria uma “fatalidade do expansionismo germânico”. Frente a tal perspectiva,
ele lamentava ver que o “prestígio da força consegue levar homens independentes a uma
admiração besta e cega. São eles os verdadeiros adversários da causa alemã. Todo fanatismo
desperta antipatia, ao menos nas almas equilibradas e amigas da verdade”519.
As teorias de superioridade racial não poderiam ser reproduzidas acriticamente, pois
“aceitar sem discussão – como postulado – a superioridade de uma raça, de um sistema de
governo, de uma cultura, de um imperialismo, é renegar toda a liberdade de pensamento e todo
518
519
ATHAYDE, Tristão de. A salvação pelo angélico, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 out. 1925, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 12 jan. 1920, p 4.
510
o carinho da verdade”520. Assim como não se deveria condenar todo um povo pelos “desvarios
do governo”, também não seria aceitável “fechar os olhos aos males provocados pelas mais
brilhantes civilizações”. A guerra revelara até onde poderia chegar os ímpetos nacionalistas que,
em última análise, levariam à ruína da “civilização”: “Se triunfar a deplorável doutrina de que
‘para as nacionalidades como a Alemanha, a guerra é uma condição primordial é sua existência’,
poderemos então falar, sem ênfase nem retórica, na falência da civilização, cuja essência deve
ser a expansão dos fortes sem lesão dos fracos”.
Firmar uma “expansão” “sem lesão aos fracos” seria característica dos imperialismos
“positivos”, uma vez que o “imperialismo é para as nações o que a sociabilidade é para os
homens”521. A Grande Guerra é associada ao desequilíbrio na corrida imperialista:
A Alemanha chegou atrasada, e quando procurou o seu lugar ao sol já encontrou tudo
ocupado. [...] À testa das nações imperava a Inglaterra, cujo espírito prático e
essencialmente construtor edificara lentamente o mais formidável império de todos
os tempos. Chegando a Alemanha, com sede insaciável de expansão [...] não se
resignou à situação secundária, incompatível com o seu valor e a sua ambição.
Cresceu, mas como só podia crescer à custa dos outros, que haviam sido em geral
mais felizes, no seu tempo, por encontrar o mundo desocupado, cresceu
violentamente ferindo, com seu imperialismo militarizado, situações já adquiridas.
A imagem de um “mundo desocupado” revela o eurocentrismo que este tipo de perspectiva
“realista” ainda mantinha em seu horizonte reflexivo.
Os posicionamentos do pós-guerra podiam ser divididos entre “sentimentalistas
conservadores”, “realistas” e “neo-sentimentalistas”. Os primeiros guardariam todo o “lirismo
generoso e o ódio inflexível dos dias iniciais da guerra: julgando pelo coração, pelo hábito ou
pelos preconceitos, continuam a fixar no Reno a fronteira da liberdade e prenúncio da
barbaria”522. Já os segundos seriam os que viram os “últimos anos” como “seladores
implacáveis de ilusões e, se alguma lição aproveitaram da catástrofe, foi uma consideração mais
justa de todos os valores nacionais, e sobretudo uma condenação inapelável contra a guerra,
símbolo mais perfeito da estupidez humana”. Os terceiros seriam marcados por “uma reação
natural e ingênua contra os primeiros, pretendendo apenas inverter a ordem dos nossos
sentimentos, sem na essência os alterar”. Estes últimos são os germanófilos que, como Assis
Chateaubriand, autor do livro A Alemanha, defendiam que esta nação se acharia “inteiramente
corrigida do imperialismo de outrora, que a democracia socialista é um fato que a monarquia
não conseguirá desbancar, que o militarismo está arquimorto, que a mentalidade dominante é a
do cumprimento de todas as obrigações assumidas”523 no Tratado de Versalhes.
520
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 12 jan. 1920, p 4.
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 11 set. 1921, p. 1.
522
ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 mar. 1922, p. 1.
523
CHATEAUBRIAND, Apud. ATHAYDE, Tristão de. Vida literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 mar. 1922, p.
1.
521
511
São os segundos, os realistas, porém, que mais levam a cabo o que nos interessa nessa
análise. Afinal, eles viam na guerra o fim de uma “ilusão” e lamentariam o fato de que entre
“1871 a 1919 não tenha a humanidade progredido moralmente”. Pelo contrário, a Guerra
explicitara o quão ilusórias eram as ideologias do progresso e do desenvolvimento universal
humano. Segundo o crítico, “todas as guerras produzem uma revisão de valores. Esta nos
obrigou a cogitar de nossa terra, com mais interesse e carinho”524. Tal “revisão de valores”
torna-se o centro das preocupações políticas, estéticas, sociais e culturais na reflexão crítica.
Neste sentido, as ideias de civilização, cultura e barbárie passam por ressignificações
importantes. De maneira geral, deve-se notar uma mudança sensível do horizonte civilizacional
que caracterizara o período da Proclamação da República e o momento posterior à Grande
Guerra. Esquematicamente, destaca-se que entre o fim do século XIX e meados dos anos 1910,
o Brasil teria experimentado uma “inserção compulsória na Belle Époque”, qual seja,
importando de maneira brusca e improvisada modos de viver e apreender o mundo vindos dos
países europeus, especialmente da França525. O conceito de civilização era unívoco, o caminho
para o progresso era um só e o seu destino era sabido de antemão: a europeização dos costumes
e da vida comum. Apesar de ser um país independente, o Brasil, segundo a cartilha do
pensamento ocidental do período, precisaria de reformas radicais para alcançar a tão sonhada
civilização. Não havia, de fato, muita coesão sobre quais reformas deveriam ser essas. A Grande
Guerra e a Revolução Russa de 1917 pareciam vir por abaixo a ideia razoavelmente consolidada
acerca do triunfo do liberalismo, da ordem capitalista internacional e da estabilidade dos
conceitos de civilização e barbárie.
É neste contexto de “revisão dos valores” que a apreensão dos movimentos gerais,
políticos e culturais, que se desenvolveram durante toda a década de 1920 deve ser levada a
cabo. Afinal de contas, a Guerra era europeia, feita no interior do “mundo civilizado” e por
países que, até então, figuravam como os nortes que todo o mundo deveria seguir e almejar se
igualar, adotando desde os respectivos sistemas políticos até a emulação da cor de sua pele. O
conceito de “civilização” perde sua estabilidade associada frequentemente a uma realidade
antes passível de ser apontada como existente em determinados países, do que realmente capaz
de ser reduzida a princípios como o da Razão universal, o Republicanismo político e a
democracia burguesa. De qualquer forma, nos anos 1920, ambos os eixos, ou seja, tanto os
países “civilizados” quanto os princípios civilizatórios foram postos radicalmente em questão:
Enquanto as elites latino-americanas se nutriam quase exclusivamente de referentes
europeus desde as Independências e haviam atravessado a Belle Époque convencidas
de que o coração da civilização se encontrava em alguma parte entre Paris, Londres
524
525
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia. O Jornal, Rio de Janeiro, 28 jun. 1919, p. 11.
Cf. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão, p. 43.
512
e Berlim, elas questionam a cultura cosmopolita de que eram depositárias e
desenvolvem uma reflexão duradoura, destinada a constituir uma nova identidade
nacional ou continental, emancipada de “modelos” europeus, agora considerados
obsoletos e inadaptados às realidades sociológicas da América Latina526.
Em um inquérito feito com as “altas personalidades mundiais” sobre a capacidade de a ciência
evitar o advento de uma guerra no futuro, a maioria se considerou francamente cética. Einstein
respondeu que “nunca a ciência substituirá a boa vontade e o amor ao próximo”527. O francês
Maxime Laubeuf apresentado como o “inventor do submarino”, ao lembrar que tal crença era
propalada há muito e que o próprio Alfred Nobel, inventor da dinamite, acreditava em tal
possibilidade pacificadora da ciência, vê aí apenas uma utopia ultrapassada:
A última guerra forneceu múltiplos exemplos dos terríveis aparelhos empregados
pela primeira vez – aviões, submarinos, gases asfixiantes, jorros de chamas,
bombardeamentos a enormes distâncias por canhões monstruosos... Os não
combatentes não foram poupados. A ciência, nas suas aplicações guerreiras mais
parece a caixa de Pandora que a pomba trazendo o ramo de oliveira.
Também o físico francês Charles Édouard Guillaume, vencedor do prêmio Nobel em 1920,
expressava a mudança de posicionamento em relação à ciência após o conflito sem precedentes:
Nos primeiros anos deste século dizia-se francamente:
_ A guerra tornou-se impossível, porque de tal forma se aplicaram os princípios
científicos ao aperfeiçoamento das armas, e estas se tornaram tão destruidoras, que
nenhum povo se arriscará a avançar sobre outro, nem assumir a sangrenta
responsabilidade desse ato.
A Grande Guerra deu-lhes um desmentido formal. Contra os movimentos nacionais
não há raciocínio que valha.
Em um exemplar da obra do filósofo e matemático inglês Bertrand Russel, Icarus or the future
of science (1925), Tristão de Athayde sublinhou as passagens em que o autor confessava, logo
na abertura do volume, que ele estava convencido de que “a ciência será usada muito mais para
promover o poder dos grupos dominantes do que para fazer os homens felizes. Icarus, tendo
sido ensinado por seu pai Dedalus a voar, foi destruído por sua imprudência”528. Em um de seus
Ensaios céticos, Russel traçava o seguinte panorama da Europa nos anos 1920:
Estamos acostumados a admitir o progresso como correto: aceitar sem hesitação que
as mudanças ocorridas durante as últimas centenas de anos foram
inquestionavelmente para melhor, e que mudanças futuras benéficas com certeza
ocorrerão indefinidamente. No continente europeu, a guerra e suas consequências
abalaram essa crença firme, e os homens começaram a olhar para a época anterior a
1914 como idade de ouro, que talvez nunca torne a ocorrer por séculos529.
Crenças seculares como a da possibilidade de a “Ciência” se tornar um princípio maior
e orientador de um mundo em constante progresso tinham na catástrofe da guerra a prova de
seus erros. A ideia de decadência passou a ser tão importante quanto a de progresso, assim como
526
COMPAGNON, O. O adeus à Europa, p. 18.
Cf. Uma “enquete” sensacional. Poderá a ciência contribuir para a supressão da guerra? O Jornal (SEGUNDA
SEÇÃO), Rio de Janeiro, 2 mai. 1926, p 1.
528
Cf. RUSSEL, Bertrand. Icarus. The future of science. Third impression. London : Kegan Paul, Trench, Trubner
& Co., 1925, p. 5. Acervo CAAL.
529
RUSSEL, Bertrand. Ensaios céticos. Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 95.
527
513
o conceito de civilização assumia um caráter plural e, ainda, suas oposições não se referiam
apenas à barbárie, mas também, à “cultura”. Trata-se de um contexto intelectual e cultural
extremamente complexo, no qual, porém, é possível delinear análises, posicionamentos e
orientações que começam a ganhar grande relevância. Em uma visita ao Brasil em 1926, o
crítico e escritor francês Paul Hazard comentava que “a guerra ocasionou na sociedade francesa
um completo transtorno, um mal estar geral, e consequentemente uma grande ânsia para uma
situação mais favorável, e um certo horror pelo passado”530. Talvez por terem sido derrotados
no conflito, são os intelectuais alemães os que mais dramatizam o momento pós-bélico. A obra
de Oswald Spengler, O declínio do Ocidente (1918-1922), fez um enorme sucesso e teve grande
repercussão na Europa e nas Américas531. Suas leituras são variadas, tanto à época, quanto na
historiografia das ideias. A afirmação da variedade civilizacional, cultural e humana era um dos
pontos do olhar de Spengler:
[...] em vez desse quadro desolador de uma história linear do mundo [...] eu vejo o
espetáculo de um grande número de poderosas culturas – cada uma delas florescendo
com pujança antediluviana do seio de uma paisagem-mãe, à qual cada uma continua
estreitamente ligada, no decorrer de toda a sua existência, cada uma imprimindo a
sua própria forma ao seu material – a humanidade –, cada uma tendo as suas próprias
ideias, as suas próprias paixões, a sua vida própria, o seu próprio querer e sentir, a
sua própria morte. [...] Estas culturas, seres vivos de categoria superior, crescem com
a sublime falta de finalidade das flores que crescem no campo, e, como as plantas e
os animais, fazem parte da natureza viva de Goethe e não da natureza morta de
Newton. Vejo na história do mundo um quadro em eterna formação e transformação,
o quadro de um maravilhoso nascer e perecer de formas orgânicas532.
As civilizações, assim, deveriam ser consideradas a partir de sua “morfologia”, como afirmava
o próprio subtítulo da obra, tratava-se de um Esboço de uma morfologia da história universal.
A noção Gestalt [forma] deveria substituir a de Lei, a partir de uma reflexão segundo a qual:
Lei é o princípio apropriado aos “procedimentos exatos, mortíferos, da física
moderna. A ideia de Gestalt, por outro lado, opera no reino ao mover-se e do vir a
ser”. A primeira busca um domínio “sistemático” das leis naturais e das relações
causais do mundo natural e do social; a última almeja uma “morfologia” do
“orgânico”, da história e do “destino”. Spengler descreve esta última forma de
explicação como “fisiognômica”. O modo sistemático atingiu um plano elevado no
Ocidente e agora está em declínio. O futuro pertence às explicações fisiognômicas.
A própria morfologia histórica de Spengler é uma precursora do futuro, um mapa das
culturas do mundo, traçado do ponto de vista dos princípios míticos em suposta
ascensão 533.
Conforme apontara Jeffrey Herf, a riqueza e atualidade da perspectiva de Oswald Spengler, que
faziam dele um modernista reacionário, não residiriam nessa revalorização romântica da
530
O movimento renovador da literatura francesa. A opinião do sr Paul Hazard, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 jul.
1926, p. 5.
531
Cf. NICHOLS, Roger A, Thomas Mann and Spengler, The German Quarterly, Vol. 58, No 3, pp. 361-374,
Summer 1985.
532
SPENGLER apud BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Dimensões de Macunaíma: Filosofia, gênero e época.
Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas, 1987, p. 73.
533
HERF, J. O modernismo reacionário, p. 67.
514
existência de cada povo, comunidade ou civilização, mas de sua articulação entre tradição e
modernidade, entre cultura e civilização, sem submeter necessariamente os avanços
tecnológicos à conformação de uma sociedade racionalizada e tecnicizada em todos os seus
âmbitos. Assim, se o conflito entre “Cultura” e “Civilização”, que teve reiteradas formulações
nas obras de alemães como Friedrich Nietzsche, Thomas Mann e outros534, tradicionalmente
opunha uma vida tradicional, instintiva e autêntica a uma realidade inovadora, racionalista e
normalizadora, na obra de Spengler haveria mais em jogo:
O aspecto politicamente explosivo da versão spengleriana do romantismo e da
Lebensphilosophie [filosofia da vida] não se situava na reinstauração das dicotomias
da Kultur e da Zivilisation. [...] Mais propriamente, a originalidade de Spengler
situava-se no amálgama de um panorama do passado com uma visão de mito e
símbolo que indicava a possibilidade de uma nova era de política estetizada
amanhecendo no futuro. Mais ainda, ver os avanços da técnica moderna através dos
prismas de semelhante simbolismo transformava os fatos profanos da vida cotidiana
em fatos sagrados e transcendentais535.
No contexto alemão, a filosofia de Spengler garantia aos nacionalistas reacionários a articulação
da tradição política prussiana com os avanços tecnológicos que não deveriam mais ser vistos
como infensos à cultura, mas como passíveis de incorporação segundo a síntese vitalista
spengleriana. Conforme avaliava o filósofo Theodor Adorno, “a verdadeira história transfigurase ideologicamente em história da alma, a fim de colocar o que é antitético e rebelde no homem,
a consciência, sob o domínio cada vez mais completo da necessidade cega”536. A história é vista
antes como um destino do que como um processo que seguiria leis ou princípios de
causalidade537. E o destino de toda “cultura” era o de conforma-se como “civilização”:
A civilização é o destino inevitável de toda cultura. [...] Civilizações são os estados
extremos, mais artificiosos, que uma espécie superior de homens é capaz de atingir.
São um término. Seguem ao processo criador como o produto criado, à vida como à
morte, à evolução como à rigidez, ao campo e à infância das almas como a
decrepitude espiritual e a metrópole petrificada, petrificante. Representam um fim
irrevogável, no qual sempre se chega, com absoluta necessidade538.
Estas ideias ganhavam leituras, concretizações e avaliações interpretativas
variadíssimas. Neste sentido, o trabalho de Donna V. Jones, The racial discourses of life
philosophy - Négritude, vitalism and modernity, é bastante expressivo na exposição dos
processos de apropriação dessas visões de mundo que, em suas reivindicações vagas pelos
direitos à “vida”, pelo “irracional” e até por certo misticismo existencial, permitiriam críticas
radicais às hierarquias culturais e civilizacionais desenvolvidas no discurso de expansão
534
Cf. NICHOLS, Roger A, Thomas Mann and Spengler, The German Quarterly, Vol. 58, No 33, Summer, pp.
361-367,1985.
535
HERF, J. O modernismo reacionário, p. 69.
536
ADORNO apud. HERF, J. O modernismo reacionário, p. 67.
537
“Um tema fascinante em Spengler é o problema do Destino e como ele o opõe ao princípio de causalidade. A
história é pesada com o destino, argumenta ele, mas é livre de leis”. NICHOLS, Roger A. Thomas Mann and
Spengler, The German Quarterly, Vol. 58, No 33, Summer, 1985, p. 370.
538
SPENGLER apud BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Dimensões de Macunaíma, p. 74.
515
europeia pelo mundo. Além disso, Jones destaca o fato de que o “Vitalismo gozou ainda de uma
sobrevida não apenas por novos trabalhos influenciados pelos primeiros Lebenphilosophs
[Filósofos da vida], mas também nas visões de teóricos contemporâneos como Gilles Deleuze,
Antonio Negri, Giorgio Agamben e Elizabeth Grosz”539.
Deve-se, portanto, ter em mente a complexidade de um horizonte simbólico e teórico
que não deixou de fazer parte das legitimações das práticas abomináveis de ação do Estado
segundo critérios da “vida” de uma “raça” em detrimento de outras, mas que foi mobilizado
como meio de afirmação dos movimentos intelectuais, políticos, poéticos e artísticos que
reivindicavam o “direito à vida” da produção intelectual colonial, especialmente a negra e
africana, como parte cultural da humanidade. Dessa forma, conforme esclarece Jones:
O Vitalismo foi, por exemplo, biológico e espiritualista, naturalista e teológico.
Assim como a vida em si mesma pode ser nada além do que um nome acerca de
várias formas de viver, o vitalismo pode ter como essência apenas o nome de uma
série de doutrinas e movimentos assentados na vida entendida de maneira
diferenciada540.
No contexto da Grande Guerra, deve-se ter em mente o processo segundo o qual:
O Vitalismo encapsulava também a mudança na natureza das críticas ao capitalismo.
Nos anos que levaram e sucederam à Grande Guerra, o evento divisor de águas da
modernidade, os termos da crítica social e cultural foram modificados de maneira
decisiva, movendo-se de Marx e Hegel para Bergson e Sorel, Nietzsche e Heidegger.
[...] os críticos que focavam a pobreza entre trabalhadores e as desigualdades passam
a levantar preocupações morais sobre o oportunismo e o egoísmo do mercado através
do contraste entre Gemeinschaft [Comunidade] e Gesellschaft [sociedade], de modo
que a crítica decisivamente atingiu um novo registro nesses anos. Aí encontramos a
consumação das concepções radicais da modernidade como uma fonte de
desencantamento e de inautenticidade do tipo de existência a ela associada541.
Assim, é a “vida”, e não a “racionalidade”, a “ciência”, a “verdade”, o “justo”, a “tradição”, a
“ideia”, o “voto” etc. que deveria dar a última palavra acerca da legitimidade de todos esses
princípios mencionados. Conceito, ideia, imagem, símbolo e lema a “vida” poderia reorganizar
desde os saberes biológicos até aqueles relacionados à história e à sociologia.
Se foi “em nome da ‘vida’ que o racialismo Europeu foi desafiado pelas colônias”542,
também no interior da cultura intelectual brasileira cumpriu importante papel o “vitalismo”,
assim como o “culturalismo” que lhe era associado e, consequentemente, o relativismo
civilizacional. A “civilização” poderia estar em qualquer lugar. Assim como os jornais
anunciavam a possibilidade de a lendária Atlântida, “berço civilizacional”, estar em algum lugar
do sertão brasileiro543, os intelectuais se preocupavam com o que poderia ser a civilização
539
JONES, Donna V. The racial discourses of life philosophy. Négritude, vitalism, and modernity. New York:
Columbia University Press, 2010, p. 4.
540
JONES, D V. The racial discourses of life philosophy, p. 7.
541
JONES, D V. The racial discourses of life philosophy, p. 8-9.
542
JONES, D V. The racial discourses of life philosophy, p. 9.
543
Trata-se das pesquisas do geógrafo inglês coronel Percy Fawcett que causavam sensação nos jornais da época.
Cf. A descoberta da Atlântida no sertão brasileiro? O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jun. 1925, p. 1-2.
516
brasileira que, segundo as metáforas vitalistas, estaria no seu nascedouro e reivindicaria
decisões cruciais, uma vez que iria “crescer” num contexto marcado pelo imperialismo
internacional e pelo combate de civilizações (ou de “luta pela vida?”) em que o risco de morte
era iminente, como revelara a guerra. João Ribeiro, em 1923, fazia uma análise bastante precisa
das ideias de Spengler, assim como criava uma imagem angustiante sobre o que estava em jogo:
[...] a “civilização” é a última fase da “cultura”; é o princípio de sua putrefação e
ruína. A cultura ocidental chegou ao seu período final de civilização e dissolve-se
lentamente. [...] É realmente um quadro lúgubre o das perspectivas que nos cabem
no século presente. O majestoso e tranquilo rio da civilização, como num calafrio
nos dizia Carlyle, aproxima-se de um Niágara formidável544.
Se Oswald Spengler expressava a visão de mundo de uma civilização decadente, o
filósofo Hermann von Keyserling era apresentado por Tristão de Athayde como o representante
de um “mundo que nascia”, conforme o título de sua obra principal. Ambos os autores seriam
as expressões “representativas do pensamento alemão logo depois da guerra”. Ao passo que
Spengler representaria um espírito “crítico”, Keyserling incorporaria uma visão “mística”, de
modo que o primeiro reduziria “o homem a um simples elemento na engrenagem das culturas”,
veria “nestas uma série de evoluções parciais e limitadas, que se correspondem em todos os
tempos e em todos os lugares”, acabando por considerar “a história como sendo a especulação
fundamental para a justa interpretação do universo”545. O segundo, por sua vez, partiria “do
homem em si e não da humanidade”, considerando “o homem como sendo a chave da história
e não a história como explicação do homem”. Dessa forma, explica o crítico, para Keyserling,
é “o homem, como criatura de espírito, que representa o centro do universo. E sendo assim, a
especulação fundamental deixa de ser a história para ser a filosofia”546.
O primeiro ponto diferenciado do pensamento de Keyserling residiria no fato de o
intelectual alemão procurar reabilitar “a filosofia como elemento de vida. Pensa que os filósofos
desacreditaram a filosofia, separando-a da vida, reduzindo-a a sistemas rígidos, trazendo-a do
ar livre, que é o seu elemento natural, para os gabinetes de estudo, que representam a sua
cristalização e a sua morte”. Assim, ao gabinete, Keyserling teria optado pela viagem:
Em vez de concentrar-se, disseminou-se. Em vez de ficar imóvel, como Kant,
chamando a si todas as ideias do universo, - partiu para procurar as ideais em cada
canto do universo. E daí o paradoxo de ter sido um livro de viagem, o seu “Diário de
Viagem de um filósofo”, a pedra angular de sua própria mensagem filosófica547.
O mundo oriental lhe revelaria uma nova visão, um “novo espírito”, de modo que do “Oriente
é que virá, a seu ver, a salvação, a renovação, mas em forma ainda inconcebíveis à nossa
544
RIBEIRO, João. Notas avulsas. O spenglerismo. O Jornal, Rio de Janeiro,15 set., 1923, p 1.
ATHAYDE, Tristão de. Keyserling. Estudos II. Rio de Janeiro: Terra do Sol, 1928, p. 287.
546
ATAHYDE, Tristão de. Keyserling. Estudos II, p. 287-288.
547
ATAHYDE, Tristão de. Keyserling. Estudos II, p. 289.
545
517
mentalidade atual, embora já visíveis na aurora do povo russo, em seu novo regime político”548.
A oposição entre cultura e civilização se faz presente também no pensamento de
Keyserling: “O mal secreto do mundo ocidental era a sua mecanização. A civilização tinha
vencido a cultura. A máquina tinha aniquilado o homem. O progresso material tinha usurpados
direitos da vida espiritual”549. O maior personagem de tal condição seria a figura do “‘chofer’
(o ‘chauffeurmensch’), do homem máquina por excelência, do homem pura agitação
improdutiva”. A obra de Keyserling, por ser provida de um “espírito místico”, na verdade,
“pseudo-místico”, um “objetivismo místico que prolifera hoje em dia”, refletiria “mais de perto
a alma de seu povo e o ambiente de sua época”. Aí residiria a capacidade de renovação de sua
obra que, ao contrário da de Spengler, anunciaria um renascimento civilizacional.
Cultura e civilização brasileira
Ao tratar das tendências interpretativas da realidade brasileira no interior do
modernismo, Tristão de Athayde, como apontamos anteriormente, não verificava orientações
politicamente engajadas. Numa ocasião, comparando os movimentos de vanguarda da
Argentina e do Brasil, uma das diferenças entre os dois países residiria justamente neste aspecto:
Sendo o Brasil um país muito mais industrial que a Argentina, o movimento
socialista ou comunista é mais importante lá do que aqui, devido à sua civilização
essencialmente urbana. O reflexo na poesia é imediato. Há vários poetas de
tendências libertárias, entre os novos. E quase todos cheios de palavreado típico dos
grandes centros, da retórica de clubes e cafés. Aqui, por ora, não550.
Assim, as orientações modernistas abrigariam concepções variadas sobre a realidade brasileira
que não traziam para o primeiro plano perspectivas de ação política direta. Apesar de verificar
que tais “tendências” não guardariam muita estabilidade, o crítico arrisca-se a defini-las:
Muito se tem discutido. Muito se tem ensaiado. Muito já se tem abandonado. Reter
em conceitos precisos esse caos é desejar apenas ser desmentido pelo tempo. Tanto
mais quanto há sempre o cruzamento recíproco das tendências individuais desejadas
com o movimento coletivo inconsciente. Freud escreveu longamente sobre a duas
faces do nosso ser: o que afirmamos de nós e o que se processa em nós, ou, como
ele diz, o “ich” e o “es”. Mais ou menos o “moi” e o “soi”, de Daudet. É o que se dá
nos movimentos de hoje entre nós. E que torna toda cartografia literária mais ou
menos mitológica551.
O crítico lembra que “ainda hoje podemos observar as duas tendências perto da fonte e,
portanto, com certos caracteres de oposição ainda marcados. Dentro em breve, talvez, já não
seja possível. Tudo, entre nós, tende à fusão. Ao tanto faz”.
O grupo da primeira tendência contaria com os nomes de Graça Aranha e Ronald de
Carvalho, ao passo que a segunda seria formada por Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
548
ATAHYDE, Tristão de. Keyserling. Estudos II, p. 290.
ATAHYDE, Tristão de. Keyserling. Estudos II, p. 292.
550
ATHAYDE, Tristão de. Poesia argentina moderna, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 jun. 1928, p. 4.
551
ATHAYDE, Tristão de. Tendências, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 nov. 1926, p. 4.
549
518
Alcântara Machado, Sérgio Buarque de Holanda e Manoel Bandeira. A primeira tendência
expressaria os anseios civilizacionais de incorporar o Brasil ao progresso material ocidental:
O pensamento do sr Graça Aranha, tão impregnado de Marinetti, é que o Brasil
dormita. Que nós vivemos engorgitados de terrores, de duendes, ou de imitações e
que devemos galvanizar toda essa inércia. O brasileiro vive triste, quando deve ser
alegre. O brasileiro vive indolente, quando deve ser impulsivo. O brasileiro vive
vencido, quando deve ser vitorioso. Sua arte arrasta-se em meias tintas, quando deve
refletir o colorido violento dos trópicos. Seu espírito subordina-se a tradições
ancestrais, quando deve romper com o passado. Sua imaginação repete lições de
disciplina, quando deve soltar o seu ímpeto faunesco. O nosso futuro está na
civilização. É preciso sacudir o mistério verde das florestas. O trilho que aterre os
pântanos e os bugres. Os silvos das Pacific que abafem os silvar das cascáveis. O
rufo dos Farmans que espanque para longe o ruflar das jaçanãs. Que o futuro se
afirme vitoriosamente contra as blandícias do passado. Que as leis incorporem a
libertação dos vínculos tradicionais. Que a raça se depure de suas mestiçagens
africanas e se arianize. Que o indivíduo afirme vitoriosamente a sua personalidade.
Que a razão expulse a fé. Que o instinto governe a razão. Que a liberdade estimule
o instinto. O Brasil precisa viver violentamente a sua vida. E a sua vida é o progresso,
é o futuro, é a libertação absoluta do indivíduo. Portanto o segredo de sua arte é o
tropicalismo. A estilização violenta e livre do seu meio, transformado pela
civilização da máquina. Seu instrumento – a mocidade dionisíaca. Sua estética – o
dinamismo552.
Ao “dinamismo” de Graça Aranha estaria contraposta uma tendência muito diversa que o crítico
associa com mais contundência às figuras de Oswald de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda:
Para eles a civilização faliu. A Europa, à qual vivemos ligados desde a descoberta, e
da qual temos importado todos os nossos movimentos literários, falhou em sua
tarefa. Nada temos a aprender com ela senão a confissão de sua própria falência. E,
portanto, pensemos em nós. Sem nada de preconcebido, pois o passado nada nos
pode dar. Sem nada de intencional, pois não sabemos para onde vamos nem o futuro
que nos convém. Fechemos, portanto, as nossas portas ao passado e ao futuro. E
vamos viver no presente. Nosso único refúgio. Nossa única verdade. E qual é essa
verdade? Será o brilho de nossas capitais modernas? Será o progresso de nossas
indústrias? Será a conquista do sertão? Será a cultura? Será a instrução difundida?
Será a imigração branca dinamizando a raça? Será a luta contra os preconceitos
religiosos? Será afirmação do indivíduo contra o meio? Será o riso claro da mocidade
contra o rito macambúzio da melancolia ambiente? Nada disso, dizem eles. O
brasileiro tem sofrido de “talento”. É a inteligência que o tem escravizado à velha
casaca europeia. O brasileiro não é independente porque não se resigna a começar
do princípio. Se vive dos outros é que quis partir de onde os outros acabavam.
Quando deve refazer por si todo o trabalho que os outros fizeram. Começar por onde
eles começaram. Partir do nada. E para isso o que lhe falta é a coragem de aniquilarse. A coragem de sacudir de si todo o aprendido, todo o acumulado, todo o
intencional. De deixar de ser inteligente. De descivilizar-se. Este será o trabalho
essencial de quem deseja realmente fazer uma obra nacional, uma obra com raízes,
sem artifício, sem pressa, sem aventuras. E, portanto, a obra, talvez ingrata e
dolorosa, mas necessária de nossa geração, dizem eles, é voltar atrás, destruir o que
foi feito sem alicerces, cortar o que foi enxertado de fora. E buscar sem vaidade os
elementos espontâneos e primários de nossa existência nacional. Vamos fazer nova
vida. Vamos deixar de pretensões ridículas. De academias ou de progresso. De arte
universal ou imitações futuristas. E para isso comecemos do gérmen inicial. Nosso
lema – a liberdade de vegetar. Nosso esforço – o de captar os elementos
552
ATHAYDE, Tristão de. Tendências, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 nov. 1926, p. 4.
519
inconscientes, nativos, profundos, que nos estão formando sem querer. Nosso
modelo – o primitivo. Nossa estética – a falta de estética553.
Tais “tendências” seriam instáveis em sua reprodução intelectual por parte dos autores
mencionados, mas dariam um panorama da maneira como os modernistas identificavam o
Brasil em uma conjuntura internacional em crise. O crítico impõe reparos às duas tendências:
Aceitar a concepção do sr Graça Aranha é louvar uma concepção materialista da
civilização. É voltar ao racionalismo. É prosseguir no naturalismo mais ou menos
disfarçado. É repetir a concepção nietzscheana da existência. É falsear todo o nosso
caráter. Importando o utilitarismo. Recalcando sentimentos naturais de nossa alma.
Artificializando, portanto, mais uma vez a nossa arte, pela supressão de suas raízes
e pela inserção de caracteres estranhos. Seria possivelmente precipitar e falsear a
nossa formação. Aceitar, por outro lado, totalmente o primitivismo, seria voltar a um
ponto de partida ilusório e falso. Impossível. Fazer literatura apenas às avessas. E
conseguir apenas disseminar um escárnio infecundo, um pessimismo inútil e
meramente destruidor.
O dinamismo e o primitivismo não poderiam contemplar a complexidade da realidade nacional.
Assim como os esforços de “dinamização” e modernização “esbarrariam” nos aspectos
“inertes” e “primitivos” do país, os impulsos “primitivistas” só poderiam se realizar pela
mistificação e pelo falseamento das realidades históricas e sociológicas do Brasil.
Ambas as orientações não poderiam perder de vista o risco de apenas reproduzirem
expectativas das civilizações imperialistas, como o crítico afirmara anteriormente:
[...] a América já representa alguma coisa para a inteligência da Europa, embora não
por meio de sua inteligência. O que a Europa pede à América é justamente uma
reação contra o intelectualismo, em que Spengler já divisa os sinais definitivos da
decadência. [...] Não é, portanto, à nossa inteligência que a Europa se dirige, para
atenuar os males que o excesso de sua inteligência lhe tem causado. Mas nós não
podemos contentar com isso, que em nós contenta a Europa. Nós procuramos
exatamente o oposto. Nós procuramos inteligência. E inteligência não para fugir à
fatalidade do meio, como muitos o fazem aliás, mas para compreender, para
assimilar, para conquistar o nosso ser, afinal. Somos muito mais complexos do que
eles nos veem. E nós, do Sul, muito mais que os do Norte, cuja civilização difere
profundamente da nossa554.
O primitivismo poderia ser visto como uma visão de mundo concretizada em uma arte que não
deixa de ser expressão de uma realidade imperialista incapaz de perceber a complexidade
daqueles que parecem servir apenas como “uma fuga da civilização”. A decadência da
“civilização” promoveria a sedução pela “barbárie”, especialmente num registro estético:
Estamos cada vez mais vivendo uma era em que a extrema civilização e a extrema
barbaria se tocam. Chegamos a um verdadeiro estado de saturação civilizada, que se
destrói por si mesmo. Há pouco, fazendo uma crítica do livro daquele desmiolado
que se jogou num bote “sozinho através do Atlântico” (Alain Gerbault), escrevia
Joseph Delteil, um dos escritores da extrema vanguarda literária em França, e cuja
Jeanne D’Arc tanta tinta fez correr: “Se liberar da civilização não é hoje o problema
essencial?”555.
553
ATHAYDE, Tristão de. Tendências, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 nov. 1926, p. 4.
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 47-48.
555
ATHAYDE, Tristão de. Selvas e Salões, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 nov. 1925, p. 4.
554
520
Por outro lado, o “dinamismo” modernizador poderia ser associado à civilização
nascente despertadora dos ódios e desejos europeus556: os Estados Unidos. Ao analisar o livro
de Roy Nash, The conquest of Brazil, Tristão de Athayde procurava justamente explicitar tais
interesses. Nash ressaltava que não falaria do que todo mundo conheceria, o Rio da Guanabara
e a São Paulo industriosa, mas do “homem que mora na casa de lama”. Não se tratava, porém,
de um estudo feito por um viajante acerca da etnologia das populações indígenas, coisa que foi
comum nos anos 1920, mas de alguém que teria em mente analisar os “problemas de nossa
civilização e de nosso futuro”. O quadro pintado por Nash era bastante negativo:
Se um povo é iletrado na proporção de 750 por 1.000, impregnado de moléstias
endêmicas, incapaz de cooperação para largos objetivos sociais, com a metade
feminina de sua raça ainda marcada com a inferioridade existente na Idade Média,
com seu comércio ainda tolhido por toda sorte de empecilhos criados pelos maus
governos, vivendo em casas de lama porque é preguiçoso demais para ver a madeira
que cresce em frente do seu quintal, satisfeito de viajar com meios de transporte que
teriam desgraçado a Idade Média europeia [...] cavando a terra ainda com a enxada
como se o arado não tivesse sido inventado, criando um fado inferior que os
mercados do mundo não querem adquirir, guardando seus recursos naturais como
um rebanho de mulas selvagens na mata virgem, - que haverá mais a dizer? [...] Se
o povo é ignorante, desprovido de terras próprias e sem tipos fixos... a culpa é dos
traidores do povo, que desgovernaram o Brasil desde que puseram o pé na
América..., da glorificação da permanência governativa... do sistema da grande
propriedade agrícola. [...] A culpa é ainda do mais falso dos artigos do credo hispanoportuguês – a indignidade do trabalho manual. É a culpa da glorificação da fé e da
negação ciência557.
Aí se explicitaria a incompreensão entre as duas civilizações americanas, a do Norte e a do Sul.
Ainda que concordasse com a maioria das críticas do autor norte-americano, o crítico, dizendose alheio a qualquer “patriotada” ou “jacobinismo”, considerava que o livro de Nash, “com toda
a sua simpatia aparente, com todo o seu esforço de compreender, com toda a sua ênfase liberal
e democrática, é no fundo um livro de ódio e de imperialismo disfarçado”558.
Dessa forma, tanto o “primitivismo” quanto o “dinamismo” poderiam corresponder às
reivindicações imperialistas das “civilizações”, seja atendendo às expectativas do mercado de
arte moderna internacional, seja concedendo campos na Amazônia para exportação de borracha
aos EUA, como Henry Ford já anunciava nos jornais brasileiros559. Se o primitivismo é o que
se reserva à colônia, a exportação de matéria-prima é o que caracteriza a produção econômica
das periferias do capitalismo. Oswald de Andrade refutou publicamente a pecha de primitivista
a ele concedida por Tristão de Athayde. Em uma carta aberta, ele fazia as seguintes
considerações: “Meu prezado redator. Tristão de Athayde está na melhor posição da crítica
556
Acerca de Paul Morand, que viajara ao redor do mundo nos anos 1920, Gumbrecht questiona-se: “Seria o ódio
por si mesmo a razão que leva os europeus a odiarem os americanos – e a desejarem a América?” GUMBRECHT,
Hans Ulrich. Em 1926, p. 26.
557
NASH Apud. ATHAYDE, Tristão de. Como nos veem, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 mai. 1928, p. 4.
558
ATHAYDE, Tristão de. Como nos veem, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 mai. 1928, p. 4.
559
O milionário Ford vai fazer plantações de borracha na Amazônia. O Jornal, Rio de Janeiro, 4 dez. 1926, p. 1.
521
brasileira. É preciso prestar atenção ao que ele diz. Permitirá você que eu comente o seu rodapé
de domingo no O JORNAL”560. Oswald considerava que: “Tristão de Athayde sofre de visões.
Enxerga demais. Qualquer atitude da geração repercute nele como numa abóbada e o assusta.
Ele se impressiona consigo mesmo. Se assombra com a própria sombra. Nem Graça Aranha
tem a importância que ele lhe dá. Nem eu”. Além disso, o intelectual paulista manteria o
“apostolado do lado oposto que à menor oportunidade, se transformará no oposto lado do lado
oposto”. Assim, naquele momento estaria com “Manoel Bandeira, Prudente, Alcântara, Sérgio
e Couto de Barros em quase tudo. Mas a condição que nos liga é a independência”. Andrade
propõe outra divisão: “a dos espontâneos (já há alguns) e os coladores”. A “cola” seria a
verdadeira tendência na tradição nacional: “No Brasil, a cola tem sido o mais vasto e rendoso
dos costumes literários. Rui Barbosa colou. Bilac colou. A Academia Brasileira é uma cola
apressada da Francesa. Entre os modernos, anda assim de coladores. Naturalmente, essa gente
toda tira nota boa, mas é colado”. Renegava a associação ao primitivismo: “Quanto a mim, não
sou primitivista. E não sendo, não posso permanecer em primitivismo algum”. Em uma
apreciação rápida de sua produção literária até meados de 1925, Oswald considerava:
Meu caso pessoal, documentado pela minha produção, é o seguinte: 1915. Duas
peças em francês de colaboração com Guilherme de Almeida. Dedicadas ao sr
Washington Luís Pereira de Sousa. Únicas qualidades. 1922. Os Condenados –
Importação e choradeira para impor a mercadoria. Algum crédito. Tristão gostou.
1923. Memórias Sentimentais de João Miramar. Destruição do material errado. A
língua que eu falava. Que eu escrevia. Necessária. Urgente. Técnica do desastre.
Muita pureza. Um romance brasileiro tão bom como os de Macedo. 1924. Pau Brasil.
Apresentação dos materiais inaproveitados, esquecidos ou difamados. Restauração
da poesia ao seu verdadeiro sentido. A descoberta. Aqui cabe reivindicar para mim
essa frase que já foi colada por muita gente boa: “Poesia de exportação contra poesia
de importação”. Chego a nossos dias. Vou publicar neste instante o “Primeiro
Caderno de Poesia” e um romance “Serafim Ponte Grande”, cujo prefácio entreguei
à “Revista do Brasil”.
A sentença sobre estar no “lado oposto...” é um trocadilho com o artigo de Sérgio
Buarque de Holanda que saíra na Revista do Brasil e pretendia caracterizar o momento literário
brasileiro em 1926. É mais ou menos neste período que se pretende, mais do que manifestar em
cartas abertas o repúdio a determinadas figuras, explicitar e caracterizar as divisões que
ocorreriam no interior do modernismo, como percebera, à época, Prudente de Morais, neto:
Foi por volta de 1925, passado o período heroico do modernista, este, que para
muitos dos seus próprios adeptos consistia apenas num debate em torno de questões
gerais de estética e de questões particulares de técnica, foi tomando a feição morosa
das campanhas que parecem se eternizar561.
Holanda reconhecia os ganhos na mudança que vinha se operando nos últimos dez anos no
interior da cultura intelectual brasileira, assim como aludia às disputas modernistas:
560
561
ANDRADE, Oswald de. Tristão de Athayde e a crítica brasileira, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 nov. 1926, p. 4.
MORAES NETO, Prudente de. Cavaquinho solando, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set. 1927, p. 4.
522
A gente de hoje aboliu escandalosamente, graças a Deus, aquele ceticismo bocó, o
idealismo impreciso e desajeitado, a poesia “bibelô”, a retórica vazia, todos os ídolos
da nossa intelligentsia e ainda não é muito o que fez. Limitações de todos os lados
impediam e impedem uma ação desembaraçada e até mesmo dentro do movimento
que suscitou esses milagres têm surgido gérmens de atrofia que os mais fortes já
começam a combater sem tréguas. [...] A convicção dessa urgência foi pra mim a
melhor conquista até hoje do movimento que chamam de “modernismo”. Foi ela que
nos permitiu a intuição de que carecemos, sob pena de morte, de procurar uma arte
de expressão nacional562.
Autores como Ronald de Carvalho, Graça Aranha e Guilherme de Almeida são caracterizados
como “acadêmicos modernizantes” que “falharam irremediavelmente”, pois, a própria poesia
“brilhante” que produziam traria apenas uma “matéria pobre e sem densidade”, de forma que
continuaram “a tradição da poesia, da literatura bibelô, que nós detestamos”. Assim, eles seriam
aqueles que estariam “‘do lado oposto’ e que fazem todo o possível para sentirem um pouco a
inquietação da gente da vanguarda”. Holanda critica o aspecto “intencional” de uma poesia que
denunciaria a “ausência de abandono e de virgindade”. O que o revoltava eram pretensões
normativas da “expressão nacional”:
Somente me revolto contra muitos que acreditam possuir ela desde já no cérebro tal
e qual deve ser, dizem conhecer de cor todas as suas regras, as suas riquezas
incalculáveis e até mesmo os seus limites e nos querem oferecer essa sombra em vez
da realidade que poderíamos esperar deles. Pedimos um aumento de nosso império
e eles nos oferecem uma amputação (Não careço de citar aqui o nome de Tristão de
Athayde, incontestavelmente o escritor mais representativo dessa tendência, que tem
pontos de contato bem visíveis com a dos acadêmicos “modernizantes” que citei,
embora seja mais considerável)563.
Trata-se de um artigo de combate estabelecendo os lados do modernismo brasileiro,
discriminando papeis e posições identitárias que estariam em oposição, mas cujos argumentos,
é preciso lembrar, sobre a “mocidade”, “virgindade” e apelo à “liberdade” não eram exatamente
uma novidade nem propriedade exclusiva de nenhum dos “lados”:
O que idealizam, em suma, é a criação de uma elite de homens inteligentes e sábios,
embora sem grande contato com a terra e com o povo [...], gente bem intencionada
e que esteja de qualquer modo à altura de nos impor uma hierarquia, uma ordem,
uma experiência que estrangulem de vez esse nosso maldito estouvamento de povo
moço e sem juízo. Carecemos de uma arte, de uma literatura, de um pensamento
enfim, que traduzam um anseio qualquer de construção, dizem. E insistem sobretudo
na panaceia abominável da construção. Porque para eles, por enquanto, nós nos
agitamos no caos e nos comprazemos na desordem. Desordem do que? É
indispensável essa pergunta, porquanto a ordem perturbada entre nós não é decerto
não pode ser a nossa ordem, há de ser uma coisa fictícia e estranha a nós, uma lei
morta, que importamos, senão do outro mundo, pelo menos do Velho Mundo. [...] O
erro deles está nisso de quererem escamotear a nossa liberdade que é, por enquanto
pelo menos, o que temos de mais considerável, em proveito de uma detestável
abstração inteiramente inoportuna e vazia de sentido. Não me lembro mais como é a
frase que li num ensaio do francês Jean Richard Bloch e em que ele lamenta não ter
nascido num país novo, sem tradições, onde todas as experiências tivessem uma
562
HOLANDA, Sérgio Buarque de. O lado oposto e outros lados, Revista do Brasil (Terceira Fase), Ano I, No 3,
15 out. 1926, p. 9.
563
HOLANDA, S B de. O lado oposto e outros lados, Revista do Brasil, p. 10.
523
razão de ser e onde uma expressão artística livre de compromissos não fosse ousadia
inqualificável. Aqui há muita gente que parece lamentar não sermos precisamente
um país velho e cheio de heranças onde se pudesse criar uma arte sujeita a regras e
a ideias prefixadas564.
Holanda lamentava que “gente da Action Française”, como Charles Maurras, Henri Massis e,
ainda, intelectuais como Julien Benda e T S Eliot passariam a ter “o apoio em muitos pontos do
esplêndido grupo ‘modernista’ mineiro da ‘A Revista’ e até mesmo de Mário de Andrade, cujas
realizações apesar de tudo me parecem sempre admiráveis”. Acerca deste último, o jovem
crítico dizia que “a sua atual atitude intelectualista me desagrada” e que todos os defeitos do
paulista estariam nos pontos de contato que manteria com Tristão de Athayde. Ele elencava uma
série de autores resistentes ao “construtivismo”: Oswald de Andrade, Prudente de Morais, neto,
Couto de Barros, Manoel Bandeira, Mário de Andrade e Antônio de Alcântara Machado565.
Por essa razão, talvez, Tristão de Athayde incluíra o nome de Holanda no grupo dos
chamados “primitivistas”. Ele começa por traçar um perfil do jovem escritor:
O sr Sérgio Buarque de Holanda é um caso sério, como se diz hoje. Não é um
improvisador. Não é um simples repetidor. Nem mesmo um sacristão de capelinha.
Muito moço, quase inédito, tem lido este mundo e o outro, tem passado por todas as
convicções ou algumas delas – as que mais importam, e não se tem apressado em
dizer o que quer. É provável que ainda não saiba bem o que quer. Como todo o
mundo, entre nós, a não ser os que se têm em tanta conta que não contam para nós566.
O crítico assume um tom senhorial e faz considerações sobre o fato de a nova geração ser mais
sincera, enquanto a anterior endeusaria tudo, “ao sabor das simpatias”. Ele nega “a honra
(imerecida, etc.) de ser o principal culpado de uma coisa chamada - ‘construtivismo”’. Nessa
disputa pelo modernismo, ele diz serem muito frágeis as divisões e considerava que Holanda:
[...] se deixou levar demais pela necessidade de estabelecer barricadas. Nada de
melhor. O nosso mal, um dos nossos males, é andarmos todos entre as barricadas
sem sabermos ao certo de que lado estamos. Desse mal não creio que nos possamos
já curar. É justamente um dos elementos inevitáveis da nossa barbaria nascente.
Estamos num “melting pot”. Nada mais natural que à temperatura elevada da
ebulição derretam-se também as barricadas.
Parte das afirmações de Sérgio Buarque de Holanda, assim, deveria ser vista com reticência:
Mas o que há de pitoresco no caso é justamente isso. O senhor Holanda me acusa de
erigir açudes, de fazer distinções, de acreditar na inteligência, de importar rédeas,
em vez de esporas (mal comparando...), acusa-me de tudo isso, e no entanto, começa
justamente por me prevenir, como qualquer sentinela do Palácio do Catete, velando
pela paz da República. “Alto lá camarada. Passe para o lado oposto!”. Assim como
quem diria – “o apostolado modernista é meu: seu é o lado oposto passadista”.
Mas era a liberdade ou, melhor, o “mito da liberdade” reclamado por Holanda que
mais merecia a atenção analítica por parte do crítico. Dessa forma, ele considerava que:
Eu confesso que sempre achei muito simplória essa ideia de liberdade, como
bandeira única de reivindicação estética. Está entendido, e isso sabe o mais bocó dos
rabiscadores de versos de suicida iminente, que toda arte é uma libertação. [...] De
564
HOLANDA, S B de. O lado oposto e outros lados, Revista do Brasil, p. 10.
Cf. HOLANDA, S B de. O lado oposto e outros lados, Revista do Brasil, p. 10.
566
ATHAYDE, Tristão de. Construtivismo e destrutivismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 out. 1926, p. 4.
565
524
fato, o poeta sempre foi uma criatura que não aceitava o mundo. Que fugia do mundo.
Que afirmava o ser do não ser. [...] O poeta foi sempre um prisioneiro ansioso de
evasão. Hoje em dia é que o poeta desistiu de evadir-se. E abandonando o passado e
o futuro, fez as pazes com o seu inimigo tradicional – o presente. E resolveu aceitar
a vida, a sua época, aceitar, aceitar sempre, o que outrora repelia, invectivava,
amaldiçoava. E nas sociedades capitalistas o poeta entoa o hino à estrada de ferro,
ao automóvel dos milionários, às chaminés de usinas, como nas sociedades
comunistas canta o louvor do Estado todo poderoso, do vencedor do burguês, da
ordem proletária das cozinhas coletivas, etc.567
A liberdade, portanto, seria algo constituinte da arte. Assim, não sendo o artista um “simples
fonógrafo”, a sua liberdade deveria ser qualificada, caracterizada e criticada:
Ele não se limita a pôr uma chapa no cérebro e a deixar rodar a “Valência” ou o “I
have no banana today”. O artista tem de fazer a sua chapa. E, portanto, tem alguma
coisa em mente, fora de si, no fim de seu pensamento, a atingir. E tem de servir a
esse fim, de se adaptar a esse fim, de encaminhar a sua emoção interior a esse fim.
[...] o defeito do moderno é julgar que só pode haver obras primas ou acadêmicas.
Coisa que valha e que não presta. É preciso não esquecer, hoje mais que nunca, as
mistificações conscientes ou inconscientes. Porque há uma mistificação inconsciente
de que o estado de espírito, o meio, o ambiente, são os culpados. Erigir, portanto, a
liberdade em lábaro do modernismo, é restringir o seu campo de ação.
O crítico ressalta o quanto os maiores “destruidores da consciência”, os “suprarealistas”, os
“campeões
do
automatismo”
eram
sistemáticos
em
seus
manifestos,
abordando
conscientemente o subconsciente, preparando-se “lucidamente para captar-lhe as mensagens
misteriosas”. Não sendo contra tal “pescaria”, tinha outras expectativas da arte moderna. O
crítico confessa os seus anseios angustiantes que só poderiam ser contemplados a partir de uma
visão de mundo que expressasse as fragmentações da realidade brasileira por ele abordada:
Eu quero apenas o que não podemos deixar de ter – uma arte brasileira complexa,
dilacerada, perturbada de auroras e crepúsculos, lutando com deficiências e
superfluidades, sentindo em si os clamores de um mundo que morre e as agitações
de uma terra que começa, absorvendo as extremas sutilezas de uma civilização
extrema e patinando nas mais vulgares grosserias de uma barbaria que se despede.
O que não admito é mutilações. O mutilado só pode ser heroico se é uma vítima. E
nós não somos vítimas. A não ser da miséria irremediável de ser homens
incompletos. O que é sempre melhor do que ser índios. O que eu não aceito, senão
no dia em que o sr Oswald de Andrade for ditador literário desta Brasilândia, é que
me queiram fazer de índio, é que me vistam de tanga e me arranquem as bombachas
de hoje, que o sr Buarque de Holanda felizmente ainda não usa. O que eu não aceito
é que me forcem a ser negro, se o não sou. Ou ariano, se o não ouso. E me impeçam
de ser o que sou: uma alma cortada de extremos, uma perplexidade melancólica e
impulsiva, uma contradição que procura ultrapassar-se, uma conjunção de
mensagens indecifráveis, uma pororoca de instintos que se aniquilam com a vontade
de ser que se proclama, uma primitividade que se vence e um requinte que não se
resigna a conformar-se.
Em uma passagem de verdadeiro impressionismo crítico, Tristão de Athayde reforçava o que
lhe atraía nas produções modernistas:
Sim, a arte moderna, no que ela tem de menos intencionalmente moderno, isto é, a
arte que nasce realmente do nosso tempo, desta época assombrosa que vivemos, essa arte que é um romance de Waldo Frank ou uma peça de Paul Fargue ou uma
567
ATHAYDE, Tristão de. Construtivismo e destrutivismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 out. 1926, p. 4.
525
página de Joyce, um conto de Virgínia Wolf ou uma novela de Julien Green, toda
essa arte animada, como bem disse Robert Honnert “de revolte et de pureté”, desde
o dogmatismo mais ortodoxo de Maritain, até as imprecações mais blasfematória de
Louis Aragon, no “Paysan de Paris” ou de Henri Lefebvre nas páginas
revolucionárias do “Esprit” – todo esse pensamento toda essa arte moderna, que os
críticos superficiais chamam de esgotada, ou de falsa, ou de insensível, reflete esse
terrível sentimento de abandono que nos mata. É uma arte profundamente grave.
Uma arte profundamente trágica. Os mais fracos, toda a messe dos inquietos ou dos
delicados, bem como toda a fauna dos personagens pirandellescos, ficam na angústia
incessante desse isolamento, dessa dilaceração, desse abandono. Os mais fortes
reagem, triturando-se ou triturando os demais. Mas nenhuma deixa de sentir em si
essa onda que parece por vezes asfixiar o homem moderno568.
Para além das “tendências” modernistas, ele sugeria a constituição de uma “mística
criadora” e que apenas ela cumpriria com a finalidade de “fundir realmente esses dois elementos
de nossa realidade. Nem banir os chamados ‘terrores’ primitivos por incompatíveis com o
progresso mental, nem comprazer-se neles numa mera evocação de demonismos selvagens ou
de superstições sertanejas”569. Evitar tanto o “erro do racionalismo” quanto o “erro
mistagógico”:
Espiritualizar a nossa emoção criadora. Desdobrar a nossa realidade linear.
Transportar para o plano das verticalidades o que ameaça decair permanecendo na
simples horizontalidade. Tanto o dinamismo quanto o primitivismo nos levariam a
uma arte apenas dos sentidos exteriores. Mas isso já tínhamos com o parnasianismo
ou naturalismo. Só a impregnação de espírito poderá, não eliminar os sentidos, pois
a arte é por essência coisa sensível e não abstrata, mas enriquecer esses sentidos,
fecundá-los com a apropriação de verdades transcendentes e profundas, de universos
suprassensíveis ou infrasensíveis. Pelo supra-naturalismo poderemos talvez fusionar
os elementos contraditórios de nossa alma titubeante.
Tal aspecto “espiritual” concederia às produções literárias russas, exemplificadas nos nomes de
Dostoievsky, Gogol e Tchekov, “esse sabor do humano mais que humano, esse desdobramento
de vida que torna o localismo mais universal que qualquer arte cosmopolita”570.
Uma vez que não haveria fórmula para se atingir tal “estado ‘supranaturalista’”,
restaria apenas o trabalho contínuo a ser feito. A expressão da “alma” brasileira, de sua
“morfologia”, por assim dizer, precisaria ir além dos “modismos” que o modernismo parecia
abraçar, quando, por exemplo, via “apenas nos circos de cavalinhos das cidades o elemento
natural, espontâneo total de nossa arte”, arriscando-se “a ficar apenas na literatura regionalista
urbana como há cinquenta anos se ficou na literatura roceira”571. Por mais de uma vez, ele
reclamava a necessidade de ir “ao fundo das coisas – ou pelo menos, ao que pensamos ser o
fundo delas”. Assim, o crítico lembrava a ausência de trabalhos historiográficos nas produções
da jovem geração. Tal falha seria um problema primordial, uma vez que a reflexão acerca do
passado, e não o seu mero abandono, seria fundamental a qualquer presente afirmativo:
568
ATHAYDE, Tristão de. Pirandello, O Jornal. Rio de Janeiro, 25 set. 1927, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Tendências. O Jornal, Rio de Janeiro, 21 nov. 1926, p. 4.
570
ATHAYDE, Tristão de. Construtivismo e destrutivismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 out. 1926, p. 4.
571
ATHAYDE, Tristão de. Atualidades, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 abr. 1926, p. 4
569
526
O Passado não é o que passa mas o que fica. O que passa, na história das coisas e
dos homens, não chega a formar o passado: é apenas a corrente turva, indistinta,
apressada à qual a massa dos fatos e das ideias confia o seu destino. Só o que vence
esse impulso para o esquecimento; só o que emerge dessa evanescência fundamental
à natureza, consegue formar então o Passado. Há por vezes injustiças nessa vitória
da Passagem contra o Passado. A onda de darwinismo do século passado levou-nos
a aplicar a seleção natural a domínios inteiramente estranhos à biologia; quando o
mundo social e o mundo mental nos mostram que nada é menos certo, nesses
domínios, do que a sobrevivência dos tipos superiores. Essas injustiças, porém,
suscitam justamente as reparações, os renascimentos, as revisões do julgamento. E
por isso mesmo é que cada geração deve procurar o seu passado572.
O processo de suspensão do substantivo “Brasil” manteria os modernistas brasileiros
num suposto estado de “virgindade”, “começo primordial” ou, como afirmara Sérgio Buarque
de Holanda, como filhos de um “país novo, sem tradições”. Tristão de Athayde estava longe de
concordar com tais imagens, preferindo denunciar a falta de reflexão historiográfica à época:
[...] um dos defeitos da nossa geração é a falta desse espírito histórico. Bem sei que
a história exige a idade. Até certo ponto, porém. Sobretudo no sentido de aprofundar,
de documentar, de consolidar as hipóteses e afirmações da mocidade. [...] Não vejo,
até agora, na nossa geração, rapazes que se tenham dedicado à história e que possam
pesquisar, com autoridade e lucidez, o passado, de forma a dar-nos a imagem desse
“nosso” passado, a que acima me referi. Alguns tem o feito em domínios
especializados e isso mesmo, às vezes, sem a necessária documentação original, e
pesquisa própria. Na ânsia de futuro, de fazer qualquer coisa de novo, vamos
levantando as paredes, depois de lançar apenas um olhar distraído e rápido ao
terreno. E daí muito juízo falso ou mesmo justo, mas sem base, sem a filtragem
necessária dos elementos recebidos. [...] Nossa história geral está toda em mãos de
homens das gerações passadas. Capistrano de Abreu, João Ribeiro, Rocha Pombo,
Oliveira Lima, Alberto Rangel, Tobias Monteiro, todas as nossas autoridades em
história já dobraram os cinquenta ou os sessenta. E será quando lá chegarmos que
comecem a surgir os nossos historiadores, isto é, quando já não tivermos necessidade
deles! Porque a história que interessa, que mais nos interessa, não é a história “do
fato”, mas a das ideias, dos movimentos políticos, das reações sociais, enfim, a
história de um organismo nacional vivo em formação. E não há uma objetividade
imutável da história.
A história, portanto, desempenharia um papel fundamental à conformação daquela morfologia
civilizacional de que falava Oswald Spengler. Essencialmente ligada ao presente, a história não
teria uma “objetividade imutável”, mas sim uma necessidade reiterada à cada época em
perceber o seu passado. A própria relação entre história e ficção não poderia ser vista como uma
oposição irredutível, mas antes como diferentes caminhos para se chegar à realidade:
Nada mais ilusório do que delimitar a realidade. Já não falo na acepção filosófica da
coisa. Mas simplesmente no emprego quotidiano da palavra. Na sua oposição à
ficção. Onde acaba o real, começa a fantasia. Pergunta sem sentido para as crianças
e para os simples. As crianças julgam a ficção tão real como a realidade. Os simples
acreditam que a ficção é tão irreal quanto é real a realidade e que entre ambas é fácil
distinguir, como é fácil desmascarar um mentiroso. Para eles só há duas faces na
verdade. E o seu reverso é sempre a mentira, seja por falsidade, por erro ou por
fantasia. A falsidade, o erro e a fantasia não são apenas três aspectos que o reverso
da verdade apresenta. São três vias para lá chegar. A falsidade é a negação consciente
da realidade. O erro é a negação inconsciente da realidade. A fantasia é a deformação
572
ATHAYDE, Tristão. Males de ontem e de hoje, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 jun. 1925, p. 4.
527
arbitrária da realidade. E esta deformação não é apenas um caminho para aquele
reverso da verdade, de que falamos. Pode levar justamente às verdades essenciais
que se colocam acima dos nossos cinco sentidos. E neste caso a simples fantasia, a
simples deformação arbitrária da realidade, se converte em intuição, que volta a
descobrir, por novos rumos, o caminho da verdade. Em tudo, portanto, o que vemos
são entretons esfumados, que se não deixam delimitar com precisão573.
Sendo a história a “vida no tempo exterior” e o romance “a vida no tempo interior”, importaria
ver como “a vida” se ligaria “aos tempos contrários e confundíveis da realidade e da ficção”.
Entendida antes em seus traços morfológicos vitalistas do que em uma linearidade
irresistível, a história poderia aproximar épocas distantes e afastar entre si os períodos recentes:
Estamos mais longe de 1907 do que de 1835. É assim a história dos povos. E a dos
homens também, afinal. A cronologia da vida não corresponde à cronologia do
tempo. Este nos ensina que os fatos de há um século são mais remotos que os de
ontem. A vida, porém, pode dizer-nos o contrário. A ordem de sucessão dos
fenômenos, de importância das ideias, da proximidade dos fatos e dos homens, vaise alterando de geração em geração, de momento em momento. Pascal é mais
contemporâneo nosso do que Renan. Maquiavel do que Rousseau. Uma moda
feminina de ontem é ridícula e velha. A de já um século é uma obra de arte e sempre
nova. A ilusão é julgar que só há um cronos574.
Vê-se, então, similaridade entre os anos 1920 e o romantismo:
Há no fundo uma identidade de situações. Com o intervalo de um século sentimonos de novo em pleno romantismo. Essa é que é a verdade. Não são Hugo ou
Lamartine que nos interessam. Nos interessam eu e você, leitor. Nos interessa a
repetição dos mesmos problemas e o aparecimento de problemas semelhantes aos
que eles tiveram de encarar. Nos interessa sobretudo sentir que o romantismo não é
uma escola literária. [...] O romantismo é um estado de espírito. É uma atitude
humana. É um momento na história de cada homem e de cada sociedade. Vemo-nos
como eles, herdeiros de um passado de negações e de racionalismo, e ansiosos por
descobrir novamente um sentido transcendente da vida. Vemo-nos asfixiados por um
passado glorioso ou pesado ou complicado demais, e ansiosos por redescobrir as
fontes puras da vida. Vemo-nos inquietos, como eles foram inquietos. Vemo-nos
melancólicos, como eles foram melancólicos. Vemo-nos insatisfeitos também.
Vemo-nos ligados por analogias estranhas de espírito ao que se passa no espírito de
outros homens muito distante de nós, - como os nossos avós de há cem anos iam
buscar à beira do Sena o segredo de redescobrir as nossas selvas. Tudo analogia.
Tudo repetições, tudo ecos vagos ou precisos. O romantismo é o nosso coração. [...]
E se acaso, leitor, você não se reconhece nessas angústias ou faz delas apenas um
tema de libertação individualista ou de sibaritismo estético, mude o “nós” para “eu”,
e não se julgue forçado a seguir quem não se entrega ao sentido do tempo que
procura, quase sempre, subir a corrente575.
Um dos alicerces da afirmação romântica nacionalista, como se sabe, era a promoção
da língua nacional cuja “revolução herderiana”, na denominação de Pascale Casanova,
instauraria, a partir da obra do alemão Johann Gottfried von Herder, “um vínculo necessário
entre a nação e a língua, ele autoriza todos os povos ainda não reconhecidos politicamente e
culturalmente a reivindicarem uma existência (literária e política) na igualdade”576. Segundo as
573
ATHAYDE, Tristão de. História e ficção, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 fev. 1926, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Aspectos Brasileiros, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 set. 1926, p. 4.
575
ATHAYDE, Tristão de. O Pré-Romantismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 set. 1928, p. 4.
576
CASANOVA, Pascale. La République mondiale des Lettres, p. 117.
574
528
concepções românticas, “o caráter espiritual e o caráter linguístico de um povo se confundem.
A língua é a manifestação do espírito dos povos; sua língua é seu espírito e seu espírito sua
língua; não se poderia pensa-los senão como idênticos”577. Nesse sentido, a ideia romântica de
“língua” contrapunha-se ao conceito científico de “raça” como determinante da característica
de um povo. Se, por vezes, eles poderiam se conjugar, em outros casos, como no da afirmação
dos primeiros movimentos pan-africanistas no início do século XX, especialmente nos escritos
do norte-americano Alexander Crummell, a “raça” prevalecera sobre língua:
Para Herder, profeta do nacionalismo alemão e filósofo fundador da moderna
ideologia da nacionalidade, o espírito de uma nação expressava-se sobretudo em seu
Sprachgeist, o espírito da língua; e uma vez que [...] há muito de Herder em
Crummell, seria esperável vermos Crummell debatendo-se com a tentativa de
descobrir nas línguas tradicionais da África uma fonte de identidade. Contudo, a
adoção desse princípio herderiano por Crummell enfrentou obstáculos insuperáveis,
entre eles seu conhecimento da variedade das línguas africanas. É que, na época de
Crummell, a nação fora inteiramente racializada: admitindo-se seu pressuposto de
que o negro era uma única raça, ele não poderia buscar na língua o princípio da
identidade negra, simplesmente por haver línguas demais. Para Crummell, como
deixa claro “A língua inglesa na Libéria”, não é o inglês como Sprachgeist dos anglosaxões que importa: é o inglês como veículo do cristianismo e – o que ele veria como
exatamente a mesma coisa – da civilização e do progresso578.
Assim, desde a publicação, em 1767, da obra de Herder, Fragmentos Sobre Uma Nova
Literatura Alemã, e de suas reinterpretações e ressignificações as mais variadas579, a língua
entendida como expressão máxima de um povo passaria a concorrer com outros valores e, em
última análise, poderia mesmo ser diminuída e extinta frente aos “avanços” da “civilização”.
Após a Grande Guerra, intelectuais alemães eram os que mais dramatizavam tais “avanços”
identificados com os progressos da técnica, da ciência e do “materialismo”. Neste sentido,
Tristão de Athayde analisara o artigo do controverso intelectual alemão Paul Fechter580, “Das
Sterben der Sprache” [literalmente, “A morte da língua”], lançado em 1926 na revista Die
Literatur, no qual o autor sentenciava que: “Gerações anteriores quebraram a cabeça sobre a
origem das línguas. A nossa tarefa vai ser de acompanhar a morte das línguas”581. O crítico fazia
577
SCHLANGER, Judith E. Les métaphores de l’organisme, p. 128.
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 43.
579
Cf. ESPAGNE, Michel. La notion de transfert culturel. Revue Sciences /Lettres [En ligne], 1/2013.
580
Crítico de arte e editor, Paul Fechter, que ainda não teria sido “extensivamente estudado”, é tido como o criador
do termo “Expressionismus” aplicado em artes plásticas, além de ter sido um dos artífices teóricos do movimento
de vanguarda alemão e que, mesmo após a sua crítica ao movimento no momento posterior à Grande Guerra,
continuou a defender produções artísticas modernas e fez uma biografia do pintor expressionista Max Pechstein.
Sua adesão ao regime nazista, porém, mostrou como um intelectual que “era tudo, menos um liberal”, representante
do chamado “conservadorismo revolucionário”, ao mesmo tempo incentivava a arte moderna que à época era tida
como “degenerada” pelos líderes do Reich, como ficou claro em suas defesas da obra do escultor Ernst Barlach.
Os temas da alma, da autenticidade e da cultura alemã sempre fizeram parte das reflexões teóricas do crítico, desde
a época do expressionismo, articulando, assim, a arte de vanguarda com temáticas românticas tradicionais. Cf.
DYKE, James van, Ernst Barlach and the Conservative Revolution, German Studies Review, Baltimore, Vol. 36,
no 2, may 2013, p. 283-300; GORDON, Donald E, On the origin of the Word “Expressionism”, Journal of the
Warburg and Courtauld Institutes, vol. 29, 1966, p. 376-377.
581
FECHTER apud ATHAYDE, Tristão de. Nascer e morrer das palavras, Revista do Brasil, Rio de Janeiro, ano
578
529
considerações gerais acerca do momento intelectual da Alemanha:
Na Alemanha hoje, fala-se na morte de tudo. Por toda a parte, bem sei, deste nosso
Ocidente cansado. Mas especialmente entre Vístula e Reno, onde a queda se deu de
mais alto. Morrem as dinastias e os tronos com elas. Morrem as nobrezas de sangue.
Os feudalismos do dinheiro. O equilíbrio da arte. Morre toda uma civilização, dizem.
Religião e organismo político. Beleza e hierarquia social. Ordem e doçura de viver
– tudo caminha para o esquecimento. E com tudo isso as línguas, o próprio corpo da
expressão de uma alma em decadência. Esse, o estado de espírito. Essa convicção da
irremediável tristeza interior de um povo que se julgou senhor de meio universo582.
A perda da vitalidade das línguas decorreria da progressiva ausência de contato com
suas “fontes originais”, num processo de cristalização “em regras mortas, em expressões
recebidas, em palavras definitivamente fixadas”. Tal processo iniciaria na formação escolar que
disciplinaria os impulsos primevos da linguagem tornando-a cada vez menos autêntica,
artificializando-se no jornalismo, na política, no ensino, na mecanização do fonógrafo e do
rádio. Dessa forma, conforme analisa o crítico:
O isolamento da palavra na radiotelefonia, particularmente, é uma “transposição do
caráter plástico da palavra para o caráter acústico”. E assim é que “já se torna a
palavra para o homem de hoje um som sem relação com a alma original daquele que
fala”. E dessa “tecnização da palavra” chega então a nascer o ímpeto de negar, de
destruir línguas.
Interessaria, na mesma medida, porém, a reflexão sobre o nascimento das línguas e
Tristão de Athayde lembra, no caso, os comentários do crítico literário francês Valéry Larbaud
que, particularmente, escrevera sobre seu aprendizado da língua portuguesa. Apesar de não ter
a “profundidade do outro Valéry”, o crítico brasileiro traça um perfil de Larbaud:
Larbaud é realmente um tipo de fidalgo das letras. Sorrindo dos preconceitos.
Divertindo-se por vezes em variar profundamente de estilo. Revelando, a cada
momento a seus compatriotas, novos valores absolutamente ignotos, como o fez com
Samuel Butler ou com James Joyce, com Emílio Cecchi ou Ramon Gomez de la
Serna, e hoje o vai fazer com a literatura portuguesa, como amanhã o fará
possivelmente com a brasileira583.
Esse interesse, para o crítico brasileiro, era uma oportunidade de se perceber o nascimento de
uma língua, agora, a brasileira:
Acompanhar Valery Larbaud na sua descoberta do português, é como visitar o Rio
de Janeiro com um estrangeiro. Sentimos, em nossos olhos, qualquer coisa de
diverso, como se a surpresa dos olhos do nosso companheiro se comunicasse a nós.
Quando vou no bonde ou no trem com um estrangeiro, mesmo desconhecido, não
consigo ler o livro ou o jornal. Tenho a impressão de estar, como ele, vendo uma
cidade nova. É uma língua nova que passa pelos nossos olhos.
Dessa forma, o regionalismo republicano, que valorizava as diferenças das linguagens locais,
suas expressões que desafiavam a gramática, suas palavras dialetais que tornaram correntes os
glossários no fim das obras, passa a ser visto como um empecilho à constituição de uma língua
unificada, centralizada e nacionalmente unitária.
I, no 1, set. 1926, p. 23.
582
ATHAYDE, Tristão de. Nascer e morrer das palavras, Revista do Brasil, p. 23.
583
ATHAYDE, Tristão de. Nascer e morrer das palavras, Revista do Brasil, p. 24.
530
Ao analisar a obra Losango cáqui, Manuel Bandeira destacava que esta era, “no que
diz respeito a linguagem”, o “primeiro livro escrito em nossa língua. Adotando sintaxes e
expressões correntes na conversação da gente educada, idiotismos brasileiros, psicologia
brasileira, Mário de Andrade conseguiu escrever brasileiro sem ser caipira nem rude”584.
Bandeira parecia, com isso, ter superado juízos do ano anterior, em que o poeta pernambucano
avaliava que o amigo, à força de “escrever brasileiro”, acabava escrevendo paulista585. Tristão
de Athayde enxerga nesse desejo de se “escrever brasileiro” mais uma coincidência com o
romantismo. O crítico cita uma carta de José de Alencar a Joaquim Serra, que versava sobre a
legitimidade nacional de se usar o termo “pampa” para designar os campos rio-grandenses:
Conversando poderíamos, sem pretensões acadêmicas, e dando ao espírito uma
agradável diversão das cizânias diárias, elaborar os elementos da verdadeira crítica,
e acumular um bom cabedal para a nossa filologia brasileira, que já não é, nem será
nunca mais, a mesma de Portugal. Mas deixemos isso para nossos filhos, que serão
mais americanos do que nós, porque terão na sua genealogia mais uma geração
formada no clima do Novo Mundo e, o que quer dizer, mais uma raiz neste solo586.
Acerca da obra Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade, e do livro Brás, Bexiga e Barra
Funda, de Alcântara Machado, o crítico destacava as questões da língua nacional:
Haverá muita gente arrepiada ao ler o sr Mário de Andrade. E que dirá, naturalmente,
pela milésima primeira vez, que só por esnobismo etc. Mas pouco importa. O que
importa é que o movimento de onda, que leva esses dois como outros muitos, não é
simples arbitrariedade. Simples vontade de chocar. Ou de irritar o português. Ou de
cavar uma originalidadezinha barata e sem esforço. Mas, sim, um movimento
irresistível, que se processa, por assim dizer no subconsciente da nacionalidade e
que, de geração em geração, se vem acentuando587.
A língua nacional compõe uma conformação cultural que operaria de maneira inconsciente:
[...] o que se nota nesses dois livros, como em toda essa face do movimento moderno,
é que o que era desejado e local, está passando a ser instintivo e nacional. O sr Mário
de Andrade ou o sr Alcântara Machado – para falar apenas nos dois que nos ocupam,
e que não são excedidos aliás por nenhum em originalidade e talento, - não escrevem
brasileirismos, falam brasileiro.
Os regionalismos são vistos como meios artificiais de apreciação linguística, exteriores,
catalogadores, objetivistas e racionalistas. A língua brasileira agregaria tais fatores ao mesmo
tempo em que os superaria numa síntese intuitiva:
O regionalismo é quase sempre um trabalho de marchetaria. Modismos locais
enxertados na linguagem tradicional. Aqui é coisa diversa. É a própria linguagem
tradicional em uma nova modalidade do seu ser. É qualquer coisa de funcional, não
de artificial. Do instinto mais do que da razão. São livros que não teriam podido
aparecer há uma ou duas gerações. Como serão excedidos dentro de duas ou três.
[...] São novos organicamente. Não porque simplesmente o queiram ser. São novos
de dentro para fora.
584
BANDEIRA, M. Literatura, Revista do Brasil, Rio de Janeiro, 30 set 1926, ano I, no 2, 30 set. 1926, p. 37.
Cf. MORAES, Marco Antonio de. Orgulho de jamais aconselhar: A epistolografia de Mário de Andrade. São
Paulo: EdUSP, 2007, p. 91.
586
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Romancistas ao sul, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 out. 1927. p. 4.
587
ATHAYDE, Tristão de. Romancistas ao sul, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 out. 1927. p. 4.
585
531
A língua teria, assim, se tornado o “problema capital de nossa literatura”, sendo Mário
de Andrade um dos principais responsáveis. Além disso, era preciso acompanhar os
desenvolvimentos da “linguística moderna” que estaria a abandonar teses consagradas:
Houve, nos séculos passados, uma tendência acentuada a considerar as línguas “em
si”, sem ligação com a sua fonte e as condições de sua existência. E dessa tendência
resultou uma cristalização progressiva das línguas em formas e regras gramáticas
cada vez mais rígidas e imutáveis. As línguas passaram a ser “instrumentos” de
utilização, como a pena com que escrevo ou o garfo com que como. [...] Ora, a
linguística moderna, há 20 ou 30 anos que vem solapando todo esse edifício de
preconceitos. E quem não quiser compreender a ação incessante desse movimento
filológico reformador, não pode de forma alguma chegar e compreender o que são
as formas modernas de arte588.
As teorias mais recentes acerca da linguagem teriam se deslocado da tradição filológica
associada às etimologias e, cada vez mais, ligavam-se aos estudos acerca do “mundo da vida”:
Ainda há pouco, o grande filólogo escandinavo Otto Jespersen, autor de uma
profunda “Filosofia da Gramática”, mostrava como hoje em dia alastrava-se de mais
em mais a tendência para abandonar os métodos etimológicos e procurar a essência
das línguas nos indivíduos. Já não devemos empregar termos impróprios como “a
vida das palavras”, diz ele, e reconhecer que, - “o que é vivo é o homem que fala. A
linguagem e os seus elementos, palavras, formas gramaticais, etc., são simplesmente
ações do indivíduo vivo, que fazem parte de sua vida, mas que não são por si
mesmos”.
O crítico cita os trabalhos do antropólogo e linguista francês Marcel Jousse589, discípulo do
neurologista e psiquiatra Pierre Janet. A obra de Jousse seria inspiradora:
Apresso-me a dar todas essas indicações porque para nós, defensores da formação
da língua brasileira independente da língua portuguesa, a obra de Marcel Jousse é
providencial. Ela vem trazer-nos a confirmação cientifica daquilo que
empiricamente vínhamos observando e racionalmente defendendo. Não se trata mais
de uma questão de patriotismo: o Brasil é uma nação livre, logo deve ter uma língua
própria. Não se trata mais de uma questão de dedução lógica: da mesma forma que
o baixo latim, transportado para Portugal e em combinação com elementos de outras
origens, formou a língua portuguesa; esta, por sua vez, transportada para a América,
e recebendo numerosos influxos da gente e das outras línguas, deve necessariamente
criar uma nova língua590.
Tendo em mente, talvez, essa dimensão da língua portuguesa falada no Brasil e em Portugal, o
crítico sublinhara, no livro de Ferdinand Saussure, Cours de linguistique générale (1922), as
partes dedicadas à “linguística geográfica”, notadamente na seção “diferenciação linguística em
territórios separados”. Apesar de a obra estar longe de abraçar qualquer determinismo
geográfico, Tristão de Athayde parece ter se atraído pela passagem em que Saussure falando
sobre o “grau de parentesco entre as línguas” comenta os casos de continuidade e isolamento.
588
ATHAYDE, Tristão de. A língua brasileira, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 abr. 1928. p. 4.
Apesar de ser uma referência hoje pouco lembrada, Jousse, que lecionou na Sorbonne, na École
d’Anthropologie, na École Pratique des Hautes Études (EPHE) e no Institut Biblique de Rome (ele era jesuíta),
teria feito uma obra densa e desarticulada, cujo livro que sintetizaria a sua trajetória, L’anthropologie du geste, foi
publicado apenas após a sua morte. Cf. GUÉRINEL, R. Marcel Jousse between Pierre Janet and Joseph Morlaas,
Annales Médico-Psychologiques, 166, pp. 232–237, 2008.
590
ATHAYDE, Tristão de. A língua brasileira, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 abr. 1928. p. 4.
589
532
Assim, neste último, os “dois idiomas conservam de seu passado comum certo número de traços
que lhe atestam o parentesco; no entanto, como cada um deles evoluiu de maneira independente,
as características surgidas de um lado não poderão ser encontradas no outro”591.
No caso da obra de Marcel Jousse, um dos maiores elogios concedidos ao francês se
deve ao fato de ele ter “desgramaticalizado a linguagem”, deslocando-a de qualquer
“superfetação, de adorno artificial, de cristalizações puramente formais para estudá-la em seus
elementos realmente puros, originais, essenciais”592. A linguagem é vista como gesto:
E nessa busca de elementos primários, ele foi encontrar a origem da linguagem no
“gesto”. A linguagem é uma forma especial de gesticulação. Ela não é uma expressão
apenas lógica, apenas da inteligência, e sim de todo o corpo. E não apenas do corpo
– da alma também. E não apenas do corpo e da alma, - do objeto também.
Tais gestos seriam decompostos em “estilo oral”, “estilo escrito” e “sentido manual”. Uma das
consequências principais da tese de Jousse ressaltada pelo crítico é que para o francês, como
para “‘toda’ a linguística cientifica moderna, a linguagem ‘real’ é a linguagem ‘falada’. E sobre
ela é que a linguagem escrita se deve modelar”. A validação da “escrita brasileira” deveria,
assim, seguir os aspectos orais da linguagem e não na “verdadeira e boa língua”.
De forma diferente da de Paul Fechter, o linguista chegaria também à valorização da
linguagem falada vista como mais “autêntica” e mais “verdadeira” do que a escrita. E, assim
como Marcel Jousse teve nos estudos etnológicos a chave para suas pesquisas, as teorias
vitalistas de Paul Fechter sobre a língua, ao constatarem que, pelo avanço da técnica, a “palavra
para o homem de hoje” seria “um som sem relação com a alma original daquele que fala”,
acabam por valorizar esquemas “primitivos” de entendimento da experiência linguística:
E dessa “tecnização da palavra” chega então a nascer o ímpeto de negar, de destruir
línguas. E aí vemos ressurgir o apelo ao primitivo que circula no ambiente europeu
e que já está também inserido em nosso meio. “O clamor pelos analfabetos, que se
ouve a cada passo, meio em troça, não surge apenas pela repulsa ao saber mal situado
ou à meia-cultura, - mas sim pela suspeita de que o alfabetismo é no fundo um
suicídio dos povos, um atentado ao bem sagrado da sua alma viva e com isso à sua
língua viva”593.
O apelo ao “primitivo”, simbolicamente, estabeleceria o contato com a “alma viva” de um povo.
No caso do Brasil, a mobilização “indianista”, tanto no romantismo quanto no
modernismo, teria girado em torno de tal simbolismo nacionalista. Mas qual seria a qualidade
de tal contato? Denunciava-se o afastamento que os intelectuais teriam com a realidade do país:
Quem menos viaja o Brasil são os brasileiros. Viajam as populações nômades do
interior que tecem a trama de união entre as distâncias desesperadoras. Viajam os
que têm obrigação de viajar. Os que viajam por negócios ou profissão. Viajam no
Brasil, porém, não viajam o Brasil. Não vão apenas para ver e apenas para passar. E
591
Cf. SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale. Publié par Charles Bally, Professeur à
l’Université de Genève et Albert Sechedaye, Privat-Docent à l’Université de Genève. Avec la collaboration
d’Albert Biedlinger, Maitre au Collège de Genève. Paris : Payot, 1922, p. 288. Acervo CAAL.
592
ATHAYDE, Tristão de. A língua brasileira, O Jornal, Rio de Janeiro, 8 abr. 1928. p. 4.
593
ATHAYDE, Tristão de. Nascer e morrer das palavras, Revista do Brasil, p. 23.
533
raramente contam o que viram. Tanto têm as nossas populações rurais de nômades
quanto as urbanas de sedentárias, tudo explica um pouco o fenômeno. E quem se
dispõe à aventura de um deslocamento, toca-se logo para outro hemisfério [...]. O
mesmo, porém, não sucede com os estrangeiros em relação a nós. Viajam cada vez
mais por aqui. E gostam de contar o que viram. Ou o que não viram...594
Assim como as descrições de Valéry Larbaud em torno de suas descobertas da língua portuguesa
eram um ingrediente para se pensar numa língua brasileira nascente, as apreciações de viajantes
estrangeiros acerca das características brasileiras instigavam, ainda mais, a reflexão sobre o
“caráter nacional” segundo sua história, cultura e especificidade frente a outros países.
Na epigrafe do artigo de que foi retirada a passagem acima, Tristão de Athayde usou a
seguinte passagem: “A América do Sul está hoje – principalmente em seu grupo de estados
Argentina, Brasil e Chile – no primeiro plano das preocupações mundiais e de interesse
mundial”. Tal consideração teria sido feita pelo ministro da Educação e Ciência da Prússia
(1921-1925), Otto Boelitz, no periódico alemão Zeitschrift für Geopolitik (Revista de
Geopolítica). Sinteticamente, temos aí articuladas importantes referências que ganharam corpo
nos anos 1920: a emergência do conceito de “Espaço” (“Raum”) que permitiria a subordinação,
no interior da reflexão geopolítica, da política à geografia, segundo uma perspectiva vitalista
que previa a possibilidade de expansão contínua dos Estados nacionais concebidos
organicamente. Nesse sentido, o “Espaço” perderia seus significados correntes de “área” e
“território” tornando-se uma espécie de “força sobrenatural e elementar das questões humanas”,
o “Espaço” conformaria o Estado e, em última análise, “criaria o Estado”. Em decorrência disso,
fala-se incisivamente em “Espaço vivo” (Lebensraum), explicitando-se a inserção do vitalismo,
mais do que no domínio geográfico, na reflexão geopolítica595. Além de fomentar o ensino
contundente da geopolítica nas escolas, Boelitz pretendia promover a “identificação de grupos
alemães no exterior [...] e a perspectiva geopolítica para o ensino da geografia desempenharia
aí um importante papel”596.
Se, por um lado, as produções de pesquisadores estrangeiros sobre o Brasil poderiam
revelar aspectos da realidade nacional aos próprios brasileiros, por outro lado, não se poderia
perder de vista este cenário imperialista internacional. Apenas a partir do “conhecimento”
histórico, geográfico, etnológico, linguístico, político e cultural poderia obter-se tal domínio da
“alma” nacional e, assim, formular realmente uma síntese expressiva de uma determinada
nacionalidade. Este “conhecimento”, porém, poderia seguir as mais distintas orientações
epistemológicas, do racionalismo técnico e científico ao intuicionismo vitalista e compreensivo,
muitas vezes misturadas entre si. Dessa forma, um valor como o racialismo, supostamente
594
ATHAYDE, Tristão de. Como nos veem, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 mai. 1928, p. 4.
MURPHY, David Thomas. The heroic Earth: Geopolitical Thought in Weimar Germany. Ken, Ohio: The Kent
State University Presse, p. 26-27.
596
MURPHY, David Thomas. The heroic Earth: Geopolitical Thought in Weimar Germany, p. 138.
595
534
embasado teoricamente em pesquisas objetivas e técnicas acerca das diferenças hierárquicas
entre os seres humanos, poderia muito bem associar-se a quadros interpretativos e, mesmo,
poéticos e místicos acerca da formação das nações como grupos dotados de uma alma comum
e um espírito ou caráter nacional. A ciência ia junto com o mito, ao mesmo tempo em que
versões míticas das sociedades ganhavam ares de saber científico. Nos anos 1920, estava-se
longe de se tornar relativamente hegemônica a crítica que será formulada de forma contundente
apenas após a Segunda Guerra Mundial, segundo a qual “não importa o que digam os cientistas,
a raça é, do ponto de vista político, não o começo da humanidade mas o seu fim, não a origem
dos povos mas o seu declínio, não o nascimento natural do homem mas a sua morte
antinatural”597. A apropriação dos saberes científicos para concretizações mitológicas ou
críticas aparece exemplarmente na comparação entre as perspectivas de T S Eliot e James Joyce:
Ambos, Eliot e Joyce utilizaram-se largamente de materiais da antropologia, mas
eles diferenciavam-se na maneira e na quantidade em que cada um aceitou a noção
de verdade científica oferecida pela nova disciplina. Eliot estava disposto a tomar a
antropologia pelo seu valor nominal enquanto ela contribuísse com suas teorias das
origens poéticas e seus ataques à civilização. Joyce, contudo, era agudamente
consciente sobre a antropologia ser um construto mítico e discursivo enraizado nos
empreendimentos coloniais dos pensamentos e instituições europeus598.
Neste sentido, a apreciação do “primitivismo” no Brasil não deveria, segundo Tristão
de Athayde, encorpar-se em visões mitológicas da nacionalidade. A principal nota do
“primitivismo” se ligaria à existência de populações indígenas habitando o país e,
especialmente, àquelas que viviam nas áreas de florestas, notadamente na região amazônica.
Tal realidade podia ser tomada, pelo olhar estrangeiro, como a expressão da verdadeira América
do Sul, como pretendera o intelectual inglês Charles Domville-Five em sua obra The real SouthAmerica (1922). Após ter passado pelo Chile, o viajante, conforme conta Tristão de Athayde:
Subiu aos altiplanos da Bolívia, o teto do Novo Mundo, e privou aí com os Aymarás,
essa bela raça indígena de mastigadores de coca, em cujos traços finos se encontra,
ainda hoje, qualquer coisa dos contornos fisionômicos dos vasos de figuras que nos
ficaram dos Incas. Foi a Cuzco, cheia de evocações da conquista, e cuja Universidade
de 1598 ainda hoje conserva as tradições do ensino superior entre a mocidade
peruana. Viajou naquelas 100 milhas do pequeno caminho de ferro peruano, o mais
alto do mundo. E de lá desceu ao “grande desconhecido”, ou como ele chama – “the
dead heart of South America”, o vale amazônico599.
Dentre os fatos descritos pelo autor inglês, está o contato com a droga, tema recorrente nas
narrativas sobre o Amazonas600, “extraída de uma planta chamada ‘yahgué’ e que tem o efeito
597
ARENDT, Hanna. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 187.
SPURR, David. Myths of Anthropology: Eliot, Joyce, Lévy-Bruhl, PMLA, Vol. 109, No. 2 (Mar. 1994), p. 267.
599
ATHAYDE, Tristão de. Viajantes, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 set. 1926, p. 4
600
“A Amazônia sempre esteve ligada à imagem da droga. De fato, foi uma prática imemorial das culturas que
existiam ali, antes da chegada do Ocidente. A ‘ayahuasca’ [...] nos Andes, o ‘caapi’ ou ‘yahgué’ no Brasil, são,
entre tantos outros, os nomes de uma bebida alucinógena ritual, manipulada pelos xamãs, pajés, curandeiros de
diferentes etnias com fins proféticos, como fontes de sabedoria ou prazer, experiência com o sagrado, busca de
experiências transcendentais, finalidades terapêuticas no sentido do diagnóstico ou tratamento, entre outras
utilidades”. PIZARRO, Ana. Amazônia. As vozes do Rio. Imaginário e modernização. Belo Horizonte: UFMG,
598
535
curioso de colocar a quem a toma num estado em que a consciência perfeita se perde, e o
subconsciente se abre a comunicações telepáticas”601. O crítico considera o livro exótico até
para os sul-americanos, devendo-se reconhecer que a “real South America é uma coisa muito
mais complexa e profunda em que o pitoresco do sr Five é apenas um dos elementos em fusão”.
Outro viajante, o aviador e explorador britânico, Georg Miller Dyott, contaria em seu
Silent highways of the jungle (1922), suas travessia da região Amazônica desde o Peru até o
Brasil. Na cidade de Mayobamba, o viajante teria visto a floresta como uma fuga da
“civilização” ao encontrar com um português que ali vivia exilado por ter “saciado da existência
artificial das capitais” e buscado uma “vida simples”. A região, porém, seria paupérrima e tal
simbolismo perde sua força quando se nota que o lugar era marcado pelo êxodo constante que
o arruinara, tendo sido “tragado que foi pelos insaciáveis seringais antropófagos”, concedendose o mesmo destino a andinos e cearenses, conforme nota o crítico.
Também o norte-americano Fritz W Up de Graff, no livro Head hunters of the Amazon
(1923), fazia da Amazônia um local de aventuras e desafios ao homem civilizado. O crítico
destaca, dentre as várias narrativas do explorador, o evento que inspiraria o título da obra:
[...] a luta em que se empenhou, com um bando de índios Aguarunas contra os seus
inimigos Huambisas, e a preparação que assistiu dos horríveis troféus de guerra,
essas cabeças desossadas, com grandes cabelos e lábios cozidos, de que podemos
ver no Museu Nacional algumas peças. [...] os seus companheiros se apoderaram de
uma mulher inimiga, apenas moribunda, e lhe deceparam a cabeça, dificilmente, com
o machado de pedra, enquanto outros a seguravam para não fugir, até o momento em
que enchem a cabeça descraneada, se é possível dizer, com areia quente e passam na
face uma pedra também quente para preparar a pele.
Tristão de Athayde lembra a figura de uma índia catolicizada descrita pelo viajante e que tinha
permissão de administrar certos sacramentos, mas que acabara perseguida pelos inimigos de
sua tribo e vivia em busca de seus “companheiros de maloca”. Aí o crítico via um bom motivo
para um “romance indianista”. Da mesma forma ele dizia sobre o autor da obra Na planície
Amazônica (1926) que, sendo “comandante de ‘gaiola’ nos rios amazônicos, por anos e não sei
se ainda hoje, tivesse o senhor Raimundo Morais uma sombra de gênio literário de Joseph
Conrad, comandante de navio mercante, como ele, poderia ter escrito um livro admirável”602.
Um dos viajantes estrangeiros que mais foi elogiado por Tristão de Athayde era o
alemão Theodor Koch-Grünberg que teria dedicado “longos anos ao estudo de nossos indígenas
dessas regiões do noroeste, e a sua grande obra em cinco volumes ‘Vom Roraima zum Orinoco’
(1923), é a mais completa que temos sobre essa região”603. Grünberg representaria a segunda
fase de uma série de autores alemães que tinham na América do Sul o objeto de seus estudos,
2012, p. 186.
601
ATHAYDE, Tristão de. Viajantes, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 set. 1926, p. 4.
602
ATHAYDE, Tristão de. Inferno ou paraíso, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 set. 1926, p. 4.
603
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Viajantes, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 set. 1926, 4.
536
de modo que o crítico retoma uma interessante cronologia feita por certo Walter Schuck na
revista bibliográfica alemã Das Deutsche Buch (Literalmente, O livro alemão)604:
Na consideração literária da América do Sul por escritores alemães, desenham-se
claramente três fases: a dos descobridores e aventureiros, a que pertencem as
descrições de um Ulrich Schmidl e de um Hans Staden, do século XVI; em seguida,
a dos pesquisadores e viajantes, que vão do início do século XIX ao começo do
século XX e são caracterizados por nomes como Martius em seu início e KochGrünberg, em seu fim. O terceiro período, finalmente, o atual, que já começava antes
da guerra, mas que só a partir de 1920 alcançou seu pleno desenvolvimento: podese designá-lo como o tempo das descrições econômicas605.
Assim, o crítico acentuava a complexidade exigida nas considerações sobre o
“primitivismo” no Brasil e a própria Amazônia exemplificaria tal condição:
O Amazonas é o que nós temos de mais futuro. [...] Desde o início de nossa história
que atrai a audácia dos descobridores, ambição dos aventureiros, a fé apostólica dos
missionários e hoje em dia preocupa os romancistas mais inovadores: em 1539,
espantava a Europa com as narrativas fantásticas de Orellana, e em 1926 fornece a
Blaise Cendrars páginas ardentes em seu último romance de aventuras606.
Reconhecer a complexidade do território amazônico seria a maneira de melhor compreender o
que tal parte constituinte do país realmente implicaria no debate sobre a identidade nacional:
Por lá vagueiam ainda as tribos mais primitivas do nosso autóctone, aquelas “tribos
fantasmas”, que não admitem contato algum com o branco, e das quais apenas até
hoje se conhecem os rastos misteriosos pelas selvas, em torno dos poucos (ou
loucos), que se tem aventurado a procurá-las – e lá também, em cidades improvisadas
como Porto Velho ou Guajará Mirim, se acotovela a população mais cosmopolita da
terra, na sede de enriquecer ou de esquecer, desde o japonês silencioso e tenaz ao
nobre russo ou alemão, na miséria, desde o inglês fugido a uma página de Joseph
Conrad ao sírio regatão.
Neste sentido, o crítico destaca os tipos diferentes que já se destacavam no território:
Há três classes de homens da Amazônia. O filho das selvas, o indígena inserido na
mata, para quem a vida só é possível nessa fusão primitiva ou final com a natureza.
[...] Há, em seguida, o amazonense branco ou mestiço, o mateiro, o seringueiro, o
canoeiro, o nativo da região, cuja vida decorre entre o verde da floresta e o pardo das
águas, vida apenas humana, de luta contínua com a natureza, de inadaptação
permanente, mas fazendo, de qualquer forma o elo entre a nacionalidade e o caos. É
o grande elemento esquecido. O senhor da terra que vive como um escravo. A
esperança humana nesse deserto de homens. E, finalmente, o civilizado, que pretende
penetrar o mistério desse mundo sombrio. O naturalista, o etnólogo, o político, o
aventureiro, o missionário, o viajante, o romancista.
Talvez por essas considerações, Tristão de Athayde recebia o “Manifesto Antropófago”
como um “neo-indianismo”, ao passo que a obra Macunaíma seria uma expressão do “nosso
totalismo nacional”. A versão mistificadora da nacionalidade oposta à apreciação sintética do
país. Ao abordar o primeiro número da Revista de Antropofagia dirigida por Alcântara Machado
e Raul Bopp, o crítico considerara admirável o “poeminha do sr Mário de Andrade” ali lançado
604
Sobre as perspectivas distintas dos viajantes sobre o território Amazônico ver: PIZARRO, Ana. Amazônia. As
vozes do Rio. Imaginário e modernização. Belo Horizonte: UFMG, 2012, p. 38-112.
605
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Viajantes, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 set. 1926, 4.
606
ATHAYDE, Tristão de. Inferno ou paraíso, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 set. 1926, p. 4.
537
e indicava a Plínio Salgado, que publicara o texto “A língua Tupi”, a leitura da obra de KochGrünberg e a do etnógrafo sueco Erland Nordensklöld que “estudou as migrações sulamericanas buscando nas palavras que os índios empregaram para designar termos importados
com os brancos de objetos antes inexistentes, como caixinha, cavalo, vaca, banana, etc.”607
O grande objeto da análise, porém, era o “Manifesto Antropófago”. Este foi abordado
em seu texto original e a partir de uma entrevista supostamente concedida por Oswald de
Andrade à sucursal paulista do O Jornal que trazia por título “A nova escola literária - Os
‘antropófagos’ paulistas” e anunciava o lançamento do periódico para aquela semana608. O
próprio Oswald, entretanto, escrevera de Paris a Tristão de Athayde para dizer que a entrevista
que saíra no O Jornal não era dele609, apesar de a matéria guardar muitas semelhanças com o
que dias depois viria a público610. Talvez por essa razão, o crítico nunca tenha incluído o artigo
nos livros que reuniam seus estudos. Consequentemente, grande parte da análise ficara
prejudicada. Porém, é possível destacar seus traços principais. Tristão de Athayde reiterava a
vinculação de Oswald de Andrade a uma orientação primitivista sobrepondo suas afirmações
de dois anos antes com aquelas que vinham agora a público, em contraposições como esta:
“Dizia eu: ‘a Europa... falira em sua tarefa’. Diz ele agora: - ‘A Europa faliu, meu amigo,
definitivamente. Faliu. Há muito vinha agonizando desde a Revolução Francesa de 89’”611.
O foco principal de Tristão de Athayde era a crítica às ideias Freud e aos ataques aos
princípios religiosos que o Manifesto incorporava. Cabe ressaltar que o texto foi lançado à
época em que o crítico estava finalizando seu processo de conversão religiosa, ao passo que o
intelectual paulista abandonava seu catolicismo. Questionava-se a perspectiva freudiana, então
amplamente abraçada por Oswald de Andrade, que via na origem das religiões o processo de
transformação do tabu antropofágico e incestuoso em totem. Trata-se da narrativa hipotética
baseada em Darwin segundo o psicanalista alemão em que numa suposta horda originária
reinaria o pai sobre todas as mulheres do clã primitivo, expulsando reiteradamente os filhos
masculinos do grupo. Estes, por seu turno, pelo desejo de também cometerem o incesto, se
reúnem, abatem e devoram o pai, pondo fim à horda primeva, conforme o psicanalista alemão:
O fato de haverem também devorado o morto não surpreende, tratando-se de
canibais. Sem dúvida, o violento pai primevo era o modelo temido e invejado de
cada um dos irmãos. No ato de devorá-los eles realizavam a identificação com ele, e
607
ATHAYDE, Tristão de. Neo-indianismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mai. 1928, p. 4.
Nova escola literária. Os antropófagos paulistas. Como o sr Oswald de Andrade fala do credo, O Jornal, Rio
de Janeiro, 18 mai. 1928, p. 9.
609
Cf. Carta de Oswald de Andrade a Tristão de Athayde, 10-7-1928, acervo CAAL.
610
Algumas “coincidências” entre a entrevista e o “Manifesto Antropófago” podem ser elencadas: referência a
Revolução Francesa e à Declaração dos Direitos dos Homens como algo dependente de “nós”; a morte do Bispo
Sardinha como data inaugural; a contraposição dos missionários ao antropófago; citação do nome de Keyserling
somado, na entrevista, aos de Spengler e Soffici; a valorização da alegria. Cf. Nova escola literária. Os
antropófagos paulistas. Como o sr Oswald de Andrade fala do credo, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 mai. 1928, p. 9.
611
ATHAYDE, Tristão de. Neo-indianismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mai. 1928, p. 4.
608
538
cada um apropriava-se da parte de sua força. A refeição totêmica, talvez a primeira
festa da humanidade, seria a repetição e a celebração desse ato memorável e
criminoso, com o qual teve início tanta coisa: as organizações sociais, as restrições
morais, a religião. (...) Eles odiavam o pai, que constituía forte obstáculo a sua
necessidade de poder e suas reivindicações sexuais, mas também o amavam e o
admiravam. Depois que o eliminaram, satisfizeram seu ódio e concretizaram o desejo
de identificação com ele, os impulsos afetuosos até então subjugados tinham de
impor-se. Isso ocorreu em forma de arrependimento, surgiu uma consciência de
culpa, que aí equivale ao arrependimento sentido em comum. O morto tornou-se
mais forte do que havia sido o vivo (...). Aquilo que antes ele impedia com sua
existência eles proibiram então a si mesmos (...). Eles revogaram seu ato, declarando
ser proibido o assassínio do substituto do pai, o totem, e renunciaram à consequência
dele, privando-se das mulheres então liberadas612.
O crítico, então, a fim de relativizar tanto o conhecimento freudiano quanto a teoria
darwinista, evoca os estudos do anatomista holandês Louis Bolk que acabava de divulgar
resultados parciais de suas pesquisas em um artigo na Revista do Ocidente. Neste sentido,
Tristão de Athayde destacava que “a ciência do século XIX, dogmática como era, afirmou ter
descoberto a origem do homem. Mas os tempos andaram, e essa origem continua envolta em
mistérios. Continua em pleno período de hipóteses”613. O crítico afirma que na definição do
homem aí não haveria qualquer poesia: “um feto de primata chegado à madurez sexual”, daí
nomear-se a sua perspectiva como “teoria da fetalização”. Sinteticamente, considera Bolk:
Os caracteres que diferenciam o homem do macaco não representam nenhuma
propriedade que tenha adquirido no curso do tempo, mas que se apresenta na
evolução do feto dos primatas... O que, no curso da evolução dos macacos foi uma
fase de trânsito (embriológico) no homem se converteu em estádio final de sua
forma614.
Segundo a apreciação de um autor recente, a teoria de Bolk é uma heresia antropocêntrica no
interior da teoria da evolução por conceder tal lugar singular à espécie humana entre os
primatas, ao mesmo tempo, porém, ela proporia questões interessantes sobre diversas
diferenças do desenvolvimento humano em relação a outros mamíferos e primatas615. De
qualquer forma, a teoria de Bolk, que segundo o crítico estaria causando “sensação nos círculos
científicos alemães”, era um golpe no evolucionismo darwinista:
A fetalização não foi consequência de uma adaptação a circunstâncias exteriores
variáveis, nem a resultante de uma seleção natural ou sexual... e sim de uma causa
funcional interna. Em resumo: a ‘humanização’ é consequência de um princípio
unitário, orgânico616.
O pensamento de Bolk não estaria totalmente apartado das perspectivas vitalistas da biologia
que viam o desenvolvimento da vida segundo alguma força interna, específica e misteriosa617:
612
FREUD apud. NODARI, Alexandre. A transformação do Tabu em totem: notas sobre (um)a fórmula
antropofágica, dasQuestões, n. 2, fev. 2015, p. 10.
613
ATHAYDE, Tristão de. Neo-indianismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mai. 1928, p. 4.
614
BOLK apud. ATHAYDE, Tristão de. Neo-indianismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mai. 1928, p. 4.
615
Cf. VERHLUST, J. Louis Bolk revisited: Is the Lung a Retarded Organ?, Medical Hypotheses, no 40, 1993,p.
312.
616
ATHAYDE, Tristão de. Neo-indianismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mai. 1928, p. 4.
617
JONES, D V. The racial discourses of life philosophy, p. 73.
539
Existe no organismo humano qualquer coisa de “especifico”, que distingue o “bíon”
humano de todas as formas zoológicas mais afins. A forma humana se diferenciou
em virtude dessa força vital específica: Ou, como ele o diz – “o essencial do
‘morphon’ humano é apenas um sintoma do ‘bíon’ humano”618.
Esta reflexão sobre as ideias de Bolk, que faziam o homem descender do homem, era
mobilizada por Tristão de Athayde a fim de apresentar a Oswald de Andrade a “transitoriedade”
do conhecimento científico: “Como a ciência vai deglutindo os seus próprios ídolos! E como
vai compreendendo, também, de mais em mais, que a transitoriedade é a sua lei e deve ser o
seu orgulho”. A própria antropofagia ganharia em Bolk uma interpretação radicalmente distinta
daquela pensada por Oswald de Andrade a partir de uma visão freudiana:
As mudanças na alimentação durante a evolução histórica do homem, a passagem a
onívoro de um organismo que era frugívoro... é um fator cuja significação merece
ser meditada. E hesito em exprimir aqui, ainda que seja em forma de pergunta, uma
ideia que me ocorre sempre que penso neste ponto: não é possível que a antropofagia
tenha desempenhado um papel importante, que haja sido um estímulo para a
evolução superior da humanidade? (sic) Não estão mais retardadas aquelas raças cuja
alimentação se compõe principalmente de elementos vegetais? (com vistas ao sr
Bernard Shaw e aos senhores vegetarianos)619.
Por mais estranhas que tais ideias possam nos parecer hoje em dia, não se pode esquecer o vigor
que gozaram, tendo sido mobilizadas por diferentes contextos intelectuais e culturais, desde a
teoria do espelho do psicanalista Jacques Lacan620 até empreendimentos de agricultura
sustentável621. O próprio Oswald de Andrade fez menção aos estudos de Bolk, já em 1950,
elencando-o ao lado outros teóricos da evolução humana no trabalho A crise da filosofia
messiânica, com que pretendia uma cadeira para lecionar filosofia na USP622.
Ao criticar o suporte científico de Oswald de Andrade, Tristão de Athayde acreditava
poder modificar a sua visão sobre a antropofagia, talvez lhe retirando a perspectiva freudiana
em função de outra mais acorde com a religião:
No tempo em que o sr Oswald de Andrade era católico, essa invocação à autoridade
de um “cientista”, não lhe importaria muito. Hoje, porém, que está de corpo e alma
(?) convertido ao freudismo, e adora o “totem racial” e outros deuses modernos, penso que a apologia de Bolk sobre a antropofagia lhe será de alguma utilidade...623
De fato, segundo o crítico, manifesto não seria apenas “antropófago”, mas “theófago”:
618
ATHAYDE, Tristão de. Neo-indianismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mai. 1928, p. 4.
BOLK apud. ATHAYDE, Tristão de. Neo-indianismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mai. 1928, p. 4.
620
“De acordo com Lacan, que tomou emprestada ideia do embriologista holandês Louis Bolk, a importância da
fase do espelho deve ser associada à prematuridade do homem ao nascer, a qual é demonstrada objetivamente pela
incompletude anatômica do sistema piramidal nas crianças e suas capacidades imperfeitas de coordenação física
durante os primeiros meses de vida”. ROUDINESCO, Elisabeth. The mirror stage: an obliterated archive. In:
RABATÉ, Jean-Michel (Org.). The Cambridge companion to Lacan. Cambridge: Cambridge University Press,
2003, p. 30.
621
Neste sentido, há na Holanda um Instituto Louis Bolk, fundado em 1976, e explicitamente associado à memória
do cientista. Cf. http://www.louisbolk.org/about-us-2
622
Cf. ANDRADE, Oswald de. A crise da filosofia messiânica. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo:
Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p. 108.
623
ATHAYDE, Tristão de. Neo-indianismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mai. 1928, p. 4.
619
540
Ele prega esse evangelho naturista, apoiado em textos de etnógrafos, em opiniões de
filósofos, em exemplos europeus. Prega a adoração do “totem racial” porque acha
que Freud é a última palavra em filosofia da religião. Prega a antropofagia contra a
Europa, baseado no culto ao “yogis” do filósofo de Darmstadt. Prega o neoindianismo invocando o profeta da decadência ocidental624.
O “filósofo de Darmstadt” é Hermann von Keyserling citado nominalmente no “Manifesto
Antropófago”. Elogiado em outra ocasião pelo crítico, Keyserling, agora, ao lado de Freud e
Spengler, era tido como um dos “descristianizadores do mundo moderno”. Oswald de Andrade
estaria, em seu abandono do catolicismo, abraçando o “cientismo moderno”:
Há em tudo isso uma conversão ao cientismo contemporâneo, ao mais efêmero
cientismo que está levando o mundo moderno, não à volta à natureza, mas ao mais
inflexível mecanicismo. O modernismo cientista europeu e norte-americano só vê
no mundo de hoje, ou um progresso mecânico salvador, com Marinetti, John dos
Passos, os neorrealistas alemães pós-expressionistas, ou os russos e norteamericanos em sua maioria [...] ou então a volta ao instinto animal, com Freud, a
volta à Ásia primitiva, com Spengler, à volta ao magismo, ao yoguismo, ao budismo,
com Keyserling (em certa decadência, aliás na Alemanha hoje, é preciso advertir [...]
Já não se pode hoje em dia invocar Spengler e Keyserling como dois homens típicos
da nova Alemanha, como há dez anos se podia. O mundo marcha terrivelmente
acelerado, e é preciso estar a cada momento retificando as nossas agulhas
magnéticas).
Assim, o “neo-indianismo” da antropofagia representaria uma “traição” à real
condição nacional:
O que há, portanto, de angustioso nas entrelinhas do sr. O. de A. é justamente essa
traição (por que não dizer a palavra?) do que temos justamente de mais puro, de mais
ingênuo, de mais instintivo, de mais primitivo em nós. É trair a nossa infância
verdadeira, por amor de um academismo às avessas, de um academismo das selvas
tão falso, quanto o academismo dos salões. E tão artificial e “importado” como ele.
[...] E é por sentir justamente o que há de verdadeiro nessa volta às coisas
elementares, que há no “neoindianismo realista” de hoje (em oposição literária ao
primeiro “indianismo romântico” de Gonçalves Dias e Alencar), que eu me indigno
contra o que há nele de imitação cultural e falsificadora, de subserviência aos ídolos
europeus modernos.
Dessa forma, o “primitivismo brasileiro” não poderia simplesmente abstrair da história e das
tradições nacionais em nome de uma mistificação segundo escolas filosóficas, estéticas e
teóricas estrangeiras. Ele opõe-se à forma como Oswald de Andrade repeliria “de um gesto só,
todo o nosso passado da Cruz, para se lançar furiosamente no precolombianismo. E se o fizesse
ingenuamente, como os indianistas de outrora, ou como um filho da natureza, eu ainda veria
sem temor algum, e antes com alegria, essa sua volta às fontes”.
Ao falar de Oswald, o crítico fazia algumas considerações sobre o lugar que
determinados nomes do modernismo ocupavam no interior da cultura intelectual brasileira:
Sempre fui censurado por tomar a sério o sr Oswald de Andrade. Mas continuo a
fazê-lo. Penso mesmo que poucos homens merecem ser tomados mais a sério que
ele. Todo o seu “humour” colossal, todo o seu sarcasmo, todo o seu imenso desdém
pela literatura, tudo isso é profundamente sério. E sem uma sombra de cabotinismo.
624
ATHAYDE, Tristão de. Neo-indianismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mai. 1928, p. 4.
541
É um caso absolutamente típico e que deve ser estudado realmente como uma das
expressões mais “livres” e ao mesmo tempo, mais “escravos” do mundo moderno625.
Entretanto, haveria um “certo ridículo em falar de coração aberto a quem fala em símbolos de
espírito, como o delicioso – ‘tupy or not to tupy that is the question’ do ‘manifesto’ do sr Oswald
de Andrade”. Mas ele continuaria a escrever sobre o paulista, pois daria “mais importância a
um manifesto ‘antropófago’ ou ‘theófago’, de um maluco como o sr Oswald de Andrade, do
que a vinte orações acadêmicas ou solenidades propiciatórias a príncipes em prosa e verso”. A
“alegria” do paulista, porém, não ia muito bem com o “sentido trágico da vida” do crítico:
Na nossa literatura mais moderna só há alegria “real” em S Paulo. Despreocupação
total, desdém por tudo mais, libertação absoluta do passado, gargalhada franca, tudo isso só há em S Paulo e muito especialmente no sr O de A. Por que? Porque só
São Paulo pode ser realmente alegre, no Brasil. Só S Paulo é feliz. Forte. Sem
problemas que o ameacem fundamentalmente. Rico. Vendo o Brasil inteiro
dependendo dele. Dando as cartas na política dominante. Dando as cartas ainda em
campo contrário, na política candidata à “dominante” de amanhã. Com uma raça
mais forte. Um clima mais temperado. Uma terra mais produtiva. Mais
comunicações. Mais tudo... S Paulo pode rir. E por S Paulo ri o “pau brasil”, ri a
“antropofagia”. Rirá amanhã a nova invenção do Serafim Ponte Grande.
De qualquer forma, o ímpeto primitivista seria algo fundamental à compreensão
realista do país:
[...] há em todo esse movimento primitivo uma imensa dose de benefícios à nossa
literatura. Há uma aproximação da terra. Há uma supressão de academismos
ridículos. Há um piparote em todos os artifícios importados ou elaborados aqui. Há
um desejo imenso de pureza. Há um rejuvenescimento das fontes de inspiração. Há
a renovação da língua, o seu contato com as nossas condições de terra e de gente.
Há, enfim, o mais sadio dos realismos.
Aí residiria, talvez, a distância que o crítico via entre o “Manifesto Antropófago” e Macunaíma.
Ademais, era o próprio Mário de Andrade que alertava o crítico sobre o erro de fazer o segundo
derivar do primeiro. Numa carta em que enviava a Revista de Antropofagia, Mário comentava:
Antes de mais nada: não tenho nada com ela [a revista] mas já estou querendo bem
ela por causa de ser feita por amigos. Só colaboro. Quanto ao manifesto do Osvaldo...
acho... nem posso falar que acho horrível porque não entendo bem. [...] Os pedaços
que entendo em geral não concordo. Tivemos uma noite inteirinha de discussão
quando ele inda estava aqui. Mas a respeito dos manifestos do Osvaldo eu tenho uma
infelicidade toda particular com eles. Saem sempre num momento em que fico
malgré moi incorporado neles. Da primeira feita quando o Osvaldo andava na Europa
e eu tinha resolvido forçar a nota do brasileirismo meu [...] o Osvaldo me escrevia
de lá “venha pra cá saber o que é arte”, “aqui é que está o que devemos seguir” etc.
eu devido minha resolução, secundava daqui: “só o Brasil é que me interessa agora”,
“Meti a cara na mata-virgem” etc. O Osvaldo vem da Europa, se pau-brasilisa, e eu
publicando só então o meu Losango Cáqui porque antes os cobres faltavam, virei
pau-brasil pra todos os efeitos. [...] Agora vai se dar a mesma coisa. Macunaíma vai
sair, escrito em dezembro de 1926, inteirinho em seis dias correto e aumentado em
janeiro de 1927, e vai parecer inteiramente antropófago... Lamento um bocado essas
coincidências todas, palavra626.
Ele conta como foi o processo de escritura de Macunaíma, da maneira como esta obra diferia
625
626
ATHAYDE, Tristão de. Neo-indianismo, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mai. 1928, p. 4.
Carta de Mário de Andrade a Alceu Amoroso Lima, 19-5-1928, acervo CAAL.
542
dos seus trabalhos anteriores que eram “conscientes por demais para serem artísticos”:
Macunaíma não. Resolvi escrever porque fiquei desesperado de comoção lírica
quando lendo o Koch-Grünberg percebi que Macunaíma era um herói sem caráter
moral nem psicológico, achei isso enormemente comovente nem sei porquê, de certo
ineditismo do fato, ou por ele concordar um bocado bastante com a época nossa, não
sei... Sei que me botei dois dias prá chácara de um tio em Araraquara levando só os
livros indispensáveis prá criação seguir como eu queria e záz, escrevi feito doido,
você não imagina, era dia e noite, de noite até esperava meu tio cuidadoso de saúde,
fechar a luz e dormir e acendia a minha de novo reprincipiava escrevendo... Seis dias
e o livro estava completo. Só faz três meses mais ou menos que juntei mais uma
cena. Mas poli e repoli tantas vezes que careci recopiar três vezes o original. Na
verdade o que sai publicado é a quarta redação!627
Mário de Andrade garantia, ainda, que enviaria ao crítico os dois prefácios que fizera para
Macunaíma que acabaram não sendo publicados na primeira edição da obra. Segundo o autor,
tais textos “ficavam enormes e inda não diziam bem o que eu queria dizer. Além disso o segundo
me pareceu bem pretencioso. Desisti. Mas assim como estão, num manuscrito terrível e a lápis,
vou mandar eles de presente pra você, quando o livro for”.
Dessa forma, o autor de Macunaíma preparara o crítico de maneira bastante
contundente sobre o significado da obra e sua independência cronologicamente atestada. Tal
distinção é explicitada pelo crítico comentando que iria cometer um “uma indiscrição
necessária” a fim de evitar “interpretações as mais fantasistas”628:
Pois bem, a primeira retificação que nos permitem os prefácios inéditos, que tenho
em mãos, é mostrar que “Macunaíma” é muito anterior ao último manifesto do sr
Oswald de Andrade, que passeia atualmente o seu indianismo pela beira do Sena,
entre os supra-realistas, soprando zarabatanas no Montagnet, bebendo Kachiri no
Fouquet’s e dando entrevistas às “Nouvelles Littéraires”629. É de 1928 o
neoindianismo paulista. Macunaíma, porém, é de dois anos antes, em dezembro de
1926 [...] A versão definitiva é de 23-12-26 a 13-1-27.
Ele lembra que, apesar de ser um personagem mitológico conhecido pelos viajantes e
missionários, apenas na obra de Koch-Grünberg é que se “fixou verdadeiramente o ciclo de
Macunaíma, entre os índios da região da Roraima, especialmente entre os Taulpang e os
627
Carta de Mário de Andrade a Alceu Amoroso Lima, 19-5-1928, acervo CAAL.
ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
629
Referência ao artigo com depoimentos de Oswald de Andrade, inclusive com uma caricatura sua feita por Carlo
Rim, em que ele faz algumas considerações sobre o movimento antropofágico. Dentre outras coisas, ele diz que o
Brasil não havia ainda proclamado a sua “independência étnica”, que o país teve “dois grandes inimigos: os
missionários e os governos gerais portugueses”, mas que não deveria se desprezar os aventureiros, os forçados e
os negros, que a antropofagia tinha um sentido antes filosófico que simbólico, que “nossa raça nada tem que ver
com o Ocidente nem com o Oriente. Nós somos submetidos às influências equatoriais. O México atingiu à
valorização da civilização indígena. Eles têm como nós uma visão pessoal do mundo”. Sobre a antropofagia, dizia
se tratar de uma “comunhão”, na ação de “devorar o inimigo vencido para que suas virtudes se passem para nós”.
O brasileiro pretendia “corrigir” as noções de Freud e de James Frazer acerca do tabu: “Perguntamos ao índio por
que ele não adora Deus; o índio responde: ‘porque o Deus é bom’; O diabo era adorado porque ele perturbava.
Nosso ponto de vista religioso se opõe vivamente àquele que nos impuseram os ocidentais. Nós somos
antropófagos”. Mas, Oswald de Andrade adicionava: “Veja-se bem eu não rejeito as belas coisas que vocês nos
trouxeram: a máquina, o automóvel. Mas eu quero que o Brasil de outrora renasça. Sem revolução: o papel
impresso é mais forte que as metralhadoras”. Malles et Valises. São Paulo – Paris. Oswald de Andrade, Nouvelles
Littéraires, artistiques et scientifiques, Paris, 14 jul. 1928, p. 2.
628
543
Arekunás”. Neste sentido, destaca-se a diferença radical com as visões que os missionários
tiveram do personagem: “A primeira menção conhecida de Macunaíma data de 1868, ao que
parece. Está num livro do missionário inglês W H Brett, sobre as tribos de Guyaná. Brett
registrou essa figura como sendo um ‘Ser invisível, todo bondade e grandeza’”. Tal visão
representaria um “grande engano”, pois, como assinalava Koch-Grünberg, o caso era de um
“espírito do mal, como embusteiro, trapacista e enredador”. Segundo o etnólogo alemão:
O nome do mais elevado herói da tribo, Macunaíma, contém como partes
componentes a palavra “Maku’ = mau e o sufixo aumentativo ‘ima’ grande. O nome
significaria, portanto – ‘o grande malvado’, o que bem corresponde ao caráter
nefasto e intrigante desse herói... Em todas as lendas que se ocupam com o herói, é
Macunaíma o mais importante entre os irmãos. A ele se juntam ora Zigé, ora Manána.
Pela sua audácia, coloca-se por vezes Makunaíma em más situações, das quais
consegue safar-se graças à esperteza do seu irmão mais velho. Makunaíma, como
todos esses heróis tribais, é um grande mágico. Ele transmuta homens em animais,
ou vice-versa, ora por punição, ora por simples malvadez.
O alemão registraria várias aventuras do personagem, como a luta com “o gigante antropófago
Piaimã e sua mulher”. Além disso, “Grünberg dá a todo esse ciclo mitológico uma significação
astral, de oposição entre o sol e a lua, segundo a interpretação corrente entre muitos etnólogos”.
Tristão de Athayde informa como o livro de Mário de Andrade incorporaria em sua
estrutura tais lendas. Contudo, isso era apenas a base etnológica da peça: “Não pense, porém,
que o livro é simplesmente uma romanceação de lendas amazônicas. É coisa infinitamente mais
complexa, como aliás tudo o que tem feito o sr Mário de Andrade, na sua busca ansiosa e capital
[...] por uma cultura nacional”630. A partir dos prefácios, apontam-se os aspectos principais que
teriam orientado a feitura da obra. Dentre eles, a falta de caráter do brasileiro:
Em outros povos, tanto extremamente civilizados como extremamente primitivos,
entre os franceses, os mexicanos ou os iorubas encontra ele essa personalidade que
falta ao brasileiro. Nos franceses, por civilização própria, nos mexicanos pelo perigo
norte-americano, nos iorubas, pelo resto de uma civilização primitiva. Mas nós não
temos nada disso631.
Daí sobreviriam análises realistas do país que beiravam a um pessimismo radical:
[...] o desapreço à cultura verdadeira, o improviso, a falta de senso étnico nas famílias
e sobretudo, uma existência de expedientes, enquanto a ilusão imaginosa, feito
Colombo de figura-de-proa, busca com olhos eloquentes na terra um eldorado que
não pode existir mesmo, entre panos de chão, e climas igualmente bons e ruins,
dificuldades macotas que só a franqueza de aceitar a realidade poderia atravessar632.
O crítico enumera algumas características do livro que permitiriam considerar Macunaíma
como o “brasileiro de hoje”, assim como “Venceslau Pietro Pietra, nome paulistano do gigante
Piaimã, é o imigrante” 633. Já o abandono da consciência que Macunaíma deixa na foz do Rio
Negro seria uma expressão daquela época. A cena do “branqueamento” também é relembrada:
630
ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
ANDRADE apud ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
632
ANDRADE apud ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
633
ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
631
544
Um dia, querendo tomar banho, e com medo das piranhas do rio, encontrou “numa
lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’água... Mas a água era encantada porque
aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava
pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho
estava branco, loiro e de olhos azuizinhos, a água lavara o pretume dele”. Quando
os irmãos viram aquilo também quiseram virar brancos. Primeiro entrou o Jiguê,
mas, - “a água já estava muito suja da negrura do herói e por mais que esfregasse
feito maluco, atirando água para todos os lados, só conseguiu ficar da cor de bronze
novo”. Quando Manapé foi tomar banho, só havia um pouco d’água no fundo e –
“Manapé conseguiu molhar só as palmas dos pés e das mãos. Por isso ficou negro,
bem filho da tribo dos Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são
vermelhas por terem se limpado na água santa”. E os três irmãos, num quadro
magnífico de expressão literária, em ritmo poético bárbaro, de grande efeito,
aparecem então como um símbolo transparente do Brasil634.
A linguagem do livro é elogiada, especialmente em frases ditas pelo herói como o “nunca viu
não?” que, na opinião do crítico, expressaria um “delicioso garotismo todo atual”.
Apesar de sua reflexão sobre o caráter brasileiro, Mário de Andrade expressaria nos
prefácios divulgados por Tristão de Athayde o total desinteresse em fazer um símbolo nacional:
Quanto às intenções que bordaram o esquerzo tive intenções por demais. Só não
quero é que tomem Macunaíma e outros personagens como símbolos. É certo que
não tive a intenção de sintetizar o brasileiro em Macunaíma, nem o estrangeiro no
gigante Piaimã... Me repugnaria a intenção minha dele ser o herói nacional. É o herói
desta brincadeira isso sim635.
Também a obscenidade da narrativa era levada em consideração, ao que o crítico comenta que:
Realmente, há em todo o livro mais que obscenidade, pornografia. Esse é um caráter
conhecido de todas as lendas de primitivos. Na introdução aos mitos dos Taurepángs
e Arekunás, Koch-Grünberg avisa logo que há algumas passagens tão obscenas que
ele não as reproduz. O que deve fazer arregalar os olhos a todos os freudianos à cata
de complexos...636
Mário ressaltava, porém, que “uma pornografia desorganizada é também uma cotidianidade
nacional”. Um dos aspectos mais elogiados no livro é a sua “desregeonalização”, espécie de
superação do regionalismo atestado em um dos prefácios:
Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a fauna e flora
geográficas. Assim, desregionalizava o mais possível a criação ao mesmo tempo que
conseguia o mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea,
um concerto étnico nacional e geográfico637.
Para Tristão de Athayde tal aspecto era exatamente o que concederia à obra um papel
representativo nacional e que permitiria admitir o simbolismo de Macunaíma:
E foi justamente esse caráter de unidade, de desregionalização, de verdadeiro
“unanimismo”, que há por vezes magnificamente no livro, - que levou o autor, depois
de composta a obra, a ver que ela deixara de ser uma simples brincadeira para ser
qualquer coisa de mais séria e geral638.
Dessa forma, o crítico reconhece em Macunaíma uma obra que representaria um passo
634
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
ANDRADE apud. ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
636
ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
637
ANDRADE apud. ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
638
ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
635
545
importante na produção literária nacional, especialmente pela atenção à “realidade” e à “vida”
nacionais, sempre reiteradas por Tristão de Athayde:
O sr Mário de Andrade é o homem menos romântico que possa haver. Nunca escreve
por paixão. Por prazer sim. Mas, sobretudo, por procura, por pesquisa, para encontrar
o Brasil. O Brasil-alma e o Brasil-corpo, mas não o Brasil-país. Penso que lhe falta
singularmente o sentido do nacionalismo político. Mas tem agudamente o senso do
nacionalismo orgânico e social, da busca do caráter que nos distinga na América e
nos marque pra sempre. Daí a sua irritação contra a nossa falta de personalidade e a
consagração dessa ausência em instintivo, por meio de uma figura como Macunaíma.
Pois queira ou não queira o “consciente” do autor, o que o seu subconsciente nos
deu, em Macunaíma, foi, em grande parte, o “homo-brasilicus” em toda sua
deficiência, embora sem os sinais de tese sistemática e antes uma enorme liberdade
de composição639.
Sobre a “liberdade de composição”, o crítico, ao ter de definir o enigmático gênero formal da
obra Macunaíma640, opta pela seguinte perspectiva:
Não é um romance, nem um poema, nem uma epopeia. Eu diria antes – um coqueteil.
Um sacolejado de quanta coisa há por aí, de elementos básicos de nossa “psique”,
como dizem os sociólogos. É um desses retratos-médios, em que se sobrepõem
várias fotografias diferentes e que acaba não se parecendo com ninguém641.
Mário respondeu negativamente à crítica. Na verdade, sequer respondeu à crítica, mas, sim,
talvez devido à publicação dos prefácios, expressou um sentimento de violação de privacidade:
Tristão, peço-lhe, de todo coração que não publique o artigo sobre Macunaíma. Só
pode ser este um pedido de amizade e por ela que eu peço. Esse artigo fere por demais
a minha intimidade de que sou tão orgulhoso que tenho sempre na minha
escrivaninha uma carta pedindo, caso eu morra, que meus inéditos sejam destruídos.
Principalmente anotações. Mas há também outra razão tão delicada como essa, e que
me leva a pedir por amizade sempre, que você se esqueça o mais que puder, mesmo
de todo, a minha personalidade literária. Está claro que continuo existindo
literariamente porém resolvi com resolução, me retirar por completo da crítica
oficial. Nunca mais quero mandar livro meu a crítico nenhum. Não faço dessa uma
questão pessoal pela crítica, não penso. Respeito a crítica e considero você
especialmente a melhor crítica que possuímos hoje. A notoriedade que já desejei, é
que me horroriza atualmente. Quando vejo meu nome citado isso me fere agora, sinto
essa espécie de violação de mim mesmo, fico chocado, desestimulado, com uma
vontade [...] de parar. Você que é mesmo um companheiro [...], respeite por favor a
minha paz642.
Por essa razão, Tristão de Athayde nunca reuniu em volume a sua crítica a Macunaíma. Após
esse caso, porém, os dois autores continuaram se correspondendo e, assim como Mário não
abandonou a crítica literária, também Tristão escreveu outras vezes sobre o autor paulista.
Macunaíma, apesar da recusa de seu autor, deveria ser tomado, na visão do crítico,
639
ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
Em sua clássica obra sobre Macunaíma, Cavalcanti Proença já apontara tal questão do gênero literário de
Macunaíma. Haroldo de Campos diz se tratar de um “romance rapsódia”. Berriel explorou cada um destes aspectos
de Macunaíma, tanto como rapsódia, quanto como um romance moderno. Cf. PROENÇA, M. Cavalcanti. Roteiro
de Macunaíma. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 6-8; CAMPOS, Haroldo de. Miramar na Mira. In:
ANDRADE, Oswald de. Obras completas. Vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. XV; BERRIEL,
Carlos Eduardo Ornelas. Dimensões de Macunaíma: Filosofia, gênero e época, p. 135.
641
ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
642
Carta de Mário de Andrade a Tristão de Athayde, s/data, acervo CAAL.
640
546
como uma síntese do caráter brasileiro ou da falta dele. Tristão faz uma consideração que pode
ser vista como uma perspectiva do processo geral das letras brasileiras nos anos 1920 em que a
obra é apontada como um ponto de chegada da “nossa que arte” que:
[...] por muito tempo [...] ficou além do foco. Fechada em preconceitos acadêmicos,
olhando pro Brasil através da Europa, escrevendo uma língua que se falava em
Portugal mas não mais aqui, pecava a literatura por excesso de literatura. Hoje em
dia estamos caindo no excesso oposto. E à custa de desliteralizarmos as letras, estão
elas ficando pra trás de nós. Falam uma língua tão “nossa”, que já não é nossa.
Refletem uma realidade tão “real”, que já não nos reconhecemos nela. E assim por
diante. Ou nos cenáculos, ou nos candomblés. No acidental sempre. Melhor este que
aquele aliás. E em Macunaíma isso é épico. O livro tem um significado considerável,
como toda a obra do sr Mário de Andrade, seja qual for a sorte futura de suas criações
isoladas. E revela no autor uma “verve” de expressão, uma assimilação de alguns
elementos de nossa formação étnica, de nossa alma, de nossos costumes, de nossa
paisagem, de nosso totalismo nacional, que são de fato só dele. E realmente
expressivos do que é a barbaria dos nossos fermentos em ebulição. O modelo do que
devemos “combater” em nós643.
Assim, Antropofagia e Macunaíma representariam dois pontos de chegada distintos no interior
do modernismo brasileiro dos anos 1920. Ambos, na visão do crítico, vinculados à expressão
“primitivista” (que os dois Andrades não reconheciam) que ganhara relevo no interior da cultura
intelectual brasileira àquela época. Porém, ao passo que o primeiro manteria uma relação
“mítica” e “mistificadora” com a tradição nacional, fazendo-se “antropófago” e mantendo-se
numa apreciação exótica das populações indígenas americanas, o segundo, por seu turno,
procuraria, através das pesquisas e da apropriação do conhecimento acerca de tais populações
e lendas, conceder uma forma à nação brasileira. Ambos procuram atender às expectativas
nacionalistas em um contexto internacional imperialista. Como dissera Oswald de Andrade em
sua entrevista ao jornal francês Nouvelles Littéraires: “Veja-se bem eu não rejeito as belas
coisas que vocês nos trouxeram: a máquina, o automóvel. Mas eu quero que o Brasil de outrora
renasça. Sem revolução: o papel impresso é mais forte que as metralhadoras”644. O índio de
automóvel ou, conforme diz no “Manifesto Antropófago”, o “bárbaro tecnizado de Keyserling”.
Ao passo que Oswald de Andrade queria fazer o brasileiro ser índio, Mário de Andrade faria do
índio uma figura que se abrasileirara e a morte de Macunaíma não deixa de conter tal
simbologia: “É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita
saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu”645. Mário
de Andrade ressaltaria o sentimento trágico da realidade nacional646, ao passo que Oswald de
643
ATHAYDE, Tristão de. Macunaíma, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 set. 1928, p. 4.
Cf. Malles et Valises. São Paulo – Paris. Oswald de Andrade, Nouvelles Littéraires, artistiques et scientifiques,
Paris, 14 jul. 1928, p. 2.
645
ANDRADE, Mário de. Macunaíma. São Paulo: Martins, 1978, p. 217.
646
Em carta a Tristão de Athayde, o próprio Mário de Andrade repreendia o crítico por este não reconhecer tal
aspecto em sua obra: “Não posso de verdade aceitar que não haja sentimento trágico da vida na minha obra”. Carta
de Mário de Andrade a Tristão de Athayde, 27-12-1927, acervo CAAL.
644
547
Andrade teria a confiança e o sorriso infinito dos novos ricos, como considerara o crítico.
Oswald de Andrade, intelectual cosmopolita, soube transitar com maestria em torno do que
esperavam dele na Europa. Foi bem sucedido como líder de vanguarda que associava à América
do Sul as realidades tropicais, indígenas, exóticas e temperadas por filosofias as mais
contemporâneas sem, porém, abraçar qualquer radicalização política. Mário de Andrade, por
seu turno, nunca viu sua obra Macunaíma ser sequer traduzida, o que ocorreu na França apenas
em 1979, já após as versões em italiano e espanhol, e, pra piorar, numa coleção dedicada a
hispanófonos e voltada ao boom latino-americano647.
As versões mais caras ao modernismo que procuraram cumprir com o desafio, que já
vinha se desenvolvendo no interior da cultura intelectual brasileira e foi por elas incorporado,
de criar a definição nacional a partir de uma acepção sintética unificada que desse conta da
língua, do caráter, do “tipo” humano, da “raça”, da história e dos horizontes futuros teriam
ficado, assim, nessa apreciação simbólica e “primitivista” da civilização brasileira, na
apreciação de Tristão de Athayde. Por essa razão, talvez, o crítico tenha reconhecido no
romance A Bagaceira, de José Américo de Almeida, uma nova orientação, uma “revelação”.
Tal juízo recebeu várias críticas, retificações e atenuações, tanto à época quanto pela
historiografia literária posterior648. Na apreciação do crítico, percebemos, entretanto, como,
pelo que até aqui foi exposto, a obra poderia dar uma nova orientação às perspectivas acerca do
país que vinham se formando no interior da cultura intelectual brasileira:
Pois esse livro é um romance da seca, e embora a considerando apenas em suas
repercussões e não diretamente, - talvez o grande romance do Nordeste pelo qual há
tanto tempo se esperava. Se não completo, ao menos intenso. O romance que
Euclides da Cunha teria escrito se fosse romancista. [...] O romance daquilo que os
“Sertões” foram a epopeia. Nem apenas um romance social; nem apenas um romance
de instintos, embora exagerando um pouco esta face em prejuízo daquela. Ambas as
coisas, ao mesmo tempo, e ambas com tal originalidade, tal firmeza de traço, tal
angústia de sentimentos profundos, bárbaros, primitivos, e ao mesmo tempo tal
requinte de psicologia em recolher a cada passo gotas de verdade profunda, - que
acabei o livro sentindo que nascera realmente alguém para exprimir não apenas o
horror do inexprimível daquela terra do Nordeste, mas um pouco de todo o homem
brasileiro de hoje. E dizê-lo duramente, mas sem grosseria. Asperamente, mas sem
brutalidade. Dizê-lo com o coração ferido e ao mesmo tempo com a alma apaixonada
e uma inteligência extraordinariamente penetrante649.
647
Cf. CASANOVA, Pascale. La République mondiale des Lettres, p. 407.
Mário de Andrade foi um dos que escreveu a Tristão de Athayde acerca da obra. Apesar de reconhecer na figura
de José Américo de Almeida “um paraibano de força”, julga que a obra é regionalista, “regionalíssima”, tanto que
acabou saindo com um glossário. Porém, paradoxalmente, Andrade refletia que era tão regional o livro que acabava
se desregionalizando, numa lógica que parecia mostrar que o Brasil era tão regionalizado que apenas sendo
regionalista se poderia ser nacional e, como ele mesmo considerou: “Engraçado onde veio chegar meu
pensamento... Palavra que não imaginava neste argumento a favor de você quando principiei argumentando”. Cf.
Carta de Mário de Andrade a Tristão de Athayde, 22/04/1928, acervo CAAL. As perspectivas acerca do juízo e do
lugar da obra de José Américo no interior da história literárias foram sintetizadas em: BUENO, Luís. Uma história
do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
649
ATHAYDE, Tristão de. Uma revelação, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 mar. 1928, p. 4.
648
548
O romance traria os conflitos emergentes nos anos 1920 entre “civilização” e “barbárie” e entre
o velho e o novo expresso nas contradições entre Lúcio, moço formado na capital, e o pai,
Dagoberto, proprietário de engenho na Paraíba. Além de ser “escrito em brasileiro” e retratar
de maneira dramática a realidade dos retirantes, o que mais parece ter chamado a atenção de
Tristão de Athayde era a impotência de Dagoberto que, após o falecimento do pai, modernizara
o engenho. Isso significava prover educação aos trabalhadores, higienização do ambiente,
abolir os “sambas bárbaros” e os cocos, disciplinar o trabalho, maquinizar a produção etc. De
alguma forma, criara-se a felicidade, mas não havia alegria. O desencanto maior é quando
chegam novos retirantes e os trabalhadores do engenho, que antes estavam na mesma condição
de desamparo, recusam dar estadia aos necessitados. Seria uma lição contra os otimismos
excessivos, a verificação euclidiana que retornava, ao fim da década, para lembrar a distância
entre litoral e sertão. O otimismo do dinamismo de Graça Aranha, assim como o do “bárbaro
tecnizado”, não parece atingir um fim satisfatório nos processos de modernização do engenho
que reiteram a experiência trágica da realidade brasileira. Tal perspectiva, porém, será
desenvolvida na produção romanesca brasileira posterior, o que comprovará o caráter precursor
de tal obra. Ao mesmo tempo, entretanto, o sucesso de A Bagaceira deveu-se muito, talvez
totalmente, à crítica extremamente positiva que Tristão de Athayde lhe fizera, conforme lhe
dizia o próprio autor: “Basta-me, pois, ter sido revelado pelo mais prestigioso dos paraninfos.
É tamanha a sua autoridade, que de toda parte me chegam pedidos do romance, de literatos, de
pessoas desconhecidas e de livrarias”650. E, quatro meses após a crítica de Tristão de Athayde,
o escritor lhe comunicava que o livro saía em terceira edição e com um glossário651. O romance
A Bagaceira, porém, marca um começo, um princípio, que terá seu desdobramento nos anos
seguintes e, especialmente, na década de 1930. As obras de 1928 de Oswald de Andrade e Mário
de Andrade, por seu turno, podem ser vistas como um ponto de chegada da reflexão acerca da
civilização brasileira nos anos 1920 no interior do modernismo.
As três Américas
Para além das reflexões que procuravam olhar para o interior do país e aí verificar a
sua especificidade, havia o movimento inverso, ou seja, de se ressaltar a relação que o Brasil
teria com seus vizinhos continentais do sul e com os americanos do norte. Já no século XIX, os
Estados Unidos se apresentaram no cenário internacional como uma nação de potencial
imperialista. Desde a doutrina do presidente James Monroe (1823) e do Corolário do Presidente
James Polk (1848) os EUA, ao mesmo tempo em que firmavam a inviolabilidade do continente
650
651
Carta de José Américo a Tristão de Athayde, 2/04/1928, acervo CAAL.
Carta de José Américo a Tristão de Athayde, 10/06/1928, acervo CAAL.
549
americano ao colonialismo, faziam-se detentores do “direito natural de intervenção para
conservar a tranquilidade de todos os americanos”652. A relação dos diplomatas brasileiros com
o “monroísmo” e com o pan-americanismo terá uma longa fortuna crítica situando intelectuais,
como Joaquim Nabuco e Oliveira Lima, em campos opostos. Dessa forma, o federalismo
republicano norte-americano teve fundamental importância na formação dos Estados Unidos
do Brasil, em 1889, assim como seus críticos contundentes, como o escritor Eduardo Prado e
sua obra A Ilusão Americana (1890) censurada pelo governo federal em 1893.
Esta condição norte-americana é das mais duradouras. Sobre tal realidade histórica,
Tristão de Athayde lembra que haveria uma característica comum entre os países da América:
O povo diz que muita coisa antes de ser já era. O Brasil e a América em geral, foram
um pouco assim. Antes de saberem o que nós iríamos ser já as nações brigavam nas
nossas costas ou antes sobre as nossas esperanças. E já éramos objeto de tratados e
dissidências internacionais653.
Antes do monroísmo emplacar como política internacional hegemônica no Novo Mundo, o
crítico retoma a experiência e as expectativas políticas da época da Independência do país:
Quando deixou de ser governado da Europa, e seus homens começaram a possuir a
consciência da nova nacionalidade, sentiram imediatamente a necessidade de uma
mudança radical de regime, por meio de uma aproximação com as demais colônias
em via de libertação completa. Um interesse análogo à oposição aos manejos
recolonizadores da Europa provocou a nova política de aproximação, que vinha
corresponder aos anelos já manifestados por Bolívar e outros vultos de libertadores
sul-americanos, e veio frutificar no Congresso de Panamá, em 1825654.
Uma vez, porém, que o horizonte recolonizador ficava mais distante, o país se afastaria
novamente de seus vizinhos, tanto pela questão do regime político adotado, quanto pela
diferença linguística. Dessa forma, especialmente o Segundo Império brasileiro teria adotado
uma política exterior de isolamento e intervenção. Criava-se uma autoimagem de país “muito
orgulhoso da ordem” que colocara “o império numa posição de nacionalidade formada em face
de nacionalidades em formação”. Na opinião do crítico, essa política, que nomes como o do
diplomata Heitor Lira parecia defender, era um erro fundamental:
Repetir hoje a política dos gabinetes imperiais é revelar ignorância total das
circunstâncias de então e de agora. Cercados de países de civilização idêntica à
nossa, que já não podem ameaçar a nossa ordem interna; tendo aprendido a
desdenhar essa cândida ilusão de hegemonia (que o sr Lira ainda parece alimentar)
que o império mantinha; compreendendo os interesses que nos ligam aos nossos
vizinhos; verificando, a cada passo, que as forças econômicas é que mantêm as
nacionalidades em sua base; tendo vivido a trágica inutilidade dessa guerra
monstruosa em que só houve vencidos; possuindo, enfim, a noção dos novos ideais
com que a América pode trazer um pouco de luz e de frescura às velhas civilizações
que nos criaram – tudo nos leva a voltar a essa política admirável de realismo e de
presciência que o nosso grande José Bonifácio traçava em 1822.
652
Cf. CASTRO, Fernando Luís Vale. O pan-americanismo nas páginas da Revista Americana, Cadernos do
CHDD. Centro de História e Documentação Diplomática (FUNAG), ano 7, no 12, p. 272.
653
ATHAYDE, Tristão de. Brasil nação e Brasil país, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 fev. 1928, p. 4
654
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 mai. 1923, p. 1.
550
O crítico ponderava que o nosso “‘interesse’ é, hoje, pensar como os homens da Independência,
e não com os do segundo reinado”655.
Assim como o significado do Brasil no concerto das nações era objeto de apreciações
e definições a partir de viajantes europeus e americanos, as Américas também têm o seu caráter
civilizacional delineado neste tipo de produção. De partida, porém, era preciso reconhecer que
era “inegável que aquilo que o mundo entende geralmente por americanismo está encarnado no
Norte”656. Neste sentido, o livro do intelectual francês André Siegfried, Les Etats Unis
d’Aujourd’hui (Os Estados Unidos de Hoje), era bastante claro a esse respeito:
Para Siegfried não existe a América Latina ou, pelo menos, não existe o espírito da
América Latina. A seu ver somos apenas satélites dos Estados Unidos. Fregueses
dos seus produtos industriais ou fornecedores de matéria prima. Simples agentes
comerciais. Quando ele se refere à “América”, entende sempre a América do Norte.
Quando fala em “espírito americano” entende sempre o que nasceu à sombra das
“stars and stripes”. Só nos Estados Unidos existe uma “personalidade”. Só eles
criaram uma civilização nova. Só eles descobriram um novo sentido da vida657.
Seria preciso reconhecer que “se o século XIX foi, entre nós, o século da França e da Inglaterra,
parece que o século XX se anuncia como o século dos Estados Unidos e da Rússia”.
Dois aspectos fundamentais marcariam a especificidade dos americanos do norte em
relação aos do sul: o protestantismo e o fordismo. O primeiro estaria tornando cada vez mais
claras as diferenças entre as américas do sul e do norte, especialmente pela imigração:
A política imigratória tem sido, pois, o eixo da política norte-americana. E as últimas
leis de imigração, não só limitando ao extremo a introdução do estrangeiro, mas
criando sobretudo um verdadeiro proibicionismo contra a civilização de origem
mediterrânea, e, portanto, a nossa civilização – mostram bem claramente que os
Estados Unidos desejam repudiar categoricamente a civilização de origem latina
acentuando, portanto, a distinção entre as duas Américas.
Por um lado, a tecnologia permitiria a redução virtual das distâncias a partir do telégrafo, “hoje
as distâncias variadas se anulam pelo tempo uniforme. Sabemos, à mesma hora, o que [...] se
passou em S Paulo ou no Afeganistão”658. Por outro lado, as políticas de imigração impediriam
o trânsito real das pessoas. Ele lembrava as críticas do russo Ritter Von Schaeffer à política
brasileira que, em 1813, proibia a entrada no país de qualquer acatólico, o que, em 1928, era
visto como um “atraso mental e social inacreditável”. O crítico ironiza que, no século XX:
[...] nos pareça muito natural, e progressista, e moderno, e emancipado, e livre que
venha um conferente revistar a nossa roupa de uso íntimo, que venha um agente da
polícia indagar de nossas opiniões sociais, ou um guarda de polícia de costumes
esmerilhar nossos papeis de casamento. Em 1813, indagava-se das crenças religiosas
e do passaporte. Hoje indaga-se do passaporte, das bagagens, das crenças políticas,
dos costumes privados, do estado de saúde. Um caso típico e autêntico se deu aqui
com Blaise Cendrars. Cendrars perdeu um braço, em combate, durante a guerra. Pois
655
ATHAYDE, Tristão de. Vida Literária, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 mai. 1923, p. 1.
ATHAYDE, Tristão de. No país da vontade, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 mai. 1925, p 1.
657
ATHAYDE, Tristão de. Nós, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 abr. 1928, p. 4.
658
ATHAYDE, Tristão. Romancista tuberculoso, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 nov. 1925, p 1.
656
551
a nossa Polícia do Porto não queria, de forma alguma, permitir o seu desembarque
porque os regulamentos de imigração proibia o desembarque de mutilados...659
Haveria, antes, uma força sedutora da civilização norte americana a veicular o
“misticismo do êxito” que caracterizaria o “nacionalismo protestante”. De nada valeriam as
críticas à execução controversa dos anarquistas italianos Sacco e Vanzetti, a irritação contra os
automóveis, a indignação com as “descomposturas da Light” ou do dólar:
A sedução é mais profunda. É mais inconsciente. É de todos nós. E pode sempre
justificar-se. Faz-se dia a dia, sem querer, sem sentir, por onde menos se pensa. Fazse pelo cinema, sobretudo. [...] Dessa hipnotização de duas horas contínuas sobre
uma massa de gente passiva, como que dissolvida pela música incessante, e deixando
inocular o subconsciente sem querer de tudo o que se passa na tela. Quando se
discute gravemente sobre reformas sociais, sobre ideias novas, sobre movimentos de
inteligência, de arte ou de ciência, quando os historiadores procuram na história o
mistério do mundo de amanhã, e os sociólogos e os economistas e os filósofos
quebram a cabeça para adivinhar os novos destinos do homem, eu fico pensando que
nada valerá de nada se se deixar de lado a ação do cinema sobre o homem de hoje.
[...] O futuro o dirá melhor que nós. Hoje o que se pode dizer, com segurança, é que
o cinema é o meio de expansão mais formidável que jamais a humanidade conheceu,
como os Estados Unidos, são também, hoje em dia, a massa de homens de poder
mais formidável que jamais a história viu reunida e como é lá mesmo o centro da
irradiação da indústria cinematográfica, - a conclusão só pode ser uma660.
E o que se levava ao mundo eram os costumes do “self-made man”, um “moralismo puritano
[que] procura a justificação do dinheiro”, o “honesto idealismo” dos Rotary Clubs, que estariam
a se “espalhar pelo universo”, de um “cheerfull idealism” feito por “homens otimistas e
satisfeitos” e “todo ele fundado na concepção do servisse, isto é, da utilidade coletiva,
coincidindo com a prosperidade econômica do indivíduo”. O “nacionalismo protestante” uniria
individualidades e coletividade segundo a racionalização da vida:
Hoje, no afã de racionalizar tudo (pois o moralismo puritano, o proibicionismo, o
fundamentalismo, são tudo formas vulgares de racionalização) é também a alegação
moral e social da vantagem coletiva, e da eficiência prática de rendimento da energia
humana, que justifica o culto à pequena família pela disseminação consciente do
birth control, sob pretexto de eugenia.
Em termos similares, Antonio Gramsci, posteriormente, faria a apreciação do
americanismo no interior do contexto internacional:
Numa entrevista [...] Pirandello afirma: “o americanismo submerge-nos. Creio que
um novo farol da civilização se tenha aceso lá em baixo”. [...] Mas o problema não
é saber se na América existe uma nova civilização, uma nova cultura, mesmo ainda
no estado de “farol” [...] se o problema tivesse que colocar-se assim, a resposta seria
fácil: não, não existe. [...] Que não se trate, no caso do americanismo, entendido não
só como vida de café, mas também como ideologia do Rotary Club, de um novo tipo
de civilização, vê-se pelo fato que nada mudou no caráter e na relação dos grupos
fundamentais: trata-se de um prolongamento orgânico e de uma intensificação da
civilização europeia, que apenas assumiu uma nova pele no clima americano661.
659
ATHAYDE, Tristão de. Tobias Barreto, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 dez. 1926, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Eles e nós, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 nov. 1927, p. 4.
661
GRAMSCI, Antonio. Americanismo e fordismo. Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978, p. 337338.
660
552
Mesmo que não se tratasse realmente de uma “nova civilização”, Tristão de Athayde sublinhava
a força sedutora que a imagem dos Estados Unidos exerceria sobre os brasileiros em geral:
Não há brasileirinho triste, que indo de manhã (digamos de manhã) para a repartição,
não sinta calafrios de inveja ao ver nos cartazes de cinema aquelas americaninhas
loiras que passam a vida dançando e aqueles latagões de óculos ou sem óculos que
passam a vida às gargalhadas. Terra de otimismo, que injetou na música triste e
intelectual da Europa a alegria bárbara do jazz, e renovou o cômico requintado de
hoje com a “plain truth, of things”, que o Carlitos veio mais uma vez lembrar ao
velho mundo exausto de cortar cabelos em quatro. Para nós aqui o americano é um
misto de Light, Country Club e Cinema. Vida exterior, atividade, confiança.
Puerilidade e alegria. Otimismo sempre662.
Pode-se dizer, porém, que a grande feição dos Estados Unidos da América propagada
nos anos 1920 era o fordismo. Símbolo da exuberância material dos “irmãos do norte”, o
fordismo, especialmente após a Primeira Guerra, era a marca de uma civilização bem sucedida
do outro lado do Atlântico, algo inédito. Monteiro Lobato, como se sabe, era grande admirador
de Henry Ford, lamentava a “francesice”, o atraso brasileiro e via, em Ford e nos EUA que
despontavam, os líderes do mundo moderno. Ford seria o verdadeiro escritor de uma “Bíblia
de amanhã”, ao ter resolvido o problema da caridade, eliminando a sua necessidade em Detroit
como Colombo “resolveu o problema do ovo”. E devia o Brasil segui-lo: “O mundo existe. A
vida é uma realidade. O exame é tudo. Mas o caruncho, a idade média, a mentira tradicional, o
crânio com missanga dentro, ao invés de matéria encefálica – tudo isso é morte, e morte da pior
espécie, da que se ilude pensando que é vida”663.
A primeira apreciação que Tristão de Athayde fizera do fordismo foi francamente
positiva. Ao comentar a obra editada por Monteiro Lobato, Minha vida, minha obra, ele dizia:
Sendo um livro cujo alcance social talvez venha um dia a ser comparado ao do
Capital de Marx, é uma obra cheia de defeitos, improvisada, repetida, desordenada,
com detalhes ridículos ou desnecessários, com certas ingenuidades da raça e sem
preocupação de coordenar os materiais de dar à obra unidade e perfeição664.
Seria um livro “fascinante” em que um “fabricante de latas em quatro rodas” comparava-se a
São Paulo pelo seu ímpeto de reformador social, o crítico sugere ainda outra comparação:
Se aos olhos de algum Romain Rolland citarmos, conjuntamente, os nomes de
Ghandi e Ford, ele gritará arrepiado pelo sacrilégio. Pois bem, entre o milionário
Ford, filho da abominável civilização mecânica do ocidente e o iluminado Ghandi
rico apenas da pureza de sua alma imemorial do oriente contemplativo – talvez seja
o abominável milionário de cujas mãos tenham provindo e hão de provir maiores
benefícios para os homens.
Assim, os aspectos morais do fordismo representariam potencialmente os freios ao
desenvolvimento da “civilização mecânica do ocidente”. Conforme o crítico, a economia
capitalista desde o século XIX teria consolidado uma situação em que “o ideal é o êxito, é a
662
ATHAYDE, Tristão de. Pessimismo norte-americano. O Jornal, Rio de Janeiro, 19 jan. 1924, p 1.
LOBATO, Monteiro. Ideias Novas - Bíblia de amanhã, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 nov. 1926, p. 4.
664
ATHAYDE, Tristão de. Ford, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 out. 1925, p. 4.
663
553
especulação, é a fortuna rápida, e por todos os meios, a livre expansão do indivíduo, a aposta,
tudo que represente justamente a expansão sem limites do espírito de economia capitalista
especulativa”665. O fordismo, porém, viria trazer uma outra perspectiva a esse respeito:
Ford veio justamente colocar-se contra essa corrente que animava todos os seus
compatriotas fundadores de indústria, desbravadores de terras, estendedores de
trilhos, criadores, enfim, dessa assombrosa civilização mecânica que poderá ser o
túmulo da civilização ou a sua renovação, conforme o espírito que o homem
conservar no meio dela. Ford veio dizer muito simplesmente: tudo isto está errado.
Segundo Gramsci, tratava-se de uma “necessidade imanente de chegar à organização de uma
economia programática”666. Embora Tristão de Athayde esteja distante do espectro político do
italiano, não se pode perder de vista a maneira como o “americanismo e o fordismo” instituíramse como tema fundamental às reflexões teóricas, econômicas e culturais durante o século XX.
A finalidade coletiva e cristã estabelecida por Ford era a pedra de toque da apreciação
de Tristão de Athayde que citava as palavras do industrial americano:
A vida é fácil ou difícil segundo a habilidade ou a incapacidade que se manifestam
na produção e na circulação das riquezas. Por muito tempo se acreditou que a
indústria só tinha por objetivo o lucro. É um erro. A indústria tem por objetivo o
interesse geral. Constitui uma profissão e é necessário que tenha uma moral
profissional... A indústria se tornará um dia honesta... Seus defeitos que residem,
quase sempre em sua constituição moral, dificultam o seu desenvolvimento e a cada
momento fazem com que adoeça. Algum dia a moral da indústria será
universalmente observada667.
Assim, o fordismo poderia ser uma forma de se evitar o decadentismo ocidental cantado por
inúmeros filósofos, teóricos, artistas e políticos: “Se a América ouvir a palavra de Ford – o que
reconheço será muito difícil – terá realmente renovado o mundo moderno em seus fundamentos
sociais, e o Ocidente poderá talvez, transformar o seu ocaso em uma aurora”668.
O entusiasmo do crítico e industrial com o fordismo foi bastante efêmero. Daí
considerar, posteriormente, como Henry Ford e o político Eugene Chen acreditavam “no
progresso contínuo, com mais convicção do que Lamartine acreditava na República. Lirismo
ao menos”, de maneira que “a fé no progresso, do nosso século, é baseada em cifras de
taylorismo ou apoiada nos amáveis carrascos que acompanham os generais chineses, de
penacho branco e mãos vermelhas”669. A preocupação era alertar os americanos do sul:
O dever primordial, portanto, de toda nacionalidade moderna e especialmente de
toda nacionalidade americana não norte-americana, é estudar o que realmente
representa essa formidável potência do norte – que até hoje cresceu em número e
poder – e hoje começa a crescer em eficiência e originalidade.
E é esse horizonte imperialista dos Estados Unidos que deveria ser criticado pelos autores do
665
ATHAYDE, Tristão de. Ford, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 out. 1925, p. 4.
GRAMSCI, Antonio. Americanismo e fordismo. Obras escolhidas, p. 311.
667
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Ford, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 out. 1925, p. 4.
668
ATHAYDE, Tristão de. Ford, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 out. 1925, p. 4.
669
ATHAYDE, Tristão de. Eles e nós, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 nov. 1927, p. 4.
666
554
sul. Tal condição era explícita no discurso de certos viajantes, como Roy Nash. Neste sentido,
a Amazônia, fonte de simbolismos e interpretações da identidade nacional, assim como de
potencial produtivo e de exploração econômica, era, na apreciação norte-americana, um
horizonte de colonização direta. Sem “literatura”, por assim dizer:
[...] não vem dizer que a Amazônia é incivilizável; diz apenas “como” devemos
civilizá-la. E nesse “modo” de fazer é que está todo o perigo que devemos conhecer.
[...] E o que o sr Roy Nash se mostra, acima de tudo, é exatamente esse escultor
atrevido, que nos julga uma massa aproveitável, mas aproveitável para a “sua”
civilização, para o “seu” ideal, para o “seu” imperialismo de cultura670.
Dessa forma, o realismo latino americano verificaria a superioridade dos americanos
do norte, mas isso não poderia levá-los à resignação:
É incontestável que entre a originalidade da civilização norte-americana e a sulamericana, é deles de longe a supremacia. Não falo apenas em supremacia de força,
de poder, de progresso material. Essa não se discute. Refiro-me ao espírito, ao
impalpável, ao sentido da vida. Há nos Estados Unidos uma personalidade nova e
própria, que nós ainda não conseguimos formar. [...] Eles são eles. Nós ainda não
somos nós. E estamos muito arriscados a não ser nunca. Não propriamente por culpa
deles. Não chegamos ainda a fazer-lhes sombra. São por isso muito cordiais conosco.
Só tem a ganhar com isso. A culpa é nossa. [...] Temos por isso muito mais a fazer e
com muito menos forças. Daí o atraso considerável em que estamos e estaremos
sempre em relação a eles. Daí a justificação daqueles que nos veem apenas como
asteroides de valor secundário ao lado do grande planeta do Norte671.
Porém, viajantes que buscavam escapar da “civilização” vieram parar na América do Sul e
procuraram lhe descrever as especificidades, como o médico francês Raymond Penel que:
[...] como tantos outros decidiu partir. Uns foram viver a vida trepidante das grandes
cidades norte-americanas, os grandes dínamos do futuro, como Luc Durtain. Outros
buscaram refúgio entre os emblemas da foice e do martelo, como Aragon. Outros
foram buscar emoções entre os revolucionários de Cantão, como André Malraux.
Outros, na esteira de Gauguin, refugiaram-se entre os coqueiros de Tahiti, como esse
Marc Chadourne, ou aquele estranho Robert Keable, que acaba de morrer por lá,
desesperando da civilização e deixando-nos dois ou três romances admiráveis.
Outros ainda foram embrenhar-se nos trópicos, entre os índios mexicanos, como D
H Lawrence. Outros... Mas a lista não terminaria, nem as modalidades variadas com
que cada um procurava respirar, procurava fugir ou esquecer.
O fato é que o crítico admirou o livro de Penel, Sud contre Nord. Croisières Latines. Argentine,
Uruguay, Brésil, Espagne, que, apesar de ser formado por “simples impressões de passagem”,
ser mal escrito e ter vários defeitos, defendia a latinidade dos latinos, por assim dizer. O francês
depositava grande esperança no “Continente Atlântico”, expressão usada para nomear a
América do Sul, segundo a passagem citada e comentada pelo crítico: “‘Que esperamos nós do
Atlântico? Que ele nos livre do materialismo anglo saxão (só?) que cerca e cobre o mundo – a
salvação simplesmente’. Quando estaremos à altura dessa obra de ciclopes?”672.
Tristão de Athayde fazia reparos às apreciações de Keyserling, tão celebrado entre os
670
ATHAYDE, Tristão de. Como nos veem, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 mai. 1928, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Nós, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 abr. 1928, p. 4.
672
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Nós, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 abr. 1928, p. 4.
671
555
modernistas brasileiros, que não reconhecia a singularidade civilizacional da América Latina:
Penso, aliás, que para os homens de alma, que procuram valores morais, antes que
valores econômicos, políticos ou sociais, é a América do Sul um campo de
observação talvez mais rico e fecundo que o norte do Continente. É por isso que não
compreendo como Keyserling, em sua viagem à procura de si mesmo, desdenhou
totalmente da América do Sul. Encontraria aqui menos nitidez de traços novos, - mas
uma luta interior mais profunda, uma complexidade maior, um embate mais vivo de
tendências recebidas e adquiridas, uma alma mais dramática do que entre eles [os
EUA]. Mas o efeito dos índices práticos da civilização é sensível mesmo aos mais
libertados dele. E por isso o sábio de Darmstadt esqueceu a América do Sul673.
De qualquer forma, eram os latino-americanos que deveriam afirmar a sua singularidade e
importância no interior do cenário imperialista. Mas os latino-americanos pareciam viver
atraídos pelas antigas metrópoles. Este seria o caso brasileiro: “um dos pontos de divergência
entre o Brasil e as demais nações sublatinas da América, é justamente a maior proximidade da
Europa que a história de sua inteligência demonstra”674. Tal situação reforçava o isolamento do
Brasil no continente, conforme o crítico refletia quando Raymond Penel lhe dizia sobre:
[...] a grande dificuldade que há para um europeu em não se sentir o centro do mundo,
em ter de compreender, em ser forçado, especialmente depois da guerra, a ver os
povos como eles são em si mesmos, sem referência alguma à Europa. E eu lhe
respondia que conosco se dava um pouco do contrário. O nosso perigo era
compreender demais. Vivemos perdidos de compreensão. Compreendemos todas as
línguas, todos os povos, todas as civilizações. Somos latinos, no Mediterrâneo, e
germanos no Báltico. Somos contemplativos, no meio da “jungle” e pragmáticos em
Broadway. [...] Dizia-me há muitos o velho Souza Bandeira: - “Eu nunca vi Paris.
Desde a primeira vez que lá fui, só fiz rever”675.
Assim, na relação entre os brasileiros e os latino-americanos reinaria a seguinte dinâmica:
Nunca nos preocupamos por saber o que se escreve e o que se pensa nesses países
que confrontam conosco, e eles por sua vez nos ignoram copiosamente. Cada vez
que um uruguaio, um argentino, um chileno, um mexicano, um peruano nos visita,
são exclamações, surpresas, revelações, desilusões e tudo o mais que o inesperado
provoca. Cada vez que nos abalançamos a ir até lá, o mesmo se dá, inversamente676.
Muito se falava, porém, no interior da cultura intelectual brasileira acerca da
necessidade de uma maior proximidade entre o Brasil e seus vizinhos sul-americanos. Afinal,
seriam os latino americanos “povos do mesmo tipo social, filhos da mesma origem, passamos
pelos mesmos transes e seguimos a mesma trajetória, na formação das nossas respectivas
pátrias”677. Latino-americanos compartilhariam, assim, do fato de não serem nem portugueses,
nem espanhóis, mas “raças” em formação que promoveram imigrações similares. Uma
identidade até nos problemas: educação popular, economia tarda, finanças, indústria,
agricultura e transporte. Segundo tal perspectiva, o “pan-americanismo requer [...]
preliminarmente, uma aliança ibero-americana, inteligente, leal e sincera”.
673
ATHAYDE, Tristão de. No país da vontade, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 mai. 1925, p 1.
ATHAYDE, Tristão de. Livros do Sul, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 mar. 1925, p. 1.
675
ATHAYDE, Tristão. Gazeta, O Jornal, Rio de Janeiro, 03 jun. 1928, p. 4.
676
ATHAYDE, Tristão de. Livros do Sul, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 mar. 1925, p. 4.
677
LEÃO, A C. Pan-americanismo e aliança ibero-americana, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 dez. 1921, p. 1.
674
556
Em 1928, foi criado o Instituto Pan-Americano de Alta Cultura, segundo resolução da
Sexta Conferência Pan-Americana. Era, porém, uma invenção “simbólica” devido às
dificuldades de sua concretização. Tratava-se de um grande plano de intercâmbio intelectual e
cultural que permitiria “estabelecer o contato capaz de dissipar aquela nociva ignorância mútua”
e, ainda, a “finalidade mais alta como elemento capaz de criar e de consolidar a mentalidade
pan-americana, que ainda não existe”678. Assim, percebe-se que a identidade brasileira
comungada e inserida no horizonte americano, apesar de teoricamente verificável, não se
constituía como uma realidade tangível, ficando sempre no domínio das possibilidades.
Durante a década de 1920, por várias ocasiões, Tristão de Athayde escrevera sobre a
relação do Brasil com as Américas. O crítico revela-se sinceramente cético quanto a tais
“aproximações” ensaiadas, pois estas seriam uma espécie de “lirismo internacional”. Ao invés
de traçar planos para uma futura união, ele relatava os desencontros e o isolamento do Brasil
em meio à América do Sul. Assim, lembrava as considerações de Miguel de Unamuno:
Son, en las Repúblicas del Plata, tan poco y tan mal conocidas las producciones
literarias y científicas del Brasil, como aquí son poco y mal conocidas las de
Portugal? No sé por qué, me inclino a sospechar que sí. Ahí, entre naciones de lengua
española, hay una gran nación, en vía de rápido progreso, de lengua portuguesa. No
debería ser esto una razón para que los americanos de lengua española se interesaran
por el espíritu que se vierte en lengua portuguesa? Un providencialista creería que el
haber metido Dios ahí una gran nación de habla portuguesa entre las naciones de
habla española es para que un día se integre ahí, como aquí se integrará, el común
espíritu ibérico, al que le están aquende y allende al Océano reservados tan grandes
destinos679.
Apesar de não considerar justificável tal isolamento, Tristão de Athayde explora as diferenças
e similitudes entre as Américas, procurando traçar uma teoria das Américas.
Deste modo, ele falava sobre o romancista argentino Marcelo Peyret:
As três Américas continuam a ser, não a do Norte, Centro e Sul, e sim a anglo, a
hispano e a luso-americana. O fator humano supera o fator geográfico. E os três
blocos podem confundir-se mas não fundir-se. O que não justifica de forma alguma
a ignorância recíproca, que alguns nobres espíritos procuram corrigir680.
Apesar das similaridades da América Latina quando oposta à Inglesa, as diferenças entre os
países de colonização ibérica só superficialmente permitiram notar uma identidade entre eles:
Do México à Patagônia existe de fato uma comunhão moral, cortada embora de
rivalidades, de incompreensões, de preconceitos, de ignorâncias e desdéns
recíprocos, que nos dão a nós a ilusão de que essas divisões são irreparáveis. Maior
do que todas, naturalmente, é a oposição entre o Brasil e os demais povos sublatinos
do continente. Não podemos esconder a barreira que a língua e a tradição política
impõem, contrariando outros postulados de aproximação – como a raça, a religião, a
arte, os ideais, a civilização material, a cultura toda de origem neolatina, a alma
afinal681.
678
AMARAL, Azevedo. Intercâmbio intelectual Pan-Americano, O Jornal, Rio de Janeiro, 31 mai. 1928, p. 4.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Letras Sul-Americanas, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 abr. 1923, p 1.
680
ATHAYDE, Tristão de. Romancista tuberculoso, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 nov. 1925, p 1.
681
ATHAYDE, Tristão de. Livros do Sul, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 mar. 1925, p. 1.
679
557
O crítico advogava a criação de uma cadeira de Civilização Americana a fim de dar conta destas
relações, tanto em um nível intelectual, quanto no político.
Segundo o crítico, a criação de tal cadeira como disciplina obrigatória nos cursos
secundários trataria de mostrar aos alunos que haveria no “continente problemas peculiares a
ele, e que o Brasil está cercado de nações irmãs, de origem semelhante à sua, cuja história, cuja
língua, cujo progresso é muito mais necessário saber do que a de nações remotas, que só
platonicamente nos interessam”682. Consequentemente, tal perspectiva cumpriria um papel
histórico de se dar conta do fato da singularidade do Brasil entre os países da região:
Pode-se dizer que somos a menos americana das nações da América. Já no período
colonial, era isso patente pela educação de nossas elites. Enquanto nas outras nações
vizinhas, iam todos, em geral, estudar nas Universidades do Chile ou de Chuquisaca
[...] todos os nossos homens de certo relevo, estudaram em Coimbra, pois só com D
João VI se cogitou de instrução superior entre nós. Depois da independência
também, o regime político que adotamos, concorreu imensamente para manter o
espírito europeu entre nós, em detrimento do espírito americano. O contrário
acontecia nas Repúblicas vizinhas, cuja instabilidade política teve ao menos a
vantagem de conservar-lhes e estimular-lhes o senso da americanidade.
A formação brasileira deveria incorporar tal identidade americana, sul-americana, que longe de
residir em um “primitivismo”, deveria ancorar-se na história e na compreensão recíproca:
Uma cadeira de civilização americana terá por objetivo situar a nossa história na
corrente geral da história do continente, mostrar a evolução das ideias, as
diferenciações de cultura, a grandeza crescente de umas, a decadência de outras, as
razões de aproximação, e a história de cada qual, a sua literatura, os seus costumes,
os seus ideais, os seus homens, tudo que revele o que há de natural e de fictício em
nosso isolamento e sobretudo os motivos de trabalhar por objetivos comuns e reagir
contra a rotina da ignorância dos homens a quem entregamos por vezes a nossa sorte
e que nada aprenderam na amarga experiência europeia e nada vislumbram na aurora
deste continente.
Por mais de uma vez o crítico voltou a tal questão683, tendo inclusive sugerido que
Vicente Licínio Cardoso seria um bom nome para fazer o programa de tal cadeira da
“Civilização Americana”684. Ao considerar que “nada tem concorrido para afastar os povos
como as chamadas ‘aproximações’. Não há sintoma mais perigoso de desinteligência do que o
lirismo internacional”685, Tristão de Athayde via em ações como a da criação de uma disciplina
escolar, uma maneira de se superar a distância cultural entre o país e o continente. Além disso,
o crítico empenhou-se em fazer da sua coluna periódica um espaço para se tratar de temas da
história e da literatura latino-americana, além de recorrentemente trazer à tona as questões que
surgiram nessas relações internacionais. Reivindicava-se, agora, um realismo latino-americano
que transparecia na análise do livro de Oliveira Lima sobre a Argentina:
Pretendendo contrariar o preconceito, tão arraigado quanto incabível entre nós, da
682
ATHAYDE, Tristão de. Sugestões, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 de abr. 1923, p 1.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. O Batismo da América, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 mai. 1928, p. 4.
684
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Columbia, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 out. 1925, p 4.
685
ATHAYDE, Tristão de. Letras Sul-Americanas, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 abr. 1923, p 1.
683
558
animosidade argentina para com o Brasil, lançou-se o Sr Oliveira Lima no
preconceito contrário, da cordialidade necessária. Confessa que se inscreve em uma
“obra de cordialidade internacional” [...] Se é certo que “a ignorância é a causa mais
frequente das antipatias”, que a aproximação dos dois maiores países da América do
Sul é tão necessária quanto explicável sua rivalidade, que a obra de reconhecimento
e penetração recíprocas é a mais nobre das tarefas internacionais, públicas e
particulares, que nativismos injustificáveis e inveterados preconceitos tem retardado
uma evolução inadiável e frutuosa. Se é certo que tudo nos tem “separado” e nos
deve tudo levar a “unir-nos”, menos exato não é que um livro escrito sob a pressão
de um tal sentimento, por mais nobre que lhe sejam os objetivos, perde o mais puro
sabor do seu interesse – o desinteresse686.
Dessa forma, temas “espinhosos” deveriam ser tratados da maneira mais objetiva
possível, a fim de se consolidar uma medida mais exata nas apreciações identitárias acerca de
cada país do continente sul-americano, assim como das rivalidades entre eles. Tal era o caso
das disputas sobre a história da Guerra do Paraguai envolvendo historiadores brasileiros e
paraguaios. O crítico contrapõe os trabalhos do historiador paraguaio Juan E O’Leary que seria
um dos criadores do “Lopizmo”, ou seja, da visão historiográfica que celebra a ação do
presidente paraguaio Francisco Solano López, ao dos brasileiros Batista Pereira e Luiz da
Câmara Cascudo, ambos “antilopiztas”. Segundo o crítico, apesar de reconhecer maior rigor de
análise na perspectiva dos brasileiros, “o ‘lopizmo’, bem como o ‘antilopizmo’, são
reminiscências de romantismo histórico. Ambos profundamente inatuais. E testemunhas do
nosso provincianismo sul-americano”. Por tal razão, devia-se convir que assim como o
argentino D. Juan Manuel Rosas, “Lopez está esperando ainda o seu grande historiador objetivo
e desapaixonado”. Era preciso sair do provincianismo, de uma historiografia de “adjetivos”, na
qual “vence quem possui o seu arsenal mais bem artilhado, mais verboso e gongórico”687.
Assim, tanto a cordialidade de Oliveira Lima, quanto a ferocidade de “lopiztas” e “antilopiztas”
ficariam aquém das expectativas. Pior, porém, que as disputas provincianas em torno de
temáticas que mereciam maior investimento intelectual, eram os esquecimentos reiterados:
Ainda agora, no mês de abril, comemorou-se o centenário da Epopeia dos 33, que
trouxe o gérmen do movimento da independência do Uruguai. Somos diretamente
interessados no caso, pois desde aquele momento o problema da Cisplatina assumiu
um caráter alarmante até a sua perda definitiva e justa. Pois bem, não me lembro de
ter encontrado, em nossos jornais e revistas, nada de importante que se referisse ao
assunto. Nem de velhos nem de novos. Todos unânimes no silêncio. Pode haver
melhor demonstração do nosso desinteresse pela história da América?688
Dessa forma, Tristão de Athayde mantinha em grande parte de sua reflexão sobre a
nacionalidade esse horizonte latino americano que se encontra bastante difundido nos seus
artigos da década de 1920. Na abertura do ensaio “Política e Letras”, o crítico comentava:
Dois dias após da morte de Edgar Poe, publicava o New York Tribune a seguinte
notícia. “Edgar Allan Poe is dead. He died in Baltimore the day before yesterday.
686
ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 mai. 1920, p. 2.
ATHAYDE, Tristão de. Lopistas e antilopistas, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 jul. 1928, p. 4.
688
ATHAYDE, Tristão de. Males de ontem e de hoje, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 jun. 1925, p 4.
687
559
This announcement will startle many, but few will be grieved by it”. Nada mais. A
sorte das letras em toda a América se resume nessas linhas de vitríolo, que o maior
jornal dos Estados Unidos escrevia sobre a morte do mais genial dos seus poetas.
Pouco menos dura, por certo, é a condição dos artistas na América Latina, embora a
civilização do livro tenha precedido aqui a civilização da máquina, ao contrário da
Norte América. E até nesta já hoje são raros os romancistas milionários. São mesmo
os mais desconhecidos... Ainda assim, as palavras do New York Tribune dizem mais
que uma dissertação. A América – e há pontos em que as duas Américas coincidem
– vive literariamente na angústia de uma originalidade nem sempre procurada com
fervor e por isso mesmo raramente recompensada689.
O empenho mais contundente do crítico neste sentido ocorreu quando ele abandonara a crítica
literária no periódico O Jornal e assumiu uma coluna intitulada “Letras Sul-Americanas” por
quase todo o ano de 1924 na então recém-lançada revista mensal Terra de Sol.
Tristão de Athayde reforçava a nota acerca do desconhecimento dos brasileiros de sua
identidade com as nações latino-americanas. Os exemplos seriam muitos, como no caso do
México, visto como um país “que nos parecia simples foco perigoso de revoluções”, mas que
“mostrou-se uma nacionalidade forte, expressiva, original, mantendo intacta a sua
personalidade, em contato permanente com o norte americano e nunca se deixando abater por
ele”690. O universo sul-americano só poderia enriquecer a cultura intelectual brasileira:
Quanta surpresa nos não viria de um estudo mais acentuado do esforço intelectual
de outros vizinhos nossos. Ouvimos falar de um Rodó de um Rubén Darío, de um
Ingenieros, de um Amado Nervo, geralmente de torna viagem do velho mundo. Nem
nos cansamos em ir beber a fonte o lirismo fresco e inesgotável de uma Ibarbouru, a
larga visão humana de um Barrios, o nobre sentido da vida de um Galvez, a dolorosa
penetração de uma Gabriela Mistral, o humour de um Cancella, o pensamento
universal de um Ricardo Palma, a forte e original compreensão política de um
Vasconcelos e tantos outros de que só nos chegam ecos apagados ou totalmente
desconhecidos691.
Aí o crítico arriscou-se, pela única vez durante o período abordado, a fazer análise de obras de
artes plásticas. No caso, tratou-se do escultor e poeta chileno Tótila Albert que naquele ano
expunha suas produções no Rio de Janeiro. O crítico, que qualificava o “primitivismo das
linhas” na obra do escultor como um “sintoma de força”, julgava positivamente o artista:
Oxalá compreendam a sua grandeza aqueles nossos jovens escultores que já se
cansaram da estatuária acadêmica e ridiculamente alegórica, com que têm morto de
novo, em bronze, alguns de nossos mortos veneráveis. Meditem longamente a
admirável desse jovem artista chileno, em cuja obra há realmente centelhas
imortais692.
Em um artigo sobre a “poesia argentina moderna” feito a partir da obra de Pedro Juan
Vignale e Cesar Tiempo, Exposición de la Actual Poesia Argentina (1922-1927), Tristão de
Athayde comparava as características poéticas da Argentina e do Brasil. Dentre os quarenta e
689
ATHAYDE, T de. Política e Letras. In: CARDOSO, V L. À Margem da História da República. V. 2, p. 47.
ATHAYDE, Tristão de. Americanismo, Terra de Sol. Revista de arte e pensamento, Rio de Janeiro, Vol I, no 3,
mar. 1924, p. 294.
691
ATHAYDE, Tristão de. Americanismo, Terra de Sol, p. 294.
692
ATHAYDE, Tristão de. Totila Albert, Terra de Sol, p. 182.
690
560
seis autores elencados na obra, o crítico chama atenção para quatorze: Olivério Girondo,
Brandan Caraffa, Cândido Delgado Fito, H Rego Molina, Gonzalez Lanuza, Jorge Luís Borges,
Nicolás Olivari, Francisco Luís Bernárdez, Carlos Mastronardi, Cesar Vallejo, Norah Lange,
Guillermo Juan, Eduardo Keller Sarmiento, Ricardo Molinari. Dentre os quais, ele afirma que:
[...] se me pedissem para escolher um, eu indicaria a C Delgado Fito. Girondo será
certamente mais brilhante, de mais fôlego e muito mais representativo. Jorge Luís
Borges mais moderno, mais original, mais rico de fantasia e de alegria de criar.
Guilhermo Juan mais fino. Brandan Carrafa mais criador e mais forte. Outros, mais
isto ou aquilo. Mas Delgado Fito será o mais humano de todos. O que mais viveu. E
que mais sabe condensar a sua essência poética de vida sofrida693.
Sobre publicações coletivas, o crítico considera, segundo o escritor Roberto Mariani, haver:
[...] ‘duas’ tendências gerais do modernismo argentino, que seriam representadas,
respectivamente, pelas revistas “Martin Fierro” e “Extrema Izquierda”, esta última
seguindo uma tendência realista, construtiva, social, derivada em última análise de
Dostoievsky, e aquela fantasista, metafórica, ultraísta, derivada antes de Ramon
Gomes de la Serna.
Na oposição entre a poesia moderna dos dois países, Tristão de Athayde esquematiza os
seguintes pares antitéticos, com as devidas nuanças e riscos desse tipo de generalização: a
poética moderna argentina expressa-se em uma poesia de “cidade-grande”, ao passo que a
brasileira é de “cidade pequena”; uma é “subjetiva” e a outra “objetiva”; aquela “cerebral” e
esta “emotiva”; a argentina “cosmopolita” e a brasileira “nacional”; uma “arquitetural” e a outra
“musical”; na primeira predominaria o “indivíduo” e na segunda o “grupo”; na argentina
haveria mais “força” e na brasileira mais “caráter”.
Outro lado do latino-americanismo presente nos escritos do crítico é a apreciação de
autores de países vizinhos que teriam em conta a produção intelectual brasileira. A maior
referência nesse caso era a obra do argentino Garcia Mérou, El Brasil intelectual (1900).
Pontualmente, porém, o crítico elencava outras manifestações, como o poeta chileno Miguel
Luís Rocuant, autor do livro San Sebastián de Rio de Janeiro (1921). Um caso diferenciado
seria o do romancista argentino Marcelo Peyret. Ao contrário do quadro dos jovens artistas
modernos, em que os “poetas são campeões de boxe694, os pintores fazem 100 jardas em 9”, os
romancistas sabem fazer o ‘looping’ de avião”, Peyret era doente, repleto de “moléstias no
peito” e viveria “lutando contra a morte”695. Tal condição suscitaria nele “um calor de vida e
693
ATHAYDE, Tristão. Poesia argentina moderna, O Jornal, Rio de Janeiro, 24 jun. 1928, p. 4.
Em um de seus primeiros textos sobre o modernismo, Oswald de Andrade dizia “Somos boxeurs na arena”. O
tema, em um contexto internacional, foi abordado e analisado por Gumbrecht: “[...] o boxe lida com ‘Sein zum
Tode’ (‘estar à beira da morte’) e ‘Vorlaufen zum Tode’ (‘antecipação da morte’). O boxe tem o poder de trazer a
morte para perto dos espectadores e, se Heidegger estiver certo, ele pode ajudá-los a se libertarem de diversos
medos que os fazem evitar inconscientemente a presença da morte em suas vidas cotidianas. A morte é uma parte
integral da vida física do homem, [...] e portanto a antecipação da morte não pode ser exclusivamente um assunto
da mente. [...] Para imaginar a morte, uma pessoa deve ter a experiência de expor seu corpo à ameaça de
destruição”. Cf. ANDRADE, Oswald de. Semana de Arte Moderna. In: BOAVENTURA, M E (org). 22 por 22, p.
71; GUMBRECHT, H U. Em 1926, p. 80.
695
ATHAYDE, Tristão de. Livros do Sul II, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 abr. 1925, p 4.
694
561
nos sentidos e uma acuidade que a saúde em regra não permite”. Sua obra traria uma:
[...] sensibilidade à flor da pele, pela ânsia de se sentir efêmero, frágil, incapaz, ante
à maravilha quente das formas. Não são as ideias, não é o mundo do espírito, que
seduz aqueles que, como Peyret, sentem dentro de si, a cada minuto, a frase, a única
que os trapistas pronunciam ao cruzar-se nos campos que cultivam ou nos claustros
que palmilham em caminho da cela nua: “Memento mori” diz-lhe de dentro a miséria
humana. [...] É a carne palpitante dos amantes moços, é a luz da paisagem, é o
movimento, a vida, a saúde que irradia das coisas e das gentes, é tudo o que indica o
desprezo da morte. Eles que sentem a inimiga perto, que nunca podem fugir da sua
trágica presença, invejam em tudo esse desprendimento de morrer que a natureza
morta ou viva e a mocidade aparentam696.
Daí a recorrência sexual em seus livros, especialmente nas obras Cartas de Amor e Los tulfos,
sendo que, neste último, os “polvos” seriam as mulheres. A esse respeito, comenta o crítico:
Peyret, que tem por elas o deslumbramento da fraqueza pela saúde, do crepúsculo
pela madrugada de tudo o que se sentiu morrer, que se sente fraco, doente, incapaz
– por tudo o que é vida, mocidade e amor – lançou, nesse apaixonado romance, tão
romântico mas tão exato, de traços firmes, de contornos seguros, de realidade
apaixonada, uma invectiva contra essa lei inexorável que faz com que a vida se
alimente, inexoravelmente dos fracos. E as mulheres são, nesse caso, o que a vida
tem de mais sedutor e de mais voraz e o homem, continua a ser o dócil “pautin” de
Pierre Louys. Nem sempre, mas Peyret não quer ver o outro lado. E maltratando as
mulheres tem a certeza de atraí-las.
A obra seria marcada por “páginas de verdadeiro histerismo de paixão, de alucinação amorosa,
de flamejamento ardente, de loucura dos sentidos”.
O romancista teria feito da “tosse” o leitmotiv de seus trabalhos e, inclusive, fez um
romance sobre a estação dos Tísicos em Córdoba, Alta Garcia. Ao saber da morte precoce do
argentino, o crítico lhe dedicara outro artigo, comentando que “hoje não se admite que possa
haver romancistas tuberculosos. A vida, porém, é de outra opinião”. Lembra, então, que ele:
[...] escreveu a vida desses tristes pousos, onde se procura encobrir a melancolia e o
amargor das almas com a “pose” de desprendimento ou de ruidosa alegria. O livro é
anterior ao longo romance de Thomas Mann sobre Davos ao qual ele deu o título de
“Der Zauberberg”, o monte mágico. A maneira de ambos, porém, é distinta. Mann
muito mais objetivo, fixando em sua longa tela toda a diversidade dessa população
particular, desde o sadio orgulhoso, que a cada momento faz sentir a diferença de
condição entre ele e os outros, - e que lentamente vê a moléstia invadir-lhe o peito e
o desespero abater-lhe a vaidade da saúde, até a pobre mexicana que vê morreremlhe os dois únicos filhos e passa dos dias a repetir as únicas palavras de francês que
aprendeu “tous les deux, tous les deux”; desde o italiano letrado e apaixonado de
saúde, de mocidade, de beleza que se vê amarrado à miséria da dissolução interior e
do contágio, até o casal de russos, a quem a moléstia levara a paixão física ao extremo
e que morrem cada dia um pouco mais, sacolejando os ossos para desespero dos
vizinhos. E assim por diante, em dezenas de figuras nítidas, precisas, firmemente
delineadas, mas sem que se saiba afinal se o autor foi apenas um espectador ou
realmente um ator. No livro de Marcelo Peyret ao contrário, o que se sente é a
participação na tragédia. Não grava como o outro. Não tem a mesma maestria em
trabalhar com a água forte. Mas, por isso mesmo, se sente mais profundamente o
drama interior697.
696
697
ATHAYDE, Tristão de. Livros do Sul II, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 abr. 1925, p 4.
ATHAYDE, Tristão de. Romancista tuberculoso, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 nov. 1925, p 1
562
No prefácio à obra Mientras las horas pasan..., Peyret comentava o desconhecimento que as
“classes mais altas” da Argentina teriam em relação ao Brasil, o que, para o crítico, comprovava
a sua tese de que caberia à inteligência “desfazer, entre os povos da América, as oposições que
a história nos legara e que a política vai acentuando”. Seria necessária, assim, uma intervenção
da “inteligência” sobre a política internacional. Peyret, por seu turno, comentava o seguinte:
Para nuestro Pueblo, un brasileño era un señor más o menos indolente que se pasaba
la vida contemplando paisajes o discutiendo ante un pocillo de café las fuerzas
armadas de sus vecinos. Luego se puso de moda la mexixa y agregamos un poco de
música al pobre concepto en que lo teníamos. Hace unos años hemos cambiado de
parecer. Y son los literatos del Brasil los causantes de ese cambio, al revelarnos toda
la sensibilidad, toda la delicadeza, todos los valores del alma brasileña… Afirmo que
solo hemos conocido al Brasil, cuando sus artistas nos dieron con sus obras el
coeficiente de su espiritualidad, esto es, de su verdadera grandeza698.
A civilização brasileira, a fim de se desdobrar em uma forma capaz de encarar a
realidade imperialista, só poderia consolidar-se na medida em que realizasse minimamente sua
inserção na realidade sul-americana. Tal construção, de forma alguma, significaria uma
exotização ou simplificação a ser apresentada nos palcos europeus e norte-americanos, mas
envolveria um empenho político e cultural que poderia muito bem nunca acontecer:
A verdadeira aproximação interamericana não será feita pela diplomacia, que se tem
fartado de criar embaraços, nem pelos congressos inócuos e transitórios, nem pelas
excursões de turismo. Intrigas, lirismo patético, visão passageira do pitoresco ou
simples desenfado são as consequências desses meios habituais de aproximação no
continente. Tudo inútil ou contraproducente. E, no entanto, a nossa integração no
continente é um problema essencial da nacionalidade. Não somos bastante
americanos. [...] Mas o que forma as nações, como os homens, é justamente a
oposição ao determinismo do tempo e do meio. O que somos devemos à reação do
espírito contra a inércia ou contra o dinamismo cego da matéria e da vida. O homem
que se abandona é o vencido, ao passo que o homem imperioso é aquele que se
vence. Assim das nações. Se nos deixarmos levar por toda essa causalidade imanente
à nossa evolução continental, como tem acontecido geralmente até agora,
chegaremos fatalmente às rivalidades mortais de que o velho mundo não se pode
curar e que está despertando em muitos pensadores europeus a sensação desesperada
da decadência irremediável da sua civilização. Será possível que o pensamento
americano não adquira a consciência de sua possibilidade?699
África, para além do horizonte
“Um carnaval sambado dá ideia de que recorremos neste século à civilização africana
para nos divertirmos. Sem arte”700. A declaração do “rei do choro” brasileiro, Alfredo da Rocha
Vianna Filho, o Pixinguinha, foi feita na “primeira entrevista” de sua vida, aos vinte e sete anos,
ao periódico O Jornal, em janeiro de 1925. Anos antes, Pixinguinha estivera na Europa, onde
realizara com os Oito Batutas, sob o mecenato do milionário Arnaldo Guinle, uma temporada
na França que durara seis meses, tendo passado por Paris, Lyon, Grenoble e Bordeaux. No
698
PEYRET apud. ATHAYDE, Tristão de. Livros do Sul II, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 abr. 1925, p 4.
ATHAYDE, Tristão de. Americanismo, Terra de Sol, Rio de Janeiro, Vol I, no 3, mar. 1924, p. 289.
700
Os reis do choro e do samba, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 jan. 1925, p 5.
699
563
Velho Mundo, trocara a flauta pelo saxofone. Pixinguinha recordando sua ainda curta trajetória
artística e pessoal dizia ter sido “moleque azougado” que “pela minha cor, o meu tamanho e a
flauta me tornavam interessante”701. Sua preocupação, porém, para com os destinos do
“pensamento musical” brasileiro, focava-se na necessidade de “condenar o samba”, pois este
seria “música primitiva” que “não corresponde à amplitude do pensamento musical”. Afinal,
segundo Pixinguinha, a arte precisaria de “amplitude e largueza de expressão”, de modo que o
samba, com seus quatro compassos para solo e quatro para o coro, seria “limitadíssimo para
arte”, “uma demonstração de fraqueza da imaginação musical”. Pixinguinha defendia o choro
como autêntica expressão artística brasileira, especialmente aquele que o próprio reivindicava
ser o criador: “choros em partes de 21 compassos cada uma”. Desse modo, “quando se fizer a
desinfecção, isto é, quando o povo estiver enfarado, o samba voltará ao seio das macumbas e
dos candomblés de onde saiu para prejudicar a boa música e o bom gosto”.
As declarações de Pixinguinha revelam os vestígios e traços que podem nos informar
sobre o lugar ocupado pela África na cultura intelectual brasileira na década de 1920. A
expressão “civilização africana”, tal como utilizada por ele na passagem citada, parece ser mera
fórmula vazia, pois o que, de fato, é associado a tal civilização é, exatamente, o seu contrário:
a falta de arte, a simploriedade e o primitivo. Porém, seria incorreto prolongar considerações
em torno da visão de Pixinguinha acerca da África, baseando-nos apenas nessa entrevista. Não
era a África aí um tema central, uma questão explícita, nem um objeto de reflexão constituído.
Ela aparecia de uma forma, por assim dizer, sub-reptícia, talvez até inconsciente, de maneira
ordinária, como se cada juízo conferido acerca dela fosse algo dado, comumente aceito e,
portanto, óbvio. Mas, havia um discurso específico acerca de África no interior da cultura
intelectual brasileira daquele período? Como dissemos acima, a cadeira de Civilização
Americana era algo almejado por intelectuais engajados no estabelecimento da legitimidade e
originalidade dos povos e nações do Novo Mundo. Sobre o continente africano, porém,
estabeleceu-se um silêncio retumbante. Longe de ausente, o tema África é recorrente na história
cultural e intelectual brasileira. Porém, trata-se, sempre, do negro como personagem formador
da “raça”, “cultura” e “identidade” nacionais. Mas, e a civilização africana?
Alguns indícios permitem-nos verificar como o continente africano era retratado na
cultura intelectual brasileira dos anos 1920. Antes disso, algumas fissuras podem ser verificadas
no discurso sobre civilização em geral que era construído à época. A fissura é o homem negro.
Apreciações depreciadoras eram recorrentes, como as que repudiavam as escolhas de Henry
Ford em levar homens negros para trabalhar no Pará, pois, apesar de não terem “preconceitos
701
Os reis do choro e do samba, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 jan. 1925, p 5.
564
de cor”, os redatores do jornal O Estado de São Paulo consideravam que os “pretos não
constituem fortes elementos de civilização, nem garantem à raça tipos aperfeiçoados física,
mental e moralmente”702. Dos mesmos Estados Unidos da América, chegavam notícias sobre
os graves conflitos que ocorriam no seio das produções de algodão no sul do país. Falava-se
que “negros que voltam da França depois de terem arriscado a vida sob a bandeira estrelada,
querem ser tratados como cidadãos e julgam autorizados a ajustar as contas” 703. Submetidos a
dívidas impagáveis devido ao regime de exploração semiescrava exercido por proprietários
rurais, os trabalhadores se revoltavam e/ou entravam na justiça. E não tardara, “uma terrível
notícia se espalhou entre eles: ‘o klu-klux-klan’. Era uma espécie de polícia secreta organizada
pelos proprietários brancos para vigiá-los e, em caso de necessidade, desembaraçar-se dos
turbulentos”. Após tais conflitos e o abandono de vários negros das regiões dominadas pela
violência, criava-se a “National Association for Advancement of Colored People”.
As lideranças ligadas ao movimento negro, por sua atuação contundente, ganhavam
espaço nas páginas dos jornais brasileiros. O ativista Marcus Garvey tinha sua fotografia
reproduzida nas notícias que falavam de como a cidade de Nova York, “metrópole gigantesca,
como se não bastasse, é a mais rica e a mais próspera cidade negra do mundo”, tornara-se o
palco para a divulgação do “mundo negro americano”704. As divisões tornavam-se explícitas,
opondo posições governamentais que através de cifras de acesso da população negra à
alfabetização, ao trabalho e à iniciativa empresarial minimizavam tais problemas, ao passo que
nomes como Du Bois enunciavam proposições diretas na luta pelos direitos do povo negro
norte-americano: “O direito do voto e o acesso ao Congresso, marcarão a nossa independência”.
Garvey seria incisivo em suas afirmações, provocando mesmo a indisposição de “sacerdotes
negros”, ao afirmar que a “religião do homem branco [...] não convém ao homem negro, com
um deus branco e um parceiro branco. Devemos ter a religião negra, com um... deus negro”. E,
mesmo não omitindo o seu tom de surpresa e um pouco avesso a tudo isso, a reportagem
reconhecia os ganhos que a comunidade negra nos EUA vinha atingindo:
Quando se ouve falar no bairro negro de Nova York, imagina-se um quarteirão
sórdido, capaz de afugentar um valente mortal. Nada, absolutamente nada
semelhante encontrará o transeunte pacato. É o aspecto europeu; altos edifícios,
grandes tramways e velozes taxis. Liberty Hall, à esquina da 138a rua, é o coração e
o teatro das reuniões políticas.
A organização dos grupos negros estaria bem adiantada, reunindo milhares de pessoas:
Uma ampla sala, fartamente iluminada, reúne cinco mil negros. Ao fundo, em um
pequeno palco, estão os diretores do “meeting”. Aguardam com ansiedade a chegada
de uma personagem prestigiosa. Estão atentos. O silêncio é geral. [...] Eis que de
702
Cf. CAPELATO, M H. Os arautos do liberalismo, p. 80.
Notas americanas. O negro e a cultura do algodão. O Jornal, 18 de janeiro, 1920, p 1.
704
Cf. O mundo negro americano e o ressurgimento da campanha pela independência, O Jornal, Rio de Janeiro, 9
mai. 1921, p 3.
703
565
inopinado se vem de registrar. Todos se erguem; estrepitosa salva de palmas se reboa
de encontro aos camarotes; a orquestra ataca uma partitura estranha e uma forte voz,
dominando o tumulto, pausadamente pronuncia: “_ S. Ex. Marcus Garvey presidente
provisório do Império Negro Africano”705.
O público brasileiro podia ter acesso ao discurso e ter contato com as ideias do “imperador
negro”706, ainda que ironizadas pelo parêntesis da reportagem:
_ Somos 400 milhões de oprimidos que reclamam a liberdade, inicia elevando a
entonação. Ora, meus amigos, se os nossos irmãos brancos nos amarem, nós os
amaremos; se nos odiar, nós os odiaremos. Não demos aos ingleses o direito de nos
explorar; aos belgas o de nos brutalizar; aos franceses de nos... Não falemos. Que a
França nos prove o seu liberalismo! Quem venceu a guerra? O sangue do negro sobre
o campo de batalha branco. Senhores, Clemenceau (pronunciou Klemenkô) e Lloyd
George estariam atrapalhados se não fossemos nós (Hurras). Sim, meus amigos, não
fossem os negros, o kaiser, hoje, estaria no palácio Buckingham. (Aclamações
estrepitosas; dir-se-ia um manicômio em plena fúria). Ora, sabeis qual foi o
reconhecimento dos brancos? Nem sequer nos concederam uma cadeira na
Conferência da Paz! Mas foram punidos pelo céu e estão expiando o crime da
ingratidão. Clemenceau (novamente se ouviu Klemenkô), Lloyd George e Wilson
estão desmoralizados! Wilson, enfermo, regressou inesperadamente à vida
particular. Lloyd George, combalido, sofre a repulsa da Irlanda. E Clemenceau?
(Novo Klemenkô) caça macacos, na África, para afogar o mau humor que o devora!
(Hilaridade geral). E são eles, os brancos enfatuados, que nos chamam netos de
orangotango, que nos vão buscar para vencer as suas guerras; são eles que se julgam
senhores do mundo, para ditar as suas vontades e efetivar os seus absurdos. Unamonos e seremos livres!
Como apontava a própria notícia, tudo isso seria um começo que ninguém sabia exatamente
onde ia dar, mas a ideia, num contexto imperialista, de um Império Negro em plena civilização
norte-americana era algo que despertava a imaginação de uns e a preocupação dos governos.
Era também dos EUA que chegava a notícia ao Brasil de um dos movimentos mais
importantes na história do século XX: o pan-africanismo. Noticiado como “A África para os
africanos”, a ocasião da “International Negro Conference” veiculava o evento como “preparado
longamente” e que interessava aos EUA, África e Índias Ocidentais Britânicas, pois requeria
precauções acerca de possíveis problemas. O tom da reportagem denunciava o estado de coisas:
Hoje é de temer-se que, neste caso, como em outros, a meia dúzia de medíocres
super-homens que se atribuem a dominação do mundo só venham a compreendê-lo
tarde demais. Na véspera da abertura da Conferência, uma grande demonstração se
realizou: 20.000 negros, reunidos no Madison Square Garden aclamaram
furiosamente o sr Marcus Garvey, presidente da “General African Comunities
League” e da “Negro Improvement Association707.
O discurso era claro: a “raça negra” estaria “cansada de sofrer” e chegara a hora de exigir que
Inglaterra, França, Bélgica e Itália saíssem da África. Conforme a fala de Garvey:
A raça negra está resolvida a não mais sofrer. Chegou o momento para os 40 milhões
de negros da África reclamarem e não perguntarem à Inglaterra, à França, à Bélgica
705
Cf. O mundo negro americano e o ressurgimento da campanha pela independência, O Jornal, Rio de Janeiro, 9
mai., 1921, p. 3.
706
Sobre trajetória de Marcus Garvey, ver: SETEPHENS, Michele Ann. Marcus Garvey, Black Emperor. Durhan:
London: Duke University Press, 2005, p. 75-103.
707
Notas Alheias. A África para os africanos, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 nov. 1920, p 1.
566
e à Itália: porque estais aqui? mas, dar-lhes ordem de sair. O que é bom para o branco,
continua o orador, é bom para o negro, isto é, a liberdade, a independência e a
democracia. Não temos excusa a dar, nenhum compromisso a propor. Se os ingleses
reclamam a Inglaterra, os franceses a França e os italianos a Itália, como sua pátria
natal, os negros reclamam com o mesmo título a África e derramarão seu sangue
para obtê-la. Redigiremos uma Declaração dos Direitos para todas as raças negras,
com uma Constituição para governar os seus destinos... A mais sangrenta de todas
as guerras está ainda para vir, quando a Europa ensaiar as suas forças contra a Ásia.
Será, então, a ocasião para os negros, o momento de tirar a espada para a redenção
da África708.
Uma série de ações simbólicas e associativas era levada a cabo, como as enfermeiras negras
que pregavam em seus uniformes “a cruz-negra, em vez da cruz vermelha”, ou a venda de ações
da “Black Star Line”, uma companhia de navegação “exclusivamente negra”. As medidas da
Conferência procuravam internacionalizar o movimento reconhecendo causas comuns em
outras partes do mundo. Enviaram cartas ao político irlandês Éamon de Valera conclamando-o
a continuar com “a luta pela liberdade da Irlanda”. O hino tocado era “Ethiopia: True land of
our fathers”, ao mesmo tempo em que a “bandeira nova das reivindicações da raça negra (negro,
verde e carmesim) foi desfraldada e emblemas de Barbados, Trindade, mostraram quanto o
movimento interessa o Império britânico”. Era um empenho internacional de libertação:
As alusões à Bélgica provocam assuadas, e, clamores reprovaram aos belgas a sua
conduta no Congo. Muitos chefes deste movimento vem de Jamaica onde o
tratamento dado aos negros pelos plantadores, os salários ridículos e a completa
negligência das autoridades inglesas em relação à educação tem irritado
profundamente os negros. Em 15 de agosto, 3.000 delegados da “African
Communities League”, adotavam uma resolução proibindo os negros de se
engajarem nos exércitos brancos sem antes terem obtido o consentimento dos chefes
da raça negra no mundo. A Convenção declarava-se ao mesmo tempo em favor da
independência da raça negra e do seu direito essencial em possuir a África.
A presença de W B Du Bois foi exaltada, assim como a sua hoje clássica sentença: “Eu tenho
[...] nas veias uma onda de sangue negro, um filete de sangue francês, algumas gotas de sangue
holandês, mas graças a Deus, não tenho uma só gota de sangue anglo-saxão”. Du Bois era aí
devidamente reconhecido como a maior liderança internacional dos movimentos negros:
O Dr Du Bois, que parece ter tomado a sucessão de Booker Washington, ex-escravo
e grande educador da raça negra e que é o campeão não somente dos negros nos
Estados Unidos, mas de duzentos e alguns milhões de homens e mulheres da raça
negra, insiste em uma obra recente, “Dark Water”, sobre a necessidade – pelo menos
em atenção ao seu número formidável – de conceder um pouco mais de consideração
às raças de cor, que formam – ele compreende entre elas os negroides, os habitantes
das Índias Orientais e os chineses – os dois terços da população do globo; esta
maioria tanto tempo oprimida, suprimida, explorada, começa, diz ele, a ter
consciência ao mesmo tempo da maneira intolerável por que é tratada e da sua
formidável força. Que há neste momento no coração do mundo negro? pergunta o
Dr Du Bois; e ele responde que, por mais terrível que tenha sido a última guerra ela
não será nada comparada à luta para conquistar sua liberdade e pôr fim a sua
708
Cf. Notas Alheias. A África para os africanos, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 nov. 1920, p 1.
567
exaltação que os negros e todos os homens de cor sustentarão “a menos que o mundo
branco não cesse de oprimi-los, de insultá-los, e de humilhá-los”709.
Com o tempo, os noticiários acerca dos congressos internacionais por direitos da
população negra passam a assumir tonalidades mais restritivas às propostas encaminhadas pelos
líderes. Assim, em uma dessas reportagens, o autor relativiza a luta por direitos:
Foi inaugurado recentemente, em Nova York, um grande Congresso internacional
de negros, reunindo delegados de todos os continentes em que a raça preta tem
sofrido injustiças, vexames e torturas dos brancos. Os negros não veem claro em sua
sorte, apesar da abolição da escravidão e do reconhecimento da igualdade das raças
– lugares comuns trazidos e levados durante muitos anos ao tapete das discussões
com soluções mais teóricas do que práticas710.
O homem negro poderia, ainda, ser um índice para se comparar as práticas levadas a cabo na
Europa e nos Estados Unidos, ainda que tal oposição servisse apenas para se explicitar a
condição desfavorável dessa população em ambos os lados do Atlântico:
Os representantes dos pretos vão formular reivindicações sobre as condições dos
seus irmãos de raça em diversos países que se dizem civilizados, como a França,
onde os negros do Senegal, embarcados às manadas, durante a última guerra, foram
– umas vezes à força, outras com enganos, levados a morrer por uma causa que não
era a deles, servindo de carne para canhões... Qual a dignidade humana, por outro
lado, concedida a esse outros negros norte-americanos que vivem em bairros
separados e para os quais os brancos tem repugnâncias e o desprezo inspirado pelos
animais menos estimáveis?
Para além da luta por direitos civis, a ideia de se modificar os símbolos cristãos concedendolhes uma “feição negra” era ironizada pelo jornalista:
Os congressistas decidiram que os crentes de cor devem ter nas igrejas o Cristo, a
Virgem e os santos todos negros e que pretos devem também ser os Moisés, Dario e
Salomão nas reproduções das edições “negras” do Velho e do Novo Testamento.
Asseguram os negros eruditos que tais modificações não falseiam, antes,
restabelecem a verdade histórica e desde esse momento os pretos desenhistas,
pintores e escultores se esforçam para buscar documentos e realizar a transposição
para a ordem negra, de todas as figuras da História Sagrada...
Este ponto de vista crítico, mas não totalmente avesso aos movimentos de luta pelos direitos do
povo negro, repercutia a complexidade da questão que os pan-africanistas norte-americanos
estariam apenas começando a contemplar. Chamava ainda a atenção para o espetáculo horrível
das populações marginalizadas que, a todo custo, tentavam atravessar mares, continentes e
fronteiras em busca de uma vida melhor, ainda que isso significasse viver sob o domínio de
outrem, na versão trágica e contemporânea da servidão voluntária:
Outro tema submetido ao estudo da grande assembleia negra foi o caso dos escravos
que não querem deixar de os ser, bem como daqueles homens e mulheres que todos
os dias renunciam aos azares e misérias da liberdade, recolhendo-se à existência
tranquila e segura da escravidão. O caso ocorre nas costas africanas do Mar
Vermelho, onde, incessantemente e burlando a vigilância das canhoneiras europeias,
os navios chegados da Arábia embarcam famílias negras, inteiras, que se oferecem
como mercadoria humana para encontrar um amo nos rincões do Iêmen ou do
709
710
Cf. Notas Alheias. A África para os africanos, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 nov. 1920, p 1.
O Congresso dos Negros em Nova York, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1925, p. 13.
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Hedjuz. Não puderam os congressistas compreender como esses negros da África
Oriental recebem com alegria os traficantes que os vêm buscar e se apressam em
refugiar-se sob as cobertas dos navios, entre os sacos de cereais e as caixas de frutas,
no fundo do porão, desde que aparece o guarda-costas salvador no horizonte. Porém,
esses negros da assembleia, que constituem a aristocracia da cor e são gente
acomodada, ignoram ou esquecem a dor de viver. E, para citar um só exemplo, basta
ler este anúncio, publicado nos jornais de grande circulação de Paris, a suposta
capital do mundo: _ “Um homem sadio, instruído, de caráter agradável, deseja
renunciar à liberdade, consagrando-se ao serviço de pessoa razoável”711.
Qual a repercussão destes eventos na cultura intelectual brasileira do período?
Praticamente nenhuma. Nem nos modernistas, nem nos passadistas. Nem nos teóricos, nem nos
literatos conhecidos. Apesar de relatados na imprensa cotidiana, o silêncio parece ter sido a
resposta mais recorrente. Pelo menos, ao pan-africanismo. Gustavo Barroso, que escrevia sobre
a influência da escravidão, das lendas e “vozes africanas” no folclore brasileiro712, confessavase um entusiasta da união pan-americana na mesma medida em que era descrente de uma ação
similar entre os africanos:
É uma criação internacional extraordinária e própria do continente, porque nunca
houve e nem tão cedo haverá, se é que pode haver, o paneuropeísmo ou o
panasiatismo. Não me dou ao trabalho de considerar a probabilidade de um panafricanismo. O mundo negro como expressão política só existe no romance de
Marcel Barrière713.
Ao mesmo tempo, alguns intercâmbios intelectuais reafirmavam o lugar colonial destinado à
África. Assim, Agostinho de Campos dizia-se orgulhoso pelo fato de as colônias africanas de
Portugal estarem, cada vez mais, a importar livros. Não importava ao intelectual português que
se tratasse de “má literatura”, mas que tal fato “lisonjeia a nossa velha tineta de nação
colonizadora, ou, se quiserem a nossa incurável vaidade imperial”714. Explorando tal pendor,
Campos tece várias considerações sobre a superioridade colonialista do português:
Vá o leitor às principais povoações do Congo Belga, a Boma ou a Matadi, por
exemplo, e terá o gosto de falar e de ouvir falar português por toda a parte, porque
nessas cidades novas que os belgas fundaram, quem, afinal, se instala, e labuta, e
resiste, e persiste, somos nós. Na Bélgica se criou recentemente, em detrimento do
nosso orgulho de povo independente, o insultante verbo portugaliser; mas, o certo é
que ao Congo Belga continuam a fazer pouca figura outros verbos franceses mais
antigos; e grande canseira se daria a si própria a ilustre Bélgica quando lhe viessem
comichões de desportugalizar o Congo Belga.
O autor relata conflitos entre Portugal e Inglaterra, quando esta acusa aquele de escravizar
angolanos. Não obstante, segundo o português, não raro escravos de outras colônias fugiriam
para as portuguesas: “Não sei que manteiga lhes damos para que gostem de estar conosco; o
que sei é que também lhes não falta castanha, quando chega o momento de comerem”.
Apesar de a crítica aos racialismos hierárquicos tenha feito àquela altura valorosos
711
O Congresso dos Negros em Nova York, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jan. 1925, p. 13.
Cf. NORTE, João do. Folclore da Escravidão, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 nov. 1923, p 1.
713
NORTE, João do. Amar a América e esquecer a Europa, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 15 jun. 1928, p 2.
714
CAMPOS, A. Pensamentos, palavras e obras. África portuguesa, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 nov. 1923, p 1.
712
569
progressos, estava-se longe, muito longe ainda, de se reconhecer os direitos civilizacionais, ou
seja, humanos, aos negros e, ainda mais, aos africanos. Basta dizer que um dos intelectuais
brasileiros mais celebrados à época, Oliveira Viana tinha grande amparo de suas ideias em teses
racialistas e racistas. Ao mesmo tempo, na recepção de sua obra, apesar dos elogios em geral,
críticos como Agripino Grieco e Tristão de Athayde fizeram ressalvas acerca desse aspecto da
obra de Viana. Joaquim Pimenta também tecia críticas aos racialismos racistas que inundavam
a cultura intelectual brasileira e desacreditava as teorias antropométricas assim como qualquer
tipo de hierarquia racial. Reconhecia, porém, que “não se pode contestar que, no ponto de vista
da civilização, a raça branca ocupa atualmente o primeiro lugar, se por civilização se entende o
grau de cultura intelectual e de desenvolvimento da técnica industrial, agrícola e comercial”715.
O autor, entretanto, ironiza:
Porém, tudo isso será pela brancura diáfana da sua pele? porque tem os olhos azuis e de
azeviche? e a cabeleira lisa a loirada, e o nariz aquilino, e os lábios delgados e barba
espessa? Pelo menos é opinião comum que o negro, o amarelo e o mestiço, que não têm ou
têm aqueles característicos pouco acentuados ou desarmônicos, nenhum concurso
trouxeram à obra da civilização, até hoje tendo permanecido na penumbra da história. Por
outro lado, antropologistas e etnólogos, todos de raça branca, talvez por isso movidos por
uma espécie de subjetivismo étnico, circunscrevendo o campo da civilização aos povos de
procedência ariana, aventuraram-se a traçar na configuração craniana, como se faz em um
mapa [...].
À época, Roquette Pinto conduzia estudos sobre os “tipos antropológicos do Brasil” baseados:
[...] em análises das características físicas de jovens brasileiros que serviam às forças
armadas em quarteis nas proximidades do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. O mote da
investigação era identificar se aqueles indivíduos descendentes de país de raças diferentes
seriam ou não “degenerados”. A conclusão do estudo é veementemente oposta a se atribuir
à mestiçagem a responsabilidade pela degeneração. Se havia “tipos físicos” degenerados,
a causa estaria nas condições sociais e ambientais, sobretudo na carência de saúde e
educação716.
Durante muito tempo, a cultura intelectual brasileira enfrentará a questão do racialismo racista.
Como se observou, porém, com ou sem racialismo e racismo, o caráter civilizacional estaria
ausente do continente africano. Tal aspecto, como lembra Appiah, existia mesmo no interior do
Pan-Africanismo e na figura de um de seus principais fundadores, Alexander Crummel:
Crummell tinham em comum com seus contemporâneos europeus e norteamericanos (ao menos os que dentre eles tinham alguma opinião sobre o assunto)
uma ideia essencialmente negativa da cultura tradicional da África, anárquica,
desprovida de princípios e ignorante, e definida, dada a ausência de todos os traços
positivos da civilização, como “selvagem”; os selvagens dificilmente têm alguma
cultura. A civilização implicava, para Crummell, precisamente “a clareza da mente,
livre do domínio das falsas ideias pagãs”. Somente se houvesse nas culturas
tradicionais algo que Crummell considerasse digno de ser salvo é que ele teria
esperado, com Herder, encontrá-lo captado no espírito das línguas da África717.
715
PIMENTA, Joaquim. Civilização e raça, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 abr. 1921, p 1.
COIMBRA JR, Carlos E A; LIMA, Nísia Trindade; SANTOS, Ricardo Ventura. Rondônia de Edgard RoquettePinto. Antropologia e projeto nacional. In: LIMA, N T et al. Antropologia brasiliana, p. 113-114.
717
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 43.
716
570
Appiah chega a considerar tal visão como “natural”, dada a formação intelectual de Crummell.
Segundo Mudimbe, no interior da tradição antropológica, em geral:
A Civilização humana era ocidental aos olhos dos colonizadores e os africanos não
eram [...] em finais da década de 1930, perfeitamente humanos. O que eram, quer
pura crianças quer seres humanos incipientes necessitando de formação, era
simplesmente o resultado da aplicação dos padrões ocidentais num contexto não
ocidental718.
Mudimbe afirma que, na década de 1920, ocorrera uma “fragmentação da noção de
civilização”719. Esse processo teria consequências intelectuais significativas. Afinal, não se
trataria mais, quando da positivação do mundo não europeu e não ocidental, da mera
valorização do “primitivo” e do “exótico”, algo que servira para criar zoológicos e “inspiração
artística”, mas desprovido de história e, no fundo, de humanidade. Assim, na história cultural
do século XX e XXI, são as próprias noções de “negro” e “africano” que vão se diluindo e
tornando-se extremamente complexas720. Neste sentido, são dignos de nota os dois estudos
escritos por Tristão de Athayde e publicados sob o título “Reabilitação de um Continente”.
Seus artigos falavam em dever de reparação. Não se tratava, porém, dos
sentimentalismos da “mãe preta”. E apesar do reconhecimento das gerações de homens e
mulheres que vieram da África e realizaram a obra de colonização do Brasil, também não se
tratava disso:
Se há um continente, ao qual devemos uma reparação, esse continente é a África.
Não quero enveredar por sentimentalismos de Mãe Preta. À África devemos o
desbravamento desta nossa áspera terra de sol e de espinhos. Sem virtude, pois o fez
sem querer. À África devemos também a calamidade, que ainda estamos pagando,
da escravidão, que tornou artificial e prematuro o nosso progresso do século passado.
Sem culpa, pois o fez ainda mais sem querer... Estamos equilibrados721.
Porém, afirma o autor, reconhecemos a dívida, quando a reconhecemos, envergonhados. À cada
geração, arestas seriam polidas e, ao passo que o pai era renegado pelo filho, o bisneto lhe
colocaria o retrato na sala. Mas a vergonha ainda falaria mais alto:
Temos vergonha ainda, bem menos aliás que os nossos pais, de descender da pobre
África. Que nunca saiu dos seus pântanos sem fim. Do seu mato ralo. Ou gigantesco.
Dos seus 45o à sombra. Da África mergulhada no esquecimento, no canibalismo, na
escravidão perene.
Considerada tradicionalmente como o “continente desprezado”, a África era ela
mesma dividida em norte e sul. Esse norte é o Egito, “é a civilização do Nilo, à parte, isolada
do resto, de outra raça, de outras origens”, é ainda a “civilização cartaginesa, vaga, perdida no
tempo, vista sempre pelo seu reflexo na história de Roma”, a “epopeia árabe, subjugando,
718
MUDIMBE, Valentin-Yves. A invenção de África. Mangualde/Portugal: Pedago, 2013, p. 94.
MUDIMBE, Valentin-Yves. A invenção de África, p. 109.
720
Cf. APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997; GILROY, Paul. O
Atlântico Negro. Rio de Janeiro: Editora 34. 2001; MUDIMBE, Valentin-Yves. A invenção de África.
Mangualde/Portugal: Pedago, 2013.
721
ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 02 jan. 1927, p. 4.
719
571
unificando tudo à sua imagem. E a reação cristã. Incessante. Banhada a princípio de um imenso
sonho de fé” até chegar, enfim, ao “comercialismo contemporâneo”722. Neste recorte entre sul
e norte, era justamente a divisão entre civilização e barbárie que se estabelecia:
Todo esse norte da África, toda essa margem sul do Mediterrâneo é uma terra
impregnada de história e de beleza, por onde passaram as mais ilustres civilizações
da terra: a egípcia, a alexandrina, a romana, a árabe, a medieval e a moderna. Terra
que o espírito do paganismo, e do arabismo e do cristianismo amassaram e
fecundaram sucessivamente. Mas terra que não julgamos África. Ou que, pelo
menos, é coisa tão diversa do coração do continente negro, como se fora outro
continente. O deserto é o fim da civilização. Para além, a barbárie primitiva, o
homem animalizado, a selva selvagem. De onde fomos buscar instrumentos de
trabalho, as máquinas do tempo, sobre as quais pesava o nosso desdém ou quando
muito a nossa piedade.
As ideias correntes sobre os homens que habitavam a África subsaariana eram a de que eles
“pararam no tempo” e, de um modo ainda mais geral e profundo, representavam um “estágio”
ultrapassado na evolução humana: “A África foi mesmo considerada mais ainda do que as ilhas
da Oceania, como sendo o continente de transição, o degrau entre os dos reinos, o paraíso dos
primatas, a residência desse impalpável ‘missing link’, pesadelo dos naturalistas”. A “ciência”
não tivera um papel emancipador em relação aos homens africanos, uma vez que “no século
XIX, quando já por quatro séculos se batia a Igreja em favor dos povos primitivos, dos índios
da América e dos negros da África, procurava a ciência apenas nesses negros os vestígios do
macaco inicial”. Ainda que a posição acerca da postura da Igreja merecesse um estudo à parte,
a posição do saber etnológico e antropológico ia neste sentido. Em outra contraposição entre
religião e ciência, o crítico comentava que “ao passo que o obscurantismo da Igreja levava
alguns séculos a reconhecer uma alma às mulheres, a luz da ciência levava alguns séculos mais
a negar esse mesmo acessório aos pretos. Ou pelo menos a reduzi-lo ao mínimo”. Assim, as
afirmações de Darwin sobre a origem africana dos antecedentes do homem atual não seriam
tomadas no sentido de se fazer prevalecer a ideia em torno da igualdade dos homens, mas de
tornar o continente africano uma espécie de “elo perdido”, o lugar onde se “dera a transição
entre o macaco e o homem. Era aí que ainda hoje viviam os homens que tinham muito mais de
macaco que de homem, essas populações negroides cuja civilização não se elevara acima dos
estágios mais primitivos”.
Tais seriam as ideias que sempre perseguiram os homens de sua geração e das
anteriores. O crítico cita algumas obras que reiterariam tais teses, como a Asian and Europe
(1901) do jornalista britânico Meredith Townsend, e que ganhara uma nova edição em 1921,
segundo a qual:
Nenhuma das raças pretas, nem o negro nem o Australiano, mostraram em tempos
históricos a capacidade de desenvolver uma civilização. Eles nunca passaram, como
722
ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 02 jan. 1927, p. 4
572
conquistadores dos limites de seus próprios ‘habitats’, e nunca exerceram a menor
influência em povos não pretos. Nunca fundaram uma cidade de pedra, nunca
construíram um navio, nunca produziram uma literatura, nunca sugeriram um
credo723.
Ou, ainda, a obra do eugenista norte-americano Lothrop Stoddard, em tradução francesa, Le flot
montant des races de couleur (1925), que consideraria que “os povos negros não têm história.
Nunca tendo criado uma civilização pessoal... jamais manifestou a raça negra verdadeira
faculdade de criação. Nunca edificou uma civilização própria”724.
Tristão de Athayde considera que tais autores não fariam tais afirmativas se
conhecessem a obra de Leo Frobenius que, apesar de ressalvas, não permitiria “mais hoje
afirmar-se ausência de civilização negra antiga”. O crítico, então, faz uma reconstituição da
trajetória de Frobenius, desde seus escritos do fim do século XIX, suas relações com Ratzel,
sua teoria sobre Paideuma, sua passagem, como afirma Tristão, de “etnólogo a metafísico” até,
por fim, de sua relação com as teorias de Spengler. Este último teria se inspirado na concepção
de Frobenius sobre o caráter “circular das culturas”, mas, segundo o crítico, Spengler teria
reduzido tal teoria “a um rigor mecânico, que força mais a realidade a entrar em seu âmbito do
que propriamente se adapta ao conteúdo dessa realidade”725.
A ideia original de Frobenius exposta pela primeira vez em 1898 afirmaria que
“desenvolve-se a cultura como independente da vontade do homem, está mais ligada ao espaço
do que à raça e é concebida como orgânica”726. Segundo destaca o crítico, tal preponderância
do espaço se devia a sua formação junto ao geógrafo alemão Friedrich Ratzel. Mesmo aí, porém,
haveria já uma mudança de perspectiva:
Tanto Ratzel, com a sua concepção geográfica, como [Adolf] Bastian, com a sua
concepção psicológica, consideravam a cultura como uma criação do homem. Vinha
Frobenius inverter os termos do problemas e considerar o homem até certo ponto
uma criação da cultura, e esta como um todo orgânico, sujeito às mesmas vicissitudes
da vida humana e possuindo uma personalidade própria727.
Frobenius, porém, modificara suas ideias com o passar do tempo e, com o desenrolar de suas
pesquisas de campo e reflexões posteriores, teria, cada vez mais, articulado tais “subordinações
espaciais” à “compreensão crescente dos fatores de espírito”. O etnólogo alemão chegara à
especificidade do mundo cultural aproximando-se da metafísica:
Porquanto, que a cultura, como já disse anteriormente, seja um terceiro reino (junto
ao mundo orgânico e inorgânico), isso cada vez mais se confirmou durante meus
anos de viagem. Esse terceiro reino, porém, não é atingido pela nossa consciência
com o auxílio das ciências naturais, como eu anteriormente acreditei, porém, por um
723
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 02 jan. 1927, p. 4.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 02 jan. 1927, p. 4.
725
ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 jan. 1927, p. 4.
726
FROBENIUS Apud. ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 jan.
1927, p. 4.
727
ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 02 jan. 1927, p. 4
724
573
reconhecimento piedoso de uma metafísica atingível por caminhos científicos728.
Tristão de Athayde considera haver muita coisa discutível nas reflexões teóricas de Frobenius,
especialmente nessa passagem de etnógrafo a metafísico. O primeiro é que era valorizado:
Frobenius empreendeu uma obra de etnologia estritamente científica, animado por
um espírito de supremacia do espírito, que seria, e ainda é, para os etnólogos
atrasados, uma verdadeira heresia científica. Ele começou, assim, por um trabalho
intenso de estudo, de leitura, de monografias parciais e afinal de doutrina, antes de
se lançar a campo para procurar em investigações próprias e originais o que lhe
parecia resultar de suas concepções teóricas. E aí começa a meu ver, a sua grande
obra, a que seu nome estará para sempre ligado, muito depois que as suas explicações
metafísicas estiverem piedosamente esquecidas729.
O crítico faz um levantamento de todas as obras do etnólogo alemão e de sua atuação
como “chefe militar, homem de ciência, viajante incansável, pesquisador de extrema paciência,
artista, filósofo e sobretudo um apaixonado do continente de Cam”730. O que interessaria era a
sua “obra africana” que teria começado em 1891, mas que “só em 1904, com a sua primeira
expedição ao Congo, ia tomar o vulto que hoje tem”. Dois polos caracterizariam os estudos de
Frobenius: “a dedicação à pesquisa de fenômenos compreensivos e expressivos da cultura
material, sempre se alternava com o aprofundamento na formação e evolução da vida do espírito
e da alma”. O crítico destaca o investimento intelectual e profissional de Frobenius:
Fez a primeira. Fez a segunda viagem. Acabou fazendo cinco expedições completas.
Viveu no coração da África durante dez anos. E ainda durante a guerra, em 1915,
saiu pela Turquia e foi percorrer a Abissínia e o Sudão. Organizou uma verdadeira
campanha de penetração científica. Aprendeu os mais variados dialetos. Distribuiu
pesquisadores por todos os cantos mais inacessíveis do continente negro. Fundou em
Frankfurt um instituto para elaboração e publicação, bem como para museu, dos
achados e documentos etnográficos. Dos 15 volumes projetados, sob o título geral
de “Atlantis”, para publicar o tesouro de lendas, narrativas geográficas, cantos,
estatísticas, etc., relativos às suas viagens e de seus auxiliares, já tem nove
publicados.
O fascínio de Frobenius pela África não era radicalmente distinto daqueles outros viajantes,
artistas, teóricos e aventureiros que procuravam “escapar da civilização”:
Ele fala sempre no desprazer que a Europa lhe causava, materializada, artificializada,
como que cristalizada e sem espontaneidade natural que o velho continente lhe
oferecia. E com que alegria ele mergulhava de novo nesse mundo africano, em que
a vida borbulhava ainda em seus elementos puros, em que a natureza das coisas e a
natureza dos homens ainda se achavam no frescor de sua fluência inicial, nas fontes
de criação e de reação, sem o convencionalismo da vida civilizada, urbanizada.
Com a eclosão da Guerra, porém, a reflexão tornara-se inversa, uma vez que, agora, era a
Europa que na conflagração parecia retomar tais ímpetos e, como muitos de seus compatriotas,
Frobenius teria visto na Guerra uma possibilidade de revigoramento civilizacional:
Era naquela terra que parecia já condenada à mecanização, à legalização de todos os
ímpetos de vida, à asfixia de toda fé religiosa, de todo sentimento espontâneo e
728
FROBENIUS Apud. ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 jan.
1927, p. 4.
729
ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 02 jan. 1927, p. 4.
730
ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 jan. 1927, p. 4.
574
virgem, à morte pelo bem estar e pela riqueza, que uma nova onda de vida rude, de
vida elementar, de purificação pelo sofrimento fazia ressurgir a alma imortal e
profunda. E sentiu então que de ora avante, era outra a sua tarefa. Já não era mais no
meio das civilizações primitivas que lhe competia procurar a essência das “culturas”,
mas na sua própria cultura, que já parecia morta e rígida e que se revelava ainda em
sua vitalidade fundamental. Porque um dos traços característicos de Frobenius foi
que, desde o início de seus estudos, não o animava o simples desejo de estudar tribos
pitorescas ou costumes estranhos e sim a vontade de penetrar a essência da
civilização731.
Assim, ao se orientar pelos estudos de povos “primitivos”, o etnólogo alemão buscaria não o
oposto da civilização, mas a sua essência. Tal aspecto não teria passado despercebido na
recepção da obra de Frobenius nos anos 1920 na Europa. Conforme destaca o crítico, era preciso
contrariar o “erro relativo de duas opiniões recentes sobre esse mesmo Frobenius, uma na
Espanha e outra na sua própria Alemanha. Ambos o consideram na corrente dos negadores da
Europa”. A primeira opinião seria a de Eugenio D’Ors que, em 1924, na Revista do Ocidente,
teria considerado que:
[...] tão perigoso para o futuro da cultura europeia é a teoria de Maurras, de que as
nacionalidades superam os continentes, como a teoria de Frobenius de que não há
uma cultura e sim muitas culturas, que reciprocamente se não penetram e podem
viver lado a lado, morfologicamente inassimiláveis732.
Segundo o crítico, tais apreciações se deveriam ao fato de D’Ors ser um:
[...] partidário extremado de um continentalismo europeu, que deve erguer barreiras
rigorosas a toda influência estranha, quer do pragmatismo americano, quer do
orientalismo místico, quer dos próprios pensadores europeus que pretendem
consagrar a fragmentação nacional moderna da Europa ou a equiparação, quando
não a subordinação, da cultura europeia a outras culturas humanas.
Tristão de Athayde argumenta, porém, que Frobenius não poderia ser visto como um “negador
da Europa”, uma vez que ele teria “qualquer coisa de rudemente germânico, de nietzscheano
mesmo. A guerra é para ele um elemento civilizador. Chega a censurar, por exemplo, os
missionários europeus, por procurarem sempre fazer as pazes entre as tribos em luta”.
A outra opinião crítica à obra de Frobenius viria do filósofo alemão Max Scheler que
o associaria aos autores que validavam o “predomínio da razão sobre as forças nativas da vida”.
No prefácio de sua Antropologia Filosófica, Scheler consideraria que o etnólogo comporia a:
[...] nova antropologia e historiografia ocidental cujo caráter fundamental é opor-se
tanto àquela crença comum a toda antropologia e a toda historiografia ocidental de
até há pouco, que sustentava o progresso do homo sapiens ou do homo faber, como
ao Adão dos cristãos, homem decaído, porém novamente reagindo e salvando-se
com o correr dos tempos, como igualmente à concepção do homem como um ser de
instintos, porém que se esforça, por mil modos, por tornar-se um ser de espírito, - e
sustentando, em oposição a essas três concepções, a tese de uma necessária
decadência do homem nesses 10.000 anos de sua história, decadência que já se
encontra na própria origem e na própria essência do homem... como sendo um
desertor da vida, da suas leis, dos seus valores fundamentais, do seu sagrado senso
731
732
ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 jan. 1927, p. 4.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 jan. 1927, p. 4.
575
cósmico733.
Tristão de Athayde não inclui Frobenius dentre os muitos teóricos da decadência que
despontavam nos anos 1920. Embora compartilhe de muitos dos aspectos das reflexões que
justificavam o declínio ocidental (crítica à materialização, tecnicização, coisificação da vida
humana), ele seria um defensor da “reespiritualização” da Europa e, neste sentido, embora
propusesse meios muito discutíveis para atingir tal objetivo, ele não poderia ser incluído entre
os deterministas da decadência.
O importante, na verdade, seria a afirmação da multiplicidade das culturas para além
de qualquer centralização do “espírito cientifico”. Assim, no caso de Frobenius, era a
“africanologia” que devia ser ressaltada:
A revelação que veio fazer de um continente esquecido. A revolução que trouxe a
muitas ideias assentes. Toda essa população, que julgávamos nos primeiros graus da
civilização, que nos parecia ter parado num estágio primitivo de evolução e trazer
sobretudo, em seus traços, na sua cor, nos seus gestos, na sua barbaria, no seu
infantilíssimo grosseiro, os estigmas de uma transição próxima do reino animal, do
macaco antepassado, ainda trepado nas mesmas árvores de que eles, irmãos
humanizados, tinham apenas descido há pouco – toda essa população surge das
páginas de Frobenius com uma alma renovada734.
E as conclusões fundamentais de tal pesquisa se desdobraria nas apreciações sobre as antigas
civilizações subsaarianas e especialmente:
[...] dessa “cultura dos Iorubás”, que ele foi encontrar no território do Congo e do
Sudão e de que desencavou vestígios os mais surpreendentes, desde as tradições de
uma arquitetura de certa importância, especialmente em túmulos, e que desapareceu
por ser uma arquitetura de barro, até os vestígios de uma escultura absolutamente
estranha a essa arte negra primitiva, a que estamos habituados, e que trai, realmente,
na finura dos traços, no engenho das decorações geométricas, na variedade e
elegância das formas de vasos e utensílios, especialmente do culto de Ifá, a tradição
de uma arte muito desenvolvida.
O crítico foi um assíduo leitor de Frobenius, cuja obra estava publicada praticamente
apenas em alemão, e o referenciou várias vezes. Em uma ocasião, o Tristão compõe uma
imagem sobre o que esse mundo aberto de contatos e percursos históricos parecia desvelar:
Africanos em plena Europa, em períodos geológicos primitivos; egípcios irradiando
pelo mundo para o oriente, e deixando a cada passo vestígios de sua civilização até
pelas ilhas desertas do Pacífico; indianos transbordando pelas estepes e fecundando
cada região do Velho Mundo; árabes arrancando de suas planícies risonhas ou
estéreis, e em cem anos lançando-se ao coração da França; e as cruzadas carregando
a flor Ocidente ao Oriente; e as navegações levando raças opostas face à face; e a
surpresa de novas civilizações, de vestígios perturbadores, de povos muito mais
adiantados ou já decadentes, de formas africanas na América, de elefantes gravados
nos rochedos em pleno México, e talvez, de todo um continente ignoto, submergido,
quem sabe depois de que catástrofe, depois de que angústia de uma cultura que se
sentia morrer radicalmente, até a essência!735
Esta foi, sem dúvida, a principal contribuição do autor alemão à obra do crítico literário
733
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 jan. 1927, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 jan. 1927, p. 4.
735
ATHAYDE, Tristão de. Livros do Sul, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 mar. 1925, p. 4.
734
576
brasileiro: a verificação da existência de diversas culturas e civilizações possíveis. A quebra da
linearidade do evolucionismo que determinava um caminho único ao desenvolvimento das
sociedades. É importante notar, porém, que tal “reabilitação” do continente africano se fazia de
forma bastante incipiente, pois o que se reconhecia era um passado de civilização e não um
presente, uma civilização africana que seria recuperável apesar dos homens que àquela época
habitavam o continente. Assim, Frobenius falaria de um mundo desaparecido:
Não é o negro de hoje que o interessa. Interessa-o apenas pelo que conserva,
inconscientemente, do negro de outrora. E conserva mal. Destruiu quase tudo. Ignora
a significação de quase tudo o que repete automaticamente. E só muito dificilmente
é que é possível distinguir o que é realmente herança de um passado extinto do que
é imitação recente ou decadência736.
O crítico retoma a análise de Ortega y Gasset como a mais ponderada acerca da obra do etnólogo
alemão e também da de Oswald Spengler:
[…] mas allá de las culturas está un cosmos eterno e invariable del cual vá el hombre
alcanzando vislumbres en un esfuerzo milenario e integral que no se ejecuta sólo con
el pensamiento sino con el organismo entero, y para el cual no basta el poder
individual sino que menester la colaboración de todo un pueblo. Periodos y razas –
o en una palabra, las culturas – son los órganos gigantes que logran percibir algún
breve trozo de ese trasmundo absoluto737.
O legado de Léo Frobenius é ambíguo e complexo. Sem dúvida, o elogio que lhe fez,
em 1973, o ex-presidente do Senegal, Léopold Senghor, fundador do movimento Négritude nos
anos 1930, por ocasião do lançamento da Antologia do autor alemão, compromete qualquer
crítica mais ostensiva à obra de Frobenius. Senghor afirma que sabia de cor o segundo capítulo
do primeiro livro da Kulturgeschichte Afrikas chamado “O que África significa para nós”. Tal
capítulo tinha frases como estas: “A ideia do bárbaro negro é invenção europeia, que por sua
vez dominara a Europa até o início deste século”. Já Du Bois, fundador do Pan-Africanismo
nos EUA, considerara Frobenius, “the greatest student in Africa”738. Realizando uma análise
epistemológica e metodologicamente crítica dos trabalhos de Frobenius, Renée Sylvain
considera que a obra do etnólogo alemão tem apenas o mérito de não ter sido racialista e que
“as afirmações de Frobenius sobre a cultura africana tornaram ‘mentiras úteis’ que promoveram
a munição antropológica para o movimento Négritude”739. Consequentemente, segundo a
autora, “o trabalho de Frobenius não tem valor na comunidade antropológica internacional onde
‘grandes esquemas conjecturais e universais’ foram condenados como não científicos”740.
Como afirmamos ao longo de todo este tópico, o período posterior à Grande Guerra
possibilitou a emergência de diferentes interpretações da cultura em geral. Especialmente,
736
ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 jan. 1927, p. 4.
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 jan. 1927, p. 4.
738
MARCHAND, Suzanne. Leo Frobenius and the revolt against the West, Journal of contemporary History,
London, Thousand Oaks, CA and New Delhi, Vol 32 (2), 1997, p. 169.
739
SYLVAIN, Renée. Leo Frobenius. From « kulturkreis to kulturmorphologie », Anthropos, p. 494.
740
SYLVAIN, Renée. Leo Frobenius. From « kulturkreis to kulturmorphologie », Anthropos, p. 493.
737
577
significou uma ampliação das possibilidades positivas das nações “marginais”. O declínio do
Ocidente, parafraseando o título da obra-prima do filósofo alemão conservador Oswald
Spengler, era a possibilidade da ascensão, mesmo que teórica, dos povos que viviam tendo na
Europa o seu norte inalcançável. Este norte, apesar de não ter desaparecido, tornou-se menos
opressor. Especialmente nos anos 1920, quando sob uma precária, mas, ainda, condição
democrática, a cultura intelectual brasileira pode tecer reflexões acerca de sua identidade
segundo diferentes horizontes civilizacionais possíveis: europeu, americano e africano:
E se um viajante, há pouco voltando de lá, pôde escrever que “a Europa é o passado,
a América o presente, a África o futuro”, com essa mania que os homens têm hoje
de simplificar e de generalizar as aparências, - esse futuro não seria talvez mais do
que um retorno741.
741
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Reabilitação de um continente, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 jan. 1927, p. 4.
578
Quinta Parte
DECISÃO
579
A criança, o louco e o santo
Homem, criança trágica e grotesca, que quebra os próprios
brinquedos e depois chora para reavê-los.
Tristão de Athayde, Ser e vir a ser, 1928.
Parece-me que toda inquietação moderna resume-se num
problema religioso. Essa aspiração de Deus é o sentimento que
melhor explica, na minha opinião o movimento artístico atual.
Dentro ou fora da igreja as ideias que nos agitam têm um fundo
essencialmente religioso.
Sérgio Buarque de Holanda, Entrevista ao Correio da Manhã,
1925.
Em uma entrevista concedida ao jornal Correio da Manhã, à época em que dirigiam a
revista Estética, Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Morais, neto, a partir de algumas
reflexões de T S Eliot e Middleton Murry, destacavam o sentido da religião no interior da
reflexão acerca da arte moderna. Segundo Holanda,
Parece-me que toda inquietação moderna resume-se num problema religioso. Essa
aspiração de Deus é o sentimento que melhor explica, na minha opinião o movimento
artístico atual. Dentro ou fora da igreja as ideias que nos agitam têm um fundo
essencialmente religioso1.
Tais considerações iam ao encontro de reflexões anteriores feitas em sua revista quando, acerca
dos escritos de Murry sobre romantismo e o classicismo europeus, considerava-se ser “possível
que chegue uma época em que os espíritos mais sutis sejam levados a ser da Igreja, mas sem
pertencer a ela: precisamente pelo fato de serem profundamente religiosos, trabalham em
completa independência do que passa por religião em sua época”2.
Para além dos “espíritos sutis”, o sentimento religioso e a sua propaganda eram
bastante difundidos no interior da cultura intelectual brasileira. Uma vez que a República havia
abolido a ligação oficial do Estado a algum credo religioso, teoricamente, a liberdade de culto
era algo previsto na Constituição de 1891, assim como a livre divulgação de diversos segmentos
religiosos. As páginas dos jornais tornam-se recheadas por anúncios, textos, debates,
reportagens e comentários especialmente em torno de confissões como o protestantismo, o
espiritismo, a teosofia e, obviamente, o catolicismo. Religiões afro-brasileiras e ligadas às
populações indígenas não gozavam da mesma liberdade, mas serviços de cartomancia e
“ciências ocultas” eram oferecidos sem maiores problemas e com reivindicações de
celebridade3. Por vezes, a mesma coluna podia trazer notícias e informações sobre vários
1
Cf. Ideias de hoje. “Modernismo não é escola: é um estado de espírito”. Entrevista com Prudente de Morais, neto,
e Sérgio Buarque de Holanda, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 jun. 1925, p. 5.
2
Cf. Revistas e Jornais, Estética, Rio de Janeiro, ano 1, vol. 1, set. 1924, p. 109.
3
“D Maria Emília, a célebre e 1a do Brasil e Portugal, consagrada pelo povo a mais perita, a última palavra da
cartomancia e em ciências ocultas, às exmas. famílias do interior e foda da cidade, consultas por carta; seriedade
580
cultos4. A teosofia e o espiritismo, porém, sequer se consideravam religiões no sentido comum
do termo. Ao passo que a primeira se dedicaria a “fazer o estudo comparativo das religiões, das
filosofias e das ciências”, procurando estabelecer os princípios fundamentais comuns a todas
as religiões, que só poderiam ser aceitos em “conformidade com nossa razão”5, o espiritismo
fazia abertamente a defesa de seu caráter científico e combatia outras religiões, conforme uma
publicidade bastante divulgada durante toda a década de 1920:
É nesse Centro e seus Filiados que se pratica o Espiritismo Racional e Científico
(Cristão), que normaliza e cura loucos (obsedados) feitos pelos Cangerês, Feiticeiros
e Kardecistas que fazem espiritismo em família, desde as baixas baiucas aos Salões
atapetados da alta sociedade6.
Com a separação entre Estado e Igreja Católica, esta última procurou se rearticular no
sentido de fazer-se ainda mais hegemônica no interior da sociedade brasileira. Desde as
pregações do padre Júlio Maria, já no início do período republicano, passando pela
reorganização do clero, com a “importação” de vários missionários, padres e freiras
estrangeiros, a publicação de muitos periódicos e impressos voltados à causa católica, a
orientação do arcebispo Dom Leme em favor de uma catolicização “real” de uma população
que se dizia católica, mas que seria “ignorante em matéria de religião”, o investimento nos
colégios confessionais e de freiras, consolidou-se um catolicismo atuante na República que iria
promover ações contundentes e reiteradas segundo uma orientação católica mais ortodoxa e
combativa. Esta conformação de um catolicismo na República tem sua formulação atualizada
em meados dos anos 1920 no pequeno artigo “O clero e a República” do historiador católico
Jonathas Serrano que fizera parte da publicação organizada por Vicente Licínio Cardoso, À
margem da história da República. Assim, incluía-se no balanço intelectual acerca da República
brasileira a participação do clero em momentos fundamentais da história “progressista” do país,
desde a Inconfidência até aos juízos do padre Júlio Maria que viu no advento do novo regime a
possibilidade de a Igreja respirar e atuar livre do padroado e regalismo imperiais, sendo
acompanhado pelas pastorais emitidas no período republicano7.
Neste sentido, algumas ações levadas a cabo durante a década de 1920 podem ser tidas
como exemplares da expansão do catolicismo que, em última análise, visava ter um papel
proeminente no interior dos negócios públicos, atuando em temas como a educação, a
organização do trabalho, a liberdade de imprensa, a censura, a definição dos papeis e da
identidade de gênero, o divórcio, o trabalho feminino etc. Uma ação a se destacar é o plano
e rigoroso sigilo [...]”. Cf. CARTOMANTE, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 out. 1928, p. 15.
4
Cf. Evangelismo. Espiritismo. Propaganda naturista. Teosofia, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 nov. 1928, p. 8.
5
SEIDL, Coronel Raimundo. Teosofia, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 mar. 1922, p 1.
6
Centro Espírita Redentor, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 nov. 1927, p. 4.
7
Cf. SERRANO, Jonathas. O Clero e a República. In: CARDOSO, Vicente Licínio (Org). À Margem da História
da República. Vol I. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 61-66.
581
estabelecido pelo Círculo Católico com apoio da Igreja, sob a direção do Conde Afonso Celso
e presidência honorária da Princesa Isabel, de se erguer um imenso monumento ao Cristo
redentor em algum lugar de destaque na cidade do Rio de Janeiro em comemoração ao
Centenário da Independência8. Inspirada pela estátua do Cristo erguida em 1904 na divisa entre
Argentina e Chile9, a fim de celebrar a paz entre os dois países, o primeiro projeto aprovado do
monumento, feito pelo arquiteto Heitor da Silva Costa e rejeitado posteriormente, mantinha o
estilo da obra construída nos países vizinhos e era bastante distinto do que veio a ser erguido
nos anos 193010. A figura do Cristo Redentor era, ainda, especialmente mobilizada nas
encíclicas do papa Leão XIII, cujo papado (1878-1903) destacou-se, justamente, pela
formulação de uma “doutrina para a inserção dos cristãos no mundo e nos problemas concretos
do homem contemporâneo”11, ou seja, nas questões políticas, econômicas, culturais e sociais.
O processo de construção do monumento ao Cristo Redentor durou mais de dez anos,
desde que foi anunciado na imprensa até a sua inauguração em 1931. As disputas religiosas
começaram já no interior do próprio público católico que parecia preferir o Pão de Açúcar.
Alguns expressavam razões históricas por tais preferências e suspeitavam das razões da decisão
pelo Corcovado que seria devida à “circunstância de que a direção do Corcovado é da Light,
ela própria e a Light é sabidamente protestante” e isso não poderia “deixar de influir sobre a
última decisão do decisão do Círculo Católico”12. Dizia-se, ainda, que no Corcovado o
“monumento ficará exposto às moscas e só poderá ser visto por um ‘óculo’”13. Nos primeiros
meses após o anúncio da ideia da estátua gigante, as notícias se desencontravam sobre onde
seria e, mesmo, o que seria, uma vez que se aludia ao fato de se fazer uma grande cruz em um
dos montes14. Não faltou também quem fizesse troça sobre a questão15.
8
Cf. O MONUMENTO DE CRISTO REDENTOR, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 mar. 1921, p 3; Um telegrama
da Princesa Isabel às Comissões do Monumento a Jesus Cristo Redentor, O Jornal, Rio de Janeiro, 1 mai. 1921, p
2.
9
À época surgiram versões que diziam que a ideia de construção do monumento remontaria a 1905, segundo certo
Almirante José Carlos de Carvalho, quando um grupo de engenheiros teria esposado tal ideia. Numa outra
apreciação, fala-se que o jornal A Noite teria lançado a ideia de se fazer uma grande cruz no Pão de Açúcar. Cf. O
monumento a Cristo Redentor, O Jornal, Rio de Janeiro, 25 abr. 1921, p 3; A Pedidos. O monumento a Cristo
Redentor, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mai. 1921, p 3.
10
“Cristo aparece com os seus atributos indispensáveis – a cruz e o globo terrestre, o que vale dizer: ‘Jesus,
vitorioso da cruz e senhor do mundo!’” O monumento a Cristo Redentor. O projeto aprovado e a sua significação,
O Jornal, Rio de Janeiro, 23 mai. 1921, p 3.
11
RODRIGUES, Anna Maria Moog. A Igreja na República, p. 6.
12
“Há uma infinidade de argumentos contrários a essa deliberação e, entre eles, são de vulto, em primeiro lugar, o
que encontra base no elemento histórico: de fato, em 1567, Estácio de Sá, segundo alguns historiadores, cuja
opinião foi aceita oficialmente, apesar das contestações aparecidas, fundou a cidade de S Sebastião do Rio de
Janeiro entre o Pão de Açúcar e o morro Cara de Cão, onde se encontra um marco comemorativo, mandado erguer
pelo saudoso Vieira Fazenda. Por aí, já o Pão de Açúcar surge como o local mais próprio à iniciativa do Centro
Católico”. A Pedidos. O monumento a Cristo Redentor, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mai. 1921, p 3.
13
A Pedidos, O monumento a Cristo Redentor, O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mai. 1921, p 3.
14
Cf. O monumento a Cristo Redentor no alto do Pão de Açúcar, O Jornal, Rio de Janeiro, 21 mai. 1921, p 6.
15
“Os positivistas da rua Benjamin Constant, os Mendes e os Bagueiras, querem levantar no Pão de Açúcar uma
grande estátua à Clotilde de Vou. Aí está o que arranjaram os católicos. Tiveram a ideia de colocar um monumento
582
Uma vez, porém, que o projeto católico, não sem alguns imbróglios jurídicos a respeito
da legalidade de tal empreendimento feito com verbas públicas e em função de uma religião
num Estado teoricamente laico16, ia tomando corpo, com o lançamento da pedra fundamental
em 1922 e o começo das arrecadações de doações, os questionamentos tomaram as páginas da
imprensa. Em 1923, o pastor Álvaro Reis escreveu vários artigos contrários, basicamente
argumentando tanto que o culto a ídolos seria contrário aos “preceitos das escrituras”, quanto
ao fato de as verbas públicas serem “escandalosamente inconstitucionais”, devendo a Igreja e
o povo carioca arcar com a obra. Além disso, comentava o pastor: “Não será ultrarridículo –
velados e riquíssimo inimigos da República quererem extorquir, por propostas
inconstitucionais, verbas do orçamento, quando a nação está quase às portas da bancarrota?”17
A campanha da Igreja católica, porém, foi ampla. Mais do que a consecução final do
erguimento de um símbolo religioso na capital da República, a mobilização no engajamento e
na divulgação da “causa” do Cristo abrangeu os mais diversos âmbitos. Para além das reiteradas
dotações orçamentárias da Câmara de centenas de contos de reis, o clero mobilizou uma
campanha para angariar doações em todas as paróquias do Rio de Janeiro, o próprio arcebispo
Dom Leme passou a chefiar a comissão de arrecadação de donativos, um filme intitulado
“Cristo Redentor”, que registraria o “entusiasmo do nosso povo em favor do monumento”
passou a ser exibido nos cinemas, uma Escola Doméstica Cristo Redentor foi criada no Rio de
Janeiro18. Não por acaso, dentre as primeiras matérias publicadas quando do lançamento da
seção jornalística “Ação Católica”, inaugurada em novembro de 1927, estava a que dizia
respeito à “imagem do Cristo no Corcovado”, já com reprodução da maquete do monumento
em sua forma definitiva e sob os cuidados de Heitor da Costa e Silva e Paul Lewandovski. Em
um dos textos a respeito do monumento, considerava-se que:
Cristo Rei vai dominar o Rio, lá do mais alto do Corcovado. A sua estátua augusta
há de estender, dali, a sua mão protetora sobre a cabeça dos humildes e dos fracos.
Já hoje, porém, avulta naquele pico uma cruz luminosa, uma cruz de fogo, que se
abre para a cidade como dois misericordiosos braços do perdão. A cruz luminosa
começou a ser vista desde a noite de 1 e ainda pela noite de ontem, era o grande
no alto daquela montanha e os ‘positivos’, de ideias sempre ‘negativas’, aproveitaram a cisão entre os católicos
quanto à escolha do local para a homenagem ao Cristo Redentor e resolveram plantar lá a Clotilde de Vou. Pois
podem ir para onde lhes aprouver, menos para o Pão de Açúcar, que o lugar já está tomado...”. A Pedidos. Clotilde
no Pão de Açúcar, O Jornal, Rio de Janeiro, 14 jun. 1921, p. 6.
16
Houve algumas idas e vindas na autorização oficial para o erguimento do monumento. Como mostra a seguinte
notícia: “Reconsiderando o seu despacho anterior, o ministro da Fazenda, depois de ouvir o consultor geral da
República, resolveu negar autorização para o Comitê do Cristo Redentor faça o Cristo Redentor, por ocasião do
Centenário da nossa Independência. Na opinião do consultor aludido, o deferimento do pedido vai de encontro à
nossa constituição, por isso que importa, na concessão de um favor do Estado em benefício de uma igreja”. Não
será mais erigida no Corcovado a imagem do Cristo Redentor, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 out. 1921, p. 4.
17
REIS, Álvaro. O Cristo no Corcovado, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 set. 1923, p. 6.
18
Projeto da Câmara de auxílio, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 out. 1922, p. 3; Aprovado na Câmara 200:000 para
exercício de 1924, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 set. 1923, p. 8; Monumento a Cristo Redentor. O Jornal, Rio de
Janeiro, 23 dez. 1925, p. 4; Cristo Redentor, no atelier da Botelho Film, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 set. 1923, p.
11; Escola Doméstica Cristo Redentor, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 set. 1927, p. 5.
583
ponto de atração para as vistas contritas dos cariocas em qualquer parte da cidade. A
grande cruz luminosa, que precede a estátua do Redentor, naquelas alturas é já a
grande alegria dos corações católicos do Rio19.
Na nova seção, que se diferenciava das tradicionais colunas informativas dedicadas às
variadas religiões, a “Ação Católica” era apresentada da seguinte maneira pela redação do
periódico: “O JORNAL inicia, hoje, uma seção dominical, toda consagrada aos interesses da
religião da maioria dos brasileiros, assim como uma seção semanal de caráter meramente
informativo”20. Ao mesmo tempo em que se distinguiria de um partido político, pois este
implicaria em “determinar a ruptura de algum dos laços de fraternidade da grande família
humana”, a Ação Católica pretendia atuar no mundo político segundo uma perspectiva superior
às divisões partidárias. Conforme D Leme: “Quando em qualquer momento da existência como
católico e como cidadão, em sua vida privada ou pública, pode ele, em suas livres atividades,
achar ou aceitar a solução cristã de todos os problemas que se lhe apresentarem”. Esta
“totalidade” do catolicismo lhe permitiria fazer frente às principais questões da época:
A ação católica se desenvolve na tríplice ordem intelectual, moral e social. [...] No
domínio intelectual, os nossos esforços se orientarão no sentido de iluminar as bases
das nossas crenças, mostrando a Fé como uma homenagem à Inteligência Infinita, e
que não há incompatibilidade entre a religião e a ciência [...] Sendo a moral uma
regra de vida, é impossível não fazê-la depender da concepção que formamos da
finalidade da vida, e uma concepção da vida, quando não é uma religião, é ao menos
uma metafísica. [...] Na esfera social [...] O fator econômico adquiriu tal prevalência,
nos nossos dias, que até parece ter mudado a fisionomia de todos os outros valores,
dando aparências de verdade à ideologia do autor do Kapital. O mundo atravessa
uma aguda crise social. O individualismo da escola liberal atirou o homem aos
paroxismos da mais negra miséria. O materialismo histórico de Marx abriu a
falência, após a dolorosa experiência da Rússia. Onde encontrar a solução da
incógnita inquietadora? No retorno à moral do Evangelho, única capaz de despertar
nas consciências, o sentimento de solidariedade humana, hoje em dia obliterado,
única capaz de levar à inteligência do proprietário a convicção da função social da
riqueza.
Assim, o catolicismo na República adquire, ao fim da década de 1920, uma ação contundente
e um engajamento agressivo nos meios sociais, culturais e políticos, em meio à crise geral de
um regime cada vez mais questionado. O fim do frágil laicismo da Primeira República não
deixou de ser notado pelas seções que mais davam um tom democrático à imprensa daquela
época, os “a pedidos”, nos quais, normalmente sob um pseudônimo, vários comentários,
contestações, críticas, reclamações e ironias eram expressos por um cidadão qualquer:
Uma incrível notícia veio de Minas. O governo do seráfico Antônio Carlos permitiu,
que, dentro do horário, nas escolas públicas, seja administrado o catecismo católico
às crianças! É fantástico! Isto quer dizer que os filhos dos protestantes, judeus e
espirituais serão obrigados a obedecer doutrinas contrárias à sua consciência e isso
oficialmente! É melhor logo entregar o governo do Estado ao arcebispo e estabelecer
a inquisição com o São Bento, tão de gosto dos sotainas. O clero é tenaz! Perderam
19
20
A imagem de Cristo no Corcovado, O Jornal, (Terceira Seção), Rio de Janeiro, 20 nov. 1927, p. 11.
A IGREJA CATÓLICA, O Jornal, (Terceira Seção), Rio de Janeiro, 20 nov. 1927, p. 11.
584
o riquíssimo filão mexicano e querem agora se refazer no eterno espoliado – o povo
brasileiro! Pobre Constituição e infeliz país!21
O batismo do crítico
“Converti-me ao catolicismo em virtude de minha sede de totalidade”22, com essas
palavras o crítico lembrava o que lhe guiou quando decidiu, em 15 de agosto de 1928, junto à
Primeira Comunhão de sua filha, comungar. Em sua correspondência com Jackson de
Figueiredo, ele dizia ter “dado o passo difícil. O primeiro dos passos difíceis”23. A comunhão,
recebida das mãos do padre Leonel Franca, era um dos “últimos arrancos do homem velho”24.
A figura de Jackson de Figueiredo exercia realmente uma força incomparável sobre a
personalidade do crítico, especialmente a partir dos primeiros meses de1927, quando os dois
intelectuais iniciaram “um exame da realidade brasileira, em todos os seus aspectos” proposto
por Jackson25. Tristão de Athayde aceita o convite ressalvando, porém, que ele só poderia
proporcionar ao interlocutor dúvidas, perplexidades e incertezas. Mesmo considerando-se,
àquela altura, muito mais próximo da Igreja do que já estivera anteriormente, o crítico repelia
a ação política que Figueiredo parecia lhe propor com tal convite:
Não sou nem quero ser homem ou mesmo publicista político. Quero continuar a ser
apenas o modestíssimo apreciador literário dos domingos, sem eficácia nem alcance
doutrinário, sem originalidade nem profundeza, mas em suma a única coisa que
posso ser publicamente por ora. Serei mais alguma coisa algum dia? Di-lo-á o futuro.
Por ora só posso continuar a ser o quase nada que sou26.
Com o passar do tempo e sua crescente identificação com os domínios da Igreja católica, o
crítico questiona se tal sedução não era devida à influência do seu interlocutor:
Não estarei eu sofrendo apenas a sua influência? E apesar das diferenças de
temperamento, de gênio, de gostos ou mesmo de certas ideias (apesar ou por causa?
Sou essencialmente um espírito de contradição. Em menino, sempre gostei das
coisas graves; não irei, em velho, gostar das coisas frívolas? mais um espinho para a
coleção), - apesar de tudo isso, não haverá em mim um simples caso de mimetismo,
de sedução pessoal, como já tem sucedido com muitos outros em torno de uma
personalidade exigente e atrativa como a sua?27
Em outra ocasião, ele confessava que “retardei a minha volta à Igreja – por temer de que fizesse
mais por você do que pela própria fé”28.
Após a conversão, porém, o crítico parece perceber alguns traços no correspondente
que eram contrários aos que lhe havia atribuído desde quando começaram a troca de cartas: “No
fundo, você é todo cheio de meandros, de sutilezas, de caminhos vicinais, de picadas de índios,
21
Japonês. Religião oficial?, O Jornal, Rio de Janeiro, 16 set. 1928, p. 6.
LIMA, Alceu Amoroso. Memorando dos 90, p. 59.
23
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 218.
24
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 227.
25
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 77.
26
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 79.
27
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 161.
28
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 256.
22
585
de tocaias, de galerias subterrâneas, e o público de fora só vê a estrada larga, reta, violenta,
batida de sol e indo direta ao fim, sem torcer”29. Nos primeiros meses após ter comungado,
Tristão de Athayde dizia a Jackson de Figueiredo que ainda estava “cheio de dedos nesses
assuntos de ação católica. O Franca aconselha deixar-me continuar como até agora, deixando
que a fé se infiltre lentamente nas minhas próprias atitudes atuais, nos meus escritos etc.”
Figueiredo sempre lhe incentivava a partir para uma atuação pública e engajada, ainda mais por
gozar de uma condição social e econômica bastante favorável:
Nunca você precisou tanto de ter a fortuna que lhe atribuem. É preciso que dirija o
movimento intelectual católico e isto não se faz sem sacrifícios grandes. Eu que o
diga. No estado atual da sociedade só um homem com fortuna pode atuar com
eficiência sobre a dispersividade das boas vontades30.
O que ocorreu, porém, foi que, ao passo que Tristão de Athayde parecia começar uma nova
fase, dar os primeiros passos, Jackson de Figueiredo se mostrava cansado e, após ter se
considerado durante sua atuação no governo Bernardes como “um dos homens mais ambiciosos
do Brasil”, ele passara a ter “a certeza de que uma vitória pessoal minha, seria talvez a morte,
em mim, dos princípios que eu quisera sustentar e sem os quais não compreendo que a vida
valha a pena de ser vivida”31. Mais do que isso, ao verificar que um de seus companheiros,
Perilo Gomes, estava vendendo a sua biblioteca por problemas financeiros, Figueiredo dizia
que “no fundo, é o terrível resultado da luta católica no Brasil. Uma vida reduzida – a tal
mediocridade de meios, que o desespero é quase certo... após anos de trabalho intenso”32. Tal
sentimento de desespero torna-se recorrente nas últimas cartas do diretor da revista A Ordem e,
frente a essa condição, Tristão de Athayde comentava: “Ah, se não fosse a sua fé em Jesus
Cristo, eu cada vez acredito mais que só haveria uma solução para a sua vida – o suicídio”33. A
resposta do interlocutor confirmava o juízo: “É claro como o sol: se eu não tivesse a fé que
tenho em Jesus Cristo, e fosse tal qual sou, só teria um caminho para me livrar de mim
mesmo”34. Na penúltima carta enviada ao crítico, o líder do Centro dom Vital se confessava:
E uma verdade, meu querido Alceu: atravesso uma terrível crise espiritual. Tenho
tido nos lábios o sabor da morte. [...] Mas a minha humanidade tem sempre reagido
contra essas vaidades do aniquilamento. Mas já tenho bem definida uma resolução:
a do silêncio. [...] a sensação de que o peso da vida está demasiado para mim35.
Nesta mesma época, Jackson de Figueiredo comentara ter feito uma pescaria “quase trágica na
Barra da Tijuca”36. Meses depois, o intelectual paraibano falecera, aos trinta e sete anos de
29
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 261.
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 230.
31
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 287-288.
32
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 292.
33
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 244.
34
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 202.
35
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 290.
36
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 216.
30
586
idade, em uma pescaria na mesma Barra da Tijuca. Seu corpo ficou desaparecido por seis dias,
os relatos das testemunhas afirmavam que ele estava totalmente só no momento em que teria
caído de uma pedra e se afogado, tendo sido visto por seus acompanhantes quando já ia
desaparecendo entre as águas37.
A morte de Jackson de Figueiredo representou um impacto considerável na vida de
Tristão de Athayde. Este se empenhou em uma intensa campanha epistolar para arrecadação de
donativos à família do amigo38, que inclusive rendeu uma ode de Carlos Drummond de Andrade
ao líder católico que guardava trechos como esse: e a tua pesca mais opulenta, Jackson, foi a
de ti mesmo pelo oceano39. É na correspondência com o intelectual francês Georges Bernanos,
porém, onde encontramos a significação decisiva de tal fato trágico na trajetória do crítico:
Sinto perfeitamente que a minha vida tomou um novo rumo, que acabou alguma
coisa e começou uma nova era para mim. [...] Desde a morte do Jackson que fui
obrigado a aceitar, dentro de minha miséria intelectual, de minha desconfiança de
mim mesmo, de minha dúvida eterna [...] e de minha invencível fragilidade (que os
homens nem suspeitam existir, no fundo desta alma, dessa severidade aparente...) fui forçado a aceitar uma certa parte da herança espiritual de Jackson. De modo que
me encontro hoje como Presidente do Centro D. Vital e como diretor de A Ordem
[...] sinto-me no dever de aceitar o convite que me fizeram, de modo que hoje estou
em pleno movimento quando há três meses me encontrava em plena solidão. Não
quero pensar no futuro. [...] Chegou o momento de exteriorização, de vida ativa. De
entrada na vida, vida mesmo!40
Tanto a sua comunhão quanto a morte de Jackson de Figueiredo representaram para Tristão de
Athayde, agora já muito mais Alceu Amoroso Lima, um novo batismo, a sua “entrada na vida”.
No mesmo período em começara um debate mais contundente com Jackson de
Figueiredo, no princípio de 1927, Tristão de Athayde abandonara sua coluna periódica em O
Jornal e, conforme relatara ao seu interlocutor, estaria se dedicando:
[...] aos trabalhos preparatórios de um livro que ia ser o seguinte: “Formas
elementares (?) de arte, ou essenciais de arte. A arte dos loucos. A arte dos índios. A
arte das crianças”. Tenho um material imenso a respeito. E cada vez recebo mais. É
um tema que seduz como nenhum outro tema de estética. E sempre que você me vir
seduzido, perdido, por coisas que lhe pareçam malucas, aberrantes, degeneradas,
pode dizer consigo mesmo – “Lá esta o Alceu com os seus amores”. E esses amores
não é o gosto de originalidades extravagantes. Ou de esnobismos requintados. Ou de
diletantismo sibarita. Não. É a convicção profunda de que o homem moderno, o
homem estragado pela ciência, pelo progresso, pelo êxito, pelo luxo, pelo dinheiro,
37
Cf. A morte trágica do sr Jackson de Figueiredo, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 6 nov. 1928, p. 5.
Várias são as cartas a esse respeito recebidas e enviadas a nomes como Madeiras de Freitas (Mendes Fradique),
Félix Contreras Rodrigues, José Américo de Almeida, Murilo de Araújo, Otávio Tarquínio de Sousa, Paulo Prado,
Jorge de Lima e muitos outros. Cf. Acervo CAAL.
39
O poema foi enviado ao crítico, Drummond confessava: “Pensei muito antes de mandar-lhe este poema. Não sei
até que ponto ele lhe parecerá sincero, ou melhor, eu lhe parecerei sincero. Há um abismo tão grande entre a figura
intelectual e mesmo moral entre a figura de Jackson de Figueiredo e a deste que seu pobre missivista que... Mas
ao mesmo tempo, escrevendo tais versos, eu pensei especialmente em você, como no amigo maior e melhor de
Jackson”. O poema foi publicado na revista A Ordem. Cf. Carta de Carlos Drummond de Andrade a Alceu Amoroso
Lima, s/data, acervo CAAL; ANDRADE, Carlos Drummond de. Ode a Jackson de Figueiredo, A Ordem, Rio de
Janeiro, ano IX, no 4 (nova série), pp. 150-151, dez. 1929.
40
Carta de Alceu Amoroso Lima a Georges Bernanos, s/data, acervo CAAL.
38
587
pela volúpia, por toda essa banalização contemporânea, por todo esse hedonismo,
que é a filosofia do homem médio de hoje, - é, digo, a convicção de que esse homem
normal não pode criar arte original nenhuma, hoje em dia (ou pelo menos nada de
diferente ou de melhor que o passado, e nesse caso prefiro ficar com o passado), e
que só nos loucos, nas crianças, nos índios podemos ainda encontrar, sem artifício,
a terrível dignidade de criar41.
Como apontamos neste trabalho, o tema da criança, do primitivo (visto também como uma
criança), da virgindade, da busca por uma naturalidade e autenticidade que fizesse frente à vida
artificiosa e segmentada que parecia caracterizar o homem moderno era algo recorrente no
interior da cultura intelectual brasileira. É a época em que causava sensação a literatura infantil
de Monteiro Lobato, que os jornais criavam colunas específicas para as crianças, que os países
americanos eram vistos como estando na infância quando contrapostos ao velho mundo.
Ao escrever sobre a literatura infantil, Tristão de Athayde distinguia aquela que era
feita para crianças e outra “de crianças”, além das produções sobre crianças que, porém, não
seriam exatamente literatura infantil42. As falhas da literatura feita para crianças residiam no
fato de que, quando era construída por professores, viria “impregnada de pedagogismo”,
perdendo o “seu interesse e naturalidade pela preocupação de instruir e moralizar”43. Sairiam,
assim, livros “mornos, insípidos, em que as crianças cabeceiam e parecem feitos para lhes
inspirar o horror à leitura”. Quando tal literatura era feita por amadores ou “profissionais da
fantasia de mascate”, o resultado seria a queda na grosseira, “no mau gosto, na vulgaridade
barata. Pedagogismo e mercantilismo”.
Tal relação com a infância seria problemática não só por não cumprir com sua
finalidade literária, por assim dizer:
O mal vem de se desconhecer a dissociação das idades. É querer falar às crianças
com uma alma de adulto. Sobretudo com a nossa alma de hoje, cuja salvação só pode
estar justamente na ressurreição, em nós, do que há de único e supremo na alma
infantil. Só a criança pode salvar o homem do nosso século.
No caso da literatura infantil, o crítico falava da falta de autenticidade daqueles que se
dedicariam a tal métier, como raras exceções como Monteiro Lobato, uma vez que o “autor de
literatura para crianças é quase sempre... um autor de literatura para crianças. Isto é, um
agenciador de coisas estranhas. Um técnico, um manipulador de fantasias infantilizantes. Nada
mais”. Visto que as crianças se interessariam por tudo, essa literatura, mesmo com suas falhas,
conseguiria ter a atenção do público infantil. Seria necessário, porém, reconhecer a
especificidade da psicologia infantil:
A psicologia infantil não é uma psicologia normal em ponto pequeno. É outra coisa.
Há uma diferença de qualidade entre elas. E o próprio fato de “conhecermos” a
41
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 204.
Tal temática educacional, apenas esporádica até então, será reiteradamente retomada nos escritos de Alceu
Amoroso Lima. Cf. CURY, Carlos Roberto Jamil. Alceu Amoroso Lima. Coleção Educadores. Recife: Fundação
Joaquim Nabuco, 2010.
43
ATHAYDE, Tristão de. Literatura infantil, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 ago. 1926, p. 4.
42
588
psicologia, o mundo da infância, melhor do que ela mesma, é só por si um motivo
para nos separar da criança. A criança ignora. Portanto a sua ignorância faz parte do
seu mundo. É um elemento orgânico dele. E o erro de muitos autores de literatura
infantil, como de professores etc., é justamente julgar em que o fato de conhecermos
melhor o seu mundo interior nos permita penetrar melhor nesse mundo44.
Assim, o conhecimento atrapalhava a compreensão e a “a literatura infantil dos que se
presumem conhecer a alma infantil e escrevem assim ‘lucidamente’ para ela, é uma literatura
falseada, em seu espírito, por essa própria lucidez”. O erro da literatura infantil feita para
crianças era considerá-las como a redução do adulto, não percebendo sua qualidade específica.
E a qualidade infantil seria a não obediência à lógica, que só com o passar dos anos
iria se cristalizando nas distinções entre realidade e fantasia, num processo que, segundo o
crítico, era tão desconhecido pela psicologia infantil quanto pelas próprias crianças. Tristão de
Athayde argumenta que três pintores retratando a mesma paisagem iriam, provavelmente,
representá-la de maneira bastante distinta, devido ao ponto de vista individual. No caso da
criança, a coisa seria diversa, pois a “criança pouco se incomoda com a visão pessoal. Pouco
liga à sua personalidade artística. Nunca se considera um artista. O que quer é exprimir, traça o
que vê ou antes o que imagina”. Considerava-se que, em suas criações, a criança:
Não copia. Não imita nunca. Exprime com segurança a imagem que imagina. Mas
sem a preocupação de imaginar e sim de reproduzir a realidade. E essa imagem é
sempre uma recomposição de caráter próprio, que nós nos habituamos a olhar com
desdém, mas que é para a criança a expressão exata do representado. A criança não
se prende às linhas exatas do objeto, como o fará mais tarde, antes de chegar a
compreender a palavra de Cocteau, de que “a fotografia libertou a pintura”. A sua
preocupação é dar uma imagem completa do que pensa ser o objeto. E dos seus
elementos salientes, essenciais.
Assim, era preciso reconhecer nas produções infantis o resultado “de uma concepção toda
descontínua e sinóptica da realidade, que devemos estudar antes de procurar atingir o gosto e o
interesse das crianças”. Tal originalidade infantil não seria debitária da personalidade, mas de
algo mais “orgânico” que poderia ser apreciado segundo a faixa etária diversa, o
“desenvolvimento relativo”, o que haveria de “irredutível na infância” e conformaria um “estilo
infantil, variando de idade a idade, mas sempre, numa mesma idade, com uma média de
afinidade e semelhança que mostra o que há de genérico e de específico no mundo das
concepções e das expressões da infância e da primeira adolescência”. O crítico defende, então,
a produção de obras de literatura infantil feita por crianças, mas não pelas crianças-prodígio, ou
seja, por aquelas que nem pareciam ser infantis. Pelo contrário, o “que se deve procurar não é
o que há de adulto, e portanto de falso, na criança, mas o que tiver de bem criança, portanto de
espontâneo. A própria imitação do adulto, que é tão comum na criança, tem um caráter infantil
inconfundível”45. Dessa forma, a literatura infantil seria direcionada para as crianças, mas teria
44
45
ATHAYDE, Tristão de. Literatura infantil, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 ago. 1926, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Literatura infantil II, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 set. 1926, p. 4
589
um caráter professoral em relação aos adultos:
Só no dia em que houver boas histórias de crianças para crianças é que se poderá
falar da existência de uma literatura infantil. As crianças são além disso os
verdadeiros primitivos, sem artificio nem anacronismo, de nossa arte moderna e
futura. Saibamos ver na infância uma lição46.
Estas reflexões de Tristão de Athayde sobre a psicologia e o caráter das crianças,
inspirada em vários estudiosos da época, revelam o interesse e a força que a metáfora infantil
exercia em diversas esferas da cultura intelectual brasileira. O abandono da lógica ou a criação
de uma lógica especial, de um raciocínio específico, de uma singularidade baseada antes na
espontaneidade e no impulso do que na reflexão e no cálculo, o apagamento do passado, atributo
da velhice, em nome de um rejuvenescimento segundo uma nova orientação na vida. Nascer de
novo, novos caminhos, nova vida, nova era na vida, novo mundo.
Em uma de suas memórias, o crítico considerava que “um dos motivos de minha
‘conversão’ mais do que uma ‘reversão’ à vaga fé de minha infância e adolescência foi a
aventura do futuro, o mistério do desconhecido e da possível imortalidade”47. Essa evocação
do “mistério”, que se tornou mesmo um mote de suas reflexões acerca da arte moderna
brasileira, ia junto com as interpretações acerca da mocidade e de seu significado renovador:
Os homens cada vez mais vão perdendo a capacidade de espantar-se. Pois nascem
cada vez mais velhos, à medida que tudo fazem por adorar a mocidade. É preciso
amar a mocidade, mas não adorá-la, para conservar a mocidade. [...] Vivemos tanto,
em tão pouco tempo, que já nada nos surpreende. E aqueles que tiveram a desgraça
de não readquirir o senso do mistério, vão reduzindo a vida a um eterno sorriso de
fartura, pois perderam de todo a surpresa de viver48.
Ao analisar obras sobre o “batismo da América” visto como o período de colonização e,
especialmente, segundo a atuação de nomes como o do dominicano Bartolomé de Las Casas e
de outras forças catequizadoras, Tristão de Athayde destacava no trabalho de Juan Terán, El
nacimiento de la America española (1927), a parte em que o autor falava do “nascimento da
irreligiosidade da América”. Aí se destacaria os empecilhos à catequização oferecidos mais
pelos conquistadores do que pelas próprias populações autóctones, consolidando-se na
realidade colonial uma situação na qual:
As classes elevadas da sociedade dão a impressão de que os homens se mantêm
estranhos a toda preocupação religiosa, reputando-a ‘assunto de mulheres’. No
melhor dos casos lhe outorgam uma neutralidade benévola. Não são ateus, - pois sêlo é de certo modo indício de meditação do problema religioso - senão indiferentes
e epicuristas49.
Na visão do crítico, tal quadro colonial era a descrição do meio brasileiro do século XX. Ele
retoma, então, as passagens de um livro sobre o mesmo tema, apesar de não ter o mesmo rigor
46
ATHAYDE, Tristão de. Literatura infantil II, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 set. 1926, p. 4
LIMA, Alceu Amoroso et al. Alceu Amoroso Lima: Memórias Improvisadas, p. 328.
48
ATHAYDE, Tristão de. Hello, O Jornal. Rio de Janeiro, 25 nov. 1928, p. 4
49
TERAN apud. ATHAYDE, Tristão. O Batismo da América, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 abr. 1928, p. 4.
47
590
historiográfico, do escritor Marcel Brion, Bartholomé de Las Casas (1928), em que o autor
francês traça o seguinte paralelo histórico, a partir do “idealismo” de Las Casas:
Na situação estranhamente mais complexa onde nos encontramos, talvez
devêssemos, sob modalidades diferentes, retomar os grandes princípios de solução
nos quais ele se inspirou, e reconhecer que o primeiro dever e o primeiro interesse
das nações estão em fazer prevalecer as obrigações espirituais sobre os proveitos
temporais imediatos50.
Neste sentido, o crítico considera que “hoje em dia já estamos em condições de compreender a
profunda verdade dessas palavras. Todo progresso, individual ou coletivo, deve ser uma volta
ao batismo, ou pouco mais será do que vaidade e poeira”51. Assim, a nova infância reivindicaria
um novo batismo que, na visão de Tristão de Athayde, era a única forma de se preservar a
criança no adulto:
Sim a delícia da vida, apesar de tudo, é sempre a infância. E a infância vive em nós,
por toda a vida. Não é só aos dez anos que temos dez anos. Em todas as idades
podemos ter dez anos. Porque a infância continua a viver em nós. Não é o tempo que
a consome. Somos nós, muitas vezes, somos nós quase sempre que a não sabemos
conservar. E que matamos em nós a criança que vive na sombra. A criança que
deixamos viver trancada em nós, entre as quatro paredes das coisas ásperas, das
coisas tristes, das coisas frias, com que vamos murando lentamente a nossa infância,
reclusa, sim, mas não perdida. O homem é uma criança que se ignora. E daí o que há
de imenso nesse imenso paradoxo cristão de adorar na Criança a suprema verdade.
Nós mesmos, inúteis pesquisadores de verdades parciais, capturadores de raios
esquivos de beleza, que vivemos a destilar essências raras à procura de perfumes
estranhos de outros ares ou então, pelo contrário, a mutilar dia a dia as asas que
pedem espaço, e vento, e azul, - nós vemos quando muito na infância a beleza
encontrada, ou a doçura perdida ou a saudade ou um consolo. Mas quando subimos,
quando forçamos os círculos de limitação quando chegamos à plenitude cristã – que
para tantos que não querem ver é uma restrição da realidade – sentimos como ainda
é pouco o que sozinhos conseguíramos e que há na criança, na claridade infantil,
qualquer coisa de mais alto que o simples encanto da graça e da beleza: o encanto da
verdade52.
O mal sagrado
Enquanto exigia das obras modernistas o princípio de lucidez, Tristão de Athayde
confessava a Jackson de Figueiredo a sedução pela loucura que lhe acometia, especialmente
associada à ação e a possibilidade de se engajar na causa católica:
Ah! se eu pudesse partir para aventuras, se eu pudesse arrancar de mim essa casca
abominável de bom senso que me asfixia, seu eu pudesse lançar-me numa loucura
intelectual, - eu juro que arrostaria a hipocrisia interior, me faria um católico
militante, extremado, aventureiro, como você, e iria fundar, com você, um panfleto
em que nós cortássemos as amarras com a terrível quietude do meio e partíssemos
em guerra pela recatolicização (êta!) romântica destes brasis, e acabaríamos ambos
na ponta de alguma faca de sicário, num festo que resgataria o terra-a-terra que nos
agrilhoa. A sedução da loucura. Você não imagina como vivo seduzido pela
50
Citado em francês. BRION apud. ATHAYDE, Tristão de. O Batismo da América, O Jornal, Rio de Janeiro, 29
abr. 1928, p. 4.
51
ATHAYDE, Tristão de. O Batismo da América, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 abr. 1928, p. 4.
52
ATHAYDE, Tristão de. Poetas, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 dez. 1927, p. 4.
591
loucura!53
O crítico sintetizou suas reflexões num artigo intitulado “O mal sagrado”, no qual partia da
verificação sobre como desde sempre o “problema da loucura obceca os homens”. Haveria na
loucura algo de “trágico” e “misterioso” que se consolidaria numa “perda de contato com a
razão”, num “deslocamento do espírito que revolve tudo o que há de mais alto em nós, e cria
uma nova vida e um novo mundo e uma nova forma de inteligência”54.
Dessa forma, o louco não deveria ser visto como aquele que perdeu a razão, mas como
aquele que inverteu a razão, a desarticulou, perdendo o “equilíbrio e o domínio de uma coisa,
mas não essa própria coisa, de forma que a loucura é apenas uma forma nova de razão”. E, neste
sentido, a psiquiatria oitocentista erraria ao procurar “localizar” a loucura e encontrar as
“localizações cerebrais como que procurava o micróbio da loucura e seguramente a infecção
local da loucura”. Tal “materialização” da psiquiatria:
[...] foi a pobreza de ponto de vista daqueles que julgavam ter de, uma vez por todas,
banido o mistério que sempre cercou, em todos os tempos, o mal sagrado.
Procurava-se, então, por todos os meios, desmoralizar o conceito de alma, já tão
deturpado pelos próprios espiritualistas que de certo modo começaram a sua
materialização, procurando o seu ponto de inserção no corpo!
Na visão do crítico, a “mitologia do cérebro” vinha substituir a “mitologia da alma”, algo,
porém, que, desde a Grande Guerra, viria se modificando parcialmente:
Sim, a guerra veio mostrar patentemente, aos mandarins de laboratório, que tratam
as coisas do espírito pelos mesmos processos que as coisas da matéria, veio mostrarlhes como separar o mal da razão do mistério da vida era condenar-se ao erro
sistemático, à impossibilidade de tocar a realidade viva que se procurava justamente
atingir. A guerra mostrou que a loucura era uma função da vida e não da inércia. Que
só era possível estudá-la em contato com o homem em sua atividade total e não como
uma simples moléstia localizada.
Dentre os aspectos valorizados pelo crítico na “nova psiquiatria” estaria o “abate” das “barreiras
que separavam o louco do sadio”, considerando os “dementes do ponto de vista dos sãos” ou,
nas palavras do psiquiatra alemão Ernst Kretschmer, “em lugar de ver certos tipos de
personalidade normal como formas abortadas de determinadas psicoses, considero, ao
contrário, certas psicoses como caricaturas de tipos normais”55. Assim, a personalidade
ganharia proeminência, interessando antes o louco do que a loucura, num processo de
“individualizar o que se mecanizara”. Tristão de Athayde lamentava, porém, que ainda não se
tratava de “espiritualizar” a psiquiatria, uma vez que os psiquiatras modernos teriam “horror
sagrado à alma”, porém, “chamam-na higienicamente, de ‘psique’, para tranquilizar os seus
leitores”. De qualquer forma, o crítico avalia que:
[...] a psiquiatria moderna, embora continue fechada a toda mística que não seja o
misticismo da natureza, embora continue, com toda a sua gravidade conselheiral, a
53
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 203-204.
ATHAYDE, Tristão de. Mal Sagrado, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 nov. 1927, p. 4.
55
KRETSCHMER apud. ATHAYDE, Tristão de. Mal Sagrado, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 nov. 1927, p. 4.
54
592
chamar Santa Tereza de histérica e Pascal de degenerado, já deu um passo
considerável no sentido de chegar a uma concepção mais inteligente, mais
compreensiva e sobretudo mais real do mistério da loucura56.
O que interessaria fundamentalmente ao crítico neste artigo, que acabou se
desdobrando especialmente sobre as teorias de Kretschmer, era destacar o interesse pelas
“formas crepusculares ou invertidas da razão” que guardariam em si o “caminho da verdade”:
Atingir o segredo da razão pela negação inicial das razões. Penetrar o mistério da
pessoa pelo desmembramento inicial da personalidade. Chegar ao Real pela
dissolução da realidade. Transpor as formas simplesmente naturais, pela deformação
da natureza. Não será o meio de chegar à totalidade, à soma, talvez possível, das
afirmações e negações?
“Tanto a loucura se ri da nossa razão. E das nossas razões”, esta era a conclusão do crítico em
suas reflexões sobre o “mal sagrado”. Ao perceber na loucura uma “forma nova de razão” que
contribuiria para a compreensão geral da “alma” humana, Tristão de Athayde visava erodir a
centralidade de um “racionalismo materialista” que dominaria a ciência oitocentista.
A oposição absoluta entre lucidez e loucura era um meio de se chegar à crítica ao
antagonismo entre ciência e religião. Conforme comunicou a Jackson de Figueiredo, era
principalmente com a produção intelectual alemã que ele tinha contato com perspectivas que
lhe permitiam construir tais argumentações espiritualistas e críticas à racionalidade moderna,
em “misteriosos folhetos ou livros, que me vêm da Alemanha sobretudo, e onde eu sinto vacilar
a razão, bruxulear essa luz divina, talvez por tocar a planos que excedam a nossa compreensão
de filhos da terra”57. De fato, seu desejo era conciliar as duas coisas: “Tenho uma imensa
sedução pela ciência positiva, experimental. O meu gosto seria estudar, a fundo, por exemplo
teologia e biologia. O cúmulo do abstrato e o cúmulo do concreto”58.
O crítico, reiteradas vezes, assinalava algumas características na atitude científica que
vinha se modificando durante o século XX, como a sua “modéstia” crescente, assim como a
sua origem comum com a religião:
Sim, a ciência de hoje nas suas expressões superiores é modesta. Foi o século XIX
que viu o apogeu do orgulho científico. A ciência vinha evoluindo lentamente,
lentamente se despojando de suas relações com a religião, com a filosofia, e
estreitando as suas relações com a Economia e hoje, nas sociedades que pretendem
espelhar a futura ordem social, com a Política. A ciência nasceu da curiosidade.
Nasceu do homem isolado em face da natureza. Nasceu como a religião da
necessidade de explicar o mistério59.
Tanto a ciência quanto a religião visariam estabelecer a “ordem” no mundo, apenas a primeira
consolidaria tal ordem no interior da própria natureza, ao passo que a segunda procuraria razões
de tal ordem numa “natureza superior”, em causas “extranaturais” e “sobrenaturais”. Mas o
56
ATHAYDE, Tristão de. Mal Sagrado, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 nov. 1927, p. 4.
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 205.
58
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 202.
59
ATHAYDE, Tristão de. Homens de ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 mai. 1925, p 4.
57
593
vigor que a ciência gozara no ocidente, durante o século XIX, não deixava ele próprio de ter
uma relação com a religião e, mais especificamente, com o monoteísmo:
E os homens encontraram novas razões de crer e de crer num Deus único. A
revelação monoteísta não seria também um pouco o produto da Ciência? Seria
apenas o deserto, a desolação do deserto que trouxe os homens do Ocidente a
revelação do Deus Único? Ou também a simplificação, a ordem, a harmonia imensa
da natureza que a ciência desvendava? A ciência mostrava que a variedade era
apenas uma aparência, que a essência das coisas era a unidade que prevalecia, e aos
poucos o politeísmo, - filho da variedade, que dava a cada fenômeno uma existência
isolada, e portanto um deus próprio – ia cedendo o passo ao monoteísmo, expressão
da simplicidade interior das leis eternas, que a ciência ia revelando aos homens. Era
em nome da ciência que Sócrates combatia o politeísmo e foi inspirado na ignorância
que o assassinaram. A ciência dos árabes atingiu na antiguidade a um renome
supremo e foram eles também que nos revelaram afinal o monoteísmo. A bacia do
Mediterrâneo onde nasceu a concepção do Deus único foi também onde nasceu a
Ciência. A Índia, ao contrário, onde a ciência nunca atingiu a uma grande
superioridade, ficou sempre, a despeito de sua sabedoria mística, na multiplicidade
teísta. E modernamente, nos países em que a Ciência mais se desenvolveu, isto é,
nos países anglo-saxônios, foi que a concepção unitária de Deus chegou ao seu
extremo60.
Não se deveria, porém, atribuir uma causa única ao fenômeno monoteísta e tais reflexões, na
verdade, serviriam para se perceber como a ciência, que muitos reduziriam à pura técnica, “veio
evoluindo com o homem, naquilo que há de mais supremo nele: a indagação das verdades
eternas e supremas”. E, nesse processo, a ciência foi assumindo um aspecto religioso e os
cientistas começaram a se assemelhar a sacerdotes, uma vez que “os iniciados vivem segregados
dos demais homens, para os quais representam o papel de semideuses ou de charlatães”. Desde
que as teorias “heliocêntricas” passaram a ter proeminência no pensamento moderno, tal
afastamento entre ciência e religião aumentaria constantemente. Haveria aí a emergência de um
“orgulho da ciência”, uma destruição de ídolos passados que tivera o auge no racionalismo
iluminista, emancipando a ciência que passaria a associar-se ao dinheiro:
Desdenhando da alma foi atirar-se à matéria. Daí o industrialismo do século XIX.
Foi a aliança da ciência com as potências materialistas, da riqueza, da utilidade, do
conforto, do luxo, que produziu a grande indústria que hoje constitui o problema
mais grave do mundo contemporâneo.
Tais reflexões, feitas em 1925, revelam as mudanças e permanências que posteriormente se
passaram na atitude do crítico frente ao fenômeno religioso. Se a submissão da religião a causas
estranhas à própria revelação divina perde espaço em suas preocupações espirituais, a crítica ao
materialismo e dogmatismo científicos tornou-se cada vez mais presente nos seus escritos.
Um dos primeiros debates em que o crítico se envolveu contrapondo uma concepção
“espiritualista” a uma perspectiva “materialista” da ciência foi por ocasião do livro de Alfredo
Ellis Filho, Raça de Gigantes (1926), lançado pela editora Helios na coleção “Novíssima”
“destinada a fixar o atual momento literário modernista”. Na reflexão de Tristão de Athayde,
60
ATHAYDE, Tristão de. Homens de ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 mai. 1925, p 4.
594
“as ‘luzes’ do século XVIII desabrocharam plenamente no materialismo histórico. E a
civilização passou a ser um resultado de índices mecânicos e impessoais”61. Tal perspectiva
ressoaria no determinismo racial de Ellis Jr que, além de partidário extremado da eugenia,
defenderia uma superioridade racial paulista que, além de falsa, seria bairrista:
Em sua opinião, São Paulo é uma terra de virtudes em meio de um pântano de
misérias. Ora, isso é a mais rematada injustiça, como o é afirmação exclusivista da
obra épica dos bandeirantes, com omissão de outros elementos brasileiros que até
hoje têm contribuído, com São Paulo, para conservar de pé este colosso – desde as
populações guerreiras do sul, que nos têm valido contra o estrangeiro, às populações
vigorosas do Ceará, que conquistaram o Amazonas, e à ação cultural das populações
citadinas do centro ou moral das populações mineiras. Só mesmo a obsessão da
civilização quantitativa poderia levar o sr Ellis a empanar a obra única de São Paulo
com a inveracidade dos insultos ao “resto” dos brasileiros e a vaidade ingênua de
bairrismo de botequim.
O livro ainda é considerado como mal escrito, sem originalidade e profundeza, marcado por
uma “leitura antiquada e uma mentalidade estreita”. Voltando ao tema posteriormente, o crítico
reiterava suas ideias contrárias a qualquer determinismo racial, geográfico, histórico ou outro:
Tratando há dias, por dever de ofício, de um livro do senhor A E F, sustentei a
seguinte tese: que na formação das nacionalidades não agem apenas fatores materiais
e objetivos, mas igualmente fatores espirituais e subjetivos; que o naturalismo do
século passado, continuando hoje em dia por uma ciência acanhada e unilateral, não
conseguia explicar a complexidade do desenvolvimento histórico; que o autor do
livrinho, aluno aplicado dessa corrente de ideias, tinha por esse motivo, desdenhando
elementos capitais de nossa formação nacional; que um desses elementos fora
justamente o Jesuíta, de importância considerável na formação paulista etc.62.
Alguns anos depois, Tristão de Athayde envolveu-se em outra polêmica, dessa vez
acionando explicitamente a relação entre ciência e religião. No caso, tratou-se do artigo “A
ciência é livre” do jurista e professor honoris causa da Universidade do Rio de Janeiro, Pontes
de Miranda. Miranda argumentava contrariamente às propostas legislativas que apareceram
logo após a vinda do geografo inglês Percy Fawcett, que buscava a lendária Atlântida nas
paragens do Mato Grosso, e visavam criar regulamentos “que condicionem a exploração
científica de tudo quanto se encontra” no Brasil. O jurista alagoano afirmava que “Ciência
intolerante não é ciência”, que a “Civilização deve à Ciência um regime de incondicionada
liberdade” e, portanto, exclamava “Nada de Regulamentos!”63 Segundo sua reflexão feita em
tom de alerta não se podia ter ilusões nesse campo, “virá uma lei científico-política e, mais
tarde, uma lei científico-religiosa”. E, assim como se proibiria novas incursões como as de
Fawcett, posteriormente, por critérios religiosos, seria o caso de se interditar conferências como
a do etnólogo francês Paul Rivet que estava no país à época e que tinha reflexões especificas
sobre a “origem do homem”. Dessa forma, Miranda era taxativo: “Evitemos regulamentos,
61
ATHAYDE, Tristão de. Piratininga, O Jornal, Rio de Janeiro, 7 nov. 1926, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Tréplica, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 dez. 1926, p. 4.
63
MIRANDA, Pontes de. A ciência é livre, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 ago. 1928, p. 20.
62
595
máxime num país em que o mesmo indivíduo aplaude ao sábio Rivet, às 5 horas, e se diz católico
ao jantar. A Ciência é livre. Ninguém no Mundo pode julgar-se com autoridade para proibir
qualquer coisa em matéria de investigação”64.
O crítico comentava que ele próprio seria um desses que aplaudiria Rivet durante o dia
e, no jantar, dizia-se católico. Lembra que a incompatibilidade entre ciência e religião é um
fenômeno que ganhara força na modernidade e, especialmente, a partir do positivismo e do
evolucionismo que fizeram da religião uma “atividade puramente histórica e cronológica”, uma
“fase primitiva do espírito” e a ciência é que assumiria doravante o papel de “intérprete dos
segredos do universo”, ao passo que a religião seria a “metafísica do povo”, conforme avaliação
do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, ou o “consolo dos ignorantes”, segundo o francês
Ernst Renan65. O século XX, porém, abrigaria cientistas que procurariam conciliar a fé religiosa
com o saber científico, como esclarecia o francês Joseph Grasset, professor de medicina da
Universidade de Montpellier, no livro Limites de la biologie (1902): “Eu sempre quero apenas
uma coisa: mostrar que fora dos domínios do estudos biológicos, há um outro domínio dedicado
aos estudos teológicos e religiosos, como há um outro domínio dedicado aos estudos
psicológicos e outro dedicado aos estudos metafísicos”66.
Segundo Tristão de Athayde, tal solução seria ainda insuficiente e lembrava, então, o
trabalho Science et réligion, do filósofo Émile Boutroux, que tivera um papel fundamental na
crítica ao positivismo no cenário francês da Terceira República67, destacando uma passagem:
A vida humana, portanto, por um lado, por suas ambições ideais participa
naturalmente da religião. Como é claro que, por outro lado, por sua relação com a
natureza, ela participa da ciência porque é à ciência que ela solicita os meios de
atingir os seus fins – parece justo ver na vida o traço de união da ciência com a
religião68.
Tal concepção seria mais condizente com a vida humana em sua totalidade, reunindo “todas as
modalidades do nosso espírito”. Assim, a “vida” habilitaria a conciliação entre religião e
ciência, arte e técnica, contemplação e realização, de forma que “a vida é tudo o que
conceitualiza as disseminações confusas do instinto e tudo o que reumaniza as estruturas rígidas
da razão”69. As concepções de Boutroux, porém, ainda não contemplariam as expectativas do
crítico, uma vez que o filósofo francês:
[...] considerava a religião um sentimento puro e não como conhecimento. E,
portanto, se a solução nos satisfaz quanto ao “funcionamento”, por assim dizer, de
nosso espírito, não nos satisfaz quanto aos fundamentos dele. Poderá satisfazer
64
MIRANDA, Pontes de. A ciência é livre, O Jornal, Rio de Janeiro, 26 ago. 1928, p. 20.
ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set.1928, p. 4.
66
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set.1928, p. 4.
67
Cf. REVILL, Joel. Emile Boutroux, redefining science and faith in the third Republic, Modern intellectual
history, 6, 3, pp. 485-512, 2009.
68
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set.1928, p. 4.
69
ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set.1928, p. 4.
65
596
aqueles para quem a religião é apenas o que ele acreditava que ela fosse, - uma
síntese afetiva ou uma aspiração ideal ou senso da totalização. Para nós, porém, que
sofremos, até o fundo da alma, todo o arraso das negações mais absolutas, a religião
não pode ser apenas um porto de refúgio nem um sentimentalismo devoto. Há de ser
pesquisa da Verdade ou não será coisa alguma70.
A religião, assim, deveria abarcar a ciência, a verdadeira religião seria uma “ciência integral”,
uma vez que a “ciência humana não esgota a ciência”, que “a verdade transcende a certeza”.
Boutroux, pelo contrário, distinguia bem os âmbitos de cada uma:
A religião têm um outro objeto que a ciência; ela não é, ela não é mais para nós, em
nenhum grau, a explicação dos fenômenos. Ela não pode se sentir tocada pelas
descobertas da ciência relativas à natureza e à origem objetiva das coisas. Os
fenômenos, aos olhos da religião, valem por sua significação moral, pelos
sentimentos que eles sugerem, pela vida interior que eles exprimem e que eles
suscitam: ora nenhuma explicação científica pode lhe retirar essa característica.
Apesar de não haver uma subordinação na relação entre ciência e religião, o fato é que
segundo o filósofo francês, à religião caberia o sentimento ao passo que a inteligência seria
apanágio da ciência. Não obstante o positivismo encontrar aí uma crítica certeira aos seus
princípios hierárquicos e evolucionistas, o espírito permaneceria dividido e era isso que não se
poderia aceitar. A partir das reflexões do químico e filósofo da ciência Émile Meyerson, que
encontraria “na natureza um ‘irracional’ irredutível71 que limita sempre o poder da ciência e
justifica sempre o poder da religião”72, o crítico reconhece outro tipo de habilitação da religião
no cenário científico, conforme defendido na obra De l’éxplication dans les sciences (1921):
O irracional assemelha-se, portanto, em alguns aspectos, aquilo que, segundo
Renouvier, constituiria um ato de livre arbítrio... O que é (irracional) e por
consequência inexplicável por essência pela via causal poderá sempre ser concebido
como sendo de instituição divina, tal instituição, bem entendido, visaria a um
objetivo73.
A partir das críticas de Meyerson, o saber científico deveria reconhecer suas limitações e
restrições epistemologicamente atestadas, conforme descrito em Identité et Réalité (1907):
Supor a existência de fenômenos livres, inteiramente alheios à dominação da lei e a
nossa previsão, não é nada atentatório aos princípios da ciência. Nem é ademais
contrário as suas conclusões, porque o determinismo sendo um postulado
fundamental da ciência, esta limitando antecipadamente sua atividade ao que é
suscetível de ser previsto, é certo que, quaisquer que sejam os resultados aos quais
se chegue, eles não poderiam nos ensinar sobre o que, por convenção predefinida,
ficou fora do domínio das pesquisas74.
A partir dos autores que fariam a crítica da ciência, Tristão de Athayde apropriava-se dos pontos
que lhe permitiriam incluir a perspectiva religiosa no plano geral dos saberes legítimos, por
assim dizer, retirando o caráter meramente sentimental da religião, ao mesmo tempo que
70
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set.1928, p. 4.
Especificamente sobre esse tema, ver: BIAGIOLI, Mario, Meyerson: science and the “irrational”, Studies in
History and Philosphy of science, vol. 19, no 1, pp. 5-42, 1988.
72
ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set.1928, p. 4.
73
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set.1928, p. 4.
74
Citado em francês. Cf. ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set.1928, p. 4.
71
597
destacava os aspectos irracionais do saber científico. É a partir da obra do filósofo Max Scheler
que o crítico procurava dar mais um passo para a “solução do problema”. Scheler teria a
“ousadia” de conceder “à religião um valor de conhecimento cuja certeza não era inferior à da
ciência”. Segundo o filósofo alemão75:
A doutrina positivista dos três estados seja na forma que lhe deram Comte, Mill e
Spencer, seja na Alemanha, Mach e Avenarius, é fundamentalmente errada. O
pensamento e conhecimento metafísico, e o pensamento e conhecimento positivo,
não são fases históricas da evolução do conhecimento, e sim formas de saber e
atitudes de espírito essenciais, permanentes e nascidas propriamente com a essência
do espírito humano. Nenhuma delas pode substituir ou representar as outras... São
três motivos inteiramente diversos, três grupos de atos do espírito cognoscitivo
inteiramente diversos, três diversos tipos de personalidade e três grupos sociais
diversos, sobre os quais repousam a religião, a metafísica e a ciência positiva... O
objetivo de toda religião é a salvação da pessoa e do grupo, o objetivo da metafísica
é o mais alto desenvolvimento individual pela sabedoria e o objetivo da ciência
positiva é uma imagem do mundo em símbolos matemáticos76.
Segundo o crítico, Scheler, em “grande estilo metafísico”, estabeleceria que o homem não
passou por uma evolução do estado religioso ao científico, mas que conviveriam nele estes três
estados, religioso, metafísico e científico, “conforme dirigisse o seu pensamento a Deus, à
sabedoria ou às leis da realidade física”. Assim, o filósofo alemão teria dado um “golpe de
morte” naqueles que “ainda julgam a religião incompatível com a ciência”. Aos determinismos
científicos, Scheler teria oposto uma visão “complexa e objetiva da alma humana e dos valores
eternos da realidade natural e sobrenatural”77.
A abordagem de Scheler acerca das relações entre religião e ciência não era, porém, a
solução esperada pelo crítico. Ainda se mantinham as divisões, o conhecimento religioso seria
“puramente subjetivista” e, ao esquema dogmático de sucessão evolutiva entre os estados
humanos, o filósofo alemão teria proposto uma “horizontalidade”. Dessa forma, a “dissociação
do pensamento” era mantida no esquema “trifásico” de Max Scheler:
A solução que, a meu ver coloca o problema em seus fundamentos inabaláveis e
impessoais, é a que nos fornece a filosofia do ser, que longe de dar ao pensamento
uma constituição trifásica, conserva-lhe a estrutura monofásica, se é possível dizer,
sem lhe tirar nada da sua flexibilidade e da sua mobilidade natural. O senso comum
só nos revela, como síntese final de nossas diversidades, uma fonte única de
conhecimento. E é sobre essa continuidade de conhecimento que se desdobra toda a
multiplicidade do ser.
A “solução” para o problema da contradição entre ciência e religião seria obtida através da
atualização do pensamento de São Tomás de Aquino, ou seja, de um neo-tomismo aplicado às
realidades modernas. Segundo tal raciocínio, o conhecimento nunca se “afastaria da realidade”:
E partindo da ciência do concreto vai subindo lentamente às ciências do abstrato até
passar à ciência das coisas divinas. Não há solução de continuidade. Da mesma
75
A obra citada é “Schriften zur Soziologie und Weltanschauungslehre” (literalmente, “Escritos sobre sociologia
e doutrina filosófica”) lançada em 1923.
76
SCHELER apud. ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set.1928, p. 4.
77
ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set.1928, p. 4.
598
forma que o mundo do ser constitui uma unidade fundamental, desde a matéria até
Deus, - o mundo do nosso conhecimento, ligado essencialmente ao mundo das coisas
exteriores a ele, não perde nunca também o contato essencial com as realidades
crescentemente desmaterializadas. De modo que o nosso conhecimento passa sem
interrupção do natural ao sobrenatural, articulando-se a fé no próprio tronco da
ciência para aguardar a graça. Nenhuma das duas invade o domínio da outra. Cada
uma conserva o seu objeto e os seus métodos próprios, mas sem nunca perderem a
sua unidade essencial. O domínio da ciência humana é a ordem das coisas criadas e
o domínio da ciência divina ou da fé, é a ordem das coisas reveladas. E o terreno de
transição entre as duas está justamente no desdobramento da teologia em
conhecimento de Deus em nós e conhecimento de Deus na revelação [...]78.
A religião, assim, deveria ser vista como parte do conhecimento científico sem, porém, lhe tirar
a autonomia e finalidade específica:
O homem de ciência, portanto, deve trabalhar guiado exclusivamente pela sua razão.
E a sua religião não será apenas uma derivação para a sentimentalidade e sim a
luminosidade especial da mesma inteligência pura que dedicara às coisas da natureza
ou do espírito. A religião completará a ciência. Ou melhor, será como já disse, a
ciência integral.
Toda essa argumentação teórica precisava, porém, ter a sua comprovação quando
autores como Pontes de Miranda colocavam em questão a possibilidade de se conciliar
descobertas e interpretações científicas com as narrativas, posições e dogmas comumente
associados à Igreja e às histórias bíblicas. Nesse sentido, o crítico reiterava que uma “uma
religião sem ciência é um simples devaneio da imaginação, uma ciência sem religião é uma
mutilação do espírito”. E o tema mais espinhoso era o que dizia respeito à origem do homem.
Como apontava Tristão de Athayde: “Um desses dogmas que constitui correntemente um dos
cavalos de batalha contra a Igreja é o cap. I do Gênese. Principalmente depois do processo
Scopes”. Trata-se do caso do norte-americano John Thomas Scopes, professor do ensino médio
no Estado do Tennessee e que foi processado por violar uma lei promulgada à época que proibia
o ensino das teorias evolucionistas. Toda a situação gerou grande repercussão internacional. O
ex-primeiro ministro e parlamentar inglês David Lloyd George teve um de seus artigos sobre o
tema publicado em O Jornal no qual fazia uma comparação entre a Inglaterra e os Estados
Unidos a respeito do ensino. Basicamente, o político britânico dizia que tal debate, que teria
sido uma fogueira que queimara por três gerações, estaria já reduzido às cinzas na Inglaterra,
mas tais chamas poderiam “irromper de novo da cratera e, mais uma vez, iluminar os céus com
as suas labaredas”79. A solução britânica teria se encaminhado por um argumento “ético”, qual
seja, se as ideias de uma seita deveriam ou não serem ministradas em escolas do Estado. Com
o passar do tempo, os ingleses teriam visto que era possível fazer a religião conviver com a
ciência, através de “métodos científicos de estudos da religião”. Apesar de nomes, como o
político Neville Chamberlain, que defendiam o banimento do ensino religioso, Lloyd George
78
79
ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 set.1928, p. 4.
LLOYD GEORGE, David. Darwin versus Moisés. O Jornal, Rio de Janeiro, 12 jul. 1925, p. 1.
599
argumentava que essa não era a melhor solução, pois a educação religiosa seria indispensável,
especialmente o ensino da Bíblia, tanto pela “educação moral” e “disciplina espiritual”, quanto
para melhorar “a base do gosto literário”. Assim, os ingleses acreditavam que os dois pontos de
vista, o religioso e o evolucionista, poderiam ser ministrados:
Esta atitude liberal e, cumpre dizer, digna também, é o resultado de um século de
luta entre o pedagogo leigo e o educador religioso. Ela torna-nos difícil compreender
como um país pode ser obrigado a escolher entre Darwin e o Antigo Testamento, ou,
como já o escreveu alguém, entre os macacos e os anjos80.
O próprio Scopes teve um artigo publicado no O Jornal no qual o professor defendia o ensino
do evolucionismo, lembrava sua educação na Inglaterra, afirmava o seu caráter liberal, tanto
em política quanto em religião, considerava a lei como inconstitucional e previa que a grande
discussão gerada será o grande aprendizado em todo esse processo81.
Segundo Tristão de Athayde, a lei do Tennessee era um exemplo do “fundamentalismo
norte-americano” associado ao protestantismo e que não deveria ser confundido com o
catolicismo. Esse último não seria adepto do “literalismo bíblico” e isso deveria ser mais
divulgado, a fim de evitar confusões a respeito. Conforme exposição do crítico:
O que a ciência divina, isto é, a Fé nos ensina é que Deus criou o mundo e a alma
espiritual do homem. Agora, se o seu corpo é fruto de uma criação especial ou de
uma evolução através de raças antropoides, como se inclina a crer a ciência moderna,
inclusive numerosos antropologistas católicos – é um problema aberto. A Igreja
aguarda apenas o resultado do debate entre criacionistas e transformistas. Não tem
interesse algum na vitória de qualquer dos campos ou de outros sistemas que venham
a surgir. A verdade não poderá nunca contradizer a verdade. A verdadeira exegese
dos textos bíblicos tem sempre acentuado o erro das interpretações literais que levam
aos absurdos do fundamentalismo e das objeções pueris de todo o dia82.
Elenca-se, então, teólogos contemporâneos, como o belga Gustave Joseph Waffelaert que,
especificamente, dizia que o “autor do Gênesis” buscava ensinar sobre a fé e o culto a Deus,
não pretendendo fornecer “nenhuma explicação científica”. Da mesma maneira, o teólogo
recriminaria crentes que viam nas Escrituras um objeto de oposição às descobertas da ciência.
Também o Cardeal inglês John Henry Newman, no século XIX, dizia que a Bíblia falava em
criação do homem como ser racional e corpóreo, mas que era feito da mesma matéria dos outros
animais e, portanto, semelhante a eles. Neste sentido, o crítico lembra que “anatomicamente o
homem é um quase-macaco; psicologicamente é que há umas variaçõezinhas a mais...”.
Ademais, a intepretação não literal da bíblia já seria algo presente em São Tomás de Aquino:
Quanto à origem do mundo há uma verdade que pertence à própria substância da fé:
é que o mundo deve o seu início a Deus pela criação. Todos os padres da Igreja são
unânimes nesse ponto. O modo, porém, e a ordem da produção do mundo só
pertencem à fé por contingencia, já que essa produção é descrita na Escritura, mas
os padres, interpretando de modo diverso a verdade desta narrativa, têm exprimido
80
LLOYD GEORGE, David. Darwin versus Moisés. O Jornal, Rio de Janeiro, 12 jul. 1925, p. 1.
Cf. SCOPES, John Thomas. A humanidade é filha do macaco? O Jornal, 8 de agosto, 1925, p 1.
82
ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 set.1928, p. 4.
81
600
opiniões divergentes83.
Na visão do crítico, o tomismo deveria defender que as opiniões dos especialistas
fossem respeitdas e aceitas naquilo que tivessem de esclarecedora, inclusive devido a um
princípio escolástico segundo o qual recomendava-se “evitar todos os mistérios que não fossem
inevitáveis”. Assim, o relativismo em matéria de ciência era uma lição religiosa, ao passo que
os dogmatismos científicos também estariam à beira da falésia. Tristão de Athayde mobiliza,
então, cientistas que combateriam as teorias evolucionistas em função de outros princípios e
perspectivas explicativas. Lembra o trabalho do biólogo e filósofo John von Uexküll, cuja obra
teve relativa repercussão nos meios intelectuais alemães dos anos 192084, em que se faziam as
seguintes considerações em torno de uma “concepção biológica do mundo”:
Estamos em vésperas de uma bancarrota científica cujas consequências ainda são
incalculáveis. Haverá que apagar o darwinismo da série de teorias científicas.
Certamente que para o grande público os dogmas dessa doutrina convertida em uma
espécie de religião, ainda será moeda corrente durante anos. Mas os biólogos
experimentais se afastam silenciosamente dela, um atrás do outro, e brevemente os
acompanharão os biólogos descritivos... A nova biologia volta a acentuar
principalmente que todo organismo é uma produção cujas diversas partes se acham
reunidas segundo um plano permanente e que não representa um montão informe e
fermentante de elementos que só obedeçam as leis físicas e química85.
Tal opinião, porém, não era compartilhada pelo biólogo e geneticista inglês Lord Haldane,
conforme citado por Tristão de Athayde:
Nenhum fato, definidamente irreconciliável com o darwinismo foi descoberto nos
sessenta anos e mais que já decorreram desde que Darwin formulou as suas vistas.
Um tal fato seria, por exemplo, a convergência, o decurso das eras geológicas, de
membros de dois ou mais grupos para formarem uma espécie única86.
Ao elencar várias posições expressamente contraditórias acerca do mesmo tema, mas
defendidas por cientistas reconhecidos, o crítico pretendia afirmar a relatividade da ciência que,
portanto, não poderia ocupar o lugar da religião:
Mas, sejam quais forem os preconceitos de parte a parte, seja qual for o ceticismo
atual da ciência, ou o seu possível neo-dogmatismo futuro, não tenho a mínima
dúvida de que o abismo que se pretende cavar entre a Igreja e a Ciência só existe no
sectarismo dos espíritos estreitos.
Ciência e religião seriam, porém, pacientes, porque eternas, e com o tempo encontrariam seu
caminho conjunto, uma vez que a “plenitude virá quando se reconhecer que a ciência exige a
metafísica, como o empirismo exige a ciência”.
A articulação entre ciência e religião caracteriza esse catolicismo na República
depurado de tudo aquilo que parecia comumente associado às crenças religiosas e que, agora,
torna-se simplório, errôneo e insuficiente. Como Sérgio Buarque de Holanda percebera ao
83
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 set.1928, p. 4.
Cf. MALPAS, Jeff. Geografia, biologia e política: Heidegger sobre lugar e mundo, Natureza Humana, 11 (1):
171-200, jan-jun, 2009.
85
UEXKÜLL apud. ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 set.1928, p. 4.
86
ATHAYDE, Tristão de. Religião e Ciência, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 set.1928, p. 4,
84
601
analisar o lançamento da primeira reunião dos artigos de Tristão de Athayde:
Estamos, pois, diante desse fenômeno bem característico deste tempo: um
tradicionalismo que intimamente descrê das tradições, um dogmatismo que no fundo
é um ceticismo e, por mais absurdo que pareça, um racionalismo que quer ser ao
mesmo tempo um misticismo87.
Trata-se, porém, de se conceder uma “atualização” intelectual ao catolicismo que permitirá
situá-lo, ao menos no plano teórico, como uma espécie de rival à altura das outras visões de
mundo totalizantes que competiam no cenário político e cultural. Na verdade, cada uma dessas
perspectivas teria o seu aspecto “místico”, um lado irracional e misterioso de sua razão
iluminada, o que faria com que elas fossem também, em alguma medida, religiões:
É curioso o homem dos nossos dias! Quanto mais se insurge contra a Religião, mais
se multiplica em religiões. O socialismo de hoje é uma religião... antirreligiosa. O
esporte é outra. O ensino é uma terceira e talvez de todas a mais universal. E as
panaceias educativas nos chegam impregnadas de religiosidade, uma religiosidade
toda leiga, pragmática, estatista e moralista88.
Francisco e Tomás
Dois aspectos se destacam no processo de conversão religiosa de Tristão de Athayde.
Dois domínios conectados entre si, mas que podem ser vistos de maneira separada. O primeiro
diz respeito à questão social, ao problema político e econômico de um mundo que parecia
dividido entre o capitalismo simbolizado pela civilização norte-americana e o comunismo
representado pela vitória da Revolução Russa. O segundo domínio diz respeito às
consequências intelectuais que sua conversão acarretaria. Como ele falava a Jackson de
Figueiredo, já às vésperas de sua comunhão: “Vou deixar de ser o homem imparcial, cujo juízo
era respeitado porque não se misturava. Agora vou ser forçado a misturar-me”89.
O crítico dedicou alguns artigos à figura de São Francisco de Assis e em uma serie
intitulada “bibliografia franciscana”90 chegou a abordar quatorze obras publicadas em
diferentes línguas sobre o tema. Dentre estes textos franciscanos, por assim dizer, destaca-se
um que foi lançado em 1928, quando ele sintetizou as ideias que vinha associando à trajetória
do santo que vivera a passagem do século XII para o XIII. O contexto de Francisco de Assis
seria marcado, por um lado, pela decadência de uma Igreja que estaria:
[...] endurecida pelo tempo, crivada de abusos, abalada em seu privilégio, tolhida de
formalismos, gasta, envelhecida, sem uma doutrina segura para se opor às heresias,
sem uma moralidade inatacável para se apresentar como exemplo, sem mocidade
para se adaptar ao movimento do século91.
87
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Tristão de Athayde, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 ago. 1928, p 7.
ATHAYDE, Tristão. La nouvelle idole, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 ago.1928, p. 4.
89
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II. Rio de Janeiro: ABL, 1992, p. 116.
90
Cf. ATHAYDE, Tristão de. Bibliografia franciscana I. O Jornal. 4 out. 1926, p. 4; Bibliografia franciscana II, O
Jornal, 10 out. 1926, p. 4.
91
ATHAYDE, Tristão de. S Francisco de Assis. Estudos. Segunda Série. Rio de Janeiro: Terra do Sol, 1928, p.
363.
88
602
Por outro lado, assistia-se a emergência de um “espírito anárquico por reformas”, em que se
denunciavam os abusos do clero, reivindicava-se a libertação do pensamento frente à tradição,
de forma que se disseminava uma “ebulição de tendências desordenadas, de individualismos
contraditórios, de livre interpretação dos Evangelhos, de doutrinas extravagantes ou
repugnantes, de ambições de poder ou de revoltas fundadas e justas contra os males do tempo
e a insuficiência de Roma”92. O nome de Francisco de Assis é visto, assim, como aquele que:
No meio de uma era complicada, raciocinadora, cheia de hierarquias e preconceitos,
veio mostrar contra a complicação, a originalidade das coisas simples; contra os
raciocínios intermináveis, a eloquência das resoluções intuitivas; contra as rígidas
hierarquias, a justiça da igualdade do bem e na pureza d’alma; contra os
preconceitos, a coragem de agir desassombradamente, por uma causa mais alta que
os mesquinhos interesses da terra93.
O santo, porém, não vinha da universidade, não era um teólogo, de modo que o “ideal de
absoluta pobreza foi sempre o coração da vida franciscana”94.
Por várias vezes, Tristão de Athayde confessava a Jackson de Figueiredo a
incompatibilidade em ser rico industrial e católico:
Não compreendo como se possa, moralmente, ser rico de bens materiais (como sou,
não há que fugir) e ao mesmo tempo ser um soldado de Cristo, seguir a lei de Cristo.
Considero insolúvel a questão, a não ser por um sofisma pragmatista. Será mais útil
à Igreja que eu não dê os meus bens aos pobres e vá servi-la como São Francisco, já
que não tenho nem a santidade nem o gênio de São Francisco ou mesmo de um
simples frade franciscano, ou outro qualquer que tem a coragem de largar tudo para
seguir o apelo de Deus. Já que eu sou um homem medíocre, solicitado pelas coisas
do mundo e incapaz de viver contra as coisas do mundo, isolado delas, renunciando
a elas, devo ou deverei continuar a carregar a cruz da minha riqueza. Em público
seria ridículo dizer isso. Em um confessionário seria vaidoso. Mas aqui, entre nós,
sem nada que nos ouça, e ninguém senão Deus, eu posso dizer: eu carrego a riqueza,
o bem estar, o luxo que me cerca, a minha casa, tudo o que não é essencial à vida,
como uma cruz. Juro a você, por minhas filhas, que isso é a expressão da verdade95.
O papel central que o crítico atribuía à questão social fazia com que ele, por várias vezes, visse
no comunismo uma possível solução para a sua angústia:
Diante de todo esse espetáculo de uma economia capitalista e de uma sociedade
cristã incapazes de salvar da miséria os homens do trabalho, - sinto despertar o velho
instinto revolucionário. Sedução pelo comunismo, que ao menos organiza a
economia pública, se por outro lado é intolerável como tirania privada. Mas
convicção absoluta de que é pura sedução e que as mesmas dificuldades que sinto
na ação católica apareceriam decuplicadas na ação comunista. (Há momentos em
que eu vejo o comunismo no mundo de hoje não como o instinto revolucionário de
1789, mas como o cristianismo nos últimos séculos de Roma. Veja como é sensível
a semelhança. De um lado uma sociedade gasta de vícios, velha de tradições
gloriosas mas não mais à altura delas, cristalizada em classes egoístas, adorando toda
espécie de deuses e de modas intelectuais, morrendo de decadência e exaustão, - de
outro lado, os homens que trabalham para sustentar essa sociedade moribunda, como
92
ATHAYDE, Tristão de. S Francisco de Assis. Estudos II. Rio de Janeiro: Terra do Sol, 1928, p. 364.
ATHAYDE, Tristão de. S Francisco de Assis. Estudos II. Rio de Janeiro: Terra do Sol, 1928, p. 368.
94
ATHAYDE, Tristão de. S Francisco de Assis. Estudos II. Rio de Janeiro: Terra do Sol, 1928, p. 353.
95
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 99.
93
603
os antigos cristãos, roendo surdamente toda a estrutura social96.
Tais palavras foram escritas um mês antes de sua comunhão. Frente a uma realidade na qual
“humildes”, “maltrapilhos” e “crianças” morriam numa “proporção infinitamente maior que a
burguesia”, o crítico considerava que “só sendo santo, é possível ser católico sem ser
desgraçado hoje. Um santo ou um revolucionário, - são os únicos homens justos de consciência
e dignos de respeito nos dias de hoje”. E ele, sendo um “senhor de escravos-operários em 1928,
como o negreiro de 1828, senhor de escravos-agrícolas” acabava por ter “ímpetos de
suicídio”97. Jackson de Figueiredo, por várias vezes, esforçara-se para expor ao seu interlocutor
que “Jesus Cristo, porém, só tem louvor para quem se faz pobre, humilde de espírito, e di-lo,
sem vacilação: haverá sempre pobres e ricos. Logo... não há discutir esta questão. É ser rico ou
ser pobre, ser livre ou ser escravo segundo Deus quer, isto é, sendo bom e verdadeiro”98. Além
disso, o crítico via na história do comunismo o exemplo que poderia fornecer sentido ao seu
caso:
Foi lendo outro dia um livro sobre Marx que senti bem isso. Engels, o seu
companheiro de ideal comunista, foi um industrial riquíssimo e que nunca deixou de
cuidar dos seus interesses, para sustentar Marx e a causa comunista. O dinheiro,
quando subordinado a um emprego desses, perde o seu caráter de corruptor.
Mormente sendo empregado para uma obra como a nossa99.
A inspiração franciscana é um componente significativo na perspectiva do catolicismo social
que Tristão de Athayde passará a defender em oposição ao comunismo e ao capitalismo.
Em suas reflexões sobre o cenário político contemporâneo, tudo apontava para a crise
e a angústia. Quando começaram a ruir as verdades do mundo moderno? Algum dia elas foram
sólidas? A resposta seria negativa. No máximo, apenas foram outras as concepções:
Em 11 de novembro de 1918 terminava a guerra “dos” povos e começava a guerra
“nos” povos. Dir-se-á que há muito já começara. Em 1917, na Rússia, dirão uns. Em
1870, com a comuna. Ou em 1867, com o aparecimento do primeiro volume do
“Capital”, de Marx, livro capital da guerra nos povos. Ou com Louis Blanc, as
revoluções de 1848 e o primeiro congresso do trabalho na Alemanha. Ou vinte anos
antes com as obras de Saint Simon, de Proudhon, de Fourier, e os movimentos sociais
correspondentes. Ou em 1789 com os direitos do homem. Ou em 1780, na Inglaterra,
com a “Constitucional Society” de Cartwright e os primeiros grandes movimentos
libertários. Ou sobretudo a partir de 1750, com as invenções das máquinas modernas
e o início do grande industrialismo. Isto é, do feudalismo moderno. Nesse andar,
porém, como tudo se prende na história dos homens, não há motivos para datar a
guerra nos povos, a partir da fundação do feudalismo plutocrático, que venceu as
monarquias medievais, sem reportar o movimento à criação dessa realeza absoluta,
que permitiu o início do grande capitalismo. E portanto, precisaríamos remontar à
luta do Papa com o Imperador, que foi a última tentativa heroica de um povo
espiritual universal, procurando limitar a ambição temporal e materialista dos
96
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 198-199.
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 199.
98
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 206.
99
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo II, p. 232.
97
604
homens. A vitória final do Imperador teria sido o primeiro elo da revolução
comunista de hoje100.
Não se tratava aí de uma tese, mas apenas de se mostrar como na história “não há grão de areia
que não nos leve ao infinito”. O que se delineava, porém, nesses quadros impressionistas em
torno da história política ocidental, era a verificação da falência das instituições que, até a
Grande Guerra, pareciam garantir um futuro coeso a todos os países que lhe seguissem os
passos. Assim, o Parlamento inglês, que parecia ser “a última palavra em matéria de
administração e constituição de uma sociedade perfeita”, teria se tornado “o campo de ação de
uma oligarquia, que é por definição uma aristocracia desrespeitada e desrespeitável”101 e as
greves gerais ocorridas naquele país seriam uma das maiores expressões de tal situação. A
democracia liberal, que seria o “modelo universal dos regimes políticos perfeitos”, revelaria
suas fragilidades no país que melhor lhe representava, os Estados Unidos:
Para quem pensa com todo esse anacronismo é preciso fechar os olhos à própria
evolução política nos Estados Unidos, que longe de repousarem na democracia
liberal, onde os escândalos petrolíferos se mesclam ao dinheiro derramado pelas
“máquinas” eleitorais para compra do eleitorado, estão sempre numa efervescência
intensa de formas reformadoras ou reacionárias102.
Dessa forma, o crítico considerava que:
[...] tanto o capitalismo como o comunismo chegam a resultados muito semelhantes,
isto é, à concentração da propriedade em um número restrito de mãos, que no estado
capitalista de amanhã serão os grandes banqueiros e financistas reunidos em
sindicatos gigantescos, e no estado comunista serão os grandes políticos
encarregados da administração geral da riqueza pública e particular103.
Apesar de igualmente combatidos, o capitalismo seria ainda “pior” que o comunismo:
Moralmente concedo que o capitalismo ainda é mais condenável que o comunismo.
Pois neste, a classe política dirigente está por sua vez subordinada a essa entidade
abstrata e toda poderosa, o Estado, que é de fato o único senhor da propriedade. Ao
passo que no capitalismo, a plutocracia domina o Estado, subordina-o a seus fins,
governa-o de acordo com o seus interesses, de que usa e abusa a seu bel-prazer104.
Desde 1927, Tristão de Athayde concedia palestras105 acerca da teoria econômicopolítica que lhe afigurava como passível de reduzir os males do capitalismo e frear os avanços
do comunismo: o Distributismo. Um dos autores, inclusive, que lhe inspirara tal perspectiva
teria um lado “franciscano”, ao “viajar a pé [...] como um peregrino medieval, para conhecer o
100
ATHAYDE, Tristão. Monocracia e policracia, O Jornal, Rio de Janeiro, 13 jun. 1926, p. 4.
ATHAYDE, Tristão. Monocracia e policracia III, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 jun. 1926, p. 4.
102
ATHAYDE, Tristão. Política e Polytica II, O Jornal, Rio de Janeiro, 31 jan. 1926, p. 4.
103
ATHAYDE, Tristão. O Distributismo. Estudos. 2a Série. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 268.
104
ATHAYDE, Tristão de. O Dilema, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 jan. 1927, p. 4.
105
Em uma das peças de divulgação, o evento era assim anunciado: “Realiza-se hoje, às 17 horas, no anfiteatro de
Física da Escola Politécnica, uma conferência do sr Tristão de Athayde sobre ‘O problema social e o distributismo’.
O conferencista mostrará em que consiste esse novo movimento social, surgido depois da guerra, como reação às
soluções atualmente em voga, do mais premente e angustioso problema dos nossos dias. O distributismo não
pretende ser uma nova utopia; e sim um estado de espírito racional, e humano, no estudo das relações entre o
indivíduo e o Estado. Sendo este um problema tão moderno quanto eterno, interessa tanto às nações que se
reformam como os países europeus, quanto às que se formam, como nós”. Cf. CONFERÊNCIAS, Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 18 mai. 1927, p. 11.
101
605
país cara a cara, não como um estranho mas como um filho da terra”106. Trata-se do escritor
inglês Hilaire Belloc que, juntamente com G K Chesteron, defendiam a criação de um Estado
Distributivo. O crítico chegou a escrever a Belloc, enviando-lhe os artigos que publicara sobre
ele e pedindo o endereço de Chesterton107. Tristão de Athayde dissera certa vez a Jackson de
Figueiredo que, no processo de conversão, ocorrera “toda uma Revolução em meu espírito” que
seria devida “tanto a você, meu querido e corajoso amigo, depois de Deus. Você e Chesterton
foram os meus dois inquietadores”108.
Segundo o crítico, o “problema social moderno” era antes fruto de questões morais e
econômicas do que políticas. A política seria uma consequência, um “derivado”, das duas
primeiras. Ele considera que “o que importa não é a conquista do poder, mas a permanência e
a justificação do poder. O que importa não é o voto, esse ídolo vazio das democracias primitivas,
mas quem vota e o que se vota”. A reflexão econômica, como a moral, reenviaria a análise às
origens da sociedade moderna, assim como à decadência do mundo medieval. E era neste último
que se vislumbrava não um retorno, porque impossível, mas uma inspiração, pois
“economicamente [...] não foi a Idade Média uma era de liberdade incondicional. O homem não
era então considerado como simples objeto de leis econômicas inflexíveis, mas como um ser
moral [mesmo a mais utilitária]. Tudo isso desapareceu com o fracasso da Idade Média”109.
O mundo moderno, porém, teria instituído como valores econômicos o “egoísmo”, o
“individualismo” e a concorrência” que, paradoxalmente, levariam à cooperação, à evolução e
ao progresso coletivo. O crítico lembra que tal situação sempre encontrara seus oposicionistas,
uma vez que haveria:
Ao lado dos que apontavam vitoriosamente para o desenvolvimento da civilização
capitalista, com o seu imperialismo universal, o seu progresso mecânico assombroso,
a sua força militar crescente, a sua riqueza faustosa, - os que apontavam revoltados
para a miséria que se agravava, para as dissenções de classes que se cavavam, para
o servilismo de populações inteiras, à custa de cuja vida se fazia a glória e o lustre
dos impérios110.
A herança, no século XX, dos embates modernos seria, por conseguinte, marcada pela
“injustiça”, pela “insegurança” e por “ameaças contínuas”. E a causa da falta de estabilidade
social seria a carência de “princípios morais justos” e de uma “economia sã”. O
desenvolvimento do capitalismo não teria levado à liberdade individual, à afirmação pessoal e
à livre concorrência. Pelo contrário:
Quem tiver acompanhado a revolução econômica do capitalismo, especialmente
depois da guerra, terá observado essa marcha crescente para a absorção das
iniciativas individuais em organizações cada vez mais gigantescas. A fim de
106
ATHAYDE, Tristão. Monocracia e policracia II, O Jornal, Rio de Janeiro, 20 jun. 1926, p. 4.
Cf. Carta de Hilaire Belloc a Alceu Amoroso Lima, 16 jun. 1927, acervo CAAL.
108
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 114.
109
ATHAYDE, Tristão de. O Distributismo. Estudos. 2a Série. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 255.
110
ATHAYDE, Tristão de. O Distributismo. Estudos. 2a Série. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 260.
107
606
diminuir despesas e de garantir receita segura pela conquista dos mercados e pela
pressão sobre os governos, vai o capitalismo concentrando as suas forças em
empresas internacionais formidáveis, cujo modo de funcionamento cada vez mais se
despersonaliza nas mãos da plutocracia financeira cosmopolita. Essa é a feição
moderna do capitalismo ocidental. A sociedade anônima venceu a iniciativa privada.
E venceu, não em sua útil função de fragmentar o capital em pequenos quinhões de
participação, mas em seu malefício de centralizar a vida econômica na mão de um
núcleo diminuto de privilegiados, criando uma imensa burocracia industrial, que vai
somar seu peso ao da já considerável burocracia administrativa. [...] Pode-se dizer
que nunca houve, na história da humanidade, um poder internacional tão forte. E que
a Sociedade das Nações, em seu suntuoso palácio de Genebra, será muito mais falada
no mundo inteiro, mas é pouco mais do que um joguete em mãos de misteriosas
empresas financeiras cosmopolitas como essas. [...] E é nos escritórios de empresas
tentaculares e transcontinentais [...] que se processa a trama do futuro de nossa
civilização. E, hoje, o dilema para que caminhamos cada vez mais, é esse de sermos
manejados por misteriosas empresas financeiras anônimas, [...] e com tentáculos
comerciais agindo em todos os cantos da terra, ou por sindicatos de comunismo
político [...] com ramificações universais, por ora em forma de “células”, nas fábricas
e nos regimentos, amanhã em forma de representantes políticos com plenos
poderes111.
Frente a tal estado de coisas, o Distributismo seria, segundo a exposição do crítico, “um tanto
mais do que um movimento de platonismo ideológico ou de messianismo salvador, e sim uma
força econômica e social como o comunismo ou como o capitalismo”112.
Neste sentido, ele seria capaz de “penetrar as massas” e de conseguir “apoios
intelectuais mais decididos”, realizando uma “cruzada do espírito contra as forças imensas,
disseminadas, desanimadoras da inércia social conservadora, das reformas materialistas ou da
revolução comunista”113. O crítico retoma a origem inglesa do movimento que era chefiado por
Gilbert Keith Chesterton, mas que teve em Hilaire Belloc, no livro The servil State (1912), a
primeira menção a um Estado Distributista que se oporia ao comunismo e ao capitalismo. Na
interpretação do crítico, o conceito de riqueza do distributismo seria o que “serve à vida
humana”. Neste sentido, ele partiria do homem entendido tanto como “corpo e como alma,
como um ser animal, cuja vida não pode prescindir de condições materiais sadias, e ao mesmo
tempo como ser espiritual, que a matéria por si só não consegue explicar”. O princípio
fundamental em jogo seria o da liberdade, significando a necessidade de se “atingir uma
organização social” que não mutile a integridade humana. Acertar a justa medida da liberdade:
“o distributismo visa justamente impedir essa acumulação de riqueza, tanto na mão do Estado
como no caso da solução comunista, - como na mão dos sindicatos impessoais e
intercontinentais, como no caso da solução capitalista moderna”114.
A propriedade aparece como noção fundamental ao distributismo. Uma propriedade
111
ATHAYDE, Tristão de. O Dilema, O Jornal, Rio de Janeiro, 12 jan. 1927, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. O Distributismo. Estudos. 2a Série. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 264-265.
113
ATHAYDE, Tristão de. O Distributismo. Estudos. 2a Série. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 265.
114
ATHAYDE, Tristão de. O Distributismo. Estudos. 2a Série. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 268.
112
607
entendida em seu sentido humano, o que significaria ser “limitada e justa”. A propriedade é
vista como uma “expansão da personalidade”, o “núcleo econômico familiar” e o “único
fundamento sólido para a liberdade”. A propriedade é condição para a liberdade:
Não pode haver uma sociedade de homens livres sem o direito individual de
propriedade, e não pode haver propriedade justa senão onde haja o inverso do que se
dá hoje em dia. Isto é, numa sociedade onde haja uma maioria absoluta de
proprietários e apenas uma minoria inevitável sempre, de desprovidos de
propriedade115.
Por seu caráter “descentralizador”, defendendo a pequena propriedade, o pequeno produtor, a
pequena indústria, o distributismo estaria “mais longe da sociedade contemporânea,
especialmente nos três países em que o industrialismo capitalista do século XIX atingiu à sua
plenitude – a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos, - do que estaria mesmo uma
revolução comunista”116. Além disso, o distributismo não era militarista, nem pressupunha uma
“disciplina coletiva e inumana”, mas procuraria deixar a cada um “o máximo de iniciativa e de
risco, compatíveis com o equilíbrio coletivo”. Ele visaria uma “volta” às “condições mais
normais, à limitação da febre incessante de crescer, de enriquecer, de aumentar, de expandir-se
cegamente, à custa dos elementos mais nobres da alma humana”. Viria lembrar ao “homem que
ele é um homem e que o sentimento do poder não pode exceder, sem o perigo de tudo destruir,
ao sentimento de sua limitação e, a um tempo, de sua liberdade”. Por fim, reinstituir a
subordinação da economia à moral que a Europa medieval teria esboçado. Assim, a propriedade
seria um meio de se garantir a liberdade numa sociedade formada por pequenos núcleos
produtivos em que a produção maquinizada assumiria outro caráter. Neste sentido, o
distributismo procuraria combater “a idolatria do maquinismo, voltar a condições de trabalho
mais humanas e naturais, e passar da era do homem como servidor da máquina à era da máquina
como simples serviçal do homem”117.
Ao analisar a obra Retrato do Brasil (1928), de Paulo Prado, Tristão de Athayde a
considerara como o “mais sombrio retrato que já se fez do Brasil”118. Conforme síntese do
crítico: “a seu ver são quatro os traços gerais que caracterizam a nossa figura como nação; a
luxúria, a cobiça, a tristeza e o romantismo. Foram esses quatro elementos primordiais de que
saiu o que é hoje o homem brasileiro”. No post-scriptum do livro, Prado delinearia um “um
quadro trágico da situação presente”. Tal panorama revelaria um país marcado por males como
“o cangaço, o mandonismo, o paludismo, a cachaça, a sífilis, o amarelão, a indolência
desanimada, o analfabetismo, a bacharelice romântica, o vício da imitação, o tripudiamento dos
115
ATHAYDE, Tristão de. O Distributismo. Estudos. 2a Série. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 269.
ATHAYDE, Tristão de. O Distributismo. Estudos. 2a Série. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 270.
117
ATHAYDE, Tristão de. O Distributismo. Estudos. 2a Série. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 276.
118
ATHAYDE, Tristão de. Retrato ou caricatura, O Jornal, Rio de Janeiro, 30 dez. 1928, p. 4.
116
608
políticos etc.”119 Frente a tal estado de coisas, o autor paulista dizia haver duas soluções: a
guerra ou a revolução, optando pela última:
A Revolução virá de mais longe e de mais fundo. Será a firmação inexorável de que
quando tudo está errado, o melhor corretivo é o apagamento de tudo que foi mal
feito... Neste marasmo podre, será necessário fazer tábua rasa para depois cuidar de
renovação total.
O crítico não concordava com esse desfecho. Em sua opinião, por pior que fosse o quadro social
e político do país, tal posição revelaria que Paulo Prado teria uma “tendência desastrosa a não
amar o espírito brasileiro, a não compreender o que há de melhor em nossa alma. Basta ver a
solução que ele propõe: o aniquilamento, a tábua rasa”. Segundo o crítico, as características
denunciadas no retrato do Brasil eram as que constituíam o próprio caráter nacional. E isso é
que devia ser refletido e pensado de maneira mais contundente, pois era o paradoxo brasileiro:
O paradoxo do brasileiro, a meu ver, é dos mais estranhos e dos mais difíceis de
resolver, em toda a história dos povos. Somos um povo cujas virtudes particulares
são, até certo ponto, elementos de nocividade social. O que temos de mais precioso,
em nossas almas, o que temos de defender até à morte, seja contra a conquista
estrangeira, seja contra a descaracterização íntima, seja contra os remédios
“científicos” do sr Roy Nash, seja contra os remédios “revolucionários” do sr Paulo
Prado – é justamente o encanto da nossa fragilidade. A nossa bondade, a nossa
melancolia, a nossa doçura, a nossa intuição, o nosso gosto pelas coisas brandas e
delicadas, a nossa polidez, o nosso desinteresse financeiro, a própria imprevidência
com que vivemos – tudo isso forma a essência do que já hoje é qualquer coisa de
único, de nosso, de precisamente diverso de todos os povos da América.
Assim, segundo Tristão de Athayde, o que estava em jogo não era uma “revolução”, mas uma
“contra-revolução”, uma “volta às raízes, da reposição da nacionalidade em sua estrutura
fundamental, e para tudo dizer em uma palavra – de uma recristianização do Brasil”.
Em sua análise sobre o distributismo, o crítico via a América como um lugar propício
à aplicação do regime proposto pelos católicos ingleses. No Brasil, especificamente:
[...] onde o temperamento da raça, as condições sociais, a largueza do território, o
desenvolvimento ainda relativamente escasso do grande industrialismo, a
interpenetração de classes etc., são condições favoráveis para se conseguir uma
influência lenta no estado de espírito ambiente no sentido de evitar certos males e
estimular certas vantagens que já podem ser conseguidas120.
Dessa forma, o distributismo era um horizonte político e econômico que vinha a calhar ao
catolicismo totalizante que procurava desempenhar um papel ainda mais relevante no interior
da sociedade brasileira como um todo. Neste sentido, Tristão de Athayde afirmava:
Se nós precisamos de uma economia de construção, para resolver inúmeros
problemas de unificação, de conquista, de desbravamento e de cultura que ainda
estão por resolver, só podemos aceitar uma reforma social que vise menos a destruir
do que a construir. E como o distributismo é justamente uma tentativa de solução,
não conciliatória, pois ele visa confessadamente uma revolução, como
expressamente o diz, nas condições sociais contemporâneas, mas possivelmente
pacífica por infiltrações de ideias e por meios práticos de ação imediata, - penso que
119
120
PRADO Apud. ATHAYDE, Tristão de. Retrato ou caricatura, O Jornal, Rio de Janeiro, 30 dez. 1928, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. O Distributismo. Estudos. 2a Série. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 283.
609
muito temos que aprender com ele121.
Se São Francisco de Assis simbolizou a articulação que o crítico efetuara entre
catolicismo e a questão social, São Tomás de Aquino representara a conciliação entre
catolicismo e “questão intelectual”, por assim dizer. Uma das preocupações mais caras a Tristão
de Athayde em seu processo de conversão era a perda da posição que conquistara durante dez
anos de crítica militante. Conforme confessara a Georges Bernanos, ao refletir sobre sua
conversão e aceitação dos cargos de direção do Centro Dom Vital e da revista A Ordem:
[...] preciso perguntar se a minha força não era apenas a minha solidão, se o
pequenino prestígio que o meu nome adquiriu junto a certas pessoas especialmente
no interior do Brasil, não proveio apenas do meu isolamento, do meu afastamento
[...] de que sempre procurei cercar a minha pessoa [...] Isso me dá arrepios [...]. Vou
talvez perder tudo, ou pelo menos, o pouco que argamassei com tanto esforço e
tenacidade. Vou revelar ao público as fraquezas, que só o véu do isolamento
escondia. Vou perder aquela atitude de imparcialidade [...] da minha ação crítica122.
Porém, esse vínculo mesmo com o escritor francês já revela o que havia de “atualização”
intelectual a conversão do crítico. E, uma vez que como ele mesmo dizia, “vivemos com os
olhos voltados para a Europa”, a sua conversão não era nem um pouco estranha ao que se
passava nos meios intelectuais franceses. Conforme análise de Frédéric Gougelot, entre 1885 e
1935, houve um “tempo dos convertidos”, no qual se assinala um movimento “de conversão ao
catolicismo no seio do meio intelectual”123. Tristão de Athayde escrevia a Jackson de Figueiredo
dizendo ser assinante de toda a série da revista Roseau d’Or124 organizada por Jacques Maritain
e Stanilas Fumet e que pretendia ser uma “revista literária católica concorrente da Nouvelle
Revue Française”125. Maritain, posteriormente, terá uma longa relação com Tristão de Athayde.
Um intelectual, porém, que parece ter especialmente impressionado o crítico brasileiro era
Marcel Arland, que escrevera algumas vezes na Roseau d’Or, e era autor de uma frase muito
repetida por Tristão de Athayde durante os últimos anos da década de 1920: “Nenhum sistema
me satisfaz e a ausência de um sistema me angustia”126.
Pouco antes de sua comunhão, Tristão de Athayde tinha sua “imparcialidade”
submetida à prova. Ao falar o grupo modernista que lançara a revista Festa, que era dirigida
por Andrade Muricy e Tasso da Silveira, o crítico confessava que:
[...] a analogia dos pontos de vistas de pontos de vista, incontestável penso eu, entre
esse grupo tão interessante de Festa (que só agora se apresenta realmente sob uma
orientação, ainda pouco definida, mas em todo caso ainda mais harmoniosa e unida
e subordinada a certas ideias comuns), e o pouco que tenho procurado pensar, por
121
ATHAYDE, Tristão de. O Distributismo. Estudos. 2a Série. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1928, p. 283.
Carta de Alceu Amoroso Lima a Georges Bernanos, s/data, acervo CAAL.
123
GUGELOT, Frédéric. Les temps de des convertis, signe et trace de la modernité religieuse au début du XXe
siècle. Archives de sciences sociales des religions [en ligne], 119 | juillet – septembre 2002, p. 45.
124
FIGUEIREDO, J de; LIMA, A A. Correspondência. Tomo I, p. 166.
125
SERRY, Hervé. Les écrivains catholiques dans les années 20. Actes de la recherche en sciences sociales. Vol
124, septembre 1998. De l’État social à l’État penal, p. 84.
126
ATHAYDE, Tristão. Um moderno. Marcel Arland. O Jornal, Rio de Janeiro, 07 fev. 1926, p. 4.
122
610
meu lado, - não impede que eu reconheça mais originalidade individual em homens
com cujas ideias ou tendências me encontre em desacordo127.
Dessa forma, apesar de o crítico estar em vias de converter-se ao catolicismo, ele não admitia
que se colocasse sua orientação espiritualista acima dos critérios estéticos. Dizia ainda que
“uma coisa é inteiramente estranha à outra”. Situando-se explicitamente sob o signo do
tomismo, o crítico lembrava a análise que fizera anos antes sobre as duas tendências do
modernismo brasileiro, “primitivistas” e “dinamistas”, e como na ocasião reclamara uma
perspectiva espiritualista:
E o dever do crítico, mesmo que seja apenas “sob aparência de crítica imparcial”...
penso que deve ser distinguir os valores das ideias, ou, melhor, os indivíduos das
pessoas, no sentido tomista. E, compreendida assim, penso que não será tão
surpreendente a contradição, como parece. Não procurei fazer, na crônica
mencionada, e isso o deixei bem claro, nenhum estudo completo de todas as
correntes atuais de nossas letras. Tomei apenas as duas incontestavelmente mais
novas e originais, quando justamente começou o movimento literário modernista,
hoje cada vez mais vivo, mas tão diversificado e cindido como previa. Não me
importava o número de obras publicadas. Procurei as intenções, mais que as
realizações. E quanto à terceira corrente penso que só poderá nascer de um
esgotamento das demais e não de uma negação total delas. Será mais uma
consequência das outras que uma contradição a elas.
A reação veio dois dias depois em uma carta de Tasso da Silveira que afirmava ter percebido
nas “sutilíssimas considerações” dessa passagem acima um presente amargo:
Você deu-me um bolo de natal lindamente enfeitado, mas recheadinho de amêndoas
amargas. E a mais amarga que trinquei nos dentes foi, sem dúvida, aquela sua
distinção entre os valores e as ideias, que compreendo claramente, mas cuja
aplicação no caso concreto de que trato não parece que se justifique. Você distribui
equitativamente as suas dádivas: em nós, reconhece boa orientação doutrinária; nos
primitivistas e dinamistas, mais originalidade individual... Nós temos o seu aplauso;
os outros, a sua admiração128.
Poucos tempo depois, Tristão de Athayde publicava outro artigo sobre o grupo “Festa”,
intitulado “Gente de Amanhã”, que parece ter agradado aos analisados, uma vez que ele foi
reproduzido na revista sob a apresentação elogiosa que comentava a “afirmativa simpatia com
que Tristão de Athayde procurou traçar o nosso perfil espiritual”129. O crítico afirmava que
“Festa”, cujo nome não seria o mais apropriado, pelo que trazia de “angústia do tempo
moderno”, “se apoiaria em uma visão espiritualista do mundo, vive naturalmente trabalhada
(para seu bem) por uma seiva de amargura que constitui exatamente a sua originalidade”.
Assim, diferentemente da alegria dos primitivistas e dinamistas, “Festa” tomaria “a vida a sério.
Repelem todo jogralismo. Vivem trabalhados de angústias, ostentando uma sensibilidade à flor
da pele, desdenhando a luz pela sombra. E portanto, no extremo oposto ao superficialismo de
127
ATHAYDE, Tristão de. Poetas, O Jornal, Rio de Janeiro, 4 dez.1927, p. 4.
Carta de Tasso da Silveira a Tristão de Athayde, 6/12/1927, acervo CAAL.
129
Cf. O grupo Festa e sua significação, Festa – Mensário de Pensamento e de Arte, Ri de Janeiro, ano 1, no 6, 1
mar. 1928, p. 12
128
611
uma concepção puramente ‘festiva’ da existência e da literatura”130. O grupo, que contava com
nomes como Tasso da Silveira, Andrade Murici (autor do romance Festa Inquieta lançado em
1926 e que deve ter inspirado o nome da revista), Henrique Abílio, Adelino Magalhães, Brazílio
Itiberê, Barreto Filho, Lacerda Pinto, Porphyrio Soares Neto, Gilka Machado, Cecília Meireles,
Murilo Araújo e Francisco Karam, não seria, na apreciação do crítico, um “neo-simbolismo”.
Pretendiam, antes, “superar o simbolismo” o que faz o crítico os considerar um “modernismo
continuador”.
Tristão de Athayde não dedicou sequer uma crítica completa ao grupo Festa, tendo
dividido o rodapé com uma apreciação sobre a revista Verde de Cataguazes, onde também teve
seu artigo reproduzido. Dessa forma, nos anos 1920, o silêncio parece ter falado mais alto nas
relações de Tristão de Athayde com o grupo Festa. A melhor prova disso é que menos de um
mês após o artigo sobre a revista de Andrade Muricy e Tasso da Silveira, o crítico lançava dois
estudos sobre os Andrades131, um para cada um. Aí ele fazia as seguintes reflexões:
Ainda não podemos saber realmente o que vão deixar os Andrades (para alguns os
Andradas) em nossa literatura. Café em vara se avalia, não se assegura. Por ora, o
que há é ir assuntando, seguindo a curva do crescimento deles, e mostrar como
qualquer dos dois é infinitamente mais complexo do que parece à primeira vista e de
uma originalidade muito mais necessária que arbitrária132.
O crítico fazia uma apreciação sobre suas próprias avaliações passadas a fim de precisar o
significado que elas poderiam ter:
Dirão, talvez, que tenho sido um dos culpados dessa simplificação de juízos sobre
eles. É possível. Mas não sem motivo. Colando, em ambos, o rótulo de
“primitivistas”, nunca tive nem a ilusão de crer que o público penetrasse até o fundo
o sentido do termo e muito menos a ingenuidade de acreditar que o título explicasse
tudo o que há neles de pessoal e novo. Mas o rótulo é necessário. É como um apelido.
Ou uma caricatura. É um traço forçado, parcial, deformado, mas que marca o
“sentido” do autor. E o resumo para o público, para essa grande conspiração dos
ignorantes e dos indiferentes que são como os grãos de trigo na massa do pão:
triturados para dar corpo. Sem público, adeus arte. Sem grão, adeus pão. Não me
arrependo, portanto, do rótulo que preguei em ambos, por mais que ambos reclamem
contra ele. O público só pode, por agora, compreendê-los como tal. E mais nada. O
sentido de sua ação é esse. E o efeito de sua ação inconsciente está sendo esse.
Àquela altura, a consagração futura dos Andrades estaria já assegurada:
O nome dos Andrades está, e ficará para sempre, ligado ao grande movimento de
desliteralização da literatura, que hoje mais que nunca é um dos sentidos profundos
das nossas letras. Pode-se tomar a coisa a sério ou em deboche. Pode-se discutir os
excessos, as parcialidades, as impossibilidades. Mas em todo o curso de nossa
literatura tem havido sempre essa aspiração de aproximá-la da nossa realidade pura,
que é afinal o que há também no fundo do primitivismo.
Tal “primitivismo” compreenderia desde o indianismo de Gonçalves Dias, que nos anos 1920
130
ATHAYDE, Tristão de. Gente de Amanhã, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 jan. 1928, p. 4.
ATHAYDE, Tristão de. Os Andrades, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jan. 1928, p. 4; Os Andrades II, O Jornal,
Rio de Janeiro, 5 fev. 1928, p. 4
132
ATHAYDE, Tristão de. Os Andrades, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jan. 1928, p. 4.
131
612
soava como um português “da gema”, até o esforço que Bilac que, juntamente com sua geração,
se orgulhava de ter retirado a literatura dos pedestais, “trazendo-a para o seio do povo”, e
tornara-se para os modernistas um “modelo de perfeição acadêmica”133. Dessa forma, ele dizia:
A vertente, portanto, das águas andradinas, é esta. Vertente primitiva. Vertente de
volta às fontes. De parcialidade tocando muitas vezes o grotesco. De dogmatismo
estético facilmente conversível em capelinha literária. De procura apaixonada. De
cultura também. E mesmo de imitação, pois o movimento é europeu tanto como
americano. De tudo que leve a um início, a um alicerce. E sobretudo, a uma fusão
no próprio corpo da raça, na vida mais real, mais profunda, mais “primitiva”, da
nação.
Ao abordar o livro A Estrela de Absinto (1927), que teria sido escrito entre 1917 e 1921, sofrido
novas alterações e vinha figurar como o segundo volume da chamada Trilogia do Exílio, Tristão
de Athayde comentava a mudança de Oswald de Andrade:
É, portanto, um livro de ante-primitivismo, de pré-pau-brasil. Um livro de mocidade,
poder-se-ia dizer. Escrito com todo o ímpeto e sem nenhuma escola. Hoje em dia o
sr Oswald de Andrade é o homem do pau-brasil ou dos cadernos, o homem da poesiapura, o Valéry de Ponte Grande, e não deve mais escrever com toda essa liberdade.
E, sobretudo, com toda essa seriedade.
O crítico reforça o fato de ter tomado a sério a obra do autor paulista, o que nem sempre lhe
rendia bons frutos, uma vez que acabava sendo considerado como alguém que enxergava
demais ou que, por ser de direita, não ficava bem elogiar a “esquerda literária”. Mas ele insistia:
Hoje em dia parece um absurdo falar na “gravidade” do sr Oswald de Andrade.
Desde o “Pau-Brasil” que explora fartamente o espirituoso ou o grotesco. As
“Memórias Sentimentais de João Miramar”, ou o “Primeiro Caderno do Aluno de
Poesia O de A”, ou os fragmentos do “Serafim Ponte Grande”, que conheço, tudo é
afinado em sátira. Como prosador, hoje em dia, o sr Oswald de Andrade é quase
sempre um delicioso satirista e só é pena que não cultive mais amiúde o gênero. E
como poeta, o que visa é o primitivo boçal e grotesco, ou o pueril e bocó, como
expressão pura da raça, do meio, do momento, como diziam solenemente os nossos
críticos do século passado, na esteira de Taine. [...] Mas no fundo de toda essa
deformação, de toda essa redução ao caricato, há qualquer ruptura com a vida. Um
pessimismo que se cobre. Quem sabe se uma grande timidez inconfessada.
Apesar de considerar o livro como “desigual” e “datado”, levando-se em conta a obra de Oswald
de Andrade, o crítico elogiava a publicação do romance e comentava ter lido “com emoção, por
vezes com uma emoção semelhante à que outrora me trouxe ‘Os condenados’, de que o próprio
autor troçou certa vez, como quem repele o carinho feito a um nosso enteado por alguém que
repreendeu um nosso filho”.
Sobre o livro Clã do Jaboti (1927), de Mário de Andrade, Tristão de Athayde o situava
como a “realização completa” poética do que o autor fizera, em prosa, em Amar, verbo
intransitivo. O crítico reforça a importância da obra poética de Mário de Andrade no interior do
conjunto geral de sua obra, cuja prosa e crítica sobressaíam em repercussão. A poesia de Mário
de Andrade, porém, deveria ser considerada
133
ATHAYDE, Tristão de. Os Andrades, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 jan. 1928, p. 4.
613
[...] sobretudo para a história da consciência e do sentimento nativo em nossa poesia.
E nesse ponto este “clan do jaboti” é uma obra considerável, mas que fatalmente
passará por ora desapercebida, a não ser em pequenos grupos de adeptos a todo transe
ou daqueles que procuram, avidamente, como ele, o sentido da nossa independência
literária. E que já encontram, nestes poemas seus, especialmente nos que afetam os
sentidos à primeira vista, qualquer coisa de tão nosso, de tão cheio da seiva de nossa
realidade em formação, medíocre, sentimental, indolente – que torna possivelmente
o sr Mário de Andrade o mais popularmente brasileiro de nossos atuais poetas
cultos134.
Logo após a publicação dos dois artigos sobre os Andrades, Oswald de Andrade
escrevera a Tristão de Athayde, convidando-o para participar de um debate:
Tristão, Proposta definitiva. Para circunscrever a questão – três católicos, três
opositores. Alexandre Correia abrirá. Eu falarei. Depois Tasso e Raul Bopp. Você
fechará o debate com alguém do nosso lado que examinará o seu ponto de vista.
Oswaldo Costa. Em seguida, se houver interesse, inquérito etc. Serve?135
À época em que Tristão de Athayde encaminhava a sua conversão, Oswald de Andrade
lançara o “Schema ao Tristão de Athayde” na Revista de Antropofagia. Trata-se de um texto
complexo, com várias referências à psicanálise, à história do Brasil e ao catolicismo esposado
pelo crítico. O autor paulista reivindica a pesquisa existente em seus trabalhos que não poderiam
ser vistos como mera reprodução de um “primitivismo” solicitado pelo exterior:
Saberá você que pelo desenvolvimento lógico da minha pesquisa, o Brasil é um grilo
de seis milhões de quilômetros, talhado em Tordesilhas. Pelo que ainda o instinto
antropofágico de nosso povo se prolonga até a seção livre dos jornais, ficando bem
como símbolo de uma consciência jurídica nativa de um lado a lei das doze tábuas
sobre uma caravela e do outro uma banana136.
Neste “Esquema”, Oswald de Andrade esboça uma concepção sintética da realidade nacional,
ou da condição nacional, assumindo a ironia de cada processo histórico, mas também a
inquietude, o “grilo”, que representa a reflexão sobre o país:
Da mesma maneira nós todos com o padre Cícero à frente somos católicos romanos.
Romanos por causa do centurião das procissões. Não foi inútil vermos de olhos de
criança a via-láctea das semanas santas emparedadas com o soldado e a legião, atrás
da cruz. O Cristianismo absorvemo-lo137.
A articulação do filho concebido por milagre, “filho só da mãe”, e a antropofagia presente no
culto máximo cristão:
Mas o fato é que há também a antropofagia na comunhão. Este é o meu corpo, Hoc
est corpus meum. O Brasil índio não podia deixar de adotar um deus filho só da mãe
que, além disso, satisfazia plenamente gulas atávicas. Católicos romanos.
A defesa da posse em detrimento da propriedade, tanto no domínio material, o “nomadismo
anterior”, quanto no sexual, na precedência de Casanova sobre Menelau e a defesa do sex
symbol, Rodolpho Valentino, embora permaneça um tom irônico, “isso é que é importante”,
134
ATHAYDE, Tristão de. Os Andrades II, O Jornal, Rio de Janeiro, 5 fev. 1928, p. 4.
Carta de Oswald de Andrade a Tristão de Athayde, 22/2/1928, acervo CAAL.
136
ANDRADE, Oswald. Schema ao Tristão de Athayde. Revista de antropofagia, São Paulo, ano 1, no 5, setembro
de 1928, p 3.
137
ANDRADE, Oswald. Schema ao Tristão de Athayde. Revista de antropofagia, p 3.
135
614
que não admite muitas conclusões:
O fato do grilo histórico, (donde sairá, revendo-se o nomadismo anterior, a verídica
legislação pátria) afirma como pedra do direito antropofágico o seguinte: A POSSE
CONTRA A PROPRIEDADE [...] Isso nos Estados Unidos foi significado ainda
ultimamente, pela defesa de Rodolpho Valentino, produzida pela gravidade de
Mencken. Tinha muito mais razão de ganhar dinheiro do que os sábios que vivem
analisando escarros e tirando botões dos narizes dos bebês. Muito mais! Porque
afinal é preciso se pesar a onda de gozo romântico que ele despejou sobre os milhões
de vidas das senhoras dos caixas e dos burocratas. Isso é que é importante138.
A legislação brasileira casuística e entregue aos desmandos de qualquer juiz, explicitando-se
sempre o país sem lei ou em que a lei nunca pega:
No Brasil chegamos à maravilha de criar o DIREITO COSTUMEIRO ANTITRADICIONAL. E quando a gente fala que o divórcio existe em Portugal desde
1910, respondem: - aqui não é preciso tratar dessas cogitações porque tem um juiz
em Piracicapiassú que anula tudo quanto é casamento ruim. [...] A Rússia pode ter
equiparado a família natural à legal, e suprimido a herança. Nós já fizemos tudo isso.
Filho de padre só tem dado sorte entre nós. E quanto à herança, os filhos põem
mesmo fora!
A crítica à tradição jurídica ocidental que legislaria sobre tudo, como uma “placenta jurídica”,
ou seja, uma vida regrada desde o nascimento que restringira o sexo, “ato de amor”, à
“concepção”. A religião brasileira devia acompanhar a variedade nacional, sem se prender a um
catolicismo ultramontano, para o qual se encaminhava o crítico:
Revisão da religião. O nosso povo tem um temperamento supersticioso, religioso.
Não contrariemos. Vamos criar a santoral brasileira: Nossa Senhora das Cobras,
Santo Antônio das Moças Tristes, tudo isso... Admitir a macumba e a missa do galo.
Tudo no fundo é a mesma coisa. O instinto acima de tudo. O índio como expressão
máxima. Educação de selva. Sensibilidade aprendendo com a terra. O Amor natural
fora da civilização, aparatosa e polpuda. Índio simples: instintivo. (só comia o forte).
É a comunhão adotada por todas as religiões. O índio comungava a carne viva, real.
O catolicismo instituiu a mesma coisa, porém acovardou-se, mascarando o nosso
símbolo.
E, mais uma vez, refutava o epíteto “primitivista”:
Quando ao equívoco de se pensar que eu quero é a tanga, afirmo e provarei que todo
progresso real humano pe patrimônio do homem antropofágico (Galileu, Fulton,
etc.) De resto, Bernard Shaw já disse: Está mais próximo do homem natural quem
come caviar com gosto de que quem se abstém do álcool por princípio”. É isso!
A Antropofagia era revisionista, reformista, falava em nova legislação pátria, a partir
de uma suposta imagem pré-colombiana: nomadismo e liberdade sexual. Falava do casamento,
do divórcio, da liberdade sexual, mas não fala em revolução, em comunismo, capitalismo ou
socialismo. Faz piada com o bacharelismo brasileiro e com a corrupção da justiça, o “juiz
Piracicapiassú”. Não por acaso Tristão de Athayde comentava a dificuldade que tinham levar a
sério Oswald de Andrade. Tudo isso parece piada. Mas, como o próprio crítico reconhecia, não
se tratava disso. Ao saber da conversão, Oswald de Andrade escrevera ao crítico lamentando
muito o fato:
138
ANDRADE, Oswald. Schema ao Tristão de Athayde. Revista de antropofagia, p. 3.
615
Meu querido crítico, Que será isso? O cristianismo é um estupefaciente como outro
qualquer. Não posso ver sem tristeza você perder o papel que lhe reserva a geração,
[...] vou ao Rio [...] e quero abraça-lo [...] Levo-lhe Serafim Ponte Grande ou o Brasil
exogâmico. Você está tão cego que não percebeu que o Brasil é o tenente Ribeiro e
que o sr Pandiá Calógeras é quando muito Macau, uma má mistura de Portugal e do
Oriente que nada tem que ver com Macunaíma. É verdade que nem você nem o
Mário – o pior crítico do mundo! – viram Macunaíma. Entre o Tenente Ribeiro e o
sr Calógeras joga-se futuro nosso139.
E